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Direito ·
Filosofia do Direito
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saraiva jur Filosofia Geral e Jurídica Ricardo Castilho 5ª edição ISBN 9788547229610 Castilho Ricardo Filosofia geral e jurídica Ricardo Castilho 5 ed São Paulo Saraiva Educação 2018 Título anterior Filosofia do direito 1 Direito Filosofia I Tıtulo 171295 CDU 34012 Índices para catálogo sistemático 1 Direito Filosofia 34012 2 Filosofia do direito 34012 3 Filosofia jurıdica 34012 Presidente Eduardo Mufarej Vicepresidente Claudio Lensing Diretora editorial Flávia Alves Bravin Conselho editorial Presidente Carlos Ragazzo Consultor acadêmico Murilo Angeli Gerência Planejamento e novos projetos Renata Pascoal Müller Concursos Roberto Navarro Legislação e doutrina Thaís de Camargo Rodrigues Edição Eveline Gonçalves Denardi Sergio Lopes de Carvalho Produção editorial Ana Cristina Garcia coord Luciana Cordeiro Shirakawa Rosana Peroni Fazolari Arte e digital Mônica Landi coord Claudirene de Moura Santos Silva Guilherme H M Salvador Tiago Dela Rosa Verônica Pivisan Reis Planejamento e processos Clarissa Boraschi Maria coord Juliana Bojczuk Fermino Kelli Priscila Pinto Marília Cordeiro Fernando Penteado Tatiana dos Santos Romão Novos projetos Laura Paraíso Buldrini Filogônio Diagramação Livro Físico Claudirene de Moura Santos Silva Revisão Luciana Cordeiro Shirakawa Rosana Peroni Fazolari Comunicação e MKT Elaine Cristina da Silva Capa Tiago Dela Rosa Livro digital Epub Produção do epub Guilherme Henrique Martins Salvador Data de fechamento da edição 14112017 Dúvidas Acesse wwweditorasaraivacombrdireito Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia autorização da Editora Saraiva A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n 961098 e punido pelo artigo 184 do Código Penal SUMÁRIO Apresentação Nota à 5ª edição PRIMEIRA PARTE PRIMÓRDIOS DA FILOSOFIA Em busca do direito A SUPREMACIA DA GRÉCIA OS FILÓSOFOS PRÉSOCRÁTICOS O direito para os présocráticos Escola jônica Os epígonos jônicos Hípon de Samos Crátilo de Atenas Arquelaos de Atenas Escola itálica ou pitagórica Os epígonos pitagóricos Hípasus de Metaponto Ecfanto de Siracusa Álcméon de Crotona Árquitas de Tarento Escola eleática Epígono eleata Escola atomista ou pluralista OS FILÓSOFOS DA GRÉCIA CLÁSSICA Os sofistas primeiros advogados Os sofistas e suas circunstâncias Os sofistas e suas ideias Os principais sofistas Sofistas da segunda geração Os sofistas e sua influência no direito Sócrates Sócrates e suas circunstâncias Sócrates e suas ideias Sócrates e sua influência no direito Platão Platão e suas circunstâncias Platão e suas ideias Platão e sua influência no direito Aristóteles Aristóteles e suas circunstâncias Aristóteles e suas ideias Aristóteles e sua influência no direito OUTRAS CORRENTES DO PENSAMENTO GREGO Epicurismo prazer com ética Epicuro e suas circunstâncias Epicuro e suas ideias Epicuro e sua influência no direito Estoicismo a resistência ao prazer Os estoicos e suas circunstâncias Os estoicos e suas ideias Entendendo a história o direito em Roma LINHA DO TEMPO PRIMÓRDIOS DA FILOSOFIA OS FILÓSOFOS DO CRISTIANISMO Santo Ambrósio precursor de Santo Agostinho Santo Agostinho religião e filosofia Santo Agostinho e suas circunstâncias Santo Agostinho e suas ideias A escolástica Santo Tomás de Aquino e a ética Santo Tomás de Aquino e suas circunstâncias Santo Tomás de Aquino e suas ideias Santo Tomás de Aquino e sua influência no direito OUTROS PENSADORES DA IDADE MÉDIA Os franciscanos ingleses Guilherme de Ockham e suas circunstâncias Guilherme de Ockham e sua influência no direito Duns Scotus e suas circunstâncias Duns Scotus e sua influência no direito Roger Bacon e suas circunstâncias Roger Bacon e sua influência no direito LINHA DO TEMPO OS FILÓSOFOS DO CRISTIANISMO SEGUNDA PARTE OS PRIMEIROS PASSOS PARA A MODERNIDADE Transição da Idade Média para a modernidade RENASCIMENTO E HUMANISMO Erasmo de Rotterdam o grande humanista Thomas Morus crítico da realeza Maquiavel e a decadência política LINHA DO TEMPO OS PRIMEIROS PASSOS PARA A MODERNIDADE TERCEIRA PARTE A IDADE MODERNA DA FILOSOFIA As circunstâncias do início da Idade Moderna A REFORMA PROTESTANTE Martinho Lutero o rebelde ativo João Calvino o teórico do protestantismo Henrique VIII e a Igreja Anglicana A CONTRARREFORMA O ÉDITO DE NANTES O ABSOLUTISMO Jean Bodin teórico do absolutismo Jacques Bossuet monarquista absoluto Thomas Hobbes e o contrato social O Brasil sob o absolutismo As Ordenações Filipinas O Iluminismo Os déspotas esclarecidos Marquês de Pombal déspota no Brasil Montesquieu e as bases do constitucionalismo Montesquieu e suas circunstâncias Montesquieu e suas ideias Montesquieu e sua influência no direito Reflexões sobre o constitucionalismo A Magna Carta Voltaire e a propaganda iluminista Voltaire e suas circunstâncias Voltaire e suas ideias Voltaire e sua influência no direito NA TANGÊNCIA DA FILOSOFIA Jonathan Swift O EMPIRISMO O empirismo e a responsabilidade de cada um A tábula rasa de John Locke John Locke e suas circunstâncias John Locke e suas ideias John Locke e sua influência no direito O empirismo de Francis Bacon Hugo Grócio e a natureza humana Hugo Grócio e suas circunstâncias Hugo Grócio e suas ideias Hugo Grócio e sua influência no direito Samuel Pufendorf o eclético Samuel Pufendorf e suas circunstâncias Samuel Pufendorf e suas ideias Samuel Pufendorf e sua influência no direito O JANSENISMO Deus e a monarquia Robert Pothier e a racionalização do direito Robert Pothier e suas circunstâncias Robert Pothier e sua influência no direito NA TANGÊNCIA DA FILOSOFIA Blaise Pascal O sensacionismo de Condillac empirismo exacerbado Condillac e suas circunstâncias Condillac e suas ideias UMA REFLEXÃO ACERCA DOS CÓDIGOS Os Códigos Napoleônicos O Código Civil alemão A ESCOLA HISTÓRICA DO DIREITO Savigny precursor do Código Civil alemão Savigny e suas circunstâncias Savigny e suas ideias Savigny e sua influência no direito Georg Friedrich Puchta e a jurisprudência dos conceitos Georg Friedrich Puchta e suas circunstâncias Georg Friedrich Puchta e suas ideias Georg Friedrich Puchta e sua influência no direito Rudolf von Ihering e a luta pelo direito Rudolf von Ihering e suas circunstâncias Rudolf von Ihering e suas ideias Rudolf Von Ihering e sua influência no direito David Hume empirista radical Hume e suas circunstâncias Hume e suas ideias Hume e sua influência no direito LIBERALISMO E RACIONALISMO O conceito de propriedade A propriedade na doutrina brasileira Liberalismo no Brasil Merquior um pensador liberal do século XX Merquior e suas circunstâncias Merquior e suas ideias RACIONALISMO René Descartes e a dúvida metódica Descartes e suas circunstâncias Descartes e suas ideias Malebranche e a busca da verdade Malebranche e suas circunstâncias Malebranche e suas ideias Baruch Espinosa e a substância única Baruch Espinosa e suas circunstâncias Baruch Espinosa e suas ideias Gottfried Leibniz e a monadologia Leibniz e suas circunstâncias Leibniz e suas ideias Leibniz e sua influência no direito Christian Wolff o racional iluminado Christian Wolff e suas circunstâncias Christian Wolff e suas ideias Christian Wolff e sua influência no direito NA TANGÊNCIA DA FILOSOFIA Adam Smith o liberalismo na economia Adam Smith e suas circunstâncias Adam Smith e suas ideias Adam Smith e sua influência no direito Isaac Newton o liberalismo na ciência Isaac Newton e suas circunstâncias Isaac Newton e suas ideias Rousseau e o contrato social Rousseau e suas circunstâncias Rousseau e suas ideias Rousseau e sua influência no direito FrançoisRené de Chateaubriand e o bom selvagem Alexis de Tocqueville e a sistematização da democracia Alex de Tocqueville e suas circunstâncias Alexis de Tocqueville e suas ideias Alexis de Tocqueville e sua influência no direito LINHA DO TEMPO A IDADE MODERNA DA FILOSOFIA QUARTA PARTE A SÍNTESE NA FILOSOFIA Immanuel Kant o grande filósofo do iluminismo Kant e suas circunstâncias Kant e suas ideias Kant e sua influência no direito Kant e o imperativo categórico Johann Gottlieb Fichte e o Estado forte Fichte e suas circunstâncias Fichte e suas ideias Fichte e sua influência no direito Schelling e a natureza autônoma Schelling e suas circunstâncias Schelling e suas ideias Hegel e a síntese dos opostos Hegel e suas circunstâncias Hegel e suas ideias Hegel e sua influência no direito O DECLÍNIO DO RACIONALISMO O idealismo romântico na Alemanha NA TANGÊNCIA DA FILOSOFIA Charles Darwin e a evolução das espécies Precursores da teoria da evolução natural Oliver Wendell Holmes Jr e o realismo jurídico Oliver Wendell Holmes Jr e suas circunstâncias Oliver Wendell Holmes Jr e suas ideias Oliver Wendell Holmes Jr e sua influência no direito Jerome Frank e o americanismo Jerome Frank e suas circunstâncias Jerome Frank e sua influência no direito DEBATES EM TORNO DA FILOSOFIA DE KANT Sören Kierkgaard um crítico da razão Kierkgaard e suas circunstâncias Kierkgaard e suas ideias Arthur Schopenhauer o pessimista Schopenhauer e suas circunstâncias Schopenhauer e suas ideias Friedrich Nietzsche e o poder Nietzsche e suas circunstâncias Nietzsche e suas ideias MUNDO NOVO o materialismo O materialismo Ludwig Feuerbach e o materialismo dialético Feurbach e suas circunstâncias Feuerbach e suas ideias LINHA DO TEMPO A SÍNTESE NA FILOSOFIA QUINTA PARTE A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA Uma ideia universal de justiça CAPITAL E TRABALHO O SOCIALISMO Principais nomes do socialismo utópico O socialismo científico ou socialismo marxista Friedrich Engels e o materialismo histórico Friedrich Engels e suas circunstâncias Friedrich Engels e suas ideias Karl Marx e a revolução de classes Karl Marx e suas circunstâncias Karl Marx e suas ideias Entendendo a maisvalia Karl Marx e sua influência no direito Manifesto comunista Georg Lukács e a totalidade Georg Lukács e suas circunstâncias Georg Lukács e sua influência no direito Antonio Gramsci e a emancipação pela educação Gramsci e suas circunstâncias Gramsci e suas ideias A FALÊNCIA DA FÉ O POSITIVISMO Augusto Comte e a ordem como valor Augusto Comte e suas circunstâncias Augusto Comte e suas ideias John Stuart Mill e as mudanças sociais John Stuart Mill e suas circunstâncias John Stuart Mill e suas ideias John Stuart Mill e sua influência no direito Herbert Spencer o inconformado Herbert Spencer e suas circunstâncias Herbert Spencer e suas ideias O POSITIVISMO NO BRASIL Eugen Ehrlich e a sociologia do direito Eugen Ehrlich e suas circunstâncias Eugen Ehrlich e suas ideias Eugen Ehrlich e sua influência no direito Émile Durkheim um dissidente do positivismo Durkheim e suas circunstâncias Durkheim e suas ideias Durkheim e sua influência no direito PENSADORES ALEMÃES DO SÉCULO XX Versalhes um tratado que mudou o mundo A República de Weimar Um caso à parte a Escola de Frankfurt Max Horkheimer e a Teoria crítica Max Horkheimer e suas circunstâncias Max Horkheimer e suas ideias Theodor Adorno e a indústria cultural Theodor Adorno e suas circunstâncias Theodor Adorno e suas ideias Theodor Adorno e sua influência no direito Herbert Marcuse e a ditadura da tecnologia Herbert Marcuse e suas circunstâncias Herbert Marcuse e suas ideias Herbert Marcuse e sua influência no direito NA TANGÊNCIA DA FILOSOFIA Sigmund Freud o criador da psicanálise Albert Einstein e a física moderna Filósofos positivistas do século XX Henri Bergson e o fim da era cartesiana Henri Bergson e suas circunstâncias Henri Bergson e suas ideias Edmund Husserl e o método fenomenológico Edmund Husserl e suas circunstâncias Edmund Husserl e suas ideias Bertrand Russell e a filosofia na vida política Bertrand Russell e suas circunstâncias Bertrand Russell e suas ideias O Manifesto RussellEinstein Carlos Cossio e a teoria egológica Carlos Cossio e suas circunstâncias Carlo Cossio e sua influência no direito Ludwig Wittgenstein e a precisão da linguagem Ludwig Wittgenstein e suas circunstâncias Ludwig Wittgenstein e suas ideias O Círculo de Viena e o positivismo lógico Moritz Schlick e suas circunstâncias Rudolf Carnap e suas circunstâncias Karl Popper e suas circunstâncias O EXISTENCIALISMO Martin Heidegger e o sernomundo Martin Heidegger e suas circunstâncias Martin Heidegger e suas ideias Martin Heidegger e sua influência no direito Giorgio Del Vecchio e a pessoa humana Giorgio Del Vecchio e suas circunstâncias Giorgio Del Vecchio e sua influência no direito Hannah Arendt e a condição humana Hannah Arendt e suas circunstâncias Hannah Arendt e suas ideias Hannah Arendt e sua influência no direito NA TANGÊNCIA DA FILOSOFIA Mahatma Ghandi e a não violência Carl Schmitt fé e política Carl Schmitt e suas circunstâncias Carl Schmitt e suas ideias JeanPaul Sartre e o espírito da solidariedade JeanPaul Sartre e suas circunstâncias JeanPaul Sartre e suas ideias Maurice MerleauPonty e a linguagem do corpo Maurice MerleauPonty e suas circunstâncias Maurice MerleauPonty e suas ideias LINHA DO TEMPO A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA SEXTA PARTE A FILOSOFIA DO DIREITO CONTEMPORÂNEA O NEOKANTISMO Max Weber e a influência recíproca entre direito e economia Max Webber e suas circunstâncias Max Weber e suas ideias Max Weber e sua influência no direito Rudolf Stammler e o direito como querer Rudolf Stammler e suas circunstâncias Rudolf Stammler e sua influência no direito Oskar von Büllow e o processo como relação jurídica Oskar von Büllow e suas circunstâncias Oskar von Büllow e suas ideias Oskar von Büllow e sua influência no direito Gustav Radbruch contra a injustiça legal Gustav Radbruch e suas circunstâncias Gustav Radbruch e suas ideias Gustav Radbruch e sua influência no direito José Ortega y Gasset e a rebelião das massas José Ortega y Gasset e suas circunstâncias José Ortega y Gasset e suas ideias Wilhelm Dilthey natureza e vida William Dilthey e suas circunstâncias Wilhelm Dilthey e suas ideias Wilhelm Dilthey e sua influência no direito O POSITIVISMO FILOSÓFICO E O POSITIVISMO JURÍDICO Origens do positivismo jurídico A Escola da Exegese A escola científica John Austin fundador do positivismo jurídico John Austin e suas circunstâncias John Austin e suas ideias John Austin e sua influência no direito Jeremy Bentham e o princípio da utilidade Jeremy Bentham e suas circunstâncias Jeremy Bentham e suas ideias Jeremy Bentham e sua influência no direito Hans Kelsen e o positivismo jurídico Hans Kelsen e suas circunstâncias Hans Kelsen e suas ideias Hans Kelsen e sua influência no direito Herbert Hart e a conceituação do direito Herbert Hart e suas circunstâncias Herbert Hart e suas ideias Herbert Hart e sua influência no direito O NEOPOSITIVISMO Michel Foucault e o poder Michel Foucault e suas circunstâncias Michel Foucault e suas ideias Michel Foucault e sua influência no direito NORMATIVISMO JURÍDICO O PÓSMODERNISMO Jacques Derrida e a desconstrução Jacques Derrida e suas circunstâncias Jacques Derrida e suas ideias Jacques Derrida e sua influência no direito JeanFrançois Lyotard e a ausência de crenças JeanFrançois Lyotard e suas circunstâncias JeanFrançois Lyotard e suas ideias JeanFrançois Lyotard e sua influência no direito Richard Rorty e a ironia necessária Richard Rorty e suas circunstâncias Richard Rorty e suas ideias Richard Rorty e sua influência no direito Jürgen Habermas e os direitos humanos Jürgen Habermas e suas circunstâncias Jürgen Habermas e suas ideias Jürgen Habermas e sua influência no direito John Rawls e a teoria da justiça John Rawls e suas circunstâncias John Rawls e suas ideias John Rawls e sua influência no direito Ronald Dworkin e a negação do positivismo jurídico Ronald Dworkin e suas circunstâncias Ronald Dworkin e suas ideias Ronald Dworkin e sua influência no direito Niklas Luhmann a lei como sistema social Niklas Luhmann e suas circunstâncias Niklas Luhmann e suas ideias Niklas Luhman e sua influência no direito Norberto Bobbio filósofo da democracia Norberto Bobbio e suas circunstâncias Norberto Bobbio e suas ideias Norberto Bobbio e sua influência no direito Chaïm Perelman e a moderna retórica Chaïm Perelman e suas circunstâncias Chaïm Perelman e suas ideias Chaïm Perelman e sua influência no direito Amartya Sen a liberdade e o desenvolvimento Amartya Sen e suas circunstâncias Amartya Sen e suas ideias Amartya Sen e sua influência no direito LINHA DO TEMPO A FILOSOFIA DO DIREITO CONTEMPORÂNEA SÉTIMA PARTE FILOSOFIA DO DIREITO CONTEMPORÂNEA NO BRASIL Clóvis Beviláqua autor do Código Civil brasileiro Clóvis Beviláqua e suas circunstâncias Clóvis Beviláqua e suas ideias Clóvis Beviláqua e sua influência no direito Farias de Brito Deus e a ordem moral Farias de Brito e suas circunstâncias Farias de Brito e suas ideias Farias de Brito e sua influência no direito Pontes de Miranda um pensador social Pontes de Miranda e suas circunstâncias Pontes de Miranda e suas ideias Pontes de Miranda e sua influência no direito CirneLima e a sistematização da Filosofia CirneLima e suas circunstâncias CirneLima e suas ideias Miguel Reale e a tridimensionalidade do direito Miguel Reale e suas circunstâncias Miguel Reale e suas ideias Miguel Reale e sua influência no direito Tercio Sampaio Ferraz Junior e a teoria da comunicação Tercio Sampaio Ferraz Junior e suas circunstâncias Tercio Sampaio Ferraz Junior e suas ideias Tercio Sampaio Ferraz Junior e sua influência no direito Goffredo Telles Junior e o direito quântico Goffredo Telles Junior e suas circunstâncias Goffredo Telles Junior e suas ideias Goffredo Telles Junior e sua influência no direito Lourival Vilanova e o direito livre Lourival Vilanova e suas circunstâncias Lourival Vilanova e suas ideias Lourival Vilanova e sua influência no direito Linha do tempo FILOSOFIA DO DIREITO CONTEMPORÂNEA NO BRASIL Referências Para meu Pai Osvaldo Castilho in memoriam Um homem do qual caíram os costumeiros grilhões da vida a tal ponto que ele só continua a viver para conhecer sempre mais deve poder renunciar sem inveja e desgosto a muita coisa a quase tudo o que tem valor para os outros homens develhe bastar como a condição mais desejável pairar livre e destemido sobre os homens costumes leis e avaliações tradicionais das coisas Friedrich Nietzsche Humano demasiado humano 34 APRESENTAÇÃO A filosofia do direito observa o direito como ele é e pensa no direito como deveria ser Algo como a gramática descritiva que analisa o comportamento da língua para auxiliar a gramática normativa a estabelecer as regras gramaticais Já dizia Max Weber que o homem tem menos sentido como indivíduo do que como agente social O liberal em desespero conforme o chamou Anthony Kronman1 na notável biografia que produziu sobre o pensador alemão O próprio sentido da vida humana inclusive o da preservação só existe em sociedade E sociedade significa necessariamente convivência de pessoas diferentes com urgências diferenciadas e posições por vezes divergentes Por isso mesmo onde quer que exista uma sociedade deve haver o direito ubi societas ibi jus Entretanto as sociedades mudam evoluem alteramse Justamente esta é a razão pela qual a filosofia do direito deve caracterizar uma crítica do seu tempo indicando limites para o pensamento jurídico e propondo horizontes para as ações jurídicas políticas e sociais O homem tem capacidades identificadas desde as mais remotas idades da nossa existência sobre a Terra Uma dessas capacidades é o pensamento outra a ação Aristóteles já falava em ato e potência em similaridade ao que os romanos chamavam de actio e contemplatio O homem antigo baseava suas indagações em premissas míticas ou religiosas Paulatinamente evoluiu para uma consciência racional e filosófica Entretanto durante muitos séculos ainda a referência religiosa e a racional coexistiram no seio das sociedades da Idade Antiga como facilmente se pode constatar através das principais linhas de pensamento da Grécia Clássica Não há como se falar em filosofia do direito sem a necessária remissão à história da filosofia Isso porque o status do pensamento jusfilosófico só chegou ao atual patamar graças ao conhecimento acumulado e continuamente aperfeiçoado por pensadores de tendências diversas ao longo dos séculos e dos milênios A filosofia do direito nada mais é do que a filosofia aplicada ao caso concreto do direito É a filosofia tendo como objeto particular de estudo o direito Ou como diria Hegel é a parte da filosofia que tem por objeto a ideia do direito o seu conceito e a sua realização Há autores que discordam dessa associação como estudou Javier Hervada2 Mas fiquemos com a definição acima para efeito de nosso modesto trabalho O estudo da história nos dará razão Inicialmente os filósofos consideravam como verdadeiro apenas aquilo que podia ser visto tocado e sentido fosse pelo corpo ou pelo espírito Tudo o que era oculto disfarçado ou dissimulado era falso A primeira grande evolução deuse quando pela primeira vez Parmênides ponderou que o simples fato de pensar em algo já faz com que ele exista Mesmo que ele se transforme como uma semente que um dia irá transmutarse em fruto a sua essência permanece a mesma Lançada estava assim a ideia da distinção entre o ser e o não ser uma quase revolução na história do pensamento Essa noção seria recuperada mais tarde por Descartes com o seu histórico cogito ergo sum Quando se chega à filosofia moderna percebese que todo o seu eixo gira em torno de um problema central a separação e a conexão entre o mundo ideal subjetivo que se apresenta somente como representação em nossa mente e o mundo real objetivo que existe independentemente da nossa mente e portanto em si mesmo Justamente quando o foco das meditações se volta para esse tipo de questionamento a interrelação entre o real e o ideal é que surgem com grande importância as discussões acerca dos conceitos de direito e justiça Tendo como principal objetivo a regulamentação da vida em sociedade e a solução dos conflitos que lhe são característicos enfrentar o direito vive um eterno dilema a compreensão das interrelações sociais da forma como elas são e o estabelecimento de diretrizes que possibilitem transformálas naquilo que deveriam ser É justamente para que possa cumprir tão honroso mister que o direito se socorre da filosofia como substrato necessário a essa tomada de posição entre o real e o ideal Este portanto é o campo da Filosofia do Direito a fundamentação do direito na natureza do homem como ser racional e passível de socialização Como ser social o homem enfrenta sofre e recebe mudanças de acordo com as alterações da realidade em que se encontra inserido A filosofia do direito como pensamento jurídico mais abstrato e geral deve buscar as causas e motivações das ações e do pensamento humano refletindo a respeito das modificações desejáveis da realidade de tal forma que se realizem em cada um dos campos do Direito as adaptações necessárias para tanto Simplificadamente o direito tem caráter universal A justiça deve ter caráter de respeito à individualidade O meiotermo necessário deve ser incessantemente pensado e repensado e essa é a missão que caracteriza a filosofia do direito Uma investigação filosófica que busque incessantemente a adequação da realidade jurídica mas evidentemente com base em premissas consolidadas em metodologias e sistemas que permitam análise crítica e criteriosa Portanto a filosofia do direito revisa o direito para que as normas apresentem sempre a solução mais justa possível dentro daquilo que for possível à compreensão humana conceber em cada momento histórico acerca do conteúdo de tão abstrato conceito o de justiça Percebese portanto que o direito é necessariamente um sistema vivo evolutivo baseado na ciência da vida Justamente por esse motivo teve configurações teóricas e práticas bem diferentes no decorrer da civilização E por civilização nos referimos aqui à ocidental que é aquela da qual nos ocuparemos neste livro De início na Idade Antiga especialmente na Grécia o direito era considerado como a virtude que orientava a dispensação da justiça Já na Idade Média dominava o Ius Comune nome em latim do direito romano baseado nas leis naturais como o renascimento do direito romano clássico com ampla divulgação pelo Papa Gregório VII de textos de imperadores romanos tais como o Pandectas e o Codex Na Idade Moderna o direito romano e o direito canônico passaram a oferecer uma mescla de entendimento jurídico que as universidades recémimplantadas estudavam como fonte de direito do Estado nacional que as monarquias consolidavam Mais adiante já nos séculos XVII e XVIII as leis passaram a ter por paradigma o iluminismo da ciência especialmente a geometria e a física Por fim o século XIX trouxe o constitucionalismo com o surgimento de supernormas que tinham por objetivo evitar que o Estado exorbitasse de suas atribuições de legislador produzindo leis arbitrárias A par da evolução observada no direito o próprio conceito de justiça basilar ao regramento jurídico vem também evoluindo ao longo dos séculos graças principalmente a grandes eventos que motivaram pensadores a novas análises Em outras palavras o direito evoluiu em razão de crises A mais recente crise do direito ocorreu com Karl Marx com um posicionamento seguido mais tarde por Michel Foucault Ambos de maneira pessimista consideravam que o direito não passava de instrumento de imposição da vontade dos mais fortes Entretanto não podemos nos esquecer de que Marx observou em 1845 a guerra civil francesa com o golpe de Estado que colocou Napoleão III no poder e depois a guerra francoprussiana 1870 1871 que resultou na constituição do chamado império alemão Deutsches Reich Foucault por sua vez nasceu oito anos após a Primeira Grande Guerra e viveu em plena mocidade o segundo conflito mundial com a ocupação pelos nazistas de sua França natal Natural portanto que esses dois filósofos tivessem o grau de pessimismo que pode ser notado em seu pensamento Mas coube ao inglês John Rawls iniciar em 1971 um movimento destinado a revigorar as bases do direito com seu livro A theory of justice Apenas cinco anos mais tarde o pensador alemão Jürgen Habermas publicava o seu Para a reconstrução do materialismo histórico trazendo para o escopo do direito considerações avançadas sobre o Estado Democrático e os direitos humanos Como se pode perceber para a correta compreensão e aplicação do direito imperativo que todo jurista realize uma análise percuciente da filosofia do direito bem como de seu fundamento histórico Foi justamente buscando oferecer um substrato teórico para tão nobre tarefa que desenvolvemos o presente livro Ensina Javier Hervada acerca do nascimento da ciência jurídica como conhecimento autônomo diferente do filosófico A ciência jurídica a nova ciência do direito obtida no nível fenomenológico supõe a um saber e não só uma técnica b um saber geral válido sem estar ligado à contingência do singular c alguns princípios próprios a concatenação interna de conhecimentos e sua redução à unidade sistema jurídico d limitação do conhecimento da realidade jurídica aos fenômenos observados e observáveis isto é em sua positividade enquanto captáveis fenomenologicamente sem recorrer ao nível filosófico para conhecêlos3 Não pretendemos aqui esgotar nenhuma discussão Muito pelo contrário O escopo principal é aproximar o leitor dos mais diversos fundamentos teóricos das principais correntes e escolas que já passaram ao longo da história por nossa civilização Por esse motivo optamos aqui em não entrar no mérito de cada filósofo nem avaliar a complexidade de cada pensamento Procuramos a simplicidade Em um primeiro momento realizaremos um apanhado sintético do pensamento filosófico ocidental desde as suas raízes gregas até a modernidade Posteriormente já respaldados nessa base teórica passaremos a abordar a filosofia do direito propriamente dita Isso através de uma reflexão do pensamento dos principais doutrinadores jurídicos que lançaram as bases do direito moderno e suas variantes Esperamos assim que as linhas que aqui estão sirvam de base segura para leituras de maior fôlego fornecendo desde já o necessário panorama sobre o estágio atual das principais discussões filosóficas em curso O número de filósofos e correntes de pensamento abordados e os questionamentos trazidos à baila certamente demonstrarão ao leitor atento que o direito fenômeno social que simultaneamente produz e limita os poderes político e econômico ao tempo em que tem por finalidade proporcionar segurança encontrase também repleto de pressupostos e discursos que não são tão óbvios assim e cuja demonstração passa por sérios entraves de ordem lógica A superação dessas dificuldades há que começar pelo pensamento não há dúvida As condições em que este é forjado exercem influência não apenas no conteúdo que possa vir a ter mas na própria repercussão social que possa gerar Na sociedade industrial o que importa é produzir Dessa lógica não escapou o direito de modo que ao valor justiça se agregou nas últimas décadas o valor eficiência Como consequência também no campo da filosofia do direito passouse a sustentar uma leitura econômica do direito A própria produção de obras jurídicas nessa área escasseouse eis que em comparação há outras áreas muito mais rentáveis Nosso intuito aqui é de modo singelo contribuir para a superação desse estado de coisas auxiliando tanto o leigo como o já iniciado a compreender as correntes por que enveredou o ser humano nessa nobre arte de pensar Utilizamos para tal mister linguagem simples e tanto quanto possível empregamos a terminologia própria de cada filósofo Esperamos assim contribuir para formar novas gerações de pensadores Ou minimamente despertar entusiasmos por essa marcante disciplina para a humanidade que é a filosofia do direito Ricardo Castilho São Paulo primavera de 2012 NOTA À 5ª EDIÇÃO As coisas do mundo se modificam se alternam ou se substituem Umas fenecem vitimadas pela sua própria característica de obsolescência outras nascem originadas de sua própria qualidade de regeneração Assim são as coisas assim são as pessoas E assim são as leis A dinâmica das leis não é exclusiva do Direito que apenas expressa a vontade de uma comunidade para que viva em harmonia Há leis na Física para nos ensinar como se comportam os fluidos as ondas eletromagnéticas o nascer e o pôr do sol a duração do tempo e a sua relatividade à massa ao espaço à velocidade Há leis na Medicina e nós as aprendemos para que ninguém morra antes do tempo nem adoeça por causa da ignorância Há leis ou antes pressupostos em todos os campos do conhecimento Na base de todos os pressupostos há a experiência de alguém que um dia sentouse à beira de um penhasco e considerou como é minúsculo o ser humano que habita esse gigantesco monstro chamado Terra alguém que contemplou em seguida a abóbada celeste e supôs que a própria Terra é infinitamente minúscula diante do gigante cósmico chamado universo E meditou esse alguém sobre o ar que respiramos o fogo que nos aquece a água que nos hidrata a terra que nos sustenta e ao final nos cobre Esse alguém não tinha outro instrumento que não fosse o seu pensamento Não tinha ainda o ábaco nem a calculadora científica nem o computador Tinha apenas o seu ilimitado pensamento melhor do que qualquer máquina que viria a ser inventada Esse alguém era um filósofo Diante de si enxergou um oceano Uma imensidão de possibilidades ondeando qual a gigantesca colossal imensurável massa de água que ocupa todos os vãos e reentrâncias da geografia A visão do oceano praticamente infinito levou o filósofo a pensar em todas as substâncias intangíveis que ocupam a geografia humana E pôsse ele a observar o mundo para propor conjecturas Não eram observações científicas exatas mas cognitivas que conduziam a explicações que pudessem permitir compreender o mundo suas causas e origens E continuou a observar não esse único homem que contemplava mas toda a sua estirpe de pensadores E levaram esses homens séculos e séculos de arguta e cumulativa observação para criar a Filosofia mãe de todas as ciências a despeito de não ser exata nem possuir métodos formais de comprovação Concluo a partir de refletir sobre esse homem que se sentou à beira de um penhasco naquele dia longínquo que não existe nem obstáculo que impeça o alcance do nosso pensamento nem fim nesse oceano de probabilidades Por isso não há como falar em Filosofia do Direito ou Filosofia Política Existe sim a Filosofia a célulamater do conhecimento Essa é a razão pela qual decidimos pela alteração do título da nossa obra que já alcança a sua 5ª edição Aqui tratamos de reflexões e recortes de muitos e muitos pensadores de todos os tempos que se debruçaram sobre todos os assuntos Tratamos de temas fundamentais da Filosofia aplicáveis a qualquer área do conhecimento e ao mesmo tempo basilares para a compreensão do mundo e do homem inserido no mundo Este nosso livro tem sido muitíssimo bem recebido por várias áreas de estudo além daquela para a qual foi inicialmente idealizado o Direito Nosso livro fala do mundo este vasto oceano de informações que o filósofo primeiro e todos os seus seguidores organizaram para que pudéssemos entender tanto os males que nos afligem quanto os bens que nos elevam Fica portanto rebatizada nossa modesta obra para Filosofia Geral e Jurídica Não é exatamente um batismo mas uma retomada Afinal as coisas do mundo se modificam se alternam ou se substituem A essência esta não muda São Paulo setembro de 2017 PRIMEIRA PARTE PRIMÓRDIOSdaFILOSOFIA EM BUSCA DO DIREITO Desde o momento em que o homem primitivo sentouse numa pedra e contemplou a abóbada celeste indagandose de sua própria origem e de seu próprio destino sobre a Terra aplicava um esforço racional para buscar explicações sobre o mundo Sem respostas e acossado pela infinitude de eventos que não podia explicar o homem inventou entidades O trovão o relâmpago a chuva o sol a noite Todas essas manifestações da natureza eram consideradas fenômenos causados por uma força superior à do homem e sobre as quais ele não tinha controle Eram forças de divindades cuja vontade o homem tentava adivinhar Assim que pela primeira vez um homem depois de um dia de refregas pela sobrevivência questionou em seu abrigo solitário por que o seu vizinho podia pela ameaça da clava tomarlhe a posse da cabra ou da caverna Estava lançada a dúvida acerca do que era justo e do que era direito Esse homem questionando racionalmente a validade da força sobre a posse procurando explicações para o modo de vida em grupo praticava sem saber a filosofia do direito e era ele próprio um filósofo sem o saber A avaliação racional das circunstâncias da vida em comunidade em suas variantes culturais sociais econômicas e enfim políticas começou assim esparsa aleatória sem método sem sistematização Foram os gregos antigos que pela primeira vez organizaram o pensamento filosófico especialmente no que nos interessa neste livro que é a contemplação das questões acerca dos conceitos de direito e de justiça A SUPREMACIA DA GRÉCIA A filosofia naturalista1 fundamentada na observação da natureza e do mundo físico foi o primeiro passo na organização do pensamento filosófico Em grego physis significa natureza mas tem significado mais amplo porque diz respeito à matéria essencial eterna e imutável de que é feito o universo Para os gregos antigos em seu primitivismo a natureza era considerada o centro de tudo Estamos falando de uma época que remonta a 1500 anos aC numa região situada onde hoje estão a Grécia Turquia e Chipre região ocupada então por algumas tribos como os jônios os eólios e os aqueus Eram povos eminentemente agrícolas e pastoris sem literatura de modo que o conhecimento era transmitido apenas pela tradição oral Como exemplo o grande poeta Homero nada deixou escrito toda a sua narrativa épica da guerra de Troia e a odisseia de Ulisses em sua volta para a ilha natal de Ítaca foram passadas oralmente por gerações Consta que essas narrativas foram reunidas em livros apenas por volta do século IX aC A Ilíada é considerada a mais antiga obra da literatura ocidental Os gregos tinham como líderes os monarcas num sistema político aristocrático aquele em que as elites econômicas e intelectuais formavam a classe dominante Habitavam ilhas pedregosas cujo potencial agrícola em breve ficaria exaurido forçando o desenvolvimento naval para que pudessem ocupar outras terras Esse foi o início da expansão grega contada em versos pelo poeta Homero2 O primeiro passo foi ocupar uma região da Europa que corresponde atualmente ao sul da Itália e parte da França que passou a ser denominada Magna Grécia Mais tarde os gregos ocuparam também o sudeste da Turquia na região da Anatólia onde se localizavam por exemplo Mileto e Éfeso foi a chamada Grécia Continental As aventuras navais dos argonautas gregos propiciaram o contato com outras civilizações da época levandoos a aperfeiçoar o comércio Por esse motivo a classe dos comerciantes foi alçada cada vez mais a uma condição de maior poder o que levou ao enfraquecimento da autoridade da aristocracia Consequentemente enfraqueciam também os valores que os monarcas preconizavam em relação aos mitos e à tradição cultural Paralelamente com a nova classe econômica evoluíam as artes a arquitetura e a própria organização política o indivíduo ganhava importância no conjunto da sociedade Graças a essa evolução os gregos criaram comunidades poleis baseadas em três categorias sociais homens livres ou cidadãos estrangeiros e escravos em geral advindos de povos vencidos em batalhas Supridas as necessidades básicas da sobrevivência os gregos puderam dedicarse a atividades mais contemplativas buscando entender o mundo e os fenômenos que os rodeavam Estabeleciam assim novas concepções e pensamentos críticos sobre religião ciência e política mas ainda tendo por base a natureza em seus movimentos e convulsões O homem era insignificante quase nada diante das imensas ondas do oceano e da tormentosa força da borrasca Por isso os fenômenos naturais eram ainda enigmas a serem decifrados OS FILÓSOFOS PRÉSOCRÁTICOS As primeiras explicações para fenômenos tão imponderáveis como o movimento das marés os eclipses as estações do ano a duração dos dias estavam baseadas em mitos desenvolvidos ao longo de séculos obscuros entre os quais se destacava a figura dos deuses No entanto os pensadores da época3 já não mais se satisfaziam com essas explicações por não acreditarem que tais mitos explicassem suficientemente os mistérios da natureza A filosofia grega costuma ser dividida em dois períodos antes e depois de Sócrates considerado o mais importante dos pensadores da Grécia Antiga Aqueles aos quais aqui nos referimos justamente por fazerem parte do primeiro desses períodos são chamados présocráticos Tais pensadores constituíram o que se convencionou chamar de fase inaugural da filosofia grega iniciada com Tales de Mileto por volta do ano 600 aC e perdurando até o surgimento de Sócrates aproximadamente em 440 aC Talvez a contribuição mais fundamental dos présocráticos tenha sido a contestação da antiga visão a respeito de justiça Segundo os conceitos de então os deuses detinham o papel de julgar os homens e distribuir justiça Os présocráticos entretanto começaram a se perguntar qual o papel e a participação de cada homem na atribuição da justiça assumindo assim a responsabilidade por essa tarefa antes relegada às divindades Surgiram então novos padrões de pensamento não mais de passividade e expectativa somente mas fundamentados sobre a racionalidade Infelizmente são praticamente inexistentes fontes documentais a respeito desses pensadores a não ser por testemunhos daqueles que os seguiram e por fragmentos deixados por filósofos posteriores a exemplo de Aristóteles outro dos três grandes da filosofia grega ao lado de Platão e Sócrates A fase présocrática da filosofia grega tem por base o que se convencionou chamar dualismo grego De modo simples o dualismo prega a existência de uma realidade tangível que pode ser vista ouvida sentida experimentada enquanto existe também um poder superior que move essa realidade que a fomenta que a organiza e sobre o qual os homens não têm qualquer ingerência Acreditavase no chamado Eterno Retorno isto é que as coisas seguiam acontecendo repetidamente independentemente da vontade dos homens A humanidade portanto como todos os demais elementos da realidade terrena era comandada por essa força superior É a base da noção de destino de fatalidade O direito para os présocráticos Como já afirmado para os pensadores desse período naturalista a natureza o chamado mundo exterior constituía o princípio de todas as coisas e estudála com as alterações e mudanças a que está sujeita permitia obter as explicações necessárias para as dúvidas dos homens Foi um período que durou cerca de dois séculos VI a V aC caracterizado principalmente pelas constantes indagações a respeito da origem do mundo cosmogonia O direito no pensamento présocrático tinha por base a religião Aos deuses era atribuída a posição central na órbita dos acontecimentos criadores e ordenadores do mundo eram eles que dispensavam a justiça aos homens conforme as suas vontades e humores O próprio conceito de direito tinha uma deusa por paraninfa Themis4 Era uma das deusas originais da cosmogonia grega filha de Urano e Gaia e irmã de Zeus É ela quem aparece até os dias atuais nas estátuas que simbolizam a justiça uma deusa de olhos vendados que segura em uma das mãos a balança e na outra a espada em algumas ilustrações pode aparecer segurando a cornucópia no lugar da espada Segundo a mitologia grega uma de suas filhas Dike representava a justiça Pesquisadores como Jaeger Werner5 costumam explicar que em decorrência da mitologia a palavra themis significa o direito o conjunto das normas legais impostas pela autoridade em um grupo social Mais tarde na época da Nova Atenas de Péricles que se convencionou chamar de Período Clássico surgiu a ideia de que o direito implicava necessariamente o cumprimento da justiça e a palavra dike passou a representar a preocupação com aquilo que era efetivamente justo na sociedade O período naturalista da filosofia grega é dividido em quatro correspondentes às principais escolas filosóficas que a seguir abordaremos Escola Jônica Escola Itálica Escola Eleática e Escola Atomística Escola jônica A escola jônica não é uma designação perfeita porque os pensadores que a compunham apresentavam pensamentos de tal maneira diversos que não se pode dizer que formassem uma escola Na realidade mais do que qualquer outra coisa a denominação de escola jônica tem caráter geográfico uma vez que os integrantes desse grupo eram oriundos de Mileto na Jônia região da Ásia Menor que hoje corresponde à Turquia cidade que seria posteriormente destruída pelos persas no ano de 494 aC Seus representantes os primeiros pensadores présocráticos chamados por Aristóteles de physiologoi ou aqueles que discursam sobre a natureza achavam que havia uma substância primitiva em todas as coisas do universo a constituir a matéria da qual derivavam todas as outras Era o que chamavam de matéria animada A essa matéria davam o nome de physis Em outras palavras em que pese a matéria ser algo em constante transformação deveria existir intrinsecamente a todos os corpos um núcleo comum imutável inalterável Os pensadores dessa época jamais chegaram a um consenso acerca do que seria esse elemento Tão diversas foram as teorias apresentadas que muitos pesquisadores costumam apontar dificuldades em reconhecer entre os présocráticos uma escola filosófica específica Entretanto cremos poder apontar como a maior contribuição apresentada por esses pensadores o fato de pela primeira vez a busca das explicações dos fenômenos naturais ter se afastado de formulações religiosas ou mitológicas para dar lugar a elucubrações racionais abstratas Vamos a seguir listar os mais destacados pensadores entre os présocráticos Tales de Mileto é o fundador da escola jônica e considerado o primeiro representante da filosofia ocidental Sua busca pelo princípio primordial que explicasse o mundo resumia o próprio ideal da filosofia Tales de Mileto é o mais antigo dos pensadores gregos embora tivesse nascido na Fenícia Considerava que a água era o elemento primordial da natureza Isso porque a água é a resposta que encontrou para esta sua indagação Qual é a causa última o princípio supremo de todas as coisas Nasceu em 624 e morreu em 548 aC Segundo os poucos relatos existentes sobre sua vida alguns deles divulgados por Aristóteles vários séculos depois Tales de Mileto dedicouse à filosofia mas também à engenharia especialmente em projetos voltados para o aproveitamento da água dos rios para o abastecimento das cidades à matemática e à astronomia Consta que teria sido o primeiro grego capaz de predizer eclipses lunares e solares Anaximandro de Mileto escreveu um Tratado da natureza Considerava existir um elemento indefinido que funcionava como princípio universal de todas as coisas o ápeiron ou o infinito O ápeiron é vivo imortal e imperecível Anaximandro de Mileto foi discípulo de Tales e seu sucessor na escola jônica Nasceu em 610 e morreu possivelmente em 546 aC Foi geógrafo talvez o primeiro a desenhar um mapa em que eram mostrados os continentes rodeados pelos oceanos Como matemático e astrônomo criou mecanismos de medição do tempo entre eles o relógio de sol Consta que teria avisado o povo de Esparta da ocorrência de um terremoto Anaxímenes de Mileto escreveu o livro Sobre a natureza Considerava que o ar era a substância elementar do universo a respiração para ele era a força vital mais importante Com nossa alma que é ar soberanamente nos mantém unidos assim também todo o cosmo sopra e ar o mantém Sua teoria do infinito um elemento primitivo indefinido ápeiron imperecível e em constante mutação do qual todos os corpos seriam derivados foi citado por Hipólito no livro Refutação de todas as heresias Philosophumena Anaxímenes de Mileto nasceu em 588 e morreu em 524 aC Dedicouse especialmente à meteorologia daí talvez a sua teoria considerar que o elemento primitivo o ápeiron do universo fosse o ar Todos os corpos do universo como a pedra a terra a água e mesmo o fogo seriam formas mais ou menos densas do ar Sua teoria do ar como elemento primordial foi citada pelo teólogo sírio Aécio Foi o primeiro estudioso a afirmar que a lua brilha porque recebe luz do sol Heráclito nascido em Éfeso também na Jônia por volta de 540 aC e morto possivelmente em 480 aC defendia que há uma incessante transformação no universo Nada é imutável tudo flui estamos em constante movimentação Heráclito de Éfeso com sua teoria do devir eterno em que todas as coisas do mundo se transformam em outras por causa da dinâmica natural do universo influenciou muitos filósofos ao longo dos séculos Cada coisa segundo ele é apenas um viraser de outra coisa futura Segundo ele em afirmação que seria posteriormente retomada por Leibniz e Hegel a essência do mundo é a transformação Principalmente do próprio homem noção que está expressa nesta frase Eu me busco a mim mesmo Sua frase mais conhecida é esta Não se pode percorrer duas vezes o mesmo rio e não se pode tocar duas vezes uma substância mortal no mesmo estado por causa da impetuosidade e da velocidade da mutação esta se dispersa e se recolhe vem e vai Anaxágoras de Clazômenas nasceu na Jônia no ano 500 aC mas viveu em Atenas durante trinta anos atuando como professor Anaxágoras de Clazômenas considerava que em cada coisa há uma partícula de todas as demais e que portanto tudo está em tudo Para ele havia uma força suprema uma espécie de inteligência que ordenava as coisas separando os elementos de cada corpo Fundou a primeira escola de Atenas Por isso foi reconhecido como importante precursor da divulgação do conhecimento filosófico e científico grego para o mundo Teria sido também o primeiro a conseguir explicar o fenômeno dos eclipses Sua principal obra é um pequeno tratado intitulado Sobre a Natureza Entre seus alunos mais destacados estavam os famosos generais Péricles e Tucídides e o poeta trágico Eurípedes Dando continuidade ao pensamento de seus precursores tentava equacionar a multiplicidade das manifestações da natureza com a existência de um ser único e imutável conforme pregado por Parmênides a respeito de quem falaremos adiante Para isso desenvolveu um novo princípio denominado homeomerias Segundo Anaxágoras a realidade ou o mundo sensível seria formada pelo Nous palavra geralmente traduzida como inteligência espírito ou mente que ele utilizava para identificar um algo autônomo ilimitado e puro atuando sobre uma mistura inicial de homeomerias uma espécie de semente que abrigaria um pouco da essência de todas as coisas Seria essa portanto a origem da diversidade das manifestações naturais Suas ideias o levariam a ser acusado de impiedade principalmente por ensinar que a lua tinha sido um pedaço da Terra Dessa forma buscou refúgio em Lâmpsaco na Jônia onde morreria de fome como forma de protesto ou as fontes divergem em um naufrágio a caminho da Sicília Suas ideias principalmente no que tange à existência de uma realidade superior ao mundo sensível plano de atuação de uma causa inteligente geradora das manifestações naturais e da evolução universal seriam mais tarde retomadas por Platão e Aristóteles Igualmente o conceito de homeomerias seria retomado por Leibniz na elaboração de suas teorias Os epígonos jônicos Epígono é o termo que designa o discípulo ou continuador dos pensamentos de uma escola ou de um filósofo notável Dentre os epígonos dos filósofos présocráticos jônicos citaremos os mais famosos Hípon de Samos Foi um médico de cujas obras resta apenas um pequeno fragmento mas há menções de seu trabalho em Aristóteles e em Simplício Assim como Tales de Mileto considerava que a água fosse o princípio primordial do universo Quatro outros filósofos são normalmente citados como os seguidores do pensamento meteorológico de Anaxímenes visto logo acima de que o ar fosse o princípio primordial do universo até mesmo representando Deus ou a alma São eles Hideo de Himera Cleidemo Enópides de Quios e Diógenes de Apolônia Crátilo de Atenas Seguiu o pensamento de Heráclito defendendo que tudo se move e está em perene transformação Esse pensador é citado no livro Diálogos de Platão quando debate com Hermógenes sobre a origem dos nomes das coisas Arquelaos de Atenas Foi discípulo de Anaxágoras e como ele mestre de Sócrates Afirmase que teria sido o primeiro a afirmar que a voz é o efeito da passagem do ar Nada restou do que possa ter escrito mas seu nome é mencionado por Diógenes Laércio6 como o primeiro na Jônia a tratar de filosofia natural Escola itálica ou pitagórica A escola fundada por Pitágoras também foi chamada itálica tendo em vista que esse filósofo nasceu na ilha de Samos na então Itália grega Pitágoras era um racionalista que privilegiava o raciocínio o pensamento ao contrário dos seus antecessores da escola de Mileto considerados moderados porque privilegiavam os sentidos e a experimentação Para Pitágoras a razão supera os sentidos porque permite a aquisição de conhecimentos sem o contato com a superfície experimentável dos objetos Para esse filósofo o conhecimento do Ser da verdade absoluta só é possível ao homem através de um processo de purificação Tal processo consistiria justamente na separação da alma tanto quanto possível do corpo Somente assim o pensamento não seria conspurcado pelas informações trazidas pelos sentidos que segundo Sócrates nunca asseguram qualquer verdade Sendo assim o desejo último de qualquer filósofo seria naturalmente a morte momento culminante desse processo de purificação quando enfim atingiriam tão elevado fim Com esse posicionamento opunhase aos sofistas seus contemporâneos que representavam o empirismo e condenavam os conceitos puramente racionais Para os pitagóricos a experiência podia ser espiritual como a intuição e permitia fazer avaliações de grande magnitude como a do espaço do tempo ou da essência Já aos empiristas era impossível por exemplo raciocinar sobre a distância entre planetas porque é fisicamente impossível experimentálas Destacamse na doutrina de Pitágoras o dualismo entre corpo e espírito e a noção de que os elementos do universo são complementares finito e infinito calor e frio cheio e vazio Pitágoras imaginava existir um mundo superior perfeito que servia como modelo arquetípico para o mundo real As regras gerais desse mundo ideal é que regulavam a vida dos seres que habitam a Terra A ideia seria desenvolvida mais tarde por Platão que denominaria esses arquétipos de ideias reais O racionalismo de Pitágoras sobre a validade do pensamento só voltaria a ser estudado em profundidade com a chamada Teoria do Conhecimento ou Epistemologia inicialmente por Santo Tomás de Aquino na Idade Média século XIII e na Idade Moderna por Descartes no século XVI e Leibniz no século XVII Pitágoras nasceu em Samos mas com a conquista da ilha pelos persas emigrou para Crotona no sul da península da Itália onde fundou a sua sociedade O grupo de fortes convicções religiosas defendia a ideia de que tudo o que existe no universo está em harmonia baseada em proporções equilibradas Pitágoras afirmava que o princípio essencial de todas as coisas é o número ou seja as relações matemáticas Creditase a ele o famoso teorema de que em qualquer triângulo retângulo o quadrado do comprimento da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos comprimentos dos catetos Não se conhece qualquer texto originado dele mas apenas informações dadas pelos seus seguidores principalmente Filolau de Crotona e Árquitas de Tarento Filolau de Crotona escreveu um livro um século depois de Pitágoras que teria sido estudado por Platão ele próprio um seguidor do pensamento pitagórico Esses dois fragmentos segundo se sabe foram formulados por Pitágoras e registrados no livro de Filolau E O CERTO é que todas as coisas que se conhece têm número pois sem ele nada se pode pensar ou conhecer A NATUREZA DO UNIVERSO foi harmonizada a partir de ilimitados e de limitadores e não apenas o universo como um todo mas também tudo o que nele existe Os epígonos pitagóricos O pensamento pitagórico foi seguido por diversos pensadores dentre os quais se destacam os apresentados a seguir Hípasus de Metaponto Foi matemático Nasceu em Metaponto cidade grega localizada no sul da Itália a mesma onde morreu seu mestre Pitágoras Desenvolveu várias fórmulas matemáticas principalmente aplicáveis à geometria Suas descobertas em especial a dos números incomensuráveis acabaram por contradizer a doutrina pitagórica de que tudo podia ser explicado por números racionais e acabou expulso do grupo de filósofos pitagóricos Relatos históricos afirmam que seus próprios companheiros o teriam assassinado Ecfanto de Siracusa Físico foi o primeiro estudioso a afirmar que a Terra é dotada de um movimento de rotação ao redor de seu próprio eixo Formulou uma teoria segundo a qual os elementos constituintes da matéria eram átomos tão mínimos que pareciam invisíveis e que eram separados entre si por espaços vazios Álcméon de Crotona É geralmente citado como o avô da Medicina Médico suas teorias teriam sido decisivas para a elaboração da doutrina de Hipócrates que representou a evolução médica a partir do século V aC7 Teriam contribuído para o seu trabalho outros dois médicos também epígonos de Sócrates Empédocles de Agrigento e Diógenes de Apolônia Creditase a Álcméon a autoria da primeira doutrina médica ocidental sobre o binômio saúdedoença por ter criado um sistema que investiga as leis que regulam os fenômenos da natureza Foi também um dos primeiros a dissecar animais para compreender o funcionamento dos organismos Desenvolveu a teoria humoral das doenças com base em quatro humores corpóreos a bílis amarela o sangue o fleugma e a bílis negra Restaram apenas fragmentos das obras médicas e filosóficas desse pensador É possível que ele seja autor de alguns dos textos do Corpus Hipocraticum Árquitas de Tarento Foi matemático mas também militou na música e na política Nasceu em Tarento cidade grega no sul da Itália Formulou teorias que aperfeiçoaram a matemática tirando dela a componente religiosa que os pitagóricos lhe davam Afirmava ele que mais importante que os números era a geometria Foi eleito várias vezes como governante da cidade Nessa posição notabilizouse por ter interferido junto ao tirano Dionísio para salvar a vida do seu amigo Platão Entre várias obras a ele atribuídas e das quais só existem fragmentos está Harmonia um estudo que introduziu a média harmônica na música As primeiras bibliotecas O mundo antigo começou a instituir bibliotecas no chamado século de ouro século V aC em Atenas que era considerada na época a capital intelectual do Ocidente sob o comando do general Péricles Essas primeiras bibliotecas reuniam papiros rolos de papel impresso e pergaminhos escritos em peles de animais Cerca de duzentos anos depois no século III aC todo o acervo bibliográfico grego cerca de 400000 volumes foi reunido na Biblioteca de Alexandria no Egito No ano de 642 os árabes invadiram o Egito e cometeram o grande crime do conhecimento ocidental queimaram todos os volumes existentes O que chegou até os tempos atuais foram apenas algumas cópias de documentos existentes em outros locais e umas poucas páginas que escaparam do incêndio que destruiu a história do antigo pensamento ocidental Escola eleática Com Parmênides de Eleia foi iniciado o estudo da Ontologia ciência que investiga a existência dos seres vivos e inanimados Naturalmente não haveria o estudo dos seres sem a Lógica instrumento primordial para o conhecimento Parmênides desprezava as opiniões doxa em grego porque originavamse dos sentidos Para conhecer a essência dos seres pensava ele era preciso chegar à verdade alétheia Os eleatas assim foram chamados porque esta escola foi originada na cidade de Eleia cidade grega no sul da Itália embora tivesse encontrado seguidores em Atenas para onde convergiam os gregos em função do desenvolvimento econômico e cultural da cidade O próprio Aristóteles que viveu em Atenas foi um continuador do pensamento eleático Os filósofos eleatas tinham grande identificação com o racionalismo pitagórico do qual sofreram influência No entanto enquanto aqueles imaginavam haver um mundo ideal exemplar e estruturado uma espécie de modelo matemático dentro do qual os seres viviam em obediência a regras gerais os eleatas consideravam que a transformação dos seres os entes objeto de estudo da Ontologia a partir de uma substância original é que representaria a lei geral de tudo É importante observar que os filósofos partiram inicialmente de pressupostos religiosos ou míticos para os seus postulados Aos poucos transitaram para a racionalidade o que levou à filosofia Parmênides de Eleia foi um legislador que viveu entre os anos de 530 e 460 aC Escreveu um longo poema chamado Sobre a natureza que continha as suas ideias filosóficas Considerase que Sócrates teria desenvolvido suas ideias a partir da doutrina de Parmênides Segundo Parmênides somente pela razão o homem obtém a revelação da verdade alétheia O outro lado da verdade para ele é a opinião que é enganosa e ilusória Dizia também que a verdade do ser é imutável Portanto para Parmênides a aparência não é a verdade nem pode conduzir a ela Afirmava que havia diferença entre perceber sentir as aparências do ser e pensar contemplar a realidade do ser Basicamente considerava que ser pensar e dizer eram uma coisa só Se nós podemos pensar em alguma coisa e falar sobre ela então esta coisa existe é verdadeira Essa foi a base de desenvolvimento do pensamento dos sofistas que como veremos privilegiaram a palavra o discurso A noção de permanência e imutabilidades dos seres representou uma oposição radical à filosofia então reinante mudando o foco de atenção da filosofia que passou do universo ou cosmos para o ser ou ente É considerado o primeiro materialista da história da filosofia Xenófanes de Cólofon foi principalmente poeta mas sua produção poética tem grande conteúdo filosófico Xenófanes era um cético em relação às divindades gregas Foi o primeiro filósofo a defender a ideia de um deus único Saiu de Cólofon sua cidade natal depois da invasão dos persas Sua frase mais conhecida Todo inteiro vê todo inteiro pensa todo inteiro ouve Nasceu provavelmente em 570 aC e morreu por volta de 475 aC com quase cem anos Questionou corajosamente a tradição grega de representar as divindades em forma humana e a qualidade moral desses deuses Existem 41 fragmentos de suas obras Na astronomia ensinava que existem vários sóis e várias luas no universo Zenon de Eleia conviveu com Parmênides de quem foi ferrenho defensor contra os pitagóricos buscando provar que o movimento a mudança é algo que não existe Zenão de Eleia foi o mais jovem dos eleatas É considerado o criador da dialética a técnica da argumentação Opôsse como Parmênides ao pensamento de Heráclito ao dizer que o universo é imutável porque o que muda deixa de ser Nasceu em 495 e morreu em 430 aC datas não comprovadas historicamente Escreveu vários livros Discussões Contra os físicos Sobre a natureza Explicação crítica de Empédocles Considerava impossível que algo surgisse do nada e referiase diretamente à divindade ao dizer isso Melisso de Samos foi militar e ficou famoso por ter comandado a esquadra que derrotou os atenienses do general Péricles no ano de 441 aC Também poeta escreveu Sobre o ser ou sobre a natureza poema do qual ainda existem dez fragmentos Melisso de Samos foi o seguidor de Parmênides que conseguiu sistematizar a sua doutrina Seu trabalho teve influência na escola filosófica que se seguiu a dos atomistas Tal como fez Zenon defendeu Parmênides contra os pitagóricos Além de sistematizar a doutrina eleata chegou a modificar alguns conceitos afirmou que o ser é infinito no tempo ou seja o ser é eterno Epígono eleata O mais importante dos epígonos eleatas foi Euclides nascido na Síria tendo vivido e estudado em Atenas Euclides de Alexandria é considerado o Pai da Geometria É tido como um dos matemáticos mais importantes do período clássico da Grécia com importantes descobertas na álgebra e na geometria Ensinou na escola criada pelo rei egípcio Ptolomeu I que ficou conhecida como Museu Sua principal obra Os elementos é uma coleção de treze livros publicada por volta do ano 300 aC Euclides também escreveu sobre perspectivas seções cônicas geometria esférica e teoria dos números A geometria euclidiana foi seguida pelo pensamento matemático medieval e renascentista Somente a partir da Idade Moderna foram construídos modelos de geometria não euclidianas Escola atomista ou pluralista Os filósofos présocráticos atomistas partiam da premissa de que o átomo é a substância primordial do universo Esse elemento inicial seria homogêneo em conteúdo e a maneira como se agrupa ou se compõe é que determina a diversificação dos seres e das coisas Leucipo foi o primeiro filósofo a estabelecer o átomo como elemento primordial de todas as coisas Suas descobertas tiveram grande influência na química e na física modernas Para eles o ser era o conjunto sólido de átomos O vazio onde não havia átomos segundo o pensamento desses filósofos era o não ser Foram portanto os precursores da química e da física moderna Os atomistas defendiam que conforme a maneira como os átomos se compõem os seres apresentam três diferenças estruturais na figura na ordem e na mudança E como as maneiras de composição seriam infinitas os corpos seriam infinitos ou plurais o que justifica a forma como a escola foi chamada Leucipo de Abdera também conhecido como Leucipo de Mileto ou Leucipo de Eleia nasceu provavelmente em 470 a C e morreu em 420 aC Dedicouse à astronomia e formulou a teoria de que a Lua está mais próxima que o Sol em relação à Terra Foi contemporâneo de Sócrates e Empédocles e teria sido mestre de Demócrito As informações sobre ele são fragmentadas existem referências a ele nas obras de Aristóteles Demócrito de Abdera foi discípulo de Leucipo e aprimorou a teoria atomista Demócrito de Abdera é considerado um dos primeiros filósofos materialistas Os átomos segundo ele as partículas originais de todas as coisas e seres são invisíveis indivisíveis e eternos Como Heráclito defende que o homem esteja em constante movimento porque os átomos se movem Acreditase que tenha nascido em 460 aC e morrido em 370 aC Consta que teria deixado cerca de noventa obras escritas Em sua teoria o universo seria composto por átomos considerados as partículas primordiais A própria alma seria composta de átomos que por ocasião da morte do ser se desintegrariam Para Demócrito portanto já que a alma é algo físico não pode haver imortalidade Suas ideias são geralmente consideradas as mais lógicas dentre os filósofos présocráticos Empédocles de Agrigento datas prováveis de nascimento e morte 490 e 430 aC foi médico e estudou a evolução dos seres vivos Empédocles de Agrigento foi um seguidor das ideias de Pitágoras com relação à constituição da matéria Criou uma doutrina em que havia uma raiz das coisas que era a composição de quatro substâncias água fogo terra e ar Os princípios de sua doutrina o amor une o ódio divide Para ele não havia um princípio único para todas as coisas mas misturas em níveis diferentes de quatro substâncias água fogo terra e ar Cada uma dessas substâncias era igualmente importante e cada ser era diferente na medida da proporção em que elas se misturavam Aristóteles mais tarde chamaria essas substâncias de elementos Entre as conquistas de Empédocles nas pesquisas físicas está a de ter provado a existência do ar que chamava de éter Empédocles foi também político e implantou iniciativas de prevenção de saúde como drenagem de cursos dágua Com isso teria evitado uma epidemia de malária É tido justamente por isso como o primeiro sanitarista Deixou dois livros escritos na forma de poemas São eles Sobre a natureza e Purificações Eratóstenes considerado o Pai da Geografia nasceu na cidade de Cirene antiga colônia grega depois incorporada ao Egito por Ptolomeu III atualmente está na Líbia no ano de 276 aC Passou a juventude estudando em Atenas Além de filósofo présocrático foi geógrafo e astrônomo tendo realizado importantes estudos com base na matemática Entre outras realizações desenvolveu um método para medir as dimensões da Terra tendo sido o primeiro a calcular o raio do planeta Criou também um algoritmo ainda hoje utilizado que serve para encontrar números primos Escreveu livros técnicos de astronomia geometria e geografia e também um volume de poemas Seu trabalho lhe rendeu convite para ser professor do herdeiro do faraó Ptolomeu III do Egito da longa dinastia ptolomaica à qual pertenceu Cleópatra filha de Ptolomeu XII Em 236 aC o faraó o nomeou bibliotecáriochefe da importante Biblioteca de Alexandria no Egito Permaneceu na função até morrer em 194 aC OS FILÓSOFOS DA GRÉCIA CLÁSSICA Os sofistas primeiros advogados Sócrates representou o novo pensamento grego uma revolução filosófica que ainda hoje influencia e inspira os pensadores Antes de falarmos dele entretanto é preciso lembrar que na mesma época desenvolveuse uma escola de filosofia que teve por base o discurso Era a escola dos sofistas Esses pensadores desenvolveram a oratória e a capacidade de argumentação a tal ponto que se profissionalizaram passaram a exigir remuneração para ensinar bem como para defender causas e pontos de vista Foram por esse motivo os primeiros advogados de que se tem notícia Com os sofistas a dialética estabelecida anteriormente por Zenon ultrapassou as fronteiras da metafísica tornandose universal Entendiam que a natureza não bastava para explicar o mundo Mas não tinham como intenção buscar a verdade como os présocráticos pretendiam até porque pregavam a inexistência de verdades absolutas Ao contrário utilizavamse da dialética e do conhecimento como recursos de ascensão social SOFISTA QUER DIZER mestre da sabedoria Os sofistas e suas circunstâncias Sob o comando do general Péricles e tendo se beneficiado pela migração de milhares de gregos de localidades na Magna Grécia que como já vimos era a designação da região do sul da Itália invadida pelos persas Atenas havia se tornado um poderoso centro econômico Atenas por isso era integrada por pessoas de diversas culturas que ajudavam a enriquecer a sociedade grega Mais que isso Atenas estava sob regras políticas avançadas para a época Os cidadãos habitantes que não fossem nem estrangeiros nem escravos eram os que decidiam em discussões públicas as questões importantes para a administração das comunidades Nessas discussões a habilidade da oratória era importante para a formação de seguidores de modo a fazer aprovar projetos Quanto a esse aspecto Protágoras o idealizador da sofística dizia que uma ideia só ganhava força quando era compartilhada Justamente por isso pregava a necessidade de um discurso forte e convincente Assim a participação dos cidadãos crescia cada vez mais na administração das cidades Era praticamente a decadência da aristocracia e o alvorecer da democracia Pela ausência de guerras com os vizinhos Atenas e boa parte da Grécia vivia um período histórico sem grandes perturbações Atenas sob o comando dos generais Milcíades e Temístocles já havia vencido os reis persas Dario e Xerxes que ocupavam a Jônia nas chamadas Guerras Médicas Nesse ambiente de prosperidade e de paz os pensadores tinham tempo e condições para se dedicar a atividades mais contemplativas A modificação nos hábitos políticos que resultaria em mudança de costumes e até de atitudes deixou clara a necessidade de investimento na educação do povo Os sofistas considerados mestres da sabedoria surgiram nesse período tendo como meta humanizar a cultura ou seja mostrar de que modo na prática o homem pode se beneficiar dos achados filosóficos Atuaram em várias partes da Grécia mas seus principais representantes estavam em Atenas a capital cultural do Ocidente Com a mudança social que então era observada a noção de que o direito seria um conjunto de normas que os deuses haviam enunciado para organização da polis e das poleis passou a ser questionada Passaram assim a pregar a responsabilidade do homem no cumprimento do que fosse realmente justo ou seja a dike Os sofistas e suas ideias Enquanto os présocráticos queriam entender a natureza das coisas os sofistas discutiam as convenções que o homem em sociedade havia estabelecido Para esses pensadores verdade moral justiça e todos os demais preceitos sociais não passavam de invenções humanas Em outras palavras não seriam coisas verdadeiras mas apenas juízos sobre as coisas A grande crítica feita aos sofistas principalmente por Sócrates e Aristóteles que os consideravam céticos8 esteve sempre relacionada à forma como viam os valores e as questões éticas Para os sofistas o que realmente importava eram o interesse e a conveniência pessoal Em nome de uma vantagem ou de um benefício usavam todos os recursos do discurso para demonstrar aquilo que mais lhes conviesse fosse verdadeiro ou falso9 Essa argumentação baseada na retórica e muitas vezes até em raciocínios ilógicos ficou conhecida como sofisma A sofística pregava a satisfação dos desejos e dos instintos Digase em defesa deles que consideravam que os présocráticos ocupavamse de assuntos irrelevantes para o dia a dia dos cidadãos e por isso buscavam analisar temas de maior aplicação na vida prática das poleis De qualquer modo dada a relatividade dos valores já que esses podiam variar de pessoa para pessoa os sofistas praticamente impediam com sua filosofia o estabelecimento de normas gerais de comportamento em sociedade Portanto tornavam impossível a aplicação de direitos para todos os cidadãos e mais que tudo não permitiam que se chegasse à determinação de um conceito universal de virtude coisa que Aristóteles faria mais tarde principalmente no seu livro Ética a Nicômaco O HOMEM é a medida de todas as coisas Protágoras Os sofistas não foram apenas pessoas que comerciavam seus conhecimentos como professores e oradores Também desenvolveram teorias filosóficas a respeito da vida do homem em sociedade Uma delas que ganha sentido quando se pensa em democracia era a de que o Bem não pode estar só nem pode ser único Para fazer o bem portanto o homem precisava ter apoio de outros homens às suas ideias como já vimos era a teoria do discurso forte de Protágoras que em última análise devia levar ao discurso unânime Protágoras sofista que viveu entre 492 aC e 422 aC é tido como o primeiro a utilizar o termo filosofia no sentido daquele que anseia pelo conhecimento Os principais sofistas Protágoras foi o primeiro a cobrar para dar aulas Foi o idealizador da sofística afirmava que como seu objetivo era formar cidadãos por meio da educação política merecia ser chamado sofista mestre da sabedoria Sua teoria baseavase na premissa de que o homem é a referência de tudo Dizia O homem é a medida de todas as coisas das coisas que são enquanto são das coisas que não são enquanto não são Protágoras nasceu possivelmente em 492 aC dois anos antes da invasão das tropas do rei Dario da Pérsia atual Irã na Magna Grécia Viveu até 422 aC Sua existência tem algo de lendária mas de acordo com referências de Aristóteles que escreveu sobre ele no livro Sobre a educação teria vindo de família modesta tendo inclusive desempenhado funções de auxiliar em estabelecimentos de transporte de cargas Chegou a ser amigo íntimo do dirigente ateniense Péricles que o chamou para escrever a constituição de Thurii cidade construída pelos atenienses onde antes existira Sibaris um balneário famoso Sibaris foi tão opulenta que o gentílico sibarita ainda hoje quer dizer pessoa dada aos prazeres físicos à voluptuosidade e à indolência Thurii foi anexada por Roma sendo mais tarde devastada pelo exército de Aníbal durante a Segunda Guerra Púnica Protágoras escreveu duas obras importantes Na primeira As antilogias trata da natureza recíproca dos contrários visível e invisível crença e descrença o que o levou a duvidar da existência de um ser divino No livro seguinte A verdade afirma que o homem é que devia ser o centro de todos os contrários Por causa disso foi expulso de Atenas e suas obras foram queimadas Górgias de Leontini foi escolhido para viajar a Atenas no ano de 427 aC para pedir aos gregos que socorressem sua cidade natal Leontinos sob ameaça de invasão dos habitantes da italiana Siracusa Como sofista defendeu com tamanha eloquência a causa diante da Assembleia do Povo que foi contratado como professor de filhos de aristocratas Górgias nasceu na Magna Grécia em 483 ou 484 aC e morreu com mais de cem anos Das obras de todos os sofistas é dele a maior quantidade de fragmentos preservados possivelmente porque foi o mais famoso na sua época Seus livros tratam especialmente da ontologia e da retórica Os principais são O elogio de Helena A defesa de Palamedes Sobre o não ser ou sobre a natureza A oração fúnebre O discurso olímpico O elogio dos elisinos O elogio de Aquiles A arte oratória e O onosmástico Defendia a ideia de que a poesia cria uma ilusão mas uma ilusão legítima e desejável É razoável supor que a poesia para ele representava a arte da linguagem instrumento dos sofistas para a criação de uma ilusão justificada Seu conceito retórico mais conhecido embora já existisse na época de Pitágoras é o kairós momento oportuno tempo certo que em teologia significa o tempo de Deus É diferente de chronos o tempo cronológico humano que pode ser medido pelo relógio Isócrates nasceu em Atenas 436 aC e foi aluno de Górgias Conviveu com Platão e Sócrates Fundou a paideia como ideal educacional da Grécia Assim como fez Platão afirmava que a educação deve ter algo mais do que apenas ginástica música e linguagem Deveria construir o homem como pessoa e como cidadão Para defender a paideia escreveu um manifesto chamado Contra os sofistas em que censura a técnica retórica vazia de sentido que só servia para mostrar conhecimento e talento bem como aqueles que não buscam a verdade Nesse manifesto sua grande crítica é de que os sofistas como professores pagos não ensinavam mas apenas adestravam seus alunos Sofistas da segunda geração Isócrates dizia que a verdadeira educação paideia é que dá ao homem o desejo de se tornar um cidadão perfeito e justo Defendia que o estudo das humanidades era mais importante que o ensino das ciências Para ele ninguém pode aprender a ser sábio e justo se não tiver inclinação para a virtude Creditase aos sofistas da segunda geração o desenvolvimento da erística uma espécie de exercício retórico que privilegiava a persuasão Mas há que se considerar que as ideias de Górgias foram fundamentais para isso dentro do raciocínio de que o poeta ou artista como Górgias se referia aos que dominavam a arte da linguagem devia criar uma ilusão boa que compensasse o sofrimento causado pelas contradições da realidade Vamos a seguir enumerar os mais conhecidos Pródico Escreveu pelo menos uma grande obra chamada As estações em que discorre sobre as interferências das entidades divinas sobre os destinos do homem Isso porque segundo ele os deuses podiam se transformar no que quisessem como o pão o vinho ou o fogo Sendo assim sua teoria é de que o homem é capaz de escolhas mas sempre sob orientação de uma divindade Com isso prega a formação do homem para uma vida prática voltada às artes e ao conhecimento da natureza Hípias Escreveu discursos obras filosóficas e obras poéticas Exaltava a natureza considerandoa composta de coisas distintas mas unidas por algo que lhes dava continuidade Tendo por pilar de pensamento essa totalidade esse grande todo que é a natureza rejeitava qualquer separatismo inclusive a diferença que se pensava existir entre o ser concreto e sua essência De sua teoria da natureza sobreveio uma abordagem antropológica de mesmo sentido Dizia que a lei é o tirano dos homens Trasímaco Foi possivelmente o primeiro a denunciar formalmente o que se considera o principal defeito da democracia o de ser o sistema das maiorias Achava que o problema da justiça era filosófico e não histórico Defendia a concórdia ou a conciliação como solução para os conflitos Diferenciava a ética da política e considerava ambas coisas dissociadas Os sofistas e sua influência no direito Isócrates pregava que o homem precisava da paideia a verdadeira educação para utilizar uma inclinação natural para a virtude no aprendizado da sabedoria e da justiça Hípias um racionalista achava que a lei positiva disciplinava a atitude do homem diante da natureza para instaurar a verdadeira justiça Mas que a lei só servia aos poderosos Por isso estudou muitas legislações positivas com o intuito de reformar a democracia Trasímaco por sua vez também via a lei como mero instrumento do poder e que estava longe de ser como deveria o enunciado racional que garantisse a moralidade Notese como fechamento deste tópico que os sofistas despertaram entusiasmo de muitos e ódio de outros tantos Não tiveram unanimidade como ninguém teve em todo o mundo O fator positivo dos sofistas o que de longe supera a sua infâmia de vendedores de conhecimento é que representaram a diversidade propiciada por uma grande mudança social que se operava na cidade de Atenas e de resto em toda a Grécia Mais que tudo esses filósofos foram os primeiros a apresentar a ideia de que o destino do homem está nas mãos do próprio homem contribuindo inclusive para a construção e consolidação da democracia grega Sócrates Em Atenas graças aos sofistas o pensamento evoluíra do naturalismo para uma definição de que o homem tinha responsabilidade ocasional sobre a construção das coisas do mundo Sócrates queria ir além achava que o homem devia usar a razão para encontrar o que é justo Sócrates e suas circunstâncias Sócrates dizia que quando o homem alcança conhecer a verdade necessariamente passa a agir bem porque o bem está indissociavelmente ligado à verdade Quem agisse mal segundo ele faziao por ignorância Seus alunos mais destacados foram Platão e Aristóteles que registraram os seus ensinamentos já que não deixou nada escrito A cidadeEstado de Atenas como já vimos experimentava grande pujança Vitoriosa sobre os persas tornarase o centro militar da época Dirigida pelo iluminado Péricles tinha comércio poderoso boas escolas incentivo às artes e estava organizada sob um sistema político inovador e inclusivo a democracia idealizada por Sólon um dos sete sábios da Grécia antiga10 A principal criação da democracia de Sólon era a eclésia como era chamada a assembleia popular Nessas assembleias os cidadãos podiam falar livremente defendendo pontos de vista sobre a administração da cidade e projetos de desenvolvimento Não havia líderes eleitos para falar em nome do povo como na democracia atual A palavra podia ser tomada por qualquer pessoa que reunisse as condições então necessárias para ser considerada cidadã ser homem ser livre ser natural de Atenas e estar em idade produtiva por isso estavam excluídos os velhos e as crianças Como a boa argumentação e a boa retórica eram importantes para um desempenho favorável nas assembleias muitas pessoas contratavam os sofistas para que lhes ensinassem a bem expor suas ideias ou até para falar em nome delas Levantouse Sócrates contra os sofistas seus contemporâneos que ele se recusava a chamar de filósofos condenando isso que denominava de venda de ideias Sócrates viveu entre 470 e 399 aC Era pobre filho de uma parteira Não criou uma escola Ensinava onde pudesse reunir seus alunos Algo como o nosso brasileiro Paulo Freire que dizia que o bom professor pode dar aulas até embaixo de uma mangueira Sócrates percorria a cidade de Atenas praticando a sua técnica do diálogo com os jovens sempre em lugares públicos Essa técnica chamada maiêutica ou parto de ideias consistia em manter um diálogo irônico que conduzia o interlocutor a aprender e a atingir conclusões Seu pensamento tinha uma sólida base ética Achava que o homem chegava a ser virtuoso quando alcançava o conhecimento Conhecete a ti mesmo dizia ele e em decorrência do conhecimento inclinavase à obediência da lei para Sócrates a obediência à lei era o que diferenciava o homem civilizado do bárbaro A democracia ateniense no entanto era uma ameaça à supremacia dos aristocratas porque dava poderes ao cidadão comum Os aristocratas que haviam perdido prestígio em razão de Atenas ter sucumbido a Esparta na Guerra do Peloponeso conflito entre Atenas e Esparta entre 431 e 404 aC achavam que era preciso um regime de governo mais forte e mais centralizado do que a democracia para resgatar o prestígio ateniense Sócrates democrata de grande popularidade estimulava os jovens de Atenas à análise crítica da sociedade e ao conhecimento dos grandes conceitos da humanidade o que é a justiça o que é a verdade Por esse motivo passou a incomodar um grupo desses aristocratas que buscaram pretextos para acusálo de corrupção da juventude ateniense Em 399 aC foi chamado diante do conselho de justiça em honra à deusa da justiça Dike os membros desse conselho eram chamados dikastas e formalmente acusado de impiedade por desrespeito aos deuses Também foi acusado de desvirtuar o pensamento dos jovens que o ouviam levandoos a se comportarem inadequadamente Declarouse inocente e travou um brilhante embate com seus acusadores Mas não pôde suplantálos Julgaramno culpado e deram a ele a alternativa de renegar suas ideias diante do conselho e caso não o fizesse seria executado por envenenamento Tão fiel foi Sócrates ao seu pensamento que considerando o conselho a expressão da lei obedeceu recusandose a desmentir seus ideais Ingeriu cicuta e morreu no cárcere Sócrates e suas ideias Talvez a maior das divergências entre Sócrates e os sofistas consistisse no seguinte enquanto os sofistas acreditavam que a justiça e até própria verdade era apenas uma convenção dos homens Sócrates achava necessário buscar o fundamento de todas as coisas porque só assim seria possível encontrar a verdade e assim chegar ao bem na vida em sociedade Sócrates e sua influência no direito O filósofo ateniense ensinou principalmente pelo exemplo Deu uma lição de submissão à lei ao acatar a decisão do tribunal de justiça de sua época ainda que discordando dele Acreditava que assim fazendo beneficiava a cidade a polis Ao mesmo tempo reafirmava suas convicções religiosas de que a sua vida virtuosa lhe dava direito a uma vida feliz do outro lado da vida Uma convicção religiosa que os seus acusadores disseram que ele não tinha A condenação de Sócrates teve efeitos marcantes para a filosofia porque demonstrou renunciando à própria vida o princípio da anulação ou seja que o mal deve ser combatido com o bem e que um ato de injustiça pode ser anulado por um ato de justiça Suas ideias foram prosseguidas pelo seu principal discípulo Platão SÁBIO É AQUELE QUE CONHECE os limites da própria ignorância Sócrates Platão Foi principalmente graças a esse ateniense que as ideias de Sócrates ganharam o mundo e conseguiram a imensa influência que tiveram na filosofia ocidental da época Um de seus livros mais importantes é Apologia de Sócrates escrito exatamente para difundir o que o mestre pensava Em O banquete discute o mito do amor pelo método dialético do diálogo Podese dizer que sua obra A República é a mais importante para o mundo jurídico Nela esse filósofo discursa sobre a administração e o funcionamento das cidades o papel que devem desempenhar os cidadãos e os juízes além de discorrer minudentemente sobre uma série de importantes conceitos como o de justiça virtude educação entre outros Platão e suas circunstâncias O principal discípulo de Sócrates vinha de rica família aristocrata ateniense Aos 20 anos travou contato com o filósofo tornandose seu mais assíduo aluno Como já dito anteriormente foi quem registrou de forma mais completa as ideias do mestre dado que este nada deixou escrito Consta ter nascido em 428 aC tendo portanto 29 anos quando Sócrates foi executado Testemunhou no tribunal a sentença do mestre à morte sem nada poder fazer Depois da execução passou um período estudando com Euclides em Mégara Posteriormente dedicouse a conhecer o mundo com destaque para o Egito Contribuiu para o seu afastamento o fato de Esparta haver assumido o governo de Atenas após Guerra do Peloponeso Embora fosse um governo progressista a administração dos Trinta Tiranos que durou de 404 a 403 aC era arbitrária Isso o levou a idealizar uma nova forma de governo que descreveu no livro A República Em visita à Sicília foi convidado pelo rei Dionísio o Antigo de Siracusa então província grega para assumir a tarefa de ensinar filosofia aos cortesãos Alguns anos depois caiu em desgraça e o rei o vendeu como escravo Conseguiu escapar e voltou a Atenas onde fundou numa localidade chamada Academos uma espécie de escola em que ensinava ciências retórica e filosofia e que ficou conhecida como Academia Morreu possivelmente no ano de 348 aC com 80 anos portanto teve cinquenta anos de vida depois do desaparecimento do mestre para dar prosseguimento às suas doutrinas Platão e suas ideias Platão diferentemente de Sócrates preferiu ensinar em uma escola Fundou em Atenas a Academia onde ensinava as ciências a retórica e a filosofia Foi o primeiro a criar um sistema de reflexão sobre o direito e o justo Era um idealista Acreditava que o mundo era dividido em duas partes o mundo sensível aquele que pode ser captado pelos sentidos onde estão os seres vivos e a matéria e o mundo das ideias um ambiente perene mas imaterial que só pode ser alcançado pela inteligência pela razão Platão personifica ao lado de Sócrates e de Aristóteles os criadores da nova filosofia ocidental que em vez de lidar com os dilemas da humanidade a partir de uma explicação unicamente baseada nos mitos e na religião prefere uma explicação fundada na razão Claro que não deixou os mitos de lado porque eles são componentes culturais importantes Ao contrário utilizouos para comprovar suas teorias Um exemplo disso pode ser visto quando trata do mito de Eros o deus do amor no livro O banquete Com uma abordagem filosófica questiona a natureza humana em relação aos sentimentos e à sexualidade Para ele o homem tem que ter amor também à sabedoria logos ao conhecimento que o levaria a ser um cidadão virtuoso e feliz Como se pode constatar suas principais ideias foram as mesmas defendidas por Sócrates o conhecimento leva à virtude que por sua vez conduz ao caminho do bem e à felicidade Platão foi principalmente um educador Pela educação do corpo e do espírito o homem conseguiria segundo ele superar os problemas da vida inclusive os de ordem moral Por isso a Academia ensinava também a música Foi possivelmente o primeiro filósofo a defender que as mulheres mereciam receber a mesma educação que os homens Platão e sua influência no direito Platão foi um idealista no sentido de que teve por base a noção de eîdos ideia um bem supremo inalcançável pelos sentidos humanos mas que existe dentro de cada pessoa Nessa ideia de bem residem a ética e a virtude É o que diz por exemplo no mito da caverna Nele o filósofo simboliza a distinção entre o mundo exterior para onde o homem não consegue sair e onde estão as ideias e o mundo sensível que seria aquele constituído pelas coisas tangíveis existentes dentro da caverna Com esse conceito Platão aduz existir uma justiça divina diferente da justiça praticada pelos homens Para que a justiça fosse eficientemente distribuída havia que existir um pacto de cooperação entre os homens estabelecendo a ordem de que alguns mandam e os demais obedecem Essa ideia está em A República onde Platão também estabelece que a tarefa de educar as almas é do Estado provendo educação pública e gratuita para formar cidadãos que trabalhem pelo bem da polis e dos outros cidadãos A EDUCAÇÃO deve possibilitar ao corpo e à alma toda a perfeição e a beleza que podem ter Platão Aristóteles Se em Sócrates houve exagero no realismo e se em Platão houve exagero no idealismo Aristóteles surge com o princípio da moderação A grandeza de seu nome está justamente no fato de conseguir realizar a síntese do saber universal existente até então num trabalho que influenciou todo o desenvolvimento da filosofia ocidental moderna Aristóteles e suas circunstâncias Era chamado O Estagirita por ter nascido 384 aC na colônia grega de Estagira na Trácia território da Grécia Continental onde hoje estão a Turquia e a Bulgária Estudou desde os 18 anos de idade na Academia que Platão fundou Saiu de lá vinte anos depois quando da morte do mestre Foi por três anos preceptor de Alexandre o Grande a pedido do pai deste Filipe II da Macedônia que havia conquistado a Trácia Não podemos nos esquecer de que as tropas do rei Filipe na batalha de Queroneia conquistaram Atenas além de Tebas Egito Pérsia atual Irã e Ásia Menor atual Turquia acabando com a democracia grega e encerrando o Século de Ouro de Péricles Os atenienses ansiavam por obter novamente a independência Com a morte de Alexandre em 323 aC Aristóteles voltou a Atenas e fundou uma escola perto do templo de Apolo Lício de onde o nome Liceu dado à sua escola A escola também recebeu o nome de Perípato e nela estudaram grandes nomes da ciência como o físico Estratão de Lâmpsaco e o astrônomo Aristarco de Samos Todo o pensamento de Aristóteles foi recolhido registrado e publicado por Andrônico de Rodes quase duzentos anos depois da morte do mestre Outros importantes seguidores da escola peripatética foram Alexandre de Afrodisia filósofo Galeno médico e Cláudio Ptolomeu astrônomo Aristóteles e suas ideias Aristóteles costumava dizer Platão e a verdade são meus amigos É considerado o filósofo do Bem Criou a teoria do motor imóvel algo puro e eterno que seria a essência de tudo ou seja Deus causa absoluta de todas as coisas Suas ideias sobre teologia e filosofia formariam a base do pensamento escolástico de Santo Tomás de Aquino na Idade Média É considerado o fundador da ciência moderna Aristóteles acreditava como Platão que a alma já existe antes do nascimento da pessoa sendo independente do corpo e imortal Esse dualismo entre corpo e alma era explicado como o viraser e o que realmente existe Aristóteles pregava que existe algo que move todas as coisas e que por sua vez não é movido por nada Seria esse algo aquilo que origina todas as coisas o ato é Deus e a potência a matéria Escreveu muitos livros que os estudiosos distribuem em quatro categorias escritos lógicos escritos sobre a física escritos metafísicos e escritos morais e políticos Dentre suas principais obras podem ser citadas Metafísica em que discute o ser vários diálogos Sobre a Justiça Sobre o Bem Sobre as Ideias Ética a Nicômaco livro escrito para o filho discorrendo sobre virtude justiça e ética e Politheia coleção de oito livros sobre sociologia filosofia e direito Também escreveu sobre a arte da retórica e a arte da poética dos quais apenas fragmentos chegaram até nós Aristóteles e sua influência no direito O pensamento de Aristóteles teve grande influência no direito que temos contemporaneamente em várias dimensões Uma delas foi a questão da justiça que ele considerava uma virtude como a coragem e a temperança Para ele toda virtude é um hábito racional adquirido com o exercício e com a ação Já a justiça é a procura da ponderação entre dois extremos para não incorrer nem no excesso nem na deficiência ou insuficiência Haveria distinções entre as formas de justiça o justo legal o justo por natureza o justo pela troca o justo pela distribuição etc Tais considerações sobre a justiça estão no livro Ética a Nicômaco Outra dessas dimensões foi sua teoria sobre a moral Ele considera que todo ser deve realizar sua natureza de maneira plena e assim alcançará a felicidade como a natureza do homem é a racionalidade o homem se realiza quando vive ancorado na razão Essa é a base do racionalismo aristotélico que diz que as virtudes devem ser adquiridas pela educação e pela vontade A terceira dimensão é a ética Dizia Aristóteles que as virtudes éticas são fundamentalmente sentimentais e afetivas ao contrário das virtudes intelectuais que decorrem de atividade racional e que devem ser governadas pela razão Mas moderado como era Aristóteles defendia que a virtude intelectual precisa da virtude ética para ser completa Aristóteles no livro A política explica que a moral é individual enquanto a política é coletiva A cidade ou o Estado tem primazia sobre o indivíduo e o bem comum sobre o bem particular porque o homem é um ser social Compete ao Estado a tarefa de educar os indivíduos para que se tornem cidadãos úteis à polis A FINALIDADE DA ARTE é dar corpo à essência secreta das coisas não copiar sua aparência Aristóteles OUTRAS CORRENTES DO PENSAMENTO GREGO Ao tempo de Sócrates um grupo de filósofos desenvolveu uma corrente de pensamento chamada cinismo Segundo os cínicos a virtude consistiria em libertarse das normas sociais e dos costumes Para atingir essa virtude o homem devia despojarse de todas as imposições sociais como a riqueza e o poder considerados fúteis e dedicarse apenas a satisfazer as necessidades vitais básicas como comer e dormir O principal representante do cinismo foi Diógenes um filósofo que levou o pensamento ao extremo tendo passado a vida na mais completa pobreza Segundo relatos históricos ele vivera nu dentro de um barril Outra corrente de pensamento foi desenvolvida por Pirro e chamavase ceticismo Segundo os céticos era impossível conhecer a verdade de qualquer coisa que fosse portanto a filosofia devia ser uma negação da sabedoria Com isso tudo o que era considerado valor para a sociedade devia ser desprezado e o homem devia manterse indiferente a tudo o que ocorre no mundo O ceticismo teve por base o pensamento brâmane uma das castas do povo da Índia A felicidade para os céticos era obtida quando se alcançasse um estado que chamavam de atraxia um estado de paz que não se deixa perturbar por nada Essas duas correntes não tiveram maior destaque na construção da filosofia do direito principalmente porque não defendiam valores Para o pensamento que os filósofos do cristianismo elaboraram na Idade Média foram outras duas correntes que se destacaram o epicurismo e o estoicismo que veremos a seguir Epicurismo prazer com ética Há uma certa confusão quando se fala em epicurismo porque algumas pessoas imaginam que é a corrente filosófica que prega a entrega total aos desejos e aos prazeres mundanos Nada disso Epicurismo é um posicionamento espiritual no sentido de negar a dor e as perturbações privilegiando ao contrário as coisas positivas e a natureza humana sempre respeitando a ética Já vimos que a Grécia estava sob a dominação da Macedônia no século IV aC O povo grego submetido a um poder estrangeiro perdia não só liberdade política mas a própria identidade O centro do poder deslocouse de Atenas para Alexandria no Egito As cidades gregas acostumadas a ter cada uma o seu governo foram reunidas sob um único governante e a organização política baseada na democracia foi eliminada Viveu nessa época o historiador Heródoto amigo e seguidor de Epicuro que registrou a derrocada da civilização helênica A situação ficaria ainda pior com o surgimento do Império Romano que tomaria o lugar das tropas de Alexandre Magno na conquista da Grécia Os pensadores gregos nessa época não se ocupavam mais da política porque não havia mais a liberdade de consciência que a participação popular fizera florescer no século anterior Passaram a refletir pois sobre a ética Por meio do estudo do comportamento humano julgavam obter instrumentos para estabelecer normas práticas de conduta que permitiriam alcançar a serenidade interior e a felicidade Epicuro e suas circunstâncias Epicuro buscava alcançar a felicidade um estado de espírito caracterizado pela inexistência de dor física aponia com simultânea tranquilidade completa da alma ataraxia A dor existe ele admitia mas provém de desejos insatisfeitos é passageira e pode ser atenuada por bons pensamentos de experiências prazerosas O epicurismo é basicamente o domínio das emoções A natureza é a mestra dos homens dizia ele Observar e imitar os animais que se afastam do sofrimento e buscam o prazer é o caminho Epicuro de Samos que viveu entre 341 aC e 270 aC foi quem formulou essa corrente de pensamento Atuou como professor de gramática durante algum tempo Mais tarde abriu uma escola em Atenas que ficaria conhecida como o Jardim de Epicuro Ensinava que a filosofia tem o papel de libertar o homem dos seus medos como o medo da morte e o medo dos deuses Para ele a morte nada mais era do que a desintegração dos átomos que compõem o corpo e a alma E que esses átomos já que eram eternos e indestrutíveis depois de morto o indivíduo ficavam livres para se combinarem de outra forma e constituir outro indivíduo Nas suas mais de 300 obras sua principal inspiração foi a teoria atômica de Demócrito que vimos anteriormente de que tudo o que existe seja matéria seja a própria alma é formado de átomos de diferentes naturezas combinados de diferentes maneiras Com essa explicação pretendia que as pessoas enxergassem a morte como uma consequência natural da condição humana sem precisar portanto causar tristeza a ninguém Até porque cessada a vida cessavam os sentimentos portanto morto não sofre Da mesma forma se o mundo é formado de átomos deuses são entidades que alcançaram o equilíbrio total e vivem em estado de felicidade Com esse pensamento contestava o senso comum da época de que os deuses eram seres vingativos dominados por paixões humanas cuja ocupação principal era atormentar os homens e mantêlos em estado de constante purificação Epicuro é considerado o principal precursor do movimento anarquista que ocorreu no período clássico Modernamente o anarquismo foi primeiramente formulado por William Godwin e aperfeiçoado por PierreJoseph Proudhon Para esses estudiosos contrariamente à ideia geral anarquismo não é a ausência de ordem mas a ausência de coerção principalmente de governantes Epicuro e suas ideias O filósofo do prazer considerava fundamental que o homem conhecesse a realidade por meio das sensações para o entendimento da natureza e de suas leis A partir dessa compreensão devia estudar a ética para que praticando a conduta correta pudesse ser feliz como indivíduo e em consequência fizesse o grupo social feliz Em outras palavras pela procura incessante do conhecimento o indivíduo saberia distinguir com sabedoria aquilo que é necessário para a vida e aquilo que não importa O papel do homem na terra portanto era aprender sem parar para conseguir escapar a tudo aquilo que lhe causava sofrimento Epicuro considerava que o ponto inicial de qualquer conhecimento era a sensação Em seguida ao primeiro contato o conhecimento precisava ser ratificado confirmado pela alma porque aquilo que é alcançado pelos sentidos deve servir de parâmetro para aquilo que não se vê não se apalpa não se sente Epicuro e sua influência no direito No aspecto jurídico uma nota característica desse pensador foi a relativização do conceito de justiça Distanciandose de aspectos mais abstratos passou a pregar que a justiça não seria mais do que uma espécie de pacto que as pessoas celebravam entre si para não prejudicar nem ser prejudicado Percebese portanto a grande aproximação de Epicuro com o pensamento do famoso pretor Ulpiano que tanto no Digesta quanto no Instituitionis já pregava Iuris praecepta sunt haec honeste vivere alterum non laedere suum cuique tribuere ou seja São estes os preceitos do Direito viver honestamente não lesar o próximo dar a cada um o que é seu A esse preceito Epicuro denominava justo segundo a natureza Quem burlasse esse pacto ou mesmo cometesse injustiça no seu caminho para fugir do sofrimento era punido principalmente por ele mesmo pelo temor de um dia ser descoberto e castigado por aqueles que têm a função de descobrir e castigar Em suma para Epicuro o bem está no equilíbrio O HOMEM BEMNASCIDO SE DEDICA principalmente à sabedoria e à amizade dois bens dos quais um é mortale o outro imortal Epicuro Estoicismo a resistência ao prazer Os filósofos do estoicismo diferentemente dos epicuristas pregavam que o homem devia enfrentar os seus deveres mesmo que tivesse que suportar dores e desconfortos Desse modo a recomendação era de que a vida devia ser uma constante prática virtuosa o que incluía despirse de preocupações com a riqueza a morte a fome o cansaço Tudo isso deveria ser aturado em nome de alcançarse a sabedoria o único valor efetivo da humanidade Portanto o objetivo maior era a virtude O mundo para os estoicos era regido por uma lógica universal Ser estoico equivalia a ser indiferente em relação a tudo fosse prazer ou sofrimento que não tivesse ligação direta com a aquisição da sabedoria Viver de acordo com a natureza e não contra ela superando paixões e desejos Os estoicos e suas circunstâncias Embora Zenon de Cítio tenha sido o fundador do estoicismo foram seus seguidores que transformaram sua doutrina em contribuições diretas para a organização social da época Um deles foi o imperador romano Marco Aurélio Outro foi o escritor Sêneca que defendia uma vida simples e despojada obediente à ética e à predestinação11 Mas talvez o mais importante dos estoicos tenha sido o romano Marco Túlio Cícero Grande orador e advogado tinha especial ojeriza por um dos chefes políticos Lúcio Catilina auxiliar do imperador Pompeu Contra esse chefe Cícero um dia teria dito segundo relata Plutarco Uma vez que empregamos no governo eu a palavra e tu as armas é preciso que um muro se erga entre nós Cícero viveu em uma Roma violenta onde a República incipiente não se consolidava por causa de intermináveis intrigas de poder Havia assassinatos frequentes os escravos eram tratados com a máxima brutalidade e o triunvirato governante estava mais ocupado em guerras de conquistas do que em cuidar da organização políticosocial da capital Pompeu na Ásia César na Gália e Crasso na Pérsia Os estoicos e suas ideias Cícero sintetizando o pensamento estoico dizia que a elevação da alma se percebe nos perigos e nos trabalhos Para os filósofos do estoicismo os epicuristas erravam quando orientavam os cidadãos a trabalhar por si próprios pela sua comodidade individual O correto seria lutar pelo bem comum pela sociedade como um todo A filosofia para os estoicos servia apenas para a solução dos problemas morais da humanidade Portanto a filosofia era um instrumento uma ferramenta pragmática Da mesma forma que os epicuristas os estoicos ensinavam que os sentidos são os fundamentos para o conhecimento Do ponto de vista político não limitavam o homem à sua cidade natal ou de adoção Ao contrário o homem era considerado um cidadão do mundo um habitante do universo ou do cosmos e daí surgiu a palavra cosmopolita Epiteto ou Epitecto foi um dos filósofos estoicos Nasceu na cidade de Hierápolis na Frígia região da Grécia localizada no continente asiático que hoje é a Turquia Viveu entre os anos 50 e 135 depois de Cristo as datas são aproximadas Menino ainda foi levado para Roma como escravo Mas graças aos bons relacionamentos de seu senhor estudou filosofia com o estoico Musônio Rufo Sabese que por volta dos 40 anos de idade obteve a libertação por condescendência do imperador ou simplesmente porque o monarca queria os filósofos estoicos exilados longe de Roma Epiteto seguiu então para a Grécia onde na cidade de Nicópolis abriu uma escola Nada escreveu mas seus ensinamentos foram registrados por Flavio Arriamo que viria a ser mais tarde o historiador de Alexandre o Grande que publicou seus discursos num livro conhecido como Manual ou Discursos de Epiteto Seu pensamento influenciou inclusive o imperador Marco Aurélio na produção do livro Meditações Ao lado de Sêneca outro filósofo que havia sido escravo e do próprio Marco Aurélio Epiteto inaugurou o movimento conhecido como os novos estoicos que prezava a virtude como o único valor real da sociedade O fundamento de sua doutrina que passou a fazer parte da Ética era o sentimento do dever e da responsabilidade Quando Platão sonhou com a existência de um líder que pensasse como filósofo e que avaliasse o mundo por meio da razão mas com sensibilidade pelo bem da coletividade não imaginou certamente que menos de cinco séculos depois surgiria um homem assim Marco Aurélio o imperador filósofo responsável pelo que talvez tenha sido o momento mais digno e importante da Roma dos Césares foi esse homem Viveu entre os anos 121 e 180 depois de Cristo e enfrentou muitas guerras para manter a hegemonia de um império já decadente mas mesmo nos acampamentos nos intervalos entre batalhas encontrou tempo e serenidade para escrever sobre o sentido da passagem do homem pela Terra Suas reflexões em trechos curtos mas de grande densidade e muita doçura foram reunidas depois de sua morte e publicadas num livro que se intitulou Meditações É um livro de posições sábias no qual o filósofo demonstra a necessidade de compreender mais do que censurar as pessoas que apresentam defeitos de caráter Assim recomenda perdoar o mentiroso o arrogante o avarento o invejoso e até mesmo o traidor E não apenas recomendou mas agiu conforme pregava Foi um imperador bondoso e sábio Num filme lançado no ano 2000 chamado O gladiador dirigido por Ridley Scott o imperador é vivido pelo ator Richard Harris Foram respeitadas as atitudes do imperador no sentido de percepção racional do mundo mas ao mesmo tempo de sensibilidade e de respeito pelas pessoas inclusive os inimigos e o próprio filho traidor interpretado pelo ator Joaquim Phoenix O MELHOR MODO DE VINGARSE DE UM INIMIGO é não se assemelhar a ele Marco Aurélio Entendendo a história o direito em Roma O direito romano teve por base a doutrina estoica no sentido de que formulava deveres e atitudes que deviam ser seguidos universalmente Cícero pensava serem mais importantes os padrões morais do que as leis outorgadas pelos governantes verificandose aí portanto o princípio do Direito Natural O governo para ele servia tão somente para proteger a vida e a propriedade dos cidadãos Resumidamente podemos dizer que a moral estoica determinava que o homem para ser virtuoso usasse a racionalidade para respeitar a ordem divina e viver de acordo com essa ordem Dois acontecimentos alteraram o quadro político e social depois de Aristóteles Um deles foi o surgimento de Roma como potência militar e já vimos que o estoicismo desenvolveuse ao tempo do Império Romano tendo contribuído largamente para a construção do pensamento jurídico O outro acontecimento foi o advento do cristianismo que representou uma nova maneira de pensar o papel do homem no mundo e que de certa forma levou à queda do Império Romano Enquanto o pensamento cristão se consolidava surgiram alguns movimentos filosóficos mas sem grande originalidade Um desses movimentos foi o gnosticismo um misto de filosofia antiga elementos cristãos e mitos pagãos Seus representantes mais importantes Basílides e Valentim Já dentro do cristianismo no século II depois de Cristo o primeiro movimento filosófico ficou conhecido como apologista Era formado por padres católicos que buscavam divulgar a doutrina religiosa aos intelectuais da época como se fosse uma corrente filosófica Desse modo pretendiam escapar do martírio imposto a quem negava os deuses pagãos Um desses padres foi Santo Aristides que teria sido responsável pela decisão do imperador romano Adriano de moderar a perseguição aos cristãos Mas um dos mais importantes foi o neoplatonismo uma espécie de resgate da filosofia de Platão combinada com algumas ideias de Aristóteles as coisas chegam mais perto da perfeição quando se aproximam de Deus Seu principal representante foi Plotino Plotino nasceu em 205 já na era cristã em Licópolis no Alto Egito Aos 28 anos como costumavam fazer todos os intelectuais da época seguiu para Alexandria a cidade onde havia a mais importante biblioteca da Antiguidade Ali foi ser discípulo de Amônio Sacas que lhe ensinou a filosofia da escola neoplatônica Entusiasmado pretendeu aprofundarse e quis conhecer a filosofia dos persas a Pérsia é o atual Irã Assim no ano de 243 da era cristã alistouse no exército do imperador Giordano Participou de várias batalhas militares e acabou por desistir Seguiu para Roma e abriu uma escola onde passou a ensinar uma doutrina que reuniu em 54 tratados O pensamento de Plotino tem por base três substâncias que ele chamou de hipóstases A primeira é o Uno um deus absoluto que é a fonte de todo ser e de todo conhecimento A segunda substância é a Inteligência princípio geral que faz com que se desenvolva a justiça a virtude e a beleza A terceira substância é a Alma não a alma individual mas uma alma universal superior Abaixo dessas substâncias ou hipóstases está o mundo material onde estamos nós humanos não criaturas do Uno mas apenas derivadas de sua essência e que devem absorver a Inteligência para desenvolver a alma individual no sentido do que é bom e do que é belo como queria Platão A doutrina de Plotino foi difundida pelo seu discípulo Porfírio e consta que influenciou profundamente o pensamento e a obra de Santo Agostinho A ALMA SÓ É BELA PELA INTELIGÊNCIA e as outras coisas tanto nas ações como nas intenções só são belas pela alma que lhes dá a forma da beleza Plotino LINHA DO TEMPO PRIMÓRDIOS DA FILOSOFIA datas prováveis Ano 2100 aC Primeira tentativa conhecida de organização de leis o Código de UrNammu na Assíria Ano 1780 aC Criado o Código de Hamurabi com forte reciprocidade entre delito e pena Ano 1500 aC Surge a filosofia naturalista primeira organização do pensamento grego na região que hoje compreende Grécia Turquia e Chipre Ano 600 aC Considerase a data de início da fase inaugural da filosofia grega com Tales de Mileto Ano 580 aC Anaximandro de Mileto desenvolve a teoria do infinito Ano 560 aC Anaxímeses de Mileto afirma que a lua brilha porque recebe luz do sol Ano 530 aC Xenófanes de Cólofon questiona a tradição grega de representar as divindades em forma humana com igual qualidade moral Ano 520 aC Heráclito defende que há uma constante transformação no universo Ano 510 aC Pitágoras defende o racionalismo para validade do pensamento Na mesma época surgem os sofistas Ano 500 aC Parmênides iniciou o estudo da Ontologia ciência que investiga a existência dos seres vivos e inanimados Ano 490 aC Empédocles de Agrigento criou a doutrina de que o universo é composto de quatro substâncias água fogo terra e ar Ano 470 aC Anaxágoras de Clazômenas explica o fenômeno dos eclipses Ano 460 aC Zenon de Eleia cria a dialética a técnica da argumentação Na mesma época Protágoras o idealizador da sofística utiliza pela primeira vez o termo filosofia no sentido daquele que anseia pelo conhecimento Ano 450 aC Leucipo de Abdera estabelece o átomo como elemento primordial de todas as coisas Suas descobertas tiveram grande influência na química e na física modernas Ano 441 aC Melisso de Samos comanda a esquadra que derrotou os atenienses de Péricles Também filósofo afirmou que o ser é infinito no tempo Ou seja o ser é eterno Ano 440 aC Demócrito de Abdera primeiro filósofo materialista conclui que a alma não pode ser imortal já que é uma coisa física Ano 440 aC Surge Sócrates que inicia a segunda fase da filosofia grega também chamada de fase dualista Segundo ele quando o homem chega à verdade passa a agir conforme o bem Ano 430 aC Górgias outro sofista afirma o conceito retórico do kairós momento oportuno tempo certo que em teologia significa o tempo de Deus em oposição ao conceito de chronos o tempo cronológico humano que pode ser medido pelo relógio Ano 420 aC Diógenes cria a corrente dos cínicos para quem a virtude consistia em libertarse das normas sociais dos costumes da riqueza e do poder Ano 410 aC Isócrates também sofista afirma o conceito da paideia a educação global que dá ao homem o desejo de se tornar um cidadão perfeito e justo Ano 400 aC Hípias defende uma lei positiva para disciplinar o homem diante da natureza Trasímaco afirma que a lei é apenas instrumento do poder e não garante a moralidade Ano 399 aC Platão principal discípulo de Sócrates assiste à condenação do mestre sobre quem escreveria Apologia de Sócrates Ano 340 aC Epicuro desenvolve a teoria epicurista em que o homem deve privilegiar as coisas positivas sempre respeitando a ética Ano 330 aC Surge a doutrina do estoicismo com Zenon de Cítio pregando que o homem deve enfrentar os seus deveres ainda que isso represente dor e desconforto Ano 322 aC Morre Aristóteles o filósofo que conseguiria fazer a síntese da filosofia existente até então OS FILÓSOFOS DO CRISTIANISMO O pensamento grego clássico foi de tal maneira importante que os primeiros filósofos que seguiam o cristianismo já no início da Idade Média12 ou seja mais de 500 anos depois recorriam ainda aos métodos dos gregos para refletir sobre o homem e sobre o universo A diferença é que naquela época a filosofia baseavase em uma nova premissa a do teocentrismo Deus passava a ser o centro de todas as análises filosóficas das coisas dos seres e dos acontecimentos do mundo Entre as preocupações dos filósofos do cristianismo estava além da religião a moral A um primeiro exame o advento do cristianismo podia representar um retrocesso em relação aos avanços do pensamento da filosofia até aquele momento Era em suma um movimento religioso que usava a filosofia apenas como suporte e colocava a fé acima da razão Isso explica a rejeição inicial que sofreu Mas a dissolução do Império Romano e a presença dos bárbaros na Europa permitiram a organização de uma classe eclesiástica fortalecida e com ela a consolidação do culto cristão Outra diferença entre o cristianismo e o pensamento religioso que imperava na Grécia e em Roma tem conexão com a noção de divindade Aristóteles falava de um deus perfeito olímpico disposto a uma altura de onde apenas observava o mundo O cristianismo por seu turno trazia um Deus tomado pelas paixões humanas como a ira a vingança e a comiseração A partir dessas diferenças e graças a pensadores que se debruçaram sobre as possibilidades abertas pela nova religião começou a ser constituída uma corrente filosófica que seria consolidada inicialmente no primeiro século depois de Cristo por São Paulo considerado o organizador das ideias basilares do cristianismo como doutrina religiosa A principal contribuição de São Paulo no campo do Direito foi uma nova visão do conceito de justiça diferente do que era aceito pela filosofia grega Para ele o homem justo era aquele que vivia pela fé mesmo que não houvesse leis Considerava que toda autoridade provinha de Deus e portanto o homem justo devia obediência às autoridades Em outras palavras assim como o estoicismo de Cícero aproximavase muito do conceito de Direito Natural Mas foi no começo do segundo milênio que a filosofia do cristianismo foi sistematizada por Santo Ambrósio e pouco tempo depois ganhou corpo com Santo Agostinho13 Santo Ambrósio precursor de Santo Agostinho Foi a pregação de Santo Ambrósio como bispo que converteu Santo Agostinho ao cristianismo Santo Ambrósio foi o responsável pelo que se chamou o auge da patrística Nasceu no ano de 340 na cidade de Tiel na Germânia atualmente Alemanha Era irmão de Santa Marcelina Teve origem nobre e chegou a ser governador de Milão Nessa função graças à sua notável capacidade de oratória foi convidado a substituir o bispo de Milão que falecera Para aceitar teve que ser batizado ordenado padre e consagrado bispo tudo isso a um só tempo Durante sua vida religiosa escreveu muitas cartas para governantes pedindo a compreensão deles para com os cristãos Morreu no ano de 397 NINGUÉM CURA a si próprio ferindo o outro Santo Ambrósio Santo Agostinho religião e filosofia Com os aspectos mundanos de sua vida exerceu no seu tempo e continua a exercer hoje muita influência em toda a cultura ocidental mesmo entre os não cristãos Dono de retórica inigualável aproveitou a habilidade para enorme correspondência e para produzir vários livros Escreveu além dos tratados teológicos obras de filosofia embora não tenha proposto um sistema filosófico completo Na filosofia foi um apaixonado em busca da verdade que acreditava estar no interior do homem Seguiu Platão ao afirmar que para conhecer verdadeiramente é preciso estar em contato com o mundo inteligível Seu trabalho tem traços do pensamento estoico Sua obra mais importante A Cidade de Deus tem sido vista como uma afirmação da oposição entre Igreja e Estado mas na realidade é uma lição de síntese entre a religião e a filosofia Santo Agostinho e suas circunstâncias Os escritos de Santo Agostinho representaram uma síntese positiva entre religião e filosofia principalmente nas obras Confissões e A cidade de Deus Concordando com Platão seu principal inspirador Santo Agostinho achava que o homem mesmo submetido à predestinação de origem divina devia permanecer livre em sua vontade Estava posta portanto a diferença entre a lex aeterna lei natural ou lei de Deus que se preocupa com a alma e a lex temporalem lei temporal ou lei dos homens que trata da justiça Santo Agostinho ou Aurélio Agostinho nasceu na província romana de Tagaste na África local onde hoje é a Argélia no ano de 354 Mandado para estudar em Cartago também na África aprendeu literatura e retórica e pôsse a dar aulas Insatisfeito seguiu para Roma em busca de desafios e acabou sendo nomeado para um cargo de professor em Milão onde conheceu Santo Ambrósio que o influenciou profundamente Seu despertar para a filosofia teve esse apoio mas também contribuiu a leitura que fez aos 28 anos da obra de Cícero Decidiuse por receber o batismo das mãos de Santo Ambrósio Algum tempo depois voltou para Hipona onde foi consagrado bispo e onde permaneceu até a morte no ano 430 Como bispo Santo Agostinho promoveu a canonização da própria mãe Santa Mônica Santo Agostinho e suas ideias Da mesma forma que já o fizeram Sócrates e Platão Santo Agostinho ensinava que a melhor maneira de purificar o espírito era a educação porque o espírito educado pensaria com clareza e com verdade Além disso quando a pessoa tem fé estaria também mais perto de Deus Em resumo pregava que era preciso chegar ao íntimo do ser para crer e era preciso crer para chegar ao íntimo do ser A forma de fazêlo não seria outra senão estudando conhecendo o mundo pela inteligência e pela razão mas mantendo a fé de que cada coisa já que fora criada por Deus tinha qualidade essencial de bondade e de beleza A partir de Santo Agostinho que tirou a religião da condição de metafísica aproximandoa da filosofia com metodologia de estudo e enfim transformandoa em teologia o cristianismo deixou a clandestinidade e mudou a história do Ocidente JUSTIÇA é dar a cada um o que é seu Santo Agostinho A escolástica Algumas correntes filosóficas foram elaboradas depois de Santo Agostinho umas com mais e outras com menos expressão Não se pode desprezar a importância de Boécio responsável pela tradução das principais obras de Platão e Aristóteles para o latim o que possibilitou que o platonismo e o aristotelismo fossem disseminados no Ocidente Já era de algum modo a escolástica surgindo incipiente Mais tarde já durante e depois do império de Carlos Magno outros pensadores se dedicariam a essa corrente filosófica de retomada do aristotelismo como o irlandês João Escoto o iraniano Avicena e os espanhóis Averróis e Maimônides Santo Tomás de Aquino e a ética A escolástica foi mais um método de aprendizagem do que propriamente uma filosofia O conjunto das doutrinas teológicas e filosóficas de São Tomás de Aquino é chamado de tomismo Foi adotado pelos dominicanos em 1278 e marcou toda a filosofia medieval a ponto de ser declarado o pensamento oficial da Igreja Católica no Concílio de Trento entre 1545 e 1563 Seu ponto mais alto para o direito é a chamada ética tomista embasada na lei eterna e na lei natural Santo Tomás de Aquino e suas circunstâncias A queda do Império Romano do Ocidente em 476 marcou o começo da Idade Média Na Europa esse período histórico é dividido para efeito de estudo em duas etapas A Alta Idade Média que vai do século V ao século X é marcada pelas invasões dos chamados povos bárbaros14 no continente europeu porque a desorganização do Império Romano havia deixado a região indefesa Os bárbaros que habitavam os limites do Império Romano aproveitaram o vazio de poder deixado pelos romanos e atacaram em ondas crescentes a Europa para repartir o legado germanos entre eles os visigodos ostrogodos anglosaxões e francos os eslavos russos poloneses tchecos e sérvios e os tártarosmongóis turcos búlgaros e hunos esses últimos chefiados por Átila que liderou uma invasão que devastou as cidades italianas de Aquileia Milão e Pavia só não chegou até Roma por intervenção do papa Leão I o Grande15 Cada povo que arrancava um naco do Império Romano fixavase em um ponto e ali constituía um reino O primeiro reino organizado foi o Reino Franco criado pelo rei Clóvis em 481 apenas cinco anos depois da queda de Roma Em 493 o rei Teodorico criava o Reino da Itália Quando Carlos Magno foi coroado imperador no ano 800 o poderoso exército franco o ajudou a criar um império quase tão importante quanto o romano Carlos Magno foi quem fez começar o feudalismo na Europa Era costume desse rei presentear seus comandantes com faixas de terra desde que lhe prestassem obediência Os comandantes cobravam impostos dos camponeses que viviam em suas terras e os subjugavam pela força Todos aqueles que conhecem a lenda de Robin Hood podem ter uma boa ideia de como funcionava o sistema feudal Carlos Magno era um homem apegado à cultura e ao conhecimento Estimulou a criação de escolas promoveu a organização política de seu império incentivou a economia produtiva Foi nesse ambiente que surgiu a escolástica a doutrina mais importante da Idade Média Falaremos da escolástica a seguir mas antes é preciso completar a informação a respeito das duas etapas desse período histórico É preciso dizer que a Baixa Idade Média vai do século XI ou XII para alguns historiadores até o ano de 1453 com a queda de Constantinopla sede do Império Romano do Oriente16 Encerrado o ciclo de invasões bárbaras o continente europeu passou a viver em relativa paz A produção agrícola aumentava e o comércio florescia em decorrência das riquezas trazidas do Oriente pelos cruzados Começava a surgir a nova classe da burguesia Foi o período em que o feudalismo entrava em decadência e o império francês perdia terreno para uma nova força a dos ingleses Surgiam os primeiros artefatos que mais tarde quando plenamente desenvolvidos resultariam da Revolução Industrial por exemplo o arado de ferro equipado com rodas o que facilitou sobremaneira a agricultura Santo Tomás de Aquino foi o maior representante da doutrina escolástica Viveu entre 1225 e 1274 Também foi um dos doutores da Igreja sob o codinome de Doctor Angelicus Era filho de nobres feudais e causou grande polêmica na família ao abandonar tudo para juntarse à ordem dos dominicanos seguindo o exemplo de seu mestre na Universidade de Paris Alberto Magno também filho de nobres e o grande responsável pelo resgate do pensamento de Aristóteles para a cultura ocidental também é santo e um dos doutores da Igreja Depois de estudar na Universidade de Colônia na Alemanha Santo Tomás de Aquino voltou para Paris para lecionar teologia Ensinou também em Nápoles Foi homem de confiança do papa Gregório X tendo sido chamado por ele para ajudar a organizar o Concílio de Lião evento que não pôde acompanhar porque morreu antes Santo Tomás de Aquino e suas ideias Santo Tomás de Aquino sistematizou a obra de Aristóteles dando nova feição ao pensamento do grego sobre lógica física metafísica e ética Em suas obras tratou de considerar a filosofia um tema distinto da teologia A teologia para ele tinha relação com a fé com a revelação enquanto a filosofia era um estudo racional Nove anos antes de morrer começou a sua obra mais expressiva Suma Teológica que ficou inacabada Enquanto Santo Agostinho considerava que a fé era o principal instrumento para que o homem alcançasse a virtude Santo Tomás de Aquino veio colocar a razão ao nível da fé fides et ratio o que foi tremenda novidade para a época Para ele os atos humanos na vida política e social devem ser considerados para efeito de atribuição de justiça Por ser um ente racional inteligente o homem saberia naturalmente o que fazer para fazer o bem e evitar o mal Era o que o filósofo chamava de lei natural emanada de Deus Mas admitia a existência de outra lei concebida pelos homens constituída pelas normas jurídicas estabelecidas pelos homens revestidos de autoridade diante do seu grupo No entanto os governantes embora fossem necessários para orientar a vida em comunidade não poderiam fazer leis que entrassem em contradição com a lei natural As leis dos homens teriam que ser pedagógicas para mostrar o caminho do bem e prever castigo para quem insistisse em desviarse dele Seu grande mestre foi Santo Alberto Magno alemão com quem trabalhou na Universidade de Colônia Santo Alberto Magno foi o responsável pela introdução do pensamento de Aristóteles na filosofia cristã e no estudo das ciências contribuindo para o desenvolvimento da cultura ocidental As ideias de Santo Tomás de Aquino pregam que o homem com sua inteligência deve perceber Deus e adequar as suas atitudes a valores perenes só assim conseguindo realizar a felicidade Entre as disposições necessárias para alcançar o bem estava o afastamento do materialismo Santo Tomás de Aquino e sua influência no direito Ao contrário de seu inspirador Aristóteles Santo Tomás de Aquino considerava que a moral deveria ser pensada em termos de obrigação e dever recompensa e castigo O homem tomaria o caminho do bem pela vontade ou seja pela inteligência e não somente pela fé em Deus e em seus ensinamentos Tomaria o caminho do bem por meio de atitudes éticas que objetivassem obter a convivência dos homens num ambiente de paz A ação boa leva a um bom fim dizia Santo Tomás de Aquino De forma semelhante ao que já dizia Sócrates afirmava que o homem que pratica o mal não o faz simplesmente porque o quer mas porque ignora o bem E eis aí porque considera a educação uma prática fundamental principalmente dos governos O condutor da vontade coletiva ou seja a moral deveria ser o governo não importava que forma tivesse aristocracia democracia monarquia ou república o fundamental era que servisse ao povo Miguel Reale afirma que Santo Tomás de Aquino subordina a sua teoria de justiça ao conceito objetivo de lei ou mais precisamente da lex aeterna a qual ordena o cosmos de conformidade com a razão do Legislador supremo assim como numa comunidade a lex humana representa a ordem dada por quem racionalmente a dirige de conformidade com o bem comum17 Haveria pois nas lições de Santo Tomás de Aquino três categorias de leis A lei eterna emanada de Deus é aquela segundo a qual o cosmos está disciplinado e se mantém equilibrado com seus planetas em órbita A lei natural é aquela que ordena a vida dos seres vivos no aspecto biológico e é resultado direto da lei eterna portanto também provém de Deus E a lei humana é o conjunto de normas que regula a vida em sociedade e que abrange a justiça a moral e a ética Vamos detalhar melhor esses conceitos A lei eterna se constitui na razão ou plano da divina sabedoria enquanto dirige todos os atos e movimentos das criaturas É o que Santo Tomás de Aquino dizia tratarse do plano de Deus para o governo de suas criaturas Cada criatura tem uma lei própria que rege sua natureza segundo o projeto de Deus A lei eterna é a base de todas as demais leis tem como essência a verdade e a justiça e é sobre ela que repousa a autoridade originada em Deus A lei natural emanada da lei eterna abrange a atividade humana moral Resulta da inteligência e da vontade do homem mas não pode se opor à lei eterna Tem por princípio a sindérese que é o conjunto dos princípios que norteiam o homem a praticar o bem e evitar o mal A lei positiva humana em conceito simplificado é a regra a norma que rege as atividades humanas específicas Como normas particulares são mutáveis mas são regidas pela lei natural e pela lei eterna e deverão ser sempre orientadas para a rejeição do mal e para a busca da virtude A LEI NÃO É O MESMO DIREITO senão certa razão deste Santo Tomás de Aquino JUSTIÇA É DAR A CADA UM de acordo com o seu merecimento Santo Tomás de Aquino OUTROS PENSADORES DA IDADE MÉDIA Os franciscanos ingleses Embora a Igreja Católica tivesse oficializado o tomismo de Santo Tomás de Aquino como a doutrina teológica e filosófica da moderação vários pensadores que vieram depois insistiam em seguir os pensamentos mais radicais de Santo Agostinho Foi o caso dos frades da Ordem de São Francisco Guilherme de Ockham e suas circunstâncias A doutrina de Guilherme de Ockham opunhase radicalmente ao pensamento de Aristóteles e consequentemente ao de Santo Tomás de Aquino para quem a natureza de um ser forçosamente exibia relações com outros elementos do universo Suas ideias inspiraram Hans Kelsen Guilherme de Ockham frade franciscano pregava e vivia a pobreza como meio de aproximação com a doutrina de São Francisco fundador da ordem Perseguido pelo papa João XXII que decretou em 1324 que os bens doados à Ordem Franciscana deveriam pertencer ao Vaticano revoltouse e teve que se refugiar na corte do rei Luís da Baviera então inimigo do papa Começou então a defender a separação do poder secular dos reis do poder da igreja Acusado de heresia foi excomungado Guilherme de Ockham e sua influência no direito Era adepto da chamada doutrina nominalista segundo a qual o indivíduo não é ligado por natureza ao caráter universal do mundo O indivíduo para os nominalistas é apenas ele próprio representado pelo seu nome e essa é a razão pela qual a corrente filosófica recebeu essa denominação Frequentemente conhecida como Lei da Parcimônia ou Lex parcimoniae pregava que a natureza é em sim mesma econômica De tal forma o homem deveria sempre imitar a natureza buscando em suas teorias eliminar todos os conceitos supérfluos e adotar o caminho mais simples Essa simplicidade de raciocínio ficou conhecida como a navalha de Ockham porque corta as relações do indivíduo com o meio onde vive No âmbito jurídico o nominalismo orientaria a ciência do direito para o chamado positivismo ou afastamento dessa ciência de todas as influências externas que não lhe diriam respeito tais como a moral e as valorações Outra grande contribuição desse pensador para o direito foi estabelecer um contraponto ao pensamento de Santo Tomás de Aquino pregando a separação entre fé teologia e razão filosofia Para ele a prova de algo deve ter concretude e evidência em si mesma É o empirismo levado às últimas consequências Portanto o direito natural não tinha ascendência sobre a norma legal Tais ideias inspirariam Hans Kelsen no desenvolvimento de sua Teoria Pura do Direito É VÃO FAZER com mais quando se pode fazer com menos Guilherme de Ockham Duns Scotus e suas circunstâncias Foi Duns Scotus o Doutor Sutil quem iniciou a grande discussão entre o individual e universal que Guilherme de Ockham seu seguidor consolidaria como o nominalismo Opunhase a Santo Tomás de Aquino no tocante à relação entre razão e fé Johannes Duns Scotus também franciscano também inglês e também crítico de Santo Tomás de Aquino considerava que Deus estava acima de qualquer atitude racional Como Ockham de quem foi precursor separava fé e razão As intenções de Deus segundo ele estão acima da inteligência do homem e não podem ser percebidas pela filosofia mas apenas pela fé Em razão de sua atividade religiosa foi elevado a Beato da Igreja pelo papa João Paulo II em 1993 Duns Scotus e sua influência no direito Deus é a liberdade absoluta e aos homens cabe seguir a lei dos homens Considerava que as verdades da fé não poderiam ser compreendidas pela razão A filosofia assim deveria deixar de ser uma serva da teologia como vinha ocorrendo ao longo de toda a Idade Média e adquirir autonomia Não defendia a ética das virtudes mas a moral Trabalhou com a lei natural e o direito natural defendendo que esse imperativo não está baseado em autoridade ou lei positiva Por isso seu pensamento auxilia grandemente nas questões morais como a bioética por exemplo O CONHECIMENTO científico deve captar o que há de necessário nas coisas finitas Duns Scotus Roger Bacon e suas circunstâncias Os estudos realizados por Roger Bacon o Doutor Mirabilis principalmente na matemática e na ótica foram uma espécie de iniciação para a transição entre o pensamento clássico e o pensamento científico que levaria à ciência moderna Considerava que São Tomás de Aquino tinha ajudado a destruir a teologia Roger Bacon foi outro frade franciscano cuja contribuição filosófica é de que a razão base do conhecimento deve servir como suporte para a fé teológica Considerava a fé a base de todo conhecimento mas aceitava que a razão era importante para alcançar o saber Diferentemente da maioria dos filósofos de seu tempo mais dados à especulação e à teoria Roger Bacon lançou mão de experiências como forma de ampliação de conhecimentos Essas experiências foram confundidas com alquimia na época que era condenada pela Igreja Por isso foi acusado de heresia e acabou preso entre 1277 e 1279 Roger Bacon e sua influência no direito Roger Bacon acreditava que embora as Escrituras fossem a base de todo conhecimento o homem podia usar a razão para apreender o conhecimento Achava impossível que um argumento racional fosse capaz de fornecer qualquer prova convincente de algo mas admitia que com a razão uma pessoa podia formular hipóteses que viriam ou não a ser confirmadas pela experiência Suas ideias têm especial aplicação no direito canônico LINHA DO TEMPO OS FILÓSOFOS DO CRISTIANISMO datas aproximadas Ano 40 São Paulo organiza as ideias basilares do cristianismo como doutrina religiosa Ano 100 São Justo e Santo Irineu produzem os primeiros comentários teológicos da doutrina cristã com base no pensamento de Platão Ano 340 Nasce Santo Ambrósio que seria o responsável pelo período mais importante da patrística Ano 354 Nasce Santo Agostinho responsável por fazer uma síntese entre religião e filosofia principalmente nas obras Confissões e A cidade de Deus Ano 476 Começa a Idade Média com a queda do Império Romano do Ocidente Ano 480 Nasce Boécio filósofo romano que traduziria para o latim as obras clássicas dos gregos Porfírio e Aristóteles nas quais seria fundamentada a filosofia da Europa medieval Ano 533 O imperador Justiniano publica a reunião de comentários de juristas romanos sobre as leis em uso no Império O trabalho constituiria o Digesto ou Pandectas além das Institutas espécie de manual do direito Ano 1215 João SemTerra promulga a Magna Carta talvez o primeiro documento oficial relativo a direitos humanos na história Ano 1225 Nasce Santo Tomás de Aquino que sistematizou a obra de Aristóteles dando nova feição ao pensamento do grego sobre lógica física metafísica e ética Essa nova feição foi chamada escolástica Ano 1324 O papa João XXII toma os bens dos frades da Ordem Franciscana que se recusavam a seguir o tomismo de Santo Tomás de Aquino e insistiam em seguir as ideias de Santo Agostinho Os principais frades franciscanos foram Johannes Duns Scotus Guilherme de Ockham e Roger Bacon SEGUNDA PARTE OS PRIMEIROS PASSOSpara aMODERNIDADE TRANSIÇÃO DA IDADE MÉDIA PARA A MODERNIDADE Veio o primeiro milênio e crescia a tendência de privilegiar a ciência e não mais a religião como forma de atingir o conhecimento A reação da Igreja a essa ideia foi feroz e a maior prova disso foi a instituição da chamada Santa Inquisição em Verona na Itália em 1184 A inquisição foi oficializada em 1229 pelo papa Gregório IX sob a denominação de Tribunal do Santo Ofício e espalhouse rapidamente para a Espanha Portugal França Escócia Inglaterra e Alemanha18 Mas o fim da Idade Média oficialmente medido pela tomada de Constantinopla já tinha sido marcado por um prelúdio religioso em 1054 o Grande Cisma19 Com duas sedes o Império Romano que já então era o império carolíngio fundado por Carlos Magno no ano 800 com apoio do papa Leão III estava no Ocidente instalado em Milão e no Oriente em Constantinopla atual Istambul No Oriente o islamismo começava a ocupar grandes espaços entre a população Os católicos do Oriente enxergavam atos de corrupção entre os membros do alto clero houve até aventureiros que apoiados por reis conseguiram tornarse papas Benedito IX por exemplo foi entronizado como papa aos 12 anos de idade Alexandre VI outro papa de triste memória era acusado entre outros crimes de ser amante da própria filha Lucrécia Bórgia Por seu lado o papa Leão IX considerava que os orientais desvirtuavam os rituais e punham em risco a credibilidade da Igreja Católica Por isso escreveu e mandou entregar uma relação de erros da Igreja oriental na sua avaliação O patriarca oriental Cerulárius reagiu escrevendo outra relação descrevendo erros que a Igreja ocidental cometia Em ato oficial ambos declararam que o outro estava excomungado E assim foi bipartida há mais de mil anos a Igreja Católica a Igreja GregaOrtodoxa e a Igreja Católica Apostólica Romana O segundo momento que a história descreve como o início oficial da Idade Moderna foi a tomada de Constantinopla pelo Império Otomano em 1453 Com essa invasão pôsse fim à hegemonia carolíngia e desenharamse novos perfis religiosos políticos e comerciais para o mundo Com a principal rota de comércio bloqueada pelas tropas do sultão Maomé II os europeus tiveram que buscar caminhos alternativos o que deu ensejo às chamadas Grandes Navegações Para atravessar novos mares foi preciso estudar astronomia engenharia naval técnicas de suprimento cartografia matemática tudo isso constituindo impulso tremendo para a ciência Estava posta a utilidade do pensamento científico que passa portanto a se sobrepujar ao pensamento filosófico RENASCIMENTO E HUMANISMO Como decorrência das grandes mudanças impulsionadas na Europa pelas Grandes Navegações invenção da bússola desenvolvimento da indústria naval e descoberta de novos centros de comércio os homens foram deixando a agricultura de subsistência e se concentrando em centros urbanos Foram sendo criadas as cidades Vivendo mais estreitamente em grupo os homens principiaram uma tendência de valorização de si mesmos contra a determinação até então vigente de submissão completa à ideia de que tudo provinha e era determinado por Deus O humanismo como movimento filosófico mas principalmente estético colocava o homem como centro do universo definia a natureza como domínio do homem e privilegiava a ação em detrimento da contemplação Em suma o homem passava no humanismo a ser dono do seu próprio destino e em benefício dele é que deviam ser realizados todos os estudos Talvez o poeta italiano Francisco Petrarca 13041374 tenha sido o primeiro pensador do humanismo Em seus livros promoveu a crítica e o julgamento do período medieval Especialmente em Estudos de humanidades consegue elaborar os primeiros conceitos do que viria a ser a consciência moderna que o Renascimento celebraria Ao seu lado compartilhando amizade e pensamento podemos colocar como iniciador do humanismo o escritor florentino Giovanni Boccaccio 13131375 autor de Decameron considerado o criador da prosa italiana Na base filosófica do humanismo estava a retomada do pensamento de Platão Em primeiro lugar porque era uma forma de oposição à doutrina dominante da Igreja a escolástica de Santo Tomás de Aquino calcada em Aristóteles Mas também porque parecia aos humanistas que o pensamento de Platão retomava um conceito estético mais direcionado para o homem do que para a divindade Com efeito Platão dizia que o homem pode alcançar a perfeição do corpo e da alma pela via da educação Esse ensinamento agradava muito aos humanistas A Igreja medieval pela escolástica pregava que a desigualdade era natural e que o homem devia ter a humildade de submeterse às autoridades definidas por Deus mas essas autoridades usavam o poder para oprimir O novo conceito trazido pelo humanismo pregava a igualdade e a elevação dos humildes a novos níveis sociais Mais do que isso o humanismo fazia emergir a noção de que todos os homens têm direitos já que todos são iguais Admirando Platão era natural que no humanismo a admiração pela cultura clássica antiga ressurgisse renascesse e daí a denominação de Renascimento dada a esse movimento estético do qual o holandês Erasmo de Rotterdam foi o maior representante Erasmo de Rotterdam o grande humanista Erasmo de Rotterdam dedicou a Thomas Morus a sua maior obra Elogio à loucura No livro credita à loucura as mediocridades e hipocrisias humanas Mas a loucura é na realidade uma grande metáfora para criticar os desmandos das autoridades eclesiásticas Padre e teólogo holandês Erasmo de Rotterdam nasceu em 1467 e morreu em 1536 Passou a maior parte da vida na França Sua primeira obra Colóquios e antibárbaros tem conteúdo escolástico contra a valorização da Antiguidade Clássica Mas numa viagem à Inglaterra conheceu Thomas Morus e tomou contato com o humanismo Começou a questionar as práticas dos representantes da Igreja da época que haviam perdido a simplicidade e o despojamento Escreve Filosofia christi condenando a estrutura da Igreja e as atitudes mercantilistas dos padres Erasmo de Rotterdam chegou a ser convidado por Martinho Lutero para juntarse ao novo protestantismo mas recusou e permaneceu na Igreja Católica Escreveu obras de cunho político em que condena a monarquia hereditária e defende a eleição direta Pregava que o governante só seria legítimo se fosse aceito pelos cidadãos Thomas Morus crítico da realeza Thomas Morus é autor de muitas obras sendo a mais conhecida o livro Utopia em que descreve uma ilha em referência clara à Inglaterra onde o povo tem participação no governo e é corresponsável ao lado dos governantes pela definição do seu destino Segundo Thomas Morus um Estado sobrevive quando consegue se apoiar na capacidade individual de seus habitantes Outro filósofo renascentista a discutir as instituições da época foi o inglês Thomas More mais tarde canonizado como São Tomás Morus Nasceu em 1478 e morreu em 1535 Filho de juiz foi advogado e depois parlamentar influente Graças a isso foi levado a participar da corte do rei Henrique VIII primeiro como embaixador e depois como chanceler da Inglaterra Contrariado como católico pela intenção do rei de se separar de Catarina de Aragão para se casar com Ana Bolena abandonou o cargo em 1532 O rei em retaliação convocouo para prestar juramento do seu casamento depois de se declarar líder da Igreja na Inglaterra em 1534 Ao recusar foi preso na Torre de Londres e decapitado O papa João Paulo II o declarou patrono dos políticos Foi partidário do Direito Natural aquele concedido por Deus a todos os homens e que não pode ser suplantado por qualquer outra norma elaborada pelos homens Sua crítica mais profunda dirigiase aos reis que utilizavam o poder apenas para satisfazer seus próprios caprichos em vez de usálo para preencher as necessidades do povo O pensamento de Thomas Morus teve também grande importância para o sistema jurídico Já naquela época em palavras que muito se adéquam à realidade atual de muitos ordenamentos ao redor do mundo alertava para o fato de que uma excessiva quantidade de leis decretos e normas conduzem o Estado à imobilidade e à inoperância e mais do que isso ajuda a disfarçar desmandos e atos de corrupção Maquiavel e a decadência política Nicolau Maquiavel escreveu O príncipe em 1512 que só seria publicado cinco anos depois de sua morte Uma obra ainda hoje mal interpretada Embora se imagine que o livro defenda os soberanos autoritários na realidade é um manual de política que lista e condena atos que agridem os direitos humanos e que exibem a decadência da Europa da época A frase mais conhecida do livro de que o fim justifica os meios é apenas uma constatação de como agem os tiranos No aspecto político filósofos humanistas como o italiano Nicolau Maquiavel20 punham sob dúvida o poder divino de reis e imperadores que centralizavam com despóticas mãos de ferro o controle político e religioso Esses governantes tinham quase sempre apoio de papas prelados e bispos que se aproveitavam da proximidade com a realeza para justificar as práticas mais mundanas como ocorria com a venda de indulgência Maquiavel mudou o foco não mais a predestinação estabelecida pela divindade e seus representantes mas a ação humana como elemento definidor do destino do próprio homem Nasceu em Florença em 1469 Cresceu num ambiente de transformações de toda ordem religiosas sociais e políticas Era o tempo do papa Alexandre VI da família Bórgia famosa pela sua falta de ética na condução da Igreja Na economia emergia uma classe burguesa que disputava poder com os monarcas e com os líderes religiosos Na política Florença havia se tornado república com a destituição da dinastia dos Médici mas com o retorno da família ao poder Maquiavel foi exilado aproveitando o período de afastamento para escrever O príncipe talvez segundo alguns historiadores como forma de tentar se reaproximar dos poderosos Na política interessouo especialmente o absolutismo que era então uma novidade que se contrapunha aos soberanos feudais Encantouse com a ideia de um governante absolutista com papel de unificador Tal postura se justifica em grande parte pelas circunstâncias históricas em que viveu Não se deve esquecer que a Itália do tempo de Maquiavel era uma verdadeira colcha de retalhos de ducados condados e principados com dialetos e costumes A unificação da Itália só seria finalizada de fato na segunda metade do século XIX após décadas de lutas com a anexação dos dois últimos territórios Roma e Veneza Já a luta pelo fim das monarquias só chegaria a seu fim muitos anos mais tarde Em 1946 após o efêmero reinado de apenas um mês de Humberto II um plebiscito levaria à proclamação da República o que mudaria definitivamente os rumos da história da Itália LINHA DO TEMPO OS PRIMEIROS PASSOS PARA A MODERNIDADE Ano 1054 Ocorre o Grande Cisma em que a Igreja Católica ficou bipartida a Igreja GregaOrtodoxa e a Igreja Católica Apostólica Romana Ano 1184 Criada a Inquisição em Verona na Itália para combater os pensadores que queriam privilegiar a ciência e não mais a religião como forma de atingir o conhecimento Ano 1229 O papa Gregório IX oficializa a Inquisição sob o nome de Tribunal do Santo Ofício Ano 1304 Nasce Francisco Petrarca possivelmente o primeiro pensador do humanismo movimento filosófico que punha o homem como figura central do universo O humanismo retoma o pensamento de Platão mais voltado para o homem do que para a divindade Ano 1313 Nasce Giovanni Boccaccio considerado o criador da prosa italiana um dos primeiros autores do renascimento Ano 1378 Novo cisma na Igreja Católica coexistem dois papas um em Roma e outro na França Ano 1453 O império otomano toma a cidade de Constantinopla fato que inaugura a Idade Moderna Ano 1467 Nasce Erasmo de Rotterdam considerado o grande humanista Autor de Elogio à loucura Condenava a monarquia hereditária e defendia a eleição direta Ano 1469 Nasce Nicolau Maquiavel Autor de O príncipe Defendia a ideia de um governo absolutista que funcionasse como unificador Ano 1478 Nasce Thomas Morus Autor de Utopia Em sua obra criticou os reis que utilizavam o poder apenas para satisfazer seus próprios caprichos em vez de usálo para preencher as necessidades do povo Alertou para o fato de que uma excessiva quantidade de leis decretos e normas conduzem o Estado à imobilidade e à inoperância e mais do que isso ajuda a disfarçar desmandos e atos de corrupção TERCEIRA PARTE A IDADE MODERNAdaFILOSOFIA AS CIRCUNSTÂNCIAS DO INÍCIO DA IDADE MODERNA Na arte o humanismo despontava com a estética chamada renascentista representando a volta da sociedade aos valores do período clássico Nesse período Michelangelo pintou o teto da capela Sistina em 1512 e Da Vinci produziu suas obras mais expressivas Miguel de Cervantes escreveu Dom Quijote de la Mancha e Shakespeare as suas principais tragédias Na economia o feudalismo entrava em declínio com a diminuição da dependência da agricultura de subsistência Aparatos mecânicos eram continuamente introduzidos em todas as áreas produtivas levando a importantes alterações em praticamente todas as instituições O homem aprendeu a usar a lã de ovelhas em teares semiautomáticos para produzir tecidos de qualidade Aprendeu a usar arados mais sofisticados que encurtavam o ciclo de plantio Aprendeu técnicas de conservação de alimentos e aprendeu a lidar com a madeira E mais importante aperfeiçoou a siderurgia Também na filosofia grandes foram as evoluções verificadas A Idade Moderna coincide com o declínio da escolástica de Santo Tomás de Aquino em prol do subjetivismo moderno Com efeito o pluralismo escolástico que pregava ser natural que por uma determinação divina os seres fossem diferentes e tivessem diferentes graus de importância para o mundo não mais satisfazia os pensadores modernos Já influenciados pelo movimento do humanismo viam o indivíduo como centro do mundo liberto de sua submissão a Deus podendo ascender e evoluir a despeito de sua condição de nascimento Com essa nova maneira de pensar e galgando novos patamares econômicos o povo mais consciente de si mesmo começava a desejar direitos individuais nas asas do nominalismo que os frades franciscanos pregavam em oposição a Santo Tomás de Aquino Da mesma forma a limitada lógica formal pregada pela escolástica deixou de oferecer respostas suficientes aos questionamentos que naturalmente emergiam A filosofia moderna queria o conhecimento universal e passaram a buscálo pela via da articulação de sistemas mecânicos pelo pensamento pela postura racional Mas a grande batalha contra o imenso poder da Igreja Católica só seria travada por Calvino e Lutero na Reforma Protestante A REFORMA PROTESTANTE O ordenamento social político e jurídico era praticado de maneira indissociável pelos reis e pelos líderes eclesiásticos Portanto todos os acontecimentos que envolveram a religião dominante tinham natural consequência sobre a filosofia do direito em todas as épocas que precederam a Idade Contemporânea Um grande exemplo disso foi o caso da Reforma Protestante Martinho Lutero o rebelde ativo A tese de n 86 de Lutero fazia a seguinte pergunta Por que o papa cuja fortuna é maior do que a de qualquer Creso não prefere construir a basílica de São Pedro de seu próprio bolso em vez de o fazer com o dinheiro de cristãos pobres Lutero ainda escreveu diversos panfletos Discurso à nobreza alemã Cativeiro babilônico da Igreja e Sobre a liberdade do homem cristão discutindo principalmente a supremacia da lei de Deus sobre a lei dos homens entre eles os papas Martinho Lutero monge alemão nascido em 1483 foi um grande crítico dos líderes católicos da época Considerava que as autoridades eclesiásticas pregavam uma coisa e praticavam outra e passou anos compilando evidências de hipocrisia privilégios indevidos e abuso de poder Padres desrespeitavam o celibato ocupavam vários cargos ao mesmo tempo e até moravam fora da paróquia que deveriam administrar Além disso muitas pessoas praticavam a simonia que era a compra de posição eclesiástica tornandose padres ou bispos sem terem passado pelos ritos de formação O papa Leão X por exemplo que ficou famoso por determinar em 1517 o aumento da venda de indulgências para levantar fundos para a construção da Basílica de São Pedro em Roma só foi ordenado sacerdote e consagrado bispo após a sua eleição ao papado Descontente com todo esse quadro em 31 de outubro de 1517 afinal Lutero pregou nas portas da Abadia de Wittenberg na Alemanha para discussão pública um relatório que ficou famoso com a denominação de 95 Teses Contra o Comércio de Indulgências Entre elas condenava a cobrança de taxas em dinheiro pelos padres da família de moribundos para que estes não tivessem que passar pelo purgatório Condenava também o costume de religiosos de vender indulgências o perdão dos pecados O papa Leão X em 10 de dezembro de 1520 emitiu uma bula papal excomungando Lutero e ordenando que toda a sua obra fosse queimada Lutero atirou o documento do papa ao fogo e esse gesto fez estremecer a Europa inteira Não podemos nos esquecer de que a Europa vivia sob o jugo do Tribunal do Santo Ofício a Inquisição que poderia prender torturar e matar qualquer pessoa que se manifestasse contra a Igreja Aliás foi o que aconteceu com dois predecessores de Lutero o inglês João Wycliffe 13241384 e o alemão João Huss 13691415 Mas Lutero escapou da perseguição porque se aliou a vários nobres que queriam ocupar terras então pertencentes à Igreja uma de suas principais ideias era de que os bens da Igreja deviam ser confiscados Em 1521 Carlos V imperador do Sacro Império RomanoGermânico que naquele ano contava apenas 19 anos de idade convocou Lutero a defenderse na Dieta de Worms Insatisfeito com as respostas condenouo à morte mas Lutero conseguiu escapar e refugiarse no sul da Alemanha Pouco depois 15231525 um outro acontecimento contribuiu para reforçar as ideias de Lutero O pastor Thomas Munzer liderou mineiros e trabalhadores rurais numa rebelião contra os nobres no que ficou conhecido como a Guerra dos Camponeses Mais de dez mil camponeses morreram e Munzer foi executado Mas o levante resultou em fortalecimento das noções pregadas por Lutero embora ele mesmo tenha sido contrário à pretensão dos camponeses De qualquer maneira estava estabelecida a separação da Igreja Católica O protestantismo eliminava o celibato padres e freiras abandonaram conventos para se casarem o próprio Martinho Lutero casouse também em 1525 com Katherine von Bora O protestantismo acabava ainda com o latim como língua oficial das missas que deveriam ser celebradas no idioma local facilitando assim o acesso do povo ao conhecimento ali pregado Ficava eliminada a hierarquia eclesiástica e ficavam banidos cinco dos sete sacramentos restando apenas o batismo e a comunhão Carlos V baixou em 1526 um decreto estabelecendo a religião católica como a religião oficial do império imaginando dessa forma sufocar as tentativas de criação de uma nova ala da Igreja Tornou as decisões ainda mais radicais três anos depois mandando excomungar e até matar os dissidentes Contra essa decisão do imperador um grupo de luteranos publicou em 23 de abril de 1529 o Protesto de onde a denominação Protestantismo João Calvino o teórico do protestantismo Em Genebra entre 1536 e 1538 João Calvino escreveu aquela que é considerada a maior obra da Reforma As institutas da religião cristã Duas das principais ideias defendidas por ele nessa obra levaram a uma modificação fundamental na estrutura filosófica dos séculos que se seguiram uma delas é a noção de predestinação e outra a de que o sucesso econômico advindo do trabalho não pode ser considerado pecado Com isso o calvinismo tornouse praticamente a Bíblia do capitalismo O francês João Calvino tinha 8 anos de idade quando Martinho Lutero escreveu as 95 Teses Contra o Comércio de Indulgências Apenas dezesseis anos mais tarde já doutorado em Direito pela Universidade de Orleans tomaria contato com o protestantismo Nessa época o papa Clemente VII Júlio de Médici da família que imperava em Florença na Itália pressionava o rei da França para sufocar a reforma protestante Já por esse tempo um humanista afamado Calvino foi convencido por Guilherme de Farel evangelista francês que foi um dos fundadores da Igreja Reformada na Suíça a ajudálo a implantar o protestantismo em suas terras O sociólogo alemão Max Weber foi um dos teóricos que defendeu a ideia de que a religião exerce influência decisiva sobre a economia social Partindo de uma pesquisa entre empreendedores europeus da época chegou à conclusão de que entre protestantes a obtenção do lucro era quase uma obrigação religiosa Essa constatação obtida na pesquisa de Weber está no livro A ética protestante e o espírito do capitalismo de 1915 Nessa obra Weber credita aos escritos de Calvino o desenvolvimento do capitalismo na Europa e nos Estados Unidos21 Calvino efetivamente escreveu sobre questões econômicas além da ética e da teologia Mas certamente não teria concordado com os excessos do capitalismo atual com suas cruéis práticas de mercado como a manipulação de preços e a usura Henrique VIII e a Igreja Anglicana Não de todo sem querer mas certamente sem imaginar o impacto de suas decisões o rei inglês Henrique VIII ajudou a promover o protestantismo Mas o fez por motivos puramente pessoais Queria licença do pontífice Clemente VII para divorciarse de Catarina de Aragão e casarse com Ana Bolena então apenas uma adolescente O pretexto era o fato de que a rainha não conseguia engravidar para dar um herdeiro ao trono inglês Como Henrique VIII não era um teólogo fora motivado por interesses absolutamente egoístas não teve efetiva intenção de reforma Por essa razão manteve todos os rituais da igreja católica unicamente acrescentando o direito ao divórcio e a noção de infalibilidade do chefe supremo ele mesmo Mais tarde alterações baseadas no calvinismo foram acrescentadas A igreja anglicana só deixou de sofrer mudanças quando a filha de Henrique VIII com Ana Bolena subiu ao trono como a rainha Elizabeth I Acontece que Catarina de Aragão era da família do imperador Carlos V a quem o papa não queria desgostar A autorização foi negada E Henrique VIII em 1534 desligouse da Igreja Católica E o fez do modo mais espetacular possível criou a sua própria Igreja Não se vinculou à igreja luterana porque anos antes havia socorrido o papa com seu exército contra os seguidores de Martinho Lutero Optou portanto por criar a Igreja Anglicana o que levou o papa a excomungálo Imediatamente pelo Ato da Supremacia aprovado pelo parlamento nomeou a si mesmo como chefe supremo da Igreja Anglicana aproveitando no mesmo decreto para confiscar todos os bens da Igreja Católica em solo inglês A criação da igreja anglicana foi pretexto para vários conflitos que Elizabeth I e seus sucessores tiveram que enfrentar Naturalmente por causa de outros motivos conjugados entre eles a sucessão ao trono do Reino Unido houve conflitos sérios na Escócia e na Irlanda Na Irlanda aliás há quase novecentos anos que católicos e protestantes guerreiam Hoje o Exército Republicano Irlandês IRA para a sigla Irish Republican Army é dos mais ativos grupos armados do mundo considerados terroristas Representa a província do norte da Irlanda que a GrãBretanha até hoje não quer deixar independente a província do Sul atual República do Eire conseguiu a independência em 1937 Atualmente Irlanda do Norte tem 60 de protestantes que se impõem sobre a minoria católica A CONTRARREFORMA A Igreja Católica romana demorou muito tempo para reagir à implantação da Igreja Anglicana O papa Paulo III convocou o Concílio de Trento em 1545 quase dez anos depois do início dos movimentos Essa assembleia dos 31 bispos apresentou uma resposta feroz ao protestantismo elaborou o Index Librorum Prohibitorum uma lista de livros proibidos em especial as obras de Lutero e Calvino recolocou em atividade a Inquisição e criou a Companhia de Jesus e uma força armada formada pelos dominicanos22 O Concílio de Trento permaneceu em assembleia pelos dezoito anos subsequentes pelos papas que sucederam Paulo III Júlio III Paulo IV Pio IV Gregório XIII Sisto V e Pio IV Outras iniciativas destinadas a valorizar a religião católica foram a criação de seminários para a formação de padres a instituição do catecismo e a manutenção do celibato As decisões radicais do Concílio de Trento realmente levaram a um efeito sanitário a melhoria da qualidade da conduta dos padres da época Mas de qualquer maneira a Igreja Católica que já estava dividida em apostólica e ortodoxa teria de conviver com uma terceira vertente o protestantismo O ÉDITO DE NANTES Católicos e protestantes nas décadas que se seguiram ao Concílio de Trento envolveramse em lutas sangrentas especialmente na França onde os protestantes eram chamados huguenotes palavra que conforme alguns historiadores teria derivado do sobrenome de Besançon Hugues líder da reforma protestante na Suíça A França foi um dos primeiros países católicos da Europa Antes mesmo da sua constituição como nação o rei Clóvis da tribo dos francos deixarase batizar juntamente com três mil dos seus soldados no natal do ano de 496 Mais tarde no ano de 752 o rei Pepino o Breve cedeu para a Igreja um território da Itália que seria transformado nos Estados Pontifícios com capital em Roma23 Atados à tradição os católicos da França não receberam com simpatia a reforma protestante O catolicismo entretanto não estava muito sólido no território francês No ano de 1305 já havia ocorrido um período de descrédito para a Igreja porque o papa Clemente V francês resolveu transferir a sede da Igreja para Avignon Em 1377 os papas voltaram para Roma Mas dois deles conhecidos como antipapas Clemente VII e Bento XIII continuaram comandando a Igreja a partir da França Como resultado dessa decisão houve o afamado Grande Cisma do Ocidente quando coexistiram dois papas um em Roma e outro em Avignon Além disso os católicos costumavam sufocar com fúria os cultos dissidentes como fizeram com os cátaros e os valdenses E com os protestantes não foi diferente O rei Francisco I e seu filho Henrique II perseguiram ferozmente os seguidores da reforma de Martinho Lutero e de João Calvino Outro fator importante para fazer recrudescer a guerra religiosa foi o apoio dado por uma parte da nobreza ao calvinismo A família Bourbon huguenote pretendia o trono da França então nas mãos da regente Catarina de Médici A regente foi obrigada a fazer concessões ao protestantismo tendo inclusive nomeado o almirante Gaspar de Coligny da família Montmorency para o posto de membro do conselho real No entanto o apoio de Coligny ao protestantismo holandês irritou a rainha regente que mandou assassiná lo juntamente com outros seis mil seguidores no atentado que ficou conhecido como o Massacre do dia de São Bartolomeu Após uma sequência de sucessões de curta duração no trono francês afinal assumiuo o rei huguenote Henrique IV em 1588 Ele foi obrigado a converterse ao catolicismo para manter o poder mas não esqueceu suas origens religiosas Em 1598 publicou um programa de tolerância chamado Édito de Nantes Esse programa restituía aos huguenotes que constituíam 15 da população francesa os direitos civis como os de ocupar cargos públicos direitos políticos como o de viver em comunidades e direitos religiosos como a liberdade de consciência Mas era uma tolerância limitada Pelo documento a Igreja Católica era confirmada como igreja oficial com todos os direitos bens e rendas os huguenotes podiam promover cultos mas não dentro de um raio de 30 km da cidade de Paris A intolerância religiosa voltaria a se estabelecer oficialmente na França oitenta e sete anos mais tarde Em 1685 o rei Luís XIV revogou o Édito de Nantes substituindoo pelo Édito de Fontainebleau Os huguenotes voltaram a ser perseguidos e cerca de trezentos mil se refugiaram em outros países da Europa América e África O ABSOLUTISMO Embora Maquiavel tivesse festejado o advento do absolutismo com monarcas poderosos que teriam como principal função a de unificar as tribos e possessões em que muitos reinos estavam divididos não tardaria a que a concentração excessiva de poder levasse a perigosos deslizes desses governantes Mas antes disso esse sistema político e administrativo que prevaleceu na Europa entre os séculos XVI e XVIII serviu perfeitamente aos propósitos da nova classe social então em ascensão a burguesia comercial A sociedade recémsaída do feudalismo estava dispersa e desorganizada Não havia conexão adequada entre os setores produtivos e o restante da rede que faria a distribuição de venda de produtos Os reis absolutistas apoiados pela burguesia usaram da mão de ferro para legislar criar e disciplinar sistemas financeiros construir portos e armazéns e principalmente ceder exércitos para fazer a proteção das rotas comerciais Isso tudo principalmente nas três potências ocidentais da época Inglaterra França e Espanha Os reis intrometiamse até em assuntos religiosos como pudemos ver no caso de Henrique VIII um dos mais destacados reis absolutistas Sentiamse legitimados entre outras coisas por escritos de filósofos que defendiam a situação Dentre os mais importantes filósofos que defenderam o absolutismo estão Jean Bodin Jacques Bossuet e Thomas Hobbes Jean Bodin teórico do absolutismo Considerado o primeiro documento teórico do absolutismo Os seis livros da República de Jean Bodin foi uma mescla de política e de religião Fez sucesso imediato na Europa sendo logo traduzido para vários idiomas A tese mais conhecida da obra era de que soberania é um poder indivisível portanto o rei não podia repartir poder com ninguém nem prestar obediência a quem quer que fosse Acima do rei dizia Bodin só estava Deus Este francês que viveu entre 1530 e 1596 começou carreira como frade carmelita mas deixou a ordem para seguir o direito civil Lecionou na Universidade de Toulouse e depois foi para Paris onde foi deputado e mais tarde chegou a ser advogado do rei Henrique III Escreveu sua principal obra Os seis livros da República em 1576 inspirado pelas guerras religiosas de seu país Em 1562 a rainha regente Catarina de Médici havia assinado o Édito de SaintGermain em que alguma tolerância era dada aos huguenotes O conteúdo do decreto real porém não satisfez os protestantes que só podiam realizar cultos na zona rural e ao mesmo tempo descontentou os católicos que acharam demasiada a condescendência e promoveram um massacre de protestantes dando início a um conflito que duraria até 1598 Jean Bodin considerou que a decisão da regente Catarina de Médici demonstrara fraqueza e que os protestantes deviam ser esmagados pela força Seu livro estava centrado sobre a questão da autoridade do governante porque temia que a guerra civil francesa pudesse levar o país à anarquia que seria na sua opinião um desastre institucional Jacques Bossuet monarquista absoluto Bossuet escreveu o livro A política tirada das Santas Escrituras publicado em 1709 baseado na teoria de Jean Bodin sobre a soberania que lhe valeu para as gerações seguintes a fama de teórico do absolutismo Argumentou no livro que o rei era o representante de Deus na Terra Sendo assim seu poder era incondicionalmente legítimo e suas decisões sempre justas Dizia também que o rei devia ser como um pai para os seus súditos e exercer o que chamava de monarquia absoluta Jacques Bossuet era considerado um pregador apaixonado Foi arcediago vigáriogeral e bispo Em Paris doutorouse em teologia e foi eleito para a Academia Francesa Em 1671 passou a atuar como preceptor do futuro rei Luís XIV da França o ReiSol então com apenas 10 anos de idade e acompanharia o herdeiro do trono francês até 1681 Era intransigente e autoritário Como bispo de Meaux manteve grandes polêmicas contra os protestantes Na função de conselheiro do rei Luís XIV levou a sua tese ao extremo Formulou a ideologia gaulesa que estabelecia para o rei direitos equivalentes aos do papa Clemente XI Mais tarde voltou atrás temendo represálias do clero e aceitou ratificar um documento que definia que o papa era a autoridade máxima mas apenas em assuntos religiosos Defendeu até o fim da vida 1704 a tese de que qualquer governo formado legalmente é expressão da vontade de Deus e que portanto é sagrado sendo criminosa qualquer atitude de revolta insubordinação ou insurreição contra ele Thomas Hobbes e o contrato social O legalista britânico Thomas Hobbes foi o autor da famosa obra publicada em 1651 Leviatã ou Matéria forma e poder da comunidade eclesiástica e civil Nela consta a seguinte representação o cidadão abre mão de parte de sua liberdade que é total no estado de natureza em prol de uma autoridade que lhe dê em troca a segurança oferecida pela lei na vida em sociedade Era a doutrina do pacto associativo pactum associationis que também podemos ver em Locke no Tratado do governo civil e em Rousseau em O contrato social Em outras palavras uma sociedade não é de fato política enquanto o poder estatal não garante os bens públicos como justiça saúde e educação Aí sim estará configurado o pacto social Thomas Hobbes nasceu em 1588 ainda no reinado de Elizabeth I num período politicamente tumultuado em que a Inglaterra enfrentava a ameaça de invasão pela Espanha Thomas Hobbes afirmava que o homem em estado de natureza era naturalmente propenso a abusar da liberdade e a erguerse em guerra contra seus semelhantes Para ele o homem sem a necessária intervenção do Estado era lobo do próprio homem homo homini lupus Hobbes foi o teórico do poder soberano com o l i v r o Leviatã Dizia que a igualdade era responsável pelos males que os homens podem causar aos outros homens Por isso pensava ser necessário legitimar um poder maior que impedisse as guerras e a violência Estudou ciência e filosofia em Oxford e depois ligouse à corte do rei James I Conviveu com filósofos e cientistas entre eles Francis Bacon e Descartes Ainda enfrentaria entre 1642 e 1649 a guerra civil inglesa ocorrida entre os partidários do rei Carlos I e os parlamentaristas chefiados por Oliver Cromwell Possivelmente em decorrência desse ambiente belicoso desenvolveu a teoria de que a democracia enfraquecia os países e defendeu a ideia de que a monarquia absolutista era a alternativa recomendável para uma sociedade pacífica Dizia que respeitar tratados e convênios não é questão de direito é questão de conveniência Suas ideias desagradaram tanto os monarquistas quanto os parlamentaristas e ele teve que refugiarse em Paris No começo do século XVII em suas viagens pela Europa Hobbes percebeu o declínio acentuado da escolástica Diante disso decidiu voltar ao seu país natal a Inglaterra para aprofundarse nos estudos da Ciência Política e do Direito Com ideologia diferente da escolástica e do aristotelismo estreitou as relações com o filósofo e político Francis Bacon Foi pioneiro ao conceituar o contratualismo moderno24 Sustentava que após o estado de natureza em que os homens são plenamente livres estes firmam um contrato social cujo desdobramento resulta na formação da sociedade civil moderna chamada de Estado Para Hobbes o estado de natureza representa a situação em que não existe governo para manter a ordem social O direito natural é o direito que cada indivíduo possui para manter a sua integridade e para fazer valer os seus direitos compreende a liberdade que tem cada um de servirse da própria força segundo sua vontade No estado de natureza de Hobbes os homens são livres e seus direitos não encontram limitações Como se trata de situação em que todos podem tudo a ocorrência de lutas e disputas pela posse de determinada coisa é sempre iminente Nesse quadro não existe poder superior a se afirmar entre os homens pois o mais fraco pode se utilizar de qualquer artifício para obter aquilo que o mais forte possui É a partir dessa constatação que Thomas Hobbes formulou sua mais célebre frase O Homem é o lobo do Homem Em O Leviatã o filósofo sustenta que o único modo de manter um Estado controlador civilizado e em paz é implantando o regime absolutista Dessa forma concentrase o poder nas mãos do Estado Soberano e os súditos abrem mão da liberdade individual em troca de proteção Hobbes criticava a Igreja Para ele o rei deveria exercer poder sobre assuntos que envolvessem doutrina e fé pois a livre leitura da Bíblia poderia enfraquecer o absolutismo da majestade Foi defendendo essa ordem de ideias limitadoras da força dos preceitos bíblicos e sobretudo da própria Igreja que Hobbes angariou a antipatia desta que então iniciou ferrenha perseguição contra ele A filosofia verdadeira para Hobbes é aquela que se concentra na descrição e na observação dos corpos e de suas propriedades Ele foi contrário a todos os pressupostos da filosofia grega principalmente a defendida por Aristóteles e a Escolástica Sua filosofia é materialista mecanicista e baseada em três princípios o corpo o cidadão e o ser humano São dois os pressupostos do Estado absolutista diz o filósofo em O Leviatã O primeiro está diretamente relacionado à vida humana o homem deve trabalhar em sociedade e para a sociedade de modo a garantir a continuidade de sua própria vida O segundo pressuposto é o convencionalismo o homem adquire o conceito de justiça e cria normas para sobreviver de acordo com ele O egoísmo quando racionalizado facilita a busca do homem pela paz e a paz adquirida de modo racional é mais facilmente garantida Com isso Hobbes sustenta que o melhor modo de conquistar e assegurar a paz é criando pactos e garantindo meios para que esses durem por muito tempo O Estado absolutista de Hobbes é chamado Leviatã em metáfora referente ao monstro bíblico que possuía coração de pedra e era extremamente poderoso Em um tal Estado os súditos escolhem seu governante que é absoluto imbuído de plenos poderes mas que pode ser deposto caso não cumpra sua função perante a sociedade Em 1645 mesmo depois de tantas perseguições principalmente por parte da Igreja que afirmava que suas obras O Cidadão e O Leviatã faziam apologia ao ateísmo fez publicar seu primeiro tratado Elementos da lei natural e política Em síntese Hobbes enxerga no Estado absolutista a forma mais acabada e segura para assegurar os direitos básicos de todo cidadão Para ele se não existisse o Estado seríamos incapazes de sobreviver e conviver em uma sociedade civilizada Eis aí a gênese do contratualismo consistente na abdicação ou melhor dizendo na limitação de parte dos direitos individuais para recolocálos nas mãos de um Estado firme soberano o Estado Leviatã o qual se assemelha ao Deus Imortal Em 1665 publica o De Corpore obra em que estudou os corpos em movimento Mais uma vez a Igreja enxergou em seus escritos certo teor de ateísmo No ano de 1666 as perseguições voltaram a se intensificar tendo em vista que suas obras geravam repercussões negativas para a Igreja Nesse mesmo ano os livros de Hobbes foram queimados em Oxford como forma de repúdio às suas ideias Mesmo perseguido Hobbes continuou escrevendo e dedicandose aos estudos dos clássicos e às suas traduções Em 1668 traduziu para o inglês as célebres obras A Ilíada e A Odisséia Um de seus últimos trabalhos foi sua autobiografia escrita em 1672 que também gerou grande polêmica Morreu muito velho em 1679 famoso e prestigiado mas ainda com muitos inimigos Seu pensamento foi contestado cerca de dez anos depois de sua morte por John Locke que pregava a paz como estado natural da humanidade OS PACTOS SEM A ESPADA são apenas palavras e não têm a força para defender ninguém Thomas Hobbes O contratualismo O contratualismo é a alavanca do Direito na época moderna segundo Miguel Reale em seu livro Filosofia do direito Diz ele que o Direito existe segundo os jusnaturalistas porque os homens pactuaram viver segundo regras delimitadoras dos arbítrios Do contrato deriva a norma Vamos ver o que diz Miguel Reale Notese que se opera uma inversão completa na concepção do Direito Tudo converge para a pessoa do homem em estado de natureza concebido por abstração como anterior à sociedade A sociedade é fruto do contrato dizem uns enquanto outros mais moderados limitarão o âmbito da gênese contratual a sociedade é um fato natural mas o Direito é um fato contratual O Brasil sob o absolutismo A tomada de Constantinopla pelos mouros eliminou a possibilidade de existir na Europa um império ocidental como havia ocorrido com Roma Sem um poder central as tribos europeias entraram em sangrentas guerras Os dois países de navegadores Portugal e Espanha sem disposição para enfrentar territórios com vizinhos mais fortes voltaram as proas de suas embarcações para o oceano Atlântico e saíram em busca de novas terras que fornecessem matériaprima para comerciarem Chegaram à África e ao Brasil Descobriram o oceano Pacífico Elaboraram um novo mapa mundial ao dobrarem o Cabo das Tormentas provando ser possível a chegada à Ásia pelo sul do continente africano Além disso e talvez mais importante do ponto de vista da compreensão do mundo circumnavegaram o mundo conhecido provando que a terra era redonda A descoberta do Brasil foi decorrência dessa política expansionista durante o reinado de Dom Manuel o Venturoso Nos primeiros anos do século XVII o Brasil não era mais que uma colônia primitiva e selvagem uma espécie de armazém de vastidão exuberante para Portugal Nessa época Dom Felipe II ocupava os tronos de Portugal e Algarves prosseguindo o reinado do pai Dom Felipe I Como se sabe Portugal e Espanha tiveram o mesmo rei entre 1580 e 1640 As Ordenações Filipinas Por volta do século XV Portugal padecia de uma séria falta de sistematização de suas leis De fato seu ordenamento jurídico era composto por diversas leis esparsas emanadas das mais diversas fontes algumas provenientes da antiga Roma outras dos povos germanos e outras ainda da herança eclesiástica Buscando solucionar tal problema foram editadas compilações que passaram a ser conhecidas como Ordenações do Reino A primeira delas conhecida como Ordenações Afonsinas foi realizada por Dom Afonso no ano de 1446 Após numerosas reformas e revisões desse primeiro texto seguiuse nova sistematização das leis alteradoras Estas realizadas por Dom Manuel no primeiro quartel do século XVI receberiam o nome de Ordenações Manuelinas Entretanto a dinâmica das relações sociais continuava a impor constantes modificações legislativas Tantas foram as leis alteradoras publicadas que foram compiladas em um livro à parte denominado Leis Extravagantes uma espécie de ordenamento paralelo às ordenações Por fim visando a resgatar a unidade e sistematicidade perdidas em 1595 a legislação foi novamente agrupada e reorganizada por Dom Felipe I que editou as chamadas Ordenações Filipinas Eram tais ordenações distribuídas em cinco livros estabelecendo as normas para a distribuição da justiça e as providências da corte em relação ao direito As Ordenações Filipinas posteriormente revisadas e republicadas por Dom Felipe II em 1603 formaram a base do direito civil brasileiro Elaboradas por soberanos absolutistas e com raízes fincadas na Idade Média sem quaisquer avanços de natureza filosófica política ou social não se admira constituíssem um código autoritário e atrasado Ainda assim tal sistematização vigorou no Brasil durante todo o período colonial passou pelo reinado e só foi suspensa oficialmente com a proclamação da independência brasileira embora tenham continuado a ser aplicadas na prática por bastante tempo ainda Em Portugal estenderamse até 1867 quando passou a vigorar o primeiro Código Civil português O primeiro Código Civil brasileiro foi aprovado finalmente em 1916 com o famoso projeto redigido por Clóvis Beviláqua Seria exagero dizer que as Ordenações Filipinas fossem um código civil compilado Era mais um apanhado de normas embasadas no Direito Romano e no Direito Canônico não nos esqueçamos de que a separação entre Igreja e Estado só ocorreria no Brasil com a primeira Constituição da República em 1891 O Livro V das três Ordenações do Reino foi dedicado ao direito penal Demonstrando a grande vinculação existente entre Estado e Igreja o crime mais grave previsto pelas Ordenações era a heresia Além disso o julgamento de tais delitos era realizado pelos clérigos embora a execução da pena cumprisse ao Estado O texto ainda justifica tal medida dizendo que a todo Rei católico como braço da Santa Igreja pertence fazer e mandar cumprir e guardar suas sentenças Não há dúvidas de que a grande marca de tais ordenações era o excessivo rigor das leis e a crueldade de tratamento aos condenados por seu descumprimento o que envolvia tortura penas corporais pena de morte bem como a punição das gerações descendentes do infrator pelos crimes praticados Ainda no Livro V dois títulos chamam a atenção por sua conexão direta com o absolutismo e com a existência de algo que podemos denominar de direitos individuais Um deles o de número CXXXVI trata de que os julgadores não apliquem as penas a seu arbítrio cujo preâmbulo merece aqui ser mencionado Mandamos a todos os corregedores ouvidores e juízes assim de fora como ordinários e a todas as outras Justiças que poder têm para pôr penas que nenhum deles ponha pena de qualquer quantidade que seja para a Chancelaria sob pena de a pagar anoveada a metade para quem o acusar e a outra para os Cativos e de ser suspenso de seu ofício até nossa mercê e mais as penas que por ele assim forem postas não hajam efeito Entendendo a história das codificações Corpus Iuris Civilis O primeiro povo a considerar a necessidade de reunir as leis esparsas em um código foi o romano O código compilado pelo imperador Justiniano chamouse Corpus Iuris Civile e foi uma das mais importantes heranças do Direito Romano O Corpus Iuris Civilis que na prática constitui o Direito Romano era composto de quatro partes o Codex que reunia todas as constituições imperiais editadas desde o governo do imperador Adriano entre 117 e 138 o Digesto ou Pandectas que reunia os comentários dos grandes juristas romanos o Institutas espécie de manual para os amantes do Direito e as Novelas que foram as constituições elaboradas depois do ano de 534 A partir da Renascença com os crescentes movimentos de fortalecimento da autoridade do rei e consequente enfraquecimento da autoridade do papa os códigos ganharam importância em praticamente todos os países A Áustria foi uma das primeiras nações na Europa a organizar o seu Código Civil em 1786 Mas o mais importante para o Ocidente foi o Código Civil francês elaborado no reinado de Napoleão Bonaparte O ILUMINISMO O termo iluminismo representa um dos mais importantes períodos da história cultural e intelectual do Ocidente Os ideais daí decorrentes constituíram sem dúvida um marco para o direito moderno Embora não haja total consenso entre os estudiosos estabelecese como seu marco inaugural o início do século XVIII por isso denominado século das luzes tendo se encerrado apenas no início do século XIX com o advento das guerras napoleônicas Miguel Reale considera que a primeira fase do direito moderno estendese grosso modo desde a Revolução Francesa até a última década do século passado século XIX tendo como termo referencial o Código alemão de 1900 que assinala o apogeu de uma era de marcado cunho sistemáticoformal ainda sob o influxo das ideias individualistas25 Um de seus mais importantes expoentes Immanuel Kant diria mais tarde que o Iluminismo teria sido o único caminho para que o homem saísse da minoridade em que ele mesmo se havia colocado Em um pequeno texto denominado O que é o iluminismo o pensador esclarece as bases desse novo movimento conclamando a todos a sair de sua posição de passividade e submissão e a fazer uso da própria razão independente da direção de outrem Os filósofos desse período portanto deslocavam o eixo do debate de tal forma que o pilar teórico não era mais Deus mas o homem Por isso mesmo o Iluminismo é também chamado de Humanismo Pontificavase o uso da razão ilustrada ou seja educada Assim equipado o homem ficava livre das superstições dos abusos dos juristas bem como das determinações sacerdotais Em outras palavras passavam a se emancipar daqueles que até então proclamavamse detentores do conhecimento O homem comum antes submetido pela doutrina escolástica a uma posição social irremediável que interessava aos poderosos enxergou na nova corrente filosófica a escapatória da predestinação com que era ameaçado pela Igreja O Iluminismo defendia o antropocentrismo e o individualismo Falava de direitos individuais de propriedade privada de evolução pelo trabalho de revolta contra o rei Era uma nova maneira de viver e de pensar Com defeitos é claro mas melhor do que o absolutismo egoísta dos reis que se diziam prediletos de Deus Os iluministas eram portanto de todas as formas contrários aos ideais defendidos pela Igreja E com toda essa atitude de negação das concepções religiosas era natural que o homem se inclinasse para a ciência como ferramenta de desenvolvimento Por tal razão entram em cena cientistas como Isaac Newton pesquisadores como Descartes bem como artistas do porte de Leonardo da Vinci e Michelangelo Cada um na sua área de conhecimento tentando entender com a razão mais do que com a fé o funcionamento do mundo No âmbito jurídico o Iluminismo teve importante contribuição Justamente em razão do posicionamento do homem como centro da filosofia surgiram no direito os jusnaturalistas pósIdade Média Eram eles contrários aos dogmas defendidos pela Igreja de submissão passiva às determinações superiores advindas de Deus por intermédio de seus representantes Mas ao mesmo tempo negavamse a aceitar as acentuadas limitações trazidas pelo pensamento positivista que pregava a observância incondicional das determinações legais sempre que estas encontrassem respaldo em uma lei superior que lhes serviria de fundamento de validade Afastados desses dois extremos defendiam a existência de direitos que antecedem a lei escrita e que portanto devem ser por ela obedecidos como a vida e a liberdade Por fim salientase que o ideal de verdade passou a partir do Iluminismo a estar mais vinculado a questões subjetivas como a prática profissional e às decisões que respeitassem os direitos individuais Os déspotas esclarecidos O movimento teve participação fundamental de alguns governantes já que imperava ainda o absolutismo e portanto somente os reis tinham poder para promover quaisquer reformas Os monarcas que aderiram ao Iluminismo passaram para a história com o apelido de déspotas esclarecidos Governando sob princípios iluministas esses monarcas conseguiram acelerar o desenvolvimento da economia e modernizar as nações em que pese a verdadeira intenção ter sido o fortalecimento de sua posição política Os principais déspotas esclarecidos ou absolutistas ilustrados foram Frederico II da Prússia que chegou a acolher Voltaire como seu conselheiro e amigo Catarina II da Rússia e Maria Tereza e José II da Áustria O Brasil colônia também teve o seu déspota esclarecido Marquês de Pombal déspota no Brasil Inspirado pelos ideais das luzes o Marquês de Pombal implantou um programa político avançado para o seu tempo Dentre seus muitos feitos garantiu a Portugal o nobre lugar de primeiro país da Europa a abolir a escravidão em 1761 Sebastião José de Carvalho e Melo teve o título de Marquês de Pombal Por ter conseguido reconstruir Lisboa depois do terremoto de 1717 ganhou a confiança irrestrita do rei e foi nomeado primeiro ministro Sendo assim foi ele quem na prática dirigiu Portugal e suas colônias durante o reinado de Dom José I o Reformador a partir de 1750 Foi um importante estadista responsável por numerosas e bemvindas medidas Aperfeiçoou o sistema educacional e reformou a Universidade de Coimbra Criou a Imprensa Real Mandou elaborar um código penal que substituísse em sua maior parte as Ordenações Filipinas Promoveu a povoação das colônias portuguesas do Brasil Índia e África Fundou a Companhia das Índias Orientais Equipou o Exército e fortaleceu a Marinha Deu estímulos à agricultura e ao comércio com base nos princípios mercantilistas fundando o Banco Real Português e a Escola de Comércio Incentivou a implantação de manufaturas para que Portugal passasse a depender menos da Inglaterra Apesar de todas as reformas que promoveu a atitude do Marquês de Pombal era de ditador O seu período ficou conhecido como o Terror Pombalino Seus maiores inimigos foram os jesuítas que ele expulsou do Brasil e os aristocratas dos quais ele retirou poderes Esses esperaram que o rei Dom José I morresse para tramar a desgraça do marquês acusandoo de abuso de poder e corrupção A rainha Dona Maria I mãe de Dom João VI que ficaria conhecida como Maria a Louca sucumbiu à pressão dos nobres e dos padres e afastou o Marquês de Pombal do governo Após a expulsão ele retirouse para sua propriedade rural na cidade de Pombal onde morreu em 1782 Suas reformas como aliás praticamente todas as reformas promovidas pelos déspotas esclarecidos não perduraram Foram canceladas por Dona Maria I e Portugal regrediu voltando a permanecer na esfera de domínio da Inglaterra O terremoto de Lisboa Em 1755 um terremoto atingiu Lisboa matando mais de cem mil pessoas ou metade da população da cidade O terremoto durou apenas cinco minutos mas a devastação foi imensa O sismo causou um maremoto que ocasionou três tsunâmis seguidas com ondas de mais de 20 metros de altura Lisboa foi praticamente arrasada e grande parte do território espanhol também foi afetada inclusive as cidades de Sevilha Salamanca e Valladolid Os franceses acreditavam que teria sido um castigo divino numa demonstração de atraso que irritou Voltaire que dedicou trechos de seu livro Cândido ao terremoto A teoria otimista de Leibniz de que vivemos no melhor dos mundos possíveis foi contestada Os católicos de muitos países fizeram grande alarido penitenciandose preventivamente porque se Portugal um país com tantos crentes sofrera um castigo tão grande o que seria de outras nações onde havia pagãos e seguidores de outras religiões como o protestantismo MONTESQUIEU E AS BASES DO CONSTITUCIONALISMO A França estava descontente com o rei Luís XIV o famoso Rei Sol talvez o mais ferrenho de todos os monarcas absolutistas Foi ele o autor da tão afamada frase LEtat cest moi O Estado sou eu Esse rei durante seu longo reinado de cinquenta e quatro anos organizou e equipou o exército francês a ponto de tornálo o mais poderoso de toda a Europa Em vista disso empreendeu diversas guerras a maioria delas com objetivos pessoais que resultaram em grandes fracassos Em 1667 invadiu a Espanha Pretendia intrometerse na sucessão ao trono daquele país considerando que parte do território seria herança de sua esposa Maria Teresa de Espanha filha do rei Felipe IV A chamada Guerra da Devolução da qual o imperador participou pessoalmente terminou após a Espanha ter recebido apoio de outros dois países a Inglaterra e a Suécia Sob a perspectiva de envolverse em uma guerra de maiores dimensões Luis XIV se viu obrigado a assinar o Tratado de Paz de Aquisgran em 1668 que conferia à França tão somente o controle do pequeno território de Flandres antigamente pertencente à Holanda e que hoje é a região norte da Bélgica Porém naquele momento tal empreitada já havia implicado desarrazoados custos tanto econômicos quanto humanos Ferrenho defensor do catolicismo Luís XIV perseguiu também os protestantes na Holanda no que ficou conhecida como a Guerra dos Nove Anos que perdurou de 1688 a 1697 Tal investida somada à revogação do Édito de Nantes que como vimos fora assinado pelo rei francês Henrique IV em 1598 garantindo o fim das perseguições aos protestantes resultou na formação da chamada Liga de Habsburgo um grupo de países desgostosos com a política religiosa do rei francês A própria Grã Bretanha entrou nesse conflito que só seria resolvido com o Tratado de Ryswick em 1697 Poucos anos mais tarde em 1702 engajarseia na conhecida Guerra da Sucessão espanhola Tal conflito só se encerraria cerca de dez anos mais tarde com o Tratado de Utrecht Em suma Luís XIV exauria o tesouro francês em busca de vantagens pessoais que em nada contribuíam para com a sociedade Também era propenso a ditar regras para a religião e para a cultura Os intelectuais eram os principais críticos do reinado do Rei Sol e insuflavam o povo a questionar os atos do governante Foi nesse ambiente social que viveu Montesquieu Montesquieu e suas circunstâncias Charles Louis de Secondat o barão de Montesquieu foi o primeiro dos grandes pensadores franceses associados ao Iluminismo Era um escritor satírico que mesmo em seus trabalhos de filosofia política usava o sarcasmo como forma de comunicação Montesquieu foi o primeiro dos filósofos modernos a defender a distribuição dos Poderes em três campos o executivo o legislativo e o judiciário Haveria representantes das três classes sociais monárquica aristocrática e do povo nos três campos de modo que um fiscalizasse o outro para impedir privilégios e corrupção Foi dos primeiros teóricos do jusnaturalismo Montesquieu nasceu em 1689 filho de aristocratas o que explica a sua defesa insistente a essa classe social Já desde a infância no colégio Juilly passou a ser instruído dentro dos ideais iluministas Viveu nessa época na propriedade rural da família tendo convivido muito proximamente com os filhos de camponeses Esse fato o inspiraria posteriormente em suas teses de filosofia social Aos 16 anos de idade ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de Bordeaux onde pôde aprofundar seus estudos Ávido por conhecimento buscava desvendar as relações sociais e a forma de como disciplinálas Para tanto dedicouse intensamente à pesquisa dos mais diversos povos e etnias e a forma como se deu sua configuração política e social em cada período da história Já em sua fase adulta chegou a ser presidente do Senado e herdou do tio o título de barão e também a posição de presidente do Parlamento de Bordeaux cargo que ocupou por dez anos e que depois vendeu em 1721 Pertenceu à Academia de Ciências de Bordeaux onde realizou diversos de seus estudos e pesquisas Escreveu dois livros principais Cartas persas em 1721 e Espírito das leis em 1748 ambos de cunho racionalista Em Cartas persas faz uma análise crítica dos costumes sociais europeus do ponto de vista fictício de dois persas que visitam a França de Luís XIV Estabelecendo uma comparação da civilização ocidental da época com outra que em tudo dela se diferenciava inaugurava uma ampla crítica contra a forma de organização da sociedade os costumes nela estabelecidos bem como as instituições políticas e suas relações com o clero Nessa obra por muitos conhecida como o manual do iluminismo acaba por concluir que apenas a virtude e a justiça fazem com que uma sociedade seja duradoura Em sua maior obra Espírito das leis analisou as relações sociais que regem a sociedade por trás das leis Morreu em 1755 aos 66 anos de idade deixando inconcluso um ensaio que integraria a famosa Enciclopédia de Diderot e DAlembert Montesquieu e suas ideias Seus escritos evidenciavam um certo titubeio em relação às questões políticoadministrativas da época Por um lado considerava necessária a existência da classe aristocrática Essa serviria como elemento fiscalizador dos desmandos e abusos do rei absolutista e ao mesmo tempo contribuía para controlar eventuais revoltas da plebe Ou seja se o direito do rei não vinha de Deus o direito de liberdade dos cidadãos também não podia ter vindo dessa fonte numa clara contraposição à filosofia escolástica vigente Por outro lado temia que esse poder dado aos aristocratas pudesse leválos a uma atitude igualmente perigosa de prepotência e arrogância Por isso defendia que a melhor forma de constituir o Estado era manter as três classes a monárquica a aristocrática e a dos comuns desde que elas se dividissem no desempenho dos poderes próprios do Estado executivo legislativo e judiciário A isso denominou equilíbrio dos poderes Como forma ideal de governo recomendava a monarquia constitucional algo como o que a Inglaterra havia tentado com a declaração de João Sem Terra Para Montesquieu a Constituição teria o papel de limitar as ações do rei a partir das noções de honra e de justiça A divisão do Estado em três poderes como proposta por Montesquieu foi efetivada pela primeira vez na Constituição dos Estados Unidos da América em 1787 Dada a sua descrença no direito natural de herança divina seja ela do rei dos nobres ou mesmo das pessoas do povo Montesquieu não contemplou na sua divisão de classes os representantes da Igreja Ficou clara a sua intenção de separar Igreja e Estado Montesquieu e sua influência no direito Já munido de notável conhecimento jurídico Montesquieu empreendeu longa viagem pela Europa onde pôde tomar contato com diversas culturas e civilizações Pôde com isso aprender muito acerca do funcionamento das sociedades observando também a influência que exercem sobre elas os costumes e os diversos tipos de organização social e política Tal fato propiciou ao pensador um olhar crítico fundamentado sobre a forma e o sistema de governo vigentes na França de então Como resultado de todo esse processo publicou seu livro Espírito das leis em 1748 lançando as bases do constitucionalismo movimento que influenciou toda a Europa e até a América como Estados Unidos e México Era uma nova concepção de governo regido por uma lei consolidada Certamente influenciado pelas ideias aristotélicas presentes no livro A política Montesquieu além de reconhecer a importância das leis para evitar um absolutismo despótico defendia a ideia de que para o estabelecimento de um governo ideal era necessário considerar também a tradição os costumes as características geográficas e até o meio físico como o clima PARECE MEU CARO que as cabeças dos homens mais notáveis minguam quando se reúnem e que onde há mais sábios há também menos sabedoria Os grandes grupos prendemse tanto aos momentos e aos vãos costumes que o essencial não vem senão depois Montesquieu REFLEXÕES SOBRE O CONSTITUCIONALISMO Em meu livro Direitos humanos processo histórico26 refleti longamente sobre o impacto que as ideias de Montesquieu tiveram em todos os países que optaram pela Constituição como máxima norma jurídica Resumirei aqui essas reflexões para melhorar o esclarecimento dos leitores sobre a importância dessas ideias para o combate às monarquias absolutistas Os governantes absolutistas da Idade Média estavam acostumados a impor sua vontade pela força Não precisavam de leis porque todas as suas decisões eram totalitárias O descontentamento dos povos crescia na medida diretamente proporcional das vozes que se levantavam contra essa categoria de governantes A insatisfação popular começou a ser especialmente notável no Iluminismo embora Santo Tomás de Aquino tivesse falado ainda na Idade Média da Constituição como a ordem que fundamenta e substantiva as leis Na Renascença o povo queria que o poder real fosse limitado para que cessassem os desmandos os abusos os privilégios e a corrupção Buscavam principalmente que o desrespeito aos direitos dos súditos fosse punido Naturalmente Montesquieu não foi o primeiro a pensar em constitucionalismo Uma tentativa grosseira já havia sido feita em torno do ano 2100 aC com o Código de UrNammu editado por esse soberano assírio para punir apenas com multas certos delitos que a Lei de Talião mandava punir com a mutilação e a morte Mais tarde seria editado o Código de Hamurabi que também atenuava um pouco as legislações então existentes Mas nenhum desses códigos continha formas de proteção do indivíduo contra o seu soberano até porque era o próprio rei quem os promulgava Decorre disso que os direitos individuais dependiam unicamente da boa vontade do soberano Como vimos o início da Idade Moderna foi marcado por uma reordenação social e principalmente econômica Essas alterações sociais resultariam no Iluminismo com o seu compreensível retorno aos ideais clássicos Aliás o primeiro trabalho escrito por um grego sobre a necessidade de normas para uma sociedade política é o ensaio sobre a Constituição de Atenas cujos fragmentos originais foram descobertos no Egito no final do século XIX Inicialmente atribuída a Xenofonte hoje sabese que a peça é de autoria de Aristóteles e considerada a segunda obra mais importante desse filósofo sobre política O documento traça um quadro histórico das experiências constitucionais realizadas em Atenas pelos seus principais legisladores como Drácon Sólon Pisístrato Clístenes e Péricles Aristóteles também tratou de constituição no Livro IV de A política definindoa como a distribuição de poderes num Estado sempre baseada sobre a educação e os hábitos da população As leis colocadas em prática nas cidadesEstado foram o início da democracia direta grega no século V Mas foi na Europa medieval que o constitucionalismo encontrou seu maior expoente a Magna Carta de João Sem Terra rei da Inglaterra É importante conhecer as peculiaridades desse evento histórico A Magna Carta Na Europa feudal as cidades medievais eram praticamente propriedades dos senhores feudais que submetiam os habitantes à sua absoluta autoridade Entretanto o comércio crescia e a burguesia ficava fortalecida e por isso mesmo ameaçadora para os governantes Estes não tiveram opção senão vender cartas de franquia a alguns povoados que com isso ganhavam autonomia política e administrativa Às vezes os senhorios outorgavam essas cartas como prêmio Nesses documentos ficavam expressas as condições e os limites em que o senhor feudal poderia exigir tributos e serviços Nessa época o povo era dividido em três categorias guerreiros sacerdotes e trabalhadores Montesquieu mais tarde proporia uma nova divisão que eliminava os sacerdotes do estrato social como classe específica Os guerreiros eram os nobres que serviam como apoio ao soberano da mesma forma que os sacerdotes Nesse pactum subjetionis27 praticamente só o povo trabalhava para sustentar as classes dominantes Não havia forma de ascensão social por causa da doutrina da lei eterna que dominava a Igreja e em consequência o Estado Foi a era da desigualdade e da injustiça por isso mesmo chamada Idade das Trevas O abuso dos governantes atingiu tal ponto que alguns barões resolveram apoiar os camponeses temendo que eles pudessem exercer o direito previsto no pactum sujectionis de rebelarse O rei da Inglaterra João I que ficou famoso como João Sem Terra após uma sucessão de fracassos políticos e militares viu Londres ser invadida por um grupo de barões burgueses e populares em busca do atendimento de suas reivindicações Fortemente pressionado acabou aceitando assinar um documento em que prometia obedecer à lei e abria mão de certos direitos que os camponeses consideravam exagerados Entre esses direitos estavam o Direito de Nomeação o soberano podia nomear bispos abades e funcionários eclesiásticos e o Direito de Veto o soberano podia excluir pessoas de determinadas funções ou impedir que tomassem posse Esse documento assinado em 1215 foi chamado Magna Charta Libertatum Entretanto em que pese a assinatura formal a Magna Carta foi repudiada pelo soberano assim que o grupo revoltoso deixou Londres o que fez com que a Inglaterra mergulhasse em alarmante guerra civil Porém tal documento foi reiterado pelos sucessores de João I ao trono a ponto de tornarse parte integrante e indissociável da tradição jurídica inglesa Para a História foi um grande marco que inspira o constitucionalismo no mundo ocidental até os dias atuais28 O artigo mais conhecido da Magna Carta de 1215 é o que consta da cláusula 39 NENHUM HOMEM LIVRE SERÁ PRESO encarcerado ou privado de uma propriedade ou tornado fora da lei ou exilado ou de maneira alguma destruído nem agiremos contra ele ou mandaremos alguém contra ele a não ser por julgamento legal dos seus pares ou pela lei da terra Magna Carta de 1215 Tendo em vista sua grande importância histórica temos por bem reproduzir a seguir uma versão da carta que consta do livro de Comparato 199929 com seus primeiros vinte artigos Magna Charta Libertatum Concordiam inter regem Johannen at barones pro concessione libertatum ecclesiae et regni angliae Carta Magna das Liberdades ou Concórdia entre o Rei João e os Barões para a outorga das liberdades da Igreja e do rei inglês João pela graça de Deus rei da Inglaterra senhor da Irlanda duque da Normandia e da Aquitânia e conde de Anjou aos arcebispos bispos abades barões juízes couteiros xerifes prebostes ministros bailios e a todos os seus fiéis súditos Sabei que sob a inspiração de Deus para a salvação da nossa alma e das almas dos nossos antecessores e dos nossos herdeiros para a honra de Deus e exaltação da Santa Igreja e para o bem do reino e a conselho dos veneráveis padres Estevão arcebispo de Cantuária primaz de Inglaterra e cardeal da Santa Igreja Romana e dos nobres senhores William Marshall conde de Pembroke oferecemos a Deus e confirmamos pela presente Carta por nós e pelos nossos sucessores para todo o sempre o seguinte 1 A Igreja de Inglaterra será livre e serão invioláveis todos os seus direitos e liberdades e queremos que assim seja observado em tudo e por isso de novo asseguramos a liberdade de eleição principal e indispensável liberdade da Igreja de Inglaterra a qual já tínhamos reconhecido antes da desavença entre nós e os nossos barões 2 Concedemos também a todos os homens livres do reino por nós e por nossos herdeiros para todo o sempre todas as liberdades abaixo remuneradas para serem gozadas e usufruídas por eles e seus herdeiros para todo o sempre 3 Não lançaremos taxas ou tributos sem o consentimento do conselho geral do reino commue concilium regni a não ser para resgate da nossa pessoa para armar cavaleiro nosso filho mais velho e para celebrar mas uma única vez o casamento da nossa filha mais velha e esses tributos não excederão limites razoáveis De igual maneira se procederá quanto aos impostos da cidade de Londres 4 E a cidade de Londres conservará todas as suas antigas liberdades e usos próprios tanto por terra como por água e também as outras cidades e burgos vilas e portos conservarão todas as suas liberdades e usos próprios 5 E quando o conselho geral do reino tiver de reunir para se ocupar do lançamento dos impostos exceto nos três casos indicados e do lançamento de taxas convocaremos por carta individualmente os arcebispos abades condes e os principais barões do reino além disso convocaremos para dia e lugar determinados com a antecedência pelo menos de quarenta dias por meio dos nossos xerifes e bailios todas as outras pessoas que nos têm por suserano e em todas as cartas de convocatória exporemos a causa da convocação e procederseá à deliberação do dia designado em conformidade com o conselho dos que não tenham comparecido todos os convocados 6 Ninguém será obrigado a prestar algum serviço além do que for devido pelo seu feudo de cavaleiro ou pela sua terra livre 7 A multa a pagar por um homem livre pela prática de um pequeno delito será proporcionada à gravidade do delito e pela prática de um crime será proporcionada ao horror deste sem prejuízo do necessário à subsistência e posição do infrator contenementum a mesma regra valerá para as multas a aplicar a um comerciante e a um vilão ressalvando se para aquele a sua mercadoria e para este a sua lavoura e em todos os casos as multas serão fixadas por um júri de vizinhos honestos 8 Não serão aplicadas multas aos condes e barões senão pelos pares e de harmonia com a gravidade do delito 9 Nenhuma cidade e nenhum homem livre serão obrigados a construir pontes e diques salvo se isso constar de um uso antigo e de direito 10 Os xerifes e bailios só poderão adquirir colheitas e quaisquer outras coisas mediante pagamento imediato exceto se o vendedor voluntariamente oferecer crédito 11 Nenhum xerife ou bailio poderá servirse dos cavalos ou dos carros de algum homem livre sem o seu consentimento 12 Nem nós nem os nossos bailios nos apoderaremos das bolsas de alguém para serviço dos nossos castelos contra a vontade do respectivo dono 13 A ordem Writ de investigação da vida e dos membros será para futuro concedida gratuitamente e em caso algum negada 14 Nenhum homem livre será detido ou sujeito à prisão ou privado dos seus bens ou colocado fora da lei ou exilado ou de qualquer modo molestado e nós não procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com a lei do país 15 Não venderemos nem recusaremos nem protelaremos o direito de qualquer pessoa a obter justiça 16 Os mercadores terão plena liberdade para sair e entrar em Inglaterra e para nela residir e a percorrer tanto por terra como por mar comprando e vendendo quaisquer coisas de acordo com os costumes antigos e consagrados e sem terem de pagar tributos injustos exceto em tempo de guerra ou quando pertencerem a alguma nação em guerra contra nós E se no começo da guerra houver mercadores no nosso país eles ficarão presos embora sem dano para os seus corpos e os seus bens até ser conhecido por nós ou pelas nossas autoridades judiciais como são tratados os nossos mercadores na nação em guerra conosco e se os nossos não correrem perigo também os outros não correrão perigo 17 Daqui para diante será lícito a qualquer pessoa sair do reino e a ele voltar em paz e segurança por terra e por mar sem prejuízo do dever de fidelidade para conosco excetuamse as situações de tempo de guerra em que tal direito poderá ser restringido por um curto período para o bem geral do reino e ainda prisioneiros e criminosos à face da lei do país e pessoas de países em guerra conosco e mercadores sendo estes tratados conforme acima prescrevemos 18 Só serão nomeados juízes oficiais de justiça xerifes ou bailios os que conheçam a lei do reino e se disponham a observála fielmente 19 Todos os direitos e liberdades que concedemos e que reconhecemos enquanto for nosso o reino serão igualmente reconhecidos por todos clérigos e leigos àqueles que deles dependerem 20 Considerando que foi para honra de Deus e bem do reino e para melhor aplanar o dissídio surgido entre nós e os nossos barões que outorgamos todas as coisas acabadas de referir e querendo tornálas sólidas e duradouras concedemos e aceitamos para sua garantia que os barões elejam livremente um conselho de vinte e cinco barões do reino incumbidos de defender e observar e mandar observar a paz e as liberdades por nós reconhecidas e confirmadas pela presente Carta e se nós a nossa justiça os nossos bailios ou algum dos nossos oficiais em qualquer circunstância deixarmos de respeitar essas liberdades em relação a qualquer pessoa ou violarmos alguma destas cláusulas de paz e segurança e da ofensa for dada notícia a quatro barões escolhidos de entre os vinte e cinco para de tais fatos conhecerem estes apelarão para nós ou se estivermos ausentes do reino para a nossa justiça apontando as razões de queixa e à petição será dada satisfação sem demora e se por nós ou pela nossa justiça no caso de estarmos fora do reino a petição não for satisfeita dentro de quarenta dias a contar do tempo em que foi exposta a ofensa os mesmos quatro barões apresentarão o pleito aos restantes barões e os vinte e cinco barões juntamente com a comunidade de todo o reino comuna totiu terrae poderão embargarnos e incomodarnos apoderandose de nossos castelos terras e propriedades e utilizando quaisquer outros meios ao seu alcance até ser atendida a sua pretensão mas sem ofenderem a nossa pessoa e as pessoas da nossa rainha e dos nossos filhos e logo que tenha havido reparação eles obedecernosão como antes E qualquer pessoa neste reino poderá jurar obedecer às ordens dos vinte e cinco barões e juntarse a eles para nos atacar e nós damos pública e plena liberdade a quem quer que seja para assim agir e não impediremos ninguém de fazer idêntico juramento VOLTAIRE E A PROPAGANDA ILUMINISTA Escritor autor de mais de 70 obras conhecido e admirado no mundo inteiro FrançoisMarie Arouet que passou para a história com o pseudônimo de Voltaire foi um dos maiores escritores e filósofos franceses e o grande responsável pela disseminação dos ideais do liberalismo que podemos considerar o filho inglês do Iluminismo Como Locke foi um defensor da tolerância religiosa principalmente no livro Dicionário Filosófico Curiosamente não era ateu como a maioria dos filósofos iluministas chegou inclusive a defender no livro Tratado de metafísica a existência de Deus Em todos os seus trabalhos fazia questão de incluir referências à excelência dos ideais iluministas que uma vez aplicados poderiam fazer com que os países saíssem do atraso social Sua concepção de sociedade é de que o mal não é uma abstração metafísica mas algo que existe concretamente como dado social e que só pode ser corrigido pela educação pelo trabalho e pela razão Rousseau considerou afirmações como essa como críticas pessoais Aliás Voltaire condenava o ócio Ele era efetivamente um trabalhador o que pode ser comprovado pelas 70 obras que produziu em 99 volumes e por uma correspondência vastíssima que pode ultrapassar a marca de dez mil cartas Sua obra mais importante Cândido ou o otimismo por exemplo foi escrita em três dias O livro é considerado um romance filosófico um relato que reúne ironia e dramaticidade a respeito de um homem que acredita na humanidade a despeito de todas as vicissitudes que enfrenta Alguns estudiosos enxergam nessa obra uma crítica ao otimismo de Leibniz e à teoria do bom selvagem de Rousseau Voltaire e suas circunstâncias Voltaire foi ao lado de Montesquieu e de Rousseau o intelectual mais influente da Revolução Francesa Exilado na Inglaterra por dois anos teve contato com as ideias liberais e as levou para a França onde imediatamente encontrou seguidores Defendeu a divisão dos poderes a educação como ferramenta de ascensão social e a liberdade como princípio para que o indivíduo pudesse resistir às injustiças FrançoisMarie Arouet Voltaire era filho de um tabelião que conseguira formar família abastada Foi educado em colégio jesuíta onde aprendeu segundo ele mesmo apenas latim e outras estupidezas razão pela qual abandonou os estudos aos 17 anos Começou a escrever aos 20 e logo sua língua ferina lhe traria problemas Tendo satirizado o governo francês foi preso na Bastilha por onze meses período que aproveitou para escrever sua primeira peça teatral Édipo Em 1726 ofendeu um jovem nobre e como punição foilhe dada a oportunidade de escolher entre a prisão e o exílio Foi para a Inglaterra onde viveu durante dois anos Voltaire e suas ideias Nesse tempo Voltaire conheceu as obras de John Locke que veremos adiante neste livro e o pensamento científico de Isaac Newton Também familiarizouse com a monarquia constitucional da Inglaterra novidade na época por ter sido a primeira Ficou particularmente impressionado pela tolerância religiosa que havia naquele país Voltando para a França publicou o Cartas sobre os ingleses enaltecendo aspectos da sociedade britânica O trabalho desagradou o governo francês que o considerou como crítica e Voltaire refugiou se no leste da França no castelo da amante Marquesa de Chatelet com quem estudou ciências naturais Permaneceu ali por dez anos até a morte da marquesa Depois seguiu para a Prússia a convite do rei Frederico II o Grande Em 1759 voltou para a França Trabalhou como historiógrafo da corte e escreveu o livro O século de Luís XIV Foi eleito para a Academia Francesa Comprou uma propriedade chamada Ferney perto da fronteira com a Suíça onde escreveu grande parte de seus livros e peças de teatro Além do sucesso editorial envolveuse em outros negócios que lhe garantiram grande riqueza Em 1778 aos 83 anos foi convidado para uma visita a Paris onde recebeu calorosa acolhida com direito a festas e homenagens Morreu pouco tempo depois Infelizmente não pôde ver a Revolução Francesa pela qual trabalhara tanto que ocorreria somente onze anos mais tarde Voltaire e sua influência no direito Defensor da liberdade como elemento fundamental para a felicidade humana Voltaire foi um grande crítico da intolerância religiosa Jamais conseguiu aceitar as disputas e retaliações originadas de diferenças religiosas A respeito do tema escreveu em 1756 Ensaio sobre os costumes e o espírito das nações Considerava fundamental a liberdade de expressão Queria a igualdade de todos os homens perante a lei com especial preocupação com a justiça AQUELES QUE FAZEM você acreditar em besteiras podem fazer você cometer atrocidades Voltaire NA TANGÊNCIA DA FILOSOFIA Jonathan Swift Esse famoso escritor irlandês na juventude chegou a ser secretário do político e escritor Sir William Temple com quem aprendeu a gostar de livros Mais tarde doutorouse em Teologia em Oxford e passou a ocupar a função de pastor da Igreja Anglicana Teve intensa atuação política na Inglaterra É autor dentre outros trabalhos de As viagens de Gulliver publicado em 1726 O livro é uma sátira dirigida especialmente aos whigs membros do partido liberal inglês que são retratados como os anões da terra de Lilliput em referência à sua pequenez de caráter e de inteligência Jonathan Swift era ele próprio um liberal mas estava desgostoso com o partido Além disso a obra trata de censurar os tories uma analogia aos membros do partido conservador inglês retratandoos como os miseráveis gigantes de Brobdingnag O livro satiriza ainda outros membros da sociedade como os juristas os militares e os supostos intelectuais Jonathan Swift morreu surdo e louco em 1745 Ele mesmo escreveu em latim a inscrição de sua lápide mortuária AQUI JAZ O CORPO DE JONATHAN SWIFT doutor em Teologia e deão desta catedral onde a colérica indignação não poderá mais dilacerarlhe o coração Segue passante e imita se puderes esse que se consumiu até o extremo pela causa da Liberdade O EMPIRISMO Embora o empirismo tenha sido iniciado por Francis Bacon no final do século XVI sem dúvida seu doutrinador mais importante viria a ser o filósofo britânico John Locke quase um século depois A doutrina do empirismo de que todo conhecimento só é adquirido pela experiência por meio do método da tentativa erro e acerto era clara oposição ao racionalismo então em voga Com efeito o racionalismo apregoava que o homem nascia com as suas principais ideias já prontas essas ideias ficariam latentes em algum lugar da mente e à medida que o homem se desenvolvia emergiam para a consciência Portanto para os racionalistas a verdade não dependia dos sentidos O empirismo e a responsabilidade de cada um No aspecto jurídico o empirismo foi fundamental porque passou a atribuir ao homem a responsabilidade pelo entendimento de todas as questões Isso traria para o direito a noção de autonomia No entanto a introdução do pensamento empírico no direito o faria enfrentar um de seus maiores desafios Conforme já anteriormente afirmado para os empiristas toda a verdade emana das observações e experiências particulares Entretanto os indivíduos são intrinsecamente diferentes uns dos outros e igualmente distintas são as experiências vivenciadas por cada um e os resultados delas extraídos Dessa forma uma das características mais proeminentes do empirismo foi justamente a negação da possibilidade de existência de uma Verdade que pudesse ser dita Universal Em decorrência disso não haveria qualquer possibilidade teórica de estabelecimento de um padrão universal de referência que permitisse a valoração de algo como certo ou errado justo ou injusto bom ou mau e assim por diante Em outras palavras tornase impossível o estabelecimento de um norte de conduta a ser imposto a todos os homens através das leis Seria necessário haver uma lei para cada homem o que do ponto de vista da justiça social seria infactível e impraticável Justamente por essa razão é que do empirismo originaramse diversas peculiares linhas de pensamento que passaram a combater a obrigatoriedade das leis e a existência dos governos tais como o ceticismo o anarquismo e o individualismo Locke não concordava com essa doutrina e seguiu o caminho oposto afirmando que os sentidos e a experiência eram os reais instrumentos do conhecimento No entanto admitia a existência de algo inexplicável intangível pelos sentidos relacionado com a substância30 O empirismo que defende o método da experimentação tornouse importante base filosófica da ciência moderna embora recomendasse mais a indução que a dedução A tábula rasa de John Locke O filósofo britânico John Locke é certamente o maior nome do empirismo ou a Escola da Epistemologia Recuperando Francis Bacon e Hugo Grócio sua teoria pregava em síntese que a busca do conhecimento deveria ocorrer por meio de experiências e não por deduções ou especulações Esse empirismo filosófico refutava explicações baseadas na fé e por isso mesmo apregoava ser necessário separar a Igreja do Estado Não é preciso dizer portanto que a teoria fez com que seu autor fosse alvo de feroz oposição da Igreja Católica Não chegou no entanto a sofrer maiores retaliações porque era aristocrata e chegou a exercer a função de ministro do Comércio do rei Guilherme III de Orange John Locke e suas circunstâncias Locke estudou em Oxford onde depois lecionou Tinha ideias políticas avançadas para a época Questionava o poder divino dos governantes formulado por Thomas Hobbes Dizia que era necessário haver três poderes o executivo o judiciário e o legislativo esse último mais importante porque representava o povo Foi justamente dentro dessa linha de pensamento que em 1689 escreveu o seu Dois tratados sobre o governo descrevendo os contratos que deviam existir entre governantes e governados e da autonomia entre os poderes de Estado ainda hoje considerados pontos básicos da liberdade humana John Locke e suas ideias Segundo John Locke o homem nascia em um estado de pureza como uma tábula rasa ou um quadro em branco que era preenchido aos poucos à medida que a pessoa evoluía e tudo o que adquiria ao longo da vida advinha das experiências principalmente na sociedade O homem em estado de natureza era um homem pacífico Portanto era a base do ideal iluminista mais tarde defendido por Rousseau por exemplo de que todos os homens nascem bons a sociedade é que os corrompe ou aperfeiçoa Como o conhecimento depende da percepção segundo Locke o empirismo tem caráter individual o entendimento de cada coisa depende da percepção de cada indivíduo Para os empiristas o que importava não era a coisa nem a ideia que temos sobre essa coisa mas o processo pelo qual essa coisa chega ao entendimento da mente pelos sentidos Esse conceito teve repercussão no desenvolvimento da corrente psicológica do behaviorismo Em 1690 foi publicada a sua principal obra denominada Ensaio sobre o entendimento humano Foi aqui que Locke desenvolveu a sua teoria das ideias simples e complexas Dentro da lógica do empirismo afirmava o autor que a origem de todas as ideias são os sentidos Em um primeiro momento através da utilização deles o homem abstrai suas primeiras impressões da situação ou objeto experimentados A essas primeiras e evidentes impressões Locke dava o nome de ideias simples Para John Locke tais ideias seriam o substrato de todo o nosso conhecimento Dizia quanto a elas que a mente não pode formálas nem destruílas As únicas vias capazes de sugerilas ou fornecêlas à mente seriam a sensação e a reflexão Exemplificadamente quando um indivíduo toma contato com a água rapidamente através de seus sentidos chega a conclusões básicas como o fato de ela ser incolor inodora insípida molhada fria e assim por diante Agora a partir do momento em que estamos preenchidos de ideias primárias nosso entendimento teria o poder de repetilas comparálas e unilas numa variedade quase infinita Seria essa a forma a partir da qual surgiriam as impressões mais profundas acerca daqueles mesmos objetos e situações as chamadas ideias complexas Em outras palavras as ideias complexas são aquelas formadas por várias ideias simples interligadas comparadas dimensionadas Como exemplos podemse citar as ideias de beleza e feiura imensidão e pequenez ou mesmo a ideia de homem John Locke e sua influência no direito John Locke pensava que a soberania devia ser exercida pela população representada pelo Poder Legislativo e não pelo Estado Dizia também que a legitimação do poder político adviria da adesão da maioria dos cidadãos ao contrato ou pacto social Ao governo cabia apenas fazer aplicar as leis naturais e civis Sua teoria do Direito Natural imutável que não dependia de costumes e tradições teve grande influência no processo de independência dos Estados Unidos NÃO SE REVOLTA um povo inteiro a não ser que a opressão seja geral John Locke O empirismo de Francis Bacon Francis Bacon elevou a experiência a um ponto que tornava quase desnecessário o uso da razão porque a partir da repetição de experimentações a pessoa podia chegar aos resultados pelo método indutivo Deixou extensa obra chamada Instauratio magna scientiarum Queria com esses livros estabelecer as bases para a ciência moderna Mas o trabalho ficou incompleto com apenas dois volumes prontos Foi sob o reinado de Elizabeth I em plena Renascença que despontou o talento de Francis Bacon o iniciador do empirismo teoria filosófica que estabelece que o conhecimento deve advir da experiência Dizia ele que o hábito é o principal juiz da vida de um homem O pensamento de Francis Bacon influenciaria toda uma geração de filósofos britânicos ao longo de todo o século seguinte o século XVII O representante mais renomado desse movimento foi John Locke mas é preciso lembrar que o empirismo já era uma característica do pensamento de Aristóteles que Santo Tomás de Aquino aperfeiçoou Francis Bacon nasceu de família nobre inglesa em 1561 e educouse em Cambridge e em Paris Foi eleito para o parlamento Exerceu cargos de alto nível na corte de Elizabeth I e mais tarde na corte de James I tendo recebido deste dois títulos de nobreza de barão e de visconde No entanto acusado de abuso de confiança teve que renunciar aos cargos Foi perdoado pelo rei mas teve que se retirar para sua propriedade onde permaneceu dedicado aos estudos até morrer em 1626 Achava que a ciência deveria ser instrumento para que o homem dominasse a natureza e assim se servisse dela Desenvolveu uma teoria segundo a qual para alcançar o verdadeiro conhecimento o homem deveria libertarse do que chamava de ídolos ou seja noções que lhe eram impostas pelo grupo social pela própria origem pessoal pelas interações sociais e pelas variadas doutrinas existentes De certa maneira é a ideia da tábula rasa que John Locke desenvolveria mais tarde Francis Bacon consideravase um cientista mas ficou conhecido também como escritor Produziu textos literários de grande qualidade entre eles muitos ensaios em que trata de política e de filosofia NÃO EXISTE COMPARAÇÃO entre aquilo que é perdido por não se obter êxito e aquilo que é perdido por não se tentar Francis Bacon OS HOMENS ASTUTOS condenam os estudos os homens simples os admiram e os homens sábios se utilizam deles Francis Bacon Hugo Grócio e a natureza humana Tendo vivido em uma época em que a Holanda mergulhava em disputas internacionais intensas na tentativa de tornarse uma potência marítima Hugo Grócio produziu vasta obra em que pregava a libertação dos mares rebelandose contra a quase monopolização dos oceanos por alguns países da Europa à época Considerase que sua obra foi a base do moderno Direito Internacional Sua abordagem filosófica era pelas liberdades individuais embora defendesse que os interesses coletivos se sobreponham aos individuais Hugo Grócio e suas circunstâncias Hugo Grócio é tido como o criador do Direito Internacional Em suas obras discutiu com profundidade questões relacionadas com situações de guerra Dizia que o poder e a força não criam direitos De Mare Liberum é tido como o primeiro tratado escrito sobre Direito Internacional Público Foi o inspirador de juristas como Hans Kelsen O holandês Hugo Grócio Huig de Groot nasceu em 1583 filho de pai protestante e mãe católica Ingressou na Universidade de Leyden aos 11 anos de idade e aos 16 anos defendia o seu primeiro caso como advogado Aos 18 anos obteve o grau de doutor e escreveu em latim um livro sobre a história da Holanda Foi embaixador na Suécia Hugo Grócio e suas ideias Concentrou seus estudos principalmente sobre a natureza humana Talvez o fato de viver entre duas doutrinas religiosas contrastantes em casa o tenha levado a defender a natureza como elemento fundamental do direito e não a lei de Deus Isso era basicamente o conceito do livrearbítrio Com isso opunhase a Calvino com quem também teve desavenças no campo da política Chegou a ser preso por causa de suas ideias Hugo Grócio e sua influência no direito Hugo Grócio dizia em sua teoria do Direito Natural que as coisas são boas ou más por sua própria natureza e não porque Deus lhes atribuísse qualidade Sua obra considerada mais importante é De Mare Liberum Sobre a liberdade dos mares em que contesta o direito que Inglaterra Espanha e Portugal teriam nessa época 1609 de dominar os mares Grócio defendia que a Holanda também tinha direito de navegar até o ponto conhecido então como Índias Ocidentais No campo do Direito escreveu sobre a guerra na sua opinião legítima e justificável porquanto criação humana desde que justa Escreveu também sobre a paz definindo maneiras de procurar soluções pacíficas para os conflitos Para ele o direito existe em função da sociedade Um dos pontos chave de seu pensamento é a questão da propriedade por meio da qual explica a transição do Direito Natural para o Direito Positivo NADA HÁ de arbitrário no direito natural como não há arbitrariedade na aritmética Hugo Grócio Samuel Pufendorf o eclético É conhecido como importante precursor do Iluminismo na Alemanha Discípulo de Hugo Grócio Samuel Pufendorf foi professor de Direito Natural na famosa Universidade de Heidelberg na Alemanha Aderiu desde logo ao método matemático e utilizava tanto a dedução quanto a indução para a filosofia e também para o direito Revisou a teoria do direito natural de Thomas Hobbes e Hugo Grócio Jurista e historiador suas ideias influenciaram grandes nomes de sua época como Thomas Jefferson que as aplicou na revolução norteamericana Samuel Pufendorf e suas circunstâncias Samuel Pufendorf avançou em relação ao pensamento de Hugo Grócio especialmente no que diz respeito ao sistema jurídico Foi acima de tudo um eclético É um dos primeiros teóricos do moderno direito natural Também defendeu o contrato social de Thomas Hobbes mas com aperfeiçoamentos Suas principais obras foram Elementos do direito universal e Do direito natural e das gentes Samuel Pufendorf nasceu na Alemanha em 1632 O pai pastor luterano o encaminhou para a carreira religiosa mandandoo estudar teologia na Universidade de Leipzig Não gostou do curso e dedicouse a estudar Direito na Universidade de Jena Formado conseguiu emprego como tutor da família de um dos ministros do rei Carlos X da Suécia em Copenhague Por essa época eclodiu o conflito entre Suécia e Dinamarca Pufendorf foi preso pelos dinamarqueses e mantido encarcerado por oito meses Durante esse período aproveitou para formular um sistema de direito universal que publicou mais tarde em 1661 com o nome de Elementos jurisprudenciais universais O trabalho lhe rendeu uma cátedra na Universidade de Heidelberg foi o primeiro curso do mundo de direito internacional Perdeu a cátedra em 1668 por ter se posicionado contrariamente a uma nova taxação oficial sobre documentos Voltou então para a Suécia para a Universidade de Lund Na Suécia publicou vários outros livros que lhe valeram a nomeação como Historiador do Rei Em 1694 recebeu título de nobreza do rei da Suécia tornandose o Barão Samuel Pufendorf poucos meses antes de morrer aos 62 aos de idade de ataque do coração em Berlim Samuel Pufendorf e suas ideias Em relação ao posicionamento religioso contestava a doutrina cristã da contrarreforma e ao mesmo tempo a doutrina luterana da revelação pela fé por isso acabou chegando a uma teoria em que não constava a presença de Deus O governante portanto não recebe o poder de Deus que apenas define que há os que mandam e há os que obedecem o governante portanto exerce o poder porque a sua característica individual o leva a isso e porque os outros homens precisam ser liderados Essa teoria o fez defender na política a necessidade social de um governante despótico mas de boas intenções que atuasse dentro de um sistema jurídico estruturado como uma engrenagem mecânica Os cidadãos ficavam ligados ao governante por meio de contratos implícitos porque era lógico que assim fosse já que o homem tem natureza social E como os homens são livres e também diferentes entre si um conjunto de leis é necessário para ordenar as suas ações Samuel Pufendorf e sua influência no direito Samuel Pufendorf escreveu suas principais obras entre 1660 e 1672 Nelas define que um sistema jurídico estruturado devia conter alguns elementos básicos e fundamentais Dentre tais elementos declarou que não bastava o pacto associativo previsto por Thomas Hobbes Mais do que isso era preciso haver um pacto de união pactum unionis entre o governante e os governados Defendeu também uma Constituição que estabelecesse a forma de governo adotada e suas regras gerais Além disso previu a necessidade de um terceiro contrato social a que chamou pactum subjetionis pacto de sujeição ou subordinação no qual os cidadãos concordavam em obedecer ao governante O Direito Natural de Pufendorf não coloca a natureza nem Deus como referência de todas as coisas mas sim o processo originado da razão humana No direito internacional defendia que este não se restringia aos cristãos mas que deveria constituir um laço comum entre todas as nações MESMO NO ESTADO de natureza existe a sociabilidade e a razão Samuel Pufendorf O JANSENISMO O jansenismo foi uma variante do calvinismo que teve origem nas pregações de Cornelius Jansen bispo da cidade de Yprès na Bélgica no século XVII O movimento teve grande importância principalmente na Bélgica e na França durante o século XVIII e abalou profundamente a Igreja Católica Propunha a retomada do pensamento de Santo Agostinho em clara rejeição à escolástica de Santo Tomás de Aquino Os jansenistas achavam que a escolástica era exageradamente racional e queriam que a Igreja retornasse à disciplina e à moral religiosa do início do cristianismo defendendo a predestinação e opondose ao livrearbítrio Condenavam o culto aos santos e a realização das missas em latim exigindo que fosse utilizado o idioma local Além disso defendiam a eleição dos bispos e dos padres ideal que os levou a apoiar a Revolução Francesa Um dos dogmas jansenistas dizia respeito ao pecado original que figuraria como o retrato da corrupção do homem que nasce com vocação para o mal Além disso na moral jansenista a ignorância não é desculpa para o pecado ao contrário do que ensinavam os jesuítas O papa Inocêncio X declarou em 1653 que o livro Agostinho do bispo Cornelius Jansen continha propostas heréticas Um filósofo importante da época Blaise Pascal saiu em defesa do bispo e a polêmica arrastouse por muitos anos Dizia ele que na prática a Igreja condenava os jansenistas porque estimulavam o aumento da autoridade local contribuindo para a perda de prestígio do papa Para se defender das retaliações dos padres os jansenistas buscaram apoio de autoridades civis e o movimento ganhou contornos políticos Acabou sendo proibido definitivamente pelo papa Alexandre VI A importância do jansenismo para o Direito reside no contraponto que representa para a questão dos direitos individuais se o homem peca é porque é mau por natureza se realiza obras boas foi porque Deus mandou que ele assim o fizesse Deus e a monarquia Vulto importante para o direito moderno o jansenista francês Jean Domat procurou sistematizar o direito comum de seu tempo Para tanto desenvolveu um trabalho que ficou organizado no livro As leis civis na sua ordem natural publicado em 1689 O trabalho fora encomendado por Luís XIV que lhe pagou uma pensão de 2000 francos até que terminasse Justamente por esse motivo é que o livro tem como objetivo principal apoiar o rei e a monarquia absolutista Para atingir tal escopo utilizouse de elementos metafísicos como Deus e as leis da natureza pontos importantes para o povo da época Entretanto a despeito dos seus motivos esse sumário legal dos preceitos contidos no Código de Justiniano que ele traduziu do latim é considerado um dos mais importantes da Ciência do Direito realizados na França Jean Domat sistematizou as leis esparsas do direito comum em sua época baseadas no Código de Justiniano Considerava que toda lei devia estar fundada sobre a ética e sobre os princípios religiosos Era defensor da monarquia absolutista de Luís XIV Jean Domat foi amigo íntimo do filósofo Blaise Pascal tendo lhe confiado ao morrer muitos documentos confidenciais Domat nasceu em 1625 mas publicou seu primeiro trabalho apenas em 1689 em três volumes um quarto sobre direito público foi editado em 1697 depois da sua morte Foi o primeiro a promover a separação das leis civis e das leis públicas num trabalho que facilitaria a elaboração dos Códigos de Napoleão Código Civil de 1804 Código Comercial de 1808 e Código Penal de 1810 HÁ UMA DIFERENÇA imensa entre a maneira pela qual sentimos as injustiças feitas a nós e como julgamos as que atingem o próximo Jean Domat Robert Pothier e a racionalização do direito Nos primeiros séculos da Idade Moderna a França aplicava diferentes normas jurídicas em diferentes espaços do seu território Os juízes do sul usavam leis escritas que interpretavam conforme a situação e os juízes do norte preferiam aplicar as regras do direito consuetudinário baseado exclusivamente nos costumes Após a separação das leis promovida por Jean Domat foi o trabalho do juiz Robert Joseph Pothier que permitiu a uniformização da legislação civil francesa servindo como base mais tarde para a elaboração dos Códigos Napoleônicos Robert Pothier e suas circunstâncias Robert Pothier estruturou a legislação francesa organizando as diferentes formas de julgamento aplicadas no país direito romano direito canônico e direito consuetudinário Seus estudos ao lado daqueles desenvolvidos por Jean Domat foram fundamentais para a elaboração do Código Civil francês de 1804 Robert Joseph Pothier foi juiz e professor de Direito francês em Orleans cidade onde nasceu e onde sempre viveu lecionando na universidade local Teve uma vida modesta e sem eventos marcantes Seu principal trabalho foi organizar textos do Direito Romano especialmente no livro Pandectae Justinianeae in novum ordinem digestae em três volumes publicados entre 1748 e 1752 em Paris É conhecido pela publicação de uma série de tratados sobre aspectos legais dos deveres de quem vende troca compra ou aluga também escreveu sobre direito de propriedade Robert Pothier e sua influência no direito Nas suas atividades judiciárias percebeu a dificuldade de julgar assuntos civis por causa da profusão de diferentes instrumentos de interpretação das situações Por isso aplicouse em sistematizar o direito dentro de uma perspectiva racionalista Escreveu em 1748 uma obra chamada As Pandectas de Justiniano dispostas em uma nova ordem reorganizando o Direito Romano Nesses estudos desenvolveu teses que se converteram em princípios fundamentais do próprio direito francês reunidas no livro Tratado das obrigações publicado entre 1761 e 1764 Uma delas foi a regra que limita a recuperação em caso de má execução de uma obrigação contratual para danos previsíveis Pothier também estudou a posse num livro que seria fundamental para as posteriores pesquisas de Savigny Muitas de suas ideias foram inseridas nos Códigos Napoleônicos e influenciaram também as leis de contratos editadas na Inglaterra e nos Estados Unidos NÃO PODE HAVER OBRIGAÇÃO sem pessoa obrigada Sem devedor não há dívida Robert Joseph Pothier NA TANGÊNCIA DA FILOSOFIA Blaise Pascal Embora também tivesse sido filósofo Blaise Pascal ficou mais conhecido como matemático Curiosamente seu pai mesmo percebendo seu grande interesse pela matemática quis que Blaise tivesse uma infância normal e chegou a esconder todos os livros que tratavam do assunto Mas o menino antes dos 12 anos 1635 estudou Geometria sozinho e descobriu que a soma dos ângulos de um triângulo era igual a dois ângulos retos ou seja havia chegado por si mesmo à 32ª proposição do matemático grego Euclides Pascal daria ainda muitas contribuições à ciência Aos 19 anos inventou uma calculadora mecânica para ajudar no trabalho do pai coletor de impostos Estudou os trabalhos do físico Torricelli sobre a pressão atmosférica e iniciou uma série de experiências que o levaram a comprovar a existência do vácuo Num período de sua juventude teve participação importante no movimento religioso conhecido como jansenismo Foi amigo de Jean Domat Blaise Pascal fez outras descobertas entre elas o cálculo de probabilidades chamado Geometria Aleatória Desenvolveu também uma tabela numérica que leva o seu nome Triângulo de Pascal Um trabalho importante para a física foi o livro O tratado do equilíbrio dos líquidos publicado em 1653 Escreveu também o Tratado sobre as potências numéricas tratando dos objetos infinitamente pequenos Suas pesquisas inspirariam posteriormente Leibniz e Isaac Newton Sua contribuição para a filosofia foi com o livro Pensamentos Umas de suas frases mais famosas é esta O coração tem razões que a própria razão desconhece O sensacionismo de Condillac empirismo exacerbado Étienne Bonnot abade de Condillac foi o expoente de uma variante radical do empirismo que ficou conhecida como sensacionismo Condillac e suas circunstâncias Étienne Bonnot de Condillac a partir de um empirismo radical conhecido como sensacionismo acabou desenvolvendo uma teoria que pode ser considerada de psicologia desenvolvimentista Elaborou uma teoria da percepção com método próprio Achava que a mente era imaterial Étienne Bonnot abade de Condillac nasceu em 1714 e morreu em 1780 De saúde precária chegou a ser considerado intelectualmente pobre mas conseguiu estudar num seminário e depois na Sorbonne Foi amigo de Diderot e de Rousseau Pertenceu à Academia Prussiana de Ciências e à Academia Francesa Suas principais obras são Ensaio sobre a origem do conhecimento do homem de 1746 e Tratado das sensações de 1754 Os dois livros versam sobre o papel da experiência no desenvolvimento das capacidades cognitivas Basicamente o autor procura demonstrar o desenvolvimento do conhecimento em um ser através de uma analogia onde uma estátua recebe gradativamente os sentidos corporais próprios do homem Assim seguindo a mesma linha de raciocínio de Locke mostra como tal estátua através dos resultados sensíveis colhidos das experiências consegue interpretálos e relacionálos a ponto de desenvolver ideias e noções cada vez mais complexas e abstratas Condillac e suas ideias Enquanto o empirismo de John Locke rejeitava a existência apenas de princípios e ideias inatos Condillac foi além e rejeitou também as habilidades inatas Segundo ele a experiência obtida por meio de cada um dos órgãos dos sentidos nos dá as ideias que são a matériaprima do conhecimento mas também nos ensina a trabalhar com atenção imaginação abstração julgamento e razão Afirma que a experiência forma os nossos desejos e conduz o nosso querer a experiência nos apresenta material que nossa mente transformará em crenças a respeito do mundo que nos cerca Ficou célebre um desafio que lançou uma pessoa que nasceu cega e depois obteve a visão seria capaz de identificar espacialmente à primeira vista uma esfera ou um cubo sem tocálos Condillac afirmava que a percepção a consciência e a atenção eram diferentes aspectos de uma mesma operação mental derivada da sensação Interessante é observar que mesmo após esse extenuante processo racional um dado permaneceria impossível de ser demonstrado qual seja a própria existência do mundo a realidade Assim tal dado deveria necessariamente ser afirmado de forma dogmática o que retira a certeza e a objetividade de todo o conhecimento anteriormente angariado Em outras palavras mais uma vez provase o quanto já afirmado anteriormente que o empirismo em sua última instância leva inexoravelmente à conclusão da inexistência de qualquer verdade incontestavelmente válida ou seja lança as bases filosóficas do ceticismo George Berkeley a voz dissonante Dentro do empirismo uma voz se levantou para combater as discussões da época quando o bispo irlandês George Berkeley publicou em 1710 o livro Tratado sobre os princípios do conhecimento Contestando John Locke em relação ao conceito das ideias complexas afirmava que todas as ideias são simples George Berkeley viveu entre 1685 e 1753 Foi aluno do célebre escritor Jonathan Swift o autor de As viagens de Gulliver Desenvolveu um pensamento empírico muito particular pregando que o conhecimento tinha mais relação com o espírito do que com os sentidos Segundo ele quando fechamos os olhos o mundo desaparece inexiste ao abrirmos os olhos de novo é como se o mundo fosse reconstruído dentro de nossa mente Portanto a substância não teria materialidade existiria apenas como resultado da percepção e da vontade O fogo existe mas a noção de calor associada a ele depende da mente que o enxerga Essa visão espiritualista da realidade divergia frontalmente do conceito vigente Inclusive condenava o racionalismo da época porque achava que conduzia a sociedade ao materialismo e à descrença em Deus Segundo Berkeley é o temor que o homem tem de Deus que o afasta do mal e o leva a ser virtuoso Foi considerado um filósofo realista porque censurava os filósofos que defendiam a existência de ideias abstratas Afirmava que a única base que pode justificar nossas crenças sobre as coisas comuns é a consciência direta UMA REFLEXÃO ACERCA DOS CÓDIGOS O absolutismo teve o seu papel histórico porque foi graças ao poder central do rei que se conseguiu criar Estados Nacionais a França foi o primeiro Estado Nacional moderno Mas no absolutismo imperava a segregação social A Revolução Francesa derrubou privilégios de classe e mais do que isso influenciou a atualização dos sistemas jurídicos desses Estados Nacionais com ideais de humanização dos direitos e de liberdade inclusive sobre a propriedade que no absolutismo estava concentrada nas mãos dos senhores feudais e dos representantes do clero O passo seguinte necessário era a elaboração de um compêndio jurídico que registrasse valores sociais permanentes Desse modo farseia perdurar pela aplicação continuada o espírito da Revolução Francesa bem como se garantiria a segurança jurídica aos cidadãos Para isso os dirigentes do século XVIII entenderam necessário estudar as leis de cada país numa ação de relacionamento internacional para que o sistema jurídico adotado tivesse universalidade e permanência Como vimos páginas atrás a codificação levada a cabo por Jean Domat foi fundamental para o avanço da França nesta direção Já os Códigos Napoleônicos elaborados entre 1804 e 1810 com base naquela codificação preliminar de Jean Domat foram os grandes precursores da modernidade jurídica ocidental Não deve ser esquecida a contribuição ainda no século XVIII do sacerdote italiano Ludovico Antonio Muratori 16721750 que escreveu um livro chamado Dos defeitos da jurisprudência enumerando a confusão reinante no seu tempo no estudo do Direito Com efeito a partir da separação dos poderes proposta por Montesquieu os juízes deixaram de legislar a função passava a ser atribuída aos legisladores Os magistrados por sua vez passaram a se ocupar estritamente do cumprimento de leis gerais cuja elaboração cuidadosa deveria deixar pouca margem a interpretações Essa decisão ocasionou a neutralização política do judiciário o que levou a uma especialização dos funcionários encarregados da execução das leis Com isso o direito também evoluiu até para atender ao anseio burguês por maior segurança jurídica Essa evolução ficou marcada pelo surgimento da Escola da Exegese radicalmente legalista Os Códigos Napoleônicos Algumas tentativas de elaboração de códigos já tinham sido realizadas em Atenas no século de Péricles e em Roma como o Pandectas e o Codex textos aliás que o papa Gregório VII procurou resgatar na Idade Média como inspiração para o Ius Comune como se chamava em latim o Direito Natural Essa mescla do direito romano com o direito canônico formou a base jurídica da Idade Média A superação desse patamar viria apenas com o Iluminismo e sua valorização do indivíduo Os modernos códigos foram inspirados nessa corrente filosófica mas motivados por uma nova doutrina econômica o capitalismo Os líderes da Revolução Francesa fizeram incluir na primeira Constituição daquele país datada de 1791 a promessa de produzir um código com todas as leis civis existentes Quatro juízes renomados foram encarregados do trabalho Treonchet Portalis BigotPrémeneu e Maleville O próprio Napoleão Bonaparte presidiu várias das sessões realizadas para a discussão dos temas Foi necessário aprovar 36 leis para permitir a promulgação do Código Civil em 1804 Era composto de três livros o primeiro tratando de pessoas o segundo de bens e o terceiro da propriedade O Código Civil francês privilegia o direito privado em suas relações com o direito público Recebeu muitas críticas por ter sido considerado excessivamente burguês Apesar disso constituise no verdadeiro pensamento jurídico dos séculos XIX e XX e até hoje conserva em sua maior parte a estrutura original O Código Civil alemão Um segundo passo para a codificação do direito foi dado em 1900 pelo Código Civil alemão Burgerlich Gesetzbuch BGB que influenciou grande parte da Europa representando a evolução do Código Civil francês Tratouse de uma decisão política para apoiar a fundação do chamado segundo império alemão segundo Reich em 1871 No processo liderado pelo primeiroministro Otto von Bismarck a uniformização do ordenamento jurídico contribuiria para agrupar todos os Estados germânicos em um só país a Alemanha Até aquele momento o sistema jurídico dominante era ainda o direito romano o Ius Comune Dois filósofos alemães iniciaram uma polêmica pública sobre a necessidade de um código que sistematizasse num só diploma legal o direito civil de todos os estados alemães Anton Friedrich Justus Thibaut no livro Da necessidade de um Direito Civil Geral para a Alemanha de 1814 defendeu a criação do código fundamentandose nos muitos inconvenientes políticos e comerciais que ocorriam em razão das disparidades existentes entre as leis e os costumes dos Estados alemães E chamava a atenção para o benefício complementar que seria a ampliação do sentimento de unidade nacional O outro lado da polêmica foi protagonizado por Friedrich Carl von Savigny No mesmo ano de 1814 publicou o livro Da vocação de nosso tempo para a legislação e a jurisprudência declarandose contra a codificação do direito alemão Ele acreditava que os costumes do povo e sua história seriam fontes primárias do direito Codificar a legislação resultaria imobilizar o direito no tempo o que poderia limitar a atuação das forças históricas e da consciência coletiva para o aprimoramento do ordenamento jurídico A frase é de Alessandro Gropalli jurista italiano que estudou profundamente a Teoria Geral do Estado Porém a tese da necessidade da codificação venceu e o Código ficou pronto em 1896 mas só entrou em vigor quatro anos depois O Código Civil alemão de 1900 dividiase em duas partes A primeira era geral abrangendo o direito das pessoas dos bens e os negócios jurídicos servindo como preceitos de direito civil A segunda parte especial estava disposta em quatro livros direito das obrigações direitos reais direito de família e direito das sucessões Dois países profundamente influenciados pelo Código Civil alemão foram o Japão que editou seu código em 1898 e China que editaria o seu em 1930 O Código Civil brasileiro entrou em vigor em 1916 E teve vida longa sendo substituído somente em 2002 A ESCOLA HISTÓRICA DO DIREITO Foi um movimento que não se restringiu à filosofia mas atingiu escala de movimento cultural Teve grande repercussão na França com a publicação dos treze volumes do Repertório de Jurisprudência de Merlin de Douai em 1815 obra que analisava o Código de Napoleão comparandoo com o antigo direito francês Entretanto foi na Alemanha que a Escola Histórica do Direito floresceu com os trabalhos de Gustav von Hugo posteriormente desenvolvidos por Savigny e Puchta O pressuposto da Escola Histórica do Direito era reconhecer a importância à tradição jurídica ou seja os costumes e a história no estudo dos fatos jurídicos e sociais Sua base de estudos era o direito romano recompilado pelo imperador Justiniano no ano de 533 e publicado em cinquenta volumes sob o título de Pandectas ou Digesto A intenção era recuperar o propósito da lei no momento em que havia sido criada Isso porque pensavam os filósofos dessa escola a lei não surge apenas da razão do legislador mas também das circunstâncias históricas nas quais foi redigida Considerase como o ponto alto da Escola Histórica do Direito a já citada antológica disputa intelectual entre Savigny e Thibaut sobre a necessidade de criação de um código civil para a Alemanha Savigny precursor do Código Civil alemão Friedrich Carl von Savigny foi professor de Direito em várias universidades alemãs entre seus alunos estiveram por exemplo os irmãos Grimm famosos pela coleta de narrativas infantis do folclore alemão É considerado o principal representante da Escola Histórica de juristas fundada por Gustav von Hugo jurista alemão que viveu entre 1764 e 1844 A obra de Gustav von Hugo sobre o método de ensino do direito romano resume a intenção de revisar o racionalismo que não usava a história como forma de apreensão e estudo das normas Savigny e suas circunstâncias Savigny estudou a história e a influência do direito romano nas legislações ao longo da história A grande importância dos seus estudos está relacionada à abordagem filosófica que realizou sobre o tema não se limitando apenas aos registros históricos Por causa do livro Tratado da posse é tido como o fundador do moderno direito internacional privado Friedrich Carl von Savigny publicou em 1803 quando tinha apenas 24 anos de idade sua obra mais importante Tratado da posse Tal obra fora recebida com aplausos pelos juristas da época e teve importância fundamental para os formuladores do Código Civil alemão um século depois Aliás como já mencionado anteriormente Savigny era contrário à elaboração de um Código alemão acreditava no que chamava de volkgeist espírito do povo e na força dos costumes e da tradição Em 1810 passou a lecionar Direito Romano na nova Universidade de Berlim graças à amizade com o naturalista Wilhelm von Humboldt Em 1815 publicou o primeiro volume de sua História do direito romano na Idade Média que continuaria escrevendo até 1831 quando publicou o último volume Também em 1815 Savigny fundou a Revista por uma Ciência Jurídica Histórica publicação que inaugurou os estudos da história do direito Nessa revista conseguiu divulgar entre outras informações importantes a descoberta do manuscrito do jurista romano Gaio datado do ano de 161 e que serviria de base 300 anos depois para o Corpus Iuris Civilis do Imperador Justiniano O texto de Gaio considerado perdido foi encontrado na biblioteca da catedral de Verona na Itália pelo naturalista alemão Carsten Niebuhr em 1816 Em 1835 Savigny começou a segunda fase do seu estudo histórico que denominou Sistema do direito romano atual publicado entre 1840 e 1849 em oito volumes Sua ideia sobre o direito era a de um sistema funcionando como organismo com um centro em torno do qual os elementos constitutivos estavam postos sem referência hierárquica Em 1842 assume a função de Ministro da Justiça para a Revisão da Legislação Prussiana Morreu em Berlim em 1861 Savigny e suas ideias Savigny no início de sua carreira assim como Gustav von Hugo era radicalmente contrário ao Direito Natural Para eles o direito não era fruto da razão mas resultado e consequência de eventos históricos Era portanto uma ciência que variava no tempo e no espaço Por isso defendia que só um estudo histórico do direito positivo permitiria o entendimento do Direito como ciência Recuaria mais tarde dessa posição Para Savigny o importante para o direito era o sentimento e não a razão A fonte original do direito não devia ser a lei mas a convicção jurídica do povo traduzida na sua forma de conduta Em suma defendia que a sociedade devia ter primazia sobre o Estado Era o que chamava de espírito do povo A crítica que se faz às obras da primeira fase de Savigny é de que ao se colocar o direito numa situação de dependência das conjunturas históricas ficaria prejudicada a sua estrutura como sistema e portanto a sua validade universal e permanente No entanto na fase mais madura de sua produção aperfeiçoou a sua teoria deixou de entender que o desenvolvimento das leis era apenas um fenômeno social e passou a defender a noção de que em cada momento histórico juristas e professores elaboraram leis mais convenientes para o seu tempo Savigny e sua influência no direito As legislações do século XIX tiveram grande influência do livro Tratado da posse de Savigny Suas considerações sobre o conceito e os elementos essenciais da posse numa espécie de reconstrução do direito romano ganharam o nome de teoria subjetiva da posse Mesmo opositores de Savigny como Rudolf von Ihering que desenvolveu teoria oposta conhecida como teoria objetiva da posse e que domina as legislações atuais elogiam o seu trabalho de sistematização e simplificação das muitas obras já publicadas em sua época sobre direito possessório Isso porque se os romanos já aplicavam a posse não haviam se preocupado em conceituála ou mesmo diferenciála em relação à origem aos seus elementos constituintes efeitos ou natureza jurídica Uma noção fundamental que Savigny definiu e que perdura até hoje na doutrina é a necessidade de distinguir entre aquele que possui o bem e aquele que apenas o detém Para o autor o elemento que distinguiria essas duas categorias jurídicas estaria ligado tanto a um aspecto material chamado corpus quanto a um aspecto moral que denominou animus No direito devemse a Savigny algumas considerações importantes em relação à doutrina possessória como a aquisição a apreensão de móveis e imóveis a custódia a conservação e a perda da posse O QUE QUER que existe está certo Friedrich Carl von Savigny Georg Friedrich Puchta e a jurisprudência dos conceitos Foi discípulo de Savigny e um dos representantes da Escola Histórica É considerado ao lado de Gustav von Hugo e Friedrich Carl von Savigny precursor do positivismo jurídico Especialista em Direito Romano foi professor dessa disciplina na Universidade de Munique durante muitos anos Seu trabalho mais importante foi o livro Manual das Pandectas publicado em 1838 Pandectas ou Digesto como já vimos neste livro é a recopilação de leis feita pelo imperador romano Justiniano O pandectismo ou jurisprudência dos conceitos foi um movimento surgido na Alemanha no século XIX a partir do livro de Puchta mas que ganhou força com a publicação do Tratado das Pandectas de Bernhard Windscheid Georg Friedrich Puchta e suas circunstâncias Georg Friedrich Puchta foi integrante da Escola Histórica do Direito Foi um dos precursores do positivismo jurídico ao elaborar a jurisprudência dos conceitos em que se manifestava grande preocupação com o formalismo Especialista em direito romano estudou as Pandectas do imperador Justiniano e abriu caminho para o movimento liderado por Bernhard Windscheid e que ficou conhecido como o pandectismo alemão Georg Friedrich Puchta nasceu na Bavária Alemanha em 1798 então pertencente à Prússia Era filho do juiz Wolfgang Heinrich Puchta que escreveu várias obras acadêmicas Obteve o grau de doutor em Direito pela Universidade de Erlangen onde lecionou por algum tempo até conseguir cátedra na Universidade de Munique Passou por outras universidades como professor mas fixouse em Berlim sucedendo Savigny que se afastava para ocupar o posto de Ministro da Justiça para a Revisão da Legislação Prussiana Em 1845 integrou o Conselho de Estado e a Comissão Legislativa da Prússia Morreu jovem aos 47 anos em 1846 Georg Friedrich Puchta e suas ideias Georg Friedrich Puchta entendia o Direito como uma ciência positiva um sistema que devia ser visto como expressão sociocultural da experiência histórica de determinada sociedade aproximandose muito daquilo que Savigny denominava de espírito do povo Por essa razão considerava que o Direito a Filosofia do Direito e a Jurisprudência deviam ser ciências distintas Elaborou a afamada jurisprudência dos conceitos corrente de pensamento jusfilosófico que apresentou a ideia de Direito como um sistema conceitual hierarquizado em forma de pirâmide No topo da pirâmide de Puchta estaria o conceito supremo uma ideia fundamental irrefutável em relação à qual por dedução lógica todos os outros conceitos seriam esclarecidos Todos os conceitos segundo Puchta relacionamse uns com os outros de modo a gerar novos conceitos Com tal postura opunhase ao sistema desenvolvido por Savigny que tinha forma orgânica com os elementos constitutivos orbitando sem hierarquia ao redor de um centro Georg Friedrich Puchta e sua influência no direito Para Puchta as três fontes do Direito são estas a consciência espontânea do povo a legislação e a ciência Desse modo como fato histórico e social o direito é uma ciência em constante movimento e seu objeto está sujeito a mudanças ao longo do tempo Justamente por essa razão é que Puchta condenava o legislador que criava leis arbitrárias sem observar as necessidades da nação Em suma pensava que o direito só tinha sentido pelo valor que lhe dava o espírito humano Por causa da preocupação com a forma mais do que com o conteúdo o sistema de Puchta foi praticamente um esboço do positivismo A VIDA NO TEMPO é um perene movimento uma ininterrupta sucessão Georg Friedrich Puchta O pandectismo Todas as leis do Império Romano distribuídas por mais de 1500 livros foram recopiladas e sintetizadas em cinquenta volumes por ordem do imperador Justiniano no ano de 533 Essa recopilação conhecida como Pandectas ou Digesto foi recuperada por filósofos alemães do século XIX interessados em observar como o direito romano que ao longo do tempo foi sendo modificado pelo direito canônico podia ser adaptado às leis do império alemão Esse movimento ficou conhecido como pandectismo Teve como precursores os trabalhos de Georg Friedrich Puchta mas ganhou corpo definitivo com a publicação do Tratado das Pandectas de Bernhard Windscheid O movimento pandectista buscou a normatização das leis alemãs somando a elas o direito consuetudinário originado dos costumes e da tradição local isto é pregando a inserção no sistema jurídico pelo legislador do que chamava de razão dos povos O pandectismo tinha a mesma essência da corrente denominada teoria geral do direito surgida também do século XIX que considerava o direito mais do que uma simples coleção de leis mas um sistema regido por princípios jurídicos fundamentais Desse modo e antecipando os valores que viriam a fundamentar o chamado positivismo jurídico o direito segundo Bernhard Windscheid tinha que estar alheio a interferências de questões de ordem filosófica moral ou política e não depender da vontade de quem aplicava a lei No entanto a interpretação das leis buscava compreender a vontade do legislador Com esse subjetivismo o movimento pandectista não duraria muito Acabou praticamente ao mesmo tempo em que acabou a teoria geral do direito Ambas as tendências procuravam substituir a filosofia do direito mas não tiveram consistência suficiente para isso No lugar delas surge a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen que veremos no decorrer deste livro Seria o desenvolvimento efetivo do positivismo jurídico Rudolf von Ihering e a luta pelo direito Foi um dos principais críticos da obra de Savigny embora reconhecesse nela muitos pontos válidos De certo modo Ihering antecipou Wittgenstein ao afirmar que a palavra está para a língua assim como as relações jurídicas estão para o direito Miguel Reale no livro Nova fase do direito moderno considera que os escritos de Ihering inauguraram a segunda fase do direito moderno31 Rudolf von Ihering e suas circunstâncias Rudolf von Ihering defende a luta pelos direitos como obrigação ética do indivíduo porque uma violação ao direito individual é uma violação ao direito da coletividade Idealizou a teoria objetiva da posse em oposição ao pensamento do seu conterrâneo Savigny Tem influência de Hegel no sentido de que do debate de ideias surge a síntese que favorece a solução Rudolf von Ihering tem raízes marxistas como veremos adiante mas sua atitude é de ponderação Segundo ele sempre haverá o conflito social mas ao contrário de Marx não culpava a burguesia pelas afrontas ao direito Segundo ele a propriedade tem origem no trabalho e ainda se opondo a Marx defende a valorização da propriedade individual como condição da dignidade humana Em sua obra Espírito do Direito Romano defende o direito como organismo num claro apoio ao pensamento de Savigny e consequente negação das ideias de Puchta Rudolf von Ihering e suas ideias Rudolf von Ihering trouxe grande contribuição para a filosofia do direito ao considerar o Direito um produto social Nele vêse a importância histórica para a compreensão das normas jurídicas porque apoiada na visão dialética de Hegel o homem cria ou recria o seu destino pela via da luta incansável contra as injustiças Essa luta é validada pela ética segundo Ihering é cabível a luta por um direito individual violado porque a violação agride o direito como conjunto da sociedade Negar o direito subjetivo é negar o direito como um todo são as suas palavras a esse respeito Defende portanto que o indivíduo tem o dever ético para consigo mesmo e para com a sociedade de lutar por seus próprios direitos Rudolf von Ihering foi discípulo de Georg Friedrich Puchta O conjunto do seu pensamento na fase mais madura de seu trabalho ficou conhecido como Jurisprudência de Interesses e era uma crítica à Jurisprudência dos Conceitos desenvolvida por seu mestre O ponto alto de sua crítica foi uma carta satírica publicada 1884 sob o título O que é sério e não sério na Jurisprudência Rudolf Von Ihering e sua influência no direito Para Rudolf von Ihering a liberdade deve estar condicionada às leis Ele afirma que o objetivo do direito é a paz mas que a paz de que usufruímos no presente é resultado de guerras passadas Sua principal contribuição para o direito foi a teoria objetiva da posse Concebida como alternativa para a teoria subjetiva da posse de Savigny influenciou grande parte da legislação contemporânea Como vimos em Savigny a posse tem dois elementos constituintes o corpus e o animus O primeiro conhecido como elemento material representa o poder de dispor fisicamente da coisa e inclusive de defendêla de qualquer tentativa de agressão é também chamado de fato exterior Já o segundo chamado fato interior representa a intenção de uma pessoa de ter a coisa como sua São esses os dois elementos que conjugados constituem a diferença entre a posse e a mera detenção conforme estivesse presente ou não o animus É justamente por causa desse elemento que a teoria de Savigny é denominada subjetiva Já Ihering passou a defender a ausência de importância da intenção elemento subjetivo na relação entre a pessoa e a propriedade Considera ele que no corpus já está implícita a noção de animus portanto afirma que a posse é o exercício de um dos poderes inerentes à propriedade Mais ainda contribuiu o autor para a identificação de que a posse não trata necessariamente da disposição física da coisa mas abrangeria diversos outros tipos de relações fáticas ou jurídicas que um sujeito poderia ter com a coisa em si Assim para Ihering a posse é um fato mas também um direito O FIM DO DIREITO É A PAZ o meio de que se serve para conseguilo é a luta Enquanto o direito estiver sujeito às ameaças da injustiça e isso perdurará enquanto o mundo for mundo ele não poderá prescindir da luta A vida do direito é a luta a luta dos povos dos governos das classes sociais dos indivíduos Rudolf von Ihering David Hume empirista radical Seguidor de Locke David Hume discordou de muitas de suas ideias especialmente no que diz respeito ao conceito de ideias complexas Assim como George Berkeley afirmava que todas as ideias existentes são simples o homem faz associação entre elas e supõe determinados resultados que não necessariamente estão conectados por uma relação de causa e efeito ou pelo menos tal reação não pode ser demonstrada objetivamente O caráter habitual dos eventos naturais pode nos levar a crer que tudo sempre se repete da mesma forma mas Hume não concorda com isso porque os caminhos da natureza podem ser alterados Hume e suas circunstâncias David Hume definiu o método crítico para entender o conhecimento Cada ideia complexa tem que ser entendida como um conjunto de ideias simples e por meio da razão o homem precisa reduzir os seus componentes até entender as ideias iniciais Essa teoria foi chamada de empirismo psicológico David Hume escocês de Edimburgo e filho de aristocratas viveu entre 1711 e 1776 Chegou a estudar Direito mas desistiu Publicou cedo aos 28 anos sua obra principal Tratado sobre a natureza humana em que contestava aspectos da filosofia praticada na época Manteve contato com luminares da ciência e da filosofia da época como o economista e filósofo escocês Adam Smith o enciclopedista e matemático francês Jean dAlembert e o filósofo francês Jean Jacques Rousseau Como esses pensadores defendia a ideia do contrato social e afirmava que o cidadão tem o direito de resistir a uma eventual tirania Dizia que as coisas em si não têm as características que lhes atribuímos Seus escritos influenciariam decisivamente os trabalhos de Immannuel Kant Hume e suas ideias Outra discussão está relacionada com a noção de substância que para ele não provém dos sentidos Não aceitou a inexistência material de Berkeley nem a existência de uma substância impossível de ser captada pelos sentidos de Locke Para ele as duas hipóteses não valem O que existiria são dois níveis de percepção as impressões vívidas e nítidas captadas pelos sentidos e as ideias estas apenas cópias mentais e de menor força das impressões As ideias portanto são apenas representações do que o homem experimentou e que processadas pela mente produzem as suposições fantasias e os sonhos Portanto não há impressões complexas mas apenas a associação entre impressões simples Hume e sua influência no direito Hume fez uma crítica ao jusnaturalismo do seu tempo afirmando que as regras de justiça não são inatas no ser humano o que existiria são experiências de justiça que o homem vai acumulando Na sua teoria de justiça portanto a experiência é que determina o que é bom ou mau justo ou injusto Ainda sobre a justiça acreditava que os homens respeitam os outros por uma convenção utilitarista ou seja não agrediam os direitos alheios por pura conveniência porque a paz social interessa a cada um A BELEZA DAS COISAS existe no espírito de quem as contempla David Hume Direito natural No direito o humanismo do século XVIII representou o ressurgimento do direito natural ou jusnaturalismo já preconizado anteriormente pelos gregos O homem deveria estar sujeito às leis da natureza e não mais às leis de Deus Foi um movimento racionalista o que quer dizer que o homem precisava utilizarse da razão da inteligência para elaborar o conhecimento que lhes era oferecido pelos fenômenos naturais Essa corrente filosófica seria consolidada mais tarde pelos pensadores que fundamentaram o Iluminismo e seu ponto alto a Revolução Francesa marco histórico da Idade Contemporânea LIBERALISMO E RACIONALISMO O racionalismo filosófico buscava meios e modos de chegar ao entendimento das leis universais que devem reger o homem em sociedade Enquanto os empiristas tentavam explicar a presença e o papel do homem no mundo pelas sensações particulares experimentadas por um e cada indivíduo o racionalismo pensava no conjunto dos indivíduos defendendo a ideia platônica de que o conhecimento nasce de algo que existe anteriormente à experiência sensível o que Kant chamaria de princípios apriorísticos Durante todos os anos em que as duas correntes coexistiram os principais representares do empirismo e do racionalismo dialogaram sendo que muitos foram grandes amigos Dos racionalistas de primeira hora devemos destacar por ordem cronológica René Descartes 1596 1650 Spinosa 16321677 e Leibniz 16461716 Adam Smith 17231790 economista e filósofo escocês foi um dos maiores teóricos do racionalismo aplicado à economia Não podemos esquecer ainda esse que foi um dos maiores nomes da filosofia moderna Friedrich Hegel 17701831 cuja proposta de apenas ser racional o que é real dava um novo rumo para o estudo da filosofia32 Segundo os racionalistas pensar em leis que objetivassem o interesse coletivo faria com que fossem eliminados os conflitos de interesses entre membros ou grupos de uma sociedade Portanto lutavam pelo estabelecimento de um Estado forte com autoridade para elaborar e fazer cumprir leis comuns que atendesse no mínimo medianamente as necessidades e expectativas de toda a sociedade Mas de novo uma questão se levantava como era possível estabelecer parâmetros universais a partir da análise racional de cada indivíduo Os racionalistas consideravam que entre as necessidades e expectativas destacavase a propriedade O homem precisava sentirse dono de seus bens como os instrumentos de trabalho para sentirse valorizado dentro do seu grupo Esse pensamento acabou formando a base filosófica do movimento social que se chamou liberalismo embora todo liberal fosse basicamente um empírico A ideia básica de funcionamento econômico era de que os homens prestariam serviço a quem tivesse a propriedade da terra em troca de salários Os donos da terra comercializariam o produto da terra para obter lucro pagar os empregados e produzir mais para vender mais Era o início do capitalismo moderno Entretanto seria necessária uma revolta armada para que se chegasse a essa nova configuração social com a eliminação definitiva dos feudos da escravidão e da vassalagem A chamada Revolução Burguesa que ocorreu na Inglaterra entre os anos de 1640 e 1660 acabou por fazer com que pensadores liberais fossem de inclinação racionalista como Descartes ou empirista como John Locke orientassem suas meditações e pesquisas para dois elementos que à época passavam a ser fundamentais para a organização social propriedade e liberdade O conceito de propriedade Acabamos de ver que o liberalismo de onde se origina o capitalismo e a sociedade burguesa centrada na produção comércio e lucro inaugura na filosofia a questão da propriedade como elemento integrante da liberdade do indivíduo Os direitos individuais portanto fizeram parte do programa de consolidação do capitalismo na era moderna Adam Smith quando preconizava a livre concorrência sem interferência do Estado já tornava explícita a noção de que esta só podia existir entre indivíduos juridicamente dotados de liberdade e igualdade O terceiro ponto do triângulo a fraternidade somente viria a ser debatido depois da Revolução Francesa No século XVII foram lançados os fundamentos de um sistema jurídico baseado no direito natural contestando a doutrina da teologia moral a escolástica O conceito de propriedade privada defendido por Hugo Grócio Thomas Hobbes Samuel Pufendorf e John Locke era filosófico mas servia às novas urgências das nações agora voltadas para uma nova economia John Locke pregava que a propriedade privada é fruto direto do trabalho do homem sobre as coisas da natureza Desse modo atentar contra a propriedade privada seria um atentado contra a lei natural e portanto um crime Essa ideia seria contestada no Terceiro Manuscrito EconômicoFilosófico de Karl Marx publicado em 1844 Segundo Marx havia que desaparecer a propriedade privada para que nascesse o homem social É a base do comunismo No mesmo sentido Rousseau na esteira de Locke considera que o homem em seu estado de natureza é puro e bom e que a propriedade privada foi o passo principal para a corrupção dos homens porque foi a partir dela que se deu a divisão entre pobres e ricos Foi a propriedade privada que fez começarem as guerras dizia ele Rousseau afirmava que o contrato social foi um artifício criado pelos poderosos para ludibriar e subjugar os mais fracos Assim evitariam guerras em que os ricos sairiam perdendo mais do que os pobres A saída para Rousseau seria a celebração de um contrato em que imperasse a vontade geral Dois grandes teóricos da doutrina possessória foram Savigny e Ihering na Alemanha Uma das frases de Ihering define que a propriedade nada mais é senão a periferia da pessoa projetada no terreno material A propriedade na doutrina brasileira Um dos primeiros governantes medievais a considerar seriamente a questão da propriedade foi Dom Sancho I segundo rei de Portugal que reinou entre 1154 e 1211 Foi chamado de Rei Povoador porque na contramão da tendência da época que era de a nobreza manter o povo subjugado a contratos de servidão concedeu várias cartas de foral A Carta de Foral era o documento real que dava foro jurídico próprio aos habitantes medievais de uma povoação que quisesse libertarse do poder feudal Com esse documento a povoação ganhava autonomia de município Uma carta foral permitia à população colocarse sob domínio e jurisdição exclusivas da Coroa Portuguesa A carta concedia ainda terras baldias para uso coletivo da comunidade regulava impostos taxas multas e estabelecia direitos de proteção e obrigações militares para serviço real A iniciativa de Dom Sancho I prestavase a povoar o território do reino de Portugal especialmente as localidades reconquistadas dos muçulmanos Em seu governo foram criados 34 dos atuais 308 municípios de Portugal Seu filho Dom Afonso III deu continuidade ao projeto e criou outros 88 municípios Como eu disse no meu livro Direitos humanos processo histórico o defeito do sistema era que originou um Estado fragmentário porque cada município tinha leis particulares e o poder dos senhorios sobrepunhase ao direito público o que gerava arbitrariedades Em 1496 o rei Dom João II determinou novo enquadramento legal dos municípios para os organizar e eliminar conflitos Em decorrência haveria outro grande momento de concessão de cartas forais chamados Forais Novos em 1514 no reinado de Dom Manuel I com a criação de novéis 29 municípios A reforma dos Forais só terminou em 1920 Foi um dos mais importantes instrumentos unificadores do Estado português Atualmente na área jurídica o direito de propriedade é um reconhecimento da causalidade Explicando temos direito de propriedade sobre coisas que existem por causa de nossa ação ou seja uma pessoa tem direito de propriedade sobre alguma coisa útil que produz com seu trabalho porque essa coisa só existe em razão do seu trabalho O Código Civil brasileiro estabelece no seu artigo 1228 que o proprietário tem a faculdade de usar gozar e dispor da coisa e o direito de reavêla do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha Notese que não se fala em direito mas em faculdade Liberalismo no Brasil No século XIX ser liberal era ser defensor da liberdade de culto e da separação de poderes entre Igreja e Estado Originase do pensamento liberal a expressão sociedade civil Ao contrário do que possa parecer não é a sociedade da qual estão excluídos os militares Sociedade civil é na verdade aquela representada por cidadãos com direitos e deveres estatuídos em cartas constitucionais Portanto trata se de uma questão conceitual e filosófica o cidadão o civil é diferente do vassalo do súdito O cidadão não existe para servir o senhor mas para viver em sociedade com a garantia jurídica de direitos iguais para todos sejam direitos individuais políticos ou sociais No Brasil foram os liberais os responsáveis por fazer incluir na Constituição de 1891 a primeira da República a definição do Brasil como um Estado laico determinando ainda a separação dos poderes Sobre essa influência do movimento liberal no constitucionalismo brasileiro Afonso Arinos de Mello Franco relata No Brasil como nos EUA o liberalismo nasceu estreitamente vinculado ao federalismo e pelas mesmas causas nas quais se amalgamavam interesses econômicos e políticos Manifestase pelo menos desde o século XVIII com a Inconfidência Mineira provoca crises no BrasilReino intervém no movimento da independência ensanguenta o Primeiro Reinado e a Regência sempre desfraldando a bandeira liberal33 Em outras palavras quando cidadãos livres escolhem viver sob uma Constituição esperam certo grau de autonomia local e oportunidades econômicas e sociais iguais para todos Uma das possibilidades de sistematização dessa distribuição de poderes é o federalismo um sistema de governo em que o poder e a tomada de decisão são compartilhados entre governos locais estaduais e federal livremente eleitos com autoridade sobre as mesmas pessoas e a mesma área geográfica Municípios e Estados administram os problemas sociais em parceria com o governo nacional O Partido Liberal destacouse no Império brasileiro entre 1830 e 1840 Nessa época a civilização do café fez crescer a riqueza agrícola do Brasil Afonso Arinos no mesmo estudo diz Formouse então um grupo poderoso de interesses econômicos fundados na lavoura cafeeira e escravocrata e esse movimento ascensional da economia vai mandando à Câmara deputados de índole conservadora e mais voltados para as realidades econômicas do que para as teorias liberais ou vai mudando a posição de alguns representantes sensíveis à transformação que se operava Era o início do Partido Conservador José Luis Quadros de Magalhães também anotou em seu livro a seguinte consideração A partir do constitucionalismo liberal o cidadão pode afirmar que é livre para expressar o seu pensamento uma vez que o Estado não censura sua palavra o cidadão é livre para se locomover uma vez que o Estado não o prende arbitrariamente o cidadão é livre uma vez que o Estado não invade sua liberdade a economia é livre uma vez que o Estado não regula ou exerce atividade econômica Lembramos que o Estado que os liberais combatiam era o Estado absoluto34 Em questões econômicas como se verificará mais adiante com Adam Smith o liberalismo aplicavase como a teoria que sustentava que o Estado não podia controlar a economia nem restringir a produção e a distribuição de riquezas Mas como o conceito de liberdade é de certo modo subjetivo prestarseia mais tarde a ser manipulado por regimes extremistas como o fascismo e o comunismo Organizações liberais chegariam inclusive a lutar contra a regulamentação do trabalho nas fábricas no início do século XIX Por isso a teoria liberal seria revista transformandose na democracia social35 Merquior um pensador liberal do século XX Considerado o maior pensador do liberalismo no Brasil o carioca José Guilherme Merquior morto em 1991 aos 50 anos de idade foi diplomata filósofo sociólogo e escritor Merquior e suas circunstâncias Dentre sua vasta obra de crítica literária estética e política podemos destacar O argumento liberal e O estruturalismo dos pobres e outras questões José Guilherme Merquior também produziu dezenas de artigos e ensaios em parceria com luminares como Roberto Campos Lucio Colleti Antonio Houaiss Manuel Bandeira e Eduardo Portella Manteve sérias polêmicas pelos jornais com a filósofa Marilena Chauí e com o jornalista Paulo Francis Com três doutorados sendo o primeiro em Letras na Universidade de Paris e o último em Sociologia sob orientação de Ernest Gellner na London School of Economics foi diplomata tendo servido em Paris Bonn Londres Montevidéu e novamente Londres Foi professor universitário no Instituto de Belas Artes no Rio de Janeiro na Universidade Nova de Lisboa e na Universidade de Montevidéu Graças a uma prolífica produção literária foi eleito para a cadeira 36 da Academia Brasileira de Letras sucedendo a Paulo Carneiro Tomou posse em 1983 muito jovem aos 42 anos Depois de sua morte seria substituído por João de Scantimburgo Integrou a equipe de governo do presidente Fernando Collor de Mello ao lado de Roberto Campos Sobre esse período costumava dizer que as pessoas em geral têm uma concepção vulgar de Estado porque só veem o seu ramo executivo Essa não é uma concepção correta nem jurídica nem historicamente nem para o Direito nem para as ciências sociais O Estado não é só o governo Merquior e suas ideias José Guilherme Merquior se autodenominava politicamente como liberal social ou conservador civilizado Era contra o radicalismo fosse de esquerda ou de direita mas devotou suas críticas principalmente ao marxismo Para ele a tradição marxista tratava o Estado como sinônimo do mal de instrumento de opressão Na década de 1970 o pensamento marxista na América Latina preso ao conceito leninista de imperialismo que era uma espécie de projeção da luta de classes para a política internacional passou a ver o Estado como denominador comum das classes contra a opressão internacional mais tarde os marxistas entraram em devoção ao pensador italiano Antonio Gramsci Disse Merquior em entrevista publicada pela Revista Veja em 1981 O que num certo sentido implica a volta às matrizes marxistas que sempre viram no Estado um instrumento de opressão Essa é a origem esquerdista do mito da sociedade civil Por outro lado Merquior vergastava os neoliberais brasileiros que preferia chamar de paleoliberais Disse deles que se juntaram à esquerda nessa festa de rejeição do Estado porque o Estado deve ser um promotor de progresso e do equilíbrio social Disse Merquior na mesma entrevista Mas os paleoliberais rejeitam essa função do Estado e por isso se juntaram aos gramscianos na criação do mito da sociedade civil chamada a resolver os problemas brasileiros sem a interferência do Estado ou contra ela Isso é uma bobagem Merquior considerava que leninismo e democracia são incompatíveis Enfureciase contra intelectuais que tendiam a minimizar o problema do ensino básico da alfabetização de dotar as pessoas com o instrumental mínimo do pensamento articulado Para ele o único fenômeno literário recente no Brasil desde 1922 foi a febre do memorialismo uma tendência tão forte que já chegou até aos jovens O país segundo ele sofre de grafocracia termo cunhado pelo marxista austríaco Karl Renner depois da Segunda Guerra para designar a vocação moderna do intelectual para exercer o poder através do que ensina ou escreve Nem todos os males humanos têm causas sociais sendo portanto elimináveis através de mudanças sociais pensava Merquior Defendia a ideia de que a finalidade do Estado é dar segurança sem esclerosar a sociedade com um sistema demasiado refratário à iniciativa individual O progresso deve ser alcançado pela racionalidade RACIONALISMO O racionalismo Essa doutrina filosófica é contemporânea do empirismo Ambas foram opositoras uma da outra por séculos Para os racionalistas tudo o que existe no universo tem uma causa que a razão pode explicar mesmo que não possa ser demonstrada objetivamente Até mesmo mistérios tidos como insondáveis para a época como a origem do universo ou a substância de Deus podem ser explicados pela inteligência e não somente pelas sensações como queriam os empiristas Um indivíduo tem a sua razão a sua consciência Por isso cada pessoa reage distintamente a uma determinada situação de felicidade ou de conflito Como seria possível estabelecer decisões para o conjunto da coletividade se cada julgamento tivesse que levar em conta as características limitações ou qualidades individuais A importância do racionalismo para o direito é equivalente à importância que os empiristas receberam O homem sempre procurou afirmar os direitos naturais de um modo que não fosse casual ou seja avaliado diante de cada circunstância individual O que a filosofia procurava era a formulação de leis que pudessem ser universais aplicáveis a todos os homens Cada corrente tentava chegar a essa universalidade por um caminho e não se pode dizer que um fosse mais ou menos válido do que o outro René Descartes e a dúvida metódica O francês René Descartes 15961650 filho de família abastada chegou a estudar em colégio jesuíta mas decepcionouse muito cedo com a doutrina escolástica considerando que não levava a nenhuma verdade indiscutível Por esse motivo dedicouse à matemática e à física como as ciências que permitiriam com o rigor metodológico que possuem chegar a conclusões definitivas Foi contemporâneo de Galileu e como ele foi acusado de heresia Suas obras fizeram parte do índice dos livros proibidos pela Inquisição Descartes e suas circunstâncias René Descartes é o autor de Discurso sobre o método em que utiliza as ciências matemáticas para a busca filosófica da verdade Em resumo afirma que os indivíduos são diferentes entre si mas que o espírito humano tem uma unidade que permite elaborar um método universal baseado em evidência análise e síntese René Descartes serviu como soldado voluntariamente e por cinco anos no exército do príncipe holandês Maurício de Nassau que era protestante Entretanto lutava menos do que escrevia Foi nessa época que escreveu Regras para a direção do espírito falando sobre a unidade do espírito humano Em sua obra Discurso sobre o método publicada em 1637 ele busca provar a existência de Deus e a superioridade da alma sobre o corpo com base na matemática Em 1644 aperfeiçoaria suas ideias no livro Princípios da filosofia que dedicou à princesa Elizabeth I da Boêmia de quem era conselheiro Mais tarde foi convidado para ser preceptor da rainha Cristina da Suécia Descartes e suas ideias René Descartes foi o representante máximo do racionalismo Ensinava que o homem deveria por si próprio por meio da razão encontrar a verdade e não se submeter ao preceitos fornecidos pelas autoridades religiosas Advogava a ideia de que um ser concreto estava baseado em duas realidades a substância e o atributo uma espiritual e outra material por isso foi considerado dualista Substância era a qualidade essencial e atributo a sua representação aquilo que a razão permite conhecer Para ele a substância fundamental é Deus Pela razão dizia Descartes é possível perceber o que é real que existe independentemente do meu conhecimento e o que é ideal que pertence ao meu repertório de conhecimento O que temos sobre as coisas são as imagens estas não surgem de dentro de nós espontaneamente nem surgem da associação de ideias portanto só podem vir do mundo exterior Por isso Descartes recomendava que a cada imagem enxergada o homem devia duvidar dela a imagem é a representação de uma coisa real explica a natureza daquele objeto ou é algo que está em mim E mais as coisas existem ainda que eu não tenha conhecimento delas O chamado método cartesiano consiste na atitude constante de duvidar de cada ideia Por isso é conhecido como um ceticismo metodológico Para ele só se pode afirmar a existência de algo se isso puder ser provado Importante notar que o ceticismo a que aqui se refere não tem qualquer relação com a corrente filosófica homônima derivada do empirismo Isso porque os filósofos céticos acreditavam na impossibilidade da existência de qualquer verdade universal e indubitável Já o ceticismo metodológico de Descartes adota um ponto de partida diametralmente oposto o da plena existência de uma verdade universal Ocorre que o homem só poderia chegar a essa verdade por meio de uma postura racional e constante questionamento de todo o conhecimento a fim de que possa distinguir aquilo que é verdade daquilo que não passa de uma ilusão causada pelos sentidos Uma frase de Descartes sintetiza o seu questionamento SE OLHO PELA JANELA e vejo homens passando pela rua não estou errado ao dizer que ao vêlos vejo homens Ainda assim o que vejo da janela além de chapéus e capas que podem cobrir fantasmas ou manequins que se movem apenas por meio de molas Mas julgo que sejam realmente homens e assim entendo pelo mero poder de julgamento que reside em minha mente o que acredito que vi com meus olhos A influência de Descartes para a filosofia além do método é a recomendação de que nada deve ser desconsiderado quando se examina algo A própria fé devia ser submetida ao método cartesiano Achava que as sensações podem nos enganar mas a razão nunca Por isso seu ponto de partida era sempre a dúvida inclusive sobre as verdades matemáticas Somente em relação a uma coisa não era possível duvidar o homem pensa Foi justamente baseado na aplicação desse seu método que Descartes parte para uma longa jornada intelectual na qual efetiva uma desconstrução de todo o conhecimento humano Chegou ao extremo de duvidar do próprio raciocínio ao observar que não conseguia em um primeiro momento sequer afirmar a veracidade de seus pensamentos Foi nesse momento que pôde perceber pela primeira vez uma verdade que era efetivamente irrefutável não havia como negar que ele estava pensando Provada a existência do pensamento logicamente pôde inferir a necessidade da existência do ser pensante Essa é a origem de sua mais conhecida afirmação Dubito cogito ergo sum Duvido penso logo existo São as seguintes as palavras do autor acerca do que aqui afirmado Imediatamente que eu observava isso que os pensamentos de sonho se confundem com a realidade ainda assim eu desejava pensar que tudo era falso era absolutamente necessário que eu quem pensa seja algo e enquanto eu observava que isso é verdadeiro eu penso logo existo era tão certo e tão evidente que eu aceitei este como primeiro princípio de filosofia que eu estava refletindo PENSO logo existo René Descartes Malebranche e a busca da verdade Nicolas Malebranche defendeu o princípio da harmonia preestabelecida que Espinosa e Leibniz desenvolveriam e modificariam mais tarde Dizia que todas as coisas contêm Deus que não só as anima e lhes dá dinâmica mas que o próprio Deus é toda a atividade que está nas coisas Assim as causas físicas são apenas aparentes ocasionais Com essa ideia desenvolveu o sistema de causas ocasionais Malebranche e suas circunstâncias Nicolas Malebranche foi um racionalista radical Afirmava inspirado em Santo Agostinho e em Descartes que o conhecimento do mundo material vinha das ideias e não dependia de nenhuma sensação anterior Para ele as ideias são objetivamente verdadeiras porque são eternas imutáveis necessárias e universais Nicolas Malebranche nasceu na França tendo vivido entre 1638 e 1715 Depois de estudar teologia na Universidade de Sorbonne entrou para a Ordem dos Oratorianos de São Filipe Neri tendo sido ordenado sacerdote em 1664 Nessa época leu a obra de Descartes e encantouse com o racionalismo Em 1674 escreveu Da busca da verdade discutindo as substâncias reconhecidas por Descartes corpo e alma e afirmando que não há relações entre elas o espírito não comandava o corpo nem o contrário Malebranche e suas ideias Para o autor Deus é quem comanda todas as coisas e todos os atos Sendo assim Deus é causa mas não é substância Suas obras o levaram a travar grandes polêmicas com filósofos da época Uma de suas ideias envolve a moral o homem tem livrearbítrio segundo ele para interferir na ação de Deus e escapar das penas resultantes do pecado original HÁ MUITAS PESSOAS a quem a vaidade faz falar grego e até por vezes uma língua que não entendem Nicolas Malebranche Baruch Espinosa e a substância única A Holanda país protestante serviu de refúgio a muita gente que perseguida pela Igreja Católica e sua Santa Inquisição precisava de abrigo Uma dessas famílias foi a do pensador Baruch Espinosa ou Bento Espinosa na forma latina originária de Portugal Espinosa nasceu em Amsterdã Educado como judeu fez contato com obras de Thomas Hobbes e de René Descartes Caiu em desgraça junto à comunidade judaica ao afirmar em obras que escreveu durante o ano de 1655 que a Bíblia não revelava verdades absolutas Baruch Espinosa e suas circunstâncias Baruch Espinosa é autor de uma das mais importantes obras do racionalismo Ética demonstrada pelo método geométrico No livro busca mostrar como devem ser tratados temas que escapem da análise subjetiva Para Espinosa tudo deriva de uma única substância imutável que é Deus teoria monista A natureza tem essa mesma substância por isso Deus e a natureza são a mesma coisa Baruch Espinosa no livro Tratado teológicopolítico publicado em 1670 propõe a separação entre filosofia e teologia o que foi o mesmo que pregar a separação entre a Igreja e o Estado As suas ideias de que filosofia e teologia deviam ser tratadas separadamente também desagradaram a comunidade cristã Por isso foi amaldiçoado e excomungado e a família o expulsou Passou a viver pobremente como polidor de lentes perambulando de uma cidade para outra na Holanda Mas não deixou de escrever nem de exercitar a crítica Baruch Espinosa e suas ideias Espinosa negava a divindade de Cristo achava a religião um grande teatro inventado pelos homens e condenava a obediência cega e temerosa aos preceitos das igrejas Concluiu que essas eram as verdadeiras causas da servidão humana Isso lhe valeu perseguição e prisão Morreu no cárcere sete anos depois da publicação com menos de 45 anos de idade Defendeu o direito natural bem como o liberalismo na política Mas diferentemente de outros racionalistas achava que a democracia servia melhor ao liberalismo do que a monarquia Com isso afasta a concepção de um Estado absolutista TENHO ME ESFORÇADO por não rir das ações humanas por não deplorálas nem odiálas mas por entendêlas Baruch Espinosa Gottfried Leibniz e a monadologia Gottfried Wilhelm von Leibniz nasceu em 1646 na Alemanha Matemático que era produziu grandes obras racionalistas dentre as quais se destacam Discurso da Metafísica Novos ensaios sobre o entendimento humano Sobre a origem das coisas e Sobre o verdadeiro método da filosofia Em uma espécie de evolução do pensamento de Anaxágoras a respeito das homeomerias Leibniz utilizavase do termo mônadas originado do grego monas que significa unidade para designar uma espécie de substância simples imaterial que se moveria no vazio do universo e que se agruparia com outras de mesma natureza de forma a dar origem aos diferentes seres Para o autor as mônadas eram ao mesmo tempo pontos matemáticos átomos materiais e almas Não possuiriam massa nem mesmo qualquer caráter especial Cada mônada seria como que um espelho da realidade porque conteria o universo inteiro dentro de si De certo modo a imanência de Deus em todas as coisas Tudo é tudo dizia ele Leibniz e suas circunstâncias Gottfried Leibniz teve grande influência de Espinosa e Descartes na associação entre filosofia e matemática Suas pesquisas o levaram a definir em 1676 a teoria do cálculo infinitesimal para valores extremamente pequenos teoria esta que durante muito tempo foi erroneamente atribuída a Isaac Newton seu contemporâneo Ao que se sabe ambos desenvolveram a mesma teoria sem conhecerem um ao outro um encontro entre eles só ocorreria depois Gottfried Wilhelm von Leibniz 16461716 foi um leitor voraz desde cedo Aos 15 anos já lia os filósofos de sua época como Descartes e Thomas Hobbes Estudou filosofia e jurisprudência Viveu por vários anos na França embora tenha servido na corte alemã de justiça como conselheiro e depois viajado por toda a Europa Conheceu Espinosa em Londres e com ele manteve produtivas discussões científicas No campo da física Leibniz definiu o conceito de uma ação recíproca entre os corpos Algo que Isaac Newton elaborou como a sua segunda lei a lei da ação e reação a cada ação corresponde uma ação oposta de mesma intensidade Durante muito tempo Leibniz tentou articular os aspectos comuns das diferentes correntes filosóficas com a intenção de unificálas num esforço que não logrou grande êxito Leibniz e suas ideias Na realidade o conceito de que o princípio do universo é o movimento já podia ser encontrado em Heráclito de Éfeso Na Renascença foi recuperado por Giordano Bruno que defendia que cada coisa tinha dentro de si uma força vital anima que fazia com que se movesse e se modificasse como os organismos vivos Os corpos vivos seriam animados por uma força chamada enteléquia Deus o motor único estava em todas as coisas portanto era imanente Mais tarde Albert Einstein em sua eterna busca pelo desenvolvimento da chamada Teoria do Campo Unitário viria a chegar à mesma conclusão dizendo que a síntese de todo o conhecimento poderia ser expressa na palavra movimento Leibniz desenvolveu essa doutrina afirmando que Deus é a causa de tudo e porque Deus é bom todas as coisas têm um sentido um propósito e uma finalidade É o chamado princípio da razão suficiente basilar em Leibniz e que diz que cada coisa existe com uma razão Além disso afirmava que as substâncias existentes apenas na aparência agiriam de maneira causal Na realidade seguiriam determinadas programações já anteriormente estabelecidas por Deus no sentido de harmonizaremse entre si A essa afirmação foi dado o nome de princípio da harmonia preestabelecida harmonia praestabilita Com esse pensamento Leibniz definiu um conceito pluralista da substância da realidade Não existiriam duas substâncias idênticas se fossem idênticas seriam a mesma Leibniz e sua influência no direito Para o direito Leibniz deu grande contribuição com o livro Teodiceia ao estabelecer o que é o mal Colocando Deus como a perfeição ele explica que há o mal metafísico que seria intrínseco a tudo aquilo que não é Deus o mal moral que seria o pecado cometido pelo homem e que não é autorizado por Deus e o mal físico que Deus enviaria para corrigir desvios NADA É MAIS IMPORTANTE do que ver as origens da invenção que são na minha opinião mais interessantes do que as próprias invenções Gottfried Leibniz Christian Wolff o racional iluminado Foi o responsável pela introdução do alemão como língua oficial das universidades de seu país na época todas as aulas eram dadas em latim Christian Wolff e suas circunstâncias Christian Wolff defendia a ideia de que o direito deve constituir uma ciência coerente porque para ele a verdade está na coerência nexus veritatum Portanto defende que a organização deve pressupor uma ideia de conexão lógica e ordenada e não apenas uma classificação Christian Wolff nasceu em 1679 na Alemanha Aluno e seguidor de Leibniz foi o fundador do chamado iluminismo alemão Seus pensamentos tiveram grande impacto só sendo suplantados com o surgimento das obras de Immanuel Kant Recebeu influência de Espinosa e Descartes e desenvolveu um método matemático demonstrativo dedutivo para provar suas teses inclusive a existência de Deus Algumas de suas ideias foram contestadas mais tarde por Savigny como vãs abstrações Também implantou a economia e a administração pública como disciplinas regulares das universidades Foi expulso da Universidade de Halle e perdeu a cátedra de matemática acusado de ateísmo porque afirmava que a moral existiria mesmo que não houvesse Deus Com efeito afirmava que a lei moral não dependia do arbítrio divino porque deriva da própria natureza de Deus e das coisas que Ele criou Tinha uma visão muito ampla e abrangente da filosofia e por isso estudou praticamente todos os campos da vida humana e razão pela qual funcionou como conselheiro científico do rei Pedro o Grande da Rússia um governante voltado para as artes e a cultura Voltaria em 1741 para ocupar a função de reitor até sua morte em 1754 Christian Wolff e suas ideias Definia a filosofia como a ciência do possível com uma parte teórica formada pela lógica bem como pela ontologia cosmologia e teologia racional e com uma parte prática que também incluía a lógica e além dela a ética a economia e a política A partir desse pensamento sistematizou o racionalismo moderno inserindoo num sistema rígido e formal baseado na matemática Seu critério de verdade é baseado exclusivamente na coerência entre as ideias não há para ele relação entre o pensamento e o ser Christian Wolff e sua influência no direito Wolff está entre os filósofos que procuraram construir os elementos fundamentais do direito moderno Ele como Grócio Pufendorf Kant Rousseau e Hegel entre outros pretendia edificar um sistema que permitisse compreender racionalmente toda a realidade Com isso queria estabelecer uma metodologia própria da ciência dogmática o que equivale dizer que seria testada e provada a fim de resistir a qualquer contestação No campo do direito internacional cunhou a expressão civitas maxima para expressar a predominância da ordem jurídica de uma société des nations diante de um Estado individual Essa noção seria recuperada por um seu aluno o diplomata suíço Emerich de Vattel em 1758 no livro A lei das nações ou os princípios da lei natural quando consolidou a expressão sociedade de nações Mais tarde Hans Kelsen abordaria a mesma questão defendendo que o direito internacional acaba por pautar as atitudes dos Estados modernos NINGUÉM deve locupletarse com prejuízo de outrem Christian Wolff NA TANGÊNCIA DA FILOSOFIA Adam Smith o liberalismo na economia Seguindo os pressupostos do Iluminismo trabalhou para buscar conhecimentos científicos sobre a natureza do universo que pudessem ser aplicados na melhoria das condições de vida da humanidade Adam Smith e suas circunstâncias Adam Smith pertenceu à escola empirista do iluminismo escocês que se inspirou em Isaac Newton para promover a aplicação do estudo da filosofia no cotidiano das pessoas Entre suas indagações destacavase esta Em que consiste a virtude Na busca dessa resposta Adam Smith pretendia chegar ao certoerrado justoinjusto Afirmava que as indicações morais sobre esses temas são apresentadas a cada indivíduo pelo sentimento imediato e não pela razão Adam Smith filósofo e economista escocês nasceu em 1723 No seu caso estudou as ciências naturais para desenvolver a teoria da total liberdade econômica para que a iniciativa privada se desenvolvesse e prosperasse sem qualquer intervenção do Estado Para chegar a isso era necessário deixar que a livre concorrência regulasse o mercado isso levaria a automática redução nos preços e a inovações tecnológicas para melhorar o sistema produtivo A teoria se contrapunha ao mecanismo mercantilista dos reis absolutistas que intervinham na economia todo o tempo As ideias de Adam Smith foram fundamentais para o desenvolvimento do capitalismo dos séculos XIX e XX Foi estudar filosofia moral na Universidade de Glasgow aos 16 anos onde mais tarde lecionaria Lógica e Filosofia Moral e completou os estudos em Oxford Foi grande amigo de David Hume e de dAlembert Escreveu seu primeiro livro em 1759 Teoria dos sentimentos morais considerado um importante tratado sobre a ética comparável à obra de Kant Mas ficaria conhecido ao publicar A riqueza das nações em 1776 Adam Smith e suas ideias Algumas das afirmações de Adam Smith estavam intimamente relacionadas com a filosofia Por exemplo dizia que a moral não pode estar ligada à religião já que não era Deus quem determinava a vontade dos homens embora fosse Ele quem determinasse a lei natural Afirmava ainda que a vontade dos homens variava conforme as mais diversas motivações interesses e propósitos o que David Hume já chamava egoísmo moral Vêse aqui portanto uma reminiscência do pensamento pessimista de Thomas Hobbes a respeito da condição de beligerância em que o homem se coloca diante dos demais quando em seu estado natural Portanto as virtudes naturais do homem não bastam para manter a convivência pacífica da sociedade Era necessária a intervenção de uma outra virtude esta não natural a justiça Adam Smith e sua influência no direito Mas se a justiça é elaborada por homens que têm motivações interesses e propósitos vinculados ao egoísmo moral como pode ser a justiça uma virtude Hume dera a solução o princípio de humanidade que nos leva a nos impressionar com os sentimentos dos nossos semelhantes Smith levou esse argumento que chamou de simpatia e que já existia nos estoicos mais além Passou a dizer que a moralidade está necessariamente conectada com a sociabilidade ou seja é uma convenção declarada entre os homens em sociedade Com base nesse princípio criou um sistema econômico que levasse ao bemestar de todos os homens eliminando a economia movida pelo interesse individual e respeitando os ideais iluministas de tolerância de liberdade de igualdade e de propriedade A RIQUEZA DE UMA NAÇÃO se mede pela riqueza do povo e não pela riqueza dos príncipes Adam Smith Isaac Newton o liberalismo na ciência O inglês Isaac Newton utilizou os conhecimentos propiciados pela filosofia para entender as conexões ocultas que regem os fenômenos naturais físicos e químicos Foi um dos precursores do Iluminismo movimento sobre o qual Kant diria que era mais do que um sistema filosófico mas uma atitude própria de quem ousa conhecer a si mesmo Isaac Newton e suas circunstâncias Isaac Newton foi um dos precursores do Iluminismo Estudou filosofia dedicandose especialmente a Aristóteles e a Descartes Suas principais obras foram De rerum natura Sobre a natureza das coisas e Principia ou Princípios Matemáticos da Filosofia Natural Essa última que ficou conhecida como Leis de Newton é considerada uma das obras científicas mais importantes da humanidade Entre suas contribuições destacamse a descoberta da lei da gravidade e a formulação da teoria ótica sobre a natureza das cores Isaac Newton nasceu em Londres no ano de 1643 Estudava Direito na Universidade de Cambridge quando em 1665 a peste alastrouse pela Europa matando mais de 70000 pessoas A universidade foi fechada e Isaac Newton voltou para a fazenda da família onde viveram isolados durante dois anos para escapar do contágio Nesse período desenvolveu suas principais teorias na química física ótica e mecânica Uma de suas formulações matemáticas o cálculo infinitesimal chegou a ser simultaneamente realizado por Leibniz sem que se conhecessem Isaac Newton foi amigo e inspirador de muitos filósofos do seu tempo Conhecia profundamente filosofia e teologia Pertenceu à Royal Society e foi eleito presidente em 1703 tendo sido reeleito até morrer em 1727 Foi o primeiro cientista a receber o título de cavalheiro Sir da coroa britânica Isaac Newton e suas ideias Como já visto a base do pensamento iluminista era a contraposição aos hábitos da chamada Idade das Trevas Idade Média autoridade despótica dos governantes e obediência cega às doutrinas da Igreja Por meio da ciência o Iluminismo procurava tirar o cidadão de sua condição de subserviência aos poderosos O trabalho de Isaac Newton em conformidade com a estética iluminista era a aplicação do conhecimento em favor da felicidade da coletividade SE VI MAIS LONGE foi por estar de pé sobre ombros de gigantes Isaac Newton Rousseau e o contrato social A lei de Deus até então a determinante da condição dos homens como queria a corrente filosófica dominante perdia supremacia Intelectuais de várias áreas do conhecimento como John Locke e Isaac Newton pregavam uma atitude libertária do homem em relação às amarras do poder eclesiástico E não apenas isso mas os homens se organizavam para resistir aos desmandos dos soberanos absolutistas Um exemplo marcante foi a chamada revolta do chá que eclodiria na guerra de independência das colônias da Inglaterra na América Como matriz a Inglaterra do rei Jorge III subjugava com mão de ferro suas colônias Para impedir que se desenvolvessem e começassem a ter ideias de emancipação proibiu que comercializassem o chá que plantavam Centralizou todo o comércio na empresa Companhia das Índias Orientais Descontentes sessenta colonos liderados pelo próprio governador de Massachusetts nomeado pelo rei renderam três navios britânicos carregados de chá no porto de Boston O episódio ficou conhecido na história como o Boston Tea Party a Festa do Chá de Boston A coroa britânica vingouse interditando o porto de Boston nomeando novo governador para a colônia de Massachusetts e mandando tropas para vigiar as colônias Os colonos iniciaram então o movimento separatista boicotando produtos ingleses e mais tarde pegando em armas Nada mais queriam do que a liberdade de comerciar com quem quisessem A liberdade era um sopro de esperança sobre o mundo inteiro Paris era sem dúvidas a capital intelectual da época Luís XV como de resto muitos reis absolutistas da Europa vinha tendo o seu poder divino questionado Montesquieu em 1748 já pregava a separação dos poderes no livro O espírito das leis Diderot em 1750 escreveu um manifesto que expunha a fé no progresso contínuo da humanidade obtido principalmente por meio da ciência O trabalho de Diderot afirmava que a religião devia limitarse a orientar o comportamento prático dos fiéis que a tecnologia seria a responsável pela economia do futuro e que política nada mais é do que a arte de eliminar desigualdades sociais Essa última obra inclusive serviu de base ideológica para a Revolução Francesa um movimento que Diderot não testemunharia porque morreu cinco anos antes Isso sem mencionar diversas outras ilustres figuras como DAlembert Condorcet e Voltaire Foi com esses gigantes intelectuais que JeanJacques Rousseau conviveu Rousseau e suas circunstâncias JeanJacques Rousseau celebrizouse principalmente pela teoria do contrato social inspirada no pacto associativo de Thomas Hobbes Mas escreveu sobre religião artes e educação Suas obras inspiraram as principais revoluções libertárias pelo mundo especialmente a Revolução Francesa já que influenciou os seus principais líderes como Robespierre e Voltaire Defendeu a resistência legítima à opressão pela força Apesar de abrir mão de direitos pelo bem da sociedade no contrato social o indivíduo tinha direito de resistir à tirania JeanJacques Rousseau nasceu em Genebra na Suíça em 1712 A mãe morrera no momento do parto e o pai um relojoeiro calvinista morreu quando Rousseau tinha 10 anos Foi levado para uma escola religiosa onde desenvolveu gosto pelos livros e pela música Terminando os estudos mudouse para Paris onde desenvolveria suas teses em contato com grandes nomes da intelectualidade de então como Diderot Escreveu muito sobre política e religião Desagradou aos poderosos de ambas as áreas Hostilizado foi obrigado a refugiarse primeiro na Suíça e depois em Londres para onde foi a convite do amigo David Hume No fim da vida escreveu o livro Confissões uma autobiografia Morreu na França em 1778 Rousseau e suas ideias As coisas são boas por natureza e são boas quando estão em conformidade com a natureza e esse caráter independe das convenções humanas Essa é a base do pensamento de JeanJacques Rousseau que o mundo sintetizou na expressão bom selvagem Com efeito afirmava o autor que o homem é naturalmente bom a sociedade é que o corrompe e degenera Porém disse mais que isso pontificou que o homem nasce livre Esse pensamento era revolucionário para a época já que se pensava que o homem nascera algemado a uma camada social e se tivesse nascido escravo morreria escravo O Iluminismo foi a base filosóficoteórica do liberalismo e Rousseau um de seus mais ilustres representantes Essa nova ideia humanista despertava os homens para a modernidade social de que eles não estavam fadados à condição social que tinham por ocasião do nascimento Graças ao esforço individual e ao relacionamento com o grupo podiam ascender a uma posição de maior destaque social A teoria de Rousseau de certo modo questionava a doutrina religiosa da predestinação divina diminuindo o poder e a ascendência religiosa sobre a vida civil das pessoas o que lhe valeu ferrenha perseguição por parte dos eclesiásticos O pensamento de Rousseau espalhouse de tal modo por toda a Europa do século XVII que foi responsável por praticamente todos os movimentos antiabsolutistas e libertários que varreram o continente e até o mundo no período O principal deles sem a menor sombra de dúvida foi a Revolução Francesa As considerações de Rousseau sobre a pedagogia foram consolidadas no livro Emílio ou da educação e são até hoje inspiração para educadores de todo o mundo Tinha como pressuposto a ideia de que a educação era a maneira de transformar o homem e assim transformar a sociedade Sua teoria mais célebre entretanto é a do contrato social Afirmava que os indivíduos organizados em sociedade concedem alguns direitos ao Estado em troca de proteção e organização numa espécie de pacto social Seu livro O contrato social é quase um diálogo com a obra O Leviatã de Thomas Hobbes Rousseau e sua influência no direito Defendia a libertação do indivíduo para que pudesse exercer a sua atividade criadora e com isso criticava a injustiça e a opressão vivenciadas pela sociedade de seu tempo Defendia a igualdade entre os homens afirmando que todos nasciam igualmente bons E defendia que a educação era a base do desenvolvimento de toda sociedade A Revolução Francesa foi o maior movimento político e social já ocorrido em todo o mundo Encerrou na Europa a sociedade feudal e inaugurou a Idade Moderna No seu livro Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens Rousseau discutiu a desigualdade que se processava a partir da noção exacerbada de propriedade É de um trecho dessa obra que se extrai o seguinte excerto O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que tendo cercado um terreno lembrouse de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditar nele Quantos crimes guerras assassínios misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que arrancando as estacas ou enchendo o fosso tivesse gritado a seus semelhantes Defendeivos de ouvir esse impostor estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém Para Rousseau era fundamental que a lei definisse com toda a clareza o que é público e o que é privado A importância disso é que o Estado que existe para atender as necessidades do povo usaria a propriedade pública para o bem da coletividade compensando assim as propriedades privadas concentradas nas mãos de alguns grupos Somente dessa forma o cidadão conseguiria obter igualdade perante a lei pensava Rousseau Se igualdade implica liberdade para Rousseau uma coisa não é decorrência absoluta da outra O indivíduo só seria livre se seguisse a lei que ele mesmo como membro da sociedade havia criado Afinal se o Estado criou a lei e se o indivíduo é parte do Estado o indivíduo teve responsabilidade na criação e na aprovação da lei Em sentido diametralmente oposto ao que viria afirmar Immanuel Kant dizia Rousseau que o homem que só seguisse os seus próprios instintos ou seja o seu estado de natureza tinha um nível menor de liberdade do que aquele que segue as leis da sociedade Um famoso aforismo seu dizia isto O mais forte não é suficientemente forte se não conseguir transformar a sua força em direito e a obediência em dever Rousseau defendia que o pacto social era uma questão de vontade geral e coletiva de que os homens se associassem para formar a sociedade sob a égide de um poder central governo abaixo do soberano junto com os quais formariam o que o filósofo chamava de corpo político Para o sucesso dessa sociedade o homem devia abrir mão de seus interesses e vontades particulares Mas como a possibilidade de corrupção era ampliada quando em sociedade era necessário existir a figura do legislador cuja função era formular as leis que regem esse corpo político e esclarecer pontos que alguns indivíduos não entendessem A civilização era culpada pensava ele pela degradação moral porque o homem no convívio com outros homens abandonava as suas qualidades naturais Era essa a base da teoria do bom selvagem Entretanto ao contrário do que afirmou Voltaire não era o abandono da civilização que Rousseau pregava mas sim a volta do homem aos valores que possuía antes da civilização Miguel Reale ao comentar o contratualismo afirma que Hobbes era um pessimista por achar que o homem é um ser mau por natureza somente preocupado com os próprios interesses e sem cuidados pelos interesses alheios só se decidiu a viver em sociedade ao perceber que a violência era causadora de maiores danos Diz ele textualmente A sociedade terseia originado da limitação recíproca dos egoísmos Em contraponto a isso comenta Para Rousseau o homem natural é um homem bom que a sociedade corrompeu sendo necessário libertálo do contrato de sujeição e de privilégios para se estabelecer um contrato social legítimo conforme a razão Ao contrato social e histórico leonino Rousseau contrapõe o contrato puro da razão Daí duas obras que se completam Discursos sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens e Do contrato social ou princípios do direito político Na primeira mostra os erros de um contrato tal como foi constituído em que os indivíduos foram vítimas dos mais fortes e dos mais astutos na outra passa a conceber a sociedade do futuro oriunda de um contrato segundo as linhas puras da razão36 O HOMEM NASCE LIVRE e em toda parte é posto a ferros Quem se julga o senhor dos outros não deixa de ser tão escravo quanto eles Jean Jacques Rousseau FrançoisRené de Chateaubriand e o bom selvagem A teoria do bom selvagem de Rousseau encontrou ressonância no pensamento de outro francês o escritor FrançoisRené Auguste de Chateaubriand É considerado o primeiro escritor do movimento romântico da França Quando eclodiu a Revolução Francesa Chateaubriand era oficial da cavalaria real Optou por não lutar ao lado da coroa e exilouse nos Estados Unidos no ano de 1791 Na América conviveu com os índios e dessa experiência tirou a noção do bom selvagem que incluiria em seus livros Em razão das descrições que realizou dos costumes dos índios norteamericanos inspirou os escritores indigenistas brasileiros como Gonçalves Dias e José de Alencar Publicou ao voltar para a Europa o livro Ensaio sobre as revoluções discutindo argumentos racionalistas usados pelos iluministas contra a religião cristã Publicou depois Atala Em 1811 foi eleito para a Academia Francesa Dentre sua vasta produção bibliográfica que abrangia romances novelas poesias inúmeros ensaios e até uma peça de teatro podese dizer que seu livro mais importante é Memórias de alémtúmulo publicado em 1841 Alexis de Tocqueville e a sistematização da democracia Tendo vivido a efervescência da Revolução Francesa de 1789 cujos ideais nortearam a implantação da democracia como sistema de governo no então recémcriado país os Estados Unidos Alexis de Tocqueville elaborou modelos de sistematização daquele novo sistema de governo O que mais o entusiasmou foi o fato de que os Estados Unidos eram ao mesmo tempo uma república e uma confederação uma novidade na época Chamoulhe a atenção também que os costumes costumavam valer mais do que as leis o que evidenciava na sua opinião a soberania do povo Alex de Tocqueville e suas circunstâncias Alexis de Tocqueville passou um ano nos Estados Unidos em 1831 buscando inspiração no modelo seguido pela Constituição norteamericana para sistematizar a democracia como sistema de governo O principal aspecto que lhe chamou a atenção foi o fato de que cada Estado manteve a sua individualidade que representa o sistema federativo O relatório que produziu foi transformado em 1831 naquela que se tornou a sua obra mais importante A democracia na América A segunda parte do livro foi publicada em 1840 Alexis Henri Charles Clérel de Tocqueville nasceu em 1805 mesma data em que Napoleão publicara o Código Civil francês Sua família de aristocratas apoiava o chamado Antigo Regime deposto pela Revolução Francesa de 1789 com o chamado movimento legitimalista liderado pelo rei Carlos X Participou da segunda República francesa tendo ajudado a escrever a segunda Constituição do país Assumiu a função de ministro das Relações Exteriores do governo de Luís Napoleão Durante um ano viveu nos Estados Unidos observando as tradições democráticas locais A partir dessa experiência escreveu A democracia na América um livro que traz um imponente subtítulo Leis e Costumes De certas leis e certos costumes políticos que foram naturalmente sugeridos aos americanos por seu estado social democrático Publicou mais dois livros O Antigo Regime e a Revolução 1856 e Lembranças de 1848 1893 Morreu em 1859 com apenas 54 anos de idade Alexis de Tocqueville e suas ideias Seu trabalho teve importância destacada porque a partir da Constituição norteamericana como referência fez uma análise comparativa com outras democracias A partir da observação do sistema aplicado nos Estados Unidos firmou convicção de que movimentos revolucionários como o que ocorreu na França não eram justos achava que a ideia de igualdade era opressiva porque sufocava a liberdade individual Pregava que a igualdade devia ser ponderada pela justiça para não permitir nem opressão nem egoísmos Sua principal defesa foi a liberdade que fundava o sistema democrático norteamericano contra o regime colonialista inglês praticado até então na América Portanto igualdade e liberdade foram os aspectos principais de sua obra Foi um dos autores mais influentes do liberalismo ocidental ao lado de Adam Smith Joseph Schumpeter e Raymond Aron Alexis de Tocqueville e sua influência no direito No sistema democrático a maioria comanda mas o indivíduo deve ter o direito de recorrer de decisões da maioria que considerar injustas para si O sistema democrático assim fortalecido pela aplicação da justiça levará progressivamente a uma igualdade entre as pessoas cada vez mais aperfeiçoada Não haverá democracia sem igualdade e liberdade A JUSTIÇA constitui o limite do direito de cada povo Alexis de Tocqueville LINHA DO TEMPO A IDADE MODERNA DA FILOSOFIA Ano 1490 Leonardo Da Vinci desenha o esboço do homem perfeito O homem vitruviano Ano 1512 Michelangelo pinta o teto da Capela Sistina Ano 1517 Martinho Lutero inaugura a Reforma Protestante pregando nas portas da Abadia de Wittenberg na Alemanha as 95 Teses Contra o Comércio de Indulgências Ano 1526 Carlos V decreta que o catolicismo é a religião oficial do império germânico Ano 1529 Um grupo de luteranos publica contra a decisão de Carlos V o Protesto de onde vem a denominação protestantismo Ano 1534 o rei inglês Henrique VIII cria a Igreja Anglicana Ano 1536 João Calvino escreve a maior obra da Reforma Protestante As Institutas da Religião Cristã que viriam a ser a Bíblia do capitalismo Ano 1545 O papa Paulo III convoca o Concílio de Trento que elabora o Index Librorum Prohibitorum uma lista de livros proibidos em especial as obras de Lutero e Calvino Foi a chamada contrarreforma Ano 1576 Jean Bodin considerado o principal teórico do absolutismo escreve Os seis livros da República Ano 1595 Felipe I edita as Ordenações Filipinas estabelecendo normas para a distribuição da justiça Essas ordenações teriam repercussão futura sobre o Brasil Ano 1598 O rei Henrique IV da França divulga o Édito de Nantes que trata com tolerância as diferenças religiosas entre cristãos e protestantes Ano 1601 Skakespeare publica Hamlet Ano 1603 As Ordenações Filipinas são revisadas pelo rei Felipe II e formam a base do direito civil brasileiro Ano 1605 Cervantes publica a primeira parte de Dom Quijote de La Mancha Ano 1609 Hugo Grócio considerado o criador do direito internacional publica De Mare Liberum Sobre a liberdade dos mares em que contesta o direito que Inglaterra Espanha e Portugal teriam nessa época 1609 de dominar os mares Ano 1620 Francis Bacon o primeiro empirista inicia a produção de sua obra chamada Instauratio magna scientiarum Ano 1637 René Descartes publica Discurso sobre o método onde tenta provar a existência de Deus e a superioridade da alma sobre o corpo com base na matemática Ano 1640 A Revolução Burguesa que ocorreu na Inglaterra entre os anos de 1640 e 1660 despertou os filósofos para orientar suas meditações e pesquisas para dois elementos que à época passavam a ser fundamentais para a organização social propriedade e liberdade Ano 1651 Thomas Hobbes publica Leviatã Lança a ideia do contrato social Ano 1653 O papa Inocêncio X proíbe o livro Agostinho do bispo Cornelius Jansen As ideias formariam o movimento conhecido como jansenismo que abalaria a religião católica na França e na Bélgica Ano 1653 Blaise Pascal publica O tratado do equilíbrio dos líquidos sobre os efeitos da pressão nos líquidos Pascal foi um defensor ferrenho de Jansen contra a perseguição promovida pelo papa Inocêncio X Ano 1657 Isaac Newton publica suas principais obras Sobre a natureza das coisas e Princípios matemáticos da filosofia natural Ano 1660 Samuel Pufendorf inicia a produção de suas principais obras Elementos do Direito Universal e Do direito natural e das gentes Ano 1670 Baruch Espinosa no livro Tratado teológicopolítico propõe a separação entre filosofia e teologia o que foi o mesmo que pregar a separação entre a Igreja e o Estado Ano 1674 Nicolas Malebranche publica Da busca da verdade discutindo as substâncias reconhecidas por Descartes corpo e alma e afirmando que não há relações entre elas Ano 1676 Gottfried Leibniz define a teoria do cálculo infinitesimal Teve grande importância na associação entre filosofia e matemática Ano 1685 É revogado o Édito de Nantes pelo rei Luís XIV Ano 1689 Jean Domat publica As leis civis na sua ordem natural defendendo que as leis deviam estar fundadas sobre a ética e sobre os princípios religiosos Ano 1690 John Locke escreve Ensaio acerca do entendimento humano descrevendo os contratos que deviam existir entre governantes e governados e da autonomia entre os poderes de Estado ainda hoje considerados pontos básicos da liberdade humana Ano 1709 Publicado postumamente o livro de Jacques Bossuet A política tirada das Santas Escrituras defendendo o absolutismo Ano 1710 George Berkeley publica Tratado sobre os princípios do conhecimento contestando John Locke em relação ao conceito das ideias complexas Ano 1717 Christian Wolff escreve Princípios básicos de toda a ciência matemática Ano 1726 Voltaire é exilado na Inglaterra onde toma conhecimento das ideias liberais e as leva para a França essas ideias seriam fundamentais para a Revolução Francesa No mesmo ano Jonathan Swift publica As viagens de Gulliver Ano 1739 David Hume publica Tratado sobre a natureza humana em que contestava aspectos da filosofia praticada na época Ano 1746 Étienne Bonnot Condillac publica Ensaio sobre a origem do conhecimento do homem sobre o papel da experiência no desenvolvimento das capacidades cognitivas Ano 1748 Montesquieu publica O espírito das leis livro em que defende a divisão dos poderes em executivo legislativo e judiciário Ano 1748 Robert Joseph Pothier publica As Pandectas de Justiniano dispostas em uma nova ordem reorganizando o direito romano Seu trabalho seria fundamental para a elaboração mais tarde do Código Civil francês Ano 1750 Diderot escreveu um manifesto em que expunha a fé no progresso contínuo da humanidade obtido principalmente por meio da ciência Dizia que a religião devia limitarse a orientar o comportamento prático dos fiéis Ano 1750 Rousseau publica o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens Ano 1759 Adam Smith escreve Teoria dos sentimentos morais considerado um importante tratado sobre a ética Ano 1788 Immanuel Kant escreve a obra que foi a sua grande contribuição para o direito Crítica da razão prática Ano 1789 Explode a Revolução Francesa dando início à Idade Contemporânea Ano 1831 Alexis de Tocqueville escreve A democracia na América QUARTA PARTE A SÍNTESEnaFILOSOFIA IMMANUEL KANT O GRANDE FILÓSOFO DO ILUMINISMO Criado numa família luterana Kant questionava a religiosidade exigida pela sua igreja de vida frugal e a obediência total à lei moral Achava que a igreja praticava com relação aos jovens uma espécie de escravidão Kant e suas circunstâncias Immanuel Kant escreveu sua obra fundamental Crítica da razão pura em 1781 para discutir os princípios e limites do entendimento Nesse livro dizia que apenas a razão é insuficiente para realizar a felicidade Em 1788 escreveu Crítica da razão prática discutindo a ação moral do indivíduo em relação aos outros que foi a sua grande contribuição para o direito A base do seu pensamento é de que a verdadeira ética consiste no cumprimento do dever Immanuel Kant nasceu de família pobre em 1724 na cidade de Königsberg atual Kaliningrad que à época pertencia à Prússia e que hoje faz parte da Rússia Teve uma vida totalmente regular até metódica Jamais saiu da cidade onde nasceu Ali se doutorou em filosofia em 1755 tornouse professor e mais tarde reitor Nunca se casou Escrevia diariamente em pé em sua casa apoiado a uma espécie de púlpito Teve grande influência de Isaac Newton para escrever sobre as forças cinéticas no livro Pensamentos sobre o verdadeiro valor das forças vivas Escreveu também sobre estética e religião inspirado nos iluministas franceses Morreu em 1804 Kant foi pobre durante quase toda a vida Após a morte do pai um modesto artesão que trabalhava com couro foi ser professor particular para garantir o sustento da mãe e dos dez irmãos Quando concluiu o doutorado e tornouse catedrático de lógica e metafísica da mesma universidade a vida melhorou Na época em que começou a desenvolver sua filosofia a Alemanha já estava imbuída dos ideais liberais e burgueses Christian Wolff havia trazido da França o Iluminismo e por isso mesmo os intelectuais alemães receberam as ideias de Kant com reservas e até reprovação A primeira fase de Kant foi marcantemente empirista dogmática e voltada para as ciências naturais Depois de entrar em contato com o pensamento de David Hume modificou e aperfeiçoou muitas de suas ideias Foi proibido pelo rei Frederico Guilherme II da Prússia sucessor do déspota esclarecido Frederico II de escrever sobre temas religiosos depois que publicou A religião nos limites da simples razão um livro antiiluminista em 1793 Só voltou a publicar depois da morte do rei cinco anos depois A Prússia tinha sido chamada até a promulgação da sua Constituição a primeira da Europa de Primeira República da Polônia ou República das Duas Nações porque reunia Polônia e Lituânia Fora possivelmente a primeira federação do mundo Sua principal característica foi a redução gradual dos poderes do soberano dando à nobreza o papel de controlar o poder legislativo Também por isso o sistema político ficou conhecido como a democracia dos nobres A rigor era uma monarquia constitucional parlamentarista na qual o rei funcionava mais como presidente do que como soberano O mote da República dos Dois Povos era este Rex regnat et non gubernat O rei reina mas não governa Com a Constituição a república foi extinta e o país tornouse uma monarquia constitucional um sistema político sobre o qual se basearam muitas das atuais democracias ocidentais Foi um dos primeiros países a seguir o pensamento de Montesquieu ao definir a separação dos poderes executivo legislativo e judiciário A Prússia deixou de existir com a Primeira Guerra Mundial em 1918 quando Polônia e Lituânia recuperaram seu status de países independentes Kant e suas ideias Immanuel Kant obteve com suas obras uma síntese entre o empirismo e o racionalismo duas correntes que se complementavam mas que lutavam em torno de algumas diferenças Kant viria a apresentar soluções aos problemas filosóficos de ambas Defendia a existência de uma lei natural como Rousseau mas descartava o domínio da experiência sobre a razão como queriam os empiristas ou mesmo o contrário conforme pregavam os racionalistas Foi assim que logrou fugir do dilema secular entre essas duas correntes filosóficas embora reconhecesse qualidades em ambas Admitia que o conhecimento começa com a experiência Mas pondera que a percepção só nos permite conhecer o fenômeno que as coisas apresentam Pela experiência dos sentidos apenas não é possível conhecer as coisas em si Portanto não se consegue traçar a universalidade do conhecimento somente por meio da realidade objetiva Uma frase sua em Crítica da Razão Pura sintetiza o que pensa Todo o nosso conhecimento parte dos sentidos vai daí ao entendimento e termina a razão acima da qual não é encontrado em nós nada mais alto para elaborar a matéria da intuição e levála à suprema unidade do pensamento Sua teoria tem portanto caráter alternativo ao empirismo e ao racionalismo e fez parte do idealismo alemão como Hegel mais tarde Kant conciliava realidade e razão sem desprezar a importância da percepção mas esclarecendo que esta nos propicia apenas a representação das coisas não as coisas em si Para organizar as informações propiciadas pela percepção é preciso que o homem aplique a razão mas também certas estruturas de apoio que já existem no espírito humano Essas estruturas são o que chamou de condições a priori a que acresceu as formas da sensibilidade que são o tempo para os objetos internos e o espaço para objetos externos Tais estruturas de pensamento que são universais são formadas pela soma dos conhecimentos adquiridos e complementam a apreensão sensível dos fenômenos Portanto a realidade requer a razão para ser tomada como dado concreto E o uso da razão implica forçosamente outra característica humana que é a capacidade de julgamento ou juízo como ele chamou o processo de avaliação da realidade Chamou a isso de formas do entendimento Somadas as formas de sensibilidade e as formas do entendimento fazem aflorar conceitos puros que sempre existiram na nossa consciência Kant chamou esses conceitos de categorias que afloram por meio da intuição ou da experiência sensível São figuras que já existem em nosso espírito Kant formulou doze categorias como conceitos puros apriorísticos do entendimento São elas unidade pluralidade totalidade realidade negação limitação substância causalidade comunidade possibilidade existência e necessidade Por meio dessas categorias apontou os limites do conhecimento Para Kant portanto a razão é uma estrutura vazia uma forma pura sem conteúdos Em suma uma estrutura apriorística que é universal diferentemente dos conteúdos por ela assimilados oriundos da experiência sempre variável A inovação de sua filosofia está em que ela não se centra na realidade objetiva das coisas como até então se procedia mas na própria razão que apreende tal realidade incorporandoa ao sujeito conhecedor Como exposto acima são três as partes ou formas que compõem a estrutura da razão a forma da sensibilidade a forma do entendimento e a forma da razão propriamente dita A forma da sensibilidade relacionase à percepção que capta os objetos da realidade objetiva sujeitandoos à razão Sua estrutura é composta pelas dimensões apriorísticas do tempo e do espaço A forma do entendimento organiza os conteúdos oriundos da sensibilidade Da organização das percepções resultam os conhecimentos intelectuais ou os conceitos A forma da razão propriamente dita por fim regula e controla a sensibilidade e o conhecimento Organiza os conteúdos empíricos chamados por Kant de categorias O conhecimento racional pode versar sobre objetos e sobre suas próprias leis Quanto aos objetos há dois tipos a natureza objeto da física e a liberdade objeto da filosofia moral ou ética As leis da própria razão são estudadas pela lógica conhecimento puramente formal independente da natureza Para Kant metafísica é a ciência que trata dos princípios puros estabelecidos pela razão previamente a qualquer experiência A metafísica da moral se subdivide em duas partes a primeira se refere à justiça e a segunda à virtude Ambas estudam leis de liberdade Kant diferencia as leis morais das jurídicas pelo âmbito de atuação aquelas são internas ao indivíduo e consubstanciam nele o sentimento da obrigação em relação aos deveres morais os homens são responsáveis perante si mesmos ao passo que estas são a ele externas coagindoo ao seu cumprimento na esfera jurídica os homens são responsáveis perante os demais Na formulação kantiana portanto a moral abrange o direito sendo ambos repositórios de leis fundamentadas na autonomia da vontade Idealmente a lei positiva está sobreposta à lei moral As paixões humanas contudo controladas de maneira imperfeita pela razão fazem com que na prática isso não ocorra Na chamada fase madura fundou o criticismo Assim foi denominado o seu sistema filosófico apresentado principalmente no livro Crítica da razão pura de 1781 Kant explica nesse trabalho por que motivo a razão sozinha é insuficiente para permitir o conhecimento profundo das coisas e para permitir que o homem chegue à felicidade O criticismo baseavase como o próprio nome já indica na crítica Em outras palavras na análise reflexiva de um tema para verificar as condições que o legitimassem Para essa análise propôs como ferramentas diferentes tipos de juízos O juízo analítico a priori é aquele cuja definição está contida no próprio sujeito basta que eu diga a palavra bola para pensar num objeto redondo característica necessária e universal porque todas as bolas são redondas Em outras palavras nos juízos analíticos o predicado não é senão a explicitação do conteúdo do sujeito O juízo sintético por sua vez define o atributo complementar desse sujeito o predicado acrescenta dados sobre o sujeito bola vermelha por exemplo é um juízo que só se pode fazer depois de ver a bola aplicar sobre ela a sensibilidade e verificar que nem todas as bolas são vermelhas por isso o juízo sintético é sempre a posteriori O valor científico e filosófico de um juízo advém de sua universalidade e de sua correspondência com a realidade Os juízos analíticos são sempre universais e verdadeiros mas não acrescentam conhecimentos ao sujeito que conhece Fonte de conhecimento portanto é apenas o juízo sintético o qual para tanto deve ser universal e verdadeiro pelo que não pode depender da experiência ou seja o juízo sintético que resulta em conhecimento é apriorístico Kant dedicouse à demonstração da existência e da validade de juízos sintéticos apriorísticos nas ciências bem como à elucidação da metafísica possível Kant e sua influência no direito É essencial em Kant a questão da liberdade individual Retoma o tema em vários trabalhos quando fala de escolha ou quando fala de moral Em Kant liberdade é agir segundo as próprias leis Para ele a moral pressupõe liberdade de pensamento sempre relacionada com o dever e essa é a grande diferença para o direito que para ele deve considerar o aspecto punitivo A justiça segundo Kant tem como função social e jurídica a eliminação de obstáculos à liberdade individual O ideal de Kant de justiça como liberdade inspirou a teoria do Estado liberal o conceito é de que liberdade é o não impedimento por nossas próprias paixões ou normas particulares liberdade interna ou pela intervenção e arbítrio dos outros liberdade externa Segundo Norberto Bobbio no livro Direito e Estado no pensamento de Kant a teoria da paz perpétua de Kant está baseada em quatro pontos principais Detalhadamente os Estados em suas relações externas encontramse num estado jurídico provisório o estado de natureza é um estado de guerra em consequência tão injusto quanto o estado de natureza entre os indivíduos quando o Estado é injusto guerreiro os indivíduos têm o dever de abandonálo e fundar uma federação na qual não há um Estado chefe mas que funciona como uma associação de iguais regida por um pacto social A filosofia do direito deve a Kant a doutrina do Rechtsstaat37 palavra que pode ser traduzida como Estado legal ou Estado de direitos Referese a um Estado que se apoie em uma Constituição escrita em que o exercício do poder pelos governantes é limitado pelas leis e fiscalizado pelo poder judiciário Segundo Kant não há como um Estado se tornar uma democracia sem ter sido antes um Rechtsstaat E para ele é a Constituição que assegura direitos aos cidadãos e facilita o atingimento da paz perpétua como premissa para a felicidade e prosperidade do povo Para o filósofo a dignidade da pessoa humana constitui um valor intrínseco sem equivalente O homem como ser racional possui dignidade porque não obedece senão às leis que ele próprio estabelece para si Daí a conhecida frase de Kant O homem é um fim em si mesmo Kant não se preocupa com o direito positivo mas com o conceito universal apriorístico do direito fornecido pela razão Para ele a lei universal do direito é a seguinte agir exatamente de modo que o livre uso do arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um segundo uma lei universal Vêse em Kant portanto a ideia bastante vulgarizada na forma do jargão o direito de cada um acaba quando começa o do outro Em verdade em sua formulação filosófica ele aduz que uma sociedade justa é aquela em que cada um tem a liberdade de fazer o que quiser contanto que não interfira na liberdade dos demais Para a garantia desse estado de coisas o direito imbuise de caráter coercitivo Já em Kant portanto a liberdade individual está ligada à coerção propiciada pelo direito ideia que seria depois amplamente desenvolvida entre outros por Hans Kelsen Para Kant a base da legitimidade da norma é o consenso O próprio Estado diz ele é fruto de um consenso Na teoria kantiana a obrigação política vinculase à concepção apriorística de contrato segundo a qual as leis vigentes devem ser obedecidas ainda que injustas ponto em que destoa de Locke que admitia o direito de resistência no caso de leis injustas O Estado existente representa um progresso em direção ao Estado ideal e por isso Kant não admite de forma alguma o direito de resistência A revolta é sempre ilegal nenhuma Constituição pode outorgar ao povo um tal direito Kant é um teórico do liberalismo Seguindo Rousseau recusa o dilema hobbesiano que postulava liberdade sem paz ou paz mediante submissão ao Estado Em verdade compatibiliza no plano teórico liberdade e Estado por meio do conceito de autonomia aduzindo que as leis do soberano são as leis que as pessoas dão a si próprias Em Kant o Estado é um meio necessário para a garantia da liberdade das pessoas A convivência entre estas é possibilitada apenas pela promulgação das leis universais papel desempenhado pelo Estado A finalidade do Estado é promover o bem público isto é a manutenção da juridicidade das relações interpessoais e não conquistas individuais subjetivas como a felicidade e o bemestar O bem público para Kant é precisamente a Constituição legal que garante a cada um sua liberdade por meio da lei A melhor forma de Estado é a República Como acima consignado essa é a forma ideal de Estado porque é uma ideia objetivamente necessária e universalmente válida Seus atributos são apriorísticos e não inferidos de observações empíricas Na República diz Kant a lei manifesta a vontade do povo em geral não a vontade de grupos particulares O princípio da Constituição republicana é a liberdade Vejase que o conceito de autonomia é central na teoria da razão de Kant O filósofo busca compreender as formas de organização que melhor a preservam não apenas no plano individual mas também no espaço público Daí também ter procurado se posicionar pela garantia da liberdade política pondoa a salvo de influências particulares o que poderia ser obtido por meio da tripartição do poder estatal Executivo Legislativo e Judiciário Mas é importante consignar uma vez mais que Kant nega ao povo o direito à revolução Assim as reformas necessárias para se chegar à tripartição haveriam que ser implementadas pelo próprio soberano o qual deveria evitar a todo o custo o despotismo demonstração maior de irracionalidade Kant é partidário da ideia de progresso da humanidade cujo processo seguiria a dialética sendo portanto lento e contraditório Por ser dialético fundamental a preservação da liberdade de opinião e de imprensa para que as diferentes opiniões possam se encontrar alargando o debate público e propiciando maiores condições para tal progresso Kant defende ainda a ideia de confederação dos Estados livres como forma de alcançar a paz internacional Há é verdade certa similitude do pensamento do filósofo com o de Hobbes nesse ponto pois também ele entende que o estado natural dos Estados no plano internacional é a guerra não a paz É pois dever dos Estados pactuar entre si o fim das hostilidades de acordo com a razão estabelecendo a comunidade jurídica internacional Kant fala então em uma Liga das Nações para a Paz algo bastante semelhante com a atual Organização das Nações Unidas Como Kant elege a República como forma ideal de Estado não causa espécie também ter pressuposto que todos os Estados componentes da Liga das Nações adotassem tal forma Kant e o imperativo categórico Imperativo é uma figura filosófica criada por Immanuel Kant e que equivale à noção bíblica de mandamento É o ponto central do seu sistema filosófico para a compreensão do que é moral e do que é ético Tem o traço da universalidade porque é aplicável a todos Mas não se trata de uma lista de normas morais o imperativo categórico é antes de tudo um mecanismo da razão No livro Fundamentos da metafísica dos costumes publicado em 1785 Kant estabeleceu a existência de três modalidades de imperativos Imperativo categórico o indivíduo deve agir de tal modo que sua atitude seja correta a ponto de tornarse uma lei universal Imperativo universal o indivíduo deve agir de acordo com uma atitude que por sua vontade possa tornarse uma lei universal Imperativo prático o indivíduo deve agir de modo a que a humanidade seja o fim de seu objetivo e não apenas o meio Resumidamente o imperativo categórico é a afirmação do dever como fundamento da conduta humana Ser ético segundo Kant é cumprir com o dever e agindo assim cada homem contribuiria para fazer com que a coletividade alcançasse a felicidade Por meio do imperativo categórico o homem seria capaz de viver em paz evitando a guerra O imperativo categórico é em verdade um comando moral que relaciona um deverser estabelecido pela razão e determinados móveis humanos Dizse que é categórico porque as ações por ele definidas são objetivamente necessárias pouco importando sua finalidade A objetividade da necessidade resulta de que o imperativo categórico é válido para todos os seres humanos de modo que o comando moral é uma norma universal Em Kant boa conduta é a que se universaliza pela razão ou em outros termos é aquela racionalmente universalizável Vejase que o imperativo categórico é um enunciado a priori da razão e não o resultado de observação empírica da natureza humana Admirador de Rousseau Kant desenvolveu um sistema liberal de espírito burguês e capitalista dentro do qual incluía a questão da ascensão social Como vimos acima o pensamento de Kant prezava o esforço do homem para evoluir mas sempre dentro de um contexto social regido por leis elaboradas para privilegiar o bem coletivo É esclarecedor o conceito de Kant sobre a liberdade que a classificava em positiva ou negativa No livro Crítica da razão pura define liberdade como a independência do arbítrio humano relativamente aos impulsos sensíveis que o afetam mas vai além afirmando a capacidade do homem de autodeterminação A liberdade é positiva quando o homem faz o que lhe dá vontade de fazer conscientemente com conhecimento das regras e das leis liberdade positiva portanto é autonomia mas tem reciprocidade com o conceito de moral A liberdade entretanto é negativa quando o sujeito não sofre coerção alguma o indivíduo pode ser um mendigo morar embaixo de um viaduto e não se banhar mas ninguém o obriga a nada Em outras palavras em sua acepção negativa liberdade é a ausência de determinações externas ao comportamento O DIREITO É portanto o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de um pode unirse ao arbítrio de outro segundo uma lei universal da liberdade Immanuel Kant DUAS COISAS ME ENCHEM o ânimo de admiração e respeito o céu estrelado acima de mim e a lei moral que está em mim Immanuel Kant JOHANN GOTTLIEB FICHTE E O ESTADO FORTE Fichte foi discípulo de Kant que o incentivou a publicar seu primeiro livro No entanto contrariando as ideias de liberdade e de direito do mestre defendia para o Estado um papel de polícia e de força Rejeitava também a ideia da separação dos três poderes para ele o governo devia administrar a nação e também cuidar da distribuição da justiça como forma de garantirse como Estado forte Entendia que o Estado tendo a obrigação de realizar os princípios do direito ficava obrigado a esses mesmos princípios que limitavam a sua atuação De certa maneira um conceito que se aproximava do Rechtsstaat de Kant e depois de Hegel apesar de não concordar com a separação dos poderes Fichte e suas circunstâncias Johann G Fichte destoou do pensamento libertário de Kant e ao contrário deste defendia para o Estado um papel de polícia Embora suas ideias autoritárias estivessem na contramão da doutrina liberal Fichte acabou por se tornar popular porque pregava a necessidade do nacionalismo alemão Johann Gottlieb Fichte de família humilde nasceu em 1756 Estudou teologia na Universidade de Jena Nunca terminou os estudos Para ajudar os nove irmãos passou a atuar como preceptor de filhos de aristocratas aos 28 anos Por essa época leu as obras de Kant fato que teria mudado sua concepção da filosofia Aprofundouse no estudo da estrutura da razão O sucesso do seu primeiro livro Fundamento do direito natural rendeulhe convite para lecionar na Universidade de Jena Ficou famoso como escritor e conferencista Fichte e suas ideias Argumentava que havendo lei bastava que os governantes as cumprissem mas previa a existência de um conselho que fiscalizasse o governo Também afirmava que há assuntos sobre os quais o Estado não tem o menor direito de intervir Um deles é o domicílio outro a propriedade intelectual Seu trabalho Discursos à nação alemã publicado entre 1807 e 1808 defendendo o nacionalismo numa época em que a Europa estava sob o domínio do império de Napoleão influenciou os filósofos que o seguiram como Hegel e Schelling O movimento nacionalista alemão defendia a preservação de valores linguísticos e culturais de uma nação contra a interferência de outros países O nacionalismo tinha a sua vertente econômica que era a condenação do domínio da nobreza feudal e apoio à nascente burguesia industrial Mas continha também uma vertente religiosa porque desaprovava o cristianismo que se mancomunava com os nobres do feudalismo enquanto os protestantes orientavamse para a modernidade do mercado capitalista Fichte e sua influência no direito Para Fichte sociedade não se confunde com Estado A primeira é regida por leis gerais de direito privado além de uma relação moral que envolve direitos e deveres recíprocos O segundo pelo contrato social Essa distinção faz pressupor o direito coletivo de insubordinação e de insurreição que pode levar a que o contrato social seja revogado por qualquer uma das partes Em outras palavras o vínculo social não é político em sua essência Por isso mesmo Fichte defende que o Estado precisa impor o Direito para garantir a liberdade pessoal e civil E por meio da educação fazer com que os indivíduos sigam na direção da sociedade perfeita que em última análise acabará prescindindo do próprio governo A VONTADE HUMANA É LIVRE e a felicidade não é o fim do nosso ser mas a dignidade de ser feliz Johann Gottlieb Fichte SCHELLING E A NATUREZA AUTÔNOMA Friedrich Schelling estudou já aos 16 anos no seminário protestante de Tübingen o que pode ajudar a explicar sua noção teísta do mundo de que as coisas existem porque foram pensadas por Deus Schelling e suas circunstâncias Friedrich Schelling foi inicialmente seguidor de Hegel e mais tarde seu opositor Sua filosofia buscava a descoberta de um princípio único para o universo Para ele o início do mundo é a intuição intelectual que chamava de razão absoluta Com isso discordava de Hegel que considerava que o princípio era o vazio Friedrich Schelling foi um dos principais idealistas alemães ao lado de Fichte e Hegel Sua filosofia influenciou a literatura do seu país principalmente de autores que iniciaram o movimento romântico como o poeta Hölderlin os irmãos August Wilhelm e Friedrich Schlegel Ludwig Tieck e Georg Philipp Friedrich von Hardenberg que ficou conhecido pelo pseudônimo Novalis e foi o criador da flor azul principal símbolo do romantismo alemão Talvez influenciado por essa grande proximidade com escritores e poetas desenvolveu o conceito de que é por meio da atividade artística que o homem consegue apreender o mundo Conviveu também no ambiente universitário em Tübingen Munique Würzburg Jena e Leipzig com expoentes da intelectualidade da época como Goethe Fichte e Hegel Foi aluno e depois assistente de Fichte sucedendoo na Universidade de Jena Mais tarde sucedeu Hegel na cátedra de Filosofia da Universidade de Berlim e passou a combater suas ideias Schelling e suas ideias Como a maioria dos idealistas voltavase para a natureza Com base nos estudos de cientistas do seu tempo considerava a natureza um conjunto vivo e autônomo bastante em si mesma com capacidade para se renovar e para criar Questionava em suas obras a afirmação de que o homem só adquiria conhecimento por meio de suas experiências reais Para ele o conhecimento era algo infinito e quando instalado na consciência do homem ganhava substância A aquisição do conhecimento dependia do nível de liberdade consciente do homem É considerado o precursor do existencialismo corrente filosófica fundada na liberdade e responsabilidade do ser humano como mestre de seus próprios atos e de seu próprio destino FILOSOFAR sobre a natureza significa produzir a natureza Friedrich Schelling HEGEL E A SÍNTESE DOS OPOSTOS Filho de funcionário público na região então chamada Prússia Georg Hegel viu a queda prussiana diante de Napoleão Não se incomodou com isso achava o governo corrupto e antiquado Antes disso tinha visto a Revolução Francesa e aos poucos construiu uma opinião sobre os efeitos da revolta popular que mudou a França e o mundo A partir de suas meditações sobre o tema passou a considerar a história como uma manifestação progressiva da razão Seguindo a mesma linha de pensamento de Aristóteles que já na Antiguidade dizia que o homem é um ser perfectível Georg Hegel afirmava que o homem está fadado ao progresso Esse filósofo alemão que foi um dos mais influentes do século XIX alegava que o mundo é um todo sistemático regido pela fé Na busca do sentido da vida o homem atravessa os séculos sempre em situação de avanço e se realiza na história Costumava dizer que a história é o tribunal do mundo Em suas palavras A história é o desenvolvimento do espírito universal no tempo Esse é em resumo simplificado o arcabouço lógico do sistema filosófico que criou e registrou no livro Ciência da lógica publicado entre 1812 e 1816 O pensamento de Hegel tinha dois pressupostos principais necessidade e possibilidade Onde há possibilidade há opção portanto há liberdade Onde há necessidade ou seja a predestinação o homem é apenas um escravo de forças da natureza Hegel concebeu a verdade como resultado de uma lógica baseada em três aspectos afirmação negação e identidade O primeiro é a evidência que indica o que uma coisa é o segundo são as evidências que indicam o que aquela mesma coisa não é o terceiro aspecto é a compreensão de que aquilo é uma coisa e ao mesmo tempo não é esta coisa Em outras palavras a lógica tradicional pautada nos princípios da identidade e da contradição afirmava que o ser é idêntico a si mesmo excluindo o seu oposto Já a lógica de Hegel no mesmo sentido do princípio de movimento já defendido por Leibniz afirmava que o ser é essencialmente mudança ou seja retoma o conceito de devir eterno proposto por Heráclito em que os elementos se encontram em constante passagem de seu ser para o seu oposto Hegel pensava que todo conceito é formulado racionalmente opondose uma abstração a outra e ao final atingindose a unidade do conceito ou conclusão exatamente pela oposição É o que se chamou d e método dialético que foi inaugurado por Platão em uma espécie de evolução do método da maiêutica utilizado por Sócrates e seria agora aperfeiçoado por Hegel Em breves palavras tal método trabalha com a existência de uma tese sua antítese e a síntese Essa última por sua vez estabelece uma nova tese que novamente deveria ser contestada por outra antítese e coroada por nova síntese num processo interminável Esse método seria utilizado mais tarde por Karl Marx na concepção do materialismo histórico também por JeanPaul Sartre na concepção do existencialismo e por muitos outros filósofos do século XX A dialética de Hegel procura explicar o caráter dinâmico do mundo dos homens Fenômenos culturais e históricos careciam de uma explicação científica desde os clássicos Ele parte de um postulado ontológico segundo o qual o ser somente se afirma pela contradição ao seu oposto contradição cujo resultado é a vitória com a sujeição do outro Hegel retira assim a capa de harmonia da natureza da realidade Para ele a realidade é essencialmente conflituosa Sob os influxos da teologia cristã o filósofo incorpora ao seu método três categorias que não se excluem antes se complementam em uma dinâmica irrefreável Importante ressaltar que a filosofia de Hegel foi o último grande ensaio de explicação global do mundo e do homem de que se tem notícia no Ocidente tendo gerado forte impacto tanto na Europa como na América impacto que se faz sentir ainda na atualidade38 A forma prolixa que emprega em seus escritos a vastidão e a profundidade de sua obra provocaram desde logo certo temor nos que o sucederam no que toca à formulação de interpretações pessoais Exemplificando o método dialético Maquiavel defendia a tese de que o rei devia ter todos os poderes e reinar com absolutismo Depois dele os renascentistas lutaram pela limitação dos poderes do soberano Era a antítese de certo modo já pressuposta na afirmação original Adiante no tempo histórico viria Hume com uma síntese das duas ideias até com certa moderação propondo a resistência a eventual tirania e o contrato social Hegel e suas circunstâncias Georg Hegel foi um dos filósofos mais influentes do século XIX graças ao modelo racional de análise da realidade que desenvolveu Seu sistema filosófico baseado no método dialético é considerado o último já concebido e teve grande repercussão em trabalhos de autores como Goethe Rousseau e até em Karl Marx Era grande admirador de Espinosa e Kant Contribuiu de forma significativa para a evolução do direito com sua obra Elementos de filosofia do direito em 1821 Georg Wilhelm Friedrich Hegel nasceu em Stuttgart na Alemanha em 1770 Era filho de um funcionário público Estudou teologia e filosofia no seminário protestante em Tübingen ainda hoje um dos centros universitários mais importantes da Alemanha onde estudaram por exemplo Goethe e Schelling esse último seu amigo de toda vida Depois de formado mudouse para Berna na Suíça Viveu em um tempo repleto de transformações Quando contava 19 anos irrompeu a Revolução Francesa apoiada nos ideais do Iluminismo Os Estados Unidos tinham poucos anos antes vencido a guerra de independência contra a Inglaterra Pouco mais tarde a Revolução Industrial alterava definitivamente os estratos sociais do mundo ocidental Foi um entusiasta da Revolução Francesa e um admirador da filosofia de Kant Escreveu A fenomenologia do espírito considerada uma das mais importantes obras da história da filosofia Hegel lecionou em várias universidades até estabelecerse em Frankfurt de onde teve que fugir quando Napoleão invadiu a cidade Foi nomeado reitor da Universidade de Berlim em 1830 Morreria um ano depois de cólera Hegel e suas ideias Já no prefácio de seus Princípios da filosofia do direito Hegel critica o conhecimento baseado do senso comum obtido por meio da atitude do sentimento ingênuo que se limita à verdade publicamente reconhecida Faltava a esse conhecimento um sólido critério de validade eis que há no mundo diversidade de opiniões e interesses Renegava assim a ciência fundada no sentimento imediato e na imaginação contingente tão comum em seu tempo segundo aponta de modo a propiciar que cada um tivesse a sua filosofia abandonando o mundo à contingência subjetiva da opinião e da arbitrariedade Se a maneira de pensar mudasse com o passar do tempo seria impossível atingir uma verdade universal filosofava Hegel Por isso propôs critérios que estabelecessem um modo histórico de reflexão Fundamenta na história ou seja no contexto sociológico a racionalidade de cada ideia Isso porque segundo ele o contexto histórico define os valores do homem e da sociedade e esses valores por sua vez condicionam a verdade universal daquele tempo Para chegar ao sistema filosófico que criou passou por várias áreas do conhecimento como a psicologia a estética a religião e o direito Conforme já mencionado Hegel defendia que o homem está em constante evolução Portanto cada alteração da maneira de pensar na sequência histórica eleva a humanidade a um patamar mais avançado na direção do autoconhecimento Essa fé na humanidade que Hegel chamava de espírito do mundo era típica da corrente de pensamento conhecida como idealismo que encontrou grande acolhida entre os românticos alemães O sistema dialético de análise da realidade de Hegel está fundado sobre três elementos como ele explica em Enciclopédia das ciências filosóficas os momentos do Ser da Natureza e do Espírito O Ser se refere ao conjunto dos elementos lógicos de toda realidade A ideia é algo concreto o princípio inteligível da realidade que existe na consciência sujeito ao processo dialético da tese antítese e síntese A Natureza é a manifestação do Ser no mundo fenomênico É a forma pela qual a ideia se exterioriza no espaço e no tempo realizase ganhando concretude e tangibilidade O Espírito é afinal a síntese entre a ideia inicial e a sua natureza que ganha substância É a consciência da realidade Deus é o espírito absoluto daí por que o sistema filosófico de Hegel é baseado na fé O homem é o espírito finito ou espírito subjetivo e a sociedade é o espírito objetivo A natureza por sua vez é finita mas não é espírito porque faz parte das relações externas ao homem O Espírito encontrase pois numa posição elevada em relação ao Ser e à Natureza Representa a ascensão histórica do humano ao divino O método dialético hegeliano tem por objetivo apreender o concreto e o universal não o individual e o abstrato Daí que na apreensão concreta do real busque a unidade entre o ser e o pensamento Trata se em verdade de um processo dinâmico que se repete sem cessar no qual aquilo que é se contrapõe à sua expressão exterior alcançando com isso uma nova forma de ser superior à que era antes Justamente nesse ponto Hegel critica Kant que segundo ele se contenta em converter uma máxima pessoal de vida em lei universal tornandoa um imperativo categórico o que permite justificar tanto o bem como o mal Para se evitar esse equívoco devese recorrer ao contexto humano concreto ao homem situado na História com suas sucessivas contradições numa cadeia ininterrupta de superações Hegel aplicou esse método de forma sistemática a todos os objetos de estudo independentemente de sua natureza mesmo quando disso resultava certo artificialismo como se o real tivesse que se adaptar a seu esquema teórico e não o contrário39 Para ele a própria vida é dialética e assim outro não pode ser o modo do pensamento senão o baseado no conflito e na integração dos opostos Assim mesmo os três elementos de sua teoria o Ser a Natureza e o Espírito são compostos por uma estrutura triádica Há o Ser por si o Ser para si ou essência e o Ser que exteriorizado retorna a si ao qual Hegel denominou de conceito Do mesmo modo há a Natureza por si conjunto das leis físicas a Natureza para si conjunto de forças físicoquímicas e a Natureza em si e para si o organismo vivo Por fim há o Espírito por si o espírito subjetivo o indivíduo o Espírito para si o espírito objetivo a cultura e o Espírito absoluto Hegel e sua influência no direito Os indivíduos estão organizados em sua base na família depois na sociedade civil e no ápice da pirâmide o Estado O Estado é o nível máximo da vida social esta essencial para que o homem se desenvolva O Estado para ser adequado tem que ser único dotado de autoridade e atuar pelo bem de toda a coletividade Para cumprir esse papel o Estado deve produzir leis corretas porque não pode haver liberdade sem lei e os indivíduos devem obedecer às leis porque não pode haver liberdade sem obediência à lei A Filosofia do Direito de Hegel sugere leis universais que todas as pessoas devem seguir não importando que razões possam ter para obedecêlas Hegel reconhece a abstração inerente ao direito Enxergao como apenas uma possibilidade diante do conteúdo da ação concreta e das relações morais e éticas Nesse sentido o mandamento jurídico é apenas uma permissão ou uma autorização Vejase que aqui temos o âmbito a que se restringirá posteriormente o positivismo jurídico com sua análise eminentemente lógica do ordenamento desvinculada por imposição metodológica dos influxos sociais e econômicos A proposta de Hegel em Princípios da filosofia do direito é demonstrar uma concepção do Estado como algo racional em si A missão da filosofia para ele está em conceber o que é pois o que é é a razão Reconhece a limitação temporal de toda filosofia como também se dá com o indivíduo que não pode se colocar fora de sua própria vida Desconsiderar esse aspecto implica segundo ele emitir mera opinião elemento inconsciente sempre pronto a adaptarse a qualquer forma Seu projeto é pois delimitar objetos e conceitos dados pela razão mas apartados da subjetividade individual A razão existe por si só A unidade abstrata de forma e conteúdo possui também um sentido concreto a forma é a razão como conhecimento conceitual o conteúdo é a razão como essência substancial da realidade moral e também natural A identidade consciente de conteúdo e forma é a ideia filosófica O objeto da ciência filosófica do direito é para Hegel a ideia do direito ou seja o conceito do direito e a sua realização Não o conceito em sentido estrito que não é objeto da filosofia mas o conceito em sua realização da realidade historicamente inserido Nesse sentido para o filósofo a ciência do direito está inserida na filosofia Seu objeto de estudo encontrase fora da própria ciência do direito sua dedução é suposta e deverá ser aceita como um dado Hegel passa então a definir o conceito de direito positivo a será positivo pelo caráter formal de ser válido em um Estado aqui a forma b quanto ao conteúdo o direito será positivo b1 pelo caráter nacional particular de um povo o nível de seu desenvolvimento histórico e as condições correspondentes às suas necessidades culturais b2 por ser genérico e abstrato como todo sistema de leis aplicável portanto à natureza particular dos objetos e das causas b3 pelas últimas disposições necessárias para decidir na realidade Pelos critérios expostos Hegel reconhece que a violência e a tirania podem constituir um elemento do direito positivo o que em verdade é um acidente em nada relacionado com sua natureza No que toca às condições históricas do direito positivo essenciais como visto para a determinação de seu conceito Hegel aponta que foi Montesquieu quem definiu a verdadeira visão histórica a respeito em um tratamento abrangente e preocupado com a relação entre o povo e sua época A investigação histórica conquanto não deixe de representar valor e interesse não constitui objeto da filosofia Levando isso em consideração Hegel critica os que formulam conceitos sem maiores reflexões a partir de regras do direito romano denominando de concepções ou conceitos o que não passava de regra para um dado povo Essa imprecisão não há que ser admitida em sede filosófica Com efeito alerta não se pode confundir a busca da verdadeira legitimação com o que não passa de uma justificação pelas circunstâncias Em suma descabido o esforço de legitimação pela história que coloca em lugar da gênese conceitual a gênese temporal O que deve ficar claro é o fato de as leis positivas terem significado e utilidade de acordo com as circunstâncias é dizer possuem sim um valor histórico e são transitórias Para Hegel o domínio do direito é o espírito em geral Seu ponto de partida está na vontade livre a liberdade constitui a sua substância e o seu destino de sorte que o sistema do direito é em suas palavras o império da liberdade realizada Mas o que é a vontade O que ela contém Hegel aponta três elementos e demonstra que a vontade confundese com o Eu O primeiro é a pura indeterminação ou a pura reflexão do Eu em si mesmo É o puro pensamento de si mesmo a infinitude ilimitada da abstração e da generalidade absolutas É em outras palavras a possibilidade de se abstrair de todas as determinações a própria liberdade do intelecto ou como dizia Hegel a liberdade do vazio O segundo elemento é a passagem da indeterminação indiferenciada à diferenciação à elaboração de uma determinação específica que passa a caracterizar um conteúdo e um objeto É a afirmação de si mesmo como determinado pela qual o Eu entra na existência em geral e se particulariza Esse elemento particular não nega o anterior universal eis que nele se encontra contido O terceiro elemento ressalta Hegel é a vontade como unidade dos dois anteriores é a particularidade refletida sobre si e que assim se ergue ao universal Em suma é a individualidade Mais uma vez como visto temos uma estrutura triádica que perfaz uma conciliação de opostos característica do método dialético hegeliano Vê ele a autodeterminação do Eu a Vontade como o posicionamento do Eu diante de sua negação sem deixar de ser ele mesmo Assim o diz o filósofo O Eu determinase enquanto é relação de negatividade consigo mesmo Tanto assim que esclarece toda consciência se concebe simultaneamente como universal acima de toda e qualquer limitação externamente oponível e como particular provida portanto de um certo objeto de um certo conteúdo de um certo fim Ambas as categorias o universal e o particular todavia são apenas abstrações o que existe de fato ou na linguagem de Hegel o que é concreto e verdadeiro é a integração do particular ao universal isto é a unidade formada por ambos Como já mencionado enfim na filosofia de Hegel o Direito é constituído pelo fato de uma existência em geral ser a existência de uma vontade livre o Direito é a liberdade em geral como Ideia Ao trazer tal definição no 29 de sua Filosofia Hegel formula uma crítica à concepção de direito de Kant a qual afinal se funda na ideia de contrato social de Rousseau com efeito Kant também concebe a liberdade como elemento central do Direito definindoo como a limitação do livrearbítrio próprio a fim de que esteja ele de acordo com o livrearbítrio de cada um segundo uma lei geral A crítica de Hegel está em que a racionalidade numa tal concepção aparece apenas como elemento de limitação constitui uma determinação negativa e não como razão imanente Com efeito para ele o Direito é algo de sagrado precisamente porque é o conceito absoluto da liberdade consciente de si As diferentes formas de Direito assim devemse às diferentes fases por que passou o conceito de liberdade Para Hegel o que é racional é real Isso trouxe problemas ao paradigma do direito natural de acordo com o qual o direito natural engendraria o deverser pois ser e deverser em Hegel são a mesma e única coisa A racionalidade do processo histórico é que explica o real daí a quebra daquele paradigma A evolução da ciência também contribuiu nesse sentido ao demonstrar não ser imutável a natureza O HOMEM NÃO É mais do que a série dos seus atos A necessidade a natureza e a história não são mais do que instrumentos da revelação do Espírito Georg Hegel O DECLÍNIO DO RACIONALISMO O idealismo romântico na Alemanha Como vimos a Alemanha foi berço das principais correntes recentes da filosofia representadas por Kant e Hegel ambos resistentes ao racionalismo Também foi berço do movimento artístico que ficou conhecido como Romantismo estética que tomou conta de todas as artes e geograficamente por toda a Europa e pelas Américas E por que o movimento romântico alemão foi tão importante Porque embora a teoria iluminista fosse bonita especialmente no quesito liberdade a conjuntura alemã do final do século XVIII não permitia a sua aplicação prática A Alemanha era ainda um amontoado de Estados reinos principados ducados e condados sem a coordenação de um governo central forte e ainda sujeita a guerras internas Em muitos pontos da região ainda existia o regime de servidão num feudalismo obsoleto que o exemplo da Revolução Francesa não tinha sido capaz de eliminar A tentativa de Otto von Bismarck de unificação dos Estados numa só Alemanha esbarrou na indisposição de Napoleão III que achava que estaria sendo criado um oponente poderoso demais na Europa a desafiar a sua hegemonia Entretanto as tropas prussianas tinham acabado de vencer a Áustria e estavam tão motivadas que não tiveram maior dificuldade em marchar sobre a França e cercar a cidade de Paris Napoleão III assinou a rendição A vitória prussiana acabou sendo responsável pelo fim do império francês e a consequente proclamação da Terceira República da França em 1871 Esse era o ambiente político da Europa no final do século XVIII A outra questão decorrente dessa situação política dizia respeito à supremacia da razão O racionalismo de caráter pragmático e de aplicabilidade prática servia de instrumento para governos totalitários como fundamentação filosófica Kant em sua Crítica da razão pura criticou o racionalismo exacerbado que podia levar líderes de má intenção a causar guerras e a subjugar pessoas O privilégio que a filosofia kantiana emprestava à liberdade motivou muitos pensadores de sua época a rever o racionalismo e revendoo optar por uma estética de conhecimento mais amena mais humana e mais tolerante A Inglaterra já ensaiava uma literatura romântica em 1793 com William Blake e pouco depois com Edward Young Coleridge e Wordsworth Na França René de Chateaubriand e Victor Hugo iriam na direção romântica por inspiração da Revolução Francesa Mas foi mesmo na Alemanha país das grandes universidades Tübingen Colônia Leipzig Jena Heidelberg Berlim Frankfurt que o idealismo romântico começou a ser definitivamente desenhado num retorno à essência humana da sensibilidade não sufocada pela razão Goethe com o livro O sofrimento do jovem Werther de 1774 dava um passo gigantesco no lançamento dessa corrente Em 1785 Schiller escreveria Ode à alegria que outro romântico alemão Ludwig van Beethoven musicou em 1824 como a famosa Sinfonia n 9 em ré menor contendo em um de seus movimentos uma parte do texto de Schiller O grande mentor do romantismo alemão porém foi Johann Gottfried von Herder um pesquisador da literatura alemã que escreveu entre 1766 e 1767 o livro Fragmentos sobre a literatura alemã moderna clamando os autores germânicos a produzirem uma literatura genuinamente nacional questionava o retorno à estética dos antigos gregos que imperava na Europa NA TANGÊNCIA DA FILOSOFIA Charles Darwin e a evolução das espécies Uma das teorias de maior impacto sobre a questão da natureza e portanto a sua validade como fundamento de várias vertentes da filosofia foi a doutrina do britânico Charles Darwin consolidada em dois livros Origem das espécies 1859 e Origem do homem 1871 Charles Darwin 18091882 pesquisou durante cinco anos espécimes da fauna e da flora nas ilhas Galápagos que ficam a 1000 km de distância do litoral do Equador Tinha 26 anos quando iniciou a expedição a bordo do navio Beagle Reuniu coleções de amostras de rochas plantas e animais fósseis e vivos de todos os lugares por onde passou inclusive no Brasil e as enviou para a Inglaterra Quando voltou estudou cada uma e reuniu suas observações no livro que ia sacudir os conceitos científicos do seu tempo com relação à origem da vida na Terra Foi combatido pela Igreja que considerava que as espécies criadas por Deus eram perfeitas e imutáveis Mas praticamente a totalidade dos cientistas o aplaudiu embora reconhecendo algumas inconsistências em seu trabalho No entanto demoraria cerca de um século para que sua doutrina fosse universalmente aceita Basicamente concluiu que as espécies que sobrevivem são aquelas que conseguem se adaptar às circunstâncias do ambiente Outra conclusão é de que o homem descende diretamente do macaco Suas pesquisas tiveram influência sobre o naturalismo literário movimento que se posicionou contra o Romantismo Mas a importância de Charles Darwin para o presente livro reside principalmente na sua influência sobre as ciências jurídicas A partir das conclusões do darwinismo o direito passou a ser considerado um sistema evolutivo como a ciência da vida O novo modelo legal contrariando o anterior tornavase sistemático a codificação propiciou isso e foi sendo organizado segundo uma lógica dedutiva em que o universal podia ser aplicado ao particular Precursores da teoria da evolução natural Antes de Charles Darwin outros pesquisadores contribuíram grandemente para a história natural entre eles o naturalista Georges Buffon e o biólogo JeanBaptiste de Monet O francês GeorgesLouis Leclerc conde de Buffon 17071788 membro da Academia de Ciências era tão interessado em ciências naturais que o rei Luís XV de França o nomeou intendente do Jardim do Rei em Paris Buffon transformou o jardim em um verdadeiro laboratório da vida e chegou à seguinte conclusão A natureza não precisa de Deus para criar a vida Publicou importantes trabalhos sobre a classificação biológica utilizando a metodologia desenvolvida por Carl Lineus 17071778 e que é usada até hoje Considerase que o naturalista francês JeanBaptiste de Monet que ficou conhecido como o cavalheiro de Lamarck tenha sido o primeiro a usar o termo biologia em 1802 Nascido em 1744 dedicouse a comparar fósseis com animais vivos Seus estudos tiveram grande influência sobre a genética moderna Isso porque afirmava o autor antes mesmo de Darwin que as espécies mudam conforme muda o meio por necessidade de adaptação e que seus novos caracteres eram herdados pelas gerações subsequentes JeanBaptiste também é considerado o idealizador do moderno conceito de museu no sentido de um local patrocinado onde espécies permanecem organizadas sob a guarda de especialistas Morreu em 1829 na mesma época em que Darwin iniciava suas viagens de pesquisa As ideias do cavalheiro de Lamarck só foram contestadas pelos geneticistas da escola russa a partir de 1930 O mais renomado representante da escola russa de genética foi Trofim Lysenko que viveu entre 1898 e 1976 Ficara famoso durante o período da Grande Fome Soviética na década de 1930 propondo técnicas de melhoria da produtividade das lavouras que incluíam entre outras o rodízio de culturas em contradição às técnicas ortodoxas de Mendel o pai da genética O austríaco Gregor Mendel nasceu em 1822 Chegou a ser monge agostiniano mas abandonou a carreira para estudar ciências na Universidade de Viena Ficou célebre entre outras descobertas por uma série de experiências que fez com ervilhas para entender como as características hereditárias são passadas de geração para geração Os resultados foram publicados em 1866 Suas descobertas ajudariam a derrubar a tese dos caracteres adquiridos de Lamarck quase 100 anos depois Oliver Wendell Holmes Jr e o realismo jurídico O realismo jurídico que alguns autores chamam de pragmatismo jurídico alcançou o ápice na obra de Oliver Wendell Holmes Jr que se resume a dois livros The Common Law e The Path of the Law Esse jurista ficou famoso pelas suas sentenças que contrariavam o formalismo Era o que se costuma chamar de pessoa do contra No entanto suas decisões acabavam por se mostrar acertadas Costumava recomendar aos juízes que estudassem economia porque acreditava que as decisões em geral têm como embasamento motivações políticas sociais e principalmente econômicas Para ele a lei e de resto a Constituição precisava ser interpretada de maneira flexível porque achava que as gerações e as demandas se modificavam com o tempo e que o direito não pode estar eternamente atrelado ao passado Oliver Wendell Holmes Jr e suas circunstâncias Oliver Wendell Holmes Jr é considerado o herói americano do Direito Apesar disso foi criticado especialmente pelos católicos por concordar com a noção de darwinismo social em que os fortes sobrevivem e os fracos perecem Atuando como juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos era contrário ao formalismo o que lhe valeu a antonomásia de o grande dissidente Oliver Wendell Holmes Jr nasceu em 1841 Lutou pelo Norte na guerra civil norteamericana tendo chegado ao posto de tenente defendendo o abolicionismo Filho de médico o pai ensinou medicina em Harvard mesmo casado viveu com o pai e à custa dele até os 30 anos Cursou Direito em Harvard universidade onde era tradição familiar estudar Durante o curso realizava encontros festivos em casa com jovens intelectuais da época como Charles Pierce e John Chapman Gray Era um leitor disciplinado Estudou os principais pensadores desde Platão e Aristóteles a Montesquieu Hume Locke Hobbes e os contemporâneos como John Stuart Mill Destacouse na faculdade e foi convidado pelo chefe do Departamento de Direito Charles Eliot a lecionar na mesma escola Aceitou mas queria mesmo era ser juiz da Suprema Corte em Massachusetts o que conseguiu em 1882 por indicação uma vez que não há concurso para juízes nos Estados Unidos Em 1902 Holmes foi elevado a juiz da Suprema Corte em Washington pelo presidente Theodore Roosevelt Exerceu o cargo até 1932 quando pediu aposentadoria Morreu em 1935 apenas três anos depois Oliver Wendell Holmes Jr e suas ideias Esse filósofo pensava que o Direito não é simplesmente o exercício de seguir a lógica da letra da lei mas uma análise das experiências e das condições das partes O juiz que julga apenas de acordo com a lei segundo ele não passa de apenas um prático de alguém que segue receita ou método E mais incisivo ainda dizia no início de um de seus artigos publicado na Harvard Law Review edição de número 457 que há predição da incidência do poder público por meio do auxílio dos tribunais Essas opiniões e algumas de suas sentenças desfavoráveis ao governo levaram o presidente Theodore Roosevelt a decepcionarse com ele Mas como o juiz da Suprema Corte depois de aprovado pelo Senado tem cargo vitalício o presidente nada podia fazer a não ser torcer os bigodes Holmes era um liberal Segundo Clarecen Morris da Escola de Direito da Universidade da Pensilvânia era um aristocrata que não compartilhava das opiniões comerciais da classe média e que acreditava que os tribunais não deviam impor ao povo suas teorias econômicas e sociais40 Oliver Wendell Holmes Jr e sua influência no direito Holmes dizia que um homem mau diante do tribunal não se importa com aqueles a quem prejudicou importase apenas em prever o que os tribunais decidirão ou seja nas consequências que sofrerá Holmes faz a comparação para condenar aqueles que praticam a advocacia buscando prever qual será a opinião dos juízes conseguindo assim preparar defesa prévia Essa rejeição à separação entre moralidade e direito está presente em grande parte dos mais de 1000 votos que Holmes prolatou Discordava da ideia de que as pessoas respeitam o direito apenas por temer o que lhes acontecerá se não cumprirem a lei No livro The Common Law Holmes defendeu que julgar não é simplesmente aplicar um precedente porque isso seria permanecer preso ao passado um formalismo jurídico acomodado então em voga nos Estados Unidos No livro The Path of Law Holmes discute a validade do direito se ele se transforma em mecanismo baseado em posturas previsíveis do julgador Segundo ele os julgados de um determinado período representam o conjunto do direito disponível naquele período o que não significa que continuem válidos para outro momento Quem se beneficia da previsão é o fora da lei41 Tem sido pensado que o motivo determinante da punição seja a reabilitação do criminoso isto é o objetivo é de impedir que o criminoso cometa outros crimes e que as pessoas em geral cometam crimes similares e isto é uma retribuição Poucos iriam sustentar que o primeiro destes propósitos é apenas um E se fosse assim todo prisioneiro deveria ser colocado em liberdade assim que ficasse claro que ele jamais voltaria a cometer o mesmo crime e se não há cura nem remédio para o prisioneiro ele nem mesmo deveria ser punido Certamente seria difícil conciliarmos a pena de morte com essa doutrina Oliver Wendell Holmes Jr Jerome Frank e o americanismo O realismo jurídico norteamericano teve outro representante no período que se concentra na década de 1930 quando os Estados Unidos pela via do cinema difundia a sua maneira de enxergar o mundo o American way of life Jerome Frank e suas circunstâncias Jerome Frank desempenhou papel importante no movimento do realismo jurídico Publicou vários livros em que enfatiza as forças psicológicas que atuam sobre as questões legais Jerome New Frank nasceu em Nova York em 1889 Filho de advogado graduouse em Direito pela Universidade de Chicago em 1909 com apenas 20 anos e com as melhores notas da escola Começou a advogar em 1912 e em 1919 já era sócio da firma especializandose em reorganizações corporativas Em 1930 depois de passar por seis meses de terapia publicou A lei e a mente moderna livro que propunha que as decisões judiciais eram motivadas primariamente pela influência de fatores psicológicos sobre julgamento individual Mudouse para Nova York também para advogar e para atuar como pesquisador da Escola de Direito da Universidade de Yale onde conviveu com Karl Llewellyn e Roscoe Pound com esse último teve polêmicas famosas De tendências esquerdistas foi preterido seguidamente para alguns cargos públicos mas sua amizade com William O Douglas lhe valeu um cargo no governo Em 1941 foi levado pelo presidente Roosevelt para a Suprema Corte norte americana onde serviu até morrer em 1957 Jerome Frank e sua influência no direito Foi considerado juiz competente baseando suas decisões em posições liberais sobre questões de liberdade civil Manteve acesos debates sobre preceitos de Common Law Era contrário a qualquer forma de censura de ideias ou imagens e seus pareceres contribuíram para fortalecer as posições da Suprema Corte no mesmo sentido Participou do trio de juízes que julgou o caso do casal Rosemberg Julius e Ethel acusado de espionagem tendo votado pela pena de morte embora se diga que em particular tivesse aconselhado um dos outros juízes a não votar pela pena máxima Em relação ao terceiro réu Morton Sobell engenheiro da General Electric acusado de enviar informações atômicas para a então União Soviética Frank sugeriu à Suprema Corte que não aplicasse a pena de morte para crimes de traição Em 1942 escreveu um livro chamado Se os homens fossem anjos em que defendia os programas d o New Deal do presidente Roosevelt programas que buscavam combater os efeitos da grande depressão econômica Em 1945 publicou Destino e liberdade criticando as posições teóricas do marxismo e negando que as sociedades seguiam qualquer progresso estrito e insistindo em que o povo era livre para moldar o desenvolvimento da própria sociedade Em 1946 ministrou em Yale um curso que enfatizava o papel que a falibilidade humana e o partidarismo desempenhavam nos processos em tribunal Seu trabalho mais importante para efeito de filosofia do direito foi Tribunais em julgamento de 1949 que enfatiza as incertezas e a falibilidade dos processos judiciais Seu último livro Inocente relatando casos de condenações erradas por tribunais foi concluído por sua filha Barbara e publicado depois de sua morte DEBATES EM TORNO DA FILOSOFIA DE KANT Algumas correntes inspiradas na filosofia de Immanuel Kant foram concebidas no período que compreende o final do século XIX e o início do século XX Kant idealista opunhase ao realismo que fundamentava a visão corrente da filosofia O Realismo afirmava que o objeto existe quer o indivíduo tenha conhecimento dele ou não Era basicamente a noção de independência entre a realidade e a consciência oposta ao Idealismo que sustentava que as coisas reais só existem quando são captadas e interiorizadas pelo indivíduo O Realismo na filosofia teve forte repercussão nas artes principalmente na literatura com uma temática que enfatizava o cotidiano das pessoas Esse movimento artístico reagia ao Romantismo buscando a realidade objetiva e rejeitando características românticas como a imaginação e a fuga da realidade Mesmo depois de Kant surgiram filósofos na própria Alemanha e em outros países que ainda apoiavam o Realismo preconizando que embora o fenômeno mental das coisas exista como ideia a priori a coisa em si existe fora da consciência do sujeito São muitos os filósofos que defendiam essas ideias Entretanto tendo em vista que seu pensamento não está diretamente ligado ao tema do presente livro que é a filosofia do direito limitarnosemos a citar alguns poucos apenas a título de registro São eles Friedrich Heinrich Jacobi Rudolf Hermann Lotze Friedrich Ernst Daniel Schleiermacher e Johann Gottfried von Herder Destacamse o dinamarquês Sören Kierkgaard e os alemães Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche Sobre esses últimos falaremos mais detidamente a seguir Sören Kierkgaard um crítico da razão Sören Kierkegaard pesquisou formas de encontrar o homem como indivíduo e não as verdades de uma realidade universal da qual o homem faz parte Nessa busca achava mais importante o subjetivismo do que a objetividade e valorizava a reflexão de cada homem sobre si mesmo Considerava que o homem era dotado de liberdade e responsabilidade e que não era um ser pré definido ao nascer Ao contrário à medida que o homem vive existe adquire novas experiências e a partir delas redefine seu pensamento Chamou a atenção do mundo pela primeira vez com o livro Ou isso ou aquilo de 1843 em que rejeitava uma perspectiva determinada pela sensibilidade Costumava dizer que nada tenho em minha vida que ponho diretamente em jogo cada vez que uma dificuldade aparece Foi grande crítico do racionalismo de Hegel discordando da teoria de que o homem seja resultado do meio em que vive Por isso é considerado um dos primeiros filósofos do Existencialismo movimento que ganharia destaque na França mais tarde com JeanPaul Sartre Dizia que a teoria de Hegel era puramente intelectual e transformava o homem numa coisa pública numa instância coletiva retirando dele o arbítrio a eleição a escolha Afirmava que ao contrário o homem construía o seu saber por meio de atitudes éticas estéticas e religiosas Para Kierkgaard em primeiro lugar estava o indivíduo depois o sistema E o indivíduo como ser único e inigualável evoluiu não por causa da sociedade mas de seus próprios esforços e movido pelas circunstâncias de sua existência Kierkgaard e suas circunstâncias Sören Kierkgaard foi fundador da escola existencialista na filosofia Ficou famoso pela intensidade com que rejeitou as ideias de Hegel Chegou ao exagero de argumentar que a razão não era essencial para a vida do homem mas sim os sentimentos as crenças e a fé Seu pensamento seria retomado por JeanPaul Sartre na França Sören Kierkgaard nasceu em Copenhague em 1813 Vindo de família luterana estudou teologia e filosofia na Universidade de Copenhague Tinha 25 anos de idade quando morreu seu pai e essa perda realçou algumas características que ele já carregava Transformouse num homem melancólico depressivo e solitário Três anos depois concluiu sua tese de doutorado sobre o conceito da ironia em Sócrates na qual questionava essa característica presente no romantismo então em voga Escreveu centenas de textos mas não chegou a reunir sua obra numa só edição porque dizia não acreditar em sistemas filosóficos Usava pseudônimos como Victor Eremita Johannes de Silentio e AntiClimacus Morreu em 1855 em razão de uma queda Considerava a teologia a mãe de todas as ciências mas questionava fortemente as questões da Igreja especialmente no que diz respeito ao determinismo cristão e na crença corrente de que os fiéis deviam ser conduzidos pelos líderes religiosos Defendia um cristianismo baseado na fé e na conversão e não no temor e no castigo Kierkgaard e suas ideias Questionava o pensamento de Descartes que colocava a dúvida como método mas ao mesmo tempo discordava da ideia de que a filosofia poderia reivindicar plena certeza Para ele o individual sobrepunhase ao geral portanto não haveria verdades eternas Dizia Todo conhecer essencial concerne à existência ou apenas o conhecer cuja relação para com a existência é essencial é conhecimento essencial O conhecer que voltado para dentro na reflexão da interioridade não atinge a existência é essencialmente visto conhecimento fortuito essencialmente visto seu grau e abrangência são indiferentes Como se vê defendia o autoconhecimento ao estilo de Sócrates e pregava que o sofrimento é necessário para atingilo Sua filosofia tem forte base religiosa embora tenha combatido a igreja oficial e seus sistemas Acreditava que o homem enfrenta três esferas da existência estética ética e religiosa Seus escritos têm sido estudados atualmente especialmente por pesquisadores da Linguística e da Crítica Literária A MAIORIA DOS HOMENS PERSEGUE o prazer com tanta impetuosidade que passa por ele sem vêlo Sören Kierkegaard Arthur Schopenhauer o pessimista O romantismo gerou uma corrente secundária o irracionalismo também chamado voluntarismo cujo princípio original era oporse ao racionalismo de Hegel Mas essa nova corrente acabou rebelando se ao próprio romantismo alemão Seu representante principal foi Arthur Schopenhauer que defendia que a razão não era o valor absoluto mas sim o instinto e a irrefreável vontade humana Para ele a vontade é a intuição do Eu e pelo vocábulo vontade ele englobava o desejo a esperança o amor o sofrimento e conduz todas as iniciativas humanas inclusive o dispêndio de energia física A vontade levaria inexoravelmente ao sofrimento e à morte Schopenhauer foi possivelmente o maior pessimista da filosofia na afirmação de que as atitudes do homem guiadas pela vontade irracional acabam por leválo ao pecado O pecado na opinião do filósofo é necessário para a purificação e a única forma de limitar a vontade é por meio do saber do conhecimento embora este não consiga suplantar a vontade Esse pensamento influenciaria pouco mais tarde outro filósofo alemão Friedrich Nietzsche Arthur Schopenhauer colocou o foco de suas ideias portanto no existir e não no ser A diferença é essencial porque envolve a vontade de viver uma força que leva o homem à evolução gradual O resultado desse pensamento é um acentuado pessimismo em relação à existência presente Schopenhauer achava que o homem vai sempre melhorar ser mais perfeito do que é hoje Essa ideia seria retomada pelos existencialistas Schopenhauer e suas circunstâncias Arthur Schopenhauer centra a existência humana sobre a vontade Diz que a vontade ou o instinto é cega e que o homem não a consegue dominar Sua obra principal foi O mundo como vontade e representação publicado em 1819 Teve grande influência no pensamento de Sigmund Freud Foi um pessimista Criticou o romantismo da Alemanha de sua época e a filosofia racionalista Propôs uma revisão da filosofia de Kant apresentando um novo sistema que coloca as representações em quatro planos lógico material psíquico e causal Arthur Schopenhauer nasceu em 1788 na cidade alemã de Dantzig que hoje pertence à Polônia com o nome de Gdansk Veio de família rica e estudou em boas escolas como a Universidade de Berlim onde passou a lecionar em 1820 Depois de viver em alguns lugares da Europa fixouse em Frankfurt Ali produziu grande parte de suas obras e alcançou prestígio As mais importantes obras de sua fase madura são as seguintes Sobre a vontade na natureza de 1836 Sobre os dois problemas fundamentais da ética de 1841 e Parerga e parigômena aforismos sobre a sabedoria da vida de 1847 Morreu em 1860 Schopenhauer e suas ideias Arthur Schopenhauer recebeu grande influência do pensamento de Kant embora se afaste dele em muitos momentos Entende que o homem compreende apenas as representações do real e que só por meio da vontade se aproxima da realidade em si A vontade para Schopenhauer é uma tirania natural e o homem só consegue libertarse do seu domínio por meio de três estágios espirituais O primeiro é a contemplação condição estética que só pode ser atingida por alguns poucos espíritos iluminados O segundo estágio é a solidariedade quando o homem atinge uma identificação com o sofrimento e a dor de todos os outros homens é uma afirmação ética O terceiro estágio que só os santos conseguem atingir é o despojamento a completa indiferença em relação ao mundo material QUANTO MAIS ELEVADO é o espírito mais ele sofre Arthur Schopenhauer Friedrich Nietzsche e o poder Admirador confesso de Schopenhauer de quem se considerava sucessor Friedrich Nietzsche analisou profundamente a cultura grega e sua influência sobre o pensamento ocidental ao longo dos séculos Buscou nos clássicos principalmente gregos os elementos de base da sua filosofia Foi ele quem propôs a ideia dos dois elementos básicos da cultura o espírito apolíneo e o espírito dionisíaco o primeiro relacionado com o deus Apolo e seus apanágios que são a harmonia e a razão e o segundo relacionado com o deus Dionísio cujos apanágios são a anarquia a desordem e a alegre irresponsabilidade Nietzsche e suas circunstâncias Friedrich Nietzsche defendia a primazia da vontade como condição humana seguindo as ideias de Arthur Schopenhauer Desenvolveu a teoria do superhomem aquele que escapa da condição de homem comum por meio do controle e submissão dos instintos Não acreditava em vida após a morte e dizia que o único mundo real é este em que vivemos Para ele o mundo repete sempre as mesmas condições e situações que o homem deve entender e superar se puder é a teoria conhecida como Eterno Retorno Friedrich Wilhelm Nietzsche embora originário de uma família luterana nasceu em 1844 na Alemanha rejeitou a fé cristã já na adolescência Mesmo assim estudou teologia na Universidade de Bonn dedicandose também à filologia Nesse período tomou contato com a obra de Arthur Schopenhauer cujas ideias passou a seguir Aos 24 anos já era professor na Universidade da Basileia na Suíça Foi voluntário na guerra francoprussiana de 1870 Testemunhou os horrores e sofrimentos da guerra que ficaram marcados em sua vida e em sua obra Passou a sofrer de crises nervosas que alguns historiadores acham que pode ter sido câncer no cérebro Chegou a ser internado num manicômio em Jena Por conta de todo esse quadro em 1879 foi obrigado a abandonar a cátedra na universidade A partir de 1882 dedicouse a escrever o livro que se transformaria em sua obraprima Assim falou Zaratustra Em 1888 escreveu sua autobiografia intitulada Ecce Hommo como alguém se torna aquilo que é Pouco depois teve uma crise de loucura da qual jamais se recuperaria Morreu no dia 3 de janeiro de 1889 Seu livro foi utilizado como base teórica do nazismo Vários estudiosos defendem que o texto original foi alterado para agradar os adeptos do partido alemão da socialdemocracia Nietzsche e suas ideias Nietzsche era um crítico radical do cristianismo que considerava junto com o budismo a religião da decadência Chegou ao extremo de dizer essa que talvez seja sua mais famosa frase Deus está morto Defendia uma moral cujo objetivo era o poder Por meio desse poder o homem suplantaria o seu condicionamento à vontade à emocionalidade e portanto ao espírito dionisíaco ao contrário do que determinava a Igreja Afirmou que tanto a Igreja quanto os filósofos que defendiam uma moral tradicional preconceituosa porque baseada no ressentimento e na culpa e universal como Kant e Hegel apenas contribuíam para mascarar a dolorosa realidade e assim evitar que o homem alcançasse a visão completa do que é a vida No entanto confessa que apenas alguns homens especiais seriam capazes de atingir tamanha compreensão e superação A esses homens chamou de superhomens aqueles capazes de se despir completamente de preconceitos e ideias prontas e autênticos a ponto de serem capazes até de crueldades para satisfazer a sua vontade de poder Esse despojamento de preconceitos por um lado e de normas por outro lado pode ser considerado libertário e entrava em oposição ao racionalismo que Nietzsche considerava ser uma prisão Costumava dizer numa crítica ao romantismo que o amor é o estado no qual os homens têm mais probabilidades de ver as coisas tal como elas não são Contrariando o pensamento de Locke Hume e Voltaire esse filósofo alemão afirmava junto com Immanuel Kant que ao homem comum não era dado o direito de rebelarse Portanto negava os conceitos de democracia e de socialismo Do mesmo modo negava os governos O que defendia era a anarquia aristocrática em que o poder estaria nas mãos dos superhomens NÓS HOMENS DO CONHECIMENTO não nos conhecemos de nós mesmos somos desconhecidos Friedrich Nietzsche MUNDO NOVO O MATERIALISMO O materialismo Na filosofia o materialismo representa a doutrina filosófica de que tudo o que existe é matéria A matéria é a única realidade a substância de todas as coisas e é gerada ou degenerada em conformidade com leis físicas Sendo assim a matéria está em permanente transformação Consequentemente os materialistas negam a alma a divindade ou qualquer princípio inteligente independente da matéria Também acham que os sentimentos são atributos da matéria Parmênides na Grécia Antiga pode ter sido o primeiro materialista da história da filosofia Para ele os fenômenos deviam ser explicados pela observação da realidade e não por crenças ou mitos religiosos Com essas mesmas teses mas sob formas diferentes o materialismo ressurgiu na Europa no século XVI com Thomas Hobbes Apesar de todo o idealismo de que se revestiu a filosofia depois da Idade Média trazendo o indivíduo para o centro do pensamento filosófico e apesar de todo o idealismo concretizado pela corrente estética do romantismo as ciências haviam entrado numa correnteza de progresso que não permitia ao homem remeterse ao passado como fizeram os renascentistas Ao contrário do romantismo que primava pela exaltação do espírito o desenvolvimento das ciências da natureza ofereceu uma visão mais materialista do mundo Um materialismo que de qualquer modo já existira em Thomas Hobbes mas ganhou adeptos ao longo dos séculos que se seguiram e foi uma corrente de pensamento que conviveu com outras correntes da filosofia Um dos mais importantes seguidores de Hobbes no materialismo filosófico foi Julien Offray de La Mettrie físico e filósofo francês do século XVIII Seu principal livro publicado em 1747 foi O homemmáquina considerado uma das obras mais radicais do Iluminismo francês Nele afirma o autor que o homem é apenas um artefato mecânico que funciona através de processos metabólicos Como médico pretendeu conhecer o ser humano fisiológica e psicologicamente Desenvolveu teorias materialistas para fundamentar sua própria filosofia médica em relação à saúde pública Seus escritos objetivavam pela sátira trazer iluminação intelectual aos médicos de sua época Seu primeiro trabalho filosófico foi A história natural da alma de 1745 uma leitura materialista da obra de John Locke No livro argumenta que a alma humana pode estar completamente identificada com as funções físicas do corpo e que a fisiologia confirma a existência da alma Considerado ateu seus livros foram proibidos e ele foi banido para a Holanda onde permaneceu até morrer em 1751 Outros materialistas importantes foram Denis Diderot o afamado enciclopedista que teve um desempenho importante na Revolução Francesa Etienne Bonnet Paul Heinrich Dietrich von Holbach e Claude Adrien Helvetius Todos eles questionavam o idealismo puro como explicação da realidade mas contrapunhamse às análises áridas e secas dos mecanicistas e também não aceitavam o império da razão A participação alemã na filosofia foi crucial como vimos especialmente pelas propostas de Kant Fichte Schelling e Hegel Mas também da Alemanha veio contribuição do materialismo defendido por Ludwig Feuerbach por exemplo Ele e seus seguidores chegaram ao extremo de negar a existência do espírito Ludwig Feuerbach e o materialismo dialético O materialismo dialético ou científico surgiu na Alemanha do século XIX Derivou do idealismo de Hegel pela interpretação racionalista de Ludwig Feuerbach Feurbach e suas circunstâncias Ludwig Feuerbach foi o criador do materialismo dialético Materialismo porque considerava a natureza como princípio filosófico e dialético porque usava a dialética de Hegel como método uma tese continha em si uma antítese o que fazia chegar à síntese Negava a existência da alma e negava a existência de Deus que considerava ser apenas uma exteriorização do homem Ludwig Andreas Feuerbach foi um filósofo alemão nascido na Baviera em 1804 Estudou nas Universidades de Heidelberg e de Berlim Foi aluno de Hegel Em 1830 publicou Pensamentos sobre a morte e a imortalidade em que rejeita a ideia da imortalidade individual da alma Por causa do livro teve que abandonar a carreira de professor do ensino oficial Mas como a família da mulher era rica pôde dedicarse a escrever durante quase quinze anos sem preocupações financeiras Em 1859 um incêndio destruiu a fábrica da família e ele teve que mudarse para Nuremberg onde viveu modestamente até morrer em 1872 O materialismo dialético de Feuerbach foi instituído como doutrina por Lênin no início do século XX42 Essas ideias foram posteriormente adaptadas por Karl Marx que acrescentou a elas as causas econômicas para a elaboração do materialismo histórico Segundo Marx a história do homem é a da luta entre as diferentes classes sociais determinada pelas relações econômicas de cada época Feuerbach e suas ideias Hegel afirmava que a natureza era a concretização da ideia já Feuerbach afirmava que a natureza era a representação da ideia Portanto para esse autor a natureza matéria é a realidade que cria representações Transportando o raciocínio para a filosofia religiosa concluiu que Deus não passava de uma fantasia da mente uma invenção da Igreja para afastar os fieis da realidade O materialismo científico substitui Deus pela razão ou pelo homem e pregava que o pensamento é apenas um produto do cérebro A intenção de Feuerbach ao criar o materialismo dialético era ter um instrumento que permitisse compreender a realidade e se possível transformála O SER ABSOLUTO o Deus do homem é o próprio ser do homem Ludwig Feuerbach A SITUAÇÃO MATERIAL em que o homem vive é o que o cria Ludwig Feuerbach LINHA DO TEMPO A SÍNTESE NA FILOSOFIA Ano 1781 Immanuel Kant escreve sua obra fundamental Crítica da razão pura para discutir os princípios e limites do entendimento Ano 1791 Promulgação da Constituição da França como resultado da Revolução Francesa Ano 1793 A literatura romântica dá seus primeiros passos na Inglaterra com William Blake Ano 1804 Promulgado por Napoleão Bonaparte o Código Civil francês Ano 1807 Johann Gottlieb Fichte divulga Discursos à nação alemã defendendo o nacionalismo numa época em que a Europa estava sob o domínio do império de Napoleão Ano 1807 Georg Wilhelm Friedrich Hegel publica A fenomenologia do espírito Ano 1809 Friedrich Schelling publica Investigações filosóficas sobre a essência da liberdade humana Ano 1814 Thibaut publica o livro Da necessidade de um direito civil geral para a Alemanha Ano 1814 Savigny publica o livro Da vocação de nosso tempo para a legislação e a jurisprudência declarandose contra a codificação do direito alemão Ano 1815 Merlin Douai publica na França o Repertório de jurisprudência que analisava o Código de Napoleão comparandoo com o antigo direito francês Ano 1819 Arthur Schopenhauer escreve O mundo como vontade e representação Ano 1821 Hegel publica a obra Elementos de filosofia do direito Ano 1822 Friedrich Nietzsche inicia sua obraprima Assim falou Zaratustra Ano 1830 Ludwig Feuerbach o criador do materialismo dialético publica Pensamentos sobre a morte e a imortalidade em que rejeita a ideia da imortalidade individual da alma Ano 1838 Georg Friedrich Puchta publica o Manual das Pandectas em que define a Jurisprudência dos Conceitos Ano 1840 Charles Darwin publica A evolução das espécies Ano 1846 Sören Kierkgaard publica Pósescrito final não científico às migalhas filosóficas Ano 1871 A Prússia vence Napoleão III e determina o fim do império francês e consequente proclamação da Terceira República da França Ano 1884 Rudolf von Ihering cria o conceito da Jurisprudência de Interesses criticando a Jurisprudência dos Conceitos de Puchta Ano 1891 Promulgada a primeira Constituição Republicana do Brasil de espírito liberal Ano 1898 O Japão edita o seu Código Civil Ano 1900 Edição do Código Civil alemão considerado uma evolução do similar francês e que influenciou toda a Europa Ano 1916 Entra em vigor o Código Civil brasileiro que seria substituído somente em 2002 QUINTA PARTE A CRISEdaFILOSOFIA MODERNA A filosofia moderna entrou em crise no século XIX As duas posições dominantes o mecanicismo e o subjetivismo começavam a encontrar opositores de peso Tudo porque a Europa ficou abalada com seguidas guerras no aspecto econômico e social com repercussões na arte e até na religião Iniciava se o império da lógica A França destacouse nesse novo caminho de pensamento com o positivismo fundado por Augusto Comte de que trataremos adiante Nesse período Isaac Newton foi contestado assim como Descartes As pessoas começavam a ter uma nova concepção do universo físico que era uma concepção relativa e consequentemente o universo espiritual também foi colocado em xeque Consequentemente toda a filosofia de Kant seria igualmente contestada UMA IDEIA UNIVERSAL DE JUSTIÇA Todo ideal de justiça depende das conjunturas e das circunstâncias históricas Miguel Reale comenta a crise histórica que se desenrolou ao longo dos séculos XIX e XX ocasionada pelos fatos econômicos e sociais e que pela via do conflito romperam o equilíbrio reinante entre as pautas da justiça e a experiência jurídica Diz ele Podese dizer que desde a eclosão da Primeira Guerra Mundial recrudesceu a atenção de jurisfilósofos e juristas pela problemática da justiça não se podendo afirmar que os incessantes e renovados estudos sobre o grande tema tenha tido a virtude de aplacar as dúvidas imensas que ainda o cercam Penso que pelo menos uma conclusão plausível podemos tirar e de fundamental importância no sentido da inconsistência de qualquer estudo da justiça desvinculado do cenário históricocultural que lhe corresponde Se algo me parece possível afirmar com segurança a esta altura das indagações havidas é o superamento de toda e qualquer doutrina que pretenda oferecernos a um paradigma ideal de justiça de validade universal seja ele concebido à luz da razão ou pretensamente inferido de dados empíricos ou b uma categorização formal de critérios aferidores do que deva ser considerado justo ou injusto c a solução de compreenderse o ordenamento jurídicopositivo com abstração da ideia de justiça43 CAPITAL E TRABALHO O SOCIALISMO Os dicionários definem socialismo como a teoria que defende a posse ou o controle dos meios de produção como o capital e a terra pela comunidade em conjunto sob uma administração que seja orientada para o interesse de todos A primeira versão desse pensamento foi o socialismo utópico surgido no início do século XIX Chamavase utópico em referência ao livro Utopia de Thomas Morus de 1516 porque seus idealizadores imaginavam ser possível eliminar a miséria e reduzir a desigualdade social sem que houvesse conflito entre burgueses e proletários Essas duas classes tinham ascendido em razão da Revolução Industrial e da consequente expansão do capitalismo Principais nomes do socialismo utópico ClaudeHenri de Rouvroy também conhecido como Conde de SaintSimon foi um dos primeiros socialistas utópicos Em 1814 escreveu Da reorganização da sociedade europeia onde lançava a primeira ideia de uma união de países nos moldes em que existe hoje a União Europeia Propunha para acabar com as guerras a criação de um novo regime políticoeconômico baseado no desenvolvimento científico e industrial em que todos os homens tivessem os mesmos interesses e recebessem adequada remuneração pelo seu trabalho Segundo ele a sociedade deveria ser dividida entre os produtores classe trabalhadora capaz de gerar riquezas e os ociosos os capitalistas Esses capitalistas tinham obrigação de assumir responsabilidades sociais para com os trabalhadores SaintSimon é considerado um dos fundadores da Sociologia Participou da Revolução Francesa e sofreu com o subsequente período de terror comandado por Robespierre Defendeu a necessidade do surgimento de uma nova religião que denominou religião da razão Nessa religião utópica os padres seriam substituídos pelos cientistas na condução dos destinos da sociedade Em suas obras SaintSimon afirmava que o progresso da ciência é que determinava as transformações sociais políticas morais e religiosas Augusto Comte o criador do positivismo foi seu secretário durante alguns anos Outro filósofo do socialismo utópico foi Charles Fourier economista que defendia o associativismo e o cooperativismo como formas de organizar as relações econômicas Lançou em 1822 um jornal chamado O Falanstério para defender a ideia de reconstrução da sociedade francesa com base no idealismo de JeanJacques Rousseau Pregava a criação de falanstérios espécie de comunas de produção e moradia cada uma para 1800 pessoas que teriam o tempo dividido entre atividades agrícolas e industriais e atividades de lazer e de aprendizado intelectual Os bens de cada comuna seriam divididos conforme as necessidades de cada membro Do ponto de vista educacional achava que o sistema de ensino devia se adaptar aos talentos e habilidades de cada criança O filósofo mais atuante do socialismo utópico foi o escocês Robert Owen Também defendia o cooperativismo como forma de combater os excessos do capitalismo contra os trabalhadores Criou em 1817 uma empresa para fiação de algodão e implantou um regime de trabalho de dez horas na época as fábricas exigiam dos empregados um expediente de catorze a dezesseis horas diárias Também oferecia assistência escolar à saúde e social aos seus empregados Criou várias comunidades operárias com o conceito de autogestão onde circulavam em vez de dinheiro vales correspondentes ao número de horas trabalhadas Embora tivessem gozado de sucesso por algum tempo essas cooperativas não duraram muito Roberto Owen dedicouse então a organizar associações de trabalhadores matrizes dos atuais sindicatos Em seu livro O novo mundo moral publicado em 1834 usou pela primeira vez a palavra socialismo para designar a sua maneira de pensar O socialismo científico ou socialismo marxista Enquanto os pensadores do socialismo utópico alimentavam a esperança romântica de que os chefes das classes dominantes um dia despertariam para os problemas de miséria e de desigualdade que o capitalismo acarretava e promoveriam então as reformas necessárias para a justiça social os socialistas científicos tinham uma posição mais radical Karl Marx e Friedrich Engels formuladores do socialismo moderno ou socialismo científico viam a revolução como única maneira de o proletariado obter respeito e justiça Analisavam a sociedade capitalista de modo mais crítico e defendiam contra ele ações mais práticas e mais diretas O método dialético aproveitado de Hegel pelos marxistas assevera que não se pode compreender nenhum fenômeno se a sua análise for feita isoladamente de outros fenômenos porque tudo é processo e está em movimento e em transformação Marx não definiu exatamente o que viria depois da sociedade capitalista Mas atreveuse a antecipar que com a elevação do proletariado à condição de classe dominante o Estado iria aos poucos desaparecendo Entre os socialistas não marxistas há os que defendem um socialismo estatal e os que defendem um socialismo corporativo Ambos porém convergem para uma organização da sociedade que garanta aos trabalhadores não apenas os direitos políticos mas também segurança econômica pleno emprego assistência à saúde pelo Estado e redistribuição de renda Friedrich Engels e o materialismo histórico O materialismo histórico estende os princípios do materialismo dialético ao estudo da vida social e ao estudo da história da sociedade A expressão materialismo histórico surgiu em 1877 Foi utilizada por Engels na seguinte afirmação A concepção materialista da história parte da tese de que a produção e junto com ela a troca dos produtos constitui a base de toda a ordem social Esse trecho faz parte do prefácio de sua obra Do socialismo utópico ao socialismo científico A teoria do materialismo histórico passou para a história com o nome de marxismo em homenagem a Karl Marx mas o trabalho de elaboração é de ambos Friedrich Engels e suas circunstâncias Friedrich Engels foi um dos fundadores do socialismo moderno também chamado de socialismo científico cujos princípios delineou inicialmente no livro Esboço de uma crítica da economia política de 1844 Amigo de Karl Marx escreveu com ele o Manifesto Comunista em 1848 e numerosos textos teóricos sobre economia filosofia e política Depois da morte de Marx completou e publicou o segundo e o terceiro volumes de O capital Friedrich Engels nasceu em 1820 na Prússia Alemanha atual numa família burguesa protestante Na juventude integrouse ao grupo Jovens Hegelianos que seguia o conceito dialético de que as mudanças históricas resultam do conflito de ideias opostas que são concluídas numa nova síntese Interpretavam de modo revolucionário a dialética de Hegel porque rejeitavam a doutrina de que o poder devia pertencer ao Estado Nesse grupo conheceu Karl Marx de quem se tornou amigo Ambos romperiam com o grupo em 1844 Rejeitou o cristianismo e tornouse ateu Em 1841 conheceu Moses Hess que o converteu ao comunismo Viveu na Inglaterra ponto central da Revolução Industrial por três anos Lá reuniu material para o livro A situação da classe trabalhadora na Inglaterra publicado em 1845 que exibe o contraste entre a pujança da indústria e a miserável condição dos trabalhadores Passou a escrever sobre as contradições da doutrina da economia liberal e da divisão da sociedade em classes Defendia a revolução social e a eliminação da propriedade privada Fundou com Marx a Liga Comunista em 1847 com a seguinte divisa Trabalhadores de todo o mundo univos Escreveu o livro Princípios do comunismo no mesmo ano e por isso foi indicado ao lado de Marx para elaborar uma declaração política e de princípios do comunismo Essa declaração ficou conhecida como Manifesto do Partido Comunista publicada em 1848 O documento argumenta que o capitalismo transforma em cruas relações mercantis os fetiches morais religiosos e políticos do passado Com a derrota na Revolução de 1848 Engels e Marx foram exilados e jamais puderam voltar à Alemanha Nesse período produziu diversos livros em parceira com Marx sendo o mais importante deles o afamado O capital Friedrich Engels e suas ideias O método dialético construído por Engels e Marx vê a natureza como um conjunto de elementos ligados e reciprocamente dependentes sempre em movimento e sempre em transformação De tal modo nada pode ser entendido isoladamente para considerar um fenômeno específico é necessário estudar o ambiente inteiro Isso porque cada elemento ou fenômeno da natureza traz em sua essência contradições internas com aspectos positivos e negativos AS IDEIAS DOMINANTES de uma época sempre foram as ideias da classe dominante Friedrich Engels Karl Marx e a revolução de classes O socialismo de Karl Marx principalmente em relação à economia mudou definitivamente a face do mundo contemporâneo e continua tendo influência sobre ele O materialismo filosófico idealizado por Ludwig Feuerbach foi a base do pensamento de Marx entre 1844 e 1845 A principal qualidade que Marx enxergava na teoria de Feuerbach era o seu conteúdo contrário às instituições políticas existentes na época e contrário também à religião à teologia e à metafísica Repudiou o idealismo assim como repudiou Hegel Hume e Kant porque achava que faziam concessões reacionárias ao idealismo Pregou e realizou a revolução Feuerbach como já exposto no tópico respectivo influenciado pelo materialismo francês do século XVIII foi o primeiro a debater contra a religião a partir de um viés materialista 1841 A essência do cristianismo A essência de sua crítica voltase contra a alienação religiosa Em Hegel o sentido de alienação é positivo em Feuerbach é negativo quanto mais o homem sublima Deus mais ele se torna miserável Deus se torna uma potência estranha que justifica a condição miserável do homem Essas ideias surtiram enorme influência em Marx como se pode ver em seus Manuscritos econômico filosóficos obra em que formula incisiva crítica à alienação econômica Marx muitos o afirmam substituiu o Deus de Feuerbach pela mercadoria e o ateísmo pelo comunismo Logo todavia o filósofo desencantase do legado de Feuerbach acabando por concluir com Engels que sua crítica à religião não passara de uma simples luta contra frases Marx e Engels então ao amadurecerem seus pensamentos colocamse contra o materialismo feuerbachiano o qual segundo eles limitavase a apreender o mundo como objeto de contemplação ignorando a importância da ação humana Com efeito Feuerbach limita seu materialismo ao homem como ser corpóreo como se sua natureza se esgotasse em seu ser em sua consciência No âmbito social entretanto apontou Marx o filósofo preconizava o mesmo idealismo ingênuo até então em voga Karl Marx e suas circunstâncias Karl Marx foi o idealizador do socialismo moderno Sua doutrina pregava o desenvolvimento e a evolução do homem pela via da tecnologia Socialmente pregou a luta de classes em que os trabalhadores devem oporse à ideologia das classes dominantes sob pena de tornaremse escravos O antagonismo das classes segundo Marx é a chave para entender a história da humanidade Considerava como ideal uma sociedade sem classes Karl Marx nasceu na Prússia em 1818 a região pertence atualmente à Alemanha Originário de família rica protestante cursou as excelentes universidades de Bonn e de Berlim e defendeu tese de doutorado sobre a filosofia de Demócrito e Epicuro Foi nessa época que fez contato com o grupo Jovens Hegelianos para o qual o Estado era o resultado de uma evolução racional e deveria ser celebrado o Estado seria a consubstanciação da razão e pouco depois conheceu Friedrich Engels seu companheiro intelectual de toda a vida Também nessa época interessouse pelo pensamento de Ludwig Feuerbach que criticava a teologia Assim como Engels converteuse ao materialismo e tornouse comunista Foi redator de um jornal revolucionário em Colônia e por causa de seus artigos teve que se exilar na França Em Paris editou uma revista radical e também de lá foi expulso indo viver em Bruxelas na Bélgica Foi ali que junto com Engels filiouse à Liga dos Comunistas Ganharam destaque e como já salientado anteriormente foram chamados a redigir o Manifesto do Partido Comunista publicado em fevereiro de 1848 Foi expulso também da Bélgica mas pôde voltar a Paris e depois à Colônia Julgado em 1849 foi novamente expulso e teve que se exilar em Londres onde viveu miseravelmente sustentado apenas por uma pensão oferecida por Friedrich Engels até morrer em 1883 Não obstante a pobreza produzia intensamente Sobre a crítica da filosofia do direito de Hegel Teses sobre Feuerbach A ideologia alemã esse em coautoria com Engels Miséria da filosofia Manifesto comunista também com Engels O dezoito de Brumário de Luís Bonaparte Sobre a crítica da economia política Esboços de crítica de economia política e O capital Pouco importa para Marx o resultado do pensamento isoladamente Uma de suas teses em A ideologia alemã referese precisamente a isso Os filósofos só interpretaram o mundo de diferentes maneiras do que se trata é de transformálo Podese dizer com isso que a filosofia de Marx e Engels inaugura uma nova filosofia que já não é mais puramente contemplativa mas antes instrumento concreto para a ação dos homens a filosofia da praxis Em Marx é de grande importância o conceito de práxis revolucionária a objetividade da matéria resulta da subjetividade humana e viceversa práxis é essa relação subjetivaobjetiva do mundo relação dialética entre materialidade e subjetividade A ação humana é portanto ao mesmo tempo matéria e ideia A essência humana não é fruto de uma ideia préconcebida mas o resultado do conjunto das relações sociais subjacentes Em outras palavras não é um atributo metafísico não é predeterminada mas sim historicamente determinada O homem é produto das relações sociais as quais por sua vez são também por ele alteradas transformandoo encetando um incessante ciclo de influências O materialismo filosófico de Marx tem como princípio a noção de que o homem é aquilo que as condições materiais o determinam a ser e a pensar o mundo é material objetivo e existe mesmo fora da consciência humana Seu pensamento é chamado de materialismo histórico porque afirmava que a sociedade não nasce do desejo divino ou da ordem natural do universo mas das ações dos homens ao longo do tempo especialmente ações de força Segundo Marx a história determinava o conjunto das relações sociais que compunham a essência humana e o caráter dinâmico da história exigia do homem transformações Essas transformações deveriam darse no ambiente nas relações sociais nos sistemas dominantes etc por meio de revoluções Marx redefine a trajetória da filosofia ocidental ao preconizar novas relações entre ser e consciência o ser do homem é seu processo de vida real Já em A ideologia alemã o filósofo se incumbe da tentativa de reconstruir a história universal da Europa centroocidental por meio da crítica às doutrinas idealistas partindo do pressuposto de que os indivíduos devem ser considerados em seu contexto histórico em sua ação real Tratase de concepção eminentemente materialista A premissa fundamental da obra referida é a seguinte o trabalho é o substrato objetivo de toda a história Com efeito os indivíduos vivos são que por meio do trabalho produzem história produzem seus meios de vida comem vestem moram O trabalho por sua vez assume formas históricas as quais estão intimamente relacionadas com as diversas espécies de propriedade Assim nos primórdios quando a propriedade era predominantemente tribal observavase a organização familiar na execução do trabalho Já na propriedade comunal ou estatal como existiu na Grécia e em Roma observase o predomínio do trabalho escravo A propriedade feudal de seu turno foi acompanhada do trabalho servil Por fim na propriedade privada capitalista a forma de trabalho característica é a assalariada Afirmava o autor que os indivíduos manifestam o que são por meio do que produzem e pela forma com que o fazem Nesse sentido aquilo que os indivíduos são depende das condições materiais de sua produção A produção por sua vez é levada a efeito por meio do trabalho em condições historicamente determinadas como mencionado acima Impróprio dizer portanto que as relações burguesas de produção são naturais ou seja decorram das leis da natureza como se pudessem ser eternas Da mesma forma incabível pensar em um fim da história com o alcance do capitalismo Todos os processos ligados à produção são transitórios e dependem das relações sociais subjacentes como também delas dependem o pensamento e a consciência Karl Marx e suas ideias O maior legado de Karl Marx foi a sua doutrina econômica Nela analisava o capitalismo baseandose em alguns conceitos O primeiro deles é o conceito de valor Dizia que a mercadoria é algo que satisfaz a necessidade de qualquer homem e também pode ser trocada por outra portanto tem valor de uso e valor de troca Outro conceito marxista é que a mercadoria é produto do trabalho A troca de mercadorias leva o homem a criar relações de equivalência entre os mais diferentes gêneros de trabalho o que Marx chamou de divisão social do trabalho O terceiro conceito é a maisvalia A maisvalia conforme já salientado é o lucro obtido com um acréscimo no valor entre a aquisição e a revenda que se transforma no capital que financia a produção A força de trabalho que propicia esse lucro não é compensada pelo capitalista por esse aumento de valor E nisso reside toda a injustiça do sistema capitalista de acordo com a doutrina marxista Entendendo a maisvalia Uma das principais bases do capitalismo é sem dúvida o lucro razão pela qual esse conceito foi profundamente analisado por Marx O lucro não está centrado sobre o valor original da mercadoria porque esse valor só serve para produtos equivalentes Tampouco está centrado sobre o aumento de preços porque o mercado acaba se acomodando e eliminando a diferença Portanto dizia o autor o lucro está centrado sobre a maisvalia isto é o esforço de trabalho extraordinário aplicado visando à ampliação da produção em jornadas mais longas ou à sua melhoria em processos que reduzem o tempo de trabalho necessário A força de trabalho é portanto a única mercadoria que o proletário tem para vender O proletário deve ter liberdade para vender a sua força de trabalho a quem oferecer maior valor de troca E precisa igualmente ter liberdade para vender apenas um volume razoável de horas por dia A diminuição da jornada de trabalho foi por essa razão a primeira grande batalha travada pela classe operária A segunda foi pela melhora da produtividade por meio da cooperação da divisão do trabalho e da introdução de maquinário Karl Marx condenou a sociedade capitalista e defendeu a sua transformação em sociedade socialista pregando o fim da propriedade privada e a socialização do trabalho O proletariado deveria segundo ele conquistar o poder político Previu a valorização do papel da mulher na base econômica da sociedade Foi um pensador essencialmente dialético Entretanto não se trata aqui da mesma dialética proposta por Hegel eis que Marx a tornou histórica o que Hegel não fez Como se sabe a lógica analítica que enfeixa a ideia de estática se baseia em dois princípios i da identidade ii da não contradição Por sua vez a lógica dialética que enfeixa a ideia de movimento e pressupõe a analítica toma por base outros dois princípios diametralmente opostos i da não identidade ii da contradição É essa última composta por três momentos afirmação tese negação antítese e negação da negação síntese E m A ideologia alemã Marx aduz que a ideologia não passa de elucubrações metafísicas falsos estados da mente visão que não corresponde à verdade Já em Contribuição à economia política texto de 1859 concebe as ideologias como formas superestruturais e nesse sentido não são falsas mas a verdade delas depende das circunstâncias e devem ser entendidas dialeticamente Para Marx não existia ciência absoluta mas sim ciência mais verdadeira que seria aquela produzida pelo proletariado por ser a classe menos conservadora com menos interesses na manutenção da ideologia vigente e mais comprometida com a busca da verdade Reconhece portanto haver um horizonte intelectual a ideologia de classes impõe limites à cientificidade A pertença a uma classe diz Marx limita a produção científica Interesses imediatos limitam a ciência e por isso o proletariado que não tinha interesse na manutenção do status quo seria a classe mais apropriada para produzir ciência No que toca à ontogênese da atividade humana Marx afirma que a atividade humana sociometabólica natural corresponde à atividade dos primatas originários Contudo o homem se destacaria das relações naturais em um primeiro momento a partir do instante em que começa a produzir seus instrumentos de trabalho A isso denominou consciência prática linguagens rudimentares Em um segundo momento há a criação de novas necessidades as necessidades propriamente sociais as quais vão progressivamente ocasionando a diferenciação entre o homem e os demais animais A essa associação social corresponde o que Marx denomina de consciência necessária Temse até aqui a humanização dos instintos baseada em uma divisão de trabalho primitiva ainda sexual Por fim surge a consciência gregária na qual subsiste a cooperação social por intermédio do trabalho consciente Para Marx a história humana começa efetivamente a partir da oposição entre trabalho manual e trabalho intelectual criada pela divisão do trabalho o que ocorreu ainda no período Neolítico início do excedente de produção a proporcionar que determinada classe da sociedade deixasse de se dedicar exclusivamente à reprodução material de sua existência A partir de então observase o surgimento de interesses particulares os interesses da casta que consome e não trabalha Tais interesses acabam por dar origem a ideologias que para Marx consistem em fazer passar os interesses da minoria como os da maioria em outras palavras o propósito de universalizar os interesses particulares Vejase portanto que a divisão de trabalho produz e reproduz a oposição entre interesses particulares e coletivos O proletário ao trabalhar coisificase ou seja transformase ele também em mercadoria E é tanto mais pobre quanto mais riqueza produz O próprio Estado deriva da divisão do trabalho e da oposição acima mencionada O Estado na concepção de Marx representa o interesse particular que se quer crer coletivo utilizandose para isso da ideologia e constitui verdadeiro instrumento de dominação Marx não percebe a sociedade como sendo formada por apenas duas classes sociais burguesia e proletariado mas afirma que do ponto de vista da produção objetiva direta são essas as classes existentes no capitalismo Karl Marx e sua influência no direito Para Marx não há como entender o direito independentemente das relações sociais e econômicas A luta de classes portanto é motor para o rompimento das estruturas dominantes entendase por isso o capitalismo e o estabelecimento de redução das desigualdades sociais Marx chamava a base econômica da sociedade de infraestrutura e afirmava que era ela que determina a superestrutura A superestrutura é representada pela ideologia religião moral filosofia e pela política Estado polícia direito As principais superestruturas dos dominadores para Marx são o Direito e o Estado a religião serviria como elemento de alienação do povo a serviço dos poderosos justamente por isso Marx chegou a dizer que a religião é o ópio do povo O Direito serve aos poderosos dizia ele e é contra a opressão burguesa que as classes oprimidas devem executar a revolução O elemento mais valioso da sociedade deve ser o trabalho Por isso deveria ser instaurado o comunismo dos bens em vez da propriedade privada Nem o Estado nem o Direito deveriam intrometer se na vida das pessoas e a burocracia deveria ser eliminada O Direto de acordo com Karl Marx deveria ser a teoria fundamental para equacionar politicamente a sociedade conforme um modelo justo de distribuição de riquezas Em suma a sociedade ideal seria uma sociedade sem classes Há em Marx uma relação entre base material e representações ideológicas consubstanciada no conceito de totalidade estruturada A base material que não é homogênea mas estruturada é constituída segundo o autor pela articulação entre forças produtivas trabalho humano vivo instrumento de trabalho e meios de produção e relações de produção ou formas sociais de intercâmbio relações de propriedade e relação salarial que são aquelas necessárias do ponto de vista histórico à reprodução da vida social como a servidão a propriedade privada dos meios de produção etc O fundamento empírico da história é sua base material É a partir da análise desta que se explicam as formas sociais de consciência e não o contrário Não se deve por exemplo analisar o indivíduo pela ideia que faz de si mesmo Sobre essa base material e dela derivada se ergue todo um conjunto complexo de instituições superestrutura como o Estado o Direito a Filosofia a Religião As classes que se organizam dentro das superestruturas são fundamentalmente conservadoras daí a conhecida frase já mencionada nesta obra a ideia dominante de uma época é a ideia da classe dominante Em Marx o direito aparece como produto do desenvolvimento da base material compondo a superestrutura Nesse ponto Marx diverge profundamente de Hegel para quem o direito tem vida própria sendo fruto da objetivação da vontade do Espírito Para o materialismo histórico portanto o direito não se assenta em si mesmo sua história corresponde à da evolução da propriedade Ele surge da necessidade de organizar o Estado cuja finalidade é assegurar a preponderância do interesse particular sobre o coletivo O direito depende pois fundamentalmente do Estado e este carrega consigo uma contradição a tarefa de fazer o interesse particular parecer coletivo Dessa forma pela primeira vez na história das ideias políticas o Estado deixa de ser tido como representante dos interesses coletivos da sociedade e passa a ser concebido como instrumento de dominação da classe dominante Por ser o Estado a forma encontrada pela classe dominante para dominar as lutas de classe a serem travadas devem necessariamente assumir a forma de lutas políticas visando à conquista do poder Como abstração o Estado não aparece como a síntese do poder social mas antes como um poder alienado fora do alcance dos homens algo superior a eles PARA HEGEL o processo do pensamento que ele mesmo transforma num sujeito autônomo sob o nome de Ideia é o demiurgo do real Para mim inversamente o ideal não é senão o material transposto e traduzido na cabeça do homem Karl Marx HEGEL FAZ NOTAR algures que todos os grandes acontecimentos e personagens históricos ocorrem por assim dizer duas vezes Esqueceuse de acrescentar a primeira vez como tragédia a segunda como farsa Karl Marx Manifesto comunista Tendo em vista sua grande relevância história citase aqui um pequeno excerto do Manifesto Comunista As acusações contra o modo comunista de produção e de apropriação dos produtos materiais têm sido feitas igualmente contra a produção e a apropriação dos produtos do trabalho intelectual Assim como o desaparecimento da propriedade de classe equivale para o burguês ao desaparecimento de toda a produção também o desaparecimento da cultura de classe significa para ele o desaparecimento de toda a cultura A cultura cuja perda o burguês deplora é para a imensa maioria dos homens apenas um adestramento que os transforma em máquinas Mas não discutais conosco enquanto aplicardes à abolição da propriedade burguesa o critério de vossas noções burguesas de liberdade cultura direito etc Vossas próprias ideias decorrem das relações de produção e de propriedade burguesas assim como vosso direito não passa da vontade de vossa classe erigida em lei vontade cujo conteúdo é determinado pelas condições materiais de vossa existência como classe A falsa concepção interesseira que vos leva a erigir em leis eternas da natureza e da razão as relações sociais oriundas do vosso modo transitório de produção e de propriedade relações históricas que surgem e desaparecem no curso da produção a compartilhais com todas as classes dominantes já desaparecidas O que admitis para a propriedade antiga o que admitis para a propriedade feudal já não vos atreveis a admitir para a propriedade burguesa Abolição da família Até os mais radicais ficam indignados diante desse desígnio infame dos comunistas Sobre que fundamento repousa a família atual a família burguesa No capital no ganho individual A família na sua plenitude só existe para a burguesia mas encontra seu complemento na supressão forçada da família para o proletário e na prostituição pública A família burguesa desvanecese naturalmente com o desvanecer de seu complemento e uma e outra desaparecerão com o desaparecimento do capital Acusainos de querer abolir a exploração das crianças por seu próprios pais Confessamos este crime Dizeis também que destruímos os vínculos mais íntimos substituindo a educação doméstica pela educação social E vossa educação não é também determinada pela sociedade pelas condições sociais em que educais vossos filhos pela intervenção direta ou indireta da sociedade do meio de vossas escolas etc Os comunistas não inventaram essa intromissão da sociedade na educação apenas mudam seu caráter e arrancam a educação da influência da classe dominante As declamações burguesas sobre a família e a educação sobre os doces laços que unem a criança aos pais tornamse cada vez mais repugnantes à medida que a grande indústria destrói todos os laços familiares do proletário e transforma as crianças em simples objetos de comércio em simples instrumentos de trabalho Toda a burguesia grita em coro Vós comunistas quereis introduzir a comunidade das mulheres Para o burguês sua mulher nada mais é que um instrumento de produção Ouvindo dizer que os instrumentos de produção serão explorados em comum conclui naturalmente que ocorrerá o mesmo com as mulheres Não imagina que se trata precisamente de arrancar a mulher de seu papel atual de simples instrumento de produção44 Georg Lukács e a totalidade Georg Lukács escreveu em 1920 o livro História e consciência de classe Apontou certa discordância do marxismo no sentido de não considerar o objeto de análise filosófica o capital como a essência do pensamento de Karl Marx mas sim o método Para ele o conceito de totalidade e o domínio universal do todo sobre as partes constituem o método de Hegel aproveitado por Marx e que seria o princípio revolucionário da ciência A filosofia capitalista e burguesa observa a realidade e portanto a sociedade de forma fragmentada Assim vê com naturalidade a estratificação social a existência de dominadores e dominados a liberdade relativa a exploração dos fracos pelos poderosos Já a classe trabalhadora afirmava Lukács justamente por ser objeto da exploração e lidar com a parte mais importante da lógica do capital que é a mercadoria conseguiria ver a realidade de forma não fragmentada até porque para o capitalismo o próprio homem é tratado como mercadoria Por isso somente essa classe na sua luta por ascensão social tem condições concretas de apreender a totalidade O próprio Lukács disse textualmente Não é o predomínio dos motivos econômicos o que diferencia decisivamente o marxismo da ciência burguesa e sim o ponto de vista da totalidade Interessante notar como essa crítica se encontra diretamente ligada com a noção de totalidade porque destaca a quebra de unidade entre a representação da obra de arte e o mundo Defendia uma literatura engajada politicamente Por isso depois de aproximarse do marxismo Lukács renegaria o que escreveu em Teoria do Romance o que não impediu o livro de tornarse um clássico da crítica literária Georg Lukács e suas circunstâncias Georg Lukács foi um dos principais filósofos marxistas Analisou o capitalismo e a burguesia com a tendência de enxergar o mundo de maneira fragmentada Uma análise que transpôs para a literatura como crítico literário importante que foi Nesse campo é famosa sua comparação entre as obras de dois autores da época no livro Kafka ou Thomas Mann em que defende o primeiro Georg Lukács nasceu em Budapeste na Hungria mas teve toda a sua formação intelectual influenciada pela Alemanha onde estudou na Universidade de Berlim e onde conviveu com intelectuais como Max Weber e Ernst Bloch Antes de converterse ao marxismo na maturidade foi neokantiano e hegeliano Depois de duas temporadas na Alemanha voltou para a Hungria em 1915 e integrou um grupo de esquerda que contava entre outros com Béla Bartok e Karl Polanyi Em 1918 depois da Revolução Russa filiouse ao então clandestino Partido Comunista Húngaro e trabalhou para criar a República Soviética da Hungria No entanto a derrota do Império AustroHúngaro na Primeira Guerra Mundial enterrou as pretensões da república que não durou mais que quatro meses de março a agosto de 1919 Lukács teve que fugir para Viena onde foi preso mas escapou da extradição por interferência do escritor Thomas Mann Mudouse para Berlim onde permaneceu até 1933 quando a ascensão do nazismo o levou a exilarse em Moscou onde ficaria até o fim da Segunda Guerra Mundial Em 1956 Lukács participou da refundação do Partido Comunista Húngaro e chegou a ser ministro da nova república Novamente foi exilado dessa vez na Romênia mas voltaria para Budapeste Depois de 1968 após os movimentos revoltosos da Tchecoslováquia e da França tornouse um crítico ferrenho do Partido Comunista Soviético Morreu em 1971 Georg Lukács e sua influência no direito Para Lukács o capitalismo inverteu a própria noção de direito O que era empírico e tradicional virou racional e objetivo mas rígido a ponto de ocultar a sua imobilidade atrás de um aparente dinamismo ou seja o próprio direito coisificouse contribuindo para deixar propositalmente confusas as relações de poder entre as classes O pensamento estético de Lukács teve também grande aplicação na literatura a ponto de ele ser conhecido como um dos mais importantes críticos literários do século XX Nesse sentido é famoso o seu Teoria do romance publicado em 1916 em que faz uma reflexão sobre o romance realista clássico como o gênero literário próprio do capitalismo porque mostrava o distanciamento entre o homem e o mundo QUEM IRÁ nos salvar da cultura ocidental Georg Lukács Antonio Gramsci e a emancipação pela educação Enquanto grande parte dos seguidores de Karl Marx centravam suas teses na economia e na política pregando a tomada de poder pelo proletariado até pelas armas o filósofo italiano Antonio Gramsci afirmava que para ascender ao poder os trabalhadores precisavam primeiro evoluir culturalmente Pregava que o único caminho para isso é uma educação geral e humanista que ofereça ao indivíduo um espírito crítico Gramsci e suas circunstâncias Antonio Gramsci foi um dos fundadores do Partido Comunista Italiano em plena era fascista Passou muito tempo na prisão por defender a tomada de poder pelo proletariado Mas considerava que era necessário antes que os trabalhadores evoluíssem pela educação Foi o criador do conceito de cidadania que para ele devia ser ensinado na escola No Brasil o educador Paulo Freire adotou suas ideias de pedagogia crítica e instrução popular Essa teoria era uma reação à posição de Benito Mussollini ditador da Itália no período que precedeu a Segunda Guerra Mundial de manter dois tipos de ensino no Ministério da Educação chefiado por Giovanni Gentile A chamada Reforma Gentile oferecia para os alunos oriundos de famílias de classes altas o ensino integral com todas as disciplinas já para os alunos de classes economicamente mais baixas apenas disciplinas voltadas para o ensino técnico profissionalizante Mussolini implantou o fascismo na Itália dez anos antes de Hitler chegar ao poder instituindo na Alemanha o nazismo Essas duas correntes de extrema direita se uniriam na Segunda Guerra Mundial para compor o Eixo completado pelo Japão Como chefe de um regime autoritário Mussolini não suportou as provocações do comunista Antonio Gramsci e mandou prendêlo durante oito anos 1926 até o ano de sua morte em 1934 sob a acusação de instigar os trabalhadores a se rebelarem contra o fascismo Antonio Gramsci nasceu na Itália em 1891 Aos 2 anos de idade sofreu de uma doença que o deixaria corcunda e que lhe prejudicou o crescimento Compensou a saúde precária com grande interesse pelos estudos a ponto de aos 21 anos receber uma bolsa de estudos por mérito para a Universidade de Turim Matriculouse no curso de Letras Já no ano seguinte ingressou no Partido Socialista Tornouse jornalista Em 1919 rompeu com o Partido Socialista e aproximouse dos comunistas Visitou a Rússia e ao voltar ajudou a fundar o Partido Comunista Italiano Foi preso em 1926 pela polícia de Mussolini Só seria libertado em 1937 porque estava mal de saúde e precisava de tratamento Morreu numa clínica na cidade de Roma nesse mesmo ano Na prisão escreveu a maior parte de sua obra que foi chamada de Cadernos do cárcere e Cartas do cárcere Gramsci e suas ideias No Brasil o conceito de Gramsci de pedagogia crítica e de instrução popular para elevação moral do povo foi apropriado por Paulo Freire A pedagogia do oprimido de Paulo Freire é dedicada a transformar as oligarquias fortalecendo as classes subjugadas e também educando os opressores No pensamento do pedagogo brasileiro está contemplada a falsa consciência do opressor Paulo Freire considera necessário esclarecer o opressor de que impedir o processo educativo desumaniza tanto o opressor como o oprimido Gramsci considerava que havia dois instrumentos utilizados para efetivar a dominação de um grupo social sobre o restante da sociedade força exercida pela polícia e tropas militares e consenso obtido em geral por meio de táticas pedagógicas Discordou de Karl Marx na medida em que achava que o filósofo alemão idealizava demais o trabalhador intelectualmente Por isso mesmo entendia ser fundamental o estímulo à educação para que o homem comum pudesse desenvolver criticismo e escapar da condição de portador da sabedoria apenas relacionada ao folclore Fascismo no Brasil A Primeira Guerra Mundial deixou sequelas no mundo inteiro especialmente na economia A debilidade do sistema capitalista em decorrência da guerra ocasionaria a quebra da Bolsa de Nova York em 1929 aprofundando uma recessão que atingiu vários países entre eles o Brasil Vários governantes passaram a acreditar que era preciso firmeza e autoridade para superar esses problemas Em decorrência disso é que surgiram movimentos extremistas tais como o fascismo italiano No Brasil os mesmos reflexos puderam ser sentidos O Partido Fascista Brasileiro foi fundado em 1923 em São Paulo pelo italiano Emilio Rochette Em 1930 Getúlio Vargas liderou uma revolução e subiu ao poder com promessas de inspiração fascista Em 1932 o escritor Plínio Salgado criou o partido da Aliança Integralista Brasileira com ideologia anticomunista Por fim em 1937 Getúlio Vargas editou a Constituição que passou a ser conhecida como A Polaca por ter sido influenciada pela Carta autoritária da Polônia que resultou na implantação do chamado Estado Novo Essa Constituição aliás foi redigida pelo ministro da justiça de Getúlio o jurista Francisco Campos que era membro do Partido Fascista Brasileiro O integralismo no Brasil chegou a reunir mais de 500 mil adeptos É preciso dizer que houve simultaneamente no Brasil movimentos antifascistas liderados por outro italiano Antonio Piccarolo Manifesto de Outubro Plínio Salgado jornalista e escritor que se denominava Chefe Nacional do Integralismo redigiu em 1932 o Manifesto de Outubro documento que definia os princípios do fascismo brasileiro sob o lema DeusPátriaFamília Dada a importância histórica de tal documento principalmente no que tange à afirmação dos valores filosóficos que regiam o movimento abrese aqui espaço para que o leitor conheça resumidamente o seu conteúdo Deus dirige o destino dos povos O homem deve praticar sobre a terra as virtudes que o elevam e o aperfeiçoam O homem vale pelo trabalho pelo sacrifício em favor da Família da Pátria e da Sociedade Vale pelo estudo pela inteligência pela honestidade pelo progresso nas ciências nas artes na capacidade técnica tendo por fim o bemestar da nação e o elevamento moral das pessoas A riqueza é bem passageiro que não engrandece ninguém desde que não sejam cumpridos pelos seus detentores os deveres que rigorosamente impõe para com a Sociedade e a Pátria Precisamos de hierarquia de disciplina sem o que só haverá desordem Um governo que saia da livre vontade de todas as classes é representativo da Pátria como tal deve ser auxiliado respeitado estimado e prestigiado Nele deve repousar a confiança do povo A ele devem ser facultados os meios de manter a justiça social a harmonia de todas as classes visando sempre os superiores interesses da coletividade brasileira Hierarquia confiança ordem paz respeito eis o de que precisamos no Brasil O cosmopolitismo isto é a influência estrangeira é um mal de morte para o nosso Nacionalismo Combatêlo é o nosso dever E isso não quer dizer má vontade para com as Nações amigas para com os filhos de outros países que aqui também trabalham objetivando o engrandecimento da Nação Brasileira e cujos descendentes estão integrados em nossa própria vida de povo Referimonos aos costumes que estão enraizados principalmente em nossa burguesia embevecida por essa civilização que está periclitando na Europa e nos Estados Unidos Os nossos lares estão impregnados de estrangeirismo as nossas palestras o nosso modo de encarar a vida não são mais brasileiros Os brasileiros das cidades não conhecem os pensadores os escritores os poetas nacionais Envergonhamse também do caboclo e do negro de nossa terra E somos contra a influência do comunismo que representa o capitalismo soviético o imperialismo russo que pretende reduzirnos a uma capitania Levantamonos num grande movimento nacionalista para afirmar o valor do Brasil e de tudo que é útil e belo no caráter e nos costumes brasileiros para unir todos os brasileiros num só espírito O nacionalismo para nós não é apenas o culto da Bandeira e do Hino Nacional é a profunda consciência das nossas necessidades do caráter das tendências das aspirações da Pátria e do valor de um povo Essa é uma grande campanha que vamos empreender A nossa Pátria está miseravelmente lacerada de conspiratas Políticos e governos tratam de interesses imediatos por isso é que conspiram Todos os seus programas são os mesmos e esses homens estão separados por motivos de interesses pessoais e de grupos Por isso uns tramam contra os outros E enquanto isso o comunismo trama contra todos A questão social deve ser resolvida pela cooperação de todos conforme a justiça e o desejo que cada um nutre de progredir e melhorar O direito de propriedade é fundamental para nós considerado no seu caráter natural e pessoal O capitalismo atenta hoje contra esse direito baseado como se acha no individualismo desenfreado assinalador da fisionomia do sistema econômico liberaldemocrático Temos de adotar novos processos reguladores da produção e do comércio de modo que o governo possa evitar os desequilíbrios nocivos à estabilidade social O comunismo não é uma solução porque se baseia nos mesmos princípios fundamentais do capitalismo com a agravante de reduzir todos os patrões a um só e escravizar o operariado a uma minoria de funcionários cruéis recrutados todos na burguesia O comunismo destrói a religião para melhor escravizar o ser humano aos instintos destrói a iniciativa de cada um mata o estímulo sacrifica uma humanidade inteira por um sonho falsamente científico que promete realizar o mais breve possível isto é daqui duzentos anos no mínimo Tão grande a importância que damos à Família Ela é a base da felicidade na terra das únicas venturas possíveis O município é uma reunião de famílias O homem e a mulher como profissionais como agentes de produção e de progresso devem se inscrever nas classes respectivas a fim de que sejam por estas amparados nas ocasiões de enfermidade e desemprego Dessa maneira os que trabalham e produzem estão garantidos pela sua própria classe não dependem de favores de chefes políticos de caudilhos de diretórios locais de cabos eleitorais É a única maneira de se tornar o voto livre e consciente As classes elegem seus representantes às Câmaras Municipais como dissemos e estas elegem seu presidente e prefeito Os municípios devem ser autônomos em tudo o que respeita a seus interesses peculiares porque o município é uma reunião de moradores que aspiram ao bemestar e ao progresso locais A moralidade administrativa pode ser fiscalizada pelas próprias classes pois o que determinava a desmoralização das Câmaras Municipais no sistema liberal era a politicagem o apoio com que contavam os chefes políticos locais dirigentes da política estadual extintos os partidos o governo municipal repousará na vontade das classes Dentro destas nenhuma influência estranha poderá ser exercida porque todos se sentem amparados pela própria classe a que pertencem Não haverá jeito algum de se fazerem perseguições políticas porque o governo local estará livre de injunções de homens que morando fora do município se metem nos seus negócios como tem sido comum O município portanto será administrado com honestidade será autônomo e estará diretamente ligado aos desígnios nacionais Pretendemos realizar o Estado Integralista livre de todo e qualquer princípio de divisão partidos políticos estadualismos em luta pela hegemonia lutas de classes facções locais caudilhismos economia desorganizada antagonismos de militares e civis antagonismos entre milícias estaduais e o Exército entre o governo e o povo entre o governo e os intelectuais entre estes e a massa popular Pretendemos fazer funcionar os poderes clássicos Executivo Legislativo e Judiciário segundo os impositivos da Nação Organizada com bases nas suas Classes Produtoras no Município e na Família Pretendemos criar a suprema autoridade da Nação Pretendemos mobilizar todas as capacidades técnicas todos os cientistas todos os profissionais cada qual agindo na sua esfera para realizar a grandeza da Nação Brasileira Esses são os rumos da nossa marcha A FALÊNCIA DA FÉ O POSITIVISMO Podese dizer que o positivismo foi em sua essência uma retomada dos valores pregados pelo empirismo porém em versão mais desenvolvida Tinha por princípio o conceito de que a única fonte real do saber é a experiência Baseavase na ciência e na técnica que formavam os pilares da sociedade industrial moderna e apenas levava em consideração o que podia ser cientificamente comprovado ou seja havia uma identidade fundamental entre as ciências exatas e as ciências humanas A filosofia positivista rejeita a ideia de que a explicação dos fenômenos naturais ou sociais tenha origem em um só princípio Em outras palavras contrariava a visão dominante da época que considerava Deus ou a natureza como causa de todos os fenômenos Prega que o mundo resulta de relações constantes entre fenômenos que podem ser observados e analisados cientificamente Para os positivistas a filosofia é apenas a síntese das ciências O fundamento científico que escolheram foi a teoria de Charles Darwin que ensinava que a evolução das espécies ocorre por fenômenos estritamente mecanicistas Surgido na França no começo do século XIX o positivismo foi inicialmente formulado por Augusto Comte nos livros Opúsculos de filosofia social publicados entre 1819 e 1828 Pouco mais tarde o economista inglês John Stuart Mill desenvolveria o pensamento de Comte para aplicação em diversas áreas do conhecimento Na Alemanha o positivismo seria introduzido por Ernst Laas e Friedrich Jodl O positivismo é uma linha teórica da sociologia porque atribui fatores humanos não a razão isoladamente à explicação dos fenômenos Com isso nega a teologia bem como a metafísica crença fé superstição nada disso pode ser levado em consideração por não serem passíveis de comprovação científica Sua formulação tem grande influência ainda do socialismo de Karl Marx e do evolucionismo de Charles Darwin Decorre daí a descrição crua da realidade a partir da observação e a convicção de que o homem é resultado das suas heranças biológicas e do meio social em que vive O pensamento de Augusto Comte teve influência direta sobre a economia a política e até a literatura da época O positivismo foi representado na literatura pela escola do naturalismo O francês Emile Zola foi o iniciador do naturalismo na literatura principalmente com seu livro O germinal de 1885 Nesse livro examina a realidade dos trabalhadores em minas de extração de carvão Para escrever o livro Zola passou um período convivendo com uma família de mineiros para experimentar pessoalmente o cotidiano daqueles trabalhadores No Brasil a corrente naturalista da qual foram representantes principais Aluísio de Azevedo Adolfo Caminha Raul Pompeia e Inglês de Souza cuidou de abordar a realidade social brasileira como a vida nas favelas e cortiços urbanos e o preconceito Euclides da Cunha foi outro grande escritor que sofreu as mesmas influências O positivismo também teve grande repercussão nos processos educacionais especialmente na implantação de testes e avaliações nas escolas Embora tenha sido recebido com grande aceitação na Europa e também no Brasil o positivismo de Augusto Comte foi duramente criticado pelos marxistas principalmente pelos representantes da Escola de Frankfurt Resta dizer que na mesma época surgiram outras correntes de pensamento que não tiveram a mesma aceitação mas que não podem ser esquecidas Uma delas foi o irracionalismo de Arthur Schopenhauer e Sören Kierkgaard Outra foi a chamada corrente metafísica com Johann Friedrich Herbart e Gustav Theodor Feche entre outros na Alemanha e Victor Cousinha Felix RavaissonMolien e Jules Lachelier na França Correntes do direito O direito contemporâneo se divide em duas correntes juspositivismo e jusnaturalismo O jusnaturalismo acredita que o direito independe da vontade humana uma vez que é preexistente ao homem e portanto não se submete às leis humanas mas a leis superiores Os pressupostos do direito são os valores que ajudam na busca de um ideal de justiça Por sua vez o juspositivismo acredita que a vida social deve ser governada por princípios e regras que dependem do povo e do momento histórico que esse povo vive Por isso mesmo o direito deve ser flexível devendo as leis ser alteradas conforme a conjuntura do momento As ideias de Comte foram adotadas no Brasil por volta de 1870 quando seu pensamento deixou o âmbito acadêmico e foi adotado pelos politicos da época Os positivistas dentre eles Benjamin Constant coronel e professor do Colégio Militar onde estudou Euclides da Cunha por exemplo tiveram participação decisiva no movimento pela Proclamação da República em 1889 e na elaboração da Constituição de 1891 A inscrição que consta da bandeira brasileira Ordem e Progresso é o lema clássico do positivismo Veremos mais sobre esse tema no tópico O positivismo no Brasil adiante Augusto Comte e a ordem como valor O positivismo foi concebido por Augusto Comte como reação ao idealismo É chamado de o antigo positivismo uma tendência filosófica de permitir apenas proposições que se apoiem exclusivamente nas observações Portanto não admite qualquer espécie de pensamento metafísico Augusto Comte e suas circunstâncias Augusto Comte é considerado o organizador da sociologia moderna foi o primeiro a utilizar o termo sociologia Elaborou o positivismo corrente filosófica que defendia que tudo o que o homem sabe pode ser sistematizado de acordo com os critérios usados para as ciências Chegou a pregar que os cientistas deviam formar a elite dominante Afirmava que os súditos devem obediência aos governantes em nome da grandeza e prosperidade da humanidade Augusto Comte nasceu em 1798 Testemunhou na sua França natal revoluções regimes despóticos e guerras Tudo isso o levou a questionar os valores da filosofia reinante e a propor novas formas de organização social que podiam levar ao bemestar da coletividade Foi secretário de SaintSimon que como vimos foi um dos primeiros socialistas utópicos e iniciador da Sociologia Mas Comte se afastou dele para escrever o seu primeiro trabalho Curso de filosofia positiva entre 1830 e 1842 Também se aproximou de outro grande nome do positivismo John Stuart Mill mas também o abandonou Interessouse pelo método das ciências especialmente as ciências sociais que permite estabelecer relações entre os fatos independetemente de interpretações Chegou a um tal radicalismo que propôs a criação de templos positivistas para culto de uma nova religião da humanidade baseada no materialismo científico ideia que foi ridicularizada Augusto Comte e suas ideias A construção do seu pensamento teve início com a lei dos três estágios que demonstra que o homem por natureza utiliza três métodos de investigação em sequência teológico metafísico e positivo Essa lei foi associada por Augusto Comte a outro princípio a classificação das ciências fundamentais puras e abstratas que para ele eram a matemática a astronomia a física a química a biologia a sociologia e a moral Em seguida procurou coordenálas por meio do cálculo algébrico idealizado por Descartes para as ciências inorgânicas e por meio da síntese para as ciências orgânicas A sociedade para Augusto Comte seria como um organismo vivo em que nenhuma parte pode subsistir desvinculada das outras Suas ideias foram consolidadas no livro Curso de filosofia positiva publicado em 1830 Para a sociologia previu o organismo social como elemento estático mas condicionado por uma evolução dinâmica ao longo da história A estática social estuda as forças que mantêm a sociedade unida sendo a principal delas a ordem A dinâmica social estuda as mudanças sociais e suas causas fundamentandose no progresso Esse pensamento é a base do lema Ordem e progresso que consta da bandeira brasileira por inspiração positivista Como símbolo de sua filosofia usava uma escada para ilustrar a imagem de que o homem está em contínuo progresso e evolução e que havia uma hierarquia na ordem de importância das ciências Nessa ideia de ordem Comte tinha certo desprezo pela democracia Ao contrário pregava a disciplina e a hierarquia como elementos que garantiriam a adequada organização da sociedade Sua concepção da educação escolar por exemplo era rígida A solidariedade que ele considerava ser impulso natural do homem devia ser promovida pela escola quase como obrigação o que de fato acabava sendo uma solidariedade falsa e por isso mesmo é um modelo superado Comte criticava a liberdade de consciência para ele o homem devia estar mais preocupado com os seus deveres do que com os seus direitos Esperava que o espírito positivo criasse uma comunhão entre os homens que resultasse numa associação harmoniosa Essa ideia chegou a constituir uma proposta de organização de uma república ocidental algo como o que é hoje a União Europeia O projeto positivista de Comte era na realidade um projeto sociopolítico almejava uma sociedade que progredisse em paz de modo ordeiro sem guerras revoluções ou mudanças bruscas A MORAL CONSISTE em fazer prevalecer os instintos simpáticos sobre os impulsos egoístas Augusto Comte John Stuart Mill e as mudanças sociais John Stuart Mill foi um crítico do racionalismo e de Immanuel Kant Na esteira do empirismo achava que o conhecimento era dado pela experiência presente ou percepção do momento Desenvolveu trabalhos sobre as relações entre a linguagem e a lógica em que estabelece relações de verdade e falsidade a partir da denotação Defensor do método indutivo é o autor deste famoso silogismo O homem é mortal Sócrates é homem Portanto Sócrates é mortal John Stuart Mill e suas circunstâncias John Stuart Mill foi considerado um dos mais influentes economistas da era moderna Foi o grande inspirador de Alfred Marshall Desenvolveu trabalhos que visavam reorganizar a sociedade britânica que saía de uma crise social nos campos da política da economia e do direito Foi um dos primeiros filósofos a se ocupar do papel das mulheres na sociedade defendendo para elas o direito ao voto John Stuart Mill nasceu em Londres em 1806 em plena fase de industrialização da Inglaterra Precoce contou ainda com o preparo intelectual do pai o filósofo e historiador James Mill que o iniciou nos estudos muito cedo Aos 18 anos John Stuart Mill já preparava textos sobre a obra de Jeremy Bentham sobre evidências legais Aos 22 anos conheceu Gustave dEichtahl que o apresentou aos trabalhos de Saint Simon e de Augusto Comte Convenceuse pela leitura das obras de Comte de que as mudanças sociais avançam por meio de períodos de crise em que velhas instituições são derrubadas seguidos por períodos orgânicos quando novas formas sociais harmônicas emergem e são consolidadas John Stuart Mill e suas ideias Considerava que a classe letrada teria que ser responsável pela consolidação dessas mudanças sociais e que o papel do cidadão devia ser o de superar obstáculos impostos pelo Estado Achava que a verdadeira definição de liberdade era a ausência de coerção A educação para esse filósofo tem o papel de determinar os atos livres do indivíduo no futuro porque esclarece as suas motivações Talvez pelo fato de sofrer de graves crises de depressão estudou também a mente humana e desenvolveu a teoria do associacionismo defendendo que a mente humana deriva do processo da memória associativa Desse estudo concluiu algumas regras que governam o aprendizado humano Foi um defensor do prazer como elemento motivador primário da espécie humana portanto um epicurista Despontou para a comunidade filosófica com o livro Sistema de lógica publicado em 1843 em que trata do método da ciência experimental baseado na indução a partir de fenômenos observados e analisados cientificamente seria lícito generalizar a conclusão para outros fenômenos semelhantes Cinco anos depois em 1848 publicaria a sua obra mais conhecida Princípios de economia política de espírito liberal Na área da filosofia moral escreveu Sobre a liberdade em 1859 e Utilitarismo em 1861 Nesse último pondera que a concepção de bem e de mal depende do momento vivenciado pelo homem O principal critério para julgamento do comportamento do homem é a utilidade de seus atos Absorveu de Saint Simon e de Augusto Comte o espírito do altruísmo Trabalhou com o pai na Companhia das Índias Orientais tendo chegado a ocupar o posto máximo aposentandose quando a instituição foi dissolvida Foi eleito para a Casa dos Comuns em 1865 e participou da reforma de 1866 ao lado de Herbert Spencer Morreu em 1873 É considerado o último dos grandes autores da escola clássica da economia política John Stuart Mill e sua influência no direito Para esse filósofo inglês que concordava com David Hume há motivações para atos das pessoas que estão acima de sua capacidade de resistência e por essas motivações não há como responsabilizar os indivíduos como a fome ou o medo Mas há muitas outras motivações que o homem tem obrigação de dominar A base do pensamento social de Mill é essa um homem é livre quando consegue resistir à tentação de se deixar levar por motivos que ele pode controlar ou seja o ser humano tem papel ativo em relação à sua autodeterminação Dentro da teoria do utilitarismo Mill argumentava que o valor moral das ações devia ser julgado em face de suas consequências Pensava que o utilitarismo não era um princípio moral simplista para ser aplicado mecanicamente mas um projeto social de longo prazo Sobre o governo discordava dos liberais que consideravam que esse provinha de direitos naturais ou de contratos sociais Ao contrário o governo devia ser olhado como um elemento de permanente interesse do homem como ser em constante progresso ou seja o governo só teria utilidade se preenchesse a necessidade humana de atingir formas refinadas de felicidade Como membro do parlamento inglês defendeu a ideia de que as minorias deveriam ter representatividade proporcional Chegou até mesmo a defender a concessão de propriedades para os camponeses Por outro lado achava que as pessoas letradas deveriam ter direito a votos proporcionalmente mais valiosos que os votos de pessoas iletradas Além disso era contra a educação geral do Estado porque a considerava padronizada e destinada a impor um despotismo sobre o espírito AS AÇÕES SÃO CORRETAS na medida em que tendem a promover a felicidade erradas na medida em que tendem a promover o reverso da felicidade John Stuart Mill Herbert Spencer o inconformado O sociólogo Herbert Spencer nasceu em Derby Inglaterra em 1820 Viveu os últimos anos da era vitoriana período da história inglesa marcado pela austeridade pelo puritanismo e pela autoridade de ferro da Rainha Vitória Desde muito jovem Spencer mostrouse um insatisfeito com a situação políticosocial do Reino Unido Sua obra foi grandemente influenciada por Augusto Comte mas discordou de várias de suas ideias tornandose um dos principais críticos do criador do positivismo Isso se deu especialmente depois que conheceu a teoria evolucionista de Charles Darwin Procurou aplicar as ideias do evolucionismo às ciências sociais como a Psicologia Sociologia e Política Foi o autor da ideia da seleção natural na sociedade por meio da automática eliminação dos menos aptos Isso antes do seu compatriota Charles Darwin que afinal foi quem formulou a teoria que ficou conhecida como darwinismo social Formulou uma classificação das ciências que divergia da classificação feita anteriormente por Comte Para ele as ciências deviam estar divididas em três grupos ciências abstratas lógica e matemática ciências concretas astronomia geologia biologia e psicologia e ciências concretoabstratas mecânica física e química Como símbolo de sua classificação usou a imagem de uma árvore cujos galhos representavam o conceito da eterna interação entre os ramos do conhecimento a partir de um tronco comum Herbert Spencer e suas circunstâncias Herbert Spencer foi um admirador do evolucionismo Seu pensamento influenciou de maneira importante os Estados Unidos principalmente com a noção da competição contida no darwinismo social segundo a qual a sociedade naturalmente elimina os seus elementos mais fracos Foi um crítico de Augusto Comte embora seguisse o mesmo conceito de que a sociedade precisava estar firmada sobre as ciências Defendeu a implantação do ensino básico obrigatório e laico e as ideias liberais da não intromissão do Estado na economia Foi o ideólogo da luta pela vida Herbert Spencer nasceu numa época em que o desenvolvimento técnico e científico da Inglaterra estava no apogeu Mas ao mesmo tempo era uma época em que ficavam patentes os contrastes sociais que vieram à tona com as revoltas operárias A GrãBretanha liberal assistia ao questionamento das religiões e do imperialismo Floresciam as ideias socialistas Nesse ambiente o menino Herbert Spencer foi obrigado a frequentar uma escola protestante o que fez a contragosto até os 16 anos quando decidiu que aquela educação não lhe convinha A partir daí cuidou sozinho de sua formação com leituras voltadas principalmente para as ciências Encantado com as novas tecnologias como o telégrafo dedicouse a estudar engenharia e iniciou carreira nas ferrovias então em processo de expansão Tomou contato com as pesquisas de Charles Darwin e tornouse admirador do evolucionismo Entre 1848 e 1853 foi subeditor da revista The Economist Nessa época já escrevia artigos de conteúdo liberal defendendo que o papel dos governos devia se limitar a garantir os direitos naturais do cidadão Em 1853 recebeu uma vultosa herança e decidiu dedicarse unicamente a escrever Em 1855 publicou o livro Princípios de psicologia Alguns anos mais tarde em 1896 escreveu aquelas que são consideradas suas principais obras A filosofia sintética e Estática social Herbert Spencer e suas ideias Esse pensador aplicou à sociologia muitas ideias que observou nas ciências naturais sempre tomando a natureza como fonte da verdade Constatando a sobrevivência do animal mais propenso a adaptarse ao ambiente foi levado a defender a primazia do indivíduo em relação à sociedade e na sociedade incluía o Estado Lutou pela implantação do ensino da ciência nas escolas e condenava a interferência do Estado na educação que devia ser conduzida pelos educadores Para ele o que chamou de lei da persistência da força era a lei fundamental da matéria Grupos homogêneos fossem de animais ou humanos ao entrarem em contato com forças externas pela primeira vez eram obrigados a sair da homogeneidade e entravam num processo de heterogeneidade e portanto de variedade Quanto mais os grupos sofrem interferência externa tanto mais se tornam heterogêneos Com isso e dado que o homem devia ser livre pregava que o Estado deveria ser ignorado já que era imperfeito e portanto não adiantava que as leis fossem perfeitas A CIVILIZAÇÃO É UM PROGRESSO de homogeneidade indefinida e incoerente rumo a uma heterogeneidade definida e coerente Herbert Spencer O POSITIVISMO NO BRASIL Recémlibertado da condição de colônia portuguesa o Brasil do início do século XIX buscava uma nova emancipação uma espécie de independência intelectual Os líderes da nova pátria procuravam extirpar dos costumes e da cultura brasileira os hábitos da antiga metrópole Isso justificou a natural aproximação cultural com a França Inglaterra e Estados Unidos como alternativa para afastar a influência portuguesa O positivismo mostrouse excelente opção filosófica para a velha escolástica das cortes e da igreja portuguesas Isso porque a teoria dos três estágios de Comte explicava à perfeição a história brasileira com a passagem da etapa teológica liderada pelos jesuítas e pelos inquisidores para a fase metafísica e desta para a positivista Intelectuais brasileiros em busca de fundamentação teórica para uma nova ordem política queriam a República O pensamento de Augusto Comte mais uma vez se harmonizava perfeitamente com os ideais dessa nova geração de brasileiros que incluiu entre outros Benjamin Constant Tobias Barreto e Euclides da Cunha O positivismo era visto como um instrumento educativo cujo objetivo era o de formar uma sociedade de homens práticos parecidos com os ingleses e os norteamericanos que eram os povos que lideravam o processo evolutivo da sociedade da época Entre as ideias de Comte na área da filosofia social os brasileiros da nova geração aprovavam especialmente a abolição da escravatura Benjamin Constant criou em 1868 um centro para o estudo do positivismo Seus alunos da Escola Militar entre eles Euclides da Cunha recebiam lições consistentes a favor da república e contra a monarquia Tobias Barreto por seu lado escreveu continuamente nos jornais do Recife a respeito da filosofia positivista formando uma geração de jovens admiradores da nova doutrina O mesmo se deu com as obras de Euclides da Cunha Pereira Barreto e Sílvio Romero Quando da proclamação da República Benjamin Constant forjou a frase que figura na bandeira brasileira Ordem e Progresso de inspiração positivista A frase contida em nossa bandeira foi retirada da fórmula máxima do positivismo cunhada por Comte O amor por princípio a ordem por base o progresso por fim No campo do Direito Clóvis Beviláqua foi um positivista tendo inclusive escrito em 1883 o livro A filosofia positiva no Brasil O positivismo no Brasil foi duradouro e inflamou a sociedade a reagir contra o tradicionalismo e o provincianismo influenciado pelo evolucionismo de Spencer Seu representante mais radical depois de Benjamin Constant foi Júlio de Castilhos que chegou a implantar uma Constituição estadual no Rio Grande do Sul em 1861 na qual concedia isonomia salarial aos funcionários daquele Estado O seguidor mais ferrenho de Júlio de Castilhos foi Getúlio Vargas Aos positivistas opunhamse os liberais dos quais o mais famoso foi Rui Barbosa Eugen Ehrlich e a sociologia do direito Eugen Ehrlich foi o primeiro jurista a escrever um livro especialmente sobre sociologia aplicada ao direito e por isso é considerado o fundador da Sociologia Jurídica Pretendeu modernizar o conhecimento acerca do direito em sua época Eugen Ehrlich e suas circunstâncias Eugen Ehrlich defendeu em seus dois livros que a ciência do direito deve atender não apenas às palavras mas também aos fatos subjacentes ao direito pela indução ou seja que o direito não tem origem apenas no Estado mas na organização interna das sociedades Eugen Ehrlich nasceu em 1862 na cidade de Chernovtsky atualmente pertencente à Ucrânia mas à época parte da Áustria O pai era advogado Estudou Direito em Viena onde permaneceu por alguns anos como professor assistente Aos 35 anos de volta à cidade natal foi convidado a lecionar Direito Romano na Universidade de Chernovtsky Tinha temperamento difícil o que lhe causou problemas para a reputação Entendia as opiniões judiciais como racionalizações de decisões tomadas com base em equilíbrio de interesses consciente ou intuitivo Escreveu A livre procura do direito e a livre jurisprudência em 1903 e Fundamentos da sociologia do direito em 1912 Mas a obra mais importante de sua produção é Princípios da sociologia do direito publicada em 1913 Eugen Ehrlich e suas ideias Esse filósofo elaborou várias pesquisas que se tornaram inspiração para as modernas pesquisas científicas de opinião pública Um estudo que realizou mostrou por exemplo que os costumes familiares variavam muito em grupos raciais romenos e divergiam amplamente do direito codificado45 Eugen Ehrlich e sua influência no direito Existem conforme o filósofo fenômenos jurídicosociais reveladores do direito Assim por exemplo o costume a posse a família os estatutos associativos as declarações de vontade Por isso achava que o direito criado pelo Estado pode ser considerado como mero fenômeno social específico servindo tão somente para organizar a sociedade e dirimir disputas jurídicas portanto uma função secundária O direito para ele deve ser mais sujeito a regras de harmonia entre os homens regras de conduta do que propriamente a uma norma de decisão É o que Ehrlich chama de direito vivo fazendo ver que a base do direito não está na lei mas na própria sociedade contrapondose à jurisprudência que é a base do positivismo jurídico Dizia Ehrlich que a jurisprudência encerra em si ao mesmo tempo a teoria e a prática e que o juiz não pode ser um servidor cego da lei QUERER APRISIONAR O DIREITO de uma época ou de um povo nos parágrafos de um código corresponde mais ou menos ao mesmo que querer represar um grande rio num açude o que entra não é mais correnteza viva mas água morta e muita coisa simplesmente não entra Eugen Ehrlich Émile Durkheim um dissidente do positivismo Na França uma corrente de pensamento liderada pelo sociólogo Émile Durkheim 18581917 mostrouse importante dissidente do positivismo de Augusto Comte Professor da famosa Universidade de Sorbonne Durkheim procurou desenvolver um sistema que explicasse as leis gerais de funcionamento da sociedade Foi um sistema fundado na educação a que se denominou sociologismo Durkheim e suas circunstâncias A obra mais famosa de Émile Durkheim é A divisão do trabalho social Foi em verdade uma das suas teses de doutoramento tendo sido publicada em 1893 e reeditada em 1902 Foi considerado o pai da sociologia moderna disciplina a que deu metodologia específica objeto e objetivos no livro As regras do método sociológico 1895 sempre com base nas ciências naturais Émile Durkheim nasceu em 15 de abril de 1858 em Épinal Departamento de Vosges localizado entre a Alsácia e a Lorena De família judia sendo seu pai um rabino veio a se desvencilhar do misticismo apenas ao conhecer Paris após o que se tornou agnóstico Foi ao lecionar Filosofia em diversos liceus da França que se interessou pela Sociologia Apesar de ter lido autores franceses e alemães não chegou a tomar contato com a monumental obra de Max Weber que também não conheceu pessoalmente Ministrou o primeiro curso de Sociologia numa universidade francesa o curso denominavase Pedagogia e Ciência Social na Faculté de Lettres de Bordeaux no período compreendido entre 1887 e 1902 Tornouse titular na Sorbonne em 1902 Apenas em 1910 conseguiu criar a cátedra de Sociologia consolidando assim o status acadêmico dessa disciplina Foi o criador da Escola Sociológica Francesa Procurou conduzir a Sociologia àquilo que Augusto Comte havia denominado de era da especialidade como já mencionado sua obra visou a conferir à Sociologia objeto e metodologia próprios tornandoa um ramo autônomo da ciência Durkheim e suas ideias Segundo Durkheim um sistema educacional moderno seria necessário para modificar ao longo do tempo a conduta dos indivíduos na direção da solidariedade e isso seria a base de uma nova ordem social Durkheim considerava a educação um fato social porque contemplava as três características necessárias para isso generalidade exterioridade e coercitividade A sociedade para ele era um organismo vivo com todos os seus elementos interligados se uma parte não funciona bem todo o restante será prejudicado Nesse chamado positivismo social a sociedade é algo mais do que a simples soma dos indivíduos que a compõem é uma entidade com atribuições e características específicas Isso porque por meio da vivência social e da educação o homem deixa a sua condição inata de indivíduo bruto uma espécie de retomada da tábula rasa de John Locke para se transformar em um ser dotado de consciência consciência que é formada nele pela sociedade O objeto segundo ele são os fatos sociais já o método é a observação e a experimentação indireta em outras palavras o método comparativo Reconhece contudo que os múltiplos aspectos da vida social dão origem a um semnúmero de ramificações da Sociologia Define fatos sociais como maneiras de agir de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo dotadas de um poder de coerção em virtude do qual se lhe impõem Diferem pois dos fenômenos orgânicos já que são representações e ações e também dos fenômenos psíquicos eis que estes existem apenas na consciência individual e precisamente por meio dela O substrato do fato social não é o indivíduo mas a sociedade em sua integralidade ou apenas parte dela confissões religiosas escolas políticas corporações profissionais etc O conceito abrange assim tudo quanto é externo ao indivíduo impondose à consciência individual por meio de um aparato coercitivo que pode ser de diferentes ordens e graus Um claro exemplo do quanto afirmado é a educação a que as crianças são submetidas desde o início de suas existências Dizia Durkheim que a educação tem justamente por objeto formar o ser social fazendoo pela imposição às crianças de determinados modos de ver sentir e agir aos quais elas não chegariam espontaneamente A coerção externa é pois o traço marcante do fato social É interessante também notar que o suicídio tema pretensamente marcado pelo egoísmo e pela individualidade tenha sido objeto de profundas considerações do filósofo Ainda na última década do século XIX fez publicar O suicídio obra considerada um ícone da Sociologia Isso porque foi o primeiro estudo de caso de suicídio que não se ateve a aspectos particulares focandose isso sim nas conexões existentes entre o indivíduo e a sociedade Buscava provar o quanto os atos individuais são influenciados pelas conjunturas sociais que envolvem os homens Para isso analisou as diferenças no número de mortes voluntárias em diferentes grupos principalmente religiosos comparandoas com o grau de integração social vivenciado por aqueles indivíduos O filósofo notou que a taxa de suicídio relação entre o número global de mortes voluntárias e a população de todas as idades e dos dois sexos é uma ordem de fatos única e determinada permanecendo constante durante longos períodos de tempo Tal invariabilidade constatou ele é mesmo maior que a dos principais fenômenos demográficos Durkheim concluiu que há sempre uma certa tendência ao suicídio claramente observável em todos os países europeus pesquisados Sendo assim estudou essa predisposição com foco nas causas pelas quais tal tendência pôde surgir Entretanto não o fez sob o ponto de vista dos indivíduos isoladamente considerados o que constituiria objeto de estudo da Psicologia mas analisando o seu grupo social daí a importância da obra para a Sociologia Quanto a esse objeto o filósofo estabelece três proposições A princípio postulou que o suicídio varia na razão inversa do grau de integração da sociedade religiosa depois que o suicídio varia na razão inversa do grau de integração da sociedade doméstica por fim que o mesmo fenômeno varia na razão inversa do grau de integração da sociedade política Durkheim aponta uma causa comum a essas três sociedades como fator de moderação da taxa de suicídios de forma a ser possível a seguinte síntese o suicídio varia na razão inversa do grau de integração dos grupos sociais de que o indivíduo faz parte Em outras palavras quanto mais enfraquecidos são os grupos a que pertence o indivíduo menos este depende deles e mais de si próprio já que não reconhece outras regras de conduta senão as estabelecidas em prol de seu interesse particular A esse estado Durkheim denomina de egoísmo ou seja o suicídio egoísta é fruto da afirmação demasiada do ego individual em face do ego social O interessante é que o filósofo vislumbra no ceifar a própria vida um relaxamento dos próprios laços sociais responsável direto pela atitude egoística do indivíduo Os incidentes da vida privada ficam nesse sentido em segundo plano Tanto assim que o suicídio é excepcional entre crianças e diminui sensivelmente entre os velhos que atingem os limites da vida O mesmo se diga da imunidade dos animais ao fenômeno Também por isso essa espécie de suicídio é raramente encontrada nas sociedades primitivas nas quais a vida social é mais simples e portanto em cujo seio menor dificuldade encontra o indivíduo em obter socialmente tudo de que necessita Nesse ponto em particular o filósofo aponta que o fato de segundo ele as mulheres suportarem melhor a vida em isolamento devese não às suas faculdades afetivas supostamente mais intensas que as do homem mas sim ao caráter rudimentar de dita sensibilidade Dizia ele como a mulher vive mais que o homem fora da vida comum a vida comum penetraa menos Assim a sociedade lhe é menos necessária porque está menos impregnada da sociabilidade Durkheim como se vê considera o homem um ser social mais complexo que a mulher Há ainda de acordo com o filósofo outras duas espécies de suicídio o altruísta e o anômico O suicídio altruísta pode ser encontrado nas sociedades primitivas já vimos que o egoísta nelas não tem lugar ou apenas raramente ocorrem Apenas no Exército ele ainda remanesce na modernidade Durkheim aduz que este pode ser reduzido a três categorias 1 suicídio de homens que chegaram ao limiar da velhice ou foram atingidos por doença 2 suicídio de mulheres por ocasião da morte do marido 3 suicídio de fiéis ou de servidores por ocasião da morte de seus chefes Em casos tais o homem privase da própria vida não porque entende possuir o direito de fazêlo mas para além disso porque se sente no dever de fazêlo O desrespeito a esse dever implica desonra ou castigos religiosos Em outras palavras no suicídio altruísta a sociedade impele o indivíduo a se sacrificar Aliás a diferença entre o suicídio egoísta e o altruísta está no papel desempenhado pela sociedade como causa naquele ela se limita a envolver o homem numa linguagem que o desliga da existência neste prescrevelhe formalmente a abandonála Sob outra perspectiva no suicídio egoísta como dissemos há um individualismo exacerbado no altruísta ocorre o oposto vislumbramos um individualismo rudimentar prostrado em relação aos fins maiores da sociedade Por fim Durkheim trata do suicídio anômico que decorre do estado de verdadeiro caos daí o termo anomia em que se encontra determinada sociedade é dizer tem lugar nos casos em que a atividade dos homens encontrase desregrada Reconhece que ele está ligado ao suicídio egoísta pois em ambos a sociedade não se faz presente nos indivíduos Mas há diferenças entre eles no egoísta a sociedade falta à atividade propriamente coletiva que fica então sem qualquer finalidade ou significação já no anômico a sociedade falta às paixões propriamente individuais deixandoas sem freio que as regule Assim ambas as espécies de suicídio são mesmo independentes uma da outra como aliás o demonstram suas clientelas o egoísta atinge mais as carreiras intelectuais ao passo que o anômico o mundo industrial ou comercial O suicídio anômico em suma ligase a desastres econômicos ou inversamente a crises originadas por um brusco aumento de poder e de riqueza No primeiro caso os indivíduos não estão ajustados à condição que lhes é imposta e tal perspectiva lhes é mesmo intolerável daí porque arrefecemse os seus laços com a existência No segundo caso as ambições superexcitadas vão sempre além dos resultados obtidos independentemente de quais sejam como resultado nada contenta o indivíduo e essa agitação permanece sem alcançar qualquer apaziguamento E os laços da vida vão progressivamente se enfraquecendo Em suma e transpondo agora o resultado de todo esse estudo para o âmbito jurídico Durkheim logrou demonstrar que níveis anormais de integração social seja para mais seja para menos podem implicar em um aumento do número de autocídios Fundamentase assim a necessidade de um correto e presente controle social Durkheim e sua influência no direito Interessante notar no ponto a aproximação com Kelsen que vê como nota característica da norma jurídica o ser dotado de sanção Veremos adiante com mais detalhamento o pensamento de Kelsen Durkheim considera a solidariedade como fato social de primeira categoria que pode ser sentido em suas formas particulares como a solidariedade doméstica a profissional a nacional etc Para ele há duas espécies de solidariedade a mecânica e a orgânica A mecânica diz o filósofo está relacionada a um certo número de estados de consciência comuns a todos os membros da mesma sociedade e é representada materialmente pelo direito repressivo ao menos no que tem de essencial Pode assim ser medida pela própria extensão do direito penal Nasce das semelhanças e liga o indivíduo à sociedade A solidariedade orgânica por sua vez é produzida pela divisão social do trabalho e difere por completo da mecânica pois ao contrário desta supõe que os indivíduos diferem uns dos outros Assim enquanto a solidariedade mecânica só se faz possível na medida em que a personalidade individual seja absorvida pela coletiva a solidariedade orgânica somente se viabiliza se ao indivíduo for assegurada uma esfera própria de ação A coesão que resulta dessa solidariedade conclui o filósofo é mais forte isso porque quanto maior a divisão do trabalho mais o indivíduo depende da sociedade para sobreviver Durkheim equipara a solidariedade orgânica àquela observada nos animais superiores no que toca à diferenciação de seus órgãos a unidade do organismo é tanto maior quanto mais acentuada seja a individualização das partes Precisamente por isso denomina dita solidariedade de orgânica O filósofo faz menção à lei histórica segundo a qual a solidariedade mecânica inicialmente a única ou quase isso perde progressivamente espaço para a solidariedade orgânica À primeira corresponde idealmente uma massa absolutamente homogênea a que Durkheim propõe chamar de horda Existe ainda hoje em sociedades inferiores como a dos índios da América do Norte Com efeito a solidariedade orgânica fruto de um sistema de órgãos diferentes a desempenhar cada qual um papel especial só pode ter lugar na medida em que a mecânica desapareça Baseiase na função que cada indivíduo desempenha no tecido social e não na consanguinidade real ou fictícia típica de estados sociais primitivos O tipo social que a caracteriza idealmente é definido pela divisão do trabalho social que determinará os traços constitutivos de sua estrutura Obviamente a passagem de um estado para outro se faz por meio de uma lenta evolução resultado do desenvolvimento e da complexidade da sociedade A EDUCAÇÃO tem por objetivo suscitar e desenvolver na criança estados físicos e morais que são requeridos pela sociedade política no seu conjunto Émile Durkheim PENSADORES ALEMÃES DO SÉCULO XX Versalhes um tratado que mudou o mundo A Primeira Guerra Mundial oficialmente encerrada em 1918 continuou seus efeitos maléficos sobre a população mundial por muitos anos Mas decerto quem sofreu mais foi o país derrotado Escrevi sobre isso em meu livro Direitos humanos 2010 A história conta que embora tivessem capitulado os dirigentes da Alemanha recusavamse a assinar o acordo internacional que lhes foi apresentado em 7 de maio de 1919 determinando os termos da paz Os alemães consideravam o acordo rigoroso demais e com cláusulas que achavam humilhantes Esse acordo de 440 artigos ficou conhecido como Tratado de Versalhes Os alemães só assinaram o documento depois que os países aliados promoveram um embargo naval que durou mais de um mês O processo de paz subordinado ao Tratado de Versalhes alterou de maneira sensível a configuração do mundo moderno tanto no sentido político quanto geográfico A Alemanha perdeu mais de 13 do seu território porque teve que abrir mão de todas as colônias ultramarinas Na Europa devolveu a Alsácia e a Lorena para a França e o porto de Dantzig e a província de Posen para a Polônia também foi forçada a reconhecer a independência da Áustria e perdeu territórios para a Bélgica Lituânia e Dinamarca A configuração mundial mudara substancialmente O Império AustroHúngaro foi desmontado em quatro países Tchecoslováquia hoje República Tcheca Hungria Polônia e Iugoslávia hoje dividida em vários países Mais ainda os países aliados também tiveram que abrir mão de protetorados no Oriente Médio com o fim do Império TurcoOtomano o Iraque a Jordânia e a Palestina deixaram o poder dos britânicos e a Síria e o Líbano dos franceses Além de perda de possessões a Alemanha sofreu outras penalidades entre elas a de pagar aos países aliados uma indenização de guerra de US 33 bilhões equivalentes a 270 milhões de marcos ouro Esses tributos de guerra levaram a Alemanha a enfrentar nas décadas seguintes inflação altíssima e consequente desemprego As revoltas internas seguiram em estado crescente e foram agravadas pela quebra da Bolsa de Nova York em 1929 que teve efeitos devastadores sobre a economia alemã A República de Weimar O Tratado de Versalhes derrubou a monarquia alemã e o país se debateu por breve período de tempo entre o socialismo e a democracia parlamentar Esse último regime venceu a disputa política e em 1919 o então presidente da Assembleia Nacional Constituinte Philipp Scheidemann proclamou a República de Weimar Sob essa nova nomenclatura a Alemanha tornouse um Estado federal democrático Gozou de certa prosperidade até 1929 mas os efeitos do Tratado de Versalhes continuavam a sufocar o país e a quebra da Bolsa de Valores de Nova York como vimos acentuou a cris e econômica levando os dirigentes a deixarem de pagar indenizações à França e à Bélgica Nesse ambiente surgiu a figura de Adolf Hitler nomeado chanceler em 1933 Esse líder iniciou campanha interna contra o que os alemães consideravam ser uma grande injustiça o Tratado de Versalhes Desenhavase um cenário de conflito que acabaria deflagrando a Segunda Guerra Mundial Um caso à parte a Escola de Frankfurt Os intelectuais alemães também procuraram participação política na vida do país Em 1924 num período em que como vimos a Alemanha se debatia entre inflação alta e tumultos sociais um grupo de pensadores decidiu criar o Instituto de Pesquisa Social Esse instituto funcionou como anexo da Universidade de Frankfurt num momento democrático da Alemanha que coincidiu com a existência da República de Weimar e com os efeitos da Revolução Russa de 1917 Nesse contexto surge um movimento em 1924 conhecido como a Escola de Frankfurt encabeçado pelo economista austríaco Carl Grumberg editor do Arquivo para a História do Pensamento Operário Compunham o grupo Theodor W Adorno filósofo sociólogo e musicólogo Walter Benjamin ensaísta e crítico literário Herbert Marcuse filósofo e Max Horkheimer filósofo e sociólogo Todos marxistas que sonhavam com a convivência harmônica entre povo e governo mais tarde se afastariam da doutrina de Karl Marx deixando a crítica da economia política para adotar a crítica da sociedade tecnicista Outros nomes importantes do marxismo foram sendo acrescentados ao longo da existência do instituto Ernst Bloch Erich Fromm Friedrich Pollock Georg Lucáks Karl Wittfogel Karl Korsh e Victor Sorge Schopenhauer e Nietzsche embora não pertencessem ao grupo também tiveram participação no movimento Salientase ainda a presença de Félix Weil como mais um dos membros da Escola mas sua importância é relativamente secundária porque foi apenas o financiador da Revista de Pesquisa Social editada pelo grupo que se tornou um dos documentos mais importantes para a compreensão do espírito europeu do século XX A Escola de Frankfurt tornase conhecida por desenvolver uma teoria crítica da sociedade unindo elementos da filosofia e da sociologia para combater o totalitarismo buscar o entendimento e promover a transformação da sociedade Seus objetivos foram consolidados no ensaio publicado em 1937 por Max Horkheimer chamado Teoria Tradicional e Teoria Crítica A Escola reunia materialismo histórico marxismo e psicanálise numa espécie de retomada do pensamento de Hegel Os seus integrantes especialmente Theodor Adorno Max Horkheimer e Herbert Marcuse consideravam que a sociedade alemã havia atingido o que se poderia chamar de sociedade de massas ou sociedade totalmente administrada com as pessoas voltadas para o individualismo acomodadas e presas à rotina Era um nivelamento por baixo Chamavam a isso de sociedade unidimensional Muitos dos intelectuais da Escola de Frankfurt foram banidos em razão de suas convicções políticas eminentemente de esquerda e também por terem origem judaica numa época em que o nazismo tomou conta da Alemanha Por essa razão o grupo perambulou por vários países Um fato marcou mundialmente a importância desse grupo Em 1940 perseguidos pela Gestapo a polícia política de Hitler alguns deles tentaram ingressar na Espanha pela fronteira com a França Foram proibidos de entrar por um funcionário da alfândega espanhola leal a Francisco Franco o ditador espanhol aliado dos nazistas Desgostoso com a situação Walter Benjamin um dos mais importantes intelectuais da Escola de Frankfurt suicidouse O incidente assumiu proporções muito grandes porque Walter Benjamin jornalista crítico de cinema e ensaísta era considerado o autor da mais perfeita tradução para o alemão do livro Em busca do tempo perdido de Marcel Proust Seu suicídio marcaria o início de uma grande resistência dos intelectuais de todo o mundo ao nazismo Embora se denominassem marxistas os participantes da Escola de Frankfurt consideravam seus estudos estritamente científicos no campo da filosofia economia estética psicanálise e ciência política O grupo aliás contestou a tese fundamental marxista de que a revolução é papel histórico do proletariado afirmava que o proletariado falhou nessa sua responsabilidade histórica ao permitir a ascensão de sistemas totalitários como o nazismo e o stalinismo Sendo assim em vez de apoiarem a revolução de classes os membros da Escola de Frankfurt voltaramse para a arte como instrumento essencial de transformação da sociedade Para lograr tal objetivo entretanto ela teria de ser aplicada adequadamente ao processo educacional Para eles o sujeito da história é o capitalismo tardio que manipula as massas O Instituto de Pesquisas Sociais lançou os fundamentos da teoria crítica um conjunto de ideias multidisciplinares sobre a cultura contemporânea que contestava o positivismo Max Horkheimer e a Teoria crítica Max Horkheimer foi o líder mais importante da Escola de Frankfurt Sucedeu o economista e historiador austríaco Carl Grünberg que ocupou a função de diretor do Instituto de Pesquisas Sociais entre 1923 e 1930 Seu pensamento chamado de Teoria Crítica foi a mais importante contribuição alemã para a filosofia na década que antecedeu a Segunda Guerra Mundial Era um posicionamento filosófico de oposição ao positivismo Max Horkheimer e suas circunstâncias Max Horkheimer liderou um grupo de intelectuais que influenciou o pensamento filosófico alemão na defesa da democracia Foi expulso pelos nazistas e viveu nos Estados Unidos onde lecionou na Universidade de Colúmbia e publicou seus principais livros Depois da guerra voltou para a Alemanha e chegou a ser reitor da Universidade de Frankfurt Foi o grande inspirador dos movimentos estudantis na França em 1968 Max Horkheimer nasceu em Stuttgart em 1895 e morreu em Nuremberg em 1973 Foi o principal pensador da teoria crítica na década que precedeu a Segunda Guerra Mundial Filósofo e psicólogo foi o criador do Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt ao lado de Friedrich Pollock e Theodor Adorno Foi o principal diretor da famosa Revista de Pesquisa Social que reuniu artigos e ensaios dos principais pensadores alemães da época Seus principais escritos foram publicados nessa revista Materialismo e metafísica O problema da verdade O último ataque à metafísica e Teoria tradicional e teoria crítica Em 1930 tornouse professor da Universidade de Frankfurt mas em 1934 com a ascensão do nazismo teve que se refugiar nos Estados Unidos Voltaria para a Alemanha em 1949 para reorganizar o Instituto de Pesquisas Sociais e para reassumir sua cadeira na Universidade de Frankfurt Max Horkheimer e suas ideias Segundo Horkheimer os fatos sensíveis vistos pelos positivistas como possuidores de um valor irredutível são formados socialmente pelos eventos históricos que os envolvem bem como pela conjuntura social em que estão inseridos Horkheimer analisou as teorias de Marx e Engels concluindo que essas ideias devem ser entendidas como indicações para pesquisas futuras e não como conceitos definitivos Contrapunha a teoria tradicional ou seja a noção de ciência concebida por Descartes a uma teoria crítica segundo a qual a ciência teria uma gênese social Por isso discordava da relevância do método para a investigação da verdade como queriam os positivistas Ao contrário defendia que o homem se rebelasse contra a ordem imposta de maneira totalitária Considerava que a existência social é que determinava a consciência dos homens dentro do seu tempo e sob certas condições com a ajuda de instrumentos de trabalho Era o que chamava de razão polêmica que somente seria possível quando o homem se libertasse de qualquer dominação e que era o oposto da razão instrumental Defendia ser necessária uma síntese entre o individual e o coletivo Para Horkheimer assim como para todos os integrantes da Escola de Frankfurt a relação entre homem e máquina é basicamente uma relação de dominação AQUELES QUE NÃO QUEREM FALAR criticamente sobre o capitalismo deveriam manter silêncio semelhante sobre o fascismo Max Horkheimer Theodor Adorno e a indústria cultural A principal contribuição desse filósofo nascido em Frankfurt em 1903 foi analisar o envolvimento das massas populares com as artes Ele considerava o racionalismo de um otimismo ingênuo Por isso acreditava que as artes seriam instrumento de emancipação cultural do povo e até de renovação da estrutura social desde que não estivessem sob o controle e monopólio de empresários interessados apenas em lucros Achava que o cinema e o rádio não passavam de negócios o que lhes tirava o caráter de arte e por isso os chamava de elementos da indústria cultural expressão que usou pela primeira vez em 1947 Theodor Adorno e suas circunstâncias Theodor Adorno foi ao lado de Max Horkheimer o criador do Instituto de Pesquisas Sociais que reunia intelectuais contrários ao positivismo vigente Envolvido com a música trabalhou com a perspectiva marxista de que a arte deve ser ferramenta de libertação social Refugiouse nos EUA durante a Segunda Guerra Mundial e lá publicou uma obra importante em parceria com Horkheimer Dialética do iluminismo Theodor Ludwig WiesengrundAdorno ao lado de ter criado com Horkheimer o Instituto de Pesquisas Sociais foi um apaixonado pela música Estudou composição musical com Alban Berg em Viena e produziu textos importantes como o ensaio A situação social da música Em 1925 conheceu outro filósofo Georg Luckács que publicou A teoria do romance e História e consciência de classe A primeira obra de sua trajetória foi uma tese sobre Kierkegaard em 1933 Outro filósofo que influenciou seus ideais foi seu amigo Walter Benjamin o pensamento adorniano é completamente identificado com os conceitos defendidos por ele Suas obras umas das mais complexas do século XX fomentaram a crítica e a rebeldia radical da sociedade dos anos 1960 e teve como vertente principal a profunda insatisfação com o mundo Com a subida dos nazistas ao poder em 1933 refugiouse na Inglaterra para lecionar na Universidade de Oxford Em 1937 mudouse para os Estados Unidos onde escreveu uma obra em parceria com Max Horkheimer Com forte influência marxista a produção intelectual de Adorno é marcada pela perspectiva da dialética Uma de suas importantes obras foi a Dialética do esclarecimento Dialetik des Aufklärun escrita em parceria com seu amigo e também filósofo Mark Horkheimer durante a Segunda Guerra Mundial Nela Adorno interpreta de forma negativa o Iluminismo e o sistema econômico e cultural do capitalismo Exilouse nos Estados Unidos entre 1937 e 1941 Para ele um europeu apurado que passara considerável parte de sua vida a se dedicar à música de Alban Berge e Schönberg a América era toda igual Um país que celebrava e pregava a individualidade visando à diferenciação entre os indivíduos para que cada um tivesse sua opinião própria e fosse diferente dos demais ao mesmo tempo em que imprimia e produzia tudo idêntico plagiado visando ao principal objetivo do sistema capitalista o lucro Analisando a mídia norteamericana ele percebeu que jornais revistas filmes rádios e os demais meios de comunicação tinham como objetivo último domesticar e monopolizar ideologicamente as massas Concluiu que o cidadão ao chegar do trabalho procurava alternativas de lazer em sua casa e era bombardeado por programas de níveis intelectuais baixíssimos intercalados com anúncios comerciais o que segundo o filósofo constituía uma espécie de monopólio das massas comprometido com a produção e o consumo desenfreado Em 1950 depois de publicar também nos Estados Unidos a obra de sociologia A personalidade autoritária voltou para a Alemanha e dedicouse a reorganizar o Instituto de Pesquisas Sociais Em 1969 envolveuse em uma polêmica com seu amigo e companheiro da Escola de Frankfurt Herbert Marcuse Adorno não apoiou estudantes que invadiram a sala em que dava aula e que tentavam dar prosseguimento dentro do Instituto aos protestos que assolavam as ruas das capitais europeias e acionou a polícia Marcuse que apoiava os estudantes repreendeuo severamente em uma série de cartas Uma delas dizia acreditar que em determinadas situações a ocupação de prédios e a interrupção de aulas são atos legítimos de protesto político Adorno veio a falecer meses depois no dia 6 de agosto de 1969 com problemas cardíacos Theodor Adorno e suas ideias Adorno explicava que o capitalismo aumentou o poder de compra da maioria da população transformandoa em simples consumidores Essa massificação do consumo é uma estratégia que apoiada pela indústria cultural mantém a sociedade dentro de uma estrutura unidimensional ou seja uma uniformização da forma de agir e de pensar A moda por exemplo é para ele um instrumento de massificação Foi um dos críticos mais fervorosos dos meios de comunicação de massa Antes de se formar iniciou a amizade com Walter Benjamin e Max Horkheimer que se tornariam seus companheiros na militância política e intelectual De acordo com o filósofo a civilização atual baseada no espírito do Iluminismo representa um domínio racional sobre a natureza e diante disso um domínio paralelo e irracional sobre o homem O nazismo e o fascismo para ele foram a pior maneira de demonstrar essa atitude autoritária de domínio de um homem sobre outro Theodor Adorno tentou mostrar na Dialética negativa o melhor caminho para uma reforma da razão com a finalidade exclusiva de pôr um fim nesse domínio autoritário sobre o homem e sobre as coisas A atitude dominadora da razão só poderia ser mudada se aceitássemos a dualidade entre sujeito e objeto interrogandose o aquele diante deste sem a noção de que se pode chegar a compreender o sujeito totalmente É preciso considerar que Adorno viveu numa época em que o mundo passava por uma completa mudança na economia advinda principalmente da Revolução Industrial iniciada na Inglaterra e que se difundiu pelo mundo a partir do século XIX Nesse contexto como já apontado acima criticava o que chamou de indústria cultural Sua tese era de que a mídia moderna não queria somente proporcionar horas de lazer ou dar informações e notícias aos seus espectadores ou ouvintes mas também e sobretudo manipular o homem até mesmo em suas horas de lazer Em sua concepção tudo o que o homem moderno faz segue a ideologia dominante que é difundida pela mídia moderna e que impede a formação de indivíduos independentes autônomos e capazes de decidir e julgar conscientemente O homem perdeu sua autonomia e em consequência disso a sociedade tornouse cada vez mais desumanizada Adorno escreveu a respeito de pequenos detalhes da vida sob um novo estilo de sociedade por ele denominada de sociedade administrada Nela o antigo liberalismo não mais estaria em vigência eis que a liberdade individual fora perdida para uma sociedade classificadora caracterizada por uma massificação intensa Na sociedade administrada em suma encontramos os elementos centrais responsáveis pela perda da individualidade e pela conformação do indivíduo à vontade das massas Para o filósofo a indústria cultural é puramente voltada aos negócios o cinema é tomado como exemplo em sua obra como um dos mecanismos de manipulação da massa O que antes era uma atividade de lazer do cidadão uma arte tornarase um eficaz meio de controle e manipulação visando dirimir toda forma de pensamento livre que o homem possa ter Em sua Teoria estética aborda a questão de como se dará a salvação do homem Alegava que o combate do mal com o próprio mal provou ser ineficaz e um exemplo dessa afirmação é a sucessão interminável de guerras Diante disso sustentava que a salvação do homem viria por meio da arte eis que ela liberta o homem das garras do sistema e o transforma em um ser autônomo portanto um ser humano Na arte o homem seria livre para agir pensar falar de seu modo possuindo total autonomia sobre seus atos o oposto portanto do observado na indústria cultural que trata o homem como mero objeto de consumo e trabalho e que visa a suprir a necessidade voraz do sistema vigente o consumismo Adorno cunhou a expressão apatia burguesa que é a melhor designação para a insensibilidade do mundo moderno Com ela buscava demonstrar sua crença de que que o mundo ficava cada vez mais insensível aos acontecimentos Vislumbrava ainda o ponto em que o homem tornarseia totalmente apático sem reação nenhuma a qualquer espécie de barbárie Seus textos e obras são de fato atemporais Uma espécie rara de construção intelectual que mesmo com o passar dos anos consegue permanecer atual Adorno logrou escrever de modo a sintetizar realidades diferentes sobre um mesmo contexto conduzindo o leitor a uma perspectiva diferente de análise e portanto de consciência De acordo com o filósofo é melhor manter em cada expressão em cada palavra uma insistência desconfiada Theodor Adorno e sua influência no direito Esse pensador colocava o nazismo como sinônimo de barbárie Considerava que a educação tinha o papel principal de impedir a volta da barbárie nazismo ou qualquer outra manifestação totalitária Até o fim da vida argumentou que todas as condições históricas e sociais que resultaram no nazismo continuam existindo por isso é preciso formar o caráter de crianças que bem educadas não permitirão que a violência ressurja violência que ele chamava como Freud de fuga da civilização Segundo Adorno a educação emancipa porque estimula a ojeriza à repressão Mas existem os obstáculos como a idolatria pelas máquinas e pela tecnologia o que chamava de fetichismo da técnica Isso torna o homem individualista egocêntrico e insensível e em resumo torna repressiva a sociedade inteira Ele considerava que existe uma tensão dialética entre indivíduo e Estado O pensamento de Adorno tem sido base para o debate da forma jurídica e do Estado Em especial para a análise de julgadores sobre as condições atenuantes de um delito como a violência familiar a fome a dominação do capitalismo repressivo etc DESBARBARIZAR tornouse a questão mais urgente da educação hoje em dia Theodor Adorno Herbert Marcuse e a ditadura da tecnologia Estudioso do pensamento de Hegel sobre quem escreveu sua tese de doutoramento em filosofia Hebert Marcuse integrou o Instituto de Pesquisas Sociais ao lado de Max Horkheimer e Theodor Adorno Como eles fugiu para os Estados Unidos para escapar da perseguição nazista mas diferentemente dos companheiros não quis voltar para a Alemanha depois que acabou a Segunda Guerra Mundial preferiu ficar na América lecionando Ciência Política na Universidade Brandeis e na Universidade da Califórnia Herbert Marcuse e suas circunstâncias Herbert Marcuse foi um crítico do socialismo soviético por ter se transformado em sistema totalitário Criticou também a ditadura da tecnologia que transforma o homem em uma espécie de autômato sem possibilidade de escolha Foi um dos criadores do Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt ao lado de Horkheimer e Adorno Tornouse uma espécie de guru dos estudantes europeus e suas ideias foram a base para as revoltas estudantis da Alemanha e da França no final da década de 1960 Herbert Marcuse nasceu em Berlim em 1898 Foi considerado o filósofo da revolução ao estudar profundamente o capitalismo e o comunismo Contra o capitalismo escreveu que a industrialização promoveu uma pasteurização de necessidades limitando as potencialidades individuais e praticando uma nova espécie de dominação totalitária baseada na tecnologia industrial Contra o comunismo questionou a sua transformação em um sistema totalitário baseado na burocracia e na repressão às liberdades individuais Em ambos os sistemas políticos enxergava a noção de nacionalismo como pretexto das classes dominantes para atuarem de maneira totalitária uma ideia já contida no pensamento de Karl Marx Judeu foi perseguido pela polícia política nazista e precisou refugiarse nos Estados Unidos em 1942 Além de lecionar ciência política trabalhou no Departamento de Estado norteamericano Naturalizouse cidadão norteamericano mas morreu em Frankfurt em 1979 de infarto aos 81 anos Herbert Marcuse e suas ideias Na década de 1950 publicou dois livros importantes O primeiro foi Eros e a civilização em que mostra numa perspectiva freudiana que a sociedade cria obstáculos para a realização dos desejos individuais e portanto para a concretização da felicidade O segundo foi Marxismo soviético voltado para a crítica aos desvios que os soviéticos aplicaram ao pensamento humanista de Karl Marx Para Marcuse a sociedade moderna impôs uma racionalidade tecnológica de dominação e manipulação em massa do controle da ideologia e dos pensamentos humanos Assim o homem se tornou objeto da sociedade industrial Por não ter liberdade de pensamento e estar sujeito a tal manipulação o homem não consegue se opor ao sistema e se torna completamente submisso Em Eros e a civilização 1955 Marcuse se utiliza da psicanálise para compreender melhor a repressão sexual utilizada para a autoconservação da sociedade Ele também abordou o que chamou de super repressão e princípio do rendimento segundo o qual uma série de imposições e restrições auxiliam na domesticação do homem para o convívio em sociedade De acordo com essa tese a integridade e a existência da sociedade constituem prioridades perante a conservação do indivíduo a superrepressão não apenas fragmenta as condições existenciais e sociais como também a sexualidade O conceito de superrepressão e o princípio do rendimento foram em verdade uma tentativa de Marcuse de relacionar a psicanálise de Freud com o marxismo Foram desenvolvidos com o intuito de conjugar as concepções sociológicas com as históricas da psicanálise e desse modo adequálas ao marxismo Em 1964 publicou A ideologia da sociedade industrial mostrando que o homem é produto de uma sociedade massificada esmagado pelo aparato da tecnologia sem liberdade de escolha Diz ainda que a sociedade pósindustrial é repressiva e estimula um constante estado de beligerância Nessa obra questiona o capitalismo globalizado com ideias que foram fundamentais para a eclosão dos movimentos estudantis na Alemanha e na França no final da década de 1960 Herbert Marcuse preocupouse com o desenvolvimento descontrolado da tecnologia especialmente na produção industrial que leva à massificação do consumo e à invenção de necessidades o que apartaria o homem da possibilidade de escolha Foi ele quem criou a já citada expressão sociedade unidimensional que reflete o tamanho do poder exercido pela sociedade industrial sobre o pensamento humano e as falsas necessidades criadas que integravam o indivíduo ao sistema de produção e de consumo Em 1969 envolveuse na já mencionada polêmica com seu colega da Escola de Frankfurt Theodor Adorno Marcuse manifesto defensor dos direitos estudantis digladiouse em cartas trocadas com o amigo após Adorno chamar a polícia quando teve a sala onde ministrava aulas invadida por uma manifestação estudantil Da mesma forma que Adorno Marcuse criticava os meios de comunicação de massa bem como a cultura e os modos de pensamento contemporâneos tudo a formar uma sociedade unidimensional nas ideias e no comportamento eliminando assim qualquer aptidão para o pensamento crítico Para o filósofo a tecnologia no modo de produção é fundamental como forma de modificar e organizar as relações sociais A manifestação do pensamento e dos padrões de comportamento dominantes é reproduzida de forma fiel e isso decorre diretamente da organização da estrutura industrial voltada integralmente para satisfazer as necessidades crescentes dos indivíduos Marcuse também sustentou em suas obras que a crescente produtividade de serviços e mercadorias traz hábitos e atitudes anteriormente abolidos e acaba por mobilizar a sociedade com a utópica promessa do entretenimento do lazer e do ócio Nesse sentido a sociedade tornase totalitária e pode exigir dos indivíduos a aceitação de suas instituições e princípios pois o objetivo fulcral é o aumento de produtividade para a satisfação das necessidades do homem A realidade contemporânea foi apresentada por Marcuse da seguinte forma consumir para produzir e produzir para consumir Sendo assim o indivíduo que não atinge as demandas e as necessidades de consumo e produção impostas pela sociedade sentese humilhado é esta a essência do consumismo O sistema de vida imposto pela indústria moderna é eficaz e conveniente para o trabalhador No capitalismo contestado por Marcuse os valores que predominam na sociedade estão inequivocadamente ligados a esse princípio em torno do qual tudo gira no mundo moderno o lucro As necessidades dos cidadãos que eles consideram úteis não passam de necessidades forjadas e impostas pelos interesses do capital mormente a necessidade de consumir em sobejo Sustenta Marcuse que a sociedade industrial transforma todo o progresso técnico e científico em meio de manipulação Quanto mais a tecnologia gera condições para a pacificação mais o corpo e a mente dos indivíduos são dispostos contra essa alternativa Segundo o filósofo essa é a incoerência interna desta sociedade o elemento irracional de sua racionalidade Por consequência a sociedade industrial acaba sendo estruturada de modo que a dominação do homem também sirva para utilização eficaz de seus recursos A dominação se propaga por todas as esferas das vidas privada e pública A racionalidade tecnológica mostra o seu caráter político no qual a natureza o corpo a sociedade mantêmse num estado ininterrupto de mobilização para defesa desse sistema Herbert Marcuse questiona a ideia superficial de progresso segundo a qual a produtividade é o objetivo principal afastada a indagação sobre a finalidade almejada pelo referido progresso econômico Segundo o filósofo a racionalidade tecnológica possui no capitalismo uma ligação moral indissolúvel com a manipulação política O processo de reconquista da liberdade individual somente seria viável com a denominada Grande Recusa ou seja recusar totalmente o sistema de vida estabelecido pela sociedade atual o que deveria ocorrer por meio de manifestações revolucionárias lideradas pelos jovens estudantes Marcuse acreditava que os jovens eram a melhor arma revolucionária pois o restante do povo em geral já estaria corrompido pelo sistema da sociedade industrial Herbert Marcuse e sua influência no direito Na chamada sociedade tecnológica diz Marcuse desaparecem os direitos e liberdades individuais porque o indivíduo está alienado oprimido não tem os seus valores respeitados A máquina é mais importante do que ele Com isso a sociedade se degrada É o que ele chama de mecânica do conformismo o homem sucumbe ao sistema capitalista de consumo adere às necessidades falsas veiculadas pela publicidade para de pensar e de contestar e com isso deixa de ser livre Em suma o progresso e os avanços da tecnologia acabam se transformando em instrumentos de dominação Não há como não considerar o que ocorre nos dias de hoje de consumo de massa com a invasão do espaço privado nos email nos celulares nas páginas das redes sociais Recordar Herbert Marcuse é pensar na sua contribuição ao desenvolver uma teoria social que prima pela crítica à sociedade industrial de exploração A partir de sua teoria no livro A ideologia da sociedade industrial de 1964 estudantes de vários países promoveram manifestações revolucionárias em 1968 contra o imperialismo capitalista e socialista e as ditaduras E o pensamento desse filósofo pode ajudar a explicar os movimentos de junho de 2013 nas grandes cidades brasileiras é o que ele chamou de A grande recusa em que as massas contestam fortemente a falta de autonomia imposta pelo mercado do consumo A SOCIEDADE UNIDIMENSIONAL em desenvolvimento altera a relação entre o racional e o irracional Contrastado com os aspectos fantásticos e insanos de sua irracionalidade o reino do irracional se torna o lar do realmente racional das ideias que podem promover a arte da vida Herbert Marcuse Cronologia da Escola de Frankfurt 1924 Fundação do Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt A ideia teve início durante um colóquio de que participaram Georg Lukács Pollock entre outros 1928 Benjamin vê rejeitada sua tese sobre As origens da tragédia barroca na Alemanha 1932 Criação da Revista para a Pesquisa Social editada em Leipzig entre 1932 e 1933 A revista mudou o foco de análise da economia para a filosofia social 1933 O Instituto de Pesquisas Sociais transferese para Genebra com a chegada do nazismo ao poder na Alemanha A Revista para a Pesquisa Social passa a ser editada na França 1936 Benjamin publica em francês A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica 1937 Horkheimer lança o ensaio Teoria tradicional e teoria crítica uma espécie de manifesto da Escola de Frankfurt 1938 Adorno viaja para os Estados Unidos 1939 Adorno publica Fragmentos sobre Wagner no ano em que começa a Segunda Guerra Mundial A Revista para a Pesquisa Social começa a ser editada em Nova York e muda de nome Estudos de Filosofia e Ciência Social Em 1941 a revista foi descontinuada 1940 Benjamin suicidase No mesmo ano são publicadas suas teses sobre a Filosofia da História 1947 Adorno e Horkheimer empregam pela primeira vez a expressão indústria cultural 1950 Reorganização do Instituto de Pesquisas Sociais na Alemanha Adorno publica seu estudo sobre a Personalidade autoritária 1951 Horkheimer profere as primeiras conferências sobre o conceito de razão 1954 Habermas defende tese sobre Schelling O absoluto e a história 1955 Publicação do original alemão de A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica de Walter Benjamin Herbert Marcuse publica Eros e a civilização 1956 Adorno publica Para a metacrítica da teoria do conhecimento estudos sobre Husserl e as antinomias fenomenológicas 1958 Adorno inicia uma série de publicações chamada Ensaios de literatura Herbert Marcuse publica Marxismo soviético 1959 Habermas inicia colaboração com Adorno 1961 Adorno inicia a Teoria estética 1962 Habermas publica sua tese de doutorado Evolução estrutural da vida pública 1963 Habermas publica Teoria e práxis 1964 Herbert Marcuse publica A ideologia da sociedade industrial 1966 Adorno publica a Dialética negativa 1968 Adorno conclui a primeira versão da Teoria estética No mesmo ano Habermas publica Técnica e ciência como ideologia 1969 A 6 de agosto com 66 anos falece Theodor WiesengrundAdorno 1973 A 9 de julho com 78 anos de idade morre Max Horkheimer 1979 A 29 de julho com 81 anos incompletos morre Herbert Marcuse NA TANGÊNCIA DA FILOSOFIA Sigmund Freud o criador da psicanálise Os filósofos da Escola de Frankfurt basearam muitos de seus estudos na concepção psicanalítica de Sigmund Freud Médico austríaco que viveu entre 1856 e 1939 Freud nasceu na cidade de Freiberg então pertencente ao Império AustroHúngaro hoje Pribor na República Tcheca Aos 4 anos foi levado com a família a morar em Viena em razão da falência do comércio de tecidos do pai um negociante judeu Na capital da Áustria estudou Medicina e especializouse em neurologia Foi aluno de Franz Brentano e colega de Edmund Husserl Embora tido como bemhumorado Freud sofreu de depressão principalmente por causa da perseguição praticada contra os judeus na época de sua infância e mocidade Passou a usar cocaína então um medicamento recomendado como estimulante Estudou os efeitos anestésicos da droga na medicina tendo chegado a publicar o artigo científico Sobre a cocaína em 1884 Seu primeiro livro foi Estudo sobre a histeria de 1895 explicando que muitas vezes são as emoções reprimidas que levam à histeria verificando ainda que os sintomas desaparecem quando a pessoa consegue expressarse Era o primeiro passo para estabelecer o desejo como força motora da personalidade humana A livre associação de ideias base da técnica psicanalítica é considerada a sua grande contribuição para a psicologia e a própria medicina Nessa técnica o médico estimula o paciente a exprimir sem censura qualquer coisa que lhe venha à mente exibindo assim memórias reprimidas que inconscientemente podem ter se transformado em neuroses Para confirmar suas teses Freud fez autoanálise durante anos para perscrutar a sua vida inconsciente o que lhe permitiu perceber que os sonhos são maneiras simbólicas encontradas pela mente para expressar desejos não preenchidos e memórias escondidas A partir dessa conclusão estabeleceu que os sonhos se encontram num patamar além do consciente o inconsciente e podem ajudar a explicar a razão de determinadas atitudes e comportamentos Seus dois principais livros são A interpretação dos sonhos e Psicopatologia da vida diária ambos publicados em 1899 Em 1923 escreveu O ego e o id com uma teoria completa sobre a mente humana Foi também ele quem elaborou a afamada teoria do complexo de Édipo Em 1908 criou a Sociedade Psicanalítica de Viena Um de seus seguidores foi Ernest Jones que mais tarde seria seu principal biógrafo Outros membros importantes do grupo foram Karl Abraham e Sandor Ferenczi Também discípulos inicialmente Alfred Adler e Carl Jung terminaram por discordar das ideias do mestre e criar cada um a sua teoria Adler elegeu o poder como força motora da personalidade humana e Jung colocou o indivíduo como mera parte de um todo maior que chamou de inconsciente coletivo Com a tomada de poder pelos nazistas Freud foi perseguido e teve seus livros queimados Em 1938 fugiu para a Inglaterra onde morreu um ano depois A RENÚNCIA PROGRESSIVA dos instintos parece ser um dos fundamentos do desenvolvimento da civilização humana Sigmund Freud Albert Einstein e a física moderna Nascido na cidade de Ulm na Alemanha em 1879 Albert Einstein é considerado o mais importante cientista dos séculos XIX e XX Levado pela família para a Suíça lá estudou e obteve o grau de doutor Lecionou física teórica em Berna Zurique e Praga Voltou para a Alemanha em 1914 tornandose diretor do Instituto Kaiser Guilherme de Física e professor na Universidade de Berlim Em 1933 perseguido pelos nazistas por ser judeu renunciou à cidadania alemã imigrou para os Estados Unidos e foi lecionar na Universidade de Princeton Fato interessante foi que os alemães chegaram a invadir a sua casa sob o argumento de que ele possuiria armas de destruição em massa ali escondidas Entretanto segundo os relatórios oficiais o objeto mais mortal encontrado pelos alemães nessa investida foi uma faca de cozinha Ficou muitos anos na situação de apátrida consideravase um cidadão do mundo Em 1940 adotou a cidadania norteamericana tendo ajudado grandemente os aliados contra a ameaça nazista na Segunda Guerra Mundial Em 1952 depois que a ONU criou o Estado de Israel Einstein foi convidado pelo primeiroministro Bem Gurion para assumir o posto de presidente do recémcriado Estado não aceitou porque estava doente mas colaborou com o Dr Chaim Weizmann na implantação da Universidade Hebraica de Jerusalém No início de seu trabalho científico questionou a mecânica de Newton Mais tarde com a Teoria da Relatividade publicada em 1905 com o título de Teoria Especial da Relatividade completada em 1916 com Fundamento geral da teoria da relatividade estabeleceu as conexões entre as leis da mecânica e as leis do campo eletromagnético explicando o movimento das moléculas Em 1919 durante um eclipse solar teve oportunidade de ver sua teoria da Relatividade Geral comprovada por uma série de estudos desenvolvidos na cidade de Sobral no Ceará Ganhou o Prêmio Nobel de Física de 1921 por causa de suas descobertas que propiciaram verdadeira revolução não apenas na ciência mas em todas as áreas do pensamento humano inclusive a filosofia Interessante que na época suas teorias eram ainda de tal forma desconhecidas e criticadas pela comunidade científica que o referido prêmio foi concedido tendo em vista uma de suas teorias hoje considerada diante do restante de sua produção intelectual de somenos importância aquela relacionada ao efeito fotoelétrico Einstein realizou em 1925 uma viagem à América do Sul onde visitou diversos países entre eles o Brasil Infelizmente dos relatos de Einstein acerca desta viagem ao nosso país extraise que o que mais lhe marcou a viagem foi a desorganização dos eventos em que aqui participou Importante registrar que foi devido à propaganda nazista que este grande cientista ficou mundialmente conhecido como o responsável pelo desenvolvimento da bomba atômica Entretanto na realidade justamente por ter origem alemã nunca teve qualquer participação no afamado Projeto Manhatam que se iniciou em 1941 e foi coordenado por seu amigo o físico nuclear e antifascista Julius Robert Oppenheimer A famosa carta enviada em 1955 ao então presidente dos Estados Unidos Bertrand Russell que passou para a história como o documento no qual Einstein teria incentivado as autoridades ao desenvolvimento de armas nucleares em realidade nunca teve esse escopo Ocorre que naquela época alguns físicos alemães tomaram contato com transações secretas de compra de urânio e outros materiais radioativos por parte das tropas alemães Receosos do pior houveram por bem alertar Einstein justamente por sua grande influência política e social na América Sendo assim a afamada carta apenas alertava ao presidente do risco que tais materiais poderiam representar Em verdade durante toda a sua vida Einstein foi um pacifista Sempre exortou todas as nações a abandonarem as pesquisas para a construção de bombas nucleares chegando até mesmo a aproveitarse da fama que tanto desprezava para promover diversas manifestações públicas nesse sentido Seu trabalho científico apesar de direcionado para a física propiciou aos intelectuais da época uma compreensão aperfeiçoada de todo o universo Outras obras importantes de Albert Einstein Sobre o sionismo Por que a guerra e talvez a mais famosa delas Minha filosofia Ainda no campo da Filosofia outro importante resultado adveio de suas pesquisas científicas Einstein sempre olhou com desconfiança a forma como a física pretendia explicar o Universo Na época para cada tipo de circunstância e interrelação observadas pela experiência as ciências apresentavam fórmulas e sistemas distintos para descrever os fenômenos físicos Entretanto Einstein acreditava que o Universo deveria ser considerado um todo harmônico de tal forma que não poderiam existir leis que fossem válidas para descrever uma parte de suas manifestações e ao mesmo tempo inaplicáveis à descrição de outras Resumindo essa sua inquietude intelectual chegou a afirmar Sou por natureza inimigo das dualidades Dois fenômenos ou dois conceitos que parecem opostos ou diversos me ofendem Assim agindo permaneço fiel ao espírito da ciência que desde o tempo dos gregos sempre aspirou à unidade Foi com base nesse grande objetivo que desenvolveu suas tão revolucionárias teorias Através delas conseguiu demonstrar que inúmeros fenômenos antes considerados distintos e independentes eram na realidade simples manifestações distintas de uma única realidade Assim demonstrou que o espaço e o tempo na realidade eram manifestações de uma única entidade que passou a denominar espaçotempo A partir do momento que demonstrou que essa nova entidade espaçotempo curvavase com a presença de massa também demonstrou que os conceitos de aceleração e gravidade estavam profundamente relacionados Por fim em uma das mais belas simplificações já vistas na história da ciência mundial conseguiu solucionar a grande questão que assolou filósofos e cientistas por tantos séculos demonstrou que matéria e energia não são mais que manifestações diferentes de um mesmo objeto Com isso desenvolveu essa que talvez seja a mais famosa em que pese menos compreendida fórmula de física Emc2 Entretanto ainda não estava satisfeito Observava que a física moderna ainda se encontrava e em geral até os dias atuais ainda está dividida em dois grandes campos A Física Relativística utilizada para a descrição dos fenômenos macroscópicos e a Física Quântica que ele ajudou a desenvolver utilizada para a descrição dos fenômenos microscópicos Foi com o intuito de unificálos que Einstein mergulhou em sua última e maior empreitada o desenvolvimento de uma Teoria Sobre Tudo que pudesse ser aplicada indistintamente desde as menores até as mais extremas manifestações do universo conhecido Abandonado pela comunidade científica que não acreditava ser possível semelhante formulação empreendeu sozinho essa heroica caminhada em busca daquela que ficou mundialmente conhecida como Teoria do Campo Unitário Até os dias atuais alguns dos maiores nomes da física continuam defendendo a impossibilidade dessa tese tais como o afamado professor emérito da Universidade de Cambrige e sucessor da cátedra de Isaac Newton Stephen William Hawking Entretanto sem nunca desistir desse seu propósito foi ao final de sua vida que escreveu um pequeno texto autobiográfico denominado A unidade da vida onde afirmava ter encontrado a tão buscada formulação É nesse singelo mas significativo texto até hoje não foi levado em consideração pela sociedade científica tendo em vista que não traz explicações técnicas acerca de suas afirmações que Einstein vem a concluir que todos os esforços de síntese das ciências levariam invariavelmente a um único conceito o Movimento Retomando esse conceito que como dito anteriormente já era mencionado por Heráclito de Éfeso e foi retomado por Giordano Bruno e após por Leibniz Einstein encerra seu texto com os seguintes dizeres No Princípio disse São João era o Verbo No Princípio disse Goethe era a Ação No Princípio e no Fim digo eu era o Movimento Não podemos dizer nem saber mais À força de Unificar é necessário obter algo incrivelmente simples NÃO SEI COMO SERÁ a Terceira Guerra Mundial mas a quarta será lutada com paus e pedras Albert Einstein FILÓSOFOS POSITIVISTAS DO SÉCULO XX O século XX foi marcado com significativos avanços em diversas áreas Inúmeras evoluções da tecnologia e da política determinaram a independência de antigas colônias por todo o globo Já com o advento da informática com as pesquisas nucleares e com a crise do petróleo que definiu nova abordagem econômica mundial surgem novas reflexões filosóficas e consequentemente jurídicas Uma das questões levantadas nas primeiras décadas do século foi a rejeição ao materialismo até então a doutrina dominante a partir do positivismo Alguns filósofos passaram a defender que embora a base do conhecimento continuasse a ser científica apenas a consciência permitiria a compreensão do resultado das pesquisas A consciência formaria o conjunto da cultura somada aos sentimentos e aos ideais religiosos e morais Esse movimento intelectual seria chamado de neopositivismo ou espiritualismo Henri Bergson e o fim da era cartesiana Com uma análise social que desce à grande profundidade Bergson criou um sistema filosófico que representou um marco porque contesta a dialética de Hegel e também as ideias racionais de Descartes Filosofia é uma coisa ciência é outra dizia Bergson criticando os cartesianos Seu sistema é um novo positivismo não mais baseado no materialismo da ciência mas apoiado numa visão biológica o que vale a partir de seu sistema é a consciência algo que o homem adquire como resultado do somatório de sua individualidade psíquica da vida em grupo e da cultura de sua época Henri Bergson e suas circunstâncias Henri Bergson recebeu o prêmio Nobel de Literatura em 1927 pelo conjunto de suas obras Influenciou escritores importantes como Marcel Proust e George Bernard Shaw Costumava dizer que o homem é o único animal que ri No livro Introdução à metafísica de 1903 criou um sistema filosófico que prevê que a consciência existe em dois níveis O primeiro nível está no eu profundo que o homem alcança pela introspecção intuitiva e é lá que reside a criatividade e a vontade O segundo nível é apenas uma projeção exterior do primeiro Henri Bergson nasceu em Paris em 1859 Passou a vida ensinando em vários colégios da França Produziu muitos livros propondo uma nova abordagem positiva da realidade tendo como base a consciência e não mais a subjetividade ou a história Inaugurou uma nova fase do positivismo que contesta o racionalismo do século XVII Seus livros não eram somente tratados de filosofia mas textos literários primorosos cheios de metáforas e analogias o que lhe valeu o prêmio Nobel de Literatura de 1927 Teve grande expressão nos meios acadêmicos com a sua tese de doutorado sobre o riso especialmente na área da crítica literária O riso ensaio sobre a significação da comicidade publicado em 1900 é uma retomada aristotélica da noção de que o riso é a atitude que representa de melhor forma a vida social o homem ri depois que se acostuma aos seus próprios dramas e assim acostumado tornase insensível e por essa razão deixa de dar importância aos problemas que passam a ser vistos sob uma perspectiva cômica Aristóteles falou sobre o hábito social de rir dos outros em seu livro A retórica Nessa teoria da comédia a vida é mais cômica do que dramática dizia Henri Bergson ou seja algo próximo do que Marx dizia sobre a história que se repete da primeira vez como tragédia da segunda vez como farsa Não devemos nos esquecer de que o riso na Idade Média era considerado instrumento do demônio e era proibido Morreu em 1941 Henri Bergson e suas ideias Sofreu grande influência de Herbert Spencer John Stuart Mill e Charles Darwin mas sua filosofia contesta principalmente os sistemas racionalistas desses três pensadores Determinou que o mundo real tem uma metade composta de matéria mas a outra metade é um elã vital vontade desejo alma que constitui a base da evolução Com essa ideia opunhase à seleção natural de Charles Darwin Em vários livros debateu o que considerava equívocos da filosofia e da ciência nesse estudo principalmente o dualismo almacorpo da metafísica clássica Para Bergson o conhecimento era multidisciplinar e a sua aquisição tinha grande influência da percepção Seu sistema filosófico era composto de quatro elementos O primeiro é a intuição uma capacidade intelectual que nos leva a identificar o que uma coisa tem de único O segundo é a durée duração em francês uma teoria que relaciona tempo espaço e consciência O terceiro é a memória ou seja o acúmulo de conhecimento incorporado que permite a análise comparativa de um objeto ou de um ser com outros objetos ou seres conhecidos O quarto elemento é o elã vital ou seja a alma Suas ideias são muito utilizadas em psicologia na teoria da percepção e até na música na relação tempoespaço O QUE TEM MAIS faltado à filosofia é a precisão Henri Bergson Edmund Husserl e o método fenomenológico O pensamento filosófico contemporâneo foi decisivamente influenciado por Edmund Husserl e por Henri Bergson Inicialmente dedicado a estudos matemáticos Husserl surgiu como filósofo em 1900 com o livro Investigações lógicas Em 1913 porém publicou aquela que é considerada a sua maior obra Ideias relativas a uma fenomenologia pura um aprofundamento da teoria de seu professor Franz Brentano sobre a intencionalidade da consciência humana Com esse livro estudou os fenômenos ou seja os dados reais oferecidos pela consciência Edmund Husserl e suas circunstâncias Edmund Husserl estudou com o filósofo Franz Brentano tendo sido colega de Sigmund Freud Teve como assistente quando lecionava na Universidade de Friburgo ninguém menos que Martin Heidegger que seguiria suas ideias Sua doutrina da fenomenologia foi ampliada na França principalmente na filosofia existencialista de JeanPaul Sartre e nos estudos de Merleau Ponty Edmund Husserl nasceu na Morávia uma província do então Império AustroHúngaro que hoje pertence à República Tcheca em 1859 Obteve grau de doutor em matemática na Universidade de Berlim Dedicouse à filosofia depois de ter sido aluno de Franz Brentano Foi professor nas Universidades de Halle Goettingen e Friburgo Em 1900 publicou As investigações lógicas mas ganharia prestígio em 1911 ao publicar na revista Logus um artigo chamado A filosofia como ciência rigorosa que abriu caminho para a produção da sua obra mais importante Ideias relativas a uma fenomenologia pura e uma filosofia fenomenológica publicada em 1913 Produziu ainda muitos outros livros cujos originais tiveram que ser levados para o exterior porque seus trabalhos foram proibidos na Alemanha nazista Vários dos seus livros só seriam publicados depois do fim da Segunda Guerra Mundial Husserl não testemunhou isso porque morreu em 1938 Ainda existem escritos inéditos seus guardados na Universidade de Louvain na Bélgica e na Universidade de Colônia na Alemanha Para entender a fenomenologia de Franz Brentano A fenomenologia foi a teoria elaborada pelo filósofo alemão Franz Brentano que viveu entre 1838 e 1917 Autor do livro Psicologia a partir de um ponto de vista empírico Brentano buscou sistematizar o que chamava de ciência da alma Para esse alemão no relacionamento entre o físico e o psíquico era mais importante o processo mental do que o conteúdo da mente Brentano propunha a eliminação da distinção entre sujeito e objeto ao contrário do que queriam os positivistas do século XIX Acreditava que a mente podia referirse aos objetos de três maneiras por meio da percepção e da idealização para isso usava a sensação e as imagens pelo julgamento que seria baseado em reconhecimento rejeição e recordação e pelo amor ou pelo ódio ambos baseados em desejos vontade e sentimentos Edmund Husserl e suas ideias O método fenomenológico de Husserl consiste simplesmente em mostrar o objeto o dado real e em esclarecer esse dado Por isso o saber está baseado na essência do objeto e não nas impressões do sujeito sobre o objeto Nesse sentido Husserl é positivista No entanto seu método considera que o objeto é mais do que aquilo que se pode verificar com a experiência sensível É exatamente nisso que reside a originalidade de Husserl Ele queria ver o mundo de maneira pura despida de impressões comparações ou associações Ao buscar a essência de cada objeto ou ser nessa chamada consciência pura Husserl escapa do racionalismo que dizia que o conhecimento se originava somente da razão do sujeito e ao mesmo tempo escapa do empirismo que dizia que o conhecimento era obtido apenas por meio da experiência sobre o objeto EU EXISTO e tudo o que não sou eu é um mero fenômeno que se dissolve em ligações fenomenais Edmund Husserl Bertrand Russell e a filosofia na vida política Considerado um dos fundadores da filosofia analítica foi um matemático britânico cuja principal contribuição está contida no livro Principia mathematica Princípios matemáticos Nesse livro desenvolveu a chamada Teoria dos Tipos Segundo essa teoria matemática existe uma hierarquia nas coisas um conjunto não pode ser membro de si mesmo nem de qualquer conjunto de tipo inferior Com esse livro Bertrand Russell entrou para a história como um dos maiores lógicos do século XX Mas não foi somente na matemática que a contribuição de Bertrand Russell é apreciada Ao longo de sua extensa carreira morreu aos 97 anos escreveu também sobre educação história teoria política e religião Bertrand Russell e suas circunstâncias Bertrand Russell foi contemplado com o prêmio Nobel de Literatura em 1950 É considerado um dos maiores lógicos do século XX Escreveu alguns livros de modo bastante simples contribuindo para a popularização da filosofia Foi um dos fundadores da filosofia analítica Além de filósofo foi ativista político participando de importantes protestos contra as guerras e contra as armas nucleares Bertrand Russell nasceu em 1872 no País de Gales Foi criado pelo avô Lord John Russell ex primeiroministro britânico Estudou filosofia e lógica na Universidade de Cambridge Iniciou carreira publicando ensaios em revistas especializadas Durante a Primeira Guerra Mundial foi um ativista político Em razão de seus protestos contra a guerra foi expulso do Colégio Trinity e mais tarde condenado a cinco meses de prisão Foi na prisão em 1918 que escreveu Introdução à filosofia matemática Depois da Primeira Guerra Mundial viveu na Rússia e na China Tornouse conhecido escrevendo livros populares sobre ética e filosofia Voltou para a Inglaterra onde fundou uma escola experimental chamada Beacon Hill Chegou a concorrer a uma vaga no Parlamento inglês por três vezes e por três vezes foi derrotado em 1907 1922 e 1923 Em 1939 foi morar nos Estados Unidos onde lecionou na Universidade da Califórnia e depois no City College de Nova York mas teve sua nomeação como professor anulada por causa de suas opiniões radicais Ainda assim permaneceu nos Estados Unidos até 1944 quando retornou para a Inglaterra voltando a lecionar no Colégio Trinity de onde fora expulso em 1916 Não deixou de ter participação política nos eventos mundiais Em 1957 foi o responsável por uma campanha global pelo desarmamento nuclear de cuja origem participaram grandes nomes como o de Albert Einstein no movimento denominado Pugwash Pugwash uma cidade do Canadá foi onde Bertrand Russell e Joseph Rotblat promoveram as Conferências sobre Ciência e Negócios Mundiais depois da publicação do Manifesto RussellEinstein ver adiante neste tópico Em 1962 Bertrand Russell foi mediador na famosa crise dos mísseis em Cuba e sua ingerência impediu a ocorrência de um conflito atômico que poderia ter assumido repercussão mundial Também nos anos 1960 protestou ferozmente contra a intervenção norteamericana no Vietnã Em 1963 criou a Fundação Bertrand Russell para a Paz Morreu em 1970 Bertrand Russell e suas ideias Esse pensador promoveu a famosa distinção entre duas espécies de conhecimento da verdade Uma delas é direta intuitiva e infalível A outra é indireta derivativa e sujeita a erro Cada conhecimento indireto só pode ser justificado se derivar de um conhecimento direto Por exemplo quando alguém sente calor ou frio sente sem precisar perguntar a um cientista se realmente está fazendo calor ou frio Portanto a verdade que pode ser conhecida diretamente está embasada sobre fatos imediatos da sensação e verdades lógicas Bertrand Russell considerava que uma das tarefas dos filósofos era descobrir uma linguagem logicamente ideal que pudesse evidenciar a verdadeira natureza do mundo de modo a impedir desentendimentos decorrentes da estrutura vaga e ambígua da linguagem natural uma ideia que Ludwig Wittgenstein desenvolveria mais profundamente Por exemplo separou três diferentes sentidos da forma verbal é Esse verbo pode ser usado para indicar predicado identidade ou existência Sendo assim propôs usar um símbolo para cada sentido para determinar logicamente a intenção de quem formula a frase Desse modo pensava ele seria possível dar clareza e lógica a uma afirmação filosófica A EDUCAÇÃO é a chave para o novo mundo Bertrand Russell O Manifesto RussellEinstein Em 1954 o mundo ainda estava estarrecido diante da brutalidade que fora o lançamento pelos Estados Unidos de duas bombas atômicas sobre o território japonês que atingiram Hiroshima e Nagasaki Mas desde 1946 os Estados Unidos vinham fazendo testes com bombas de hidrogênio e bombas nucleares detonando mais de vinte ogivas no Atol de Bikini pertencente às Ilhas Marshall Em 1954 Bertrand Russell leu na BBC um texto que teve por título O perigo do homem condenando os testes no Atol de Bikini Em 1955 Bertrand Russell escreveu junto com Albert Einstein um manifesto contra o uso bélico desses artefatos A seguir o texto do manifesto numa tradução livre de nossa autoria Na trágica situação que a humanidade enfrenta entendemos que os cientistas devem se reunir em conferência para avaliar os perigos que surgiram como resultado do desenvolvimento de armas de destruição em massa e para discutir uma resolução de acordo com o espírito do rascunho anexado Estamos falando nesta ocasião não como membros deste ou daquele país continente ou credo mas como seres humanos membros da espécie humana cuja sobrevivência está em dúvida O mundo está cheio de conflitos e fazendo sombra a todos os conflitos menores a luta titânica entre comunismo e anticomunismo Quase todo mundo que é politicamente consciente tem fortes sentimentos acerca de uma ou mais dessas questões mas queremos que você se puder ponha de lado esses sentimentos e considerese apenas como membro de uma espécie biológica que teve uma excelente história e cujo desaparecimento nenhum de nós deseja Tentaremos não usar qualquer palavra que possa indicar apelo a um grupo em detrimento de outro Todos igualmente estamos em perigo e se o perigo for compreendido há esperança de que possamos coletivamente evitálo Temos de aprender a pensar de um jeito novo Temos de aprender a nos perguntar não sobre os passos que devem ser tomados para dar vitória militar para qualquer grupo que preferimos uma vez que não existem esses passos a questão que temos de nos perguntar é esta que medidas podem ser tomadas para evitar uma corrida militar que deve ser desastrosa para todas as partes O público geral e mesmo muitos homens em posições de autoridade não se aperceberam de que estariam envolvidos em uma guerra com bombas nucleares O público geral ainda pensa em termos de obliteração de cidades É claro que as novas bombas são mais poderosas do que as velhas e que enquanto uma bomba A pôde obliterar Hiroshima uma bomba H poderia obliterar cidades maiores como Londres Nova York e Moscou Sem dúvida numa guerra travada com bomba H as grandes cidades seriam obliteradas Mas esta é uma das menores catástrofes que teriam de ser enfrentadas Se todos em Londres Nova York e Moscou fossem exterminados o mundo poderia no decurso de poucos séculos se recuperar do golpe Mas sabemos agora especialmente desde o teste em Bikini que bombas nucleares podem gradualmente espalhar destruição sobre uma área muito mais vasta do que antes se supunha Afirmase com grande autoridade que a bomba que agora pode ser fabricada será 2500 vezes mais poderosa do que aquela que destruiu Hiroshima Tal bomba se explodir perto do chão ou sob a água enviará partículas radiativas para a atmosfera superior Essas partículas descerão gradualmente e alcançarão a superfície da terra sob a forma de pó ou chuva letal Foi um pó assim que infectou pescadores japoneses e suas cargas de peixes Ninguém sabe quão largamente tais partículas radiativas letais poderão ser difundidas mas os melhores especialistas são unânimes em afirmar que uma guerra com bombas H poderia possivelmente pôr fim à raça humana O que se teme é que se muitas bombas H forem utilizadas haverá a morte universal súbita apenas para uma minoria mas para a maioria uma lenta tortura de doença e desintegração Muitos avisos têm sido emitidos por eminentes homens de ciência e por autoridades em estratégia militar Nenhum deles dirá que os piores resultados são certos O que eles dizem é que esses resultados são possíveis e ninguém pode ter certeza de que não se realizarão Ainda não concluímos se as opiniões de peritos sobre esta questão dependem em algum grau de suas convicções políticas ou de seus preconceitos Elas dependem apenas pelo que revelam nossas pesquisas da extensão do conhecimento de cada especialista em particular O que verificamos foi que os homens que mais sabem são ao mesmo tempo os mais sombrios Eis portanto o problema que apresentamos a vocês completo terrível e inescapável devemos dar fim à raça humana ou deve a raça humana renunciar à guerra As pessoas não enfrentarão essa alternativa porque é muito difícil abolir a guerra A abolição da guerra exigirá desconfortáveis limitações para a soberania nacional Mas o que talvez impeça a compreensão da situação acima de tudo é que o termo humanidade parece vago e abstrato As pessoas raramente percebem em sua imaginação que o perigo existe para si mesmas e para seus filhos e netos e não apenas para uma indistintamente apreendida humanidade Dificilmente as pessoas entenderão que elas individualmente e aqueles a quem amam estão em risco iminente de morte agonizante E assim alimentam esperanças de que talvez a guerra possa continuar desde que armas modernas sejam proibidas Essa esperança é ilusória Embora acordos de não utilização de bombas H sejam alcançados em tempo de paz em tempos de guerra esses acordos perdem a validade e ambos os lados iniciariam a fabricação de bombas H assim que a guerra fosse desencadeada para prevenir que se um dos lados construísse a bomba e os outros não o lado que construísse inevitavelmente acabaria vitorioso Embora um acordo de renúncia a armas nucleares como parte de uma redução geral de armamento não garantisse uma solução definitiva serviria para importantes propósitos Em primeiro lugar qualquer acordo entre Oriente e Ocidente é bom na medida em que tende a diminuir a tensão Em segundo lugar a abolição das armas termonucleares se cada um dos lados acreditasse que o outro a encarasse sinceramente reduziria o receio de um ataque súbito no estilo de Pearl Harbour o que hoje mantém ambos os lados em estado de nervosa apreensão Devemos portanto saudar esse acordo ainda que apenas como um primeiro passo A maioria de nós não é neutra em sentimento mas como seres humanos temos de lembrar que se as questões entre Oriente e Ocidente devem ser decididas de tal maneira a dar alguma satisfação a alguém seja comunista ou anticomunista seja asiático ou europeu ou americano seja branco ou negro então essas questões não devem ser decididas pela guerra Desejaríamos que isto fosse compreendido tanto no Oriente quanto no Ocidente Está aí diante de nós se assim o escolhermos contínuo progresso em felicidade conhecimento e sabedoria Devemos ao contrário escolher a morte porque não conseguimos resolver nossas querelas Apelamos como seres humanos para seres humanos lembremse de sua condição humana e esqueçam do resto Se puder fazer isso o caminho permanece aberto para um novo Paraíso se não pode está diante de si o risco de morte universal Resolução Convidamos este Congresso e por meio dele os cientistas do mundo e o público em geral a subscrever a seguinte Resolução Tendo em vista o fato de que em qualquer futura guerra mundial armas nucleares serão certamente utilizadas e que tais armas ameaçam a continuidade da existência da humanidade exortamos os governos do mundo a assumir e a reconhecer publicamente que o seu propósito não pode ser fomentado por uma guerra mundial e os exortamos consequentemente a encontrar meios pacíficos para a solução de todas as questões de litígio entre elas Max Born Percy W Bridgman Albert Einstein Leopold Infeld Frederic JoliotCurie Herman J Muller Linus Pauling Cecil F Powell Joseph Rotblat Bertrand Russell Hideki Yukawa Para entender o paradoxo de Russell Em 1901 descobriu o famoso paradoxo de Russell com grande repercussão no campo da lógica O paradoxo tem a seguinte formulação Há em Sevilha um barbeiro que reúne as duas condições seguintes 1 Faz a barba a todas as pessoas de Sevilha que não fazem a barba a si próprias e 2 Só faz a barba a quem não faz a barba a si próprio O paradoxo nessa proposição é o seguinte se o barbeiro de Sevilha faz a barba a si próprio não pode fazer a barba a si próprio para não violar a condição 2 mas se não fizer a barba a si próprio então tem de fazer a barba a si próprio pois essa é a condição 1 Foi a partir desse paradoxo que Bertrand Russell desenvolveu a sua Teoria dos Tipos POR QUE REPETIR ERROS ANTIGOS se há tantos erros novos a escolher Bertrand Russell Carlos Cossio e a teoria egológica Segundo Carlos Cossio mais importante do que a lei é a conduta do indivíduo e sua interação com outras condutas em sociedade Carlos Cossio e suas circunstâncias Carlos Cossio criou o egologismo jurídico uma aplicação das noções da fenomenologia existencial à experiência jurídica É uma teoria da liberdade inspirada em Hans Kelsen Carlos Cossio nasceu em 1903 na Argentina Foi militante universitário e participou ativamente do movimento que resultou na reforma universitária argentina Foi professor de Filosofia do Direito nas Universidades de La Plata e de Buenos Aires Publicou A valoração jurídica e a ciência do direito em 1941 mas retomaria a teoria egológica em outras obras publicadas entre 1944 e 1963 Estudou também em profundidade a verdade jurídica Morreu em 1987 Carlo Cossio e sua influência no direito A teoria egológica que desenvolveu é um estudo sobre o direito como a tutela da conduta humana em sociedade Ego significa eu portanto egologia é o estudo direto do indivíduo do sujeito Cada homem tem as suas especificidades portanto é importante segundo o criador da teoria egológica que cada homem seja partícipe da elaboração da norma jurídica Carlos Cossio buscou inspiração na fenomenologia de Edmund Husserl para compor essa teoria do direito A fenomenologia apresentava cinco noções fundamentais para permitir a análise despojada de qualquer fenômeno intencionalidade temporalidade transcendência subjetividade e liberdade A essas noções Carlos Cossio agregou os valores Segundo ele valores são a soma dos valores pessoais os valores da sociedade e mais os chamados valores do direito que incluem justiça solidariedade paz poder segurança e ordem Em resumo Carlos Cossio sugere que para construir a normatividade jurídica é preciso fazer a análise da relação que o sujeito tem com a norma jurídica por meio dos seus atos São famosos os debates que Carlos Cossio travou com Hans Kelsen porque este defendia que a normatividade prescindia da análise da conduta Cossio ao contrário considerava necessário para entender um fenômeno em sua totalidade analisar todos os seus elementos formais e materiais Defendia também que a norma contém elementos lógicos estimativos e dogmáticos e que é tarefa do jurista considerálos Para ele dogmática jurídica é a experiência jurídica vista como uma unidade A lógica jurídica afirma que uma norma não se resume a um enunciado um ser em relação a um objeto mas a uma definição do deverser E finalmente a estimativa jurídica é a utilização de valores para a identificação da verdade ou do erro jurídico MAIS IMPORTANTE que a própria norma é a conduta humana e a interação do ego em sociedade sendo que uma de suas projeções é o deverser Carlos Cossio Ludwig Wittgenstein e a precisão da linguagem O austríaco Ludwig Wittgenstein engenheiro mecânico de formação dedicouse a estudos matemáticos e por essa razão aproximouse de Bertrand Russell na Inglaterra Frequentou as aulas de Russell em Cambridge e interessouse em aprofundar os conhecimentos de lógica que obteve do mestre Uma questão que aproximou grandemente os dois estudiosos foi o uso da linguagem na filosofia Ambos acreditavam que a linguagem devia expressar a realidade essencial dos fatos e que cabia aos filósofos trabalhar a linguagem para que as proposições fossem claras e impedissem desentendimentos Essa afirmação seria modificada por Wittgenstein no fim da vida naquela que seria chamada de sua segunda fase quando admitiu que o inverso é que era verdadeiro a linguagem revela a nossa concepção de mundo e não o mundo é que determina a nossa linguagem Ludwig Wittgenstein e suas circunstâncias Ludwig Wittgenstein concebeu o seu Tratado lógicofilosófico com base em sete proposições em torno da ideia de que o pensamento e a linguagem são imagens lógicas da realidade Trabalhou com a noção de que o significado de uma palavra depende da sua inserção na linguagem introduziu a noção de jogos de linguagem como chamava esse fenômeno linguístico Foi aluno de Gottlob Frege e de Bertrand Russell Integrou o círculo de Viena Somente depois de sua morte em 1951 seu segundo livro foi publicado Ludwig Wittgenstein nasceu em Viena na Áustria em 1889 Vinha de família rica Estudou engenharia mecânica no seu país de origem Seguiu em 1908 para a Inglaterra a fim de estudar engenharia aeronáutica em Manchester onde se aproximou de Gottlob Frege filósofo e matemático alemão considerado o principal criador da moderna lógica matemática Por sugestão de Frege entre 1911 e 1913 foi aluno de Bertrand Russell de quem se tornou grande amigo Em 1914 ao eclodir a Primeira Guerra Mundial voltou para a Áustria e alistouse no Exército austríaco Foi capturado em 1917 e permaneceu preso até o fim da guerra Durante o confinamento aproveitou para fazer as anotações para o seu livro Tratado lógicofilosófico publicado em alemão em 1921 e um ano depois traduzido para o inglês Em 1922 publicou o Tratado lógicofilosófico que recebeu introdução de Bertrand Russell No prefácio o mestre dizia que certamente o aluno resolveria problemas matemáticos que ele estava muito velho para resolver Sofreu influência da filosofia existencialista Seu livro trata de problemas centrais da filosofia que têm a ver com as relações entre a realidade o pensamento e a linguagem Passou a frequentar o chamado Círculo de Viena até 1929 quando decidiu voltar para a Inglaterra Conduziu seminários em Cambridge famosos pelas rusgas que manteve com alunos Suas anotações de aulas constituiriam seu livro seguinte Investigações filosóficas que ele só permitiu que fosse publicado postumamente No final da vida retratouse a respeito do que disse em seu Tratado lógicofilosófico mudando de ideia especialmente em relação ao papel da linguagem Debateu frequentemente sobre o sentido das coisas e sobre a falta de sentido em algumas delas sense e nonsense Achava que atrás da ineficiência da linguagem estava a falta de sentido ou seja uma proposição que não queria dizer coisa alguma Ludwig Wittgenstein achava que filosofia não era uma doutrina mas algo que devia estar acima ou abaixo das ciências naturais e nunca ao lado delas A filosofia dizia ele apenas põe as coisas diante de nós não deduz nada Já que tudo está diante de nós para ser visto nada há que explicar Morreu de câncer em 1951 Ludwig Wittgenstein e suas ideias Wittgenstein apresenta soluções baseadas na lógica e na natureza da representação Para ele o mundo é representado pelo pensamento desde que mundo pensamento e linguagem tenham a mesma forma lógica Portanto pensamento e linguagem ou proposição como a chamava podem ser imagens lógicas dos fatos E a imagem para Wittgenstein era o modelo da realidade Para ele diferentemente do que pensavam os atomistas o mundo era feito de fatos e não de objetos Cada proposição é o resultado de sucessivas aplicações de operações lógicas a proposições elementares ou seja a estrutura da linguagem revela a estrutura do mundo portanto revela a nossa concepção sobre a realidade Cada proposição dizia Wittgenstein tem valor igual A FILOSOFIA deve tornar claros e delimitar rigorosamente os pensamentos que de outro modo são turvos e vagos Ludwig Wittgenstein O Círculo de Viena e o positivismo lógico O mundo ocidental do século XIX estava atrelado quase obrigatoriamente a duas correntes de pensamento filosófico que contestavam o idealismo da Teoria do Conhecimento os positivistas seguidores da doutrina de Kant e os fenomenologistas baseados na doutrina de Hegel Nenhuma das duas correntes porém parecia satisfazer os cientistas na sua necessidade de estabelecer os fundamentos da ciência Além disso Ludwig Wittengestein tinha jogado uma pá de cal na metafísica não apenas abolindo o dualismo inerente a ela almacorpo interiorexterior serparecer mas rejeitando todo conhecimento que não pudesse ser validado pela experiência Para discutir a filosofia da ciência e buscar nas ciências a fundamentação do verdadeiro conhecimento um grupo de cientistas de áreas diversas como a física e a economia passou a se reunir na Universidade de Viena na Áustria por volta de 1922 O elemento catalisador do grupo era Moritz Schlick professor de Filosofia da Natureza daquela universidade Os debates que esses homens empreenderam levaram à criação de uma corrente de pensamento que ficaria conhecida como positivismo lógico Apesar de eminentemente empiristas ou seja de considerarem que o conhecimento científico só chega à verdade por meio da experiência os participantes desse grupo levaram em conta as então modernas concepções da lógica e da matemática para o estudo do processo de aquisição do conhecimento por influência principalmente de Bertrand Russell Einstein Frege e Wittgenstein Por esse motivo o positivismo lógico também recebeu a denominação de empirismo lógico porque tinha como base o princípio da verificabilidade o que excluía forçosamente da filosofia as especulações metafísicas A liderança do grupo inicialmente era desempenhada por Philipp Frank Moritz Schilick Otto Neurath e Hans Hahn Alguns anos mais tarde o trio ganhou a participação de Friedrich Waismann Herbert Feigl Karl Gödel e Rudolf Carnap Esse último ao lado de Hans Hahn e Otto Neurath redigiu em 1929 o manifesto A visão científica do mundo o Círculo de Viena Estava batizado o grupo que com esse nome passou para a história A principal influência do grupo foi a filosofia analítica que parte da lógica da linguagem preconizada por Bertrand Russel e Ludwig Wittgenstein Entre os anos de 1930 e 1938 o Círculo de Viena editou a revista Erkemtnis Quando a Áustria foi ocupada pelas tropas de Hitler na invasão denominada Anschluss em 1938 alguns dos integrantes tiveram que fugir para o exterior e outros morreram Moritz Schlick e suas circunstâncias Moritz Schlick publicou várias obras que contestavam a teoria de Immanuel Kant Foi também o responsável por inserir a ética como ramo da filosofia O manifesto A visão científica do mundo o Círculo de Viena foi escrito em sua homenagem Moritz Schlick que viveu entre 1882 e 1936 foi o grande incentivador das reuniões regulares do grupo na Universidade de Viena onde lecionava É considerado o criador do positivismo lógico Alemão de Berlim estudou física tendo sido aluno de Max Planck o pai da física quântica que ganhou o prêmio Nobel de Física de 1918 Aos 23 anos de idade escreveu um ensaio sobre a Teoria Especial da Relatividade de Einstein que lhe propiciou prestígio Aos 30 anos já era professor de filosofia na Universidade de Viena Foi nessa época que liderou a formação da Associação Ernst Mach rebatizada em 1929 como Círculo de Viena para discutir filosofia e ciência O tema constante dos debates era o livro Tratado lógico filosófico de Wittgenstein O próprio autor chegou a ser convidado e compareceu a algumas das reuniões Quando os nazistas subiram ao poder promoveram intensa perseguição aos intelectuais alemães e austríacos que não seguiam os mandamentos políticos da socialdemocracia e por isso vários integrantes do Círculo de Viena tiveram de fugir Schlick apesar das ameaças de perseguição escolheu continuar lecionando na Universidade de Viena Em junho de 1936 numa discussão a respeito de um trabalho um aluno nazista o assassinou com um tiro no peito nas escadarias da universidade Rudolf Carnap e suas circunstâncias Rudolf Carnap enriqueceu o princípio da verificabilidade instituído pelos pensadores do Círculo de Viena com outro princípio o da confirmabilidade que é a possibilidade de uma teoria proposição ou questão que não tenha caráter geral ser confirmada gradualmente pela experiência Rudolf Carnap 18911970 foi o responsável pelo Manifesto do Círculo de Viena e considerado um dos principais membros Como Wittgenstein foi aluno de Gottlob Frege Alemão Carnap doutorouse em física na Universidade de Jena aos 30 anos e logo foi convidado para o cargo de professor assistente de Schilik desse modo passando a frequentar as reuniões do Círculo de Viena Em 1930 assumiu o papel de editor da revista Erkenntnis dividindo a tarefa com Hans Reichenbach criador do Círculo de Berlim uma associação muito semelhante ao Círculo de Viena da qual diferia apenas em alguns pontos de vista Perseguido pelos nazistas emigrou para os Estados Unidos Lecionou nas Universidades de Chicago Harvard Princeton e Los Angeles Naturalizouse norteamericano em 1941 Publicou algumas obras entre as quais se destacam A construção lógica do mundo e Sintaxe lógica da linguagem Seus estudos principais tinham por base as proposições ou seja a linguagem Morreu nos Estados Unidos em 1970 Karl Popper e suas circunstâncias Karl Popper criou a expressão racionalismo crítico para nomear a sua filosofia que rejeitava o empirismo clássico Como todos os integrantes do Círculo de Viena apreciava Wittgenstein e dedicouse a estudar a filosofia da linguagem Karl Raimund Popper 19021994 austríaco foi outro dos integrantes do Círculo de Viena a se refugiar no exterior por causa da ascensão do nazismo Em 1937 fugiu para a Nova Zelândia e em 1946 mudouse para a Inglaterra para trabalhar como professor da renomada London School of Economics e naturalizouse inglês Graças à sua atuação como filósofo social e político defendendo a democracia liberal e protestando contra qualquer espécie de autoritarismo foi nomeado cavaleiro da Rainha Elisabete II em 1965 Em 1982 recebeu a importante comenda de Companheiro de Honra Companion of Honour No Círculo de Viena sua contribuição foi o critério da falsibilidade ou falseacionismo ou ainda falseabilidade segundo o qual uma teoria somente pode ser considerada científica se admitir refutação pelos fatos Por isso mesmo era contrário à metafísica porque contém afirmações que não podem ser nem comprovadas nem refutadas cientificamente Com esse critério demarcava a distinção entre o que é e o que não é ciência Dizia que o papel da filosofia era buscar provas de que uma ou outra teoria é falsa para que nova teoria ocupe o seu lugar Como se pode deduzir considerava a verdade inalcançável mas acreditava que a busca da verdade por meio de tentativas é um caminho correto para o conhecimento Morreu em 1994 O EXISTENCIALISMO Como vimos a fenomenologia de Edmund Husserl afirmava que a vivência subjetiva é mais importante do que a realidade objetiva Husserl procurava compreender os fenômenos tais como eles se apresentam sem se preocupar com o conhecimento da natureza essencial dos fenômenos ou seja o importante é a existência Também vimos que antes mesmo de Husserl Sören Kierkgaard valorizava a reflexão de cada homem sobre si mesmo e que considerava o homem dotado de liberdade e responsabilidade e que não era um ser prédefinido ao nascer Ao contrário à medida que o homem vive existe adquire novas experiências e a partir delas redefine seu pensamento Aí está novamente a existência como ponto fundamental Somando essas duas correntes dois filósofos e literatos o alemão Martin Heidegger e o francês JeanPaul Sartre definiram os conceitos e proposições do existencialismo logo depois do encerramento da Segunda Guerra Mundial A base desse pensamento é esta o homem tem responsabilidade sobre seu próprio destino porque é dotado de livrearbítrio Dado que o homem tem livrearbítrio e não está preso a qualquer condição previamente determinada sua existência é mais importante do que a sua essência Existir simplesmente retira então do homem as preocupações repassadas pelas descobertas da ciência ou pelas revelações da fé A própria vida é uma constante aquisição de conhecimento e consequente construção do ser humano E à medida que vai vivendo vai existindo o homem procura encontrar o sentido da própria existência diante das circunstâncias e dos acontecimentos que muitas vezes não compreende Suas escolhas é que vão definir a sequência seguinte desses acontecimentos É por isso que segundo Sartre o viver é sempre acompanhado de angústia porque o homem abandona opções quando faz a escolha de uma das possibilidades apresentadas a ele O existencialismo e o direito Por causa das rejeições a preceitos científicos e religiosos o existencialismo é considerado um dos movimentos filosóficos mais radicais da história Desse modo o existencialismo de Sartre tem grande relação com o direito natural e pouco influenciou o direito adotado no Brasil que é positivista Sartre deu espaço em suas considerações para essa angústia que acomete o homem de errar ao escolher seus atos e assim ferir o direito natural das pessoas que serão influenciadas pelas suas decisões Essas escolhas segundo Kierkgaard estão categorizadas em três opções principais estética o homem escolhe para aproveitar o máximo que puder daquele momento ética buscando viver de acordo com preceitos morais corretos e religiosa apoiada sobre a fé e a crença dada pela religião Embora Heidegger tenha sido o formulador inicial do existencialismo com o livro O ser e o tempo publicado em 1927 foi Sartre quem deu nome a essa corrente filosófica no seu tratado filosófico O ser e o nada de 1943 Martin Heidegger e o sernomundo O existencialismo não recomenda apenas viver a vida porque isso significaria simples sobrevivência O homem deve voltarse para si mesmo indagar aprender até mesmo por meio da angústia natural e assim enriquecer a existência Martin Heidegger e suas circunstâncias Martin Heidegger foi o criador do existencialismo corrente que Sartre prosseguiu na França Seu livro mais importante O ser e o tempo trata da existência humana sempre relacionada com o tempo Propõe que o homem viva intensamente o momento presente o aqui e agora em razão da finitude humana E afirma que o homem tem uma angústia atávica relacionada com a única certeza que tem a morte O alívio a essa angústia deve ser o relacionamento com as outras pessoas para o enriquecimento da existência É considerado o líder da Escola de Weimar da qual participaram Karl Jaspers e Hannah Arendt Martin Heidegger nasceu na Alemanha em 1889 na região da Suábia Assistiu na mocidade à queda do II Reich alemão com a derrota para os países aliados e a deposição do Kaiser Guilherme II Viveu a fase da República de Weimar com o florescimento da intelectualidade alemã A Alemanha foi o centro cultural do Ocidente durante os quinze anos que durou a República de Weimar terminaria com a ascensão de Hitler ao poder O país viveria depois disso anos de conflito político entre comunistas e nazistas Heidegger jamais publicou comentários sobre a filosofia de Karl Marx de quem foi contemporâneo Ultraconservador apoiou o partido nacionalsocialista cerrando fileira ao lado do filósofo nazista Carl Schmidt Chegou a se filiar ao partido nazista em 1933 para auxiliar na chamada revolução parda de Adolf Hitler que dizia pretender implantar uma nova ordem na Alemanha Contase que teria dito a Alfred Rosemberg ministro da Cultura do III Reich que para construir uma nação era necessário haver Dichter Führer und Denker o poeta o chefe político e o filósofo O poeta seria Hölderlin o líder político Adolf Hitler e o filósofo o próprio Heidegger Depois da derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial foi proibido de lecionar Nunca se retratou pela participação no partido nacionalsocialista Filho de um sacristão católico pobre Martin Heidegger conseguiu bolsa de estudos para o Liceu de Constança em 1903 Em 1909 ingressou no seminário de Friburgo onde desenvolveria um ensaio de defesa ao monge Abraham a Sancta Clara cujo nome real era Uleich Megeele importante orador alemão reconhecido como xenófobo e antissemita Esses estudos possivelmente o aproximariam mais tarde da doutrina nazista da raça superior Mas em 1919 deixou o seminário e rompeu definitivamente com o catolicismo Também na Universidade de Friburgo foi aluno e assistente de Edmund Husserl o fundador da fenomenologia A partir daí dedicouse ao desenvolvimento do existencialismo Lecionou na Universidade de Marburgo época em que teve relacionamento amoroso com a aluna Hannah Arendt Martin Heidegger e suas ideias O existencialismo afirma que a arte deve ser instrumento de promoção da liberdade Por isso a corrente filosófica de Sartre influenciou a partir da década de 1950 várias gerações de escritores Albert Camus e Simone de Beauvoir por exemplo e artistas plásticos Bernard Buffet por exemplo e até psicoterapeutas Ronald David Laing por exemplo Também influenciou fortemente a moda e a música especialmente entre os jovens nos anos 60 e 70 Martin Heidegger foi assistente de Edmund Husserl e cuidou de editar vários de seus escritos Seu pensamento foi uma mescla da fenomenologia de Husserl dos estudos de Nietszche e do existencialismo de Kierkgaard Por ter apoiado os nazistas em 1931 que preparavam a Segunda Guerra Mundial para implantar o III Reich alemão foi visto com reservas pelos intelectuais europeus durante muitos anos mas depois passou a ser reconhecido como um dos mais influentes pensadores do século XX Seu livro mais importante é O ser e o tempo publicado em 1927 Teve como escopo investigar a natureza do ser e a sua existência de onde vem o nome de existencialismo à filosofia que desenvolveu Foi uma retomada do pensamento dos gregos clássicos no estudo da ontologia O existencialismo de Heidegger negou a metafísica clássica e negou Deus Sem a predestinação imposta pela religião o homem era responsável pelo seu destino que resultava de suas próprias escolhas e de seus próprios atos Essa solidão dizia Heidegger levava o homem a viver em estado de angústia sabendo que a existência é transitória e que a morte é certa Sua doutrina define três fenômenos que regem a existência a afetividade a memória do passado que serve para julgar os acontecimentos presentes a fala sua ligação direta com o momento presente e o entendimento com que julga o passado e projeta o futuro Martin Heidegger e sua influência no direito Com o existencialismo a liberdade volta para a discussão da filosofia Principalmente no seu envolvimento com o conceito de moral dado que o homem é um ser social e os seus atos esbarram forçosamente nos outros A repercussão do existencialismo no direito assume assim relação com a liberdade O debate jurídico ganhou praticidade porque a liberdade deixou de ser tomada apenas como conceito essencial e passou a ser encarada como prática diária e casos exemplares de constrangimento à liberdade ilustraram o cotidiano jurídico O HOMEM age como se fosse o senhor e mestre da linguagem enquanto que na verdade a linguagem permanece mestra do homem Martin Heidegger Giorgio Del Vecchio e a pessoa humana Nas primeiras décadas do século XX foi o primeiro jusfilósofo italiano a tecer considerações não mais focadas no objeto passivo mas na pessoa humana em contraposição à filosofia positivista da Itália da época Desprezava o pacto social de Rousseau É considerado um dos principais jusfilósofos contemporâneos Giorgio Del Vecchio e suas circunstâncias Giorgio Del Vecchio foi um neokantiano Tratou a Filosofia do Direito como a própria filosofia aplicada ao direito Do ponto de vista lógico costumava fazer duas perguntas O que é o Direito e O que é de direito Do ponto de vista fenomenológico buscava comparar sistemas jurídicos de diferentes nações tentando encontrar pontos que evidenciassem a universalidade do direito E afinal do ponto de vista da deontologia fazia a análise ética dos sistemas normativos Giorgio Del Vecchio nasceu em 1878 em Bolonha O pai era professor de estatística na Universidade de Bolonha Obteve o doutorado em Direito aos 22 anos em Gênova publicou seu primeiro livro Le dichiarazioni dei diritti delluomo e del cittadino nella rivoluzione francese e logo em seguida foi lecionar Filosofia do Direito em universidades de várias cidades como Ferrara e Messina Suas principais obras foram escritas muito cedo O sentimento jurídico em 1902 Os pressupostos filosóficos da noção do direito em 1905 traduzido para o inglês e o espanhol e O conceito do direito em 1906 Em 1921 fundou e passou a dirigir o Arquivo Jurídico Filippo Serafini e a Revista Internacional de Filosofia e de Direito Uma de suas principais obras foi publicada em 1922 A justiça De 1925 a 1927 foi reitor da Universidade de Roma Em 1927 tornouse reitor da Universidade de Bolonha até 1970 quando morreu Giorgio Del Vecchio e sua influência no direito O pensamento jurídico de Del Vecchio está condensado nesta frase O direito é a coordenação objetiva das ações possíveis de vários sujeitos segundo um princípio ético que as determina excluindo se o motivo Notase aí evidente influência de Kant Diz Paulo Nader que a noção constante do direito segundo Del Vecchio não se manifesta por um conteúdo da realidade jurídica por norma ou proposição mas por pressupostos de natureza formal uniformemente presentes em toda experiência jurídica independente do seu conteúdo46 Paulo Nader também relata que Del Vecchio refutava o direito da força segundo o qual o justo é aquilo que convém ao mais forte E na multiplicidade que reconhecia a respeito das normas que regulam o convívio social admitia apenas Moral e Direito porque seriam as duas únicas normas éticas Essas duas categorias decorreriam da atividade humana portanto ação é a base da análise do direito Tanto que afirmava que os fenômenos da natureza e as próprias ações humanas estão subordinados ao princípio da causalidade Portanto como parte integrante da natureza o homem deve agir em harmonia com as leis físicas ou seja tem liberdade de ação mas deve agir de acordo com os princípios universais e absolutos de sua consciência e não pelo que constitui a sua individualidade Hannah Arendt e a condição humana Nascida na Alemanha em 1906 Hannah Arendt é autora de dois livros que marcaram o século XX Origens do totalitarismo em 1951 e A condição humana em 1958 Nesses dois trabalhos principais embora tenha publicado outros livros faz uma análise profunda da sociedade contemporânea abordando liberdade poder e comunicação Hannah Arendt e suas circunstâncias Hannah Arendt é considerada uma das precursoras dos direitos do homem consolidados na Declaração da ONU de 1948 Escreveu sempre sobre a liberdade mostrando que os regimes totalitários como o nazismo e o comunismo prosperaram exatamente porque se serviam do trabalhador comum como massa de manobra para suas pretensões de poder Foi além vinculou o poder à violência lamentando que essa conexão seja mais frequente do que se poderia esperar Diz ela também que inversamente a violência costuma gerar um poder que aniquila o poder legítimo De ascendência judia Hannah Arendt foi perseguida pelos nazistas já no início do governo de Hitler em 1933 e teve que passar uma temporada em Paris onde conheceu o filósofo Walter Benjamin da Escola de Frankfurt que também estava refugiado naquela cidade francesa Voltou para a Alemanha e durante a guerra chegou a ser confinada num campo de concentração em 1941 mas conseguiu fugir e asilouse em Nova York onde permaneceu até morrer em 1975 Com essa experiência credenciouse a escrever para a revista The New Yorker um ensaio sobre o oficial da Gestapo nazista Adolf Eichmann quando este foi julgado por crimes de guerra em Israel em 1961 Ele fora capturado pelo Mossad serviço secreto israelense em 1960 na Argentina onde vivia desde 1950 sob o nome falso de Ricardo Klement O julgamento durou quase um ano teve repercussão mundial e em vários momentos foi transmitido ao vivo pelos principais veículos de comunicação Adolf Eichmann tido como responsável pelos campos de extermínio alemães foi considerado culpado das acusações de crimes contra a humanidade crimes contra o povo judeu e de participação em organização criminosa Apesar de a lei israelense não prever a pena de morte foi aberta uma exceção e Adolf Eichmann foi enforcado no dia 1º de junho de 1962 O ensaio de Hannah Arendt sobre esse julgamento foi ampliado e transformado em livro sob o título Eichmann em Jerusalém Nesse livro ela criou uma expressão que ficou célebre a banalidade do mal Como existencialista costumava dizer que para compreender a realidade era preciso observála e enfrentála sem preconceitos e sem a ajuda de antecedentes históricos Como ativista política atuou intensamente nas campanhas contra a Guerra do Vietnã Hannah Arendt e suas ideias Em A condição humana a filósofa emprega a expressão vita activa para designar três atividades humanas fundamentais o labor o trabalho e a ação O labor segundo ela é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano é a própria vida biologicamente considerada O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana A condição humana do trabalho é a mundanidade A ação por fim única atividade que os homens exercem sem a mediação das coisas ou da matéria corresponde à condição humana da pluralidade ao fato de sermos todos semelhantes isto é humanos sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido exista ou venha a existir Essas três atividades relacionamse intimamente com o nascimento e a morte Não obstante a ação é a mais intimamente relacionada com a condição humana da natalidade No sentido de iniciativa todas as atividades humanas possuem um elemento de ação e portanto de natalidade sendo essa a categoria central do pensamento político Diz Hannah Arendt que a condição humana compreende algo mais que as condições nas quais a vida foi dada ao homem Os homens são seres condicionados tudo o que os circunda e acaba por ser por eles percebido tornase imediatamente uma condição de sua existência Mas a partir de tais condições os homens constantemente criam as suas próprias condições que a despeito de sua variabilidade e sua origem humana possuem a mesma força condicionante das coisas naturais Assume o caráter de condição da existência humana tudo o que com ela entre em contato Daí que os homens sejam todos condicionados independentemente do que venham a fazer na vida Arendt ressalva que a condição humana não é o mesmo que a natureza humana Igualmente não se equipararia a esse conceito a soma total das atividades e capacidades humanas que correspondem à condição humana Segundo ela o problema da natureza humana parece insolúvel tanto em seu sentido psicológico como em seu sentido filosófico geral Tentar definila seria como pular sobre nossa própria sombra Para a filósofa se o ser humano possuir alguma natureza que lhe seja intrínseca certamente só um deus pode conhecêla e definila e a condição prévia é que ele possa falar de um quem como se fosse um quê As limitações cognitivas do ser humano impedem uma tal perquirição Assim não há diferença relevante segundo Arendt entre investigar a natureza humana e buscar compreender a natureza de Deus A resposta em ambos os casos somente pode ser divinamente revelada É preciso esclarecer que Hannah Arendt não é determinista a ponto de afirmar que as condições da existência humana explicam o que o homem é em sua totalidade O condicionamento advindo da mundanidade jamais é absoluto e portanto nesse sentido não somos meras criaturas terrenas Em A condição humana em suma Arendt debruçase sobre a vita activa do homem expressão que na filosofia medieval corresponde ao bios politikos de Aristóteles cujo significado é uma vida dedicada aos assuntos públicos e políticos Aristóteles ensinava ela não considerava livre quem estivesse preso ao reino da necessidade isto é quem dependesse para viver do labor ou do trabalho Seriam livres aqueles cuja vida estivesse voltada para os prazeres do corpo dedicada aos assuntos da polis bem como a vida do filósofo esta dedicada à investigação e à contemplação das coisas eternas No decorrer da história o conceito de vita activa deixou de designar apenas a ação propriamente política do ser humano para passar a denotar todo tipo de engajamento ativo nas coisas deste mundo A ação nesse sentido passara a ser vista como uma das necessidades da vida terrena de onde se conclui que apenas a contemplação passou a ser tida como modo de vida realmente livre Em outras palavras a contemplação passou a uma posição notável de superioridade em relação à ação Já em Aristóteles vêse que a verdade do Ser só pode ser revelada por meio da completa quietude humana A abstenção estática do próprio movimento físico externo é tida como necessária para uma elevação da racionalidade do ser humano a ponto de se alcançar a verdadeira liberdade Hannah Arendt e sua influência no direito Até o início da Era Moderna a expressão vita activa possui uma conotação negativa Designa uma não quietude Revela ainda a concepção grega de superioridade da contemplação sobre a atividade pois por meio desta da atividade o homem produz coisas em nada comparáveis à singular beleza dos objetos da natureza Por certo o cristianismo bem o nota Arendt contribuiu para o rebaixamento da vida ativa ao enaltecer a contemplação a Deus Não obstante a própria descoberta da contemplação como faculdade humana distinta do pensamento e do raciocínio ocorrida na escola socrática deu a ela o status de superioridade que a acompanhou desde então a ponto de a contemplação ter norteado o pensamento metafísico e político de toda a nossa tradição Arendt todavia não parte dessa concepção isto é não acata a subordinação hierárquica da vita activa em relação à contemplação pois segundo ela tal hierarquia tradicional obscureceu as diferenças e manifestações no âmbito da própria vita activa o que não restou superado nem mesmo pela inversão da ordem hierárquica em Marx e Nietzsche já na Era Moderna A filósofa assim o diz porque a inversão da ordem hierárquica por si só não altera a maneira de pensar o problema No cerne da preocupação da investigação filosófica persiste a premissa em assim procedendo de que há um único princípio global a prevalecer em todas as atividades humanas tal e qual se sucedia na hierarquia tradicional Arendt aduz que tal premissa não é necessária nem axiomática Por esse motivo não a acata e utiliza a expressão vita activa pressupondo que não há hierarquia entre ela e a vida contemplativa e que cada qual envolve preocupações próprias não reconduzíveis a um núcleo comum Vita activa portanto na obra arendtiana é empregada de um modo singular original havendo nesse sentido um rompimento com a tradição filosófica Não se baseia em um sentido universal como até então ocorria ou seja reconhece a filósofa que cada atividade humana possui um sentido próprio e que não é possível estabelecer qualquer hierarquia entre cada um desses sentidos Há de fato uma diferença entre o princípio global do labor do trabalho e da ação e o princípio global da vida contemplativa Todavia conclui a filósofa do ponto de vista racional não há nada que permita afirmar que a contemplação é a atividade superior do ser humano Referida diferença é ilustrada por Arendt por meio da distinção entre imortalidade e eternidade Imortalidade diz ela significa continuidade no tempo vida sem morte nesta terra e neste mundo mortalidade é moverse ao longo de uma linha reta num universo em que tudo o que se move o faz num sentido cíclico Os homens são capazes de feitos imortais de sorte que a despeito de sua mortalidade individual atingem o seu próprio tipo de imortalidade e demonstram sua natureza divina O eterno por sua vez constitui o verdadeiro centro do pensamento estritamente metafísico Em Platão diz Arendt o eterno e a vida do filósofo são vistos como inerentemente contraditórios e em conflito com a luta pela imortalidade que é o modo de vida do cidadão o bios politikos Isso porque o filósofo ao escrever os seus pensamentos adota a vita activa busca a imortalidade deixar aos vindouros vestígios de seus pensamentos e por consequência afastase da eternidade O filósofo somente pode passar pela experiência do eterno ao deixar de estar com outros homens correspondendo nesse sentido à morte A experiência do eterno diferentemente da experiência do imortal não corresponde a qualquer tipo de atividade nem pode nela ser convertida Designase a experiência do eterno por theoria ou contemplação em contraposição a todas as outras atitudes que no máximo podem estar relacionadas com a imortalidade Como já mencionado a história consagrou a visão da contemplação como superior hierárquica à vita activa Diz Hannah Arendt que isso não se deveu propriamente ao pensamento filosófico A queda do Império Romano é emblemática nesse sentido pois por um lado demonstrou que nenhuma obra de mãos mortais pode ser imortal e por outro foi acompanhada da ascensão do evangelho cristão pregador da vida individual eterna Diminuise assim a importância de qualquer busca pela imortalidade terrena Como resultado a vita activa e o bios politikos desvalorizaramse em face da contemplação ESTAR EM SOLIDÃO significa estar consigo mesmo e portanto o ato de pensar embora possa ser a mais solitária das atividades nunca é realizado inteiramente sem um parceiro e sem companhia Hannah Arendt NA TANGÊNCIA DA FILOSOFIA Mahatma Ghandi e a não violência Mohandas Karamchand Gandhi mais conhecido como Mahatma Gandhi que em sânscrito significa grande alma nasceu em 1869 na cidade de Porbandar da Índia Ocidental Casouse aos 13 anos de idade por um arranjo familiar prática comum ainda hoje naquela sociedade Estudou Direito em Londres na Inglaterra Voltou à Índia no ano de 1891 quando da morte de sua mãe e logo depois mudouse para a África do Sul Foi lá que diante das mazelas causadas pela exacerbada discriminação social percebeu que era capaz de utilizar seus conhecimentos jurídicos para ajudar o próximo e mergulhou em uma quase interminável empreitada pela defesa da minoria Hindu Por sugestão de Leon Tolstoi tomou contato com a obra de Henry David Thoureau de onde retiraria a ideia de promover modificações sociais não pela revolução mas sim pela desobediência civil a que denominou Satyagraha que em sânscrito significa força da verdade Para tanto desenvolveu um método de atuação que viria a chocar o mundo o da não violência chamado por ele de ahimsa Surpreendentemente através desse método conseguiu atingir todos os objetivos a que se propôs inclusive o mais marcante deles a Independência da Índia em agosto de 1947 Surpreendentemente apesar da grande vitória Gandhi não comemorou a conquista Ao contrário lamentou o fato de o país ter se dividido em dois de um lado a República da Índia com maioria hindu e de outro a República Islâmica do Paquistão de maioria muçulmana o que só viria a agravar a intolerância religiosa e a não aceitação mútua Trecho do discurso pronunciado por Gandhi na reunião do Congresso PanIndu realizado em Bombaim Índia no dia 7 de agosto de 1942 Li muito sobre a Revolução Francesa No cárcere li as obras de Carlyle Grande é minha admiração pelo novo francês Pandit Nehrú faloume extensamente sobre a Revolução Russa Posso dizervos que conquanto a deles fosse uma luta para o povo não foi uma luta para a verdadeira democracia que eu procuro Minha democracia significa que cada um é o seu próprio dono Tenho lido bastante a história e não encontrei tamanha experiência em escala parecida para o estabelecimento da democracia pela não violência Quando tenhais compreendido essas coisas esquecereis as diferenças entre hindus e muçulmanos A resolução que vos apresento diz Não queremos ser rãs num poço Visamos à Federação Mundial que apenas pode ser estabelecida pela não violência O desarmamento é unicamente possível se usais da arma incomparável da não violência Há gente que me pode chamar de visionário mas sou um verdadeiro homem de negócios e meu negócio consiste em obter a independência Se não aceitardes esta resolução não o lamentarei muito Contrariamente dançarei de alegria porque então me tereis descarregado da tremenda responsabilidade que de outra maneira me colocaríeis nos ombros Desejo que adoteis a não violência como tática política Para mim é uma crença mas no que a vós se refere quero que a aceiteis como tática política Deveis aceitála como soldados disciplinados e praticála quando estiverdes na luta Há muita gente que me pergunta se sou o mesmo que em 1920 A única diferença que há é que estou muito mais forte em certos aspectos do que em 192047 Carl Schmitt fé e política Foi jurista professor e filósofo reconhecido com um dos mais importantes teóricos políticos da Alemanha Considerado um dos grandes especialistas em direito internacional do século XX foi um obstinado defensor do nazismo Nessa defesa desenvolveu um conceito de democracia pura baseado no princípio da identidade Segundo esse conceito somente um povo que tenha identidade com seus governantes é capaz de reação diante de circunstâncias adversas de sua realidade imediata e portanto pode ser verdadeiramente democrático Carl Schmitt e suas circunstâncias Carl Schmitt foi um importante filósofo alemão do século XX Especialista em direito internacional foi membro e grande defensor do partido nazista Escreveu entre outras obras A ditadura sobre a República de Weimar No livro comenta a figura do Reichspräsident presidente da nação Seu pensamento tinha bases firmes na fé católica Suas teses estão no livro Teologia política de 1922 Carl Schmitt nasceu em 1888 na Alemanha Graduouse em Direito em Estrasburgo em 1915 Em 1933 assumiu cátedra na Universidade de Berlim e no mesmo ano ingressou no Partido do Nacional Socialismo o partido nazista de Hitler Ao fim da guerra ficou durante dois anos numa prisão mas nunca se retratou pelo apoio ao nazismo Sobre esse período de cativeiro escreveu o livro O cativeiro liberta Iniciou uma campanha contra o pensamento de Ortega y Gasset com um livro chamado A tirania dos valores de 1960 Mas sua obra mais famosa é o O conceito do político escrito em 1932 um livro em que estabelece a xenofobia como elemento legítimo de manutenção da identidade nacional Morreu em 1985 Carl Schmitt e suas ideias Para Carl Schmitt contradizendo o liberalismo de Kant a liberdade não é um princípio político porque nenhuma forma de governo tem origem na liberdade Complementava essa teoria a ideia de que esse povo tinha que ter uma característica existencial ou seja psicológica e sociológica de homogeneidade o que praticamente implicava afastar todos os que não teriam igualdade com ele Com isso concluiu que eleição secreta não seria representativa e devia ser substituída pela aclamação Essa homogeneidade se traduz em todos os campos segundo Schmitt língua religião moral tradição expectativas E ao Estado cabe preservar a homogeneidade do povo Por isso defendeu no livro A ditadura publicado em 1921 que um ditador forte representa a vontade popular mais efetivamente do que um grupo legislativo O livro foi escrito para comentar a República de Weimar que acabava de ser criada Com essa noção de mito de nação e ditadura que o caracteriza como inimigo da democracia liberal Carl Schmitt manteve intenso debate com Hans Kelsen acerca de quem seria o responsável pela guarda da Constituição Para Schmitt a Constituição de um país devia obrigatoriamente prever a situação de estado de exceção em que o líder teria liberdade de executar ações necessárias e até violentas para defender a nação Seria uma suspensão temporária do Estado de Direito em benefício do interesse público segundo afirmava AQUELES QUE GOVERNAM se diferenciam através do povo mas não frente ao povo Carl Schmitt JeanPaul Sartre e o espírito da solidariedade Em visão diametralmente oposta à de Schmitt a premissa básica do existencialismo de Sartre foi a liberdade JeanPaul Sartre e suas circunstâncias JeanPaul Sartre elaborou o existencialismo moderno profundamente original em relação aos seus inspiradores Sören Kierkgaard e Edmund Husserl Sua filosofia ficou registrada em todas as suas obras com destaque para O ser e o nada Depois do fim da Segunda Guerra Mundial passou a viver como escritor independente Entre seus escritos sobre literatura estão ensaios sobre Baudelaire e Jean Genet Foi indicado para o prêmio Nobel de Literatura em 1964 mas recusou se a recebêlo JeanPaul Sartre nasceu em Paris em 1905 Perdeu o pai aos 2 anos de idade e foi criado pela mãe e pelo avô Formouse na Escola Normal Superior Em 1928 cumpriu o serviço militar obrigatório como meteorologista Ao terminar tornouse professor de filosofia na Universidade La Havre Com uma bolsa de estudos do Instituto Francês passou o ano de 1932 em Berlim estudando os trabalhos de Edmund Husserl e de Martin Heidegger Voltou para Paris para lecionar na Universidade La Havre e no Liceu Pasteur até que eclodiu a Segunda Guerra Mundial Foi convocado para a guerra na função de meteorologista Chegou a cair prisioneiro dos alemães tendo sido levado para um campo de concentração mas conseguiu fugir Em 1941 conheceu Simone de Beauvoir em Paris que seria sua companheira até o fim da vida Com ela fundou um grupo para ajudar na resistência francesa contra a ocupação alemã Depois que acabou a guerra criou a revista Le Temps Modernes Os Tempos Modernos com intelectuais marxistas entre eles MerleauPonty e Raymond Aron Em 1952 filiase ao Partido Comunista com o qual romperia em 1956 JeanPaul Sartre visitou o Brasil em 1961 durante a campanha que promovia pelo mundo contra a guerra do Vietnã Morreu em 1980 JeanPaul Sartre e suas ideias Segundo Sartre o homem é livre de qualquer predestinação inclusive da igreja uma vez que afirmava a não existência de Deus Sem as imposições da religião o homem é absolutamente livre para fazer escolhas e realizar os atos que decidir realizar A existência precede a essência assegurava Sartre portanto não é possível que haja uma força nem mesmo uma força divina que defina o que o homem deve ser ou fazer antes do nascimento O homem é livre e por isso mesmo o único responsável pelos seus atos e decisões Com esse pensamento ateu retomou as ideias de Sören Kierkgaard o primeiro pensador existencialista Dele também colheu a noção de que essas duas forças a liberdade e a responsabilidade trazem ao homem uma angústia atávica de viver porque exige de si mesmo uma batalha diária ao longo da vida para praticar um comportamento adequado do ponto de vista moral e ético Isso porque o homem é livre para fazer o bem e também é livre para fazer o mal quando pratica algo errado não pode usar como desculpa as crenças como desígnios de Deus destino e coisas semelhantes Uma frase famosa de sua autoria dá a medida de quanto a interação com as outras pessoas pode trazer sentido à existência de alguém O inferno são os outros O significado da frase não é negativo ao contrário expressa a importância que a solidariedade pode levar para a vida de alguém porque esse alguém se esforçará para merecer o respeito e a confiança de quem convive com ele O existencialismo de Sartre como se pode ver foi um dos movimentos mais radicais da filosofia em todos os tempos Essa concepção de que não há nada antes da existência e que nada faz sentido antes que o próprio ser dê sentido à existência é o que se chama de niilismo Seus trabalhos pregavam o combate individual à alienação assegurando que a arte é um dos componentes mais importantes para a salvação do homem Ele mesmo dedicouse à literatura a tal ponto que escreveu um livro chamado O que é literatura em 1948 No livro Sartre afirma que para ele a literatura é um compromisso porque a criação artística é um compromisso moral Sua dedicação à literatura rendeulhe indicação para o prêmio Nobel em 1964 mas recusou o prêmio sob a alegação de que aceitálo equivaleria a submeterse à autoridade intelectual dos juízes Para a construção do existencialismo Sartre uniu aos ensinamentos de Kierkgaard a fenomenologia de Edmund Husserl que defendia a supremacia da consciência livre e completamente intencional do homem As ideias de JeanPaul Sartre foram registradas em vários escritos voltados inicialmente para estudos psicológicos como A imaginação de 1936 Esboço de uma teoria das emoções de 1939 e O imaginário psicologia fenomenológica da imaginação de 1940 Todas as suas obras contêm os fundamentos do existencialismo como se pode ver nas duas novelas Náusea de 1930 e Caminhos da liberdade de 1945 que lhe deram prestígio e reconhecimento em todo o mundo Sua fama cresceu muito com as peças teatrais As moscas Entre quatro paredes e Sem saída e também com a publicação do ensaio Existencialismo é um humanismo de 1946 Ainda escreveu romances A idade da razão Sursis Com a morte na alma Mas sua obra mais expressiva foi um trabalho filosófico O ser e o nada que trava uma espécie de diálogo com O ser e o tempo de Martin Heidegger o outro nome forte do existencialismo O INFERNO são os outros JeanPaul Sartre Maurice MerleauPonty e a linguagem do corpo Em geral esse filósofo é inserido na categoria de existencialista embora não defendesse com tanto ardor a liberdade radical e a angústia existencial temas que nortearam as teses de JeanPaul Sartre e Simone de Beauvoir Seu ponto central é o mecanismo psicológico que baseia o conhecimento Deu ênfase especial à linguagem e como Jacques Derrida pregou a análise da origem da comunicação para que se possa apreender o seu real sentido Maurice MerleauPonty e suas circunstâncias Maurice MerleauPonty reformulou algumas das teses existencialistas de JeanPaul Sartre especialmente no que diz respeito ao dualismo entre mente e corpo por exemplo O corpo diz ele é um excelente instrumento de comunicação Sua filosofia da linguagem afirma que aquilo que percebemos do mundo é influenciado por uma série de fatores que influenciam a conexão entre o mundo exterior e o mundo interior Maurice MerleauPonty nasceu em 1908 Formouse em Filosofia na Escola Normal Superior de Paris em 1930 Na Segunda Guerra Mundial serviu como oficial de infantaria Logo depois do fim da guerra publicou seus primeiros livros de filosofia e assumiu a cadeira de filosofia na Universidade de Lyon e na Sorbonne Colaborou na revista Les Temps Modernes com JeanPaul Sartre Entretanto rompeu com Sartre em 1953 porque não concordava com o apoio deste ao regime de Stalin Morreu em 1961 Maurice MerleauPonty e suas ideias O principal trabalho de MerleauPonty Fenomenologia da percepção de 1962 discute as dicotomias filosóficas tradicionais em especial o dualismo entre corpo e consciência Sua teoria da comunicação descrita nesse livro enfatiza que nós somos nosso corpo o corpo tem relação estreita com o mundo é a articulação do nosso ser social e portanto cada gesto agrega significação às palavras O corpo não é simplesmente um instrumento que a mente comanda como pensava Descartes Portanto diz MerleauPonty a linguagem falada não é exemplo de manifestação do pensamento puro O essencial é captar na fala e no comportamento a percepção em via de realização o que só conseguiremos depois de nos livrar de preconceitos e dogmas que nos prendem a ideias antigas Na sua filosofia da linguagem embasada na fenomenologia de Edmund Husserl MerleauPonty critica tanto o empirismo quanto o idealismo e anota o distanciamento que existe entre a palavra e o objeto que essa palavra designa Filosoficamente MerleauPonty busca a rearticulação entre sujeito e objeto ou seja entre o eu e o mundo porque considera ao contrário do empirismo que há uma conexão interna entre o objeto e a ação AO QUEBRAR O SILÊNCIO a linguagem realiza o que o silêncio pretendia e não conseguiu obter Maurice MerleauPonty LINHA DO TEMPO A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA Ano 1819 Augusto Comte inicia a publicação dos livros Opúsculos de filosofia social propondo as bases do positivismo Ano 1844 Friedrich Engels estabelece os princípios do socialismo moderno no livro Esboço de uma crítica da economia política Ano 1848 Engels e Marx publicam o Manifesto Comunista Ano 1848 John Stuart Mill publica Princípios de economia política Ano 1867 Karl Marx inicia a publicação dos livros que compõem a obra O capital Ano 1868 Benjamin Constant cria no Brasil um centro para o estudo do positivismo Ano 1883 Clóvis Beviláqua publica o livro A filosofia positiva no Brasil Ano 1893 Émile Durkheim publica na França A divisão do trabalho social Ano 1896 Herbert Spencer publica A filosofia sintética e Estática social Ano 1903 Henri Bergson publica Introdução à metafísica Ano 1905 Albert Einstein publica Teoria especial da relatividade que seria completada em 1916 com a Teoria geral da relatividade Ano 1913 Edmund Husserl publica Ideias relativas a uma fenomenologia pura Ano 1918 Bertrand Russell escreve na prisão durante a Primeira Guerra em 1918 Introdução à filosofia matemática Ano 1919 O Tratado de Versalhes muda a geografia e a política mundial Ano 1920 Georg Lukács publica História e consciência de classes Ano 1922 Ludwig Wittgenstein publica Tratado lógicofilosófico Ano 1922 Carl Schmidt publica A ditadura Ano 1923 Mussolini implanta o fascismo na Itália No mesmo ano Emilio Rochette cria o Partido Fascista Brasileiro em São Paulo Ano 1923 Sigmund Freud publica O ego e o id com uma teoria completa sobre a mente humana Ano 1924 Criada a Escola de Frankfurt importante centro de discussão políticofilosófica Ano 1927 Martin Heidegger publica O ser e o tempo Ano 1929 Criado o Círculo de Viena Ano 1932 O escritor Plínio Salgado lança a Aliança Integralista Brasileira com ideologia anticomunista Ano 1937 Depois da morte de Antonio Gramsci sua obra é publicada sob o título de Cadernos do cárcere e Cartas do cárcere Ano 1941 Carlo Cossio publica La valoración jurídica y la ciência del derecho Ano 1943 JeanPaul Sartre publica o tratado filosófico O ser e o nada Ano 1958 Hannah Arendt publica A condição humana Ano 1962 Maurice MerleauPonty publica Fenomenologia da percepção SEXTA PARTE A FILOSOFIAdoDIREITO CONTEMPORÂNEA O NEOKANTISMO O pensamento de Immanuel Kant chama a atenção de filósofos juristas e professores até hoje Mas ao longo do tempo o idealismo alemão do século XVIII e o positivismo foram sendo superados embora jamais tenham sido desvalorizados Pequenas dissidências ao conjunto do pensamento kantiano foram desenvolvidas na Alemanha principalmente As teorias do filósofo alemão ganharam nova fisionomia no século XIX sem perder porém a estrutura Essas novas faces do pensamento de Kant foram chamadas neokantismo Foi uma espécie de retorno ao idealismo iniciado na Inglaterra com Thomas Hill Green e Edward Caird Na Alemanha pátria de Immanuel Kant o neokantismo teve como representantes mais importantes Otto Liebmann Johannes Volkelt e as escolas de Marburgo e de Baden Não se pode dizer que tenha havido um representante mais expressivo desse retorno à doutrina de Kant iniciado por volta de 1850 Mas é importante destacar alguns pensadores que marcaram posição no neokantismo principalmente na Alemanha Por ordem cronológica o primeiro deles foi o médico Hermann von Helmholtz cujos estudos foram mais orientados para a psicologia Pouco depois observase o surgimento de Eduard Zeller que foi discípulo de Hegel e Kuno Fischer que sucedeu Zeller na cadeira de filosofia da Universidade de Heidelberg Mas todas elas foram abordagens individualizadas cada uma com a sua novidade em relação ao pensamento de Kant Exceções foram a Escola de Marburgo que defendia a ideia de que tudo inclusive as sensações está contido no pensamento com Hermann Cohen Paul Natorp e Ernst Cassirer e a Escola de Baden que defendia a ideia de que os valores estão numa categoria separada da lógica numa concepção histórica do fenômeno jurídico com Wilhelm Windelband e Heinrisch Rickert Fez parte da Escola de Baden o pensador Max Weber cujo pensamento detalharemos adiante neste livro Já no século XX houve um movimento mais organizado a pregar o retorno ao pensamento de Kant Um dos responsáveis foi o filósofo Otto Liebmann que publicou a obra Kant e seus epígonos um ensaio crítico em 1865 Outro pensador que seguiu a atitude de Otto Liebmann foi Friedrich Albert Lange com o livro História do materialismo Junto com outros intelectuais criaram a revista Kantstudien para debater as ideias de Kant sobre o conhecimento O movimento neokantiano perdurou bastante Já no século XX podemos destacar Georg Simmel e Hans Cornelius Mas para efeito da filosofia do direito é necessário pontuar entre os neokantistas a contribuição de Max Weber Max Weber e a influência recíproca entre direito e economia O alemão Max Weber dedicouse à economia e à sociologia valorizando a história como forma de compreender a evolução das sociedades Doutor em Direito estudou principalmente o capitalismo inglês como forma de organização econômica que ele considerava ser a força mais arbitrária da vida moderna Segundo ele direito e economia influenciaramse reciprocamente ao longo do tempo as iniciativas capitalistas teriam tido repercussão sobre a racionalização formal do direito e viceversa o desenvolvimento jurídico teria influenciado o desenvolvimento histórico do capitalismo A revolução bolchevique de 1917 influenciou a obra de Weber particularmente no que diz respeito à sua teoria política e à ideia de dominação carismática Sua obra é de tal importância que juntamente com Marx Comte e Durkheim é considerado um dos fundadores da metodologia da sociologia moderna Max Webber e suas circunstâncias Max Weber é considerado um dos fundadores da sociologia Criou a teoria dos tipos puros de poder legítimos que são modelos de comportamento social Defendia a educação jurídica formal como uma necessidade para impedir que o capitalismo prejudicasse a sociedade Foi quem relacionou capitalismo e protestantismo porque essa doutrina cristã tem como doutrina o sucesso econômico e não a realização transcendental como o catolicismo Max Weber nasceu em Erfurt Turíngia em 1864 na Alemanha de família rica seu pai era advogado e político e sua mãe culta e liberal de fé protestante Consta que aos 13 anos já redigia ensaios históricos de fôlego Doutor em Direito atuou como professor na Universidade de Berlim e também como assessor do governo Interessouse por várias áreas do conhecimento especialmente a economia política filosofia e história Atuou como coeditor do Arquivo de Ciências Sociais publicação importante para os estudos sociológicos na Alemanha Foi professor em Berlim Friburgo Heidelberg Viena e Munique Em 1891 participou da fundação da Federação PanGermanista Em 1918 como um dos fundadores do Partido Democrático Alemão DDP fez conferências em que pedia que o imperador Guilherme II abdicasse do trono Também fez parte da delegação alemã que negociou a paz no fim da Primeira Guerra negociação essa que culminou no Tratado de Versalhes Participou do movimento de criação da República de Weimar tendo sido um dos redatores da Constituição promulgada em 1919 De saúde precária nos seus últimos anos de vida restringiuse a dar conferências em Viena e em Munique Desde 1898 foi assolado por depressões agudas e crises nervosas entre as quais produzia sem cessar sua obra intelectual Morreu em 1920 Max Weber e suas ideias Webber defendia que quanto mais sistematizadas fossem a ordem jurídica e a administração mais previsíveis seriam os resultados de qualquer ação econômica Com isso censurava a maneira como a common law evoluiu à mercê de casos particulares acrescentados à jurisprudência embora admitisse que algo de formalismo existia no processo o que teria impedido uma balbúrdia jurídica Pregava a necessidade de implantação de uma educação jurídica universitária e formal porque o empreendedor capitalista não quer saber de leis mas deveria conhecêlas Realizou importante pesquisa sociológica sobre a dominação analisando diversos modelos de democracia De orientação marxista Max Weber discordou em parte da corrente de Engels e Marx ao considerar que não é apenas a luta de classes a causa das transformações sociais Seu primeiro livro Para a história das sociedades comerciais da Idade Média de 1889 analisou a situação agrícola de Roma Antiga fazendo uma analogia sobre a funcionalidade do latifúndio na Alemanha de sua época Criou o conceito da ação social como denomina a conduta humana dotada de sentido com metas e propósitos determinados para interferir na vida de outros indivíduos O fenômeno social assim pode ser explicado pela conduta social de cada indivíduo cada ato social é baseado em interesses e juízos individuais e está vinculado ao grupo Criou a teoria do poder de tipo puro para explicar os fenômenos sociais Segundo a teoria são três os tipos de poder ou dominação Importante ressaltar que os tipos ideais não são dogmas mas apenas esquemas interpretativos da realidade podem assim ser úteis ou inúteis mas não verdadeiros ou falsos Não são modelos descritivos da realidade são categorias interpretativas não existem na realidade em sua forma pura Um deles é o tipo racionallegal despido de sentimentos e que domina por meio de um sistema de normas o Estado pela sua burocracia é um exemplo de autoridade desse tipo A dominação racionallegal é aquela em que vigora a crença em regras abstratas e impessoais intencionalmente estabelecidas O pressuposto de tais regras é a igualdade todos se submetem a elas da mesma forma Assim essa espécie de dominação consiste em um tipo de exercício do poder desprovido de afeição ou paixão Há uma indiferença emocional O funcionário burocrata deve agir sem nenhum tipo de envolvimento emocional Deve apenas executar o que dispõem as regras A dominação racionallegal implica pois rejeição de qualquer ética ou privilégio É típica de sociedades modernas nas quais entre em crise a ideia de Deus como fundamento único Com efeito a progressiva racionalização observada ao longo da história mostrou a crescente afinidade entre esse modo de dominação e a democracia nos Estados modernos A passagem do Estado absolutista para o moderno é acompanhada preponderantemente pela dominação racionallegal a qual ocasionou a separação entre a vida privada e a esfera pública Weber reconhece a primazia dessa forma de dominação sobre as demais por dois motivos i histórico a história mostra a evolução dos tipos de dominação culminando neste tipo ii metodológico é a forma de dominação que mais se adequa às premissas weberianas Esse último aspecto será retomado no próximo tópico O poder de tipo carismático é aquele em que um indivíduo submete o grupo seja pelo desempenho da liderança seja pela simpatia pelo misticismo ou até pela demagogia Na dominação carismática observase uma crença no caráter sagrado das características excepcionais mediante prova do líder ditador líder militar líder revolucionário e profeta O grande exemplo desse tipo é Cristo características excepcionais comprovadas pelos milagres A dominação carismática é típica de sociedades primitivas Observase nessa espécie uma devoção à santidade ao líder espiritual que deve ser obedecido devido a suas excepcionais e particulares características O líder carismático possui uma característica que é inacessível à pessoa comum por ser personalíssima Percebese pois que a dominação racionallegal leva em consideração na sua dinâmica a racionalidade do mercado ao passo que a carismática não Esta aliás é instável por natureza diferentemente das outras formas de dominação que tendem a se perpetuar no tempo É possível entretanto que haja uma rotineira reiteração do carisma o que gera institucionalização e uma maior estabilidade O terceiro tipo é o poder de tipo tradicional em que as leis são baseadas na tradição daquela comunidade Os súditos prestam obediência incondicional aos senhores porque sempre foi assim pensam que desobedecer aos líderes equivale a desobedecer à tradição Há na dominação tradicional uma crença no caráter sagrado do costume que se localiza numa autoridade tradicionalmente constituída por exemplo o respeito que se deve ter em relação ao chefe familiar É típica de sociedades prémodernas Esse tipo ideal de dominação não é visível em curto prazo Envolve desigualdade distanciamento entre os agentes relação desigual Pressupõe uma diferença de status ou posições sociais diferentes Uma espécie de dominação tradicional é o patriarcalismo no qual a autoridade pessoal do patriarca se sobressai e ele então se apresenta como líder natural Costuma ser em certo grau religioso As normas costumam ter um certo grau de sacralidade e a desobediência é quase pecaminosa implicando malefícios quase mágicos ao transgressor Vejase que há algo em comum entre a dominação carismática e a tradicional em ambas quem domina não é um igual mas um excepcional o que não ocorre na dominação racionallegal Ambas diferem contudo na medida em que na carismática o fundamento da autoridade não se baseia em regras preestabelecidas mas sim em um comportamento revolucionário na mudança o líder carismático cria novas regras e as positiva e nesse sentido há aproximação com a dominação racional legal Em resumo a autoridade ideal ou o Estado ideal é aquela em que a legitimidade reside na associação voluntária de pessoas livres e iguais e não na submissão a um líder a costumes nem sempre corretos ou a leis impostas por um grupo dominante Como se pode ver o Estado ideal não existe e Max Weber sabia disso o que ele fez foi criar modelos de análise do comportamento social para servirem de parâmetro Esses modelos foram entre outros o feudalismo o capitalismo e o protestantismo O meio específico da política para Weber é a força que dá sustento ao poder à legitimidade e à dominação Poder segundo ele é a capacidade de um indivíduo fazer valer sua vontade sobre a de outros a despeito das resistências tal capacidade é expressada de modo probabilístico Legitimidade diz respeito à adesão ativa do grupo social à autoridade constituída Já a dominação é a oportunidade que se expressa também de modo probabilístico de um indivíduo ou um grupo obter exitosamente o que deseja tratase de conceito que envolve relações de mando e obediência em um agrupamento territorial determinado o Estado nacional por exemplo A dominação pode ser imposta ao passo que a legitimidade implica envolvimento uma fé na autoridade O Estado seguindo essa ordem de ideias seria um agrupamento político sempre de uma minoria que exerce legitimamente a violência física Todo Estado portanto tem por base o direito de dominação Estado em particular aponta Weber é o Estado moderno baseado no modo de produção capitalista Tratase de Estado que se fundamenta na legalidade no direito racional direito normativo e procedimental No Estado moderno portanto há um grupo que se destaca da sociedade e se incumbe de aplicar as leis é a chamada burocracia A dominação burocráticolegal aliás é a forma típica do Estado moderno e se fundamenta na crença do caráter sagrado da lei Para aplicála o Estado institui uma polícia e consolida forças militares regulares A burocracia possui caráter nacional o indivíduo exerce sua função não em nome próprio mas em nome da lei é cinza se move das sombras os membros da sociedade não conhecem de fato o funcionamento do Estado e por fim serve sempre ao grupo dirigente exceto em momentos de crise No campo da ética Weber dessacralizou a religião ao negar que fosse ela a chave para o entendimento das relações entre os indivíduos e a sociedade Esses estudos de Max Weber foram importantes para a compreensão dos processos de legitimação do poder na formação das sociedades Entre os pensadores que analisaram o comportamento humano e que foram influenciados por esses estudos está Émile Durkheim Na modernidade dizia ele a religião perde seu papel de centralidade Há a racionalização das esferas e o reconhecimento cada vez maior de que é a vontade humana que positiva os valores e não Deus A Sociologia Religiosa de Max Weber procura estabelecer a relação entre capitalismo e protestantismo O capitalismo é visto pelo senso comum como um sistema econômico em que predomina a ânsia pelo lucro caracterizado por um impulso racional direcionado para o acúmulo de riqueza Para Weber entretanto tal não há no capitalismo moderno Segundo ele o capitalismo moderno em sua vertente ocidental tem como principal característica a renovação do lucro por meio da organização racional do trabalho trabalho livre e da produção organização burocrática A característica predominante é então a racionalização que define o modo de desenvolvimento do capitalismo moderno Racionalização no sentido usado por Weber é a aplicação do racionalismo vertente cultural moderna que diferencia o Ocidente e o Oriente à base material A preocupação de Weber em sua Sociologia Religiosa é perquirir a origem desse processo mais precisamente busca estabelecer qual o papel da religião na organização da racionalidade que se inclina à prática de determinado ato de teor econômico Aduz Weber que o capitalismo explica o protestantismo e não o contrário mesmo porque o capitalismo é a ele anterior De qualquer forma a ascese protestante potencializa a racionalidade do capitalismo porque elimina as barreiras que a tradição católica havia criado para a acumulação de riquezas Weber procura relacionar determinada conduta racional a certa ética religiosa Nesse sentido segundo ele a formação profissional que se origina da formação familiar inclina os protestantes a atividades economicamente mais rentáveis iniciativa privada e os católicos a atividades burocráticas carreiras de Estado A tradição católica enfatiza colocava barreiras ao desenvolvimento capitalista Com efeito a ética católica tendia ao livrearbítrio e privilegiava a bondade do cristão Essa bondade por exemplo impedia que dinheiro fosse emprestado a juros proibição da usura Calvino critica o livrearbítrio e prega a predestinação alguns serão salvos e outros não não há meio de se conhecer a vontade de Deus não há meio ou instrumento para a salvação para a Igreja Católica havia e eram os sacramentos as boas obras embora por um longo período tenha existido também a venda de indulgências Há entretanto indícios de que alguém será salvo indícios psicológicos a vocação a disciplina e a obrigação na fé Esses indícios podem também ser ampliados para a esfera social por exemplo disciplina na profissão devese ser o melhor profissional Essa ética protestante seria segundo Weber o espírito do capitalismo A ascese protestante com efeito preconiza o trabalho duro e a abstenção dos prazeres da vida como imperativos da conduta estabelecendo parâmetros racionais condizentes com os pressupostos para a origem do capitalismo Isso porque uma vida dedicada ao trabalho intenso e com abdicação dos prazeres mundanos conduz fatalmente à sobra de dinheiro que uma vez investida fomenta o ciclo do capital e assim a origem do sistema capitalista A teoria de Weber nesse campo é preciso salientar procura explicar a origem do capitalismo não seu ulterior desenvolvimento Além disso importante ter em mente que Weber não explica a conduta racional exclusivamente por meio da religião ele se utiliza também da história ocidental O papel decisivo da religião está sim na massificação daquela conduta racional mormente a partir da reforma protestante Para Weber as ordens exaradas do Estado nas sociedades ocidentais modernas são manifestações do que chama de dominação legal São comandos legítimos na direta proporção da fé que as pessoas têm na legalidade com que o poder dessas autoridades é exercido admitidas a força e a violência nesse processo político Isso porque segundo Weber os sistemas políticos pretendem a dominação mas têm necessidade da legitimação para serem duráveis Em suma não há dominação sem legitimação Por isso os governantes usam a técnica de morder e assoprar aplicando coerção e obtendo consentimento Weber afirma que mesmo nos sistemas democráticos impera a dominação A preocupação central da obra weberiana é a racionalidade Ele procura perquirir as condições para sua formação e seu fomento em diferentes campos de conhecimento e em especial no direito e na economia Daí que como mencionado acima Weber tenha preconizado que toda ação humana é realizada visando a determinados fins ou valores O homem age segundo ele sempre de acordo com o esquema mental de meiosfim visando adequar aqueles a este As condições em que as opções pelo meio são tomadas é que constituem o grande objeto de estudo do filósofo Weber com efeito acreditava que o fenômeno característico da sociedade era a racionalização da vida Para que a ação possa ser objeto de conhecimento deve estar regulada por algum tipo de regra não é possível conhecer o sentido de uma ação sem que se examine a regra que a regula A ação social é uma ação com sentido visa a alguma coisa com um mínimo de racionalidade é o objeto da Sociologia Em outras palavras toda ação social está influenciada por algum tipo de regra ou norma Exemplo parar no semáforo é uma ação social uma vez que se dá mediante as regras de trânsito mesmo aquele que avança o sinal agindo ilicitamente pratica uma ação social mas dessa vez negando ou burlando a norma por ele considerada Toda ação social excetuandose assim os comportamentos meramente reativos respirar à noite por exemplo regulase por um conjunto de regras Pressupõe portanto um mínimo de racionalidade bem como algum tipo de liberdade de decisão não se trata de uma ação necessária mas de uma ação escolhida É importante considerar o contexto da Alemanha na segunda metade do século XIX quando nasce Weber enfrentavase então um processo tardio de unificação nacional com uma Prússia fortemente desenvolvida do ponto de vista industrial e as demais unidades alemãs em absoluto atraso Diferentemente do que se passou na unificação italiana na qual houve considerável participação popular na Alemanha o processo foi encabeçado pela Prússia capitaneada por Bismarck sem aquela participação A Prússia assim foi responsável pela transição da Alemanha para o capitalismo monopolista sem que o país contudo tenha passado pela experiência do capitalismo concorrencial A burguesia simplesmente capitulou perante o Estado que passou a ser administrado pela aristocracia fundiária alemã O resultado forças feudais e capitalistas se uniram para conter a participação popular na unificação alemã O fato de ter se unificado tardiamente por outro lado fomentou o militarismo exacerbado na Alemanha que se viu de imediato envolvida na disputa por novas colônias Weber foi defensor e entusiasta da unificação alemã e também do imperialismo que constituiriam na sua visão caminhos para potencializar a produção material da sociedade permitindo melhores condições de vida para as diferentes classes Podese dizer assim que era um liberalnacionalista Do ponto de vista filosófico Weber pode ser tido como existencialista preocupavase com o modo pelo qual o sujeito afirma conscientemente o seu ser para o mundo Reconhece que fenômenos sociais carregam consigo uma singularidade são sempre valorativos subjetivos O problema da Sociologia é precisamente analisar cientificamente isto é de modo objetivo algo marcadamente subjetivo Reconhece contudo que uma atitude completamente isenta de valoração perante a realidade é impossível a valoração é por assim dizer inescapável A própria escolha do objeto de estudo já está impregnada por valores Além disso a própria neutralidade é um valor Nesse plano existe um tipo de conhecimento valorativo inescapável a saber o baseado na neutralidade que no limite é um valor e esse tipo de conhecimento é o científico Ainda que se parta de uma valoração controlada a Sociologia segundo Weber pode produzir conhecimento neutro e objetivo Para essa explicação científica Weber critica a adoção de um reducionismo analítico que preconiza uma causalidade mecânica Em Weber a ideia de causalidade está ligada à probabilidade à causalidade múltipla Isso porque a realidade social é infinitamente mais complexa do que a capacidade humana de compreensão ou em outras palavras diante da limitação da cognição humana podese mesmo falar em irredutibilidade do fenômeno social Nas ciências sociais todo conhecimento possui um caráter probabilístico o conhecimento científico nas ciências sociais se reflete não em uma relação de causalidade necessária mas em uma relação de causalidade provável Essa noção é central na obra weberiana A Sociologia para Weber é uma ciência compreensiva baseada na empatia tentativa de se fazer a conexão entre duas subjetividades a de quem analisa e a do próprio fenômeno e na neutralidade axiológica o observador deve desconsiderar os juízos de valor e tomar como objetos de estudo o valor em si de modo sistematizado Esse ramo de conhecimento cuida basicamente de identificar as regras que dão sentido às ações sociais Compreender de modo causal uma circunstância em Sociologia implica um duplo movimento a empatia e o distanciamento são atitudes praticamente antagônicas É importante considerar que conhecer e avaliar são atitudes distintas muito embora o acolhimento dessa distinção não seja pacífico no plano filosófico Platão por exemplo aduzia que a descoberta da verdade traz a capacidade de avaliála se conheço o bem consigo julgar o mundo segundo ele Já para Weber conhecer um valor não implica necessariamente avaliar o mundo por meio dele Assim surge a indagação se não é por meio de uma especulação filosófica que se pode estabelecer o que é certo e o que é errado como os indivíduos escolhem seus valores Em outras palavras se não fazem suas escolhas a partir do conhecimento como o fazem então A origem dos valores estaria para Weber em um ato de vontade ou seja nossos valores não são escolhidos racionalmente por meio de reflexão Esse ato de vontade não é totalmente livre devese considerar o ambiente cultural em que se vive a influência da família etc Não existe pois um fundamento racional universal que explique a adoção individual de valores os condicionamentos históricos não podem ser desprezados Para Weber os valores são positivados instituídos por um ato de vontade e não por um fundamento racional Há em Weber portanto uma radical distinção entre valores e conhecimento para este seriam necessárias duas coisas empatia pelo objeto de estudo e distanciamento em relação a ele Nas ciências sociais a objetividade não é algo acabado como nas ciências naturais mas algo a ser buscado Aduz Weber como já indicado que a objetividade do conhecimento não pode ser reduzida a uma única fonte Daí sua crítica ao materialismo histórico redução dos fenômenos sociais a um determinado comportamento econômico o qual segundo ele não é científico mas sim apenas dogmático A realidade social de fato é composta por várias esferas religião cultura ideologia política economia etc cada uma delas com um sentido inerente a religião por exemplo traz o sentido inerente da salvação Essas esferas não são redutíveis umas as outras mas também não são completamente independentes entre si Como resultado temse que o fenômeno social é sempre fruto de uma pluralidade causal o que justifica a importância da noção de probabilidade da obra weberiana ponto que merece aprofundamento Com efeito a explicação científica sempre possui um caráter probabilístico A ação social orientase por regras mas não se pode determinar com absoluta certeza o motivo que a causou Um exemplo é oportuno para esclarecer parar no semáforo que é uma ação social se dá preponderantemente em virtude do direito mas pode também ter por causa motivos morais é certo parar religiosos respeito à vida ou econômicos o valor do carro entre outros Max Weber e sua influência no direito Sua maior contribuição ao direito está no conceito da mão de obra livre que foi uma crítica à modernidade Esse conceito afirma em primeiro lugar que há diferença entre homens e coisas o homem pode possuir coisas mas não pode possuir outros homens Portanto Weber elimina a servidão ou a escravidão do ambiente capitalista moderno A mão de obra livre também afirma que o trabalhador é dono de sua capacidade de trabalho e que pode vendêla por um determinado período de tempo a outra pessoa Mas o conceito também implica a ideia de que o trabalhador foi expropriado da posse dos meios de produção ou seja trabalha com materiais e instrumentos que pertencem a outra pessoa no caso o dono do capital Uma parte do conjunto do pensamento jurídico de Max Weber está no livro Rechssoziologie Sociologia da lei em que raciocina a respeito da estrutura da sociedade moderna em que impera a racionalização Weber admite que a racionalização do direito permitiu maior controle da vida social mas lamenta que o homem comum tenha sido obrigado a depender de especialistas para auxiliálo nas avenças ou desavenças jurídicas Segundo Weber o indivíduo pode assumir três diferentes tipos de atitude diante das regras i moral ii dogmáticojurídica iii sociológica A atitude moral busca um critério externo ao conjunto de regras para estabelecer um juízo acerca delas Assim todo juízo moral é avaliativo e como tal sugere um posicionamento Além disso o juízo moral geralmente se apoia na presunção de que determinado padrão é legítimo válido Por fim de alguma forma juízos morais levam o indivíduo a realizar um encadeamento entre determinadas premissas e determinadas conclusões Há inclusive questionamento por parte de alguns autores sobre tais apontamentos de Weber sob o argumento de que os princípios morais de certa maneira estão embutidos no ordenamento político o que Weber rechaça aduzindo que mesmo que tal ocorresse o ordenamento não mudaria apenas se tornaria mais complexo A atitude dogmáticojurídica por sua vez busca estabelecer quais são as regras do jogo Suas características não é avaliativa mas descritiva embora não haja uma avaliação externa há uma análise da regra em face das demais regras Por fim o sociólogo do direito de acordo com os apontamentos weberianos não avalia as regras de direito ele basicamente quer saber como os comportamentos dos indivíduos são causalmente determinados por um sentido sentido esse dado pelo ordenamento jurídico Em outras palavras procurase determinar em que medida a normatividade influencia o comportamento dos indivíduos A atitude sociológica se aproxima da atitude do advogado as regras do jogo são avaliadas e analisa se como essas regras influem nas decisões dos juízes Por óbvio diferentemente do advogado o sociólogo busca a partir da compreensão das decisões dos tribunais um conhecimento universal não casuístico Além disso como já mencionado o verdadeiro conhecimento sociológico busca se revestir de neutralidade axiológica O direito em suma é um conhecimento dogmático premissas estabelecidas em crenças não questionáveis A Sociologia é um conhecimento zetético postura explicativa e atitude não valorativa em face dos fatos Para Weber ordem jurídica é aquela garantida por uma alta probabilidade de que a transgressão a uma norma seja sucedida por uma sanção imposta por um órgão especializado burocrático Não existe nenhum campo da atividade humana que não esteja regulado pelo direito Assim direito não se define pelo tipo de sanção que esteja a ele relacionado nem pelo procedimento utilizado para produção das normas nem tampouco pelo tipo de comportamento regulado Pode mesmo haver direito sem Estado desde que as sanções sejam ainda assim impostas por um órgão especializado conselho dos anciãos ou dos guerreiros por exemplo A noção moderna de direito entretanto está ligada à ideia de Estado Direito em suma caracterizase pelo modo como a norma é aplicada por um órgão especializado Há casos limites todavia em que o descumprimento de uma norma não implica imposição de sanção para tomarmos o contexto brasileiro nas favelas por exemplo há um órgão responsável pela aplicação das sanções e entretanto não se fala em direito naquele ambiente Tais casos poderiam colocar em xeque a noção weberiana de direito Ocorre porém que Weber se refere ao direito prevalecente que na atualidade é o estatal Vejase que a concepção de direito de Weber é distinta da de Kelsen e Hobbes eis que não considera que a ordem jurídica tenha por origem a ordem constituída a autoridade mas antes o órgão burocrático que aplica as sanções Weber busca entender em que medida a economia influi na constituição do direito Nessa busca sustenta uma explicação causal hermenêutica de dois níveis enfatizando as relações recíprocas entre os objetos de seus estudos Quando o indivíduo age no mercado ele procura a maximização da satisfação de suas vontades individuais Na esfera religiosa age ele de maneira também racional em relação ao fim ir para o céu obter a salvação praticando fervorosamente sua fé Como já indicado para Weber existe uma certa autonomia entre as esferas do comportamento humano econômica jurídica religiosa etc no que se diferencia de Marx que deduz da econômica todas as demais A Sociologia Jurídica então estuda a normatividade emanada da esfera jurídica Assim reciprocamente com as Sociologias religiosa econômica etc Existem sim articulações de sentido entre fatos que ocorrem nas diferentes esferas Há um processo presente em todas as esferas do comportamento humano a racionalização tendência de organizar e sistematizar as regras além de criar mecanismos interpretativos avançados bem como um corpo especializado para a aplicação delas Essa racionalização não pode ser explicada de modo causalmente mecânico Não se pode afirmar por exemplo que a racionalização do direito foi causada pela evolução do capitalismo essa dedução não pode ser mecânica automática Aliás se assim fosse o direito racionalizado teria surgido primeiro na Inglaterra o que como se sabe não ocorreu As esferas do comportamento se influenciam mutuamente mas não são determinantes umas as outras O tema weberiano por excelência é o que provoca e o que resulta da racionalização nas diferentes esferas mesmo que esse processo não seja idêntico em cada particular situação em sua obra ele procura os pontos em comum Exemplo por que o direito racionalizouse na Inglaterra e na Alemanha mas não na China Quais os motivos Weber reconhece que processos de racionalização não são necessários a evolução pode se dar de outra forma Na história ocidental entretanto observase um predomínio daqueles processos Toda ação social e toda organização institucional guardam sempre um aspecto de contingência há um alto grau de probabilidade de que determinados padrões se repitam de que determinados processos ocorram mas não há processo necessário No campo do Direito impossível desconsiderarse a obediência Por que afinal as pessoas obedecem Por que essa ação faz sentido Em que medida podemos compreender a ação social de obediência Para responder é necessário antes entender o que é poder Poder como já apontado é a possibilidade no sentido de probabilidade de que determinados atos sociais de alguém se sobreponham à vontade alheia mesmo mediante resistência Dominação é um tipo especial de poder espécie do gênero envolve uma forma de aceitação do poder a pura coerção não constitui relação de dominação O elemento de voluntariedade assim não é necessário para a definição do conceito de poder mas o é para o de dominação O gênero poder portanto subdividese nas espécies violência e dominação É sobre essa última que Weber concentra suas atenções Isso porque dominação é a forma mais estável de exercício do poder Nenhuma estrutura de poder perdura se estiver estabelecida exclusivamente na violência há necessidade de legitimação para a estabilidade Justamente por esse motivo a dominação permite o desenvolvimento dos institutos sociais Daí o interesse de Weber sobre o tema Para ele a relação de dominação ou autoridade diferentemente da coerção violenta é uma relação tipicamente humana pois há um sentido na obediência Não se trata apenas de uma causa ou puro condicionamento o homem tem uma necessidade natural de encontrar um sentido para sua existência o pior inferno para o homem é viver sem sentido esse é um elemento que funda a relação de dominação Essa busca por sentido é particularmente aguda entre pessoas mais abastadas elas procuram justificar a sua situação comparandoa com a dos demais De qualquer modo o homem procura legitimar conferir sentido a situação por ele vivida Por que Weber se interessa pelo direito pela religião pela cultura pela música São segundo ele esferas doadoras de sentido para a vida das pessoas O impulso humano universal de viver significativamente encontra respaldo nos diferentes tipos de dominação tais tipos assim doam significado à vida das pessoas Enfim a questão do sentido e a questão da dominação estão diretamente ligadas Para Weber como já afirmado os valores são positivados Assim racionalmente é impossível estabelecer hierarquia entre eles As escolhas valorativas portanto não estão ligadas à razão a algum fundamento racional Valores nascem da mesma forma que as leis por um ato de vontade e como tal um ato de poder É impossível qualificar um valor de racional ou não racional A questão assim posta simplesmente não tem qualquer sentido Weber portanto sustenta uma teoria positivista dos valores valores como atos de vontade Entende que cabe à Sociologia explicar como surgem e como se mantêm os valores que como dito não são fatos naturais mas humanos e conferem sentido às ações sociais e às relações de dominação Valores são inventados e por isso mesmo positivados São impostos por algum tipo de vontade não se trata de ato racional mas ato de poder isto é essencialmente irracional Em suma é uma decisão não redutível ao critério racional que impõe os valores e o processo de imposição destes é descrito por Weber por meio de seus tipos ideais de dominação tema já tratado em tópico anterior É preciso ainda estabelecer qual a afinidade entre o tipo ideal da dominação racionallegal e os pressupostos metodológicos weberianos tema também mencionado no tópico anterior Convém então uma vez mais explicitar os principais pontos de partida da metodologia de Weber i os valores não podem ser fundamentados racionalmente e por consequência não é possível uma ciência dos valores mas apenas sobre os valores os quais como já mencionado são produzidos por um ato de vontade teoria positivista dos valores ii os valores são importantes para orientar a ação são códigos de sentido para a ação iii a ação científica é orientada também por um valor o da neutralidade iv outras formas de ação são cada qual orientadas por valores políticos ideológicos etc Todas as formas de dominação são úteis para compreender um tipo específico de ação social a obediência Na forma de dominação racionallegal é evidente que a escolha do conteúdo das leis é claramente derivado de um ato de vontade Na tradicional diferentemente a origem dos valores se reportava a um tempo imemorial isto é nela não há clareza de que o valor foi criado por um ato de vontade ao contrário é reconhecido como se sempre tivesse existido A percepção de que os valores tinham sido positivados não era nítida É na distinção entre fatos e valores no reconhecimento de que não se podem derivar valores da análise do assento que se pode vislumbrar a semelhança entre a metodologia weberiana e a dominação legalracional motivo pelo qual aliás Weber confere primazia a esta sobre as demais Somente na forma de dominação legalracional é que se pode ver claramente a origem dos valores em um ato de vontade as leis promulgadas são produto da vontade do legislador Assim resta claro nesse tipo ideal que os valores não estão escritos na natureza como preconiza o jusnaturalismo Vêse claramente em suma a separação radical entre valores e mundo entre deverser e ser Para Weber enfatizese uma vez mais todo valor é constituído em última instância por um ato de vontade Na dominação legalracional essa criação voluntarista é evidente ao passo que nos outros tipos ideais de dominação essa premissa metodológica de Weber não é tão perceptível A forma racionallegal em resumo é aquela em que as pessoas aceitam obedecer às regras cujo conteúdo foram obrigadas a criar sem qualquer fundamento racional mas por atos de vontade Reconhecese pois nesse tipo um certo vazio valorativo Na modernidade Weber aponta que na medida em que as pessoas não mais encontram um sentido único para suas vidas papel atribuído à religião na Idade Média por exemplo são desafiadas a reencontrar um novo sentido o que se liga diretamente a uma tentativa de instituir valores Esse processo por sua vez relacionase intimamente com a racionalização e é concomitante às passagens das dominações tradicional e carismática para a racionallegal Esse movimento também ocorre no direito que passa a ser racionalizado formal e substancialmente De um lado essa racionalização é posta como forma de libertação de valores outrora únicos De outro lado também serve para criar uma espécie de vida racionalizada que pode ser descrita como uma jaula de ferro o homem se vê criando sentido para suas ações sem ter a consciência dos motivos para tal proceder O homem se escraviza a valores criados Age racionalmente de acordo com valores irracionalmente postos Assim por exemplo o burocrata que age segundo regras e perde a referência sobre qual é o sentido de sua obediência a elas Em suma passa o indivíduo moderno a um automatismo A ideia de dominaçãoracional portanto deriva não da noção de justiça mas da positivação de dados valores por um ato de vontade investido de autoridade Não há qualquer predeterminação desses valores não há valores necessários para esse tipo de dominação Daí se dizer que apenas a dominação racionallegal mantém vínculo com a teoria dos valores de Weber Weber aponta também a existência de um processo de afirmação da ciência moderna bem como da filosofia moderna como padrão de conhecimento científico libertase o conhecimento progressivamente de qualquer vinculação metafísica Na Idade Média a Bíblia onde Deus se revelava era tida como a fonte de todo o conhecimento visto que todo conhecimento tinha fonte sagrada Daí se considerar heresia em suas respectivas épocas as afirmações de Giordano Bruno sobre astronomia e de Darwin sobre a evolução das espécies afirmações que questionaram todo o conhecimento tradicional existente até então como dogma sem que seus autores tivessem autoridade para fazêlo Houve em tais heresias uma contestação do saber filosóficopolítico As consequências foram revolucionárias eis que comprometeram toda uma base de fundamentação Locke por exemplo questionou o poder divino dos reis ao colocar dúvidas sobre o fato de serem os reis descendentes de Adão Locke aliás escreve contra o fundamento teológico da autoridade dos reis sendo nesse sentido um expoente do processo racionalista que não admite que a legitimidade repouse na autoridade tradicional dos reis da Igreja etc Hobbes e Hume diferentemente de Rousseau e Locke apontam ser impossível uma fundamentação racional dos valores Weber se filia à tradição dos primeiros Hobbes afirmava que o fundamento do direito é o poder soberano a autoridade e não a verdade mesmo porque não seria possível conhecer o que é a verdade ou o justo Weber como já dito outras vezes aduzia que conhecer o mundo não permite ao conhecedor apreender o sentido dele Na modernidade o uso da razão permitiu criar novos valores e fundamentálos racionalmente Assim uma época que admite que o fundamento do conhecimento é a razão e não a religião permeada de autores que vão de Hobbes a Weber e tão somente ela o cientista não pode trabalhar com algo que não seja racional demonstrável reconheceu que não é possível raptar o sentido das coisas É possível pois explicar o mundo mas não captar o sentido das coisas o porquê de tal e tal coisa acontecerem sentido que outrora era fornecido pela religião Assim na Idade Moderna sabese que existe a gravidade mas não o sentido o porquê de ela existir O ser humano da modernidade está assim acostumado a descrever as coisas e a tentar explicar o porquê das coisas por sua finalidade Tratase de legado deixado pelo modo de pensar da chamada era das trevas Com efeito para o religioso a explicação está no destino Deus sabe o que está fazendo A religião atribui sempre um sentido às coisas mesmo que as pessoas não consigam apreendêlo Na modernidade diferentemente afirma Weber as causas podem ser explicadas e toda fundamentação pela finalidade é inválida eis que nesse sentido essa finalidade não pode ser apreendida Afirma ainda que a ciência moderna não conseguiu se desvencilhar totalmente do viés de atribuir sentido às coisas constatação que pode também ser vista em Kant e em Habbermas Daí concluir Weber que o sentido do mundo não pode ser apreendido pelo resultado de sua análise O pensamento moderno assim não aponta qual valor deve necessariamente fundamentar a ação do ser humano Surge então a indagação sobre onde buscar os valores a serem acolhidos se a ciência não os fornece e ademais rejeita a fundamentação religiosa A resposta dada por Weber cada um deve criar seus próprios valores ou seja por força de vontade positivar valores que atribuam sentido a um mundo que não tem sentido A nossa era está pois condenada a criar o seu sentido No campo jurídico isso significa que não sendo mais possível a fundamentação jusnaturalista deve o homem criar os valores a que quer obedecer como a democracia De todo modo para contornar essa ausência de sentido imanente o homem busca racionalizar os valores adotados elegendoos como dogmas com natureza normativa Com isso o homem admite que a própria religião seja adotada como uma das fontes doadoras de sentido à ação de igual modo o ateísmo mostrase válido e faz sentido para quem o adota e racionaliza essa escolha No mesmo sentido os valores inerentes ao chamado direito natural podem em verdade ser escolhidos a qualquer tempo e por qualquer um daí a coexistência de valores diferentes em sociedades distintas cada qual com seu direito natural Não há portanto uma razão única que revele um valor único O que ocorre é que cada agrupamento humano escolhe um valor ou conjunto de valores escolhe um sentido para suas ações e tenta justificar racionalmente sua escolha para os muçulmanos a ditadura religiosa é plena de sentido para os ocidentais só a democracia possui sentido mas ambas as posições são válidas eis que cada qual tem sentido para aqueles que as positivaram Esse posicionamento metodológico vai de encontro às tentativas de fundamentar uma verdade ou razão universal Weber fala por isso em desencantamento do mundo atribuindoo à ciência moderna que traz em seu bojo o desenvolvimento tecnológico e cultura solapando valores tradicionais e religiosos A tarefa do sociólogo é pois segundo Weber buscar qual o sentido mais próximo de certa racionalidade qual o sentido que orienta cada ação social Com isso porém não deve se deixar levar pela ilusão de que é possível estabelecer e determinar o fundamento de cada ação como se houvesse um sentido único Isso não é possível porque não há uma mente coletiva e cada pessoa positiva seus próprios valores Mas diante da existência de fatores uniformizadores das escolhas podese entender por que dada coletividade adotou um valor comum sem olvidar que essa escolha não foi racional e sim derivou de atos de vontade Vejase em síntese que a novidade metodológica de Weber se liga à ideia de multiplicidade de normatividades estética direito moral religião etc que se entrelaçam na orientação do indivíduo O desencantamento do mundo a que faz referência é a dessacralização dos valores religiosos donde o caráter subversivo da ciência moderna que substitui valores tradicionais por outros pautados na neutralidade mas sem conexões necessárias e intrínsecas podese fazer uso da ciência para curar doenças ou para fazer bombas Com efeito no mundo moderno a moral perde seu caráter absoluto e surge com força a ideia de tolerância ou relativismo moral a admissão de que é possível conviver com diversos padrões Tal resulta da constatação de que não há fundamento racional a apontar que determinados valores devem preponderar sobre outros No máximo podese entender tais valores o porquê de obedecêlos Valores como já tantas vezes reiterado aqui resultam de um ato de vontade e hoje são relativos não se consegue por exemplo conceber arte perfeita como os gregos antigos o faziam Algo semelhante ocorre com o direito não há em Weber o direito absoluto fruto de autoridade soberana concepção hobbesiana há segundo ele um corpo de funcionários burocratas a que se atribui uma função especializada qual seja a aplicação do direito O direito veicula valores não é neutro a experiência do direito contemporâneo tem como fundamento a ideia de que a ordem jurídica não se vincula a um determinado valor preestabelecido mas pode se ligar a qualquer valor não há problema algum em existirem leis injustas Kelsen segue Weber nesse ponto donde não vê qualquer problema quanto à legitimidade de um ordenamento nazista por exemplo essa aliás a maior crítica sofrida pelos sistemas positivistas Weber de fato admite que qualquer conteúdo valorativo pode ser conteúdo de direito tratase de uma dimensão contingente A AÇÃO ECONÔMICA é o exercício pacífico do controle do agente sobre os recursos que é orientada racionalmente por planejamento deliberado para fins econômicos Max Weber Rudolf Stammler e o direito como querer Expoente da Escola de Marburgo Rudolf Stammler foi um estudioso da ciência do direito É considerado um filósofo neokantiano porque retomou a obra Crítica da razão pura de Immanuel Kant para determinar os pressupostos do direito É preciso lembrar que o direito foi objeto de estudo dos filósofos desde a Antiguidade clássica até Hegel Apenas modernamente é que passou a ser estudado pelos jusfilósofos ou juristasfilósofos Rudolf Stammler foi um dos primeiros jusfilósofos que adotaram o direito como objeto de estudo Sua originalidade foi construir um sistema filosófico do direito que o distinguiu da filosofia comum Rudolf Stammler e suas circunstâncias Rudolf Stammler inaugurou a fase em que o direito passou a ser observado como fenômeno universal porque o direito existe em qualquer lugar onde existam pessoas É considerado um dos precursores da moderna filosofia do direito O ponto de partida do método de Stammler é que o homem deve seguir a sua consciência e atuar para obter o que deseja O homem deve querer Rudolf Stammler nasceu em 1856 Foi professor em várias universidades alemãs como Leipzig Hamburgo e Berlim Morreu em 1938 Suas obras mais importantes foram A teoria do direito justo escrita em 1902 A escola histórica do direito de 1908 e Tratado de filosofia do direito de 1930 Com seu método contrário ao positivismo procurou dar ao direito instrumentos que permitissem lidar com o objetivo e os meios dessa ciência ao contrário do que pregavam os jusnaturalistas que preferiam lidar com causa e efeito Rudolf Stammler e sua influência no direito Com a filosofia do direito de Stammler tornouse possível definir questões que a filosofia não resolvia como por exemplo o que é justo e o que é injusto Que diferença existe entre moral e direito O direito segundo Stammler segue o princípio da finalidade Por isso o maior pressuposto de seu pensamento é de que o homem deve assumir uma atitude que o situe na realidade em que vive Não basta observar o mundo contemplálo apenas mas agir com um objetivo definido Toda atividade humana está envolvida com uma questão de consciência com o querer alguma coisa Nesse aspecto a juridicidade é um acordo formal de vontades Com essa visão formalista Stammler compreende a justiça como um valor abstrato e apenas ideal desvinculado da realidade social e política Por isso mesmo há diferentes direitos justos Rudolf Stammler influenciou jusfilósofos como Kelsen Para esse filósofo o objetivo do direito é a justiça Mas quando o conceito de justiça é aplicado ao cotidiano dos diferentes povos com suas peculiaridades sociais e culturais o resultado é que surgem diferentes direitos justos O homem tem a capacidade com o livrearbítrio de modificar as coisas Stammler suprimiu a metafísica e buscou uma justificação formal da moralidade na sua concepção do direito Rejeitando o materialismo histórico afirmou que existe diálogo entre direito e economia porque ambas as ciências tratam do mesmo objeto de estudo que é o homem como ser social submetido a uma regulação e em contínua cooperação com outros homens para a satisfação de suas necessidades sejam essas materiais ou ideais TODO DIREITO é um ensaio no sentido de ser justo Rudolf Stammler Oskar von Büllow e o processo como relação jurídica Até 1868 o direito processual era apenas uma parte do direito civil Daí ter recebido a denominação tão abominada pelos processualistas modernos de direito adjetivo em contraposição ao direito substantivo relativa ao direito civil Os contratualistas inspirados em Robert Joseph Pothier de que já tratamos neste livro dominavam a doutrina processual então dividida em duas categorias o direito material e o direito processual Até aquele momento não era permitido ao cidadão acompanhar o seu processo porque não havia a figura da autodefesa a não ser em casos muito específicos como a legítima defesa E o juiz como representante do Estado e com a obrigação de resolver conflitos tinha um papel que nada mais era do que aplicar uma norma existente ao caso concreto posto em análise Oskar von Büllow e suas circunstâncias Oskar von Büllow foi o responsável por transformar o direito processual em ciência autônoma desvinculada do direito material No livro A teoria das exceções processuais e os pressupostos processuais definiu as bases para a Teoria da Relação Jurídica que revolucionou o direito processual e que é praticada até hoje Oskar von Büllow é o fundador do moderno processualismo Nasceu em 1837 na Alemanha Obteve o grau de Doutor em Direito em 1859 Foi professor de Direito Romano e Direito Civil na Universidade de Giessen depois em Tübingen e por fim em Leipzig Aposentouse cedo aos 55 anos em função de problemas cardíacos mas continuou escrevendo Morreu em 1907 Oskar von Büllow e suas ideias Oskar von Büllow em 1868 publicou A teoria das exceções processuais e os pressupostos processuais tendo sido o primeiro jurista a defender que a lei não é a única fonte criadora do Direito Oskar von Büllow afirmou em sua teoria que existem duas relações jurídicas em um processo Uma é a relação material relativa aos bens de que trata o processo A outra é a relação formal estabelecida entre as pessoas envolvidas no processo Oskar von Büllow e sua influência no direito Esse autor defendia que a teoria do processo implicava necessariamente uma relação entre o juiz e as partes envolvidas Oskar von Büllow é considerado o primeiro teórico a tratar da sistematização da relação processual Sua obra foi responsável pela transformação do direito processual em ciência autônoma Embora tenha sido o formulador da Teoria da Relação Jurídica não foi o primeiro jurista a pensar no assunto Antes dele houve na Alemanha a célebre polêmica entre Bernhard Windscheid professor da Universidade de Greifswald e Theodor Müther da Universidade de Königsberg nos anos de 1856 e 1857 Ambos divergiram sobre o direito de ação isto é em que circunstâncias um indivíduo que se sente lesado pode impetrar ação contra o ofensor e até invocar a tutela do Estado O debate foi travado sobre os preceitos defendidos por Savigny de que não há ação sem direito não há direito sem ação e que a ação segue a natureza do direito Apesar das discordâncias esse famoso debate despertou os juristas da época para a necessidade de conceder autonomia ao direito processual o que acabou sendo realizado por Von Büllow alguns anos depois O PROCESSO é uma relação de direitos e obrigações recíprocas a dizer uma relação jurídica Oskar von Büllow Gustav Radbruch contra a injustiça legal Também neokantiano Gustav Radbruch celebrizouse como o autor do Código Penal alemão O princípio neokantiano é de que a lei é definida por valores morais Pertenceu à Escola de Baden Como vimos a Escola de Baden e a Escola de Marburgo foram os dois movimentos neokantianos efetivamente organizados A diferença de visão entre as duas escolas relacionavase com a noção de apreensão do genérico e do particular Gustav Radbruch e suas circunstâncias Gustav Radbruch foi o autor do Código Penal alemão Considerava o direito um fato cultural Contrariando filósofos de sua época afirmou a validade das ciências históricas que junto com as ciências matemáticas levavam o homem a participar dos valores culturais de seu grupo social Dizia que esses valores são atemporais e universais e consolidamse no transcorrer da história Gustav Radbruch nasceu em 1878 Foi professor de Direito Penal e de Filosofia do Direito nas Universidades de Königsberg Kiel e Heidelberg Foi ministro da justiça da República de Weimar entre 1921 e 1923 Nessa função redigiu o Projeto do Código Penal alemão em 1922 Também foi deputado constituinte de Weimar entre 1920 e 1924 Foi proibido de lecionar por uma medida de Hitler em 1933 por ter tido atividades políticas anteriores contrárias ao partido nacionalsocialista sempre foi fiel ao partido socialdemocrata Só conseguiria voltar a lecionar depois do fim da guerra Gustav Radbruch e suas ideias Inicialmente Radbruch foi seguidor do positivismo jurídico que veremos no próximo tópico deste livro mas desiludiuse com leis cruéis e injustas dos governantes alemães durante a Segunda Guerra Mundial e por isso alterou sua maneira de pensar e tornouse jusnaturalista Trabalhou então para acumular argumentos para a negação de validade de leis injustas impostas pela coação e pela força Entre suas principais obras estão Introdução à ciência do direito de 1910 Fundamentos de filosofia do direito de 1914 Minuta de um Código Penal alemão de 1922 e até uma autobiografia O caminho interior a trajetória de minha vida publicada em 1951 Suas obras configuram uma observação do direito por meio de juízos de existência que avaliam o ser e juízos de valor que avaliam o deverser No entanto considerava que todos os juízos eram relativos Gustav Radbruch e sua influência no direito Para Radbruch o direito é formado por três pilares centrais O primeiro é a Justiça que pode ser atingida com base em conteúdo formal universal e numa relação jurídica ideal entre os indivíduos envolvidos em um processo O segundo pilar é a Finalidade que configura o interesse político O terceiro pilar é a Segurança Social que daria segurança jurídica à população pela existência de um sistema legal adequado e estável A partir de 1933 com a ascensão do nazismo ao poder e principalmente depois do fim da guerra em 1945 a justiça como valor assumiu fundamental importância nos trabalhos de Radbruch que temia um Estado em que a formalidade legal servisse para disfarçar a injustiça Por isso estabeleceu em suas obras que a justiça deve ter como base a retidão ou seja a aplicação rigorosa e imparcial da lei pelo juiz mas sem deixar de ser apoiada pela igualdade no sentido da isonomia A IDEIA DE DIREITO não pode ser diferente da ideia de Justiça Gustav Radbruch José Ortega y Gasset e a rebelião das massas Foi um filósofo da chamada Escola de Madri que teve grande influência no Brasil principalmente sobre Gilberto Freyre no sentido de que ambos trataram das populações excluídas e dos problemas ocultos da sociedade Depois de obter o grau de doutor na Espanha seguiu para a Alemanha onde estudou com os neokantistas da Escola de Marburgo principalmente Herman Cohen José Ortega y Gasset e suas circunstâncias José Ortega y Gasset foi um dos mais importantes ensaístas do século XX sempre defendendo a ideia de que o homem deve manter diálogo com seu meio e às vezes submeterse ao coletivo Dizia que as massas foram responsáveis pelas grandes transformações do mundo mas ao mesmo tempo permitiram o advento dos regimes totalitários José Ortega y Gasset nasceu em Madri em 1883 Sempre teve proximidade com a imprensa porque o pai era diretor do jornal El Imparcial e isso contribuiu para que definisse um estilo literário em seus escritos É considerado um dos jornalistas e filósofos mais importantes da Espanha no século XX Fundou dois jornais diários El Faro e El Sol e a Revista de Occidente No jornal El Sol publicaria em fascículos sua obraprima Rebelião das massas Obteve o doutorado em Filosofia em Madri Depois estudou em Marburgo na Alemanha De volta para a Espanha passou a lecionar na Universidade Central de Madri onde ficaria até 1936 quando explodiu a guerra civil espanhola Antes disso teve grande participação política protestando contra a ditadura de Primo Rivera e a monarquia Com a queda do rei Afonso XIII participou da Assembleia Constituinte da Segunda República entre 1931 e 1932 como deputado eleito Durante a guerra civil decidido a não apoiar o ditador Francisco Franco deixou a Espanha para um exílio voluntário em vários países como Argentina França Holanda e Portugal Foi um grande crítico de Kant Suas principais obras Meditações de Quixote de 1914 e Rebelião das massas de 1930 Morreu em 1955 José Ortega y Gasset e suas ideias É considerado um dos grandes escritores modernos da Espanha ao lado de Don Miguel de Unamuno Azorín e Pio Baroja Trabalhou com a linguagem da mesma forma que trabalhou com suas teorias filosóficas com método refinamento e clareza Costumava dizer que la clareza es la cortesia del filósofo Sua maneira de encarar a filosofia da linguagem tinha algo de existencialista De Kant e Hegel herdou a admiração pela importância da história e da razão no pensamento da humanidade Foi um liberal Escreveu um livro chamado A história como sistema mas não chegou a desenvolver um sistema filosófico No livro Rebelião das massas fez a análise histórica da evolução do proletariado na direção do poder graças à liberdade política e ao progresso econômico O livro critica a sociedade de massas Mostra que o homem espanhol mediano acomodouse depois da guerra civil numa postura individualista que prejudicava o país como um todo porque acomodado o povo permitia o Estado autoritário e violento e nesse ponto Ortega y Gasset dá como exemplo o fascismo e o bolchevismo Ortega diz que toda sociedade está e deve estar dividida entre a maioria inculta cujo destino é obedecer e a minoria que sabe e por isso tem autoridade para mandar EU SOU EU e minha circunstância e se não salvo a ela não salvo a mim Ortega y Gasset Wilhelm Dilthey natureza e vida Para o psicólogo alemão Wilhelm Dilthey o estatuto das ciências é a vida A vida não é para ele apenas um conjunto de elementos mas um princípio original que norteia o mundo A concepção da existência do seu sentido e do seu significado deve ser observada de modo histórico A filosofia de Dilthey histórica e relativa pretende analisar os comportamentos humanos e esclarecer as estruturas do mundo no qual vive o homem Essa noção filosófica aproximavase da noção de Ortega y Gasset de que o conhecimento devese à vontade consciente Ao mesmo tempo discordava de Durkheim que considerava os fatos da vida como coisas William Dilthey e suas circunstâncias Wilhelm Dilthey afirmava que as ciências humanas ciências do espírito devem tentar compreender os fenômenos relacionados com o homem e com o comportamento humano a partir da realidade histórica Segundo ele os métodos das ciências naturais como a matemática não seriam aplicáveis por exemplo à arte e ao direito Para as ciências humanas recomendava a hermenêutica Wilhelm Dilthey nasceu na Alemanha em 1833 Estudou teologia em Heidelberg Foi professor de filosofia nas Universidades de Breslau Kiel e Berlim Em 1883 publicou Estudos sobre os fundamentos das ciências do espírito em 1890 Tratado da realidade e em 1900 Origem da hermenêutica Esses estudos fundamentaram a hermenêutica filosófica que ocorreria mais tarde Em 1907 escreveu A essência da filosofia Morreu na Áustria em 1911 Wilhelm Dilthey e suas ideias A vida é um todo dizia Dilthey e cada fato constitui um fenômeno da vida Sua afirmação era de que a natureza pode ser explicada mas a vida tem que ser compreendida A compreensão da vida deve estar embasada nas ciências humanas principalmente na psicologia mas também na história na religião na linguagem e na arte que segundo Dilthey constroem imagens do mundo Mesmo a interpretação de uma lei por exemplo consiste em integrar as palavras num sentido e de maneira lógica integrar esse sentido a uma estrutura do todo Wilhelm Dilthey e sua influência no direito Pelas razões que vimos Dilthey afirmava que as ciências humanas eram as verdadeiras ciências do espírito Geisteswissenschaften que estudavam o homem e o comportamento humano Chamava as demais de ciências da natureza que teriam como objetivo explicar o real e não explicar o homem Às ciências do espírito que refletem os estados de consciência não era possível aplicar as leis da matemática por exemplo mas era importante ao observador manter a neutralidade Entre as ciências do espírito estaria a ciência do direito Foi o primeiro pesquisador a apontar diferenças entre ciências naturais e ciências humanas Com essas ideias foi considerado o responsável por aplicar o procedimento hermenêutico às ciências humanas Seus estudos sobre a compreensão seriam retomados mais tarde por Martin Heidegger No campo do Direito a hermenêutica jurídica é a técnica de interpretação que permite compreender a aplicabilidade de um texto legal AS CIÊNCIAS DO ESPÍRITO estão assim fundadas nesse nexo de vivência expressão e compreensão Wilhelm Dilthey O POSITIVISMO FILOSÓFICO E O POSITIVISMO JURÍDICO No começo do século XIX o Estado liberal mostrouse inadequado o que acabou resultando em agravamento das diferenças sociais Não existiam mais senhores absolutistas não havia mais o feudalismo mas havia os capitães de indústria os empresários A realidade social era outra e necessitava agora de novo ordenamento O Estado moderno passou a se apoiar numa nova circunstância que se poderia chamar de império das leis Sendo a lei o padrão ideal da sociedade tratouse de retirar do direito a face interpretativa tornando o uma ciência baseada em fatos Fatos e normas bastavam por isso valores sociais e morais não precisavam estar nesse ordenamento positivo O positivismo considerava que direito se reduz às normas jurídicas emanadas pelo Estado que por sua vez garantia a sanção institucional Estado e sociedade eram coisas separadas não havia conexão entre o Estado e o seu contexto social Direito para o positivismo jurídico era apenas forma Mas se não havia interpretação desapareciam as possibilidades de atenuantes ou de agravantes Além disso os estratos sociais tinham cada um a sua peculiaridade Se não eram atendidas as necessidades exigidas para cada caso específico não havia como oferecer tratamento justo e igualitário E como seria possível oferecer justiça se não havia igualdade Mais ainda a interpretação da lei baseada apenas no texto concentrava o direito nas mãos do Estado permitindo o surgimento de governos intervencionistas e autoritários A história com a eclosão da Primeira Guerra Mundial e o surgimento do Estado do BemEstar Social mostraria com clareza essa faceta maligna do positivismo jurídico Na doutrina jurídica o positivismo relacionase com a noção de que o direito é prerrogativa humana e não produto da interferência divina ou das leis da natureza como preconizava o jusnaturalismo Santo Tomás de Aquino por exemplo um defensor do direito natural afirmava existir uma hierarquia piramidal das leis no alto estavam as determinações divinas e na base as leis exaradas pelos governantes Nesse sentido positivismo filosófico e positivismo jurídico decorrem da mesma matriz de pensamento No positivismo filosófico o pensamento humano atinge a maturidade ao se desvincular de crenças e mitos encarando a realidade a partir de leis universais que regem os fenômenos A ciência moderna tem todas as suas fundamentações no positivismo filosófico Segundo o positivismo o homem é civilizado quando aplica a ciência ao seu dia a dia e primitivo quando não o faz No positivismo jurídico quem é o responsável pela imposição e pelo cumprimento da lei é o Estado como autoridade que comanda a sociedade A religião e a natureza não têm supremacia sobre as leis impostas pelos governantes A lei é a consolidação do direito positivo Essa é a base do direito moderno que define complementarmente que não há relação entre direito moral e justiça Isso porque se o direito é uma ciência permanente justiça e moral são conceitos relativos que podem ser flexibilizados ao longo do tempo e da história No entanto há quem discorde dessa doutrina especialmente aqueles que defendem o racionalismo jurídico Detalharemos adiante a doutrina dos seguidores do racionalismo jurídico mas antes precisamos tratar do pensamento de alguns dos principais positivistas Origens do positivismo jurídico O homem precisou de leis para disciplinar a sua própria selvageria e para domar os seus próprios instintos Com a evolução das sociedades surgiram as leis e os códigos como vimos Esse impulso histórico para a legislação desde Hamurabi conduziu a uma doutrina que hoje é conhecida como positivismo jurídico doutrina na qual a lei é a fonte exclusiva do direito O positivismo jurídico surgiu na Alemanha com o filósofo Savigny que já estudamos neste livro com a sua Escola Histórica do Direito Tinha como característica a rejeição do direito natural pontificado pelos iluministas de caráter universal e imutável A Escola da Exegese Esse movimento surgiu em 1804 para promover a defesa do então recémpromulgado Código Civil francês 1804 Seus integrantes dentre eles Hans Kelsen considerado o seu maior representante defendiam a construção lógica e dogmática do novo conjunto de normas uma determinada lei seria validada por outra lei superior e esta por sua vez em uma lei ainda mais superior A abordagem da Escola da Exegese era de que a lei era a única fonte legítima do direito limitando assim a possibilidade de interpretação do juiz ou seja lei e direito seriam realidades idênticas e para compreender o significado das leis era necessário partir apenas do texto e não de suas fontes O espírito das leis estaria de tal modo articulado que pelo raciocínio o juiz chegaria à chamada norma fundamental ou Grundnorm que tem validade em si mesma Desnecessário dizer que esse tipo de arbitragem deixava o direito integralmente a cargo do Estado A escola científica A escola da livre investigação científica do direito fundada pelo francês Gény François cujos argumentos foram expostos no livro Método de interpretação e fontes no direito positivo privado veio oporse à Escola da Exegese clamando que o direito não se reduz à lei e que a sociedade tem demandas que quase sempre superam as simples possibilidades previstas por um sistema legal Desse modo não recusava a lei como fonte do direito mas defendia que a interpretação da lei devia darse com base na história na sociologia e na economia fontes que a Escola da Exegese havia negado John Austin fundador do positivismo jurídico John Austin é considerado o primeiro jurista a tratar da teoria da lei de maneira analítica até então a lei era vista como algo embasado na história ou na sociologia e conceitualmente menos importante do que moral ou política John Austin tratou do direito como algo desvinculado da moral e dos costumes sistematizandoo como entidade autônoma Não foi o primeiro filósofo a pensar nisso porque Thomas Hobbes e David Hume defendiam posição semelhante Mas o trabalho de John Austin foi a primeira sistematização do positivismo legal a lei tem que ser neutra em relação à moral vigente John Austin e suas circunstâncias John Austin foi o primeiro jurista a promover a reflexão sobre conceitos fundamentais do direito como lei dever legal e validade legal Até hoje a jurisprudência analítica que ele desenvolveu é importante para as discussões sobre a natureza da lei e do direito John Austin nasceu na Inglaterra em 1790 Começou na carreira militar que durou pouco tempo Estudou Direito durante dois anos em Bonn na Alemanha De volta à Inglaterra privouse da amizade de personalidades como Jeremy Bentham John Stuart Mill e Thomas Carlyle Em 1825 foi indicado para ensinar Jurisprudência na então recéminaugurada Universidade de Londres Em 1832 reuniu seis de suas aulas em um livro chamado Província da jurisprudência determinada O livro investiga a natureza de conceitos jurídicos entre eles o próprio conceito de lei Seu trabalho teve grande repercussão John Austin formou a partir de suas ideias sobre jurisprudência uma geração de juristas e legisladores ingleses Em sua obra o filósofo posicionase contrariamente ao uso da denominação lei natural pois considera que apenas as leis divinas podem assim ser designadas Leis positivas e leis da moralidade positiva foram duas expressões utilizadas pelo jurista para diferenciar as leis humanas As leis da moralidade positiva como o nome já diz baseiamse em leis impostas pela sociedade como forma de reprovação ou repúdio a um tipo de comportamento considerado inadequado o que equivale atualmente ao costume em nosso ordenamento jurídico As leis positivas são criadas pelos políticos e servem de base para a jurisprudência Em 1835 renunciou à cátedra na Universidade de Londres porque seu curso não atraía alunos Dedicouse apenas a escrever Sua mulher tradutora e revisora era quem sustentava a casa John Austin e suas ideias John Austin desenvolveu a jurisprudência analítica Para ele o termo jurisprudência não significa o estudo de casos precedentes para a fundamentação do caso presente Austin pensa em jurisprudência como a investigação filosófica sobre o fenômeno do direito considerando a lei um fenômeno independente da moral embora inserido em um sistema e obrigatoriamente relacionado dentro de instituições políticas e sociais ou seja direito e justiça são conceitos complementares mas autônomos Austin diz que o objeto próprio da jurisprudência é a lei positiva ou seja a lei imposta por uma autoridade política para os indivíduos que estão submetidos à sua autoridade É o autor da Teoria dos Atos de Linguagem segundo a qual uma afirmação uma enunciação sempre contém algo mais além do que está dito São as interrogações ou exclamações que podem disfarçar ordens desejos expectativas ou concessões Por isso considera que um enunciado não pode ser compreendido apenas a partir da sua aparência estritamente gramatical Falsa ou verdadeira uma frase tem potencialidade para intervir no mundo Portanto falar já é uma forma de ação John Austin também desenvolveu o conceito de comando que na sua época não teve grande aceitação e que ganhou força quando quase um século depois Herbert Hart autor de O conceito de direito passou a utilizálo O comando para Austin é manifestado em duas categorias leis laws e regras rules Quem determina o comando é o governante ou soberano a quem também cabe punir a desobediência Para Austin comando e punição estão diretamente relacionados É necessário lembrar que na Inglaterra da época os juízes privilegiavam o que se chamava common law ou seja a ideia de que a lei devia ser criada ou alterada em conformidade com resoluções judiciais que tratavam de disputas particulares Isso é exatamente o que Savigny afirmava a lei deve refletir o espírito ou os costumes da comunidade Certamente as ideias de John Austin se direcionam para governos centralizadores o que talvez explique a rejeição de sua teoria à época John Austin e sua influência no direito Com efeito no século XIX as escolas inglesas de jurisprudência baseavamse nas teorias de John Austin principalmente no preceito segundo o qual a lei deve ser entendida como um comando Partindo dessa premissa Austin alegava que a finalidade da lei era centralizar o modo de pensamento do indivíduo de modo que a obediência se tornasse um hábito Segundo o jurista inglês o Governo usa o comando como instrumento de poder de modo que o indivíduo fique submisso àquelas regras e caso as descumpra sofra uma sanção É desse modo que segundo Austin ocorre o domínio estatal sobre o cidadão Esse comando nada mais é que uma vontade da parte que o estabelece O indivíduo que recebe o comando sabe que está sujeito a uma sanção caso não cumpra a imposição e é dessa forma que a lei leiase o poder estatal constituído exerce o poder de obediência sobre ele O comando do direito positivo quando se trata das leis e normas deve ser interpretado diferentemente do comando divino que é moral e o comando imposto pelo empregador tido por Austin como uma mera ordem O filósofo aduzia que o comando não envolve o conceito de recompensa e sim de sanção diversamente do sustentado por alguns filósofos de seu tempo O esquema teórico de Austin é de fato direto e simples o cumprimento do comando é imposto pela lei positiva e caso não seja obedecido o indivíduo sofrerá alguma medida sancionatória Já no caso de receber uma recompensa para a prestação de algum serviço ela no máximo gera uma vontade um desejo de executar o serviço mas de modo algum cria um vínculo um dever Austin sustentava a diferenciação dos comandos particulares e gerais alegando que o comando não é somente aplicado em grupos como se fosse uma lei ou regra De forma mais precisa define a lei como um comando que obriga uma ou diversas pessoas Reconhecia ainda que nem todas as leis são imperativas e tentou provar não existirem leis que apenas criem direitos as normas que criam deveres também criam direitos Quem teve seu direito violado quer ver assegurado que o violador sofra uma sanção Daí afirmar Austin inexistirem leis garantidoras apenas de direitos ou somente de deveres toda lei consagra em si direitos e deveres O filósofo procurou diferenciar o direito positivo da moralidade Jurisprudência e Ética são pontos conflitantes em sua obra O direito no Brasil tem como base o direito romano e o direito germânico Por isso a simpatia de John Austin pelo direito germânico torna os seus estudos bastante interessantes para o direito brasileiro A EXISTÊNCIA DA LEI É UMA COISA seu mérito ou demérito é outra Que seja ou não seja é uma questão se é ou não adaptável a um padrão presumido é outra questão Uma lei que realmente exista é uma lei embora possamos não gostar dela ou embora varie do texto pelo qual regulamos nossa aprovação ou desaprovação John Austin A LEI É UMA REGRA estabelecida para a conduta de um ser inteligente por um ser inteligente tendo poder sobre ele John Austin Jeremy Bentham e o princípio da utilidade O utilitarismo é uma doutrina elaborada por Jeremy Bentham na Inglaterra A doutrina recebeu vários nomes como liberalismo clássico ou moralismo inglês e foi a principal base do pensamento jurídico e filosófico europeu por mais de duzentos anos Foi professor de John Stuart Mill sobre quem já falamos neste livro e suas ideias estimularam o aluno a lançar os fundamentos da democracia liberal no início do século XIX Jeremy Bentham e suas circunstâncias Jeremy Bentham criou a doutrina do utilitarismo considerada bastante atual Os argumentos dessa doutrina mais focados nas consequências têm sido utilizados com grande frequência nos processos decisórios Em resumo a ética preconizada pelo filósofo manda definir primeiro os bens a serem atingidos ou protegidos A partir dessa definição o Direito seria o meio de conseguilos Atribuise a Bentham a criação da palavra deontologia o conjunto de princípios morais e legais aplicados às atividades profissionais Bentham nasceu em Londres em 1748 Seu pai era advogado Foi um fenômeno de precocidade entrou no Queens College em Oxford aos 12 anos e aos 15 tornavase bacharel em Humanidades Exerceu a advocacia por breve período abandonando a profissão com cujos métodos se decepcionou para se dedicar à filosofia Publicou o primeiro livro Um fragmento sobre o governo aos 28 anos mas ganhou fama internacional com Uma introdução aos princípios da moral e da legislação publicado em 1789 Vivendo em Paris recebeu o título de cidadão francês em 1792 Nesse período viajou para a Rússia Itália e Turquia tendo estabelecido relações com importantes políticos desses países De volta a Londres criou a Revista de Westminster onde publicaria extenso material sobre política internacional Essa experiência o fez passar a utilizar a expressão Direito Internacional no lugar da até então utilizada expressão Direitos das Gentes Foi um dos fundadores da instituição que depois da sua morte se transformaria na Universidade de Londres oficializada em 1836 é hoje uma das maiores do mundo O cadáver de Jeremy Bentham embalsamado está na Universidade de Londres Morreu aos 84 anos em 1832 Jeremy Bentham e suas ideias Conservador e temendo que o Reino Unido pudesse enfrentar uma revolução popular como ocorreu na França em 1789 desenvolveu a ideia do Panoptismo um projeto que previa que os governantes fiscalizassem pela observação contínua e integral a vida do indivíduo comum Seria quase como o espírito do Big Brother mostrado por George Orwell no livro 1984 com o indivíduo sendo controlado e dirigido pelos governantes O projeto foi inicialmente concebido para ser aplicado em prisões mas deveria ser estendido para escolas e entidades assistenciais com o objetivo de constatar atitudes errôneas e permitir corrigilas A base de sua ética é de que o homem é regido pela busca do prazer enquanto foge da dor Por isso o homem age procurando a felicidade e com isso deve se tornar melhor para si e para os outros Considerava Bentham que os indivíduos agem motivados pelo interesse e pela obrigação As ideias de Bentham constituíram a base do liberalismo clássico de John Stuart Mill que governou a economia do século XIX Jeremy Bentham e sua influência no direito Ao Direito para Bentham cabia reformar a sociedade por meio da disciplina obtida pelo método de recompensas e punições O remédio seria a educação que favorece a disciplina Para isso e diferentemente do que pensavam seus contemporâneos achava que as leis deveriam ser revogáveis e passíveis de aperfeiçoamento Acima de todas as necessidades sociais estavam para Bentham a ordem e a segurança Esse fim justificaria sacrificar direitos de minorias caso estivessem em jogo os interesses da maioria Por exemplo punir comerciantes porque causam prejuízos aos consumidores Por essa razão o poder legislativo só deveria aprovar leis que cumprissem o princípio da utilidade isto é que disciplinassem as pessoas no sentido de buscarem a felicidade social o prazer A lei boa é aquela que aumenta a felicidade social Como se vê Bentham considerava as sanções como poderoso instrumento de consolidação de lei ou norma Mas as sanções por representarem em si um prejuízo só deveriam ser utilizadas para evitar um mal social Poderiam ser de quatro tipos físicas públicas morais ou religiosas E aplicadas apenas quando pudessem impedir uma ação prejudicial de alguém e desse grupo de pessoas estavam excluídos os incapazes os loucos e as crianças Mas Bentham não admitia impunidade absoluta nem para as crianças nem para os dependentes químicos A obra Teoria dos deveres ou A ciência da moral foi publicada em 1834 dois anos depois da morte de Jeremy Bentham O livro serviu de base para a elaboração da doutrina do liberalismo na economia A NATUREZA COLOCOU A HUMANIDADE sob o domínio de dois senhores soberanos a dor e o prazer Só a eles compete indicar o que devemos fazer assim como determinar o que faremos A seu trono estão atrelados por um lado o critério que diferencia o certo do errado e por outro a cadeia das causas e dos efeitos Jeremy Bentham O utilitarismo de Jeremy Bentham Filósofo inglês do início do século XVIII Jeremy Bentham teve grande influência sobre o pensamento de John Austin especialmente na sua doutrina do utilitarismo embora seus pontos de vista divergissem em relação à primazia das leis naturais Para Austin somente as leis de Deus poderiam ser consideradas leis naturais John Stuart Mill foi outro dos seguidores de Bentham O utilitarismo foi uma doutrina ética segundo a qual a ação é a maneira de promover o bemestar social O princípio utilitarista é este agir sempre de modo a produzir a maior quantidade de bemestar As ideias de Jeremy Bentham sobre moralidade e justiça baseadas em punições e recompensas tiveram impacto transformador sobre o sistema legal de todo o mundo Segundo o filósofo a natureza colocou a humanidade sob dois mestres soberanos o prazer e a dor Sobre esses dois sentimentos construiu uma tabela de valores no livro O cálculo hedonista Diz Bentham que todas as ações de uma pessoa são julgadas pela comunidade ou pelo grupo de indivíduos para determinar se tal ação é moralmente boa ou moralmente errada A ação moralmente boa é aquela que causa o bem ao maior número possível de pessoas Seu livro traz seis critérios para mensurar dor e prazer Para Bentham atos de virtude não precisam ser gigantescos mas gestos comuns que tragam benefícios a outros Esses atos merecem recompensas Na mesma proporção e na direção oposta atos de prejuízo merecem ser punidos Suas teorias publicadas em dois livros O raciocínio da punição e O raciocínio da recompensa foram largamente aplicadas no sistema de justiça criminal Hans Kelsen e o positivismo jurídico A principal obra sobre positivismo jurídico Teoria pura do direito foi escrita no início do século XX pelo filósofo austríaco Hans Kelsen Embora seja um neokantiano optamos por inserir a figura de Hans Kelsen neste tópico da filosofia do direito contemporânea porque ele é considerado um dos autores mais importantes do positivismo jurídico O positivismo jurídico como já vimos foi uma reação ao jusnaturalismo dominante nos séculos XVIII e XIX Tinha como objetivo construir uma nova ordem jurídica baseada não mais em leis divinas ou da natureza mas em princípios de igualdade e liberdade Hans Kelsen e suas circunstâncias Hans Kelsen foi o primeiro teórico do positivismo jurídico com seu livro Teoria Pura do Direito Inovou ao propor que não mais a lei mas a norma jurídica passasse a ser o objeto de estudo da ciência do direito Suas ideias inspiraram a Constituição da Áustria uma carta inovadora porque criava um tribunal constitucional Hans Kelsen nasceu em 1881 na cidade de Praga atual capital da República Tcheca que à época pertencia ao Império AustroHúngaro Formouse na Universidade de Direito de Viena Depois foi professor em Viena Colônia Genebra e Praga Assumiu durante a Primeira Guerra Mundial o posto de consultor jurídico do Ministério da Guerra da Áustria Terminado o conflito e desfeito o Império AustroHúngaro elaborou a Constituição da Áustria em 1920 quando era juiz da Suprema Corte Constitucional Na década de 1930 Kelsen foi alvo de perseguição política principalmente por ter travado um debate feroz com o filósofo nazista Carl Schmitt sobre quem deveria ser o guardião da Constituição Schmitt defendia que esse papel era político e não jurídico e deveria ser entregue ao chefe do Reich na época essa opinião foi partilhada por Martin Heidegger Kelsen rebateu dizendo que o papel político é transitório e mutante enquanto o conceito jurídico deveria ser permanente e consolidado por isso a Constituição deveria estar sob a guarda de um tribunal constitucional Perdeu a discussão para o gabinete de Hitler Por isso emigrou para os Estados Unidos em 1940 Lecionou nas Universidades de Harvard e de Berkeley Publicou nos Estados Unidos Princípios da lei internacional em 1952 propondo uma unidade jurídica mundial que prevaleceria sobre as leis de cada país Morreu em Berkeley na Califórnia Hans Kelsen e suas ideias Para Kelsen o direito deveria ter uma função meramente descritiva e deveria ser entendido como norma despida de qualquer concepção social ou de valores valores para ele são objeto de estudo da Sociologia Psicologia e Filosofia Este é o princípio positivista que rege a sua obra Teoria pura do direito libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos Desse modo o direito não deve tratar do ser mas do deverser Seus críticos censuraram o seu formalismo normativista porque sem o apoio da ética ao conteúdo das normas qualquer coisa seria válida por princípio até mesmo o nazismo Hoje se sabe da importância do contexto e das circunstâncias sociais e políticas para a exequibilidade de uma lei Hans Kelsen e sua influência no direito São numerosas as ideias de Hans Kelsen entre elas a conceituação de norma jurídica fundamental Integrante da Escola de Viena ao lado de Adolf Merkl Hans Kelsen acreditava que o positivismo do século XIX errou ao fazer uma simplificação do direito considerando a lei como a única fonte do direito Mas é considerada uma das grandes contribuições de Hans Kelsen à filosofia do direito a introdução do conceito de controle concentrado da constitucionalidade das leis a cargo de um tribunal constitucional que guarde a integridade da Constituição O Brasil influenciado pelas ideias de Kelsen pratica a jurisdição constitucional de duas maneiras Uma delas é o controle concentrado em que o Supremo Tribunal Federal e os tribunais de justiça estaduais analisam a constitucionalidade das leis e normas estaduais e municipais A própria Constituição Federal de 1988 registra a expressão guarda da Constituição no artigo 23 inciso I É competência comum da União dos Estados do Distrito Federal e dos Municípios I zelar pela guarda da Constituição das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público e no artigo 102 Compete ao Supremo Tribunal Federal precipuamente a guarda da Constituição A outra maneira é o controle difuso realizado pelos tribunais em todas as ações e recursos UMA DISTINÇÃO entre o Direito e a Moral não pode encontrarse naquilo que as duas ordens sociais prescrevem ou proíbem mas no como elas prescrevem ou proíbem uma determinada conduta humana Hans Kelsen A questão do valor na teoria positivista de Kelsen A validade do direito para Hans Kelsen não está condicionada a valores Validade ou vigência é o termo utilizado para significar que as regras jurídicas são obrigatórias e que os homens devem se conduzir de acordo com o que as normas prescrevem Notese que a realização da justiça é considerada um valor relativo na concepção desse jurista assim como outros valores morais políticos ou religiosos que podem sofrer diferentes interpretações de acordo com o contexto histórico e social O direito na teoria de Kelsen deve ser visto como a coleção de normas legitimamente produzidas dentro de um sistema normativo Essas normas podem ser estáticas quando o seu conteúdo determina diretamente a conduta que um indivíduo deve ter no seu meio social ou dinâmicas aquelas que definem de que maneira devem ser criadas as normas Na abordagem positivista de Hans Kelsen a autoridade jurídica é quem cria interpreta e aplica a norma jurídica Para ele o papel do direito é rigorosamente a aplicação da norma jurídica Os valores constituem uma questão à parte dessa A ORDEM JURÍDICA de um Estado é assim um sistema hierárquico de normas gerais Hans Kelsen Herbert Hart e a conceituação do direito Os fundamentos principais do positivismo jurídico moderno foram lançados em 1950 por Herbert L A Hart no livro O conceito do direito A principal contribuição dessa obra foi distinguir as regras jurídicas de todas as demais regras sociais inclusive as morais embora não exclua totalmente a moral do direito ao contrário de seus antecessores Herbert Hart e suas circunstâncias H L A Hart desenvolveu teoria sobre o positivismo jurídico em seu livro O conceito do direito publicado em 1950 Seu grande mérito foi trabalhar com a conceituação do direito de modo a distinguilo de regras morais É considerado neopositivista Recuperou o conceito de comando desenvolvido por John Austin e deu lhe publicidade Trabalhou também com direito penal e responsabilidade jurídica H L A Hart como preferia ser chamado Herbert Lionel Adolphus Hart foi um filósofo inglês nascido em 1907 e falecido em 1994 Filho de um negociante de algodão cursou filosofia e história antiga na Universidade de Oxford onde mais tarde foi lecionar Jurisprudência Entre seus alunos estão filósofos importantes como Neil MacCormick e John Finnis Recebeu grande influência de Jeremy Bentham Dedicouse ao trato da moral num período crítico da Europa que foi o pósguerra e são famosas as suas polêmicas com juristas de sua época que defendiam o moralismo jurídico Considerase que tenha reinventado a filosofia do direito no século XX combinando a tradição utilitária com a nova filosofia linguística de John Austin e Ludwig Wittgenstein Em 1961 teve um famoso debate acadêmico com Hans Kelsen durante um evento na Universidade da Califórnia em Berkeley Herbert Hart e suas ideias O filósofo categorizou as normas em primárias que são ordens ou mandados de caráter geral e secundárias aquelas que corrigem o caráter estático das normas primárias por meio de reconhecimento autorização modificação ou derrogação por exemplo Segundo ele a combinação das duas espécies de normas consegue explicar melhor o direito Um exemplo clássico é este a norma primária que é a norma jurídica diz não matarás determinando a proibição dada pelo direito Já a norma secundária estabelece as sanções adequadas para quem apresenta desvio da conduta em questão dizendo Se matares tu serás condenado a tantos anos de reclusão Como obra de filosofia o livro de Herbet Hart lida com a essência do direito buscando critérios para definilo como ciência Para isso lança mão da filosofia da linguagem como o fizeram os positivistas alemães antes dele Herbert Hart e sua influência no direito O livro O conceito do direito desenvolveu uma visão sofisticada do positivismo legal Entre as ideias principais estão uma crítica à teoria positivista de John Austin de que a lei é comando do governante apoiada na ameaça de punição uma distinção entre normas primárias e normas secundárias em que as regras primárias governam a conduta e as secundárias permitem a criação alteração ou extinção das regras primárias a ideia da regra de reconhecimento uma regra social que permite diferenciar as normas que têm status de lei e aquelas que não têm Hart dedicouse especialmente à questão da moral Segundo ele o sistema jurídico deve ser um sistema lógico e fechado Dentro dessa ideia construiu um conjunto de critérios para definir as regras morais e assim diferenciálas de regras jurídicas Os critérios são quatro importância porque o indivíduo mantém suas regras morais mesmo em situação de pressão social imunidade à alteração deliberada ou seja não há um órgão legislativo que mande modificar a moral caráter voluntário dos delitos morais a pessoa sabe que está errando e forma de pressão moral que não se manifesta pela ameaça mas normalmente pelo apelo à própria natureza moral da ação Um bordão típico do positivismo é de que lei não é moralidade Hart acreditou ter superado as dificuldades de exagero formal apresentadas na doutrina de Hans Kelsen propondo que o direito encare a lei como alguém que participa do sistema e não como um simples observador externo HÁ DUAS CONDIÇÕES mínimas necessárias e suficientes para a existência de um sistema legal De um lado aquelas regras de comportamento que são válidas de acordo com os critérios fundamentais do sistema de validade devem ser obedecidas De outro lado as regras de reconhecimento especificando os critérios de validade legal e suas regras de mudança e adjudicação devem ser efetivamente aceitas como padrões públicos de comportamento oficial pelas autoridades H L A Hart O NEOPOSITIVISMO O positivismo jurídico reinou durante muito tempo na Europa apoiado na razão Mas chegou um momento em que dois eventos abalaram a confiança dos intelectuais em sua efetividade como teoria filosófica lastreada exclusivamente sobre a razão O primeiro solavanco foi o materialismo de Karl Marx afirmando que a razão é sempre refém da ideologia de uma classe que domina o grupo social em determinado momento histórico a exemplo como já vimos aqui do fascismo nazismo ou socialismo Os governantes seguidores de uma ideologia controlam a produção de leis para beneficiar sua própria doutrina colocando o povo em segundo lugar O segundo surge com Sigmund Freud o homem não controla com a razão o que sente nem como age mas é dominado pelo inconsciente Fica fácil perceber somando os acontecimentos que não era mais possível aceitar uma doutrina filosófica que não levasse em conta as questões éticas morais e até psicológicas no trato com o direito Desse modo a hermenêutica ganha força Não foi por acaso que em 1900 Wilhelm Dilthey publicava o livro Origem da hermenêutica que abriu caminho para novas leituras da ciência do direito E pouco depois H A L Hart colocava no seu O conceito do direito o raciocínio de que a lei não deve ser uma abstração mas regras efetivas de ação Entre os pensadores mais recentes que se ocuparam de analisar o positivismo não podemos nos esquecer do francês Michel Foucault Michel Foucault e o poder Não é fácil nem definitivo incluir Michel Foucault em uma corrente filosófica Apenas para efeito didático vamos considerálo pósmoderno neste livro mas há estudiosos que o colocaram na categoria de estruturalista Sua contribuição mais patente para a filosofia foi a teoria do poder Em seus trabalhos buscou compreender os nexos estruturais do poder e os instrumentos e mecanismos de dominação que existem na sociedade Michel Foucault e suas circunstâncias Michel Foucault trabalhou com a linguagem especialmente em A palavra e as coisas livro em que denuncia mecanismos de segregação principalmente pela rotulação Com isso opõese aos positivistas no sentido de considerar que a verdade do direito penal só pode ser obtida dentro das instituições penais nas práticas do cotidiano e não nas normas jurídicas que o Estado produz Na verdade para Michel Foucault o direito é mais um instrumento de dominação da classe governante do que uma formalidade legítimada pela sociedade Um dos mais conhecidos filósofos franceses contemporâneos Michel Foucault teve grande influência de Thomas Hobbes John Locke JeanJacques Rousseau Karl Marx e principalmente de Martin Heidegger JeanPaul Sartre e Friedrich Nietzsche Desenvolveu um trabalho importante na análise do papel da disciplina na sociedade moderna Visitou o Brasil algumas vezes uma delas em 1965 quando deu uma série de palestras junto com o também filósofo Gilles Deleuze Politicamente defendeu as liberdades individuais Chegou a filiarse ao Partido Comunista francês mas desligouse por causa de divergências de ideias Morreu aos 58 anos em 1984 Michel Foucault e suas ideias Para Foucault há expressões de poder em todas as pessoas e não apenas naquelas revestidas de autoridade ou de mando Há expressões de poder nas grandes questões sociais mas também nas pequenas ocorrências do dia a dia Poder segundo Foucault não é apenas aquela prática de governantes por exemplo em todas as relações sociais em todos os comportamentos e atitudes há práticas de poder não necessariamente o poder repressor mas de qualquer maneira pequenos poderes do cotidiano Segundo ele são as minorias sociais que se rebelam contra esse tipo de poder do qual muitas vezes as pessoas nem se dão conta de estarem praticando Suas pesquisas buscaram sustentação em nichos sociais específicos interrogando temas característicos das classes marginais Assim pesquisou a loucura a exclusão a sexualidade a tortura Michel Foucault e sua influência no direito Pela afirmação de que o direito é instrumento dos poderosos poderseia pensar que o pensamento de Foucault é marxista no sentido de achar que o que prevalece é a ideologia das classes dominantes Mas sua conclusão é mais ampla do que isso ele revela que existe uma rede de poder dominação e sujeição em todas as relações sociais em todas as classes sociais Além disso Foucault rechaça a ideia de que o poder seja ideológico Para ele o poder está acima da ideologia e é utilizado por ela Partindo dessa ideia desenvolveu a teoria dos corpos dóceis segundo a qual a dominação se dá por meio de vigilância hierárquica com controle de atividade por meio de horário cartão de ponto relatório etc sanção normalizadora quem chega atrasado é descontado no salário quem discorda do chefe não recebe promoção e exame testes de verificação de evolução por exemplo NÃO HÁ SABER que não produza poder Michel Foucault NORMATIVISMO JURÍDICO O positivismo jurídico continua a ter em nossos dias grande aceitação entre os juristas depois de sofrer modificações ao longo dos anos Mas a sua atualização mais notável foi já no século XX com o normativismo lógico de Hans Kelsen A norma jurídica e não mais simplesmente a lei passou a ser o objeto de estudo da Ciência do Direito Norma é um parâmetro de interpretação que apresenta o sentido do deverser e por isso tem efeito vinculatório sobre os seus destinatários Naturalmente a sua eficácia e validade dependem da sua aceitação social Para efeito de metodologia do direito Kelsen afirmou que a realidade é dividida em natureza e sociedade Há uma ordem na natureza Para o entendimento dessa ordem pensou o filósofo austríaco existem as ciências explicativas que tratam da essência da origem e da finalidade de um objeto ou de um ser Também há uma ordem na liberdade das ações humanas Para o entendimento da ordem existente na sociedade Kelsen colocou as ciências normativas que tratam das normas de conduta e das relações dos homens com o seu meio social Desnecessário aduzir que para Hans Kelsen o direito é ciência normativa dotada de intencionalidade método e objetivo A partir da norma diz ele é possível analisar fatos e interpretálos transformando os em fatos jurídicos Mas não interpretálos em termos de serem justos ou injustos ou de serem bons ou maus porque isso é papel da moral Interpretálos sob termos de serem fatos válidos ou inválidos A principal novidade trazida pelo normativismo sobre o positivismo do século XIX foi a noção de que a norma é aceita pela sociedade ao contrário da lei positiva que é imposta pelo Estado Mas é necessário entender que direito não é só a norma mas o conjunto ordenado de normas que constitui um sistema Como sistema está em interação constante com outros sistemas como veremos ao estudar Niklas Luhman O PÓSMODERNISMO A História nos dá a perspectiva da realidade Muitas vezes somente com o tempo será possível determinar em que classe categoria ou tipo se enquadram determinados pensadores Por isso selecionamos para encerrar este livro uma série de filósofos do século XX que por serem contemporâneos não tiveram ainda o beneplácito da História ao seu favor Vamos deixálos todos para errar menos sob o título de pósmodernistas O pósmodernismo que sacudiu o mundo das artes no começo do século XX com o dadaísmo iniciado em Zurique em 1915 por artistas como Marcel Janco e o poeta romeno Tristan Tzara e o surrealismo iniciado em Paris nos anos 1920 por André Breton e Salvador Dali também teve impacto sobre a filosofia Seu objetivo era questionar o pensamento tradicional e questionar as verdades tidas como definitivas No pensamento de um dos mais importantes filósofos pósmodernos Jacques Derrida era preciso desconstruir a realidade não exatamente para mostrar os intestinos dessa realidade mas exibir aquilo que não teria sido dito que jazia oculto atrás das figuras e da semântica Para isso o pósmodernismo buscou promover uma aproximação da linguagem escrita ou pictórica com a realidade Como nomenclatura a expressão pósmodernismo aplicase apenas como referência didática neste livro porque não há unanimidade entre os estudiosos sobre ela Há inclusive autores que acham que esse movimento começou somente depois das revoluções estudantis de 1968 De certa maneira esses autores têm razão porque na filosofia o pósmodernismo aconteceu mesmo na década de 1960 Como era de se esperar as correntes que compõem o movimento pósmodernista variaram no tempo de país para país Por exemplo o futurismo foi lançado em 1909 na França quando o poeta italiano Filippo Marinetti publicou no jornal Le Figaro o Manifesto Futurista movimento semelhante com as mesmas tendências de rejeição do moralismo do culto ao passado e à forma foi a Semana de Arte Moderna brasileira que por causa da guerra só pôde ser realizada treze anos depois em 1922 Aliás no Brasil o modernismo que chegou a ser confundido com o futurismo por causa de várias semelhanças permaneceu em destaque principalmente na literatura até pelos menos a chamada Geração de 1945 da qual participaram nomes como Guimarães Rosa e Cassiano Ricardo entre outros Jacques Derrida e a desconstrução Jacques Derrida foi o filósofo das minorias Iniciou sua teoria da desconstrução inicialmente na década de 1960 como uma crítica ampla ao momento da filosofia europeia Jacques Derrida e suas circunstâncias Jacques Derrida foi o fundador da desconstrução uma abordagem crítica aplicável tanto a textos literários quanto filosóficos e políticos Sua teoria foi muito popular em vários campos das artes mas ganhou popularidade quando foi adotada pelo movimento feminista Suas ideias foram também aplicadas ao direito especialmente nos livros A força da lei e Desconstrução da possibilidade de justiça Jacques Derrida nasceu na Argélia então colônia francesa em 1930 Adolescente mudouse para Vichy para estudar no liceu Ali participou de movimentos de resistência ao governo que queria proibir que os imigrantes argelinos falassem o idioma nativo o berbere o que o levou a ser expulso o pretexto alegado foi a redução das cotas para judeus de 14 para 7 Em 1949 mudouse para Paris para estudar na Escola Normal Superior onde iria lecionar na década de 1960 Fez amizade com intelectuais da época como Michel Foucault Louis Althusser e Gilles Deleuze Seu primeiro trabalho produzido em 1954 mas que seria publicado somente em 1990 foi O problema da gênese na filosofia de Husserl Mas foi em 1967 que se tornaria famoso com a publicação em sequência de três livros Mais tarde publicaria Violência e metafísica enfatizando a alteridade a preocupação com o outro e também reforçando Husserl a potencialidade da linguagem como elemento gerador de violência pelo desentendimento Suas teses sobre a violência originaram a noção do politicamente correto Foi contemporâneo de pensadores como Lyotard Roland Barthes MerleauPonty JeanPaul Sartre Simone de Beauvoir LeviStrauss Jaques Lacan e Paul Ricœur Nos Estados Unidos lecionou nas Universidades de Harvard Yale e John Hopkins Em 1981 fundou a Associação Jan Hus para prestar assistência a intelectuais da Tchecoslováquia que combatiam os governos comunistas que se sucederam até 1991 depois da morte do marechal Tito em 1980 Jacques Derrida chegou a ser detido em Praga ao sair de um seminário clandestino mas a intervenção de François Mitterrand o salvou da prisão Em 1983 criou o Colégio Internacional de Filosofia Também em 1983 tornouse diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris função que ocupou até morrer de câncer em 2004 Jacques Derrida e suas ideias A síntese do pensamento de Derrida é esta qualquer texto contém ambiguidades obscuridades ideias ocultas e até dissimulações pela análise radical da construção do texto é possível obter entendimento do raciocínio aplicado em sua produção compreender premissas não esclarecidas estabelecer a ordem de prioridades que o autor usou Essa técnica de caminhar inversamente do texto pronto para a sua origem desconstruindo a narrativa é aplicada à literatura mas teve influência decisiva na filosofia Suas ideias foram adotadas com destaque nos Estados Unidos onde os intelectuais de esquerda principalmente nas universidades sentiam falta de uma ferramenta eficiente para realizar a crítica social A técnica da desconstrução foi utilizada então para a análise mais radical de textos filosóficos de discursos políticos e principalmente das próprias instituições políticas Aliás esse era um tema recorrente no pensamento de Jacques Derrida o filósofo tem que ter participação política mas com muita prudência Um exemplo de sua participação pessoal foi na denúncia do autoritarismo e da opressão praticados pelo regime do apartheid na África do Sul Criou o termo iterabilidade ou reiterabilidade para designar a capacidade das pessoas que se repetem em diferentes contextos Em literatura e por extensão na produção de textos é a marca de identidade da escrita que pode ser repetida sem variações Basicamente referese ao fato de que preso a tradições e a ideias cristalizadas na mente o homem repete erros mecanicamente sem parar para pensar na origem de sua atitude O método que permite identificar atitudes repetitivas é a desconstrução Devese inverter o processo de raciocínio partindo do resultado para a origem a fim de entender o processo que leva à repetição mecânica Dessa maneira é possível compreender e evitar os erros Na realidade Jacques Derrida não desconstrói mas decompõe Veremos adiante como essa ideia se aplica ao direito O conceito de iterabilidade foi aplicado à linguagem Para Derrida é impossível assegurar para um determinado termo ou expressão dentro de um texto um significado primeiro Mas ao mesmo tempo existem termos e expressões que se repetem nas comunicações e que são identificáveis mesmo fora de um texto ou seja conseguimos identificar os termos mas não conseguiremos saber se o significado primeiro fundamental aplicado a ele é o mesmo Só saberemos se for possível ler o texto além do seu contexto original no momento da produção Lendo o livro mais tarde estaremos distantes desse contexto e vamos interpretálo sem o apoio das informações do contexto ou seja a leitura será outra Como se vê tudo ocorre em função do tempo o que remete a Heidegger e ao seu O ser e o tempo Aliás o termo desconstrução parece ter sido inspirado no termo destruição usado por Heidegger no mesmo livro Para o platonismo a essência é mais importante do que a aparência por isso havia uma hierarquia entre o visível e o apenas sensível entre corpo e alma entre bem e mal Derrida critica essa visão de opostos como Nietzsche já fizera antes e coloca a aparência numa condição de mais importância diante da essência O pensamento empírico é de que a essência depende em grande parte de experimentarmos o que se nos aparece das coisas Mas isso não quer dizer que essência e aparência sejam coisas opostas e não relacionadas Portanto é possível chegar à essência ou imanência por meio de análise de várias manifestações da aparência e para isso é preciso memória e espírito de antecipação Em resumo a essência pode ser encontrada na aparência ela existe dentro da aparência Mas a aparência é temporal Observamos algo no momento presente que é diferente mesmo minimamente num momento anterior e será diferente num momento posterior Por isso não conseguimos decidir se estamos observando a aparência presente a aparência que ficou em nossa memória de um momento atrás ou a aparência que a nossa mente projeta para um momento à frente Essa hesitação é chamada por Derrida de indecidível e é por ela que não podemos estabelecer hierarquia sobre o que é mais importante ou superior Nessa análise Derrida estabelece diferenças não hierarquias e essa noção é aplicada entre os conceitos de lei e justiça no livro A força da lei A palavra diferença na teoria de Derrida constitui um outro conceito filosófico A partir do verbo latino differre diferir comporta dois significados designar alguma coisa que tem como característica ser distinta de outra e designar algo que remete para o futuro Jacques Derrida e sua influência no direito Para o filósofo há algumas ideias impossíveis de serem desconstruídas Uma delas é a justiça Seu trabalho mais importante nessa área é de 1989 A força da lei em que afirma que o direito deve ter supremacia sobre o poder contestando o direito da força Para ele não basta aplicar a regra justa mas é preciso aplicar a regra justa com espírito de justiça Espírito de justiça para Derrida é considerar que a regra deve levar em consideração que fora da sua generalidade existe aquilo que é singular diferente e único em cada indivíduo Como exemplo podese raciocinar como Derrida a respeito do conceito de liberdade Para praticar a justiça o indivíduo precisa ser livre e responsável pelas suas próprias ações e decisões Então a essência de liberdade é formada de algumas aparências ser livre é seguir regras mas apenas seguir a regra não garante a aplicação da justiça por isso aplicar a justiça representa seguir a regra mas usar um julgamento que não está na regra então ser livre é às vezes não seguir a regra O juiz que só segue regras é uma máquina de calcular dizia Derrida Mas ao mesmo tempo diz ele o juiz dá a decisão baseado no indecidível aquilo que vê no momento presente na memória do que viu há um momento ou na antecipação de futuro que sua mente elaborou Seja como for está seguindo uma regra muitas vezes ideológica mas está também praticando uma violência contra a regra Assim é impossível que consiga dar uma decisão completamente imparcial completamente apoiada na lei Portanto Jacques Derrida conclui que a justiça é impossível pelo menos no momento presente Justiça será sempre algo a ocorrer no futuro É a essência do que Jacques Derrida explica em seu livro Desconstrução da possibilidade de justiça ao questionar os conceitos tradicionais de verdade e memória TENHO ENORME APREÇO por tudo o que eu desconstruo Jacques Derrida COMO O PRÓPRIO NOME GREGO sugere um horizonte é ao mesmo tempo uma abertura e um limite que define um infinito progresso de um período de espera Jacques Derrida JeanFrançois Lyotard e a ausência de crenças Um dos mais importantes filósofos pósmodernos ocidentais JeanFrançois Lyotard concentrou suas teses sobre a pragmática da linguagem Estudou as formas do discurso retomando Wittgenstein e entendeu que o homem mantémse preso às tradições e que a história acaba por não ser mais do que uma narrativa e a ciência uma narrativa da narrativa Para que alcance a evolução o homem precisa duvidar do que tradicionalmente é relatado e assim construir uma nova visão da realidade É o que chama de estatuto do saber Adotando essa posição pósmoderna de incredulidade em relação ao conhecimento o indivíduo obtém nova consciência sobre todos os agentes do saber sejam referentes ou destinatários JeanFrançois Lyotard e suas circunstâncias JeanFrançois Lyotard foi o formulador do pós modernismo no livro Condição pósmoderna de 1979 No mesmo ano produziu uma versão chamada O pósmoderno explicado para crianças Seus estudos envolvem além da filosofia a psicanálise a política a economia e a estética JeanFrançois Lyotard nasceu em 1924 na França Estudou filosofia na Sorbonne tendo sido colega de Gilles Deleuze Na Segunda Guerra Mundial integrou a resistência francesa Em 1950 foi lecionar filosofia em escolas secundárias da cidade de Constantina na Argélia então ocupada pela França Em 1954 fez parte do movimento revolucionário argelino de independência escrevendo panfletos e artigos contra a dominação francesa naquele país Acreditava que a França praticava a política de manter o povo argelino no subdesenvolvimento e na pobreza impondo a ele a cultura europeia Ao fim da ocupação francesa escreveu textos em que lamentava que a Argélia não tivesse se tornado um país socialista Seus primeiros livros da década de 1950 foram defesas radicais do marxismo Mais tarde porém concluiu que a realidade social é complexa demais para ser descrita por um discurso ideológico e acabou renunciando ao marxismo Em 1959 assumiu a posição de professor assistente na Sorbonne e em 1966 assumiu cadeira como titular na Universidade de Paris onde ficaria por mais de trinta anos Foi ativista do movimento estudantil de 1968 Ganhou fama internacional com a publicação do livro Condição pósmoderna em 1979 No mesmo ano veio ao Brasil para dar aulas na Universidade de São Paulo Nas décadas de 1980 e 1990 dedicou se a dar aulas e palestras fora da França Alemanha Canadá e Estados Unidos Morreu de leucemia em Paris em 1998 JeanFrançois Lyotard e suas ideias Foi o filósofo da heterogeneidade e da diferença A realidade para ele consiste de eventos singulares que não podem ser representados com precisão pela teoria racional devendo considerar emoções e sensações A manifestação mais evidente de que a história é uma narrativa é a perda ao longo do tempo da autoria de determinada pesquisa ou descoberta Lyotard afirma que pessoas são conhecimento Quando o conhecimento passa a existir independentemente do sujeito autoral tornase apenas mais um bem de consumo não possui mais caráter pessoal e humano e as pessoas se transformam em consumidoras e não produtoras do conhecimento Saber é poder garante Lyotard Se a pessoa não detém o saber perde o poder social que lhe garante a troca social necessária para a sobrevivência e a evolução Em resumo Lyotard afirma que em razão do volume de informações da sociedade contemporânea o homem está perdendo a crença em valores como justiça e verdade Lyotard fez também a análise do marxismo e do estruturalismo especialmente na psicanálise de Jacques Lacan e estudou as relações entre política economia e psicanálise Lyotard desenvolveu uma filosofia baseada na teoria da libido de Freud segundo a qual a sensualidade pode explicar algumas transformações que ocorrem na sociedade Vinculou o desejo a situações políticas e sociais que culminam em alterações na economia global Suas ideias foram consolidadas no livro Economia libidinal de 1974 No campo da filosofia da linguagem criou a ideia complexa do diferendo um gênero de discurso composto pela argumentação e oposição das suas partes Na forma a escrita do diferendo é sempre desarticulada e descontínua Lyotard refere como diferendo a perda de credibilidade ao longo da história de certos discursos ideológicos como o marxista Para ele a história vista como narrativa científica tende a cristalizar e universalizar conceitos É uma negação do conceito de Hegel da história Na prática diferendo é a técnica criativa de não aplicar uma regra de justiça a uma situação que apenas sujeita a uma regra não promoverá a justiça A visão linear da história tende a ocultar relações de dominação Assim a injustiça pode se dar também no nível da linguagem O diferendo é aplicado no direito na questão da legitimação do discurso da vítima porque é um discurso emotivo e desarticulado propicia a perda dos meios de prova da injustiça e leva à impossibilidade de provar de argumentar e de apresentar Por isso o julgador deve levar em conta as interrupções as incertezas e até o silêncio Cada frase no diferendo tem valor porque tem relação com o sentido com o referente aquilo a que a frase refere com o emissor ou com o receptor A oposição ao diferendo é o discurso do litígio porque nesse caso há regras claras e estabelecidas que permitem a aplicação da justiça sem prejuízo a qualquer das partes Com o diferendo Lyotard afirma a diferença entre vítima a parte ofendida num diferendo e queixoso a parte ofendida num litígio JeanFrançois Lyotard e sua influência no direito Na década de 1980 Lyotard desenvolveu uma teoria da justiça em que analisa problemas decorrentes de interpretações diferentes de um mesmo evento o que resultaria em grandes diferenças Chamou essa teoria de paganismo em referência ao fato de que povos pagãos celebravam muitos deuses ao mesmo tempo a justiça teria também o mesmo sentido de pluralidade e multiplicidade Em suma a justiça para Lyotard deve ter preocupação com a diferença porque se a realidade é constituída de eventos singulares não há como uma lei universal abranger todos os casos A noção de justiça portanto não passa de discurso para Lyotard e nem sempre está ancorada na verdade Por isso a sua teoria do paganismo recomenda promover um julgamento sem um deus único ou seja sem um critério universal único quando se tratar de temas que envolvam a ética a verdade a política e a beleza Lyotard apela para Kant que afirmava ser possível o julgamento através da imaginação constitutiva Em obras posteriores Lyotard renegaria o paganismo para formular o pósmodernismo NÃO SE BUSCA A VERDADE com a ciência apenas o poder JeanFrançois Lyotard Richard Rorty e a ironia necessária Richard Rorty acreditou que a solidariedade e a esperança são preferíveis à objetividade e ao saber Ao falar em solidariedade por exemplo no uso da linguagem alertava para o fato de que o indivíduo consciente utiliza o pronome nós muito mais do que utiliza o pronome eles é a inclusão do indivíduo no universo mas sem perder a sua individualidade Richard Rorty publicou em 1979 Filosofia e o espelho da natureza que lhe trouxe fama imediata não só nos Estados Unidos mas na Europa também Nesse livro explica que o conhecimento é uma representação mas é mais do que isso é uma espécie de espelho mental de um mundo externo à mente Portanto o que existe são múltiplas leituras do mundo como existem múltiplas leituras de um texto Por isso a grande proximidade de Richard Rorty com a questão da linguagem Politicamente foi esquerdista mas inimigo do regime de Stalin Mais recentemente condenou a guerra no Iraque Criticou as noções correntes de verdade razão e ciência que chamava de categorias tradicionais de interesse defendendo que é possível assumir uma atitude irônica diante dessas convicções Ironia é uma figura de discurso que dá a entender exatamente o contrário do que é dito Portanto entendase Rorty não negou verdade razão e ciência mas questionou a maneira como entendemos essas noções por causa de nossas limitações e preconceitos de fundo cultural religioso político e econômico Richard Rorty e suas circunstâncias Richard Rorty revitalizou o pragmatismo idealizado quase um século antes dele ao defender que a filosofia só serve se usada para melhorar o indivíduo Richard McKay Rorty nasceu em Nova York em 1931 em uma família de escritores e ativistas de esquerda Fez mestrado em Filosofia na Universidade de Chicago tendo sido aluno de Rudolf Carnap um dos grandes nomes do Círculo de Viena Depois fez doutorado na Universidade de Yale Serviu o Exército em seguida por dois anos Mais tarde lecionou filosofia e literatura em Princeton Virginia e Stanford Foi conceituado palestrante nas principais universidades inglesas e norteamericanas Chegou a ser convidado para aconselhar o então presidente Bill Clinton Morreu em 2007 Richard Rorty e suas ideias Seu pensamento é pragmático em que mais importante do que o conhecimento da verdade é o conhecimento da utilidade ou seja a verdade está nas consequências da ação e não nos seus pressupostos De certo modo retomou as ideias pragmáticas de William James John Dewey e Charles Sanders Peirce desenvolvendo o argumento de que a teoria moral e a teoria política não podem ser construídas sobre bases objetivas mas sobre a simpatia e a solidariedade humanas David Hume dizia que quase nada no mundo pode ser explicado pela razão ao contrário dizia haver mecanismos de crença natural e pressupostos que nos levam a acreditar num mundo que pode não ser exatamente o real Kant por sua vez acreditava no númeno que é a realidade das coisas em si mesmas e que não dependem da percepção mas do intelecto não conseguimos alcançar o númeno mas apenas a sua representação Ambos concordavam em suma que não existe a verdade mas pontos de vista sobre a verdade De modo sintético a doutrina de Richard Rorty fundase em três ideias A primeira é de que a democracia possibilita a filosofia e não o contrário A segunda é de que a liberdade gera a verdade E a terceira é de que a filosofia só serve para produzirmos versões melhoradas de nós mesmos no lugar da filosofia ele prega que a busca das causas primeiras das coisas pode se dar pela poesia ou pela crítica literária ou seja pela linguagem Segundo ele esse é o papel do filósofo irônico Diz ele que usando a razão poderemos entender e enfrentar nosso próprio sistema de crenças Segundo ele temos crenças consolidadas sobre o que é bom ou o que é verdadeiro No seu pragmatismo recomenda que a teoria só possa ser adotada quanto se mostrar útil na prática social para a solução de problemas e necessidades Pragmatismo um método para resolver disputas William James foi o responsável pela popularização do pragmatismo corrente da filosofia iniciada por Charles Sanders Peirce segundo a qual os pensamentos só podem ser considerados verdadeiros se forem instrumentos para melhorar a vida do indivíduo e da sociedade William James afirmava que a verdade é uma das espécies do bem como a saúde Sua teoria apresentava o pragmatismo como um sistema prático para a resolução de disputas Seu principal livro é Os princípios da psicologia publicado em 1890 obra em que são discutidos e aproximados os conceitos da fisiologia psicologia e filosofia Já defendia as primeiras noções de fenomenologia e foi a fonte em que Edmund Husserl bebeu Norteamericano de Nova York onde nasceu em 1842 passou parte da adolescência na Europa mais precisamente em Genebra onde desenvolveu interesse pela ciência e pela pintura Chegou a graduarse em Medicina mas jamais praticou a profissão Integrou a equipe de pesquisadores em uma expedição científica à Amazônia em 1865 Foi professor de psicologia e filosofia em Harvard Em 1907 publicou Pragmatismo um novo nome para velhas maneiras de pensar Morreu de ataque do coração em 1910 John Dewey filósofo também norteamericano nascido em 1859 aplicou os princípios do pragmatismo à educação No Brasil suas ideias influenciaram um movimento pedagógico chamado Nova Escola caracterizada pela educação da criança em todos os campos simultaneamente físico emocional e intelectual O educador Anísio Teixeira foi o líder desse movimento A premissa mais importante da escola pragmática ou instrumentalista como Dewey preferia chamála era de que a educação progressiva servisse de instrumento para a resolução de tarefas práticas do dia a dia John Dewey recebeu influência dos evolucionistas e dos positivistas Achava importante a participação da filosofia na vida política por isso defendia a aplicação da democracia inclusive dentro das escolas Dentre seus livros estão Escola e sociedade de 1900 e Democracia e educação de 1916 Morreu em 1952 Richard Rorty e sua influência no direito Richard Rorty argumentou em várias de suas palestras que aquilo que chamamos verdade tem usos diferentes Mas a verdade ela mesma não é propriamente uma causa um objetivo um conceito que resista a argumentações ou justificações O que há é o seguinte considerase verdadeiro aquilo que satisfaz algumas condições que nós mesmos estabelecemos para garantir a sua veracidade Portanto não é possível medir a veracidade mas apenas as garantias que queremos dessa veracidade Em resumo a verdade é arbitrária representativa e nunca é exterior às nossas crenças Julgamos então segundo Rorty uma ou algumas propriedades da verdade forma estrutura conteúdo e não a verdade em si O mesmo se dá com outros conceitos como a bondade a justiça a realidade Isso é o que configura o nosso sistema de crenças e a nossa linguagem com os quais legitimamos nossos conceitos Inclusive os conceitos que norteiam o direito Richard Rorty afirma que toda investigação filosófica e aqui podemos incluir as nossas crenças está condicionada pelo contexto social político econômico e religioso Por essa razão afirma Rorty nem mesmo os direitos humanos são naturais eternos e imutáveis AOS 12 ANOS eu soube que o importante na vida humana era lutar contra a injustiça social Richard Rorty Jürgen Habermas e os direitos humanos Jürgen Habermas foi uma das mais importantes figuras mundiais no debate político pósSegunda Guerra Mundial Segundo ele a sociedade contemporânea passa por um processo de racionalização exacerbada um fenômeno que tem raízes ideológicas A sociedade é regida pela razão instrumental voltada apenas para o raciocínio dedicado ao campo da técnica o que representa restrição ao desenvolvimento global do indivíduo Com isso ele tem autonomia relativa permanecendo suscetível à dominação de grupos intelectualmente mais preparados Esse processo de racionalização causa tensões que dificultam especialmente a implementação democrática dos direitos A razão instrumental dizia Habermas interrompeu uma tarefa humana que é a crítica Em um breve resumo o projeto filosófico de Habermas é uma crítica ao positivismo e ao que considera ser uma ideologia resultante do pensamento positivista que é o tecnicismo segundo o qual somente a pesquisa técnica e científica promove o desenvolvimento A filosofia para Habermas não pode ser apenas uma observadora das ciências mas um instrumento para refinar o pensamento do homem Jürgen Habermas e suas circunstâncias Jürgen Habermas foi um dos grandes filósofos do nosso tempo É considerado herdeiro da Escola de Frankfurt embora não tenha sido contemporâneo dela em função da sua convicção de que a sociedade alemã estava voltada fundamentalmente para o individualismo com as pessoas transformadas em massas em rebanhos acomodados Discutiu os conceitos de moralidade e de legalidade no pensamento de Max Weber Jürgen Habermas nasceu em Düsseldorf na Alemanha em 1929 Aos 25 anos defendeu a tese O absoluto e a história sobre o filósofo Schelling O trabalho despertou a atenção de Theodor Adorno que o convidou para ser seu assistente na Escola de Frankfurt então associada à Universidade de Frankfurt Aos 31 anos Habermas foi lecionar filosofia na Universidade de Heidelberg Em 1961 publicou sua obra mais famosa Entre a filosofia e a ciência o marxismo como crítica Passou a lecionar filosofia e sociologia na Universidade de Frankfurt Publicou seguidamente outros livros até 1968 quando se mudou para os Estados Unidos para assumir a função de professor da New York School for Social Research Em 1972 voltou para a Alemanha para assumir a direção do Instituto MaxPlanck renomada sociedade dedicada à pesquisa científica e tecnológica Em 1983 reassumiu cátedra na Universidade de Frankfurt até aposentarse em 1994 Jürgen Habermas e suas ideias Habermas é considerado um prosseguidor da Escola de Frankfurt embora não fosse contemporâneo desse movimento Considerase que ele representa uma quarta fase da Escola de Frankfurt porque durante o tempo em que a escola existiu foram três fases distintas do pensamento conhecido como Teoria Crítica A primeira fase marcada pelos textos de Adorno Horkheimer e Marcuse que discutiam a teoria do conhecimento A segunda fase foram os trabalhos de Horkheimer e Adorno na década de 1940 buscando compreender o nazismo não mais a partir da tese marxista da luta de classes eou na crise econômica e sim em razão da civilização dominada exclusivamente pela técnica Na terceira fase a Escola de Frankfurt se dedicaria à crítica da sociedade massificada na qual os indivíduos perderam autonomia e liberdade de ação Habermas somou a esses posicionamentos filosóficos o que pode ser considerada a quarta fase da Escola de Frankfurt que foi a ideia de que a Teoria Crítica deve estar engajada nas lutas políticas para obter a transformação do futuro Jürgen Habermas e sua influência no direito Habermas considera que numa democracia o cidadão deve ser ao mesmo tempo destinatário e autor das normas jurídicas Por isso define uma relação de autonomia recíproca entre soberania do povo pública e direitos humanos privados Soberania popular porque todos os destinatários da norma jurídica devem concordar com ela E direitos humanos porque a norma jurídica deve abranger a ação orientada pelo interesse privado Como racionalista Habermas entende que o homem é livre quando sua vontade é guiada somente pela razão Essa liberdade é tolhida quando a vontade se submete a princípios morais regidos pela intuição ou pelo sentimento como buscar entender por que a ação que pratica é útil ou é boa Este é o princípio da razão prática de Kant não é o objeto que determina a ação mas o próprio eu do indivíduo a sua razão Um exemplo prático pode ser encontrado numa empresa quando na frente do diretor um funcionário cumprimenta o faxineiro com um abraço Não o faz porque a razão lhe diz que o faxineiro é um ser igual a ele apenas desempenhando uma função mais humilde ao contrário abraçao para impressionar o chefe e causar boa impressão com o fim de obter reconhecimento esse ato não é livre e é até imoral Ética e moral foram pontos centrais no pensamento de Habermas A moral tem um caráter universal diz ele porque deve ser aceita por todos os indivíduos que devem cumprir suas regras e nesse ponto discorda de Max Weber que dizia que a ética é relativa A moral também deve ser cognitiva dizia Habermas porque precisa ter como base a razão e o conhecimento Weber dizia que a norma jurídica é racional pelos seus fins direito e moral são autônomos enquanto Habermas defendia que a norma jurídica é racional pelos seus valores direito e moral são complementares Para Habermas o princípio moral é o próprio princípio da democracia A saída para o indivíduo é sociabilizarse cooperar uns com os outros E o melhor começo é pela comunicação Essa é a tese da razão comunicativa conceito básico na filosofia de Habermas Uma tese que tem relação direta com a verdade universal Habermas afirma que o uso da linguagem pode ser validado ou seja não é distorcido quando atende a quatro premissas seja qual for a pessoa que emite uma comunicação A primeira delas seria a comunicação é inteligível baseada em regras semânticas que os interlocutores compreendem A segunda ser o conteúdo da comunicação verdadeiro A terceira utilizarse o emissor das normas sociais típicas do idioma Por fim ser ele sincero não distorcendo a comunicação Portanto a linguagem para Habermas serve como garantia da democracia porque a democracia depende da compreensão de interesses mútuos e do consenso A DUALIDADE ENTRE FATOS e decisões leva à validação do conhecimento fundado nas ciências da natureza e desta forma eliminase a práxis vital do âmbito destas ciências A divisão positivista entre valores e fatos longe de indicar uma solução define um problema Jürgen Habermas John Rawls e a teoria da justiça O norteamericano John Rawls é o grande teórico contemporâneo da democracia liberal Desenvolveu uma teoria da justiça baseada no conceito geral da equidade todos os bens sociais primários liberdade oportunidade renda riqueza e amorpróprio devem ser distribuídos equitativamente a menos que uma distribuição desigual de tais bens represente vantagem para os menos favorecidos Sua base de pensamento é o contrato social de John Locke de que pessoas livres precisam concordar com algumas regras básicas para poder viver em harmonia O conceito de prioridade dos bens sociais primários varia de pessoa para pessoa porque cada um é livre para fazer os planos que quiser para a sua própria vida Mas a concepção de justiça de Rawls é dirigida para a coletividade e não para o indivíduo John Rawls aponta a fragilidade do utilitarismo como fundamento das instituições da democracia constitucional e por esse motivo busca formular uma concepção da justiça que sirva de alternativa sistemática a ele Considerava que a ideia utilitarista de Jeremy Bentham e John Stuart Mill de praticar o maior bem possível para o maior número possível de pessoas podia ser uma fonte de injustiça porque eventualmente resultaria no que chamava de tirania da maioria Dava como exemplo a perseguição dos judeus pelos nazistas e o tratamento injusto dos americanos contra seus compatriotas de origem africana John Rawls tinha como máxima filosófica minorar a dor Sua perspectiva era de que cada ação é julgada boa ou má dependendo das consequências que tiver para você e para os outros John Rawls e suas circunstâncias John Rawls publicou o livro Teoria da justiça em 1971 e imediatamente ganhou fama mundial convertendose num dos principais filósofos sociais do século XX Apresentou ideias sobre como garantir direitos iguais em uma sociedade desigual Para ele justiça social é dar amparo aos desvalidos Devese à sua teoria da justiça por exemplo a ideia de estabelecer cotas para negros nas universidades John Bordley Rawls nasceu em Baltimore nos Estados Unidos em 1921 Perdeu dois irmãos ainda pequenos fato que pode ter causado a gagueira que o perseguiu Devido à militância de sua mãe no movimento feminista acompanhou causas sociais desde criança Cursou filosofia na Universidade de Princeton dedicandose a Kant John Stuart Mill e Wittgenstein Foi convocado para combater na Segunda Guerra Mundial e serviu por dois anos em Nova Guiné e nas Filipinas Depois disso ficou por quatro meses nas forças que ocuparam o Japão Em 1946 retoma os estudos de graduação em Filosofia Mais tarde passa a lecionar na mesma universidade De 1952 a 1953 participa de um convênio para pesquisas na Universidade de Oxford Ali trava contato com H L A Hart e começa a elaborar sua ideia de justificar princípios morais de acordo com um processo deliberativo construído para esse fim Ao voltar é nomeado professor na Universidade de Cornell onde se torna editor do famoso jornal Philosophical Rewiew Mais tarde lecionou na Universidade de Harvard e no Massachusetts Institute of Technology MIT Em 1962 volta para Harvard onde permanece até aposentarse em 1991 Chegou a ocupar a função de chefe do departamento de filosofia Inicia a elaboração do livro Uma teoria da justiça em 1964 No final da década de 1960 integrou movimentos contra a Guerra do Vietnã quando começou a formular suas ideias sobre desobediência civil e sobre a ética nas relações internacionais John Rawls morreu em 2002 John Rawls e suas ideias O conceito mais importante em seu pensamento é de que o certo é aquilo que é justo Contidas nessa ideia estão as duas regras principais que são a liberdade e a riqueza Riqueza para ele é isto as desigualdades sociais e econômicas devem ser arranjadas de tal maneira que beneficiem mais aqueles menos favorecidos pela sorte e abram condições justas de igualdade de oportunidade Observese que John Rawls não defende distribuição de bens igual para todos numa igualdade absoluta como aquela desejada pelos socialistas Ao contrário considera mais importante praticar uma distribuição equitativa que minimize os efeitos negativos da desigualdade uma desigualdade que muitas vezes é até congênita É um verdadeiro pacto social que beneficia a coletividade o que resulta em última análise em benefício para cada indivíduo que compõe a sociedade Coletividade para John Rawls tem uma dimensão de significado bastante ampla porque também pode significar instituição O filósofo entende que a Justiça Política é formada pelos direitos e deveres estruturais de Justiça Social e de Justiça Distributiva Ele afirma na sua teoria equitativa da justiça duas tarefas da Justiça Política A primeira é estruturar instituições fundamentais da sociedade que nada mais são do que os direitos e deveres fundamentais dos indivíduos e do Estado Essas instituições promovem a ordenação das distribuições dos bens econômicos sociais e culturais entre os indivíduos para evitar que entrem em conflito pela titularidade destes Para o funcionamento dessas estruturas entra em campo a segunda tarefa da Justiça Social de regular a cooperação interindividual que deve reger todas as democracias Nesse ponto Rawls discorda do postulado marxista de que toda sociedade seja inerentemente conflituosa ao contrário acredita em situações em que indivíduos se sacrifiquem para melhorar as condições de vida dos outros Mas diferentemente do imperativo categórico de Kant Rawls negava a aplicação dos princípios da justiça política à vida privada John Rawls observa que os princípios da justiça social independem de ideologia Devem estar embasados unicamente sobre a racionalidade Ele explica a ocorrência de conflitos pela presença de uma espécie de véu de ignorância que leva os indivíduos a agirem exclusivamente em benefício próprio e que os impede de considerar a si próprios e aos demais segundo qualidades outras que não a mera condição humana A educação retiraria esse véu de ignorância e levaria o homem a usar a razão Com isso tornarse iam irrelevantes noções como o pertencimento a determinadas classes sociais os diferentes graus de prosperidade econômica os dotes culturais os talentos naturais e outras referências da diferenciação John Rawls e sua influência no direito Rawl é um dos autores mais comentados na atualidade Ainda que tenha sido um filósofo político exerceu enorme influência em teóricos importantes dedicados ao estudo de questões centrais da teoria geral do direito como Ronald Dworkin que chegou a afirmar que cada um de nós tem seu próprio Immanuel Kant e de agora em diante cada um de nós lutará pela benção de John Rawls É possível dividir sua produção acadêmica em duas fases marcadas respectivamente por suas principais obras Uma teoria da justiça e O liberalismo político Nessa última revisa várias das formulações teóricas elaboradas na primeira sem que contudo possase apontar uma ruptura profunda entre tais fases Sua teoria da justiça busca conjugar os dois principais valores morais do mundo moderno a liberdade e a igualdade Em Uma teoria da justiça como faz ver logo no prefácio empreende uma tentativa de generalizar e elevar a uma ordem mais alta de abstração a teoria do contrato social de Locke Rousseau e Kant Com tal construção teórica pretende oferecer uma explicação sistemática alternativa da justiça que reputa superior ao utilitarismo dominante na tradição de Hume Adam Smith Bentham e Mill Reconhece que a teoria que resulta desse esforço é altamente kantiana em sua natureza motivo pelo qual abdica de qualquer pretensão de originalidade e afirma que apenas reorganizou as ideias clássicas em uma estrutura geral de forma a demonstrar toda a sua força Há em Rawls portanto a crença de que a teoria da justiça baseada na tradição contratualista constitui a base moral mais apropriada para uma sociedade democrática Sua teoria é a da justiça como equidade Reconhece que a justiça é a primeira virtude das instituições sociais Segundo essa concepção refutase a possibilidade de que a perda de liberdade de alguns se justifique por um bem maior partilhado por outros ou seja as liberdades da cidadania igual são consideradas invioláveis em uma sociedade justa não havendo que se cogitar de qualquer parâmetro utilitarista nesse campo Liberdades da cidadania simplesmente não se sujeitam à negociação política ou ao cálculo de interesses sociais A justiça como a verdade é indisponível A justiça constitui a carta fundamental de uma associação humana bemordenada Na concretude da vida real todavia raramente são encontradas sociedades bemordenadas nesse sentido pois há disputa mesmo sobre quanto ao que é ou não justo os homens controvertemse sobre os princípios que consubstanciam a justiça Não obstante todos eles guardam para si uma noção de justiça e o debate sobre o tema é possibilitado pelo fato de que são acatadas pela generalidade das pessoas noções abstratas que compõem o conceito e permitem interpretações individuais Assim todos concordam que as instituições são justas quando não procedem a distinções arbitrárias entre as pessoas na atribuição de direitos e obrigações básicos e quando as regras determinam um equilíbrio adequado entre reivindicações concorrentes das vantagens da vida social Isso porque remanesce ainda a discussão sobre o que seja arbitrário e o que seja equilíbrio adequado conceitos que se sujeitam a interpretações individuais Em Rawls dos muitos objetos a que a justiça pode se referir há a escolha pela estrutura básica da sociedade isto é a justiça social Em suas palavras sua teoria da justiça busca compreender a maneira pela qual as instituições sociais mais importantes a constituição política e os principais acordos econômicos e sociais distribuem direito e deveres fundamentais e determinam a divisão de vantagens provenientes da cooperação social Essa estrutura básica é portanto o objeto primário da justiça Os princípios da justiça social devem ser aplicados em primeiro lugar às desigualdades existentes em tal estrutura básica oriundas das diferentes posições sociais e das peculiariedades do sistema político e das circunstâncias econômicas e sociais Isso porque essas desigualdades em nada se relacionam com as noções de mérito ou de valor Vejase portanto que a teoria da justiça de Rawls foi pensada não para aplicação às práticas sociais ou às instituições nem mesmo às leis nacionais e às relações internacionais não obstante reconhece possa ser aplicada em tais âmbitos talvez com ligeiras modificações Sua preocupação repousa sobre os aspectos distributivos da estrutura básica da sociedade Os princípios da justiça que os norteiam são o objeto do contrato social e devem orientar todos os acordos subsequentes É a essa forma de considerar os princípios da justiça tomandoos como diretrizes para os tipos de cooperação social e para as formas de governo que Rawls denomina justiça como equidade O que enfim determina os princípios da justiça São eles determinados pela escolha que homens racionais fariam na situação hipotética de liberdade equitativa ao escolherem viver juntos A justiça como igualdade pressupõe que no estado de natureza as pessoas eram todas iguais umas às outras Isso significa que no início por hipótese ninguém conhecia sua posição e seu status na sociedade nem tampouco sua própria sorte na distribuição das riquezas e das habilidades naturais Assim diz Rawls os princípios da justiça são escolhidos sob um véu de ignorância O que isso significa Que originalmente ninguém é prejudicado pela escolha de tais princípios ou seja eles são o resultado de um consenso ou ajuste equitativo Essa a origem da justiça como equidade de Rawls que seus princípios resultam de um acordo em uma situação inicial que por hipótese é equitativa Mas a justiça não se confunde com equidade adverte O véu de ignorância diz respeito ao fato de que na situação inicial sempre adotada a hipótese formulada por Rawls ninguém é consciente de ser favorecido ou desfavorecido por contingências sociais e naturais Portanto ninguém tem interesse particular na adoção deste ou daquele princípio de modo que todos se orientam pela promoção consensual dos interesses em condições de igualdade A justiça como equidade concebe as partes na situação inicial como racionais e mutuamente desinteressadas Isso significa que pressupõe que as pessoas sejam capazes de adotar os meios mais eficientes para determinados fins e que não tenham interesses nos interesses das outras Logo de inicío Rawls refuta o princípio da utilidade eis que na condição de igualdade inicial que pressupõe seria de se estranhar que as pessoas concordassem com um princípio que pode resultar em condições de vida inferiores para alguns em benefício de uma soma maior de vantagens para outros O homem racional diz não aceitaria uma estrutura básica simplesmente porque ela maximizaria a soma algébrica de vantagens independentemente dos efeitos que possam vir a ser gerados para os direitos básicos Em outras palavras iguais que cooperam para vantagens mútuas não têm por que racionalmente acatar o princípio da utilidade Quais então seriam os princípios escolhidos pelas pessoas em um tal contexto Rawls sustenta que seriam dois i a igualdade na atribuição de direitos e deveres básicos e ii em suas palavras o segundo afirma que desigualdades econômicas e sociais por exemplo desigualdade de riqueza e autoridade são justas apenas se resultam em benefícios compensatórios para cada um e particularmente para os membros menos favorecidos da sociedade48 Rawls para confirmação desses dois princípios faz uso do que denomina de equilíbrio reflexivo que não é necessariamente estável Tratase da tentativa de acomodar em um único sistema tanto os pressuspostos filosóficos razoáveis impostos aos princípios quanto seus juízos ponderáveis sobre a justiça É a procura da justificativa para os princípios escolhidos por meio da corroboração mútua de muitas considerações ajustadas em uma única visão coerente As teorias de John Rawls tiveram grande influência sobre o direito contemporâneo especialmente na regulação pelo Estado da Ordem Econômica e da Ordem Social No caso brasileiro essa regulação está explicitada no artigo 3º da Constituição Federal que estabelece como objetivos fundamentais da República dentre outros o erradicamento da pobreza a redução das desigualdades sociais bem como a promoção do bemestar de todos Rawls postula a tese da existência digna pela definição dos bens mínimos a serem garantidos a cada cidadão para o desenvolvimento das técnicas legislativas de declaração dos direitos sociais Ademais defende uma necessária interrelação entre bens dos particulares e bem comum A promoção do bem de todos os indivíduos é a finalidade da atuação estatal no Brasil A Constituição Federal determina que o poder público deva promover um mínimo de bens materiais e imateriais necessário à existência digna referido no dispositivo constitucional acima reproduzido pela menção à erradicação da pobreza e da marginalização Rawls tolera a desobediência civil como ato de resposta a injustiças internas a uma dada sociedade Diz que a desobediência civil pode ser justificada se todas as seguintes condições foram preenchidas se a injustiça é substancial e clara e especialmente se constituir em obstáculo para a remoção de outras injustiças se todos os recursos normais tenham sido feitos de boafé à maioria política e tenham sido recusados se não existirem muitos outros grupos minoritários com queixas igualmente válidas porque desobediência civil generalizada pode desestruturar o conceito constitucional A ÚNICA COISA QUE NOS PERMITE aquiescer com uma teoria errônea é a falta de uma melhor analogamente uma injustiça é tolerável apenas quando necessária para impedir uma injustiça ainda maior John Rawls Ronald Dworkin e a negação do positivismo jurídico Professor de Teoria Geral do Direito na University College London e na New York University School of Law Ronald Dworkin formula incisiva crítica ao positivismo jurídico fazendo uso da metodologia de John Rawls o método de equilíbrio reflexivo Como em Rawls sua produção intelectual pode ser didaticamente dividida em duas fases uma produzida sob os influxos de seu Levando os direitos a sério e outra sob a influência de seu O império do direito Em Levando os direitos a sério segundo o próprio filósofo há a defesa de uma teoria liberal do direito e o combate ao que denomina de teoria dominante do direito o positivismo jurídico e o utilitarismo ambos derivados da filosofia de Jeremy Bentham Defende que uma teoria geral do direito deva ser ao mesmo tempo normativa e conceitual Normativa por conter em si uma teoria da legislação da decisão judicial adjudication e da observância da lei compliance correspondentes respectivamente às perspectivas do legislador do juiz e do cidadão comum E conceitual ao recorrer à filosofia da linguagem bem como à lógica e à metafísica Segundo Dworkin Bentham foi o último filósofo da corrente angloamericana a propor uma teoria geral do direito e suas ideias ainda prevalecem nas universidades inglesas e norteamericanas O positivismo jurídico de Bentham foi aperfeiçoado por H L A Hart cujo sucessor em Oxford foi o próprio Dworkin Tratase de teoria eminentemente individualista e racionalista que recebeu severas críticas tanto da esquerda como da direita política Ronald Dworkin e suas circunstâncias Ronald Dworkin escreveu por mais de 40 anos artigos na New York Review of Books analisando decisões tomadas pela Suprema Corte norte americana Em seus escritos comentava as principais polêmicas em pauta nos Estados Unidos acerca de temas como aborto e pornografia Pregava que para a formação da decisão política deviam ser levadas em conta as ideias de sinceridade de argumentação e de responsabilidade Ronald Dworkin filósofo norteamericano nasceu em Worcester Massachusetts em 1931 Estudou em Harvard nos Estados Unidos e em Oxford na Inglaterra duas das principais universidades do mundo Chegou a ser assistente do juiz Learned Hand da Corte de Apelação dos Estados Unidos Esse juiz era famoso por defender a liberdade de expressão e por utilizar argumentos de economia em suas decisões Trabalhou depois em importante escritório de advocacia de Nova York Mais tarde lecionou Direito na Universidade de Yale Desenvolveu a Teoria do Direito como Integridade que é considerada uma das mais importantes análises contemporâneas da natureza do direito Em 1969 assumiu a cátedra de Teoria Geral do Direito em Oxford sucedendo a Herbert Hart onde se aposentou Em seguida ocupou a cátedra de Teoria do Direito na Universidade de Londres até 2013 quando morreu de leucemia Ronald Dworkin e suas ideias A esquerda aduz que o formalismo do positivismo jurídico impede a realização de uma justiça substantiva mais densa por parte dos tribunais Entende que o utilitarismo produz consequências injustas e perpetua a pobreza ao se pautar apenas pela eficiência A direita por sua vez aponta que o positivismo jurídico despreza a influência da moral costumeira difusa no processo de formação das decisões judiciais Além disso o utilitarismo seria irrecuperavelmente otimista ao insistir que decisões tomadas contra aquela moral podem aumentar o bemestar da comunidade Seria descabido ademais desprezar a cultura social como quer o positivismo Reconhece que a atividade do jurista consiste basicamente em analisar situações complexas com o objetivo de resumir os fatos essenciais de acordo com o que preconiza a lei a doutrina e a jurisprudência É o que denomina de abordagem profissional da teoria geral do direito a qual segundo ele produziu apenas uma ilusão de progresso ao ter deixado intocadas questões de princípios estas sim genuinamente importantes existentes no direito Nesse sentido não basta estudar os conceitos relativos a termos presentes nos diversos ramos do Direito determinandolhes o conteúdo a partir da utilização que deles fazem os tribunais eis que em última análise tratase de cristalização de concepções advindas do senso comum do emprego popular de determinadas expressões com base em princípios morais e éticos disseminados na sociedade E no entanto o modo tradicional de se ensinar direito nas faculdades é justamente esse analítico preocupado em extrair o viés propriamente jurídico de determinados conceitos Em outras palavras Dworkin aduz ser imprescindível a análise do uso moral dos conceitos pois é na moral que repousa sua origem Também não lhe escapa a crítica ao realismo jurídico O realismo preconiza uma abordagem científica do direito com ênfase no que os juízes efetivamente fazem e não naquilo que dizem e com foco também no impacto real das decisões sobre a comunidade mais ampla Os problemas dessa corrente de pensamento são evidentes o juiz fica reduzido não a um oráculo da doutrina mas a um homem que responde a diferentes tipos de estímulos sociais e pessoais cuja amplitude é de difícil aferição e em segundo lugar é considerável a complexidade em se aferir estatisticamente o impacto social das decisões jurídicas abordagem que ao final coube à sociologia O realismo em suma elegeu certos objetivos a serem atingidos e concentrou suas atenções em instrumentalizar o direito para atingilos Essa postura segundo Dworkin acabou por distorcer os problemas da teoria geral do direito até de modo parecido com aquela por ele tida como analítica acima mencionada precisamente porque ignorou as questões relacionadas com os princípios morais envolvidos nos problemas sob análise Ronald Dworkin e sua influência no direito O problema realmente é de grande vulto Dworkin se preocupa enfaticamente com os casos em que a Suprema Corte decide com base em princípios de justiça e na política pública sem fazer referência a leis escritas o que é comum em casos difíceis Tais situações foram simplesmente ignoradas pela teoria geral do direito desde há muito O poder político dos juízes ficou a salvo de qualquer análise ou crítica não obstante todos soubessem de sua existência Imperioso portanto que tal teoria se debruce sobre a justificação para um tal proceder isto é sobre os motivos que possibilitam aos juízes criar regras novas baseadas em princípios para casos difíceis A importância da moral é aqui mais uma vez evidenciada pois a justificação não consegue passar ao largo dela Assim a argumentação moral deve ser considerada esclarecida a fim de que se possa avaliar se a prática jurídica de fato corresponde aos seus ditames A teoria do direito norteamericano todavia ignorou essa tarefa Nem mesmo o pósrealismo no qual figura como expoente o ilustre Henry Hart ao reformular a questão conseguiu resolvêla O pósrealismo com efeito indaga como deveriam os juízes chegar às suas decisões a fim de atender da melhor maneira possível os objetivos do processo judicial Tal questionamento todavia não afasta a pertinência dos princípios morais pois mesmo se restar pressuposto que o objetivo do processo judicial é alcançar a justiça ou uma aplicação equânime das regras permanece inconclusa a tarefa se não for também elucidado o que é justiça e o que é equanimidade A questão de fundo em verdade aponta Dworkin é o que é seguir uma regra A resposta não pode ser dada segundo ele por meio de uma análise que apenas associe meios a fins como quer por exemplo uma leitura econômica do direito Em outras palavras dizer que uma regra é mais eficiente do ponto de vista global da economia não significa que necessariamente seja também justa Em suma a teoria geral do direito para Dworkin não pode ignorar que seus maiores problemas são no fundo relativos a princípios morais e não a estratégias ou fatos jurídicos Nesse sentido Dworkin elogia Hart por ter logrado demonstrar como a regra jurídica é uma extensão de teorias populares sobre a moralidade e a causação Mas vai além ao preconizar que a teoria do direito não pode se ater ao estudo dos princípios e à demonstração entre a prática jurídica e a prática social devendo também continuar a examinar e criticar a prática social à luz de padrões independentes de coerência e sentido como os fornecidos pela psicologia por exemplo Dworkin aponta três teses chaves do positivismo Em primeiro lugar faz referência à distinção entre as regras jurídicas e as demais regras sociais em especial as morais A juridicidade de uma regra estaria relacionada com a sua forma pedigree e não com seu conteúdo Em segundo lugar para o positivismo inexistindo regra jurídica expressa para dado caso a resolução deste passará pelo poder discricionário da autoridade competente que criará uma regra nova e a aplicará retroativamente Em terceiro lugar de acordo com o positivismo toda obrigação jurídica baseiase ou encontra fundamento em uma regra jurídica válida que a estatui Inexistinto tal regra não há que se falar em obrigação jurídica propriamente dita Dworkin afirma contudo existirem obrigações que não se acomodam bem a esse modelo como faz ver a prática jurídica cotidiana Para ele especialmente em casos difíceis é comum os juristas recorrerem a padrões relacionados a princípios políticas ou a alguma dimensão da moralidade para identificar os direitos e obrigações dos indivíduos Observase em Dworkin portanto uma fundamentação do direito e da justiça que vai além das regras jurídicas postas Também o padrão moral e político vigentes são incorporados ao discurso jurídico sem se olvidar ainda a importância das teorias da argumentação Dworkin escreveu em 2002 sobre as ideias de John Rawls e Amartya Sen a respeito da ideia de igualdade de recursos na justiça distributiva em contraste com a igualdade de bemestar A LIBERDADE RESIDE nos corações de homens e mulheres se morre ali não há constituição lei ou tribunal que possa salvála aliás nem constituição lei ou tribunal vai poder sequer ajudar Ronald Dworkin Niklas Luhmann a lei como sistema social Considerado o grande representante da sociologia alemã contemporânea ao lado de Jürgen Habermas O ponto central de seu pensamento é a comunicação Para ele todos os sistemas sociais constituem basicamente sistemas de comunicação que ultrapassam os limites da fala e da escrita e envolvem um universo complexo que inclui a mídia a cultura e as relações sociais A comunicação em Luhmann tal como no conceito da razão comunicativa de Habermas confere unidade a um grupo social porque lhe dá sentido Comunicandose o grupo consegue uma generalização simbólica importante para as suas definições de identidade e até de diferenciação Comunicandose o grupo consegue implantar mudanças através do aprendizado mútuo Comunicando se enfim o grupo pode alcançar o consenso Admite porém que a comunicação é improvável Por isso do ponto de vista oposto também pode ocorrer que a comunicação conduza à consolidação das diferenças à resistência contra as mudanças e ao desentendimento O positivismo jurídico dizia que o direito é representado pela lei como regra geral e abstrata Mas para Luhmann a lei também é um sistema social Como sistema social a lei deve ser legitimada pelo consenso E isso já era dito pelos pensadores do Iluminismo francês que propositalmente incluíram na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão o artigo 6º que diz A Lei é a expressão da vontade geral Todos os cidadãos devem concorrer pessoalmente ou através de mandatários para a sua formação Ela deve ser a mesma para todos seja para proteger seja para punir Todos os cidadãos são iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a todas as dignidades lugares e empregos públicos segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos Niklas Luhmann e suas circunstâncias Niklas Luhmann inaugurou o conceito do iluminismo sociológico em 1967 iluminismo porque como os pensadores das luzes do século XVIII considera que é a razão e não a fé que liberta o homem da ignorância Somente trinta anos depois completaria o seu projeto metodológico de analisar a supremacia da razão com a publicação do livro A sociedade da sociedade Suas pesquisas sociais têm grande importância para o direito especialmente a teoria da diferenciação Para ele sem o direito não há um sistema de orientação de condutas para a sociedade Niklas Luhmann nasceu na Alemanha em 1927 Fez doutorado em Direito na Universidade de Freiburg em 1949 Trabalhou na administração pública até 1962 quando decidiu fazer pósdoutorado na Universidade de Ciências Administrativas em Speyer Durante esse período atuou simultaneamente no departamento de pesquisa social da Universidade de Münster Em 1965 foi contratado como professor dessa universidade Mas antes disso em 1961 passou um ano em Harvard estudando a sociologia de Talcott Parsons No biênio 19681969 ocupou na Universidade de Frankfurt a cadeira que tinha sido de Theodor Adorno Foi indicado em seguida para ocupar a função de professor na então novíssima Universidade de Bielefeld onde permaneceu até aposentarse em 1993 Sua grande obra é A sociedade da sociedade publicada em 1997 em que discute noções centrais do Iluminismo Mas continuaria escrevendo até o ano de sua morte em 1998 nesse ano publicaria O sistema educacional da sociedade Publicou mais de 60 livros Niklas Luhmann e suas ideias Um sistema existe dentro de um ambiente Mas está delimitado dentro desse contexto os limites no entanto podem mudar porque o mundo tem sempre probabilidade de mudar Além disso é como a teoria dos conjuntos na matemática cada sistema com seu ambiente desempenha uma função e interage com outros sistemas diferentes isso estabelece relações mais ou menos complexas Pela observação os sistemas se autoorganizam A teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann estes organizados em sistemas de primeira ordem e de segunda ordem apoiase em quatro fundamentos Em primeiro lugar pretende que a sua teoria ultrapasse as fronteiras da sociologia e seja universal abrangendo conteúdos da economia do direito da política e até da religião para ele os sistemas não devem ser apenas observados mas devem observarse uns aos outros Em segundo lugar todos os sistemas devem admitir contribuições de outras disciplinas do conhecimento que não apenas as ciências humanas mas também a matemática a biologia e até a cibernética Em terceiro lugar os sistemas são agrupados pela função como numa estrutura matricial o que interessa é o fim a que se destinam os sistemas a solução que vão apresentar e não a característica de cada um Por fim em quarto lugar os sistemas utilizam a noção de paradoxos para se aperfeiçoar e se reconstruir internamente na medida da necessidade Segundo Luhmann é pela diferença que se encontra a unidade Niklas Luhman e sua influência no direito Luhmann afirma existirem três classes de sistemas que seguem esses fundamentos São os sistemas biológicos como as células os sistemas psíquicos como a fantasia e a concentração e os sistemas sociais como as organizações corporativas e a sociedade A sociedade é o mais complexo sistema social E dentro dele o direito funciona como uma estrutura O ideal iluminista era oferecer oportunidades iguais a todos de escapar da ignorância e reduzir a complexidade do mundo Luhmann prossegue esse ideal mas com uma abordagem moderna que ultrapassa os limites do Iluminismo original A estrutura que vai possibilitar essa evolução do homem é o sistema social e a ideia básica é que pela observação das diferenças o homem infere soluções Especificamente as diferenças entre um sistema e seu ambiente que o homem apreende pela racionalidade Como estrutura do sistema social o direito contém normas gerais que determinam o que se espera do comportamento dos indivíduos desse sistema Com essa regulação as condutas não contempladas pelas regras são punidas o que faz com que o direito funcione como um complexo programa de embasamento de decisões para orientar condutas Para Luhmann o direito se legitima pelo consenso e pela sua forma de operação ou seja o seu próprio procedimento A legitimação pelo consenso se dá ou pela eleição ou pelo processo legislativo ou pelo processo judiciário DEPOIS DE NOTÁVEIS ESFORÇOS nos anos 50 e 60 a Sociologia encontrase hoje numa fase de esgotamento Agora cuida das suas feridas e deixou de cuidar das suas ambições Niklas Luhmann Norberto Bobbio filósofo da democracia Talvez o mais importante pensador italiano contemporâneo Norberto Bobbio foi um ativo defensor da democracia e em consequência um combatente das ditaduras do preconceito e do racismo Seu principal livro sobre teoria política é O futuro da democracia de 1984 Mas dedicou também grande parte dos seus escritos à ética considerando que havia uma ligação essencial entre tolerância e democracia Norberto Bobbio e suas circunstâncias Norberto Bobbio inovou o estudo do direito ao utilizar a análise linguística para isso Defendeu a democracia como princípio de todas as atitudes sociais e políticas Em relação à lei recomendava a sanção positiva recompensa e não apenas a repressiva punição ou a negativa proibição como forma de obter comportamento que o legislador considera desejável A ética tem lugar de destaque em sua produção editorial Para Norberto Bobbio a ética é um elemento indispensável para que exista relação saudável entre moral e política Norberto Bobbio nasceu em Turim na Itália em 1909 Estudou na sua cidade natal tendo se formado em Filosofia e Direito na Universidade de Turim em 1931 Passou um ano em Marburgo na Alemanha estagiando Ao voltar inscreveuse no doutorado e em 1933 defendeu tese sobre Husserl e a fenomenologia Em 1934 obteve o grau de livredocente Militante socialista integrou na Segunda Guerra Mundial movimentos socialistas de resistência ao regime fascista italiano Chegou a ser preso por duas vezes Também durante a guerra ensinou nas Universidades de Camerino Padova e Siena Em 1948 assumiu a cadeira de Filosofia do Direito na Universidade de Turim Em 1955 escreveu seu livro mais conhecido Política e cultura Escreveu centenas de artigos para jornais importantes da Itália como o Corriere della Sera e mais de vinte livros Organizou debates históricos sobre democracia a tal ponto que chegou a ser em 1984 nomeado senador vitalício pelo então presidente italiano Sandro Pertini Foi professor emérito de várias universidades entre elas a de Madri Buenos Aires Paris e Bolonha Morreu em 2004 Norberto Bobbio e suas ideias Norberto Bobbio colocouse em uma posição intermediária que rejeitava tanto o fascismo quanto o comunismo Costumava dizer que a democracia é o regime político mais adequado porque impede que seja repetido o passado de guerras religiosas e perseguições políticas Segundo ele há processos no mundo decorrentes do autoritarismo que conspiram contra os direitos humanos a saber a questão dos imigrantes o armamentismo a exploração dos oprimidos o racismo o preconceito a miséria Numa de suas conferências disse os direitos do homem são indubitavelmente um fenômeno social Ou pelo menos são também um fenômeno social e entre os vários pontos de vista de onde podem ser examinados filosófico jurídico econômico etc há lugar para o sociológico precisamente o da sociologia jurídica Em 1983 Norberto Bobbio produziu um ensaio para apresentar em uma conferência onde lançou a ideia da serenidade como virtude essencial da democracia no Brasil esse ensaio fez parte do livro Elogio da serenidade e outros escritos morais publicado pela editora da Unesp em 2002 Serenidade que para Bobbio equivale à noção de moderação proposta por Aristóteles em Ética a Nicômaco é a virtude típica dos homens comuns muitas vezes oprimidos mas que não buscam o conflito para sobreviver Norberto Bobbio e sua influência no direito Em um de seus livros Teoria da norma jurídica Norberto Bobbio apresenta suas ideias sobre a eficácia da sanção Para ele tão importante quanto a função de punição ou de proibição é a função de recompensa da sanção e lamenta que as pessoas que detêm o poder sejam autoridades do Estado ou das empresas deem tão pouca importância ao aspecto positivo de encorajamento da sanção pelas atitudes corretas de um indivíduo Um de seus livros mais importantes para a filosofia do direito foi O positivismo jurídico de 1961 em que influenciado por H L A Hart fazia a distinção entre positivismo jurídico e positivismo filosófico Nesse livro comentou o que considerava uma racionalidade abstrata dentro da Teoria Geral do Direito de Hans Kelsen e propôs outra abordagem racional que pudesse ser demonstrada pela análise linguística Muitos juristas seguiram suas ideias e assim foi constituída a Escola Analítica Italiana de Filosofia Jurídica Norberto Bobbio estudou também o direito internacional detendose sobre a questão de que o respeito aos direitos humanos e a atenção à justiça social são atitudes necessárias e essenciais para a obtenção da paz Analisou a guerra sob todos os prismas do conceito à doutrina e à justificação levando ao extremo as definições possíveis E concluiu pela defesa da paz positiva que é mais do que a simples ausência de guerra para o progresso da humanidade Obra de grande representatividade do pensamento desse importante jusfilósofo italiano A era dos direitos é formada por quatro partes Logo na introdução Bobbio trata de estabelecer a relação de interdependência entre paz direitos humanos e democracia sendo o processo de implementação desta em âmbito internacional o caminho obrigatório para a busca do ideal kantiano da paz perpétua Processo em cujo bojo salienta deverão os direitos humanos ser ampliados e reconhecidos em uma esfera acima de cada Estado Logo de início o pensador deixa claras três de suas teses 1 os direitos naturais são direitos históricos 2 tais direitos surgem no início da Era Moderna em que predomina a concepção individualista da sociedade 3 tornamse um dos principais indicadores do progresso histórico Na primeira parte da obra mencionada composta por quatro ensaios Bobbio procura desmistificar a origem jusnaturalista dos direitos humanos Estes como base de um sistema que garanta a convivência coletiva pacífica a democracia possuem em verdade diversas fundamentações sendo na modernidade ancorados no consenso firmado na Declaração Universal de 1948 consensus omnium gentium ou humani generis primeira vez na história em que um sistema de princípios fundamentais da conduta humana foi livre e expressamente aceito pela maioria dos homens que vivem na Terra Não haveria sentido assim buscar um fundamento absoluto para os direitos humanos à revelia da circunstância histórica de sua consagração e de sua proteção Direitos humanos Bobbio os chama de direitos do homem independentemente de sua fundamentalidade são sempre históricos surgem das lutas sociais entre os detentores do poder e os que a ele se encontram submetidos São do filósofo as consagradas palavras Nascidos de modo gradual não todos de uma vez e nem de uma vez por todas Em sua historicidade os direitos humanos passaram por diversas fases Desde sua concepção meramente filosófica passando por seu reconhecimento legislativo longo tempo se passou até sua universalização e sua positivação em âmbito internacional Nesse sentido a Declaração Universal representa apenas a consciência histórica da humanidade na segunda metade do século XX uma síntese do passado e uma inspiração para o futuro constituindo sólido vetor para a concretização de um sistema internacional que efetivamente consiga assegurar os direitos ali mencionados e os demais que venham a ser reconhecidos Já na segunda parte de A era dos direitos Bobbio limitase a analisar a importância da Revolução Francesa e as consequências que se lhe seguiram Foi segundo ele em verdade a primeira vez que o povo exercitou o direito de decidir seu próprio destino Não obstante a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 foi objeto de críticas formuladas por Marx e pela esquerda em geral que nela viam um documento excessivamente ligado a uma classe em particular a burguesia e também pelos reacionários e conservadores em geral que a acusavam de ser excessivamente abstrata Na terceira parte da obra o jusfilósofo trata de temas contemporâneos como a resistência à opressão a pena de morte e as razões da tolerância Demonstra como o problema da resistência mudou de contornos ao longo da história sendo antes de cunho eminentemente individual e nos dias atuais de caráter coletivo relacionado à concepção da sociedade que se quer e não mais à forma de Estado adotada Por fim a discussão sobre a resistência sobre a desobediência civil cingese na atualidade aos aspectos políticos ao passo que no início da Era Moderna a reflexão filosófica debruçavase sobre sua licitude No que toca à pena de morte Bobbio afirma que sua proibição é tema colocado apenas na modernidade Na Antiguidade a pena capital aparece como a rainha das penas aquela apta a satisfazer ao mesmo tempo as necessidades de vingança de justiça e de segurança do corpo coletivo Menciona aliás que Platão em as Leis dizia que se o delinquente for incurável a morte será para ele o menor dos males Com efeito Platão preconiza a pena de morte para uma série ampla de delitos que vai desde crimes contra os genitores a homicídios voluntários Há em verdade desde os pitagóricos uma noção de reciprocidade era como se a quem matasse a imposição da morte fosse natural Platão efetivamente fala em pena natural Essa noção perpassa a Idade Média e chega à Era Moderna praticamente intocada Mas por que deve a pena de morte ser proibida É com o Iluminismo que o tema passará a ser discutido em toda a sua profundidade Beccaria em Dos delitos e das penas será o primeiro a tratálo com seriedade apresentando argumentos de cunho racional Sua obra ganhará grande notoriedade devido à acolhida por Voltaire Não obstante a pena de morte continuou e ainda continua prevista na legislação de muitos países sendo até defendida no campo filosófico por Kant e Hegel partindo de uma concepção retributiva da pena Na verdade a discussão entre abolicionistas e entre defensores da pena de morte parte de diferentes concepções sobre a função da pena Em geral os primeiros centram seus argumentos na sua função preventiva ao passo que os últimos agarramse à sua função retributiva Bobbio todavia amplia a discussão ressaltando que há outras funções a serem consideradas a pena como expiação como emenda e como defesa social A segunda delas à evidência exclui cabalmente a pena de morte por inviável Não escapa ao filósofo que a força da intimidação da pena de morte sempre esteve no centro do debate Tal força passou a ser contestada com o Iluminismo e em tempos atuais aferida por pesquisas de opinião Em matéria de bem e de mal todavia adverte Bobbio o princípio da maioria não vale e além disso as pesquisas de opinião têm exígua força probatória eis que sujeitas às mudanças de humor das pessoas de grande variabilidade ante o contexto de tranquilidade social por elas vivenciado Representaria um grande limite entretanto opor qualquer óbice à pena de morte partindose do argumento utilitarista de sua ineficácia intimidatória pois tal implicaria admitir que se a pena capital tivesse de fato considerável efeito dissuasório haveria que ser admitida o que Bobbio não aceita Para Bobbio em suma a abolição da pena de morte encontra fundamento tão somente no mandamento de não matar O filósofo não vê outra razão para tal Todos os demais argumentos segundo ele valem pouco ou nada Por fim encerrando essa terceira parte do livro Bobbio trata das razões da tolerância religiosa Reconhece que não existe tolerância absoluta que é pura abstração Toda tolerância é histórica real concreta e nesse sentido sempre relativa Com efeito nenhuma forma de tolerância diz ele é tão ampla que compreenda todas as ideias possíveis tolerância é sempre tolerância em face de alguma coisa e exclusão de outra coisa Em que consiste então a tolerância O que está no núcleo da ideia Para Bobbio é o reconhecimento do igual direito de conviver e também o reconhecimento por quem se entenda portador da verdade do direito ao erro ao menos ao erro de boafé O problema nesse campo é como determinar o tratamento dispensado aos intolerantes O único critério razoável para o filósofo é que todos devem ser tolerados menos os intolerantes Critério que como ele bem reconhece não é de fácil realização na prática e que não pode ser aceito sem reservas A dificuldade da aplicação do critério está em que a intolerância comporta várias gradações e vários âmbitos de manifestação Já a aceitação sem reservas deve ser afastada porque tal seria algo eticamente pobre e talvez também politicamente inoportuno Em todo caso o contexto histórico sempre exerce considerável influência nesse campo Finalizando a quarta parte trata dos direitos humanos na contemporaneidade A proclamação dos direitos do homem aduz dividiu em dois o curso da história da humanidade no que toca à concepção da relação política Reviravolta também assinalada pela convergência das três grandes correntes de pensamento político moderno sem que contudo percam sua identidade o liberalismo o socialismo e o cristianismo social Ao longo da história a defesa dos três bens supremos a vida a liberdade e a segurança social norteou a construção dos direitos do homem como salvaguardas contra toda forma de poder o religioso o político e o econômico Na chamada pósmodernidade o enorme progresso tecnológico verificado conduziu a uma potencialização do domínio do homem sobre o homem Daí que o discurso dos direitos do homem tenha ganhado importância no século XX Os direitos da nova geração são sintomáticos nesse sentido O direito de viver em um ambiente não poluído o direito à privacidade e o direito à integridade do próprio patrimônio genético demonstram que a preservação de todo e qualquer ser humano encontrase ameaçada como nunca antes Bobbio entretanto reconhece que se a internacionalização da proteção do ser humano foi um fenômeno sem precedentes também pudemos observar no decorrer do século XX uma sistemática violação dos direitos do homem em quase todos os países do mundo Aqui mais uma vez com toda a força aparece a distinção entre os planos do ser e do deverser Afinal o desejo de potência dominou e continua a dominar o curso da história Com sua arguta inteligência aponta o filósofo que o vocábulo direito é empregado de diferentes formas e com variadas finalidades Assim é que em se tratando de direitos sociais ou de segunda geração o nome de direitos não passa de um título de nobreza Não obstante a linguagem dos direitos inequivocamente possui importante função prática consistente na atribuição às pessoas e aos movimentos sociais da possibilidade de virem a demandar para si a satisfação de suas carências materiais e morais Por outro lado e infelizmente a consagração de um direito não basta em si e serve não raro ao falacioso discurso que não distingue a previsão legal de sua efetiva implementação o texto dos tratados e convenções da situação de fato de ampla parcela da população mundial O PROBLEMA FUNDAMENTAL em relação aos direitos do homem hoje não é tanto o de justificálos mas o de protegêlos Tratase de um problema não filosófico mas político Norberto Bobbio CADA VEZ sabemos menos Norberto Bobbio Chaïm Perelman e a moderna retórica Como é possível raciocinar sobre um juízo de valor como a justiça A procura pela resposta a essa pergunta que incomoda os filósofos há muitos anos levou à constatação que pode ter sido a grande contribuição do filósofo contemporâneo Chaïm Perelman ao direito Para aplicar racionalidade a juízos de valor é preciso usar uma lógica não formal baseada somente no que é provável ou verossímil Concentrando seus estudos na área da argumentação o filósofo permitiu que fosse resgatado o valor filosófico da retórica aristotélica principalmente no discurso jurídico Mas essa nova retórica não trata só de persuadir ao contrário busca obter a adesão intelectual do ouvinte por meio do debate ou seja um método dialético mas apoiado na argumentação refinada Chaïm Perelman é considerado o fundador da retórica moderna Chaïm Perelman e suas circunstâncias Chaïm Perelman estudou com profundidade as técnicas da argumentação dando novo sentido à retórica aristotélica Dedicouse inicialmente ao estudo do positivismo lógico mas logo o renegaria para tornarse um póspositivista Discutiu principalmente a noção de justiça no seu primeiro livro Da justiça publicado em 1944 Mas sua grande obra é Teoria da argumentação uma nova retórica Chaïm Perelman nasceu na Polônia em 1912 Quando contava 13 anos sua família emigrou para Antuérpia na Bélgica Estudou na Universidade Livre de Bruxelas onde também defendeu duas teses de doutorado uma em Direito e outra em Filosofia Em 1938 assumiu a cadeira de filosofia tendo sido o mais jovem professor de toda a história daquela universidade permaneceria lecionando no mesmo lugar durante quarenta anos Em 1944 publicou seu primeiro estudo filosófico Da justiça Em 1958 publicou seu livro Teoria da argumentação um clássico na área Em 1962 tornouse professor visitante da Universidade do Estado da Pensilvânia nos Estados Unidos Mais tarde dirigiu o Centro Nacional para Pesquisas em Lógica da Universidade de Bruxelas Em 1983 recebeu do parlamento belga o título de barão Morreu em 1984 Chaïm Perelman e suas ideias Seu primeiro trabalho foi um estudo sobre a justiça datado de 1944 Nesse livro concluiu que como todo julgamento envolve juízos de valor e como o valor não tem relação direta com a lógica logo os fundamentos da justiça são arbitrários Mais tarde Chaïm Perelman percebeu que a mesma avaliação pode ser estendida para os processos de tomada de decisão Para ele sem ética e sem lógica não pode haver justiça Começa aí a sua dedicação ao tema da retórica como base da lógica dos juízos de valor Essas ideias seriam retomadas no livro que escreveu em parceria com a pesquisadora Lucie OlbrechtsTyteca e que foi publicado em 1958 Tratado da argumentação a nova retórica é talvez a obra mais importante de Chaïm Perelman Chaïm Perelman e sua influência no direito Tendo estudado com profundidade a justiça Chaïm Perelman pretendeu provar a impossibilidade de uma definição universal do que seja a justiça Para isso propôs seis noções de justiça cada uma delas embasada em uma corrente filosófica para estimular uma reflexão sobre a adequação de cada uma Todas as noções propostas têm os seus pontos favoráveis e seus pontos negativos Por isso Perelman sugere que o melhor caminho pode ser a adaptação ou até mesmo a mescla de noções diferentes de justiça para suportar determinada tomada de decisão Considerada a justiça como igualdade absoluta ou seja a cada qual a mesma coisa contrariase o pressuposto de que as pessoas são diferentes têm diferentes necessidades e estão submetidas a diferentes contextos portanto essa noção de justiça não é totalmente adequada Considerada a justiça como igualdade distributiva ou seja a cada qual segundo seus méritos como pensavam Aristóteles e Santo Tomás de Aquino ignoramse as limitações que algumas pessoas têm em relação ao conjunto da sociedade o que as torna incapacitadas de obter por si mesmas o sucesso que as outras pessoas conseguem Pelo mérito julgase apenas a intenção da ação o que não configura um julgamento moral Considerada a justiça como igualdade comutativa ou seja a cada qual segundo suas obras correse o risco de ignorar os contextos as circunstâncias e as oportunidades que não são as mesmas para todos os componentes de um grupo social Por esse critério julgase apenas o resultado das ações o que também não configura um julgamento moral Considerada a justiça como igualdade de caridade ou seja a cada qual segundo suas necessidades como pensava John Rawls ignoramse os méritos Considerada a justiça como igualdade aristocrática ou seja a cada qual segundo sua posição revertese a noção para um período histórico em que imperava o absolutismo E por fim considerada a justiça como igualdade formal ou seja a cada qual segundo o que a lei lhe atribui restringese a noção de justiça ao positivismo jurídico de Hans Kelsen que Chaïm Perelman censurava Não há portanto como racionalizar a justiça como um valor universal O julgador deve adaptar um ou mais conceitos à situação do momento para melhor distribuição da justiça APENAS PELO FATO de selecionar certos elementos e apresentálos para a plateia sua importância e pertinência à discussão estão implícitas Chaïm Perelman Amartya Sen a liberdade e o desenvolvimento Logo depois da Segunda Guerra a maior parte dos países defendia uma política de aceleração do crescimento sempre com alguma intervenção dos governos Analisando a conjuntura global Amartya Sen verificou que contemporaneamente o mundo enfrenta abundância de produção uma interação jamais vista entre os países avanços marcantes dos direitos humanos e aumento progressivo de governos democráticos com a queda de ditaduras em praticamente todos os continentes A despeito disso e talvez por essas mesmas razões o ambiente está sendo ameaçado em nome do chamado desenvolvimento E na esteira desse desenvolvimento ocorrem subempregos fome violências discriminações e violações da liberdade Concluiu então que esses desvios são manifestações da privação de liberdade Sua bandeira portanto como economista e como homem político é que o verdadeiro desenvolvimento só é passível de ser atingido quando existe liberdade Amartya Sen e suas circunstâncias Amartya Sen em seus trabalhos contrapôsse à ideia geral de que o desenvolvimento era alcançável por meio do aumento da renda per capita produto interno bruto ou avanço tecnológico Sua teoria de que a liberdade é que estimula o desenvolvimento valeulhe o Prêmio Nobel de Economia de 1998 Para ele o objetivo último do desenvolvimento é o bemestar O Índice de Desenvolvimento Humano IDH do Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento foi baseado principalmente em suas ideias Amartya Sen nasceu em 1933 em Santiniketan cidade da Índia onde Rabindranath Tagore prêmio Nobel de Literatura de 1913 ergueu a sua universidade livre hoje chamada VisvaBharati University Passou parte da vida na cidade de Dhaka em Bangladesh Amartya Sen é considerado bengali porque após a Partição de 1947 divisão territorial de caráter religioso que dividiu Bengala em duas ficando a Bengala Ocidental como um Estado da Índia com capital em Calcutá emigrou com a família para a Índia onde estudou antes de se doutorar em economia pelo Trinity College em Cambridge Reino Unido Sen recebeu em 1998 o Prêmio Nobel de Economia por seu trabalho sobre a economia do bem estar social Foi professor da Universidade Harvard Atualmente é reitor da Universidade de Cambridge Amartya Sen e suas ideias Pessoas sem liberdade cívica não têm oportunidade de desenvolver as suas potencialidades e construir assim a sua própria história afirma o vencedor do Prêmio Nobel de Economia 1998 Amartya Sen Porque sem liberdade o indivíduo está perdendo o seu valor intrínseco mais importante que é o valor da própria vida Com esse pensamento rejeitou a noção da chamada economia do desenvolvimento em que os valores são a renda e a riqueza A riqueza para ele é apenas utilitária ou seja um instrumento para alcançar o bemestar Nisso se aproxima de Aristóteles que no livro Ética a Nicômaco dizia mais ou menos a mesma coisa Pensa que a liberdade deve ser pensada em termos de eficácia O homem é livre para suprir as suas necessidades básicas Livre para ter emprego e viver bem acolhido sob um teto confortável Livre para selecionar a cultura em que quer estar inserido e as tradições que deseja seguir Livre enfim para se aposentar dignamente e sobreviver escapando inclusive da taxa geral de mortalidade causada pela inoperância dos sistemas de previdência e de assistência social dos governos Seu livro Desenvolvimento como liberdade é a estruturação de uma ideia radical desenvolvimento nada mais é do que o processo de expansão das liberdades efetivas de que goza um indivíduo e que não são obtidas apenas com o dinheiro como reza a teoria utilitarista mas com apoio e incentivo das políticas públicas Naturalmente esse processo é muito mais passível de acontecer em regimes democráticos porque a liberdade política pode fortalecer outras liberdades Nessa perspectiva aproximase de John Rawls quando este fala na prioridade da liberdade em sua teoria da justiça embora a abordagem de Rawls seja mais voltada para o homem enquanto ser político O Índice de Desenvolvimento Humano IDH da ONU foi baseado principalmente nas ideias de Sen Amartya Sen e sua influência no direito Quando fala em justiça Sen novamente se aproxima do moderno liberalismo de John Rawls ao mencionar que a falta de liberdade resulta em ausência de significância do indivíduo para si para a sociedade e para o mundo O indivíduo livre é capaz de formar valores fazer escolhas emanciparse e em decorrência evoluir O desenvolvimento para ele deve ser avaliado em termos das políticas públicas colocadas à disposição dos indivíduos como educação e saúde e dos direitos civis como a liberdade política para aferição do que chama de liberdades substantivas entre elas as capacidades de evitar a fome a mortalidade precoce o analfabetismo Também menciona aquelas que denomina de liberdades instrumentais categorizandoas em cinco tipos liberdades políticas econômicas sociais garantias de transparência e segurança protetora Assim como Rawls Sen contribuiu decisivamente para o debate a respeito da justiça distributiva Todavia Sen discorda de Rawls numa questão crucial a renda ou a riqueza por exemplo ou os bens primários não devem ser considerados fins mas sim meios para que se alcance o bemestar Até porque diz Sen não se pode comparar pessoas pelo que elas conseguiram amealhar bens primários mas pelo que elas evoluíram e se desenvolveram a partir do que amealharam capacitações Os dois filósofos chegaram a debater entre si em seus livros e em publicações como a revista Economics and Philosophy na primeira década do século XXI sobre essas discordâncias Sen chegou a dizer que Rawls estava imbuído do fetichismo da mercadoria numa alusão a uma expressão usada por Karl Marx para mostrar que a ênfase em mercadorias ou bens não era correta O princípio basilar do pensamento de Sen é de que ética e economia são complementares contrariando o pensamento vigente no final do século XX O DESENVOLVIMENTO É na verdade um tremendo compromisso com as possibilidades da liberdade Amartya Sen O QUE AS PESSOAS conseguem realizar é influenciado por oportunidades econômicas liberdades políticas poderes sociais e por condições habilitadoras como boa saúde educação básica e incentivo e aperfeiçoamento de iniciativas Amartya Sen LINHA DO TEMPO A FILOSOFIA DO DIREITO CONTEMPORÂNEA Ano 1804 Surge a Escola da Exegese para promover a defesa do recémpromulgado Código Civil francês Ano 1832 John Austin funda o positivismo jurídico investigando a natureza de conceitos jurídicos no livro chamado Província da jurisprudência determinada Ano 1865 Otto Liebmann inicia o neokantismo com a publicação da obra Kant e seus epígonos um ensaio crítico Ano 1868 Oskar von Büllow escreve o livro A teoria das exceções processuais e os pressupostos processuais e transforma o direito processual em ciência autônoma desvinculada do direito material Ano 1889 Max Weber publica seu primeiro livro Para a história das sociedades comerciais da Idade Média Ano 1899 Gény François cria a Escola Científica em oposição à Escola da Exegese com a publicação de Método de interpretação e fontes no direito positivo privado Ano 1900 Wilhelm Dilthey fundamenta a hermenêutica filosófica com a publicação de Origem da hermenêutica Ano 1902 Rudolf Stammler determina os pressupostos do direito no livro A teoria do direito justo Ano 1905 Hans Kelsen escreve a principal obra do positivismo jurídico Teoria pura do direito Ano 1914 Gustav Radbruch escreve Fundamentos de filosofia do direito Ano 1915 Surge o pósmodernismo nas artes em Zurique com o dadaísmo de Marcel Janco e Tristan Tzara Ano 1930 Ortega y Gasset publica Rebelião das massas Ano 1944 Chaïm Perelman publica Da justiça Ano 1950 H L A Hart lança os fundamentos principais do positivismo jurídico moderno no livro O conceito do direito Ano 1955 Norberto Bobbio escreve o livro Política e cultura Ano 1961 Jürgen Habermas publica sua obra mais famosa Entre a filosofia e a ciência o marxismo como crítica Ano 1966 Michel Foucault publica A palavra e as coisas opondose aos positivistas Ano 1967 Jacques Derrida lança três livros importantes para a filosofia do direito entre eles A força da lei e Desconstrução da possibilidade de justiça Também em 1967 Niklas Luhmann escreve A sociedade da sociedade livro que só publicaria trinta anos depois Ano 1971 John Rawls publica Teoria da justiça Ano 1979 JeanFrançois Lyotard formula o pósmodernismo no livro Condição pósmoderna Também em 1979 Richard Rorty publica Filosofia e o espelho da natureza Ano 1990 Norberto Bobbio publica A era dos direitos Ano 1997 Niklas Luhmann publica sua grande obra A sociedade da sociedade trinta anos depois de ter sido escrita Ano 1998 Amartya Sen publica Desenvolvimento como liberdade que lhe valeu o Prêmio Nobel de Economia No text found SÉTIMA PARTE FILOSOFIAdoDIREITO CONTEMPORÂNEAnoBRASIL Nos primórdios do Brasilcolônia um líder nacionalista já produzia obras de filosofia do direito conforme nos conta Paulo Nader49 Tomás Antônio Gonzaga ainda no século XVIII publicou Tratado de direito natural inspirado em Grócio e Pufendorf No século XIX Avelar Brotero famoso por ter sido o primeiro professor de Direito Natural da Faculdade de Direito de São Paulo nomeado pelo próprio imperador Pedro I escreveu em 1829 Princípios de direito natural João Theodoro Xavier também catedrático da Faculdade de Direito de São Paulo escreveu em 1876 Teoria transcendental do direito Tobias Barreto professor da Faculdade de Direito do Recife escreveu Sobre uma nova intuição do direito em 1881 Ainda no século XIX José Maria Corrêa de Sá e Benevides catedrático de Direito Natural Público e das Gentes da Academia de Direito de São Paulo escreveu Elementos de filosofia do direito privado em 1884 Sílvio Romero aluno de Tobias Barreto e sergipano como ele escreveu Ensaios de filosofia do direito em 1895 Já no século XX um nome se destaca entre tantos Clóvis Beviláqua considerado o principal jurista da chamada Escola do Recife embora nascido no Ceará Clóvis Beviláqua autor do Código Civil brasileiro Além de jurista e jusfilósofo também atuou nas letras com tal excelência que foi convocado a ser membro fundador da Academia Brasileira de Letras Foi inicialmente positivista tendo inclusive escrito em 1883 o livro A filosofia positiva no Brasil depois aderiu ao liberalismo Escreveu em 1899 o Anteprojeto do Código Civil Brasileiro com 40 anos de idade a convite de Epitácio Pessoa então ministro da justiça do presidente Campos Sales O trabalho foi realizado em seis meses entre março e outubro de 1900 mas levou quinze anos para ser transformado no Código Civil sancionado por outro presidente Venceslau Brás em 1916 ele vigorou até 2002 O Código foi elogiado à época por ser sucinto e claro Clóvis Beviláqua e suas circunstâncias Clóvis Beviláqua seguiu os conceitos do alemão Ihering com relação ao conceito do direito defendendo que a lei deve se sobrepor aos costumes embora admirasse o pensamento de Del Vecchio acerca de Moral e Direito Clóvis Beviláqua nasceu no interior do Ceará em 1859 O pai procurou darlhe educação de boa qualidade impossível de conseguir numa cidade pequena e pobre Assim enviouo primeiro para Sobral depois para Fortaleza e afinal para o Rio de Janeiro onde permaneceu por dois anos entre 1876 e 1878 Nesse período jovem ainda com 17 anos criou um jornal literário Laborum Literarium em sociedade com Paula Ney e Silva Jardim Em 1878 ingressou na Faculdade de Direito do Recife tendo sido aluno de Tobias Barreto Integrou a chamada Escola do Recife ao lado de intelectuais da época como Sílvio Romero e Capistrano de Abreu Em 1883 iniciou efetivamente carreira na magistratura assumindo a função de promotor público na cidade de Alcântara no Maranhão Em 1889 prestou concurso para professorassistente e em 1891 assumiu a cadeira de Legislação Comparada da Faculdade de Direito do Recife Foi deputado constituinte representando o Ceará Escreveu regularmente para diversos jornais e revistas do Recife e do Rio de janeiro especialmente sobre crítica literária Atuou brevemente como secretário no governo do Estado do Piauí Em 1906 foi nomeado consultor jurídico do Ministério das Relações Exteriores pelo Barão do Rio Branco Permaneceu no cargo até a aposentadoria em 1934 Morreu no Rio de Janeiro em 1944 Clóvis Beviláqua e suas ideias Estudou longamente a obra de Von Ihering na busca de solução para o problema do direito como fenômeno social e como conceito filosófico Considera o Direito sociologicamente como o organismo coletivo da liberdade humana passível de apreciação por meio de sua anatomia e de sua fisiologia na época imperavam as metáforas biológicas Dizia que não basta a pessoa ter ideias revolucionárias se a sociedade não estiver preparada para compreendêlas Uma de suas ideias recusada pela comissão revisora do Código Civil era equiparar a condição da mulher em relação a direitos e à capacidade jurídica no ordenamento jurídico brasileiro Clóvis Beviláqua e sua influência no direito O jusfilósofo renovou o direito civil brasileiro até aquele momento dominado pelas Ordenações Filipinas apesar de que em Portugal essas ordenações já tinham sido abolidas em 1867 Introduziu conceitos inovadores na época inspirados em Ihering e Savigny Inicialmente adepto do positivismo seguiu a evolução do seu tempo e apoiou o liberalismo embora acrescentando às suas ideias uma preocupação social foi quem obteve que o direito do trabalho constituísse matéria de lei especial e fez inserir no direito de família o instituto do reconhecimento dos filhos ilegítimos O INDIVÍDUO QUE EMPREENDE uma excursão pelos vastos domínios da ciência jurídica tem obrigação de premunirse com certas ideias fundamentais que serão os seus guias através dessas regiões tão trilhadas e apesar disso ainda tão desconhecidas Sem esse preparo prévio arriscase a mostrarse como um espírito lamentavelmente vacilante e desconjuntado que pode ser evolucionista em ciências naturais metafísico em direito e fetichista em religião Clóvis Beviláqua Farias de Brito Deus e a ordem moral Considerado por Miguel Reale como um dos maiores jusfilósofos brasileiros Raimundo Farias de Brito marcou sua obra com um pensamento voltado para a metafísica tradicional de caráter espiritualista Em suas obras iniciais questionava a filosofia do seu tempo criticando principalmente o materialismo e a teoria darwinista da evolução Seu trabalho apresentava profundo traço religioso sugerindo que Deus era o responsável pela ordem social o que incluía o conceito de moral Segundo Miguel Reale em seu livro Filosofia do Direito Farias de Brito foi o filósofo autêntico um verdadeiro cientista um pesquisador incansável que procurou sempre renovar as perguntas formuladas no sentido de alcançar respostas que sejam condições das demais Farias de Brito e suas circunstâncias Nasceu no interior do Ceará na cidade de São Benedito em 1862 mas deixou cedo a terra natal para estudar em Sobral onde havia mais recursos Também de lá foi obrigado a se mudar tangido pela seca e foi completar o ensino médio em Fortaleza no Liceu Cearense Muito jovem em 1884 contava 22 anos quando concluiu o curso de direito na Faculdade de Direito do Recife Foi um dos alunos mais respeitados por Tobias Barreto e conviveu com Silvio Romero e Clóvis Beviláqua Foi promotor por alguns anos e depois assumiu a função de secretário do governo do Estado do Ceará Entre 1902 e 1909 foi professor da Faculdade de Direito de Belém do Pará Já então autor de vários livros Finalidade do mundo em três volumes publicados em 1895 1899 e 1905 e A verdade como regra das ações em 1905 prestou concurso para a cátedra de Lógica do Colégio Pedro II no Rio de Janeiro e lecionou naquela instituição até o fim da vida Tinha tentado antes mas perdeu a vaga para Euclides da Cunha depois da morte deste acabou obtendo a cátedra O nome de Farias de Brito atualmente designa a cidade que antigamente se chamava Quixará no interior do Ceará Farias de Brito e suas ideias Suas obras tratam da missão do filósofo que para ele era buscar a verdade muitas vezes oculta e que em geral se apresenta ao homem como enigma Ele reconhecia que a verdade é frequentemente inalcançável mas a sua busca leva o homem a ver o mundo com mais clareza Para alcançar essa iluminação o homem deve fazer um exercício incessante e consciente de introspecção Filosofia para esse pensador era a ferramenta da consciência humana Naturalmente tendo sido profundamente religioso o seu pensamento denotava tendência ao naturalismo No entanto é tido por vários autores como um precursor do existencialismo entre eles Fred Gillette Sturm Aquiles Côrtes Guimarães e Williams Roosevelt Monjardim Isso porque Farias de Brito aborda temas ligados à existência humana como a vida a morte a moral as questões do espírito e do mundo interior entre outros Com isso se posicionava contra o pensamento positivista reinante na época especialmente entre os autores da chamada Escola do Recife Farias de Brito e sua influência no direito A principal contribuição de Farias de Brito para o direito está no campo da ética Seu último livro O mundo interior publicado em 1914 prega que a filosofia aliada à psicologia e à arte é objeto de ciência porque é intuitiva e concreta a psicologia porque mostra o consciente e a arte porque manifesta o inconsciente Para ele direito e moral são os dois pilares que sustentam o mecanismo social e cabe à filosofia organizar o direito que por sua vez organiza o mundo social oferecendo os princípios que devem regular a conduta do homem em sociedade Para Farias de Brito a razão deve superar as paixões portanto a moral deve ser prática e o homem deve se afastar da concepção materialista do mundo Se o homem busca a verdade e amplia sua consciência a sua norma de conduta será imposta pela sua própria consciência e assim o mundo moral se resumiria a duas leis a primeira é fazer o bem e a segunda é não fazer o mal Pontes de Miranda um pensador social Esse jusfilósofo foi um liberal e um democrata tendo produzido suas obras com o viés dos direitos sociais Produziu vasta obra não apenas no direito mas também como poeta romancista e crítico de literatura Seus trabalhos continuam modernos ainda hoje Pontes de Miranda e suas circunstâncias Pontes de Miranda foi o maior tratadista brasileiro tendo produzido um total de oito Era neokantiano Nos seus trabalhos de filosofia do direito tinha traços neopositivistas Criticava as posições de Wittgenstein e de Bertrand Russell Em toda a sua obra especialmente aquelas constitucionalistas valorizou os direitos sociais Alagoano de Maceió 1892 Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda era filho de produtores de açúcar Gostava de matemática mas acabou optando pela advocacia Completou a Faculdade de Direito do Recife com apenas 19 anos Aos 20 já publicava um ensaio filosófico A moral do futuro Em 1924 ganhou o prêmio Pedro Lessa da Academia Brasileira de Letras com o livro Introdução à sociologia geral Nesse mesmo ano ingressou na magistratura como juiz de órfãos Chegou a desembargador do Tribunal de Apelação do Distrito Federal Foi chamado a representar o Brasil em duas conferências internacionais Santiago do Chile em 1923 e Haia na Holanda em 1932 Chefiou a delegação brasileira à 26ª Sessão da Conferência Internacional do Trabalho em Nova York 1941 Depois disso foi nomeado embaixador do Brasil na Colômbia Em 1943 abandonou a carreira diplomática e dedicouse a escrever pareceres e literatura Escreveu o Tratado do direito privado imensa obra em 60 volumes entre 1955 e 1970 É considerada a maior obra escrita por um homem só em todo o mundo Morreu em 1979 Pouco antes tinha sido eleito para a Academia Brasileira de Letras Em 1923 Clóvis Beviláqua dirigiulhe um discurso durante um jantar que o homenageava Segue um pequeno trecho Mas onde está o direito revelandose límpido às consciências como um sol que se ergue no horizonte e envolve o mundo no dilúvio luminoso de sua irradiação O vosso livro oferece instrumentos para descobrilo nas diferentes situações da vida Embora escrito em português há de ter a repercussão que a oportunidade lhe promete porque os seus ensinamentos não interessam apenas à curiosidade mental são reclamados por uma necessidade de situação moral dos homens dos nossos dias Desapareceram as possibilidades de erro em matérias de construção legislativa de decisões judiciárias de interpretação de doutrina Seria ingenuidade supôlo Por mais perfeito que seja o instrumento devemos contar com a inabilidade do operador Por mais larga que se estenda a estrada que conduz à verdade as paixões os preconceitos a falibilidade humana para tudo dizer numa palavra derramarão sobre ela densos nevoeiros que desviarão os transeuntes multiplicaramse porém as possibilidades de acertar e diminuíramse proporcionalmente as causas de erros É quanto podem desejar os que dentro das contingências humanas procuram a verdade e o bemestar dos indivíduos e das agremiações É portanto da mais alta significação o vosso livro para o avanço das ideias jurídicas no mundo o que importa dizer para o melhoramento da organização social Isto explica todo o nosso júbilo de juristas e de brasileiros e esta efusão sincera em que ele se traduz50 Pontes de Miranda e suas ideias Pontes de Miranda dizia que a sociedade é como um organismo biológico relativo no tempo e no espaço e que os indivíduos são regidos por processos sociais de adaptação Adepto do pacifismo achava que o ideal político é o socialismo mas com a presença do Estado para garantir a ordem por meio da regra jurídica Desde que o governo não fosse despótico e assegurasse a democracia e as liberdades individuais Graças ao seu interesse constante pela matemática manteve diálogo com Albert Einstein chegando inclusive a propor alterações na teoria da relatividade Pontes de Miranda e sua influência no direito Foi o primeiro jurista a desenhar uma teoria dos direitos fundamentais em nosso país tendo trazido as melhores doutrinas e práticas processuais adotadas na Europa contribuindo para modernizar o direito brasileiro do século XX e buscando eliminar autoritarismos presentes em nossa legislação Foi um dos pioneiros ao declarar que os governos devem estar comprometidos com a implementação e a consolidação dos direitos humanos do contrário não se promoveria a justiça social e em consequência o desenvolvimento Sistematizou os direitos fundamentais em uma classificação que assim se constitui ordem jurídica organizabilidade prestação e garantias Pregava que o jurista deveria fazer uma interpretação positivista dos fatos sociais de maneira neutra baseada no cumprimento das leis CirneLima e a sistematização da Filosofia Carlos Roberto Velho CirneLima é gaúcho de Porto Alegre Nasceu em 1931 Foi diretor da Faculdde de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Antes disso graças a 20 anos de vida eclesiástica no seminário jesuíta lecionou grego e latim Doutorouse na Áustria e estudou também na Alemanha CirneLima e suas circunstâncias No início da década de 1960 lecionou na Universidade de Viena Nesse período escreveu uma de suas principais obras Analogia e dialética Voltou para o Brasil em 1968 para seguir o curso de livre docência na Faculdade de Filosofia da UFRGS No entanto em 1969 por efeito do Ato Institucional n 5 do regime militar foilhe imposta a aposentadoria compulsória sendolhe vetado o direito de lecionar Dedicouse então a iniciativas empresariais voltando a lecionar apenas dez anos depois com a anistia política Aposentouse na UFRGS em 1991 e tornouse professor titular na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS onde permaneceu até 1999 Em 2000 transferiuse para a Unisinos onde recebeu em 2008 o título de professor emérito Alguns de seus livros Realismo e dialética a analogia como dialética do realismo Dialética para principiantes Nós e o absoluto e Depois de Hegel uma reconstrução crítica do sistema neoplatônico CirneLima e suas ideias Numa de suas obras mais importantes apresentou suas teorias a respeito da dialética e do sistema filosófico Declarava que sua intenção foi tentar reconstruir um sistema neoplatônico de Filosofia que evitasse os erros cometidos por Hegel que considerava o último dos grandes autores sistemáticos Um desses erros segundo ele foi o necessitarismo que perpassa todo o sistema esmagando o indivíduo Ou seja Hegel considerava que as liberdades individuais do cidadão gradualmente vão desaparecendo dentro do Estado CirneLima prefere uma leitura mais libertária de que as liberdades estão sujeitas a contingências De certo modo CirneLima prega que os conceitos de tese antítese e síntese deve considerar a necessidade e a contingência em proporções iguais Foi uma nova forma de entender Hegel e por consequência de entender a teoria hegeliana Esse entendimento leva à existência de um Estado que garanta os direitos fundamentais do indivíduo ou seja cidadãos livres impedem o desenvolvimento de um Estado autoritário Miguel Reale e a tridimensionalidade do direito Miguel Reale é o pensador brasileiro de maior importância para a filosofia do direito Formulou a Teoria Tridimensional do Direito em que fatos valores e normas são elementos que atuam com igual intensidade Organizou e presidiu sete congressos brasileiros de filosofia É autor de um curso de filosofia do direito publicado em 1953 e traduzido em vários idiomas Pertenceu à Academia Brasileira de Letras Foi o supervisor da comissão que elaborou o Código Civil de 2002 Para o filósofo brasileiro que completaria 100 anos de nascimento em 2010 fatos valores e normas se implicam e se exigem reciprocamente Essa é a essência da sua Teoria Tridimensional do Direito Segundo Reale um fenômeno jurídico decorre sempre de um fato social econômico político geográfico etc e portanto é influenciado por circunstâncias e valores da cultura da sociedade em que ocorre Naturalmente esse fenômeno jurídico pode ser encarado de múltiplas maneiras e não somente com base na história E para completar o fenômeno está subordinado a uma norma jurídica Para Miguel Reale esses três aspectos norma fato e valor não existem dissociados um do outro estão absolutamente integrados numa condição dinâmica no momento da aplicação da lei Miguel Reale desenvolveu uma forma bem brasileira de encarar a filosofia do direito um método que privilegiava no julgador a humildade e a pesquisa ao mesmo tempo que buscava desvincular a filosofia de suas raízes religiosas Ele criticava o método estrangeiro vigente na época o formalismo do positivismo jurídico que chamava de filosofia em mangas de camisa Miguel Reale e suas circunstâncias Miguel Reale nasceu em São Bento do Sapucaí Estado de São Paulo em 1910 Estudou Direito em São Paulo e já à época do bacharelado 1934 publicava seu primeiro livro O Estado moderno um ensaio sobre a realidade política da época Começou carreira profissional como advogado da Light Serviços de Eletricidade ainda em 1938 Chegou ao doutorado em Direito em 1941 com uma tese sobre Fundamentos do direito em que apresentava sua Teoria Tridimensional do Direito No mesmo ano assumiu por concurso a cátedra de filosofia do direito na Faculdade de Direito do Largo São Francisco onde em 1980 receberia o título de professor emérito Recebeu quinze títulos de doutor e professor honoris causa em faculdades do Brasil e do exterior Foi o mais importante teórico da Ação Integralista Brasileira e chegou a ser preso pelo regime de Getúlio Vargas em 1941 Em 1947 foi secretário da justiça do Estado de São Paulo Na sua gestão criou a primeira assessoria técnicolegislativa do Brasil Em 1949 assumiu o posto de reitor da Universidade de São Paulo por dois anos cargo que desempenharia novamente entre 1969 e 1973 No mesmo ano fundou o Instituto Brasileiro de Filosofia do qual foi o primeiro presidente De 1974 a 1989 foi membro do Conselho Federal de Cultura Também foi presidente da Fundação Moinho Santista Foi o supervisor da comissão que elaborou o Código Civil Brasileiro de 2002 Como poeta e memorialista foi o quarto ocupante da cadeira n 14 da Academia Brasileira de Letras sucedendo a Fernando de Azevedo tomando posse em 21 de maio de 1975 Também foi membro da Academia Paulista de Letras desde 1977 Publicou mais de 60 livros Morreu em 2006 Miguel Reale e suas ideias O grande jusfilósofo pátrio aponta que o direito nos primórdios foi vivido como um fato enlaçado com fenômenos cósmicos sendo necessários séculos para depuração das normas propriamente jurídicas e sua diferenciação em relação a outras normas de conduta como as morais e as religiosas Foi a capacidade de abstração do ser humano que o conduziu a experimentar o direito para além do mero fato reconduzindoo ao sentimento do justo numa miscelânea de valores nem sempre compatíveis entre si Esse processo entretanto além de não ter sido linear também não se deu por meio de uma autoconsciência reveladora do espírito mas antes pela projeção do homem para fora de si com a alienação da consciência humana em relação a potestades superiores tidas como origem daqueles valores que em verdade brotavam da própria vida humana Como consequência diznos Reale o homem descobriu uma ordem para além da ordem social marcada esta pela histórica força dos costumes Essa nova ordem a ordem dos valores ou axiológica foi tida nos primórdios como uma dádiva da divindade e não como fruto da experiência concreta histórica do ser humano Assim é que a Justiça nos povos antigos aparece como uma deusa Já na Antiguidade o direito é tido como um deverser como um comando uma direção a ser seguida O mito e a experiência humana todavia entrelaçamse e se confundem a ponto de o direito ter sido também desde o início sentido como justiça como um valor e não apenas como um fato conforme apontamos anteriormente Um valor vejase atrelado à noção de divindade de modo que seguir o direito significava em verdade servir a Deus Por essa razão o direito primitivo está essencialmente ligado a rituais e ao formalismo religioso de sorte que violar o rito significava violar também o justo o correto A passagem dos séculos afastou o direito do caráter ritualístico que marcou seu surgimento sem contudo libertálo por completo dessa característica Como fato como acontecimento social e histórico o direito somente seria objeto de uma ciência autônoma no século XIX já na Era Moderna Veio a lume assim a concepção do direito como norma ou como lex Miguel Reale e sua influência no direito Miguel Reale aduz que o estudo das concreções da Justiça no tempo nas experiências humanas já era praticado na antiga Roma Era a chamada Jurisprudência e demonstrava que os romanos já tinham a percepção de que o ideal do justo apenas adquiria sentido no fato concretizado sob sua luz Há pois nos jurisconsultos clássicos uma integração em unidade do fato e do valor à dimensão representada pela norma Com efeito os romanos diferentemente dos gregos que preferiram filosofar sobre a justiça debruçaramse sobre a experiência concreta do justo O direito aparece então como uma ordem normativa da convivência humana Com isso Miguel Reale demonstra como historicamente sua teoria da tridimensionalidade do direito encontra arrimo nas diferentes concepções surgidas sendo afinal a coroação de todas elas Para o filósofo toda experiência jurídica conjuga sempre três elementos fato valor e norma Em outras palavras isso significa admitir que o vocábulo direito possa ser tido em três acepções distintas embora ligadas i direito como valor do justo ii direito como norma ordenadora da conduta iii direito como fato social e histórico A tripartição não é ensina o filósofo rígida e hermética mas sim indica apenas um predomínio ou prevalência de sentido A estrutura do direito é em suma tridimensional Vários teóricos o reconheceram e de diversas formas É então tido como o elemento normativo que ao disciplinar comportamentos humanos pressupõe uma dada situação de fato a qual por sua vez relacionase a determinados valores O modo como se considera a conexão entre as três dimensões fato valor e norma é que diferencia as teorias nesse campo Miguel Reale aponta que as primeiras teorias o fizeram de modo eminentemente abstrato compondo o chamado tridimensionalismo abstrato ou genérico para o qual a conexão entre as dimensões é considerada sob uma visão final e compreensiva com pretensão de integralidade ou dito de outro modo para um tal tridimensionalismo uma visão integral do direito só é obtida mediante a observação dos três elementos em seu conjunto O desenvolvimento dessa concepção conduziu ao que Reale denomina de tridimensionalismo específico uma verdadeira superação das análises em separado do fato do valor e da norma como se fossem elementos de uma realidade decomponível Pelo contrário o tridimensionalismo específico preconiza a inadmissibilidade lógica de se perquirir o direito sem a consideração concomitante daqueles três elementos Os principais teóricos nesse campo foram Wilhelm Sauer e Jerome Hall além de Recaséns Siches Em verdade a diferença entre o tridimensionalismo genérico e o específico está em que o primeiro procura combinar os três pontos de vista unilaterais fundamentados naqueles três elementos constitutivos fato valor e norma que dão origem respectivamente ao sociologismo jurídico ao moralismo jurídico e ao normativismo abstrato ao passo que o último não empreende apenas uma harmonização de resultados de ciências distintas mas se preocupa também com a demonstração de como elas se implicam e se estruturam numa conexão necessária Essa tridimensionalidade específica pode ser sempre de acordo com a lição de Miguel Reale estática dinâmica ou de integração O ilustre filósofo opta por um tridimensionalismo dinâmico que entenda a unidade da experiência jurídica Para ele a teoria tridimensional só se aperfeiçoa ao chegar à afirmação de forma precisa da interdependência dos elementos que fazem do direito uma estrutura social necessariamente axiológico normativa A experiência jurídica há que ser tida como processo histórico Para que a correlação entre fato valor e norma se opere de maneira unitária e concreta dois são os pressupostos i reconhecer que o conceito de valor desempenha o tríplice papel de elemento constitutivo gnoseológico e deontológico da experiência ética ii reconhecer a implicação entre o valor e a história isto é a projeção das exigências ideais na circunstancialidade históricosocial como valor deverser e fim Apenas a partir dessas condições é possível aferir a natureza dialética da unidade do direito Com efeito toda ação humana é orientada por um valor ou pela evitação de um desvalor no sentido de implementálo de vêlo cristalizado aqui nos referimos ao aspecto constitutivo deste Mas o valor também desempenha um papel deontológico ao consubstanciar a noção de dever à imposição de agir de acordo com ele como forma de legitimação do ato Por fim uma experiência ôntica e deontologicamente axiológica somente por ser conhecida por meio de juízos de valor tratase do papel gnoseológico do valor Sustenta Reale que toda ação humana dirigese a um fim O mesmo se passa com o fenômeno jurídico E a finalidade não é nada além de um valor posto e reconhecido como motivo da conduta regulada pelo fenômeno jurídico Uma vez posto o valor constitui aquilo que deve ser ou seja tornase parâmetro de legitimidade para aferição da conduta tomada O jurista deve elevarse ao plano de uma compreensão racional dos valores Não basta para ele a mera intuição É dizer a conversão de um valor em um fim é fruto de atividade eminentemente racional eis que o direito é estrutura formal voltada à consagração da segurança nas relações sociais Reale renega a concepção idealista de valores O valor como deverser não é indiferente ao plano da existência antes é condicionante da experiência histórica e na história se revela sendo que esta apenas consubstancia algumas de suas virtualidades estimativas O valor se realiza no homem que não é mero mediador entre o ideal e a realidade Diz Reale Só ele é enquanto deve ser e deve ser por ser o que é Assim conclui o filósofo que todo fim constitui a determinação do deverser de um valor no plano da práxis Reale ressalva entretanto que o valor não se reduz a um deverser Compreende potencialmente em verdade uma diversidade deles Para ele valor deverser e fim são momentos que se desenrolam na unidade de um processo que é a experiência total do homem Tratase de processo marcado por coerências e contradições por pausas e acelerações por avanços e recuos sempre na busca da adequação entre realidade e valor O direito é um dos fatores primordiais desse processo de integração do ser do homem no seu dever ser Reale bem ressalta que na escolha dos fins há interferência da vontade Daí o Poder estar inserido no processo da normatividade jurídica De fato a escolha do deverser a ser normatizado é sempre um processo de exercício do Poder que almeja a certos fins baseado em circunstâncias de fato Nesse ponto é importante enfatizar que o fato na tridimensionalidade da teoria de Reale é em verdade um conjunto de circunstâncias nas quais o homem se encontra imerso em sua vida cotidiana motivo pelo qual seu estudo é sempre dotado de considerável complexidade O mesmo se diga a respeito do estudo dos valores que segundo Reale constituem na vivência humana uma série de motivos ideológicos a condicionar a visão do legislador cuja decisão converte uma das possíveis proposições normativas em norma jurídica Em se tratando da nomogênese jurídica Reale em síntese recorre à imagem de um raio luminoso as exigências decorrentes dos valores que ao incidir sob um prisma o domínio dos fatos sociais econômicos técnicos etc se refrata em um leque de normas possíveis das quais o Poder seleciona a que constituirá norma jurídica A criação de normas jurídicas portanto de acordo com a teoria tridimensional de Reale é apenas um momento da tensão dialética entre fatos e valores constituindo uma solução temporária apontada pela interferência decisória do Poder em dado momento da experiência social Esse Poder a que o jusfilósofo faz referência pode ser exercido pelo próprio poder estatal expresso como também pelo poder social difuso em uma comunidade faz aqui referência ao direito costumeiro que não passa da consagração de reiterados atos anônimos de decidir ou ainda pode advir do plano privado da chamada autonomia da vontade modelos negociais O jusfilósofo como mencionado também se preocupa com a relação do Poder com os elementos de sua teoria Partindo de uma concepção que leve em conta a conexão entre ele e a experiência axiológica Reale procura uma compreensão realista do direito a qual necessariamente deve abranger a correlação essencial entre o nexo normativo e o Poder Tratase de uma correlação essencial não de um determinismo simplista isto é o direito não é fruto de uma mera decisão do Poder Eis o equívoco do decisionismo considerar o fator volitivo na formação do direito isoladamente como se não estivesse inserido em um conjunto de circunstâncias sociais e uma variedade de motivos axiológicos Uma análise limitada pois Nesse sentido Reale critica a concepção da juridicidade formulada por Kelsen para quem no cerne do fenômeno jurídico estaria o Poder Para Reale a complexidade dessa relação é um tanto maior sustenta ele que o fato do Poder não interessa ao mundo jurídico senão e enquanto se ordena normativamente Em outras palavras antes de o direito constituir mero modo de exercício do Poder é conformador de sua existência na sociedade de modo que quanto mais o Poder concorre para a positivação do direito mais é limitado pelo direito declarado Daí aquela correlação essencial mencionada anteriormente Reale em suma não ignora que Direito e Poder são termos inseparáveis Contudo refuta a ideia de que um se reduz ao outro No centro de suas considerações podese afirmar que se encontra a noção de contingência a integração normativa não esgota todos os motivos axiológicos nem tampouco a totalidade das exigências fáticas entre as quais estão aquelas oriundas das imposições do Poder Poder que por ser exercido no entrelace de circunstâncias fáticas de plúrimos valores muitas vezes contraditórios não se ergue como uma quarta dimensão no processo de integração normativa mesmo porque é impossível sustentar uma abstração da correlação axiológiconormativa existente nesse campo Em suma para Reale na teoria tridimensional o Poder só pode ser compreendido como momento da tensão fáticoaxiológica na concreção do processo nomogenético O ELEMENTO AXIOLÓGICO é a essência da compreensão do mundo da cultura No fundo cultura é compreensão compreensão é valoração Compreender em última análise é valorar é apreciar as coisas sob o prisma do valor Miguel Reale Tercio Sampaio Ferraz Junior e a teoria da comunicação O fenômeno jurídico é marcado pela relação entre poder e liberdade A consagração de direitos do ponto de vista da liberdade implica limitação do poder não obstante ao mesmo tempo o exercício de direitos possa ser visto como um ato de poder Daí ser possível concluir que o fenômeno jurídico implica a noção de poder regulamentado o poder jurídico e de liberdade responsável Tercio vê na relação direito poder e liberdade um equilíbrio instável o que faz ressaltar as noções de abuso e de legitimidade relacionadas intimamente ao tema da justiça tida como razão de existir do direito ao menos na tradição ocidental Tercio Sampaio Ferraz Junior e suas circunstâncias Justiça para Tercio Sampaio Ferraz Junior como parâmetro de legitimidade do direito seria uma razão holística e unificadora Ocorre todavia que a própria relação entre razão e justiça é controversa Sabese também aponta Tercio existir um sentimento de justiça de onde se conclui que também nesse campo há certa instabilidade A própria concepção de equidade baseada numa igualdade abstrata genérica não ligada a regras prévias demonstra essa instabilidade Tercio Sampaio Ferraz Junior é jurista Nasceu em 1941 Graduouse pela Universidade de São Paulo USP em 1964 simultaneamente em Filosofia Letras e Ciências Humanas e em Ciências Jurídicas e Sociais Obteve doutorado em Filosofia em 1968 pela Johannes Gutemberg Universität em Mainz Alemanha e em 1970 o de Direito pela USP tendo como orientador Miguel Reale Em 1974 fez pósdoutorado em Filosofia do Direito É professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP e da PUCSP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Atua como consultor da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CAPES É professor titular do Departamento de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da USP Largo de São Francisco como sucessor de Goffredo da Silva Telles Jr Publicou 17 livros entre eles Estudos de filosofia do direito 2002 e Introdução ao estudo de direito técnica decisão e dominação 1988 Tercio Sampaio Ferraz Junior e suas ideias Ao tratar da fenomenologia do poder ressalta Ferraz Junior que o mais perfeito poder é aquele que não é percebido eis que perfaz na unidade não a supressão da diversidade mas a impressão de que esta não é alterada O fenômeno do poder aduz o jusfilósofo é irredutível o que não significa que definir seu núcleo essencial constitua tarefa fácil Em diversos campos falase em poder da política à economia da ciência ao amor o que revela a dificuldade da empreitada Pelo uso linguístico ter perder dar delegar poder ele poderia ser tido como uma coisa uma res uma substância ou mesmo uma relação Como definirlhe então a natureza Na dogmática jurídica o poder não é tido como elemento básico É considerado como fato extrajurídico estudado superficialmente nas teorias gerais do Estado O vocábulo abrange em geral três ideias 1 poder como algo substância 2 poder como faculdade humana de produzir obediência 3 poder como instrumento de exercício de império e de soberania Tercio Sampaio Ferraz Junior e sua influência no direito Ferraz Junior trata das várias teorias sobre o poder e sobre a soberania Refere também o poder como meio de comunicação ponto no qual ressalta que o poder não se reduz ao direito não obstante as noções jurídicas tentem reduzilo a tal Poder para o jusfilósofo é uma relação simbólica que se manifesta de diferentes formas difícil de ser captada em um todo homogêneo Tanto assim que vejase direito é poder e ao mesmo tempo se contrapõe ao poder limitandoo a todo o momento Como então definir a relação entre ambos Para Ferraz Junior uma possibilidade seria percebêlos como meios simbólicos de comunicação O axioma fundamental aqui é o homem é um ser em comunicação Dito de outro modo a situação humana é uma situação em comunicação ou seja não existe a não comunicação eis que não comunicar significa comunicar o não comunicar Tercio contudo não adota a noção de ação comunicativa proposta por exemplo por Habermas Preconiza em seu lugar uma posição mais radical que não reduz a comunicação a um ato entre ego e alter mas antes a concebe como uma complexa estrutura de comportamento que os envolve de modo que segundo ele é a comunicação que gera a possibilidade de ação comunicativa e não o contrário De acordo com essa concepção de Tercio comunicação não é uma relação entre indivíduos essa relação é que somente se faz possível por meio da comunicação Por óbvio diante desse panorama também a concepção de sociedade resta alterada Tercio adota a formulada por Niklas Luhmann que não vê a sociedade como mero conjunto de indivíduos mas sim como uma situação comunicacional como comunicação não conjunto de atos de comunicação nos termos expostos acima A sociedade para Luhmann constitui uma estrutura comunicacional que permite aos indivíduos estar em contínuo contato uns com os outros Tercio bem aponta que tal concepção inverte a tradicional noção de sociedade esta já não mais é tida como reunião ou agrupamento de indivíduos é ao contrário a própria sociedade que propicia referido agrupamento Nessa perspectiva o poder é tido como um meio de comunicação generalizado simbolicamente Sempre na esteira de Luhmann Tercio parte do pressuposto de que os sistemas sociais se formam via comunicação sendo que esta em sentido amplo equivale a comportamento na acepção de troca de mensagens Aduz Ferraz Junior que a troca de mensagens o comportamento é o elemento básico da sociedade Constitui um dado irrecusável ou seja tratase de um verdadeiro postulado Para ele a comunicação humana ocorre em dois níveis o nível do cometimento e o nível do relato O cometimento é em geral transmitido de forma não verbal pelo tom da voz pela expressão facial pela postura do emissor a forma de se vestir etc e corresponde à mensagem que emana de nós É no dizer de Tercio a mensagem sobre a relação de subordinação de coordenação O relato corresponde ao conteúdo transmitido pela mensagem Assim exemplifica o filósofo ao dizermos Sentese o relato é o ato de sentarse enquanto o cometimento variará se tal mensagem for transmitida por um professor a um aluno ou entre alunos ou por um aluno a um professor Na troca de mensagens há sempre uma expectativa mútua de comportamento expectativa que por sua vez também pode constituir objeto de expectativas prévias Criamse assim situações complexas nas quais expectativas se confirmam ou se desiludem em que os homens apresentam suas verdadeiras intenções ou comunicam conteúdos com segundas intenções de onde se pode verificar um conjunto instável de relacionamentos de relações de expectativa Situações comunicativas são pois caracterizadas pela complexidade entendida esta no sentido empregado por Luhmann como número de possibilidades de ação maior que o das possibilidades atualizáveis Com efeito o número de possibilidades encetado em uma situação comunicacional é sempre maior do que as ações que podem vir a ter lugar Não obstante determinada ação há sempre que ser escolhida ainda que em negação à própria comunicação o que como vimos também constitui um agir comunicativo Assim a seletividade é uma segunda característica das situações comunicativas Da complexidade e da seletividade da comunicação resulta que a interação humana é sempre contingente a expectativa sempre pode ou não se confirmar Daí a contingência ser a terceira característica da situação comunicativa Precisamente em decorrência da contingência inerente a toda interação humana os sistemas sociais cuidam em sua evolução de combatêla ou de reduzila a níveis aceitáveis visando a uma relativa estabilidade Os mecanismos empregados para tal mister de acordo com Ferraz Junior são compostos de uma estrutura conjunto de regras e de um repertório conjunto de símbolos e constituem um código ou meio codificado de comunicação cuja finalidade então é reduzir a carga de complexidade e de contingência inerente à seletividade de cada indivíduo Códigos portanto generalizados simbolicamente ordenam as situações sociais com dupla seletividade Tercio em suma no esteio de sua teoria comunicacional vê o poder como medium para se limitar a dupla contingência Sua performance transmissiva portanto pressupõe liberdade de ambos os lados da relação no sentido de várias alternativas de escolha Trata nessa acepção não do poder de coação que em essência limita a possibilidade de escolha e assim não é comunicação mas exercício da força Nesse ponto contrapõese a Kelsen para quem o direito implica o monopólio da coação Aduz Ferraz Junior que tal monopólio somente se faz possível em sistemas sociais muitíssimo simples nos mais complexos o monopólio se dá quanto à decisão sobre o emprego da coação Reconhece como Foucault que na sociedade moderna o poder tende a se ampliar mas perde progressivamente o sentido de dominação para ganhar o de regulação colocandose antes do exercício da vontade individual Em outras palavras o poder como medium não se liga à produção de determinados efeitos poder como coação mas à transmissão de performances seletivas de ação Visa a regular a contingência não a suprimila Faz funcionar as relações de submissão e obediência ao tornar dinâmicas as consequências de determinadas condutas Como se vê o poder depende da contingência das seletividades sociais motivo pelo qual adquire estrutura própria diferenciada da de outros meios como a moral o direito a religião apenas com o aumento da complexidade social Não é força mas controle O poder para Ferraz Junior é um código que regula as ações entre pessoas O jusfilósofo formula acepção própria para ação em sua teoria tendoa como a unidade entre movimento e sentido de orientação ponto que não será aprofundado aqui Conclui em suma que o poder é constituído sobre o controle das exceções o que pode ser visto mais claramente na relação entre poder e coação Com efeito o poder estabelece a coação como algo a ser evitado pelas duas partes com verdadeira exceção PODER combinação inversamente condicionada de combinações de alternativas relativamente avaliadas como negativas com outras relativamente avaliadas como positivas Tercio Sampaio Ferraz Junior Goffredo Telles Junior e o direito quântico Em seu Direito quântico Goffredo Telles Junior traça uma relação entre conceitos e descobertas na área das ciências naturais e fenômenos e manifestações jurídicas surgidas no seio da comunidade Não obstante a obra tenha sido objeto de diversas críticas ao tempo em que veio a lume principalmente no que toca à suposta incompatibilidade entre o método das ciências naturais e o método das ciências denominadas sociais logo assentouse o reconhecimento da originalidade do pensamento do jusfilósofo As descobertas da Física Quântica a respeito do comportamento dos corpos e ondas em nível microscópico impressionaram Goffredo A estática percebida pelos sentidos humanos em verdade esconde o permanente movimento das partículas no mundo microscópico a evolução da ciência o revelou tudo é rápido e disforme Tudo afinal é na denominação do jusfilósofo corpo e onda movimento e energia A Física Quântica distanciandose da newtoniana passa a reconhecer que a energia não é algo externo à partícula mas sim uma sua parte Energia que se subdivide em pequenas porções denominadas de quanta cuja magnitude por diminuta revestese de continuidade no nível macroscópico eis que os diferentes patamares energéticos escapam à percepção humana A própria estrutura atômica antes tida por indivisível é objeto de grandes descobertas na era da Física Quântica Desvendada sua verdadeira composição como prótons nêutrons elétrons e outras tantas subpartículas sedimentouse o conhecimento de que átomos são estruturas compostas de um núcleo prótons e nêutrons circundado por partículas elétricas os elétrons A localização destes é dificilmente estabelecida e relacionase diretamente ao nível de energia da partícula Em átomos como os metálicos observase que a instabilidade dos elétrons é ainda maior aqueles que se encontram na periferia da nuvem eletrônica deixam de pertencer a um átomo em particular sem contudo se juntar a outro Assim há um fluxo livre de elétrons por todo o metal Chegouse à conclusão também de que nos corpos em que os elétrons têm maior liberdade um número maior de capacidades ou funções pode ser visto Uma delas é a capacidade de conduzir eletricidade Esse espaço em que a energia se manifesta é chamado de campo e existe tanto nos espaços vazios entre os átomos como no interior da própria estrutura atômica O vazio assim não existe Tudo é corpo e onda matéria e campo A existência do corpo não pode ser singularmente compreendida Apenas pode ser entendida em sua relação com outro corpo que se dá por meio do campo Daí a importância do estudo das leis que regem as interações entre os corpos e afinal determinam sua essência A indagação de Goffredo então é precisamente quanto ao possível paralelo existente entre tais leis as leis determinantes das forças de equilíbrio no mundo das partículas dos corpos e aquelas que regem os corpos sociais Goffredo Telles Junior e suas circunstâncias Goffredo Telles Junior afirma que permissões e proibições são criadas pela sociedade de modo instrumental visando a servir ao indivíduo Os valores escolhidos passam a constituir a moral e a ética vigentes com vistas a satisfazer as necessidades surgidas naquele campo A cultura exerce papel fundamental nesse processo de escolha Goffredo concebe a cultura como um aperfeiçoamento uma reordenação realizada pelo homem Nascido em 16 de maio de 1915 no centro de São Paulo Goffredo Carlos da Silva Telles que posteriormente adotou o nome Goffredo da Silva Telles Junior pertenceu à Turma de 1937 da tradicional Faculdade de Direito do Largo São Francisco Antes foi soldado na Revolução Constitucionalista de São Paulo 1932 na qual serviu no Hospital de Guaratinguetá e de Taubaté Como professor ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em 1940 tendo se tornado professor titular ou catedrático como se dizia à época em 1954 na cadeira de Introdução à Ciência do Direito Lecionou até sua aposentadoria compulsória em 1985 O Conselho Universitário da USP o honrou com o título de Professor Emérito da Universidade de São Paulo Foi o primeiro chefe do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade Na política foi Deputado Federal constituinte em 1946 Deputado Federal na legislatura de 19461950 e Secretário da Educação e Cultura da Prefeitura de São Paulo em 1957 Sua Carta aos brasileiros tornouse muito conhecida na época da ditadura e representa um marco no processo de abertura democrática do país Foi lida por ele na noite de 8 de agosto de 1977 no Pátio da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo Entre suas principais obras figuram Direito quântico Ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica Iniciação na ciência do direito e Ética Do mundo da célula ao mundo dos valores Goffredo Telles Junior e suas ideias Por certo sendo o ser humano dotado de livrearbítrio aduz o jusfilósofo qualquer determinação externa dirigida à sua conduta pode ser perquirida apenas na esfera das probabilidades tal e qual a localização de um elétron nas diferentes camadas eletrônicas Assim também no tocante ao comportamento social Goffredo entende haver um campo na mesma acepção utilizada na Física Quântica que seria a esfera dentro da qual se manifesta a energia das pessoas O conjunto de atividades desempenhadas pela pessoa nos mais variados ambientes constituiria seu campo E da mesma forma observada em relação aos átomos que têm sua existência definida a partir da interação com outros átomos e partículas também os corpos sociais se definem pelo exercício de suas ações pela concretização de seu livrearbítrio de onde se conclui pela importância das escolhas éticas na vida do indivíduo eis que ao final elas lhe determinarão a essência A sociedade como campo do homem tem também o mesmo comportamento dos campos estudados pela Física Quântica Estruturas atômicas e subatômicas ao se tornarem mais complexas requerem maior coesão entre seus componentes algo também observado nas formações sociais as quais como campos são determinadas pelos indivíduos ao tempo que buscam também criar permissões e proibições relacionadas às suas condutas de modo a tornálas ao menos previsíveis Permissões e proibições são criadas pela sociedade de modo instrumental visando a servir ao indivíduo Os valores escolhidos passam a constituir a moral e a ética vigentes com vistas a satisfazer as necessidades surgidas naquele campo A cultura exerce papel fundamental nesse processo de escolha Goffredo concebe a cultura como um aperfeiçoamento uma reordenação realizada pelo homem A proposta do filósofo em suma é demonstrar ou ao menos tornar evidente a possibilidade da aproximação que as leis vigentes em determinada sociedade não passam de expressões culturais de nas suas palavras subjacentes silenciosas e perenes disposições genéticas da Mãe Natureza A essa dimensão cultural somase a histórica inerente à vida humana A história do homem diz Goffredo começou com a história do ácido nucleico Goffredo Telles Junior e sua influência no direito O Direito Quântico de acordo com o exposto seria o Direito Natural da organização do humano o Direito que exprime a realidade biótica da sociedade Direito Natural na forma como utilizada a expressão pelo jusfilósofo não corresponde a uma ordenação superior ao homem conforme tradicionalmente entendido mas ao conjunto de normas oficiais em consonância com os ditames éticos de determinada sociedade Possível pois a existência de um Direito promulgado não Natural Lourival Vilanova e o direito livre Lourival Vilanova ao tratar de Estado estabelece uma noção muito parecida com a de Hans Kelsen no que tange à determinação de uma centralização do poder para que se tenha Estado Para ele o que importa não é a existência de um único centro de poder mas de diversos centros compreendidos como estruturas de poder político que conjuguem a capacidade de oferecer uma decisão jurídica Lourival Vilanova e suas circunstâncias Lourival Vilanova se aproxima de Hans Kelsen em sua teoria sobre o Estado Analisa em sua obra Causalidade do direito o relacionamento da norma jurídica com o sujeito de direito e todas as suas conjunturas vinculantes sejam econômicas sociais ou culturais Lourival Vilanova considera que sendo o Estado jurídico pode interferir até mesmo nas relações familiares Lourival Faustino Vilanova ou simplesmente Lourival Vilanova nasceu em 1915 em Caruaru na região agreste do Estado do Pernambuco Graduouse na Universidade Federal do Pernambuco em Recife em 1942 Na mesma instituição obteve os graus de mestre e doutor e lá mesmo assumiu cátedra em Teoria Geral do Direito Teoria Geral da Constituição Teoria da Ciência Lógica e Hermenêutica Foi professor na PUCSP na Faculdade de Direito de Lisboa e na Universidade Nacional de Buenos Aires Participou da comissão instituída pelo Ministério da Educação para elaborar o currículo mínimo do Curso de Direito Foi secretário de Educação e Cultura de Pernambuco e diretor da Faculdade de Direito do Recife Também em Pernambuco Vilanova foi ProcuradorGeral do Estado e ConsultorGeral do Estado É autor de diversas obras sobre lógica e estudos filosóficos e jurídicos Seus principais livros Causalidade e relação no direito e estruturas lógicas Sistema do direito positivo e As tendências atuais do direito público Lourival Vilanova e suas ideias O Direito como ciência precisa estar apartado de influências externas políticas culturais econômicas etc para que se constitua como teoria pura É o que pensava Hans Kelsen em quem Lourival Villanova se fundamentou para as suas ideias Porém Villanova avançou em relação ao seu inspirador propondo uma relação até sociológica entre sujeito e norma jurídica uma vez que admite haver prevalência do domínio de tempo e de espaço na validade da norma jurídica Lourival Vilanova e sua influência no direito Segundo Vilanova é preciso haver um fato para que a norma jurídica se realize Portanto a norma tem efeito sobre o sujeito de direito a partir de um fato Por exemplo o nascimento é um fato que faz com que incidam sobre o sujeito o nascituro várias normas como obrigatoriedade de registro civil normas de conduta etc Além disso Vilanova recorda que o sujeito relacionase também com outros sujeitos o que pressupõe para haver harmonia social e justiça que as normas disciplinem e sancionem quando for o caso essas relações Segundo o autor jamais haverá um fato exclusivamente econômico ou exclusivamente social por exemplo A norma haverá de avaliar o relacionamento desses fatos com o ordenamento jurídico Vilanova também vinculou as normas jurídicas à norma fundamental no topo da pirâmide segundo Kelsen que de certo modo avaliza o Estado como autoridade LINHA DO TEMPO FILOSOFIA DO DIREITO CONTEMPORÂNEA NO BRASIL Ano 1941 Migel Reale formula a Teoria Tridimensional do Direito na sua tese de doutorado Ano 1974 Goffredo Telles Junior publica O direito quântico ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica Ano 1988 Tercio Sampaio Ferraz Junior publica Introdução ao estudo de direito técnica decisão e dominação em que discute direito poder e liberdade Ano 1989 Fábio Konder Comparato publica Para viver a democracia Ano 2001 Morre Lourival Vilanova Em 2003 o professor da PUCSP Paulo de Barros Carvalho reuniu seus escritos em um compêndio de dois volumes chamado Escritos Jurídicos e Filosóficos Ano 2002 Miguel Reale encerra o trabalho como integrante da comissão que elaborou o Novo Código Civil REFERÊNCIAS Livros e revistas ABBAGNANO Nicola Dicionário de filosofia Trad Alfredo Bosi São Paulo Martins Fontes 1998 ALFONSOGOLDFARB A M Da alquimia à química São Paulo Landy 2001 ARENDT Hannah A condição humana Trad Roberto Raposo 10 ed Rio de Janeiro Forense Universitária 2004 A vida do espírito o pensar o querer o julgar Trad Cesar Augusto R de Almeira Antônio Abranches e Helena Franco Martins 2 ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2010 ARISTÓTELES Dos argumentos sofísticos Trad Leonel Vallandro e Gerd Bornheim São Paulo Nova Cultural 1991 Ética a Nicômaco São Paulo Martin Claret 2002 Política São Paulo Martin Claret 2002 AUSTIN J The province of jurisprudence determined Cambridge Cambridge University Press 1995 BAIN A John Stuart Mill a criticism London Longmans 1882 BARBOZA Heloísa Helena Gomes Perspectivas do direito civil brasileiro para o próximo século Revista da Faculdade de Direito da UERJ Rio de Janeiro n 6 p 2739 BERTALANFFY Karl Ludwig von Teoria geral dos sistemas Trad Francisco M Guimarães Petrópolis Vozes 1975 BOBBIO Norberto Teoria do ordenamento jurídico 7 ed Trad Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos Brasília UnB 1996 A era dos direitos Trad Carlos Nelson Coutinho Rio de Janeiro Campus 1992 A grande dicotomia públicoprivado In Estado governo e sociedade São Paulo Paz e Terra 1987 p 1331 BRUN J Os présocráticos Rio de Janeiro Ed 70 1991 CAMPOS Fernando Arruda Tomismo hoje São Paulo Loyola 1989 CANARIS Claus Wilhelm Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito Trad A Menezes Cordeiro 3 ed Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian 2002 CARVALHO José Geraldo Vidigal de Temas filosóficos Ouro Preto UFOP 1982 CASTILHO Ricardo Direitos humanos processo histórico evolução no mundo direitos fundamentais constitucionalismo contemporâneo São Paulo Saraiva 2010 CERQUEIRA Hugo Adam Smith e o surgimento do discurso econômico Revista de Economia Política v 24 n 3 2004 CHAUÍ Marilena Convite à filosofia São Paulo Ática 2002 COELHO Fábio Ulhoa Para entender Kelsen 4 ed rev São Paulo Saraiva 2001 COMPARATO Fábio Konder Ética direito moral e religião no mundo moderno São Paulo Companhia das Letras 2006 O que é filosofia do direito Barueri Manole 2004 Para viver a democracia São Paulo Brasiliense 1989 CONNOR Steven Teoria e valor cultural São Paulo Loyola 1994 COSSIO Carlos La valoración jurídica y la ciencia del derecho Buenos Aires Arayú 1954 DALEMBERT Jean Enciclopédia ou dicionário raciocinado das ciências das artes e dos ofícios São Paulo Unesp 1989 DELEUZE Gilles Conversações Rio de Janeiro Ed 34 1992 DEL VECCHIO Giorgio Lições de filosofia do direito Trad Antônio 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filosofia do direito São Paulo Martins Fontes 2008 p 1618 Esse autor informa também que a primeira menção oficial à expressão filosofia do direito apareceu em 1800 no título do livro Aforismas sobre a filosofia dos direitos de W T Krug no original Aphorismen zur Philosophie des Rechtes 3 Lições propedêuticas de filosofia do direito São Paulo Martins Fontes 2008 p 416 1 Não confundir com o naturalismo tendência estética surgida na França na segunda metade do século XIX O naturalismo baseiase na filosofia de que somente as leis da natureza podem explicar o mundo e que o homem é condicionado inexoravelmente pelas questões biológicas e sociais As obras naturalistas retratam a realidade com extrema objetividade numa exacerbação do realismo Aplicado na Europa também nas artes plásticas e no teatro o naturalismo na literatura teve grande impacto no Brasil especialmente depois da obra Romance experimental do francês Émile Zola de 1880 o autor escreveria depois outra obra naturalista Germinal em 1885 livro em que uma frase é repetida mil vezes Se ao menos houvesse pão Aluísio de Azevedo com o livro O mulato publicado no Brasil em 1881 é considerado o precursor do naturalismo brasileiro 2 Há controvérsias acerca da autoria dos épicos Ilíada e Odisséia possivelmente criados por volta dos anos 740 a 700 aC Mas é tradição atribuílos a Homero embora existam pesquisadores que afirmem que Homero é uma figura fictícia 3 Notese que não usamos a denominação de filósofos porque a palavra filosofia seria usada pela primeira vez apenas por volta do ano 540 aC por Pitágoras 4 Posteriormente denominada pelos romanos de Justitia 5 Paideia a formação do homem grego São Paulo Martins Fontes 1995 6 M G Kury Diôgenes Laêrtios vidas e doutrinas dos filósofos ilustres Brasília UnB 1977 7 Segundo o médico José Marques Filho em artigo disponível no site do Cremesp httpwwwcremesporgbr siteAcaoRevistaid307 8 Aristóteles chamava a sofística de a arte da sabedoria aparente 9 Hervada observa que a dissociação entre o mundo do espírito e o mundo da natureza leva entre outras possibilidades à teoria dos valores relativos Visto que afirmase o natural é opaco ao espírito esse é quem projeta suas próprias formas a priori suas próprias construções sobre o ser Lições propedêuticas de filosofia do direito São Paulo Martins Fontes 2008 p 47 10 Eram os seguintes os sete sábios da Grécia antiga Brias de Priene Cleóbulo de Lindos Periandro de Corinto Pítaco de Mitilene Quílon de Esparta Sólon de Atenas e Tales de Mileto 11 Os escritos de Sêneca influenciariam mais tarde o pensamento do suíço João Calvino responsável pela reforma do protestantismo 12 O evento que marca historicamente o fim da Idade Antiga foi a deposição de Rômulo Augusto último imperador do Império Romano do Ocidente no ano de 476 dC 13 Os primeiros doutores da Igreja Católica foram Santo Agostinho Santo Ambrósio São Gregório Magno e São Jerônimo de Strídon por proclamação do papa Bonifácio VIII no ano de 1298 O papa Pio V em 1568 proclamaria outros quatro doutores da igreja todos gregos São João Crisóstomo São Basílio de Cesareia São Gregório de Nanzianzo e Santo Atanásio de Alexandria além de Santo Tomás de Aquino Em 1588 foi a vez de São Boaventura Somente mais de um século depois a Igreja retomou a nomeação de seus doutores Santo Anselmo 1720 Santo Isidoro de Sevilha 1722 São Pedro Crisólogo 1729 Papa Leão o Grande 1754 Depois de nova interrupção os papas Leão XII Pio IX e Leão XIII indicaram São Pedro Damião 1823 São Bernardo de Claraval 1830 Santo Hilário de Poitiers 1851 Santo Afonso de Ligório 1871 São Francisco de Sales 1877 em 1883 foram três São Cirilo de Alexandria São Cirilo de Jerusalém e São João Damasceno em 1899 São Beda Todos os demais foram indicados no século XX o papa Bento XV indicou Santo Efrém da Síria 1920 o papa Pio XI indicou São Pedro Canísio 1925 São João da Cruz 1926 São Roberto Belarmino e Santo Alberto Magno 1931 e Santo Antonio de Lisboa e Pádua 1946 O papa João XXIII indicou São Lourenço de Brindisi 1959 Mas foi o papa Paulo VI que elevou a primeira mulher à condição de doutora da igreja Santa Teresa DÁvila em 1970 O mesmo papa elevou no mesmo ano Santa Catarina de Siena A terceira mulher Santa Teresinha do Menino Jesus foi indicada em 1997 pelo papa João Paulo II E afinal o papa Bento XVI indicou em 2012 São João de Ávila e Santa Hildegarda de Bingen 14 Originalmente os bárbaros eram provenientes da chamada Berbéria região noroeste da África que incluía Marrocos Argélia Tunísia e Líbia atualmente a região é chamada Magrebe e a ela pertence ao Egito cujo povo porém não entrava na categoria de bárbaros para os europeus Mais tarde a denominação foi estendida para povos considerados inferiores ou primitivos porque não falavam o latim a língua geral da época não usavam dinheiro como padrão de troca nem tinham governo organizado 15 Leão I foi santificado e é hoje São Leão Sua intervenção junto a Átila salvou o Império Romano mas por pouco tempo Seus sucessores Sisto III e Santo Hilário viram os bárbaros tomarem conta da Europa Mas Roma só cairia realmente diante dos hérulos chefiados pelo rei bárbaro Odoacro que depôs o imperador Rômulo Augusto no pontificado de São Simplício 16 A tomada de Constantinopla marca o início da Idade Moderna O império turcootomano centrado em Constantinopla perduraria até a Segunda Guerra Mundial 17 Nova fase do direito moderno 2 ed 3 tir São Paulo Saraiva 2010 p 11 18 Uma das mais conhecidas vítimas da Inquisição foi precisamente um frade franciscano o italiano Giordano Bruno por defender teorias científicas principalmente astronômicas contrariamente ao que pensava a Igreja Católica Estudou astronomia contestando a teoria de Aristóteles e acreditava na infinitude do universo Foi condenado por heresia e queimado numa fogueira em 1600 19 Haveria outro cisma entre 1378 e 1417 período em que a Igreja Católica teve dois papados um em Roma e outro na França 20 A frase atribuída a Maquiavel de que o fim justifica os meios na realidade tem a seguinte redação Procure pois um príncipe vencer e manter o Estado os meios serão sempre julgados honrosos e por todos louvados porque o vulgo sempre se deixa levar pelas aparências e pelos resultados e no mundo não existe senão o vulgo os poucos não podem existir quando os muitos têm onde se apoiar Algum príncipe dos tempos atuais que não convém nomear não prega senão a paz e fé mas de uma e outra é ferrenho inimigo uma e outra se ele as tivesse praticado terlheiam por mais de uma vez tolhido a reputação ou o Estado 21 Max Weber escreveu ensaios semelhantes relacionando religião e economia em países como China e Índia 22 Aliás em latim a palavra dominicano quer dizer cães do senhor uma designação que dispensa comentários acerca de sua função principal 23 Os Estados Pontifícios existiriam até 1870 sempre protegidos por guarnições francesas Naquele ano quando deflagrou a guerra francoprussiana as tropas italianas aliadas a Otto von Bismarck primeiroministro da Prússia invadiram Roma e instalaram lá a corte do rei Vitório Emanuel II Apenas em 11 de fevereiro de 1929 com o Concílio de Latrão Mussolini e o papa Pio XI entrariam num acordo em que a Igreja reconhecia a Itália como país e o Estado italiano reconhecia a jurisdição do papa sobre a cidadeEstado do Vaticano 24 Ver adiante O contratualismo neste tópico 25 Nova fase do direito moderno São Paulo Saraiva 2010 p 95 26 CASTILHO Ricardo Direitos humanos processo histórico São Paulo Saraiva 2010 27 A doutrina do pactum subjectionis rezava que o povo confiasse no governante na esperança de que esse exercesse o governo com isonomia e justiça Estava incluído no acordo o direito de rebelião popular caso o governante violasse as regras constantes da Magna Carta de 1215 da Petition of Rights de 1628 e a Bill of Rights de 1689 28 A Bill of Rights norteamericana e mesmo a Declaração Universal dos Direitos Humanos foram alguns exemplos de documentos inspirados nesse pacto medieval Mas o grande marco do constitucionalismo no mundo foi a Declaration of Rights do Estado de Virgínia de 1776 que norteou a elaboração das Constituições das excolônias britânicas da América do Norte 29 COMPARATO Fábio Konder A afirmação histórica dos direitos humanos São Paulo Saraiva 1999 30 As ideias de John Locke e sua influência no direito serão analisadas detalhadamente mais à frente neste livro 31 A terceira fase para Miguel Reale Nova fase do direito moderno ainda está em processamento e foi inaugurada com o advento da chamada Juscibernética citando Mário Losano p 114 32 Falaremos de todos esses autores no tópico dedicado ao Racionalismo 33 Direito constitucional teoria da Constituição As Constituições do Brasil 2 ed Rio de Janeiro Forense 1981 34 Direito constitucional 2 ed Belo Horizonte Mandamentos 2002 35 A expressão democracia social foi usada pela primeira vez por Alexis de Tocqueville no livro De la démocratie en Amérique em dois volumes o primeiro em 1835 e o segundo em 1840 36 REALE Miguel Filosofia do direito São Paulo Saraiva 2002 p 647 37 O termo Rechtsstaat foi criado pelo jurista alemão Robert von Mohl que chegou a ser ministro da justiça No direito anglosaxão a doutrina correspondente é conhecida como rule of the law domínio da lei 38 Conforme pode ser constatado em COMPARATO Fabio Konder Ética direito moral e religião no mundo moderno p 328 39 COMPARATO Fábio Konder Ética direito moral e religião no mundo moderno p 307 40 In Os grandes filósofos do direito São Paulo Martins Fontes 2002 p 423 41 The Path of Law Chicago Chicago University Press 1992 p 161 42 Houve ainda uma outra vertente dessa corrente filosófica chamada materialismo energetista no início do século XX que defendia que espírito e matéria são apenas formas da energia que constituem a realidade Os principais pensadores dessa corrente foram Richard Avenarius Ernst Mach e Wilhelm Ostwald 43 Nova fase do direito moderno São Paulo Saraiva 2010 p 1112 44 MARX Karl ENGELS Friedrich Manifesto do Partido Comunista de 1848 45 In MORRIS Clarence org Os grandes filósofos do direito São Paulo Martins Fontes 2002 p 443 46 Filosofia do direito Rio de Janeiro Forense 2007 p 242 47 Publicado no jornal Folha da Manhã de 8 de agosto de 1942 48 Uma teoria da justiça Trad Almiro Pissetta e Lenita M R Esteves São Paulo Martins Fontes 1997 p 16 49 Filosofia do direito Rio de Janeiro Forense 2007 p 248268 50 Disponível em httpwwwtrt19jusbrmpminicialhtm Acesso em 26 set 2014 Revisão 1 O que é Filosofia 2 Conceito de filosofia 3 Sócrates e o Preneto 4 Sócrates maiêutica 5 Platão ironia DOXA 6 Episteme mundo das ideias 5 Aristóteles 6 Animal Político 7 Felicidade Conciato 8 Contralateralismo Obs Na prova dissertativa o discente deverá 1º Iniciar o texto com argumentos do tema proposto 2º Pode deve utilizar autores e fazer link com os demais 3º Redação a início b Fim c Linguagem técnica clara e sem uso do senso comum Marilena Chaui Convite à Filosofia Ed Ática São Paulo 2000 Convite à Filosofia 2 SUMÁRIO Introdução 01 Para que Filosofia Unidade 1 A Filosofia 02 Capitulo 1 A origem da Filosofia 03 Capítulo 2 O nascimento da Filosofia 04 Capítulo 3 Campos de investigação da Filosofia 05 Capítulo 4 Principais períodos da história da Filosofia 06 Capítulo 5 Aspectos da Filosofia contemporânea Unidade 2 A razão 07 Capítulo 1 A Razão 08 Capítulo 2 A atividade racional 09 Capítulo 3 A Razão inata ou adquirida 10 Capítulo 4 Os problemas do inatismo e do empirismo 11 Capítulo 5 A razão na Filosofia contemporânea Unidade 3 A verdade 12 Capítulo 1 Ignorância e verdade 13 Capítulo 2 Buscando a verdade 14 Capítulo 3 As concepções da verdade Unidade 4 O conhecimento 15 Capítulo 1 A preocupação com o conhecimento 16 Capítulo 2 A percepção Marilena Chauí 3 17 Capítulo 3 A memória 18 Capítulo 4 A imaginação 19 Capítulo 5 A linguagem 20 Capítulo 6 O pensamento 21 Capítulo 7 A consciência pode conhecer tudo Unidade 5 A lógica 22 Capítulo 1 O nascimento da lógica 23 Capítulo 2 Elementos de lógica 24 Capítulo 3 A lógica após Aristóteles 25 Capítulo 4 Lógica e Dialética Unidade 6 A metafísica 26 As indagações metafísicas 27 Capítulo 1 O nascimento da metafísica 28 Capítulo 2 A metafísica de Aristóteles 29 Capítulo 3 As aventuras da metafísica 30 Capítulo 4 A ontologia contemporânea Unidade 7 As ciências 31 Capítulo 1 A atitude científica 32 Capítulo 2 A ciência na História 33 Capítulo 3 As ciências da Natureza 34 Capítulo 4 As ciências humanas Convite à Filosofia 4 35 Capítulo 5 O ideal científico e a razão instrumental Unidade 8 O mundo da prática 36 Capítulo 1 A cultura 37 Capítulo 2 A experiência do sagrado e a instituição da religião 38 Capítulo 3 O universo das artes 39 Capítulo 4 A existência ética 40 Capítulo 5 A filosofia moral 41 Capítulo 6 A liberdade 42 Capítulo 7 A vida política 43 Capítulo 8 As filosofias políticas 1 44 Capítulo 9 As filosofias políticas 2 45 Capítulo 10 A política contra a servidão voluntária 46 Capítulo 11 A questão democrática Marilena Chauí 5 Introdução Para que Filosofia As evidências do cotidiano Em nossa vida cotidiana afirmamos negamos desejamos aceitamos ou recusamos coisas pessoas situações Fazemos perguntas como que horas são ou que dia é hoje Dizemos frases como ele está sonhando ou ela ficou maluca Fazemos afirmações como onde há fumaça há fogo ou não saia na chuva para não se resfriar Avaliamos coisas e pessoas dizendo por exemplo esta casa é mais bonita do que a outra e Maria está mais jovem do que Glorinha Numa disputa quando os ânimos estão exaltados um dos contendores pode gritar ao outro Mentiroso Eu estava lá e não foi isso o que aconteceu e alguém querendo acalmar a briga pode dizer Vamos ser objetivos cada um diga o que viu e vamos nos entender Também é comum ouvirmos os pais e amigos dizerem que somos muito subjetivos quando o assunto é o namorado ou a namorada Freqüentemente quando aprovamos uma pessoa o que ela diz como ela age dizemos que essa pessoa é legal Convite à Filosofia 6 Vejamos um pouco mais de perto o que dizemos em nosso cotidiano Quando pergunto que horas são ou que dia é hoje minha expectativa é a de que alguém tendo um relógio ou um calendário me dê a resposta exata Em que acredito quando faço a pergunta e aceito a resposta Acredito que o tempo existe que ele passa pode ser medido em horas e dias que o que já passou é diferente de agora e o que virá também há de ser diferente deste momento que o passado pode ser lembrado ou esquecido e o futuro desejado ou temido Assim uma simples pergunta contém silenciosamente várias crenças não questionadas por nós Quando digo ele está sonhando referindome a alguém que diz ou pensa alguma coisa que julgo impossível ou improvável tenho igualmente muitas crenças silenciosas acredito que sonhar é diferente de estar acordado que no sonho o impossível e o improvável se apresentam como possível e provável e também que o sonho se relaciona com o irreal enquanto a vigília se relaciona com o que existe realmente Acredito portanto que a realidade existe fora de mim posso percebêla e conhecêla tal como é sei diferenciar realidade de ilusão A frase ela ficou maluca contém essas mesmas crenças e mais uma a de que sabemos diferenciar razão de loucura e maluca é a pessoa que inventa uma realidade existente só para ela Assim ao acreditar que sei distinguir razão de loucura acredito também que a razão se refere a uma realidade que é a mesma para todos ainda que não gostemos das mesmas coisas Quando alguém diz onde há fumaça há fogo ou não saia na chuva para não se resfriar afirma silenciosamente muitas crenças acredita que existem relações de causa e efeito entre as coisas que onde houver uma coisa certamente houve uma causa para ela ou que essa coisa é causa de alguma outra o fogo causa a fumaça como efeito a chuva causa o resfriado como efeito Acreditamos assim que a realidade é feita de causalidades que as coisas os fatos as situações se encadeiam em relações causais que podemos conhecer e até mesmo controlar para o uso de nossa vida Quando avaliamos que uma casa é mais bonita do que a outra ou que Maria está mais jovem do que Glorinha acreditamos que as coisas as pessoas as situações os fatos podem ser comparados e avaliados julgados pela qualidade bonito feio bom ruim ou pela quantidade mais menos maior menor Julgamos assim que a qualidade e a quantidade existem que podemos conhecêlas e usálas em nossa vida Se por exemplo dissermos que o sol é maior do que o vemos também estamos acreditando que nossa percepção alcança as coisas de modos diferentes ora tais como são em si mesmas ora tais como nos aparecem dependendo da Marilena Chauí 7 distância de nossas condições de visibilidade ou da localização e do movimento dos objetos Acreditamos portanto que o espaço existe possui qualidades perto longe alto baixo e quantidades podendo ser medido comprimento largura altura No exemplo do sol também se nota que acreditamos que nossa visão pode ver as coisas diferentemente do que elas são mas nem por isso diremos que estamos sonhando ou que ficamos malucos Na briga quando alguém chama o outro de mentiroso porque não estaria dizendo os fatos exatamente como aconteceram está presente a nossa crença de que há diferença entre verdade e mentira A primeira diz as coisas tais como são enquanto a segunda faz exatamente o contrário distorcendo a realidade No entanto consideramos a mentira diferente do sonho da loucura e do erro porque o sonhador o louco e o que erra se iludem involuntariamente enquanto o mentiroso decide voluntariamente deformar a realidade e os fatos Com isso acreditamos que o erro e a mentira são falsidades mas diferentes porque somente na mentira há a decisão de falsear Ao diferenciarmos erro de mentira considerando o primeiro uma ilusão ou um engano involuntários e a segunda uma decisão voluntária manifestamos silenciosamente a crença de que somos seres dotados de vontade e que dela depende dizer a verdade ou a mentira Ao mesmo tempo porém nem sempre avaliamos a mentira como alguma coisa ruim não gostamos tanto de ler romances ver novelas assistir a filmes E não são mentira É que também acreditamos que quando alguém nos avisa que está mentindo a mentira é aceitável não seria uma mentira no duro pra valer Quando distinguimos entre verdade e mentira e distinguimos mentiras inaceitáveis de mentiras aceitáveis não estamos apenas nos referindo ao conhecimento ou desconhecimento da realidade mas também ao caráter da pessoa à sua moral Acreditamos portanto que as pessoas porque possuem vontade podem ser morais ou imorais pois cremos que a vontade é livre para o bem ou para o mal Na briga quando uma terceira pessoa pede às outras duas para que sejam objetivas ou quando falamos dos namorados como sendo muito subjetivos também estamos cheios de crenças silenciosas Acreditamos que quando alguém quer defender muito intensamente um ponto de vista uma preferência uma opinião até brigando por isso ou quando sente um grande afeto por outra pessoa esse alguém perde a objetividade ficando muito subjetivo Com isso acreditamos que a objetividade é uma atitude imparcial que alcança as coisas tais como são verdadeiramente enquanto a subjetividade é uma atitude parcial pessoal ditada por sentimentos variados amor ódio medo desejo Assim não só acreditamos que a objetividade e a subjetividade existem como Convite à Filosofia 8 ainda acreditamos que são diferentes e que a primeira não deforma a realidade enquanto a segunda voluntária ou involuntariamente a deforma Ao dizermos que alguém é legal porque tem os mesmos gostos as mesmas idéias respeita ou despreza as mesmas coisas que nós e tem atitudes hábitos e costumes muito parecidos com os nossos estamos silenciosamente acreditando que a vida com as outras pessoas família amigos escola trabalho sociedade política nos faz semelhantes ou diferentes em decorrência de normas e valores morais políticos religiosos e artísticos regras de conduta finalidades de vida Achando óbvio que todos os seres humanos seguem regras e normas de conduta possuem valores morais religiosos políticos artísticos vivem na companhia de seus semelhantes e procuram distanciarse dos diferentes dos quais discordam e com os quais entram em conflito acreditamos que somos seres sociais morais e racionais pois regras normas valores finalidades só podem ser estabelecidos por seres conscientes e dotados de raciocínio Como se pode notar nossa vida cotidiana é toda feita de crenças silenciosas da aceitação tácita de evidências que nunca questionamos porque nos parecem naturais óbvias Cremos no espaço no tempo na realidade na qualidade na quantidade na verdade na diferença entre realidade e sonho ou loucura entre verdade e mentira cremos também na objetividade e na diferença entre ela e a subjetividade na existência da vontade da liberdade do bem e do mal da moral da sociedade A atitude filosófica Imaginemos agora alguém que tomasse uma decisão muito estranha e começasse a fazer perguntas inesperadas Em vez de que horas são ou que dia é hoje perguntasse O que é o tempo Em vez de dizer está sonhando ou ficou maluca quisesse saber O que é o sonho A loucura A razão Se essa pessoa fosse substituindo sucessivamente suas perguntas suas afirmações por outras Onde há fumaça há fogo ou não saia na chuva para não ficar resfriado por O que é causa O que é efeito seja objetivo ou eles são muito subjetivos por O que é a objetividade O que é a subjetividade Esta casa é mais bonita do que a outra por O que é mais O que é menos O que é o belo Em vez de gritar mentiroso questionasse O que é a verdade O que é o falso O que é o erro O que é a mentira Quando existe verdade e por quê Quando existe ilusão e por quê Se em vez de falar na subjetividade dos namorados inquirisse O que é o amor O que é o desejo O que são os sentimentos Se em lugar de discorrer tranqüilamente sobre maior e menor ou claro e escuro resolvesse investigar O que é a quantidade O que é a qualidade Marilena Chauí 9 E se em vez de afirmar que gosta de alguém porque possui as mesmas idéias os mesmos gostos as mesmas preferências e os mesmos valores preferisse analisar O que é um valor O que é um valor moral O que é um valor artístico O que é a moral O que é a vontade O que é a liberdade Alguém que tomasse essa decisão estaria tomando distância da vida cotidiana e de si mesmo teria passado a indagar o que são as crenças e os sentimentos que alimentam silenciosamente nossa existência Ao tomar essa distância estaria interrogando a si mesmo desejando conhecer por que cremos no que cremos por que sentimos o que sentimos e o que são nossas crenças e nossos sentimentos Esse alguém estaria começando a adotar o que chamamos de atitude filosófica Assim uma primeira resposta à pergunta O que é Filosofia poderia ser A decisão de não aceitar como óbvias e evidentes as coisas as idéias os fatos as situações os valores os comportamentos de nossa existência cotidiana jamais aceitálos sem antes havêlos investigado e compreendido Perguntaram certa vez a um filósofo Para que Filosofia E ele respondeu Para não darmos nossa aceitação imediata às coisas sem maiores considerações A atitude crítica A primeira característica da atitude filosófica é negativa isto é um dizer não ao senso comum aos préconceitos aos préjuízos aos fatos e às idéias da experiência cotidiana ao que todo mundo diz e pensa ao estabelecido A segunda característica da atitude filosófica é positiva isto é uma interrogação sobre o que são as coisas as idéias os fatos as situações os comportamentos os valores nós mesmos É também uma interrogação sobre o porquê disso tudo e de nós e uma interrogação sobre como tudo isso é assim e não de outra maneira O que é Por que é Como é Essas são as indagações fundamentais da atitude filosófica A face negativa e a face positiva da atitude filosófica constituem o que chamamos de atitude crítica e pensamento crítico A Filosofia começa dizendo não às crenças e aos preconceitos do senso comum e portanto começa dizendo que não sabemos o que imaginávamos saber por isso o patrono da Filosofia o grego Sócrates afirmava que a primeira e fundamental verdade filosófica é dizer Sei que nada sei Para o discípulo de Sócrates o filósofo grego Platão a Filosofia começa com a admiração já o discípulo de Platão o filósofo Aristóteles acreditava que a Filosofia começa com o espanto Admiração e espanto significam tomamos distância do nosso mundo costumeiro através de nosso pensamento olhandoo como se nunca o tivéssemos visto antes Convite à Filosofia 10 como se não tivéssemos tido família amigos professores livros e outros meios de comunicação que nos tivessem dito o que o mundo é como se estivéssemos acabando de nascer para o mundo e para nós mesmos e precisássemos perguntar o que é por que é e como é o mundo e precisássemos perguntar também o que somos por que somos e como somos Para que Filosofia Ora muitos fazem uma outra pergunta afinal para que Filosofia É uma pergunta interessante Não vemos nem ouvimos ninguém perguntar por exemplo para que matemática ou física Para que geografia ou geologia Para que história ou sociologia Para que biologia ou psicologia Para que astronomia ou química Para que pintura literatura música ou dança Mas todo mundo acha muito natural perguntar Para que Filosofia Em geral essa pergunta costuma receber uma resposta irônica conhecida dos estudantes de Filosofia A Filosofia é uma ciência com a qual e sem a qual o mundo permanece tal e qual Ou seja a Filosofia não serve para nada Por isso se costuma chamar de filósofo alguém sempre distraído com a cabeça no mundo da lua pensando e dizendo coisas que ninguém entende e que são perfeitamente inúteis Essa pergunta Para que Filosofia tem a sua razão de ser Em nossa cultura e em nossa sociedade costumamos considerar que alguma coisa só tem o direito de existir se tiver alguma finalidade prática muito visível e de utilidade imediata Por isso ninguém pergunta para que as ciências pois todo mundo imagina ver a utilidade das ciências nos produtos da técnica isto é na aplicação científica à realidade Todo mundo também imagina ver a utilidade das artes tanto por causa da compra e venda das obras de arte quanto porque nossa cultura vê os artistas como gênios que merecem ser valorizados para o elogio da humanidade Ninguém todavia consegue ver para que serviria a Filosofia donde dizerse não serve para coisa alguma Parece porém que o senso comum não enxerga algo que os cientistas sabem muito bem As ciências pretendem ser conhecimentos verdadeiros obtidos graças a procedimentos rigorosos de pensamento pretendem agir sobre a realidade através de instrumentos e objetos técnicos pretendem fazer progressos nos conhecimentos corrigindoos e aumentandoos Ora todas essas pretensões das ciências pressupõem que elas acreditam na existência da verdade de procedimentos corretos para bem usar o pensamento na tecnologia como aplicação prática de teorias na racionalidade dos conhecimentos porque podem ser corrigidos e aperfeiçoados Marilena Chauí 11 Verdade pensamento procedimentos especiais para conhecer fatos relação entre teoria e prática correção e acúmulo de saberes tudo isso não é ciência são questões filosóficas O cientista parte delas como questões já respondidas mas é a Filosofia quem as formula e busca respostas para elas Assim o trabalho das ciências pressupõe como condição o trabalho da Filosofia mesmo que o cientista não seja filósofo No entanto como apenas os cientistas e filósofos sabem disso o senso comum continua afirmando que a Filosofia não serve para nada Para dar alguma utilidade à Filosofia muitos consideram que de fato a Filosofia não serviria para nada se servir fosse entendido como a possibilidade de fazer usos técnicos dos produtos filosóficos ou darlhes utilidade econômica obtendo lucros com eles consideram também que a Filosofia nada teria a ver com a ciência e a técnica Para quem pensa dessa forma o principal para a Filosofia não seriam os conhecimentos que ficam por conta da ciência nem as aplicações de teorias que ficam por conta da tecnologia mas o ensinamento moral ou ético A Filosofia seria a arte do bem viver Estudando as paixões e os vícios humanos a liberdade e a vontade analisando a capacidade de nossa razão para impor limites aos nossos desejos e paixões ensinandonos a viver de modo honesto e justo na companhia dos outros seres humanos a Filosofia teria como finalidade ensinar nos a virtude que é o princípio do bemviver Essa definição da Filosofia porém não nos ajuda muito De fato mesmo para ser uma arte moral ou ética ou uma arte do bemviver a Filosofia continua fazendo suas perguntas desconcertantes e embaraçosas O que é o homem O que é a vontade O que é a paixão O que é a razão O que é o vício O que é a virtude O que é a liberdade Como nos tornamos livres racionais e virtuosos Por que a liberdade e a virtude são valores para os seres humanos O que é um valor Por que avaliamos os sentimentos e as ações humanas Assim mesmo se disséssemos que o objeto da Filosofia não é o conhecimento da realidade nem o conhecimento da nossa capacidade para conhecer mesmo se disséssemos que o objeto da Filosofia é apenas a vida moral ou ética ainda assim o estilo filosófico e a atitude filosófica permaneceriam os mesmos pois as perguntas filosóficas o que por que e como permanecem Atitude filosófica indagar Se portanto deixarmos de lado por enquanto os objetos com os quais a Filosofia se ocupa veremos que a atitude filosófica possui algumas características que são as mesmas independentemente do conteúdo investigado Essas características são perguntar o que a coisa ou o valor ou a idéia é A Filosofia pergunta qual é a realidade ou natureza e qual é a significação de alguma coisa não importa qual Convite à Filosofia 12 perguntar como a coisa a idéia ou o valor é A Filosofia indaga qual é a estrutura e quais são as relações que constituem uma coisa uma idéia ou um valor perguntar por que a coisa a idéia ou o valor existe e é como é A Filosofia pergunta pela origem ou pela causa de uma coisa de uma idéia de um valor A atitude filosófica iniciase dirigindo essas indagações ao mundo que nos rodeia e às relações que mantemos com ele Pouco a pouco porém descobre que essas questões se referem afinal à nossa capacidade de conhecer à nossa capacidade de pensar Por isso pouco a pouco as perguntas da Filosofia se dirigem ao próprio pensamento o que é pensar como é pensar por que há o pensar A Filosofia tornase então o pensamento interrogandose a si mesmo Por ser uma volta que o pensamento realiza sobre si mesmo a Filosofia se realiza como reflexão A reflexão filosófica Reflexão significa movimento de volta sobre si mesmo ou movimento de retorno a si mesmo A reflexão é o movimento pelo qual o pensamento voltase para si mesmo interrogando a si mesmo A reflexão filosófica é radical porque é um movimento de volta do pensamento sobre si mesmo para conhecerse a si mesmo para indagar como é possível o próprio pensamento Não somos porém somente seres pensantes Somos também seres que agem no mundo que se relacionam com os outros seres humanos com os animais as plantas as coisas os fatos e acontecimentos e exprimimos essas relações tanto por meio da linguagem quanto por meio de gestos e ações A reflexão filosófica também se volta para essas relações que mantemos com a realidade circundante para o que dizemos e para as ações que realizamos nessas relações A reflexão filosófica organizase em torno de três grandes conjuntos de perguntas ou questões 1 Por que pensamos o que pensamos dizemos o que dizemos e fazemos o que fazemos Isto é quais os motivos as razões e as causas para pensarmos o que pensamos dizermos o que dizemos fazermos o que fazemos 2 O que queremos pensar quando pensamos o que queremos dizer quando falamos o que queremos fazer quando agimos Isto é qual é o conteúdo ou o sentido do que pensamos dizemos ou fazemos 3 Para que pensamos o que pensamos dizemos o que dizemos fazemos o que fazemos Isto é qual é a intenção ou a finalidade do que pensamos dizemos e fazemos Marilena Chauí 13 Essas três questões podem ser resumidas em O que é pensar falar e agir E elas pressupõem a seguinte pergunta Nossas crenças cotidianas são ou não um saber verdadeiro um conhecimento Como vimos a atitude filosófica iniciase indagando O que é Como é Por que é dirigindose ao mundo que nos rodeia e aos seres humanos que nele vivem e com ele se relacionam São perguntas sobre a essência a significação ou a estrutura e a origem de todas as coisas Já a reflexão filosófica indaga Por quê O quê Para quê dirigindose ao pensamento aos seres humanos no ato da reflexão São perguntas sobre a capacidade e a finalidade humanas para conhecer e agir Filosofia um pensamento sistemático Essas indagações fundamentais não se realizam ao acaso segundo preferências e opiniões de cada um de nós A Filosofia não é um eu acho que ou um eu gosto de Não é pesquisa de opinião à maneira dos meios de comunicação de massa Não é pesquisa de mercado para conhecer preferências dos consumidores e montar uma propaganda As indagações filosóficas se realizam de modo sistemático Que significa isso Significa que a Filosofia trabalha com enunciados precisos e rigorosos busca encadeamentos lógicos entre os enunciados opera com conceitos ou idéias obtidos por procedimentos de demonstração e prova exige a fundamentação racional do que é enunciado e pensado Somente assim a reflexão filosófica pode fazer com que nossa experiência cotidiana nossas crenças e opiniões alcancem uma visão crítica de si mesmas Não se trata de dizer eu acho que mas de poder afirmar eu penso que O conhecimento filosófico é um trabalho intelectual É sistemático porque não se contenta em obter respostas para as questões colocadas mas exige que as próprias questões sejam válidas e em segundo lugar que as respostas sejam verdadeiras estejam relacionadas entre si esclareçam umas às outras formem conjuntos coerentes de idéias e significações sejam provadas e demonstradas racionalmente Quando o senso comum diz esta é minha filosofia ou isso é a filosofia de fulana ou de fulano enganase e não se engana Enganase porque imagina que para ter uma filosofia basta alguém possuir um conjunto de idéias mais ou menos coerentes sobre todas as coisas e pessoas bem como ter um conjunto de princípios mais ou menos coerentes para julgar as coisas e as pessoas Minha filosofia ou a filosofia de fulano ficam no plano de um eu acho coerente Convite à Filosofia 14 Mas o senso comum não se engana ao usar essas expressões porque percebe ainda que muito confusamente que há uma característica nas idéias e nos princípios que nos leva a dizer que são uma filosofia a coerência as relações entre as idéias e entre os princípios Ou seja o senso comum pressente que a Filosofia opera sistematicamente com coerência e lógica que a Filosofia tem uma vocação para formar um todo daquilo que aparece de modo fragmentado em nossa experiência cotidiana Em busca de uma definição da Filosofia Quando começamos a estudar Filosofia somos logo levados a buscar o que ela é Nossa primeira surpresa surge ao descobrirmos que não há apenas uma definição da Filosofia mas várias A segunda surpresa vem ao percebermos que além de várias as definições parecem contradizerse Eis porque muitos cheios de perplexidade indagam afinal o que é a Filosofia que sequer consegue dizer o que ela é Uma primeira aproximação nos mostra pelo menos quatro definições gerais do que seria a Filosofia 1 Visão de mundo de um povo de uma civilização ou de uma cultura Filosofia corresponde de modo vago e geral ao conjunto de idéias valores e práticas pelos quais uma sociedade apreende e compreende o mundo e a si mesma definindo para si o tempo e o espaço o sagrado e o profano o bom e o mau o justo e o injusto o belo e o feio o verdadeiro e o falso o possível e o impossível o contingente e o necessário Qual o problema dessa definição Ela é tão genérica e tão ampla que não permite por exemplo distinguir a Filosofia e religião Filosofia e arte Filosofia e ciência Na verdade essa definição identifica Filosofia e Cultura pois esta é uma visão de mundo coletiva que se exprime em idéias valores e práticas de uma sociedade A definição portanto não consegue acercarse da especificidade do trabalho filosófico e por isso não podemos aceitála 2 Sabedoria de vida Aqui a Filosofia é identificada com a definição e a ação de algumas pessoas que pensam sobre a vida moral dedicandose à contemplação do mundo para aprender com ele a controlar e dirigir suas vidas de modo ético e sábio A Filosofia seria uma contemplação do mundo e dos homens para nos conduzir a uma vida justa sábia e feliz ensinandonos o domínio sobre nós mesmos sobre nossos impulsos desejos e paixões É nesse sentido que se fala por exemplo numa filosofia do budismo Esta definição porém nos diz de modo vago o que se espera da Filosofia a sabedoria interior mas não o que é e o que faz a Filosofia e por isso também não podemos aceitála Marilena Chauí 15 3 Esforço racional para conceber o Universo como uma totalidade ordenada e dotada de sentido Nesse caso começase distinguindo entre Filosofia e religião e até mesmo opondo uma à outra pois ambas possuem o mesmo objeto compreender o Universo mas a primeira o faz através do esforço racional enquanto a segunda por confiança fé numa revelação divina Ou seja a Filosofia procura discutir até o fim o sentido e o fundamento da realidade enquanto a consciência religiosa se baseia num dado primeiro e inquestionável que é a revelação divina indemonstrável Pela fé a religião aceita princípios indemonstráveis e até mesmo aqueles que podem ser considerados irracionais pelo pensamento enquanto a Filosofia não admite indemonstrabilidade e irracionalidade Pelo contrário a consciência filosófica procura explicar e compreender o que parece ser irracional e inquestionável No entanto esta definição também é problemática porque dá à Filosofia a tarefa de oferecer uma explicação e uma compreensão totais sobre o Universo elaborando um sistema universal ou um sistema do mundo mas sabemos hoje que essa tarefa é impossível Há pelo menos duas limitações principais a esta pretensão totalizadora em primeiro lugar porque a explicação sobre a realidade também é oferecida pelas ciências e pelas artes cada uma das quais definindo um aspecto e um campo da realidade para estudo no caso das ciências e para a expressão no caso das artes já não sendo pensável uma única disciplina que pudesse abranger sozinha a totalidade dos conhecimentos em segundo lugar porque a própria Filosofia já não admite que seja possível um sistema de pensamento único que ofereça uma única explicação para o todo da realidade Por isso esta definição também não pode ser aceita 4 Fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e das práticas A Filosofia cada vez mais ocupase com as condições e os princípios do conhecimento que pretenda ser racional e verdadeiro com a origem a forma e o conteúdo dos valores éticos políticos artísticos e culturais com a compreensão das causas e das formas da ilusão e do preconceito no plano individual e coletivo com as transformações históricas dos conceitos das idéias e dos valores A Filosofia voltase também para o estudo da consciência em suas várias modalidades percepção imaginação memória linguagem inteligência experiência reflexão comportamento vontade desejo e paixões procurando descrever as formas e os conteúdos dessas modalidades de relação entre o ser humano e o mundo do ser humano consigo mesmo e com os outros Finalmente a Filosofia visa ao estudo e à interpretação de idéias ou significações gerais como realidade mundo natureza cultura história subjetividade objetividade diferença repetição semelhança conflito contradição mudança etc Convite à Filosofia 16 Sem abandonar as questões sobre a essência da realidade a Filosofia procura diferenciarse das ciências e das artes dirigindo a investigação sobre o mundo natural e o mundo histórico ou humano num momento muito preciso quando perdemos nossas certezas cotidianas e quando as ciências e as artes ainda não ofereceram outras certezas para substituir as que perdemos Em outras palavras a Filosofia se interessa por aquele instante em que a realidade natural o mundo das coisas e a histórica o mundo dos homens tornamse estranhas espantosas incompreensíveis e enigmáticas quando o senso comum já não sabe o que pensar e dizer e as ciências e as artes ainda não sabem o que pensar e dizer Esta última descrição da atividade filosófica capta a Filosofia como análise das condições da ciência da religião da arte da moral como reflexão isto é volta da consciência para si mesma para conhecerse enquanto capacidade para o conhecimento o sentimento e a ação e como crítica das ilusões e dos preconceitos individuais e coletivos das teorias e práticas científicas políticas e artísticas essas três atividades análise reflexão e crítica estando orientadas pela elaboração filosófica de significações gerais sobre a realidade e os seres humanos Além de análise reflexão e crítica a Filosofia é a busca do fundamento e do sentido da realidade em suas múltiplas formas indagando o que são qual sua permanência e qual a necessidade interna que as transforma em outras O que é o ser e o aparecerdesaparecer dos seres A Filosofia não é ciência é uma reflexão crítica sobre os procedimentos e conceitos científicos Não é religião é uma reflexão crítica sobre as origens e formas das crenças religiosas Não é arte é uma interpretação crítica dos conteúdos das formas das significações das obras de arte e do trabalho artístico Não é sociologia nem psicologia mas a interpretação e avaliação crítica dos conceitos e métodos da sociologia e da psicologia Não é política mas interpretação compreensão e reflexão sobre a origem a natureza e as formas do poder Não é história mas interpretação do sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo e compreensão do que seja o próprio tempo Conhecimento do conhecimento e da ação humanos conhecimento da transformação temporal dos princípios do saber e do agir conhecimento da mudança das formas do real ou dos seres a Filosofia sabe que está na História e que possui uma história Inútil Útil O primeiro ensinamento filosófico é perguntar O que é o útil Para que e para quem algo é útil O que é o inútil Por que e para quem algo é inútil O senso comum de nossa sociedade considera útil o que dá prestígio poder fama e riqueza Julga o útil pelos resultados visíveis das coisas e das ações identificando utilidade e a famosa expressão levar vantagem em tudo Desse ponto de vista a Filosofia é inteiramente inútil e defende o direito de ser inútil Marilena Chauí 17 Não poderíamos porém definir o útil de outra maneira Platão definia a Filosofia como um saber verdadeiro que deve ser usado em benefício dos seres humanos Descartes dizia que a Filosofia é o estudo da sabedoria conhecimento perfeito de todas as coisas que os humanos podem alcançar para o uso da vida a conservação da saúde e a invenção das técnicas e das artes Kant afirmou que a Filosofia é o conhecimento que a razão adquire de si mesma para saber o que pode conhecer e o que pode fazer tendo como finalidade a felicidade humana Marx declarou que a Filosofia havia passado muito tempo apenas contemplando o mundo e que se tratava agora de conhecêlo para transformálo transformação que traria justiça abundância e felicidade para todos MerleauPonty escreveu que a Filosofia é um despertar para ver e mudar nosso mundo Espinosa afirmou que a Filosofia é um caminho árduo e difícil mas que pode ser percorrido por todos se desejarem a liberdade e a felicidade Qual seria então a utilidade da Filosofia Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil se não se deixar guiar pela submissão às idéias dominantes e aos poderes estabelecidos for útil se buscar compreender a significação do mundo da cultura da história for útil se conhecer o sentido das criações humanas nas artes nas ciências e na política for útil se dar a cada um de nós e à nossa sociedade os meios para serem conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a liberdade e a felicidade para todos for útil então podemos dizer que a Filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos são capazes Convite à Filosofia 18 Unidade 1 A Filosofia Marilena Chauí 19 Capítulo 1 A origem da Filosofia A palavra filosofia A palavra filosofia é grega É composta por duas outras philo e sophia Philo derivase de philia que significa amizade amor fraterno respeito entre os iguais Sophia quer dizer sabedoria e dela vem a palavra sophos sábio Filosofia significa portanto amizade pela sabedoria amor e respeito pelo saber Filósofo o que ama a sabedoria tem amizade pelo saber deseja saber Assim filosofia indica um estado de espírito o da pessoa que ama isto é deseja o conhecimento o estima o procura e o respeita Atribuise ao filósofo grego Pitágoras de Samos que viveu no século V antes de Cristo a invenção da palavra filosofia Pitágoras teria afirmado que a sabedoria plena e completa pertence aos deuses mas que os homens podem desejála ou amála tornandose filósofos Dizia Pitágoras que três tipos de pessoas compareciam aos jogos olímpicos a festa mais importante da Grécia as que iam para comerciar durante os jogos ali estando apenas para servir aos seus próprios interesses e sem preocupação com as disputas e os torneios as que iam para competir isto é os atletas e artistas pois durante os jogos também havia competições artísticas dança poesia música teatro e as que iam para contemplar os jogos e torneios para avaliar o desempenho e julgar o valor dos que ali se apresentavam Esse terceiro tipo de pessoa dizia Pitágoras é como o filósofo Com isso Pitágoras queria dizer que o filósofo não é movido por interesses comerciais não coloca o saber como propriedade sua como uma coisa para ser comprada e vendida no mercado também não é movido pelo desejo de competir não faz das idéias e dos conhecimentos uma habilidade para vencer competidores ou atletas intelectuais mas é movido pelo desejo de observar contemplar julgar e avaliar as coisas as ações a vida em resumo pelo desejo de Convite à Filosofia 20 saber A verdade não pertence a ninguém ela é o que buscamos e que está diante de nós para ser contemplada e vista se tivermos olhos do espírito para vêla A Filosofia é grega A Filosofia entendida como aspiração ao conhecimento racional lógico e sistemático da realidade natural e humana da origem e causas do mundo e de suas transformações da origem e causas das ações humanas e do próprio pensamento é um fato tipicamente grego Evidentemente isso não quer dizer de modo algum que outros povos tão antigos quanto os gregos como os chineses os hindus os japoneses os árabes os persas os hebreus os africanos ou os índios da América não possuam sabedoria pois possuíam e possuem Também não quer dizer que todos esses povos não tivessem desenvolvido o pensamento e formas de conhecimento da Natureza e dos seres humanos pois desenvolveram e desenvolvem Quando se diz que a Filosofia é um fato grego o que se quer dizer é que ela possui certas características apresenta certas formas de pensar e de exprimir os pensamentos estabelece certas concepções sobre o que sejam a realidade o pensamento a ação as técnicas que são completamente diferentes das características desenvolvidas por outros povos e outras culturas Vejamos um exemplo Os chineses desenvolveram um pensamento muito profundo sobre a existência de coisas seres e ações contrários ou opostos que formam a realidade Deram às oposições o nome de dois princípios Yin e Yang Yin é o princípio feminino passivo na Natureza representado pela escuridão o frio e a umidade Yang é o princípio masculino ativo na Natureza representado pela luz o calor e o seco Os dois princípios se combinam e formam todas as coisas que por isso são feitas de contrários ou de oposições O mundo portanto é feito da atividade masculina e da passividade feminina Tomemos agora um filósofo grego por exemplo o próprio Pitágoras Que diz ele Que a Natureza é feita de um sistema de relações ou de proporções matemáticas produzidas a partir da unidade o número 1 e o ponto da oposição entre os números pares e ímpares e da combinação entre as superfícies e os volumes as figuras geométricas de tal modo que essas proporções e combinações aparecem para nossos órgãos dos sentidos sob a forma de qualidades contrárias quentefrio secoúmido ásperoliso claroescuro grande pequeno doceamargo duromole etc Para Pitágoras o pensamento alcança a realidade em sua estrutura matemática enquanto nossos sentidos ou nossa percepção alcançam o modo como a estrutura matemática da Natureza aparece para nós isto é sob a forma de qualidades opostas Qual a diferença entre o pensamento chinês e o do filósofo grego O pensamento chinês toma duas características masculino e feminino existentes em alguns seres os animais e os humanos e considera que o Universo inteiro é Marilena Chauí 21 feito da oposição entre qualidades atribuídas a dois sexos diferentes de sorte que o mundo é organizado pelo princípio da sexualidade animal ou humana O pensamento de Pitágoras apanha a Natureza numa generalidade muito mais ampla do que a sexualidade própria a alguns seres da Natureza e faz distinção entre as qualidades sensoriais que nos aparecem e a estrutura invisível da Natureza que para ele é de tipo matemático e alcançada apenas pelo intelecto ou inteligência São diferenças desse tipo além de muitas outras que nos levam a dizer que existe uma sabedoria chinesa uma sabedoria hindu uma sabedoria dos índios mas não há filosofia chinesa filosofia hindu ou filosofia indígena Em outras palavras Filosofia é um modo de pensar e exprimir os pensamentos que surgiu especificamente com os gregos e que por razões históricas e políticas tornouse depois o modo de pensar e de se exprimir predominante da chamada cultura européia ocidental da qual em decorrência da colonização portuguesa do Brasil nós também participamos Através da Filosofia os gregos instituíram para o Ocidente europeu as bases e os princípios fundamentais do que chamamos razão racionalidade ciência ética política técnica arte Aliás basta observarmos que palavras como lógica técnica ética política monarquia anarquia democracia física diálogo biologia cronologia gênese genealogia cirurgia ortopedia pedagogia farmácia entre muitas outras são palavras gregas para percebermos a influência decisiva e predominante da Filosofia grega sobre a formação do pensamento e das instituições das sociedades européias ocidentais É por isso que em decorrência do predomínio da economia capitalista criada pelo Ocidente e que impõe um certo tipo de desenvolvimento das ciências e das técnicas falamos por exemplo em ocidentalização dos chineses ocidentalização dos árabes etc Com isso queremos significar que modos de pensar e de agir criados no Ocidente pela Filosofia grega foram incorporados até mesmo por culturas e sociedades muito diferentes daquela onde nasceu a Filosofia É pelo mesmo motivo que falamos em orientalismos e orientalistas para indicar pessoas que buscam no budismo no confucionismo no Yin e no Yang nos mantras nas pirâmides nas auras nas pedras e cristais maneiras de pensar e de explicar a realidade a Natureza a vida e as ações humanas que não são próprias ou específicas do Ocidente isto é são diferentes do padrão de pensamento e de explicação que foram criados pelos gregos a partir do século VII antes de Cristo época em que nasce a Filosofia Convite à Filosofia 22 O legado da Filosofia grega para o Ocidente europeu Por causa da colonização européia das Américas nós também fazemos parte ainda que de modo inferiorizado e colonizado do Ocidente europeu e assim também somos herdeiros do legado que a Filosofia grega deixou para o pensamento ocidental europeu Desse legado podemos destacar como principais contribuições as seguintes A idéia de que a Natureza opera obedecendo a leis e princípios necessários e universais isto é os mesmos em toda a parte e em todos os tempos Assim por exemplo graças aos gregos no século XVII da nossa era o filósofo inglês Isaac Newton estabeleceu a lei da gravitação universal de todos os corpos da Natureza A lei da gravitação afirma que todo corpo quando sofre a ação de um outro produz uma reação igual e contrária que pode ser calculada usando como elementos do cálculo a massa do corpo afetado a velocidade e o tempo com que a ação e a reação se deram Essa lei é necessária isto é nenhum corpo do Universo escapa dela e pode funcionar de outra maneira que não desta e esta lei é universal isto é válida para todos os corpos em todos os tempos e lugares Um outro exemplo as leis geométricas do triângulo ou do círculo conforme demonstraram os filósofos gregos são universais e necessárias isto é seja em Tóquio em 1993 em Copenhague em 1970 em Lisboa em 1810 em São Paulo em 1792 em Moçambique em 1661 ou em Nova York em 1975 as leis do triângulo ou do círculo são necessariamente as mesmas A idéia de que as leis necessárias e universais da Natureza podem ser plenamente conhecidas pelo nosso pensamento isto é não são conhecimentos misteriosos e secretos que precisariam ser revelados por divindades mas são conhecimentos que o pensamento humano por sua própria força e capacidade pode alcançar A idéia de que nosso pensamento também opera obedecendo a leis regras e normas universais e necessárias segundo as quais podemos distinguir o verdadeiro do falso Em outras palavras a idéia de que o nosso pensamento é lógico ou segue leis lógicas de funcionamento Nosso pensamento diferencia uma afirmação de uma negação porque na afirmação atribuímos alguma coisa a outra coisa quando afirmamos que Sócrates é um ser humano atribuímos humanidade a Sócrates e na negação retiramos alguma coisa de outra quando dizemos este caderno não é verde estamos retirando do caderno a cor verde Nosso pensamento distingue quando uma afirmação é verdadeira ou falsa Se alguém apresentar o seguinte raciocínio Todos os homens são mortais Sócrates é homem Logo Sócrates é mortal diremos que a afirmação Sócrates é mortal Marilena Chauí 23 é verdadeira porque foi concluída de outras afirmações que já sabemos serem verdadeiras A idéia de que as práticas humanas isto é a ação moral a política as técnicas e as artes dependem da vontade livre da deliberação e da discussão da nossa escolha passional ou emocional ou racional de nossas preferências segundo certos valores e padrões que foram estabelecidos pelos próprios seres humanos e não por imposições misteriosas e incompreensíveis que lhes teriam sido feitas por forças secretas invisíveis sejam elas divinas ou naturais e impossíveis de serem conhecidas A idéia de que os acontecimentos naturais e humanos são necessários porque obedecem a leis naturais ou da natureza humana mas também podem ser contingentes ou acidentais quando dependem das escolhas e deliberações dos homens em condições determinadas Dessa forma uma pedra cai porque seu peso por uma lei natural exige que ela caia natural e necessariamente um ser humano anda porque as leis anatômicas e fisiológicas que regem o seu corpo fazem com que ele tenha os meios necessários para a locomoção No entanto se uma pedra ao cair atingir a cabeça de um passante esse acontecimento é contingente ou acidental Por quê Porque se o passante não estivesse andando por ali naquela hora a pedra não o atingiria Assim a queda da pedra é necessária e o andar de um ser humano é necessário mas que uma pedra caia sobre minha cabeça quando ando é inteiramente contingente ou acidental Todavia é muito diferente a situação das ações humanas É verdade que é por uma necessidade natural ou por uma lei da Natureza que ando Mas é por deliberação voluntária que ando para ir à escola em vez de andar para ir ao cinema por exemplo É verdade que é por uma lei necessária da Natureza que os corpos pesados caem mas é por uma deliberação humana e por uma escolha voluntária que fabrico uma bomba a coloco num avião e a faço despencar sobre Hiroshima Um dos legados mais importantes da Filosofia grega é portanto essa diferença entre o necessário e o contingente pois ela nos permite evitar o fatalismo tudo é necessário temos que nos conformar e nos resignar mas também evitar a ilusão de que podemos tudo quanto quisermos se alguma força extranatural ou sobrenatural nos ajudar pois a Natureza segue leis necessárias que podemos conhecer e nem tudo é possível por mais que o queiramos A idéia de que os seres humanos por Natureza aspiram ao conhecimento verdadeiro à felicidade à justiça isto é que os seres humanos não vivem nem agem cegamente mas criam valores pelo quais dão sentido às suas vidas e às suas ações Convite à Filosofia 24 A Filosofia surge portanto quando alguns gregos admirados e espantados com a realidade insatisfeitos com as explicações que a tradição lhes dera começaram a fazer perguntas e buscar respostas para elas demonstrando que o mundo e os seres humanos os acontecimentos e as coisas da Natureza os acontecimentos e as ações humanas podem ser conhecidos pela razão humana e que a própria razão é capaz de conhecerse a si mesma Em suma a Filosofia surge quando se descobriu que a verdade do mundo e dos humanos não era algo secreto e misterioso que precisasse ser revelado por divindades a alguns escolhidos mas que ao contrário podia ser conhecida por todos através da razão que é a mesma em todos quando se descobriu que tal conhecimento depende do uso correto da razão ou do pensamento e que além da verdade poder ser conhecida por todos podia pelo mesmo motivo ser ensinada ou transmitida a todos Marilena Chauí 25 Capítulo 2 O nascimento da Filosofia Ouvindo a voz dos poetas Escutemos por um instante a voz dos poetas porque ela costuma exprimir o que chamamos de sentimento do mundo o sentimento da velhice e da juventude perene do mundo da grandeza e da pequeneza dos humanos ou dos mortais Assim o poeta grego Arquíloco escreveu E não te esqueças meu coração que as coisas humanas apenas mudanças incertas são Outro poeta grego Teógnis cantando sobre a brevidade da vida dizia Choremos a juventude e a velhice também pois a primeira foge e a segunda sempre vem Também o poeta grego Píndaro falava do sentimento das coisas humanas como passageiras A glória dos mortais num só dia cresce Mas basta um só dia contrário e funesto para que o destino impiedoso num gesto a lance por terra e ela súbito fenece Mas não só a vida e os feitos dos humanos são breves e frágeis Os poetas também exprimem o sentimento de que o mundo é tecido por mudanças e repetições intermináveis A esse respeito a poetisa brasileira Orides Fontela escreveu O vento a chuva o sol o frio Tudo vai e vem tudo vem e vai E o poeta brasileiro Carlos Drummond por sua vez lamentou Como a vida muda Como a vida é muda Como a vida é nuda Como a vida é nada Como a vida é tudo Como a vida é senha Convite à Filosofia 26 de outra vida nova Como a vida é vida ainda quando morte Como a vida é forte em suas algemas Como a vida é bela Como a vida vale mais que a própria vida sempre renascida O sentimento de renovação e beleza do mundo da vida dos seres humanos é o que transparece nos versos do poeta brasileiro Mário Quintana nos seguintes versos Quando abro a cada manhã a janela do meu quarto É como se abrisse o mesmo livro Numa página nova E por isso em outros versos seus lemos O encanto sobrenatural que há nas coisas da Natureza se nela algo te dá encanto ou medo não me digas que seja feia ou má é acaso singular Numa das obras poéticas mais importantes da cultura do Ocidente europeu as Metamorfoses o poeta romano Ovídio exprimiu todos esses sentimentos que experimentamos diante da mudança da renovação e da repetição do nascimento e da morte das coisas e dos seres humanos Na parte final de sua obra lemos Não há coisa alguma que persista em todo o Universo Tudo flui e tudo só apresenta uma imagem passageira O próprio tempo passa com um movimento contínuo como um rio O que foi antes já não é o que não tinha sido é e todo instante é uma coisa nova Vês a noite próxima do fim caminhar para o dia e à claridade do dia suceder a escuridão da noite Não vês as estações do ano se sucederem imitando as idades de nossa vida Com efeito a primavera quando surge é semelhante à Marilena Chauí 27 criança nova A planta nova pouco vigorosa rebenta em brotos e enche de esperança o agricultor Tudo floresce O fértil campo resplandece com o colorido das flores mas ainda falta vigor às folhas Entra então a quadra mais forte e vigorosa o verão é a robusta mocidade fecunda e ardente Chega por sua vez o outono passou o fervor da mocidade é a quadra da maturidade o meiotermo entre o jovem e o velho as têmporas embranquecem Vem depois o tristonho inverno é o velho trôpego cujos cabelos ou caíram como as folhas das árvores ou os que restaram estão brancos como a neve dos caminhos Também nossos corpos mudam sempre e sem descanso E também a Natureza não descansa e renovadora encontra outras formas nas formas das coisas Nada morre no vasto mundo mas tudo assume aspectos novos e variados Todos os seres têm sua origem noutros seres Existe uma ave a que os fenícios dão o nome de fênix Não se alimenta de grãos ou ervas mas das lágrimas do incenso e do suco da amônia Quando completa cinco séculos de vida constrói um ninho no alto de uma grande palmeira feito de folhas de canela do aromático nardo e da mirra avermelhada Ali se acomoda e termina a vida entre perfumes De suas cinzas renasce uma pequena fênix que viverá outros cinco séculos Assim também é a Natureza e tudo o que nela existe e persiste O que perguntavam os primeiros filósofos Por que os seres nascem e morrem Por que os semelhantes dão origem aos semelhantes de uma árvore nasce outra árvore de um cão nasce outro cão de uma mulher nasce uma criança Por que os diferentes também parecem fazer surgir os diferentes o dia parece fazer nascer a noite o inverno parece fazer surgir a primavera um objeto escuro clareia com o passar do tempo um objeto claro escurece com o passar do tempo Por que tudo muda A criança se torna adulta amadurece envelhece e desaparece A paisagem cheia de flores na primavera vai perdendo o verde e as cores no outono até ressecarse e retorcerse no inverno Por que um dia luminoso e ensolarado de céu azul e brisa suave repentinamente se torna sombrio coberto de nuvens varrido por ventos furiosos tomado pela tempestade pelos raios e trovões Por que a doença invade os corpos roubalhes a cor a força Por que o alimento que antes me agradava agora que estou doente me causa repugnância Por que o som da música que antes me embalava agora que estou doente parece um ruído insuportável Por que o que parecia uno se multiplica em tantos outros De uma só árvore quantas flores e quantos frutos nascem De uma só gata quantos gatinhos nascem Convite à Filosofia 28 Por que as coisas se tornam opostas ao que eram A água do copo tão transparente e de boa temperatura tornase uma barra dura e gelada deixa de ser líquida e transparente para tornarse sólida e acinzentada O dia que começa frio e gelado pouco a pouco se torna quente e cheio de calor Por que nada permanece idêntico a si mesmo De onde vêm os seres Para onde vão quando desaparecem Por que se transformam Por que se diferenciam uns dos outros Mas também por que tudo parece repetirse Depois do dia a noite depois da noite o dia Depois do inverno a primavera depois da primavera o verão depois deste o outono e depois deste novamente o inverno De dia o sol à noite a lua e as estrelas Na primavera o mar é tranqüilo e propício à navegação no inverno tempestuoso e inimigo dos homens O calor leva as águas para o céu e as traz de volta pelas chuvas Ninguém nasce adulto ou velho mas sempre criança que se torna adulto e velho Foram perguntas como essas que os primeiros filósofos fizeram e para elas buscaram respostas Sem dúvida a religião as tradições e os mitos explicavam todas essas coisas mas suas explicações já não satisfaziam aos que interrogavam sobre as causas da mudança da permanência da repetição da desaparição e do ressurgimento de todos os seres Haviam perdido força explicativa não convenciam nem satisfaziam a quem desejava conhecer a verdade sobre o mundo O nascimento da Filosofia Os historiadores da Filosofia dizem que ela possui data e local de nascimento final do século VII e início do século VI antes de Cristo nas colônias gregas da Ásia Menor particularmente as que formavam uma região denominada Jônia na cidade de Mileto E o primeiro filósofo foi Tales de Mileto Além de possuir data e local de nascimento e de possuir seu primeiro autor a Filosofia também possui um conteúdo preciso ao nascer é uma cosmologia A palavra cosmologia é composta de duas outras cosmos que significa mundo ordenado e organizado e logia que vem da palavra logos que significa pensamento racional discurso racional conhecimento Assim a Filosofia nasce como conhecimento racional da ordem do mundo ou da Natureza donde cosmologia Apesar da segurança desses dados existe um problema que durante séculos vem ocupando os historiadores da Filosofia o de saber se a Filosofia que é um fato especificamente grego nasceu por si mesma ou dependeu de contribuições da sabedoria oriental egípcios assírios persas caldeus babilônios e da sabedoria de civilizações que antecederam à grega na região que antes de ser a Grécia ou a Hélade abrigara as civilizações de Creta Minos Tirento e Micenas Durante muito tempo considerouse que a Filosofia nascera por transformações que os gregos operaram na sabedoria oriental egípcia persa caldéia e Marilena Chauí 29 babilônica Assim filósofos como Platão e Aristóteles afirmavam a origem oriental da Filosofia Os gregos diziam eles povo comerciante e navegante descobriram através das viagens a agrimensura dos egípcios usada para medir as terras após as cheias do Nilo a astrologia dos caldeus e dos babilônios usada para prever grandes guerras subida e queda de reis catástrofes como peste fome furacões as genealogias dos persas usadas para dar continuidade às linhagens e dinastias dos governantes os mistérios religiosos orientais referentes aos rituais de purificação da alma para livrála da reencarnação contínua e garantirlhe o descanso eterno etc A Filosofia teria nascido pelas transformações que os gregos impuseram a esses conhecimentos Dessa forma da agrimensura os gregos fizeram nascer duas ciências a aritmética e a geometria da astrologia fizeram surgir também duas ciências a astronomia e a meteorologia das genealogias fizeram surgir mais uma outra ciência a história dos mistérios religiosos de purificação da alma fizeram surgir as teorias filosóficas sobre a natureza e o destino da alma humana Todos esses conhecimentos teriam propiciado o aparecimento da Filosofia isto é da cosmologia de sorte que a Filosofia só teria podido nascer graças as saber oriental Essa idéia de uma filiação oriental da Filosofia foi muito defendida oito séculos depois de seu nascimento durante os séculos II e III depois de Cristo no período do Império Romano Quem a defendia Os pensadores judaicos como Filo de Alexandria e os Padres da Igreja como Eusébio de Cesaréia e Clemente de Alexandria Por que defendiam a origem oriental da Filosofia grega Pelo seguinte motivo a Filosofia grega tornarase em toda a Antigüidade clássica e para os poderosos da época os romanos a forma superior ou mais elevada do pensamento e da moral Os judeus para valorizar seu pensamento desejavam que a Filosofia tivesse uma origem oriental dizendo que o pensamento de filósofos importantes como Platão tinha surgido no Egito onde se originara o pensamento de Moisés de modo que havia uma ligação entre a Filosofia grega e a Bíblia Os Padres da Igreja por sua vez queriam mostrar que os ensinamentos de Jesus eram elevados e perfeitos não eram superstição nem primitivos e incultos e por isso mostravam que os filósofos gregos estavam filiados a correntes de pensamento místico e oriental e dessa maneira estariam próximos do cristianismo que é uma religião oriental No entanto nem todos aceitaram a tese chamada orientalista e muitos sobretudo no século XIX da nossa era passaram a falar na Filosofia como sendo o milagre grego Com a palavra milagre queriam dizer várias coisas Convite à Filosofia 30 que a Filosofia surgiu inesperada e espantosamente na Grécia sem que nada anterior a preparasse que a Filosofia grega foi um acontecimento espontâneo único e sem par como é próprio de um milagre que os gregos foram um povo excepcional sem nenhum outro semelhante a eles nem antes e nem depois deles e por isso somente eles poderiam ter sido capazes de criar a Filosofia como foram os únicos a criar as ciências e a dar às artes uma elevação que nenhum outro povo conseguiu nem antes e nem depois deles Nem oriental nem milagre Desde o final do século XIX da nossa era e durante o século XX estudos históricos arqueológicos lingüísticos literários e artísticos corrigiram os exageros das duas teses isto é tanto a redução da Filosofia à sua origem oriental quanto o milagre grego Retirados os exageros do orientalismo percebese que de fato a Filosofia tem dívidas com a sabedoria dos orientais não só porque as viagens colocaram os gregos em contato com os conhecimentos produzidos por outros povos sobretudo os egípcios persas babilônios assírios e caldeus mas também porque os dois maiores formadores da cultura grega antiga os poetas Homero e Hesíodo encontraram nos mitos e nas religiões dos povos orientais bem como nas culturas que precederam a grega os elementos para elaborar a mitologia grega que depois seria transformada racionalmente pelos filósofos Assim os estudos recentes mostraram que mitos cultos religiosos instrumentos musicais dança música poesia utensílios domésticos e de trabalho formas de habitação formas de parentesco e formas de organização tribal dos gregos foram resultado de contatos profundos com as culturas mais avançadas do Oriente e com a herança deixada pelas culturas que antecederam a grega nas regiões onde ela se implantou Esses mesmos estudos apontaram porém que se nos afastarmos dos exageros da idéia de um milagre grego podemos perceber o que havia de verdadeiro nessa tese De fato os gregos imprimiram mudanças de qualidade tão profundas no que receberam do Oriente e das culturas precedentes que até pareceria terem criado sua própria cultura a partir de si mesmos Dessas mudanças podemos mencionar quatro que nos darão uma idéia da originalidade grega 1 Com relação aos mitos quando comparamos os mitos orientais cretenses micênicos minóicos e os que aparecem nos poetas Homero e Hesíodo vemos que eles retiraram os aspectos apavorantes e monstruosos dos deuses e do início do mundo humanizaram os deuses divinizaram os homens deram racionalidade a narrativas sobre as origens das coisas dos homens das instituições humanas como o trabalho as leis a moral Marilena Chauí 31 2 Com relação aos conhecimentos os gregos transformaram em ciência isto é num conhecimento racional abstrato e universal aquilo que eram elementos de uma sabedoria prática para o uso direto na vida Assim transformaram em matemática aritmética geometria harmonia o que eram expedientes práticos para medir contar e calcular transformaram em astronomia conhecimento racional da natureza e do movimento dos astros aquilo que eram práticas de adivinhação e previsão do futuro transformaram em medicina conhecimento racional sobre o corpo humano a saúde e a doença aquilo que eram práticas de grupos religiosos secretos para a cura misteriosa das doenças E assim por diante 3 Com relação à organização social e política os gregos não inventaram apenas a ciência ou a Filosofia mas inventaram também a política Todas as sociedades anteriores a eles conheciam e praticavam a autoridade e o governo Mas por que não inventaram a política propriamente dita Nas sociedades orientais e nãogregas o poder e o governo eram exercidos como autoridade absoluta da vontade pessoal e arbitrária de um só homem ou de um pequeno grupo de homens que decidiam sobre tudo sem consultar a ninguém e sem justificar suas decisões para ninguém Os gregos inventaram a política palavra que vem de polis que em grego significa cidade organizada por leis e instituições porque instituíram práticas pelas quais as decisões eram tomadas a partir de discussões e debates públicos e eram adotadas ou revogadas por voto em assembléias públicas porque estabeleceram instituições públicas tribunais assembléias separação entre autoridade do chefe da família e autoridade pública entre autoridade político militar e autoridade religiosa e sobretudo porque criaram a idéia da lei e da justiça como expressões da vontade coletiva pública e não como imposição da vontade de um só ou de um grupo em nome de divindades Os gregos criaram a política porque separaram o poder político e duas outras formas tradicionais de autoridade a do chefe de família e a do sacerdote ou mago 4 Com relação ao pensamento diante da herança recebida os gregos inventaram a idéia ocidental da razão como um pensamento sistemático que segue regras normas e leis de valor universal isto é válidas em todos os tempos e lugares Assim por exemplo em qualquer tempo e lugar 2 2 serão sempre 4 o triângulo sempre terá três lados o Sol sempre será maior do que a Terra mesmo que ele pareça menor do que ela etc Mito e Filosofia Resolvido esse problema agora temos um outro que também tem ocupado muito os estudiosos O novo problema pode ser assim formulado a Filosofia nasceu Convite à Filosofia 32 realizando uma transformação gradual sobre os mitos gregos ou nasceu por uma ruptura radical com os mitos O que é um mito Um mito é uma narrativa sobre a origem de alguma coisa origem dos astros da Terra dos homens das plantas dos animais do fogo da água dos ventos do bem e do mal da saúde e da doença da morte dos instrumentos de trabalho das raças das guerras do poder etc A palavra mito vem do grego mythos e deriva de dois verbos do verbo mytheyo contar narrar falar alguma coisa para outros e do verbo mytheo conversar contar anunciar nomear designar Para os gregos mito é um discurso pronunciado ou proferido para ouvintes que recebem como verdadeira a narrativa porque confiam naquele que narra é uma narrativa feita em público baseada portanto na autoridade e confiabilidade da pessoa do narrador E essa autoridade vem do fato de que ele ou testemunhou diretamente o que está narrando ou recebeu a narrativa de quem testemunhou os acontecimentos narrados Quem narra o mito O poetarapsodo Quem é ele Por que tem autoridade Acreditase que o poeta é um escolhido dos deuses que lhe mostram os acontecimentos passados e permitem que ele veja a origem de todos os seres e de todas as coisas para que possa transmitila aos ouvintes Sua palavra o mito é sagrada porque vem de uma revelação divina O mito é pois incontestável e inquestionável Como o mito narra a origem do mundo e de tudo o que nele existe De três maneiras principais 1 Encontrando o pai e a mãe das coisas e dos seres isto é tudo o que existe decorre de relações sexuais entre forças divinas pessoais Essas relações geram os demais deuses os titãs seres semihumanos e semidivinos os heróis filhos de um deus com uma humana ou de uma deusa com um humano os humanos os metais as plantas os animais as qualidades como quentefrio secoúmido claroescuro bommau justoinjusto belofeio certoerrado etc A narração da origem é assim uma genealogia isto é narrativa da geração dos seres das coisas das qualidades por outros seres que são seus pais ou antepassados Tomemos um exemplo da narrativa mítica Observando que as pessoas apaixonadas estão sempre cheias de ansiedade e de plenitude inventam mil expedientes para estar com a pessoa amada ou para seduzila e também serem amadas o mito narra a origem do amor isto é o nascimento do deus Eros que conhecemos mais com o nome de Cupido Marilena Chauí 33 Houve uma grande festa entre os deuses To dos foram convidados menos a deusa Penúria sempre miserável e faminta Quando a festa acabou Penúria veio comeu os restos e dormiu com o deus Poros o astuto engenhoso Dessa relação sexual nasceu Eros ou Cupido que como sua mãe está sempre faminto sedento e miserável mas como seu pai tem mil astúcias para se satisfazer e se fazer amado Por isso quando Eros fere alguém com sua flecha esse alguém se apaixona e logo se sente faminto e sedento de amor inventa astúcias para ser amado e satisfeito ficando ora maltrapilho e semimorto ora rico e cheio de vida 2 Encontrando uma rivalidade ou uma aliança entre os deuses que faz surgir alguma coisa no mundo Nesse caso o mito narra ou uma guerra entre as forças divinas ou uma aliança entre elas para provocar alguma coisa no mundo dos homens O poeta Homero na Ilíada que narra a guerra de Tróia explica por que em certas batalhas os troianos eram vitoriosos e em outras a vitória cabia aos gregos Os deuses estavam divididos alguns a favor de um lado e outros a favor do outro A cada vez o rei dos deuses Zeus ficava com um dos partidos aliava se com um grupo e fazia um dos lados ou os troianos ou os gregos vencer uma batalha A causa da guerra aliás foi uma rivalidade entre as deusas Elas apareceram em sonho para o príncipe troiano Paris oferecendo a ele seus dons e ele escolheu a deusa do amor Afrodite As outras deusas enciumadas o fizeram raptar a grega Helena mulher do general grego Menelau e isso deu início à guerra entre os humanos 3 Encontrando as recompensas ou castigos que os deuses dão a quem os desobedece ou a quem os obedece Como o mito narra por exemplo o uso do fogo pelos homens Para os homens o fogo é essencial pois com ele se diferenciam dos animais porque tanto passam a cozinhar os alimentos a iluminar caminhos na noite a se aquecer no inverno quanto podem fabricar instrumentos de metal para o trabalho e para a guerra Um titã Prometeu mais amigo dos homens do que dos deuses roubou uma centelha de fogo e a trouxe de presente para os humanos Prometeu foi castigado amarrado num rochedo para que as aves de rapina eternamente devorassem seu fígado e os homens também Qual foi o castigo dos homens Os deuses fizeram uma mulher encantadora Pandora a quem foi entregue uma caixa que conteria coisas maravilhosas mas nunca deveria ser aberta Pandora foi enviada aos humanos e cheia de curiosidade e querendo dar a eles as maravilhas abriu a caixa Dela saíram todas as desgraças doenças pestes guerras e sobretudo a morte Explicase assim a origem dos males no mundo Vemos portanto que o mito narra a origem das coisas por meio de lutas alianças e relações sexuais entre forças sobrenaturais que governam o mundo e o destino Convite à Filosofia 34 dos homens Como os mitos sobre a origem do mundo são genealogias dizse que são cosmogonias e teogonias A palavra gonia vem de duas palavras gregas do verbo gennao engendrar gerar fazer nascer e crescer e do substantivo genos nascimento gênese descendência gênero espécie Gonia portanto quer dizer geração nascimento a partir da concepção sexual e do parto Cosmos como já vimos quer dizer mundo ordenado e organizado Assim a cosmogonia é a narrativa sobre o nascimento e a organização do mundo a partir de forças geradoras pai e mãe divinas Teogonia é uma palavra composta de gonia e theós que em grego significa as coisas divinas os seres divinos os deuses A teogonia é portanto a narrativa da origem dos deuses a partir de seus pais e antepassados Qual é a pergunta dos estudiosos É a seguinte A Filosofia ao nascer é como já dissemos uma cosmologia uma explicação racional sobre a origem do mundo e sobre as causas das transformações e repetições das coisas para isso ela nasce de uma transformação gradual dos mitos ou de uma ruptura radical com os mitos Continua ou rompe com a cosmogonia e a teogonia Duas foram as respostas dadas A primeira delas foi dada nos fins do século XIX e começo do século XX quando reinava um grande otimismo sobre os poderes científicos e capacidades técnicas do homem Diziase então que a Filosofia nasceu por uma ruptura radical com os mitos sendo a primeira explicação científica da realidade produzida pelo Ocidente A segunda resposta foi dada a partir de meados do século XX quando os estudos dos antropólogos e dos historiadores mostraram a importância dos mitos na organização social e cultural das sociedades e como os mitos estão profundamente entranhados nos modos de pensar e de sentir de uma sociedade Por isso diziase que os gregos como qualquer outro povo acreditavam em seus mitos e que a Filosofia nasceu vagarosa e gradualmente do interior dos próprios mitos como uma racionalização deles Atualmente consideramse as duas respostas exageradas e afirmase que a Filosofia percebendo as contradições e limitações dos mitos foi reformulando e racionalizando as narrativas míticas transformandoas numa outra coisa numa explicação inteiramente nova e diferente Quais são as diferenças entre Filosofia e mito Podemos apontar três como as mais importantes 1 O mito pretendia narrar como as coisas eram ou tinham sido no passado imemorial longínquo e fabuloso voltandose para o que era antes que tudo existisse tal como existe no presente A Filosofia ao contrário se preocupa em Marilena Chauí 35 explicar como e por que no passado no presente e no futuro isto é na totalidade do tempo as coisas são como são 2 O mito narrava a origem através de genealogias e rivalidades ou alianças entre forças divinas sobrenaturais e personalizadas enquanto a Filosofia ao contrário explica a produção natural das coisas por elementos e causas naturais e impessoais O mito falava em Urano Ponto e Gaia a Filosofia fala em céu mar e terra O mito narra a origem dos seres celestes os astros terrestres plantas animais homens e marinhos pelos casamentos de Gaia com Urano e Ponto A Filosofia explica o surgimento desses seres por composição combinação e separação dos quatro elementos úmido seco quente e frio ou água terra fogo e ar 3 O mito não se importava com contradições com o fabuloso e o incompreensível não só porque esses eram traços próprios da narrativa mítica como também porque a confiança e a crença no mito vinham da autoridade religiosa do narrador A Filosofia ao contrário não admite contradições fabulação e coisas incompreensíveis mas exige que a explicação seja coerente lógica e racional além disso a autoridade da explicação não vem da pessoa do filósofo mas da razão que é a mesma em todos os seres humanos Condições históricas para o surgimento da Filosofia Resolvido esse problema temos ainda um último a solucionar O que tornou possível o surgimento da Filosofia na Grécia no final do século VII e no início do século VI antes de Cristo Quais as condições materiais isto é econômicas sociais políticas e históricas que permitiram o surgimento da Filosofia Podemos apontar como principais condições históricas para o surgimento da Filosofia na Grécia as viagens marítimas que permitiram aos gregos descobrir que os locais que os mitos diziam habitados por deuses titãs e heróis eram na verdade habitados por outros seres humanos e que as regiões dos mares que os mitos diziam habitados por monstros e seres fabulosos não possuíam nem monstros nem seres fabulosos As viagens produziram o desencantamento ou a desmistificação do mundo que passou assim a exigir uma explicação sobre sua origem explicação que o mito já não podia oferecer a invenção do calendário que é uma forma de calcular o tempo segundo as estações do ano as horas do dia os fatos importantes que se repetem revelando com isso uma capacidade de abstração nova ou uma percepção do tempo como algo natural e não como um poder divino incompreensível a invenção da moeda que permitiu uma forma de troca que não se realiza através das coisas concretas ou dos objetos concretos trocados por semelhança mas uma troca abstrata uma troca feita pelo cálculo do valor semelhante das Convite à Filosofia 36 coisas diferentes revelando portanto uma nova capacidade de abstração e de generalização o surgimento da vida urbana com predomínio do comércio e do artesanato dando desenvolvimento a técnicas de fabricação e de troca e diminuindo o prestígio das famílias da aristocracia proprietária de terras por quem e para quem os mitos foram criados além disso o surgimento de uma classe de comerciantes ricos que precisava encontrar pontos de poder e de prestígio para suplantar o velho poderio da aristocracia de terras e de sangue as linhagens constituídas pelas famílias fez com que se procurasse o prestígio pelo patrocínio e estímulo às artes às técnicas e aos conhecimentos favorecendo um ambiente onde a Filosofia poderia surgir a invenção da escrita alfabética que como a do calendário e a da moeda revela o crescimento da capacidade de abstração e de generalização uma vez que a escrita alfabética ou fonética diferentemente de outras escritas como por exemplo os hieróglifos dos egípcios ou os ideogramas dos chineses supõe que não se represente uma imagem da coisa que está sendo dita mas a idéia dela o que dela se pensa e se transcreve a invenção da política que introduz três aspectos novos e decisivos para o nascimento da Filosofia 1 A idéia da lei como expressão da vontade de uma coletividade humana que decide por si mesma o que é melhor para si e como ela definirá suas relações internas O aspecto legislado e regulado da cidade da polis servirá de modelo para a Filosofia propor o aspecto legislado regulado e ordenado do mundo como um mundo racional 2 O surgimento de um espaço público que faz aparecer um novo tipo de palavra ou de discurso diferente daquele que era proferido pelo mito Neste um poeta vidente que recebia das deusas ligadas à memória a deusa Mnemosyne mãe das Musas que guiavam o poeta uma iluminação misteriosa ou uma revelação sobrenatural dizia aos homens quais eram as decisões dos deuses que eles deveriam obedecer Agora com a polis isto é a cidade política surge a palavra como direito de cada cidadão de emitir em público sua opinião discutila com os outros persuadilos a tomar uma decisão proposta por ele de tal modo que surge o discurso político como a palavra humana compartilhada como diálogo discussão e deliberação humana isto é como decisão racional e exposição dos motivos ou das razões para fazer ou não fazer alguma coisa A política valorizando o humano o pensamento a discussão a persuasão e a decisão racional valorizou o pensamento racional e criou condições para que surgisse o discurso ou a palavra filosófica Marilena Chauí 37 3 A política estimula um pensamento e um discurso que não procuram ser formulados por seitas secretas dos iniciados em mistérios sagrados mas que procuram ao contrário ser públicos ensinados transmitidos comunicados e discutidos A idéia de um pensamento que todos podem compreender e discutir que todos podem comunicar e transmitir é fundamental para a Filosofia Principais características da Filosofia nascente O pensamento filosófico em seu nascimento tinha como traços principais tendência à racionalidade isto é a razão e somente a razão com seus princípios e regras é o critério da explicação de alguma coisa tendência a oferecer respostas conclusivas para os problemas isto é colocado um problema sua solução é submetida à análise à crítica à discussão e à demonstração nunca sendo aceita como uma verdade se não for provado racionalmente que é verdadeira exigência de que o pensamento apresente suas regras de funcionamento isto é o filósofo é aquele que justifica suas idéias provando que segue regras universais do pensamento Para os gregos é uma lei universal do pensamento que a contradição indica erro ou falsidade Uma contradição acontece quando afirmo e nego a mesma coisa sobre uma mesma coisa por exemplo Pedro é um menino e não um menino A noite é escura e clara O infinito não tem limites e é limitado Assim quando uma contradição aparecer numa exposição filosófica ela deve ser considerada falsa recusa de explicações preestabelecidas e portanto exigência de que para cada problema seja investigada e encontrada a solução própria exigida por ele tendência à generalização isto é mostrar que uma explicação tem validade para muitas coisas diferentes porque sob a variação percebida pelos órgãos de nossos sentidos o pensamento descobre semelhanças e identidades Por exemplo para meus olhos meu tato e meu olfato o gelo é diferente da neblina que é diferente do vapor de uma chaleira que é diferente da chuva que é diferente da correnteza de um rio No entanto o pensamento mostra que se trata sempre de um mesmo elemento a água passando por diferentes estados e formas líquido sólido gasoso por causas naturais diferentes condensação liquefação evaporação Reunindo semelhanças o pensamento conclui que se trata de uma mesma coisa que aparece para nossos sentidos de maneiras diferentes e como se fossem coisas diferentes O pensamento generaliza porque abstrai isto é separa e reúne os traços semelhantes ou seja realiza uma síntese E o contrário também ocorre Muitas vezes nossos órgãos dos sentidos nos fazem perceber coisas diferentes como se fossem a mesma coisa e o pensamento demonstrará que se trata de uma coisa diferente sob a aparência da semelhança Convite à Filosofia 38 No ano de 1992 no Brasil os jovens estudantes pintaram a cara com as cores da bandeira nacional e saíram às ruas para exigir o impedimento do presidente da República Logo depois os candidatos a prefeituras municipais contrataram jovens para aparecer na televisão com a cara pintada defendendo tais candidaturas A seguir as Forças Armadas brasileiras para persuadir jovens a servilas contrataram jovens caraspintadas para aparecer como soldados marinheiros e aviadores Ao mesmo tempo várias empresas pretendendo vender seus produtos aos jovens contrataram artistas jovens para de cara pintada fazer a propaganda de seus produtos Aparentemente teríamos sempre a mesma coisa os jovens rebeldes e conscientes de cara pintada símbolo da esperança do País No entanto o pensamento pode mostrar que sob a aparência da semelhança percebida estão diferenças pois os primeiros caraspintadas fizeram um movimento político espontâneo os segundos fizeram propaganda política para um candidato e receberam para isso os terceiros tentaram ajudar as Forças Armadas a aparecer como divertidas e juvenis e os últimos mediante remuneração estavam transferindo para produtos industriais roupas calçados vídeos margarinas discos iogurtes um símbolo político inteiramente despolitizado e sem nenhuma relação com sua origem Separando as diferenças o pensamento realiza nesse caso uma análise Marilena Chauí 39 Capítulo 3 Campos de investigação da Filosofia Os períodos da Filosofia grega A Filosofia terá no correr dos séculos um conjunto de preocupações indagações e interesses que lhe vieram de seu nascimento na Grécia Assim antes de vermos que campos são esses examinemos brevemente os conteúdos que a Filosofia possuía na Grécia Para isso devemos primeiro conhecer os períodos principais da Filosofia grega pois tais períodos definiram os campos da investigação filosófica na Antigüidade A história da Grécia costuma ser dividida pelos historiadores em quatro grandes fases ou épocas 1 a da Grécia homérica correspondente aos 400 anos narrados pelo poeta Homero em seus dois grandes poemas Ilíada e Odisséia 2 a da Grécia arcaica ou dos sete sábios do século VII ao século V antes de Cristo quando os gregos criam cidades como Atenas Esparta Tebas Megara Samos etc e predomina a economia urbana baseada no artesanato e no comércio 3 a da Grécia clássica nos séculos V e IV antes de Cristo quando a democracia se desenvolve a vida intelectual e artística entra no apogeu e Atenas domina a Grécia com seu império comercial e militar 4 e finalmente a época helenística a partir do final do século IV antes de Cristo quando a Grécia passa para o poderio do império de Alexandre da Macedônia e depois para as mãos do Império Romano terminando a história de sua existência independente Os períodos da Filosofia não correspondem exatamente a essas épocas já que ela não existe na Grécia homérica e só aparece nos meados da Grécia arcaica Entretanto o apogeu da Filosofia acontece durante o apogeu da cultura e da sociedade gregas portanto durante a Grécia clássica Os quatro grandes períodos da Filosofia grega nos quais seu conteúdo muda e se enriquece são 1 Período présocrático ou cosmológico do final do século VII ao final do século V aC quando a Filosofia se ocupa fundamentalmente com a origem do mundo e as causas das transformações na Natureza Convite à Filosofia 40 2 Período socrático ou antropológico do final do século V e todo o século IV aC quando a Filosofia investiga as questões humanas isto é a ética a política e as técnicas em grego ântropos quer dizer homem por isso o período recebeu o nome de antropológico 3 Período sistemático do final do século IV ao final do século III aC quando a Filosofia busca reunir e sistematizar tudo quanto foi pensado sobre a cosmologia e a antropologia interessandose sobretudo em mostrar que tudo pode ser objeto do conhecimento filosófico desde que as leis do pensamento e de suas demonstrações estejam firmemente estabelecidas para oferecer os critérios da verdade e da ciência 4 Período helenístico ou grecoromano do final do século III aC até o século VI depois de Cristo Nesse longo período que já alcança Roma e o pensamento dos primeiros Padres da Igreja a Filosofia se ocupa sobretudo com as questões da ética do conhecimento humano e das relações entre o homem e a Natureza e de ambos com Deus Filosofia Grega Podese perceber que os dois primeiros períodos da Filosofia grega têm como referência o filósofo Sócrates de Atenas donde a divisão em Filosofia pré socrática e socrática Período présocrático ou cosmológico Os principais filósofos présocráticos foram filósofos da Escola Jônica Tales de Mileto Anaxímenes de Mileto Anaximandro de Mileto e Heráclito de Éfeso filósofos da Escola Itálica Pitágoras de Samos Filolau de Crotona e Árquitas de Tarento filósofos da Escola Eleata Parmênides de Eléia e Zenão de Eléia filósofos da Escola da Pluralidade Empédocles de Agrigento Anaxágoras de Clazômena Leucipo de Abdera e Demócrito de Abdera As principais características da cosmologia são É uma explicação racional e sistemática sobre a origem ordem e transformação da Natureza da qual os seres humanos fazem parte de modo que ao explicar a Natureza a Filosofia também explica a origem e as mudanças dos seres humanos Afirma que não existe criação do mundo isto é nega que o mundo tenha surgido do nada como é o caso por exemplo na religião judaicocristã na qual Deus cria o mundo do nada Por isso diz Nada vem do nada e nada volta ao nada Isto significa a que o mundo ou a Natureza é eterno b que no mundo ou na Natureza tudo se transforma em outra coisa sem jamais desaparecer Marilena Chauí 41 embora a forma particular que uma coisa possua desapareça com ela mas não sua matéria O fundo eterno perene imortal de onde tudo nasce e para onde tudo volta é invisível para os olhos do corpo e visível somente para o olho do espírito isto é para o pensamento O fundo eterno perene imortal e imperecível de onde tudo brota e para onde tudo retorna é o elemento primordial da Natureza e chamase physis em grego physis vem de um verbo que significa fazer surgir fazer brotar fazer nascer produzir A physis é a Natureza eterna e em perene transformação Afirma que embora a physis o elemento primordial eterno seja imperecível ela dá origem a todos os seres infinitamente variados e diferentes do mundo seres que ao contrário do princípio gerador são perecíveis ou mortais Afirma que todos os seres além de serem gerados e de serem mortais são seres em contínua transformação mudando de qualidade por exemplo o branco amarelece acinzenta enegrece o negro acinzenta embranquece o novo envelhece o quente esfria o frio esquenta o seco fica úmido o úmido seca o dia se torna noite a noite se torna dia a primavera cede lugar ao verão que cede lugar ao outono que cede lugar ao inverno o saudável adoece o doente se cura a criança cresce a árvore vem da semente e produz sementes etc e mudando de quantidade o pequeno cresce e fica grande o grande diminui e fica pequeno o longe fica perto se eu for até ele ou se as coisas distantes chegarem até mim um rio aumenta de volume na cheia e diminui na seca etc Portanto o mundo está em mudança contínua sem por isso perder sua forma sua ordem e sua estabilidade A mudança nascer morrer mudar de qualidade ou de quantidade chamase movimento e o mundo está em movimento permanente O movimento do mundo chamase devir e o devir segue leis rigorosas que o pensamento conhece Essas leis são as que mostram que toda mudança é passagem de um estado ao seu contrário dianoite claroescuro quentefrio secoúmido novovelho pequenogrande bommau cheiovazio ummuitos etc e também no sentido inverso noitedia escuroclaro frioquente muitos um etc O devir é portanto a passagem contínua de uma coisa ao seu estado contrário e essa passagem não é caótica mas obedece a leis determinadas pela physis ou pelo princípio fundamental do mundo Os diferentes filósofos escolheram diferentes physis isto é cada filósofo encontrou motivos e razões para dizer qual era o princípio eterno e imutável que está na origem da Natureza e de suas transformações Assim Tales dizia que o princípio era a água ou o úmido Anaximandro considerava que era o ilimitado sem qualidades definidas Anaxímenes que era o ar ou o frio Heráclito afirmou Convite à Filosofia 42 que era o fogo Leucipo e Demócrito disseram que eram os átomos E assim por diante Período socrático ou antropológico Com o desenvolvimento das cidades do comércio do artesanato e das artes militares Atenas tornouse o centro da vida social política e cultural da Grécia vivendo seu período de esplendor conhecido como o Século de Péricles É a época de maior florescimento da democracia A democracia grega possuía entre outras duas características de grande importância para o futuro da Filosofia Em primeiro lugar a democracia afirmava a igualdade de todos os homens adultos perante as leis e o direito de todos de participar diretamente do governo da cidade da polis Em segundo lugar e como conseqüência a democracia sendo direta e não por eleição de representantes garantia a todos a participação no governo e os que dele participavam tinham o direito de exprimir discutir e defender em público suas opiniões sobre as decisões que a cidade deveria tomar Surgia assim a figura política do cidadão Nota Devemos observar que estavam excluídos da cidadania o que os gregos chamavam de dependentes mulheres escravos crianças e velhos Também estavam excluídos os estrangeiros Ora para conseguir que a sua opinião fosse aceita nas assembléias o cidadão precisava saber falar e ser capaz de persuadir Com isso uma mudança profunda vai ocorrer na educação grega Quando não havia democracia mas dominavam as famílias aristocráticas senhoras das terras o poder lhes pertencia Essas famílias valendose dos dois grandes poetas gregos Homero e Hesíodo criaram um padrão de educação próprio dos aristocratas Esse padrão afirmava que o homem ideal ou perfeito era o guerreiro belo e bom Belo seu corpo era formado pela ginástica pela dança e pelos jogos de guerra imitando os heróis da guerra de Tróia Aquiles Heitor Ájax Ulisses Bom seu espírito era formado escutando Homero e Hesíodo aprendendo as virtudes admiradas pelos deuses e praticadas pelos heróis a principal delas sendo a coragem diante da morte na guerra A virtude era a Arete excelência e superioridade própria dos melhores os aristoi Quando porém a democracia se instala e o poder vai sendo retirado dos aristocratas esse ideal educativo ou pedagógico também vai sendo substituído por outro O ideal da educação do Século de Péricles é a formação do cidadão A Arete é a virtude cívica Ora qual é o momento em que o cidadão mais aparece e mais exerce sua cidadania Quando opina discute delibera e vota nas assembléias Assim a nova educação estabelece como padrão ideal a formação do bom orador isto é aquele que saiba falar em público e persuadir os outros na política Marilena Chauí 43 Para dar aos jovens essa educação substituindo a educação antiga dos poetas surgiram na Grécia os sofistas que são os primeiros filósofos do período socrático Os sofistas mais importantes foram Protágoras de Abdera Górgias de Leontini e Isócrates de Atenas Que diziam e faziam os sofistas Diziam que os ensinamentos dos filósofos cosmologistas estavam repletos de erros e contradições e que não tinham utilidade para a vida da polis Apresentavamse como mestres de oratória ou de retórica afirmando ser possível ensinar aos jovens tal arte para que fossem bons cidadãos Que arte era esta A arte da persuasão Os sofistas ensinavam técnicas de persuasão para os jovens que aprendiam a defender a posição ou opinião A depois a posição ou opinião contrária nãoA de modo que numa assembléia soubessem ter fortes argumentos a favor ou contra uma opinião e ganhassem a discussão O filósofo Sócrates considerado o patrono da Filosofia rebelouse contra os sofistas dizendo que não eram filósofos pois não tinham amor pela sabedoria nem respeito pela verdade defendendo qualquer idéia se isso fosse vantajoso Corrompiam o espírito dos jovens pois faziam o erro e a mentira valer tanto quanto a verdade Como homem de seu tempo Sócrates concordava com os sofistas em um ponto por um lado a educação antiga do guerreiro belo e bom já não atendia às exigências da sociedade grega e por outro lado os filósofos cosmologistas defendiam idéias tão contrárias entre si que também não eram uma fonte segura para o conhecimento verdadeiro Nota Historicamente há dificuldade para conhecer o pensamento dos grandes sofistas porque não possuímos seus textos Restaram fragmentos apenas Por isso nós os conhecemos pelo que deles disseram seus adversários Platão Xenofonte Aristóteles e não temos como saber se estes foram justos com aqueles Os historiadores mais recentes consideram os sofistas verdadeiros representantes do espírito democrático isto é da pluralidade conflituosa de opiniões e interesses enquanto seus adversários seriam partidários de uma política aristocrática na qual somente algumas opiniões e interesses teriam o direito para valer para o restante da sociedade Discordando dos antigos poetas dos antigos filósofos e dos sofistas o que propunha Sócrates Propunha que antes de querer conhecer a Natureza e antes de querer persuadir os outros cada um deveria primeiro e antes de tudo conhecerse a si mesmo A expressão conhecete a ti mesmo que estava gravada no pórtico do templo de Apolo patrono grego da sabedoria tornouse a divisa de Sócrates Por fazer do autoconhecimento ou do conhecimento que os homens têm de si mesmos a condição de todos os outros conhecimentos verdadeiros é que se diz Convite à Filosofia 44 que o período socrático é antropológico isto é voltado para o conhecimento do homem particularmente de seu espírito e de sua capacidade para conhecer a verdade O retrato que a história da Filosofia possui de Sócrates foi traçado por seu mais importante aluno e discípulo o filósofo ateniense Platão Que retrato Platão nos deixa de seu mestre Sócrates O de um homem que andava pelas ruas e praças de Atenas pelo mercado e pela assembléia indagando a cada um Você sabe o que é isso que você está dizendo Você sabe o que é isso em que você acredita Você acha que está conhecendo realmente aquilo em que acredita aquilo em que está pensando aquilo que está dizendo Você diz falava Sócrates que a coragem é importante mas o que é a coragem Você acredita que a justiça é importante mas o que é a justiça Você diz que ama as coisas e as pessoas belas mas o que é a beleza Você crê que seus amigos são a melhor coisa que você tem mas o que é a amizade Sócrates fazia perguntas sobre as idéias sobre os valores nos quais os gregos acreditavam e que julgavam conhecer Suas perguntas deixavam os interlocutores embaraçados irritados curiosos pois quando tentavam responder ao célebre o que é descobriam surpresos que não sabiam responder e que nunca tinham pensado em suas crenças seus valores e suas idéias Mas o pior não era isso O pior é que as pessoas esperavam que Sócrates respondesse por elas ou para elas que soubesse as respostas às perguntas como os sofistas pareciam saber mas Sócrates para desconcerto geral dizia Eu também não sei por isso estou perguntando Donde a famosa expressão atribuída a ele Sei que nada sei A consciência da própria ignorância é o começo da Filosofia O que procurava Sócrates Procurava a definição daquilo que uma coisa uma idéia um valor é verdadeiramente Procurava a essência verdadeira da coisa da idéia do valor Procurava o conceito e não a mera opinião que temos de nós mesmos das coisas das idéias e dos valores Qual a diferença entre uma opinião e um conceito A opinião varia de pessoa para pessoa de lugar para lugar de época para época É instável mutável depende de cada um de seus gostos e preferências O conceito ao contrário é uma verdade intemporal universal e necessária que o pensamento descobre mostrando que é a essência universal intemporal e necessária de alguma coisa Por isso Sócrates não perguntava se tal ou qual coisa era bela pois nossa opinião sobre ela pode variar e sim O que é a beleza Qual é a essência ou o conceito do belo Do justo Do amor Da amizade Marilena Chauí 45 Sócrates perguntava Que razões rigorosas você possui para dizer o que diz e para pensar o que pensa Qual é o fundamento racional daquilo que você fala e pensa Ora as perguntas de Sócrates se referiam a idéias valores práticas e comportamentos que os atenienses julgavam certos e verdadeiros em si mesmos e por si mesmos Ao fazer suas perguntas e suscitar dúvidas Sócrates os fazia pensar não só sobre si mesmos mas também sobre a polis Aquilo que parecia evidente acabava sendo percebido como duvidoso e incerto Sabemos que os poderosos têm medo do pensamento pois o poder é mais forte se ninguém pensar se todo mundo aceitar as coisas como elas são ou melhor como nos dizem e nos fazem acreditar que elas são Para os poderosos de Atenas Sócrates tornarase um perigo pois fazia a juventude pensar Por isso eles o acusaram de desrespeitar os deuses corromper os jovens e violar as leis Levado perante a assembléia Sócrates não se defendeu e foi condenado a tomar um veneno a cicuta e obrigado a suicidarse Por que Sócrates não se defendeu Porque dizia ele se eu me defender estarei aceitando as acusações e eu não as aceito Se eu me defender o que os juízes vão exigir de mim Que eu pare de filosofar Mas eu prefiro a morte a ter que renunciar à Filosofia O julgamento e a morte de Sócrates são narrados por Platão numa obra intitulada Apologia de Sócrates isto é a defesa de Sócrates feita por seus discípulos contra Atenas Sócrates nunca escreveu O que sabemos de seus pensamentos encontrase nas obras de seus vários discípulos e Platão foi o mais importante deles Se reunirmos o que esse filósofo escreveu sobre os sofistas e sobre Sócrates além da exposição de suas próprias idéias poderemos apresentar como características gerais do período socrático A Filosofia se volta para as questões humanas no plano da ação dos comportamentos das idéias das crenças dos valores e portanto se preocupa com as questões morais e políticas O ponto de partida da Filosofia é a confiança no pensamento ou no homem como um ser racional capaz de conhecerse a si mesmo e portanto capaz de reflexão Reflexão é a volta que o pensamento faz sobre si mesmo para conhecer se é a consciência conhecendose a si mesma como capacidade para conhecer as coisas alcançando o conceito ou a essência delas Como se trata de conhecer a capacidade de conhecimento do homem a preocupação se volta para estabelecer procedimentos que nos garantam que encontramos a verdade isto é o pensamento deve oferecer a si mesmo caminhos próprios critérios próprios e meios próprios para saber o que é o verdadeiro e como alcançálo em tudo o que investiguemos Convite à Filosofia 46 A Filosofia está voltada para a definição das virtudes morais e das virtudes políticas tendo como objeto central de suas investigações a moral e a política isto é as idéias e práticas que norteiam os comportamentos dos seres humanos tanto como indivíduos quanto como cidadãos Cabe à Filosofia portanto encontrar a definição o conceito ou a essência dessas virtudes para além da variedade das opiniões para além da multiplicidade das opiniões contrárias e diferentes As perguntas filosóficas se referem assim a valores como a justiça a coragem a amizade a piedade o amor a beleza a temperança a prudência etc que constituem os ideais do sábio e do verdadeiro cidadão É feita pela primeira vez uma separação radical entre de um lado a opinião e as imagens das coisas trazidas pelos nossos órgãos dos sentidos nossos hábitos pelas tradições pelos interesses e de outro lado as idéias As idéias se referem à essência íntima invisível verdadeira das coisas e só podem ser alcançadas pelo pensamento puro que afasta os dados sensoriais os hábitos recebidos os preconceitos as opiniões A reflexão e o trabalho do pensamento são tomados como uma purificação intelectual que permite ao espírito humano conhecer a verdade invisível imutável universal e necessária A opinião as percepções e imagens sensoriais são consideradas falsas mentirosas mutáveis inconsistentes contraditórias devendo ser abandonadas para que o pensamento siga seu caminho próprio no conhecimento verdadeiro A diferença entre os sofistas de um lado e Sócrates e Platão de outro é dada pelo fato de que os sofistas aceitam a validade das opiniões e das percepções sensoriais e trabalham com elas para produzir argumentos de persuasão enquanto Sócrates e Platão consideram as opiniões e as percepções sensoriais ou imagens das coisas como fonte de erro mentira e falsidade formas imperfeitas do conhecimento que nunca alcançam a verdade plena da realidade O mito da caverna Imaginemos uma caverna subterrânea onde desde a infância geração após geração seres humanos estão aprisionados Suas pernas e seus pescoços estão algemados de tal modo que são forçados a permanecer sempre no mesmo lugar e a olhar apenas para frente não podendo girar a cabeça nem para trás nem para os lados A entrada da caverna permite que alguma luz exterior ali penetre de modo que se possa na semiobscuridade enxergar o que se passa no interior A luz que ali entra provém de uma imensa e alta fogueira externa Entre ela e os prisioneiros no exterior portanto há um caminho ascendente ao longo do qual foi erguida uma mureta como se fosse a parte fronteira de um palco de marionetes Ao longo dessa muretapalco homens transportam estatuetas de todo tipo com figuras de seres humanos animais e todas as coisas Marilena Chauí 47 Por causa da luz da fogueira e da posição ocupada por ela os prisioneiros enxergam na parede do fundo da caverna as sombras das estatuetas transportadas mas sem poderem ver as próprias estatuetas nem os homens que as transportam Como jamais viram outra coisa os prisioneiros imaginam que as sombras vistas são as próprias coisas Ou seja não podem saber que são sombras nem podem saber que são imagens estatuetas de coisas nem que há outros seres humanos reais fora da caverna Também não podem saber que enxergam porque há a fogueira e a luz no exterior e imaginam que toda luminosidade possível é a que reina na caverna Que aconteceria indaga Platão se alguém libertasse os prisioneiros Que faria um prisioneiro libertado Em primeiro lugar olharia toda a caverna veria os outros seres humanos a mureta as estatuetas e a fogueira Embora dolorido pelos anos de imobilidade começaria a caminhar dirigindose à entrada da caverna e deparando com o caminho ascendente nele adentraria Num primeiro momento ficaria completamente cego pois a fogueira na verdade é a luz do sol e ele ficaria inteiramente ofuscado por ela Depois acostumandose com a claridade veria os homens que transportam as estatuetas e prosseguindo no caminho enxergaria as próprias coisas descobrindo que durante toda sua vida não vira senão sombras de imagens as sombras das estatuetas projetadas no fundo da caverna e que somente agora está contemplando a própria realidade Libertado e conhecedor do mundo o prisioneiro regressaria à caverna ficaria desnorteado pela escuridão contaria aos outros o que viu e tentaria libertálos Que lhe aconteceria nesse retorno Os demais prisioneiros zombariam dele não acreditariam em suas palavras e se não conseguissem silenciálo com suas caçoadas tentariam fazêlo espancandoo e se mesmo assim ele teimasse em afirmar o que viu e os convidasse a sair da caverna certamente acabariam por matálo Mas quem sabe alguns poderiam ouvilo e contra a vontade dos demais também decidissem sair da caverna rumo à realidade O que é a caverna O mundo em que vivemos Que são as sombras das estatuetas As coisas materiais e sensoriais que percebemos Quem é o prisioneiro que se liberta e sai da caverna O filósofo O que é a luz exterior do sol A luz da verdade O que é o mundo exterior O mundo das idéias verdadeiras ou da verdadeira realidade Qual o instrumento que liberta o filósofo e com o qual ele deseja libertar os outros prisioneiros A dialética O que é a visão do mundo real iluminado A Filosofia Por que os prisioneiros zombam espancam e matam o filósofo Platão está se referindo à condenação de Sócrates à morte pela assembléia ateniense Porque imaginam que o mundo sensível é o mundo real e o único verdadeiro Convite à Filosofia 48 Período sistemático Este período tem como principal nome o filósofo Aristóteles de Estagira discípulo de Platão Passados quase quatro séculos de Filosofia Aristóteles apresenta nesse período uma verdadeira enciclopédia de todo o saber que foi produzido e acumulado pelos gregos em todos os ramos do pensamento e da prática considerando essa totalidade de saberes como sendo a Filosofia Esta portanto não é um saber específico sobre algum assunto mas uma forma de conhecer todas as coisas possuindo procedimentos diferentes para cada campo de coisas que conhece Além de a Filosofia ser o conhecimento da totalidade dos conhecimentos e práticas humanas ela também estabelece uma diferença entre esses conhecimentos distribuindoos numa escala que vai dos mais simples e inferiores aos mais complexos e superiores Essa classificação e distribuição dos conhecimentos fixou para o pensamento ocidental os campos de investigação da Filosofia como totalidade do saber humano Cada saber no campo que lhe é próprio possui seu objeto específico procedimentos específicos para sua aquisição e exposição formas próprias de demonstração e prova Cada campo do conhecimento é uma ciência ciência em grego é episteme Aristóteles afirma que antes de um conhecimento constituir seu objeto e seu campo próprios seus procedimentos próprios de aquisição e exposição de demonstração e de prova deve primeiro conhecer as leis gerais que governam o pensamento independentemente do conteúdo que possa vir a ter O estudo das formas gerais do pensamento sem preocupação com seu conteúdo chamase lógica e Aristóteles foi o criador da lógica como instrumento do conhecimento em qualquer campo do saber A lógica não é uma ciência mas o instrumento para a ciência e por isso na classificação das ciências feita por Aristóteles a lógica não aparece embora ela seja indispensável para a Filosofia e mais tarde tenha se tornado um dos ramos específicos dela Os campos do conhecimento filosófico Vejamos pois a classificação aristotélica Ciências produtivas ciências que estudam as práticas produtivas ou as técnicas isto é as ações humanas cuja finalidade está para além da própria ação pois a finalidade é a produção de um objeto de uma obra São elas arquitetura cujo fim é a edificação de alguma coisa economia cujo fim é a produção agrícola o artesanato e o comércio isto é produtos para a sobrevivência e para o acúmulo de riquezas medicina cujo fim é produzir a saúde ou a cura pintura escultura poesia teatro oratória arte da guerra da caça da navegação etc Em Marilena Chauí 49 suma todas as atividades humanas técnicas e artísticas que resultam num produto ou numa obra Ciências práticas ciências que estudam as práticas humanas enquanto ações que têm nelas mesmas seu próprio fim isto é a finalidade da ação se realiza nela mesma é o próprio ato realizado São elas ética em que a ação é realizada pela vontade guiada pela razão para alcançar o bem do indivíduo sendo este bem as virtudes morais coragem generosidade fidelidade lealdade clemência prudência amizade justiça modéstia honradez temperança etc e política em que a ação é realizada pela vontade guiada pela razão para ter como fim o bem da comunidade ou o bem comum Para Aristóteles como para todo grego da época clássica a política é superior à ética pois a verdadeira liberdade sem a qual não pode haver vida virtuosa só é conseguida na polis Por isso a finalidade da política é a vida justa a vida boa e bela a vida livre Ciências teoréticas contemplativas ou teóricas são aquelas que estudam coisas que existem independentemente dos homens e de suas ações e que não tendo sido feitas pelos homens só podem ser contempladas por eles Theoria em grego significa contemplação da verdade O que são as coisas que existem por si mesmas e em si mesmas independentes de nossa ação fabricadora técnica e de nossa ação moral e política São as coisas da Natureza e as coisas divinas Aristóteles aqui classifica também por graus de superioridade as ciências teóricas indo da mais inferior à superior 1 ciência das coisas naturais submetidas à mudança ou ao devir física biologia meteorologia psicologia pois a alma que em grego se diz psychê é um ser natural existindo de formas variadas em todos os seres vivos plantas animais e homens 2 ciência das coisas naturais que não estão submetidas à mudança ou ao devir as matemáticas e a astronomia os gregos julgavam que os astros eram eternos e imutáveis 3 ciência da realidade pura que não é nem natural mutável nem natural imutável nem resultado da ação humana nem resultado da fabricação humana Tratase daquilo que deve haver em toda e qualquer realidade seja ela natural matemática ética política ou técnica para ser realidade É o que Aristóteles chama de ser ou substância de tudo o que existe A ciência teórica que estuda o puro ser chamase metafísica 4 ciência teórica das coisas divinas que são a causa e a finalidade de tudo o que existe na Natureza e no homem Vimos que as coisas divinas são chamadas de theion e por isso esta última ciência chamase teologia A Filosofia para Aristóteles encontra seu ponto mais alto na metafísica e na teologia de onde derivam todos os outros conhecimentos Convite à Filosofia 50 A partir da classificação aristotélica definiuse no correr dos séculos o grande campo da investigação filosófica campo que só seria desfeito no século XIX da nossa era quando as ciências particulares se foram separando do tronco geral da Filosofia Assim podemos dizer que os campos da investigação filosófica são três 1º O do conhecimento da realidade última de todos os seres ou da essência de toda a realidade Como em grego ser se diz on e os seres se diz ta onta este campo é chamado de ontologia que na linguagem de Aristóteles se formava com a metafísica e a teologia 2º O do conhecimento das ações humanas ou dos valores e das finalidades da ação humana das ações que têm em si mesmas sua finalidade a ética e a política ou a vida moral valores morais e a vida política valores políticos e das ações que têm sua finalidade num produto ou numa obra as técnicas e as artes e seus valores utilidade beleza etc 3º O do conhecimento da capacidade humana de conhecer isto é o conhecimento do próprio pensamento em exercício Aqui distinguemse a lógica que oferece as leis gerais do pensamento a teoria do conhecimento que oferece os procedimentos pelos quais conhecemos as ciências propriamente ditas e o conhecimento do conhecimento científico isto é a epistemologia Ser ou realidade prática ou ação segundo valores conhecimento do pensamento em suas leis gerais e em suas leis específicas em cada ciência eis os campos da atividade ou investigação filosófica Período helenístico Tratase do último período da Filosofia antiga quando a polis grega desapareceu como centro político deixando de ser referência principal dos filósofos uma vez que a Grécia encontrase sob o poderio do Império Romano Os filósofos dizem agora que o mundo é sua cidade e que são cidadãos do mundo Em grego mundo se diz cosmos e esse período é chamado o da Filosofia cosmopolita Essa época da Filosofia é constituída por grandes sistemas ou doutrinas isto é explicações totalizantes sobre a Natureza o homem as relações entre ambos e deles com a divindade esta em geral pensada como Providência divina que instaura e conserva a ordem universal Predominam preocupações com a ética pois os filósofos já não podem ocuparse diretamente com a política a física a teologia e a religião Datam desse período quatro grandes sistemas cuja influência será sentida pelo pensamento cristão que começa a formarse nessa época estoicismo epicurismo ceticismo e neoplatonismo A amplidão do Império Romano a presença crescente de religiões orientais no Império os contatos comerciais e culturais entre ocidente e oriente fizeram aumentar os contatos dos filósofos helenistas com a sabedoria oriental Podemos Marilena Chauí 51 falar numa orientalização da Filosofia sobretudo nos aspectos místicos e religiosos Convite à Filosofia 52 Capítulo 4 Principais períodos da história da Filosofia A Filosofia na História Como todas as outras criações e instituições humanas a Filosofia está na História e tem uma história Está na História a Filosofia manifesta e exprime os problemas e as questões que em cada época de uma sociedade os homens colocam para si mesmos diante do que é novo e ainda não foi compreendido A Filosofia procura enfrentar essa novidade oferecendo caminhos respostas e sobretudo propondo novas perguntas num diálogo permanente com a sociedade e a cultura de seu tempo do qual ela faz parte Tem uma história as respostas as soluções e as novas perguntas que os filósofos de uma época oferecem tornamse saberes adquiridos que outros filósofos prosseguem ou freqüentemente tornamse novos problemas que outros filósofos tentam resolver seja aproveitando o passado filosófico seja criticandoo e refutandoo Além disso as transformações nos modos de conhecer podem ampliar os campos de investigação da Filosofia fazendo surgir novas disciplinas filosóficas como também podem diminuir esses campos porque alguns de seus conhecimentos podem desligarse dela e formar disciplinas separadas Assim por exemplo a Filosofia teve seu campo de atividade aumentado quando no século XVIII surge a filosofia da arte ou estética no século XIX a filosofia da história no século XX a filosofia das ciências ou epistemologia e a filosofia da linguagem Por outro lado o campo da Filosofia diminuiu quando as ciências particulares que dela faziam parte foramse desligando para constituir suas próprias esferas de investigação É o que acontece por exemplo no século XVIII quando se desligam da Filosofia a biologia a física e a química e no século XX as chamadas ciências humanas psicologia antropologia história Pelo fato de estar na História e ter uma história a Filosofia costuma ser apresentada em grandes períodos que acompanham às vezes de maneira mais próxima às vezes de maneira mais distante os períodos em que os historiadores dividem a História da sociedade ocidental Marilena Chauí 53 Os principais períodos da Filosofia Filosofia antiga do século VI aC ao século VI dC Compreende os quatro grandes períodos da Filosofia grecoromana indo dos pré socráticos aos grandes sistemas do período helenístico mencionados no capítulo anterior Filosofia patrística do século I ao século VII Iniciase com as Epístolas de São Paulo e o Evangelho de São João e termina no século VIII quando teve início a Filosofia medieval A patrística resultou do esforço feito pelos dois apóstolos intelectuais Paulo e João e pelos primeiros Padres da Igreja para conciliar a nova religião o Cristianismo com o pensamento filosófico dos gregos e romanos pois somente com tal conciliação seria possível convencer os pagãos da nova verdade e convertêlos a ela A Filosofia patrística ligase portanto à tarefa religiosa da evangelização e à defesa da religião cristã contra os ataques teóricos e morais que recebia dos antigos Dividese em patrística grega ligada à Igreja de Bizâncio e patrística latina ligada à Igreja de Roma e seus nomes mais importantes foram Justino Tertuliano Atenágoras Orígenes Clemente Eusébio Santo Ambrósio São Gregório Nazianzo São João Crisóstomo Isidoro de Sevilha Santo Agostinho Beda e Boécio A patrística foi obrigada a introduzir idéias desconhecidas para os filósofos grecoromanos a idéia de criação do mundo de pecado original de Deus como trindade una de encarnação e morte de Deus de juízo final ou de fim dos tempos e ressurreição dos mortos etc Precisou também explicar como o mal pode existir no mundo já que tudo foi criado por Deus que é pura perfeição e bondade Introduziu sobretudo com Santo Agostinho e Boécio a idéia de homem interior isto é da consciência moral e do livrearbítrio pelo qual o homem se torna responsável pela existência do mal no mundo Para impor as idéias cristãs os Padres da Igreja as transformaram em verdades reveladas por Deus através da Bíblia e dos santos que por serem decretos divinos seriam dogmas isto é irrefutáveis e inquestionáveis Com isso surge uma distinção desconhecida pelos antigos entre verdades reveladas ou da fé e verdades da razão ou humanas isto é entre verdades sobrenaturais e verdades naturais as primeiras introduzindo a noção de conhecimento recebido por uma graça divina superior ao simples conhecimento racional Dessa forma o grande tema de toda a Filosofia patrística é o da possibilidade de conciliar razão e fé e a esse respeito havia três posições principais 1 Os que julgavam fé e razão irreconciliáveis e a fé superior à razão diziam eles Creio porque absurdo Convite à Filosofia 54 2 Os que julgavam fé e razão conciliáveis mas subordinavam a razão à fé diziam eles Creio para compreender 3 Os que julgavam razão e fé irreconciliáveis mas afirmavam que cada uma delas tem seu campo próprio de conhecimento e não devem misturarse a razão se refere a tudo o que concerne à vida temporal dos homens no mundo a fé a tudo o que se refere à salvação da alma e à vida eterna futura Filosofia medieval do século VIII ao século XIV Abrange pensadores europeus árabes e judeus É o período em que a Igreja Romana dominava a Europa ungia e coroava reis organizava Cruzadas à Terra Santa e criava à volta das catedrais as primeiras universidades ou escolas E a partir do século XII por ter sido ensinada nas escolas a Filosofia medieval também é conhecida com o nome de Escolástica A Filosofia medieval teve como influências principais Platão e Aristóteles embora o Platão que os medievais conhecessem fosse o neoplatônico vindo da Filosofia de Plotino do século VI dC e o Aristóteles que conhecessem fosse aquele conservado e traduzido pelos árabes particularmente Avicena e Averróis Conservando e discutindo os mesmos problemas que a patrística a Filosofia medieval acrescentou outros particularmente um conhecido com o nome de Problema dos Universais e além de Platão e Aristóteles sofreu uma grande influência das idéias de Santo Agostinho Durante esse período surge propriamente a Filosofia cristã que é na verdade a teologia Um de seus temas mais constantes são as provas da existência de Deus e da alma isto é demonstrações racionais da existência do infinito criador e do espírito humano imortal A diferença e separação entre infinito Deus e finito homem mundo a diferença entre razão e fé a primeira deve subordinarse à segunda a diferença e separação entre corpo matéria e alma espírito O Universo como uma hierarquia de seres onde os superiores dominam e governam os inferiores Deus arcanjos anjos alma corpo animais vegetais minerais a subordinação do poder temporal dos reis e barões ao poder espiritual de papas e bispos eis os grandes temas da Filosofia medieval Outra característica marcante da Escolástica foi o método por ela inventado para expor as idéias filosóficas conhecida como disputa apresentavase uma tese e esta devia ser ou refutada ou defendida por argumentos tirados da Bíblia de Aristóteles de Platão ou de outros Padres da Igreja Assim uma idéia era considerada uma tese verdadeira ou falsa dependendo da força e da qualidade dos argumentos encontrados nos vários autores Por causa desse método de disputa teses refutações defesas respostas conclusões baseadas em escritos de outros autores costumase dizer que na Idade Média o pensamento estava subordinado ao princípio da autoridade isto é uma idéia é Marilena Chauí 55 considerada verdadeira se for baseada nos argumentos de uma autoridade reconhecida Bíblia Platão Aristóteles um papa um santo Os teólogos medievais mais importantes foram Abelardo Duns Scoto Escoto Erígena Santo Anselmo Santo Tomás de Aquino Santo Alberto Magno Guilherme de Ockham Roger Bacon São Boaventura Do lado árabe Avicena Averróis Alfarabi e Algazáli Do lado judaico Maimônides Nahmanides Yeudah bem Levi Filosofia da Renascença do século XIV ao século XVI É marcada pela descoberta de obras de Platão desconhecidas na Idade Média de novas obras de Aristóteles bem como pela recuperação das obras dos grandes autores e artistas gregos e romanos São três as grandes linhas de pensamento que predominavam na Renascença 1 Aquela proveniente de Platão do neoplatonismo e da descoberta dos livros do Hermetismo nela se destacava a idéia da Natureza como um grande ser vivo o homem faz parte da Natureza como um microcosmo como espelho do Universo inteiro e pode agir sobre ela através da magia natural da alquimia e da astrologia pois o mundo é constituído por vínculos e ligações secretas a simpatia entre as coisas o homem pode também conhecer esses vínculos e criar outros como um deus 2 Aquela originária dos pensadores florentinos que valorizava a vida ativa isto é a política e defendia os ideais republicanos das cidades italianas contra o Império RomanoGermânico isto é contra o poderio dos papas e dos imperadores Na defesa do ideal republicano os escritores resgataram autores políticos da Antigüidade historiadores e juristas e propuseram a imitação dos antigos ou o renascimento da liberdade política anterior ao surgimento do império eclesiástico 3 Aquela que propunha o ideal do homem como artífice de seu próprio destino tanto através dos conhecimentos astrologia magia alquimia quanto através da política o ideal republicano das técnicas medicina arquitetura engenharia navegação e das artes pintura escultura literatura teatro A efervescência teórica e prática foi alimentada com as grandes descobertas marítimas que garantiam ao homem o conhecimento de novos mares novos céus novas terras e novas gentes permitindolhe ter uma visão crítica de sua própria sociedade Essa efervescência cultural e política levou a críticas profundas à Igreja Romana culminando na Reforma Protestante baseada na idéia de liberdade de crença e de pensamento À Reforma a Igreja respondeu com a ContraReforma e com o recrudescimento do poder da Inquisição Os nomes mais importantes desse período são Dante Marcílio Ficino Giordano Bruno Campannella Maquiavel Montaigne Erasmo Tomás Morus Jean Bodin Kepler e Nicolau de Cusa Convite à Filosofia 56 Filosofia moderna do século XVII a meados do século XVIII Esse período conhecido como o Grande Racionalismo Clássico é marcado por três grandes mudanças intelectuais 1 Aquela conhecida como o surgimento do sujeito do conhecimento isto é a Filosofia em lugar de começar seu trabalho conhecendo a Natureza e Deus para depois referirse ao homem começa indagando qual é a capacidade do intelecto humano para conhecer e demonstrar a verdade dos conhecimentos Em outras palavras a Filosofia começa pela reflexão isto é pela volta do pensamento sobre si mesmo para conhecer sua capacidade de conhecer O ponto de partida é o sujeito do conhecimento como consciência de si reflexiva isto é como consciência que conhece sua capacidade de conhecer O sujeito do conhecimento é um intelecto no interior de uma alma cuja natureza ou substância é completamente diferente da natureza ou substância de seu corpo e dos demais corpos exteriores Por isso a segunda pergunta da Filosofia depois de respondida a pergunta sobre a capacidade de conhecer é Como o espírito ou intelecto pode conhecer o que é diferente dele Como pode conhecer os corpos da Natureza 2 A resposta à pergunta acima constituiu a segunda grande mudança intelectual dos modernos e essa mudança diz respeito ao objeto do conhecimento Para os modernos as coisas exteriores a Natureza a vida social e política podem ser conhecidas desde que sejam consideradas representações ou seja idéias ou conceitos formulados pelo sujeito do conhecimento Isso significa por um lado que tudo o que pode ser conhecido deve poder ser transformado num conceito ou numa idéia clara e distinta demonstrável e necessária formulada pelo intelecto e por outro lado que a Natureza e a sociedade ou política podem ser inteiramente conhecidas pelo sujeito porque elas são inteligíveis em si mesmas isto é são racionais em si mesmas e propensas a serem representadas pelas idéias do sujeito do conhecimento 3 Essa concepção da realidade como intrinsecamente racional e que pode ser plenamente captada pelas idéias e conceitos preparou a terceira grande mudança intelectual moderna A realidade a partir de Galileu é concebida como um sistema racional de mecanismos físicos cuja estrutura profunda e invisível é matemática O livro do mundo diz Galileu está escrito em caracteres matemáticos A realidade concebida como sistema racional de mecanismos físico matemáticos deu origem à ciência clássica isto é à mecânica por meio da qual são descritos explicados e interpretados todos os fatos da realidade astronomia física química psicologia política artes são disciplinas cujo conhecimento é de tipo mecânico ou seja de relações necessárias de causa e efeito entre um agente e um paciente Marilena Chauí 57 A realidade é um sistema de causalidades racionais rigorosas que podem ser conhecidas e transformadas pelo homem Nasce a idéia de experimentação e de tecnologia conhecimento teórico que orienta as intervenções práticas e o ideal de que o homem poderá dominar tecnicamente a Natureza e a sociedade Predomina assim nesse período a idéia de conquista científica e técnica de toda a realidade a partir da explicação mecânica e matemática do Universo e da invenção das máquinas graças às experiências físicas e químicas Existe também a convicção de que a razão humana é capaz de conhecer a origem as causas e os efeitos das paixões e das emoções e pela vontade orientada pelo intelecto é capaz de governálas e dominálas de sorte que a vida ética pode ser plenamente racional A mesma convicção orienta o racionalismo político isto é a idéia de que a razão é capaz de definir para cada sociedade qual o melhor regime político e como mantêlo racionalmente Nunca mais na história da Filosofia haverá igual confiança nas capacidades e nos poderes da razão humana como houve no Grande Racionalismo Clássico Os principais pensadores desse período foram Francis Bacon Descartes Galileu Pascal Hobbes Espinosa Leibniz Malebranche Locke Berkeley Newton Gassendi Filosofia da Ilustração ou Iluminismo meados do século XVIII ao começo do século XIX Esse período também crê nos poderes da razão chamada de As Luzes por isso o nome Iluminismo O Iluminismo afirma que pela razão o homem pode conquistar a liberdade e a felicidade social e política a Filosofia da Ilustração foi decisiva para as idéias da Revolução Francesa de 1789 a razão é capaz de evolução e progresso e o homem é um ser perfectível A perfectibilidade consiste em liberarse dos preconceitos religiosos sociais e morais em libertarse da superstição e do medo graças as conhecimento às ciências às artes e à moral o aperfeiçoamento da razão se realiza pelo progresso das civilizações que vão das mais atrasadas também chamadas de primitivas ou selvagens às mais adiantadas e perfeitas as da Europa Ocidental há diferença entre Natureza e civilização isto é a Natureza é o reino das relações necessárias de causa e efeito ou das leis naturais universais e imutáveis enquanto a civilização é o reino da liberdade e da finalidade proposta pela vontade livre dos próprios homens em seu aperfeiçoamento moral técnico e político Convite à Filosofia 58 Nesse período há grande interesse pelas ciências que se relacionam com a idéia de evolução e por isso a biologia terá um lugar central no pensamento ilustrado pertencendo ao campo da filosofia da vida Há igualmente grande interesse e preocupação com as artes na medida em que elas são as expressões por excelência do grau de progresso de uma civilização Data também desse período o interesse pela compreensão das bases econômicas da vida social e política surgindo uma reflexão sobre a origem e a forma das riquezas das nações com uma controvérsia sobre a importância maior ou menor da agricultura e do comércio controvérsia que se exprime em duas correntes do pensamento econômico a corrente fisiocrata a agricultura é a fonte principal das riquezas e a mercantilista o comércio é a fonte principal da riqueza das nações Os principais pensadores do período foram Hume Voltaire DAlembert Diderot Rousseau Kant Fichte e Schelling embora este último costume ser colocado como filósofo do Romantismo Filosofia contemporânea Abrange o pensamento filosófico que vai de meados do século XIX e chega aos nossos dias Esse período por ser o mais próximo de nós parece ser o mais complexo e o mais difícil de definir pois as diferenças entre as várias filosofias ou posições filosóficas nos parecem muito grandes porque as estamos vendo surgir diante de nós Para facilitar uma visão mais geral do período faremos no próximo capítulo uma contraposição entre as principais idéias do século XIX e as principais correntes de pensamento do século XX Marilena Chauí 59 Capítulo 5 Aspectos da Filosofia contemporânea As questões discutidas pela Filosofia contemporânea Dissemos no capítulo anterior que a Filosofia contemporânea vai dos meados do século XIX até nossos dias e que por estar próxima de nós é mais difícil de ser vista em sua generalidade pois os problemas e as diferentes respostas dadas a eles parecem impossibilitar uma visão de conjunto Em outras palavras não temos distância suficiente para perceber os traços mais gerais e marcantes deste período da Filosofia Apesar disso é possível assinalar quais têm sido as principais questões e os principais temas que interessaram à Filosofia neste século e meio História e progresso O século XIX é na Filosofia o grande século da descoberta da História ou da historicidade do homem da sociedade das ciências e das artes É particularmente com o filósofo alemão Hegel que se afirma que a História é o modo de ser da razão e da verdade o modo de ser dos seres humanos e que portanto somos seres históricos No século passado essa concepção levou à idéia de progresso isto é de que os seres humanos as sociedades as ciências as artes e as técnicas melhoram com o passar do tempo acumulam conhecimento e práticas aperfeiçoandose cada vez mais de modo que o presente é melhor e superior se comparado ao passado e o futuro será melhor e superior se comparado ao presente Essa visão otimista também foi desenvolvida na França pelo filósofo Augusto Comte que atribuía o progresso ao desenvolvimento das ciências positivas Essas ciências permitiriam aos seres humanos saber para prever prever para prover de modo que o desenvolvimento social se faria por aumento do conhecimento científico e do controle científico da sociedade É de Comte a idéia de Ordem e Progresso que viria a fazer parte da bandeira do Brasil republicano No entanto no século XX a mesma afirmação da historicidade dos seres humanos da razão e da sociedade levou à idéia de que a História é descontínua e não progressiva cada sociedade tendo sua História própria em vez de ser apenas uma etapa numa História universal das civilizações A idéia de progresso passa a ser criticada porque serve como desculpa para legitimar colonialismos e imperialismos os mais adiantados teriam o direito de dominar os mais atrasados Passa a ser criticada também a idéia de progresso Convite à Filosofia 60 das ciências e das técnicas mostrandose que em cada época histórica e para cada sociedade os conhecimentos e as práticas possuem sentido e valor próprios e que tal sentido e tal valor desaparecem numa época seguinte ou são diferentes numa outra sociedade não havendo portanto transformação contínua acumulativa e progressiva O passado foi o passado o presente é o presente e o futuro será o futuro As ciências e as técnicas No século XIX entusiasmada com as ciências e as técnicas bem como com a Segunda Revolução Industrial a Filosofia afirmava a confiança plena e total no saber científico e na tecnologia para dominar e controlar a Natureza a sociedade e os indivíduos Acreditavase que a sociologia por exemplo nos ofereceria um saber seguro e definitivo sobre o modo de funcionamento das sociedades e que os seres humanos poderiam organizar racionalmente o social evitando revoluções revoltas e desigualdades Acreditavase também que a psicologia ensinaria definitivamente como é e como funciona a psique humana quais as causas dos comportamentos e os meios de controlálos quais as causas das emoções e os meios de controlálas de tal modo que seria possível livrarnos das angústias do medo da loucura assim como seria possível uma pedagogia baseada nos conhecimentos científicos e que permitiria não só adaptar perfeitamente as crianças às exigências da sociedade como também educálas segundo suas vocações e potencialidades psicológicas No entanto no século XX a Filosofia passou a desconfiar do otimismo científicotecnológico do século anterior em virtude de vários acontecimentos as duas guerras mundiais o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki os campos de concentração nazistas as guerras da Coréia do Vietnã do Oriente Médio do Afeganistão as invasões comunistas da Hungria e da Tchecoslováquia as ditaduras sangrentas da América Latina a devastação de mares florestas e terras os perigos cancerígenos de alimentos e remédios o aumento de distúrbios e sofrimentos mentais etc Uma escola alemã de Filosofia a Escola de Frankfurt elaborou uma concepção conhecida como Teoria Crítica na qual distingue duas formas da razão a razão instrumental e a razão crítica A razão instrumental é a razão técnicocientífica que faz das ciências e das técnicas não um meio de liberação dos seres humanos mas um meio de intimidação medo terror e desespero Ao contrário a razão crítica é aquela que analisa e interpreta os limites e os perigos do pensamento instrumental e afirma que as mudanças sociais políticas e culturais só se realizarão verdadeiramente se tiverem como finalidade a emancipação do gênero humano e não as idéias de controle e domínio técnicocientífico sobre a Natureza a sociedade e a cultura Marilena Chauí 61 As utopias revolucionárias No século XIX em decorrência do otimismo trazido pelas idéias de progresso desenvolvimento técnicocientífico poderio humano para construir uma vida justa e feliz a Filosofia apostou nas utopias revolucionárias anarquismo socialismo comunismo que criariam graças à ação política consciente dos explorados e oprimidos uma sociedade nova justa e feliz No entanto no século XX com o surgimento das chamadas sociedades totalitárias fascismo nazismo stalinismo e com o aumento do poder das sociedades autoritárias ou ditatoriais a Filosofia também passou a desconfiar do otimismo revolucionário e das utopias e a indagar se os seres humanos os explorados e dominados serão capazes de criar e manter uma sociedade nova justa e feliz O crescimento das chamadas burocracias que dominam as organizações estatais empresariais políticopartidárias escolares hospitalares levou a Filosofia a indagar como os seres humanos poderiam derrubar esse imenso poderio que os governa secretamente que eles desconhecem e que determina suas vidas cotidianas desde o nascimento até a morte A cultura No século XIX a Filosofia descobre a Cultura como o modo próprio e específico da existência dos seres humanos Os animais são seres naturais os humanos seres culturais A Natureza é governada por leis necessárias de causa e efeito a Cultura é o exercício da liberdade A cultura é a criação coletiva de idéias símbolos e valores pelos quais uma sociedade define para si mesma o bom e o mau o belo e o feio o justo e o injusto o verdadeiro e o falso o puro e o impuro o possível e o impossível o inevitável e o casual o sagrado e o profano o espaço e o tempo A Cultura se realiza porque os humanos são capazes de linguagem trabalho e relação com o tempo A Cultura se manifesta como vida social como criação das obras de pensamento e de arte como vida religiosa e vida política Para a Filosofia do século XIX em consonância com sua idéia de uma História universal das civilizações haveria uma única grande Cultura em desenvolvimento da qual as diferentes culturas seriam fases ou etapas Para alguns como os filósofos que seguiam as idéias de Hegel o movimento do desenvolvimento cultural era progressivo Para outros chamados de filósofos românticos ou adeptos da filosofia do Romantismo as culturas não formavam uma seqüência progressiva mas eram culturas nacionais Assim cabia à Filosofia conhecer o espírito de um povo conhecendo as origens e as raízes de cada cultura pois o mais importante de uma cultura não se encontraria em seu futuro mas no seu passado isto é nas tradições no folclore nacional Convite à Filosofia 62 No entanto no século XX a Filosofia afirmando que a História é descontínua também afirma que não há a Cultura mas culturas diferentes e que a pluralidade de culturas e as diferenças entre elas não se devem à nação pois a idéia de nação é uma criação cultural e não a causa das diferenças culturais Cada cultura inventa seu modo de relacionarse com o tempo de criar sua linguagem de elaborar seus mitos e suas crenças de organizar o trabalho e as relações sociais de criar as obras de pensamento e de arte Cada uma em decorrência das condições históricas geográficas e políticas em que se forma tem seu modo próprio de organizar o poder e a autoridade de produzir seus valores Contra a filosofia da cultura universal a Filosofia do século XX nega que haja uma única cultura em progresso e afirma a existência da pluralidade cultural Contra a filosofia romântica das culturas nacionais como expressão do espírito do povo e do conjunto de tradições a Filosofia do século XX nega que a nacionalidade seja causa das culturas as nacionalidades são efeitos culturais temporários e afirma que cada cultura se relaciona com outras e encontra dentro de si seus modos de transformação Dessa maneira o presente está voltado para o futuro e não para o conservadorismo do passado O fim da Filosofia No século XIX o otimismo positivista ou cientificista levou a Filosofia a supor que no futuro só haveria ciências e que todos os conhecimentos e todas as explicações seriam dados por elas Assim a própria Filosofia poderia desaparecer não tendo motivo para existir No entanto no século XX a Filosofia passou a mostrar que as ciências não possuem princípios totalmente certos seguros e rigorosos para as investigações que os resultados podem ser duvidosos e precários e que freqüentemente uma ciência desconhece até onde pode ir e quando está entrando no campo de investigação de uma outra Os princípios os métodos os conceitos e os resultados de uma ciência podem estar totalmente equivocados ou desprovidos de fundamento Com isso a Filosofia voltou a afirmar seu papel de compreensão e interpretação crítica das ciências discutindo a validade de seus princípios procedimentos de pesquisa resultados de suas formas de exposição dos dados e das conclusões etc Foram preocupações com a falta de rigor das ciências que levaram o filósofo alemão Husserl a propor que a Filosofia fosse o estudo e o conhecimento rigoroso da possibilidade do próprio conhecimento científico examinando os fundamentos os métodos e os resultados das ciências Foram também preocupações como essas que levaram filósofos como Bertrand Russel e Quine a estudar a linguagem científica a discutir os problemas lógicos das ciências e a mostrar os paradoxos e os limites do conhecimento científico Marilena Chauí 63 A maioridade da razão No século XIX o otimismo filosófico levava a Filosofia a afirmar que enfim os seres humanos haviam alcançado a maioridade racional e que a razão se desenvolvia plenamente para que o conhecimento completo da realidade e das ações humanas fosse atingido No entanto Marx no final do século XIX e Freud no início do século XX puseram em questão esse otimismo racionalista Marx e Freud cada qual em seu campo de investigação e cada qual voltado para diferentes aspectos da ação humana Marx voltado para a economia e a política Freud voltado para as perturbações e os sofrimentos psíquicos fizeram descobertas que até agora continuam impondo questões filosóficas Que descobriram eles Marx descobriu que temos a ilusão de estarmos pensando e agindo com nossa própria cabeça e por nossa própria vontade racional e livremente de acordo com nosso entendimento e nossa liberdade porque desconhecemos um poder invisível que nos força a pensar como pensamos e agir como agimos A esse poder que é social ele deu o nome de ideologia Freud por sua vez mostrou que os seres humanos têm a ilusão de que tudo quanto pensam fazem sentem e desejam tudo quanto dizem ou calam estaria sob o controle de nossa consciência porque desconhecemos a existência de uma força invisível de um poder que é psíquico e social que atua sobre nossa consciência sem que ela o saiba A esse poder que domina e controla invisível e profundamente nossa vida consciente ele deu o nome de inconsciente Diante dessas duas descobertas a Filosofia se viu forçada a reabrir a discussão sobre o que é e o que pode a razão sobre o que é e o que pode a consciência reflexiva ou o sujeito do conhecimento sobre o que são e o que podem as aparências e as ilusões Ao mesmo tempo a Filosofia teve que reabrir as discussões éticas e morais O homem é realmente livre ou é inteiramente condicionado pela sua situação psíquica e histórica Se for inteiramente condicionado então a História e a cultura são causalidades necessárias como a Natureza Ou seria mais correto indagar Como os seres humanos conquistam a liberdade em meio a todos os condicionamentos psíquicos históricos econômicos culturais em que vivem Infinito e finito O século XIX prosseguiu uma tradição filosófica que veio desde a Antigüidade e que foi muito alimentada pelo pensamento cristão Nessa tradição o mais importante sempre foi a idéia do infinito isto é da Natureza eterna dos gregos do Deus eterno dos cristãos do desenvolvimento pleno e total da História ou do tempo como totalização de todos os seus momentos ou suas etapas Prevalecia a idéia de todo ou de totalidade da qual os humanos fazem parte e na qual os humanos participam Convite à Filosofia 64 No entanto a Filosofia do século XX tendeu a dar maior importância ao finito isto é ao que surge e desaparece ao que tem fronteiras e limites Esse interesse pelo finito aparece por exemplo numa corrente filosófica entre os anos 30 e 50 chamada existencialismo e que definiu o humano ou o homem como um ser para a morte isto é um ser que sabe que termina e que precisa encontrar em si mesmo o sentido de sua existência Para a maioria dos existencialistas dois eram os modos privilegiados de o homem aceitar e enfrentar sua finitude através das artes e através da ação políticorevolucionária Nessas formas excepcionais da atividade os humanos seriam capazes de dar sentido à brevidade e finitude de suas vidas Um outro exemplo do interesse pela finitude aparece no que se costuma chamar de filosofia da diferença isto é naquela filosofia que se interessa menos pelas semelhanças e identidades e muito mais pela singularidade e particularidade É assim por exemplo que tal filosofia inspirandose nos trabalhos dos antropólogos interessase pela diversidade pluralidade singularidade das diferentes culturas em lugar de voltarse para a idéia de uma cultura universal que foi no século XIX uma das imagens do infinito isto é de uma totalidade que conteria dentro de si como suas partes ou seus momentos as diferentes culturas singulares Enfim um outro exemplo de interesse pela finitude aparece quando a Filosofia em vez de buscar uma ciência universal que conteria dentro de si todas as ciências particulares interessase pela multiplicidade e pela diferença entre as ciências pelos limites de cada uma delas e sobretudo por seus impasses e problemas insolúveis Temas disciplinas e campos filosóficos A Filosofia existe há 25 séculos Durante uma história tão longa e de tantos períodos diferentes surgiram temas disciplinas e campos de investigação filosóficos enquanto outros desapareceram Desapareceu também a idéia de Aristóteles de que a Filosofia era a totalidade dos conhecimentos teóricos e práticos da humanidade Também desapareceu uma imagem que durou muitos séculos na qual a Filosofia era representada como uma grande árvore frondosa cujas raízes eram a metafísica e a teologia cujo tronco era a lógica cujos ramos principais eram a filosofia da Natureza a ética e a política e cujos galhos extremos eram as técnicas as artes e as invenções A Filosofia vista como uma totalidade orgânica ou viva era chamada de rainha das ciências Isso desapareceu Pouco a pouco as várias ciências particulares foram definindo seus objetivos seus métodos e seus resultados próprios e se desligaram da grande árvore Cada ciência ao se desligar levou consigo os conhecimentos práticos ou aplicados de seu campo de investigação isto é as artes e as técnicas a ele ligadas As últimas Marilena Chauí 65 ciências a aparecer e a se desligar da árvore da Filosofia foram as ciências humanas psicologia sociologia antropologia história lingüística geografia etc Outros campos de conhecimento e de ação abriramse para a Filosofia mas a idéia de uma totalidade de saberes que conteria em si todos os conhecimentos nunca mais reapareceu No século XX a Filosofia foi submetida a uma grande limitação quanto à esfera de seus conhecimentos Isso pode ser atribuído a dois motivos principais 1 Desde o final do século XVIII com o filósofo alemão Immanuel Kant passou se a considerar que a Filosofia durante todos os séculos anteriores tivera uma pretensão irrealizável Que pretensão fora essa A de que nossa razão pode conhecer as coisas tais como são em si mesmas Esse conhecimento da realidade em si dos primeiros princípios e das primeiras causas de todas as coisas chama se metafísica Kant negou que a razão humana tivesse tal poder de conhecimento e afirmou que só conhecemos as coisas tais como são organizadas pela estrutura interna e universal de nossa razão mas nunca saberemos se tal organização corresponde ou não à organização em si da própria realidade Deixando de ser metafísica a Filosofia se tornou o conhecimento das condições de possibilidade do conhecimento verdadeiro enquanto conhecimento possível para os seres humanos racionais A Filosofia tornouse uma teoria do conhecimento ou uma teoria sobre a capacidade e a possibilidade humana de conhecer e uma ética ou estudo das condições de possibilidade da ação moral enquanto realizada por liberdade e por dever Com isso a Filosofia deixava de ser conhecimento do mundo em si e tornavase apenas conhecimento do homem enquanto ser racional e moral 2 Desde meados do século XIX como conseqüência da filosofia de Augusto Comte chamada de positivismo foi feita uma separação entre Filosofia e ciências positivas matemática física química biologia astronomia sociologia As ciências dizia Comte estudam a realidade natural social psicológica e moral e são propriamente o conhecimento Para ele a Filosofia seria apenas uma reflexão sobre o significado do trabalho científico isto é uma análise e uma interpretação dos procedimentos ou das metodologias usadas pelas ciências e uma avaliação dos resultados científicos A Filosofia tornouse assim uma teoria das ciências ou epistemologia episteme em grego quer dizer ciência A Filosofia reduziuse portanto à teoria do conhecimento à ética e à epistemologia Como conseqüência dessa redução os filósofos passaram a ter um interesse primordial pelo conhecimento das estruturas e formas de nossa consciência e também pelo seu modo de expressão isto é a linguagem O interesse pela consciência reflexiva ou pelo sujeito do conhecimento deu surgimento a uma corrente filosófica conhecida como fenomenologia iniciada Convite à Filosofia 66 pelo filósofo alemão Edmund Husserl Já o interesse pelas formas e pelos modos de funcionamento da linguagem corresponde a uma corrente filosófica conhecida como filosofia analítica cujo início é atribuído ao filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein No entanto a atividade filosófica não se restringiu à teoria do conhecimento à lógica à epistemologia e à ética Desde o início do século XX a História da Filosofia tornouse uma disciplina de grande prestígio e com ela a história das idéias e a história das ciências Desde a Segunda Guerra Mundial com o fenômeno do totalitarismo fascismo nazismo stalinismo com as guerras de libertação nacional contra os impérios coloniais e as revoluções socialistas em vários países desde os anos 60 com as lutas contra ditaduras e com os movimentos por direitos negros índios mulheres idosos homossexuais loucos crianças os excluídos econômica e politicamente e desde os anos 70 com a luta pela democracia em países submetidos a regimes autoritários um grande interesse pela filosofia política ressurgiu e com ele as críticas de ideologias e uma nova discussão sobre as relações entre a ética e a política além das discussões em torno da filosofia da História Atualmente um movimento filosófico conhecido como desconstrutivismo ou pósmodernismo vem ganhando preponderância Seu alvo principal é a crítica de todos os conceitos e valores que até hoje sustentaram a Filosofia e o pensamento dito ocidental razão saber sujeito objeto História espaço tempo liberdade necessidade acaso Natureza homem etc Quais são os campos próprios em que se desenvolve a reflexão filosófica nestes vinte e cinco séculos São eles Ontologia ou metafísica conhecimento dos princípios e fundamentos últimos de toda a realidade de todos os seres Lógica conhecimento das formas gerais e regras gerais do pensamento correto e verdadeiro independentemente dos conteúdos pensados regras para a demonstração científica verdadeira regras para pensamentos nãocientíficos regras sobre o modo de expor os conhecimentos regras para a verificação da verdade ou falsidade de um pensamento etc Epistemologia análise crítica das ciências tanto as ciências exatas ou matemáticas quanto as naturais e as humanas avaliação dos métodos e dos resultados das ciências compatibilidades e incompatibilidades entre as ciências formas de relações entre as ciências etc Teoria do conhecimento ou estudo das diferentes modalidades de conhecimento humano o conhecimento sensorial ou sensação e percepção a memória e a imaginação o conhecimento intelectual a idéia de verdade e falsidade a idéia de ilusão e realidade formas de conhecer o espaço e o tempo formas de conhecer Marilena Chauí 67 relações conhecimento ingênuo e conhecimento científico diferença entre conhecimento científico e filosófico etc Ética estudo dos valores morais as virtudes da relação entre vontade e paixão vontade e razão finalidades e valores da ação moral idéias de liberdade responsabilidade dever obrigação etc Filosofia política estudo sobre a natureza do poder e da autoridade idéia de direito lei justiça dominação violência formas dos regimes políticos e suas fundamentações nascimento e formas do Estado idéias autoritárias conservadoras revolucionárias e libertárias teorias da revolução e da reforma análise e crítica das ideologias Filosofia da História estudo sobre a dimensão temporal da existência humana como existência sociopolítica e cultural teorias do progresso da evolução e teorias da descontinuidade histórica significado das diferenças culturais e históricas suas razões e conseqüências Filosofia da arte ou estética estudo das formas de arte do trabalho artístico idéia de obra de arte e de criação relação entre matéria e forma nas artes relação entre arte e sociedade arte e política arte e ética Filosofia da linguagem a linguagem como manifestação da humanidade do homem signos significações a comunicação passagem da linguagem oral à escrita da linguagem cotidiana à filosófica à literária à científica diferentes modalidades de linguagem como diferentes formas de expressão e de comunicação História da Filosofia estudo dos diferentes períodos da Filosofia de grupos de filósofos segundo os temas e problemas que abordam de relações entre o pensamento filosófico e as condições econômicas políticas sociais e culturais de uma sociedade mudanças ou transformações de conceitos filosóficos em diferentes épocas mudanças na concepção do que seja a Filosofia e de seu papel ou finalidade Convite à Filosofia 68 Unidade 2 A Razão Marilena Chauí 69 Capítulo 1 A Razão Os vários sentidos da palavra razão Nos capítulos precedentes insistimos muito na afirmação de que a Filosofia se realiza como conhecimento racional da realidade natural e cultural das coisas e dos seres humanos Dissemos que ela confia na razão e que hoje ela também desconfia da razão Mas até agora não dissemos o que é a razão apesar de ser ela tão antiga quanto a Filosofia Em nossa vida cotidiana usamos a palavra razão em muitos sentidos Dizemos por exemplo eu estou com a razão ou ele não tem razão para significar que nos sentimos seguros de alguma coisa ou que sabemos com certeza alguma coisa Também dizemos que num momento de fúria ou de desespero alguém perde a razão como se a razão fosse alguma coisa que se pode ter ou não ter possuir e perder ou recuperar como na frase Agora ela está lúcida recuperou a razão Falamos também frases como Se você me disser suas razões sou capaz de fazer o que você me pede querendo dizer com isso que queremos ouvir os motivos que alguém tem para querer ou fazer alguma coisa Fazemos perguntas como Qual a razão disso querendo saber qual a causa de alguma coisa e nesse caso a razão parece ser alguma propriedade que as próprias coisas teriam já que teriam uma causa Assim usamos razão para nos referirmos a motivos de alguém e também para nos referirmos a causas de alguma coisa de modo que tanto nós quanto as coisas parecemos dotados de razão mas em sentido diferente Esses poucos exemplos já nos mostram quantos sentidos diferentes a palavra razão possui certeza lucidez motivo causa E todos esses sentidos encontram se presentes na Filosofia Por identificar razão e certeza a Filosofia afirma que a verdade é racional por identificar razão e lucidez não ficar ou não estar louco a Filosofia chama nossa razão de luz e luz natural por identificar razão e motivo por considerar que Convite à Filosofia 70 sempre agimos e falamos movidos por motivos a Filosofia afirma que somos seres racionais e que nossa vontade é racional por identificar razão e causa e por julgar que a realidade opera de acordo com relações causais a Filosofia afirma que a realidade é racional É muito conhecida a célebre frase de Pascal filósofo francês do século XVII O coração tem razões que a razão desconhece Nessa frase as palavras razões e razão não têm o mesmo significado indicando coisas diversas Razões são os motivos do coração enquanto razão é algo diferente de coração este é o nome que damos para as emoções e paixões enquanto razão é o nome que damos à consciência intelectual e moral Ao dizer que o coração tem suas próprias razões Pascal está afirmando que as emoções os sentimentos ou as paixões são causas de muito do que fazemos dizemos queremos e pensamos Ao dizer que a razão desconhece as razões do coração Pascal está afirmando que a consciência intelectual e moral é diferente das paixões e dos sentimentos e que ela é capaz de uma atividade própria não motivada e causada pelas emoções mas possuindo seus motivos ou suas próprias razões Assim a frase de Pascal pode ser traduzida da seguinte maneira Nossa vida emocional possui causas e motivos as razões do coração que são as paixões ou os sentimentos e é diferente de nossa atividade consciente seja como atividade intelectual seja como atividade moral A consciência é a razão Coração e razão paixão e consciência intelectual ou moral são diferentes Se alguém perde a razão é porque está sendo arrastado pelas razões do coração Se alguém recupera a razão é porque o conhecimento intelectual e a consciência moral se tornaram mais fortes do que as paixões A razão enquanto consciência moral é a vontade racional livre que não se deixa dominar pelos impulsos passionais mas realiza as ações morais como atos de virtude e de dever ditados pela inteligência ou pelo intelecto Além da frase de Pascal também ouvimos outras que elogiam as ciências dizendo que elas manifestam o progresso da razão Aqui a razão é colocada como capacidade puramente intelectual para conseguir o conhecimento verdadeiro da Natureza da sociedade da História e isto é considerado algo bom positivo um progresso Por ser considerado um progresso o conhecimento científico é visto como se realizando no tempo e como dotado de continuidade de tal modo que a razão é concebida como temporal também isto é como capaz de aumentar seus conteúdos e suas capacidades através dos tempos Algumas vezes ouvimos um professor dizer a outro Fulano trouxe um trabalho irracional era um caos uma confusão Incompreensível Já o trabalho de beltrano era uma beleza claro compreensível racional Aqui a razão ou racional Marilena Chauí 71 significa clareza das idéias ordem resultado de esforço intelectual ou da inteligência seguindo normas e regras de pensamento e de linguagem Todos esses sentidos constituem a nossa idéia de razão Nós a consideramos a consciência moral que observa as paixões orienta a vontade e oferece finalidades éticas para a ação Nós a vemos como atividade intelectual de conhecimento da realidade natural social psicológica histórica Nós a concebemos segundo o ideal da clareza da ordenação e do rigor e precisão dos pensamentos e das palavras Para muitos filósofos porém a razão não é apenas a capacidade moral e intelectual dos seres humanos mas também uma propriedade ou qualidade primordial das próprias coisas existindo na própria realidade Para esses filósofos nossa razão pode conhecer a realidade Natureza sociedade História porque ela é racional em si mesma Falase portanto em razão objetiva a realidade é racional em si mesma e em razão subjetiva a razão é uma capacidade intelectual e moral dos seres humanos A razão objetiva é a afirmação de que o objeto do conhecimento ou a realidade é racional a razão subjetiva é a afirmação de que o sujeito do conhecimento e da ação é racional Para muitos filósofos a Filosofia é o momento do encontro do acordo e da harmonia entre as duas razões ou racionalidades Origem da palavra razão Na cultura da chamada sociedade ocidental a palavra razão originase de duas fontes a palavra latina ratio e a palavra grega logos Essas duas palavras são substantivos derivados de dois verbos que têm um sentido muito parecido em latim e em grego Logos vem do verbo legein que quer dizer contar reunir juntar calcular Ratio vem do verbo reor que quer dizer contar reunir medir juntar separar calcular Que fazemos quando medimos juntamos separamos contamos e calculamos Pensamos de modo ordenado E de que meios usamos para essas ações Usamos palavras mesmo quando usamos números estamos usando palavras sobretudo os gregos e os romanos que usavam letras para indicar números Por isso logos ratio ou razão significam pensar e falar ordenadamente com medida e proporção com clareza e de modo compreensível para outros Assim na origem razão é a capacidade intelectual para pensar e exprimirse correta e claramente para pensar e dizer as coisas tais como são A razão é uma maneira de organizar a realidade pela qual esta se torna compreensível É também a confiança de que podemos ordenar e organizar as coisas porque são organizáveis ordenáveis compreensíveis nelas mesmas e por elas mesmas isto é as próprias coisas são racionais Convite à Filosofia 72 Desde o começo da Filosofia a origem da palavra razão fez com que ela fosse considerada oposta a quatro outras atitudes mentais 1 ao conhecimento ilusório isto é ao conhecimento da mera aparência das coisas que não alcança a realidade ou a verdade delas para a razão a ilusão provém de nossos costumes de nossos preconceitos da aceitação imediata das coisas tais como aparecem e tais como parecem ser As ilusões criam as opiniões que variam de pessoa para pessoa e de sociedade para sociedade A razão se opõe à mera opinião 2 às emoções aos sentimentos às paixões que são cegas caóticas desordenadas contrárias umas às outras ora dizendo sim a alguma coisa ora dizendo não a essa mesma coisa como se não soubéssemos o que queremos e o que as coisas são A razão é vista como atividade ou ação intelectual e da vontade oposta à paixão ou à passividade emocional 3 à crença religiosa pois nesta a verdade nos é dada pela fé numa revelação divina não dependendo do trabalho de conhecimento realizado pela nossa inteligência ou pelo nosso intelecto A razão é oposta à revelação e por isso os filósofos cristãos distinguem a luz natural a razão da luz sobrenatural a revelação 4 ao êxtase místico no qual o espírito mergulha nas profundezas do divino e participa dele sem qualquer intervenção do intelecto ou da inteligência nem da vontade Pelo contrário o êxtase místico exige um estado de abandono de rompimento com a atividade intelectual e com a vontade um rompimento com o estado consciente para entregarse à fruição do abismo infinito A razão ou consciência se opõe à inconsciência do êxtase Os princípios racionais Desde seus começos a Filosofia considerou que a razão opera seguindo certos princípios que ela própria estabelece e que estão em concordância com a própria realidade mesmo quando os empregamos sem conhecêlos explicitamente Ou seja o conhecimento racional obedece a certas regras ou leis fundamentais que respeitamos até mesmo quando não conhecemos diretamente quais são e o que são Nós as respeitamos porque somos seres racionais e porque são princípios que garantem que a realidade é racional Que princípios são esses São eles Princípio da identidade cujo enunciado pode parecer surpreendente A é A ou O que é é O princípio da identidade é a condição do pensamento e sem ele não podemos pensar Ele afirma que uma coisa seja ela qual for um ser da Natureza uma figura geométrica um ser humano uma obra de arte uma ação só pode ser conhecida e pensada se for percebida e conservada com sua identidade Marilena Chauí 73 Por exemplo depois que um matemático definir o triângulo como figura de três lados e de três ângulos não só nenhuma outra figura que não tenha esse número de lados e de ângulos poderá ser chamada de triângulo como também todos os teoremas e problemas que o matemático demonstrar sobre o triângulo só poderão ser demonstrados se a cada vez que ele disser triângulo soubermos a qual ser ou a qual coisa ele está se referindo O princípio da identidade é a condição para que definamos as coisas e possamos conhecêlas a partir de suas definições Princípio da nãocontradição também conhecido como princípio da contradição cujo enunciado é A é A e é impossível que seja ao mesmo tempo e na mesma relação nãoA Assim é impossível que a árvore que está diante de mim seja e não seja uma mangueira que o cachorrinho de dona Filomena seja e não seja branco que o triângulo tenha e não tenha três lados e três ângulos que o homem seja e não seja mortal que o vermelho seja e não seja vermelho etc Sem o princípio da nãocontradição o princípio da identidade não poderia funcionar O princípio da nãocontradição afirma que uma coisa ou uma idéia que se negam a si mesmas se autodestroem desaparecem deixam de existir Afirma também que as coisas e as idéias contraditórias são impensáveis e impossíveis Princípio do terceiroexcluído cujo enunciado é Ou A é x ou é y e não há terceira possibilidade Por exemplo Ou este homem é Sócrates ou não é Sócrates Ou faremos a guerra ou faremos a paz Este princípio define a decisão de um dilema ou isto ou aquilo e exige que apenas uma das alternativas seja verdadeira Mesmo quando temos por exemplo um teste de múltipla escolha escolhemos na verdade apenas entre duas opções ou está certo ou está errado e não há terceira possibilidade ou terceira alternativa pois entre várias escolhas possíveis só há realmente duas a certa ou a errada Princípio da razão suficiente que afirma que tudo o que existe e tudo o que acontece tem uma razão causa ou motivo para existir ou para acontecer e que tal razão causa ou motivo pode ser conhecida pela nossa razão O princípio da razão suficiente costuma ser chamado de princípio da causalidade para indicar que a razão afirma a existência de relações ou conexões internas entre as coisas entre fatos ou entre ações e acontecimentosPode ser enunciado da seguinte maneira Dado A necessariamente se dará B E também Dado B necessariamente houve A Isso não significa que a razão não admita o acaso ou ações e fatos acidentais mas sim que ela procura mesmo para o acaso e para o acidente uma causa A diferença entre a causa ou razão suficiente e a causa casual ou acidental está em que a primeira se realiza sempre é universal e necessária enquanto a causa acidental ou casual só vale para aquele caso particular para aquela situação específica não podendo ser generalizada e ser considerada válida para todos os Convite à Filosofia 74 casos ou situações iguais ou semelhantes pois justamente o caso ou a situação são únicos A morte por exemplo é um efeito necessário e universal válido para todos os tempos e lugares da guerra e a guerra é a causa necessária e universal da morte de pessoas Mas é imprevisível ou acidental que esta ou aquela guerra aconteçam Podem ou não podem acontecer Nenhuma causa universal exige que aconteçam Mas se uma guerra acontecer terá necessariamente como efeito mortes Mas as causas dessa guerra são somente as dessa guerra e de nenhuma outra Diferentemente desse caso o princípio da razão suficiente está vigorando plenamente quando por exemplo Galileu demonstrou as leis universais do movimento dos corpos em queda livre isto é no vácuo Pelo que foi exposto podemos observar que os princípios da razão apresentam algumas características importantes não possuem um conteúdo determinado pois são formas indicam como as coisas devem ser e como devemos pensar mas não nos dizem quais coisas são nem quais os conteúdos que devemos ou vamos pensar possuem validade universal isto é onde houver razão nos seres humanos e nas coisas nos fatos e nos acontecimentos em todo o tempo e em todo lugar tais princípios são verdadeiros e empregados por todos os humanos e obedecidos por todos coisas fatos acontecimentos são necessários isto é indispensáveis para o pensamento e para a vontade indispensáveis para as coisas os fatos e os acontecimentos Indicam que algo é assim e não pode ser de outra maneira Necessário significa é impossível que não seja dessa maneira e que pudesse ser de outra Ampliando nossa idéia de razão A idéia de razão que apresentamos até aqui e que constitui o ideal de racionalidade criado pela sociedade européia ocidental sofreu alguns abalos profundos desde o início do século XX Aqui vamos apenas oferecer alguns exemplos dos problemas que a Filosofia precisou enfrentar e que levaram a uma ampliação da idéia da razão Um primeiro abalo veio das ciências da Natureza ou mais precisamente da física e atingiu o princípio do terceiroexcluído A física da luz ou óptica descobriu que a luz tanto pode ser explicada por ondas luminosas quanto por partículas descontínuas Isso significou que já não se podia dizer ou a luz se propaga por ondas contínuas ou se propaga por partículas descontínuas como exigiria o princípio do terceiroexcluído mas sim que a luz pode propagarse tanto de uma maneira como de outra Por sua vez a física atômica ou quântica abalou o princípio da razão suficiente Vimos que esse princípio afirma que conhecido A posso determinar como dele Marilena Chauí 75 necessariamente resultará B ou conhecido B posso determinar necessariamente como era A que o causou Em outras palavras conhecido o estado E de um fenômeno posso deduzir como será o estado E2 ou E3 e viceversa conhecidos E3 e E2 posso dizer como era o estado E Ora a física dos átomos revelou que isso não é possível que não podemos saber as razões pelas quais os átomos se movimentam nem sua velocidade e direção nem os efeitos que produzirão Esses dois problemas levaram a introduzir um novo princípio racional na Natureza o princípio da indeterminação Assim o princípio da razão suficiente é válido para os fenômenos macroscópicos enquanto o princípio da indeterminação é válido para os fenômenos em escala hipermicroscópica Um outro problema veio abalar o princípio da identidade e da nãocontradição A física sempre considerou que a Natureza obedece às leis universais da razão objetiva sem depender da razão subjetiva Em outras palavras as leis da Natureza existem por si mesmas são necessárias e universais por si mesmas e não dependem do sujeito do conhecimento Contudo a teoria da relatividade mostrou que as leis da Natureza dependem da posição ocupada pelo observador isto é pelo sujeito do conhecimento e portanto para um observador situado fora de nosso sistema planetário a Natureza poderá seguir leis completamente diferentes de tal modo que por exemplo o que é o espaço e o tempo para nós poderá não ser para outros seres se existirem da galáxia a geometria que seguimos pode não ser a que tenha sentido noutro sistema planetário o que pode ser contraditório para nós poderá não ser para habitantes de outra galáxia e assim por diante Um outro problema também atingindo os princípios da razão foi trazido pela lógica O lógico alemão Frege apresentou o seguinte problema quando digo a estrela da manhã é a estrela da tarde estou caindo em contradição e perdendo o princípio da identidade No entanto estrela da manhã é o planeta Vênus e estrela da tarde também é o planeta Vênus dessa perspectiva não há contradição alguma no que digo É preciso então distinguir em nosso pensamento e em nossa linguagem três níveis o objeto a que nós nos referimos os enunciados que empregamos e o sentido desses enunciados em sua relação com o objeto referido Somente dessa maneira podemos manter a racionalidade dos princípios da identidade da nãocontradição e do terceiroexcluído Enfim um outro tipo de problema foi trazido com o desenvolvimento dos estudos da antropologia que mostraram como outras culturas podem oferecer uma concepção muito diferente da que estamos acostumados sobre o pensamento e a realidade Isso não significa como imaginaram durante séculos os colonizadores que tais culturas ou sociedades sejam irracionais ou préracionais e sim que possuem uma outra idéia do conhecimento e outros critérios para a explicação da realidade Convite à Filosofia 76 Como a palavra razão é européia e ocidental parece difícil falarmos numa outra razão que seria própria de outros povos e culturas No entanto o que os estudos antropológicos mostraram é que precisamos reconhecer a nossa razão e a razão deles que se trata de uma outra razão e não da mesma razão em diferentes graus de uma única evolução Indeterminação da Natureza pluralidade de enunciados para um mesmo objeto pluralidade e diferenciação das culturas foram alguns dos problemas que abalaram a razão no século XX A esse abalo devemos acrescentar dois outros O primeiro deles foi trazido por um nãofilósofo Marx quando introduziu a noção de ideologia o segundo também foi trazido por um nãofilósofo Freud quando introduziu o conceito de inconsciente A noção de ideologia veio mostrar que as teorias e os sistemas filosóficos ou científicos aparentemente rigorosos e verdadeiros escondiam a realidade social econômica e política e que a razão em lugar de ser a busca e o conhecimento da verdade poderia ser um poderoso instrumento de dissimulação da realidade a serviço da exploração e da dominação dos homens sobre seus semelhantes A razão seria um instrumento da falsificação da realidade e de produção de ilusões pelas quais uma parte do gênero humano se deixa oprimir pela outra A noção de inconsciente por sua vez revelou que a razão é muito menos poderosa do que a Filosofia imaginava pois nossa consciência é em grande parte dirigida e controlada por forças profundas e desconhecidas que permanecem inconscientes e jamais se tornarão plenamente conscientes e racionais A razão e a loucura fazem parte de nossa estrutura mental e de nossas vidas e muitas ve zes como por exemplo no fenômeno do nazismo a razão é louca e destrutiva Fatos como esses as descobertas na física na lógica na antropologia na história na psicanálise levaram o filósofo francês MerleauPonty a dizer que uma das tarefas mais importantes da Filosofia contemporânea deveria ser a de encontrar uma nova idéia da razão uma razão alargada na qual pudessem entrar os princípios da racionalidade definidos por outras culturas e encontrados pelas descobertas científicas Esse alargamento é duplamente necessário e importante Em primeiro lugar porque ele exprime a luta contra o colonialismo e contra o etnocentrismo isto é contra a visão de que a nossa razão e a nossa cultura são superiores e melhores do que as dos outros povos Em segundo lugar porque a razão estaria destinada ao fracasso se não fosse capaz de oferecer para si mesma novos princípios exigidos pelo seu próprio trabalho racional de conhecimento Marilena Chauí 77 Capítulo 2 A atividade racional A atividade racional e suas modalidades A Filosofia distingue duas grandes modalidades da atividade racional realizadas pela razão subjetiva ou pelo sujeito do conhecimento a intuição ou razão intuitiva e o raciocínio ou razão discursiva A atividade racional discursiva como a própria palavra indica discorre percorre uma realidade ou um objeto para chegar a conhecêlo isto é realiza vários atos de conhecimento até conseguir captálo A razão discursiva ou o pensamento discursivo chega ao objeto passando por etapas sucessivas de conhecimento realizando esforços sucessivos de aproximação para chegar ao conceito ou à definição do objeto A razão intuitiva ou intuição ao contrário consiste num único ato do espírito que de uma só vez capta por inteiro e completamente o objeto Em latim intuitos significa ver A intuição é uma visão direta e imediata do objeto do conhecimento um contato direto e imediato com ele sem necessidade de provas ou demonstrações para saber o que conhece A intuição A intuição é uma compreensão global e instantânea de uma verdade de um objeto de um fato Nela de uma só vez a razão capta todas as relações que constituem a realidade e a verdade da coisa intuída É um ato intelectual de discernimento e compreensão como por exemplo tem um médico quando faz um diagnóstico e apreende de uma só vez a doença sua causa e o modo de tratá la Os psicólogos se referem à intuição usando o termo insight para referiremse ao momento em que temos uma compreensão total direta e imediata de alguma coisa ou o momento em que percebemos num só lance um caminho para a solução de um problema científico filosófico ou vital Um exemplo de intuição pode ser encontrado no romance de Guimarães Rosa Grande Sertão Veredas Riobaldo e Diadorim são dois jagunços ligados pela mais profunda amizade e lealdade companheiros de lutas e cumpridores de uma vingança de sangue contra os assassinos da família de Diadorim Riobaldo porém sentese cheio de angústia e atormentado pois seus sentimentos por Diadorim são confusos como se entre eles houvesse muito mais do que a amizade Diadorim é assassinado Quando o corpo é trazido para ser preparado para o funeral Riobaldo descobre que Diadorim era mulher De uma só vez num Convite à Filosofia 78 só lance Riobaldo compreende tudo o que sentia todos os fatos acontecidos entre eles todas as conversas que haviam tido todos os gestos estranhos de Diadorim e compreende instantaneamente a verdade estivera apaixonado por Diadorim A razão intuitiva pode ser de dois tipos intuição sensível ou empírica e intuição intelectual 1 A intuição sensível ou empírica do grego empeiria experiência sensorial é o conhecimento que temos a todo o momento de nossa vida Assim com um só olhar ou num só ato de visão percebemos uma casa um homem uma mulher uma flor uma mesa Num só ato por exemplo capto que isto é uma flor vejo sua cor e suas pétalas sinto a maciez de sua textura aspiro seu perfume tenhoa por inteiro e de uma só vez diante de mim A intuição empírica é o conhecimento direto e imediato das qualidades sensíveis do objeto externo cores sabores odores paladares texturas dimensões distâncias É também o conhecimento direto e imediato de estados internos ou mentais lembranças desejos sentimentos imagens A intuição sensível ou empírica é psicológica isto é referese aos estados do sujeito do conhecimento enquanto um ser corporal e psíquico individual sensações lembranças imagens sentimentos desejos e percepções são exclusivamente pessoais Assim a marca da intuição empírica é sua singularidade por um lado está ligada à singularidade do objeto intuído ao isto oferecido à sensação e à percepção e por outro está ligada à singularidade do sujeito que intui aos meus estados psíquicos às minhas experiências A intuição empírica não capta o objeto em sua universalidade e a experiência intuitiva não é transferível para um outro objeto Riobaldo teve uma intuição empírica 2 A intuição intelectual difere da sensível justamente por sua universalidade e necessidade Quando penso Uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo sei sem necessidade de provas ou demonstrações que isto é verdade Ou seja tenho conhecimento intuitivo do princípio da contradição Quando digo O amarelo é diferente do azul sei sem necessidade de provas e demonstrações que há diferenças Vejo na intuição sensível a cor amarela e a cor azul mas vejo na intuição intelectual a diferença entre cores Quando afirmo O todo é maior do que as partes sei sem necessidade de provas e demonstrações que isto é verdade porque intuo uma forma necessária de relação entre as coisas A intuição intelectual é o conhecimento direto e imediato dos princípios da razão identidade contradição terceiro excluído razão suficiente das relações necessárias entre os seres ou entre as idéias da verdade de uma idéia ou de um ser Marilena Chauí 79 Na história da Filosofia o exemplo mais célebre de intuição intelectual é conhecido como o cogito cartesiano isto é a afirmação de Descartes Penso cogito logo existo De fato quando penso sei que estou pensando e não é preciso provar ou demonstrar isso mesmo porque provar e demonstrar é pensar e para demonstrar e provar é preciso primeiro pensar e saber que se pensa Quando digo Penso logo existo estou simplesmente afirmando racionalmente que sei que sou um ser pensante ou que existo pensando sem necessidade de provas e demonstrações A intuição capta num único ato intelectual a verdade do pensamento pensando em si mesmo Um outro exemplo de intuição intelectual é oferecido pela fenomenologia criada por Husserl Tratase da intuição intelectual de essências ou significações Toda consciência diz Husserl é sempre consciência de ou consciência de alguma coisa isto é toda consciência é um ato pelo qual visamos um objeto um fato uma idéia A consciência representa os objetos os fatos as pessoas Cada representação pode ser obtida por um passeio ou um percurso que nossa consciência faz à volta de um objeto Essas várias representações são psicológicas e individuais e o objeto delas o representado também é individual ou singular Por exemplo diz Husserl quando quero pensar em alguém como Napoleão posso representálo ganhando a batalha de Waterloo prisioneiro na ilha de Elba e na ilha de Santa Helena montado em seu cavalo branco usando o chapéu de três pontas e com a mão direita enfiada na túnica Cada uma dessas representações é singular por um lado cada uma delas é um ato psicológico singular que eu realizo um ato de lembrar um ato de ver a imagem de Napoleão num quadro um ato de ler sobre ele num livro etc e por outro cada uma delas possui um representante singular Napoleão a cavalo Napoleão na batalha de Waterloo Napoleão fugindo de Elba etc No entanto embora sejam singulares e distintas umas das outras todas possuem o mesmo representado o mesmo significado a mesma significação ou a mesma essência Napoleão Quando colocamos de lado a singularidade psicológica de cada uma de nossas representações e a singularidade de cada um dos representantes ficando apenas com a idéia ou significação Napoleão como uma universalidade ou generalidade temos uma intuição da essência Napoleão A intuição da essência é a apreensão intelectual imediata e direta de uma significação deixando de lado as particularidades dos representantes que indicam empiricamente a significação É assim que tenho intuição intelectual da essência ou significação triângulo imaginação memória natureza cor diferença Europa pintura literatura tempo espaço coisa quantidade qualidade etc Intuímos idéias Convite à Filosofia 80 Falase também de uma intuição emotiva ou valorativa Tratase daquela intuição na qual juntamente com o sentido ou significação de alguma coisa captamos também seu valor isto é com a idéia intuímos também se a coisa ou essência é verdadeira ou falsa bela ou feia boa ou má justa ou injusta possível ou impossível etc Ou seja a intuição intelectual capta a essência do objeto o que ele é e a intuição emotiva ou valorativa capta essa essência pelo que o objeto vale A razão discursiva dedução indução e abdução A intuição pode ser o ponto de chegada a conclusão de um processo de conhecimento e pode também ser o ponto de partida de um processo cognitivo O processo de conhecimento seja o que chega a uma intuição seja o que parte dela constitui a razão discursiva ou o raciocínio Ao contrário da intuição o raciocínio é o conhecimento que exige provas e demonstrações e se realiza igualmente por meio de provas e demonstrações das verdades que estão sendo conhecidas ou investigadas Não é um ato intelectual mas são vários atos intelectuais internamente ligados ou conectados formando um processo de conhecimento Um caçador sai pela manhã em busca da caça Entra no mato e vê rastros choveu na véspera e há pegadas no chão pequenos galhos rasteiros estão quebrados o capim está amassado em vários pontos a carcaça de um bicho está à mostra indicando que foi devorado há poucas horas há um grande silêncio no ar não há canto de pássaros não há ruídos de pequenos animais O caçador supõe que haja uma onça por perto Ele pode então tomar duas atitudes Se por todas as experiências anteriores tiver certeza de que a onça está nas imediações pode prepararse para enfrentála sabe que caminhos evitar se não estiver em condições de caçála sabe que armadilhas armar se estiver pronto para capturála sabe como atraíla se quiser conservála viva e preservar a espécie O caçador pode ainda estar sem muita certeza se há ou não uma onça nos arredores e nesse caso tomará uma série de atitudes para verificar a presença ou ausência do felino pode percorrer trilhas que sabem serem próprias de onças pode examinar melhor as pegadas e o tipo de animal que foi devorado pode comparar em sua memória outras situações nas quais esteve presente uma onça etc Assim partindo de indícios o caçador raciocina para chegar a uma conclusão e tomar uma decisão Temos aí um exercício de raciocínio empírico e prático isto é um pensamento que visa a uma ação e que se assemelha à intuição sensível ou empírica isto é caracterizase pela singularidade ou individualidade do sujeito e do objeto do conhecimento Marilena Chauí 81 Quando porém um raciocínio se realiza em condições tais que a individualidade psicológica do sujeito e a singularidade do objeto são substituídas por critérios de generalidade e universalidade temos a dedução a indução e a abdução A dedução Dedução e indução são procedimentos racionais que nos levam do já conhecido ao ainda não conhecido isto é permitem que adquiramos conhecimentos novos graças a conhecimentos já adquiridos Por isso se costuma dizer que no raciocínio o intelecto opera seguindo cadeias de razões ou os nexos e conexões internos e necessários entre as idéias ou entre os fatos A dedução consiste em partir de uma verdade já conhecida seja por intuição seja por uma demonstração anterior e que funciona como um princípio geral ao qual se subordinam todos os casos que serão demonstrados a partir dela Em outras palavras na dedução partese de uma verdade já conhecida para demonstrar que ela se aplica a todos os casos particulares iguais Por isso também se diz que a dedução vai do geral ao particular ou do universal ao individual O ponto de partida de uma dedução é ou uma idéia verdadeira ou uma teoria verdadeira Por exemplo se definirmos o triângulo como uma figura geométrica cujos lados somados são iguais à soma de dois ângulos retos dela deduziremos todas as propriedades de todos os triângulos possíveis Se tomarmos como ponto de partida as definições geométricas do ponto da linha da superfície e da figura deduziremos todas as figuras geométricas possíveis No caso de uma teoria a dedução permitirá que cada caso particular encontrado seja conhecido demonstrando que a ele se aplicam todas as leis regras e verdades da teoria Por exemplo estabelecida a verdade da teoria física de Newton sabemos que 1 as leis da física são relações dinâmicas de tipo mecânico isto é se referem à relações de força ação e reação entre corpos dotados de figura massa e grandeza 2 os fenômenos físicos ocorrem no espaço e no tempo 3 conhecidas as leis iniciais de um conjunto ou de um sistema de fenômenos poderemos prever os atos que ocorrerão nesse conjunto e nesse sistema Assim se eu quiser conhecer um ato físico particular por exemplo o que acontecerá com o corpo lançado no espaço por uma nave espacial ou qual a velocidade de um projétil lançado de um submarino para atingir um alvo num tempo determinado ou qual é o tempo e a velocidade para um certo astro realizar um movimento de rotação em torno de seu eixo aplicarei a esses casos particulares as leis gerais da física newtoniana e saberei com certeza a resposta verdadeira A dedução é um procedimento pelo qual um fato ou objeto particulares são conhecidos por inclusão numa teoria geral Convite à Filosofia 82 Costumase representar a dedução pela seguinte fórmula Todos os x são y definição ou teoria geral A é x caso particular Portanto A é y dedução Exemplos 1 Todos os homens x são mortais y Sócrates A é homem x Portanto Sócrates A é mortal y 2 Todos os metais x são bons condutores de eletricidade y O mercúrio A é um metal x Portanto o mercúrio A é bom condutor de eletricidade y A razão oferece regras especiais para realizar uma dedução e se tais regras não forem respeitadas a dedução será considerada falsa A indução A indução realiza um caminho exatamente contrário ao da dedução Com a indução partimos de casos particulares iguais ou semelhantes e procuramos a lei geral a definição geral ou a teoria geral que explica e subordina todos esses casos particulares A definição ou a teoria são obtidas no ponto final do percurso E a razão também oferece um conjunto de regras precisas para guiar a indução se tais regras não forem respeitadas a indução será considerada falsa Por exemplo colocamos água no fogo e observamos que ela ferve e se transforma em vapor colocamos leite no fogo e vemos também que ele se transforma em vapor colocamos vários tipos de líquidos no fogo e vemos sempre sua transformação em vapor Induzimos desses casos particulares que o fogo possui uma propriedade que produz a evaporação dos líquidos Essa propriedade é o calor Verificamos porém que os diferentes líquidos não evaporam sempre na mesma velocidade cada um deles portanto deve ter propriedades específicas que os fazem evaporar em velocidades diferentes Descobrimos porém que a velocidade da evaporação não é o fato a ser observado e sim quanto de calor cada líquido precisa para começar a evaporar Se considerarmos a água nosso padrão de medida diremos que ela ferve e começa a evaporar a partir de uma certa quantidade de calor e que é essa quantidade de calor que precisa ser conhecida Podemos a seguir verificar um fenômeno diferente Vemos que água e outros Marilena Chauí 83 líquidos colocados num refrigerador endurecem e se congelam mas que como no caso do vapor cada líquido se congela ou se solidifica em velocidades diferentes Procuramos novamente a causa dessa diferença de velocidade e descobrimos que depende tanto de certas propriedades de cada líquido quanto da quantidade de frio que há no refrigerador Percebemos finalmente que é essa quantidade que devemos procurar Com essas duas séries de fatos vapor e congelamento descobrimos que os estados dos líquidos variam evaporação e solidificação em decorrência da temperatura ambiente calor e frio e que cada líquido atinge o ponto de evaporação ou de solidificação em temperaturas diferentes Com esses dados podemos formular uma teoria da relação entre os estados da matéria sólido líquido e gasoso e as variações de temperatura estabelecendo uma relação necessária entre o estado de um corpo e a temperatura ambiente Chegamos por indução a uma teoria A dedução e a indução são conhecidas com o nome de inferência isto é concluir alguma coisa a partir de outra já conhecida Na dedução dado X infiro concluo a b c d Na indução dados a b c d infiro concluo X A abdução O filósofo inglês Peirce considera que além da dedução e da indução a razão discursiva ou raciocínio também se realiza numa terceira modalidade de inferência embora esta não seja propriamente demonstrativa Essa terceira modalidade é chamada por ele de abdução A abdução é uma espécie de intuição mas que não se dá de uma só vez indo passo a passo para chegar a uma conclusão A abdução é a busca de uma conclusão pela interpretação racional de sinais de indícios de signos O exemplo mais simples oferecido por Peirce para explicar o que seja a abdução são os contos policiais o modo como os detetives vão coletando indícios ou sinais e formando uma teoria para o caso que investigam Segundo Peirce a abdução é a forma que a razão possui quando inicia o estudo de um novo campo científico que ainda não havia sido abordado Ela se aproxima da intuição do artista e da adivinhação do detetive que antes de iniciarem seus trabalhos só contam com alguns sinais que indicam pistas a seguir Os historiadores costumam usar a abdução De modo geral dizse que a indução e a abdução são procedimentos racionais que empregamos para a aquisição de conhecimentos enquanto a dedução é o procedimento racional que empregamos para verificar ou comprovar a verdade de um conhecimento já adquirido Realismo e idealismo Vimos anteriormente que muitos filósofos distinguem razão objetiva e razão subjetiva considerando a Filosofia o encontro e o acordo entre ambas Convite à Filosofia 84 Falar numa razão objetiva significa afirmar que a realidade externa ao nosso pensamento é racional em si e por si mesma e que podemos conhecêla justamente por ser racional Significa dizer por exemplo que o espaço e o tempo existem em si e por si mesmos que as relações matemáticas e de causaefeito existem nas próprias coisas que o acaso existe na própria realidade etc Chamase realismo a posição filosófica que afirma a existência objetiva ou em si da realidade externa como uma realidade racional em si e por si mesma e portanto que afirma a existência da razão objetiva Há filósofos porém que estabelecem uma diferença entre a realidade e o conhecimento racional que dela temos Dizem eles que embora a realidade externa exista em si e por si mesma só podemos conhecêla tal como nossas idéias a formulam e a organizam e não tal como ela seria em si mesma Não podemos saber nem dizer se a realidade exterior é racional em si pois só podemos saber e dizer que ela é racional para nós isto é por meio de nossas idéias Essa posição filosófica é conhecida com o nome de idealismo e afirma apenas a existência da razão subjetiva A razão subjetiva possui princípios e modalidades de conhecimento que são universais e necessários isto é válidos para todos os seres humanos em todos os tempos e lugares O que chamamos realidade portanto é apenas o que podemos conhecer por meio das idéias de nossa razão Marilena Chauí 85 Capítulo 3 A razão inata ou adquirida Inatismo ou empirismo De onde vieram os princípios racionais identidade nãocontradição terceiro excluído e razão suficiente De onde veio a capacidade para a intuição razão intuitiva e para o raciocínio razão discursiva Nascemos com eles Ou nos seriam dados pela educação e pelo costume Seriam algo próprio dos seres humanos constituindo a natureza deles ou seriam adquiridos através da experiência Durante séculos a Filosofia ofereceu duas respostas a essas perguntas A primeira ficou conhecida como inatismo e a segunda como empirismo O inatismo afirma que nascemos trazendo em nossa inteligência não só os princípios racionais mas também algumas idéias verdadeiras que por isso são idéias inatas O empirismo ao contrário afirma que a razão com seus princípios seus procedimentos e suas idéias é adquirida por nós através da experiência Em grego experiência se diz empeiria donde empirismo conhecimento empírico isto é conhecimento adquirido por meio da experiência O inatismo Vamos falar do inatismo tomando dois filósofos como exemplo o filósofo grego Platão século IV aC e o filósofo francês Descartes século XVII Inatismo platônico Platão defende a tese do inatismo da razão ou das idéias verdadeiras em várias de suas obras mas as passagens mais conhecidas se encontram nos diálogos Mênon e A República No Mênon Sócrates dialoga com um jovem escravo analfabeto Fazendolhe perguntas certas na hora certa o filósofo consegue que o jovem escravo demonstre sozinho um difícil teorema de geometria o teorema de Pitágoras As verdades matemáticas vão surgindo no espírito do escravo à medida que Sócrates vailhe fazendo perguntas e vai raciocinando com ele Como isso seria possível indaga Platão se o escravo não houvesse nascido com a razão e com os princípios da racionalidade Como dizer que conseguiu demonstrar o teorema por um aprendizado vindo da experiência se ele jamais ouvira falar de geometria Convite à Filosofia 86 Em A República Platão desenvolve uma teoria que já fora esboçada no Mênon a teoria da reminiscência Nascemos com a razão e as idéias verdadeiras e a Filosofia nada mais faz do que nos relembrar essas idéias Platão é um grande escritor e usa em seus escritos um procedimento literário que o auxilia a expor as teorias muito difíceis Assim para explicar a teoria da reminiscência narra o mito de Er O pastor Er da região da Panfília morreu e foi levado para o Reino dos Mortos Ali chegando encontra as almas dos heróis gregos de governantes de artistas de seus antepassados e amigos Ali as almas contemplam a verdade e possuem o conhecimento verdadeiro Er fica sabendo que todas as almas renascem em outras vidas para se purificarem de seus erros passados até que não precisem mais voltar à Terra permanecendo na eternidade Antes de voltar ao nosso mundo as almas podem escolher a nova vida que terão Algumas escolhem a vida de rei outras de guerreiro outras de comerciante rico outras de artista de sábio No caminho de retorno à Terra as almas atravessam uma grande planície por onde corre um rio o Lethé que em grego quer dizer esquecimento e bebem de suas águas As que bebem muito esquecem toda a verdade que contemplaram as bebem pouco quase não se esquecem do que conheceram As que escolheram vidas de rei de guerreiro ou de comerciante rico são as que mais bebem das águas do esquecimento as que escolheram a sabedoria são as que menos bebem Assim as primeiras dificilmente talvez nunca se lembrarão na nova vida da verdade que conheceram enquanto as outras serão capazes de lembrar e ter sabedoria usando a razão Conhecer diz Platão é recordar a verdade que já existe em nós é despertar a razão para que ela se exerça por si mesma Por isso Sócrates fazia perguntas pois através delas as pessoas poderiam lembrarse da verdade e do uso da razão Se não nascêssemos com a razão e com a verdade indaga Platão como saberíamos que temos uma idéia verdadeira ao encontrála Como poderíamos distinguir o verdadeiro do falso se não nascêssemos conhecendo essa diferença Inatismo cartesiano Descartes discute a teoria das idéias inatas em várias de suas obras mas as exposições mais conhecidas encontramse em duas delas no Discurso do método e nas Meditações metafísicas Nelas Descartes mostra que nosso espírito possui três tipos de idéias que se diferenciam segundo sua origem e qualidade 1 Idéias adventícias isto é vindas de fora são aquelas que se originam de nossas sensações percepções lembranças são as idéias que nos vêm por termos tido a experiência sensorial ou sensível das coisas a que se referem Por exemplo Marilena Chauí 87 a idéia de árvore de pássaro de instrumentos musicais etc São nossas idéias cotidianas e costumeiras geralmente enganosas ou falsas isto é não correspondem à realidade das próprias coisas Assim andando à noite por uma floresta vejo fantasmas Quando raia o dia descubro que eram galhos retorcidos de árvores que se mexiam sob o vento Olho para o céu e vejo pequeno o Sol Acredito então que é menor do que a Terra até que os astrônomos provem racionalmente que ele é muito maior do que ela 2 Idéias fictícias são aquelas que criamos em nossa fantasia e imaginação compondo seres inexistentes com pedaços ou partes de idéias adventícias que estão em nossa memória Por exemplo cavalo alado fadas elfos duendes dragões SuperHomem etc São as fabulações das artes da literatura dos contos infantis dos mitos das superstições Essas idéias nunca são verdadeiras pois não correspondem a nada que exista realmente e sabemos que foram inventadas por nós mesmo quando as recebemos já prontas de outros que as inventaram 3 Idéias inatas são aquelas que não poderiam vir de nossa experiência sensorial porque não há objetos sensoriais ou sensíveis para elas nem poderiam vir de nossa fantasia pois não tivemos experiência sensorial para compôlas a partir de nossa memória As idéias inatas são inteiramente racionais e só podem existir porque já nascemos com elas Por exemplo a idéia do infinito pois não temos qualquer experiência do infinito as idéias matemáticas a matemática pode trabalhar com a idéia de uma figura de mil lados o quiliógono e no entanto jamais tivemos e jamais teremos a percepção de uma figura de mil lados Essas idéias diz Descartes são a assinatura do Criador no espírito das criaturas racionais e a razão é a luz natural inata que nos permite conhecer a verdade Como as idéias inatas são colocadas em nosso espírito por Deus serão sempre verdadeiras isto é sempre corresponderão integralmente às coisas a que se referem e graças a elas podemos julgar quando uma idéia adventícia é verdadeira ou falsa e saber que as idéias fictícias são sempre falsas não correspondem a nada fora de nós Ainda segundo Descartes as idéias inatas são as mais simples que possuímos simples não quer dizer fáceis e sim nãocompostas de outras idéias A mais famosa das idéias inatas cartesianas é o Penso logo existo Por serem simples as idéias inatas são conhecidas por intuição e são elas o ponto de partida da dedução racional e da indução que conhecem as idéias complexas ou compostas A tese central dos inatistas é a seguinte se não possuirmos em nosso espírito a razão e a verdade nunca teremos como saber se um conhecimento é verdadeiro ou falso isto é nunca saberemos se uma idéia corresponde ou não à realidade a Convite à Filosofia 88 que ela se refere Não teremos um critério seguro para avaliar nossos conhecimentos O empirismo Contrariamente aos defensores do inatismo os defensores do empirismo afirmam que a razão a verdade e as idéias racionais são adquiridos por nós através da experiência Antes da experiência dizem eles nossa razão é como uma folha em branco onde nada foi escrito uma tábula rasa onde nada foi gravado Somos como uma cera sem forma e sem nada impresso nela até que a experiência venha escrever na folha gravar na tábula dar forma à cera Os empiristas ingleses No decorrer da história da Filosofia muitos filósofos defenderam a tese empirista mas os mais famosos e conhecidos são os filósofos ingleses dos séculos XVI ao XVIII chamados por isso de empiristas ingleses Francis Bacon John Locke George Berkeley e David Hume Na verdade o empirismo é uma característica muito marcante da filosofia inglesa Na Idade Média por exemplo filósofos importantes como Roger Bacon e Guilherme de Ockham eram empiristas em nossos dias Bertrand Russell foi um empirista Que dizem os empiristas Nossos conhecimentos começam com a experiência dos sentidos isto é com as sensações Os objetos exteriores excitam nossos órgãos dos sentidos e vemos cores sentimos sabores e odores ouvimos sons sentimos a diferença entre o áspero e o liso o quente e o frio etc As sensações se reúnem e formam uma percepção ou seja percebemos uma única coisa ou um único objeto que nos chegou por meio de várias e diferentes sensações Assim vejo uma cor vermelha e uma forma arredondada aspiro um perfume adocicado sinto a maciez e digo Percebo uma rosa A rosa é o resultado da reunião de várias sensações diferentes num único objeto de percepção As percepções por sua vez se combinam ou se associam A associação pode dar se por três motivos por semelhança por proximidade ou contigüidade espacial e por sucessão temporal A causa da associação das percepções é a repetição Ou seja de tanto algumas sensações se repetirem por semelhança ou de tanto se repetirem no mesmo espaço ou próximas umas das outras ou enfim de tanto se repetirem sucessivamente no tempo criamos o hábito de associálas Essas associações são as idéias As idéias trazidas pela experiência isto é pela sensação pela percepção e pelo hábito são levadas à memória e de lá a razão as apanha para formar os pensamentos Marilena Chauí 89 A experiência escreve e grava em nosso espírito as idéias e a razão irá associá las combinálas ou separálas formando todos os nossos pensamentos Por isso David Hume dirá que a razão é o hábito de associar idéias seja por semelhança seja por diferença O exemplo mais importante por causa das conseqüências futuras oferecido por Hume para mostrar como formamos hábitos racionais é o da origem do princípio da causalidade razão suficiente A experiência me mostra todos os dias que se eu puser um líquido num recipiente e levar ao fogo esse líquido ferverá saindo do recipiente sob a forma de vapor Se o recipiente estiver totalmente fechado e eu o destampar receberei um bafo de vapor como se o recipiente tivesse ficado pequeno para conter o líquido A experiência também me mostra todo o tempo que se eu puser um objeto sólido um pedaço de vela um pedaço de ferro no calor do fogo não só ele se derreterá mas também passará a ocupar um espaço muito maior no interior do recipiente A experiência também repete constantemente para mim a possibilidade que tenho de retirar um objeto preso dentro de um outro se eu aquecer este último pois aquecido ele solta o que estava preso no seu interior parecendo alargarse e aumentar de tamanho Experiências desse tipo à medida que vão se repetindo sempre da mesma maneira vão criando em mim o hábito de associar o calor com certos fatos Adquiro o hábito de perceber o calor e em seguida um fato igual ou semelhante a outros que já percebi inúmeras vezes E isso me leva a dizer O calor é a causa desses fatos Como os fatos são de aumento do volume ou da dimensão dos corpos submetidos ao calor acabo concluindo O calor é a causa da dilatação dos corpos e também A dilatação dos corpos é o efeito do calor É assim diz Hume que nascem as ciências São elas portanto hábito de associar idéias em conseqüência das repetições da experiência Ora ao mostrar como se forma o princípio da causalidade Hume não está dizendo apenas que as idéias da razão se originam da experiência mas está afirmando também que os próprios princípios da racionalidade são derivados da experiência Mais do que isso A razão pretende através de seus princípios seus procedimentos e suas idéias alcançar a realidade em seus aspectos universais e necessários Em outras palavras pretende conhecer a realidade tal como é em si mesma considerando que o que conhece vale como verdade para todos os tempos e lugares universalidade e indica como as coisas são e como não poderiam de modo algum ser de outra maneira necessidade Ora Hume torna impossível tanto a universalidade quanto a necessidade pretendidas pela razão O universal é apenas um nome ou uma palavra geral que Convite à Filosofia 90 usamos para nos referirmos à repetição de semelhanças percebidas e associadas O necessário é apenas o nome ou uma palavra geral que usamos para nos referirmos à repetição das percepções sucessivas no tempo O universal o necessário a causalidade são meros hábitos psíquicos Problemas do inatismo Se os princípios e as idéias da razão são inatos e por isso universais e necessários como explicar que possam mudar Por exemplo Platão afirmava que a idéia de justiça era inata vinha da contemplação intelectual do justo em si ou do conhecimento racional das coisas justas em si Sendo inata era universal e necessária Sem dúvida dizia o filósofo grego os seres humanos variam muito nas suas opiniões sobre o justo e a justiça pois essas opiniões se formam por experiência e esta varia de pessoa para pessoa de época para época de lugar para lugar Por isso mesmo são simples opiniões Uma idéia verdadeira ao contrário por ser verdadeira é inata universal e necessária não sofrendo as variações das opiniões que além de serem variáveis são no mais das vezes falsas pois nossa experiência tende a ser enganosa ou enganada Qual era a idéia platônica da justiça Era uma idéia moral ou uma idéia política Moralmente uma pessoa é justa pratica a idéia universal da justiça quando faz com que o intelecto ou a razão domine e controle inteira e completamente seus impulsos passionais seus sentimentos e suas emoções irracionais Por quê Porque o intelecto ou a razão é a parte melhor e superior de nossa alma ou espírito e deve dominar a parte inferior e pior ligada aos desejos irracionais do nosso corpo Politicamente uma sociedade é justa isto é pratica a idéia inata e universal de justiça quando nela as classes sociais se relacionam como na moral Em outras palavras quando as classes inferiores forem dominadas e controladas pelas classes superiores A sociedade justa cria uma hierarquia ou uma escala de classes sociais e de poderes onde a classe econômica mais inferior deve ser dominada e controlada pela classe militar para que as riquezas não provoquem desigualdades egoísmos guerras violências a classe militar por sua vez deve ser dominada e controlada pela classe política para impedir que os militares queiram usar a força e a violência contra a sociedade e fazer guerras absurdas Enfim a classe política deve ser dominada e controlada pelos sábios a razão que não deixarão que os políticos abusem do poder e prejudiquem toda a sociedade Justiça portanto é o domínio da inteligência sobre os instintos interesses e paixões tanto no indivíduo quanto na sociedade Marilena Chauí 91 Ora o que acontece com a justiça moral platônica isto é com a idéia de um poder total da razão sobre as paixões e os sentimentos os desejos e os impulsos com o surgimento da psicanálise Freud seu criador mostrou que não temos esse poder que nossa consciência nossa vontade e nossa razão podem menos que o nosso inconsciente isto é do que o desejo Como uma idéia inata afinal perdeu a verdade O que acontece com a justiça política platônica quando alguns filósofos que estudaram a formação das sociedades e da política mostraram a igualdade de todos os cidadãos e afirmaram que nenhuma classe tem o direito de dominar e controlar outras e que tal domínio e controle é exatamente a injustiça Como uma idéia inata afinal perdeu a verdade Tomemos agora um outro exemplo vindo da filosofia de Descartes Descartes considera que a realidade natural é regida por leis universais e necessárias do movimento isto é que a natureza é uma realidade mecânica Considera também que as leis mecânicas ou leis do movimento elaboradas por sua filosofia ou por sua física são idéias racionais deduzidas de idéias inatas simples e verdadeiras Ora quando comparamos a física de Descartes com a de Galileu elaborada na mesma época verificamos que a física galileana é oposta à cartesiana e é a que será provada e demonstrada verdadeira a de Descartes sendo falsa Como poderia isso acontecer se as idéias da física cartesiana eram idéias inatas Os exemplos que propusemos indicam onde estão os dois grandes problemas do inatismo 1 a própria razão pode mudar o conteúdo de idéias que eram consideradas universais e verdadeiras é o caso da idéia platônica de justiça 2 a própria razão pode provar que idéias racionais também podem ser falsas é o caso da física cartesiana Se as idéias são racionais e verdadeiras é porque correspondem à realidade Ora a realidade permanece a mesma e no entanto as idéias que a explicavam perderam a validade Ou seja o inatismo se depara com o problema da mudança das idéias feita pela própria razão e com o problema da falsidade das idéias demonstrada pela própria razão Problemas do empirismo O empirismo por sua vez se defronta com um problema insolúvel Se as ciências são apenas hábitos psicológicos de associar percepções e idéias por semelhança e diferença bem como por contigüidade espacial ou sucessão temporal então as ciências não possuem verdade alguma não explicam realidade alguma não alcançam os objetos e não possuem nenhuma objetividade Convite à Filosofia 92 Ora o ideal racional da objetividade afirma que uma verdade é uma verdade porque corresponde à realidade das coisas e portanto não depende de nossos gostos nossas opiniões nossas preferências nossos preconceitos nossas fantasias nossos costumes e hábitos Em outras palavras não é subjetiva não depende de nossa vida pessoal e psicológica Essa objetividade porém para o empirista a ciência não pode oferecer nem garantir A ciência mero hábito psicológico ou subjetivo tornase afinal uma ilusão e a realidade tal como é em si mesma isto é a realidade objetiva jamais poderá ser conhecida por nossa razão Basta por exemplo que um belo dia eu ponha um líquido no fogo e em lugar de vêlo ferver e aumentar de volume eu o veja gelar e diminuir de volume para que toda a ciência desapareça já que ela depende da repetição da freqüência do hábito de sempre percebermos uma certa sucessão de fatos à qual também por hábito demos o nome de princípio da causalidade Assim do lado do empirismo o problema colocado é o da impossibilidade do conhecimento objetivo da realidade RESUMINDO Do lado do inatismo o problema pode ser formulado da seguinte maneira como são inatos as idéias e os princípios da razão são verdades intemporais que nenhuma experiência nova poderá modificar Ora a História social política científica e filosófica mostra que idéias tidas como verdadeiras e universais não possuíam essa validade e foram substituídas por outras Mas por definição uma idéia inata é sempre verdadeira e não pode ser substituída por outra Se for substituída então não era uma idéia verdadeira e não sendo uma idéia verdadeira não era inata Do lado do empirismo o problema pode ser formulado da seguinte maneira a racionalidade ocidental só foi possível porque a Filosofia e as ciências demonstraram que a razão é capaz de alcançar a universalidade e a necessidade que governam a própria realidade isto é as leis racionais que governam a Natureza a sociedade a moral a política Ora a marca própria da experiência é a de ser sempre individual particular e subjetiva Se o conhecimento racional for apenas a generalização e a repetição para todos os seres humanos de seus estados psicológicos derivados de suas experiências então o que chamamos de Filosofia de ciência de ética etc são nomes gerais para hábitos psíquicos e não um conhecimento racional verdadeiro de toda a realidade tanto a realidade natural quanto a humana Problemas dessa natureza freqüentes na história da Filosofia suscitam periodicamente o aparecimento de uma corrente filosófica conhecida como ceticismo para o qual a razão humana é incapaz de conhecer a realidade e por isso deve renunciar à verdade O cético sempre manifesta explicitamente dúvidas toda vez que a razão tenha pretensão ao conhecimento verdadeiro do real Marilena Chauí 93 Capítulo 4 Os problemas do inatismo e do empirismo soluções filosóficas Inatismo e empirismo questões e respostas Vimos no capítulo anterior que a razão enfrenta problemas sérios quanto à sua intenção de ser conhecimento universal e necessário da realidade Vimos também que como conseqüência de conflitos e impasses entre o inatismo e o empirismo surgiu na Filosofia a tendência ao ceticismo isto é passouse a duvidar de que o conhecimento racional como conhecimento certo verdadeiro e inquestionável seria possível Neste capítulo vamos examinar algumas soluções propostas pela Filosofia para resolver essa questão Os problemas criados pela divergência entre inatistas e empiristas foram resolvidos em dois momentos o primeiro é anterior à filosofia de David Hume e encontrase na filosofia de Leibniz o segundo é posterior à filosofia de Hume e encontrase na filosofia de Kant A solução de Leibniz no século XVII Leibniz estabeleceu uma distinção entre verdades de razão e verdades de fato As verdades de razão enunciam que uma coisa é necessária e universalmente não podendo de modo algum ser diferente do que é e de como é O exemplo mais evidente das verdades de razão são as idéias matemáticas É impossível que o triângulo não tenha três lados e que a soma de seus ângulos não seja igual a soma de dois ângulos retos é impossível que um círculo não tenha todos os pontos eqüidistantes do centro e que não seja a figura formada pelo movimento de um semieixo ao redor de um centro fixo é impossível que 2 2 não seja igual a 4 é impossível que o todo não seja maior do que as partes As verdades de razão são inatas Isso não significa que uma criança por exemplo nasça conhecendo a matemática e sabendo realizar operações matemáticas demonstrar teoremas ou resolver problemas nessa área do conhecimento Significa que nascemos com a capacidade racional puramente intelectual para conhecer idéias que não dependem da experiência para serem formuladas e para serem verdadeiras As verdades de fato ao contrário são as que dependem da experiência pois enunciam idéias que são obtidas através da sensação da percepção e da memória Convite à Filosofia 94 As verdades de fato são empíricas e se referem a coisas que poderiam ser diferentes do que são mas que são como são porque há uma causa para que sejam assim Quando digo Esta rosa é vermelha nada impede que ela pudesse ser branca ou amarela mas se ela é vermelha é porque alguma causa a fez ser assim e uma outra causa poderia têla feito amarela Mas não é acidental ou contingente que ela tenha cor e é a cor que possui uma causa necessária As verdades de fato são verdades porque para elas funciona o princípio da razão suficiente segundo o qual tudo o que existe tudo o que percebemos e tudo aquilo de que temos experiência possui uma causa determinada e essa causa pode ser conhecida Pelo princípio da razão suficiente isto é pelo conhecimento das causas todas as verdades de fato podem tornarse verdades necessárias e serem consideradas verdades de razão ainda que para conhecêlas dependamos da experiência Observamos assim que para Leibniz o princípio da razão suficiente ou a idéia de causalidade universal e necessária permite manter as idéias inatas e as idéias empíricas É justamente o princípio da causalidade como vimos que será alvo das críticas dos empiristas na filosofia de David Hume Para esse filósofo o princípio da razão suficiente é apenas um hábito adquirido por experiência como resultado da repetição e da freqüência de nossas impressões sensoriais A crítica de Hume à causalidade e ao princípio da razão suficiente leva à resposta de Kant A solução kantiana A resposta aos problemas do inatismo e do empirismo oferecida pelo filósofo alemão do século XVIII Immanuel Kant é conhecida com o nome de revolução copernicana em Filosofia Por quê Qual a relação entre Kant e o que fizera Copérnico quase dois séculos antes do kantismo Vejamos muito brevemente o que foi a revolução copernicana em astronomia para depois vermos o que foi ela em Filosofia A tradição antiga e medieval considerava que o mundo possuía limites ou seja o mundo era finito sendo formado por um conjunto de sete esferas concêntricas em cujo centro estava a Terra imóvel À volta da Terra giravam as esferas nas quais estavam presos os planetas o Sol e a Lua eram considerados planetas Em grego Terra se diz Gaia ou Geia Como ela se encontrava no centro o sistema astronômico era chamado de geocêntrico e o mundo era explicado pelo geocentrismo A revolução copernicana demonstrou que o sistema geocêntrico era falso e que 1 o mundo não é finito mas é um Universo infinito 2 os astros não estão presos em esferas mas fazem um movimento como demonstrará Kepler depois de Copérnico cuja forma é a de uma elipse 3 o centro do Universo não é a Terra Marilena Chauí 95 4 o Sol como já fora demonstrado por outros astrônomos não é um planeta mas uma estrela e a Terra como os outros planetas gira ao redor dele 5 o próprio Sol também se move mas não em volta da Terra Em grego Sol se diz Hélios e por isso o sistema de Copérnico é chamado de heliocêntrico e sua explicação de heliocentrismo pois o Sol está no centro do nosso sistema planetário e tudo se move ao seu redor Voltemos agora a Kant e observemos o que ele diz Inatistas e empiristas isto é todos os filósofos parecem ser como astrônomos geocêntricos buscando um centro que não é verdadeiro Parecem diz Kant como alguém que querendo assar um frango fizesse o forno girar em torno dele e não o frango em torno do fogo Qual o engano dos filósofos Em lugar de primeiro e antes de tudo estudar o que é a própria razão e indagar o que ela pode e o que não pode conhecer o que é a experiência e o que ela pode ou não pode conhecer em vez enfim de procurar saber o que é a verdade os filósofos preferiram começar dizendo o que a realidade é afirmando que ela é racional e que por isso pode ser inteiramente conhecida pelas idéias da razão Colocaram a realidade exterior ou os objetos do conhecimento no centro e fizeram a razão ou o sujeito do conhecimento girar em torno deles Façamos pois uma revolução copernicana em Filosofia em vez de colocar no centro a realidade objetiva ou os objetos do conhecimento dizendo que são racionais e que podem ser conhecidos tais como são em si mesmos comecemos colocando no centro a própria razão Não é a razão a Luz Natural Não é ela o Sol que ilumina todas as coisas e em torno do qual tudo gira Comecemos portanto pela Luz Natural no centro do conhecimento e indaguemos O que é ela O que ela pode conhecer Quais são as condições para que haja conhecimento verdadeiro Quais são os limites que o conhecimento humano não pode transpor Como a razão e a experiência se relacionam Comecemos então pelo sujeito do conhecimento E comecemos mostrando que este sujeito é a razão universal e não uma subjetividade pessoal e psicológica que ele é o sujeito conhecedor e não Pedro Paulo Maria ou Isabel esta ou aquela pessoa este ou aquele indivíduo O que é a razão A razão é uma estrutura vazia uma forma pura sem conteúdos Essa estrutura e não os conteúdos é que é universal a mesma para todos os seres humanos em todos os tempos e lugares Essa estrutura é inata isto é não é adquirida através da experiência Por ser inata e não depender da experiência para existir a razão é do ponto de vista do conhecimento anterior à experiência Ou como escreve Convite à Filosofia 96 Kant a estrutura da razão é a priori vem antes da experiência e não depende dela Porém os conteúdos que a razão conhece e nos quais ela pensa esses sim dependem da experiência Sem ela a razão seria sempre vazia inoperante nada conhecendo Assim a experiência fornece a matéria os conteúdos do conhecimento para a razão e esta por sua vez fornece a forma universal e necessária do conhecimento A matéria do conhecimento por ser fornecida pela experiência vem depois desta e por isso é no dizer de Kant a posteriori Qual o engano dos inatistas Supor que os conteúdos ou a matéria do conhecimento são inatos Não existem idéias inatas Qual o engano dos empiristas Supor que a estrutura da razão é adquirida por experiência ou causada pela experiência Na verdade a experiência não é causa das idéias mas é a ocasião para que a razão recebendo a matéria ou o conteúdo formule as idéias Dessa maneira a estrutura da razão é inata e universal enquanto os conteúdos são empíricos e podem variar no tempo e no espaço podendo transformarse com novas experiências e mesmo revelaremse falsos graças a experiências novas O que é o conhecimento racional sem o qual não há Filosofia nem ciência É a síntese que a razão realiza entre uma forma universal inata e um conteúdo particular oferecido pela experiência Qual é a estrutura da razão A razão é constituída por três estruturas a priori 1 a estrutura ou forma da sensibilidade isto é a estrutura ou forma da percepção sensível ou sensorial 2 a estrutura ou forma do entendimento isto é do intelecto ou inteligência 3 a estrutura ou forma da razão propriamente dita quando esta não se relaciona nem com os conteúdos da sensibilidade nem com os conteúdos do entendimento mas apenas consigo mesma Como para Kant só há conhecimento quando a experiência oferece conteúdos à sensibilidade e ao entendimento a razão separada da sensibilidade e do entendimento não conhece coisa alguma e não é sua função conhecer Sua função é a de regular e controlar a sensibilidade e o entendimento Do ponto de vista do conhecimento portanto a razão é a função reguladora da atividade do sujeito do conhecimento A forma da sensibilidade é o que nos permite ter percepções isto é a forma é aquilo sem o que não pode haver percepção sem o que a percepção seria impossível Percebemos todas as coisas como dotadas de figura dimensões altura largura comprimento grandeza ou seja nós as percebemos como realidades espaciais Marilena Chauí 97 Não interessa se cada um de nós vê cores de uma certa maneira gosta mais de uma cor ou de outra ouve sons de uma certa maneira gosta mais de certos sons do que de outros etc O que importa é que nada pode ser percebido por nós se não possuir propriedades espaciais por isso o espaço não é algo percebido mas é o que permite haver percepção percebemos lugares posições situações mas não percebemos o próprio espaço Assim o espaço é a forma a priori da sensibilidade e existe em nossa razão antes e sem a experiência Também só podemos perceber as coisas como simultâneas ou sucessivas percebemos as coisas como se dando num só instante ou em instantes sucessivos Ou seja percebemos as coisas como realidades temporais Não percebemos o tempo temos a experiência do passado do presente e do futuro porém não temos percepção do próprio tempo mas ele é a condição de possibilidade da percepção das coisas e é a outra forma a priori da sensibilidade que existe em nossa razão antes da experiência e sem a experiência A percepção recebe conteúdos da experiência e a sensibilidade organiza racionalmente segundo a forma do espaço e do tempo Essa organização espaço temporal dos objetos do conhecimento é que é inata universal e necessária O entendimento por sua vez organiza os conteúdos que lhe são enviados pela sensibilidade isto é organiza as percepções Novamente o conteúdo é oferecido pela experiência sob a forma do espaço e do tempo e a razão através do entendimento organiza tais conteúdos empíricos Essa organização transforma as percepções em conhecimentos intelectuais ou em conceitos Para tanto o entendimento possui a priori isto é antes da experiência e independente dela um conjunto de elementos que organizam os conteúdos empíricos Esses elementos são chamados de categorias e sem elas não pode haver conhecimento intelectual pois são as condições para tal conhecimento Com as categorias a priori o sujeito do conhecimento formula os conceitos As categorias organizam os dados da experiência segundo a qualidade a quantidade a causalidade a finalidade a verdade a falsidade a universalidade a particularidade Assim longe de a causalidade a qualidade e a quantidade serem resultados de hábitos psicológicos associativos eles são os instrumentos racionais com os quais o sujeito do conhecimento organiza a realidade e a conhece As categorias estruturas vazias são as mesmas em toda época e em todo lugar para todos os seres racionais Graças à universalidade e à necessidade das categorias as ciências são possíveis e válidas o empirismo portanto está equivocado Em instante algum Kant admite que a realidade em si mesma é espacial temporal qualitativa quantitativa causal etc Isso seria regredir ao forno girando em torno do frango O que Kant afirma é que a razão e o sujeito do conhecimento possuem essas estruturas para poder conhecer e que por serem Convite à Filosofia 98 elas universais e necessárias o conhecimento é racional e verdadeiro para os seres humanos É isso que a razão pode O que ela não pode e nisso inatistas e empiristas se enganaram é supor que com suas estruturas passe a conhecer a realidade tal como esta é em si mesma A razão conhece os objetos do conhecimento O objeto do conhecimento é aquele conteúdo empírico que recebeu as formas e as categorias do sujeito do conhecimento A razão não está nas coisas mas em nós A razão é sempre razão subjetiva e não pode pretender conhecer a realidade tal como ela seria em si mesma nem pode pretender que exista uma razão objetiva governando as próprias coisas O erro dos inatistas e empiristas foi o de supor que nossa razão alcança a realidade em si Para um inatista como Descartes a realidade em si é espacial temporal qualitativa quantitativa causal Para um empirista como Hume a realidade em si pode ou não repetir fatos sucessivos no tempo pode ou não repetir fatos contíguos no espaço pode ou não repetir as mesmas seqüências de acontecimentos Para Kant jamais poderemos saber se a realidade em si é espacial temporal causal qualitativa quantitativa Mas sabemos que nossa razão possui uma estrutura universal necessária e a priori que organiza necessariamente a realidade em termos das formas da sensibilidade e dos conceitos e categorias do entendimento Como razão subjetiva nossa razão pode garantir a verdade da Filosofia e da ciência A resposta de Hegel Um filósofo alemão do século XIX Hegel ofereceu uma solução para o problema do inatismo e do empirismo posterior à de Kant Hegel criticou o inatismo o empirismo e o kantismo A todos endereçou a mesma crítica qual seja a de não haverem compreendido o que há de mais fundamental e de mais essencial à razão a razão é histórica De fato a Filosofia preocupada em garantir a diferença entre a mera opinião eu acho que eu gosto de eu não gosto de e a verdade eu penso que eu sei que isto é assim porque considerou que as idéias só seriam racionais e verdadeiras se fossem intemporais perenes eternas as mesmas em todo tempo e em todo lugar Uma verdade que mudasse com o tempo ou com os lugares seria mera opinião seria enganosa não seria verdade A razão sendo a fonte e a condição da verdade teria também que ser intemporal É essa intemporalidade atribuída à verdade e à razão que Hegel criticou em toda a Filosofia anterior Ao afirmar que a razão é histórica Hegel não está de modo algum dizendo que a razão é algo relativo que vale hoje e não vale amanhã que serve aqui e não serve ali que cada época não alcança verdades universais Não O que Hegel está Marilena Chauí 99 dizendo é que a mudança a transformação da razão e de seus conteúdos é obra racional da própria razão A razão não é uma vítima do tempo que lhe roubaria a verdade a universalidade a necessidade A razão não está na História ela é a História A razão não está no tempo ela é o tempo Ela dá sentido ao tempo Hegel também fez uma crítica aos inatistas e aos empiristas muito semelhante à que Kant fizera Ou seja inatistas e empiristas acreditam que o conhecimento racional vem das próprias coisas para nós que o conhecimento depende exclusivamente da ação das coisas sobre nós e que a verdade é a correspondência entre a coisa e a idéia da coisa Para o empirista a realidade entra em nós pela experiência Para o inatista a verdade entra em nós pelo poder de uma força espiritual que a coloca em nossa alma de modo que as idéias inatas não são produzidas pelo próprio sujeito do conhecimento ou pela própria razão mas são colocadas em nós por uma força sábia e superior a nós como Deus por exemplo Assim o conhecimento parece depender inteiramente de algo que vem de fora para dentro de nós No caso dos inatistas depende da divindade no caso dos empiristas depende da experiência sensível Inatistas e empiristas se enganaram por excesso de objetivismo isto é por julgarem que o conhecimento racional dependeria inteiramente dos objetos do conhecimento Mas Kant também se enganou e pelo motivo oposto isto é por excesso de subjetivismo por acreditar que o conhecimento racional dependeria exclusivamente do sujeito do conhecimento das estruturas da sensibilidade e do entendimento A razão diz Hegel não é nem exclusivamente razão objetiva a verdade está nos objetos nem exclusivamente subjetiva a verdade está no sujeito mas ela é a unidade necessária do objetivo e do subjetivo Ela é o conhecimento da harmonia entre as coisas e as idéias entre o mundo exterior e a consciência entre o objeto e o sujeito entre a verdade objetiva e a verdade subjetiva O que é afinal a razão para Hegel A razão é 1 o conjunto das leis do pensamento isto é os princípios os procedimentos do raciocínio as formas e as estruturas necessárias para pensar as categorias as idéias é razão subjetiva 2 a ordem a organização o encadeamento e as relações das próprias coisas isto é a realidade objetiva e racional é razão objetiva 3 a relação interna e necessária entre as leis do pensamento e as leis do real Ela é a unidade da razão subjetiva e da razão objetiva Por que a razão é histórica Convite à Filosofia 100 A unidade ou harmonia entre o objetivo e o subjetivo entre a realidade das coisas e o sujeito do conhecimento não é um dado eterno algo que existiu desde todo o sempre mas é uma conquista da razão e essa conquista a razão realiza no tempo A razão não tem como ponto de partida essa unidade mas a tem como ponto de chegada como resultado do percurso histórico ou temporal que ela própria realiza Qual o melhor exemplo para compreender o que Hegel quer dizer O melhor exemplo é o que acabamos de ver nos capítulos 2 e 3 desta unidade Vimos que os inatistas começaram combatendo a suposição de que opinião e verdade são a mesma coisa Para livraremse dessa suposição o que fizeram eles Disseram que a opinião pertence ao campo da experiência sensorial pessoal psicológica instável e que as idéias da razão são inatas universais necessárias imutáveis Os empiristas no entanto negaram que os inatistas tivessem acertado negaram que as idéias pudessem ser inatas e fizeram a razão depender da experiência psicológica ou da percepção Ao fazêlo revelaram os pontos fracos dos inatistas mas abriram o flanco para um problema que não podiam resolver isto é a validade das ciências A filosofia kantiana negou então que inatistas e empiristas estivessem certos Negou que pudéssemos conhecer a realidade em si das coisas negou que a razão possuísse conteúdos inatos mostrando que os conteúdos dependem da experiência mas negou também que a experiência fosse a causa da razão ou que esta fosse adquirida pois possui formas e estruturas inatas Kant deu prioridade ao sujeito do conhecimento enquanto empiristas e inatistas davam prioridade ao objeto do conhecimento Que diz Hegel Que esses conflitos filosóficos são a história da razão buscando conhecerse a si mesma e que graças a tais conflitos graças às contradições entre as filosofias a Filosofia pode chegar à descoberta da razão como síntese unidade ou harmonia das teses opostas ou contraditórias Em cada momento de sua história a razão produziu uma tese a respeito de si mesma e logo a seguir uma tese contrária à primeira ou uma antítese Cada tese e cada antítese foram momentos necessários para a razão conhecerse cada vez mais Cada tese e cada antítese foram verdadeiras mas parciais Sem elas a razão nunca teria chegado a conhecerse a si mesma Mas a razão não pode ficar estacionada nessas contradições que ela própria criou por uma necessidade dela mesma precisa ultrapassálas numa síntese que una as teses contrárias mostrando onde está a verdade de cada uma delas e conservando essa verdade Essa é a razão histórica Marilena Chauí 101 Empiristas kantianos e hegelianos Embora Hegel tenha proposto sintetizar a história da razão considerando portanto que inatistas empiristas e kantianos eram parte do passado dessa história isso não significa que todos os filósofos tenham aceitado a solução hegeliana como resposta final Assim os empiristas não desapareceram Reformularam muitas de suas teses e posições mas permaneceram empiristas Em outras palavras persiste na Filosofia uma corrente empirista Foi também o que aconteceu com os filósofos inatistas o mesmo pode ser dito com relação aos que adotaram a filosofia kantiana Reformularam teses acrescentaram novas idéias e perspectivas mas se mantiveram kantianos Há os que aceitaram a solução hegeliana assim como há os que a recusaram e dos quais falaremos no próximo capítulo Convite à Filosofia 102 Capítulo 5 A razão na Filosofia contemporânea A razão histórica Conforme vimos no capítulo anterior nem todos os filósofos aceitaram a solução hegeliana para as dificuldades criadas para a razão com o conflito entre inatismo e empirismo É o caso do filósofo alemão Edmund Husserl criador da fenomenologia que descreve as estruturas da consciência que manteve o inatismo mas com as contribuições trazidas pelo kantismo Em outras palavras a fenomenologia considera a razão uma estrutura da consciência como Kant mas cujos conteúdos são produzidos por ela mesma independentemente da experiência diferentemente do que dissera Kant O que chamamos de mundo ou realidade diz Husserl não é um conjunto ou um sistema de coisas e pessoas animais e vegetais O mundo ou a realidade é um conjunto de significações ou de sentidos que são produzidos pela consciência ou pela razão A razão é doadora do sentido e ela constitui a realidade enquanto sistemas de significações que dependem da estrutura da própria consciência As significações não são pessoais psicológicas sociais mas universais e necessárias Elas são as essências isto é o sentido impessoal intemporal universal e necessário de toda a realidade que só existe para a consciência e pela consciência A razão é razão subjetiva que cria o mundo como racionalidade objetiva Isto é o mundo tem sentido objetivo porque a razão lhe dá sentido Assim por exemplo a razão não estuda os conteúdos psicológicos de minha vida pessoal mas pergunta O que é a vida psíquica O que são e como são a memória a imaginação a sensação a percepção A pergunta O que é não se refere a uma descrição dos processos mentais e físicos que nos fazem lembrar imaginar sentir ou perceber Essa pergunta se refere à descrição do sentido da memória da imaginação da sensação da percepção isto é se refere à essência delas independentemente de nossas experiências psicológicas pessoais A fenomenologia não indaga por exemplo se uma certa idéia ou uma certa opinião são causadas pela vida em sociedade mas pergunta O que é o social O que é a sociedade As respostas a essas perguntas formam as significações ou essências e são elas o conteúdo que a própria razão oferece a si mesma para dar sentido à realidade Marilena Chauí 103 A fenomenologia afastase portanto da solução hegeliana pois não admite que as formas e os conteúdos da razão mudem no tempo e com o tempo Elas se enriquecem e se ampliam no tempo mas não se transformam por causa do tempo Razão e sociedade Diferentemente da fenomenologia outros filósofos como os que criaram a chamada Escola de Frankfurt ou Teoria Crítica adotam a solução hegeliana mas com uma modificação fundamental Os filósofos dessa Escola como Theodor Adorno Herbert Marcuse e Max Horkheimer têm uma formação marxista e por isso recusam a idéia hegeliana de que a História é obra da própria razão ou que as transformações históricas da razão são realizadas pela própria razão sem que esta seja condicionada ou determinada pelas condições sociais econômicas e políticas Para esses filósofos o engano de Hegel está em primeiro lugar na suposição de que a razão seja uma força histórica autônoma isto é não condicionada pela situação material ou econômica social e política de uma época e em segundo lugar na suposição de que a razão é a força histórica que cria a própria sociedade a política a cultura Para esses filósofos Hegel está correto quando afirma que as mudanças históricas ocorrem pelos conflitos e contradições mas está enganado ao supor que tais conflitos se dão entre diferentes formas da razão pois eles se dão como conflitos e contradições sociais e políticas modificando a própria razão Os filósofos da Teoria Crítica consideram que existem na verdade duas modalidades da razão a razão instrumental ou razão técnicocientífica que está a serviço da exploração e da dominação da opressão e da violência e a razão crítica ou filosófica que reflete sobre as contradições e os conflitos sociais e políticos e se apresenta como uma força liberadora A Escola de Frankfurt mantém a idéia hegeliana de que há uma continuidade temporal ou histórica entre a forma anterior da racionalidade e a forma seguinte a razão moderna por exemplo não surge de repente e do nada mas resulta de contradições e conflitos sóciopolíticos do final da Idade Média e da Renascença de modo que ao superar a racionalidade medieval e renascentista nasce como racionalidade moderna Cada nova forma da racionalidade é a vitória sobre os conflitos das formas anteriores sem que haja ruptura histórica entre elas Mudanças sociais políticas e culturais determinam mudanças no pensamento e tais mudanças são a solução realizada pelo tempo presente para os conflitos e as contradições do passado A razão não determina nem condiciona a sociedade como julgara Hegel mas é determinada e condicionada pela sociedade e suas mudanças Assim os inatistas se enganam ao supor a imutabilidade dos conteúdos da razão e os empiristas se Convite à Filosofia 104 enganam ao supor que as mudanças são acarretadas por nossas experiências quando na verdade são produzidas por transformações globais de uma sociedade Razão e descontinuidade temporal Nos anos 60 desenvolveuse sobretudo na França uma corrente científica iniciado na lingüística e na antropologia social chamada estruturalismo Para os estruturalistas o mais importante não é a mudança ou a transformação de uma realidade de uma língua de uma sociedade indígena de uma teoria científica mas a estrutura ou a forma que ela tem no presente A estrutura passada e a estrutura futura são consideradas estruturas diferentes entre si e diferentes da estrutura presente sem que haja interesse em acompanhar temporalmente a passagem de uma estrutura para outra Assim o estruturalismo científico desconsidera a posição filosófica de tipo hegeliano tendo maior afinidade com a kantiana O estruturalismo teve uma grande influência sobre o pensamento filosófico e isso se refletiu na discussão sobre a razão Se observarmos bem notaremos que a solução hegeliana revela uma concepção cumulativa e otimista da razão Cumulativa Hegel considera que a razão na batalha interna entre teses e antíteses vai sendo enriquecida vai acumulando conhecimentos cada vez maiores sobre si mesma tanto como conhecimento da racionalidade do real razão objetiva quanto como conhecimento da capacidade racional para o conhecimento razão subjetiva Otimista para Hegel a razão possui força para não se destruir a si mesma em suas contradições internas ao contrário supera cada uma delas e chega a uma síntese harmoniosa de todos os momentos que constituíram a sua história Influenciados pelo estruturalismo vários filósofos franceses como Michel Foucault Jacques Derrida e Giles Delleuze estudando a história da Filosofia das ciências da sociedade das artes e das técnicas disseram que sem dúvida a razão é histórica isto é muda temporalmente mas essa história não é cumulativa evolutiva progressiva e contínua Pelo contrário é descontínua se realiza por saltos e cada estrutura nova da razão possui um sentido próprio válido apenas para ela Dizem eles que uma teoria filosófica ou científica ou uma prática ética política artística são novas justamente quando rompem as concepções anteriores e as substituem por outras completamente diferentes não sendo possível falar numa continuidade progressiva entre elas pois são tão diferentes que não há como nem por que comparálas e julgar uma delas mais atrasada e a outra mais adiantada Assim por exemplo a teoria da relatividade elaborada por Einstein não é continuação evoluída e melhorada da física clássica formulada por Galileu e Marilena Chauí 105 Newton mas é uma outra física com conceitos princípios e procedimentos completamente novos e diferentes Temos duas físicas diferentes cada qual com seu sentido e valor próprio Não se pode falar num processo numa evolução ou num avanço da razão a cada nova teoria pois a novidade significa justamente que se trata de algo tão novo tão diferente e tão outro que será absurdo falar em continuidade e avanço Não há como dizer que as idéias e as teorias passadas são falsas erradas ou atrasadas elas simplesmente são diferentes das outras porque se baseiam em princípios interpretações e conceitos novos Em cada época de sua história a razão cria modelos ou paradigmas explicativos para os fenômenos ou para os objetos do conhecimento não havendo continuidade nem pontos comuns entre eles que permitam comparálos Agora em lugar de um processo linear e contínuo da razão falase na invenção de formas diferentes de racionalidade de acordo com critérios que a própria razão cria para si mesma A razão grega é diferente da medieval que por sua vez é diferente da renascentista e da moderna A razão moderna e a iluminista também são diferentes assim como a razão hegeliana é diferente da contemporânea Por que ainda falamos em razão Diante das concepções descontinuístas da razão podemos fazer duas perguntas 1ª Se em cada época por motivos históricos e teóricos determinados a razão muda inteiramente o que queremos dizer quando continuamos empregando a palavra razão 2ª Se em cada ciência cada filosofia cada teoria cada expressão do pensamento nada há em comum com as anteriores e as posteriores por que dizemos que algumas são racionais e outras não o são A razão não seria afinal um mito que nossa cultura inventou para si mesma Podemos responder à primeira pergunta dizendo que continuamos a falar em razão apesar de haver muitas e diferentes razões porque mantemos uma idéia que é essencial à noção ocidental de razão Que idéia é essa A de que a realidade o mundo natural e cultural os seres humanos sua ações e obras têm sentido e que esse sentido pode ser conhecido É o ideal do conhecimento objetivo que é conservado quando continuamos a falar em razão Com relação à segunda pergunta podemos dizer que em cada época os membros da sociedade e da cultura ocidentais julgam a validade da própria razão como capaz ou incapaz de realizar o ideal do conhecimento Esse julgamento pode ser realizado de duas maneiras A primeira maneira ou o primeiro critério de avaliação da capacidade racional é o da coerência interna de um pensamento ou de uma teoria Ou seja quando um pensamento ou uma teoria se propõem a oferecer um conhecimento simultaneamente também oferecem os princípios os conceitos e os Convite à Filosofia 106 procedimentos que sustentam a explicação apresentada Quando não há compatibilidade entre a explicação e os princípios os conceitos e os procedimentos oferecidos dizemos que não há coerência e que o pensamento ou a teoria não são racionais A razão é assim o critério de que dispomos para a avaliação o instrumento para julgar a validade de um pensamento ou de uma teoria julgando sua coerência ou incoerência consigo mesmos A segunda maneira é diferente da anterior Agora perguntase se um pensamento ou uma teoria contribuem ou não para que os seres humanos conheçam e compreendam as circunstâncias em que vivem contribuem ou não para alterar situações que os seres humanos julgam inaceitáveis ou intoleráveis contribuem ou não para melhorar as condições em que os seres humanos vivem Assim a razão além de ser o critério para avaliar os conhecimentos é também um instrumento crítico para compreendermos as circunstâncias em que vivemos para mudálas ou melhorálas A razão tem um potencial ativo ou transformador e por isso continuamos a falar nela e a desejála Razão e realidade Os dois critérios vistos acima a coerência interna de um pensamento ou de uma teoria e o potencial críticotransformador dos conhecimentos também nos ajudam a perceber quando a razão vira mito e deixa de ser razão Analisemos como exemplo as teorias que defendem o racismo e que são tidas como científicas ou racionais As teorias racistas se apresentam usando princípios conceitos e procedimentos ou métodos racionais científicos Fazem pesquisas biológicas genéticas químicas sociológicas usam a indução e a dedução definem conceitos inferem conclusões dos dados obtidos por experiência e por cálculos estatísticos Usando tais procedimentos fazem demonstrações e por meio delas pretendem provar 1 que existem raças 2 que as raças são biológica e geneticamente diferentes 3 que há raças atrasadas e adiantadas inferiores e superiores 4 que as raças atrasadas e inferiores não são capazes por exemplo de desenvolvimento intelectual e estão naturalmente destinadas ao trabalho manual pois sua razão é muito pequena e não conseguem compreender as idéias mais complexas e avançadas 5 que as raças adiantadas e superiores estão naturalmente destinadas a dominar o planeta e que se isso for necessário para seu bem têm o direito de exterminar as raças atrasadas e inferiores 6 que para o bem das raças inferiores e das superiores deve haver segregação racial separação dos locais de moradia de trabalho de educação de lazer etc pois a nãosegregação pode fazer as inferiores arrastarem as superiores para seu Marilena Chauí 107 baixo nível assim como pode fazer as superiores tentarem inutilmente melhorar o nível das inferiores Ora a razão pode demonstrar que a racionalidade racista é irracional e que está a serviço da violência da ignorância e da destruição Assim a biologia e a genética demonstram que há diferenças na formação anatômicofisiológica dos seres humanos em decorrência de diferenças internas do organismo e de diferenças ecológicas isto é do meio ambiente e que tais diferenças não produzem raças Raça portanto é uma palavra inventada para avaliar julgar e manipular as diferenças biológicas e genéticas A sociologia a antropologia e a história demonstram que as diferenças que a biologia e a genética apresentam não decorrem somente das diferenças nas condições ambientais mas também são produzidas pelas diferentes maneiras pelas quais os grupos sociais definem as relações de trabalho de parentesco as formas de avaliação de vestuário de habitação etc Essas diferenças não formam raças e portanto raça é uma palavra inventada para avaliar julgar e manipular tais diferenças A ciência política e econômica demonstra que no interior de uma mesma sociedade formamse grupos e classes sociais que se apropriam das riquezas e do poder colocam pela força pelo medo pela superstição pela mentira pela ilusão outros grupos e classes sociais sob sua dominação e justificam tal fato afirmando que tais grupos ou classes são inferiores e que possuem características físicas e mentais que os fazem ser uma raça inferior Raça portanto não existe É uma palavra inventada para legitimar a exploração e a dominação que um grupo social e político exerce sobre os outros grupos A psicologia demonstra que as capacidades mentais de todos os grupos e classes sociais de uma cultura são iguais mas que se manifestam de modos diferenciados dependendo dos modos de vida de trabalho de acesso à escola e à educação formal das crenças religiosas de valores morais e artísticos diferentes etc Essas diferenças não formam raças e portanto raça é uma palavra inventada para transformar as diferenças em justificativas para discriminações e exclusões A Filosofia recolhendo fatos dados resultados e demonstrações feitos pelas várias ciências pode então concluir dizendo que 1 a teoria do racismo é falsa não é científica e é irracional 2 a teoria científica do racismo é na verdade uma prática e não uma teoria econômica social política e cultural para justificar a violência contra seres humanos e portanto é inaceitável para as ciências para a Filosofia e para a razão Uma razão racista não é razão mas ignorância preconceito violência e irrazão Convite à Filosofia 108 RECAPITULANDO No caminho que fizemos até aqui sobretudo no capítulo 4 da unidade 1 e nos capítulos 2 e 3 da unidade 2 notamos que a Filosofia e a razão estão na História e possuem uma história Notamos também que as respostas filosóficas aos dilemas criados pelo inatismo e pelo empirismo se transformaram em novas dificuldades e novos problemas Vimos finalmente que as concepções contemporâneas da razão são tão radicais que chegamos a indagar se ainda poderíamos continuar falando em razão A essa indagação procuramos responder mostrando que a permanência da razão se deve ao fato de considerarmos que a realidade natural social cultural histórica tem sentido e que este pode ser conhecido mesmo quando isso implique modificar a noção de razão e alargála Dissemos também que a razão permanece porque a própria razão exige que seu trabalho de conhecimento seja julgado por ela mesma e que para esse julgamento da racionalidade dos conhecimentos e das ações a razão oferece dois critérios principais 1 o critério lógico da coerência interna de um pensamento ou de uma teoria isto é a avaliação da compatibilidade e da incompatibilidade entre os princípios conceitos definições e procedimentos empregados e as conclusões ou resultados obtidos 2 o critério éticopolítico do papel da razão e do conhecimento para a compreensão das condições em que vivem os seres humanos e para sua manutenção melhoria ou transformação Aprendendo com as dificuldades da razão Vimos também que 1 mesmo quando os filósofos para resolver os impasses do inatismo do empirismo e do kantismo afirmam que a razão é histórica nem por isso entendem a mesma coisa 2 dizer que a razão é histórica pode significar a razão evolui progride continuamente no tempo avança e se torna cada vez melhor mas também pode significar a razão muda radicalmente em cada época sua história é feita de rupturas e descontinuidades e não há como nem por que comparar as diferentes formas da racionalidade cada qual tendo sua necessidade própria e seu valor próprio para o momento em que foi proposta 3 dizer que a história da razão é descontínua poderia levar a pensar que afinal a palavra razão não indica nada de muito preciso nada de muito claro e rigoroso e que talvez seja um mito que a cultura ocidental inventou para si mesma Mas pode também significar uma outra coisa muito mais importante que a razão não é a estrutura universal do espírito humano e sim um meio precioso de que Marilena Chauí 109 dispomos para criar julgar e avaliar conhecimentos para dar sentido às coisas às situações e aos acontecimentos e para transformar nossa existência individual e coletiva Ora o que fizemos até aqui foi um percurso no qual a razão não cessa de indagar a si mesma o que ela é o que ela pode e vale por que ela existe As crises da razão são enfrentadas por ela na medida em que são criadas por ela mesma em sua relação com a produção dos conhecimentos e com as condições históricas nas quais ela se realiza É verdade que tomar a razão pelo prisma de suas dificuldades e de seus impasses pode levar ao risco de cairmos na atitude cética isto é na posição dos que não acreditam que a razão seja capaz de conhecimentos verdadeiros Isso no entanto só aconteceria se imaginássemos que a razão deveria ser imutável intemporal e ahistórica e portanto algo que estaria em nós mas que seria completamente diferente de nós já que somos mutáveis temporais e históricos O cético é afinal aquele que no fundo deseja uma razão absoluta impossível e por isso despreza a razão humana tal como ela existe pois da forma como ela existe ele o cético não pode conhecêla Podemos dizer ainda que tomar a razão pelo prisma de suas dificuldades e de seus impasses de suas conquistas e perdas é a melhor vacina que a Filosofia possui contra uma doença intelectual muito perigosa chamada dogmatismo Dogmatismo vem da palavra grega dogma que significa uma opinião estabelecida por decreto e ensinada como uma doutrina sem contestação Por ser uma opinião decretada ou uma doutrina inquestionada um dogma é tomado como uma verdade que não pode ser contestada nem criticada como acontece por exemplo na nossa vida cotidiana quando diante de uma pergunta ou de uma dúvida que apresentamos nos respondem É assim porque é assim e porque tem que ser assim O dogmatismo é uma atitude autoritária e submissa Autoritária porque não admite dúvida contestação e crítica Submissa porque se curva às opiniões estabelecidas As crises as dificuldades e os impasses da razão mostram assim o oposto do dogmatismo Indicam atitude reflexiva e crítica própria da racionalidade destacando a importância fundamental da liberdade de pensamento para a própria razão e para a Filosofia Convite à Filosofia 110 Unidade 3 A verdade Marilena Chauí 111 Capítulo 1 Ignorância e verdade A verdade como um valor Não se aprende Filosofia mas a filosofar já disse Kant A Filosofia não é um conjunto de idéias e de sistemas que possamos apreender automaticamente não é um passeio turístico pelas paisagens intelectuais mas uma decisão ou deliberação orientada por um valor a verdade É o desejo do verdadeiro que move a Filosofia e suscita filosofias Afirmar que a verdade é um valor significa o verdadeiro confere às coisas aos seres humanos ao mundo um sentido que não teriam se fossem considerados indiferentes à verdade e à falsidade Ignorância incerteza e insegurança Ignorar é não saber alguma coisa A ignorância pode ser tão profunda que sequer a percebemos ou a sentimos isto é não sabemos que não sabemos não sabemos que ignoramos Em geral o estado de ignorância se mantém em nós enquanto as crenças e opiniões que possuímos para viver e agir no mundo se conservam como eficazes e úteis de modo que não temos nenhum motivo para duvidar delas nenhum motivo para desconfiar delas e conseqüentemente achamos que sabemos tudo o que há para saber A incerteza é diferente da ignorância porque na incerteza descobrimos que somos ignorantes que nossas crenças e opiniões parecem não dar conta da realidade que há falhas naquilo em que acreditamos e que durante muito tempo nos serviu como referência para pensar e agir Na incerteza não sabemos o que pensar o que dizer ou o que fazer em certas situações ou diante de certas coisas pessoas fatos etc Temos dúvidas ficamos cheios de perplexidade e somos tomados pela insegurança Outras vezes estamos confiantes e seguros e de repente vemos ou ouvimos alguma coisa que nos enche de espanto e de admiração não sabemos o que pensar ou o que fazer com a novidade do que vimos ou ouvimos porque as crenças opiniões e idéias que possuímos não dão conta do novo O espanto e a admiração assim como antes a dúvida e a perplexidade nos fazem querer saber o que não sabemos nos fazem querer sair do estado de insegurança ou de encantamento nos fazem perceber nossa ignorância e criam o desejo de superar a incerteza Convite à Filosofia 112 Quando isso acontece estamos na disposição de espírito chamada busca da verdade O desejo da verdade aparece muito cedo nos seres humanos como desejo de confiar nas coisas e nas pessoas isto é de acreditar que as coisas são exatamente tais como as percebemos e o que as pessoas nos dizem é digno de confiança e crédito Ao mesmo tempo nossa vida cotidiana é feita de pequenas e grandes decepções e por isso desde cedo vemos as crianças perguntarem aos adultos se tal ou qual coisa é de verdade ou é de mentira Quando uma criança ouve uma história inventa uma brincadeira ou um brinquedo quando joga vê um filme ou uma peça teatral está sempre atenta para saber se é de verdade ou de mentira está sempre atenta para a diferença entre o de mentira e a mentira propriamente dita isto é para a diferença entre brincar jogar fingir e faltar à confiança Quando uma criança brinca joga e finge está criando um outro mundo mais rico e mais belo mais cheio de possibilidades e invenções do que o mundo onde de fato vive Mas sabe mesmo que não formule explicitamente tal saber que há uma diferença entre imaginação e percepção ainda que no caso infantil essa diferença seja muito tênue muito leve quase imperceptível tanto assim que a criança acredita em mundos e seres maravilhosos como parte do mundo real de sua vida Por isso mesmo a criança é muito sensível à mentira dos adultos pois a mentira é diferente do de mentira isto é a mentira é diferente da imaginação e a criança se sente ferida magoada angustiada quando o adulto lhe diz uma mentira porque ao fazêlo quebra a relação de confiança e a segurança infantis Quando crianças estamos sujeitos a duas decepções a de que os seres as coisas os mundos maravilhosos não existem de verdade e a de que os adultos podem dizernos falsidades e nos enganar Essa dupla decepção pode acarretar dois resultados opostos ou a criança se recusa a sair do mundo imaginário e sofre com a realidade como alguma coisa ruim e hostil a ela ou dolorosamente aceita a distinção mas também se torna muito atenta e desconfiada diante da palavra dos adultos Nesse segundo caso a criança também se coloca na disposição da busca da verdade Nessa busca a criança pode desejar um mundo melhor e mais belo que aquele em que vive e encontrar a verdade nas obras de arte desejando ser artista também Ou pode desejar saber como e por que o mundo em que vive é tal como é e se ele poderia ser diferente ou melhor do que é Nesse caso é despertado nela o desejo de conhecimento intelectual e o da ação transformadora A criança não se decepciona nem se desilude com o fazdeconta porque sabe que é um fazdeconta Ela se decepciona ou se desilude quando descobre que querem que acredite como sendo de verdade alguma coisa que ela sabe ou que Marilena Chauí 113 ela supunha que fosse de fazdeconta isto é decepcionase e desiludese quando descobre a mentira Os jovens se decepcionam e se desiludem quando descobrem que o que lhes foi ensinado e lhes foi exigido oculta a realidade reprime sua liberdade diminui sua capacidade de compreensão e de ação Os adultos se desiludem ou se decepcionam quando enfrentam situações para as quais o saber adquirido as opiniões estabelecidas e as crenças enraizadas em suas consciências não são suficientes para que compreendam o que se passa nem para que possam agir ou fazer alguma coisa Assim seja na criança seja nos jovens ou nos adultos a busca da verdade está sempre ligada a uma decepção a uma desilusão a uma dúvida a uma perplexidade a uma insegurança ou então a um espanto e uma admiração diante de algo novo e insólito Dificuldades para a busca da verdade Em nossa sociedade é muito difícil despertar nas pessoas o desejo de buscar a verdade Pode parecer paradoxal que assim seja pois parecemos viver numa sociedade que acredita nas ciências que luta por escolas que recebe durante 24 horas diárias informações vindas de jornais rádios e televisões que possui editoras livrarias bibliotecas museus salas de cinema e de teatro vídeos fotografias e computadores Ora é justamente essa enorme quantidade de veículos e formas de informação que acaba tornando tão difícil a busca da verdade pois todo mundo acredita que está recebendo de modos variados e diferentes informações científicas filosóficas políticas artísticas e que tais informações são verdadeiras sobretudo porque tal quantidade informativa ultrapassa a experiência vivida pelas pessoas que por isso não têm meios para avaliar o que recebem Bastaria no entanto que uma mesma pessoa durante uma semana lesse de manhã quatro jornais diferentes e ouvisse três noticiários de rádio diferentes à tarde freqüentasse duas escolas diferentes onde os mesmos cursos estariam sendo ministrados e à noite visse os noticiários de quatro canais diferentes de televisão para que comparando todas as informações recebidas descobrisse que elas não batem umas com as outras que há vários mundos e várias sociedades diferentes dependendo da fonte de informação Uma experiência como essa criaria perplexidade dúvida e incerteza Mas as pessoas não fazem ou não podem fazer tal experiência e por isso não percebem que em lugar de receber informações estão sendo desinformadas E sobretudo como há outras pessoas o jornalista o radialista o professor o médico o policial o repórter dizendo a elas o que devem saber o que podem saber o que podem e devem fazer ou sentir confiando na palavra desses emissores de mensagens as pessoas se sentem seguras e confiantes e não há incerteza porque há ignorância Convite à Filosofia 114 Uma outra dificuldade para fazer surgir o desejo da busca da verdade em nossa sociedade vem da propaganda A propaganda trata todas as pessoas crianças jovens adultos idosos como crianças extremamente ingênuas e crédulas O mundo é sempre um mundo de fazdeconta nele a margarina fresca faz a família bonita alegre unida e feliz o automóvel faz o homem confiante inteligente belo sedutor bemsucedido nos negócios cheio de namoradas lindas o desodorante faz a moça bonita atraente bem empregada bem vestida com um belo apartamento e lindos namorados o cigarro leva as pessoas para belíssimas paisagens exóticas cheias de aventura e de negócios coroados de sucesso que terminam com lindos jantares à luz de velas A propaganda nunca vende um produto dizendo o que ele é e para que serve Ela vende o produto rodeandoo de magias belezas dandolhe qualidades que são de outras coisas a criança saudável o jovem bonito o adulto inteligente o idoso feliz a casa agradável etc produzindo um eterno fazdeconta Uma outra dificuldade para o desejo da busca da verdade vem da atitude dos políticos nos quais as pessoas confiam ouvindo seus programas suas propostas seus projetos enfim dandolhes o voto e vendose depois ludibriadas não só porque não são cumpridas as promessas mas também porque há corrupção mau uso do dinheiro público crescimento das desigualdades e das injustiças da miséria e da violência Em vista disso a tendência das pessoas é julgar que é impossível a verdade na política passando a desconfiar do valor e da necessidade da democracia e aceitando vender seu voto por alguma vantagem imediata e pessoal ou caem na descrença e no ceticismo No entanto essas dificuldades podem ter o efeito oposto isto é suscitar em muitas pessoas dúvidas incertezas desconfianças e desilusões que as façam desejar conhecer a realidade a sociedade a ciência as artes a política Muitos começam a não aceitar o que lhes é dito Muitos começam a não acreditar no que lhes é mostrado E como Sócrates em Atenas começam a fazer perguntas a indagar sobre fatos e pessoas coisas e situações a exigir explicações a exigir liberdade de pensamento e de conhecimento Para essas pessoas surge o desejo e a necessidade da busca da verdade Essa busca nasce não só da dúvida e da incerteza nasce também da ação deliberada contra os preconceitos contra as idéias e as opiniões estabelecidas contra crenças que paralisam a capacidade de pensar e de agir livremente Podemos dessa maneira distinguir dois tipos de busca da verdade O primeiro é o que nasce da decepção da incerteza e da insegurança e por si mesmo exige que saiamos de tal situação readquirindo certezas O segundo é o que nasce da deliberação ou decisão de não aceitar as certezas e crenças estabelecidas de ir Marilena Chauí 115 além delas e de encontrar explicações interpretações e significados para a realidade que nos cerca Esse segundo tipo é a busca da verdade na atitude filosófica Podemos oferecer dois exemplos célebres dessa busca filosófica Já falamos do primeiro Sócrates andando pelas ruas e praças de Atenas indagando aos atenienses o que eram as coisas e idéias em que acreditavam O segundo exemplo é o do filósofo Descartes Descartes começa sua obra filosófica fazendo um balanço de tudo o que sabia o que lhe fora ensinado pelos preceptores e professores pelos livros pelas viagens pelo convívio com outras pessoas Ao final conclui que tudo quanto aprendera tudo quanto sabia e tudo quanto conhecera pela experiência era duvidoso e incerto Decide então não aceitar nenhum desses conhecimentos a menos que pudesse provar racionalmente que eram certos e dignos de confiança Para isso submete todos os conhecimentos existentes em suas época e os seus próprios a um exame crítico conhecido como dúvida metódica declarando que só aceitará um conhecimento uma idéia um fato ou uma opinião se passados pelo crivo da dúvida revelaremse indubitáveis para o pensamento puro Ele os submete à análise à dedução à indução ao raciocínio e conclui que até o momento há uma única verdade indubitável que poderá ser aceita e que deverá ser o ponto de partida para a reconstrução do edifício do saber Essa única verdade é Penso logo existo pois se eu duvidar de que estou pensando ainda estou pensando visto que duvidar é uma maneira de pensar A consciência do pensamento aparece assim como a primeira verdade indubitável que será o alicerce para todos os conhecimentos futuros Convite à Filosofia 116 Capítulo 2 Buscando a verdade Dogmatismo e busca da verdade Quando prestamos atenção em Sócrates ou Descartes notamos que ambos por motivos diferentes e usando procedimentos diferentes fazem uma mesma coisa isto é desconfiam das opiniões e crenças estabelecidas em suas sociedades mas também desconfiam das suas próprias idéias e opiniões Do que desconfiam eles afinal Desconfiam do dogmatismo O que é dogmatismo Dogmatismo é uma atitude muito natural e muito espontânea que temos desde muito crianças É nossa crença de que o mundo existe e que é exatamente tal como o percebemos Temos essa crença porque somos seres práticos isto é nos relacionamos com a realidade como um conjunto de coisas fatos e pessoas que são úteis ou inúteis para nossa sobrevivência Os seres humanos porque são seres culturais trabalham O trabalho é uma ação pela qual modificamos as coisas e a realidade de modo a conseguir nossa preservação na existência Constroem casas fabricam vestuário e utensílios produzem objetos técnicos e de consumo inventam meios de transporte de comunicação e de informação Através da prática ou do trabalho e da técnica os seres humanos organizamse social e politicamente criam instituições sociais família escola agricultura comércio indústria relações entre grupos e classes etc e instituições políticas o Estado o poder executivo legislativo e judiciário as forças militares profissionais os tribunais e as leis Essas práticas só são possíveis porque acreditamos que o mundo existe que é tal como o percebemos e tal como nos ensinaram que ele é que pode ser modificado ou conservado por nós que é explicado pelas religiões e pelas ciências que é representado pelas artes Acreditamos que os outros seres humanos também são racionais pois graças à linguagem trocamos idéias e opiniões pensamos de modo muito parecido e a escola e os meios de comunicação garantem a manutenção dessas semelhanças Na atitude dogmática tomamos o mundo como já dado já feito já pensado já transformado A realidade natural social política e cultural forma uma espécie de moldura de um quadro em cujo interior nos instalamos e onde existimos Mesmo quando acontece algo excepcional ou extraordinário uma catástrofe o aparecimento de um objeto inteiramente novo e desconhecido nossa tendência natural e dogmática é a de reduzir o excepcional e o extraordinário aos padrões Marilena Chauí 117 do que já conhecemos e já sabemos Mesmo quando descobrimos que alguma coisa é diferente do que havíamos suposto essa descoberta não abala nossa crença e nossa confiança na realidade nem nossa familiaridade com ela O mundo é como a novela de televisão muita coisa acontece mas afinal nada acontece pois quando a novela termina os bons foram recompensados os maus foram punidos os pobres bons ficaram ricos os ricos maus ficaram pobres a mocinha casou com o mocinho certo a família boa se refez e a família má se desfez Em outras palavras os acontecimentos da novela servem apenas para confirmar e reforçar o que já sabíamos e o que já esperávamos Tudo se mantém numa atmosfera ou num clima de familiaridade de segurança e sossego Na atitude dogmática ou natural aceitamos sem nenhum problema que há uma realidade exterior a nós e que embora externa e diferente de nós pode ser conhecida e tecnicamente transformada por nós Achamos que o espaço existe que nele as coisas estão como num receptáculo achamos que o tempo também existe e que nele as coisas e nós próprios estamos submetidos à sucessão dos instantes Dogmatismo e estranhamento Escutemos porém por um momento a indagação de santo Agostinho em suas Confissões O que é o tempo Tentemos fornecer uma explicação fácil e breve O que há de mais familiar e mais conhecido do que o tempo Mas o que é o tempo Quando quero explicálo não encontro explicação Se eu disser que o tempo é a passagem do passado para o presente e do presente para o futuro terei que perguntar Como pode o tempo passar Como sei que ele passa O que é um tempo passado Onde ele está O que é um tempo futuro Onde ele está Se o passado é o que eu do presente recordo e o futuro é o que eu do presente espero então não seria mais correto dizer que o tempo é apenas o presente Mas quanto dura um presente Quando acabo de colocar o r no verbo colocar este r é ainda presente ou já é passado A palavra que estou pensando em escrever a seguir é presente ou é futuro O que é o tempo afinal E a eternidade As coisas são mesmo tais como me aparecem Estão no espaço Mas o que é o espaço Se eu disser que o espaço é feito de comprimento altura e largura onde poderei colocar a profundidade sem a qual não podemos ver não podemos enxergar nada Mas a profundidade que me permite ver as coisas espaciais é justamente aquilo que não vejo e que não posso ver se eu quiser olhar as coisas A profundidade é ou não espacial Se for espacial por que não a vejo no espaço Se não for espacial como pode ser a condição para que eu veja as coisas no espaço Convite à Filosofia 118 Acompanhemos agora os versos do poeta Mário de Andrade escritos no poema Lira Paulistana Garoa do meu São Paulo Um negro vem vindo é branco Só bem perto fica negro Passa e torna a ficar branco Meu São Paulo da garoa Londres das neblinas frias Um pobre vem vindo é rico Só bem perto fica pobre Passa e torna a ficar rico Esses versos nos quais a garoa de São Paulo se parece com a neblina de Londres isto é com um véu denso de ar úmido dizem que não conseguimos ver a realidade o negro de longe é branco o pobre de longe é rico só muito de perto sem o véu da garoa o negro é negro e o pobre é pobre Mas apesar de vê los de perto tais como são de longe voltam a ser o que não são O poeta exprime um dos problemas que mais fascinam a Filosofia Como a ilusão é possível Como podemos ver o que não é Mas conseqüentemente como a verdade é possível Como podemos ver o que é tal como é Qual é a garoa que se interpõe entre o nosso pensamento e a realidade Qual é a garoa que se interpõe entre nosso olhar e as coisas A atitude dogmática ou natural se rompe quando somos capazes de uma atitude de estranhamento diante das coisas que nos pareciam familiares Dois exemplos podem ilustrar essa capacidade de estranhamento ambos da escritora Clarice Lispector em seu livro A descoberta do mundo O primeiro tem como título Mais do que um inseto Custei um pouco a compreender o que estava vendo de tão inesperado e sutil que era estava vendo um inseto pousado verdeclaro de pernas altas Era uma esperança o que sempre me disseram que é de bom augúrio Depois a esperança começou a andar bem de leve sobre o colchão Era verde transparente com pernas que mantinham seu corpo plano alto e por assim dizer solto um plano tão frágil quanto as próprias pernas que eram feitas apenas da cor da casca Dentro do fiapo das pernas não havia nada dentro o lado de dentro de uma superfície tão rasa já é a própria superfície Parecia um raso desenho que tivesse saído do papel verde e andasse E andava com uma determinação de quem copiasse um traço que era invisível para mim Mas onde estariam nele as glândulas de seu destino e as adrenalinas de seu seco verde interior Pois era um ser oco um enxerto de gravetos simples atração eletiva de linhas verdes O outro se intitula Atualidade do ovo e da galinha e nele podemos ler o seguinte trecho Marilena Chauí 119 Olho o ovo com um só olhar Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo apenas ver o ovo é sempre hoje mal vejo o ovo e já se torna ter visto um ovo o mesmo há três milênios No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo Só vê o ovo quem já o tiver visto Ver realmente o ovo é impossível o ovo é supervisível como há sons supersônicos que o ouvido já não ouve Ninguém é capaz de ver o ovo O ovo é uma coisa suspensa Nunca pousou Quando pousa não foi ele quem pousou foi uma superfície que veio ficar embaixo do ovo O ovo é uma exteriorização ter uma casca é darse O ovo expõe tudo À primeira vista que há de mais banal ou familiar do que um inseto ou um ovo No entanto Clarice Lispector nos faz sentir admiração e estranhamento como se jamais tivéssemos visto um inseto ou um ovo Nas duas descrições maravilhadas um ponto é comum o inseto e o ovo têm a peculiaridade de serem superfícies nas quais não conseguimos distinguir ou separar o fora e o dentro o exterior e o interior a esperança verde é como um traçado letra desenho sobre a superfície do papel o ovo é uma casca que expõe tudo No entanto nesses dois seres sem profundidade há um abismo misterioso todo ovo é igual a todo ovo e por isso não temos como ver um ovo embora ele esteja diante de nossos olhos e o inseto esperança é um oco um vazio colorido como um vazio pode ter cor ou uma cor sem corpo como uma cor pode existir sem um corpo colorido O sentido das palavras A mesma estranheza pode ser encontrada num poema de Carlos Drummond mas agora relativa à linguagem Usamos todos os dias as palavras como instrumentos dóceis e disponíveis como se sempre estivessem estado prontas para nós com seu sentido claro e útil O poeta porém aconselha Penetra surdamente no reino das palavras Chega mais perto e contempla as palavras Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta sem interesse pela resposta pobre ou terrível que lhe deres Trouxeste a chave Se as palavras tivessem sempre um sentido óbvio e único não haveria literatura não haveria malentendido e controvérsia Se as palavras tivessem sempre o mesmo sentido e se indicassem diretamente as coisas nomeadas como seria possível a mentira É por isso que o poeta Fernando Pessoa em versos famosos escreveu Convite à Filosofia 120 O poeta é um fingidor Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente O poeta é um fingedor e seu fingimento isto é sua criação artística é tão profundo e tão constitutivo de seu ser de poeta que ele finge isto é transforma em poema em obra de arte a dor que deveras ou de verdade sente A palavra tem esse poder misterioso de transformar o que não existe em realidade o poeta finge e de dar a aparência de irrealidade ao que realmente existe o poeta finge a dor que realmente sente Na tragédia Otelo de Shakespeare o mouro Otelo apaixonado perdidamente por sua jovem esposa Desdêmona acaba por assassinála porque foi convencido por Iago de que ela o traía Iago invejoso dos cargos que Otelo daria a um outro membro de sua corte inventou a traição de Desdêmona mentiu para Otelo e este tomando a mentira pela verdade destruiu a pessoa amada que morreu afirmando sua inocência Para construir a mentira Iago despertou em Otelo o ciúme caluniando Desdêmona Usou vários estratagemas mas sobretudo usou a linguagem isto é palavras falsas que envenenaram o espírito de Otelo Como é possível que as palavras ou que a linguagem tenham o poder para tornar o verdadeiro falso e fazer do falso verdadeiro Como seria uma sociedade na qual a mentira fosse a regra e portanto na qual não conseguíssemos nenhuma informação por menor que fosse que tivesse alguma veracidade Como faríamos para sobreviver se tudo o que nos fosse dito fosse mentira Perguntas e respostas seriam inúteis a desconfiança e a decepção seriam as únicas formas de relação entre as pessoas e tal sociedade seria a imagem do Inferno Essa sociedade infernal é criada pelo escritor George Orwell no romance 1984 Orwell descreve uma sociedade totalitária que controla todos os gestos atos pensamentos e palavras de seus membros Estes todos os dias entram num cubículo onde uma teletela exibe o rosto do grande chefe o Grande Irmão que pela mentira e pelo medo domina o espírito da população falando diariamente com cada um Nessa sociedade é instituído o Ministério da Verdade no qual todos os dias os fatos reais são modificados em narrativas ou relatos falsos são omitidos são apagados da História e da memória como se nunca tivessem existido O Ministério da Verdade cria a mentira como instituição social O poder cria a NoviLíngua isto é inventa palavras e destrói outras as inventadas são as que estão a serviço da mentira institucionalizada e as destruídas são as que poderiam fazer aparecer a mentira A negação da verdade é assim usada para manter uma sociedade inteira enganada e submissa Marilena Chauí 121 Quando vemos o modo como os meios de comunicação funcionam podemos perguntar se 1984 é uma simples ficção ou se realmente existe sem que o saibamos Como é possível que a linguagem tenha tamanho poder mistificador E ao mesmo tempo como é possível que em todas as culturas na relação entre os homens e a divindade entre o profano e o sagrado o papel fundamental de revelação da verdade seja sempre dado à linguagem à palavra sagrada e verdadeira que os deuses dizem aos homens Como uma mesma coisa a palavra o discurso pode ser origem ao mesmo tempo da verdade e da falsidade Como a linguagem pode mostrar e esconder Como essa duplicidade misteriosa da linguagem pode servir para manter o dogmatismo Mas também como pode despertar o desejo de verdade Verdades reveladas e verdades alcançadas A atitude dogmática é conservadora isto é sente receio das novidades do inesperado do desconhecido e de tudo o que possa desequilibrar as crenças e opiniões já constituídas Esse conservadorismo se transforma em preconceito isto é em idéias preconcebidas que impedem até mesmo o contato com tudo quanto possa pôr em perigo o já sabido o já dito e o já feito O conservadorismo pode aumentar ainda mais quando o dogmatismo estiver convencido de que várias de suas opiniões e crenças vieram de uma fonte sagrada de uma revelação divina incontestável e incontestada de tal modo que situações que tornem problemáticas tais crenças são afastadas como inaceitáveis e perigosas aqueles que ousam enfrentar essas crenças e opiniões são tidos como criminosos blasfemadores e heréticos No romance de Umberto Eco O nome da rosa uma série de assassinatos misteriosos acontecem e todos os mortos trazem um mesmo sinal a língua enegrecida e dois dedos da mão direita o polegar e o indicador também enegrecidos O monge Guilherme de Baskerville descobre que todos os assassinados eram frades encarregados de copiar e ilustrar manuscritos de uma biblioteca todos eles haviam manuseado um mesmo livro no qual havia algo que funcionava como veneno ao molhar os dedos com saliva para virar as páginas do livro os copistas eram envenenados Guilherme descobre que o livro era uma obra perdida de Aristóteles sobre a comédia e a importância do riso para a vida humana Descobre também que um dos monges Jorge de Burgos guardião da biblioteca julgara que o riso é contrário à vontade de Deus um pecado que merece a morte pois viemos ao mundo para sofrer a culpa original de Adão Por isso assassinou por envenenamento os copistas que ousaram ler o livro e ao final queima a biblioteca para que o livro seja destruído Convite à Filosofia 122 Nesse romance duas idéias acerca da verdade se enfrentam a verdade humana que estaria contida no livro do filósofo Aristóteles e a verdade divina que o bibliotecário julga estar na proibição do riso e da alegria para os humanos pecadores que vieram à Terra para o sofrimento Em nome dessa segunda verdade Jorge de Burgos matou outros seres humanos e queimou livros escritos por seres humanos pois para ele uma verdade revelada por Deus é a única verdade e tudo quanto querem e pensam os humanos se for contrário à verdade divina é erro e falsidade crime e blasfêmia Esse conflito entre verdades reveladas e verdades alcançadas pelos humanos através do exercício da inteligência e da razão tem sido também uma questão que preocupa a Filosofia desde o surgimento do Cristianismo Podemos conhecer as verdades divinas Se não pudermos conhecêlas seremos culpados Mas como seríamos culpados por não conhecer aquilo que nosso intelecto por ser pequeno e menor do que o de Deus não teria forças para alcançar As três concepções da verdade Os vários exemplos que mencionamos neste capítulo indicam concepções diferentes da verdade No caso de Mário de Andrade e Clarice Lispector o problema da verdade está ligado ao ver ao perceber No caso de Fernando Pessoa Carlos Drummond Shakespeare e Orwell a verdade está ligada ao dizer ao falar às palavras No caso de Umberto Eco a verdade está ligada ao crer ao acreditar Para a atitude natural ou dogmática o verdadeiro é o que funciona e não surpreende É como vimos o já sabido o já dito e o já feito Verdade e realidade parecem ser idênticas e quando essa identidade se desfaz ou se quebra surge a incerteza que busca readquirir certezas Para a atitude crítica ou filosófica a verdade nasce da decisão e da deliberação de encontrála da consciência da ignorância do espanto da admiração e do desejo de saber Nessa busca a Filosofia é herdeira de três grandes concepções da verdade a do verperceber a do falardizer e a do crerconfiar Marilena Chauí 123 Capítulo 3 As concepções da verdade Grego latim e hebraico Nossa idéia da verdade foi construída ao longo dos séculos a partir de três concepções diferentes vindas da língua grega da latina e da hebraica Em grego verdade se diz aletheia significando nãooculto nãoescondido não dissimulado O verdadeiro é o que se manifesta aos olhos do corpo e do espírito a verdade é a manifestação daquilo que é ou existe tal como é O verdadeiro se opõe ao falso pseudos que é o encoberto o escondido o dissimulado o que parece ser e não é como parece O verdadeiro é o evidente ou o plenamente visível para a razão Assim a verdade é uma qualidade das próprias coisas e o verdadeiro está nas próprias coisas Conhecer é ver e dizer a verdade que está na própria realidade e portanto a verdade depende de que a realidade se manifeste enquanto a falsidade depende de que ela se esconda ou se dissimule em aparências Em latim verdade se diz veritas e se refere à precisão ao rigor e à exatidão de um relato no qual se diz com detalhes pormenores e fidelidade o que aconteceu Verdadeiro se refere portanto à linguagem enquanto narrativa de fatos acontecidos referese a enunciados que dizem fielmente as coisas tais como foram ou aconteceram Um relato é veraz ou dotado de veracidade quando a linguagem enuncia os fatos reais A verdade depende de um lado da veracidade da memória e da acuidade mental de quem fala e de outro de que o enunciado corresponda aos fatos acontecidos A verdade não se refere às próprias coisas e aos próprios fatos como acontece com a aletheia mas ao relato e ao enunciado à linguagem Seu oposto portanto é a mentira ou a falsificação As coisas e os fatos não são reais ou imaginários os relatos e enunciados sobre eles é que são verdadeiros ou falsos Em hebraico verdade se diz emunah e significa confiança Agora são as pessoas e é Deus quem são verdadeiros Um Deus verdadeiro ou um amigo verdadeiro são aqueles que cumprem o que prometem são fiéis à palavra dada ou a um pacto feito enfim não traem a confiança A verdade se relaciona com a presença com a espera de que aquilo que foi prometido ou pactuado irá cumprirse ou acontecer Emunah é uma palavra de mesma origem que amém que significa assim seja A verdade é uma crença fundada na esperança e na confiança referidas ao futuro ao que será ou virá Sua Convite à Filosofia 124 forma mais elevada é a revelação divina e sua expressão mais perfeita é a profecia Aletheia se refere ao que as coisas são veritas se refere aos fatos que foram emunah se refere às ações e as coisas que serão A nossa concepção da verdade é uma síntese dessas três fontes e por isso se refere às coisas presentes como na aletheia aos fatos passados como na veritas e às coisas futuras como na emunah Também se refere à própria realidade como na aletheia à linguagem como na veritas e à confiançaesperança como na emunah Palavras como averiguar e verificar indicam buscar a verdade veredicto é pronunciar um julgamento verdadeiro dizer um juízo veraz verossímil e verossimilhante significam ser parecido com a verdade ter traços semelhantes aos de algo verdadeiro Diferentes teorias sobre a verdade Existem diferentes concepções filosóficas sobre a natureza do conhecimento verdadeiro dependendo de qual das três idéias originais da verdade predomine no pensamento de um ou de alguns filósofos Assim quando predomina a aletheia considerase que a verdade está nas próprias coisas ou na própria realidade e o conhecimento verdadeiro é a percepção intelectual e racional dessa verdade A marca do conhecimento verdadeiro é a evidência isto é a visão intelectual e racional da realidade tal como é em si mesma e alcançada pelas operações de nossa razão ou de nosso intelecto Uma idéia é verdadeira quando corresponde à coisa que é seu conteúdo e que existe fora de nosso espírito ou de nosso pensamento A teoria da evidência e da correspondência afirma que o critério da verdade é a adequação do nosso intelecto à coisa ou da coisa ao nosso intelecto Quando predomina a veritas considerase que a verdade depende do rigor e da precisão na criação e no uso de regras de linguagem que devem exprimir ao mesmo tempo nosso pensamento ou nossas idéias e os acontecimentos ou fatos exteriores a nós e que nossas idéias relatam ou narram em nossa mente Agora não se diz que uma coisa é verdadeira porque corresponde a uma realidade externa mas se diz que ela corresponde à realidade externa porque é verdadeira O critério da verdade é dado pela coerência interna ou pela coerência lógica das idéias e das cadeias de idéias que formam um raciocínio coerência que depende da obediência às regras e leis dos enunciados corretos A marca do verdadeiro é a validade lógica de seus argumentos Finalmente quando predomina a emunah considerase que a verdade depende de um acordo ou de um pacto de confiança entre os pesquisadores que definem um conjunto de convenções universais sobre o conhecimento verdadeiro e que devem sempre ser respeitadas por todos A verdade se funda portanto no Marilena Chauí 125 consenso e na confiança recíproca entre os membros de uma comunidade de pesquisadores e estudiosos O consenso se estabelece baseado em três princípios que serão respeitados por todos 1 que somos seres racionais e nosso pensamento obedece aos quatro princípios da razão identidade nãocontradição terceiroexcluído e razão suficiente ou causalidade 2 que somos seres dotados de linguagem e que ela funciona segundo regras lógicas convencionadas e aceitas por uma comunidade 3 que os resultados de uma investigação devem ser submetidos à discussão e avaliação pelos membros da comunidade de investigadores que lhe atribuirão ou não o valor de verdade Existe ainda uma quarta teoria da verdade que se distingue das anteriores porque define o conhecimento verdadeiro por um critério que não é teórico e sim prático Tratase da teoria pragmática para a qual um conhecimento é verdadeiro por seus resultados e suas aplicações práticas sendo verificado pela experimentação e pela experiência A marca do verdadeiro é a verificabilidade dos resultados Essa concepção da verdade está muito próxima da teoria da correspondência entre coisa e idéia aletheia entre realidade e pensamento que julga que o resultado prático na maioria das vezes é conseguido porque o conhecimento alcançou as próprias coisas e pode agir sobre elas Em contrapartida a teoria da convenção ou do consenso emunah está mais próxima da teoria da coerência interna veritas pois as convenções ou consensos verdadeiros costumam ser baseados em princípios e argumentos lingüísticos e lógicos princípios e argumentos da linguagem do discurso e da comunicação Na primeira teoria aletheiacorrespondência as coisas e as idéias são consideradas verdadeiras ou falsas na segunda veritascoerência e na terceira emunahconsenso os enunciados os argumentos e as idéias é que são julgados verdadeiros ou falsos na quarta pragmática são os resultados que recebem a denominação de verdadeiros ou falsos Na primeira e na quarta teoria a verdade é o acordo entre o pensamento e a realidade Na segunda e na terceira teoria a verdade é o acordo do pensamento e da linguagem consigo mesmos a partir de regras e princípios que o pensamento e a linguagem deram a si mesmos em conformidade com sua natureza própria que é a mesma para todos os seres humanos ou definida como a mesma para todos por um consenso A verdade como evidência e correspondência Se observarmos a concepção grega da verdade aletheia notaremos que nela as coisas ou o Ser é o verdadeiro ou a verdade Isto é o que existe e manifesta sua Convite à Filosofia 126 existência para nossa percepção e para nosso pensamento é verdade ou verdadeiro Por esse motivo os filósofos gregos perguntam Como o erro o falso e a mentira são possíveis Em outras palavras como podemos pensar naquilo que não é não existe não tem realidade pois o erro o falso e a mentira só podem referirse ao nãoSer O Ser é o manifesto o visível para os olhos do corpo e do espírito o evidente Errar falsear ou mentir portanto é não ver os seres tais como são é não falar deles tais como são Como é isso possível A resposta dos gregos é dupla 1 o erro o falso e a mentira se referem à aparência superficial e ilusória das coisas ou dos seres e surgem quando não conseguimos alcançar a essência das realidades como no poema de Mário de Andrade em que a garoaneblina cria um véu que encobre oculta e dissimula as coisas e as torna confusas indistintas são um defeito ou uma falha de nossa percepção sensorial ou intelectual 2 o erro o falso e a mentira surgem quando dizemos de algum ser aquilo que ele não é quando lhe atribuímos qualidades ou propriedades que ele não possui ou quando lhe negamos qualidades ou propriedades que ele possui Nesse caso o erro o falso e a mentira se alojam na linguagem e acontecem no momento em que fazemos afirmações ou negações que não correspondem à essência de alguma coisa O erro o falso e a mentira são um acontecimento do juízo ou do enunciado Juízo é uma proposição afirmativa S é P ou negativa S não é P pela qual atribuo ou nego a um sujeito S um predicado P O predicado é um atributo afirmado ou negado do sujeito e faz parte ou não de sua essência Se eu formular o seguinte juízo Sócrates é imortal o erro se encontra na atribuição do predicado imortal a um sujeito Sócrates que não possui a qualidade ou a propriedade da imortalidade O erro é um engano do juízo quando desconhecemos a essência de um ser O falso e a mentira porém são juízos deliberadamente errados isto é conhecemos a essência de alguma coisa mas deliberadamente emitimos um juízo errado sobre ela O que é a verdade É a conformidade entre nosso pensamento e nosso juízo e as coisas pensadas ou formuladas Qual a condição para o conhecimento verdadeiro A evidência isto é a visão intelectual da essência de um ser Para formular um juízo verdadeiro precisamos portanto primeiro conhecer a essência e a conhecemos ou por intuição ou por dedução ou por indução A verdade exige que nos libertemos das aparências das coisas exige portanto que nos libertemos das opiniões estabelecidas e das ilusões de nossos órgãos dos sentidos Em outras palavras a verdade sendo o conhecimento da essência real e profunda dos seres é sempre universal e necessária enquanto as opiniões variam de lugar para lugar de época para época de sociedade para sociedade de pessoa para pessoa Essa variabilidade e inconstância das opiniões provam que a essência dos seres não está conhecida e por isso se nos mantivermos no plano das opiniões nunca alcançaremos a verdade Marilena Chauí 127 O mesmo deve ser dito sobre nossas impressões sensoriais que variam conforme o estado do nosso corpo as disposições de nosso espírito e as condições em que as coisas nos aparecem Pelo mesmo motivo devemos ou abandonar as idéias formadas a partir de nossa percepção ou encontrar os aspectos universais e necessários da experiência sensorial que alcancem parte da essência real das coisas No primeiro caso somente o intelecto espírito vê o Ser verdadeiro No segundo caso o intelecto purifica o testemunho sensorial Por exemplo posso perceber que uma flor é branca mas se eu estiver doente a verei amarela percebo o Sol muito menor do que a Terra embora ele seja maior do que ela Apesar desses enganos perceptivos observo que toda percepção percebe qualidades nas coisas cor tamanho por exemplo e portanto as qualidades pertencem à essência das próprias coisas e fazem parte da verdade delas Quando porém examinamos a idéia latina da verdade como veracidade de um relato observamos que agora o problema da verdade e do erro do falso e da mentira deslocouse diretamente para o campo da linguagem O verdadeiro e o falso estão menos no ato de ver com os olhos do corpo ou com os olhos do espírito e mais no ato de dizer Por isso a pergunta dos filósofos agora é exatamente contrária à anterior ou seja perguntase Como a verdade é possível De fato se a verdade está no discurso ou na linguagem não depende apenas do pensamento e das próprias coisas mas também de nossa vontade para dizêla silenciála ou deformála O verdadeiro continua sendo tomado como conformidade entre a idéia e as coisas no caso entre o discurso ou relato e os fatos acontecidos que estão sendo relatados mas depende também de nosso querer Esse aspecto voluntário da verdade tornase de grande importância com o surgimento da Filosofia cristã porque com ela é introduzida a idéia de vontade livre ou de livrearbítrio de modo que a verdade está na dependência não só da conformidade entre relato e fato mas também da boavontade ou da vontade que deseja o verdadeiro Ora o cristianismo afirma que a vontade livre foi responsável pelo pecado original e que a vontade foi pervertida e tornouse mávontade Assim sendo a mentira o erro e o falso tenderiam a prevalecer contra a verdade Nosso intelecto ou nosso pensamento é mais fraco do que nossa vontade e esta pode forçálo ao erro e ao falso Essas questões foram posteriormente examinadas pelos filósofos modernos os filósofos do Grande Racionalismo Clássico que introduzirão a exigência de começar a Filosofia pelo exame de nossa consciência vontade intelecto imaginação memória para saber o que podemos conhecer realmente e quais os auxílios que devem ser oferecidos ao nosso intelecto para que controle e domine nossa vontade e a submeta ao verdadeiro Convite à Filosofia 128 É preciso começar liberando nossa consciência dos preconceitos dos dogmatismos da opinião e da experiência cotidiana Essa consciência purificada que é o sujeito do conhecimento poderá então alcançar as evidências por intuição dedução ou indução e formular juízos verdadeiros aos quais a vontade deverá submeterse Tanto os antigos quanto os modernos afirmam que 1 a verdade é conhecida por evidência a evidência pode ser obtida por intuição dedução ou indução 2 a verdade se exprime no juízo onde a idéia está em conformidade com o ser das coisas ou com os fatos 3 o erro o falso e a mentira se alojam no juízo quando afirmamos de uma coisa algo que não pertence à sua essência ou natureza ou quando lhe negamos algo que pertence necessariamente à sua essência ou natureza 4 as causas do erro e do falso são as opiniões preconcebidas os hábitos os enganos da percepção e da memória 5 a causa do falso e da mentira para os modernos também se encontra na vontade que é mais poderosa do que o intelecto ou o pensamento e precisa ser controlada por ele 6 uma verdade por referirse à essência das coisas ou dos seres é sempre universal e necessária e distinguese da aparência pois esta é sempre particular individual instável e mutável 7 o pensamento se submete a uma única autoridade a dele própria com capacidade para o verdadeiro Quando os filósofos antigos e modernos afirmam que a verdade é conformidade ou correspondência entre a idéia e a coisa e entre a coisa e a idéia ou entre a idéia e o ideado não estão dizendo que uma idéia verdadeira é uma cópia um papel carbono um xerox da coisa verdadeira Idéia e coisa conceito e ser juízo e fato não são entidades de mesma natureza e não há entre eles uma relação de cópia O que os filósofos afirmam é que a idéia conhece a estrutura da coisa conhece as relações internas necessárias que constituem a essência da coisa e as relações e nexos necessários que ela mantém com outras Como disse um filósofo a idéia de cão não late e a de açúcar não é doce A idéia é um ato intelectual o ideado uma realidade externa conhecida pelo intelecto A idéia verdadeira é o conhecimento das causas qualidades propriedades e relações da coisa conhecida e da essência dela ou de seu ser íntimo e necessário Quando o pensamento conhece por exemplo o fenômeno da queda livre dos corpos formulado pela física de Galileu isto não significa que o pensamento se torne um corpo caindo no vácuo mas sim que conhece as causas desse Marilena Chauí 129 movimento e as formula em conceitos verdadeiros isto é formula as leis do movimento Uma outra teoria da verdade Quando estudamos a razão vimos os problemas criados pelo inatismo e pelo empirismo Vimos também a revolução copernicana de Kant distinguindo as estruturas ou formas e categorias da razão e os conteúdos trazidos a ela pela experiência isto é a distinção entre os elementos a priori e a posteriori no conhecimento Com a revolução copernicana kantiana uma distinção muito importante passou a ser feita na Filosofia a distinção entre juízos analíticos e juízos sintéticos Um juízo é analítico quando o predicado ou os predicados do enunciado nada mais são do que a explicitação do conteúdo do sujeito do enunciado Por exemplo quando digo que o triângulo é uma figura de três lados o predicado três lados nada mais é do que a análise ou a explicitação do sujeito triângulo Quando porém entre o sujeito e o predicado se estabelece uma relação na qual o predicado me dá informações novas sobre o sujeito o juízo é sintético isto é formula uma síntese entre um predicado e um sujeito Assim por exemplo quando digo que o calor é a causa da dilatação dos corpos o predicado causa da dilatação não está analiticamente contido no sujeito calor Se eu dissesse que o calor é uma medida de temperatura dos corpos o juízo seria analítico mas quando estabeleço uma relação causal entre o sujeito e o predicado como no caso da relação entre calor e dilatação dos corpos tenho uma síntese algo novo me é dito sobre o sujeito através do predicado Para Kant os juízos analíticos são as verdades de razão de Leibniz mas os juízos sintéticos teriam que ser considerados verdades de fato No entanto vimos que os fatos estão sob a suspeita de Hume isto é fatos seriam hábitos associativos e repetitivos de nossa mente baseados na experiência sensível e portanto um juízo sintético jamais poderia pretender ser verdadeiro de modo universal e necessário Que faz Kant Introduz a idéia de juízos sintéticos a priori isto é de juízos sintéticos cuja síntese depende da estrutura universal e necessária de nossa razão e não da variabilidade individual de nossas experiências Os juízos sintéticos a priori exprimem o modo como necessariamente nosso pensamento relaciona e conhece a realidade A causalidade por exemplo é uma síntese a priori que nosso entendimento formula para as ligações universais e necessárias entre causas e efeitos independentemente de hábitos psíquicos associativos Todavia vi mos também que Kant afirma que a realidade que conhecemos filosoficamente e cientificamente não é a realidade em si das coisas mas a realidade tal como é estruturada por nossa razão tal como é organizada Convite à Filosofia 130 explicada e interpretada pelas estruturas a priori do sujeito do conhecimento A realidade são nossas idéias verdadeiras e o kantismo é um idealismo Vimos também ao estudar a Filosofia contemporânea que o filósofo Husserl criou uma filosofia chamada fenomenologia Essa palavra vem diretamente da filosofia kantiana Com efeito Kant usa duas palavras gregas para referirse à realidade a palavra noumenon que significa a realidade em si racional em si inteligível em si e a palavra phainomenon fenômeno que significa a realidade tal como se mostra ou se manifesta para nossa razão ou para nossa consciência Kant afirma que só podemos conhecer o fenômeno o que se apresenta para a consciência de acordo com a estrutura a priori da própria consciência e que não podemos conhecer o noumenon a coisa em si Fenomenologia significa conhecimento daquilo que se manifesta para nossa consciência daquilo que está presente para a consciência ou para a razão daquilo que é organizado e explicado a partir da própria estrutura da consciência A verdade se refere aos fenômenos e os fenômenos são o que a consciência conhece Ora pergunta Husserl o que é o fenômeno O que é que se manifesta para a consciência A própria consciência Conhecer os fenômenos e conhecer a estrutura e o funcionamento necessário da consciência são uma só e mesma coisa pois é a própria consciência que constitui os fenômenos Como ela os constitui Dando sentido às coisas Conhecer é conhecer o sentido ou a significação das coisas tal como esse sentido foi produzido ou essa significação foi produzida pela consciência O sentido ou significação quando universal e necessário é a essência das coisas A verdade é o conhecimento das essências universais e necessárias ou o conhecimento das significações constituídas pela consciência reflexiva ou pela razão reflexiva Na perspectiva idealista seja ela kantiana ou husserliana não podemos mais dizer que a verdade é a conformidade do pensamento com as coisas ou a correspondência entre a idéia e o objeto A verdade será o encadeamento interno e rigoroso das idéias ou dos conceitos Kant ou das significações Husserl sua coerência lógica e sua necessidade A verdade é um acontecimento interno ao nosso intelecto ou à nossa consciência Para Kant e para Husserl o erro e a falsidade encontramse no realismo isto é na suposição de que os conceitos ou as significações se refiram a uma realidade em si independente do sujeito do conhecimento Esse erro e essa falsidade Kant chamou de dogmatismo e Husserl de atitude natural ou tese natural do mundo Uma terceira concepção da verdade Quando falamos sobre Filosofia contemporânea fizemos referência a um tipo de filosofia conhecida como filosofia analítica Marilena Chauí 131 A filosofia analítica dedicouse prioritariamente aos estudos da linguagem e da lógica e por isso situou a verdade como um fato ou um acontecimento lingüístico e lógico isto é como um fato da linguagem A teoria da verdade nessa filosofia passou por duas grandes etapas Na primeira os filósofos consideravam que a linguagem produz enunciados sobre as coisas há os enunciados do sensocomum ou da vida cotidiana e os enunciados lógicos formulados pelas ciências A pretensão da linguagem nos dois casos seria a de produzir enunciados em conformidade com a própria realidade de modo que a verdade seria tal conformidade ou correspondência entre os enunciados e os fatos e coisas Essa conformidade ou correspondência seria inadequada e imprecisa na linguagem natural ou comum nossa linguagem cotidiana e seria adequada rigorosa e precisa na linguagem lógica das ciências Por isso a ciência foi definida como linguagem bem feita e concebida como descrição e pintura do mundo No entanto inúmeros problemas tornaram essa concepção insustentável Por exemplo se eu disser estrela da manhã e estrela da tarde terei dois enunciados diferentes e duas pinturas diferentes do mundo Acontece porém que esses dois enunciados se referem ao mesmo objeto o planeta Vênus Como posso ter dois enunciados diferentes para significar o mesmo objeto ou a mesma coisa Um outro exemplo conhecido com o nome de paradoxo do catálogo também pode ilustrar as dificuldades da teoria da verdade como correspondência entre enunciado e coisa em que a correspondência é uma pintura da realidade feita pelas idéias Se eu disser que existe o catálogo de todos os catálogos onde devo colocar o catálogo dos catálogos Isto é o catálogo dos catálogos é um catálogo catalogado por ele mesmo junto com os outros catálogos ou é um catálogo que não faz parte de nenhum catálogo Se estiver catalogado não pode ser catálogo de todos os catálogos pois será necessário um outro catálogo que o contenha mas se não estiver catalogado não é o catálogo de todos os catálogos pois em tal catálogo está faltando ele próprio O que se percebeu nesse paradoxo é que a estrutura e o funcionamento da linguagem não correspondem exatamente à estrutura e ao funcionamento das coisas Essa descoberta conduziu a filosofia analítica à idéia da verdade como algo puramente lingüístico e lógico isto é a verdade é a coerência interna de uma linguagem que oferece axiomas postulados e regras para os enunciados e que é verdadeira ou falsa conforme respeite ou desrespeite as normas de seu próprio funcionamento Cada campo do conhecimento cria sua própria linguagem seus axiomas seus postulados suas regras de demonstração e de verificação de seus resultados e é a Convite à Filosofia 132 coerência interna entre os procedimentos e os resultados com os princípios que fundamentam um certo campo de conhecimento que define o verdadeiro e o falso Verdade e falsidade não estão nas coisas nem nas idéias mas são valores dos enunciados segundo o critério da coerência lógica A concepção pragmática da verdade Os filósofos empiristas tendem a considerar que os critérios anteriores são puramente teóricos e que para decidir sobre a verdade de um fato ou de uma idéia eles não são suficientes e podem gerar ceticismo isto é como há variados critérios e como há mudanças históricas no conceito da verdade acabase julgando que a verdade não existe ou é inalcançável pelos seres humanos Para muitos filósofos empiristas a verdade além de ser sempre verdade de fato e de ser obtida por indução e por experimentação deve ter como critério sua eficácia ou utilidade Um conhecimento é verdadeiro não só quando explica alguma coisa ou algum fato mas sobretudo quando permite retirar conseqüências práticas e aplicáveis Por considerarem como critério da verdade a eficácia e a utilidade essa concepção é chamada de pragmática e a corrente filosófica que a defende de pragmatismo As concepções da verdade e a História As várias concepções da verdade que foram expostas estão articuladas com mudanças históricas tanto no sentido de mudanças na estrutura e organização das sociedades como quanto no sentido de mudanças no interior da própria Filosofia Assim por exemplo nas sociedades antigas baseadas no trabalho escravo a idéia da verdade como utilidade e eficácia prática não poderia aparecer pois a verdade é considerada a forma superior do espírito humano portanto desligada do trabalho e das técnicas e tomada como um valor autônomo do conhecimento enquanto pura contemplação da realidade isto é como theoria Nas sociedades nascidas com o capitalismo em que o trabalho escravo e servil é substituído pelo trabalho livre e em que é elaborada a idéia de indivíduo como um átomo social isto é como um ser que pode ser conhecido e pensado por si mesmo e sem os outros a verdade tenderá a ser concebida como dependendo exclusivamente das operações do sujeito do conhecimento ou da consciência de si reflexiva autônoma Também nas sociedades capitalistas regidas pelo princípio do crescimento ou acumulação do capital por meio do crescimento das forças produtivas trabalho e técnicas e por meio do aumento da capacidade industrial para dominar e controlar as forças da Natureza e a sociedade a verdade tenderá a aparecer como utilidade e eficácia ou seja como algo que tenha uso prático e verificável Assim como o trabalho deve produzir lucro também o conhecimento deve produzir resultados úteis Marilena Chauí 133 Numa sociedade altamente tecnológica como a do século XX ocidental europeu e norteamericano em que as pesquisas científicas tendem a criar nos laboratórios o próprio objeto do conhecimento isto é em que o objeto do conhecimento é uma construção do pensamento científico ou um constructus produzido pelas teorias e pelas experimentações a verdade tende a ser considerada a forma lógica e coerente assumida pela própria teoria bem como a ser considerada como o consenso teórico estabelecido entre os membros das comunidades de pesquisadores A verdade portanto como a razão está na História e é histórica Também as transformações internas à própria Filosofia modificam a concepção da verdade A teoria da verdade como correspondência entre coisa e idéia ou fato e idéia ligase à concepção realista da razão e do conhecimento isto é à prioridade do objeto do conhecimento ou realidade sobre o sujeito do conhecimento Ao contrário a concepção da verdade como coerência interna e lógica das idéias ou dos conceitos ligase à concepção idealista da razão e do conhecimento isto é à prioridade do sujeito do conhecimento ou do pensamento sobre o objeto a ser conhecido As concepções históricas e as transformações internas ao conhecimento mostram que as várias concepções da verdade não são arbitrárias nem casuais ou acidentais mas possuem causas e motivos que as explicam e que a cada formação social e a cada mudança interna do conhecimento surge a exigência de reformular a concepção da verdade para que o saber possa realizarse As verdades os conteúdos conhecidos mudam a idéia da verdade a forma de conhecer muda mas não muda a busca do verdadeiro isto é permanece a exigência de vencer o sensocomum o dogmatismo a atitude natural e seus preconceitos É a procura da verdade e o desejo de estar no verdadeiro que permanecem A verdade se conserva portanto como o valor mais alto a que aspira o pensamento As exigências fundamentais da verdade Se examinarmos as diferentes concepções da verdade notaremos que algumas exigências fundamentais são conservadas em todas elas e constituem o campo da busca do verdadeiro 1 compreender as causas da diferença entre o parecer e o ser das coisas ou dos erros 2 compreender as causas da existência e das formas de existência dos seres 3 compreender os princípios necessários e universais do conhecimento racional 4 compreender as causas e os princípios da transformação dos próprios conhecimentos Convite à Filosofia 134 5 separar preconceitos e hábitos do senso comum e a atitude crítica do conhecimento 6 explicitar com todos os detalhes os procedimentos empregados para o conhecimento e os critérios de sua realização 7 liberdade de pensamento para investigar o sentido ou a significação da realidade que nos circunda e da qual fazemos parte 8 comunicabilidade isto é os critérios os princípios os procedimentos os percursos realizados os resultados obtidos devem poder ser conhecidos e compreendidos por todos os seres racionais Como escreve o filósofo Espinosa o Bem Verdadeiro é aquele capaz de comunicarse a todos e ser compartilhado por todos 9 transmissibilidade isto é os critérios princípios procedimentos percursos e resultados do conhecimento devem poder ser ensinados e discutidos em público Como diz Kant temos o direito ao uso público da razão 10 veracidade isto é o conhecimento não pode ser ideologia ou em outras palavras não pode ser máscara e véu para dissimular e ocultar a realidade servindo aos interesses da exploração e da dominação entre os homens Assim como a verdade exige a liberdade de pensamento para o conhecimento também exige que seus frutos propiciem a liberdade de todos e a emancipação de todos 11 a verdade deve ser objetiva isto é deve ser compreendida e aceita universal e necessariamente sem que isso signifique que ela seja neutra ou imparcial pois o sujeito do conhecimento está vitalmente envolvido na atividade do conhecimento e o conhecimento adquirido pode resultar em mudanças que afetem a realidade natural social e cultural Como disseram os filósofos Sartre e MerleauPonty somos seres em situação e a verdade está sempre situada nas condições objetivas em que foi alcançada e está sempre voltada para compreender e interpretar a situação na qual nasceu e à qual volta para trazer transformações Não escolhemos o país a data a família e a classe social em que nascemos isso é nossa situação mas podemos escolher o que fazer com isso conhecendo nossa situação e indagando se merece ou não ser mantida A verdade é ao mesmo tempo frágil e poderosa Frágil porque os poderes estabelecidos podem destruíla assim como mudanças teóricas podem substituí la por outra Poderosa porque a exigência do verdadeiro é o que dá sentido à existência humana Um texto do filósofo Pascal nos mostra essa fragilidadeforça do desejo do verdadeiro O homem é apenas um caniço o mais fraco da Natureza mas é um caniço pensante Não é preciso que o Universo inteiro se arme para esmagálo um vapor uma gota de água são suficientes para matálo Mas mesmo que o Universo o esmagasse o homem seria ainda mais nobre do que Marilena Chauí 135 aquilo que o mata porque ele sabe que morre e conhece a vantagem do Universo sobre ele mas disso o Universo nada sabe Toda nossa dignidade consiste pois no pensamento É a partir dele que nos devemos elevar e não do espaço e do tempo que não saberíamos ocupar Convite à Filosofia 136 Unidade 4 O conhecimento Marilena Chauí 137 Capítulo 1 A preocupação com o conhecimento O conhecimento e os primeiros filósofos Quando estudamos o nascimento da Filosofia na Grécia vimos que os primeiros filósofos os présocráticos dedicavamse a um conjunto de indagações principais Por que e como as coisas existem O que é o mundo Qual a origem da Natureza e quais as causas de sua transformação Essas indagações colocavam no centro a pergunta o que é o Ser A palavra ser em português traduz a palavra latina esse e a expressão grega ta onta A palavra latina esse é o infinitivo de um verbo o verbo ser A expressão grega ta onta quer dizer as coisas existentes os entes os seres No singular ta onta se diz to on que é traduzida por o ser Os primeiros filósofos ocupavamse com a origem e a ordem do mundo o kosmos e a filosofia nascente era uma cosmologia Pouco a pouco passouse a indagar o que era o próprio kosmos qual era o fundo eterno e imutável que permanecia sob a multiplicidade e transformação das coisas Qual era e o que era o ser subjacente a todos os seres Com isto a filosofia nascente tornouse ontologia isto é conhecimento ou saber sobre o ser Por esse mesmo motivo considerase que os primeiros filósofos não tinham uma preocupação principal com o conhecimento enquanto conhecimento isto é não indagavam se podemos ou não conhecer o Ser mas partiam da pressuposição de que o podemos conhecer pois a verdade sendo aletheia isto é presença e manifestação das coisas para os nossos sentidos e para o nosso pensamento significa que o Ser está manifesto e presente para nós e portanto nós o podemos conhecer Todavia a opinião de que os primeiros filósofos não se preocupavam com nossa capacidade e possibilidade de conhecimento não é exata Para tanto basta levarmos em conta o fato de afirmarem que a realidade o Ser a Natureza é racional e que a podemos conhecer porque também somos racionais nossa razão é parte da racionalidade do mundo dela participando Heráclito Parmênides e Demócrito Alguns exemplos indicam a existência da preocupação dos primeiros filósofos com o conhecimento e aqui tomaremos três Heráclito de Éfeso Parmênides de Eléia e Demócrito de Abdera Convite à Filosofia 138 Heráclito de Éfeso considerava a Natureza o mundo a realidade como um fluxo perpétuo o escoamento contínuo dos seres em mudança perpétua Dizia Não podemos banharnos duas vezes no mesmo rio porque as águas nunca são as mesmas e nós nunca somos os mesmos Comparava o mundo à chama de uma vela que queima sem cessar transformando a cera em fogo o fogo em fumaça e a fumaça em ar O dia se torna noite o verão se torna outono o novo fica velho o quente esfria o úmido seca tudo se transforma no seu contrário A realidade para Heráclito é a harmonia dos contrários que não cessam de se transformar uns nos outros Se tudo não cessa de se transformar perenemente como explicar que nossa percepção nos ofereça as coisas como se fossem estáveis duradouras e permanentes Com essa pergunta o filósofo indicava a diferença entre o conhecimento que nossos sentidos nos oferecem e o conhecimento que nosso pensamento alcança pois nossos sentidos nos oferecem a imagem da estabilidade e nosso pensamento alcança a verdade como mudança contínua Parmênides de Eléia colocavase na posição oposta à de Heráclito Dizia que só podemos pensar sobre aquilo que permanece sempre idêntico a si mesmo isto é que o pensamento não pode pensar sobre as coisas que são e não são que ora são de um modo e ora são de outro que são contrárias a si mesmas e contraditórias Conhecer é alcançar o idêntico imutável Nossos sentidos nos oferecem a imagem de um mundo em incessante mudança num fluxo perpétuo onde nada permanece idêntico a si mesmo o dia vira noite o inverno vira primavera o doce se torna amargo o pequeno vira grande o grande diminui o doce amarga o quente esfria o frio se aquece o líquido vira vapor ou vira sólido Como pensar o que é e o que não é ao mesmo tempo Como pensar o instável Como pensar o que se torna oposto e contrário a si mesmo Não é possível dizia Parmênides Pensar é dizer o que um ser é em sua identidade profunda e permanente Com isso afirmava o mesmo que Heráclito perceber e pensar são diferentes mas o dizia no sentido oposto ao de Heráclito isto é percebemos mudanças impensáveis e devemos pensar identidades imutáveis Demócrito de Abdera desenvolveu uma teoria sobre o Ser ou sobre a Natureza conhecida com o nome de atomismo a realidade é constituída por átomos A palavra átomo tem origem grega e significa o que não pode ser cortado ou dividido isto é a menor partícula indivisível de todas as coisas Os seres surgem por composição dos átomos transformamse por novos arranjos dos átomos e morrem por separação dos átomos Os átomos para Demócrito possuem formas e consistências diferentes redondos triangulares lisos duros moles rugosos pontiagudos etc e essas diferenças e os diferentes modos de combinação entre eles produzem a variedade de seres suas mudanças e desaparições Através de nossos órgãos dos sentidos percebemos o quente e o frio o doce e o amargo o seco e o úmido o grande e o Marilena Chauí 139 pequeno o duro e o mole sabores odores texturas o agradável e o desagradável sentimos prazer e dor porque percebemos os efeitos das combinações dos átomos que em si mesmos não possuem tais qualidades Somente o pensamento pode conhecer os átomos que são invisíveis para nossa percepção sensorial Dessa maneira Demócrito concordava com Heráclito e Parmênides em que há uma diferença entre o que conhecemos através de nossa percepção e o que conhecemos apenas pelo pensamento porém diversamente dos outros dois filósofos não considerava a percepção ilusória mas apenas um efeito da realidade sobre nós O conhecimento sensorial ou sensível é tão verdadeiro quanto aquilo que o pensamento puro alcança embora de uma verdade diferente e menos profunda ou menos relevante do que aquela alcançada pelo puro pensamento Esses três exemplos nos mostram que desde os seus começos a Filosofia preocupouse com o problema do conhecimento pois sempre esteve voltada para a questão do verdadeiro Desde o início os filósofos se deram conta de que nosso pensamento parece seguir certas leis ou regras para conhecer as coisas e que há uma diferença entre perceber e pensar Pensamos a partir do que percebemos ou pensamos negando o que percebemos O pensamento continua nega ou corrige a percepção O modo como os seres nos aparecem é o modo como os seres realmente são Sócrates e os sofistas Preocupações como essas levaram na Grécia clássica a duas atitudes filosóficas a dos sofistas e a de Sócrates com eles os problemas do conhecimento tornaramse centrais Os sofistas diante da pluralidade e do antagonismo das filosofias anteriores ou dos conflitos entre as várias ontologias concluíram que não podemos conhecer o Ser mas só podemos ter opiniões subjetivas sobre a realidade Por isso para se relacionarem com o mundo e com os outros humanos os homens devem valerse de um outro instrumento a linguagem para persuadir os outros de suas próprias idéias e opiniões A verdade é uma questão de opinião e de persuasão e a linguagem é mais importante do que a percepção e o pensamento Em contrapartida Sócrates distanciandose dos primeiros filósofos e opondose aos sofistas afirmava que a verdade pode ser conhecida mas primeiro devemos afastar as ilusões dos sentidos e as das palavras ou das opiniões e alcançar a verdade apenas pelo pensamento Os sentidos nos dão as aparências das coisas e as palavras meras opiniões sobre elas Conhecer é passar da aparência à essência da opinião ao conceito do ponto de vista individual à idéia universal de cada um dos seres e de cada um dos valores da vida moral e política Convite à Filosofia 140 Platão e Aristóteles Sócrates fez a Filosofia preocuparse com nossa possibilidade de conhecer e indagar quais as causas das ilusões dos erros e da mentira No esforço para definir as formas de conhecer e as diferenças entre o conhecimento verdadeiro e a ilusão Platão e Aristóteles introduziram na Filosofia a idéia de que existem diferentes maneiras de conhecer ou graus de conhecimento e que esses graus se distinguem pela ausência ou presença do verdadeiro pela ausência ou presença do falso Platão distingue quatro formas ou graus de conhecimento que vão do grau inferior ao superior crença opinião raciocínio e intuição intelectual Para ele os dois primeiros graus devem ser afastados da Filosofia são conhecimentos ilusórios ou das aparências como os dos prisioneiros da caverna e somente os dois últimos devem ser considerados válidos O raciocínio treina e exercita nosso pensamento preparandoo para uma purificação intelectual que lhe permitirá alcançar uma intuição das idéias ou das essências que formam a realidade ou que constituem o Ser Para Platão o primeiro exemplo do conhecimento puramente intelectual e perfeito encontrase na matemática cujas idéias nada devem aos órgãos dos sentidos e não se reduzem a meras opiniões subjetivas O conhecimento matemático seria a melhor preparação do pensamento para chegar à intuição intelectual das idéias verdadeiras que constituem a verdadeira realidade Platão diferencia e separa radicalmente duas formas de conhecimento o conhecimento sensível crença e opinião e o conhecimento intelectual raciocínio e intuição afirmando que somente o segundo alcança o Ser e a verdade O conhecimento sensível alcança a mera aparência das coisas o conhecimento intelectual alcança a essência das coisas as idéias Aristóteles distingue sete formas ou graus de conhecimento sensação percepção imaginação memória raciocínio e intuição Para ele ao contrário de Platão nosso conhecimento vai sendo formado e enriquecido por acumulação das informações trazidas por todos os graus de modo que em lugar de uma ruptura entre o conhecimento sensível e o intelectual Aristóteles estabelece uma continuidade entre eles A separação se dá entre os seis primeiros graus e o último ou a intuição que é puramente intelectual ou um ato do pensamento puro Essa separação porém não significa que os outros graus ofereçam conhecimentos ilusórios ou falsos e sim que oferecem tipos de conhecimentos diferentes que vão de um grau menor a um grau maior de verdade Em cada um deles temos acesso a um aspecto do Ser ou da realidade e na intuição intelectual temos o conhecimento pleno e total da realidade ou dos Marilena Chauí 141 princípios da realidade plena e total aquilo que Aristóteles chamava de o Ser enquanto Ser A diferença entre os seis primeiros graus e o último decorre da diferença do objeto do conhecimento isto é os seis primeiros graus conhecem objetos que se oferecem a nós na sensação na imaginação no raciocínio enquanto o sétimo lida com um objeto que só pode ser alcançado pelo pensamento puro Princípios gerais Com os filósofos gregos estabeleceramse alguns princípios gerais do conhecimento verdadeiro as fontes e as formas do conhecimento sensação percepção imaginação memória linguagem raciocínio e intuição intelectual a distinção entre o conhecimento sensível e o conhecimento intelectual o papel da linguagem no conhecimento a diferença entre opinião e saber a diferença entre aparência e essência a definição dos princípios do pensamento verdadeiro identidade não contradição terceiro excluído causalidade da forma do conhecimento verdadeiro idéias conceitos e juízos e dos procedimentos para alcançar o conhecimento verdadeiro indução dedução intuição a distinção dos campos do conhecimento verdadeiro sistematizados por Aristóteles em três ramos teorético referente aos seres que apenas podemos contemplar ou observar sem agir sobre eles ou neles interferir prático referente às ações humanas ética política e economia e técnico referente à fabricação e ao trabalho humano que pode interferir no curso da Natureza criar instrumentos ou artefatos medicina artesanato arquitetura poesia retórica etc Para os gregos a realidade é a Natureza e dela fazem parte os humanos e as instituições humanas Por sua participação na Natureza os humanos podem conhecêla pois são feitos dos mesmos elementos que ela e participam da mesma inteligência que a habita e dirige O poeta alemão Goethe criou estes versos que exprimem como os antigos concebiam o conhecimento Se os olhos não fossem solares Jamais o Sol nós veríamos Se em nós não estivesse a própria força divina Como o divino sentiríamos Convite à Filosofia 142 O intelecto humano conhece a inteligibilidade do mundo alcança a racionalidade do real e pode pensar a realidade porque nós e ela somos feitos da mesma maneira com os mesmos elementos e com a mesma inteligência Os filósofos modernos e a teoria do conhecimento Quando se diz que a teoria do conhecimento tornouse uma disciplina específica da Filosofia somente com os filósofos modernos a partir do século XVII não se pretende dizer que antes deles o problema do conhecimento não havia ocupado outros filósofos e sim que para os modernos a questão do conhecimento foi considerada anterior à da ontologia e précondição ou prérequisito para a Filosofia e as ciências Por que essa mudança de perspectiva dos gregos para os modernos Porque entre eles instalase o cristianismo trazendo problemas que os antigos filósofos desconheciam A perspectiva cristã introduziu algumas distinções que romperam com a idéia grega de uma participação direta e harmoniosa entre o nosso intelecto e a verdade nosso ser e o mundo O cristianismo fez distinção entre fé e razão verdades reveladas e verdades racionais matéria e espírito corpo e alma afirmou que o erro e a ilusão são parte da natureza humana em decorrência do caráter pervertido de nossa vontade após o pecado original Em conseqüência a Filosofia precisou enfrentar três problemas novos 1 Como sendo seres decaídos e pervertidos podemos conhecer a verdade 2 Sendo nossa natureza dupla matéria e espírito como nossa inteligência pode conhecer o que é diferente dela Isto é como seres corporais podem conhecer o incorporal Deus e como seres dotados de alma incorpórea podem conhecer o corpóreo mundo 3 Os filósofos antigos consideravam que éramos entes participantes de todas as formas de realidade por nosso corpo participamos da Natureza por nossa alma participamos da Inteligência divina O cristianismo ao introduzir a noção de pecado original introduziu a separação radical entre os humanos pervertidos e finitos e a divindade perfeita e infinita Com isso fez surgir a pergunta como o finito humano pode conhecer a verdade infinita e divina Eis porque durante toda a Idade Média a fé tornouse central para a Filosofia pois era através dela que essas perguntas eram respondidas Auxiliada pela graça divina a fé iluminava nosso intelecto e guiava nossa vontade permitindo à nossa razão o conhecimento do que está ao seu alcance ao mesmo tempo em que nossa alma recebia os mistérios da revelação A fé nos fazia saber mesmo que não pudéssemos compreender como isso era possível que pela vontade soberana de Deus era concedido à nossa alma imaterial conhecer as coisas materiais Marilena Chauí 143 Os filósofos modernos porém não aceitaram essas respostas e por esse motivo a questão do conhecimento tornouse central para eles Os gregos se surpreendiam que pudesse haver erro ilusão e mentira Como a verdade aletheia era concebida como presença e manifestação do verdadeiro aos nossos sentidos ou ao nosso intelecto isto é como presença do Ser à nossa experiência sensível ou ao puro pensamento a pergunta filosófica só podia ser Como é possível o erro ou a ilusão Ou seja como é possível ver o que não é dizer o que não é pensar o que não é Para os modernos a situação é exatamente contrária Se a verdade depende da revelação e da vontade divinas e se nosso intelecto foi pervertido pela nossa vontade pecadora como podemos conhecer a verdade Se a verdade depender da fé e se depender da fraqueza da nossa vontade como nossa razão poderá conhecêla O cristianismo particularmente com santo Agostinho trouxe a idéia de que cada ser humano é uma pessoa Essa idéia vem do Direito Romano que define a pessoa como um sujeito de direitos e de deveres Se somos pessoas somos responsáveis por nossos atos e pensamentos Nossa pessoa é nossa consciência que é nossa alma dotada de vontade imaginação memória e inteligência A vontade é livre e aprisionada num corpo passional e fraco pode mergulhar nossa alma na ilusão e no erro Estar no erro ou na verdade dependerá portanto de nós mesmos e por isso precisamos saber se podemos ou não conhecer a verdade e em que condições tal conhecimento é possível Os primeiros filósofos cristãos e os medievais afirmavam que podemos conhecer a verdade desde que a razão não contradiga a fé e se submeta a ela no tocante às verdades últimas e principais A primeira tarefa que os modernos se deram foi a de separar fé de razão considerando cada uma delas destinada a conhecimentos diferentes e sem qualquer relação entre si A segunda tarefa foi a de explicar como a alma consciência embora diferente dos corpos pode conhecêlos Consideraram que a alma pode conhecer os corpos porque os representa intelectualmente por meio das idéias e estas são imateriais como a própria alma A terceira tarefa foi a de explicar como a razão e o pensamento podem tornarse mais fortes do que a vontade e controlála para que evite o erro O problema do conhecimento tornase portanto crucial e a Filosofia precisa começar pelo exame da capacidade humana de conhecer pelo entendimento ou sujeito do conhecimento A teoria do conhecimento voltase para a relação entre o pensamento e as coisas a consciência interior e a realidade exterior o entendimento e a realidade em suma o sujeito e o objeto do conhecimento Os dois filósofos que iniciam o exame da capacidade humana para o erro e a verdade são o inglês Francis Bacon e o francês René Descartes O filósofo que Convite à Filosofia 144 propõe pela primeira vez uma teoria do conhecimento propriamente dita é o inglês John Locke A partir do século XVII portanto a teoria do conhecimento tornase uma disciplina central da Filosofia Bacon e Descartes Os gregos indagavam como o erro é possível Os modernos perguntaram como a verdade é possível Para os gregos a verdade era aletheia para os modernos veritas Em outras palavras para os modernos tratase de compreender e explicar como os relatos mentais nossas idéias correspondem ao que se passa verdadeiramente na realidade Apesar dessas diferenças os filósofos retomaram o modo de trabalhar filosoficamente proposto por Sócrates Platão e Aristóteles qual seja começar pelo exame das opiniões contrárias e ilusórias para ultrapassá las em direção à verdade Antes de abordar o conhecimento verdadeiro Bacon e Descartes examinaram exaustivamente as causas e as formas do erro inaugurando um estilo filosófico que permanecerá na Filosofia isto é a análise dos preconceitos e do senso comum Bacon elaborou uma teoria conhecida como a crítica dos ídolos a palavra ídolo vem do grego eidolon e significa imagem Descartes como já mencionamos elaborou um método de análise conhecido como dúvida metódica De acordo com Bacon existem quatro tipos de ídolos ou de imagens que formam opiniões cristalizadas e preconceitos que impedem o conhecimento da verdade 1 ídolos da caverna as opiniões que se formam em nós por erros e defeitos de nossos órgãos dos sentidos São os mais fáceis de corrigir por nosso intelecto 2 ídolos do fórum são as opiniões que se formam em nós como conseqüência da linguagem e de nossas relações com os outros São difíceis de vencer mas o intelecto tem poder sobre eles 3 ídolos do teatro são as opiniões formadas em nós em decorrência dos poderes das autoridades que nos impõem seus pontos de vista e os transformam em decretos e leis inquestionáveis Só podem ser refeitos se houver uma mudança social e política 4 ídolos da tribo são as opiniões que se formam em nós em decorrência de nossa natureza humana esses ídolos são próprios da espécie humana e só podem ser vencidos se houver uma reforma da própria natureza humana Bacon acreditava que o avanço dos conhecimentos e das técnicas as mudanças sociais e políticas e o desenvolvimento das ciências e da Filosofia propiciariam uma grande reforma do conhecimento humano que seria também uma grande reforma na vida humana Tanto assim que ao lado de suas obras filosóficas escreveu uma obra filosóficopolítica a Nova Atlântida na qual descreve e narra Marilena Chauí 145 uma sociedade ideal e perfeita nascida do conhecimento verdadeiro e do desenvolvimento das técnicas Descartes localizava a origem do erro em duas atitudes que chamou de atitudes infantis 1 a prevenção que é a facilidade com que nosso espírito se deixa levar pelas opiniões e idéias alheias sem se preocupar em verificar se são ou não verdadeiras São as opiniões que se cristalizam em nós sob a forma de preconceitos colocados em nós por pais professores livros autoridades e que escravizam nosso pensamento impedindonos de pensar e de investigar 2 a precipitação que é a facilidade e a velocidade com que nossa vontade nos faz emitir juízos sobre as coisas antes de verificarmos se nossas idéias são ou não são verdadeiras São opiniões que emitimos em conseqüência de nossa vontade ser mais forte e poderosa do que nosso intelecto Originamse no conhecimento sensível na imaginação na linguagem e na memória Como Bacon Descartes também está convencido de que é possível vencer esses efeitos graças a uma reforma do entendimento e das ciências Descartes não pensa na necessidade de mudanças sociais e políticas diferindo de Bacon nesse aspecto Essa reforma pode ser feita pelo sujeito do conhecimento se este decidir e deliberar pela necessidade de encontrar fundamentos seguros para o saber Para isso Descartes criou um procedimento a dúvida metódica pela qual o sujeito do conhecimento analisando cada um de seus conhecimentos conhece e avalia as fontes e as causas de cada um a forma e o conteúdo de cada um a falsidade e a verdade de cada um e encontra meios para livrarse de tudo quanto seja duvidoso perante o pensamento Ao mesmo tempo o pensamento oferece ao espírito um conjunto de regras que deverão ser obedecidas para que um conhecimento seja considerado verdadeiro Para Descartes o conhecimento sensível isto é sensação percepção imaginação memória e linguagem é a causa do erro e deve ser afastado O conhecimento verdadeiro é puramente intelectual parte das idéias inatas e controla por meio de regras as investigações filosóficas científicas e técnicas Locke Locke é o iniciador da teoria do conhecimento propriamente dita porque se propõe a analisar cada uma das formas de conhecimento que possuímos a origem de nossas idéias e nossos discursos a finalidade das teorias e as capacidades do sujeito cognoscente relacionadas com os objetos que ele pode conhecer Seguindo a trilha que fora aberta por Aristóteles Locke também distingue graus de conhecimento começando pelas sensações até chegar ao pensamento Comparemos o que escreveu Aristóteles no início da Metafísica e o que afirmou Locke no início do Ensaio sobre o entendimento humano Convite à Filosofia 146 Aristóteles escreveu Todos os homens têm por natureza o desejo de conhecer O prazer causado pelas sensações é a prova disso pois mesmo fora de qualquer utilidade as sensações nos agradam por si mesmas e mais do que todas as outras as sensações visuais Locke afirmou Visto que o entendimento situa o homem acima dos outros seres sensíveis e dálhe toda vantagem e todo domínio que tem sobre eles seu estudo consiste certamente num tópico que por sua nobreza é merecedor de nosso trabalho de investigálo O entendimento como o olho que nos faz ver e perceber todas as outras coisas não se observa a si mesmo requer arte e esforço situálo à distância e fazêlo seu próprio objeto Assim como Aristóteles diferia de Platão Locke difere de Descartes Platão e Descartes afastam a experiência sensível ou o conhecimento sensível do conhecimento verdadeiro que é puramente intelectual Aristóteles e Locke consideram que o conhecimento se realiza por graus contínuos partindo da sensação até chegar às idéias Essa diferença de perspectiva estabelece as duas grandes orientações da teoria do conhecimento conhecidas como racionalismo e empirismo Para o racionalismo a fonte do conhecimento verdadeiro é a razão operando por si mesma sem o auxílio da experiência sensível e controlando a própria experiência sensível Para o empirismo a fonte de todo e qualquer conhecimento é a experiência sensível responsável pelas idéias da razão e controlando o trabalho da própria razão Essas diferenças porém não impedem que haja um elemento comum a todos os filósofos a partir da modernidade qual seja tomar o entendimento humano como objeto da investigação filosófica Tornar o entendimento objeto para si próprio tornar o sujeito do conhecimento objeto de conhecimento para si mesmo é a grande tarefa que a modernidade filosófica inaugura ao desenvolver a teoria do conhecimento Como se trata da volta do conhecimento sobre si mesmo para conhecerse ou do sujeito do conhecimento colocandose como objeto para si mesmo a teoria do conhecimento é a reflexão filosófica A consciência o eu a pessoa o cidadão e o sujeito A teoria do conhecimento no seu todo realizase como reflexão do entendimento e baseiase num pressuposto fundamental o de que somos seres racionais conscientes Marilena Chauí 147 O que se entende por consciência A capacidade humana para conhecer para saber que conhece e para saber o que sabe que conhece A consciência é um conhecimento das coisas e de si e um conhecimento desse conhecimento reflexão Do ponto de vista psicológico a consciência é o sentimento de nossa própria identidade é o eu um fluxo temporal de estados corporais e mentais que retém o passado na memória percebe o presente pela atenção e espera o futuro pela imaginação e pelo pensamento O eu é o centro ou a unidade de todos esses estados psíquicos A consciência psicológica ou o eu é formada por nossas vivências isto é pela maneira como sentimos e compreendemos o que se passa em nosso corpo e no mundo que nos rodeia assim como o que se passa em nosso interior É a maneira individual e própria com que cada um de nós percebe imagina lembra opina deseja age ama e odeia sente prazer e dor toma posição diante das coisas e dos outros decide sentese feliz ou infeliz Do ponto de vista ético e moral a consciência é a espontaneidade livre e racional para escolher deliberar e agir conforme à liberdade aos direitos alheios e ao dever É a pessoa dotada de vontade livre e de responsabilidade É a capacidade para compreender e interpretar sua situação e sua condição física mental social cultural histórica viver na companhia dos outros segundo as normas e os valores morais definidos por sua sociedade agir tendo em vista fins escolhidos por deliberação e decisão realizar as virtudes e quando necessário contraporse e oporse aos valores estabelecidos em nome de outros considerados mais adequados à liberdade e à responsabilidade Do ponto de vista político a consciência é o cidadão isto é tanto o indivíduo situado no tecido das relações sociais como portador de direitos e deveres relacionandose com a esfera pública do poder e das leis quanto o membro de uma classe social definido por sua situação e posição nessa classe portador e defensor de interesses específicos de seu grupo ou de sua classe relacionandose com a esfera pública do poder e das leis A consciência moral a pessoa e a consciência política o cidadão formamse pelas relações entre as vivências do eu e os valores e as instituições de sua sociedade ou de sua cultura São as maneiras pelas quais nos relacionamos com os outros por meio de comportamentos e de práticas determinados pelos códigos morais que definem deveres obrigações virtudes e políticos que definem direitos deveres e instituições coletivas públicas a partir do modo como uma cultura e uma sociedade determinadas definem o bem e o mal o justo e o injusto o legítimo e o ilegítimo o legal e o ilegal o privado e o público O eu é uma vivência e uma experiência que se realiza por comportamentos a pessoa e o cidadão são a consciência como agente moral e político como práxis Convite à Filosofia 148 Do ponto de vista da teoria do conhecimento a consciência é uma atividade sensível e intelectual dotada do poder de análise síntese e representação É o sujeito Reconhecese como diferente dos objetos cria e descobre significações institui sentidos elabora conceitos idéias juízos e teorias É dotado de capacidade para conhecerse a si mesmo no ato do conhecimento ou seja é capaz de reflexão É saber de si e saber sobre o mundo manifestandose como sujeito percebedor imaginante memorioso falante e pensante É o entendimento propriamente dito A consciência reflexiva ou o sujeito do conhecimento formase como atividade de análise e síntese de representação e de significação voltadas para a explicação descrição e interpretação da realidade e das outras três esferas da vida consciente vida psíquica moral e política isto é da posição do mundo natural e cultural e de si mesma como objetos de conhecimento Apóiase em métodos de conhecer e busca a verdade ou o verdadeiro É o aspecto intelectual e teórico da consciência Ao contrário do eu o sujeito do conhecimento não é uma vivência individual mas aspira à universalidade ou seja à capacidade de conhecimento que seja idêntica em todos os seres humanos e com validade para todos os seres humanos em todos os tempos e lugares Assim por exemplo João pode gostar de geometria e Paula pode detestar essa matéria mas o que ambos sentem não afetam os conceitos geométricos nem os procedimentos matemáticos cujo sentido e valor independem das vivências de ambos e são o objeto construído ou descoberto pelo sujeito do conhecimento Maria pode não saber que existe a física quântica e pode ao ser informada sobre ela não acreditar nela e não gostar da idéia de que seu corpo seja apenas movimento infinito de partículas invisíveis Isso porém não afeta a validade e o sentido da ciência quântica descoberta e conhecida pelo sujeito Luíza tem lembranças agradáveis quando vê rosas amarelas Antônio porém tem péssimas lembranças quando as vê Porém ver flores e cores perceber qualidades senti las afetivamente não depende de que queiramos ou não vêlas como não depende do nosso eu percebêlas espacialmente ou temporalmente A percepção de cores de seres espaciais e temporais se realiza em mim não apenas segundo minhas vivências psicológicas individuais mas também segundo leis normas princípios de estruturação e organização das coisas que são as mesmas para todos os sujeitos percebedores É com essa estruturação e organização que lida o sujeito A vivência é singular minha O conhecimento é universal nosso de todos os humanos Eu pessoa cidadão e sujeito constituem a consciência como subjetividade ativa sede da razão e do pensamento capaz de identidade consigo mesma virtude direitos e verdade Marilena Chauí 149 Subjetividade e graus de consciência Embora a subjetividade se manifeste plenamente como uma atividade que sabe de si mesma isso não significa que a consciência esteja sempre alerta e atenta Quando por exemplo recebemos uma anestesia geral vamos perdendo gradualmente a consciência deixamos de ter consciência de ver sentir lembrar Dependendo da intensidade da dose aplicada podemos perder todas as formas de consciência menos por exemplo a auditiva No entanto mesmo a consciência auditiva nessa situação é fluida não parece estar referida a um eu Quando despertamos à noite de um sono profundo e num local que não é nosso quarto levamos um certo tempo até sabermos quem somos e onde estamos Quando devaneamos ou divagamos ou sonhamos de olhos abertos perdemos a consciência de tudo quanto está à nossa volta e muitas vezes quando voltamos a nós temos um braço ou uma perna adormecidos uma queimadura na mão o rosto queimado de sol ou o corpo molhado de chuva sem que tivéssemos consciência do que se passava conosco Situações como essas indicam que há graus de consciência De um modo geral distinguemse os seguintes graus de consciência consciência passiva aquela na qual temos uma vaga e uma confusa percepção de nós mesmos e do que se passa à nossa volta como no devaneio no momento que precede o sono ou o despertar na anestesia e sobretudo quando somos muito crianças ou muito idosos consciência vivida mas não reflexiva é nossa consciência efetiva que tem a peculiaridade de ser egocêntrica isto é de perceber os outros e as coisas apenas a partir de nossos sentimentos com relação a eles como por exemplo a criança que bate numa mesa ao tropeçar nela julgando que a mesa fez de propósito para machucála Nesse grau de consciência não conseguimos separar o eu e o outro o eu e as coisas É típico por exemplo das pessoas apaixonadas para as quais o mundo só existe a partir dos seus sentimentos de amor ódio cólera alegria tristeza etc consciência ativa e reflexiva aquela que reconhece a diferença entre o interior e o exterior entre si e os outros entre si e as coisas Esse grau de consciência é o que permite a existência da consciência em suas quatro modalidades isto é eu pessoa cidadão e sujeito Esse último grau de consciência nas suas quatro modalidades é definido pela fenomenologia como consciência intencional ou intencionalidade isto é como consciência de Toda a consciência diz a fenomenologia é sempre consciência de alguma coisa visa sempre a alguma coisa de tal maneira que perceber é sempre perceber alguma coisa imaginar é sempre imaginar alguma coisa lembrar é sempre lembrar alguma coisa dizer é sempre dizer alguma coisa pensar é sempre pensar alguma coisa A consciência realiza atos perceber Convite à Filosofia 150 lembrar imaginar falar refletir pensar e visa a conteúdos ou significações o percebido o lembrado o imaginado o falado o refletido o pensado O sujeito do conhecimento é aquele que reflete sobre as relações entre atos e significações e conhece a estrutura formada por eles a percepção a imaginação a memória a linguagem o pensamento Marilena Chauí 151 Capítulo 2 A percepção Sensação e percepção O conhecimento sensível também é chamado de conhecimento empírico ou experiência sensível e suas formas principais são a sensação e a percepção A tradição filosófica até o século XX distinguia sensação de percepção pelo grau de complexidade A sensação é o que nos dá as qualidades exteriores e interiores isto é as qualidades dos objetos e os efeitos internos dessas qualidades sobre nós Na sensação vemos tocamos sentimos ouvimos qualidades puras e diretas cores odores sabores texturas Sentimos o quente e o frio o doce e o amargo o liso e o rugoso o vermelho e o verde etc Sentir é algo ambíguo pois o sensível é ao mesmo tempo a qualidade que está no objeto e o sentimento interno que nosso corpo possui das qualidades sentidas Por isso a tradição costuma dizer que a sensação é uma reação corporal imediata a um estímulo ou excitação externa sem que seja possível distinguir no ato da sensação o estímulo exterior e o sentimento interior Essa distinção só poderia ser feita num laboratório com análise de nossa anatomia fisiologia e sistema nervoso Quando examinamos a sensação notamos que ninguém diz que sente o quente vê o azul e engole o amargo Pelo contrário dizemos que a água está quente que o céu é azul e que o alimento está amargo Isto é sentimos as qualidades como integrantes de seres mais amplos e complexos do que a sensação isolada de cada qualidade Por isso se diz que na realidade só temos sensações sob a forma de percepções isto é de sínteses de sensações Empirismo e intelectualismo Duas grandes concepções sobre a sensação e a percepção fazem parte da tradição filosófica a empirista e a intelectualista Para os empiristas a sensação e a percepção dependem das coisas exteriores isto é são causadas por estímulos externos que agem sobre nossos sentidos e sobre o nosso sistema nervoso recebendo uma resposta que parte de nosso cérebro volta a percorrer nosso sistema nervoso e chega aos nossos sentidos sob a forma de uma sensação uma cor um sabor um odor ou de uma associação de sensações numa percepção vejo um objeto vermelho sinto o sabor de uma carne sinto o cheiro da rosa etc Convite à Filosofia 152 A sensação seria pontual isto é um ponto do objeto externo toca um de meus órgãos dos sentidos e faz um percurso no interior do meu corpo indo ao cérebro e voltando às extremidades sensoriais Cada sensação é independente das outras e cabe à percepção unificálas e organizálas numa síntese A causa do conhecimento sensível é a coisa externa de modo que a sensação e a percepção são efeitos passivos de uma atividade dos corpos exteriores sobre o nosso corpo O conhecimento é obtido por soma e associação das sensações na percepção e tal soma e associação dependem da freqüência da repetição e da sucessão dos estímulos externos e de nossos hábitos Para os intelectualistas a sensação e a percepção dependem do sujeito do conhecimento e a coisa exterior é apenas a ocasião para que tenhamos a sensação ou a percepção Nesse caso o sujeito é ativo e a coisa externa é passiva ou seja sentir e perceber são fenômenos que dependem da capacidade do sujeito para decompor um objeto em suas qualidades simples a sensação e de recompor o objeto como um todo dandolhe organização e interpretação a percepção A passagem da sensação para a percepção é neste caso um ato realizado pelo intelecto do sujeito do conhecimento que confere organização e sentido às sensações Não haveria algo propriamente chamado percepção mas sensações dispersas ou elementares sua organização ou síntese seria feita pela inteligência e receberia o nome de percepção Assim na sensação sentimos qualidades pontuais dispersas elementares e na percepção sabemos que estamos tendo sensação de um objeto que possui as qualidades sentidas por nós Como disse um filósofo perceber é saber que percebo ver é pensamento de ver ouvir é pensamento de ouvir e assim por diante Para os empiristas a sensação conduz à percepção como uma síntese passiva isto é que depende do objeto exterior Para os intelectualistas a sensação conduz à percepção como síntese ativa isto é que depende da atividade do entendimento Para os empiristas as idéias são provenientes das percepções Para os intelectualistas a sensação e a percepção são sempre confusas e devem ser abandonadas quando o pensamento formula as idéias puras Psicologia da forma e fenomenologia Em nosso século porém a Filosofia alterou bastante essas duas tradições e as superou numa nova concepção do conhecimento sensível As mudanças foram trazidas pelo fenomenologia de Husserl e pela Psicologia da Forma ou teoria da Gestalt Gestalt é uma palavra alemã que significa configuração figura estruturada forma Ambas mostraram contra o empirismo que a sensação não é reflexo pontual ou uma resposta físicofisiológica a um estímulo externo também pontual contra o intelectualismo que a percepção não é uma atividade sintética feita pelo pensamento sobre as sensações Marilena Chauí 153 contra o empirismo e o intelectualismo que não há diferença entre sensação e percepção Empiristas e intelectualistas apesar de suas diferenças concordavam num aspecto julgavam que a sensação era uma relação de causa e efeito entre pontos das coisas e pontos de nosso corpo As coisas seriam como mosaicos de qualidades isoladas justapostas e nosso aparelho sensorial órgãos dos sentidos sistema nervoso e cérebro também seria um mosaico de receptores isolados e justapostos Por isso a percepção era considerada a atividade que somava ou juntava as partes numa síntese que seria o objeto percebido Fenomenologia e Gestalt porém mostram que não há diferença entre sensação e percepção porque nunca temos sensações parciais pontuais ou elementares isto é sensações separadas de cada qualidade que depois o espírito juntaria e organizaria como percepção de um único objeto Sentimos e percebemos formas isto é totalidades estruturadas dotadas de sentido ou de significação Assim por exemplo ter a sensação e a percepção de um cavalo é sentirperceber de uma só vez sua cor ou cores suas partes sua cara seu lombo e seu rabo seu porte seu tamanho seu cheiro seus ruídos seus movimentos O cavalo percebido não é um feixe de qualidades isoladas que enviam estímulos aos meus órgãos dos sentidos como suporia o empirista nem um objeto indeterminado esperando que meu pensamento diga às minhas sensações Este objeto é um cavalo como suporia o intelectualista O cavalopercebido não é um mosaico de estímulos exteriores empirismo nem uma idéia intelectualismo mas é exatamente um cavalopercebido As experiências conhecidas como figuraefundo mostram que não temos sensações parciais mas percepções globais de uma forma ou de uma estrutura As experiências com formas incompletas mostram que a percepção sempre percebe uma totalidade completa o que seria impossível se tivéssemos sensações elementares que o pensamento unificaria numa percepção Se a percepção fosse uma soma de sensações parciais e se cada sensação dependesse dos estímulos diretos que as coisas produzissem em nossos órgãos dos sentidos então teríamos que ver como sendo de mesmo tamanho duas linhas que são objetivamente de mesmo tamanho Mas a experiência mostra que nós as percebemos como formas ou totalidades diferentes O que é a percepção A percepção possui as seguintes características é o conhecimento sensorial de configurações ou de totalidades organizadas e dotadas de sentido e não uma soma de sensações elementares sensação e percepção são a mesma coisa Convite à Filosofia 154 é o conhecimento de um sujeito corporal isto é uma vivência corporal de modo que a situação de nosso corpo e as condições de nosso corpo são tão importantes quanto a situação e as condições dos objetos percebidos é sempre uma experiência dotada de significação isto é o percebido é dotado de sentido e tem sentido em nossa história de vida fazendo parte de nosso mundo e de nossas vivências o próprio mundo exterior não é uma coleção ou uma soma de coisas isoladas mas está organizado em formas e estruturas complexas dotadas de sentido Uma paisagem por exemplo não é uma soma de coisas que estão apenas próximas umas das outras mas é a percepção de coisas que formam um todo complexo e com sentido o vale só é vale por causa da montanha cuja altura e distância só podem ser avaliadas porque há o céu as árvores um rio e um caminho o verde do vale só pode ser percebido por contraste com o cinza ou o dourado da montanha o azul do céu só pode ser percebido por causa do verde da vegetação e o marrom da terra essa paisagem será um espetáculo de contemplação se o sujeito da percepção estiver repousado mas será um objeto digno de ser visto por outros se o sujeito da percepção for um pintor ou será um obstáculo se o sujeito da percepção for um viajante que descobre que precisa ultrapassar a montanha Em resumo na percepção o mundo possui forma e sentido e ambos são inseparáveis do sujeito da percepção a percepção é assim uma relação do sujeito com o mundo exterior e não uma reação físicofisiológica de um sujeito físicofisiológico a um conjunto de estímulos externos como suporia o empirista nem uma idéia formulada pelo sujeito como suporia o intelectualista A relação dá sentido ao percebido e ao percebedor e um não existe sem o outro O mundo percebido é qualitativo significativo estruturado e estamos nele como sujeitos ativos isto é damos às coisas percebidas novos sentidos e novos valores pois as coisas fazem parte de nossas vidas e interagimos com o mundo o mundo percebido é um mundo intercorporal isto é as relações se estabelecem entre nosso corpo os corpos dos outros sujeitos e os corpos das coisas de modo que a percepção é uma forma de comunicação que estabelecemos com os outros e com as coisas a percepção depende das coisas e de nosso corpo depende do mundo e de nossos sentidos depende do exterior e do interior e por isso é mais adequado falar em campo perceptivo para indicar que se trata de uma relação complexa entre o corposujeito e os corposobjetos num campo de significações visuais tácteis olfativas gustativas sonoras motrizes espaciais temporais e lingüísticas A percepção é uma conduta vital uma comunicação uma interpretação e uma valoração do mundo a partir da estrutura de relações entre nosso corpo e o mundo Marilena Chauí 155 a percepção envolve toda nossa personalidade nossa história pessoal nossa afetividade nossos desejos e paixões isto é a percepção é uma maneira fundamental de os seres humanos estarem no mundo Percebemos as coisas e os outros de modo positivo ou negativo percebemos as coisas como instrumentos ou como valores reagimos positiva ou negativamente a cores odores sabores texturas distâncias tamanhos O mundo é percebido qualitativamente efetivamente e valorativamente Quando percebemos uma outra pessoa por exemplo não temos uma coleção de sensações que nos dariam as partes isoladas de seu corpo mas a percebemos como tendo uma fisionomia agradável ou desagradável bela ou feia serena ou agitada sadia ou doentia sedutora ou repelente e por essa percepção definimos nosso modo de relação com ela a percepção envolve nossa vida social isto é os significados e os valores das coisas percebidas decorrem de nossa sociedade e do modo como nela as coisas e as pessoas recebem sentido valor ou função Assim objetos que para nossa sociedade não causam temor podem causar numa outra sociedade Por exemplo em nossa sociedade um espelho ou uma fotografia são objetos funcionais ou artísticos meios de nos vermos em imagem no entanto para muitas sociedades indígenas ver a imagem de alguém ou a sua própria é ver a alma desse alguém e fazêlo perder a identidade e a vida de modo que a percepção de um espelho ou de uma fotografia pode ser uma percepção apavorante a percepção nos oferece um acesso ao mundo dos objetos práticos e instrumentais isto é nos orienta para a ação cotidiana e para as ações técnicas mais simples a percepção é uma forma de conhecimento e de ação fundamental para as artes que são capazes de criar um outro mundo pela simples alteração que provoca em nossa percepção cotidiana e costumeira Basta lembrar aqui o texto de Clarice Lispector sobre o inseto e sobre o ovo unidade 3 capítulo 8 a percepção não é uma idéia confusa ou inferior como julgava a tradição mas uma maneira de ter idéias sensíveis ou significações perceptivas a percepção está sujeita a uma forma especial de erro a ilusão como vimos no exemplo dos versos de Mário de Andrade sobre a garoa de São Paulo a confusão do branco e do negro do pobre e do rico Percepção e teoria do conhecimento Do ponto de vista das teorias do conhecimento há três concepções principais sobre o papel da percepção 1 nas teorias empiristas a percepção é a única fonte de conhecimento estando na origem das idéias abstratas formuladas pelo pensamento Hume por exemplo afirma que todo conhecimento é percepção e que existem dois tipos de percepção as impressões sensações emoções e paixões e as idéias imagens das impressões Convite à Filosofia 156 2 nas teorias racionalistas intelectualistas a percepção é considerada não muito confiável para o conhecimento porque depende das condições particulares de quem percebe e está propensa a ilusões pois freqüentemente a imagem percebida não corresponde à realidade do objeto Vemos o Sol menor do que a Terra mas ele realmente é maior do que ela Descartes menciona o modo como percebemos um bastão mergulhado na água embora o bastão seja reto e contínuo percebemos a parte mergulhada como se o bastão estivesse entortado e como se houvesse descontinuidade entre a parte que está fora da água e a parte mergulhada O bastão é percebido como distorcido embora na realidade não esteja deformado Para a concepção racionalista intelectualista o pensamento filosófico e científico deve abandonar os dados da percepção e formular as idéias em relação com o percebido tratase de explicar e corrigir a percepção 3 na teoria fenomenológica do conhecimento a percepção é considerada originária e parte principal do conhecimento humano mas com uma estrutura diferente do pensamento abstrato que opera com idéias Qual a diferença A percepção sempre se realiza por perfis ou perspectivas isto é nunca podemos perceber de uma só vez um objeto pois somente percebemos algumas de suas faces de cada vez no pensamento nosso intelecto compreende uma idéia de uma só vez e por inteiro isto é captamos a totalidade do sentido de uma idéia de uma só vez sem precisar examinar cada uma de suas faces Na percepção nunca poderemos ver de uma só vez as seis faces de um cubo pois perceber um cubo significa justamente nunca vêlo de uma só vez por inteiro Ao contrário quando o geômetra pensa o cubo ele o pensa como figura de seis lados e para seu pensamento as seis faces estão todas presentes simultaneamente Quanto ao problema da ilusão a fenomenologia considera que ela não existe Se tomarmos por exemplo o verso de Mário de Andrade diremos que perceber uma pessoa sob a garoa ou a neblina de São Paulo é percebêla como negra de longe e branca de perto ou como branca de longe e negra de perto são quatro percepções diferentes e que são como são porque perceber é sempre perceber um campo de objetos que permite corrigir uma percepção por meio de outra Podemos compreender mais claramente a diferença entre as três concepções através de um exemplo oferecido pelo filósofo MerleauPonty Olhemos para uma piscina ladrilhada de verdeclaro e rodeada por um jardim O que percebemos O empirista dirá que recebemos estímulos de todos os elementos que estão em nosso campo visual cores sons reflexos que esses estímulos isolados são levados a nosso cérebro onde causam uma impressão e que a consciência dessa impressão é a percepção como soma dos estímulos Marilena Chauí 157 O intelectualista nos dirá que vemos qualidades sensíveis líquido cor reflexos de uma realidade distorcida vemos árvores sobre a superfície das águas embora as árvores não estejam ali vemos os ladrilhos do fundo como se fossem curvos côncavos convexos embora sejam quadrados e lisos vemos a água colorida quando na realidade ela não tem cor Vemos portanto algo que nosso intelecto ou nosso pensamento nos avisa que não corresponde à realidade O fenomenólogo porém mostrará que perceberumapiscinaladrilhada comáguaerodeadadeárvores é perceber exatamente isso os reflexos das árvores na água as nuances de cor no líquido a movimentação dos ladrilhos Não estamos recebendo estímulos que formarão impressões no cérebro estamos percebendo uma forma organizada ou uma estrutura Não estamos tendo ilusões visuais vendo ladrilhos apesar da água que os deformaria nem estamos vendo a água apesar dos reflexos das árvores que a deformariam Estamos vendo e percebendo ladrilhosdeumapiscinacomágua portanto formas móveis no chão e nas paredes da piscina estamos vendo ou percebendo asárvoresàvoltadeumapiscinacomágua portanto refletindose nas águas e agitandose aos ventos estamos vendo ou percebendo a águade umapiscina portanto agitando os ladrilhos recebendo reflexos mudando de cor e de tonalidade Isso é perceber A percepção se realiza num campo perceptivo e o percebido não está deformado por nada pois ver não é fazer geometria nem física Não há ilusões na percepção perceber é diferente de pensar e não uma forma inferior e deformada do pensamento A percepção não é causada pelos objetos sobre nós nem é causada pelo nosso corpo sobre as coisas é a relação entre elas e nós e nós e elas uma relação possível porque elas são corpos e nós também somos corporais Convite à Filosofia 158 Capítulo 3 A memória Lembrança e identidade do Eu Todos conhecem os belos versos do poeta Casimiro de Abreu em Meus oito anos Oh que saudades que tenho Da aurora da minha vida Da minha infância querida Que os anos não trazem mais Que amor que sonhos que flores Naquelas tardes fagueiras À sombra das bananeiras Debaixo dos laranjais Ou estes outros Casimiro de Abreu em Deus e o mar Eu me lembro Eu me lembro Era pequeno e brincava na praia O mar bramia E erguendo o dorso altivo sacudia A branca espuma para o céu sereno A memória é uma evocação do passado É a capacidade humana para reter e guardar o tempo que se foi salvandoo da perda total A lembrança conserva aquilo que se foi e não retornará jamais É nossa primeira e mais fundamental experiência do tempo e uma das obras mais significativas da literatura universal contemporânea é dedicada a ela Em busca do tempo perdido do escritor francês Marcel Proust Para Proust como para alguns filósofos a memória é a garantia de nossa própria identidade o podermos dizer eu reunindo tudo o que fomos e fizemos a tudo que somos e fazemos Em sua obra Confissões santo Agostinho escreve Chego aos campos e vastos palácios da memória onde estão tesouros de inumeráveis imagens trazidas por percepções de toda espécie Ali repousa tudo o que a ela foi entregue que o esquecimento ainda não absorveu nem sepultou Aí estão presentes o céu a terra e o mar com todos os pormenores que neles pude perceber pelos sentidos exceto os que esqueci É lá que me encontro a mim mesmo e recordo das ações que fiz o seu tempo lugar e até os sentimentos que me dominavam ao Marilena Chauí 159 praticálas É lá que estão também todos os conhecimentos que recordo aprendidos pela experiência própria ou pela crença no testemunho de outrem Como consciência da diferença temporal passado presente e futuro a memória é uma forma de percepção interna chamada introspecção cujo objeto é interior ao sujeito do conhecimento as coisas passadas lembradas o próprio passado do sujeito e o passado relatado ou registrado por outros em narrativas orais e escritas Além dessa dimensão pessoal e introspectiva interior da memória é preciso mencionar sua dimensão coletiva ou social isto é a memória objetiva gravada nos monumentos documentos e relatos da História de uma sociedade Os antigos e a memória Os antigos gregos consideravam a memória uma identidade sobrenatural ou divina era a deusa Mnemosyne mãe das Musas que protegem as Artes e a História A deusa Memória dava aos poetas e adivinhos o poder de voltar ao passado e de lembrálo para a coletividade Tinha poder de conferir imortalidade aos mortais pois quando o artista ou o historiador registram em suas obras a fisionomia os gestos os atos os feitos e as palavras de um humano este nunca será esquecido e por isso tornandose memorável não morrerá jamais Os historiadores antigos colocavam suas obras sob a proteção das Musas escreviam para que não fossem perdidos os feitos memoráveis dos humanos e para que servissem de exemplo às gerações futuras Dizia Cícero A História é mestra da vida A memória é pois inseparável do sentimento do tempo ou da percepçãoexperiência do tempo como algo que escoa ou passa A importância da memória não se limitava à poesia e à História mas também aparecia com muita força e clareza na medicina dos antigos Um aforismo atribuído a Hipócrates o pai da medicina dizia A vida é breve a arte é longa a ocasião escapa o empirismo é perigoso e o raciocínio é difícil É preciso não só fazer o que convém mas também ser ajudado pelo paciente Qual a ajuda trazida pelo paciente para a arte médica Sua memória O médico antigo praticava com o paciente a anamnese isto é a reminiscência Por meio de perguntas o médico fazia o paciente lembrarse de todas as circunstâncias que antecederam o momento em que ficara doente e as circunstâncias em que adoecera pois essas lembranças auxiliavam o médico a fazer o diagnóstico e a receitar remédios cirurgias e dietas que correspondiam à necessidade específica da cura do paciente Convite à Filosofia 160 Além de imortalizar os mortais e de auxiliar a arte médica para os antigos a memória ainda possuía outra função Os antigos sobretudo os romanos desenvolveram uma arte chamada eloqüência ou retórica destinada a persuadir e a criar emoções nos ouvintes através do uso belo e eficaz da linguagem No aprendizado dessa arte consideravam a memória indispensável não só porque o bom orador poeta político advogado era aquele que falava ou pronunciava longos discursos sem ler e sem se apoiar em anotações como também porque o bom orador era aquele que aprendia de cor as regras fundamentais da eloqüência ou oratória Assim a memória era considerada essencial para o aprendizado e os mestres de retórica criaram métodos de memorização ou memória artificial que constituíam a Arte da Memória Esta era parte central do ensino e do aprendizado de oratória tornandose depois uma arte usada por outras disciplinas de ensino e aprendizagem Os romanos julgavam portanto que além da memória natural os seres humanos são capazes de desenvolver uma outra memória que amplia e auxilia a memória espontânea e justificavam a Arte da Memória narrando uma lenda sobre o criador da retórica o poeta grego Simônides de Céos Conta a lenda que Simônides foi convidado pelo rei de Céos a fazer um poema em sua homenagem O poeta dividiu o poema em duas partes na primeira louvava o rei e na segunda os deuses Castor e Polux O rei ofereceu um banquete no qual Simônides leu o poema e pediu o pagamento Como resposta o rei lhe disse que como o poema também estava dedicado aos deuses ele pagaria metade e que Simônides fosse pedir a outra metade a Castor e Polux Pouco depois um mensageiro aproximouse de Simônides dizendolhe que dois jovens o procuravam do lado de fora do palácio Simônides saiu para encontrá los mas não encontrou ninguém Enquanto estava no jardim o palácio desabou e todos morreram Castor e Polux os dois jovens que fizeram Simônides sair do palácio salvando o poeta pagaram o poema As famílias dos demais convidados desesperaramse porque não conseguiam reconhecer seus mortos Simônides porém lembrava dos lugares e das roupas de cada um e pôde ajudar na identificação dos mortos A lembrança do palácio e dos lugares dos convidados levou à criação da Arte da Memória como um palácio com lugares nos quais colocamos imagens e palavras e passeando por ele ordenadamente recordamos as coisas as pessoas os fatos e as palavras necessárias para escrever e dizer discursos poesias peças teatrais É por isso que todo o texto de santo Agostinho que citamos se refere aos palácios da memória A idéia de memória artificial existe até hoje quando nos referimos aos computadores e falamos de sua memória A diferença entre a memória artificial dos antigos e a atual consiste no fato de que a deles era desenvolvida Marilena Chauí 161 como uma capacidade do sujeito do conhecimento humano enquanto a atual deposita a memória nas máquinas e quase nos despoja da necessidade de termos memória Em nossa sociedade a memória é valorizada e desvalorizada É valorizada com a multiplicação dos meios de registro e gravação dos fatos acontecimentos e pessoas computadores filmes vídeos fitas cassetes livros e das instituições que os preservam bibliotecas museus arquivos É desvalorizada porque não é considerada uma atividade essencial para o conhecimento podemos usar máquinas no lugar de nossa própria memória e porque a publicidade e a propaganda nos fazem preferir o novo o moderno a última moda pois a indústria e o comércio só terão lucros se não conservarmos as coisas e quisermos sempre o novo A desvalorização da memória também aparece na proliferação de objetos descartáveis na maneira como a indústria da construção civil destrói cidades inteiras para tornálas modernas destruindo a memória e a História dessas cidades A desvalorização da memória aparece por fim no descaso pelos idosos considerados inúteis e inservíveis em nossa sociedade ao contrário de outras em que os idosos são portadores de todo o saber da coletividade respeitados e admirados por todos O que é a memória A memória é uma atualização do passado ou a presentificação do passado e é também registro do presente para que permaneça como lembrança Alguns estudiosos julgaram que a memória seria um fato puramente biológico isto é um modo de funcionamento das células do cérebro que registram e gravam percepções e idéias gestos e palavras Para esses estudiosos a memória se reduziria portanto ao registro cerebral ou à gravação automática pelo cérebro de fatos acontecimentos coisas pessoas e relatos Essa teoria porém não se sustenta Em primeiro lugar porque se a memória fosse mero registro cerebral de fatos e coisas passados não se poderia explicar o fenômeno da lembrança isto é que selecionamos e escolhemos o que lembramos e que a lembrança tem como a percepção aspectos afetivos sentimentais valorativos há lembranças alegres e tristes há saudade há arrependimento e remorso Em segundo lugar também não se poderia explicar o esquecimento pois se tudo está espontânea e automaticamente registrado e gravado em nosso cérebro não poderíamos esquecer coisa alguma nem poderíamos ter dificuldade para lembrar certas coisas e facilidade para recordar outras tantas Isso não significa que não haja um componente biológico fisiológico ou cerebral na memória pois os estudos científicos mostram não só as zonas do cérebro responsáveis pela memória como também os estudos bioquímicos mostram o papel de algumas substâncias químicas na produção e conservação da memória O que estamos dizendo é que os aspectos biológicos e químicos da memória não Convite à Filosofia 162 explicam o fenômeno no seu todo isto é como forma de conhecimento e de componente afetivo de nossas vidas Podemos dizer que em nosso processo de memorização entram componentes objetivos e componentes subjetivos para formar as lembranças São componentes objetivos as atividades físicofisiológicas e químicas de gravação e registro cerebral das lembranças bem como a estrutura do objeto que será lembrado Assim por exemplo a psicologia da Gestalt mostra que temos maior facilidade para memorizar uma melodia do que sons isolados ou dispersos que memorizamos mais facilmente figuras regulares círculo quadrado triângulo etc do que um conjunto disperso de linhas São componentes subjetivos a importância do fato e da coisa para nós o significado emocional ou afetivo do fato ou da coisa para nós o modo como alguma coisa nos impressionou e ficou gravada em nós a necessidade para nossa vida prática ou para o desenvolvimento de nossos conhecimentos o prazer ou dor que um fato ou alguma coisa produziram em nós etc Em outras palavras mesmo que nosso cérebro grave e registre tudo não é isso a memória e sim o que foi gravado com um sentido ou com um significado para nós e para os outros Os filósofos e a memória O filósofo francês Bergson distingue dois tipos de memória 1 a memóriahábito e 2 a memória pura ou memória propriamente dita A memóriahábito é um automatismo psíquico que adquirimos pela repetição contínua de alguma coisa como por exemplo quando aprendemos alguma coisa de cor A memória é uma simples fixação mental conseguida à força de repetir a mesma coisa Aqui basta iniciar um gesto ou pronunciar uma palavra para que tudo seja lembrado automaticamente recito uma lição repito movimentos de dança freio o carro ao sinal vermelho piso na embreagem para mudar a marcha do carro risco uma palavra errada que escrevi giro a chave para a direita ou para a esquerda para abrir uma porta etc Todos esses gestos e essas palavras são realizados por nós quase sem pensarmos neles ou até mesmo sem pensarmos neles O automatismo psíquico se torna um automatismo corporal A memória pura ou a memória propriamente dita é aquela que não precisa da repetição para conservar uma lembrança Pelo contrário é aquela que guarda alguma coisa fato ou palavra únicos irrepetíveis e mantidos por nós por seu significado especial afetivo valorativo ou de conhecimento É por isso que guardamos na memória aquilo que possui maior significação ou maior impacto em nossas vidas mesmo que seja um momento fugaz curtíssimo e que jamais se repetiu ou se repetirá É por isso também que muitas vezes não guardamos na memória um fato inteiro ou uma coisa inteira mas um pequeno Marilena Chauí 163 detalhe que quando lembrado nos traz de volta o todo acontecido A memória pura é um fluxo temporal interior Podemos então distinguir duas formas principais de memorização aquela que se dá por repetição e por atenção deliberada para fixar alguma coisa e aquela que se dá espontaneamente pela força ou pelo impacto de alguma coisa ou de algum acontecimento dotados de significado importante em nossa existência Aqui o interesse por alguma coisa ou algum fato é mais decisivo do que a atenção voluntária que lhe damos Existem seis grandes tipos de memória 1 a memória perceptiva ou reconhecimento que nos permite reconhecer coisas pessoas lugares etc e que é indispensável para nossa vida cotidiana 2 a memóriahábito que adquirimos por atenção deliberada ou voluntária e pela repetição de gestos ou palavras até graválos e poderem ser repetidos sem que neles tenhamos que pensar 3 a memóriafluxodeduraçãopessoal que nos faz guardar a lembrança de coisas fatos pessoas lugares cujo significado é importante para nós seja do ponto de vista afetivo seja do ponto de vista de nossos conhecimentos 4 a memória social ou histórica que é fixada por uma sociedade através de mitos fundadores e de relatos registros documentos monumentos datas e nomes de pessoas fatos e lugares que possuem significado para a vida coletiva Excetuandose os mitos que são fabulações essa memória é objetiva pois existe em objetos textos monumentos instrumentos ornamentos etc e fora de nós 5 a memória biológica da espécie gravada no código genético das diferentes espécies de vida e que permitem a repetição da espécie 6 a memória artificial das máquinas baseada na estrutura simplificada do cérebro humano As quatro primeiras fazem parte da vida de nossa consciência individual e coletiva a quinta é inconsciente e puramente física a última é uma técnica Memória e teoria do conhecimento Do ponto de vista da teoria do conhecimento a memória possui as seguintes funções retenção de um dado da percepção da experiência ou de um conhecimento adquirido reconhecimento e produção do dado percebido experimentado ou conhecido numa imagem que ao ser lembrada permite estabelecer uma relação ou um nexo entre o já conhecido e novos conhecimentos recordação ou reminiscência de alguma coisa como pertencente ao tempo passado e enquanto tal diferente ou semelhante a alguma coisa presente Convite à Filosofia 164 capacidade para evocar o passado a partir do tempo presente ou de lembrar o que já não é através do que é atualmente Por essas funções a memória é considerada essencial para a elaboração da experiência e do conhecimento científico filosófico e técnico Por esse motivo Aristóteles escreveu na Metafísica É da memória que os homens derivam a experiência pois as recordações repetidas da mesma coisa produzem o efeito duma única experiência A memória é retenção Graças à lembrança e à prospecção o conhecimento filosófico técnico e científico podem elaborar a experiência e alcançar novos saberes e práticas Graças à memória somos capazes de lembrar e recordar As lembranças podem ser trazidas ao presente tanto espontaneamente quanto por um trabalho deliberado de nossa consciência Lembramos espontaneamente quando por exemplo diante de uma situação presente nos vem à lembrança alguma situação passada Recordamos quando fazemos o esforço para lembrar Assim como há perturbações e problemas perceptivos cegueira surdez perda de tato e imaginativos loucura ideologia também existem problemas e perturbações da memória indo desde uma dificuldade momentânea para recordar alguma coisa até a amnésia perda total ou parcial da memória Quando perdemos a capacidade para lembrar palavras ou construir frases sofremos a afasia Quando perdemos a capacidade para lembrar e realizar gestos e ações sofremos de apraxia Essas perturbações podem ser causadas por lesões físicas no cérebro ou no sistema nervoso ou traumas psicológicos isto é por situações de grande sofrimento psíquico que nos forçam a esquecer alguma coisa algum fato alguma situação Seja por lesão física seja por sofrimento psíquico seja por uma perturbação momentânea e passageira o esquecimento é a perda de nossa relação com o passado e portanto com uma dimensão do tempo e com uma dimensão de nossa vida Na amnésia perdemos relação com o todo de nossa existência Na afasia perdemos a relação com os outros através da linguagem ou da comunicação Na apraxia perdemos a relação com o nosso corpo e com o mundo das coisas Esquecer é ficar privado de memória e perder alguma coisa Algumas vezes porém essa perda é um bem esquecer alguma coisa terrível é ultrapassála para poder viver bem novamente A memória não é um simples lembrar ou recordar mas revela uma das formas fundamentais de nossa existência que é a relação com o tempo e no tempo com aquilo que está invisível ausente e distante isto é o passado A memória é o que confere sentido ao passado como diferente do presente mas fazendo ou podendo fazer parte dele e do futuro mas podendo permitir esperálo e compreendêlo Marilena Chauí 165 Capítulo 4 A imaginação Cotidiano e imaginação Com freqüência ouvimos frases como Que falta de imaginação Por favor use a sua imaginação Cuidado Ela tem muita imaginação Que nada Você andou imaginando tudo isso Não comece a imaginar coisas Imagine se tivesse sido assim Essas frases são curiosas porque indicam maneiras bastante diferentes de concebermos o que seja a imaginação Na frase Que falta de imaginação a imaginação é tomada como algo positivo cuja falta ou ausência é criticada Imaginar aqui aparece como capacidade mais alargada para pensar para encontrar soluções inteligentes para algum problema para adivinhar o sentido de alguma coisa que não está muito evidente Ela aparece também como algo que nós temos e que podemos ou não usar Já nas frases Cuidado Ela tem muita imaginação Que nada Você andou imaginando tudo isso ou Não comece a imaginar coisas a imaginação é tomada como risco de irrealidade invencionice mentira exagero excesso Agora imaginar é inventar ou exagerar perder o pé da realidade assumindo portanto um sentido bastante diverso do anterior Na frase Imagine se tivesse sido assim ou em outra como Imagine o que ele vai dizer a imaginação é tomada como uma espécie de suposição sobre as coisas futuras uma espécie de previsão ou de alerta sobre o que poderá ou poderia acontecer como conseqüência de outros acontecimentos Apesar de diferentes essas frases possuem alguns elementos comuns Em todas elas positiva ou negativamente a imaginação está referida ao inexistente Dizer Use sua imaginação significa faça de outro modo ou invente alguma coisa Exclamar Que falta de imaginação significa poderia ter feito muito melhor poderia ter dito uma coisa muito mais interessante Alertar com a frase Cuidado Ela tem muita imaginação significa ela inventa e exagera Supor Imagine o que nos teria acontecido significa criar a imagem de uma situação que não aconteceu a imaginação aparece como algo que possui graus isto é pode haver falta ou excesso Convite à Filosofia 166 a imaginação se apresenta como capacidade para elaborar mentalmente alguma coisa possível algo que não existiu mas poderia ter existido ou que não existe mas poderá vir a existir A imaginação surge assim como algo impreciso situada entre dois tipos de invenção criação inteligente e inovadora de um lado exagero invencionice mentira de outro No primeiro caso ela faz aparecer o que não existia ou mostra ser possível algo que não existe No segundo caso ela é incapaz de reproduzir o existente ou o acontecido Com isso nossas frases cotidianas apontam os dois principais sentidos da imaginação criadora e reprodutora A imaginação na tradição filosófica A tradição filosófica sempre deu prioridade à imaginação reprodutora considerada como um resíduo do objeto percebido que permanece retido em nossa consciência A imagem seria um rastro ou um vestígio deixado pela percepção Os empiristas por exemplo falam das imagens como reflexos mentais das percepções ou das impressões cujos traços foram gravados no cérebro Desse ponto de vista a imagem e a lembrança difeririam apenas porque a primeira é atual enquanto a segunda é passada A imagem seria portanto a reprodução presente que faço de coisas ou situações presentes Por exemplo se neste momento eu fechar os olhos posso imaginar o computador a mesa de trabalho os livros nas estantes o quebraluz a porta a janela A imagem seria a coisa atual percebida quando ausente Seria uma percepção enfraquecida que associada a outras formaria as idéias no pensamento Os filósofos intelectualistas também consideravam a imaginação uma forma enfraquecida da percepção e por considerarem a percepção a principal causa de nossos erros as ilusões e deformações da realidade também julgavam a imaginação fonte de enganos e erros Tomandoa como meramente reprodutora diziam por exemplo que a imaginação dos artistas nada mais faz do que juntar de maneira nova imagens de coisas percebidas um cavalo alado é a junção da imagem de um cavalo percebido com a imagem de asas percebidas uma sereia a junção de uma imagem de mulher percebida com a imagem de um peixe percebido A imaginação seria pois diretamente reprodutora da percepção no campo do conhecimento e indiretamente reprodutora da percepção no campo da fantasia Por isso na tradição filosófica costumavase usar a palavra imaginação como sinônimo de percepção ou como um aspecto da percepção Percebemos imagens das coisas dizia a tradição A tradição porém enfrentava alguns problemas que não podia resolver Marilena Chauí 167 em nossa vida não confundimos percepção e imagem Assim por exemplo distinguimos perfeitamente a percepção direta de um bombardeio da imagem do que seria uma explosão atômica em nossa vida não confundimos perceber e imaginar Assim por exemplo distinguimos o sonho da vigília distinguimos um fato que vemos na rua da cena de um filme em nossa vida somos capazes de distinguir nossa percepção e a imaginação de uma outra pessoa Assim por exemplo percebemos o sofrimento psíquico de alguém que está tendo alucinações mas não somos capazes de alucinar junto com ela Dessa maneira a suposição de que entre a percepção e a imaginação entre o percebido e a imagem haveria apenas uma diferença de grau ou de intensidade a imagem seria uma percepção fraca e a percepção seria a imagem forte não se mantém pois há uma diferença de natureza ou uma diferença de essência entre ambas A fenomenologia e a imaginação Quando falamos em imagens referimonos a coisas bastante diversas quadros esculturas fotografias filmes reflexos num espelho ou nas águas ficções literárias contos lendas e mitos figuras de linguagem como a metáfora e a metonímia sonhos devaneios alucinações imitações pela mímica e pela dança sons musicais poesia Uma primeira diferença entre essas imagens pode ser logo notada algumas se referem a imagens exteriores à nossa consciência pinturas esculturas fotos filmes mímica etc outras podem ser consideradas internas ou mentais sonhos devaneios alucinações etc enquanto algumas são externas e internas ao mesmo tempo no caso da ficção literária por exemplo a imagem é externa pois está no livro e é interna pois leio palavras e com elas imagino No entanto algo é comum a todas elas oferecemnos um análogo das próprias coisas seja porque estão no lugar das próprias coisas seja porque nos fazem imaginar coisas através de outras A segunda diferença entre as imagens decorre do tipo de análogo que cada uma delas propõe Um análogo pode ser um símbolo a bandeira é um símbolo da nação uma metáfora dizer a primavera da vida para referirse à juventude uma ilustração a foto de alguém junto a uma notícia de jornal ou uma paisagem num livro de contos um esquema a planta de uma casa ou de uma máquina um signo vejo a luz vermelha do semáforo e ela é o signo de uma ordem Pare um sentimento a emoção que sinto ao ouvir uma sinfonia um substituto um armário transformado em navio pela criança que brinca Embora sejam diferentes pela natureza da analogia as imagens novamente possuem algo em comum raramente ou quase nunca a imagem corresponde Convite à Filosofia 168 materialmente à coisa imaginada Por exemplo a bandeira e a nação são materialmente diferentes os sons da sinfonia e meus sentimentos são diferentes a fotografia e a pessoa fotografada são materialmente diferentes um mímico que imita uma janela ou uma locomotiva não é nem uma coisa nem outra etc Notamos assim que é próprio das imagens algo que suporíamos próprio apenas da ficção isto é as imagens são irreais quando comparadas ao que é imaginado através delas Um quadro é real enquanto quadro percebido mas é irreal se comparado à paisagem da qual é imagem Apesar de irreal e justamente por ser irreal a imagem é dotada de um poder especial torna presente ou presentifica algo ausente seja porque esse algo existe e não se encontra onde estamos seja porque é inexistente No primeiro caso a imagem ou o análogo é testemunha irreal de alguma coisa existente no segundo é a criação de uma realidade imaginária ou seja de algo que existe apenas em imagem ou como imagem Nos dois casos porém o objetoem imagem é imaginário Consciência imaginativa Distanciandose da tradição a fenomenologia fala na consciência imaginativa como uma forma de consciência diferente da percepção e da memória tendo como ato o imaginar e como conteúdo ou correlato o imaginário ou o objeto emimagem A imaginação é a capacidade da consciência para fazer surgir os objetos imaginários ou objetosemimagem Pela imaginação relacionamonos com o ausente e com o inexistente Perceber este livro é relacionarse com sua presença e existência Imaginar um livro é relacionarse ou com a imagem do livro percebido ou com um livro ausente e inexistente que ainda não foi escrito e é apenas olivropossível Graças à imaginação abrese para nós o tempo futuro e o campo dos possíveis A percepção observa as coisas as pessoas as situações Observar é jamais ter uma coisa pessoa ou situação de uma só vez e por inteiro A percepção observa porque alcança as coisas as pessoas as situações por perfis perspectivas faces diferentes que vão sendo articuladas umas às outras num processo sem fim podendo sempre enriquecer nosso conhecimento perceber aspectos novos ir completando o percebido com novos dados ou aspectos A imaginação ao contrário não observa o objeto cada imagem põe o objeto por inteiro O filósofo francês Sartre dá um exemplo quando imagino uma rua ou um edifício tenho de uma só vez a ruaemimagem ou o edifícioemimagem cada um deles possui uma única face e é essa que existe em imagem Podemos ter muitas imagens da mesma rua ou do mesmo edifício mas cada uma delas é uma imagem distinta das outras Uma imagem diz Sartre é inobservável Se uma pessoa apaixonada tem diante de si a pintura ou a fotografia da pessoa amada tem a imagem dela Ao olhála não olha para as manchas coloridas para Marilena Chauí 169 os traços reproduzidos no papel não presta atenção no trabalho do pintor nem do fotógrafo mas torna presente a pessoa amada ausente A imagem é diferente do percebido porque ela é um análogo do ausente sua presentificação Em outras palavras percebemos e imaginamos ao mesmo tempo embora perceber e imaginar sejam diferentes Percebo a fotografia e imagino a pessoa amada Percebo a fisionomia da pessoa fotografada o olhar o sorriso as mãos a roupa e imagino a sedução do olhar a doçura do sorriso a sutileza dos gestos a preferência por certas roupas São dois estados de consciência simultâneos e diferentes Quando Clarice Lispector descreve o inseto e o ovo percepção e imaginação são simultâneos e diferentes Diante do verdecorposuperfícietraçoquecaminha percepção do inseto Clarice imagina como seriam o desejo e o amor das esperanças pergunta sobre as glândulas do inseto cujo corpo percebido parece impossível de conter algo em seu interior porque não tem interior O inseto percebido e o inseto imaginado são duas consciências diferentes do mesmo inseto Quando a criança brinca sua imaginação desfaz a percepção todos os objetos todas as pessoas e todos os lugares nada têm a ver com seu sentido percebido mas remetem a outros sentidos criam sentidos inexistentes ou presentificam o ausente Um armário é um navioemimagem um tapete é um maremimagem um cabo de vassoura é uma espadaemimagem uma folha de jornal é um mapa emimagem um avental preso às costas é uma capaemimagem A imaginação é assim uma capacidade irrealizadora A força irrealizadora da imaginação significa por um lado que ela é capaz de tornar ausente o que está presente o armário deixa de estar presente de tornar presente o ausente o navio tornase presente e criar inteiramente o inexistente a aventura nos mares É por isso que a imaginação tem também uma força prospectiva isto é consegue inventar o futuro como na canção de John Lennon Imagine ou como na invenção de uma teoria científica ou de um objeto técnico Pelo mesmo motivo a imaginação pode criar um mundo irreal que julgamos melhor do que o nosso a ponto de recusarmos viver neste para viver imaginariamente naquele perdendo todo o contato com o real É o que acontece por exemplo na loucura quando passamos definitivamente para o outro lado Mas é também o que acontece todos os dias quando sonhamos ou entramos em devaneio Embora vigília e sonho sejam diferentes a vigília pode ser sentida como intolerável e insuportável e somos arrastados pelo desejo de ficar no sonho e de embora acordados viver como se o sonho fosse real porque nossa imaginação o faz real para nós Irrealizando o mundo percebido e realizando o sonho a imaginação pode ocupar o lugar da percepção e passamos a perceber imaginariamente Convite à Filosofia 170 Quando o fazemos para criar um outro mundo ao qual os outros seres humanos também podem ter acesso a imaginação passa do sonho à obra de arte Quando o fazemos para criar um outro mundo só nosso e ao qual ninguém mais pode ter acesso a imaginação passa do sonho à loucura Assim a diferença entre sonho arte e loucura é muito pequena e frágil a imaginação aberta aos outros arte ou fechada aos outros loucura As modalidades de imaginação Partindo da diferença entre imaginação reprodutora e imaginação criadora podemos distinguir várias modalidades de imaginação 1 imaginação reprodutora propriamente dita isto é a imaginação que toma suas imagens da percepção e da memória 2 imaginação evocadora que presentifica o ausente por meio de imagens com forte tonalidade afetiva 3 imaginação irrealizadora que torna ausente o presente e nos coloca vivendo numa outra realidade que é só nossa como no sonho no devaneio e no brinquedo Esta imaginação tem forte tonalidade mágica 4 imaginação fabulosa de caráter social ou coletivo que cria os mitos e as lendas pelos quais uma sociedade um grupo social ou uma comunidade imaginam sua própria origem e a origem de todas as coisas oferecendo uma explicação para seu presente e sobretudo para a morte Aqui a imaginação cria imagens simbólicas para o bem e o mal o justo e o injusto o puro e o impuro o belo e o feio o mortal e o imortal o tempo e a Natureza pela referência às divindades e aos heróis criadores explica os males desta vida por faltas originárias cometidas pelos humanos o pecado original por exemplo e promete uma vida futura feliz após a morte É a imaginação religiosa 5 imaginação criadora que inventa ou cria o novo nas artes nas ciências nas técnicas e na Filosofia Aqui combinamse elementos afetivos intelectuais e culturais que preparam as condições para que algo novo seja criado e que só existia primeiro como imagem prospectiva ou como possibilidade aberta A imaginação criadora pede auxílio à percepção à memória às idéias existentes à imaginação reprodutora e evocadora para cumprirse como criação ou invenção Imaginação e teoria do conhecimento Do ponto de vista da teoria do conhecimento a imaginação possui duas faces a de auxiliar precioso para o conhecimento da verdade e a de perigo imenso para o conhecimento verdadeiro Quando lemos relatos dos cientistas sobre suas pesquisas e investigações com freqüência eles se referem aos momentos em que tiveram que imaginar isto é criar pelo pensamento a imagem total ou completa do fenômeno pesquisado para Marilena Chauí 171 graças a ela orientar os detalhes e pormenores da pesquisa concreta que realizavam Essa imagem é negadora e antecipadora Negadora graças a ela o cientista pode negar ou recusar as teorias já existentes Antecipadora graças a ela o cientista pode antever o significado completo de sua própria pesquisa mesmo que esta ainda esteja em andamento a imaginação orienta o pensamento O filósofo Gaston Bachelard atribui à imaginação a capacidade para encorajar o pensamento a dizer não a teorias existentes e propor novas Muitas vezes lendo um romance ou vendo um filme compreendemos e conhecemos muito melhor uma realidade do que se lêssemos livros científicos ou jornais Por quê Porque o artista através da imaginação capta o essencial e reúne o que estava disperso na realidade fazendonos compreender o sentido profundo e invisível de alguma coisa ou de alguma situação O artista nos mostra o inusitado o excepcional o exemplar ou o impossível por meio dos quais nossa realidade ganha sentido e pode ser mais bem conhecida Outras vezes porém sobretudo quando se trata da imaginação reprodutora somos lançados no mundo dos ídolos de que fala Francis Bacon ou no mundo da prevenção e dos preconceitos de que fala Descartes Agora surge um tecido de imagens ou um imaginário que desvia nossa atenção da realidade ou que serve para nos dar compensações ilusórias para as desgraças de nossas vidas ou de nossa sociedade ou que é usado como máscara para ocultar a verdade O imaginário reprodutor nas ciências na Filosofia no cinema na televisão na literatura etc bloqueia nosso conhecimento porque apenas reproduz nossa realidade mas dando a ela aspectos sedutores mágicos embelezados cheios de sonhos que já parecem realizados e que reforçam nosso presente como algo inquestionável e inelutável É um imaginário de explicações feitas e acabadas justificador do mundo tal como ele parece ser Quando esse imaginário é social chamase ideologia Sob esse aspecto a imaginação reprodutora se opõe à imaginação utópica Utopia é uma palavra grega que significa em lugar nenhum e em tempo nenhum A imaginação utópica cria uma outra realidade para mostrar erros desgraças infâmias angústias opressões e violências da realidade presente e para despertar em nossa imaginação o desejo de mudança Assim enquanto o imaginário reprodutor procura abafar o desejo de transformação o imaginário utópico procura criar esse desejo em nós Pela invenção de uma outra sociedade que não existe em lugar nenhum e em tempo nenhum a utopia nos ajuda a conhecer a realidade presente e buscar sua transformação Em outras palavras o imaginário reprodutor opera com ilusões enquanto a imaginação criadora e a imaginação utópica operam com a invenção do novo e da mudança graças ao conhecimento crítico do presente Convite à Filosofia 172 Capítulo 5 A linguagem A importância da linguagem Na abertura da sua obra Política Aristóteles afirma que somente o homem é um animal político isto é social e cívico porque somente ele é dotado de linguagem Os outros animais escreve Aristóteles possuem voz phone e com ela exprimem dor e prazer mas o homem possui a palavra logos e com ela exprime o bom e o mau o justo e o injusto Exprimir e possuir em comum esses valores é o que torna possível a vida social e política e dela somente os homens são capazes Segue a mesma linha o raciocínio de Rousseau no primeiro capítulo do Ensaio sobre a origem das línguas A palavra distingue os homens dos animais a linguagem distingue as nações entre si Não se sabe de onde é um homem antes que ele tenha falado Escrevendo sobre a teoria da linguagem o lingüista Hjelmslev afirma que a linguagem é inseparável do homem segueo em todos os seus atos sendo o instrumento graças ao qual o homem modela seu pensamento seus sentimentos suas emoções seus esforços sua vontade e seus atos o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado a base mais profunda da sociedade humana Prosseguindo em sua apreciação sobre a importância da linguagem Rousseau considera que a linguagem nasce de uma profunda necessidade de comunicação Desde que um homem foi reconhecido por outro como um ser sensível pensante e semelhante a si próprio o desejo e a necessidade de comunicar lhe seus sentimentos e pensamentos fizeramno buscar meios para isso Gestos e vozes na busca da expressão e da comunicação fizeram surgir a linguagem Por seu turno Hjelmslev afirma que a linguagem é o recurso último e indispensável do homem seu refúgio nas horas solitárias em que o espírito luta contra a existência e quando o conflito se resolve no monólogo do poeta e na meditação do pensador A linguagem diz ele está sempre à nossa volta sempre pronta a envolver nossos pensamentos e sentimentos acompanhandonos em toda a nossa vida Ela não é um simples acompanhamento do pensamento mas sim um fio profundamente Marilena Chauí 173 tecido na trama do pensamento é o tesouro da memória e a consciência vigilante transmitida de geração a geração A linguagem é assim a forma propriamente humana da comunicação da relação com o mundo e com os outros da vida social e política do pensamento e das artes No entanto no diálogo Fedro Platão dizia que a linguagem é um pharmakon Esta palavra grega que em português se traduz por poção possui três sentidos principais remédio veneno e cosmético Ou seja Platão considerava que a linguagem pode ser um medicamento ou um remédio para o conhecimento pois pelo diálogo e pela comunicação conseguimos descobrir nossa ignorância e aprender com os outros Pode porém ser um veneno quando pela sedução das palavras nos faz aceitar fascinados o que vimos ou lemos sem que indaguemos se tais palavras são verdadeiras ou falsas Enfim a linguagem pode ser cosmético maquiagem ou máscara para dissimular ou ocultar a verdade sob as palavras A linguagem pode ser conhecimentocomunicação mas também pode ser encantamentosedução Essa mesma idéia da linguagem como possibilidade de comunicação conhecimento e de dissimulaçãodesconhecimento aparece na Bíblia judaico cristã no mito da Torre de Babel Gn 1119 quando Deus lançou a confusão entre os homens fazendo com que perdessem a língua comum e passassem a falar línguas diferentes que impediam uma obra em comum abrindo as portas para todos os desentendimentos e guerras A pluralidade das línguas é explicada na Escritura Sagrada como punição porque os homens ousaram imaginar que poderiam construir uma torre que alcançasse o céu isto é ousaram imaginar que teriam um poder e um lugar semelhante ao da divindade Que sejam confundidos disse Deus A força da linguagem Podemos avaliar a força da linguagem tomando como exemplo os mitos e as religiões A palavra grega mythos como já vimos significa narrativa e portanto linguagem Tratase da palavra que narra a origem dos deuses do mundo dos homens das técnicas o fogo a agricultura a caça a pesca o artesanato a guerra e da vida do grupo social ou da comunidade Pronunciados em momentos especiais os momentos sagrados ou de relação com o sagrado os mitos são mais do que uma simples narrativa são a maneira pela qual através das palavras os seres humanos organizam a realidade e a interpretam O mito tem o poder de fazer com que as coisas sejam tais como são ditas ou pronunciadas O melhor exemplo dessa força criadora da palavra mítica encontrase na abertura da Gênese na Bíblia judaicocristã em que Deus cria o Convite à Filosofia 174 mundo do nada apenas usando a linguagem E Deus disse façase e foi feito Porque Ele disse foi feito A palavra divina é criadora Também vemos a força realizadora ou concretizadora da linguagem nas liturgias religiosas Por exemplo na missa cristã o celebrante pronunciando as palavras Este é o meu corpo e Este é o meu sangue realiza o mistério da Eucaristia isto é a encarnação de Deus no pão e no vinho Também nos rituais indígenas e africanos os deuses e heróis comparecem e se reúnem aos mortais quando invocados pelas palavras corretas pronunciadas pelo celebrante A linguagem tem assim um poder encantatório isto é uma capacidade para reunir o sagrado e o profano trazer os deuses e as forças cósmicas para o meio do mundo ou como acontece com os místicos em oração tem o poder de levar os humanos até o interior do sagrado Eis por que em quase todas as religiões existem profetas e oráculos isto é pessoas escolhidas pela divindade para transmitir mensagens divi nas aos humanos Esse poder encantatório da linguagem aparece por exemplo quando vemos ou lemos sobre rituais de feitiçaria a feiticeira ou o feiticeiro tem a força para fazer coisas acontecerem pelo simples fato de em circunstâncias certas pronunciarem determinadas palavras É assim que nas lendas sobre o rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda os feiticeiros Merlin e Morgana decidem o destino das guerras pronunciando palavras especiais dotadas de poder Também nos contos infantis há palavras poderosas Abrete Sésamo Shazam e encantatórias Abracadabra Essa dimensão maravilhosa da linguagem da infância é explorada de maneira belíssima pelo cineasta Federico Fellini no filme Oito e Meio quando a personagem adulta pronuncia as palavras Asa Nisa Nasa trazendo de volta o passado As palavras assumem o poder contrário também isto é criam tabus Ou seja há coisas que não podem ser ditas porque se forem não só trazem desgraças como ainda desgraçam quem as pronunciar As palavrastabus existem nos contextos religiosos de várias sociedades por exemplo em muitas sociedades não se deve pronunciar a palavra demônio ou diabo porque este aparece em vez disso se diz o cão o demo o tinhoso As palavrastabus não existem apenas na esfera religiosa mas também nos brinquedos infantis quando certas palavras são proibidas a todos os membros do grupo sob pena de punição para quem as pronunciar Existem ainda palavrastabus na vida social sob os efeitos da repressão dos costumes sobretudo os que se referem a práticas sexuais Assim para certos grupos sociais de nossa sociedade e mesmo para nossa sociedade inteira até os anos 60 do século passado eram proibidas palavras como puta homossexual aborto amante masturbação sexo oral sexo anal etc Tais palavras eram pronunciadas em meios masculinos e em locais privados ou íntimos Também Marilena Chauí 175 palavras de cunho político tendem a tornarse quase tabus revolucionário terrorista guerrilheiro socialista comunista etc O poder mágicoreligioso da palavra aparece ainda num outro contexto o do direito Na origem o direito não era um código de leis referentes à propriedade de coisas ou bens do corpo e da consciência nem referentes à vida política impostos constituições direitos sociais civis políticos mas era um ato solene no qual o juiz pronunciava uma fórmula pela qual duas partes em conflito fariam a paz O direito era uma linguagem solene de fórmulas conhecidas pelo árbitro e reconhecidas pelas partes em litígio Era o juramento pronunciado pelo juiz e acatado pelas partes Donde as expressões Dou minha palavra ou Ele deu sua palavra para indicar o juramento feito e a palavra empenhada ou palavra de honra É por isso também que até hoje nos tribunais se faz oa acusadoa e as testemunhas responderem à pergunta Jura dizer a verdade somente a verdade nada além da verdade dizendo Juro Razão pela qual o perjúrio dizer o falso sob juramento de dizer o verdadeiro é considerado crime gravíssimo Nas sociedades menos complexas do que a nossa isto é nas sociedades que são comunidades onde todos se conhecem pelo primeiro nome e se encontram todos os dias ou com freqüência a palavra dada e empenhada é suficiente pois quando alguém dá sua palavra dá sua vida sua consciência sua honra e assume um compromisso que só poderá ser desfeito com a morte ou com o acordo da outra parte É por isso que nos casamentos religiosos em que os noivos fazem parte da comunidade basta que digam solenemente ao celebrante Aceito para que o casamento esteja concretizado Independentemente de acreditarmos ou não em palavras místicas mágicas encantatórias ou tabus o importante é que existam pois sua existência revela o poder que atribuímos à linguagem Esse poder decorre do fato de que as palavras são núcleos sínteses ou feixes de significações símbolos e valores que determinam o modo como interpretamos as forças divinas naturais sociais e políticas e suas relações conosco A outra dimensão da linguagem Para referirse à palavra e à linguagem os gregos possuíam duas palavras mythos e logos Diferentemente do mythos logos é uma síntese de três palavras ou idéias falapalavra pensamentoidéia e realidadeser Logos é a palavra racional do conhecimento do real É discurso ou seja argumento e prova pensamento ou seja raciocínio e demonstração e realidade ou seja os nexos e ligações universais e necessários entre os seres É a palavrapensamento compartilhada diálogo é a palavrapensamento verdadeira lógica é a palavrapensamento de alguma coisa o logia que colocamos no final de palavras como cosmologia mitologia teologia ontologia Convite à Filosofia 176 biologia psicologia sociologia antropologia tecnologia filologia farmacologia etc Do lado do logos desenvolvese a linguagem como poder de conhecimento racional e as palavras agora são conceitos ou idéias estando referidas ao pensamento à razão e à verdade Essa dupla dimensão da linguagem como mythos e logos explica por que na sociedade ocidental podemos comunicarnos e interpretar o mundo sempre em dois registros contrários e opostos o da palavra solene mágica religiosa artística e o da palavra leiga científica técnica puramente racional e conceitual Não por acaso muitos filósofos das ciências afirmam que uma ciência nasce ou um objeto se torna científico quando uma explicação que era religiosa mágica artística mítica cede lugar a uma explicação conceitual causal metódica demonstrativa racional A origem da linguagem Durante muito tempo a Filosofia preocupouse em definir a origem e as causas da linguagem Uma primeira divergência sobre o assunto surgiu na Grécia a linguagem é natural aos homens existe por natureza ou é uma convenção social Se a linguagem for natural as palavras possuem um sentido próprio e necessário se for convencional são decisões consensuais da sociedade e nesse caso são arbitrárias isto é a sociedade poderia ter escolhido outras palavras para designar as coisas Essa discussão levou séculos mais tarde à seguinte conclusão a linguagem como capacidade de expressão dos seres humanos é natural isto é os humanos nascem com uma aparelhagem física anatômica nervosa e cerebral que lhes permite expressaremse pela palavra mas as línguas são convencionais isto é surgem de condições históricas geográficas econômicas e políticas determinadas ou em outros termos são fatos culturais Uma vez constituída uma língua ela se torna uma estrutura ou um sistema dotado de necessidade interna passando a funcionar como se fosse algo natural isto é como algo que possui suas leis e princípios próprios independentes dos sujeitos falantes que a empregam Perguntar pela origem da linguagem levou a quatro tipos de respostas 1 a linguagem nasce por imitação isto é os humanos imitam pela voz os sons da Natureza dos animais dos rios das cascatas e dos mares do trovão e do vulcão dos ventos etc A origem da linguagem seria portanto a onomatopéia ou imitação dos sons animais e naturais 2 a linguagem nasce por imitação dos gestos isto é nasce como uma espécie de pantomima ou encenação na qual o gesto indica um sentido Pouco a pouco o gesto passou a ser acompanhado de sons e estes se tornaram gradualmente palavras substituindo os gestos Marilena Chauí 177 3 a linguagem nasce da necessidade a fome a sede a necessidade de abrigarse e protegerse a necessidade de reunirse em grupo para defenderse das intempéries dos animais e de outros homens mais fortes levaram à criação de palavras formando um vocabulário elementar e rudimentar que gradativamente tornouse mais complexo e transformouse numa língua 4 a linguagem nasce das emoções particularmente do grito medo surpresa ou alegria do choro dor medo compaixão e do riso prazer bemestar felicidade Citando novamente Rousseau em seu Ensaio sobre a origem das línguas Não é a fome ou a sede mas o amor ou o ódio a piedade a cólera que aos primeiros homens lhes arrancaram as primeiras vozes Eis por que as primeiras línguas foram cantantes e apaixonadas antes de serem simples e metódicas Assim a linguagem nascendo das paixões foi primeiro linguagem figurada e por isso surgiu como poesia e canto tornandose prosa muito depois e as vogais nasceram antes das consoantes Assim como a pintura nasceu antes da escrita assim também os homens primeiro cantaram seus sentimentos e só muito depois exprimiram seus pensamentos Essas teorias não são excludentes É muito possível que a linguagem tenha nascido de todas essas fontes ou modos de expressão e os estudos de Psicologia Genética isto é da gênese da percepção imaginação memória linguagem e inteligência nas crianças mostra que uma criança se vale de todos esses meios para começar a exprimirse Uma linguagem se constitui quando passa dos meios de expressão aos de significação ou quando passa do expressivo ao significativo Um gesto ou um grito exprimem por exemplo medo palavras frases e enunciados significam o que é sentir medo dão conteúdo ao medo O que é a linguagem A linguagem é um sistema de signos ou sinais usados para indicar coisas para a comunicação entre pessoas e para a expressão de idéias valores e sentimentos Embora tão simples essa definição da linguagem esconde problemas complicados com os quais os filósofos têmse ocupado desde há muito tempo Essa definição afirma que 1 a linguagem é um sistema isto é uma totalidade estruturada com princípios e leis próprios sistema esse que pode ser conhecido 2 a linguagem é um sistema de sinais ou de signos isto é os elementos que formam a totalidade lingüística são um tipo especial de objetos os signos ou objetos que indicam outros designam outros ou representam outros Por exemplo a fumaça é um signo ou sinal de fogo a cicatriz é signo ou sinal de uma ferida manchas na pele de um determinado formato tamanho e cor são signos de Convite à Filosofia 178 sarampo ou de catapora etc No caso da linguagem os signos são palavras e os componentes das palavras sons ou letras 3 a linguagem indica coisas isto é os signos lingüísticos as palavras possuem uma função indicativa ou denotativa pois como que apontam para as coisas que significam 4 a linguagem tem uma função comunicativa isto é por meio das palavras entramos em relação com os outros dialogamos argumentamos persuadimos relatamos discutimos amamos e odiamos ensinamos e aprendemos etc 5 a linguagem exprime pensamentos sentimentos e valores isto é possui uma função de conhecimento e de expressão sendo neste caso conotativa ou seja uma mesma palavra pode exprimir sentidos ou significados diferentes dependendo do sujeito que a emprega do sujeito que a ouve e lê das condições ou circunstâncias em que foi empregada ou do contexto em que é usada Assim por exemplo a palavra água se for usada por um professor numa aula de química conotará o elemento químico que corresponde à fórmula H2O se for empregada por um poeta pode conotar rios chuvas lágrimas mar líquido pureza etc se for empregada por uma criança que chora pode estar indicando uma carência ou necessidade como a sede A definição nos diz portanto que a linguagem é um sistema de sinais com função indicativa comunicativa expressiva e conotativa No entanto essa definição não nos diz várias coisas Por exemplo como a fala se forma em nós Por que a linguagem pode indicar coisas externas e também exprimir idéias internas ao pensamento Por que a linguagem pode ser diferente quando falada pelo cientista pelo filósofo pelo poeta ou pelo político Como a linguagem pode ser fonte de engano de malentendido de controvérsia ou de mentira O que se passa exatamente quando dialogamos com alguém O que é escrever E ler Como podemos aprender uma outra língua Na resposta a várias dessas perguntas vamos encontrar uma divergência que já encontramos quando estudamos a razão a verdade a percepção ou a imaginação qual seja a diferença entre empiristas e intelectualistas Empiristas e intelectualistas diante da linguagem Para os empiristas a linguagem é um conjunto de imagens corporais e mentais formadas por associação e repetição e que constituem imagens verbais as palavras As imagens corporais são de dois tipos motoras e sensoriais As imagens motoras são as que adquirimos quando aprendemos a articular sons falar e letras escrever graças a mecanismos anatômicos e fisiológicos As imagens sensoriais são as que adquirimos quando graças aos nossos sentidos à fisiologia de nosso sistema nervoso sobretudo a de nosso cérebro aprendemos a ouvir compreender sons e vozes e a reconhecer a grafia dos sons ler As imagens Marilena Chauí 179 verbais são aprendidas por associação em função da freqüência e repetição dos sinais externos que estimulam nossa capacidade motriz e sensorial A palavra ou imagem verbal é uma síntese de imagens motoras e sensoriais armazenadas em nosso cérebro O que levou a essa concepção empirista da linguagem foi o estudo médico de perturbações da linguagem a afasia incapacidade para usar e compreender todas as palavras disponíveis na língua a agrafia incapacidade para escrever ou para escrever determinadas palavras a surdez verbal ouvir as palavras sem conseguir compreendêlas e a cegueira verbal ler sem conseguir entender Os médicos que estudaram essas perturbações concluíram que estavam relacionadas com lesões no cérebro e que portanto a linguagem era um fenômeno físico anatômico e fisiológico do qual não temos consciência desconhecemos suas causas mas de cujos efeitos temos consciência isto é falamos ouvimos escrevemos lemos e compreendemos o sentido das palavras A linguagem seria uma soma de causas físicas e de efeitos psíquicos cujos átomos ou elementos seriam as imagens verbais associadas Os intelectualistas porém apresentam uma concepção muito diferente desta Embora aceitem que a possibilidade para falar ouvir escrever e ler esteja em nosso corpo anatomia e fisiologia afirmam que a capacidade para a linguagem é um fato do pensamento ou de nossa consciência A linguagem dizem eles é apenas a tradução auditiva oral gráfica ou visível de nosso pensamento e de nossos sentimentos A linguagem é um instrumento do pensamento para exprimir conceitos e símbolos para transmitir e comunicar idéias abstratas e valores A palavra dizem eles é uma representação de um pensamento de uma idéia ou de valores sendo produzida pelo sujeito pensante que usa os sons e as letras com essa finalidade O pensamento puro seria silencioso ou mudo e formaria para manifestarse as palavras Duas provas poderiam confirmar essa concepção da linguagem o fato de que o pensamento procura e inventa palavras e o fato de que podemos aprender outras línguas porque o sentido de duas palavras diferentes em duas línguas diferentes é o mesmo e tal sentido é a idéia formada pelo pensamento para representar ou indicar as coisas A grande prova dos intelectualistas contra os empiristas foi a história de Helen Keller Nascida cega surda e muda Helen Keller aprendeu a usar a linguagem sem nunca ter visto as coisas e as palavras sem nunca ter escutado ou emitido um som Se a linguagem dependesse exclusivamente de mecanismos e disposições corporais Helen Keller jamais teria chegado à linguagem Mas chegou E chegou quando compreendeu a relação simbólica entre duas expressões diferentes numa das mãos sentia correr a água de uma torneira enquanto a outra mão na qual segurava uma agulha guiada por sua professora ia traçando a palavra água quando se tornou capaz de compreender que uma mão Convite à Filosofia 180 traduzia o que a outra sentia tornouse capaz de usar a linguagem Assim a linguagem longe de ser um mecanismo instintivo e biológico seria um fato puro da inteligência uma atividade intelectual simbólica e de compreensão uma pura tradução de pensamentos As concepções empirista e intelectualista apesar de suas divergências possuem dois pontos em comum 1 ambas consideram a linguagem como sendo fundamentalmente indicativa ou denotativa isto é os signos lingüísticos ou as palavras servem apenas para indicar coisas 2 ambas consideram a linguagem como um instrumento de representação das coisas e das idéias ou seja as palavras têm apenas uma função ou um uso instrumental representativo Esses dois pontos de concordância fazem com que para as duas correntes filosóficas os aspectos conotativos ou a função conotativa da linguagem seja considerada algo perturbador e negativo Em outros termos o fato de que a comunicação verbal se realize com as palavras assumindo sentidos diferentes dependendo de quem fala e ouve escreve e lê do contexto e das circunstâncias em que as enunciamos é considerado perturbador porque afinal as coisas são sempre o que elas são e as idéias são sempre o que elas são de modo que as palavras deveriam ter sempre um só e mesmo sentido para indicar claramente as coisas e representar claramente as idéias Por esse motivo periodicamente aparecem na Filosofia correntes filosóficas que se preocupam em purificar a linguagem para que ela sirva docilmente às representações conceituais Tais correntes julgam que a linguagem perfeita para o pensamento é a das ciências e particularmente a da matemática e a da física Purificar a linguagem Uma dessas correntes filosóficas desenvolveuse no século passado com o nome de positivismo lógico Os positivistas lógicos distinguiram duas linguagens 1 a linguagem natural isto é aquela que usamos todos os dias e que é imprecisa confusa mescla de elementos afetivos volitivos perceptivos e imaginativos 2 a linguagem lógica isto é uma linguagem purificada formalizada ou seja com enunciados sem conteúdo e avaliadores do conteúdo das linguagens científicas e filosóficas inspirada na matemática e sobretudo na física Essa linguagem obedecia a princípios e regras lógicas precisas e funcionava por meio de operações chamadas cálculos simbólicos semelhantes às operações da matemática que permitiam avaliar com exatidão se um enunciado era verdadeiro ou falso Davase ênfase à sintaxe lógica dos enunciados que asseguraria a verdade representativa e indicativa da linguagem A conotação foi afastada Marilena Chauí 181 A linguagem lógica era uma metalinguagem isto é uma segunda linguagem que falava sobre língua natural e sobre linguagem científica para saber se os enunciados delas eram verdadeiros ou falsos Assim por exemplo na linguagem comum e diária dizemos O livro é de autoria de José Antônio Silva e na metalinguagem lógica diremos A proposição O livro é de autoria de José Antônio Silva é uma proposição verdadeira se e somente se forem preenchidas as condições x y z No entanto descobriuse pouco a pouco que havia expressões lingüísticas que não possuíam caráter denotativo nem representativo e apesar disto eram verdadeiras Descobriuse também que havia inúmeras formas de linguagem que não podiam ser reduzidas aos enunciados lógicos e tipo matemático e físico Descobriuse ainda que a linguagem usa certas expressões para as quais não existe denotação Por exemplo as preposições e as conjunções só têm existência na linguagem e não na realidade Além disso descobriuse que a redução da linguagem ao cálculo simbólico ou lógico despojava de qualquer verdade e de qualquer pretensão ao conhecimento a ontologia a literatura a história bem como várias ciências humanas isto é todas as linguagens que são profundamente conotativas para as quais a multiplicidade de sentido das palavras e das coisas é sua própria razão de ser Crítica ao empirismo e ao intelectualismo As concepções empiristas e intelectualistas também sofreram sérias críticas dos estudiosos da linguagem no campo da psicologia Os psicólogos Goldstein e Gelb fizeram estudos aprofundados da afasia e descobriram situações curiosas Por exemplo ordenase a um afásico Coloque nesta pilha todas as fitas azuis que você encontrar nesta caixa O afásico inicia a separação Ao encontrar uma fita azulclaro ele a coloca na pilha das fitas azuis conforme lhe foi dito mas também passa a colocar ali fitas verdeclaro rosa claro e lilásclaro Os dois psicólogos observaram assim que a palavra azul não formava uma categoria ou uma idéia geral para o afásico e que portanto seu problema de linguagem era também um problema de pensamento No entanto do ponto de vista cerebral ou anatômico a parte do cérebro destinada à inteligência estava perfeita sem nenhuma lesão Com isso compreendeuse que os empiristas estavam enganados e que a linguagem não é um mero conjunto de imagens verbais mas é inseparável de uma visão mais global da realidade e inseparável do pensamento Esses estudos porém não reforçaram a concepção intelectualista como poderíamos supor De fato basta tentarmos imaginar o que seria um pensamento puro mudo silencioso para compreendermos que não seria nada não pensaria nada Não pensamos sem palavras não há pensamento antes e fora da linguagem Convite à Filosofia 182 as palavras não traduzem pensamentos mas os envolvem e os englobam É justamente por isso que a criança aprende a falar e a pensar ao mesmo tempo pois para ela uma coisa se torna conhecida e pensável ao receber um nome Como escreveu MerleauPonty a linguagem é o corpo do pensamento A lingüística e a linguagem Durante o século XIX o estudo da linguagem ou lingüística tinha como preocupação encontrar a origem da linguagem e das línguas considerando o estado presente ou atual de uma língua como resultado ou efeito de causas situadas no passado A linguagem era estudada sob duas perspectivas a da filologia que buscava a história das palavras pelo estudo das raízes com o propósito de chegar a uma única língua original mãe ou matriz de todas as outras e a da gramática comparada que estudava comparativamente as línguas existentes com o propósito de encontrar famílias lingüísticas e chegar à línguamãe original Nesses estudos retomavase a discussão sobre o caráter natural ou convencional da linguagem Também era comum aos filólogos e gramáticos a idéia de que as línguas se transformam no tempo e que as transformações eram causadas por fatores extralingüísticos migrações guerras invasões mudanças sociais e econômicas etc Tais estudos porém viramse diante de problemas que não conseguiam resolver Um desses problemas foi o aparecimento do estudo das flexões tempos verbais maneira de indicar o plural e o singular aumentativos e diminutivos declinações revelando que as línguas mudavam por razões internas e não por fatores externos Essa descoberta teve resultados curiosos Um deles aparecido na Alemanha tomava as flexões como prova de que cada povo tem uma língua diferente porque esta exprimiria o caráter ou o espírito do povo Haveria línguas doces e propícias aos sentimentos profundos como a alemã línguas rudes e mais voltadas para a prosa e a guerra como o latim etc Em suma cada estudioso inventava o caráter da língua segundo as fantasias e ideologias de sua nação e dos nacionalismos da época A partir do século XX uma nova concepção da linguagem foi elaborada pela lingüística e seus pontos principais são a linguagem é constituída pela distinção entre língua e fala ou palavra a língua é uma instituição social e um sistema ou uma estrutura objetiva que existe com suas regras e princípios próprios enquanto a fala ou palavra é o ato individual de uso da língua tendo existência subjetiva por ser o modo como os sujeitos falantes se apropriam da língua e a empregam Assim por exemplo temos a língua portuguesa e a palavra ou fala de Camões Machado de Assis Fernando Pessoa Guimarães Rosa a sua e a minha Marilena Chauí 183 a língua é uma totalidade dotada de sentido no qual o todo confere sentido às partes isto é as partes não existem isoladas nem somadas mas apenas pela posição e função que o todo da língua lhes dá e seu sentido vem dessa posição e dessa função Assim por exemplo os signos r e l só existem nas línguas onde a diferença desses sons tem uma função importante para diferenciar sentidos motivo pelo qual não operam significativamente em chinês e em japonês ou seja os chineses usam l indiferentemente para todas as palavras sejam elas em l ou r os japoneses usam r indiferentemente para todas as palavras sejam elas em l ou r Os signos são os elementos da língua são valores e não coisas ou entidades isto é são o que valem por sua posição e por sua diferença com relação aos demais signos numa língua distinguemse signo e significado ou significante e significado o signo é o elemento verbal material da língua r l p b q g por exemplo enquanto o significado são os conteúdos ou sentidos imateriais afetivos volitivos perceptivos imaginativos evocativos literários científicos retóricos filosóficos políticos religiosos etc veiculados pelos signos o significante é uma cadeia ou um grupo organizado de signos palavras frases orações proposições enunciados que permitem a expressão dos significados e garantem a comunicação a relação dos signos ou significantes com as coisas é convencional e arbitrária mas uma vez constituída a língua como sistema de relações entre signossignificantes e significados a relação com as coisas indicadas nomeadas expressadas ou comunicadas tornase uma relação necessária para todos os falantes da língua Assim por exemplo a distinção entre pa e ba pata e bata é convencional mas uma vez fixada pela língua tornase necessária e inquestionável como as partes signos ou significantes de uma língua recebem seu sentido e sua função pelo lugar que o todo da língua lhes confere essas partes distinguem se umas das outras apenas por suas diferenças e a língua é uma estrutura constituída por diferenças internas ou por oposições pertinentes entre os signos Por exemplo em português existem os signos p e b d e t porque suas diferenças são pertinentes para o sentido das palavras dizer pata e bata dente e tente é dizer sentidos diferentes também existe a oposição pertinente entre o r e o l mas tal oposição ou diferença não existe em japonês e em chinês e por isso como vimos tais signos não existem nessas línguas Por relação com sua própria língua quando um japonês fala o português é levado a usar sempre o r que corresponde a um som ou signo diferencial existente em japonês isto é faz sentido em japonês e a substituir o l por r Quando um chinês fala o português ocorre exatamente o contrário prevalece o l porque este som e signo tem relação com o todo da língua chinesa e o r não Em inglês não existe o signosom ão e assim quando um inglês fala o português tende a usar an e am porque são signossons que fazem sentido em inglês A Convite à Filosofia 184 língua portanto é feita dessas diferenças internas e por isso se diz que os signos são diacríticos e que a língua é uma estrutura diacrítica a língua é um código conjunto de regras que permitem produzir informação e comunicação e se realiza através de mensagens isto é pela falapalavra dos sujeitos que veiculam informações e se comunicam de modo específico e particular a mensagem possui um emissor aquele que emite ou envia a mensagem e um receptor aquele que recebe e decodifica a mensagem isto é entende o que foi emitido o sujeito falante possui duas capacidades a competência isto é sabe usar a língua e a performance isto é tem seu jeito pessoal e individual de usar a língua a competência é a participação do sujeito em uma comunidade lingüística e a performance são os atos de linguagem que realiza a língua se realiza em duas dimensões a sincronia ou seja o todo da língua tomado na simultaneidade ou no seu estado atual ou presente e a diacronia ou seja a língua vista sucessivamente através de suas mudanças no tempo ou de sua história a língua é inconsciente isto é nós a falamos sem ter consciência de sua estrutura de suas regras e seus princípios de suas funções e diferenças internas vivemos nela e com ela e a empregamos sem necessidade de conhecêla cientificamente Alguns exemplos poderão ajudarnos a compreender todos esses pontos Uma língua é como um jogo de xadrez é um todo no qual cada peça tem seu sentido seu lugar e sua função por diferença ou por oposição às demais peças O jogo é uma convenção ou um código com suas regras próprias princípios e leis e cada partida é a maneira como jogadores individuais usam e interpretam as regras leis e princípios gerais do jogo a diferença entre os jogadores e os sujeitos falantes é que estes falam a língua respeitando o código mas sem conhecêlo conscientemente enquanto os jogadores precisam conhecer o código para poder jogar O jogo existe antes e depois de cada partida Cada partida rearranja o tabuleiro e chega a resultados diferentes mas as regras do jogo são sempre as mesmas Em cada partida os jogadores podem jogar porque conhecem o código e porque sabem interpretar os lances um do outro respondendo a cada um deles A lingüística veio mostrar algo muito interessante e que explica por que falar uma língua estrangeira ou traduzir um texto estrangeiro não são coisas simples como julgavam os intelectualistas Por exemplo em inglês é possível dizer The man I love Quando traduzimos para o português temos O homem que amo Observamos que em inglês parece faltar uma palavra o que Notamos também que em inglês parece Marilena Chauí 185 sobrar uma palavra o I o eu que não usamos na frase em português Para um inglês evidentemente não falta e nem sobra nada Este sentimento de falta ou sobra mostra que a diferença entre o inglês e o português não é de vocabulário mas de estrutura lingüística No caso da tradução da palavra inglesa cheese e da palavra francesa fromage para o português queijo temos a impressão de que passamos sem problema de uma língua para outra Mas não é o caso Quando um inglês usa cheese ele está se referindo ou a algo leitoso e cremoso quase sem gosto ou a algo mais duro e forte que se pode comer sem outra coisa O francês por seu turno ao dizer fromage estará pensando em queijos muito diferentes dependendo da região onde mora da hora e do dia em que vai comer o queijo sempre acompanhado de pão e vinho Para um inglês e para um francês queijo jamais poderia ser imaginado junto com um doce enquanto para nós brasileiros queijo de Minas prato requeijão baiano vai bem com goiabada ou com doce de leite com o pão com manteiga e o café com leite Assim dizer cheese não é dizer fromage nem queijo dizer fromage não é dizer cheese nem queijo dizer queijo não é dizer cheese nem fromage Esse segundo exemplo explica o que os lingüistas querem dizer quando afirmam que o momento da criação de um signo cheese fromage queijo é arbitrário ou convencional mas uma vez criado passa a ter um sentido necessário naquela língua cheese é cheese e não é fromage nem queijo Esse exemplo nos mostra também que uma língua é algo social histórico determinado por condições específicas de uma sociedade e de uma cultura A experiência da linguagem Dizer que somos seres falantes significa dizer que temos e somos linguagem que ela é uma criação humana uma instituição sociocultural ao mesmo tempo em que nos cria como humanos seres sociais e culturais A linguagem é nossa via de acesso ao mundo e ao pensamento ela nos envolve e nos habita assim como a envolvemos e a habitamos Ter experiência da linguagem é ter uma experiência espantosa emitimos e ouvimos sons escrevemos e lemos letras mas sem que saibamos como experimentamos sentidos significados significações emoções desejos idéias Após o caminho feito até aqui podemos voltar à definição inicial que demos da linguagem e nela fazer alguns acréscimos Em primeiro lugar teremos que especificar melhor que tipo de signo é o signo lingüístico Por que uma palavra é diferente por exemplo da fumaça que indica fogo Ou se se preferir qual é a diferença entre a fumaçasignodefogo que vejo e a palavra fumaça que pronuncio ou escuto A fumaça é uma coisa que Convite à Filosofia 186 indica outra coisa fogo A palavra fumaça porém é um símbolo isto é algo que indica representa exprime alguma coisa que é de natureza diferente dela O símbolo é um análogo a bandeira simboliza a nação por exemplo e não um efeito da coisa indicada representada ou exprimida O símbolo verbal ou palavra me reenvia a coisas que não são palavras coisas materiais idéias pessoas valores seres inexistentes etc A linguagem é simbólica e pelas palavras nos coloca em relação com o ausente A linguagem é pois inseparável da imaginação Em segundo lugar temos que especificar melhor as várias funções que atribuímos à linguagem indicativa ou denotativa comunicativa expressiva conotativa e para isso precisamos indagar com o que a linguagem se relaciona e nos relaciona Evidentemente diremos que a linguagem nos relaciona com o mundo e com os outros seres humanos Mas como se dá essa relação Essa pergunta como vimos era central para o Positivismo Lógico Por seus erros e acertos ele foi responsável pelo surgimento de uma nova disciplina filosófica a Filosofia da Linguagem intimamente ligada às investigações lógicas transformandose com elas e graças a elas A grande preocupação da Filosofia da Linguagem resumese numa pergunta As palavras realmente dizem as coisas tais como são Descrevem e explicam verdadeiramente a realidade Tradicionalmente diziase que a linguagem possuía a forma de uma relação binária isto é entre dois termos signo verbal coisa indicada realidade signo verbal idéia conceito valor pensamento No entanto é possível perceber que essa relação binária não nos explica por que uma palavra ou um signo verbal indica alguma coisa ou alguma idéia pois se ele fosse simplesmente denotativo ou indicativo e dual não poderia haver o fenômeno da conotação isto é uma mesma palavra indicando coisas e idéias diferentes Tomemos um exemplo a que já nos referimos várias vezes em outros capítulos e que foi muito trabalhado pelo filósofo alemão Frege Estrela da manhã e estrela da tarde indicam Vênus Mas falar na estrela dalva na estrela da tarde na estrela matutina e na estrela vespertina não é a mesma coisa ainda que todas essas expressões se refiram a Vênus Em cada uma dessas expressões o sentido de Vênus muda e esse sentido é expresso pelas palavras que se referem ao mesmo planeta Assim as palavras indicamdenotam alguma coisa mas também a conotam isto é referemse aos sentidos dessa coisa Imaginemos ou recordemos a leitura de um romance Começamos a ler entendendo tudo o que o escritor escreveu porque referimos suas palavras a coisas que já conhecemos a idéias que já possuímos e ao vocabulário comum entre ele e nós Pouco a pouco porém o livro vai ganhando espessura própria Marilena Chauí 187 percebemos as coisas de outra maneira mudamos idéias que já tínhamos vemos surgir pessoas personagens com vida própria e história própria sentimos que as palavras significam de um modo diferente daquele com o qual estamos habituados a usálas todo dia Uma realidade foi criada e penetramos em seu interior exclusivamente pelas mãos do escritor Como isso é possível Como as palavras poderiam criar um mundo se elas apenas fossem sinais para indicar coisas e idéias já existentes Com o romance descobrimos que as palavras se referem a significações inventam significações criam significações Imaginemos ou recordemos um diálogo Quantas vezes conversando com alguém dizemos Puxa Eu nunca tinha pensado nisso ou então Você sabe que agora eu entendo melhor uma idéia que tinha mas que não entendia muito bem ou ainda Você me fez compreender uma coisa que eu sabia e não sabia que sabia Como essas frases são possíveis É que a linguagem tem a capacidade especial de nos fazer pensar enquanto falamos e ouvimos nos faz compreender nossos próprios pensamentos tanto quanto os dos outros que falam conosco Ela nos faz pensar e nos dá o que pensar porque se refere a significados tanto os já conhecidos por outros quanto os já conhecidos por nós bem como os que não conhecíamos por estarmos conversando Esses exemplos nos levam a considerar a linguagem sob uma forma ternária palavra ou signo significante sentido ou significação significado realidade ou mundo coisas pessoas e instituições sociais políticas culturais O mundo suscita sentidos e palavras as significações levam à criação de novas expressões lingüísticas a linguagem cria novos sentidos e interpreta o mundo de maneiras novas Há um vaievem contínuo entre as palavras e as coisas entre elas e as significações de tal modo que a realidade o pensamento e a linguagem são inseparáveis suscitam uns aos outros e interpretamse uns aos outros A linguagem referese ao mundo através das significações e por isso podemos nos relacionar com a realidade através da palavra relacionase com sentidos já existentes e cria sentidos novos e por isso podemos nos relacionar com o pensamento através das palavras exprime e descobre significados e por isso podemos nos comunicar e nos relacionar com os outros tem o poder de suscitar significações de evocar recordações de imaginar o novo ou o inexistente e por isso a literatura é possível Convite à Filosofia 188 A linguagem revela nosso corpo como expressivo e significativo os corpos dos outros como expressivos e significativos as coisas como expressivas e significativas o mundo como dotado de sentido e o pensamento como trabalho de descoberta do sentido As palavras têm sentido e criam sentido Como escreve MerleauPonty A palavra longe de ser um simples signo dos objetos e das significações habita as coisas e veicula significações Naquele que fala a palavra não traduz um pensamento já feito mas o realiza E aquele que escuta recebe pela palavra o próprio pensamento A linguagem não traduz imagens verbais de origem motora e sensorial nem representa idéias feitas por um pensamento silencioso mas encarna as significações Linguagem simbólica e linguagem conceitual A diferença entre linguagem simbólica e linguagem conceitual é o que deve interessarnos agora Fundamentalmente a linguagem simbólica opera por analogias semelhanças entre palavras e sons entre palavras e coisas e por metáforas emprego de uma palavra ou de um conjunto de palavras para substituir outras e criar um sentido poético para a expressão A linguagem simbólica realizase principalmente como imaginação A linguagem conceitual procura evitar a analogia e a metáfora esforçandose para dar às palavras um sentido direto e não figurado ou figurativo Isso não quer dizer que a linguagem conceitual seja puramente denotativa Pelo contrário nela a conotação é essencial mas não possui uma natureza imaginativa ou imagética A linguagem simbólica dos mitos da religião da poesia do romance do teatro e a linguagem conceitual das ciências da filosofia diferem sob os seguintes aspectos a linguagem simbólica é fortemente emotiva e afetiva enquanto a linguagem conceitual procura falar das emoções e dos afetos sem se confundir com eles e sem se realizar por meio deles a linguagem simbólica oferece sínteses imediatas imagens enquanto a linguagem conceitual procede por desconstrução analítica e reconstrução sintética dos objetos fazendo com que acompanhemos cada passo da análise e da síntese a linguagem simbólica nos oferece palavras polissêmicas isto é carregadas de múltiplos sentidos simultâneos e diferentes tanto sentidos semelhantes e em harmonia quanto sentidos opostos e contrários a linguagem conceitual procura diminuir ao máximo a polissemia e a conotação buscando fazer com que cada palavra tenha um sentido próprio e que seus diferentes sentidos dependam do contexto no qual é empregada Marilena Chauí 189 a linguagem simbólica levanos para dentro dela arrastanos para seu interior pela força de seu sentido de suas evocações de sua beleza de seu apelo emotivo e afetivo a linguagem conceitual busca convencernos e persuadirnos por meio de argumentos raciocínios e provas A linguagem simbólica fascina e seduz a linguagem conceitual exige o trabalho lento do pensamento a linguagem simbólica nos dá a conhecer o mundo criando um outro análogo ao nosso porém mais belo ou mais terrível do que o nosso mais justo ou mais violento do que o nosso mais antigo ou mais novo do que o nosso mais visível ou mais oculto do que o nosso a linguagem conceitual busca dizer o nosso mundo decifrando seu sentido ultrapassando suas aparências e seus acidentes a linguagem simbólica privilegiando a memória e a imaginação nos diz como as coisas ou os homens poderiam ter sido ou poderão ser voltandose para um possível passado ou para um possível futuro a linguagem conceitual busca dizer o nosso presente fala do necessário determinando suas causas ou motivos e razões procura também as linhas de força de suas transformações e o campo dos possíveis como possibilidade objetiva e não apenas desejada ou sonhada RESUMINDO A linguagem em sentido amplo isto é englobando língua fala e palavra é constituída por quatro fatores fundamentais 1 fatores físicos anatômicos neurológicos sensoriais que determinam para nós a possibilidade de falar escutar escrever e ler 2 fatores socioculturais que determinam a diferença entre as línguas e entre as línguas dos indivíduos Assim o português e o inglês correspondem a sociedades e culturas diferentes bem como a linguagem de Machado de Assis e de Guimarães Rosa correspondem a momentos diferentes da cultura no Brasil 3 fatores psicológicos emocionais afetivos perceptivos imaginativos lembranças inteligência que criam em nós a necessidade e o desejo da informação e da comunicação bem como criam nossa capacidade para a performance lingüística seja ela cotidiana artística científica ou filosófica 4 fatores lingüísticos propriamente ditos isto é a estrutura e o funcionamento da linguagem que determinam nossa competência e nossa performance enquanto seres capazes de criar e compreender significações Esses fatores nos dizem por que existe linguagem e como ela funciona mas não nos dizem o que é a linguagem É a perspectiva fenomenológica que nos orienta para sabermos não só o que é a linguagem mas também qual é seu papel fundamental no conhecimento a linguagem não é mecanismo psicomotor os fatores 1 e 3 apresentam as condições biológicas e psicológicas para haver linguagem mas não qual é a natureza da experiência da palavra Convite à Filosofia 190 a linguagem não é simples relação binária entre signo e coisa signo e idéia mas é uma relação ternária na qual os signos são símbolos que veiculam significações a linguagem não traduz pensamentos mas participa ativamente da formação e formulação das idéias e dos valores a linguagem é uma forma de nossa experiência total de seres que vivem no mundo e com outros é uma dimensão de nossa existência a linguagem como a percepção e a imaginação pode comprazerse no já dado já dito e já pensado no instituído e estabelecido ficando escrava dos preconceitos e das ideologias pois como disse Platão ela pode ser remédio veneno e máscara Pode bloquear nosso conhecimento e pode produzir desconhecimento mentira desinformação É assim nosso meio de acesso ao mundo aos outros e à verdade mas também o instrumento do engano do falso e da mentira a linguagem cria interpreta e decifra significações podendo fazêlo miticamente ou logicamente magicamente ou racionalmente simbolicamente ou conceitualmente Marilena Chauí 191 Capítulo 6 O pensamento Pensando Certa vez um grego disse O pensamento é o passeio da alma Com isso quis dizer que o pensamento é a maneira como nosso espírito parece sair de dentro de si mesmo e percorrer o mundo para conhecêlo Assim como no passeio levamos nosso corpo a toda parte no pensamento levamos nossa alma a toda parte e mais longe do que o corpo pois a alma não encontra obstáculos físicos para seu caminhar O pensamento é essa curiosa atividade na qual saímos de nós mesmos sem sairmos de nosso interior Por isso outro filósofo escreveu que pensar é a maneira pela qual sair de si e entrar em si são uma só e mesma coisa Como um vôo sem sair do lugar Em nosso cotidiano usamos as palavras pensar e pensamento em sentidos variados e múltiplos Podemos chegar a uma pessoa amiga vêla silenciosa e dizerlhe Por favor digame seu pensamento em que você está pensando Com isso reconhecemos uma atividade solitária invisível para nós e que precisa ser proferida para ser compartilhada Outras vezes porém podemos dizer a essa mesma pessoa Você pensa que não sei o que você está pensando Agora damos a entender que dispomos de sinais alguma coisa que foi dita um gesto um olhar uma expressão fisionômica que nos permitem ver o pensamento de alguém e portanto acreditamos que pensar também se traduz em sinais corporais e visíveis O pensamento é menos solitário e menos secreto do que se poderia supor Algumas vezes chegamos para alguém e indagamos Como é pensou e ouvimos a resposta Sim Vamos fazer o trabalho Ou então Ainda estou pensando no assunto Vamos ver depois Nesses casos pensar é tomado por nós como sinônimo de deliberação e de decisão como algo que resulta numa ação Muitas vezes podem dizernos Você pensa demais não faz bem à saúde Ou ouvimos a frase Ela ficou parada lá na esquina quieta pensando pensando Podemos falar Por mais que pense nisso não consigo acreditar e quanto mais penso menos acredito Agora pensar é visto como preocupação fazendo mal à saúde cisma ficar parada quieta cismando dúvida quanto mais penso menos acredito Convite à Filosofia 192 Alguns jornais costumam publicar algo que alguém disse com o título O pensamento do dia é querendo dizer com isso que uma determinada idéia definindo algum assunto foi publicamente anunciada Essa mesma identificação entre pensamento e idéia pode aparecer quando por exemplo um crítico literário escreve O livro de Fulano tem alguns bons pensamentos mas tem outros banais classificando idéias em boas e banais isto é umas que dizem algo novo e interessante e outras que repetem lugarescomuns ou frivolidades Supomos dessa maneira que há bons e maus pensamentos tanto assim que falamos em pensamento positivo e em afastar os maus pensamentos Um professor pode criticar o trabalho de um aluno dizendolhe Esse trabalho mostra que você não quis pensar Aqui pensar não é só ter idéias mas também algo que se pode querer ou não querer algo voluntário e deliberado uma forma de atenção e concentração Essa imagem de concentração aparece por exemplo quando alguém se zanga e diz Querem por favor fazer silêncio Não estão vendo que estou pensando E já mencionamos o célebre Penso logo existo Cogito ergo sum de Descartes e a definição do homem como caniço pensante feita por Pascal Aqui pensar e pensamento indicam a própria essência da natureza humana O que dizem os dicionários Se procurarmos pensar e pensamento nos dicionários notaremos que os vários sentidos dados a esses termos recobrem os exemplos que demos do uso dessas palavras em nosso cotidiano e ainda acrescentam alguns outros sentidos Pensar dizem os dicionários significa 1 aplicar a atividade do espírito aos elementos fornecidos pelo conhecimento formar e combinar idéias julgar refletir raciocinar especular 2 exercer a inteligência meditar ver 3 exercer o espírito ou a atividade consciente de uma maneira global sentir querer refletir 4 ter uma opinião uma convicção 5 supor presumir crer admitir suspeitar achar 6 esperar tencionar 7 preocuparse 8 avaliar 9 cismar Pensamento de acordo com os dicionários significa 1 o ato de refletir meditar ou pensar ou o processo mental que se concentra em idéias 2 a atividade de conhecimento ou tendo por objeto o conhecimento 3 consciência mente espírito entendimento intelecto razão 4 poder de formular idéias e conceitos 5 faculdade de pensar logicamente raciocínio ponto de vista formulação de um juízo 6 aquilo que é pensado ou o resultado do ato de pensar idéia ponto de vista opinião juízo 7 fantasia sonho devaneio lembrança recordação cuidado preocupação expectativa 8 conjunto das idéias ou doutrina de um pensador de uma sociedade de um grupo de uma coletividade Assim no exemplo Você pensa demais não é bom para a saúde pensar e pensamento significam preocupação no exemplo Por mais que pense nisso não acredito que seja assim pensar e pensamento significam cisma e dúvida no Marilena Chauí 193 exemplo Ainda estou pensando no assunto pensar e pensamento significam formar uma opinião ou um ponto de vista no exemplo Acabem com esse barulho não estão vendo que estou pensando pensar e pensamento significam atividade mental ou intelectual para formular uma idéia ou um conceito Se eu disser Penso que ela virá estou exprimindo uma expectativa se disser Penso que você sabe disso estou exprimindo uma suposição se disser Pensei nele a noite inteira nem pude dormir estou exprimindo preocupação se disser Eu a vi perdida em pensamentos quero dizer que vi alguém cismando fantasiando imaginando Mas se eu disser A teoria da relatividade resulta do trabalho do pensamento de Einstein estou dizendo que o pensamento é uma atividade intelectual de produção de conhecimentos Quando procuramos a origem das palavras pensamento e pensar descobrimos que procedem de um verbo latino o verbo pendere que significa ficar em suspenso estar ou ficar pendente ou pendurado suspender pesar pagar examinar avaliar ponderar compensar recompensar e equilibrar Pensar portanto é suspender o julgamento até formar uma idéia ou opinião pesar comparar idéias opiniões pontos de vista avaliar julgar o valor de uma idéia ou opinião ou seja se é verdadeira ou falsa justa ou injusta adequada ou inadequada examinar idéias opiniões juízos pontos de vista ponderar isto é pesar idéias e pontos de vista para escolher um deles equilibrar encontrar o meiotermo entre extremos ou entre opostos Pensare derivandose de pendere caracterizase mais como uma atividade sobre idéias opiniões juízos e pontos de vista já existentes do que como criação ou produção de uma idéia ou ponto de vista Por esse motivo quando lemos os textos filosóficos antigos e modernos escritos em latim notamos que não usam pendere e pensare para dizer pensar mas empregam dois outros verbos cogitare e intelligere Cogitare significa considerar atentamente e meditar Esse verbo vem do outro agere que significa empurrar para diante de si e também do verbo agitare que significa empurrar para frente com força agitar Pensar enquanto cogitare é colocar diante de si alguma coisa para considerála com atenção ou forçar alguma coisa a ficar diante de nós para ser examinada O verbo intelligere vem da composição de duas outras palavras inter isto é entre e legere que significa colher reunir recolher escolher e ler isto é reunir as letras com os olhos Por isso intelligere significa escolher entre reunir entre vários apanhar aprender compreender ler entre ler dentro de Donde conhecer e entender Se reunirmos os vários sentidos dos três verbos pensare cogitare e intelligere veremos que pensar e pensamento sempre significam atividades que exigem atenção pesar avaliar equilibrar colocar diante de si para considerar reunir e Convite à Filosofia 194 escolher colher e recolher O pensamento é assim uma atividade pela qual a consciência ou a inteligência coloca algo diante de si para atentamente considerar avaliar pesar equilibrar reunir compreender escolher entender e ler por dentro Isso explica todos os sentidos que vimos surgir nos dicionários da língua portuguesa e nos exemplos que demos meditar concentrarse cismar opinar ter idéias compreender as coisas raciocinar formular conceitos ter um ponto de vista refletir avaliar preocuparse O pensamento é a consciência ou a inteligência saindo de si passeando para ir colhendo reunindo recolhendo os dados oferecidos pela experiência pela percepção pela imaginação pela memória pela linguagem e voltando a si para considerálos atentamente colocálos diante de si observálos intelectualmente pesálos avaliálos retirando deles conclusões formulando com eles idéias conceitos juízos raciocínios valores O pensamento exprime nossa existência como seres racionais e capazes de conhecimento abstrato e intelectual e sobretudo manifesta sua própria capacidade para dar a si mesmo leis normas regras e princípios para alcançar a verdade de alguma coisa Experiências de pensamento Muitas vezes nos acontece de passarmos horas matutando cismando querendo compreender alguma coisa que nos escapa Fazemos nossas atividades de todo dia mas parecemos distraídos porque nossa atenção está concentrada noutra parte naquilo que estamos querendo compreender e não conseguimos Cansados paramos de cismar e de dar atenção ao assunto De repente com susto e alegria quase gritamos Entendi Sentimos o mesmo que quando completamos um quebracabeça todas as peças em seus devidos lugares a figura bem visível diante de nós Tivemos uma experiência de pensamento Outras vezes assistindo a uma aula lendo um livro científico fazendo um trabalho no laboratório resolvendo um problema no computador vamos acompanhando passo a passo as idéias os encadeamentos dos raciocínios as relações de causa e efeito entre certas coisas as conseqüências de uma afirmação e de uma negação e finalmente a conclusão a que chegam a aula o livro o trabalho no laboratório ou no computador Ao término de cada uma dessas atividades temos consciência de que aprendemos alguma coisa que não sabíamos e que fizemos um percurso para conhecêla e compreendêla Tivemos uma experiência de pensamento Em certas ocasiões dialogando com uma outra pessoa a conversa vai fazendo surgir idéias nas quais eu nunca havia pensado ou vai fazendo com que eu perceba que algumas idéias que julgava claras e corretas não são assim são confusas e incorretas Falando com a outra pessoa vou desenvolvendo idéias que Marilena Chauí 195 eu nem sabia que tinha e que foram despertadas em mim por alguma coisa que o outro me disse Clarifico algumas corrijo outras abandono outras tantas descubro novas tiro conclusões ou me encho de perplexidade Tive uma experiência de pensamento Quando pensamos pomos em movimento o que nos vem da percepção da imaginação da memória apreendemos o sentido das palavras encadeamos e articulamos significações algumas vindas de nossa experiência sensível outras de nosso raciocínio outras formadas pelas relações entre imagens palavras lembranças e idéias anteriores O pensamento apreende compara separa analisa reúne ordena sintetiza conclui reflete decifra interpreta interroga A inteligência A psicologia costuma definir a inteligência por sua função considerandoa uma atividade de adaptação ao ambiente através do estabelecimento de relações entre meios e fins para a solução de um problema ou de uma dificuldade Essa definição concebe portanto a inteligência como uma atividade eminentemente prática e a distingue de duas outras que também possuem finalidade adaptativa e relacionam meios e fins o instinto e o hábito Compartilhamos o instinto e o hábito com os animais O instinto por exemplo nos leva automaticamente a contrair a pupila quando nossos olhos estão muito expostos à luz e a dilatála quando estamos na escuridão levanos a afastar rapidamente a mão de uma superfície muito quente que possa queimarnos O instinto é inato Ao contrário o hábito é adquirido mas como o instinto tende a realizarse automaticamente Por exemplo quem adquire o hábito de dirigir um veículo muda as marchas pisa na embreagem no acelerador ou no freio sem precisar pensar nessas operações quem aprende a patinar ou a nadar realiza maquinalmente os gestos necessários depois de adquirilos Instinto e hábito são formas de comportamento cuja principal característica é serem especializados ou específicos a abelha sabe fazer a colméia mas é incapaz de fazer o ninho o joãodebarro constrói uma casa mas é incapaz de fazer uma colméia posso aprender a nadar mas esse hábito não me faz saber andar de bicicleta O instinto e o hábito especializam as funções os meios e os fins e não possuem flexibilidade para mudálos ou para adaptar um novo meio para um novo fim nem para usar meios novos para um fim já existente A tendência do instinto ou do hábito é a repetição e o automatismo das respostas aos problemas A inteligência difere do instinto e do hábito por sua flexibilidade pela capacidade de encontrar novos meios para um novo fim ou de adaptar meios existentes para uma finalidade nova pela possibilidade de enfrentar de maneira diferente situações novas e inventar novas soluções para elas pela capacidade de escolher entre vários meios possíveis e entre vários fins possíveis Nesse nível Convite à Filosofia 196 prático a inteligência é capaz de criar instrumentos isto é de dar uma função nova e um sentido novo a coisas já existentes para que sirvam de meios a novos fins Compartilhamos a inteligência prática com alguns animais especialmente com os chimpanzés O psicólogo Köhler fez experiências com alguns desses animais e demonstrou que eram capazes de comportamentos inteligentes colocado um chimpanzé numa pequena sala põese a seu lado um certo número de caixotes e prendese uma banana no teto Após saltos instintivos infrutíferos para a agarrar a banana o chimpanzé consegue empilhar os caixotes subir neles e agarrar o alimento colocado um chimpanzé numa pequena sala nas mesmas circunstâncias anteriores mas oferecendo bambus em vez de caixotes o chimpanzé termina por encaixar os bambus uns nos outros formando um instrumento para apanhar a banana Os gestaltistas explicam o comportamento do chimpanzé mostrando que ele se comporta percebendo um campo perceptivo no qual a banana os caixotes e os bambus formam uma totalidade e se relacionam enquanto partes de um todo de modo que os caixotes e os bambus são percebidos como parte da paisagem e como meios para um fim agarrar a banana O fato de que o chimpanzé percebe um campo perceptivo e não objetos isolados é demonstrado quando no lugar dos bambus são colocados arames que o animal enganchará uns nos outros para colher a fruta ou quando no lugar dos caixotes são colocadas mesinhas de tamanhos diferentes que podem ser empilhadas pelo animal para agarrar a banana No entanto observase algo interessante Depois de comer a banana o chimpanzé nada faz com os caixotes os bambus os arames ou as mesas Ficam à sua volta como objetos sem sentido Ao contrário uma criança nas mesmas circunstâncias depois de conseguir apanhar um doce por exemplo examinará os objetos Se descobrir que são desmontáveis ela tentará fazer com os caixotes e as mesas uma escada e com os bambus e os arames uma rede Essa diferença nos comportamentos do chimpanzé e da criança revela que esta última ultrapassa a situação imediata de fome e de uso direto dos objetos e prevê uma situação futura para a qual encontra uma solução transformando os objetos em instrumentos propriamente ditos A criança antecipa uma situação e transforma os dados de uma situação presente fabricando meios para certos fins que ainda estão ausentes Ela se lembra da situação passada espera a situação futura organiza a situação presente a partir dos dados lembrados esperados e percebidos imagina uma situação nova e responde a ela mesmo que ainda esteja ausente Marilena Chauí 197 A criança se relaciona com o tempo e transforma seu espaço por essa relação temporal A criança representa seu mundo e atua praticamente sobre ele Sua inteligência difere portanto da do animal Inteligência e linguagem Não somos dotados apenas de inteligência prática ou instrumental mas também de inteligência teórica e abstrata Pensamos O exercício da inteligência como pensamento é inseparável da linguagem como já vimos pois a linguagem é o que nos permite estabelecer relações concebêlas e compreendêlas Graças às significações escada e rede a criança pode pensar nesses objetos e fabricálos A linguagem articula percepções e memórias percepções e imaginações oferecendo ao pensamento um fluxo temporal que conserva e interliga as idéias O psicólogo Piaget estudando a gênese da inteligência nas crianças mostrou como a aquisição da linguagem e a do pensamento caminham juntas Assim por exemplo uma criança de quatro anos ainda não é capaz de pensar relações reversíveis ou recíprocas porque não domina a linguagem desse tipo de relações Se se perguntar a ela Você tem um irmão ela responderá Sim Se continuarmos a perguntar Quem é o seu irmão ela responderá Pedrinho No entanto se lhe perguntarmos Pedrinho tem uma irmã ela dirá Não pois a linguagem que ela possui permitelhe estabelecer relações entre ela e o mundo mas não entre o mundo e ela A inteligência humana enquanto atividade mental e de linguagem pode ser definida como a capacidade para enfrentar ou colocar diante de si problemas práticos e teóricos para os quais encontra elabora ou concebe soluções seja pela criação de instrumentos práticos as técnicas seja pela criação de significações idéias e conceitos Caracterizase pela flexibilidade plasticidade e inovação bem como pela possibilidade de transformar a própria realidade trabalho artes técnicas ações políticas etc A inteligência se realiza portanto como conhecimento e ação O conhecimento inteligente apreende o sentido das palavras interpretao inventa novos sentidos para palavras antigas ou cria novas palavras para novos sentidos O movimento de conhecer é pois um movimento cujo corpo é a linguagem Graças a ela compartilhamos com outros os nossos conhecimentos e recebemos de outros os conhecimentos Comunicação informação memória cultural transmissão inovação e ruptura eis o que a linguagem permite à inteligência Clarificação organização ordenamento análise interpretação compreensão síntese articulação eis o que a inteligência oferece à linguagem Convite à Filosofia 198 Inteligência e pensamento A inteligência colhe recolhe e reúne os dados oferecidos pela percepção pela imaginação pela memória e pela linguagem formando redes de significações com as quais organizamos e ordenamos nosso mundo e nossa vida recebendo e doando sentido a eles O pensamento porém vai além do trabalho da inteligência abstrai ou seja separa os dados das condições imediatas de nossa experiência e os elabora sob a forma de conceitos idéias e juízos estabelecendo articulações internas e necessárias entre eles pelo raciocínio indução e dedução pela análise e pela síntese Formula teorias procura proválas e verificálas pois está voltado para a verdade do conhecimento Um conceito ou uma idéia é uma rede de significações que nos oferece o sentido interno e essencial daquilo a que se refere os nexos causais ou as relações necessárias entre seus elementos de sorte que por eles conhecemos a origem os princípios as conseqüências as causas e os efeitos daquilo a que se refere O conceito ou idéia nos oferece a essênciasignificação necessária de alguma coisa sua origem ou causa suas conseqüências ou seus efeitos seu modo de ser e de agir Assim por exemplo vejo rosas margaridas girassóis Mas concebo pelo pensamento o conceito ou a idéia universal de flor Sinto corpos quentes mornos frios gelados sinto o frio da neve o calor do Sol a tepidez agradável da água do mar ou da piscina Mas concebo pelo pensamento o conceito ou idéia de temperatura Vejo uma bola no conjunto musical toco um triângulo escrevo sobre uma mesa cujo tampo tem quatro lados iguais Mas pelo pensamento concebo o conceito ou a idéia de esfera ou círculo de triângulo de quadrado Vou além pelo puro pensamento formulo o conceito de figura geométrica e das leis que a regem elaborando axiomas postulados e teoremas Os conceitos ou idéias são redes de significações cujos nexos um ligações são expressos pelo pensamento através dos juízosi pelos quais estabelecemos os elos internos e necessários entre um ser e as qualidades as propriedades os atributos que lhe pertencem assim como aqueles predicados que lhe são acidentais e que podem ser retirados sem que isso afete o sentido e a realidade de um ser Um conjunto de juízos constitui uma teoria quando estabelece com clareza um campo de objetos e os procedimentos para conhecê los e enunciálos organizamse e ordenamse os conceitos articulamse e demonstramse os juízos verificando seu acordo com regras e princípios de racionalidade e demonstração Teoria é explicação descrição e interpretação geral das causas formas modalidades e relações de um campo de objetos conhecidos graças a conhecimentos específicos próprios à natureza dos objetos investigados Marilena Chauí 199 O pensamento elabora teorias ou seja uma explicação ou interpretação intelectual de um conjunto de fenômenos e significações objetos fatos situações acontecimentos que estabelece a natureza o valor e a verdade de tais fenômenos Por isso falamos em teoria da relatividade teoria genética teoria aristotélica teoria psicanalítica etc Uma teoria pode ou não nascer diretamente de uma prática e ter ou não uma aplicação prática direta mas não é a prática que permite determinar a verdade ou falsidade teórica e sim critérios internos à própria teoria seja sua correspondência com as coisas teorizadas seja a coerência interna de seus argumentos seus raciocínios suas demonstrações e suas provas seja enfim a consistência lógica de suas significações A prática orienta o trabalho teórico verifica suas conclusões mas não determina sua verdade ou falsidade O pensamento propõe e elabora teorias e cria métodos A necessidade do método A palavra método vem do grego methodos composta de meta através de por meio de e de hodos via caminho Usar um método é seguir regular e ordenadamente um caminho através do qual uma certa finalidade ou um certo objetivo é alcançado No caso do conhecimento é o caminho ordenado que o pensamento segue por meio de um conjunto de regras e procedimentos racionais com três finalidades 1 conduzir à descoberta de uma verdade até então desconhecida 2 permitir a demonstração e a prova de uma verdade já conhecida 3 permitir a verificação de conhecimentos para averiguar se são ou não verdadeiros O método é portanto um instrumento racional para adquirir demonstrar ou verificar conhecimentos Por que se sente a necessidade de um método Porque como vimos o erro a ilusão o falso a mentira rondam o conhecimento interferem na experiência e no pensamento Para dar segurança ao conhecimento o pensamento cria regras e procedimentos que permitam ao sujeito cognoscente aferir e controlar todos os passos que realiza no conhecimento de algum objeto ou conjunto de objetos A Filosofia conheceu diferentes concepções de método Platão por exemplo considerava que o melhor caminho para o conhecimento verdadeiro era o que permitia ao pensamento libertarse do conhecimento sensível crenças opiniões isto é das imagens e aparências das coisas Atribuía esse papel liberador à discussão racional sob a forma do diálogo No diálogo os interlocutores guiados pelas perguntas do filósofo no caso Sócrates examinam e discutem opiniões que cada um deles possui sobre alguma Convite à Filosofia 200 coisa descobrem que suas opiniões são contraditórias e não levam a conhecimento algum Aceitam abandonálas e conseguem pouco a pouco chegar à idéia universal ou à essência da coisa procurada Por se tratar de um confronto entre imagens e opiniões contrárias ou contraditórias esse método ou caminho era chamado por Platão de dialética discussão de teses contrárias e em conflito ou oposição Aristóteles no entanto considerou a dialética inadequada ao pensamento pois dizia ele tal procedimento lida com meras opiniões prováveis não oferecendo qualquer garantia de que tenhamos superado o conflito de opiniões e alcançado a essência verdadeira da coisa investigada Por esse motivo definiu o procedimento filosóficocientífico como um método demonstrativo que se realiza por meio de silogismos O silogismo é um conjunto de três juízos ou proposições que permite obter uma conclusão verdadeira Tratase de um método dedutivo no qual de duas premissas deduzse uma conclusão Por exemplo Todos os homens são mortais Sócrates é homem Logo Sócrates é mortal Aristóteles considerava porém que os objetos que são conhecidos por experiência e não só pelo puro pensamento deveriam seguir um método indutivo no qual o silogismo seria o resultado final conseguido pelo conhecimento Durante a modernidade isto é a partir do século XVII a necessidade de um método tornouse ainda mais imperiosa do que antes pois como vimos o sujeito do conhecimento não sabe se pode alcançar a verdade O sujeito do conhecimento descobrese como uma consciência que parece não poder contar com o auxílio do mundo para guiálo desconfia dos conhecimentos sensíveis e dos conhecimentos herdados Está só Conta apenas com seu próprio pensamento Separado do mundo isolado com suas percepções opiniões idéias sua solidão torna indispensável um método que possa guiar o pensamento em direção aos conhecimentos verdadeiros e distinguilos dos falsos Eis porque Descartes escreve o Discurso do método e as Regras para a direção do espírito Sobre o método diz ele na regra IV das Regras Por método entendo regras certas e fáceis graças às quais todos os que as observem exatamente jamais tomarão como verdadeiro aquilo que é falso e chegarão sem se cansar com esforços inúteis e aumentando progressivamente sua ciência ao conhecimento verdadeiro de tudo o que lhes é possível esperar Descartes enuncia portanto as três principais características das regras do método Marilena Chauí 201 1 certas o método dá segurança ao pensamento 2 fáceis o método economiza esforços inúteis e 3 que permitam alcançar todos os conhecimentos possíveis para o entendimento humano Por sua vez Francis Bacon definiu o método como o modo seguro e certo de aplicar a razão à experiência isto é de aplicar o pensamento lógico aos dados oferecidos pelo conhecimento sensível O método nas várias formulações que recebeu no correr da história da Filosofia e das ciências sempre teve o papel de um regulador do pensamento isto é de aferidor e avaliador das idéias e teorias guia o trabalho intelectual produção das idéias dos experimentos das teorias e avalia os resultados obtidos Desde Aristóteles a Filosofia considera que ao lado de um método geral que todo e qualquer conhecimento deve seguir tanto para a aquisição quanto para a demonstração e verificação de verdades outros métodos particulares são necessários pois os objetos a serem conhecidos também exigem métodos que estejam em conformidade com eles e assim haverá diferentes métodos conforme a especificidade do objeto a ser conhecido Dessa maneira são diferentes entre si os métodos da geometria e da física da biologia e da sociologia da história e da química e assim por diante É interessante notar todavia que em certos períodos da história da Filosofia e das ciências chegouse a pensar num método único que ofereceria os mesmos princípios e as mesmas regras para todos os campos do conhecimento Assim por exemplo Galileu julgou que o método matemático deveria ser usado em todos os conhecimentos da Natureza pois dizia ele A Natureza é um livro escrito em caracteres matemáticos Descartes indo mais longe que Galileu julgou que um só e mesmo método deveria ser empregado pela Filosofia e por todas as ciências uma mathesis universalis ou o conhecimento da ordem necessárias das idéias válida para todos os objetos de conhecimento Conhecer seria ordenar e encadear em nexos contínuos as idéias referentes a um objeto e tal procedimento deveria ser o mesmo em todos os conhecimentos porque esse é o modo próprio do pensamento seja qual for o objeto a ser conhecido Os filósofos e cientistas do final do século XIX também afirmavam que um método único deveria ser seguido Entusiasmados com os desenvolvimentos da física julgaram que todos os campos do saber deveriam empregar o método usado pela ciência da Natureza mesmo quando o objeto fosse o homem Agora não era tanto a idéia de ordenamento interno das idéias que levava à defesa de um único método de conhecimento mas a idéia da causalidade ou de explicação causal de todos os fatos fossem eles naturais ou humanos Convite à Filosofia 202 Hoje porém sobretudo com a fenomenologia de Husserl e com a corrente do pensamento conhecida como estruturalismo considerase que cada campo do conhecimento deva ter seu método próprio determinado pela natureza do objeto pela forma como o sujeito do conhecimento pode aproximarse desse objeto e pelo conceito de verdade que cada esfera do conhecimento define para si própria Assim por exemplo considerase o método matemático isto é dedutivo próprio para objetos que existem apenas idealmente e que são construídos inteiramente pelo nosso pensamento ao contrário o método experimental isto é indutivo é próprio das ciências naturais que observam seus objetos e realizam experimentos Já as ciências humanas têm métodos de compreensão e de interpretação do sentido das ações das práticas dos comportamentos das instituições sociais e políticas dos sentimentos dos desejos das transformações históricas pois o homem objeto dessas ciências é um ser históricocultural que produz as instituições e o sentido delas Tal sentido é o que precisa ser conhecido No caso das ciências exatas as matemáticas o método é chamado axiomático isto é baseia o conhecimento num conjunto de termos primitivos e de axiomas que são o ponto de partida da construção e demonstração dos objetos No caso das ciências naturais física química biologia etc o método é chamado experimental e hipotético Experimental porque se baseia em observações e em experimentos tanto para formular quanto para verificar as teorias Hipotético porque os cientistas partem de hipóteses sobre os objetos que guiam os experimentos e a avaliação dos resultados No caso das ciências humanas psicologia sociologia antropologia história etc o método é chamado compreensivointerpretativo porque seu objeto são as significações ou os sentidos dos comportamentos das práticas e das instituições realizadas ou produzidas pelos seres humanos Quanto à Filosofia embora os filósofos tenham oscilado entre vários métodos possíveis atualmente quatro traços são comuns aos diferentes métodos filosóficos 1 o método é reflexivo parte da autoanálise ou do autoconhecimento do pensamento 2 é crítico investiga os fundamentos e as condições necessárias da possibilidade do conhecimento verdadeiro da ação ética da criação artística e da atividade política 3 é descritivo descreve as estruturas internas ou essências de cada campo de objetos do conhecimento e das formas de ação humana Marilena Chauí 203 4 é interpretativo busca as formas da linguagem e as significações ou os sentidos dos objetos dos fatos das práticas e das instituições suas origens e transformações Pensamento mítico e pensamento lógico No capítulo anterior vimos que a língua grega possuía duas palavras para referir se à linguagem mythos e logos Vimos também tanto no estudo da linguagem quanto no da inteligência que falar e pensar são inseparáveis Por isso mesmo podemos referirnos a duas modalidades do pensamento conforme predomine o mythos ou o logos A tradição filosófica sobretudo a partir do século XVIII com a filosofia da Ilustração e do século XIX com a filosofia da história de Hegel e o positivismo de Comte afirmava que do mito à lógica havia uma evolução do espírito humano isto é o mito era uma fase ou etapa do espírito humano e da civilização que antecedia o advento da lógica ou do pensamento lógico considerado a etapa posterior e evoluída do pensamento e da civilização Essa tradição filosófica fez crer que o mito pertenceria a culturas inferiores primitivas ou atrasadas enquanto o pensamento lógico ou racional pertenceria a culturas superiores civilizadas e adiantadas Essa separação temporal e evolutiva de duas modalidades de pensamento fazia com que se julgasse a presença em nossas sociedades de explicações míticas isto é as religiões a literatura as artes como uma espécie de resíduo ou resto de uma fase passada da evolução da humanidade destinada a desaparecer com a plena evolução da racionalidade científica e filosófica Hoje porém sabese que a concepção evolutiva está equivocada O pensamento mítico pertence ao campo do pensamento simbólico e da linguagem simbólica que coexistem com o campo do pensamento e da linguagem conceituais Duas linhas de estudos mostraram essa coexistência embora essas duas modalidades de pensamento e de linguagem sejam não só diferentes mas também freqüentemente contrárias e opostas A primeira linha vem da antropologia social que estuda os mitos das sociedades ditas selvagens e também as mitologias de nossas sociedades ditas civilizadas Os antropólogos mostraram que no caso de nossas sociedades a presença simultânea do conceitual e do mítico decorre do modo como a imaginação social transforma em mito aquilo que o pensamento conceitual elabora nas ciências e na Filosofia Basta ver o caráter mágicomaravilhoso dado aos satélites e computadores para vermos a passagem da ciência ao mito A segunda linha vem da neurologia e da análise da anatomia e da fisiologia do cérebro humano mostrando que esse órgão possui duas partes ou dois hemisférios num deles localizandose a linguagem e o pensamento simbólicos e noutro a linguagem e o pensamento conceituais Certas pessoas como os Convite à Filosofia 204 artistas desenvolvem mais o hemisfério simbólico enquanto outras como os cientistas desenvolvem mais o hemisfério conceitual e lógico Assim a predominância de uma ou outra forma do pensamento depende por um lado das tendências pessoais e da história da vida dos indivíduos e de outro lado do modo como uma sociedade ou uma cultura recorrem mais a uma do que à outra forma para interpretar a realidade intervir no mundo e explicarse a si mesma Numa passagem célebre de uma de suas obras Marx dizia que o mito de Zeus portador de raios trovões e tempestades não mais poderia funcionar numa sociedade que inventou o páraraios isto é descobriu cientificamente a eletricidade Mas o próprio Marx mostrou como tal sociedade cria novos mitos adaptados à era da máquina e da tecnologia Como o mito funciona O antropólogo Claude LéviStrauss estudou o pensamento selvagem para mostrar que os chamados selvagens não são atrasados nem primitivos mas operam com o pensamento mítico O mito e o rito escreve LéviStrauss não são lendas nem fabulações mas uma organização da realidade a partir da experiência sensível enquanto tal Para explicar a composição de um mito LéviStrauss se refere a uma atividade que existe em nossa sociedade e que em francês se chama bricolage Que faz um bricoleur ou seja quem pratica bricolage Produz um objeto novo a partir de pedaços e fragmentos de outros objetos Vai reunindo sem um plano muito rígido tudo o que encontra e que serve para o objeto que está compondo O pensamento mítico faz exatamente a mesma coisa isto é vai reunindo as experiências as narrativas os relatos até compor um mito geral Com esses materiais heterogêneos produz a explicação sobre a origem e a forma das coisas suas funções e suas finalidades os poderes divinos sobre a Natureza e sobre os humanos O mito possui assim três características principais 1 função explicativa o presente é explicado por alguma ação passada cujos efeitos permaneceram no tempo Por exemplo uma constelação existe porque no passado crianças fugitivas e famintas morreram na floresta e foram levadas ao céu por uma deusa que as transformou em estrelas as chuvas existem porque nos tempos passados uma deusa apaixonouse por um humano e não podendo unirse a ele diretamente uniuse pela tristeza fazendo suas lágrimas caírem sobre o mundo etc 2 função organizativa o mito organiza as relações sociais de parentesco de alianças de trocas de sexo de idade de poder etc de modo a legitimar e garantir a permanência de um sistema complexo de proibições e permissões Por exemplo um mito como o de Édipoii existe com narrativas diferentes em quase todas as sociedades selvagens e tem a função de garantir a proibição do incesto Marilena Chauí 205 sem a qual o sistema sociopolítico baseado nas leis de parentesco e de alianças não pode ser mantido 3 função compensatória o mito narra uma situação passada que é a negação do presente e que serve tanto para compensar os humanos de alguma perda como para garantirlhes que um erro passado foi corrigido no presente de modo a oferecer uma visão estabilizada e regularizada da Natureza e da vida comunitária Por exemplo entre os mitos gregos encontrase o da origem do fogo que Prometeu roubou do Olimpo para entregar aos mortais e permitirlhes o desenvolvimento das técnicas Numa das versões desse mito narrase que Prometeu disse aos homens que se protegessem da cólera de Zeus realizando o sacrifício de um boi mas que se mostrassem mais astutos do que esse deus comendo as carnes e enviandolhe as tripas e gorduras Zeus descobriu a artimanha e os homens seriam punidos com a perda do fogo se Prometeu não lhes ensinasse uma nova artimanha colocar perfumes e incenso nas partes dedicadas ao deus Com esse mito narrase o modo como os humanos se apropriaram de algo divino o fogo e criaram um ritual o sacrifício de um animal com perfumes e incenso para conservar o que haviam roubado dos deuses Como opera o pensamento mítico Antes de tudo pela reunião de heterogêneos O mito reúne junta relaciona e faz elementos diferentes e heterogêneos agirem uns sobre os outros Por exemplo corpos de crianças são estrelas lágrimas de uma deusa são chuva o dia é o carro do deus Apolo a noite é o manto de uma deusa o tempo é um deus na mitologia grega Cronos etc Em segundo lugar o mito organiza a realidade dando às coisas aos fatos às instituições um sentido analógico e metafórico isto é uma coisa vale por outra substitui outra representa outra No mito de Édipo por exemplo os pés e o modo de andar têm um significado analógico metafórico e simbólico muito preciso Labdáco avô de Édipo quer dizer coxo Laio pai de Édipo quer dizer pé torto Édipo quer dizer pé inchado Essa referência aos pés e ao modo de andar é uma referência da relação dos humanos com o solo e portanto com a terra e simboliza ou metaforiza uma questão muito grave os humanos nasceram da terra ou da união de um homem e de uma mulher Se da terra deveriam ser imortais No entanto morrem Para exprimir a angústia de serem mortais e que os humanos portanto nasceram de um homem e de uma mulher e não da terra o mito simboliza a mortalidade através da dificuldade para se relacionar com a terra isto é para andar coxo torto inchado Para exprimir a dificuldade de aceitar uma origem humana mortal o mito simboliza a fragilidade das leis humanas fazendo Laio mandar Convite à Filosofia 206 matar seu filho Édipo Édipo assassinar seu pai Laio e casarse com sua mãe Jocasta Em terceiro lugar o mito estabelece relações entre os seres naturais e humanos seja fazendo humanos nascerem por exemplo de animais seja fazendo os astros decidirem a sorte e o destino dos humanos como na astrologia seja fazendo cores metais e pedras definirem a natureza de um humano como a magia por exemplo Coisas e humanos se relacionam por participação simpatia antipatia por formas secretas de ação à distância O mundo é um tecido de laços e vínculos secretos que precisam ser decifrados e sobre os quais os homens podem adquirir algum poder por meio da imitação vestir peles de animais fabricar talismãs ficar em certas posições plantar fazendo certos gestos pronunciar determinadas palavras O mito decifra o secreto O rito imita o poder Analogias e metáforas formam símbolos isto é imagens carregadas e saturadas de sentidos múltiplos e simultâneos servindo para explicar coisas diferentes ou para substituir uma coisa por outra Assim por exemplo o fogo pode simbolizar um deus uma paixão como o amor e a cólera porque são ardentes o conhecimento porque este é uma iluminação a purificação de alguma coisa como na alquimia o poder sobre a Natureza porque permite o desenvolvimento das técnicas a diferença entre os animais e os homens porque estes cozem os alimentos enquanto aqueles os comem crus etc A peculiaridade do símbolo mítico está no fato de ele encarnar aquilo que ele simboliza Ou seja o fogo não representa alguma coisa mas é a própria coisa simbolizada é deus é amor é guerra é conhecimento é pureza é fabricação e purificação é o humano O fato de o símbolo mítico não representar mas encarnar aquilo que é significado por ele leva a dizer como faz LéviStrauss que o pensamento mítico é um pensamento sensível e concreto um pensamento onde imagens são coisas e onde coisas são idéias onde as palavras dão existência ou morte às coisas como vimos ao estudar a palavra mágica e a palavratabu Como funciona o pensamento conceitual O pensamento conceitual ou lógico opera de maneira diferente e mesmo oposta à do pensamento mítico A primeira e fundamental diferença está no fato de que enquanto o pensamento mítico opera por bricolage associação dos fragmentos heterogêneos o pensamento conceitual opera por método procedimento lógico para a articulação racional entre elementos homogêneos Dessa diferença resultam outras um conceito ou uma idéia não é uma imagem nem um símbolo mas uma descrição e uma explicação da essência ou natureza própria de um ser referindo se a esse ser e somente a ele Marilena Chauí 207 um conceito ou uma idéia não são substitutos para as coisas mas a compreensão intelectual delas um conceito ou uma idéia não são formas de participação ou de relação de nosso espírito em outra realidade mas são resultado de uma análise ou de uma síntese dos dados da realidade ou do próprio pensamento um juízo e um raciocínio não permanecem no nível da experiência nem organizam a experiência nela mesma mas partindo dela a sistematizam em relações racionais que a tornam compreensível do ponto de vista lógico um juízo e um raciocínio buscam as causas universais e necessárias pelas quais uma realidade é tal como é distinguindo o modo como ela nos aparece do modo como é em si mesma as causas e os efeitos são homogêneos isto é são de mesma natureza um juízo e um raciocínio estudam e investigam a diferença entre nossas vivências subjetivas pessoais e coletivas e os conhecimentos gerais e objetivos que são de todos e de ninguém em particular Estabelecem a diferença entre vivências subjetivas e a estrutura objetiva do pensamento em geral o pensamento lógico submete seus procedimentos a métodos isto é a regras de verificação e de generalização dos conhecimentos adquiridos a regras de ordenamento e sistematização dos procedimentos e dos resultados de modo que um conhecimento novo não pode simplesmente acrescentarse aos anteriores como no bricolage mas só se junta a eles se obedecer a certas regras e princípios intelectuais Assim por exemplo a teoria física elaborada por Aristóteles não pode ser acrescida pela de Galileu pois são contrárias do mesmo modo a física de Galileu e de Newton não podem ser acrescentadas à teoria da relatividade mas podem apenas ser consideradas um caso especial da física quando os objetos são macroscópicos e quando a separação entre o observador e o observado são possíveis O pensamento lógico ou racional ou o pensamento objetivo opera de acordo com os princípios de identidade contradição terceiro excluído razão suficiente e causalidade distingue verdades de fato e verdades de razão diferencia intuição dedução indução e abdução distingue análise e síntese diferencia reflexão e verificação teoria e prática ciência e técnica Se compararmos a explicação cosmogônica e a cosmológica da realidade tais como foram elaboradas na Grécia perceberemos melhor a diferença entre as duas modalidades de pensamento O pensamento cosmogônico narrava a origem da Natureza através de genealogias divinas as forças e os seres naturais estavam personalizados e simbolizados pelos deuses titãs e heróis cujas relações sexuais davam origem às coisas aos homens às estações do ano ao dia e à noite às colheitas à sociedade Suas paixões não correspondidas se exprimiam por raios trovões tempestades Convite à Filosofia 208 tufões desertos Seus amores e desejos realizados manifestavamse na abundância da primavera das colheitas da procriação dos animais O pensamento cosmológico explicava a origem da Natureza pela existência de um ou alguns elementos naturais terraseco águaúmido arfrio fogoquente que por sua força interna natural se transformavam dando origem a todas as coisas e aos homens Os primeiros filósofos consideravam os elementos originários como forças divinas mas já não eram personalizadas nem sua ação explicada por desejos paixões e furores Aristóteles sistematizou lógica e racionalmente as cosmologias ou teorias sobre a Natureza numa física isto é numa teoria ou ciência sobre a matéria e a forma dos seres naturais e sobre as causas de seus movimentos Para os gregos como vimos movimento kinesis significa toda mudança qualitativa de um ser qualquer por exemplo uma semente que se torna árvore um objeto branco que amarelece um animal que adoece algo quente que esfria algo frio que esquenta o duro que amolece o mole que endurece etc toda mudança ou alteração quantitativa por exemplo um corpo que aumente e diminua que se divida em outros menores que encompride ou encurte alargue ou estreite etc toda mudança de lugar ou locomoção subir descer cair a trajetória de uma flecha o deslocamento de um barco a queda de uma pedra o levitar de uma pluma etc toda geração ou nascimento e toda corrupção ou morte dos seres Esses movimentos diz Aristóteles possuem causas pois tudo o que existe possui causa e o conhecimento verdadeiro é o conhecimento das causas São quatro as causas dos movimentos 1 causa material isto é a matéria de que alguma coisa é feita madeira pedra metal líquido 2 causa formal isto é a forma que alguma coisa possui e que a individualiza e a diferencia das outras a mesa é causa formal da madeira a estátua é causa formal da pedra a taça é causa formal do metal o vinho é causa formal do líquido 3 causa motriz ou eficiente isto é aquilo que faz uma matéria receber uma forma determinada no caso dos objetos artificiais ou artefatos a causa eficiente é o artesão o carpinteiro que faz a mesa o escultor que faz a estátua o ferreiro que faz a taça o vinicultor que faz o vinho no caso dos seres naturais a causa eficiente também é uma coisa natural por exemplo o calor derrete o metal o Sol esquenta um corpo e lhe dá outra consistência ou forma etc Marilena Chauí 209 4 causa final isto é o motivo ou finalidade para a qual a coisa existe se transforma e se realiza a mesa existe para que possamos usála para refeições escrever depositar objetos etc a estátua para o culto de um deus a taça para colocarmos bebidas o vinho para bebermos Com a física aristotélica vemos a Natureza tornarse inteligível ao pensamento que pode explicála descrevêla compreendêla e interpretála conceitualmente Convite à Filosofia 210 Capítulo 7 A consciência pode conhecer tudo Consciência e conhecimento Vimos que a teoria do conhecimento distinguindo o Eu a pessoa o cidadão e o sujeito assim como distinguindo graus de consciência passiva vivida reflexiva tem como centro a figura do sujeito do conhecimento na qualidade de consciência de si reflexiva ou atividade permanente racional que conhece a si mesma Que acontecerá porém se o sujeito do conhecimento descobrir que a consciência possui mais um grau além dos três que mencionamos e sobretudo quando descobrir que não se trata exatamente de mais um grau da consciência mas de algo que a consciência desconhece e sobre o qual nunca poderá refletir diretamente Que esse algo desconhecido ou só indiretamente conhecido determina tudo quanto a consciência e o sujeito sentem fazem dizem e pensam Em outras palavras que sucederá quando o sujeito do conhecimento descobrir um limite intransponível chamado o inconsciente O inconsciente Freud escreveu que no transcorrer da modernidade os humanos foram feridos três vezes e que as feridas atingiram o nosso narcisismoiii isto é a bela imagem que possuíamos de nós mesmos como seres conscientes racionais e com a qual durante séculos estivemos encantados Que feridas foram essas A primeira foi a que nos infligiu Copérnico ao provar que a Terra não estava no centro do Universo e que os homens não eram o centro do mundo A segunda foi causada por Darwin ao provar que os homens descendem de um primata que são apenas um elo na evolução das espécies e não seres especiais criados por Deus para dominar a Natureza A terceira foi causada por Freud com a psicanálise ao mostrar que a consciência é a menor parte e a mais fraca de nossa vida psíquica Na obra Cinco ensaios sobre a psicanálise Freud escreve A Psicanálise propõe mostrar que o Eu não somente não é senhor na sua própria casa mas também está reduzido a contentarse com informações raras e fragmentadas daquilo que se passa fora da consciência no restante da vida psíquica A divisão do psíquico num psíquico consciente e num psíquico inconsciente constitui a premissa fundamental da psicanálise sem a qual ela seria incapaz de compreender os processos patológicos tão Marilena Chauí 211 freqüentes quanto graves da vida psíquica e fazêlos entrar no quadro da ciência A psicanálise se recusa a considerar a consciência como constituindo a essência da vida psíquica mas nela vê apenas uma qualidade desta podendo coexistir com outras qualidades e até mesmo faltar A psicanálise Freud era médico psiquiatra Seguindo os médicos de sua época usava a hipnose e a sugestão no tratamento dos doentes mentais mas sentiase insatisfeito com os resultados obtidos Certa vez recebeu uma paciente Anna O que apresentava sintomas de histeria isto é apresentava distúrbios físicos paralisias enxaquecas dores de estômago sem que houvesse causas físicas para eles pois eram manifestações corporais de problemas psíquicos Em lugar de usar a hipnose e a sugestão Freud usou um procedimento novo fazia com que Anna relaxasse num divã e falasse Dizia a ela palavras soltas e pedialhe que dissesse a primeira palavra que lhe viesse à cabeça ao ouvir a que ele dissera posteriormente Freud denominaria esse procedimento de técnica de associação livre Freud percebeu que em certos momentos Anna reagia a certas palavras e não pronunciava aquela que lhe viera à cabeça censurandoa por algum motivo ignorado por ela e por ele Notou também que em outras ocasiões depois de fazer a associação livre de palavras Anna ficava muito agitada e falava muito Observou que certas vezes algumas palavras a faziam chorar sem motivo aparente e outras vezes a faziam lembrar de fatos da infância narrar um sonho que tivera na noite anterior Pela conversa pelas reações da paciente pelos sonhos narrados e pelas lembranças infantis Freud descobriu que a vida consciente de Anna era determinada por uma vida inconsciente que tanto ela quanto ele desconheciam Compreendeu também que somente interpretando as palavras os sonhos as lembranças e os gestos de Anna chegaria a essa vida inconsciente Freud descobriu finalmente que os sintomas histéricos tinham três finalidades 1 contar indiretamente aos outros e a si mesma os sentimentos inconscientes 2 punirse por ter tais sentimentos 3 realizar pela doença e pelo sofrimento um desejo inconsciente intolerável Tratando de outros pacientes Freud descobriu que embora conscientemente quisessem a cura algo neles criava uma barreira uma resistência inconsciente à cura Por quê Porque os pacientes sentiamse interiormente ameaçados por alguma coisa dolorosa e temida algo que haviam penosamente esquecido e que não suportavam lembrar Freud descobriu assim que o esquecimento consciente operava simultaneamente de duas maneiras 1 como resistência à terapia 2 sob Convite à Filosofia 212 a forma da doença psíquica pois o inconsciente não esquece e obriga o esquecido a reaparecer sob a forma dos sintomas da neurose e da psicose Desenvolvendo com outros pacientes e consigo mesmo esses procedimentos e novas técnicas de interpretação de sintomas sonhos lembranças esquecimentos Freud foi criando o que chamou de análise da vida psíquica ou psicanálise cujo objeto central era o estudo do inconsciente e cuja finalidade era a cura de neuroses e psicoses tendo como método a interpretação e como instrumento a linguagem tanto a linguagem verbal das palavras quanto a linguagem corporal dos sintomas e dos gestos A vida psíquica Durante toda sua vida Freud não cessou de reformular a teoria psicanalítica abandonando alguns conceitos criando outros abandonando algumas técnicas terapêuticas e criando outras Não vamos aqui acompanhar a história da formação da psicanálise mas apresentar algumas de suas principais idéias e inovações A vida psíquica é constituída por três instâncias duas delas inconscientes e apenas uma consciente o id o superego e o ego ou o isso o supereu e o eu Os dois primeiros são inconscientes o terceiro consciente O id é formado por instintos impulsos orgânicos e desejos inconscientes ou seja pelo que Freud designa como pulsões Estas são regidas pelo princípio do prazer que exige satisfação imediata O id é a energia dos instintos e dos desejos em busca da realização desse princípio do prazer É a libido Instintos impulsos e desejos em suma as pulsões são de natureza sexual e a sexualidade não se reduz ao ato sexual genital mas a todos os desejos que pedem e encontram satisfação na totalidade de nosso corpo Freud descobriu três fases da sexualidade humana que se diferenciam pelos órgãos que sentem prazer e pelos objetos ou seres que dão prazer Essas fases se desenvolvem entre os primeiros meses de vida e os cinco ou seis anos ligadas ao desenvolvimento do id a fase oral quando o desejo e o prazer localizamse primordialmente na boca e na ingestão de alimentos e o seio materno a mamadeira a chupeta os dedos são objetos do prazer a fase anal quando o desejo e o prazer localizamse primordialmente no ânus e as excreções fezes brincar com massas e com tintas amassar barro ou argila comer coisas cremosas e sujarse são os objetos do prazer e a fase genital ou fase fálica quando o desejo e o prazer localizamse primordialmente nos órgãos genitais e nas partes do corpo que excitam tais órgãos Nessa fase para os meninos a mãe é o objeto do desejo e do prazer para as meninas o pai No centro do id determinando toda a vida psíquica encontrase o que Freud denominou de complexo de Édipo isto é o desejo incestuoso pelo pai ou pela Marilena Chauí 213 mãe É esse o desejo fundamental que organiza a totalidade da vida psíquica e determina o sentido de nossas vidas O superego também inconsciente é a censura das pulsões que a sociedade e a cultura impõem ao id impedindoo de satisfazer plenamente seus instintos e desejos É a repressão particularmente a repressão sexual Manifestase à consciência indiretamente sob a forma da moral como um conjunto de interdições e de deveres e por meio da educação pela produção da imagem do eu ideal isto é da pessoa moral boa e virtuosa O superego ou censura desenvolvese num período que Freud designa como período de latência situado entre os seis ou sete anos e o início da puberdade ou adolescência Nesse período formase nossa personalidade moral e social de maneira que quando a sexualidade genital ressurgir estará obrigada a seguir o caminho traçado pelo superego O ego ou o eu é a consciência pequena parte da vida psíquica submetida aos desejos do id e à repressão do superego Obedece ao princípio da realidade ou seja à necessidade de encontrar objetos que possam satisfazer ao id sem transgredir as exigências do superego O ego diz Freud é um pobre coitado espremido entre três escravidões os desejos insaciáveis do id a severidade repressiva do superego e os perigos do mundo exterior Por esse motivo a forma fundamental da existência para o ego é a angústia Se se submeter ao id tornase imoral e destrutivo se se submeter ao superego enlouquece de desespero pois viverá numa insatisfação insuportável se não se submeter à realidade do mundo será destruído por ele Cabe ao ego encontrar caminhos para a angústia existencial Estamos divididos entre o princípio do prazer que não conhece limites e o princípio da realidade que nos impõe limites externos e internos Ao egoeu ou seja à consciência é dada uma função dupla ao mesmo tempo recalcar o id satisfazendo o superego e satisfazer o id limitando o poderio do superego A vida consciente normal é o equilíbrio encontrado pela consciência para realizar sua dupla função A loucura neuroses e psicoses é a incapacidade do ego para realizar sua dupla função seja porque o id ou o superego são excessivamente fortes seja porque o ego é excessivamente fraco O inconsciente em suas duas formas está impedido de manifestarse diretamente à consciência mas consegue fazêlo indiretamente A maneira mais eficaz para a manifestação é a substituição isto é o inconsciente oferece à consciência um substituto aceitável por ela e por meio do qual ela pode satisfazer o id ou o superego Os substitutos são imagens isto é representações analógicas dos objetos do desejo e formam o imaginário psíquico que ao ocultar e dissimular o verdadeiro desejo o satisfaz indiretamente por meio de objetos substitutos a chupeta e o dedo para o seio materno tintas e pintura ou argila e escultura para as fezes uma pessoa amada no lugar do pai ou da mãe Além dos substitutos Convite à Filosofia 214 reais chupeta argila pessoa amada o imaginário inconsciente também oferece outros substitutos os mais freqüentes sendo os sonhos os lapsos e os atos falhos Neles realizamos desejos inconscientes de natureza sexual São a satisfação imaginária do desejo Alguém sonha por exemplo que sobe uma escada está num naufrágio ou num incêndio Na realidade sonhou com uma relação sexual proibida Alguém quer dizer uma palavra esquecea ou se engana comete um lapso e diz uma outra que nos surpreende pois nada tem a ver com aquela que se queria dizer Realizou um desejo proibido Alguém vai andando por uma rua e sem querer torce o pé e quebra o objeto que estava carregando Realizou um desejo proibido A vida psíquica dá sentido e coloração afetivosexual a todos os objetos e todas as pessoas que nos rodeiam e entre os quais vivemos Por isso sem que saibamos por que desejamos e amamos certas coisas e pessoas odiamos e tememos outras As coisas e os outros são investidos por nosso inconsciente com cargas afetivas de libido É por esse motivo que certas coisas certos sons certas cores certos animais certas situações nos enchem de pavor enquanto outras nos enchem de bemestar sem que o possamos explicar A origem das simpatias e antipatias amores e ódios medos e prazeres está em nossa mais tenra infância em geral nos primeiros meses e anos de nossa vida quando se formam as relações afetivas fundamentais e o complexo de Édipo Essa dimensão imaginária de nossa vida psíquica substituições sonhos lapsos atos falhos prazer e desprazer com objetos e pessoas indica que os recursos inconscientes para surgir indiretamente à consciência possuem dois níveis o nível do conteúdo manifesto escada mar e incêndio no sonho a palavra esquecida e a pronunciada no lapso pé torcido ou objeto partido no ato falho afetos contrários por coisas e pessoas e o nível do conteúdo latente que é o conteúdo inconsciente real e oculto os desejos sexuais Nossa vida normal se passa no plano dos conteúdos manifestos e portanto no imaginário Somente uma análise psíquica e psicológica desses conteúdos por meio de técnicas especiais trazidas pela psicanálise nos permite decifrar o conteúdo latente que se dissimula sob o conteúdo manifesto Além dos recursos individuais cotidianos que nosso inconsciente usa para manifestarse e além dos recursos extremos e dolorosos usados na loucura nela os recursos são os sintomas existe um outro recurso de enorme importância para a vida cultural e social isto é para a existência coletiva Tratase do que Freud designa com o nome de sublimação Na sublimação os desejos inconscientes são transformados em uma outra coisa exprimemse pela criação de uma outra coisa as obras de arte as ciências a religião a Filosofia as técnicas as instituições sociais e as ações políticas Marilena Chauí 215 Artistas místicos pensadores escritores cientistas líderes políticos satisfazem seus desejos pela sublimação e portanto pela realização de obras e pela criação de instituições religiosas sociais políticas etc Porém assim como a loucura é a impossibilidade do ego para realizar sua própria função também a sublimação pode não ser alcançada e em seu lugar surgir uma perversão social ou coletiva uma loucura social ou coletiva O nazismo é um exemplo de perversão em vez de sublimação A propaganda que induz em nós falsos desejos sexuais pela multiplicação das imagens de prazer é um outro exemplo de perversão ou de incapacidade para a sublimação O inconsciente diz Freud não é o subconsciente Este é aquele grau de consciência como consciência passiva e consciência vivida nãoreflexiva podendo tornarse plenamente consciente O inconsciente ao contrário jamais será consciente diretamente podendo ser captado apenas indiretamente e por meio de técnicas especiais de interpretação desenvolvidas pela psicanálise A psicanálise descobriu assim uma poderosa limitação às pretensões da consciência para dominar e controlar a realidade e o conhecimento Paradoxalmente porém nos revelou a capacidade fantástica da razão e do pensamento para ousar atravessar proibições e repressões e buscar a verdade mesmo que para isso seja preciso desmontar a bela imagem que os seres humanos têm de si mesmos Longe de desvalorizar a teoria do conhecimento a psicanálise exige do pensamento que não faça concessões às idéias estabelecidas à moral vigente aos preconceitos e às opiniões de nossa sociedade mas que as enfrente em nome da própria razão e do pensamento A consciência é frágil mas é ela que decide e aceita correr o risco da angústia e o risco de desvendar e decifrar o inconsciente Aceita e decide enfrentar a angústia para chegar ao conhecimento somos um caniço pensante A alienação social Às três feridas narcísicas mencionadas por Freud precisamos acrescentar mais uma a que nos foi infligida por Marx com a noção de ideologia Para compreendêla precisamos primeiro compreender o fenômeno da alienação social Marx era filósofo advogado e historiador e interessouse por um estudo feito por um outro filósofo Feuerbach Este investigara o modo como se formam as religiões isto é o modo como os seres humanos sentem necessidade de oferecer uma explicação para a origem e a finalidade do mundo Ao buscar essa explicação os humanos projetam fora de si um ser superior dotado das qualidades que julgam as melhores inteligência vontade livre bondade justiça beleza mas as fazem existir nesse ser superior como superlativas isto é ele é onisciente e onipotente sabe tudo faz tudo pode tudo Convite à Filosofia 216 Pouco a pouco os humanos se esquecem de que foram os criadores desse ser e passam a acreditar no inverso ou seja que esse ser foi quem os criou e os governa Passam a adorálo prestarlhe culto temêlo Não se reconhecem nesse Outro que criaram Em latim outro se diz alienus Os homens se alienam e Feuerbach designou esse fato com o nome de alienação A alienação é o fenômeno pelo qual os homens criam ou produzem alguma coisa dão independência a essa criatura como se ela existisse por si mesma e em si mesma deixamse governar por ela como se ela tivesse poder em si e por si mesma não se reconhecem na obra que criaram fazendoa um seroutro separado dos homens superior a eles e com poder sobre eles Marx não se interessou apenas pela alienação religiosa mas investigou sobretudo a alienação social Interessouse em compreender as causas pelas quais os homens ignoram que são os criadores da sociedade da política da cultura e agentes da História Interessouse em compreender por que os humanos acreditam que a sociedade não foi instituída por eles mas por vontade e obra dos deuses da Natureza da Razão em vez de perceberem que são eles próprios que em condições históricas determinadas criam as instituições sociais família relações de produção e de trabalho relações de troca linguagem oral linguagem escrita escola religião artes ciências filosofia e as instituições políticas leis direitos deveres tribunais Estado exército impostos prisões A ação sociopolítica e histórica chamase práxis e o desconhecimento de suas origens e de suas causas alienação Por que os seres humanos não se reconhecem como sujeitos sociais políticos históricos como agentes e criadores da realidade na qual vivem Por que além de não se perceberem como sujeitos e agentes os humanos se submetem às condições sociais políticas culturais como se elas tivessem vida própria poder próprio vontade própria e os governassem em lugar de serem controladas e governadas por eles Por que existe a alienação social Por que os homens se deixam dominar pela sua própria obra ou criação histórica Por que filósofos teólogos cientistas portanto o sujeito do conhecimento elaboram teorias que reforçam a alienação Por que filósofos dizem que a sociedade é produzida pela Natureza Por que teólogos dizem que a família e o Estado existem por vontade de Deus Por que os cientistas afirmam que a sociedade é racional e criada pela Razão Universal Para compreender o fenômeno da alienação Marx estudou o modo como as sociedades são produzidas historicamente pela práxis dos seres humanos Verificou que historicamente uma sociedade pequena grande tribal imperial não importa sempre começa por uma divisão e que essa divisão organiza todas as relações sociais que serão instituídas a seguir Tratase da divisão social do trabalho Na luta pela sobrevivência os seres humanos se agrupam para explorar os recursos da Natureza e dividem as tarefas tarefas dos homens adultos tarefas Marilena Chauí 217 das mulheres adultas tarefas dos homens jovens tarefas das mulheres jovens tarefas das crianças e dos idosos A partir dessa divisão organizam a primeira instituição social a família na qual o homem adulto na qualidade de pai torna se chefe e domina a mulher adulta sua esposa e mãe de seus filhos os quais também são dominados pelo pai As famílias trabalham e trocam entre si os produtos do trabalho Surge uma segunda instituição social a troca isto é o comércio Algumas famílias conquistam terras melhores do que outras e conseguem colheitas ou gado em maior quantidade que outras trocando seus produtos por uma quantidade maior que a de outras Ficam mais ricas As muito pobres não tendo conseguido produzir nada ou muito pouco vêemse obrigadas a trabalhar para as mais ricas em troca de produtos para a sobrevivência Começa a surgir uma terceira instituição social o trabalho servil que desembocará na escravidão Os mais ricos e poderosos reúnemse e decidem controlar o conjunto de famílias distribuindo entre si os poderes e excluindo algumas famílias de todo poder Começa a surgir uma quarta instituição social o poder político de onde virá o Estado Nessa altura os seres humanos já começaram a explicar a origem e a finalidade do mundo já elaboraram mitos e ritos As famílias ricas e poderosas dão a alguns de seus membros autoridade exclusiva para narrar mitos e celebrar ritos Criam uma outra instituição social a religião dominada por sacerdotes saídos das famílias poderosas e que por terem a autoridade para se relacionar com o sagrado tornamse temidos e venerados pelo restante da sociedade São um novo poder social Os vários grupos de famílias dirigentes disputam entre si terras animais e servos e dão início a uma nova instituição social a guerra com a qual os vencidos se tornam escravos dos vencedores e o poder econômico social militar religioso e político se concentra ainda mais em poucas mãos Como escreveu Maquiavel toda sociedade é constituída pela divisão entre o desejo dos grandes de oprimir e comandar e o desejo do povo de não ser oprimido nem comandado Com essa descrição Marx observou que a sociedade nasce pela estruturação de um conjunto de divisões divisão sexual do trabalho divisão social do trabalho divisão social das trocas divisão social das riquezas divisão social do poder econômico divisão social do poder militar divisão social do poder religioso e divisão social do poder político Por que divisão Porque em todas as instituições sociais família trabalho comércio guerra religião política uma parte detém poder riqueza bens armas idéias e saberes terras trabalhadores poder político enquanto outra parte não possui nada disso estando subjugada à outra rica poderosa e instruída Esse conjunto estruturado de divisões tornase cada vez mais complexo intrincado numeroso multiplicandose em muitas outras divisões sob a forma Convite à Filosofia 218 de numerosas instituições sociais e acabam por revelar a estrutura fundamental das sociedades como divisão social das classes sociais A esse conjunto tanto simples quanto complexo de instituições nascidas da divisão social Marx deu o nome de condições materiais da vida social e política Por que materiais Porque se referem ao conjunto de práticas sociais pelas quais os homens garantem sua sobrevivência por meio do trabalho e da troca dos produtos do trabalho e que constituem a economia A variação das condições materiais de uma sociedade constitui a História dessa sociedade e Marx as designou como modos de produção A História é a mudança passagem ou transformação de um modo de produção para outro Tal mudança não se realiza por acaso nem por vontade livre dos seres humanos mas acontece de acordo com condições econômicas sociais e culturais já estabelecidas que podem ser alteradas de uma maneira também determinada graças à práxis humana diante de tais condições dadas O fato de que a mudança de uma sociedade ou a mudança histórica se faça em condições determinadas levou Marx a afirmar que Os homens fazem a História mas o fazem em condições determinadas isto é que não foram escolhidas por eles Por isso também ele disse Os homens fazem a História mas não sabem que a fazem Estamos aqui diante de uma situação coletiva muito parecida com a que encontramos no caso de nossa vida psíquica individual Assim como julgamos que nossa consciência sabe tudo pode tudo faz o que pensa e quer mas na realidade está determinada pelo inconsciente e ignora tal determinação assim também na existência social os seres humanos julgam que sabem o que é a sociedade dizendo que Deus ou a Natureza ou a Razão a criaram instituíram a política e a História e que os homens são seus instrumentos ou então acreditam que fazem o que fazem e pensam o que pensam porque são indivíduos livres autônomos e com poder para mudar o curso das coisas como e quando quiserem Por exemplo quando alguém diz que uma pessoa é pobre porque quer porque é preguiçosa ou perdulária ou ignorante está imaginando que somos o que somos somente por nossa vontade como se a organização e a estrutura da sociedade da economia da política não tivesse qualquer peso sobre nossas vidas A mesma coisa acontece quando alguém diz ser pobre pela vontade de Deus e não por causa das condições concretas em que vive Ou quando faz uma afirmação racista segundo a qual a Natureza fez alguns superiores e outros inferiores A alienação social é o desconhecimento das condições históricosociais concretas em que vivemos produzidas pela ação humana também sob o peso de outras condições históricas anteriores e determinadas Há uma dupla alienação por um lado os homens não se reconhecem como agentes e autores da vida social com suas instituições mas por outro lado e ao mesmo tempo julgamse indivíduos plenamente livres capazes de mudar suas vidas individuais como e quando Marilena Chauí 219 quiserem apesar das instituições sociais e das condições históricas No primeiro caso não percebem que instituem a sociedade no segundo caso ignoram que a sociedade instituída determina seus pensamentos e ações As três formas da alienação social Podemos falar em três grandes formas de alienação existentes nas sociedades modernas ou capitalistas 1 A alienação social na qual os humanos não se reconhecem como produtores das instituições sociopolíticas e oscilam entre duas atitudes ou aceitam passivamente tudo o que existe por ser tido como natural divino ou racional ou se rebelam individualmente julgando que por sua própria vontade e inteligência podem mais do que a realidade que os condiciona Nos dois casos a sociedade é o outro alienus algo externo a nós separado de nós diferente de nós e com poder total ou nenhum poder sobre nós 2 A alienação econômica na qual os produtores não se reconhecem como produtores nem se reconhecem nos objetos produzidos por seu trabalho Em nossas sociedades modernas a alienação econômica é dupla Em primeiro lugar os trabalhadores como classe social vendem sua força de trabalho aos proprietários do capital donos das terras das indústrias do comércio dos bancos das escolas dos hospitais das frotas de automóveis de ônibus ou de aviões etc Vendendo sua força de trabalho no mercado da compra e venda de trabalho os trabalhadores são mercadorias e como toda mercadoria recebem um preço isto é o salário Entretanto os trabalhadores não percebem que foram reduzidos à condição de coisas que produzem coisas não percebem que foram desumanizados e coisificados Em segundo lugar os trabalhos produzem alimentos pelo cultivo da terra e dos animais objetos de consumo pela indústria instrumentos para a produção de outros trabalhos máquinas condições para a realização de outros trabalhos transporte de matériasprimas de produtos e de trabalhadores A mercadoria trabalhador produz mercadorias Estas ao deixarem as fazendas as usinas as fábricas os escritórios e entrarem nas lojas nas feiras nos supermercados nos shoppings centers parecem ali estar porque lá foram colocadas não pensamos no trabalho humano que nelas está cristalizado e não pensamos no trabalho humano realizado para que chegassem até nós e como o trabalhador elas também recebem um preço O trabalhador olha os preços e sabe que não poderá adquirir quase nada do que está exposto no comércio mas não lhe passa pela cabeça que foi ele não enquanto indivíduo e sim como classe social quem produziu tudo aquilo com seu trabalho e que não pode ter os produtos porque o preço deles é muito mais alto do que o preço dele trabalhador isto é o seu salário Convite à Filosofia 220 Apesar disso o trabalhador pode cheio de orgulho mostrar aos outros as coisas que ele fabrica ou se comerciário que ele vende aceitando não possuílas como se isso fosse muito justo e natural As mercadorias deixam de ser percebidas como produtos do trabalho e passam a ser vistas como bens em si e por si mesmas como a propaganda as mostra e oferece Na primeira forma de alienação econômica o trabalhador está separado de seu trabalho este é alguma coisa que tem um preço é um outro alienus que não o trabalhador Na segunda forma da alienação econômica as mercadorias não permitem que o trabalhador se reconheça nelas Estão separadas dele são exteriores a ele e podem mais do que ele As mercadorias são igualmente um outro que não o trabalhador 3 A alienação intelectual resultante da separação social entre trabalho material que produz mercadorias e trabalho intelectual que produz idéias A divisão social entre as duas modalidades de trabalho leva a crer que o trabalho material é uma tarefa que não exige conhecimentos mas apenas habilidades manuais enquanto o trabalho intelectual é responsável exclusivo pelos conhecimentos Vivendo numa sociedade alienada os intelectuais também se alienam Sua alienação é tripla Primeiro esquecem ou ignoram que suas idéias estão ligadas às opiniões e pontos de vista da classe a que pertencem isto é a classe dominante e imaginam ao contrário que são idéias universais válidas para todos em todos os tempos e lugares Segundo esquecem ou ignoram que as idéias são produzidas por eles para explicar a realidade e passam a crer que elas se encontram gravadas na própria realidade e que eles apenas as descobrem e descrevem sob a forma de teorias gerais Terceiro esquecem ou ignoram a origem social das idéias e seu próprio trabalho para criálas acreditam que as idéias existem em si e por si mesmas criam a realidade e a controlam dirigem ou dominam Pouco a pouco passam a acreditar que as idéias se produzem umas às outras são causas e efeitos umas das outras e que somos apenas receptáculos delas ou instrumentos delas As idéias se tornam separadas de seus autores externas a eles transcendentes a eles tornamse um outro As três grandes formas da alienação social econômica e intelectual são a causa do surgimento da implantação e do fortalecimento da ideologia A ideologia A alienação se exprime numa teoria do conhecimento espontânea formando o senso comum da sociedade Por seu intermédio são imaginadas explicações e justificativas para a realidade tal como é diretamente percebida e vivida Marilena Chauí 221 Um exemplo desse senso comum aparece no caso da explicação da pobreza em que o pobre é pobre por sua própria culpa preguiça ignorância ou por vontade divina ou por inferioridade natural Esse senso comum social na verdade é o resultado de uma elaboração intelectual sobre a realidade feita pelos pensadores ou intelectuais da sociedade sacerdotes filósofos cientistas professores escritores jornalistas artistas que descrevem e explicam o mundo a partir do ponto de vista da classe a que pertencem e que é a classe dominante de uma sociedade Essa elaboração intelectual incorporada pelo senso comum social é a ideologia Por meio dela o ponto de vista as opiniões e as idéias de uma das classes sociais a dominante e dirigente tornamse o ponto de vista e a opinião de todas as classes e de toda a sociedade A função principal da ideologia é ocultar e dissimular as divisões sociais e políticas darlhes a aparência de indivisão e de diferenças naturais entre os seres humanos Indivisão apesar da divisão social das classes somos levados a crer que somos todos iguais porque participamos da idéia de humanidade ou da idéia de nação e pátria ou da idéia de raça etc Diferenças naturais somos levados a crer que as desigualdades sociais econômicas e políticas não são produzidas pela divisão social das classes mas por diferenças individuais dos talentos e das capacidades da inteligência da força de vontade maior ou menor etc A produção ideológica da ilusão social tem como finalidade fazer com que todas as classes sociais aceitem as condições em que vivem julgandoas naturais normais corretas justas sem pretender transformálas ou conhecêlas realmente sem levar em conta que há uma contradição profunda entre as condições reais em que vivemos e as idéias Por exemplo a ideologia afirma que somos todos cidadãos e portanto temos todos os mesmos direitos sociais econômicos políticos e culturais No entanto sabemos que isso não acontece de fato as crianças de rua não têm direitos os idosos não têm direitos os direitos culturais das crianças nas escolas públicas são inferiores aos das crianças que estão em escolas particulares pois o ensino não é de mesma qualidade em ambas os negros e índios são discriminados como inferiores os homossexuais são perseguidos como pervertidos etc A maioria porém acredita que o fato de ser eleitor pagar as dívidas e contribuir com os impostos já nos faz cidadãos sem considerar as condições concretas que fazem alguns serem mais cidadãos do que outros A função da ideologia é impedirnos de pensar nessas coisas Os procedimentos da ideologia Como procede a ideologia para obter esse fantástico resultado Em primeiro lugar opera por inversão isto é coloca os efeitos no lugar das causas e transforma estas últimas em efeitos Ela opera como o inconsciente este fabrica imagens e sintomas aquela fabrica idéias e falsas causalidades Convite à Filosofia 222 Por exemplo o senso comum social afirma que a mulher é um ser frágil sensitivo intuitivo feito para as doçuras do lar e da maternidade e que por isso foi destinada por natureza para a vida doméstica o cuidado do marido e da família Assim o ser feminino é colocado como causa da função social feminina Ora historicamente o que ocorreu foi exatamente o contrário na divisão sexual social do trabalho e na divisão dos poderes no interior da família atribuiuse à mulher um lugar levandose em conta o lugar masculino como este era o lugar do domínio da autoridade e do poder deuse à mulher o lugar subordinado e auxiliar a função complementar e visto que o número de braços para o trabalho e para a guerra aumentava o poderio do chefe da família e chefe militar a função reprodutora da mulher tornouse imprescindível trazendo como conseqüência sua designação prioritária para a maternidade Estabelecidas essas condições sociais era preciso persuadir as mulheres de que seu lugar e sua função não provinham do modo de organização social mas da Natureza e eram excelentes e desejáveis Para isso montouse a ideologia do ser feminino e da função feminina como naturais e não como históricos e sociais Como se observa uma vez implantada uma ideologia passamos a tomar os efeitos pelas causas A segunda maneira de operar da ideologia é a produção do imaginário social através da imaginação reprodutora Recolhendo as imagens diretas e imediatas da experiência social isto é do modo como vivemos as relações sociais a ideologia as reproduz mas transformandoas num conjunto coerente lógico e sistemático de idéias que funcionam em dois registros como representações da realidade sistema explicativo ou teórico e como normas e regras de conduta e comportamento sistema prescritivo de normas e valores Representações normas e valores formam um tecido de imagens que explicam toda a realidade e prescrevem para toda a sociedade o que ela deve e como deve pensar falar sentir e agir A ideologia assegura a todos modos de entender a realidade e de se comportar nela ou diante dela eliminando dúvidas ansiedades angústias admirações ocultando as contradições da vida social bem como as contradições entre esta e as idéias que supostamente a explicam e controlam Enfim uma terceira maneira de operação da ideologia é o silêncio Um imaginário social se parece com uma frase onde nem tudo é dito nem pode ser dito porque se tudo fosse dito a frase perderia a coerência tornarseia incoerente e contraditória e ninguém acreditaria nela A coerência e a unidade do imaginário social ou ideologia vêm portanto do que é silenciado e sob esse aspecto a ideologia opera exatamente como o inconsciente descrito pela psicanálise Por exemplo a ideologia afirma que o adultério é crime tanto assim que homens que matam suas esposas e os amantes delas são considerados inocentes porque Marilena Chauí 223 praticaram um ato em nome da honra que a virgindade feminina é preciosa e que o homossexualismo é uma perversão e uma doença grave tão grave que para alguns Deus resolveu punir os homossexuais enviando a peste isto é a AIDS O que está sendo silenciado pela ideologia Por que em nossa sociedade o vínculo entre sexo e procriação é tão importante coisa que não acontece em todas as sociedades mas apenas em algumas como a nossa Nossa sociedade exige a procriação legítima e legal a que se realiza pelos laços do casamento porque ela garante para a classe dominante a transmissão do capital aos herdeiros Assim sendo o adultério e a perda da virgindade são perigosos para o capital e para a transmissão legal da riqueza por isso o adultério se torna crime e a virgindade é valorizada como virtude suprema das mulheres jovens Em nossa sociedade a reprodução da força de trabalho se faz pelo aumento do número de trabalhadores e portanto a procriação é considerada fundamental para o aumento do capital que precisa da mãodeobra Por esse motivo toda sexualidade que não se realizar com finalidade reprodutiva será considerada anormal perversa e doentia donde a condenação do homossexualismo A ideologia porém perderia sua força e coerência se dissesse essas coisas e por isso as silencia Ideologia e inconsciente Dissemos que a ideologia se assemelha ao inconsciente freudiano Há pelo menos três semelhanças principais entre eles 1 o fato de que adotamos crenças opiniões idéias sem saber de onde vieram sem pensar em suas causas e motivos sem avaliar se são ou não coerentes e verdadeiras 2 ideologia e inconsciente operam através do imaginário as representações e regras saídas da experiência imediata e do silêncio realizandose indiretamente perante a consciência Falamos agimos pensamos temos comportamentos e práticas que nos parecem perfeitamente naturais e racionais porque a sociedade os repete os aceita os incute em nós pela família pela escola pelos livros pelos meios de comunicação pelas relações de trabalho pelas práticas políticas Um véu de imagens estabelecidas interpõese entre nossa consciência e a realidade 3 inconsciente e ideologia não são deliberações voluntárias O inconsciente precisa de imagens substitutos sonhos lapsos atos falhos sintomas sublimação para manifestarse e ao mesmo tempo esconderse da consciência A ideologia precisa das idéiasimagens da inversão de causas e efeitos do silêncio para manifestar os interesses da classe dominante e escondêlos como interesse de uma única classe social A ideologia não é o resultado de uma vontade deliberada de uma classe social para enganar a sociedade mas é o efeito Convite à Filosofia 224 necessário da existência social da exploração e dominação é a interpretação imaginária da sociedade do ponto de vista de uma única classe social Erguendo o véu tirando a máscara Diante do poder do inconsciente e da ideologia poderíamos ser levados a entregar os pontos dizendo Para que tanto esforço na teoria do conhecimento se afinal tudo é ilusão véu e máscara Para que compreender a atividade da consciência se ela é a pobre coitada espremida entre o id e o superego esmagada entre a classe dominante e os ideólogos Todavia uma pergunta também é possível Como sendo a consciência tão frágil o inconsciente e a ideologia tão poderosos Freud e Marx chegaram a conhecê los explicar seus modos de funcionamento e suas finalidades No caso de Freud foram a prática médica e a busca de uma técnica terapêutica para indivíduos que permitiram a descoberta do inconsciente e o trabalho teórico de onde nasceu a psicanálise No caso de Marx foi a decisão de compreender a realidade a partir da prática política de uma classe social os trabalhadores que permitiu a percepção dos mecanismos de dominação e exploração sociais de onde surgiu a formulação teórica da ideologia A busca da cura dos sofrimentos psíquicos em Freud e a luta pela emancipação dos explorados em Marx criaram condições para uma tomada de consciência pela qual o sujeito do conhecimento pôde recomeçar a crítica das ilusões e dos preconceitos que iniciara desde a Grécia mas agora como crítica de suas próprias ilusões e preconceitos Em lugar de invalidar a razão a reflexão o pensamento e a busca da verdade as descobertas do inconsciente e da ideologia fizeram o sujeito do conhecimento conhecer as condições psíquicas sociais históricas nas quais o conhecimento e o pensamento se realizam Como disseram os filósofos existencialistas acerca dessas descobertas Encarnaram o sujeito num corpo vivido real e numa história coletiva real situaram o sujeito Desvendando os obstáculos psíquicos e histórico sociais para o conhecimento puseram em primeiro plano as relações entre pensar e agir ou como se costuma dizer entre a teoria e a prática Marilena Chauí 225 Unidade 5 A lógica Convite à Filosofia 226 Capítulo 1 O nascimento da lógica É lógico É lógico que eu vou É lógico que ela disse isso Quando dizemos frases como essas a expressão é lógico que indica para nós e para a pessoa com quem estamos falando que se trata de alguma coisa evidente A expressão aparece como se fosse a conclusão de um raciocínio implícito compartilhado pelos interlocutores do discurso Ao dizer É lógico que eu vou estou supondo que quem me ouve sabe sem que isso seja dito explicitamente que também estou afirmando Você me conhece sabe o que penso gosto ou quero sabe o que vai acontecer no lugar x e na hora y e portanto não há dúvida de que irei até lá Ao dizer É lógico que ela disse isso a situação é semelhante A expressão seria a conclusão de algo que eu e a outra pessoa sabemos como se eu estivesse dizendo Sabendo quem ela é o que pensa gosta quer o que costuma dizer e fazer e vendo o que está acontecendo agora concluo que é evidente que ela disse isso pois era de se esperar que ela o dissesse Nesses casos estamos tirando uma conclusão que nos parece óbvia e dizer é lógico que seria o mesmo que dizer é claro que ou não há dúvida de que Em certas ocasiões ouvimos lemos vemos alguma coisa e nossa reação é dizer Não Não pode ser assim Isso não tem lógica Ou então Isso não é lógico Essas duas expressões indicam uma situação oposta às anteriores ou seja agora uma conclusão foi tirada por alguém mas o que já sabemos de uma pessoa de um fato de uma idéia de um livro nos faz julgar que a conclusão é indevida está errada deveria ser outra É possível também que as duas expressões estejam indicando que o conhecimento que possuímos sobre alguma coisa sobre alguém ou sobre um fato não é suficiente para compreendermos o que estamos ouvindo vendo lendo e por isso nos parece não ter lógica Nesses vários exemplos podemos perceber que as palavras lógica e lógico são usadas por nós para significar 1 ou uma inferência visto que conheço x disso posso concluir y como conseqüência 2 ou a exigência de coerência visto que x é assim então é preciso que y seja assim Marilena Chauí 227 3 ou a exigência de que não haja contradição entre o que sabemos de x e a conclusão y a que chegamos 4 ou a exigência de que para entender a conclusão y precisamos saber o suficiente sobre x para conhecer por que se chegou a y Inferência coerência conclusão sem contradições conclusão a partir de conhecimentos suficientes são algumas noções implicitamente pressupostas por nós toda vez que afirmamos que algo é lógico ou ilógico Ao usarmos as palavras lógica e lógico estamos participando de uma tradição de pensamento que se origina da Filosofia grega quando a palavra logos significando linguagemdiscurso e pensamentoconhecimento conduziu os filósofos a indagar se o logos obedecia ou não a regras possuía ou não normas princípios e critérios para seu uso e funcionamento A disciplina filosófica que se ocupa com essas questões chamase lógica O aparecimento da lógica Heráclito e Parmênides Quando estudamos o nascimento da Filosofia vimos que os primeiros filósofos se preocupavam com a origem a transformação e o desaparecimento de todos os seres Preocupavamse com o devir Duas grandes tendências adotaram posições opostas a esse respeito na época do surgimento da Filosofia a do filósofo Heráclito de Éfeso e a do filósofo Parmênides de Eléia Heráclito afirmava que somente o devir ou a mudança é real O dia se torna noite o inverno se torna primavera esta se torna verão o úmido seca o seco umedece o frio esquenta o quente esfria o grande diminui o pequeno cresce o doente ganha saúde a treva se faz luz esta se transforma naquela a vida cede lugar à morte esta dá origem àquela O mundo dizia Heráclito é um fluxo perpétuo onde nada permanece idêntico a si mesmo mas tudo se transforma no seu contrário A luta é a harmonia dos contrários responsável pela ordem racional do universo Nossa experiência sensorial percebe o mundo como se tudo fosse estável e permanente mas o pensamento sabe que nada permanece tudo se torna contrário de si mesmo O logos é a mudança e a contradição Parmênides porém afirmava que o devir o fluxo dos contrários é uma aparência mera opinião que formamos porque confundimos a realidade com as nossas sensações percepções e lembranças O devir dos contrários é uma linguagem ilusória não existe é irreal não é É o NãoSer o nada impensável e indizível O que existe real e verdadeiramente é o que não muda nunca o que não se torna oposto a si mesmo mas permanece sempre idêntico a si mesmo sem contrariedades internas É o Ser Pensar e dizer só são possíveis se as coisas que pensamos e dizemos guardarem a identidade forem permanentes Só podemos dizer e pensar aquilo que é sempre idêntico a si mesmo Por isso somente o Ser pode ser pensado e dito Nossos Convite à Filosofia 228 sentidos nos dão a aparência mutável e contraditória o NãoSer somente o pensamento puro pode alcançar e conhecer aquilo que é ou existe realmente o Ser e dizêlo em sua verdade O logos é o ser como pensamento e linguagem verdadeiros e portanto a verdade é a afirmação da permanência contra a mudança da identidade contra a contradição dos opostos Assim Heráclito afirmava que a verdade e o logos são a mudança das coisas nos seus contrários enquanto Parmênides afirmava que são a identidade do Ser imutável oposto à aparência sensível da luta dos contrários Parmênides introduz a idéia de que o que é contrário a si mesmo ou se torna o contrário do que era não pode ser existir não pode ser pensado nem dito porque é contraditório e a contradição é o impensável e o indizível uma vez que uma coisa que se torne oposta de si mesma destróise a si mesma tornase nada Para Heráclito a contradição é a lei racional da realidade para Parmênides a identidade é essa lei racional A história da Filosofia grega será a história de um gigantesco esforço para encontrar uma solução para o problema posto por Heráclito e Parmênides pois se o primeiro tiver razão o pensamento deverá ser um fluxo perpétuo e a verdade será a perpétua contradição dos seres em mudança contínua mas se Parmênides tiver razão o mundo em que vivemos não terá sentido não poderá ser conhecido será uma aparência impensável e viveremos na ilusão Será preciso portanto uma solução que prove que a mudança e os contrários existem e podem ser pensados mas ao mesmo tempo que prove que a identidade ou permanência dos seres também existe é verdadeira e pode ser pensada Como encontrar essa solução O aparecimento da lógica Platão e Aristóteles No momento de seu apogeu isto é de Platão e de Aristóteles a Filosofia oferecerá as duas soluções mais importantes para o problema da contradição mudança e identidadepermanência dos seres Não vamos aqui falar dessas duas filosofias mas destacar um aspecto de cada uma delas relacionado com o nosso assunto isto é com o surgimento da lógica Platão considerou que Heráclito tinha razão no que se refere ao mundo material ou físico isto é ao mundo dos seres corporais pois a matéria é o que está sujeito a mudanças contínuas e a oposições internas Heráclito está certo no que diz respeito ao mundo de nossas sensações percepções e opiniões o mundo natural ou material que Platão chama de mundo sensível é o devir permanente No entanto dizia Platão esse mundo é uma aparência é o mundo dos prisioneiros da caverna é uma cópia ou sombra do mundo verdadeiro e real e nesse Parmênides é quem tem razão O mundo verdadeiro é o das essências imutáveis que Platão chama de mundo inteligível sem contradições nem oposições sem transformação onde nenhum ser passa para o seu contraditório Marilena Chauí 229 Mas como conhecer as essências e abandonar as aparências Como sair da caverna Através de um método do pensamento e da linguagem chamado dialética Em grego a palavra dia quer dizer dois duplo o sufixo lética derivase de logos e do verbo legin cujo sentido estudamos nos capítulos dedicados à linguagem e ao pensamento A dialética como já vimos é um diálogo ou uma conversa em que os interlocutores possuem opiniões opostas sobre alguma coisa e devem discutir ou argumentar de modo a passar das opiniões contrárias à mesma idéia ou ao mesmo pensamento sobre aquilo que conversam Devem passar de imagens contraditórias a conceitos idênticos para todos os pensantes A dialética platônica é um procedimento intelectual e lingüístico que parte de alguma coisa que deve ser separada ou dividida em dois ou duas partes contrárias ou opostas de modo que se conheça sua contradição e se possa determinar qual dos contrários é verdadeiro e qual é falso A cada divisão surge um par de contrários que devem ser separados e novamente divididos até que se chegue a um termo indivisível isto é não formado por nenhuma oposição ou contradição e que será a idéia verdadeira ou a essência da coisa investigada Partindo de sensações imagens opiniões contraditórias sobre alguma coisa a dialética vai separando os opostos em pares mostrando que um dos termos é aparência e ilusão e o outro verdadeiro ou essência A dialética é um debate uma discussão um diálogo entre opiniões contrárias e contraditórias para que o pensamento e a linguagem passem da contradição entre as aparências à identidade de uma essência Superar os contraditórios e chegar ao que é sempre idêntico a si mesmo é a tarefa da discussão dialética que revela o mundo sensível como heraclitiano a luta dos contrários a mudança incessante e o mundo inteligível como parmenidiano a identidade perene de cada idéia consigo mesma Aristóteles por sua vez segue uma via diferente da escolhida por Platão Considera desnecessário separar realidade e aparência em dois mundos diferentes há um único mundo no qual existem essências e aparências e não aceita que a mudança ou o devir seja mera aparência ilusória Há seres cuja essência é mudar e há seres cuja essência é imutável O erro de Heráclito foi supor que a mudança se realiza sob a forma da contradição isto é que as coisas se transformam nos seus opostos pois a mudança ou transformação é a maneira pela qual as coisas realizam todas as potencialidades contidas em suas essência e esta não é contraditória mas uma identidade que o pensamento pode conhecer Assim por exemplo quando a criança se torna adulta ou quando a semente se torna árvore nenhuma delas tornouse contrária a si mesma mas desenvolveu uma potencialidade definida pela identidade própria de sua essência Cabe à Filosofia conhecer como e por que as coisas sem mudarem de essência transformamse assim como cabe à Filosofia conhecer como e por que há seres Convite à Filosofia 230 imutáveis como as entidades matemáticas e as divinas Parmênides tem razão o pensamento e a linguagem exigem a identidade Heráclito tem razão as coisas mudam Ambos se enganaram ao supor que identidade e mudança são contraditórias Tal engano levou Platão à desnecessária divisão dos mundos Em segundo lugar Aristóteles considera que a dialética não é um procedimento seguro para o pensamento e a linguagem da Filosofia e da ciência pois tem como ponto de partida simples opiniões contrárias dos debatedores e a escolha de uma opinião contra outra não garante chegar à essência da coisa investigada A dialética diz Aristóteles é boa para as disputas oratórias da política e do teatro para a retórica pois esta tem como finalidade persuadir alguém oferecendo argumentos fortes que convençam o oponente e os ouvintes É adequada para os assuntos sobre os quais só cabe a persuasão mas não para a Filosofia e a ciência porque nestas interessa a demonstração e a prova de uma verdade Substituindo a dialética por um conjunto de procedimentos de demonstração e prova Aristóteles criou a lógica propriamente dita que ele chamava de analítica a palavra lógica será empregada séculos mais tarde pelos estóicos e Alexandre de Afrodísia Qual a diferença entre a dialética platônica e a lógica ou analítica aristotélica Em primeiro lugar a dialética platônica é o exercício direto do pensamento e da linguagem um modo de pensar que opera com os conteúdos do pensamento e do discurso A lógica aristotélica é um instrumento que antecede o exercício do pensamento e da linguagem oferecendolhes meios para realizar o conhecimento e o discurso Para Platão a dialética é um modo de conhecer Para Aristóteles a lógica ou analítica é um instrumento para o conhecer Em segundo lugar a dialética platônica é uma atividade intelectual destinada a trabalhar contrários e contradições para superálos chegando à identidade da essência ou da idéia imutável Depurando e purificando as opiniões contrárias a dialética platônica chega à verdade do que é idêntico e o mesmo para todas as inteligências A lógica aristotélica oferece procedimentos que devem ser empregados naqueles raciocínios que se referem a todas as coisas das quais possamos ter um conhecimento universal e necessário e seu ponto de partida não são opiniões contrárias mas princípios regras e leis necessárias e universais do pensamento Marilena Chauí 231 Capítulo 2 Elementos de lógica Principais características da lógica Aristóteles propôs a primeira classificação geral dos conhecimentos ou das ciências dividindoas em três tipos teoréticas práticas e produtivas Todos os saberes referentes a todos os seres todas as ações e produções humanas encontravamse distribuídos nessa classificação que ia da ciência mais alta a filosofia primeira até o conhecimento das técnicas criadas pelos homens para a fabricação de objetos No entanto nessa classificação não encontramos a lógica Por quê Para Aristóteles a lógica não era uma ciência teorética nem prática ou produtiva mas um instrumento para as ciências Eis por que o conjunto das obras lógicas aristotélicas recebeu o nome de Órganon palavra grega que significa instrumento A lógica caracterizase como instrumental é o instrumento do pensamento para pensar corretamente e verificar a correção do que está sendo pensado formal não se ocupa com os conteúdos pensados ou com os objetos referidos pelo pensamento mas apenas com a forma pura e geral dos pensamentos expressa através da linguagemiv propedêutica é o que devemos conhecer antes de iniciar uma investigação científica ou filosófica pois somente ela pode indicar os procedimentos métodos raciocínios demonstrações que devemos empregar para cada modalidade de conhecimento normativa fornece princípios leis regras e normas que todo pensamento deve seguir se quiser ser verdadeiro doutrina da prova estabelece as condições e os fundamentos necessários de todas as demonstrações Dada uma hipótese permite verificar as conseqüências necessárias que dela decorrem dada uma conclusão permite verificar se é verdadeira ou falsa geral e temporal as formas do pensamento seus princípios e suas leis não dependem do tempo e do lugar nem das pessoas e circunstâncias mas são universais necessárias e imutáveis como a própria razão Convite à Filosofia 232 O objeto da lógica é a proposição que exprime através da linguagem os juízos formulados pelo pensamento A proposição é a atribuição de um predicado a um sujeito S é P O encadeamento dos juízos constitui o raciocínio e este se exprime logicamente através da conexão de proposições essa conexão chamase silogismo A lógica estuda os elementos que constituem uma proposição as categorias os tipos de proposições e de silogismos e os princípios necessários a que toda proposição e todo silogismo devem obedecer para serem verdadeiros princípio da identidade da nãocontradição e do terceiro excluído A proposição Uma proposição é constituída por elementos que são seus termos Aristóteles define os termos ou categorias como aquilo que serve para designar uma coisa São palavras não combinadas com outras e que aparecem em tudo quanto pensamos e dizemos Há dez categorias ou termos 1 substância por exemplo homem Sócrates animal 2 quantidade por exemplo dois metros de comprimento 3 qualidade por exemplo branco grego agradável 4 relação por exemplo o dobro a metade maior do que 5 lugar por exemplo em casa na rua no alto 6 tempo por exemplo ontem hoje agora 7 posição por exemplo sentado deitado de pé 8 posse por exemplo armado isto é tendo armas 9 ação por exemplo corta fere derrama 10 paixão ou passividade por exemplo está cortado está ferido As categorias ou termos indicam o que uma coisa é ou faz ou como está São aquilo que nossa percepção e nosso pensamento captam imediata e diretamente numa coisa não precisando de qualquer demonstração pois nos dão a apreensão direta de uma entidade simples Possuem duas propriedades lógicas a extensão e a compreensão Extensão é o conjunto de objetos designados por um termo ou uma categoria Compreensão é o conjunto de propriedades que esse mesmo termo ou essa categoria designa Por exemplo uso a palavra homem para designar Pedro Paulo Sócrates e uso a palavra metal para designar ouro ferro prata cobre A extensão do termo homem será o conjunto de todos os seres que podem ser designados por ele e que podem ser chamados de homens a extensão do termo metal será o conjunto de todos os seres que podem ser designados como metais Se porém tomarmos o termo homem e dissermos que é um animal vertebrado mamífero bípede mortal e racional essas qualidades formam sua compreensão Marilena Chauí 233 Se tomarmos o termo metal e dissermos que é um bom condutor de calor reflete a luz etc teremos a compreensão desse termo Quanto maior a extensão de um termo menor sua compreensão e quanto maior a compreensão menor a extensão Se por exemplo tomarmos o termo Sócrates veremos que sua extensão é a menor possível pois possui todas as propriedades do termo homem e mais suas próprias propriedades enquanto uma pessoa determinada Essa distinção permite classificar os termos ou categorias em três tipos 1 gênero extensão maior compreensão menor Exemplo animal 2 espécie extensão média e compreensão média Exemplo homem 3 indivíduo extensão menor compreensão maior Exemplo Sócrates Na proposição as categorias ou termos são os predicados atribuídos a um sujeito O sujeito S é uma substância os predicados P são as propriedades atribuídas ao sujeito a atribuição ou predicação se faz por meio do verbo de ligação ser Por exemplo Pedro é alto A proposição é um discurso declarativo apofântico que enuncia ou declara verbalmente o que foi pensado e relacionado pelo juízo A proposição reúne ou separa verbalmente o que o juízo reuniu ou separou mentalmente A reunião ou separação dos termos recebe o valor de verdade ou de falsidade quando o que foi reunido ou separado em pensamento e linguagem está reunido ou separado na realidade verdade ou quando o que foi reunido ou separado em pensamento e linguagem não está reunido ou separado na realidade falsidade A reunião se faz pela afirmação S é P A separação se faz pela negação S não é P A proposição representa o juízo coloca o pensamento na linguagem e a realidade declara o que está unido e o que está separado Do ponto de vista do sujeito existem dois tipos de proposições 1 proposição existencial declara a existência posição ação ou paixão do sujeito Por exemplo Um homem é existe Um homem anda Um homem está ferido E suas negativas Um homem não é não existe Um homem não anda Um homem não está ferido 2 proposição predicativa declara a atribuição de alguma coisa a um sujeito por meio da cópula é Por exemplo Um homem é justo Um homem não é justo As proposições se classificam segundo a qualidade e quantidade Do ponto de vista da qualidade as proposições de dividem em afirmativas as que atribuem alguma coisa a um sujeito S é P negativas as que separam o sujeito de alguma coisa S não é P Convite à Filosofia 234 Do ponto de vista da quantidade as proposições se dividem em universais quando o predicado se refere à extensão total do sujeito afirmativamente Todos os S são P ou negativamente Nenhum S é P particulares quando o predicado é atribuído a uma parte da extensão do sujeito afirmativamente Alguns S são P ou negativamente Alguns S não são P singulares quando o predicado é atribuído a um único indivíduo afirmativamente Este S é P ou negativamente Este S não é P Além da distinção pela qualidade e pela quantidade as proposições se distinguem pela modalidade sendo classificadas como necessárias quando o predicado está incluído necessariamente na essência do sujeito fazendo parte dessa essência Por exemplo Todo triângulo é uma figura de três lados Todo homem é mortal nãonecessárias ou impossíveis quando o predicado não pode de modo algum ser atribuído ao sujeito Por exemplo Nenhum triângulo é figura de quatro lados Nenhum planeta é um astro com luz própria possíveis quando o predicado pode ser ou deixar de ser atribuído ao sujeito Por exemplo Alguns homens são justos Como todo pensamento e todo juízo a proposição está submetida aos três princípios lógicos fundamentais condições de toda verdade 1 princípio da identidade um ser é sempre idêntico a si mesmo A é A 2 princípio da nãocontradição é impossível que um ser seja e não seja idêntico a si mesmo ao mesmo tempo e na mesma relação É impossível que A seja A e nãoA 3 princípio do terceiro excluído dadas duas proposições com o mesmo sujeito e o mesmo predicado uma afirmativa e outra negativa uma delas é necessariamente verdadeira e a outra necessariamente falsa A é x ou nãox não havendo terceira possibilidade Graças a esses princípios obtemos a última maneira pela qual as proposições se distinguem Tratase da classificação das proposições segundo a relação contraditórias quando temos o mesmo sujeito e o mesmo predicado uma das proposições é universal afirmativa Todos os S são P e a outra é particular negativa Alguns S não são P ou quando se tem uma universal negativa Nenhum S é P e uma particular afirmativa Alguns S são P contrárias quando tendo o mesmo sujeito e o mesmo predicado uma das proposições é universal afirmativa Todo S é P e a outra é universal negativa Nenhum S é P ou quando uma das proposições é particular afirmativa Alguns S são P e a outra é particular negativa Alguns S não são P Marilena Chauí 235 subalternas quando uma universal afirmativa subordina uma particular afirmativa de mesmo sujeito e predicado ou quando uma universal negativa subordina uma particular negativa de mesmo sujeito e predicado Quando a proposição é universal e necessária seja afirmativa ou negativa diz se que ela declara um juízo apodítico Quando a proposição é universal ou particular possível afirmativa ou negativa dizse que ela declara um juízo hipotético cuja formulação é Se então Quando a proposição é universal ou particular afirmativa ou negativa e comporta uma alternativa que depende dos acontecimentos ou das circunstâncias dizse que ela declara um juízo disjuntivo cuja formulação é Ou ou Assim a proposição Todos os homens são mortais e a proposição Nenhum triângulo é uma figura de quatro lados são apodíticas A proposição Se a educação for boa ele será virtuoso é hipotética A proposição Ou choverá amanhã ou não choverá amanhã é disjuntiva O silogismo Aristóteles elaborou uma teoria do raciocínio como inferência Inferir é tirar uma proposição como conclusão de uma outra ou de várias outras proposições que a antecedem e são sua explicação ou sua causa O raciocínio é uma operação do pensamento realizada por meio de juízos e enunciada lingüística e logicamente pelas proposições encadeadas formando um silogismo Raciocínio e silogismo são operações mediatas de conhecimento pois a inferência significa que só conhecemos alguma coisa a conclusão por meio ou pela mediação de outras coisas A teoria aristotélica do silogismo é o coração da lógica pois é a teoria das demonstrações ou das provas da qual depende o pensamento científico e filosófico O silogismo possui três características principais 1 é mediato exige um percurso de pensamento e de linguagem para que se possa chegar a uma conclusão 2 é dedutivo é um movimento de pensamento e de linguagem que parte de certas afirmações verdadeiras para chegar a outras também verdadeiras e que dependem necessariamente das primeiras 3 é necessário porque é dedutivo as conseqüências a que se chega na conclusão resultam necessariamente da verdade do ponto de partida Por isso Aristóteles considera o silogismo que parte de proposições apodíticas superior ao que parte de proposições hipotéticas ou possíveis designandoo com o nome de ostensivo pois ostenta ou mostra claramente a relação necessária e verdadeira entre o ponto de partida e a conclusão O exemplo mais famoso do silogismo ostensivo é Todos os homens são mortais Convite à Filosofia 236 Sócrates é homem Logo Sócrates é mortal Um silogismo é constituído por três proposições A primeira é chamada de premissa maior a segunda de premissa menor e a terceira de conclusão inferida das premissas pela mediação de um termo chamado termo médio As premissas possuem termos chamados extremos e a função do termo médio é ligar os extremos Essa ligação é a inferência ou dedução e sem ela não há raciocínio nem demonstração Por isso a arte do silogismo consiste em saber encontrar o termo médio que ligará os extremos e permitirá chegar à conclusão O silogismo para chegar a uma conclusão verdadeira deve obedecer a um conjunto complexo de regras Dessas regras apresentaremos as mais importantes tomando como referência o silogismo clássico que oferecemos acima a premissa maior deve conter o termo extremo maior no caso mortais e o termo médio no caso homens a premissa menor deve conter o termo extremo menor no caso Sócrates e o termo médio no caso homem a conclusão deve conter o maior e o menor e jamais deve conter o termo médio no caso deve conter Sócrates e mortal e jamais deve conter homem Sendo função do médio ligar os extremos deve estar nas premissas mas nunca na conclusão A idéia geral da dedução ou inferência silogística é A é verdade de B B é verdade de C Logo A é verdade de C A inferência silogística também é feita com negativas Nenhum anjo é mortal A é verdade de B Miguel é anjo B é verdade de C Logo Miguel não é mortal A é verdade de C A proposição é uma predicação ou atribuição As premissas fazem a atribuição afirmativa ou negativa do predicado ao sujeito estabelecendo a inclusão ou exclusão do médio no maior e a inclusão ou exclusão do menor no médio Graças a essa dupla inclusão ou exclusão o menor estará incluído ou excluído do maior Por ser um sistema de inclusões ou exclusões entre sujeitos e predicados o silogismo é a declaração da inerência do predicado ao sujeito inerência afirmativa quando o predicado está incluído no sujeito inerência negativa Marilena Chauí 237 quando o predicado está excluído do sujeito A ciência é a investigação dessas inerências por meio das quais se alcança a essência do objeto investigado A inferência silogística deve obedecer a oito regras sem as quais a dedução não terá validade não sendo possível dizer se a conclusão é verdadeira ou falsa 1 um silogismo deve ter um termo maior um menor e um médio e somente três termos nem mais nem menos 2 o termo médio deve aparecer nas duas premissas e jamais aparecer na conclusão deve ser tomado em toda a sua extensão isto é como um universal pelo menos uma vez pois do contrário não se poderá ligar o maior e o menor Por exemplo se eu disser Os nordestinos são brasileiros e Os paulistas são brasileiros não poderei tirar conclusão alguma pois o termo médio brasileiros foi tomado sempre em parte de sua extensão e nenhuma vez no todo de sua extensão 3 nenhum termo pode ser mais extenso na conclusão do que nas premissas pois nesse caso concluiremos mais do que seria permitido Isso significa que uma das premissas sempre deverá ser universal afirmativa ou negativa 4 a conclusão não pode conter o termo médio já que a função deste se esgota na ligação entre o maior e o menor ligação que é a conclusão 5 de duas premissas negativas nada pode ser concluído pois o médio não terá ligado os extremos 6 de duas premissas particulares nada poderá ser concluído pois o médio não terá sido tomado em toda a sua extensão pelo menos uma vez e não poderá ligar o maior e o menor 7 duas premissas afirmativas devem ter a conclusão afirmativa o que é evidente por si mesmo 8 a conclusão sempre acompanha a parte mais fraca isto é se houver uma premissa negativa a conclusão será negativa se houver uma premissa particular a conclusão será particular se houver uma premissa particular negativa a conclusão será particular negativa Essas regras dão origem às figuras e modos do silogismo As figuras são quatro e se referem à posição ocupada pelo termo médio nas premissas sujeito na maior sujeito na menor sujeito em ambas predicado na maior predicado na menor predicado em ambas Os modos se referem aos tipos de proposições que constituem as premissas universais afirmativas em ambas universais negativas em ambas particulares afirmativas em ambas particulares negativas em ambas universal afirmativa na maior e particular afirmativa na menor etc Existem 64 modos possíveis mas desses apenas dez são considerados válidos Combinandose as quatro figuras e os dez modos temse as dezenove formas válidas de silogismo Convite à Filosofia 238 Tomemos um exemplo da chamada primeira figura e os modos em que pode se apresentar Na primeira figura o termo médio é sujeito na maior e predicado na menor 1º modo todas as proposições são universais afirmativas Todos os homens são mortais Todos os atenienses são homens Todos os atenienses são mortais 2º modo a maior é universal negativa a menor é universal afirmativa e a conclusão é universal negativa Nenhum astro é perecível Todas as estrelas são astros Nenhuma estrela é perecível 3º modo a maior é universal afirmativa a menor é particular afirmativa e a conclusão é particular afirmativa Todos os homens são mortais Sócrates é homem Sócrates é mortal 4º modo a maior é universal negativa a menor é particular afirmativa e a conclusão é particular negativa Nenhum tirano é amado Dionísio é tirano Dionísio não é amado Aristóteles considera a primeira figura a mais própria para o silogismo científico porque nela a inerência do predicado no sujeito é a mais perfeita A ciência segundo Aristóteles encontra a essência das coisas demonstrando a ligação necessária entre um indivíduo a espécie e o gênero isto é a inclusão do indivíduo na espécie e desta no gênero A primeira figura é a que melhor evidencia essa inclusão ou a exclusão O silogismo científico Aristóteles distingue dois grandes tipos de silogismos os dialéticos e os científicos Os primeiros são aqueles cujas premissas se referem ao que é apenas possível ou provável ao que pode ser de uma maneira ou de uma maneira contrária e oposta ao que pode acontecer ou deixar de acontecer Suas premissas são hipotéticas e por isso sua conclusão também é hipotética Marilena Chauí 239 O silogismo científico é aquele que se refere ao universal e necessário ao que é de uma maneira e não pode deixar de ser tal como é ao que acontece sempre e sempre da mesma maneira Suas premissas são apodíticas e sua conclusão também é apodítica O silogismo dialético é o que comporta argumentações contrárias porque suas premissas são meras opiniões sobre coisas ou fatos possíveis ou prováveis As opiniões não são objetos de ciência mas de persuasão A dialética é uma discussão entre opiniões contrárias que oferecem argumentos contrários vencendo aquele argumento cuja conclusão for mais persuasiva do que a do adversário O silogismo dialético é próprio da retórica ou arte da persuasão na qual aquele que fala procura tocar as emoções e paixões dos ouvintes e não no raciocínio ou na inteligência deles O silogismo científico não admite premissas contraditórias Suas premissas são universais necessárias e sua conclusão não admite discussão ou refutação mas exige demonstração Por esse motivo o silogismo científico deve obedecer a quatro regras sem as quais sua demonstração não terá valor 1 as premissas devem ser verdadeiras não podem ser possíveis ou prováveis nem falsas 2 as premissas devem ser primárias ou primeiras isto é indemonstráveis pois se tivermos que demonstrar as premissas teremos que ir de regressão em regressão indefinidamente e nada demonstraremos 3 as premissas devem ser mais inteligíveis do que a conclusão pois a verdade desta última depende inteiramente da absoluta clareza e compreensão que tenhamos das suas condições isto é das premissas 4 as premissas devem ser causa da conclusão isto é devem estabelecer as coisas ou os fatos que causam a conclusão e que a explicam de tal maneira que ao conhecêlas estamos obedecendo as causas da conclusão Esta regra é da maior importância porque para Aristóteles conhecer é conhecer as causas ou pelas causas O que são as premissas de um silogismo científico São verdades indemonstráveis evidentes e causais São de três tipos 1 axiomas como por exemplo os três princípios lógicos ou afirmações do tipo O todo é maior do que as partes 2 postulados isto é os pressupostos de que se vale uma ciência para iniciar o estudo de seus objetos Por exemplo o espaço plano na geometria o movimento e o repouso na física 3 definições que para Aristóteles são as premissas mais importantes de uma ciência do gênero que é o objeto da ciência investigada A definição deve dizer o que a coisa estudada é como é por que é sob quais condições é a definição Convite à Filosofia 240 deve dar o que o como o porquê e o se da coisa investigada que é o sujeito da proposição A definição está referida ao termo médio pois é ele que pode preencher as quatro exigências que como por que se e é por seu intermédio que o silogismo alcança o conceito da coisa investigada Através do termo médio a definição oferece o conceito da coisa por meio das categorias substância quantidade qualidade relação lugar tempo posição posse ação paixão e da inclusão necessária do indivíduo na espécie e no gênero O conceito nos oferece a essência da coisa investigada suas propriedades necessárias ou essenciais e o termo médio é o atributo essencial para chegar à definição Por isso a definição consiste em encontrar para um sujeito uma substância seus atributos essenciais seus predicados Um atributo é essencial quando faz uma coisa ser o que ela é ou cuja ausência impediria a coisa de ser tal como é mortal é um atributo essencial de Sócrates Um atributo é acidental quando sua presença ou sua ausência não afetam a essência da coisa gordo é um atributo acidental de Sócrates O silogismo científico não lida com os predicados ou atributos acidentais A ciência é um conhecimento que vai de seu gênero mais alto às suas espécies mais singulares A passagem do gênero à espécie singular se faz por uma cadeia dedutiva ou cadeia silogística na qual cada espécie funciona como gênero para suas subordinadas e cada uma delas se distingue das outras por uma diferença específica Definir é encontrar a diferença específica entre seres do mesmo gênero A tarefa da definição é oferecer a definição do gênero e a diferença específica essencial que distingue uma espécie da outra A demonstração o silogismo partirá do gênero oferecerá a definição da espécie e incluirá o indivíduo na espécie e no gênero de sorte que a essência ou o conceito do indivíduo nada mais é do que sua inclusão ou sua inerência à espécie e ao gênero A demonstração parte da definição do gênero e dos axiomas e postulados referentes a ele deve provar que o gênero possui realmente os atributos ou predicados que a definição os axiomas e postulados afirmam que ele possui O que é essa prova É a prova de que as espécies são os atributos ou predicados do gênero e são elas o objeto da conclusão do silogismo Com isso percebese que uma ciência possui três objetos os axiomas e postulados que fundamentam a demonstração a definição do gênero cuja existência não precisa nem deve ser demonstrada e os atributos essenciais ou predicados essenciais do gênero que são suas espécies às quais chega a conclusão Numa etapa seguinte a espécie a que se chegou na conclusão de um silogismo tornase gênero do qual parte uma nova demonstração e assim sucessivamente Marilena Chauí 241 Para que o silogismo científico cumpra sua função ele deve respeitar além das regras gerais do silogismo quatro exigências relativas às suas premissas 1 devem ser premissas verdadeiras para todos os casos de seu sujeito 2 devem ser premissas essenciais isto é a relação entre o sujeito e o predicado deve ser sempre necessária seja porque o predicado está contido na essência do sujeito por exemplo o predicado linha está contido na essência do sujeito triângulo seja porque o predicado é uma propriedade essencial do sujeito por exemplo o predicado curva tem que estar necessariamente referido ao sujeito linha seja porque existe uma relação causal entre o predicado e o sujeito por exemplo o predicado eqüidistantes do centro é a causa do sujeito círculo uma vez que esta é a figura geométrica cuja circunferência tem todos os pontos eqüidistantes do centro Em resumo as premissas devem estabelecer a inerência do predicado à essência do sujeito 3 devem ser premissas próprias isto é referemse exclusivamente ao sujeito daquela ciência e de nenhuma outra Por isso não posso ir buscar premissas da geometria cujo sujeito são as figuras na aritmética cujo sujeito são os números nem as da biologia cujo sujeito são os seres vivos na astronomia cujo sujeito são os astros etc Em outras palavras o termo médio do silogismo científico se refere aos atributos essenciais dos sujeitos de uma ciência determinada e de nenhuma outra 4 devem ser premissas gerais isto é nunca devem referirse aos indivíduos mas aos gêneros e às espécies pois o indivíduo definese por eles e não eles pelo indivíduo Convite à Filosofia 242 Capítulo 3 A lógica após Aristóteles A lógica estóica Vimos que Aristóteles emprega a palavra analítica para referirse ao estudo das leis ou regras que o pensamento deve seguir para exprimir a verdade Não emprega a palavra lógica Esta foi introduzida por uma corrente filosófica do período final da Filosofia grega o estoicismo Os estóicos afirmavam que só existem corpos mesmo a alma era corporal sendo um sopro sutil e invisível o pneuma Afirmavam também que há certas coisas que não existem propriamente mas subsistem por meio de outras sendo incorporais Entre os incorporais colocavam o exprimível isto é a linguagem ou o discurso e consideravam o estudo dos discursos ou dos logoi uma disciplina filosófica especial a lógica Por afirmarem que somente os corpos existem os estóicos afirmavam como conseqüência que os juízos e as proposições só poderiam referirse ao particular ou ao singular uma ve z que os universais não têm existência ou seja não existem corpos universais mas apenas singulares As coisas singulares se imprimem em nós por meio da percepção ou da representação sobre elas formulamos os juízos e os exprimimos em proposições verdadeiras ou falsas cabendo à lógica duas tarefas 1 determinar os critérios pelos quais uma proposição pode ser considerada verdadeira ou falsa e 2 estabelecer as condições para o encadeamento verdadeiro de proposições isto é o raciocínio como ligação entre proposições singulares Por meio da percepção temos a representação direta de uma realidade Nossa memória guarda a recordação dessa representação e de muitas outras formando a experiência Da experiência nascem noções gerais sobre as coisas noções comuns que são antecipações sobre as coisas singulares de que temos ou teremos percepções A lógica se refere à relação entre as noções comuns gerais e as representações particulares As noções comuns gerais correspondem ao que Aristóteles chamou de categorias mas reduzidas a apenas quatro 1 o sujeito ou substância expresso por um substantivo ou por um pronome 2 a qualidade expressa por adjetivos Marilena Chauí 243 3 a ação e a paixão expressas pelos verbos 4 a relação que se estabelece entre as três primeiras categorias Uma outra inovação importante trazida pelos estóicos referese à proposição Esta não é como era para Aristóteles a atribuição de um predicado ao sujeito S é P mas é um acontecimento expresso por palavras o predicado é um verbo que indica algo que acontece ou aconteceu com o sujeito Pedro morre e não Pedro é mortal É dia está claro e não O dia é claro João adoece e não João é doente Como conseqüência das inovações só há corpos só há coisas singulares só há quatro categorias somente o verbo é predicado os estóicos concebem a lógica como uma disciplina que se ocupa dos significados buscando por meio deles aquilo que significa e aquilo que é Por exemplo se eu disser Sócrates temos nessa palavra aquilo que o significado significa alguém chamado Sócrates e nela temos também o próprio Sócrates que é aquilo que é ou seja a coisa real significada pela palavra Sócrates O significado estabelece a relação entre a palavra Sócrates e o homem real Sócrates O significado é ao mesmo tempo a representação mental ou o conceito ou a noção que formamos de Sócrates e a relação entre essa representação e o ser real de Sócrates Em suma o significado é o que permite estabelecer a relação entre uma palavra e um ser pela mediação da representação mental que possuímos desse ser É o sentido A lógica estóica opera com o sentido ou com o significado Uma proposição para os estóicos é sempre um enunciado simples sobre um acontecimento referente a um significado Sócrates escreve Sócrates anda Sócrates sentase Existem cinco tipos de ligações entre as proposições formando cinco tipos de raciocínios 1 raciocínio hipotético que exprime uma relação entre um antecedente e um conseqüente do tipo Se então Por exemplo Se há fumaça então há fogo há fumaça portanto há fogo Se é noite então há trevas é noite portanto há trevas 2 raciocínio conjuntivo que simplesmente justapõe os acontecimentos Por exemplo É dia está claro ou É dia e está claro 3 raciocínio disjuntivo que separa os enunciados de modo que somente um deles seja verdadeiro Por exemplo Ou é dia ou é noite 4 raciocínio causal que exprime a causa do acontecimento Por exemplo Visto que está claro portanto é dia 5 raciocínio relativo que exprime o mais ou maior e o menos ou menor Por exemplo Está menos escuro quando é mais dia Convite à Filosofia 244 De todos os tipos de raciocínio o mais importante é o hipotético porque os outros são variantes dele como se pode observar no exemplo Este soldado tem sangue no peito se tem sangue no peito feriuse tem sangue no peito portanto feriuse Outro exemplo Será dia ou noite se está claro então é dia portanto não é noite Durante a Idade Média os filósofos se dividiram em duas grandes correntes os aristotélicos como santo Tomás de Aquino e os chamados terministas que adotaram a lógica estóica como foi o caso de Guilherme de Ockham Os primeiros são considerados racionalistas enquanto os segundos são considerados empiristas já que só admitem a existência e a experiência de coisas singulares de que temos sensação ou percepção e porque só aceitam a conexão de proposições cuja conclusão exprima fatos ou acontecimentos presentes A lógica contemporânea irá buscar nos estóicos a idéia de relação contrapondoa à atribuição aristotélica que estabelece a inclusão do predicado no sujeito Os medievais e os clássicos Para Platão a dialética era o instrumento para alcançar a verdade Por meio dela a faculdade de conhecer subia das opiniões contrárias ou opostas até às idéias ou essências universais a realidade verdadeira A dialética era assim um método de diálogo que partia da discussão entre interlocutores que possuindo apenas imagens confusas das coisas defendiam posições contrárias sobre um assunto ou sobre alguma coisa as contradições entre as opiniões iam sendo discutidas depuradas purificadas pelos argumentos racionais da dialética que persuadia os interlocutores a alcançar a identidade da idéia a mesma para todos Para Aristóteles porém a dialética não poderia cumprir o papel de instrumento do pensamento verdadeiro porque este exige procedimentos de prova ou demonstração para além da simples argumentação Por esse motivo Aristóteles reservava a dialética para os campos em que a argumentação e a persuasão eram importantes mas colocava a lógica a analítica como instrumento indispensável do pensamento científico e filosófico isto é do pensamento que demonstra a verdade das suas teses e conclusões A lógica era assim o instrumento demonstrativo do pensamento verdadeiro Os estóicos mantiveram a idéia aristotélica de que a lógica era um instrumento de prova No entanto como sua teoria do conhecimento afirmava que só conhecemos aquilo de que temos experiência direta a prova era considerada a maneira pela qual se podia chegar a uma conclusão partindo de premissas meramente prováveis isto é do raciocínio hipotético Por esse motivo a prova possuía um caráter persuasivo ou argumentativo levando o estoicismo a identificar lógica e dialética Durante a Idade Média embora os filósofos tivessem feito opções diferentes uns optaram pela concepção de Aristóteles e outros pela dos estóicos todos Marilena Chauí 245 tenderam a identificar lógica e dialética isto é a considerar que a lógica é uma arte racional de demonstração mas que essa demonstração tem a força de um argumento persuasivo A lógica oferecia os procedimentos racionais da prova e da dialética os meios de persuadir o ouvinte ou o leitor A principal contribuição dos medievais esteve no esforço para dar um passo além de Aristóteles com a proposta de quantificar também o predicado das proposições Assim além das proposições serem universais ou particulares em função do sujeito todos os S nenhum S alguns S este S deveriam ser também universais ou particulares conforme o predicado todos os P nenhum P alguns P este P Por exemplo Todos os homens são alguns mortais pois os animais e as plantas também são mortais Todos os homens são todos os seres compostos de corpo e espírito pois os anjos só têm espírito enquanto os animais e as plantas só têm corpo Os medievais também contribuíram para a lógica deixando mais clara a relação entre ela e a linguagem isto é mostrando que a lógica é inseparável de um uso ordenado e regulado da linguagem Partindo do latim que era a língua culta usada pela Filosofia pela ciência pelas artes e pelo direito estabeleceram regras para todas as funções sintáticas e semânticas dos signos da língua latina Essa concepção da lógica como relação entre o pensamento e uma linguagem perfeitamente ordenada e regulada capaz de exprimir claramente as idéias foi intensamente desenvolvida no século XVII por Leibniz que propôs uma Arte Combinatória inspirada na álgebra Assim como a álgebra possui símbolos próprios inconfundíveis universais para todos os matemáticos assim também a lógica deveria ser uma linguagem perfeita totalmente purificada das ambigüidades e contrasensos da linguagem cotidiana Leibniz propôs uma linguagem simbólica artificial isto é construída especialmente para garantir ao pensamento plena clareza nas demonstrações e nas provas A relação entre lógica e matemática também foi desenvolvida no século XVII pelo filósofo inglês Hobbes tendo a geometria como modelo Hobbes considerava o raciocínio um cálculo isto é quando raciocinamos simplesmente somamos subtraímos multiplicamos ou dividimos idéias cabendo à lógica estabelecer as regras universais desse cálculo A linguagem dizia Hobbes é uma convenção social É por convenção que fazemos determinados sons e determinadas grafias isto é determinadas palavras corresponderem a certas coisas e não a outras e conseqüentemente o significado lingüístico e mental resulta dessa convenção social À lógica caberia organizar ordenar e sistematizar as formas corretas do uso das convenções garantindo que cada palavra e cada idéia cada proposição e cada conceito pudessem corresponderse livres de toda confusão e ambigüidade Convite à Filosofia 246 Esse ideal de uma lógica simbólica perfeita inspirada na linguagem matemática veio concretizarse apenas nos meados do século XIX com a publicação de duas obras Análise matemática da lógica de Boole em 1847 e Lógica formal de Morgan também em 1847 Caberia mais tarde ao filósofo alemão Frege e aos filósofos ingleses Bertrand Russell e Alfred Whitehead completar e consolidar a grande transformação da lógica abandonando as teorias aristotélicas da inferência por uma nova concepção de proposição lógica A lógica matemática Para os antigos e os medievais aristotélicos os princípios e as leis da lógica correspondiam à estrutura da própria realidade pois o pensamento exprime o real e dele participa Aristóteles dizia que a verdade e a falsidade são propriedades do pensamento e não das coisas que a realidade e a irrealidade aparência ilusória são propriedades das coisas e não do pensamento mas que um pensamento verdadeiro devia exprimir a realidade da coisa pensada enquanto um pensamento falso nada podia exprimir Para os medievais terministas e para os modernos século XVII a lógica era uma arte de pensar para bem conduzir a razão nas ciências Os princípios e as leis da lógica correspondiam à estrutura do próprio pensamento sobretudo à do raciocínio dedutivo para os filósofos franceses de PortRoyal e à do raciocínio indutivo para o filósofo inglês Francis Bacon Como arte de pensar a lógica oferecia ao conhecimento científico e filosófico as leis do pensamento verdadeiro e os procedimentos para a avaliação dos conhecimentos adquiridos Essa lógica antiga e moderna não era plenamente formal pois não era indiferente aos conteúdos das proposições nem às operações intelectuais do sujeito do conhecimento A forma lógica recebia o valor de verdade ou falsidade a partir da verdade ou falsidade dos atos de conhecimento do sujeito e da realidade ou irrealidade dos objetos conhecidos Ao contrário a lógica contemporânea procurando tornarse um puro simbolismo do tipo matemático e um cálculo simbólico preocupase cada vez menos com o conteúdo material das proposições a realidade dos objetos referidos pela proposição e com as operações intelectuais do sujeito do conhecimento a estrutura do pensamento Tornouse plenamente formal Assim como o matemático lida com objetos que foram construídos pelas próprias operações matemáticas de acordo com princípios e regras prefixados e aceitos por todos assim também o lógico elabora os símbolos e as operações que constituem o objeto lógico por excelência a proposição O lógico indaga que forma deve possuir uma proposição para que sejalhe atribuída o valor de verdade ou falsidade represente a forma do pensamento e represente a relação entre pensamento linguagem e realidade Marilena Chauí 247 A lógica descreve as formas as propriedades e as relações das proposições graças à construção de um simbolismo regulado e ordenado que permite diferenciar linguagem cotidiana e linguagem lógica formalizada Boole definiu a lógica como o método que repousa sobre o emprego de símbolos dos quais se conhecem as leis gerais de combinação e cujos resultados admitem interpretação coerente A lógica tornouse cada vez mais uma ciência formal da linguagem mas de uma linguagem muito especial que nada tem a ver com a linguagem cotidiana pois tratase de uma linguagem inteiramente construída por ela mesma partindo do modelo da matemática Dois aspectos devem ser mencionados para melhor compreendermos a relação entre a lógica contemporânea e a matemática 1 A mudança no modo de conceber o que seja a matemática Durante séculos na verdade desde os gregos considerouse a matemática uma ciência baseada na intuição intelectual de verdades absolutas existentes em si e por si mesmas sem depender de qualquer interferência humana Os axiomas as figuras geométricas os números e as operações aritméticas os símbolos e as operações algébricas eram considerados verdades absolutas universais necessárias que existiriam com ou sem os homens e que permaneceriam existindo mesmo se os humanos desaparecessem para muitos filósofos a matemática chegou a ser considerada a ciência divina por excelência No entanto desde o século XIX passouse a considerar a matemática uma ciência que resulta de uma construção intelectual uma invenção do espírito humano sem que suas entidades sejam existentes em si e por si mesmas Os entes matemáticos são puras idealidades construídas pelo intelecto ou pelo pensamento que formula um conjunto rigoroso de princípios regras normas e operações para a criação de figuras números símbolos cálculos etc No final do século XIX o matemático italiano Peano realizou um estudo sobre a aritmética dos números cardinais finitos demonstrando que podia ser derivada de cinco axiomas ou proposições primitivas e de três termos não definíveis zero número e sucessor de Desta maneira a matemática surgia como um ramo da lógica cabendo ao alemão Frege e aos ingleses Bertrand Russell e Alfred Whitehead prosseguir o trabalho de Peano oferecendo as definições lógicas dos três termos que o matemático italiano julgara indefiníveis Frege ofereceu o primeiro conceito de sistema formal e os primeiros exemplos do cálculo de proposições e de predicados A matemática é uma ciência de formas e cálculos puros organizados numa linguagem simbólica perfeita na qual cada signo é um algoritmo isto é um símbolo com um único sentido É elaborada pelo espírito humano e não um Convite à Filosofia 248 pensamento intuitivo que contemplaria entidades perfeitas e eternas existentes em si e por si mesmas 2 Mudança no modo de conceber o pensamento distinguindo psicologia e teoria do conhecimento Durante muitos séculos psicologia e teoria do conhecimento estiveram confundidas constituindo uma só disciplina filosófica encarregada de estudar os modos como conhecemos as coisas distinguindo o que é puramente pessoal e individual a vida psíquica ou mental de cada um de nós do que é universal e necessário válido em todos os tempos e lugares para todos os sujeitos do conhecimento Quando a psicologia se tornou uma ciência descrição dos fatos psíquicos e suas leis independente da Filosofia e a teoria do conhecimento permaneceu filosófica por não ser apenas uma descrição da vida mental mas um estudo das diferenças no conteúdo e na forma dos conhecimentos surgiu a pergunta Onde fica a lógica Alguns responderam Na psicologia Alegavam que os progressos da ciência psicológica iriam definir as regras universais a que todo e qualquer pensamento se submete e a lógica seria apenas um ramo da psicologia aquele que estuda como funciona o pensamento científico Essa corrente lógica recebeu o nome de psicologismo lógico mas foi logo refutada pela maioria dos lógicos e particularmente pelo alemão Edmund Husserl o criador da fenomenologia À pergunta Onde fica a lógica os lógicos responderam Consigo mesma Em outras palavras a lógica não é parte da psicologia nem da teoria do conhecimento mas uma disciplina filosófica independente Essa independência decorre da complexidade do pensamento pois quando pensamos há quatro fatores que nos permitem pensar 1 o sujeito que pensa o sujeito do conhecimento estudado pela teoria do conhecimento 2 o ato de pensar as operações mentais estudadas pela psicologia 3 o objeto pensado estudado pelas ciências e 4 o pensamento decorrente do ato de pensar esse o objeto da lógica A lógica não se confunde com a psicologia nem com a teoria do conhecimento porque seu objeto é o pensamento enquanto operação demonstrativa que segue regras orientadas para determinar se a demonstração é verdadeira ou falsa do ponto de vista do próprio pensamento isto é se a demonstração obedeceu ou não aos princípios lógicos Qual o efeito dessas duas mudanças sobre a lógica contemporânea Em primeiro lugar ao manter a proximidade e a relação com a matemática a lógica passou a ser entendida como avaliadora da verdade ou falsidade do pensamento concebido como uma construção intelectual Ora se o pensamento constrói seus próprios objetos em vez de descobrilos ou contemplálos essa construção segundo os próprios matemáticos faz com que a matemática deva ser Marilena Chauí 249 entendida como um discurso ou como uma linguagem que obedece a certos critérios e padrões de funcionamento Assim sendo a lógica adotou para si o modelo de um discurso ou de uma linguagem que lida com puras formas sem conteúdo e tais formas são símbolos de tipo matemático algoritmos Em segundo lugar distinguindose da psicologia e da teoria do conhecimento a lógica passou a dedicarse menos ao pensamento e muito mais à linguagem seja como tradução representação ou expressão do pensamento seja como discurso independente do pensamento Seu objeto passou a ser o estudo de um tipo determinado de discurso a proposição e as relações entre proposições Sua finalidade tornouse o projeto de oferecer normas e critérios para uma linguagem perfeita capaz de avaliar as demais linguagens científicas filosóficas artísticas cotidianas etc Linguagem e metalinguagem Para conseguir seu propósito a lógica distingue dois níveis de linguagem 1 linguagem natural isto é aquela que usamos em nossa vida cotidiana nas artes na política na filosofia 2 linguagem formal isto é aquela que é construída segundo princípios e regras determinados que descrevem um tipo específico de objeto o objeto das ciências Essa distinção também pode ser apresentada como diferença entre dois tipos de linguagem simbólicas 1 a linguagem simbólica cultural a linguagem natural que usa signos metáforas analogias esquemas para exprimir significações cotidianas religiosas artísticas políticas filosóficas A principal característica desse simbolismo é ser conotativo isto é os símbolos carregam muitos sentidos e referemse a muitas significações A linguagem cultural é polissêmica isto é nela as palavras possuem inúmeros significados 2 a linguagem simbólica lógicocientífica a linguagem construída que usa um sistema fechado de signos ou símbolos o algoritmo em que cada símbolo é símbolo de uma única coisa e corresponde a uma única significação Sua principal característica é ser essencialmente um simbolismo denotativo ou indicativo evitando a polissemia e afirmando a univocidade do sentido simbolizado Por exemplo H2O x etc são símbolos denotativos ou indicativos de um só objeto ou de um só sentido são algoritmos A lógica ocupase com a linguagem formal ou com a linguagem simbólico científica Por ser um discurso ou uma linguagem que fala de outro discurso ou de outra linguagem se diz que ela é uma metalinguagem Na vida cotidiana podemos dizer por exemplo uma frase como O Sol é uma estrela A lógica começará dizendo A frase O Sol é uma estrela é uma proposição afirmativa Prosseguirá dizendo A proposição A frase O Sol é Convite à Filosofia 250 uma estrela é uma proposição afirmativa é uma proposição verdadeira E assim por diante A idéia da lógica como metalinguagem transparece com clareza quando examinamos por exemplo as teses principais do austríaco Ludwig Wittgenstein cuja influência seria sentida por toda a lógica do século passado 1 qualquer proposição que tenha significado é composta por proposições elementares nas quais se encontra a verdade ou falsidade da proposição com significado 2 as proposições elementares adquirem significado porque afiguram retratam o mundo não como fatos e coisas mas como estado de coisas 3 as proposições da lógica são verdadeiras independentemente das noções de significado e de estado de coisas porque rigorosamente não falam de nada pois referemse a qualquer fato significado ou estado de coisas que possam ocorrer ou não no Universo As proposições lógicas são verdades vazias referidas apenas ao próprio uso das convenções lógicas Lógica dos predicados e lógica das relações Vimos que alguns filósofos medievais e clássicos julgaram necessário quantificar além do sujeito da proposição também o predicado No século XIX o lógico inglês Hamilton levou avante a quantificação dos predicados chegando a oito tipos de proposições 1 afirmativas totototais em que sujeito e predicado são tomados em toda sua extensão universais Todo S é todo P Por exemplo Todo triângulo é todo trilateral 2 afirmativas totoparciais em que o sujeito é tomado universalmente e o predicado particularmente Todo S é algum P Por exemplo Todo triângulo é alguma figura 3 afirmativas partitotais em que o sujeito é particular e o predicado é tomado universalmente Alguns S são todo P Por exemplo Alguns sulamericanos são todos os brasileiros 4 afirmativas partiparciais em que o sujeito e o predicado são tomados como particulares Algum S é algum P Por exemplo Algumas figuras eqüilaterais são alguns triângulos 5 negativas totototais em que o sujeito em toda a sua extensão é excluído de toda a extensão do predicado Nenhum S é nenhum P Por exemplo Nenhum triângulo é nenhum quadrado 6 negativas totoparciais em que todo sujeito é excluído de apenas uma parte do predicado Nenhum S é algum P Por exemplo Nenhum triângulo é algum eqüilateral Marilena Chauí 251 7 negativas partitotais em que só uma parte do sujeito é excluída da extensão do predicado Algum S não é nenhum P Por exemplo Alguma figura eqüilateral não é nenhum triângulo 8 negativas partiparciais em que uma parte da extensão do sujeito é excluída de uma parte da extensão do predicado Alguns S não são alguns P Por exemplo Algum triângulo não é alguma figura eqüilateral As proposições poderiam converterse simplesmente umas nas outras e finalmente uma proposição era apenas uma equação entre um sujeito e um predicado Com isso o raciocínio já não consistia em fazer uma noção entrar em outra a antiga inerência aristotélica mas ser capaz de substituir outra equivalente em proposições dadas de sorte que proposições usando palavras como homem animal mortal etc poderiam ser tratadas como os raciocínios matemáticos que usam símbolos como x y e z Estava aberta a porta para que Boole propusesse o cálculo lógico O cálculo lógico realizouse em duas etapas diferentes Na primeira com a introdução das noções de classe e função mantevese a idéia de que a proposição é a inclusão de um sujeito num predicado ou melhor a inclusão de toda ou parte da extensão do sujeito em toda ou parte da extensão do predicado Na segunda etapa com a introdução da idéia de relação passouse da concepção inclusivaexclusiva do sujeito e do predicado à de sua equivalência ou substituição de um por outro À medida que se desenvolveu a formalização e a matematização da lógica a noção de predicado recebeu um novo sentido e um novo tratamento Passou a ser tratado como classe Esta é um conjunto de objetos que possuindo algo em comum vão juntos Um predicado é o que permite reunir determinados objetos em classes a classe dos azuis a classe dos esféricos a classe dos sulamericanos a classe dos felizes a classe dos miseráveis a classe dos sólidos etc Um predicado isolado azul feliz sólido miserável etc não é verdadeiro nem falso Recebe tal valor apenas a partir da inclusão ou exclusão do sujeito numa classe Com a classe o predicado se torna uma relação entre duas variáveis e essa relação chamase função A lógica passa a construir um simbolismo que permite definir as funções do predicado introduzindo novos quantificadores com os quais a função é calculada Esse cálculo constitui a lógica dos predicados Por exemplo a proposição tradicional Sócrates é homem será formalizada como Fa onde F a função significa a quantidade de ser homem e a a variável designa Sócrates Todavia a variável poderá designar um indivíduo qualquer um sujeito indeterminado e a proposição será escrita como Fx Tal proposição pode ser quantificada a universal será escrita como xFx devendo ser lida como para todo x F de x Convite à Filosofia 252 a particular ou existencial será escrita como xFx devendo ser lida como existe um x tal que F de x Se em lugar da inclusão tradicional do predicado no sujeito tivermos classes a relação será estabelecida entre elemento e classe ou entre as próprias classes tornando a proposição muito mais abrangente e complexa Tomemos por exemplo a proposição Os homens são mortais e a proposição Sócrates é mortal Para calculálas devemos começar pela relação entre a classe dos homens e a dos mortais A Classe dos homens B Classe dos mortais A B A classe dos homens está incluída na classe dos mortais x Sócrates A Classe dos homens x A Sócrates pertence à classe dos homens Donde x x A x B onde significa implica Lemos Para todo x x pertence a A implica que x pertence a B Portanto Sócrates é mortal São seis as operações que podem ser realizadas com as classes 1 inclusão de uma classe em outra A B 2 reunião de várias classes D M N 3 intersecção de várias classes com elementos comuns A B C 4 a da classe universal que abrange todos os elementos e cujo símbolo é 5 a da classe vazia isto é que não contém elemento algum e cujo símbolo é 6 a da classe complementar A de A formada por todos os elementos que não pertencem a A Os lógicos que mais desenvolveram a possibilidade de uma lógica das classes das funções proposicionais e do cálculo dos predicados foram Frege Whitehead Bertrand Russell e Wittgenstein A lógica dos predicados foi enriquecida e modificada com a lógica das relações iniciada no século XIX pelos filósofos ingleses Morgan que também era matemático e Peirce A lógica das relações ocupase como o nome indica com relações entre conjuntos de objetos maior do que menor do que perto de longe de mais velho Marilena Chauí 253 que mais novo que pai de mãe de irmão de causa de finalidade de semelhança com diferente de etc As relações podem abranger dois ou mais objetos sendo binárias ternárias quaternárias etc dependendo do número de objetos abrangidos por ela A relação mais conhecida é a binária expressa na fórmula xRy que significa há uma relação entre x e y As relações possuem propriedades calculáveis Tais propriedades permitem diferenciar os vários tipos de relação como por exemplo relação transitiva dados x y e z e dadas xRy e yRz há uma relação xRz Por exemplo x é maior do que y xRy y é maior do que z yRz x é maior do que z xRz Ou xRy yRz xRz relação nãotransitiva dados x y e z e dadas xRy e yRz não se pode ter xRz embora haja uma relação entre x e z Por exemplo Pedro é pai de João xRy João é pai de Antônio yRz mas Pedro não é pai de Antônio pois é seu avô relação intransitiva dados x y e z e dadas xRy e yRz não é possível determinar qual seria a relação entre x e z Por exemplo x é maior do que y xRy y é menor do que z yRz mas não podemos saber se x é maior ou menor do que z relação de simetria xRy é o mesmo que yRx Por exemplo a é igual a b b é igual a a Ou xyxRy yRx relação de assimetria quando se tem xRy não se pode ter yRx Por exemplo a é maior do que b e portanto não se pode ter b é maior do que a Ou xyxRy yRx relação reflexiva estabelecese entre uma relação transitiva e uma relação simétrica Assim por exemplo x pode ver y é reflexiva num mundo onde haja espelhos onde y pode ver x relação irreflexiva estabelecese entre relações intransitivas e assimétricas relação inversa uma relação é inversa S a uma outra relação R quando para todos os objetos x y e z verificase xRy se e somente se houver ySx É o caso por exemplo da relação pai de e filho de Tanto a lógica dos predicados quanto a lógica das relações estão submetidas a uma lógica mais ampla que é a das proposições ou do cálculo proposicional pois a proposição é o campo da lógica propriamente dita O cálculo das proposições consiste em estabelecer os procedimentos pelos quais podemos Convite à Filosofia 254 determinar a verdade ou a falsidade de uma proposição de acordo com sua ligação com outra ou com outras Os casos mais simples de cálculos de proposições referemse à conjunção Pedro canta e Pedro dança negação Pedro canta Pedro não canta disjunção Pedro canta ou Pedro dança e implicação Se Pedro canta então Pedro dança O cálculo consiste em atribuir o valor verdade a uma das proposições o valor falsidade à outra e inferir o valor da ligação entre elas Para que se perceba que o conteúdo das proposições é irrelevante só interessando sua forma vejamos como são simbolizados os vários cálculos das ligações proposicionais cálculo da conjunção e símbolo da conjunção p q pq v v v v f f f v f f f f cálculo da negação não símbolo da negação p p v f f v cálculo da disjunção ou símbolo da disjunção p q p q v v v v f v f v v f f f cálculo da implicação implica que símbolo da implicação p q p q v v v v f f f v v f f v Um exemplo poderá nos ajudar a compreender como funciona o cálculo Se dissermos Se Pedro é cearense p ou catarinense q então é brasileiro r Ora Pedro não é brasileiro Portanto não é cearense nem catarinense teremos p q r r p q cálculo da biimplicação ou equivalência símbolo da equivalência p q p q v v v Marilena Chauí 255 v f f f v f f f v Esses cálculos constituem as matrizes que são como tabelas que apresentam todas as situações possíveis que cada ligação associa a um par de proposições elementares p e q Convite à Filosofia 256 Capítulo 4 Lógica e Dialética Vimos a diferença entre Platão e Aristóteles a respeito do papel da dialética no conhecimento Vimos também a maneira como os estóicos e os medievais articularam lógica e dialética Vimos por fim que a lógica moderna e contemporânea enfatizaram o formalismo lógico e aproximaram ao máximo lógica e matemática Entretanto entre o século XVII e o século XX houve uma outra posição filosófica que procurando superar as diferenças entre Platão e Aristóteles de um lado e recusando a identificação entre lógica e matemática de outro lado reuniu mais uma vez lógica e dialética Tratase da filosofia hegeliana no século XIX Para compreendermos a posição de Hegel precisamos levar em consideração dois acontecimentos filosóficos alemães muito importantes o idealismo crítico de Kant e o romantismo filosófico Como já analisamos anteriormente Kant ao escrever a Crítica da razão pura e a Crítica da razão prática havia estabelecido uma distinção profunda entre a realidade em si e o conhecimento da realidade A primeira dizia ele é inalcançável por nosso entendimento embora nossa razão aspire por ela tendo criado a metafísica como conhecimento racional das coisas em si Mas a metafísica não é possível é uma ilusão inevitável de nossa razão Conhecemos apenas o modo como a realidade se apresenta a nós os fenômenos organizada pela estrutura de nossa própria capacidade de conhecer isto é segundo as formas do espaço e do tempo e segundo os conceitos ou categorias de nosso entendimento substância qualidade quantidade causalidade atividade passividade Embora a realidade em si isto é a essência em si de Deus da alma e do mundo não possa ser racionalmente conhecida por nós permanece porém como um ideal de nossa razão que fazendo dessas essências idéias puras as coloca como fundamentos de nossa vida ética ou moral A separação kantiana entre entendimento e razão conceitos e idéias fenômenos e realidades em si foi interpretada como separação entre sujeito e mundo seres humanos e Natureza espírito e Natureza Como o sujeito e sua atividade de conhecimento assim como sua atividade ética e política criam o mundo humano da Cultura a separação kantiana foi interpretada como separação entre Cultura e Natureza Os filósofos e artistas românticos alemães não aceitavam tal separação e buscaram caminhos pelos quais humanos e Natureza pudessem reunirse Marilena Chauí 257 novamente ou como diziam pudessem reconciliarse Julgavam haver encontrado o caminho para isso nas Artes Elas seriam o reencontro dos humanos e da Natureza através da beleza e do sentimento estético ou da imaginação e da sensibilidade Hegel porém recusou a solução romântica Dizia ele que no fundo não tinha havido reconciliação alguma Enquanto Kant coloca tudo no sujeito os românticos haviam colocado tudo na Natureza desejando fundirse com ela por meio da imaginação e da sensibilidade Os dois termos Cultura e Natureza sujeito e mundo espírito e realidade continuavam separados Como reunilos verdadeiramente Como alcançar a verdadeira reconciliação Respondeu Hegel compreendendo que só existe o Espírito que a Natureza é uma manifestação do próprio Espírito uma exteriorização do Espírito que a Cultura também é uma exteriorização do Espírito manifestação espiritual e que ambos serão reunidos e reconciliados na interiorização do próprio Espírito quando este se reconhecer como a interioridade que se manifestou externamente como Natureza e Cultura O movimento pelo qual o Espírito se exterioriza como Natureza e Cultura e pelo qual retorna a si mesmo como interioridade de ambas é a História não como seqüência temporal de acontecimentos e de causas e de efeitos mas como vida do Espírito O que é o Espírito É o verbo divino Em grego o logos O que é a vida do logos a História É a lógica Que é a lógica como vida do Espírito É o movimento pelo qual o Espírito produz o mundo Natureza e Cultura conhece sua produção e se reconhece como produtor é portanto o movimento da atividade de criação e de autoconhecimento do Espírito É a ciência da lógica entendendose por ciência não a descrição e explicação dos fatos e de seus encadeamentos causais mas a atividade pela qual o Espírito se conhece a si mesmo ao criarse a si mesmo manifestandose ou exteriorizandose como Natureza e Cultura Essa ciência da lógica é a dialética O que é a dialética Platão e Aristóteles divergindo quanto ao papel da dialética no conhecimento concordavam porém num ponto a dialética é o logos dividido internamente em predicados opostos ou contrários dividido internamente por predicados contraditórios Ora que fizeram Platão e Aristóteles Consideraram que a realidade e a verdade obedecem ao princípio de identidade e expulsam a contradição Esta é considerada irreal do ponto de vista da realidade e impossível do ponto de vista da verdade pois é irreal e impossível que uma coisa seja e não seja ela mesma ao mesmo tempo e na mesma relação Em outras palavras algo é real e verdadeiro quando podemos conhecer o conjunto de seus predicados positivos e Convite à Filosofia 258 afastar os predicados negativos contrários e contraditórios Em Platão a função da dialética era expulsar a contradição Em Aristóteles a função da lógica era garantir o uso correto do princípio de identidade Ambos se enganaram julga Hegel A dialética é a única maneira pela qual podemos alcançar a realidade e a verdade como movimento interno da contradição pois Heráclito tinha razão ao considerar que a realidade é o fluxo eterno dos contraditórios No entanto ele também se enganou ao julgar que os termos contraditórios eram pares de termos positivos opostos A verdadeira contradição dialética possui duas características principais 1 nela os termos contraditórios não são dois positivos contrários ou opostos mas dois predicados contraditórios do mesmo sujeito que só existem negando um ao outro Em vez de dizer quentefrio doceamargo materialespiritual naturalcultural devemos compreender que é preciso dizer quentenão quente frionão frio docenão doce amargonão amargo materialnão material espiritualnão espiritual naturalnão natural culturalnão cultural 2 o negativo o não x não quente nãodoce não material não natural etc não é um positivo contrário a outro positivo mas é verdadeiramente negativo Se eu disser por exemplo o caderno não é a árvore esse não não é um negativo verdadeiro pois o caderno e a árvore continuam como dois termos positivos Esse não escreve Hegel é mera negação externa Nesta qualquer termo pode ser negação de qualquer outro Assim por exemplo posso dizer o caderno não é a árvore não é a porta não é João não é a mesa etc O verdadeiro negativo é uma negação interna como aquela que surge se eu disser por exemplo o caderno é a nãoárvore pois aqui o ser do caderno a sua realidade é a negação da realidade da árvore o caderno é a árvore negada como árvore Não tenho uma árvore que virou um caderno mas uma árvore que deixou de ser árvore porque foi transformada em caderno A negação interna é aquela na qual um ser é a supressão de seu outro de seu negativo A contradição dialética nos revela um sujeito que surge se manifesta e se transforma graças à contradição de seus predicados Em lugar de a contradição ser o que destrói o sujeito como julgavam todos os filósofos ela é o que movimenta e transforma o sujeito fazendoo síntese ativa de todos os predicados postos e negados por ele Que é a lógica vida do Espírito É o movimento dialético pelo qual o Espírito como sujeito vivo põe ou cria seus predicados manifestase através deles nega os e os suprime como termos separados dele e diferentes dele para fazêlos coincidirem com ele Os predicados não são como na lógica formal e matemática termos positivos inertes que atribuímos ou recusamos a um sujeito mas são realidades criadas negadas suprimidas e reincorporadas pelo próprio sujeito isto é pelo Espírito Marilena Chauí 259 Se retornarmos agora ao nosso ponto de partida a separação sujeitomundo CulturaNatureza poderemos compreender por que a ciência da lógica tal como Hegel a concebe é a reconciliação racional dos termos O Espírito começa como um sujeito que se exterioriza no predicado Natureza isto é manifestandose como coisa substância qualidade quantidade relações de causa e efeito etc Ele é terra água ar fogo céu astros mares minerais vegetais animais Para conservarse vivo o ser natural a coisa precisa consumir os seres que o rodeiam o Espírito como Natureza negase a si mesmo consumindose a si mesmo os animais consomem água plantas outros animais ar calor luz as plantas consomem calor água luz os astros consomem energia e matéria etc Essa negação pelo consumo não é transformadora pois ela se realiza para conservar as coisas Entretanto o Espírito se manifesta num outro predicado a Consciência Esta também busca conservarse mas agora o faz não pelo simples consumo das coisas naturais mas pela negação da mera naturalidade delas O que é essa negação Quando digo Isto é uma montanha tenho a impressão de que me refiro a uma coisa natural diferente de mim existente em si mesma e com características positivas próprias Entretanto o simples fato de que chame uma coisa de montanha indica que ela não existe em si mas existe para mim isto é possui um sentido em minha experiência Suponhamos agora que eu pertença a uma comunidade politeísta que acredita que os deuses superiores aos homens mas dotados de forma humana habitem os lugares altos Para mim agora a montanha não é mais uma simples coisa mas a morada sagrada dos deuses Imaginemos em seguida que somos uma empresa capitalista exploradora de minérios e que haja uma jazida de ferro na montanha Como empresários compramos a montanha para explorála Novamente ela deixou de ser uma simples coisa natural para tornarse propriedade privada local de trabalho e capital Consideremos por fim que somos pintores Nesse caso a montanha não é nem morada dos deuses nem propriedade privada capitalista nem local de trabalho mas forma cor volume linhas profundidade um campo de visibilidade Sob essas quatro formas isto é uma montanha morada dos deuses jazida de minério de ferropropriedade privadacapital e campo de visibilidade a montanha como coisa natural desapareceu foi negada como mera coisa pela consciência e pela ação humanas Tornouse nãocoisa porque tornouse montanhaparanós significação ente cultural Foi consumidadestruída suprimidanegada pela Cultura Em termos hegelianos o Espírito negouse como Natureza e afirmouse como Cultura Negouse como seremsi tornandose ser parasi Devese compreender que a negação dialética não significa a destruição empírica ou material de coisas empíricas ou materiais e sim a destruição de seu Convite à Filosofia 260 sentido imediato que é superado por um sentido novo posto pelo próprio espírito Ao reconhecerse como movimento interno de posição negação e supressão de seus predicados S é Natureza S é nãoNatureza porque é Cultura o Espírito reconhecese como sujeito que se produz a si mesmo e que é o movimento de autoprodução de si mesmo S é Natureza e Cultura porque é o Espírito Nesse reconhecimento reconciliase consigo mesmo é ao mesmo tempo em si e para si Como se observa em Hegel a lógica não é um instrumento formal para o bom uso do pensamento mas é ontologia Marilena Chauí 261 Unidade 6 A metafísica Convite à Filosofia 262 Introdução As indagações metafísicas Por que há seres em vez do nada Por que uma coisa pode mudar e no entanto conservar sua identidade individual de tal maneira que podemos dizer que é a mesma coisa ainda que a vejamos diferente do que fora antes Como sabemos que uma determinada roseira é a mesma que no ano passado não passava de um ramo com poucas folhas e sem flor Como sabemos que Paulo hoje adulto é o mesmo Paulo que conhecemos criança Por que sinto que sei que sou diferente das coisas Porém por que também sinto que sei que um outro corpo diferente e semelhante do meu não é uma coisa mas um alguém Por que eu e o outro podemos ver de modo diferente sentir e gostar de modo diferente discordar sobre tantas coisas fazer coisas diferentes e no entanto ambos admitimos sem sombra de dúvida que um triângulo o número 5 o círculo os arcos do palácio da Alvorada ou as pirâmides do Egito são exatamente as mesmas coisas para ele e para mim O que é uma coisa E um objeto O que é a subjetividade O que é o corpo humano E uma consciência Perguntas como essas constituem o campo da metafísica ainda que nem sempre as mesmas palavras tenham sido usadas para formulálas Por exemplo um filósofo grego não falaria em nada mas em nãoser Não falaria em objeto mas em ente pois a palavra objeto só foi usada a partir da Idade Média e no sentido em que a empregamos hoje só foi usada a partir do século XVII Também não falaria em consciência mas em psyche isto é alma Jamais falaria em subjetividade pois essa palavra com o sentido que lhe damos hoje só foi usada a partir do século XVIII A mudança do vocabulário da Filosofia no curso desses 25 séculos indica que mudaram os modos de formular as questões e respondêlas pois a Filosofia está na História e possui uma história No entanto sob essas mudanças profundas permaneceu a questão metafísica fundamental O que é Marilena Chauí 263 A pergunta pelo que é A metafísica é a investigação filosófica que gira em torno da pergunta O que é Este é possui dois sentidos 1 significa existe de modo que a pergunta se refere à existência da realidade e pode ser transcrita como O que existe 2 significa natureza própria de alguma coisa de modo que a pergunta se refere à essência da realidade podendo ser transcrita como Qual é a essência daquilo que existe Existência e essência da realidade em seus múltiplos aspectos são assim os temas principais da metafísica que investiga os fundamentos as causas e o ser íntimo de todas as coisas indagando por que existem e por que são o que são A história da metafísica pode ser dividida em três grandes períodos o primeiro deles separado dos outros dois pela filosofia de David Hume 1 período que vai de Platão e Aristóteles séculos IV e III aC até David Hume século XVIII dC 2 período que vai de Kant século XVIII até a fenomenologia de Husserl século XX 3 metafísica ou ontologia contemporânea dos anos 20 aos anos 70 do século passado XX Características da metafísica em seus períodos No primeiro período a metafísica possui as seguintes características investiga aquilo que é ou existe a realidade em si é um conhecimento racional apriorístico isto é não se baseia nos dados conhecidos diretamente pela experiência sensível ou sensorial nos dados empíricos mas nos puros conceitos formulados pelo pensamento puro ou pelo intelecto é um conhecimento sistemático isto é cada conceito depende de outros e se relaciona com outros formando um sistema coerente de idéias ligadas entre si exige a distinção entre ser e parecer ou entre realidade e aparência seja porque para alguns filósofos a aparência é irreal e falsa seja porque para certos filósofos a aparência só pode ser compreendida e explicada pelo conhecimento da realidade que subjaz a ela Esse primeiro período da metafísica termina quando Hume demonstra que os conceitos metafísicos não correspondem a nenhuma realidade externa existente em si mesma e independente de nós mas são meros nomes gerais para as coisas nomes que nos vêm pelo hábito mental ou psíquico de associar em idéias as Convite à Filosofia 264 sensações as percepções e as impressões dos sentidos quando são constantes freqüentes e regulares O segundo período tem seu centro na filosofia de Kant que demonstra a impossibilidade dos conceitos tradicionais da metafísica para alcançar e conhecer a realidade em si das coisas Em seu lugar Kant propõe que a metafísica seja o conhecimento de nossa própria capacidade de conhecer seja uma críticav da razão pura teórica tomando a realidade como aquilo que existe para nós enquanto somos o sujeito do conhecimento A metafísica poderá continuar usando o mesmo vocabulário que usava tradicionalmente mas o sentido conceitual das palavras mudará totalmente pois não se referem ao que existe em si e por si mas ao que existe para nós e é organizado por nossa razão Embora com muitas diferenças que veremos mais tarde Husserl trilhará um caminho próximo ao de Kant A metafísica contemporânea é chamada de ontologia veremos posteriormente o sentido dessa palavra e procura superar tanto a antiga metafísica conhecimento da realidade em si independente de nós quanto a concepção kantiana conhecimento da realidade como aquilo que é para nós porque posto por nossa razão Considera o objeto da metafísica a relação originária mundohomem Suas principais características são investiga os diferentes modos como os entes ou os seres existem investiga a essência ou o sentido a significação e a estrutura desses entes ou seres investiga a relação necessária entre a existência e a essência dos entes e o modo como aparecem para nossa consciência manifestação que se dá nas várias formas em que a consciência se realiza percepção imaginação memória linguagem intersubjetividade reflexão ação moral e política prática artística técnicas alguns consideram que a metafísica ou ontologia contemporânea deveria ser chamada de descritiva porque em vez de oferecer uma explicação apriorística da realidade é uma interpretação racional da lógica da realidade descrevendo as estruturas do mundo e as do nosso pensamento Marilena Chauí 265 Capítulo 1 O nascimento da metafísica O realismo da Filosofia nascente Estudamos até aqui a figura do sujeito do conhecimento Passaremos agora ao objeto do conhecimento Convém no entanto fazer uma observação preliminar pois essa seqüência indo do sujeito ao objeto não foi sempre aquela seguida pela Filosofia A maneira como tratamos o conhecimento até este momento poderia sugerir que a Filosofia teria começado indagando como nossa razão pode conhecer a realidade Mas não foi assim que tudo começou Iniciar pelo sujeito do conhecimento é algo novo na Filosofia algo que aconteceu a partir do século XVII com o que chamamos de racionalismo clássico cujo ponto de partida era a indagação Pode nosso pensamento alcançar a realidade Até o século XVII porém não era essa a indagação filosófica principal Desde os gregos partiase da afirmação da existência da realidade e de que ela poderia ser conhecida verdadeiramente pela razão ou pelo pensamento A pergunta filosófica era O que é a realidade Por isso costumase dizer que a Filosofia nasceu como um realismo e desse realismo surgiu a metafísica Veremos mais adiante como os problemas metafísicos acabaram fazendo a Filosofia mudar sua pergunta passando a indagar Como podemos conhecer a realidade e dar à teoria do conhecimento ou ao estudo do sujeito do conhecimento o lugar predominante que já examinamos Da cosmologia à metafísica A Filosofia nasce da admiração e do espanto dizem Platão e Aristóteles Admiração Por que o mundo existe Espanto Por que o mundo é tal como é Desde seu nascimento a Filosofia perguntou O que existe Por que existe O que é isso que existe Como é isso que existe Por que e como surge muda e desaparece Por que a Natureza ou o mundo se mantêm ordenados e constantes apesar da mudança contínua de todas as coisas Essas perguntas ou esse espanto ou admiração diante do mundo levaram os primeiros filósofos a buscar uma explicação racional para a origem de um mundo ordenado o cosmos Por esse motivo a Filosofia nasce como cosmologia A busca do princípio que causa e ordena tudo quanto existe na Natureza minerais vegetais animais humanos astros qualidades como úmido seco quente frio e Convite à Filosofia 266 tudo quanto nela acontece dia e noite estações do ano nascimento transformação e morte crescimento e diminuição saúde e doença bem e mal belo e feio etc foi a busca de uma força natural perene e imortal subjacente às mudanças denominada pelos primeiros filósofos com o nome de physis A cosmologia era uma explicação racional sobre a physis do Universo e portanto uma física Como então surgiu a metafísica Como surgiu um saber que suplantou a cosmologia ou física dos primeiros filósofos Como e por que a metafísica acabou se tornando o centro e a disciplina mais importante da Filosofia Metafísica ou ontologia A palavra metafísica foi empregada pela primeira vez por Andrônico de Rodes por volta do ano 50 aC quando recolheu e classificou as obras de Aristóteles que durante muitos séculos haviam ficado dispersas e perdidas Com essa palavra ta meta ta physika o organizador dos textos aristotélicos indicava um conjunto de escritos que em sua classificação localizavamse após os tratados sobre a física ou sobre a Natureza pois a palavra grega meta quer dizer depois de após acima de Ta aqueles meta após depois ta physika aqueles da física Assim a expressão ta meta ta physika significa literalmente aqueles escritos que estão catalogados após os escritos da física Ora tais escritos haviam recebido uma designação por parte do próprio Aristóteles quando este definira o assunto de que tratavam são os escritos da Filosofia Primeira cujo tema é o estudo do ser enquanto ser Desse modo o que Aristóteles chamou de Filosofia Primeira passou a ser designado como metafísica No século XVII o filósofo alemão Jacobus Thomasius considerou que a palavra correta para designar os estudos da metafísica ou Filosofia Primeira seria a palavra ontologia A palavra ontologia é composta de duas outras onto e logia Onto derivase de dois substantivos gregos ta onta os bens e as coisas realmente possuídas por alguém e ta eonta as coisas realmente existentes Essas duas palavras por sua vez derivamse do verbo ser que em grego se diz einai O particípio presente desse verbo se diz on sendo ente e ontos sendo entes Dessa maneira as palavras onta e eonta as coisas e on ente levaram a um substantivo to on que significa o Ser O Ser é o que é realmente e se opõe ao que parece ser à aparência Assim ontologia significa estudo ou conhecimento do Ser dos entes ou das coisas tais como são em si mesmas real e verdadeiramente Por que Thomasius julgou a palavra ontologia mais adequada do que a palavra metafísica Para responder a essa pergunta devemos retornar ao que escreveu Aristóteles quando propôs a Filosofia Primeira Marilena Chauí 267 Ao definir a Filosofia Primeira Aristóteles afirmou que ela estuda o ser das coisas a ousia A palavra ousia é o feminino do particípio presente do verbo ser isto é do verbo einai Em português ousia é traduzido por essência porque é traduzida da palavra latina essentia Em latim o verbo ser se diz esse e a palavra essentia foi inventada pelos filósofos para traduzir ousia Assim a Filosofia Primeira é o estudo ou o conhecimento da essência das coisas ou do ser real e verdadeiro das coisas daquilo que elas são em si mesmas apesar das aparências que possam ter e das mudanças que possam sofrer Thomasius considerou que Aristóteles definira a Filosofia Primeira como o estudo do ser das coisas como o que há de íntimo perene e verdadeiro nos entes Não estuda esta ou aquela coisa este ou aquele ente mas busca aquilo que faz de um ente ou de uma coisa um ser Busca a essência de um ente ou de uma coisa Por isso por ser o estudo da ousia e porque a ousia oferece o ser real e verdadeiro de um ente oferece o on íntimo e perene a Filosofia Primeira deveria ser designada com a palavra ontologia Nesse caso a palavra metafísica seria apenas a indicação do lugar ocupado nas estantes pelos livros aristotélicos de Filosofia Primeira localizados depois dos tratados sobre a física ou a Natureza A palavra ontologia diria qual é o assunto da Filosofia Primeira enquanto a palavra metafísica diria apenas qual é o lugar dos livros da Filosofia Primeira no catálogo das obras de Aristóteles Por que então a tradição filosófica consagrou a palavra metafísica em lugar de ontologia Porque Aristóteles ao definir a Filosofia Primeira também afirmou que ela estuda os primeiros princípios e as causas primeiras de todos os seres ou de todas as essências estudo que deve vir antes de todos os outros porque é a condição de todos eles Que quer dizer vir antes Para Aristóteles significa estar acima dos demais estar além do que vem depois ser superior ao que vem depois ser a condição da existência e do conhecimento do que vem depois Ora a palavra meta quer dizer isso mesmo o que está além de o que está acima de o que vem depois mas no sentido de ser superior ou de ser a condição de alguma coisa Se assim é então a palavra metafísica não quer dizer apenas o lugar onde se encontram os escritos posteriores aos tratados de física não indica um mero lugar num catálogo de obras mas significa o estudo de alguma coisa que está acima e além das coisas físicas ou naturais e que é a condição da existência e do conhecimento delas Por isso a tradição consagrou a palavra metafísica mais do que a palavra ontologia Metafísica nesse caso quer dizer aquilo que é condição e fundamento de tudo o que existe e de tudo o que puder ser conhecido Convite à Filosofia 268 Até aqui respondemos à pergunta Por que metafísica em lugar de ontologia Mas ainda não respondemos à pergunta principal Por que a metafísica ou ontologia ocupou o lugar que no início da Filosofia era ocupado pela cosmologia ou física Para isso precisamos acompanhar os motivos que levaram a uma crise da cosmologia e ao surgimento da ontologia que receberia o nome de metafísica O surgimento da ontologia Parmênides de Eléia Quando estudamos o surgimento da lógica vimos a importância do pensamento de Parmênides Foi ele o primeiro filósofo a afirmar que o mundo percebido por nossos sentidos o cosmos estudado pela cosmologia é um mundo ilusório feito de aparências sobre as quais formulamos nossas opiniões Foi ele também o primeiro a contrapor a esse mundo mutável feito de mudança perene dos contrários que se transformam uns nos outros a idéia de um pensamento e de um discurso verdadeiros referidos àquilo que é realmente ao Ser to on On O Ser é diz Parmênides Com isso pretendeu dizer que o Ser é sempre idêntico a si mesmo imutável eterno imperecível invisível aos nossos sentidos e visível apenas para o pensamento Foi Parmênides o primeiro a dizer que a aparência sensível das coisas da Natureza não possui realidade não existe real e verdadeiramente não é Contrapôs assim o Ser On ao NãoSer me On declarando o NãoSer não é A Filosofia é chamada por Parmênides de a Via da Verdade aletheia que nega realidade e conhecimento à Via da Opinião doxa pois esta se ocupa com as aparências com o NãoSer Ora a cosmologia ou física ocupavase justamente com o mundo que percebemos e no qual vivemos com as demais coisas naturais Ocupavase com a Natureza enquanto um cosmos ou ordem regular e constante de surgimento transformação e desaparecimento das coisas A cosmologia buscava a explicação para o devir isto é para a mudança das coisas para a passagem de uma coisa a um outro modo de existir contrário ao que possuía O dia vira noite a saúde vira doença o frio esquenta o quente esfria o úmido seca o seco umedece o novo envelhece o vivo morre o pequeno aumenta o grande diminui etc A cosmologia dedicavase à multiplicidade dos seres à mutabilidade deles e às oposições entre eles Parmênides tornou a cosmologia impossível ao afirmar que o pensamento verdadeiro exige a identidade e a nãocontradição do Ser Considerando a mudança de uma coisa em outra contrária como o NãoSer Parmênides também afirmava que o Ser não muda porque não tem como e nem por que mudar e não tem no que mudar pois se mudasse deixaria de ser o Ser tornandose contrário a si mesmo o NãoSer Como conseqüência mostrou que o pensamento verdadeiro não admite a multiplicidade ou pluralidade de seres e que o Ser é uno e único Os argumentos da Escola Eleata eram rigorosos Diziam Marilena Chauí 269 admitamos que o Ser não seja uno mas múltiplo Nesse caso cada ser é ele mesmo e não é os outros seres portanto cada ser é e não é ao mesmo tempo o que é impensável ou absurdo O Ser é uno e não pode ser múltiplo admitamos que o Ser não seja eterno mas teve um começo e terá um fim Antes dele o que havia Outro Ser Não pois o Ser é uno O NãoSer Não pois o NãoSer é o nada Portanto o Ser não pode ter tido um começo Terá um fim Se tiver que virá depois dele Outro Ser Não pois o Ser é uno O NãoSer Não pois o NãoSer é o nada Portanto o Ser não pode acabar Sem começo e sem fim o Ser é eterno admitamos que o Ser não seja imutável mas mutável No que o Ser mudaria Noutro Ser Não pois o Ser é uno No NãoSer Não pois o NãoSer é o nada Portanto se o Ser mudasse tornarseia NãoSer e desapareceria O Ser é imutável e o devir é uma ilusão de nossos sentidos O que Parmênides afirmava era a diferença entre pensar e perceber Percebemos a Natureza na multiplicidade e na mutabilidade das coisas que se transformam umas nas outras e se tornam contrárias a si mesmas Mas pensamos o Ser isto é a imutabilidade e a eternidade daquilo que é em si mesmo Perceber é ver aparências Pensar é contemplar a realidade como idêntica a si mesma Pensar é contemplar o to on o Ser Multiplicidade mudança nascimento e perecimento são aparências ilusões dos sentidos Ao abandonálas a Filosofia passou da cosmologia à ontologia Platão e o mundo das essências Também ao estudarmos a lógica vimos que Platão dedicou a sua obra à resolução do impasse filosófico criado pelo antagonismo entre o pensamento de Heráclito de Éfeso e o de Parmênides de Eléia Platão considerou que Heráclito tinha razão no que se refere ao mundo material e sensível mundo das imagens e das opiniões A matéria diz Platão é por essência e por natureza algo imperfeito que não consegue manter a identidade das coisas mudando sem cessar passando de um estado a outro contrário ou oposto O mundo material ou de nossa experiência sensível é mutável e contraditório e por isso dele só nos chegam as aparências das coisas e sobre ele só podemos ter opiniões contrárias e contraditórias Por esse motivo diz Platão Parmênides está certo ao exigir que a Filosofia deva abandonar esse mundo sensível e ocuparse com o mundo verdadeiro invisível aos sentidos e visível apenas ao puro pensamento O verdadeiro é o Ser uno imutável idêntico a si mesmo eterno imperecível puramente inteligível Eis por que a ontologia platônica introduz uma divisão no mundo afirmando a existência de dois mundos inteiramente diferentes e separados o mundo sensível da mudança da aparência do devir dos contrários e o mundo inteligível da identidade da permanência da verdade conhecido pelo intelecto puro sem Convite à Filosofia 270 qualquer interferência dos sentidos e das opiniões O primeiro é o mundo das coisas O segundo o mundo das idéias ou das essências verdadeiras O mundo das idéias ou das essências é o mundo do Ser o mundo sensível das coisas ou aparências é o mundo do NãoSer O mundo sensível é uma sombra uma cópia deformada ou imperfeita do mundo inteligível das idéias ou essências Notamos aqui uma diferença entre a ontologia de Parmênides e a de Platão Para o primeiro o mundo sensível das aparências é o NãoSer em sentido forte isto é não existe não é não tem realidade nenhuma é o nada Para Platão porém o NãoSer não é o puro nada Ele é alguma coisa O que ele é Ele é o outro alienus do Ser o que é diferente do Ser o que é inferior ao Ser o que nos engana e nos ilude a causa dos erros Em lugar de ser um puro nada o NãoSer é um falso ser uma sombra do Ser verdadeiro aquilo que Platão chama de pseudoSer O NãoSer é sensível Há ainda uma outra diferença importante entre a ontologia de Parmênides e a de Platão O primeiro afirmava que o Ser além de imutável eterno e idêntico a si mesmo era único ou uno Havia o Ser Qual o problema dessa afirmação parmenideana Se do lado do devir heraclitiano havia uma multiplicidade infinita de seres contrários uns aos outros e contrários a si mesmos pois cada um se tornava contrário a si próprio o dia tornandose noite o seco tornandose úmido etc multiplicidade contraditória que não poderia ser pensada nem dita visto que o pensamento exige a identidade do pensado no entanto do lado da identidade unaúnica de Parmênides que restava para a Filosofia Só lhe restava pensar e dizer três frases O Ser é O NãoSer não é O Ser é uno idêntico eterno e imutável Em suma a Filosofia começava e terminava nessas três frases nada mais podendo pensar ou dizer Parmênides paralisava a Filosofia Se esta quisesse prosseguir como investigação da verdade e se tivesse mais objetos a conhecer era preciso quebrar a unidadeunicidade do Ser de Parmênides Foi o que fez Platão Que disse ele Em primeiro lugar seguindo Sócrates e os sofistas Platão distinguiu dois sentidos para a palavra Ser o sentido forte em que Ser significa realidade ou existência o Ser é e o sentido mais fraco em que Ser é o verbo ser como verbo de ligação isto é o verbo que permite ligar um sujeito a um predicado por exemplo O homem é mortal Distinguiu assim dois sentidos para o verbo ser o sentido existencial e o sentido predicativo Por exemplo O homem é existe e O homem é mortal Em segundo lugar afirmou que no sentido forte de Ser existem múltiplos seres e não um só mas cada um deles possui os atributos do Ser de Parmênides identidade unidade eternidade imutabilidade Esses seres são as idéias ou formas imateriais que constituem o mundo verdadeiro o mundo inteligível Marilena Chauí 271 São seres reais as idéias do bem do belo do justo do homem dos astros do amor do animal do vegetal etc Em terceiro lugar afirmou que no sentido mais fraco do verbo de ligação ou da predicação cada idéia é um sujeito real que possui um conjunto de predicados reais ou de propriedades essenciais e que a fazem ser o que ela é em si mesma Uma idéia é existe e uma idéia é uma essência ou conjunto de qualidades essenciais que a fazem ser o que ela é necessariamente possui predicados verdadeiros Por exemplo a justiça é há a idéia de justiça e há seres humanos que são justos possuem o predicado da justiça como parte de sua essência Dessa maneira cada idéia em si mesma é una idêntica a si mesma eterna e imutável uma idéia é Ao mesmo tempo cada idéia difere de todas as outras pelo conjunto de qualidades ou propriedades internas e necessárias pelas quais ela é uma essência determinada diferente das demais a idéia de homem é diferente da idéia de planeta que é diferente da idéia de beleza que é diferente da idéia de coragem etc A tarefa da Filosofia é dupla 1 deve conhecer que idéias existem isto é que idéias são 2 deve conhecer quais são as qualidades ou propriedades essenciais de uma idéia isto é o que uma idéia é sua essência As idéias ou formas imateriais ou essências inteligíveis diz Platão são seres perfeitos e por sua perfeição tornamse modelos inteligíveis ou paradigmas inteligíveis perfeitos que as coisas sensíveis materiais tentam imitar imperfeitamente O sensível é pois uma imitação imperfeita do inteligível as coisas sensíveis são imagens das idéias são nãoseres tentando inutilmente imitar a perfeição dos seres inteligíveis Cabe à Filosofia passar das cópias imperfeitas aos modelos perfeitos abandonando as imagens ou aparências pelas essências e as opiniões pelas idéias O pensamento deve passar da instabilidade contraditória das coisas sensíveis à identidade racional das coisas inteligíveis à identidade das idéias que são a realidade o ser o to on Como passamos das coisas sensíveis das cópias imagens ou opiniões às idéias ou essências Pela dialética que estudamos na unidade dedicada à lógica Tomemos alguns exemplos para melhor compreendermos o que é a ontologia platônica Numa obra o diálogo Laques Platão coloca seu mestre Sócrates conversando com alguns atenienses São pais de família preocupados com a educação de seus filhos Os gregos como sabemos valorizavam muito o jovem de corpo belo educado pela ginástica e pela dança para tornarse um guerreiro corajoso A coragem era assim extremamente valorizada Convite à Filosofia 272 Os pais com quem conversa Sócrates estão a caminho de uma aula de esgrima num curso dado por um professor muito famoso Indagam então se o aprendizado da esgrima será benéfico para seus filhos quando forem à guerra Uns acham que sim outros dizem que não Há pois duas opiniões contrárias ou contraditórias na conversa Apelam para Sócrates dizendolhe Como você é um sábio venha ajudarnos em nossa polêmica e diganos se a esgrima é ou não benéfica para formar a coragem de nossos filhos Sócrates intervém afirmando Só poderei ajudálos a decidir sobre esse assunto se primeiro discutirmos uma outra coisa e não a esgrima O que devemos discutir primeiro indagam os pais Responde Sócrates O que é a coragem uma vez que vocês desejam filhos corajosos Enquanto não soubermos o que é a essência da coragem não saberemos qual educação é benéfica para ela Precisamos conhecer a idéia da coragem para saber em nosso mundo quando e como existem pessoas corajosas e atos corajosos Para saber o que são as coisas que percebemos precisamos primeiro saber o que são as coisas em si mesmas isto é precisamos pensar suas idéias ou essências Os pais se põem novamente a discutir Cada um dá exemplos de atos que julga corajosos E novamente suas opiniões são contrárias Diz Sócrates Vocês não me entenderam Não pedi para darem exemplos de coragem nem opiniões sobre atos corajosos Eu lhes pedi que me dissessem o que é em si mesma a coragem Qual é a essência da coragem que nos permite dizer diante de uma ação particular que tal ação é ou não corajosa Qual é o ser da coragem A discussão recomeça e agora cada um dos participantes da conversa oferece uma definição da coragem Diz um A coragem é não fugir na guerra Retruca Sócrates Mas e os espartanos tidos como dos mais corajosos e que inventaram uma tática de recuar fugir levando o inimigo para seu campo e ali podendo derrotálo Fogem Não são corajosos Diz outro A coragem é não temer o perigo Ora contrapõe Sócrates e as histórias maravilhosas que conhecemos de capitães de navio que salvaram os passageiros de grandes tempestades justamente escolhendo não zarpar quando os ventos eram desfavoráveis e portanto fugindo do perigo Não são corajosos E finalmente outro pai dá a sua definição A coragem é saber o que se deve e o que não se deve temer Será indaga Sócrates Se assim for teremos que dizer que os comerciantes espertos que sabem quando um negócio é temerário e não o fazem são corajosos Creio diz Sócrates que ainda não me fiz entender Vocês estão oferecendo opiniões sobre a coragem e imagens da coragem mas não estão buscando a essência da coragem Não conseguiram ainda chegar pelo pensamento à idéia da coragem estão falando da aparência da coragem Estão falando da coragem sensível e não estão pensando a coragem inteligível Marilena Chauí 273 O diálogo é interrompido nesse ponto quando Sócrates sugere aos interlocutores que talvez ainda não tenham conseguido chegar à idéia da coragem porque não procuraram uma outra idéia que deve vir antes da coragem Que idéia Todos aqui diz Sócrates julgam a coragem um valor positivo e portanto uma virtude Nesse caso antes de saber o que é a coragem temos que conhecer uma outra idéia da qual a idéia de coragem depende a idéia de virtude Sem conhecer a essência da virtude sem conhecer o ser da virtude não sabemos qual é a essência da coragem Ao se despedir Sócrates promete voltar a conversar com os pais para com eles buscar a essência ou a idéia da virtude Em todos os seus diálogos Platão procede da mesma maneira O diálogo começa com os interlocutores julgando que sabem do que falam Sócrates que nos diálogos representa Platão levaos a descobrir que não sabem o que imaginavam saber mostrandolhes que possuem imagens e opiniões contraditórias sobre aquilo de que falam Possuem a aparência do que discutem mas não a essência e por isso se enganam o tempo todo contradizendose uns aos outros O diálogo isto é a dialética ou filosofia é o caminho que nos conduz das sensações das percepções das imagens e das opiniões à contemplação intelectual do ser real das coisas à idéia verdadeira que existe em si mesma no mundo das puras idéias ou no mundo inteligível Num outro diálogo o Banquete será buscada a idéia ou a essência do amor Numa festa oferecida por um poeta que ganhou um prêmio por sua poesia conversam cinco amigos e Sócrates Um deles afirma que todos os deuses recebem hinos e poemas de louvor mas nenhum foi feito ao melhor dos deuses Eros o amor Propõese então que cada um faça uma homenagem a Eros dizendo o que é o amor Para um deles o amor é o mais bondoso dos deuses porque nos leva ao sacrifício pelo ser amado inspiranos devotamento e o desejo de fazer o bem Para o seguinte é preciso distinguir dois tipos de amor o amor sexual e grosseiro e o amor espiritual entre as almas pois o primeiro é breve e logo acaba enquanto o segundo é eterno Já o terceiro afirma que os que o antecederam limitaram muito o amor tomandoo apenas como uma relação entre duas pessoas O amor diz ele é o que ordena organiza e orienta o mundo pois é ele que faz os semelhantes se aproximarem e os diferentes se afastarem O amor é uma força cósmica de ordem e harmonia do universo O quarto prefere retornar ao amor entre as pessoas e narra um mito No princípio os humanos eram de três tipos havia o homem duplo a mulher dupla e o homemmulher isto é o andrógino Tinham um só corpo com duas cabeças quatro braços e quatro pernas Como se julgavam seres completos decidiram habitar no céu Zeus rei dos deuses enfureceuse tomou de uma espada e os cortou pela metade Convite à Filosofia 274 Decaídos separados e desesperados os humanos teriam desaparecido se Eros não lhes tivesse dado órgãos sexuais e os ajudasse a procurar a metade perdida Os que eram homens duplos e mulheres duplas amam os de mesmo sexo enquanto os que eram andróginos amam a pessoa do sexo oposto Amar é encontrar a nossa metade e o amor é esse encontro Finalmente o poeta anfitrião da festa toma a palavra dizendo Todos os que me precederam louvaram o amor pelo bem que faz aos humanos mas nenhum louvou o amor por ele mesmo É o que farei O amor Eros é o mais belo o melhor dos deuses O mais belo porque sempre jovem e sutil porque penetra imperceptivelmente nas almas o melhor porque odeia a violência e a desfaz onde existir inspira os artistas e poetas trazendo a beleza ao mundo Resta Sócrates Não poderei falar diz ele Não tenho talento para fazer discursos tão belos Os outros porém não se conformam e o obrigam a falar Está bem retruca ele Mas falarei do meu jeito Com essa pequena frase Platão mudará todo o tom do diálogo pois falar do meu jeito significa Não vou fazer elogios e louvores às imagens e aparências do amor não vou emitir mais uma opinião sobre o amor mas vou buscar a essência do amor o ser do amor vou investigar a idéia do amor Sócrates também começa com um mito Quando a deusa Afrodite nasceu houve uma grande festa para os deuses mas esqueceramse de convidar a deusa Penúria Pênia Miserável e faminta Penúria esperou o final da festa esgueirouse pelos jardins e comeu os restos enquanto os demais deuses dormiam Num canto do jardim viu Engenho Astuto Poros e desejou conceber um filho dele deitando se ao seu lado Desse ato sexual nasceu Eros o amor Como sua mãe Eros está sempre carente faminto miserável como seu pai Eros é astuto sabe criar expedientes engenhosos para conseguir o que quer Qual o sentido do mito Nele descobrimos que o amor é carência e astúcia desejo de saciar a fome e a sede desejo de preenchimento desejo de completar se e de encontrar a plenitude Amar é desejar o amado como o que nos completa nos sacia e satisfaz nos dá plenitude Amar é desejar fundirse na plenitude do amado e ser um só com ele O que pode completar e dar plenitude a um ser carente O que é em si mesmo completo e pleno isto é o que é perfeito O amor é desejo de perfeição O que é a perfeição A harmonia a proporção a integridade ou inteireza da forma Desejamos as formas perfeitas O que é uma forma perfeita A forma perfeita é a forma acabada plena inteiramente realizada sem falhas sem faltas sem defeitos sem necessidade de transformarse isto é sem necessidade de mudar de forma A forma perfeita é o que chamamos de beleza O amor é desejo de beleza Marilena Chauí 275 Onde está a beleza nas coisas corporais Nos corpos belos cuja união engendra uma beleza a imortalidade dos pais através dos filhos Onde está a beleza nas coisas incorporais Nas almas belas cuja beleza está na perfeição de seus pensamentos e ações isto é na inteligência Que amamos quando amamos corpos belos O que há de imperecível naquilo que por natureza é perecível isto é amamos a posteridade ou a descendência Que amamos quando amamos almas belas O que há de imperecível na inteligência isto é as idéias O amor pelos corpos belos é uma imagem ou uma sombra do amor pelo imperecível mas o amor pelas almas belas é o amor por algo que é em si mesmo e por si mesmo imperecível e absolutamente perfeito Se o amor é desejo de identificarse com o amado de fundirse nele tornandose como ele então a qualidade ou a natureza do ser amado determina se um amor é plenamente verdadeiro ou uma aparência de amor Amar o perecível é tornarse perecível também Amar o mutável é tornarse mutável também O perecível e o mutável são sombras cópias imperfeitas do ser verdadeiro imperecível e imutável As formas corporais belas são sombras ou imagens da verdadeira beleza imperecível Abandonandoas pela verdadeira beleza amamos não esta ou aquela coisa bela mas a idéia ou a essência da beleza o belo em si mesmo único real As almas belas são belas porque nelas há a presença ainda que invisível à primeira vista de algo imperecível o intelecto parte imortal de nossa alma Que ama o intelecto Um outro intelecto que seja mais belo e mais perfeito do que ele e que ao ser amado torna perfeito e belo quem o ama O que é um intelecto verdadeiramente belo e perfeito O que ama a beleza perfeita Onde se encontra a tal beleza Nas idéias O que é a essência ou a idéia do amor O amor é o desejo da perfeição imperecível das formas belas daquilo que permanece sempre idêntico a si mesmo daquilo que pode ser contemplado plenamente pelo intelecto e conhecido plenamente pela inteligência Sendo amor intelectual pelo inteligível ou pelas idéias o amor é o desejo de saber philo sophia amor da sabedoria Pelo amor o intelecto humano participa do inteligível toma parte no mundo das idéias ou das essências conhecendo o ser verdadeiro A ontologia é assim a própria Filosofia e o conhecimento do Ser isto é das idéias é a passagem das opiniões sobre as coisas sensíveis mutáveis rumo ao pensamento sobre as essências imutáveis Passar do sensível ao inteligível tarefa da Filosofia é passar da aparência ao real do NãoSer ao Ser Convite à Filosofia 276 Capítulo 2 A metafísica de Aristóteles Diferença entre Aristóteles e seus predecessores Embora a ontologia ou metafísica tenha começado com Parmênides e Platão costumase atribuir seu nascimento a Aristóteles por três motivos principais 1 diferentemente de seus dois predecessores Aristóteles não julga o mundo das coisas sensíveis ou a Natureza um mundo aparente e ilusório Pelo contrário é um mundo real e verdadeiro cuja essência é justamente a multiplicidade de seres e a mudança incessante Em lugar de afastar a multiplicidade e o devir como ilusões ou sombras do verdadeiro Ser Aristóteles afirma que o ser da Natureza existe é real que seu modo próprio de existir é a mudança e que esta não é uma contradição impensável É possível uma ciência teorética verdadeira sobre a Natureza e a mudança a física Mas é preciso primeiro demonstrar que o objeto da física é um ser real e verdadeiro e isso é tarefa da Filosofia Primeira ou da metafísica 2 diferentemente de seus dois predecessores Aristóteles considera que a essência verdadeira das coisas naturais e dos seres humanos e de suas ações não está no mundo inteligível separado do mundo sensível onde as coisas físicas ou naturais existem e onde vivemos As essências diz Aristóteles estão nas próprias coisas nos próprios homens nas próprias ações e é tarefa da Filosofia conhecê las ali mesmo onde existem e acontecem Como conhecêlas Partindo da sensação até alcançar a intelecção A essência de um ser ou de uma ação é conhecida pelo pensamento que capta as propriedades internas desse ser ou dessa ação sem as quais ele ou ela não seriam o que são A metafísica não precisa abandonar este mundo mas ao contrário é o conhecimento da essência do que existe em nosso mundo O que distingue a ontologia ou metafísica dos outros saberes isto é das ciências e das técnicas é o fato de que nela as verdades primeiras ou os princípios universais e toda e qualquer realidade são conhecidos direta ou indiretamente pelo pensamento ou por intuição intelectual sem passar pela sensação pela imaginação e pela memória 3 ao se dedicar à Filosofia Primeira ou metafísica a Filosofia descobre que há diferentes tipos ou modalidades de essências ou de ousiai Marilena Chauí 277 Existe a essência dos seres físicos ou naturais minerais vegetais animais humanos cujo modo de ser se caracteriza por nascer viver mudar reproduzir se e desaparecer são seres em devir e que existem no devir Existe a essência dos seres matemáticos que não existem em si mesmos mas existem como formas das coisas naturais podendo porém ser separados delas pelo pensamento e ter suas essências conhecidas são seres que por essência não nascem não mudam não se transformam nem perecem não estando em devir nem no devir Existe a essência dos seres humanos que compartilham com as coisas físicas o surgir o mudar e o desaparecer compartilhando com as plantas e os animais a capacidade para se reproduzir mas distinguindose de todos os outros seres por serem essencialmente racionais dotados de vontade e de linguagem Pela razão conhecem pela vontade agem pela experiência criam técnicas e artes E finalmente existe a essência de um ser eterno imutável imperecível sempre idêntico a si mesmo perfeito imaterial conhecido apenas pelo intelecto que o conhece como separado de nosso mundo superior a tudo que existe e que é o ser por excelência o ser divino Se há tão diferentes tipos de essências se para cada uma delas há uma ciência física biologia meteorologia astronomia psicologia matemática ética política etc deve haver uma ciência geral mais ampla mais universal anterior a todas essas cujo objeto não seja essa ou aquela modalidade de essência mas a essência em geral Tratase de uma ciência teorética que investiga o que é a essência e aquilo que faz com que haja essências particulares e diferenciadas Essa ciência mais alta mais ampla mais universal que se ocupa com a essência que estuda por que há essências e como são as essências investigadas pelas demais ciências é a Filosofia Primeira escreve Aristóteles no primeiro livro da Metafísica A metafísica aristotélica Na Metafísica Aristóteles afirma que a Filosofia Primeira estuda os primeiros princípios e as causas primeiras de todas as coisas e investiga o Ser enquanto Ser Ao definir a ontologia ou metafísica como estudo do Ser enquanto Ser Aristóteles está dizendo que a Filosofia Primeira estuda as essências sem diferenciar essências físicas matemáticas astronômicas humanas técnicas etc pois cabe às diferentes ciências estudálas enquanto diferentes entre si À metafísica cabem três estudos 1 o do ser divino a realidade primeira e suprema da qual todo o restante procura aproximarse imitando sua perfeição imutável As coisas se transformam diz Aristóteles porque desejam encontrar sua essência total e perfeita imutável como a essência divina É pela mudança incessante que buscam imitar o que não Convite à Filosofia 278 muda nunca Por isso o ser divino é o Primeiro Motor Imóvel do mundo isto é aquilo que sem agir diretamente sobre as coisas ficando à distância delas as atrai é desejado por elas Tal desejo as faz mudar para um dia não mais mudar esse desejo diz Aristóteles explica por que há o devir e por que o devir é eterno pois as coisas naturais nunca poderão alcançar o que desejam isto é a perfeição imutável Observamos assim que Aristóteles como Platão também afirma que a Natureza ou o mundo físico ou humano imitam a perfeição do imutável porém diferentemente de Platão para Aristóteles essa imitação não é uma cópia deformada uma imagem ou sombra do Ser verdadeiro mas o modo de existir ou de ser das coisas naturais e humanas A mudança ou o devir são a maneira pela qual a Natureza ao seu modo se aperfeiçoa e busca imitar a perfeição do imutável divino O ser divino chamase Primeiro Motor porque é o princípio que move toda a realidade e chamase Primeiro Motor Imóvel porque não se move e não é movido por nenhum outro ente pois como já vimos movervi significa mudar sofrer alterações qualitativas e quantitativas nascer é perecer e o ser divino perfeito não muda nunca 2 o dos primeiros princípios e causas primeiras de todos os seres ou essências existentes 3 o das propriedades ou atributos gerais de todos os seres sejam eles quais forem graças aos quais podemos determinar a essência particular de um ser particular existente A essência ou ousia é a realidade primeira e última de um ser aquilo sem o qual um ser não poderá existir ou sem o qual deixará de ser o que é À essência entendida sob essa perspectiva universal Aristóteles dá o nome de substância o substrato ou o suporte permanente de qualidades ou atributos necessários de um ser A metafísica estuda a substância em geral Os principais conceitos da metafísica aristotélica De maneira muito breve e simplificada os principais conceitos da metafísica aristotélica e que se tornarão as bases de toda a metafísica ocidental podem ser assim resumidos primeiros princípios são os três princípios que estudamos na lógica isto é identidade nãocontradição e terceiro excluído Os princípios lógicos são ontológicos porque definem as condições sem as quais um ser não pode existir nem ser pensado os primeiros princípios garantem simultaneamente a realidade e a racionalidade das coisas causas primeiras são aquelas que explicam o que a essência é e também a origem e o motivo da existência de uma essência Causa para os gregos significa não só o porquê de alguma coisa mas também o o que e o como uma coisa é o que ela é As causas primeiras nos dizem o que é como é por que é e para que é uma essência São quatro as causas primeiras Marilena Chauí 279 1 causa material isto é aquilo de que uma essência é feita sua matéria por exemplo água fogo ar terra 2 causa formal isto é aquilo que explica a forma que uma essência possui por exemplo o rio ou o mar são formas da água mesa é a forma assumida pela matéria madeira com a ação do carpinteiro margarida é a forma que a matéria vegetal possui na essência de uma flor determinada etc 3 causa eficiente ou motriz isto é aquilo que explica como uma matéria recebeu uma forma para constituir uma essência por exemplo o ato sexual é a causa eficiente que faz a matéria do espermatozóide e do óvulo receber a forma de um novo animal ou de uma criança o carpinteiro é a causa eficiente que faz a madeira receber a forma da mesa o fogo é a causa eficiente que faz os corpos frios tornaremse quentes etc e 4 a causa final isto é a causa que dá o motivo a razão ou finalidade para alguma coisa existir e ser tal como ela é por exemplo o bem comum é a causa final da política a felicidade é a causa final da ação ética a flor é a causa final da semente transformarse em árvore o Primeiro Motor Imóvel é a causa final do movimento dos seres naturais etc matéria é o elemento de que as coisas da Natureza os animais os homens os artefatos são feitos sua principal característica é possuir virtualidades ou conter em si mesma possibilidades de transformação isto é de mudança forma é o que individualiza e determina uma matéria fazendo existir as coisas ou os seres particulares sua principal característica é ser aquilo que uma essência é num determinado momento pois a forma é o que atualiza as virtualidades contidas na matéria potência é o que está contido numa matéria e pode vir a existir se for atualizado por alguma causa por exemplo a criança é um adulto em potência ou um adulto em potencial a semente é a árvore em potência ou em potencial ato é a atualidade de uma matéria isto é sua forma num dado instante do tempo o ato é a forma que atualizou uma potência contida na matéria Por exemplo a árvore é o ato da semente o adulto é o ato da criança a mesa é o ato da madeira etc Potência e matéria são idênticos assim como forma e ato são idênticos A matéria ou potência é uma realidade passiva que precisa do ato e da forma isto é da atividade que cria os seres determinados essência é a unidade interna e indissolúvel entre uma matéria e uma forma unidade que lhe dá um conjunto de propriedades ou atributos que a fazem ser necessariamente aquilo que ela é Assim por exemplo um ser humano é por essência ou essencialmente um animal mortal racional dotado de vontade gerado por outros semelhantes a ele e capaz de gerar outros semelhantes a ele etc acidente é uma propriedade ou atributo que uma essência pode ter ou deixar de ter sem perder seu ser próprio Por exemplo um ser humano é racional ou Convite à Filosofia 280 mortal por essência mas é baixo ou alto gordo ou magro negro ou branco por acidente A humanidade é a essência essencial animal mortal racional voluntário enquanto o acidente é o que existindo ou não existindo nunca afeta o ser da essência magro gordo alto baixo negro branco A essência é o universal o acidente o particular substância ou sujeito é o substrato ou o suporte onde se realizam a matéria potência a formaato onde estão os atributos essenciais e acidentais sobre o qual agem as quatro causas material formal eficiente e final e que obedece aos três princípios lógicoontológicos identidade nãocontradição e terceiro excluído em suma é o Ser Aristóteles usa o conceito de substância em dois sentidos num primeiro sentido substância é o sujeito individual Sócrates esta mesa esta flor Maria Pedro este cão etc num segundo sentido a substância é o gênero ou a espécie a que o sujeito individual pertence homem grego animal bípede vegetal erva mineral ferro etc No primeiro sentido a substância é um ser individual existente no segundo é o conjunto das características gerais que os sujeitos de um gênero e de uma espécie possuem Aristóteles fala em substância primeira para referirse aos seres ou sujeitos individuais realmente existentes com sua essência e seus acidentes por exemplo Sócrates e em substância segunda para referirse aos sujeitos universais isto é gêneros e espécies que não existem em si e por si mesmos mas só existem encarnados nos indivíduos podendo porém ser conhecidos pelo pensamento Assim por exemplo o gênero animal e as espécies vertebrado mamífero e humano não existem em si mesmos mas existem em Sócrates ou através de Sócrates O gênero é um universal formado por um conjunto de propriedades da matéria e da forma que caracterizam o que há de comum nos seres de uma mesma espécie A espécie também é um universal formado por um conjunto de propriedades da matéria e da forma que caracterizam o que há de comum nos indivíduos semelhantes Assim o gênero é formado por um conjunto de espécies semelhantes e as espécies por um conjunto de indivíduos semelhantes Os indivíduos ou substâncias primeiras são seres realmente existentes os gêneros e as espécies ou substâncias segundas são universalidades que o pensamento conhece através dos indivíduos predicados são as oito categorias que vimos no estudo da lógica e que também são ontológicas porque se referem à estrutura e ao modo de ser da substância ou da essência Em outras palavras os predicados atribuídos a uma substância ou essência são constitutivos de seu ser e de seu modo de ser pois toda realidade pode ser conhecida porque possui qualidades mortal imortal finito infinito bom mau etc quantidades um muitos alguns pouco muito grande pequeno relacionase com outros igual diferente semelhante maior menor superior inferior está em algum lugar aqui ali perto longe no alto embaixo em frente atrás etc está no tempo antes depois agora ontem hoje Marilena Chauí 281 amanhã de dia de noite sempre nunca realiza ações ou faz alguma coisa anda pensa dorme corta cai prende cresce nasce morre germina frutifica floresce etc e sofre ações de outros seres é cortado é preso é morto é quebrado é arrancado é puxado é atraído é levado é curado é envenenado etc As categorias ou predicados podem ser essenciais ou acidentais isto é podem ser necessários e indispensáveis à natureza própria de um ser ou podem ser algo que um ser possui por acaso ou que lhe acontece por acaso sem afetar sua natureza Tomemos um exemplo Se eu disser Sócrates é homem necessariamente terei que lhe dar os seguintes predicados mortal racional finito animal pensa sente anda reproduz fala adoece é semelhante a outros atenienses é menor do que uma montanha e maior do que um gato ama odeia Acidentalmente ele poderá ter outros predicados é feio é baixo é diferente da maioria dos atenienses é casado conversou com Laques esteve no banquete de Agáton esculpiu três estátuas foi forçado a envenenarse pelo tribunal de Atenas Se nosso exemplo porém fosse uma substância genérica ou específica todos os predicados teriam de ser essenciais pois o acidente é o que acontece somente para o indivíduo existente e o gênero e a espécie são universais que só existem no pensamento e encarnados nas essências individuais Com esse conjunto de conceitos formase o quadro da ontologia ou metafísica aristotélica como explicação geral universal e necessária do Ser isto é da realidade Esse quadro conceitual será herdado pelos filósofos posteriores que problematizarão alguns de seus aspectos estabelecerão novos conceitos suprimirão alguns outros desenvolvendo o que conhecemos como metafísica ocidental A metafísica aristotélica inaugura portanto o estudo da estrutura geral de todos os seres ou as condições universais e necessárias que fazem com que exista um ser e que possa ser conhecido pelo pensamento Afirma que a realidade no seu todo é inteligível ou conhecível e apresentase como conhecimento teorético da realidade sob todos os seus aspectos gerais ou universais devendo preceder as investigações que cada ciência realiza sobre um tipo determinado de ser A metafísica investiga aquilo sem o que não há seres nem conhecimento dos seres os três princípios lógicoontológicos identidade nãocontradição e terceiro excluído e as quatro causas material formal eficiente e final aquilo que faz um ser ser necessariamente o que ele é matéria potência forma e ato aquilo que faz um ser ser necessariamente como ele é essência e predicados ou categorias Convite à Filosofia 282 aquilo que faz um ser existir como algo determinado a substância individual substância primeira e a substância como gênero ou espécie substância segunda É isto estudar o Ser enquanto Ser Marilena Chauí 283 Capítulo 3 As aventuras da metafísica O cristianismo e a tarefa da evangelização Ao surgir o cristianismo era mais uma entre as várias religiões orientais suas raízes encontravamse na religião judaica isto é numa religião que como todas as religiões antigas era nacional ou de um povo particular No entanto havia nele algo inexistente no judaísmo e nas outras religiões antigas a idéia de evangelização isto é de espalhar a boa nova para o mundo inteiro a fim de converter os nãocristãos e tornarse uma religião universal Ora como converter a essa religião pessoas de outras religiões que possuíam um passado e um sentido próprios para elas Os evangelizadores usaram muitos expedientes para isso levando em conta as condições e a mentalidade dos que deveriam ser convertidos Para o nosso assunto interessa apenas um tipo de evangelização e conversão o dos intelectuais gregos e romanos isto é daqueles que haviam sido formados não só em religiões diferentes da judaica como também haviam sido educados na tradição racionalista da Filosofia Para convertêlos e mostrar a superioridade da verdade cristã sobre a tradição filosófica os primeiros Padres da Igreja ou intelectuais cristãos são Paulo são João santo Ambrósio santo Eusébio santo Agostinho entre outros adaptaram as idéias filosóficas à religião cristã e fizeram surgir uma Filosofia cristã Sob vários aspectos podemos dizer que o cristianismo enquanto tal não precisava de uma filosofia sendo uma religião da salvação seu interesse maior estava na moral na prática dos preceitos virtuosos deixados por Jesus e não em uma teoria sobre a realidade sendo uma religião vinda do judaísmo já possuía uma idéia muito clara do que era o Ser pois Deus disse a Moisés Eu sou aquele que é foi e será Eu sou aquele que sou sendo uma religião seu interesse maior estava na fé e não na razão teórica na crença e não no conhecimento intelectual na Revelação e não na reflexão Foi portanto o desejo de converter os intelectuais gregos e os chefes e imperadores romanos isto é aqueles que estavam acostumados à Filosofia que empurrou os cristãos para a metafísica Convite à Filosofia 284 As tradições metafísicas encontradas pelo cristianismo Evidentemente as duas grandes tradições metafísicas incorporadas pelo cristianismo foram o platonismo e o aristotelismo No entanto como as obras de Platão e Aristóteles haviam ficado perdidas durante vários séculos antes de incorporálas o cristianismo tomou contato com três outras tradições metafísicas que formaram assim o conteúdo das primeiras elaborações metafísicas cristãs o neoplatonismo o estoicismo e o gnosticismo O neoplatonismo como o nome indica foi uma retomada da filosofia de Platão mas com um conteúdo espiritualista e místico Os neoplatônicos afirmavam a existência de três realidades distintas por essência o mundo sensível da matéria ou dos corpos o mundo inteligível das puras formas imateriais e acima desses dois mundos uma realidade suprema separada de todo o resto inalcançável pelo intelecto humano luz pura e esplendor imaterial o Uno ou o Bem Por ser uma luz o Uno se irradia suas irradiações que os neoplatônicos chamavam de emanações formaram o mundo inteligível onde estão o Ser a Inteligência e a Alma do Mundo Dessas primeiras emanações perfeitas seguiram outras mais afastadas do Uno e por isso imperfeitas o mundo sensível da matéria imagem decaída ou cópia imperfeita do mundo inteligível Por seu intelecto o homem participa do mundo inteligível Purificandose da matéria de seu corpo desenvolvendo seu intelecto o homem pode subir além do pensamento e ter o êxtase místico pelo qual se funde com a luz do Uno e retorna ao seio da realidade suprema ou do Bem O estoicismo embora muito diferente do neoplatonismo pois negava a existência de realidades separadas e superiores ao mundo sensível também influenciou o pensamento cristão Os estóicos afirmavam a existência de uma Razão Universal ou Inteligência Universal que produz e governa toda a realidade de acordo com um plano racional necessário a que davam o nome de Providência O homem embora impulsionado por instintos como os animais participa da Razão Universal porque possui razão e vontade A participação na racionalidade universal não se dá pelo simples conhecimento intelectual mas pela ação moral isto é pela renúncia a todos os instintos pelo domínio voluntário racional de todos os desejos e pela aceitação da Providência A Razão Universal é a Natureza a Providência é o conjunto das leis necessárias que regem a Natureza a ação racional humana própria do sábio é a vida em conformidade com a Natureza e com a Providência O gnosticismo era um dualismo metafísico isto é afirmava a existência de dois princípios supremos de onde provinha toda a realidade o Bem ou a luz imaterial e o Mal ou a treva material Para os gnósticos o mundo natural ou o mundo sensível é o resultado da vitória do Mal sobre o Bem e por isso afirmavam que a salvação estava em libertarse da matéria do corpo através do conhecimento intelectual e do êxtase místico Gnosticismo vem da palavra grega Marilena Chauí 285 gnosis que significa conhecimento Para os gnósticos o conhecimento intelectual pode por si mesmo alcançar a verdade plena e total do Bem e afastar os poderes materiais do Mal Que fez o cristianismo nascente Adaptou à nova fé várias concepções da metafísica neoplatônica disso resultando os seguintes pontos doutrinários separação entre materialcorporal e espiritualincorporal separação entre DeusUno e o mundo material transformação da primeira emanação neoplatônica Ser Inteligência Alma do Mundo na idéia da Trindade divina pela afirmação de que o DeusUno se manifesta em três emanações idênticas a ele próprio o Ser que é o Pai a Inteligência que é o Espírito Santo a Alma do Mundo que é o Filho afirmação de que há uma segunda emanação isto é aquela que vem da luz da Trindade e que forma o mundo inteligível das puras formas ou inteligências imateriais perfeitas que são os anjos arcanjos querubins serafins etc modificação da idéia neoplatônica quanto ao mundo sensível pela afirmação de que o mundo sensível ou material não é uma emanação de Deus mas uma criação Deus fez o mundo do nada como diz a Bíblia no livro da Gênese admissão de que a alma humana participa da divindade mas não diretamente e sim pela mediação do Filho e do Espírito Santo e que o conhecimento intelectual não é suficiente para levar ao êxtase místico e ao contato com Deus sendo necessária a graça santificante que o crente recebe por um mistério divino Do estoicismo o cristianismo manteve duas idéias a de que existe uma Providência divina racional que governa todas as coisas e o homem a de que a perfeição humana depende de abandonar todos os apetites impulsos e desejos corporais ou carnais entregandose à Providência Essa entrega porém não é como pensavam os estóicos uma ação deliberada de nossa vontade guiada pela razão mas exige como condição a fé em Cristo e a graça santificante O gnosticismo será considerado uma heresia e por isso rejeitado No entanto o cristianismo conservará do gnosticismo duas idéias que o Mal existe realmente é o demônio que a matéria ou a carne é o centro onde o demônio isto é o Mal age sobre o mundo e sobre o homem Alguns séculos mais tarde o cristianismo tomou conhecimento de algumas das obras de Platão e de algumas das obras de Aristóteles que haviam sido conservadas e traduzidas por filósofos árabes como Averróis Avicena e Alfarabi Convite à Filosofia 286 e comentadas por filósofos judeus como Filon de Alexandria e Maimônides Reunindo essas obras e as elaborações precedentes baseadas nas três tradições mencionadas o cristianismo reorganizou a metafísica grega adaptandoa às necessidades da religião cristã A metafísica cristã Embora a metafísica cristã seja uma reelaboração da metafísica grega muitas das idéias gregas não poderiam ser aceitas pelo cristianismo Vejamos alguns exemplos para os gregos o mundo sensível e inteligível é eterno para os cristãos o mundo foi criado por Deus a partir do nada e terminará no dia do Juízo Final para os gregos a divindade é uma força cósmica racional impessoal para os cristãos Deus é pessoal é a unidade de três pessoas e por isso é dotado de intelecto e de vontade como o homem embora superior a este porque o intelecto divino é onisciente sabe tudo desde toda a eternidade e a vontade divina é onipotente pode tudo desde toda a eternidade para os gregos o homem é um ser natural dotado de corpo e alma esta possuindo uma parte superior e imortal que é o intelecto ou razão para os cristãos o homem é um ser misto natural por seu corpo mas sobrenatural por sua alma imortal para os gregos a liberdade humana é uma forma de ação isto é a capacidade da razão para orientar e governar a vontade a fim de que esta escolha o que é bom justo e virtuoso para os cristãos o homem é livre porque sua vontade é uma capacidade para escolher tanto o bem quanto o mal sendo mais poderosa do que a razão e pelo pecado destinada à perversidade e ao vício de modo que a ação moral só será boa justa e virtuosa se for guiada pela fé e pela Revelação para os gregos o conhecimento é uma atividade do intelecto o êxtase místico de que falavam os neoplatônicos não era algo misterioso ou irracional mas a forma mais alta da intuição intelectual para os cristãos a razão humana é limitada e imperfeita incapaz de por si mesma e sozinha alcançar a verdade precisando ser socorrida e corrigida pela fé e pela Revelação Essas diferenças e muitas outras que não foram mencionadas aqui acarretaram muitas mudanças na metafísica herdada dos gregos O problema principal para os cristãos foi o de encontrar um meio para reunir as verdades da razão Filosofia e as verdades da fé religião isto é para reunir novamente aquilo que ao nascer a Filosofia havia separado pois separara razão e mito De modo bastante resumido podemos dizer que os aspectos que passaram a constituir o centro da nova metafísica foram os seguintes provar a existência de Deus e os atributos ou predicados de sua essência Para a metafísica grega a divindade era uma força imaterial racional e impessoal conhecida por nossa razão Para a metafísica cristã Deus é uma pessoa trina ou Marilena Chauí 287 uma pessoa misteriosa que se revela ao espírito dos que possuem fé Como conciliar a concepção racionalista dos gregos e a concepção religiosa dos cristãos Provando racionalmente que Deus existe mesmo que a causa de sua existência seja um mistério da fé E provando racionalmente que ele possui por essência os seguintes predicados eternidade infinitude onisciência onipotência bondade justiça e misericórdia mesmo que tais atributos sejam um mistério da fé provar que o mundo existe e não é eterno mas foi criado do nada por Deus e retornará ao nada no dia do Juízo Final provar que o mundo resulta da vontade divina e é governado pela Providência divina a qual age tanto por meios naturais as leis da Natureza quanto por meios sobrenaturais os milagres Por que era necessária essa prova Porque do ponto de vista da razão Deus sendo perfeito completo pleno e eterno não carecia de nada não precisava de nada e portanto não tinha por que nem para que criar o mundo provar que embora Deus seja imaterial e infinito são ação pode ter efeitos materiais e finitos como o mundo e o homem portanto provar que Deus é causa eficiente de todas as coisas e que uma causa imaterial e infinita pode produzir um efeito material e finito mesmo que isso seja um mistério da fé que a razão é obrigada a aceitar De fato a Filosofia grega em nome dos princípios da identidade e da não contradição sempre demonstrou que uma causa precisa ser de mesma natureza que seu efeito e por esse motivo as Idéias em Platão e o Primeiro Motor Imóvel em Aristóteles eram causas finais e jamais causas materiais formais ou eficientes Por quê Porque uma causa final age à distância sem se identificar com aquilo que a deseja a procura Ao contrário as outras três causas agem diretamente sobre as coisas semelhantes a elas de mesma natureza que elas Uma planta causa outra planta um animal causa outro animal semelhante um humano causa o nascimento de outro ser humano e assim por diante Ora a criação do mundo por Deus seria para a metafísica grega uma irracionalidade e uma contradição pois se trata de um ser infinito e imaterial cuja ação produz um efeito oposto à natureza da causa isto é finito e material Um mistério da fé dirão os metafísicos cristãos provar que a alma humana existe e que é imortal estando destinada à salvação ou à condenação eternas segundo a vontade da Providência divina provar que não há contradição entre a liberdade humana e a onisciência onipotência de Deus A contradição existe para a razão mas não existe para a fé Qual seria a contradição racional entre a liberdade humana para fazer o bem ou o mal e a onisciênciaonipotência divina A contradição estaria no fato de que se Deus fez cada um dos homens e desde a eternidade sabe o que cada um deles Convite à Filosofia 288 escolherá então o homem não é livre mas já foi predeterminado pela vontade de Deus Para a fé não há contradição alguma nisso embora haja mistério provar que as idéias platônicas ou as emanações neoplatônicas ou os gêneros e espécies aristotélicos existem são substâncias reais criadas pelo intelecto e pela vontade de Deus e existem na mente divina Em outras palavras idéias emanações gêneros e espécies são substâncias universais e os universais existem tanto quanto os indivíduos provar que o Ser se diz ou deve ser entendido de modo diferente conforme se refira a Deus ou às criaturas Para os gregos no entanto o Ser existia de diferentes maneiras mas possuía um único sentido no que se refere à realidade e à essência de todos os entes Essa idéia para os cristãos não poderá ser mantida Platão por exemplo afirmou que o Ser só podia estar referido às idéias do mundo inteligível pois as coisas sensíveis eram o NãoSer cópia imagem sombra do verdadeiro Ser Já Aristóteles considerou o Ser como real para as coisas naturais ou sensíveis para o Primeiro Motor Imóvel para os seres matemáticos pois a diferença entre eles referiase apenas ao fato de poderem estar ou não submetidos à mudança ou ao devir No caso do cristianismo porém não era possível manter a diferença platônica entre o Ser e o NãoSer pois este mundo e tudo o que nele existe é obra de Deus é criatura de Deus e não mera aparência Mas também não era possível manter a idéia aristotélica de que a diferença entre os seres estaria apenas na presença ou ausência do devir ou da mudança pois para os cristãos o ser de Deus é de natureza diferente do ser das coisas uma vez que ele é criador e elas são criaturas e não há nada em comum entre eles O resultado da necessidade de afirmar que o Ser não possui o mesmo sentido quando aplicado a Deus e às criaturas foi a divisão da metafísica em três tipos de conhecimento 1 a teologia que se refere ao Ser como ser divino ou Deus 2 a psicologia racional que se refere ao Ser como essência da alma humana 3 a cosmologia racional que se refere ao Ser como essência das coisas naturais ou do mundo finalmente e como conseqüência de todas essas concepções provar que fé e razão revelação e conhecimento intelectual são não incompatíveis nem contraditórios e quando o forem a fé ou revelação deve ser considerada superior à razão e ao intelecto que devem submeterse a ela Evidentemente os pensadores cristãos nunca se puseram de acordo sobre todos esses aspectos e uma das marcas características da metafísica cristã foi a controvérsia Para alguns por exemplo os chamados universais idéias emanações gêneros espécies eram nomes gerais criados por nossa razão e não seres substâncias ou Marilena Chauí 289 essências reais Para outros o Ser deveria ser afirmado com o mesmo sentido para Deus e para as criaturas a diferença entre eles sendo de grau e não de natureza Para muitos fé e razão eram incompatíveis e deveriam ser inteiramente separadas cada qual com seu campo próprio de conhecimento sem que uma devesse submeterse à outra E assim por diante Independentemente das controvérsias divergências e diferenças entre os pensadores o cristianismo legou para a metafísica a separação entre teologia Deus psicologia racional alma e cosmologia racional mundo bem como a identificação de três conceitos ser essência e substância que se tornaram sinônimos Como conseqüência da identificação entre ser essência e substância de um lado e de outro a afirmação de que existem essências ou substâncias universais tanto quanto individuais a metafísica passou a ter um número ilimitado de seres para investigar as substâncias universais como água ar terra fogo homem anjo animal vegetal o bem o verdadeiro o justo o belo o pesado o leve as substâncias individuais ou os seres particulares as substâncias celestes as terrestres as aquáticas as matemáticas as orgânicas as inorgânicas etc Cada uma delas era investigada segundo os três princípios identidade contradição terceiro excluído as quatro causas material formal eficiente final o ato e a potência a matéria e a forma as categorias qualidade quantidade ação paixão relação tempo lugar etc o simples e o composto etc A metafísica clássica ou moderna A partir do final do século XVI e com maior intensidade no início do século XVII o pensamento ocidental começa a sofrer uma mudança considerável que irá manifestarse na metafísica Os filósofos clássicos século XVII julgavamse modernos por terem rompido com a tradição do pensamento platônico aristotélico e neoplatônico e por conseguinte por não mais aceitarem a tradição que havia sido elaborada pelos medievais Um dos exemplos mais conhecidos da modernidade é a recusa do geocentrismo e a adoção do heliocentrismo em astronomia Um outro exemplo é a nova física ou mecânica elaborada por Galileu contra a herança aristotélica Podemos de modo resumido apontar os seguintes traços característicos da nova metafísica afirmação da incompatibilidade entre fé e razão acarretando a separação de ambas de sorte que a religião e a Filosofia possam seguir caminhos próprios mesmo que a segunda não esteja publicamente autorizada a expor idéias que contradigam as verdades ou dogmas da fé a Inquisição e o Santo Ofício criados pela Igreja Católica para controlar os pensamentos dos cristãos eram atuantes e não foram poucos os pensadores submetidos a tais tribunais como foi o caso de Galileu Convite à Filosofia 290 redefinição do conceito de ser ou substância Em lugar de considerar que existem inumeráveis tipos de seres ou substâncias afirmase que existem três e apenas três seres ou substâncias a substância infinita Deus a substância pensante alma e a substância extensa corpo Uma substância é definida pelo seu atributo principal a substância infinita é definida por sua infinitude a pensante pelo intelecto e pela vontade a extensa pelo movimento e pelo repouso que determinam a massa a figura e o volume isto é por atributos geométricos e físicos Os entes individuais concretos se distribuem como substâncias pensantes ou extensas e o homem é uma substância mista À substância infinita corresponde um único ente Deus Não há seres ou substâncias ou essências universais mas somente individuais Notase portanto uma imensa simplificação do campo de investigação da metafísica graças à redefinição da substância Substância é o ser que existe em si e por si mesmo que subsiste em si e por si mesmo Uma substância não se define pelo conjunto de atributos essenciais e acidentais que possui mas pelo seu modo de existir A essência da substância é a existência em si e por si a autosuficiência Há portanto três e apenas três substâncias a que existe absolutamente em si e por si isto é o infinito ou Deus a que existe em si mas para existir teve que ser criada pelo infinito isto é a criada ou finita que existe sob duas formas como pensamento ou alma e como espaço ou figuravolumemassa ou corpo Os seres individuais nada mais são do que manifestações diversificadas das duas substâncias criadas finitas Mesmo que os consideremos substâncias eles os são simplesmente por serem realizações particulares das substâncias pensante e extensa redefinição do conceito de causa ou causalidade Causa é aquilo que produz um efeito O efeito pode ser produzido por uma ação anterior ou por uma finalidade posterior Por exemplo o fogo realiza uma ação anterior cujo efeito é o aquecimento e a dilatação de um outro corpo uma pessoa pode escolher entre fazer ou não fazer alguma coisa tendo em vista a finalidade que pretende alcançar de sorte que o fim ou o objetivo é algo posterior à ação e causa da decisão tomada Causa eficiente é aquela na qual uma ação anterior determina como conseqüência necessária a produção de um efeito Causa final é aquela que determina para os seres pensantes a realização ou nãorealização de uma ação Há duas e somente duas modalidades de causas a eficiente e a final e a causa final só atua na substância pensante referindose às ações de um sujeito Não há causa final para os corpos ou para a substância extensa mas apenas causa eficiente Desaparecendo as noções de causa material e causa formal desaparecem as de potência e ato matéria e forma como explicações da pluralidade dos seres e de suas transformações Marilena Chauí 291 a metafísica não se divide em teologia psicologia racional e cosmologia racional A teologia é um conhecimento diferente da metafísica embora como esta estude a substância infinita a psicologia racional é um conhecimento diferente da metafísica embora como esta estude a substância pensante a cosmologia é diferente da metafísica embora como esta estude a substância extensa Que estuda a metafísica A essência do infinito a essência do pensamento e a essência da extensão Como as estuda a metafísica Como conceitos ou idéias rigorosamente racionais A substância infinita é a idéia racional de um fundamento ou princípio absoluto que produz a essência e a existência de tudo o que existe A substância pensante é a idéia racional de uma faculdade intelectual e volitiva que produz pensamentos e ações segundo normas regras e métodos estabelecidos por ela mesma enquanto poder de conhecimento é a consciência como faculdade de reflexão e de representação da realidade por meio de idéias verdadeiras A substância extensa é a idéia racional de uma realidade físicogeométrica que produz os corpos como figuras e formas dotadas de massa volume e movimento é a Natureza como sistema de leis necessárias definidas pela mecânica e pela matemática o ponto de partida da metafísica é a teoria do conhecimento isto é a investigação sobre a capacidade humana para conhecer a verdade de modo que uma coisa ou um ente só é considerado real se a razão humana puder conhecêlo isto é se puder ser objeto de uma idéia verdadeira estabelecida rigorosa e metodicamente pelo intelecto humano Assim a metafísica não começa com a pergunta O que é realidade mas com a questão Podemos conhecer a realidade Três idéias e apenas três operam na metafísica a idéia da substância infinita como causa eficiente da Natureza e do homem a idéia da substância pensante como causa eficiente dos pensamentos dos conceitos e das ações humanas a idéia da substância extensa ou Natureza como causa eficiente que pelas relações de movimento e repouso produz todos os corpos A substância infinita ou Deus é a causa da existência e da essência das substâncias pensante e extensa e é causa das relações entre ambas no caso do homem já que este é uma substância mista Deus homem e Natureza são os objetos da metafísica Infinito finito causa eficiente e causa final são os primeiros princípios de que se ocupa a metafísica Idéias verdadeiras produzidas pelo intelecto humano com as quais o sujeito do conhecimento representa e conhece a realidade são os fundamentos da metafísica como ciência verdadeira ou como Primeira Filosofia Se tomarmos a história da metafísica veremos que seu campo de investigação foi gradualmente comportando novos temas e objetos de estudo que exprimem Convite à Filosofia 292 as exigências do pensamento de cada época Resumidamente os temas e objetos da metafísica podem ser assim apresentados O Ser como substância e como essência diferença entre essência e acidente origem e estrutura do mundo ou da realidade o infinito e o finito diferenças e relações o espírito e a matéria diferenças e relações o espaço e o tempo diferenças e relações a vida e a morte a alma e o corpo diferenças e relações a essência da mente humana a consciência e o mundo diferenças e relações essência e existência diferenças e relações a destinação do homem Deus a Natureza e o homem diferenças e relações A grande crise da metafísica David Hume O lugar ocupado pela teoria do conhecimento como condição da metafísica isto é a antecedência da pergunta O que e como podemos conhecer diante da pergunta antiga O que é a realidade forçou a Filosofia a pagar um alto preço Esse preço foi a crise da metafísica Se a realidade investigada pela metafísica é aquela que pode e deve ser racionalmente estabelecida pelas idéias verdadeiras produzidas pelo pensamento ou pela razão humana que acontecerá se se provar que tais idéias são hábitos mentais do sujeito do conhecimento e não correspondem a realidade alguma A metafísica antiga e medieval baseavase na afirmação de que a realidade ou o Ser existe em si mesmo e que ele se oferece tal como é ao pensamento A metafísica clássica ou moderna baseavase na afirmação de que o intelecto humano ou o pensamento possui o poder para conhecer a realidade tal como é em si mesma e que graças às operações intelectuais ou aos conceitos que representam as coisas e as transformam em objetos de conhecimento o sujeito do conhecimento tem acesso ao Ser Tanto num caso como noutro a metafísica baseavase em dois pressupostos 1 a realidade em si existe e pode ser conhecida 2 idéias ou conceitos são um conhecimento verdadeiro da realidade porque a verdade é a correspondência entre as coisas e os pensamentos ou entre o intelecto e a realidade Marilena Chauí 293 Esses dois pressupostos assentavamse num único fundamento a existência de um Ser Infinito Deus que garantia a realidade e a inteligibilidade de todas as coisas dotando os humanos de um intelecto capaz de conhecêlas tais como são em si mesmas David Hume dirá que os dois pressupostos da metafísica não têm fundamento não possuem validade alguma A metafísica antiga medieval e clássica ou moderna era sustentada por três princípios identidade nãocontradição e razão suficiente ou causalidade Os dois primeiros serviam de garantia para a idéia de substância ou essência o terceiro servia de garantia para explicar a origem e a finalidade das coisas bem como as relações entre os seres Hume partindo da teoria do conhecimento mostrou que o sujeito do conhecimento opera associando sensações percepções e impressões recebidas pelos órgãos dos sentidos e retidas na memória As idéias nada mais são do que hábitos mentais de associação de impressões semelhantes ou de impressões sucessivas Que é a idéia de substância ou de essência Nada mais do que um nome geral dado para indicar um conjunto de imagens e de idéias que nossa consciência tem o hábito de associar por causa das semelhanças entre elas O princípio da identidade e o da nãocontradição são simplesmente o resultado de percebermos repetida e regularmente certas coisas semelhantes e sempre da mesma maneira levandonos a supor que porque as percebemos como semelhantes e sempre da mesma maneira isso lhes daria uma identidade própria independente de nós Que é a idéia de causalidade O mero hábito que nossa mente adquire de estabelecer relações de causa e efeito entre percepções e impressões sucessivas chamando as anteriores de causas e as posteriores de efeitos A repetição constante e regular de imagens ou impressões sucessivas nos leva à crença de que há uma causalidade real externa própria das coisas e independente de nós Substância essência causa efeito matéria forma e todos os outros conceitos da metafísica Deus mundo alma infinito finito etc não correspondem a seres a entidades reais e externas independentes do sujeito do conhecimento mas são nomes gerais com que o sujeito nomeia e indica seus próprios hábitos associativos Eis porque a metafísica foi sempre alimentada por controvérsias infindáveis pois não se referia a nenhuma realidade externa existente em si e por si mas a hábitos mentais dos sujeitos hábitos que são muito variáveis e dão origem a inúmeras doutrinas filosóficas sem qualquer fundamento real A partir de Hume a metafísica tal como existira desde o século IV aC tornava se impossível Convite à Filosofia 294 Kant e o fim da metafísica clássica O primeiro a reagir aos problemas postos por Hume foi Kant ao declarar que graças ao filósofo inglês pôde despertar do sono dogmático O que é o sono dogmático É tomar como ponto de partida da metafísica a idéia de que existe uma realidade em si Deus alma mundo infinito finito matéria forma substância causalidade que pode ser conhecida por nossa razão ou o que dá no mesmo tomar como ponto de partida da metafísica a afirmação de que as idéias produzidas por nossa razão correspondem exatamente a uma realidade externa que existe em si e por si mesma Dogmático é aquele que aceita sem exame e sem crítica afirmações sobre as coisas e sobre as idéias Hume despertou a metafísica do sono dogmático porque a forçou a indagar sobre sua própria validade e sua pretensão ao conhecimento verdadeiro O que é despertar do sono dogmático É indagar antes de tudo se a metafísica é possível e se for em que condições é possível Despertar do dogmatismo é elaborar uma crítica da razão teórica isto é um estudo sobre a estrutura e o poder da razão para determinar o que ela pode e o que ela não pode conhecer verdadeiramente Quando examinamos os conceitos de razão e verdadevii vimos que Kant realizou uma revolução copernicana em filosofia isto é exigiu que antes de qualquer afirmação sobre as idéias houvesse o estudo da própria capacidade de conhecer isto é da razão Vimos também que ele distinguira duas grandes modalidades de conhecimento os conhecimentos empíricos isto é baseados nos dados da experiência psicológica de cada um de nós e os conhecimentos apriorísticos isto é baseados exclusivamente na estrutura interna da própria razão independentemente da experiência individual de cada um Vimos além disso que ele distinguira as duas maneiras pelas quais esses dois tipos de conhecimentos se exprimem os juízos sintéticos e os juízos analíticos Finalmente vimos que a questão do conhecimento estava resumida numa pergunta fundamental São possíveis juízos sintéticos apriorísticos Recordemos a distinção entre os tipos de juízos O juízo analítico é aquele em que o predicado não é senão a explicitação do conteúdo do sujeito Por exemplo O triângulo é uma figura de três lados O juízo sintético é aquele no qual o predicado acrescenta novos dados sobre o sujeito Por exemplo Sócrates é filósofo Um juízo para ter valor científico e filosófico ou valor teórico deve preencher duas condições 1 deve ser universal e necessário 2 deve ser verdadeiro isto é corresponder à realidade que enuncia Marilena Chauí 295 Os juízos analíticos diz Kant preenchem as duas condições mas não os juízos sintéticos Por quê Porque um juízo sintético se baseia nos dados da experiência psicológica individual e como bem mostrou Hume tal experiência nos dá sensações e impressões que associamos em idéias mas estas não são universais e necessárias nem correspondem à realidade Ora um juízo analítico não nos traz conhecimentos pois simplesmente repete no predicado o conteúdo do sujeito Somente juízos sintéticos são fonte de conhecimento Portanto se quisermos realizar metafísica e ciência temos primeiro que provar que são possíveis juízos sintéticos universais necessários e verdadeiros e portanto demonstrar que tais juízos não podem ser empíricos Dizer que um juízo sintético é universal necessário e verdadeiro e dizer que não pode ser empírico significa dizer que o juízo sintético filosófico e científico tem que ser um juízo sintético apriorístico ou a priori isto é tem que depender de alguma coisa que não seja a experiência A pergunta É possível a metafísica só poderá ser respondida se primeiro for provado que há ou que não pode haver juízos sintéticos a priori sobre as realidades metafísicas isto é Deus alma mundo substância matéria forma infinito finito causalidade etc Vimos que Kant demonstrou a existência e validade dos juízos sintéticos a priori nas ciências demonstrando que o conhecimento da realidade nada mais é do que a maneira como a razão através de sua estrutura universal organiza de modo universal e necessário os dados da experiência Em outras palavras vimos que graças às formas a priori da sensibilidade espaço e tempo e dos conceitos a priori do entendimento as categorias de substância causalidade relação quantidade qualidade etc possuímos uma capacidade de conhecimento inata universal e necessária que não depende da experiência mas se realiza por ocasião da experiência sobre os objetos que esta nos oferece O que é exatamente um juízo Um juízo é uma afirmação ou uma negação referente a propriedades de um sujeito isto é a maneira como o conhecimento afirma ou nega o que uma coisa é ou não é Como a realidade ou o objeto é aquilo que pode ser conhecido através das formas a priori da sensibilidade e dos conceitos a priori do entendimento um juízo é a afirmação ou a negação da realidade de um objeto pela afirmação ou negação de suas propriedades O que é conhecer Conhecer é formular juízos que nos apresentem todas as propriedades positivas de um objeto e excluam todas as propriedades negativas que o objeto não pode possuir Por exemplo quando digo O número 4 é um inteiro par esse juízo afirma que um certo objeto 4 é alguma coisa é um número que possui determinadas propriedades positivas inteiro par e por conseguinte dele Convite à Filosofia 296 estão excluídas propriedades negativas diferentes das que possui fracionário e ímpar Quando digo Isto é uma mesa é de madeira possui quatro pés está junto à janela é usada para escrever este juízo afirma que um certo objeto isto é alguma coisa mesa que possui certas qualidades madeira quatro pés serve para escrever está junto à janela e por conseguinte dele estão excluídas outras coisas não é uma cadeira não é um livro e a ele são negadas certas propriedades não é de vidro não está junto à porta não serve para deitar etc Um juízo portanto nos dá a conhecer alguma coisa desde que esta possa ser apreendida sob as formas do espaço e do tempo e sob os conceitos do entendimento Uma coisa passa a existir quando se torna objeto de um juízo Isso não significa que o juízo cria a própria coisa mas sim que a faz existir para nós O juízo põe a realidade de alguma coisa ao colocála como sujeito de uma proposição isto é ao colocála como objeto de um conhecimento É portanto o juízo que põe a qualidade a quantidade a causalidade a substância a matéria a forma a essência das coisas na medida em que estas existem apenas enquanto são objetos de conhecimento postos pelas formas do espaço do tempo e pelos conceitos do entendimento Em outras palavras uma coisa existe quando pode ser posta pelo sujeito do conhecimento entendido não como um sujeito individual e psicológico João Pedro Maria Ana mas como o sujeito universal ou estrutura a priori universal da razão humana aquilo que Kant denomina de Sujeito Transcendental viii Quando o juízo for sintético e a priori o conhecimento obtido é universal necessário e verdadeiro No entanto a demonstração de que graças às formas a priori da sensibilidade e graças aos conceitos a priori do entendimento os juízos sintéticos a priori são possíveis é uma demonstração que não ajuda em nada a pergunta sobre a possibilidade da metafísica Por quê Kant distinguiu duas modalidades de realidade A realidade que se oferece a nós na experiência e a realidade que não se oferece à experiência A primeira foi chamada por ele de fenômeno isto é aquilo que se apresenta ao sujeito do conhecimento na experiência é estruturado pelo sujeito com as formas do espaço e do tempo e com os conceitos do entendimento é sujeito de um juízo e objeto de um conhecimento A segunda foi chamada por ele de nôumeno isto é aquilo que não é dado à sensibilidade nem ao entendimento mas é afirmado pela razão sem base na experiência e no entendimento O fenômeno é a coisa para nós ou o objeto do conhecimento propriamente dito é o objeto enquanto sujeito do juízo O nôumeno é a coisa em si ou o objeto da metafísica isto é o que é dado para um pensamento puro sem relação com a experiência Ora só há conhecimento universal e necessário daquilo que é organizado pelo sujeito do conhecimento nas formas do espaço e do tempo e de Marilena Chauí 297 acordo com os conceitos do entendimento Se o nôumeno é aquilo que nunca se apresenta à sensibilidade nem ao entendimento mas é afirmado pelo pensamento puro não pode ser conhecido E se o nôumeno é o objeto da metafísica esta não é um conhecimento possível Tomemos um exemplo que nos ajude a compreender a argumentação kantiana Quando a metafísica se refere a Deus ela o define como imaterial infinito eterno incausado princípio e fundamento das essências e existências de todos os seres Vejamos cada uma das qualidades atribuídas ao sujeito Deus ou à idéia de Deus Imaterial portanto não espacial infinito portanto não espacial eterno portanto não temporal incausado portanto sem causa princípio e fundamento de tudo portanto acima e fora de toda a realidade conhecida ou incondicionado A idéia metafísica de Deus é a idéia de um ser que não pode nos aparecer sob a forma do espaço e tempo de um ser ao qual a categoria de causalidade não se aplica de um ser que nunca tendo sido dado a nós é posto entretanto como fundamento e princípio de toda a realidade e de toda a verdade Assim a idéia metafísica de Deus escapa de todas as condições de possibilidade do conhecimento humano e portanto a metafísica usa ilegitimamente essa idéia para afirmar que Deus existe e para dizer o que ele é Até agora diz Kant a metafísica tem sido uma insensatez dogmática Tem sido a pretensão de conhecer aqueles seres que justamente escapam de toda possibilidade humana de conhecimento pois são seres aos quais não se aplicam as condições universais e necessárias dos juízos isto é espaço tempo causalidade qualidade quantidade substancialidade etc Essa metafísica não é possível Mas isso não significa que toda metafísica seja impossível Qual é a metafísica possível É aquela que tem como objeto a investigação dos conceitos usados pelas ciências espaço tempo quantidade qualidade causalidade substancialidade universalidade necessidade etc isto é que tem como objeto o estudo das condições de possibilidade de todo conhecimento humano e de toda a experiência humana possíveis A metafísica estuda portanto as condições universais e necessárias da objetividade em geral e não o Ser enquanto Ser nem Deus alma e mundo nem substância infinita pensante e extensa Estuda as maneiras pelas quais o sujeito do conhecimento ou a razão teórica põe a realidade isto é estabelece os objetos do conhecimento e da experiência A metafísica é o conhecimento do conhecimento humano e da experiência humana ou em outras palavras do modo como os seres humanos enquanto expressões do Sujeito Transcendental definem e estabelecem realidades Convite à Filosofia 298 Há além desse um outro objeto para a metafísica Não se trata porém de um objeto teórico e sim de um objeto prático qual seja a ação humana enquanto ação moral ou o que Kant chama de ação livre por dever Por que a moral ou a ética se torna objeto da metafísica Por causa da liberdade A razão teórica mostra que todos os seres incluindo os homens são seres naturais Isso significa que são seres submetidos a relações necessárias de causa e efeito A Natureza é o reino das leis naturais de causalidade Nela tudo acontece de modo necessário ou causal não havendo lugar para escolhas livres No entanto os seres humanos são capazes de agir por escolha livre por determinação racional de sua vontade e são capazes de agir em nome de fins ou finalidades humanas e não apenas condicionados por causas naturais necessárias A ação livre ou por escolha voluntária ou racional é uma ação por finalidade e não por causalidade Nesse sentido a ação moral mostra que além do reino causal da Natureza existe o reino ético da liberdade e da finalidade Cabe à metafísica o estudo dessa outra modalidade de realidade que não é natural nem teórica mas prática Assim ao lado do conhecimento da razão teórica a metafísica tem como objeto o estudo da razão prática ou da ética Como é possível a liberdade Como é possível a ação livre por finalidade Quais são as finalidades da vida ética O que é o dever O que é e como é possível agir por dever O que é a virtude Eis alguns dos temas da metafísica como estudo da razão prática Marilena Chauí 299 Capítulo 4 A ontologia contemporânea A herança kantiana Após a solução kantiana para o problema da metafísica esta não mais retornou à antiga concepção de conhecimento da realidade em si mas caminhou no sentido inaugurado por Kant conhecido como idealismo Por que idealismo Vimos que a Filosofia na Antiguidade na Idade Média e na Modernidade era realista isto é partia da afirmação de que a realidade ou o Ser existem em si mesmos e que enquanto tais podem ser conhecidos pela razão humana Vimos também que o realismo clássico ou moderno introduzira uma mudança no realismo antigo e medieval pois exigira que antes de iniciar uma investigação metafísica da realidade fosse respondida a questão Podemos conhecer a realidade Em outras palavras exigira que a teoria do conhecimento antecedesse a metafísica Vimos a seguir o resultado dessa exigência David Hume demonstrando que o conteúdo da metafísica são apenas nossas idéias e que estas são nomes gerais atribuídos aos hábitos psicológicos de associar os dados da sensação e da percepção O sentimento subjetivo ou psicológico de regularidade constância e freqüência de nossas impressões são transformados em entidades metafísicas que na verdade não existem Kant completou a trajetória moderna mas com duas inovações fundamentais em primeiro lugar transformou a própria teoria do conhecimento em metafísica ao afirmar que esta investiga as condições gerais da objetividade isto é do conhecimento universal e necessário dos fenômenos e em segundo lugar demonstrou que o sujeito do conhecimento não é como pensara Hume o sujeito psicológico individual mas uma estrutura universal idêntica para todos os seres humanos em todos os tempos e lugares e que é a razão como faculdade a priori de conhecer ou o Sujeito Transcendental Nunca saberemos o que é e como é a realidade em si mesma separada e independente de nós Conhecemos apenas a realidade como fenômeno isto é organizada pelo sujeito do conhecimento segundo as formas do espaço e do tempo e segundo os conceitos do entendimento A realidade conhecível e conhecida é aquela posta pela objetividade estabelecida pela razão ou pelo Sujeito Transcendental Convite à Filosofia 300 O que é a objetividade O que é fenômeno O que é a realidade enquanto objeto ou fenômeno É a realidade estruturada pelas idéias produzidas pelo sujeito Por isso a metafísica se torna idealista ou um idealismo O conhecimento não vem das coisas para a consciência mas vem das idéias da consciência para as coisas A história da metafísica foi sempre o trabalho filosófico para responder a duas perguntas O que é aquilo que existe Como podemos conhecer aquilo que existe Duas foram as respostas a realista cujo exemplo mais acabado foi a metafísica de Aristóteles ou o estudo do Ser enquanto Ser e a idealista cujo exemplo mais acabado foi a críticaix da razão teórica e prática de Kant A contribuição da fenomenologia de Husserl Quando estudamos a teoria do conhecimento vimos que o filósofo alemão Husserl trouxe no início do século passado uma nova abordagem do conhecimento a que deu o nome de fenomenologia Essa abordagem como veremos agora teve conseqüências para a metafísica Segundo Husserl a fenomenologia está encarregada entre outras de três tarefas principais separar psicologia e filosofia manter o privilégio do sujeito do conhecimento ou consciência reflexiva diante dos objetos e ampliarrenovar o conceito de fenômeno Separação entre psicologia e filosofia No final do século XIX e no início do século XX muitos pensadores julgaram que a psicologia tomaria o lugar da teoria do conhecimento e da lógica e portanto da Filosofia Na opinião deles a ciência positiva do psiquismo seria suficiente para explicar as causas das formas de conhecimento e das demonstrações sem necessidade de investigações filosóficas Husserl porém veio demonstrar o equívoco de tal opinião A psicologia diz ele como toda e qualquer ciência estuda e explica fatos observáveis mas não pode oferecer os fundamentos de tais estudos e explicações pois esses cabem à Filosofia A psicologia explica por meio de observações e de relações causais fatos mentais e comportamentais isto é os mecanismos físicos fisiológicos e psíquicos que nos fazem ter sensações percepções lembranças pensamentos ou que nos permitem realizar ações pelas quais nos adaptamos ao meio ambiente A Filosofia porém difere da psicologia porque investiga o que é o físico o fisiológico o psíquico o comportamental Em outras palavras não explica fatos mentais e de comportamento mas descreve as essências da vida física e psíquica Tomemos um exemplo Quando um psicólogo estuda a percepção procura distinguir dois tipos de fatos os fatos externos observáveis a que dá o nome de estímulos luz calor cor forma dos objetos distância etc e os fatos internos indiretamente observáveis Marilena Chauí 301 a que dá o nome de respostas Divide o fato perceptivo em estímulos externos e internos o que acontece no sistema nervoso e no cérebro e em respostas internas e externas as operações do sistema nervoso e o ato sensorial de sentir ou perceber alguma coisa Quando um filósofo estuda a percepção procede de modo muito diferente Começa perguntando O que é a percepção diferentemente do psicólogo que parte da pergunta Como acontece uma percepção O que é a percepção Antes de tudo é um modo de nossa consciência relacionar se com o mundo exterior pela mediação de nosso corpo Em segundo lugar é um certo modo de a consciência relacionarse com as coisas quando as toma como realidades quantitativas cor sabor odor tamanho forma distâncias agradáveis desagradáveis dotadas de fisionomia e de sentido belas feias diferentes umas das outras partes de uma paisagem etc A percepção é uma vivência Em terceiro lugar essa vivência é uma forma de conhecimento dotada de estrutura há o ato de perceber pela consciência e há o correlato percebido a coisa externa a característica principal do percebido é a de oferecerse por faces por perfis ou perspectivas como algo interminável que nossos sentidos nunca podem apanhar de uma só vez e de modo total O que é a percepção Ou em outras palavras qual é a essência da percepção É uma vivência da consciência um ato cujo correlato são qualidades percebidas pela mediação de nosso corpo é um modo de estarmos no mundo e de nos relacionarmos com a presença das coisas diante de nós é um modo diferente por exemplo da vivência imaginativa da vivência reflexiva etc A psicologia nos diz que há percepção e nos oferece uma explicação causal para ela mas não pode nos dizer o que é a percepção pois para isso precisaria conhecer a essência da própria consciência Manutenção do privilégio do sujeito do conhecimento Conservandose fiel à tradição moderna e kantiana Husserl privilegia a consciência reflexiva ou o sujeito do conhecimento isto é afirma que as essências descritas pela Filosofia são produzidas ou constituídas pela consciência enquanto um poder para dar significação à realidade A consciência de que fala o filósofo não é evidentemente aquela de que fala o psicólogo Para este a consciência é o nome dado a um conjunto de fatos externos e internos observáveis e explicados causalmente A consciência a que se refere o filósofo é o sujeito do conhecimento como estrutura e atividade universal e necessária do saber É a Consciência Transcendental ou o Sujeito Transcendental Qual é o poder da consciência reflexiva O de constituir ou criar as essências pois estas nada mais são do que as significações produzidas pela consciência enquanto um poder universal de doação de sentido ao mundo Convite à Filosofia 302 A consciência não é uma coisa entre as coisas não é um fato observável nem é como imaginava a metafísica uma substância pensante ou uma alma entidade espiritual A consciência é uma pura atividade o ato de constituir essências ou significações dando sentido ao mundo das coisas Estas ou o mundo como significação são o correlato da consciência aquilo que é visado por ela e dela recebe sentido Não sendo uma coisa nem uma substância mas puro ato a consciência é uma forma é sempre consciência de O ser ou essência da consciência é o de ser sempre consciência de a que Husserl dá o nome de intencionalidade A consciência é um ato intencional e sua essência é a intencionalidade ou o ato de visar as coisas dandolhes significação O mundo ou a realidade é o correlato intencional da consciência Assim por exemplo perceber é o ato intencional da consciência o percebido é o seu correlato intencional e a percepção é a unidade interna e necessária entre o ato e o correlato entre o perceber e o percebido É por esse motivo que conhecendo a estrutura intencional ou a essência da consciência se pode conhecer a essência da percepção ou da imaginação da memória da reflexão etc Ampliaçãorenovação do conceito de fenômeno Desde Kant fenômeno indicava aquilo que do mundo externo se oferece ao sujeito do conhecimento sob as estruturas cognitivas da consciência isto é sob as formas do espaço e do tempo e sob os conceitos do entendimento No entanto o filósofo Hegel ampliou o conceito de fenômeno afirmando que tudo o que aparece só pode aparecer para uma consciência e que a própria consciência mostrase a si mesma no conhecimento de si sendo ela própria um fenômeno Por isso foi Hegel o primeiro a usar a palavra fenomenologia para com ela indicar o conhecimento que a consciência tem de si mesma através dos demais fenômenos que lhe aparecem Husserl mantém o conceito kantiano e hegeliano mas amplia ainda mais a noção de fenômeno Para compreendermos essa ampliação precisamos considerar a crítica que endereça a Kant e a Hegel Kant equivocouse ao distinguir fenômeno e nôumeno pois com essa distinção manteve a velha idéia metafísica da realidade em si ou do Ser enquanto Ser mesmo que dissesse que não a podíamos conhecer Hegel por sua vez aboliu a diferença entre a consciência e o mundo porque dissera que este nada mais é do que o modo como a consciência se torna as próprias coisas tornase mundo ela mesma tudo sendo fenômeno fenômeno interior a consciência e fenômeno exterior o mundo como manifestação da consciência nas coisas Contra Kant Husserl afirma que não há nôumeno não há a coisa em si incognoscível Tudo o que existe é fenômeno e só existem fenômenos Fenômeno é a presença real de coisas reais diante da consciência é aquilo que se apresenta diretamente em pessoa em carne e osso à consciência Marilena Chauí 303 Contra Hegel Husserl afirma que a consciência possui uma essência diferente das essências dos fenômenos pois ela é doadora de sentido às coisas e estas são receptoras de sentido A consciência não se encarna nas coisas não se torna as próprias coisas mas dá significação a elas permanecendo diferente delas O que é o fenômeno É a essência O que é a essência É a significação ou o sentido de um ser sua idéia seu eidos A Filosofia é a descrição da essência da consciência de seus atos e correlatos e das essências das coisas Por isso a Filosofia é uma eidética descrição do eidos ou das essências Como o eidos ou essência é o fenômeno a Filosofia é uma fenomenologia Os fenômenos ou essências Fenômeno não são apenas as coisas materiais que percebemos imaginamos ou lembramos cotidianamente porque são parte de nossa vida Também não são como supunha Kant apenas as coisas naturais estudadas pelas ciências da Natureza física química biologia astronomia geologia etc Fenômeno são também coisas puramente ideais ou idealidades isto é coisas que existem apenas no pensamento como os entes estudados pela matemática figuras geométricas números operações algébricas conceitos como igualdade diferença identidade etc e pela lógica como os conceitos de universalidade particularidade individualidade necessidade contradição etc Além das coisas materiais naturais e ideais também são fenômenos as coisas criadas pela ação e pela prática humanas técnicas artes instituições sociais e políticas crenças religiosas valores morais etc Em outras palavras os resultados da vida e da ação humanas aquilo que chamamos de Cultura são fenômenos isto é significações ou essências que aparecem à consciência e que são constituídas pela própria consciência A fenomenologia é a descrição de todos os fenômenos ou eidos ou essências ou significação de todas estas realidades materiais naturais ideais culturais Ao ampliar o conceito de fenômeno Husserl propôs que a Filosofia distinguisse diferentes tipos de essências ou fenômenos e que considerasse cada um deles como manifestando um tipo de realidade diferente um tipo de ser diferente Falou assim em regiões do ser a região Consciência a região Natureza a região Matemática a região Arte a região História a região Religião a região Política a região Ética etc Propôs que a Filosofia investigasse as essências próprias desses seres ou desses entes criando ontologias regionais Com essa proposta Husserl fazia com que a metafísica do Ser enquanto Ser e a metafísica das substâncias Deus alma mundo infinito pensante extensa cedessem lugar ao estudo do ser diferenciado em entes dotados de essências próprias e irredutíveis uns aos outros Esse estudo seria a ontologia sob a forma de ontologias regionais Convite à Filosofia 304 Ôntico e ontológico Vimos que a palavra ontologia deriva do particípio presente do verbo einai ser isto é de on ente e onta entes dos quais vêm o substantivo to on o Ser O filósofo alemão Heidegger propõe distinguir duas palavras ôntico e ontológico Ôntico se refere à estrutura e à essência própria de um ente aquilo que ele é em si mesmo sua identidade sua diferença em face de outros entes suas relações com outros entes Ontológico se refere ao estudo filosófico dos entes à investigação dos conceitos que nos permitam conhecer e determinar pelo pensamento em que consistem as modalidades ônticas quais os métodos adequados para o estudo de cada uma delas quais as categorias que se aplicam a cada uma delas Em resumo ôntico diz respeito aos entes em sua existência própria ontológico diz respeito aos entes tomados como objetos de conhecimento Como existem diferentes esferas ou regiões ônticas existirão ontologias regionais que se ocupam com cada uma delas Em nossa experiência cotidiana distinguimos espontaneamente cinco grandes estruturas ônticas 1 os entes materiais naturais que chamamos de coisas reais frutas árvores pedras rios estrelas areia o Sol a Lua metais etc 2 os entes materiais artificiais a que também chamamos de coisas reais nossa casa mesas cadeiras automóveis telefone computador lâmpadas chuveiro roupas calçados pratos talheres etc 3 os entes ideais isto é aqueles que não são coisas materiais mas idéias gerais concebidas pelo pensamento lógico matemático científico filosófico e aos quais damos o nome de idealidades igualdade diferença número raiz quadrada círculo conjunto classe função variável freqüência animal vegetal mineral físico psíquico matéria energia etc 4 os entes que podem ser valorizados positiva ou negativamente e aos quais damos o nome de valores beleza feiúra vício virtude raro comum bom mau justo injusto difícil fácil possível impossível verdadeiro falso desejável indesejável etc 5 os entes que pertencem a uma realidade diferente daquela a que pertencem as coisas as idealidades e os valores e aos quais damos o nome de metafísicos a divindade ou o absoluto a identidade e a alteridade o mundo como unidade a relação e diferenciação de todos os entes ou de todas as estruturas ônticas etc Como passamos da experiência ôntica à investigação ontológica Quando aquilo que faz parte de nossa vida cotidiana se torna problemático estranho confuso quando somos surpreendidos pelas coisas e pelas pessoas porque acontece algo inesperado ou imprevisível quando desejamos usar certas coisas e não sabemos como lidar com elas enfim quando o significado costumeiro das coisas das ações dos valores ou das pessoas perde sentido ou se mostra obscuro e confuso Marilena Chauí 305 ou quando o que nos foi dito ensinado e transmitido sobre eles já não nos satisfaz e queremos saber mais e melhor Podemos então perguntar O que é isso que chamamos de coisa real coisas naturais e coisas artificiais ou culturais Diremos que uma coisa é chamada real porque pertence a um conjunto de entes que possuem em comum a mesma estrutura ontológica são entes que existem fora de nós estão no mundo diante de nós isto é são um ser são entes que existem quer nós os percebamos ou não quer nós os usemos ou não estão presentes no mundo mesmo que não estejam presentes para nós pois podem estar presentes para todos ou ficar presentes para nós em algum momento isto é são uma realidade são entes que começam a existir e podem desaparecer mesmo que seu desaparecimento seja muito mais lento do que o nosso são entes que duram e possuem duração isto é são temporais são entes que se transformam no tempo são produzidos pela ação de outros e produzem outros obedecendo a certos princípios isto é são causas e efeitos são causalidades Ser realidade temporalidade e causalidade são conceitos ontológicos que descrevem a essência dos entes chamados coisas No caso dos entes ideais os conceitos ontológicos são bastante diferentes Em primeiro lugar tais entes não são coisas reais este cavalo é uma coisa real mas a idéia do cavalo não é uma coisa é um conceito e existe apenas como conceito Em segundo lugar não causam uns aos outros mas são entes que possuem uma definição própria podendo relacionarse com outros a idéia de homem não causa a de cavalo mas podem relacionarse quando o historiador por exemplo mostra a diferença entre sociedades cujo exército só possui a infantaria e aquelas que inventaram a cavalaria um círculo não causa um triângulo mas podemos inscrever triângulos num círculo para demonstrar um teorema ou resolver um problema São portanto entes relacionais mas não são regidos pelo conceito de causalidade Em terceiro lugar não existem do mesmo modo que as coisas isto é não começam a existir transformamse e desaparecem um triângulo uma inferência a idéia de vegetal não nascem nem morrem são intemporais Idealidade relação e intemporalidade são os conceitos ontológicos para os entes ideais No caso dos entes que são valores os conceitos ontológicos principais que os descrevem essencialmente são a qualidade um valor pode ser negativo ou afirmativo e a polaridade ou oposição os valores sempre se apresentam como pares de opostos bommau belofeio justoinjusto verdadeirofalso etc Observemos que o sentido das coisas naturais muda com a mudança dos conhecimentos científicos assim como muda o sentido dos entes ideais o que os gregos entendiam por número não é o que a matemática moderna entende por número por exemplo No caso dos entes reais artificiais isto é das coisas produzidas pelo homem com as técnicas e as artes a mudança não é apenas de sentido mas das próprias coisas entes técnicos ficam obsoletos e caem em desuso quando outros mais sofisticados são produzidos O sentido dos valores Convite à Filosofia 306 também muda nas diferentes sociedades e épocas o que era inaceitável numa sociedade ou numa época pode tornarse aceitável e desejável noutra ou vice versa Se considerarmos os entes na perspectiva dos seres humanos diremos que todos os entes naturais artificiais idéias valores metafísicos são entes culturais e históricos submetidos ao tempo à mudança pois seu sentido sua essência muda com a Cultura No entanto podemos observar também que as categorias ontológicas ser realidade causalidade temporalidade idealidade intemporalidade relação diferença qualidade quantidade polaridade oposição etc permanecem ainda que mudem seus objetos Assim por exemplo a ciência física pode oferecer uma explicação inteiramente nova para o fenômeno da percepção das cores Contudo a existência da luz da cor da percepção das coisas coloridas permanece e é a essa permanência que se refere a ontologia Uma sociedade pode considerar o homossexualismo masculino um valor positivo como foi o caso da sociedade grega antiga ou um valor negativo como na sociedade inglesa vitoriana do século XIX mas o ato de valorar positiva ou negativamente alguma ação permanece e é essa permanência que interessa à ontologia A nova ontologia nem realismo nem idealismo Filósofos que vieram após Husserl e adotaram suas idéias desenvolveram a nova ontologia Entre esses filósofos dois merecem especial destaque Martin Heidegger e o francês Maurice MerleauPonty Ambos modificaram várias das idéias de Husserl e esforçaramse para liberar a ontologia do velho problema deixado pela metafísica qual seja o dilema do realismo e do idealismo dilema que Husserl resolvera em favor do idealismo pelo papel preponderante que dera à consciência ou ao sujeito do conhecimento Qual o dilema posto pelo realismo e pelo idealismo O realismo afirma que se eliminarmos o sujeito e a consciência restam as coisas em si mesmas a realidade verdadeira o ser em si O idealismo ao contrário afirma que se eliminarmos as coisas ou o nôumeno resta a consciência ou o sujeito que através das operações do conhecimento põe a realidade o objeto Heidegger e MerleauPonty afirmam que as duas posições estão equivocadas e que são erros gêmeos cabendo à nova ontologia superálos isto é resolver o problema HeráclitoParmênides PlatãoAristóteles medievais e modernos Kant e Husserl Como resolver um problema milenar como esse e que é afinal a própria história da metafísica e da ontologia Dizem os dois filósofos se eliminarmos a consciência não sobra nada pois as coisas existem para nós isto é para uma consciência que as percebe imagina que delas se lembra nelas pensa que as transforma pelo trabalho etc Se Marilena Chauí 307 eliminarmos as coisas também não resta nada pois não podemos viver sem o mundo nem fora dele não somos os criadores do mundo e sim seus habitantes Damos sentido ao mundo transformamos as coisas criamos utensílios obras de arte instituições sociais mas não criamos o próprio mundo Sem a consciência não há mundo para nós Sem o mundo não temos como conhecer nem agir Um mundo sem nós será tudo quanto se queira menos o que entendemos por realidade Uma consciência sem o mundo será tudo quanto se queira menos consciência humana A nova ontologia parte da afirmação de que estamos no mundo e de que o mundo é mais velho do que nós isto é não esperou o sujeito do conhecimento para existir mas simultaneamente de que somos capazes de dar sentido ao mundo conhecêlo e transformálo Não somos uma consciência reflexiva pura mas uma consciência encarnada num corpo Nosso corpo não é apenas uma coisa natural tal como a física a biologia e a psicologia o estudam mas é um corpo humano isto é habitado e animado por uma consciência Não somos pensamento puro pois somos um corpo Não somos uma coisa natural pois somos uma consciência O mundo não é um conjunto de coisas e fatos estudados pelas ciências segundo relações de causa e efeito e leis naturais Além do mundo como conjunto racional de fatos científicos há o mundo como lugar onde vivemos com os outros e rodeados pelas coisas um mundo qualitativo de cores sons odores figuras fisionomias obstáculos um mundo afetivo de pessoas lugares lembranças promessas esperanças conflitos lutas Somos seres temporais nascemos e temos consciência da morte Somos seres intersubjetivos vivemos na companhia dos outros Somos seres culturais criamos a linguagem o trabalho a sociedade a religião a política a ética as artes e as técnicas a filosofia e as ciências O que é pois a realidade É justamente a existência do mundo material natural ideal cultural e a nossa existência nele A realidade é o campo formado por seres ou entes diferenciados e relacionados entre si que possuem sentido em si mesmos e que também recebem de nós outros e novos sentidos A realidade ou o Ser não é o ObjetoCoisa sem a consciência Mas também não é o Sujeito Consciência sem as coisas e os outros A realidade ou o Ser é o cruzamento e a diferenciação entre o sensível e o inteligível entre o materialnatural e o ideal cultural entre o qualitativo e o quantitativo entre o fato e o sentido entre o psíquico e o corporal etc O que estuda a ontologia Os entes ou seres antes que sejam investigados pelas ciências e depois que se tornaram enigmáticos para nossa vida cotidiana Em outras palavras os entes ou os seres antes de serem transformados em conceitos das ciências e depois que nossa experiência cotidiana sofreu o espanto a Convite à Filosofia 308 admiração e o estranhamento de que eles sejam como nos parecem ser ou não sejam o que nos parecem ser A ontologia estuda as essências antes que sejam fatos da ciência explicativa e depois que se tornaram estranhas para nós Digo por exemplo Vejo esta casa vermelha próxima da azul A ontologia indaga O que é ver qual a essência da visão O que é uma casa ou qual a essência da habitação Que é vermelho ou azul ou qual é a essência da cor Que é ver cores O que é a cor Pergunto por exemplo Que horas são A ontologia indaga O que é o tempo Qual a essência da temporalidade Pedro fala A cidade já está perto A ontologia indaga O que é o espaço Qual é a essência da espacialidade Que é perto e longe Que é distância Antônio diz a Paulo Aquelas duas árvores são idênticas mas a terceira é diferente A ontologia indaga O que é identidade E a diferença O que é duas e terceira Ou seja o que é o número Ana me diz Ouvi uma música belíssima não essa coisa feia que você está escutando A ontologia indaga O que é a beleza e a feiúra Existem o belo em si e o feio em si ou beleza e feiúra são avaliações e valores que atribuímos às coisas O que é um valor Cecília conta a Joana Pedro realizou um ato generoso protegendo a criança mas Eugênia foi egoísta ao não ajudálo A ontologia indaga O que é a generosidade ou o egoísmo Existem em si e por si mesmos ou são avaliações que fazemos das ações humanas O que é uma virtude O que é um vício O que é um valor Como se observa a ontologia investiga a essência ou sentido do ente físico ou natural do ente psíquico lógico matemático estético ético temporal espacial etc Investiga as diferenças e as relações entre eles seu modo próprio de existir sua origem sua finalidade O que é o mundo O que é o eu ou a consciência O que é o corpo O que é o outro O que é o espaçotempo O que é a linguagem O que é o trabalho A religião A arte A sociedade A história A morte O infinito Eis as questões da ontologia Recuperase assim a velha questão filosófica O que é isto que é mas acrescida de nova questão Para quem é isto que é Voltase pois a buscar o to on o Ser ou a essência das coisas dos atos dos valores humanos da vida e da morte do infinito e do finito A pergunta O que é isto que é referese ao modo de ser dos entes naturais artificiais ideais e humanos a pergunta Para quem é isto que é referese ao sentido ou à significação desses entes Marilena Chauí 309 Tomemos um exemplo para nos ajudar a compreender o modo de pensar da ontologia Acompanhemos brevemente o estudo de MerleauPonty sobre a essência ou o ser do tempo e a essência ou o ser do nosso corpo O que é o tempo Estamos acostumados a considerar o tempo como uma linha reta feita da sucessão de instantes ou como uma sucessão de agoras um agora que já foi é o passado o agora que está sendo é o presente um agora que virá é o futuro A metafísica realista usa freqüentemente a imagem do rio para representar o tempo como algo que passa sem cessar a nascente é o passado o lugar onde me encontro é o presente a foz é o futuro Há dois enganos nessa imagem Em primeiro lugar tratase de uma imagem espacial para referirse ao que é temporal isto é pretende explicar a essência do tempo o escoamento usando a essência do espaço a sucessão de pontos Em segundo lugar a imagem do rio não corresponde ao escoamento do tempo Para que correspondesse precisaria estar invertida pois a água que está na nascente é aquela que ainda não passou pelo lugar onde estou e portanto ela é para mim o futuro e não o passado a água que está na foz é aquela que já passou pelo lugar onde estou e portanto para mim é o passado e não o futuro Tentando evitar os enganos do realismo a metafísica idealista dirá que o tempo é a forma do sentido interno isto é uma forma criada pelo sujeito do conhecimento ou pela consciência reflexiva para organizar a experiência subjetiva da sucessão O tempo não existe mas é uma identidade produzida pela razão um conceito subjetivo para estruturar o que é experimentado como sucessivo Um novo engano acaba de ser cometido Se o tempo for uma forma ou um conceito produzido pela consciência reflexiva ou pelo sujeito para organizar a sucessão não haverá sucessão a organizar pois a consciência reflexiva ou o sujeito do conhecimento opera sempre e exclusivamente com o que é atual com o que está dado presentemente ao pensamento Para a reflexão só existe a simultaneidade e a sucessão se reduz a uma experiência psicológica ou empírica ao sentimento de que há um antes e um depois tais palavras indicando o modo como nos referimos à lembranças e expectativas pessoais Indaguemos porém o que é vivenciar o próprio tempo Quando vivencio o meu presente ele se apresenta como uma situação na qual sinto faço digo penso coisas atuo de várias maneiras e tenho experiência de uma situação aberta isto é na qual muitas coisas são possíveis para mim muitas coisas podem acontecer Quando rememoro meu passado percebo que entre ele e o meu presente há uma diferença quando ele era o meu presente também estava aberto a muitas possibilidades mas somente algumas se realizaram Por isso o Convite à Filosofia 310 passado lembrado não é uma situação aberta como o presente mas fechada terminada Assim meu passado não é simplesmente o que veio antes do meu presente mas algo qualitativamente diferente do presente este é aberto aquele fechado Quando imagino meu futuro antevejo a partir das possibilidades abertas em meu presente como seria se certas possibilidades se concretizassem e se outras não se realizassem Meu futuro não é simplesmente o que vem depois do meu presente mas algo qualitativamente diferente do presente é o que poderá ser se as aberturas do meu presente se concretizarem e portanto se o que hoje está aberto ou em suspenso estiver amanhã fechado e realizado Meu passado e meu futuro nunca são os mesmos Cada vez que me lembro do meu passado eu o faço a partir do meu presente e cada vez este é diferente fazendome recordar de maneiras diversas o que passou Cada vez que imagino meu futuro eu o faço a partir de meu presente que sendo sempre diferente imagina diferentemente o futuro Não revivo o passado mas o rememoro tal como sou hoje em meu presente Não vivo o meu futuro mas o imagino tal como sou hoje em meu presente O presente é uma contração temporal que arranca o passado do esquecimento e abre o futuro para o possível O passado e o futuro são dilatações temporais distorções do presente Que é lembrar É captar no contínuo temporal uma diferença real entre o que estou vivendo no presente e o que estou vivenciando do passado Que é esquecer É perder a fisionomia ou o relevo de um momento do passado Que é esperar É buscar no contínuo temporal uma diferença possível entre o que estou vivendo e o que estou vivenciando do futuro O que é o tempo Em primeiro lugar é um escoamento interno e externo um fluir contínuo que vai produzindo diferenças dentro de si mesmo Em segundo lugar é uma contração e uma dilatação de si mesmo um juntarse a si mesmo e consigo mesmo na lembrança e um expandirse a si mesmo e consigo mesmo na esperança O tempo é a produção da identidade e da diferença consigo mesmo e nesse sentido é uma dimensão do meu ser não estou no tempo mas sou temporal e uma dimensão de todos os entes não estão no tempo mas são temporais O tempo não é um receptáculo de instantes não é uma linha de momentos sucessivos não é a distância entre um agora um antes e um depois mas é o movimento interno dos entes para reuniremse consigo mesmos o presente como centro que busca o passado e o futuro e para se diferenciarem de si mesmos o presente como diferença qualitativa em face do passado e do futuro O Ser é tempo O que é nosso corpo Qual sua essência Marilena Chauí 311 A física dirá que é um agregado de átomos uma certa massa e energia que funciona de acordo com as leis gerais da Natureza A química dirá que é feito de moléculas de água oxigênio carbono de enzimas e proteínas funcionando como qualquer outro corpo químico A biologia dirá que é um organismo vivo um indivíduo membro de uma espécie animal mamífero vertebrado bípede capaz de adaptarse ao meio ambiente por operações e funções internas dotado de um código genético hereditário que se reproduz sexualmente A psicologia dirá que é um feixe de carne músculos ossos que formam aparelhos receptores de estímulos externos e internos e aparelhos emissores de respostas internas e externas a tais estímulos capaz de ter comportamentos observáveis Todas essas respostas dizem que nosso corpo é uma coisa entre as coisas uma máquina receptiva e ativa que pode ser explicada por relações de causa e efeito suas operações são observáveis direta ou indiretamente podendo ser examinado em seus mínimos detalhes nos laboratórios classificado e conhecido Nosso corpo como qualquer coisa é um objeto de conhecimento Porém será isso o corpo que é nosso Meu corpo é um ser visível no meio dos outros seres visíveis mas que tem a peculiaridade de ser um visível vidente vejo além de ser vista Não só isso Posso me ver sou visível para mim mesma E posso me ver vendo Meu corpo é um ser táctil como os outros corpos podendo ser tocado Mas também tem o poder de tocar é tocante e é capaz de tocarse como quando minha mão direita toca a esquerda e já não sabemos quem toca e quem é tocado Meu corpo é sonoro como outros corpos como os cristais e os metais pode ser ouvido Mas tem o poder de ouvir Mais do que isso pode fazerse ouvir e pode ouvirse quando emite sons Do fundo da garganta passando pela língua e pelos dentes com os movimentos de meus lábios transformo a sonoridade em sentido dizendo palavras Ouçome falando e ouço quem me fala Sou sonora para mim mesma Meu corpo estende a mão e toca outra mão em outro corpo vê um olhar percebe uma fisionomia escuta uma outra voz sei que diante de mim está um corpo que é meu outro um outro humano habitado por consciência e eu o sei porque me fala e como eu seu corpo produz palavras sentido Visívelvidente táctiltocante sonoroouvintefalante meu corpo se vê vendo se toca tocando se escuta escutando e falando Meu corpo não é coisa não é máquina não é feixe de ossos músculos e sangue não é uma rede de causas e efeitos não é um receptáculo para uma alma ou para uma consciência é meu modo fundamental de ser e de estar no mundo de me relacionar com ele e dele se relacionar comigo Meu corpo é um sensível que sente e se sente que se sabe sentir e se sentindo É uma interioridade exteriorizada e uma exterioridade Convite à Filosofia 312 interiorizada É esse o ser ou a essência do meu corpo Meu corpo tem como todos os entes uma dimensão metafísica ou ontológica Marilena Chauí 313 Unidade 7 As ciências Convite à Filosofia 314 Capítulo 1 A atitude científica O senso comum O Sol é menor do que a Terra Quem duvidará disso se diariamente vemos um pequeno círculo avermelhado percorrer o céu indo de leste para oeste O Sol se move em torno da Terra que permanece imóvel Quem duvidará disso se diariamente vemos o Sol nascer percorrer o céu e se pôr A aurora não é o seu começo e o crepúsculo seu fim As cores existem em si mesmas Quem duvidará disso se passamos a vida vendo rosas vermelhas amarelas e brancas o azul do céu o verde das árvores o alaranjado da laranja e da tangerina Cada gênero e espécie de animal já surgiram tais como os conhecemos Alguém poderia imaginar um peixe tornarse réptil ou um pássaro Para os que são religiosos os livros sagrados não ensinam que a divindade criou de uma só vez todos os animais num só dia A família é uma realidade natural criada pela Natureza para garantir a sobrevivência humana e para atender à afetividade natural dos humanos que sentem a necessidade de viver juntos Quem duvidará disso se vemos no mundo inteiro no passado e no presente a família existindo naturalmente e sendo a célula primeira da sociedade A raça é uma realidade natural ou biológica produzida pela diferença dos climas da alimentação da geografia e da reprodução sexual Quem duvidará disso se vemos que os africanos são negros os asiáticos são amarelos de olhos puxados os índios são vermelhos e os europeus brancos Se formos religiosos saberemos que os negros descendem de Caim marcado por Deus e de Cam o filho desobediente de Noé Certezas como essas formam nossa vida e o senso comum de nossa sociedade transmitido de geração em geração e muitas vezes transformandose em crença religiosa em doutrina inquestionável A astronomia porém demonstra que o Sol é muitas vezes maior do que a Terra e desde Copérnico que é a Terra que se move em torno dele A física óptica demonstra que as cores são ondas luminosas de comprimentos diferentes obtidas pela refração e reflexão ou decomposição da luz branca A biologia demonstra que os gêneros e as espécies de animais se formaram lentamente no curso de Marilena Chauí 315 milhões de anos a partir de modificações de microorganismos extremamente simples Historiadores e antropólogos mostram que o que entendemos por família pai mãe filhos esposa marido irmãos é uma instituição social recentíssima data do século XV e própria da Europa ocidental não existindo na Antiguidade nem nas sociedades africanas asiáticas e americanas précolombianas Mostram também que não é um fato natural mas uma criação sociocultural exigida por condições históricas determinadas Sociólogos e antropólogos mostram que a idéia de raça também é recente data do século XVIII sendo usada por pensadores que procuravam uma explicação para as diferenças físicas e culturais entre os europeus e os povos conhecidos a partir do século XIV com as viagens de Marco Pólo e do século XV com as grandes navegações e as descobertas de continentes ultramarinos Ao que parece há uma grande diferença entre nossas certezas cotidianas e o conhecimento científico Como e por que ela existe Características do senso comum Um breve exame de nossos saberes cotidianos e do senso comum de nossa sociedade revela que possuem algumas características que lhes são próprias são subjetivos isto é exprimem sentimentos e opiniões individuais e de grupos variando de uma pessoa para outra ou de um grupo para outro dependendo das condições em que vivemos Assim por exemplo se eu for artista verei a beleza da árvore se eu for marceneira a qualidade da madeira se estiver passeando sob o Sol a sombra para descansar se for bóiafria os frutos que devo colher para ganhar o meu dia Se eu for hindu uma vaca será sagrada para mim se for dona de um frigorífico estarei interessada na qualidade e na quantidade de carne que poderei vender são qualitativos isto é as coisas são julgadas por nós como grandes ou pequenas doces ou azedas pesadas ou leves novas ou velhas belas ou feias quentes ou frias úteis ou inúteis desejáveis ou indesejáveis coloridas ou sem cor com sabor odor próximas ou distantes etc são heterogêneos isto é referemse a fatos que julgamos diferentes porque os percebemos como diversos entre si Por exemplo um corpo que cai e uma pena que flutua no ar são acontecimentos diferentes sonhar com água é diferente de sonhar com uma escada etc são individualizadores por serem qualitativos e heterogêneos isto é cada coisa ou cada fato nos aparece como um indivíduo ou como um ser autônomo a seda é macia a pedra é rugosa o algodão é áspero o mel é doce o fogo é quente o mármore é frio a madeira é dura etc Convite à Filosofia 316 mas também são generalizadores pois tendem a reunir numa só opinião ou numa só idéia coisas e fatos julgados semelhantes falamos dos animais das plantas dos seres humanos dos astros dos gatos das mulheres das crianças das esculturas das pinturas das bebidas dos remédios etc em decorrência das generalizações tendem a estabelecer relações de causa e efeito entre as coisas ou entre os fatos onde há fumaça há fogo quem tudo quer tudo perde dizeme com quem andas e te direi quem és a posição dos astros determina o destino das pessoas mulher menstruada não deve tomar banho frio ingerir sal quando se tem tontura é bom para a pressão mulher assanhada quem ser estuprada menino de rua é delinqüente etc não se surpreendem e nem se admiram com a regularidade constância repetição e diferença das coisas mas ao contrário a admiração e o espanto se dirigem para o que é imaginado como único extraordinário maravilhoso ou miraculoso Justamente por isso em nossa sociedade a propaganda e a moda estão sempre inventando o extraordinário o nunca visto pelo mesmo motivo e não por compreenderem o que seja investigação científica tendem a identificála com a magia considerando que ambas lidam com o misterioso o oculto o incompreensível Essa imagem da ciência como magia aparece por exemplo no cinema quando os filmes mostram os laboratórios científicos repletos de objetos incompreensíveis com luzes que acendem e apagam tubos de onde saem fumaças coloridas exatamente como são mostradas as cavernas ocultas dos magos Essa mesma identificação entre ciência e magia aparece num programa da televisão brasileira o Fantástico que como o nome indica mostra aos telespectadores resultados científicos como se fossem espantosa obra de magia assim como exibem magos ocultistas como se fossem cientistas costumam projetar nas coisas ou no mundo sentimentos de angústia e de medo diante do desconhecido Assim durante a Idade Média as pessoas viam o demônio em toda a parte e hoje enxergam discos voadores no espaço por serem subjetivos generalizadores expressões de sentimentos de medo e angústia e de incompreensão quanto ao trabalho científico nossas certezas cotidianas e o senso comum de nossa sociedade ou de nosso grupo social cristalizamse em preconceitos com os quais passamos a interpretar toda a realidade que nos cerca e todos os acontecimentos A atitude científica O que distingue a atitude científica da atitude costumeira ou do senso comum Antes de qualquer coisa a ciência desconfia da veracidade de nossas certezas de nossa adesão imediata às coisas da ausência de crítica e da falta de curiosidade Por isso ali onde vemos coisas fatos e acontecimentos a atitude científica vê Marilena Chauí 317 problemas e obstáculos aparências que precisam ser explicadas e em certos casos afastadas Sob quase todos os aspectos podemos dizer que o conhecimento científico opõe se ponto por ponto às características do senso comum é objetivo isto é procura as estruturas universais e necessárias das coisas investigadas é quantitativo isto é busca medidas padrões critérios de comparação e avaliação para coisas que parecem ser diferentes Assim por exemplo as diferenças de cor são explicadas por diferenças de um mesmo padrão ou critério de medida o comprimento das ondas luminosas as diferenças de intensidade dos sons pelo comprimento das ondas sonoras as diferenças de tamanho pelas diferenças de perspectiva e de ângulos de visão etc é homogêneo isto é busca as leis gerais de funcionamento dos fenômenos que são as mesmas para fatos que nos parecem diferentes Por exemplo a lei universal da gravitação demonstra que a queda de uma pedra e a flutuação de uma pluma obedecem à mesma lei de atração e repulsão no interior do campo gravitacional a estrela da manhã e a estrela da tarde são o mesmo planeta Vênus visto em posições diferentes com relação ao Sol em decorrência do movimento da Terra sonhar com água e com uma escada é ter o mesmo tipo de sonho qual seja a realização dos desejos sexuais reprimidos etc é generalizador pois reúne individualidades percebidas como diferentes sob as mesmas leis os mesmos padrões ou critérios de medida mostrando que possuem a mesma estrutura Assim por exemplo a química mostra que a enorme variedade de corpos se reduz a um número limitado de corpos simples que se combinam de maneiras variadas de modo que o número de elementos é infinitamente menor do que a variedade empírica dos compostos são diferenciadores pois não reúnem nem generalizam por semelhanças aparentes mas distinguem os que parecem iguais desde que obedeçam a estruturas diferentes Lembremos aqui um exemplo que usamos no capítulo sobre a linguagem quando mostramos que a palavra queijo parece ser a mesma coisa que a palavra inglesa cheese e a palavra francesa fromage quando na realidade são muito diferentes porque se referem a estruturas alimentares diferentes só estabelecem relações causais depois de investigar a natureza ou estrutura do fato estudado e suas relações com outros semelhantes ou diferentes Assim por exemplo um corpo não cai porque é pesado mas o peso de um corpo depende do campo gravitacional onde se encontra é por isso que nas naves espaciais onde a gravidade é igual a zero todos os corpos flutuam independentemente do peso ou do tamanho um corpo tem uma certa cor não porque é colorido mas porque dependendo de sua composição química e física reflete a luz de uma determinada maneira etc Convite à Filosofia 318 surpreendese com a regularidade a constância a freqüência a repetição e a diferença das coisas e procura mostrar que o maravilhoso o extraordinário ou o milagroso é um caso particular do que é regular normal freqüente Um eclipse um terremoto um furacão embora excepcionais obedecem às leis da física Procura assim apresentar explicações racionais claras simples e verdadeiras para os fatos opondose ao espetacular ao mágico e ao fantástico distinguese da magia A magia admite uma participação ou simpatia secreta entre coisas diferentes que agem umas sobre as outras por meio de qualidades ocultas e considera o psiquismo humano uma força capaz de ligarse a psiquismos superiores planetários astrais angélicos demoníacos para provocar efeitos inesperados nas coisas e nas pessoas A atitude científica ao contrário opera um desencantamento ou desenfeitiçamento do mundo mostrando que nele não agem forças secretas mas causas e relações racionais que podem ser conhecidas e que tais conhecimentos podem ser transmitidos a todos afirma que pelo conhecimento o homem pode libertarse do medo e das superstições deixando de projetálos no mundo e nos outros procura renovarse e modificarse continuamente evitando a transformação das teorias em doutrinas e destas em preconceitos sociais O fato científico resulta de um trabalho paciente e lento de investigação e de pesquisa racional aberto a mudanças não sendo nem um mistério incompreensível nem uma doutrina geral sobre o mundo Os fatos ou objetos científicos não são dados empíricos espontâneos de nossa experiência cotidiana mas são construídos pelo trabalho da investigação científica Esta é um conjunto de atividades intelectuais experimentais e técnicas realizadas com base em métodos que permitem e garantem separar os elementos subjetivos e objetivos de um fenômeno construir o fenômeno como um objeto do conhecimento controlável verificável interpretável e capaz de ser retificado e corrigido por novas elaborações demonstrar e provar os resultados obtidos durante a investigação graças ao rigor das relações definidas entre os fatos estudados a demonstração deve ser feita não só para verificar a validade dos resultados obtidos mas também para prever racionalmente novos fatos como efeitos dos já estudados relacionar com outros fatos um fato isolado integrandoo numa explicação racional unificada pois somente essa integração transforma o fenômeno em objeto científico isto é em fato explicado por uma teoria formular uma teoria geral sobre o conjunto dos fenômenos observados e dos fatos investigados isto é formular um conjunto sistemático de conceitos que expliquem e interpretem as causas e os efeitos as relações de dependência Marilena Chauí 319 identidade e diferença entre todos os objetos que constituem o campo investigado Delimitar ou definir os fatos a investigar separandoos de outros semelhantes ou diferentes estabelecer os procedimentos metodológicos para observação experimentação e verificação dos fatos construir instrumentos técnicos e condições de laboratório específicas para a pesquisa elaborar um conjunto sistemático de conceitos que formem a teoria geral dos fenômenos estudados que controlem e guiem o andamento da pesquisa além de ampliála com novas investigações e permitam a previsão de fatos novos a partir dos já conhecidos esses são os prérequisitos para a constituição de uma ciência e as exigências da própria ciência A ciência distinguese do senso comum porque este é uma opinião baseada em hábitos preconceitos tradições cristalizadas enquanto a primeira baseiase em pesquisas investigações metódicas e sistemáticas e na exigência de que as teorias sejam internamente coerentes e digam a verdade sobre a realidade A ciência é conhecimento que resulta de um trabalho racional O que é uma teoria científica É um sistema ordenado e coerente de proposições ou enunciados baseados em um pequeno número de princípios cuja finalidade é descrever explicar e prever do modo mais completo possível um conjunto de fenômenos oferecendo suas leis necessárias A teoria científica permite que uma multiplicidade empírica de fatos aparentemente muito diferentes sejam compreendidos como semelhantes e submetidos às mesmas leis e viceversa permite compreender por que fatos aparentemente semelhantes são diferentes e submetidos a leis diferentes Convite à Filosofia 320 Capítulo 2 A ciência na História As três principais concepções de ciência Historicamente três têm sido as principais concepções de ciência ou de ideais de cientificidade o racionalista cujo modelo de objetividade é a matemática o empirista que toma o modelo de objetividade da medicina grega e da história natural do século XVII e o construtivista cujo modelo de objetividade advém da idéia de razão como conhecimento aproximativo A concepção racionalista que se estende dos gregos até o final do século XVII afirma que a ciência é um conhecimento racional dedutivo e demonstrativo como a matemática portanto capaz de provar a verdade necessária e universal de seus enunciados e resultados sem deixar qualquer dúvida possível Uma ciência é a unidade sistemática de axiomas postulados e definições que determinam a natureza e as propriedades de seu objeto e de demonstrações que provam as relações de causalidade que regem o objeto investigado O objeto científico é uma representação intelectual universal necessária e verdadeira das coisas representadas e corresponde à própria realidade porque esta é racional e inteligível em si mesma As experiências científicas são realizadas apenas para verificar e confirmar as demonstrações teóricas e não para produzir o conhecimento do objeto pois este é conhecido exclusivamente pelo pensamento O objeto científico é matemático porque a realidade possui uma estrutura matemática ou como disse Galileu o grande livro da Natureza está escrito em caracteres matemáticos A concepção empirista que vai da medicina grega e Aristóteles até o final do século XIX afirma que a ciência é uma interpretação dos fatos baseada em observações e experimentos que permitem estabelecer induções e que ao serem completadas oferecem a definição do objeto suas propriedades e suas leis de funcionamento A teoria científica resulta das observações e dos experimentos de modo que a experiência não tem simplesmente o papel de verificar e confirmar conceitos mas tem a função de produzilos Eis por que nesta concepção sempre houve grande cuidado para estabelecer métodos experimentais rigorosos pois deles dependia a formulação da teoria e a definição da objetividade investigada Essas duas concepções de cientificidade possuíam o mesmo pressuposto embora o realizassem de maneiras diferentes Ambas consideravam que a teoria científica Marilena Chauí 321 era uma explicação e uma representação verdadeira da própria realidade tal como esta é em si mesma A ciência era uma espécie de raioX da realidade A concepção racionalista era hipotéticodedutiva isto é definia o objeto e suas leis e disso deduzia propriedades efeitos posteriores previsões A concepção empirista era hipotéticoindutiva isto é apresentava suposições sobre o objeto realizava observações e experimentos e chegava à definição dos fatos às suas leis suas propriedades seus efeitos posteriores e previsões A concepção construtivista iniciada no século passado considera a ciência uma construção de modelos explicativos para a realidade e não uma representação da própria realidade O cientista combina dois procedimentos um vindo do racionalismo e outro vindo do empirismo e a eles acrescenta um terceiro vindo da idéia de conhecimento aproximativo e corrigível Como o racionalista o cientista construtivista exige que o método lhe permita e lhe garanta estabelecer axiomas postulados definições e deduções sobre o objeto científico Como o empirista o construtivista exige que a experimentação guie e modifique axiomas postulados definições e demonstrações No entanto porque considera o objeto uma construção lógicointelectual e uma construção experimental feita em laboratório o cientista não espera que seu trabalho apresente a realidade em si mesma mas ofereça estruturas e modelos de funcionamento da realidade explicando os fenômenos observados Não espera portanto apresentar uma verdade absoluta e sim uma verdade aproximada que pode ser corrigida modificada abandonada por outra mais adequada aos fenômenos São três as exigências de seu ideal de cientificidade 1 que haja coerência isto é que não haja contradições entre os princípios que orientam a teoria 2 que os modelos dos objetos ou estruturas dos fenômenos sejam construídos com base na observação e na experimentação 3 que os resultados obtidos possam não só alterar os modelos construídos mas também alterar os próprios princípios da teoria corrigindoa Diferenças entre a ciência antiga e a moderna Quando apresentamos os ideais de cientificidade dissemos que tanto o ideal racionalista quanto o empirista se iniciaram com os gregos Isso porém não significa que a concepção antiga e a moderna século XVII de ciência sejam idênticas Tomemos um exemplo que nos ajude a perceber algumas das diferenças entre antigos e modernos Aristóteles escreveu uma Física O objeto físico ou natural diz Aristóteles possui duas características principais em primeiro lugar existe e opera independentemente da presença da vontade e da ação humanas em segundo lugar é um ser em movimento isto é em devir sofrendo alterações qualitativas Convite à Filosofia 322 quantitativas e locais nasce vive e morre ou desaparece A Física estuda portanto os seres naturais submetidos à mudança O mundo escreve Aristóteles dividese em duas grandes regiões naturais cuja diferença é dada pelo tipo de substância de matéria e de forma dos seres de cada uma delas A região celeste formada de Sete Céus ou Sete Esferas onde estão os astros tem como substância o éter matéria sutil e diáfana forma universal que não sofre mudanças qualitativas nem quantitativas mas apenas a mudança ou movimento local realizando eternamente o mais perfeito dos movimentos o circular A segunda região é a sublunar ou terrestre nosso mundo constituída por quatro substâncias ou elementos terra água ar e fogo de cujas combinações surgem todos os seres São substâncias fortemente materiais e portanto como vimos no estudo da metafísica aristotélica fortemente potenciais ou virtuais transformandose sem cessar A região sublunar é o mundo das mudanças de forma ou da passagem contínua de uma forma a outra para atualizar o que está em potência na matéria Os seres físicos não se movem da mesma maneira não se transformam nem se deslocam da mesma maneira Seus movimentos e mudanças dependem da qualidade de suas matérias e da quantidade em que cada um dos quatro elementos materiais existe combinado com os outros num corpo Deixemos de lado todas as modalidades de movimentos estudadas por Aristóteles e examinemos apenas uma o movimento local Os corpos diz o filósofo procuram atualizar suas potências materiais atualizandose em formas diferentes Cada modalidade de matéria realiza sua forma perfeita de maneira diferente das outras No caso do movimento local a matéria define lugares naturais isto é locais onde ela se atualiza ou se realiza melhor do que em outros Assim os corpos pesados nos quais predomina o elemento terra têm como lugar natural o centro da Terra e por isso o movimento local natural dos pesados é a queda Os corpos leves nos quais predomina o elemento fogo têm como lugar natural o céu e por isso seu movimento local natural é subir Os corpos não inteiramente leves nos quais predomina o elemento ar buscam seu lugar natural no espaço rarefeito e por isso seu movimento local natural é flutuar Enfim os corpos não totalmente pesados nos quais predomina o elemento água buscam seu lugar natural no líquido e por isso seu movimento local natural é boiar nas águas Além dos movimentos naturais os corpos podem ser submetidos a movimentos violentos isto é àqueles que contrariam sua natureza e os impedem de alcançar seu lugar natural Por exemplo quando o arqueiro lança uma flecha imprime nela um movimento violento pois forçaa a permanecer no ar embora seu lugar natural seja a terra e seu movimento natural seja a queda Este pequeno resumo da Física aristotélica nos mostra algumas características marcantes da ciência antiga Marilena Chauí 323 é uma ciência baseada nas qualidades percebidas nos corpos leve pesado líquido sólido etc é uma ciência baseada em distinções qualitativas do espaço alto baixo longe perto celeste sublunar é uma ciência baseada na metafísica da identidade e da mudança perfeição imóvel imperfeição móvel é uma ciência que estabelece leis diferentes para os corpos segundo sua matéria e sua forma ou segundo sua substância como conseqüência das características anteriores é uma ciência que concebe a realidade natural como um modelo hierárquico no qual os seres possuem um lugar natural de acordo com sua perfeição hierarquizandose em graus que vão dos inferiores aos superiores Quando comparamos a física de Aristóteles com a moderna isto é a que foi elaborada por Galileu e Newton podemos notar as grandes diferenças para a física moderna o espaço é aquele definido pela geometria portanto homogêneo sem distinções qualitativas entre alto baixo frente atrás longe perto É um espaço onde todos os pontos são reversíveis ou equivalentes de modo que não há lugares naturais qualitativamente diferenciados os objetos físicos investigados pelo cientista começam por ser purificados de todas as qualidades sensoriais cor tamanho odor peso matéria forma líquido sólido leve grande pequeno etc isto é de todas as qualidades sensíveis porque estas são meramente subjetivas O objeto é definido por propriedades objetivas gerais válidas para todos os seres físicos massa volume figura Tornase irrelevante o tipo de matéria de forma ou de substância de um corpo pois todos se comportam fisicamente da mesma maneira Tornase inútil a distinção entre um mundo celeste e um mundo sublunar pois astros e corpos terrestres obedecem às mesmas leis universais da física a física estuda o movimento não como alteração qualitativa e quantitativa dos corpos mas como deslocamento espacial que altera a massa o volume e a velocidade dos corpos O movimento e o repouso são as propriedades físicas objetivas de todos os corpos da Natureza e todos eles obedecem às mesmas leis aquelas que Galileu formulou com base no princípio da inércia um corpo se mantém em movimento indefinidamente a menos que encontre um outro que lhe faça obstáculo ou que o desvie de seu trajeto e aquelas formuladas por Newton com base no princípio universal da gravitação a toda ação corresponde uma reação que lhe é igual e contrária Não há diferença entre movimento natural e movimento violento pois todo e qualquer movimento obedece às mesmas leis a Natureza é um complexo de corpos formados por proporções diferentes de movimento e de repouso articulados por relações de causa e efeito sem finalidade pois a idéia de finalidade só existe para os seres humanos dotados de Convite à Filosofia 324 razão e vontade Os corpos não se movem portanto em busca de perfeição mas porque a causa eficiente do movimento os faz moveremse A física é uma mecânica universal A física da Natureza se torna geométrica experimental quantitativa causal ou mecânica relações entre a causa eficiente e seus efeitos e suas leis têm valor universal independentemente das qualidades sensíveis das coisas Terra mar e ar obedecem às mesmas leis naturais A Natureza é a mesma em toda parte e para todos os seres não existindo hierarquias ou graus de imperfeiçãoperfeição inferioridadesuperioridade Há ainda uma outra diferença profunda entre a ciência antiga e a moderna A primeira era uma ciência teorética isto é apenas contemplava os seres naturais sem jamais imaginar intervir neles ou sobre eles A técnica era um saber empírico ligado a práticas necessárias à vida e nada tinha a oferecer à ciência nem a receber dela Numa sociedade escravista que deixava tarefas trabalhos e serviços aos escravos a técnica era vista como uma forma menor de conhecimento Duas afirmações mostram a diferença dos modernos em relação aos antigos a afirmação do filósofo inglês Francis Bacon para quem saber é poder e a afirmação de Descartes para quem a ciência deve tornarnos senhores da Natureza A ciência moderna nasce vinculada à idéia de intervir na Natureza de conhecêla para apropriarse dela para controlála e dominála A ciência não é apenas contemplação da verdade mas é sobretudo o exercício do poderio humano sobre a Natureza Numa sociedade em que o capitalismo está surgindo e para acumular o capital deve ampliar a capacidade do trabalho humano para modificar e explorar a Natureza a nova ciência será inseparável da técnica Na verdade é mais correto falar em tecnologia do que em técnica De fato a técnica é um conhecimento empírico que graças à observação elabora um conjunto de receitas e práticas para agir sobre as coisas A tecnologia porém é um saber teórico que se aplica praticamente Por exemplo um relógio de sol é um objeto técnico que serve para marcar horas seguindo o movimento solar no céu Um cronômetro porém é um objeto tecnológico por um lado sua construção pressupõe conhecimentos teóricos sobre as leis do movimento as leis do pêndulo e por outro lado seu uso altera a percepção empírica e comum dos objetos pois serve para medir aquilo que nossa percepção não consegue perceber Uma lente de aumento é um objeto técnico mas o telescópio e o microscópio são objetos tecnológicos pois sua construção pressupõe o conhecimento das leis científicas definidas pela óptica Em outras palavras um objeto é tecnológico quando sua construção pressupõe um saber científico e quando seu uso interfere nos resultados das pesquisas científicas A ciência moderna tornouse inseparável da tecnologia Marilena Chauí 325 As mudanças científicas Vimos até aqui duas grandes mudanças na ciência A primeira delas se refere à passagem do racionalismo e empirismo ao construtivismo isto é de um ideal de cientificidade baseado na idéia de que a ciência é uma representação da realidade tal como ela é em si mesma a um ideal de cientificidade baseado na idéia de que o objeto científico é um modelo construído e não uma representação do real uma aproximação sobre o modo de funcionamento da realidade mas não o conhecimento absoluto dela A segunda mudança referese à passagem da ciência antiga teorética qualitativa à ciência moderna tecnológica quantitativa Por que houve tais mudanças no pensamento científico Durante certo tempo julgouse que a ciência como a sociedade evolui e progride Evolução e progresso são duas idéias muito recentes datam dos séculos XVIII e XIX mas muito aceitas pelas pessoas Basta ver o lema da bandeira brasileira para perceber como as pessoas acham natural falar em Ordem e Progresso As noções de evolução e de progresso partem da suposição de que o tempo é uma linha reta contínua e homogênea como a imagem do rio que vimos ao estudar a metafísica O tempo seria uma sucessão contínua de instantes momentos fases períodos épocas que iriam se somando uns aos outros acumulandose de tal modo que o que acontece depois é o resultado melhorado do que aconteceu antes Contínuo e cumulativo o tempo seria um aperfeiçoamento de todos os seres naturais e humanos Evolução e progresso são a crença na superioridade do presente em relação ao passado e do futuro em relação ao presente Assim os europeus civilizados seriam superiores aos africanos e aos índios a física galileananewtoniana seria superior à aristotélica a física quântica seria superior à de Galileu e de Newton Evoluir significa tornarse superior e melhor do que se era antes Progredir significa ir num rumo cada vez melhor na direção de uma finalidade superior Evolução e progresso também supõem o tempo como uma série linear de momentos ligados por relações de causa e efeito em que o passado é causa e o presente efeito vindo a tornarse causa do futuro Vemos essa idéia aparecer quando por exemplo os manuais de História apresentam as influências que um acontecimento anterior teria tido sobre um outro posterior Evoluir e progredir pressupõem uma concepção de História semelhante à que a biologia apresenta quando fala em germe semente ou larva O germe a semente ou a larva são entes que contêm neles mesmos tudo o que lhes acontecerá isto é o futuro já está contido no ponto inicial de um ser cuja história ou cujo tempo nada mais é do que o desdobrar ou o desenvolver pleno daquilo que ele já era potencialmente Convite à Filosofia 326 Essa idéia encontrase presente por exemplo na distinção entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos Quando digo que um país é ou está desenvolvido digo que sei que alcançou a finalidade à qual estava destinado desde que surgiu Quando digo que um país é ou está subdesenvolvido estou dizendo que a finalidade que é a mesma para ele e para o desenvolvido ainda não foi mas deverá ser alcançada em algum momento do tempo Não por acaso as expressões desenvolvido e subdesenvolvido foram usadas para substituir duas outras tidas como ofensivas e agressivas países adiantados e países atrasados isto é países evoluídos e não evoluídos países com progresso e sem progresso Em resumo evolução e progresso pressupõem continuidade temporal acumulação causal dos acontecimentos superioridade do futuro e do presente com relação ao passado existência de uma finalidade a ser alcançada Supunhase que as mudanças científicas indicavam evolução ou progresso dos conhecimentos humanos Desmentindo a evolução e o progresso científicos A Filosofia das Ciências estudando as mudanças científicas impôs um desmentido às idéias de evolução e progresso Isso não quer dizer que a Filosofia das Ciências viesse a falar em atraso e regressão científica pois essas duas noções são idênticas às de evolução e progresso apenas com o sinal trocado em vez de caminhar causal e continuamente para frente caminharseia causal e continuamente para trás O que a Filosofia das Ciências compreendeu foi que as elaborações científicas e os ideais de cientificidade são diferentes e descontínuos Quando por exemplo comparamos a geometria clássica ou geometria euclidiana que opera com o espaço plano e a geometria contemporânea ou topológica que opera com o espaço tridimensional vemos que não se trata de duas etapas ou de duas fases sucessivas da mesma ciência geométrica e sim de duas geometrias diferentes com princípios conceitos objetos demonstrações completamente diferentes Não houve evolução e progresso de uma para outra pois são duas geometrias diversas e não geometrias sucessivas Quando comparamos as físicas de Aristóteles GalileuNewton e Einstein não estamos diante de uma mesma física que teria evoluído ou progredido mas diante de três físicas diferentes baseadas em princípios conceitos demonstrações experimentações e tecnologias completamente diferentes Em cada uma delas a idéia de Natureza é diferente em cada uma delas os métodos empregados são diferentes em cada uma delas o que se deseja conhecer é diferente Quando comparamos a biologia genética de Mendel e a genética formulada pela bioquímica baseada na descoberta de enzimas de proteínas do ADN ou código genético também não encontramos evolução e progresso mas diferença e Marilena Chauí 327 descontinuidade Assim por exemplo o modelo explicativo que orientava o trabalho de Mendel era o da relação sexual como um encontro entre duas entidades diferentes o espermatozóide e o óvulo enquanto o modelo que orienta a genética contemporânea é o da cibernética e da teoria da informação Quando comparamos a ciência da linguagem do século XIX que era baseada nos estudos de filologia isto é nos estudos da origem e da história das palavras com a lingüística contemporânea que como vimos no capítulo dedicado à linguagem estuda estruturas vemos duas ciências diferentes E o mesmo pode ser dito de todas as ciências Verificouse portanto uma descontinuidade e uma diferença temporal entre as teorias científicas como conseqüência não de uma forma mais evoluída mais progressiva ou melhor de fazer ciência e sim como resultado de diferentes maneiras de conhecer e construir os objetos científicos de elaborar os métodos e inventar tecnologias O filósofo Gaston Bachelard criou a expressão ruptura epistemológicax para explicar essa descontinuidade no conhecimento científico Rupturas epistemológicas e revoluções científicas Um cientista ou um grupo de cientistas começam a estudar um fenômeno empregando teorias métodos e tecnologias disponíveis em seu campo de trabalho Pouco a pouco descobrem que os conceitos os procedimentos os instrumentos existentes não explicam o que estão observando nem levam aos resultados que estão buscando Encontram diz Bachelard um obstáculo epistemológico Para superar o obstáculo epistemológico o cientista ou grupo de cientistas precisam ter a coragem de dizer Não Precisam dizer não à teoria existente e aos métodos e tecnologias existentes realizando a ruptura epistemológica Esta conduz à elaboração de novas teorias novos métodos e tecnologias que afetam todo o campo de conhecimentos existentes Uma nova concepção científica emerge levando tanto a incorporar nela os conhecimentos anteriores quanto a afastálos inteiramente O filósofo da ciência Khun designa esses momentos de ruptura epistemológica e de criação de novas teorias com a expressão revolução científica como por exemplo a revolução copernicana que substituiu a explicação geocêntrica pela heliocêntrica Segundo Khun um campo científico é criado quando métodos tecnologias formas de observação e experimentação conceitos e demonstrações formam um todo sistemático uma teoria que permite o conhecimento de inúmeros fenômenos A teoria se torna um modelo de conhecimento ou um paradigma científico Em tempos normais um cientista diante de um fato ou de um fenômeno ainda não estudado usa o modelo ou o paradigma científico existente Uma revolução científica acontece quando o cientista descobre que os paradigmas disponíveis não conseguem explicar um fenômeno ou um fato novo Convite à Filosofia 328 sendo necessário produzir um outro paradigma até então inexistente e cuja necessidade não era sentida pelos investigadores A ciência portanto não caminha numa via linear contínua e progressiva mas por saltos ou revoluções Assim quando a idéia de prótonelétronnêutron entra na física a de vírus entra na biologia a de enzima entra na química ou a de fonema entra na lingüística os paradigmas existentes são incapazes de alcançar compreender e explicar esses objetos ou fenômenos exigindo a criação de novos modelos científicos Por que então temos a ilusão de progresso e de evolução Por dois motivos principais 1 do lado do cientista porque este sente que sabe mais e melhor do que antes já que o paradigma anterior não lhe permitia conhecer certos objetos ou fenômenos Como trabalhava com uma tradição científica e a abandonou tem o sentimento de que o passado estava errado era inferior ao presente aberto por seu novo trabalho Não é ele mas o filósofo da ciência que percebe a ruptura e a descontinuidade e portanto a diferença temporal Do lado do cientista o progresso é uma vivência subjetiva 2 do lado dos nãocientistas porque vivemos sob a ideologia do progresso e da evolução do novo e do fantástico Além disso vemos os resultados tecnológicos das ciências naves espaciais computadores satélites fornos de microondas telefones celulares cura de doenças julgadas incuráveis objetos plásticos descartáveis e esses resultados tecnológicos são apresentados pelos governos pelas empresas e pela propaganda como signos do progresso e não da diferença temporal Do lado dos nãocientistas o progresso é uma crença ideológica Há porém uma razão mais profunda para nossa crença no progresso Desde a Antiguidade conhecer sempre foi considerado o meio mais precioso e eficaz para combater o medo a superstição e as crendices Ora no caso da modernidade o vínculo entre ciência e aplicação prática dos conhecimentos tecnologias fez surgirem objetos que não só facilitaram a vida humana meios de transporte de iluminação de comunicação de cultivo do solo etc mas aumentaram a esperança de vida remédios cirurgias etc Do ponto de vista dos resultados práticos sentimos que estamos em melhores condições que os antigos e por isso falamos em evolução e progresso Do ponto de vista das próprias teorias científicas porém a noção de progresso não possui fundamento como explicamos acima Falsificação X revolução Vimos que a ciência contemporânea é construtivista julgando que fatos e fenômenos novos podem exigir a elaboração de novos métodos novas tecnologias e novas teorias Marilena Chauí 329 Alguns filósofos da ciência entre os quais Karl Popper afirmaram que a reelaboração científica decorre do fato de ter havido uma mudança no conceito filosóficocientífico da verdade Esta como já vimos foi considerada durante muitos séculos como a correspondência exata entre uma idéia ou um conceito e a realidade Vimos também que no século passado foi proposta uma teoria da verdade como coerência interna entre conceitos Na concepção anterior o falso acontecia quando uma idéia não correspondia à coisa que deveria representar Na nova concepção o falso é a perda da coerência de uma teoria a existência de contradições entre seus princípios ou entre estes e alguns de seus conceitos Popper afirma que as mudanças científicas são uma conseqüência da concepção da verdade como coerência teórica E propõe que uma teoria científica seja avaliada pela possibilidade de ser falsa ou falsificada Uma teoria científica é boa diz Popper quanto mais estiver aberta a fatos novos que possam tornar falsos os princípios e os conceitos em que se baseava Assim o valor de uma teoria não se mede por sua verdade mas pela possibilidade de ser falsa A falseabilidade seria o critério de avaliação das teorias científicas e garantiria a idéia de progresso científico pois é a mesma teoria que vai sendo corrigida por fatos novos que a falsificam A maioria dos filósofos da ciência entre os quais Khun demonstrou o absurdo da posição de Popper De fato dizem eles jamais houve um único caso em que uma teoria pudesse ser falsificada por fatos científicos Jamais houve um único caso em que um fato novo garantisse a coerência de uma teoria bastando impor a ela mudanças totais Cada vez que fatos provocaram verdadeiras e grandes mudanças teóricas essas mudanças não foram feitas no sentido de melhorar ou aprimorar uma teoria existente mas no sentido de abandonála por uma outra O papel do fato científico não é o de falsear ou falsificar uma teoria mas de provocar o surgimento de uma nova teoria verdadeira É o verdadeiro e não o falso que guia o cientista seja a verdade entendida como correspondência entre idéia e coisa seja entendida como coerência interna das idéias Classificação das ciências Ciência no singular referese a um modo e a um ideal de conhecimento que examinamos até aqui Ciências no plural referese às diferentes maneiras de realização do ideal de cientificidade segundo os diferentes fatos investigados e os diferentes métodos e tecnologias empregados A primeira classificação sistemática das ciências de que temos notícia foi a de Aristóteles à qual já nos referimos no início deste livro O filósofo grego empregou três critérios para classificar os saberes critério da ausência ou presença da ação humana nos seres investigados levando à distinção entre as ciências teoréticas conhecimento dos seres que Convite à Filosofia 330 existem e agem independentemente da ação humana e ciências práticas conhecimento de tudo quanto existe como efeito das ações humanas critério da imutabilidade ou permanência e da mutabilidade ou movimento dos seres investigados levando à distinção entre metafísica estudo do Ser enquanto Ser fora de qualquer mudança física ou ciências da Natureza estudo dos seres constituídos por matéria e forma e submetidos à mudança ou ao movimento e matemática estudo dos seres dotados apenas de forma sem matéria imutáveis mas existindo nos seres naturais e conhecidos por abstração critério da modalidade prática levando à distinção entre ciências que estudam a práxis a ação ética política e econômica que tem o próprio agente como fim e as técnicas a fabricação de objetos artificiais ou a ação que tem como fim a produção de um objeto diferente do agente Com pequenas variações essa classificação foi mantida até o século XVII quando então os conhecimentos se separaram em filosóficos científicos e técnicos A partir dessa época a Filosofia tende a desaparecer nas classificações científicas é um saber diferente do científico assim como delas desaparecem as técnicas Das inúmeras classificações propostas as mais conhecidas e utilizadas foram feitas por filósofos franceses e alemães do século XIX baseandose em três critérios tipo de objeto estudado tipo de método empregado tipo de resultado obtido Desses critérios e da simplificação feita sobre as várias classificações anteriores resultou aquela que se costuma usar até hoje ciências matemáticas ou lógicomatemáticas aritmética geometria álgebra trigonometria lógica física pura astronomia pura etc ciências naturais física química biologia geologia astronomia geografia física paleontologia etc ciências humanas ou sociais psicologia sociologia antropologia geografia humana economia lingüística psicanálise arqueologia história etc ciências aplicadas todas as ciências que conduzem à invenção de tecnologias para intervir na Natureza na vida humana e nas sociedades como por exemplo direito engenharia medicina arquitetura informática etc Cada uma das ciências subdividese em ramos específicos com nova delimitação do objeto e do método de investigação Assim por exemplo a física subdividese em mecânica acústica óptica etc a biologia em botânica zoologia fisiologia genética etc a psicologia subdividese em psicologia do comportamento do desenvolvimento psicologia clínica psicologia social etc E assim sucessivamente para cada uma das ciências Por sua vez os próprios ramos de cada ciência subdividemse em disciplinas cada vez mais específicas à medida que seus objetos conduzem a pesquisas cada vez mais detalhadas e especializadas Marilena Chauí 331 A ciência exemplar a matemática A matemática nasce de necessidades práticas contar coisas e medir terrenos Os primeiros a sistematizar modos de contar foram os orientais e particularmente os fenícios povo comerciante que desenvolveu uma contabilidade que posteriormente iria transformarse em aritmética Os primeiros a sistematizar modos de medir foram os egípcios que precisavam após cada cheia do rio Nilo redistribuir as terras medindo os terrenos Criaram a agrimensura de onde viria a geometria Foram os gregos que transformaram a arte de contar e de medir em ciências a aritmética e a geometria são as duas primeiras ciências matemáticas definindo o campo matemático como ciência da quantidade e do espaço tendo por objetos números figuras relações e proporções Após os gregos foram os pensadores árabes que deram o impulso à matemática descobrindo entre coisas o zero desconhecido dos antigos Embora no início as matemáticas estivessem muito próximas da experiência sensorial os números referiamse às coisas contadas e as figuras representavam objetos existentes pouco a pouco afastaramse do sensorial rumando para a atividade pura do pensamento Por esse motivo Platão exigia que a formação filosófica fosse feita através das matemáticas por serem elas puramente intelectuais seus objetos verdadeiros sendo conhecidos por meio de princípios e demonstrações universais e necessários Também Descartes no século XVII afirmou que podemos duvidar de todos os nossos conhecimentos e idéias menos da verdade dos conceitos e demonstrações matemáticos os únicos que são indubitáveis Platão e Descartes enfatizaram o caráter puramente intelectual e a priori das ciências matemáticas A valorização da matemática decorre de dois aspectos que a caracterizam 1 a idealidade pura de seus objetos que não se confundem com as coisas percebidas subjetivamente por nós os objetos matemáticos são universais e necessários 2 a precisão e o rigor dos princípios e demonstrações matemáticos que seguem regras universais e necessárias de tal modo que a demonstração de um teorema seja a mesma em qualquer época e lugar e a solução de um problema se faça pelos mesmos procedimentos em toda a época e lugar A universalidade e a necessidade dos objetos e instrumentos teóricos matemáticos deram à ciência matemática um valor de conhecimento excepcional fazendo com que se tornasse o modelo principal de todos os conhecimentos científicos no Ocidente enfim a ciência exemplar e perfeita Os objetos matemáticos são números e relações figuras volumes e proporções Quantidade espaço relações e proporções definem o campo da investigação matemática cujos instrumentos são axiomas postulados definições Convite à Filosofia 332 demonstrações e operações Objetos e procedimentos matemáticos foram fixados pela primeira vez pelo grego Euclides numa obra chamada Elementos Um axioma é um princípio cuja verdade é indubitável necessária e evidente por si mesma não precisando de demonstração e servindo de fundamento às demonstrações Por exemplo o todo é maior do que as partes duas grandezas iguais a uma terceira são iguais entre si a menor distância entre dois pontos é uma reta O axioma é um princípio regulador do raciocínio matemático e por ser universal e evidente é a priori Um postulado é um princípio cuja evidência depende de ser aceito por todos os que realizam uma demonstração matemática É uma proposição necessária para o encadeamento de demonstrações embora ela mesma não possa ser demonstrada mas aceita como verdadeira Por exemplo Por um ponto tomado em um plano não se pode traçar senão uma paralela a uma reta dada nesse plano Os postulados são convenções básicas aceitas por todos os matemáticos Uma definição pode ser nominal ou real A definição nominal nos dá o nome do objeto matemático dizendo o que ele é É analítica pois o predicado é a explicação do sujeito Por exemplo o triângulo é uma figura de três lados o círculo é uma figura cujos pontos são eqüidistantes do centro Uma definição real nos diz o que é o objeto designado pelo nome isto é oferece a gênese ou o modo de construção do objeto Por exemplo o triângulo é uma figura cujos ângulos somados são iguais à soma de dois ângulos retos o círculo é uma figura formada pelo movimento de rotação de um semieixo à volta de um centro fixo Demonstrações e operações são procedimentos submetidos a um conjunto de regras que garantem a verdade e a necessidade do que está sendo demonstrado ou do resultado do cálculo realizado A matemática é por excelência a ciência hipotéticodedutiva porque suas demonstrações e cálculos se apóiam sobre um sistema de axiomas e postulados a partir dos quais se constrói a dedução coerente ou o resultado necessário do cálculo Um tema muito discutido na Filosofia das Ciências referese à natureza dos objetos e princípios matemáticos São eles uma abstração e uma purificação dos dados de nossa experiência sensível Originamse da percepção Ou são realidades ideais alcançadas exclusivamente pelas operações do pensamento puro São inteiramente a priori Existem em si e por si mesmos de tal modo que nosso pensamento simplesmente os descobre Ou são construções perfeitas conseguidas pelo pensamento humano Essas perguntas tornaramse necessárias por vários motivos Em primeiro lugar porque uma corrente filosófica iniciada com Pitágoras e Platão mantida por Galileu Descartes Newton e Leibniz afirma que o mundo é Marilena Chauí 333 em si mesmo matemático isto é a estrutura da realidade é de tipo matemático Essa concepção garantiu o surgimento da física matemática moderna Em segundo lugar porque o desenvolvimento da álgebra contemporânea e das chamadas geometrias nãoeuclidianas ou geometrias imaginárias deram à matemática uma liberdade de criação teórica sem precedentes justamente por haver abandonado a idéia de que a estrutura da realidade é matemática Nesse segundo caso como já dizia Kant a matemática é uma pura invenção do espírito humano uma construção imaginária rigorosa e perfeita mas sem objetos correspondentes no mundo Em terceiro lugar porque em nosso século o avanço da criação e da construção matemáticas foi decisivo para o surgimento da teoria da relatividade na física da teoria das valências na química e da teoria sobre o ácido desoxirribonucléico na biologia Em outras palavras quanto mais avançou a invenção e a criação matemática tanto mais ela tornouse útil para as ciências da Natureza fazendo com que agora tenhamos que indagar Os objetos matemáticos existem realmente como queriam Platão Galileu e Descartes formando a estrutura do mundo ou esta é uma pura construção teórica e por isso pode valerse da construção matemática Convite à Filosofia 334 Capítulo 3 As ciências da Natureza O campo das ciências da Natureza As ciências da Natureza estudam duas ordens de fenômenos os físicos e os vitais ou as coisas e os organismos vivos Constituem assim duas grandes ciências a física de que fazem parte a química a mecânica a óptica a acústica a astronomia o estudo dos sólidos líquidos e gasosos etc e a biologia ramificada em fisiologia botânica zoologia paleontologia anatomia genética etc Em qualquer das três concepções de ciência que vimos no capítulo anterior considerase que as ciências da Natureza estudam fatos observáveis que podem ser submetidos aos procedimentos de experimentação estabelecem leis que exprimem relações necessárias e universais entre os fatos investigados e que são de tipo causal concebem a Natureza como um conjunto articulado de seres e acontecimentos interdependentes ligados ou por relações necessárias de causa e efeito subordinação e dependência ou por relações entre funções invariáveis e ações variáveis buscam constâncias regularidades freqüências e invariantes dos fenômenos isto é seus modos de funcionamento e de relacionamento bem como estabelecem os meios teóricos para a previsão de novos fatos Desde Aristóteles as ciências da Natureza desenvolveramse graças ao papel conferido às observações e mais tarde à observação controlada isto é à experimentação o laboratório com seus instrumentos tecnológicos de precisão e medida A experimentação é a decisão do cientista de intervir no curso de um fenômeno modificando as condições de seu aparecimento e desenvolvimento a fim de encontrar invariantes e constantes que definem o objeto como tal A experimentação permite ao cientista formular hipóteses sobre o fenômeno Uma hipótese é uma conjectura racional feita após um grande número de observações e experimentos é uma tese que precisa ser confirmada ou verificada por meio de novas observações e experimentos A intervenção científica sobre os fenômenos se torna cada vez mais acurada graças à invenção dos objetos tecnológicos de pesquisa balanças termômetros termostatos barômetros Marilena Chauí 335 aparelhos para produzir vácuo microscópios e telescópios cronômetros tubos e curvetas câmaras escuras ou iluminadas com raios especiais computadores etc O método experimental é hipotéticoindutivo e hipotéticodedutivo Hipotético indutivo o cientista observa inúmeros fatos variando as condições da observação elabora uma hipótese e realiza novos experimentos ou induções para confirmar ou negar a hipótese se esta for confirmada chegase à lei do fenômeno estudado Hipotéticodedutivo tendo chegado à lei o cientista pode formular novas hipóteses deduzidas do conhecimento já adquirido e com elas prever novos fatos ou formular novas experiências que o levam a conhecimentos novos A lei científica obtida por via indutiva ou dedutiva permite descrever interpretar e compreender um campo de fenômenos semelhantes e prever novos a partir dos primeiros A previsão é uma das maneiras pelas quais o ideal moderno da ciência dominar e controlar a Natureza se manifesta e se realiza Uma teoria científica permite construir objetos tecnológicos para novas pesquisas e a previsão ou previsibilidade dos fenômenos permite empregar as tecnologias com fins práticos criando a ciência natural aplicada Os objetos técnicos que usamos em nossa vida cotidiana ônibus automóvel avião lâmpada liquidificador máquina de escrever de lavar de costurar relógios digitais rádio televisão vídeos aparelhos de som detergente sabonete desodorante cola adesivos objetos plásticos de louça vidro tecidos sintéticos como nylon e poliéster vacinas antibióticos radiografias vitaminas e proteínas em cápsulas etc são ciência aplicada ou resultado prático de ciências naturais teóricas Necessidade e acaso A ciência da Natureza desde seus inícios gregos sempre afirmou que a Natureza segue leis naturais racionais e necessárias isto é sempre negou que houvesse acaso ou contingência no mundo natural O acaso sempre foi colocado sob duas espécies de fatos ou fatos cuja causa ainda permanece desconhecida mas virá a ser conhecida portanto o acaso é apenas uma forma de ignorância ou acontecimentos individuais como por exemplo um vaso que cai sobre a cabeça de um passante portanto o acaso é apenas uma ocorrência singular que não afeta as leis universais da Natureza No século XIX a afirmação da universalidade e da necessidade plena que governam as relações causais da Natureza levaram ao conceito de determinismo O determinismo pode ser resumido da seguinte maneira dado um fenômeno sempre será possível determinar sua causa necessária conhecido o estado atual de um conjunto de fatos sempre será possível conhecer o estado subseqüente que será seu efeito necessário Em outras Convite à Filosofia 336 palavras o determinismo afirma que podemos conhecer as causas de um fenômeno atual isto é o estado anterior de um conjunto de fatos e os efeitos de um fenômeno atual isto é o estado posterior de um conjunto de fatos A formulação do determinismo como princípio universal e como uma doutrina sobre a Natureza foi feita pela primeira vez pelo astrônomo e físico Laplace que escreveu Devemos considerar o estado presente do Universo como efeito de seu estado passado e como causa daquilo que virá a seguir Uma inteligência que num único instante pudesse conhecer todas as forças existentes na Natureza e as posições de todos os seres que nela existem poderia apresentar numa única fórmula uma lei que englobaria todos os movimentos do Universo desde os maiores até os mínimos e invisíveis Para ela nada seria incerto e aos seus olhos o passado o futuro e o presente seriam um único e só tempo O determinismo universal é assim a afirmação do princípio da razão suficiente ou da causalidade e da idéia de previsibilidade absoluta dos fenômenos naturais As leis exprimem essa causalidade e essa previsibilidade e por isso não existe acaso no Universo Evidentemente o cientista admitia que para nós seres humanos que não podemos conhecer de uma só vez a totalidade do real existia o acaso Caminhando por uma rua para ir ao mercado posso passar sob uma janela da qual despenca um vaso que cai sobre minha cabeça e em vez de ir ao mercado vou parar num hospital Foi um acaso No entanto para esse cientista minha ida pela rua é necessária do ponto de vista da anatomia e da fisiologia de meu corpo passar por uma rua determinada é necessário se por exemplo ficar estabelecido geométrica e geograficamente que é o trajeto mais simples e mais rápido para chegar ao mercado pela posição do vaso na janela pelo vento ou pelo toque de alguma coisa nele é necessário segundo a lei universal da gravitação que ele caia O que é o acaso O encontro fortuito de séries de acontecimentos independentes cada uma delas perfeitamente necessária e causal em si mesma Uma outra situação em que se falava de acaso referese aos chamados jogos de azar como caraecoroa roleta certos jogos de cartas o jogo de dados Ora dizia o cientista aqui também não há propriamente acaso Desde o século XVII com pensadores como Pascal Leibniz Newton e posteriormente Fermat conhecemos os estudos matemáticos chamados cálculo de probabilidades Em cada um desses jogos de azar considerando o número de objetos uma moeda dois dados vinte cartas etc o número de jogadores e o número de partidas é possível calcular todos os resultados possíveis e quais são as probabilidades maiores e menores de cada resultado Para um computador por exemplo não haverá acaso algum mas determinismo completo Marilena Chauí 337 A idéia de necessidade probabilística ou estatística tornouse um instrumento teórico de grande importância para aqueles ramos das ciências naturais que lidam com fatos complexos como por exemplo o estudo dos gases pela química pois nesse caso o número de moléculas é quase ilimitado e as relações de causa e efeito só podem ser estabelecidas estatisticamente pelo cálculo de probabilidades As leis assim obtidas são conhecidas com o nome de leis dos grandes números e se exprimem em gráficos curvas relações entre funções e variáveis médias Com essas leis o acaso estava excluído e os dois princípios do determinismo estavam mantidos ainda que no caso dos fenômenos microscópicos altamente complexos a noção de causa tivesse sido substituída pela de freqüência estatística Acaso ou indeterminação A física contemporânea no entanto trouxe de volta o acaso Entre os vários estudos e várias teorias contemporâneas vamos mencionar apenas três aspectos com os quais podemos perceber como e por que o acaso ressurgiu nas ciências naturais O pleno funcionamento do princípio da razão suficiente ou da causalidade e do determinismo universal exige que seja mantida a idéia de substância isto é de uma realidade que permaneça idêntica a si mesma seja causa de alguma coisa e efeito de alguma outra Essa realidade pode ser uma matéria uma energia uma massa um volume mas tem que ser alguma coisa com propriedades determináveis constantes e que possam ser conhecidas Deve ser uma quantidade constante eou uma forma constante Ora a microfísica ou física quântica veio mostrar que não há nem uma coisa nem outra O estudo do átomo de hidrogênio revelou que a quantidade de matéria ou massa não permanece constante mas transformase em energia e esta também não permanece constante mas o que é pior não se transforma em coisa alguma simplesmente se perde desaparece não se sabe para onde foi nem o que lhe aconteceu A quantidade portanto não permanece constante Ao mesmo tempo o estudo dos átomos revelou que dependendo da aparelhagem tecnológica usada um corpúsculo é o que pode ser visto mas com outros aparelhos em lugar de um corpúsculo vêse uma onda Com isso uma mesma realidade ou substância tanto pode ter a forma de algo que se estende no espaço onda quanto a de um ponto que se concentra no espaço corpúsculo não tendo portanto forma constante Se quantidade e forma perdem a constância a regularidade e a freqüência como continuar falando em causas e efeitos Um segundo caso que abalou a física e ficou conhecido com o nome de princípio de incerteza ou de indeterminação foi trazido pelos estudos do físico Heisenberg ao descobrir que no nível atômico como conseqüência dos Convite à Filosofia 338 dois fatos que apontamos acima conhecer o estado ou a situação atual de um fenômeno ou um conjunto de fatos não permite prever a situação ou o estado seguinte nem portanto descobrir qual foi a situação ou o estado anterior O determinismo baseavase no pressuposto de que o conhecimento físico causal exige que um fenômeno físico deva ser conhecido a partir de dois critérios simultâneos suas propriedades geométricas forma figura volume grandeza posição e suas propriedades físicas ou dinâmicas velocidade movimento repouso Heisenberg descobriu que quando conhecemos perfeitamente as propriedades geométricas de um átomo não conseguimos conhecer suas propriedades físicas dinâmicas e viceversa sendo impossível determinar o estado passado e o estado futuro do fenômeno estudado isto é suas causas e seus efeitos Em outras palavras quando se conhece a posição não se consegue conhecer a velocidade e quando esta é conhecida não se consegue conhecer a posição de um corpúsculo Há portanto incerteza indeterminação do fenômeno A microfísica é incapaz de determinar a trajetória de corpúsculos individuais O terceiro acontecimento que abalou o determinismo universal foi a teoria da relatividade elaborada por Einstein O abalo foi duplo Em primeiro lugar como vimos a ciência moderna organizouse graças à separação entre o subjetivo e o objetivo propondo uma idéia de observação experimentação em que o fenômeno observado será sempre o mesmo e obedecerá às mesmas leis seja quem for o sujeito observador Ora Einstein demonstrou que o tempo é a quarta dimensão do espaço e que na velocidade da luz o espaço encurvase dilatase contraise de tal modo que afeta o tempo Assim alguém que estivesse na velocidade da luz atravessaria num tempo mínimo um espaço imenso mas o que ficassem abaixo daquela velocidade sentiriam o tempo escoar lentamente ou normalmente Para a primeira pessoa teriam se passado algumas horas ou dias mas para outros meses anos séculos Dessa maneira Einstein demonstrou que nossa física é tal como é porque depende da observação do observador ou do sujeito do conhecimento isto é um sujeito do conhecimento marciano ou venusiano produzirá uma física completamente diferente da nossa porque o espaço é relativo ao observador Assim sendo nossa ciência da Natureza não é universal e necessária em si mesma mas exprime o ponto de vista do sujeito do conhecimento terrestre O segundo abalo provocado por Einstein referese à própria idéia de teoria científica da Natureza Uma teoria científica como vimos é uma explicação global para um conjunto de fatos naturais aparentemente diferentes mas na realidade submetidos às mesmas leis e aos mesmos princípios É isso que permite por exemplo falar na teoria Marilena Chauí 339 universal da gravitação formulada por Newton válida para os movimentos de todos os corpos do Universo sejam eles grandes ou pequenos leves ou pesados celestes ou terrestres aquáticos ou aéreos coloridos ou sem cor saborosos ou sem sabor etc Também a idéia de teoria nos permite falar na teoria universal da relatividade elaborada por Einstein Que diz ela Que a medida da velocidade do movimento seja este qual for é a velocidade da luz que nesta velocidade toda matéria se transforma em energia deixando portanto de possuir massa e volume Do ponto de vista da velocidade da luz a teoria da gravitação universal baseada na relação entre movimento massa tempo e velocidade não tem valor embora continue verdadeira para os movimentos que não sejam medidos pela velocidade da luz Mas não é só isso Do ponto de vista da velocidade da luz todo movimento é relativo isto é não há como distinguir observador e observado fenômeno que experimentamos em nossa vida cotidiana quando estando numa estação ferroviária num trem imóvel vemos outro paralelo ao nosso moverse e temos a impressão de que é nosso trem que está em movimento ou quando olhando um rio veloz do alto de uma ponte temos a impressão de que é a ponte que se move e não o rio Qual o problema A existência de três teorias físicas simultâneas a quântica para os átomos a newtoniana para os corpos visíveis a da relatividade para o movimento na velocidade da luz regidas por conceitos e métodos diferentes excluindose umas às outras e todas elas verdadeiras para os fenômenos que explicam E mais a física quântica desfaz a idéia de causa como quantidade e forma constantes e a física da relatividade desfaz a idéia clássica da objetividade como separação entre sujeito e objeto do conhecimento base da ciência moderna Em lugar de um único paradigma científico a física nos oferece três As ciências da vida As ciências biológicas bios em grego significa vida ou ciências da vida fazem parte das ciências da Natureza ou ciências experimentais Os primeiros biólogos foram médicos os présocráticos Empédocles ou Anaxágoras e o póssocrático Aristóteles Para todos eles interessava antes de tudo determinar a fonte ou origem da vida e a localizaram no calor dandolhe como sede o fígado Empédocles ou o coração Anaxágoras e Aristóteles Além da busca do princípio vital Aristóteles interessouse pelo fenômeno da reprodução distinguindo os seres vivos em vivíparos e ovíparos E a ele devemos a classificação dos seres vivos em gêneros e espécies Do século XVII até a primeira metade do século XX 19391940 predominou na biologia a investigação fisiológica A fisiologia interessase pelas funções realizadas pelos seres vivos circulação do sangue com Harvey digestão com Réaumur e Spallanzani respiração com Priestley e Lavoisier e locomoção ou neuromusculatura com Haller e Whytt A seguir o interesse fisiológico dirigiu Convite à Filosofia 340 se para o estudo do funcionamento específico dos vários órgãos e seus tecidos e finalmente para a investigação das células Foi no estudo celular que no século XIX Mendel deu início ao que iria tornarse o centro da biologia do nosso século a genética Todo problema epistemológico das ciências biológicas consiste em saber se os procedimentos e os conceitos usados pela física e pela química podem ser empregados para a investigação do fenômeno da vida De fato a biologia partiu da distinção entre seres inorgânicos e seres orgânicos plantas e animais para distinguir os fenômenos vitais dos fatos físicos e químicos Entretanto dois acontecimentos puseram em dúvida a descontinuidade entre a matéria inorgânica e a vida orgânica Em primeiro lugar no século XIX a síntese química da uréia que revelou fenômenos químicos como essenciais ao processo vital dando origem à bioquímica Em segundo lugar no século passado a descoberta das nucleoproteínas revelou que os corpos químicos as moléculas e os corpos vivos as células comportamse da mesma maneira Os estudos de bacteriologia dos corpos cancerígenos assim como os trabalhos de embriologia e a descoberta dos vírus foram na mesma direção revelando profundas semelhanças entre fatos químicos e vitais No entanto apesar das discussões sobre a essência da vida não terem chegado a conclusões definitivas a biologia distingue os seres inorgânicos e os vivos definindo estes últimos pelas idéias de célula e funções realizadas pela célula unidade vital e orgânica básica A vida caracterizase pelas seguintes funções irritabilidade uma célula é uma atividade que reage e responde às excitações ou estímulos do meio ambiente temperatura luz obscuridade pressão alimento etc A vida é uma adaptação ativa e protetora diante das alterações do meio ambiente sendo assim relação do organismo com seu ambiente na qual o ser vivo busca equilíbrio com o meio A ruptura desse equilíbrio é a doença e a morte metabolismo a irritabilidade ou adaptação ao meio é feita por um conjunto de trocas entre o organismo e o meio A célula assimila e transforma aquilo que consome sob a forma de alimentação respiração assimilação ou perda de substância gastos energéticos etc O metabolismo é pois um conjunto de transformações químicas realizadas no interior do organismo numa relação de troca e consumo com o meio ambiente divisão e crescimento uma célula tem o poder de dividirse ou seja de crescer para garantir que o ser vivo atinja seu desenvolvimento próprio e também para reparar danos sofridos pelo organismo como por exemplo a divisão e a multiplicação de células da epiderme para curar um ferimento reprodução a célula tem o poder de reproduzirse e a reprodução de um ser vivo se faz ou pela fusão de certo tipo especial de células os gametas femininos Marilena Chauí 341 e masculinos ou nos chamados organismos unicelulares pela autoreprodução da célula sem a função sexual A reprodução garante a sobrevivência da espécie através dos indivíduos individualidade um ser vivo mesmo unicelular forma um indivíduo isto é um sistema único e fechado cujas partes se correspondem reciprocamente e concorrem para a mesma ação organicidade o ser vivo é constituído por órgãos palavra que vem do grego órganon instrumento que realiza uma função isto é por um conjunto diferenciado de funções que garantem a conservação e a reprodução da vida O ser vivo é pois um organismo e um indivíduo É portador de quatro características principais a interioridade a autoapresentação a autoorganização e a autoreprodução Interioridade realiza comportamentos isto é possui disposições internas que lhe permitem relacionarse ativamente com o meio ambiente Auto apresentação manifestase com uma estrutura ou forma externa completa que pressupõe a existência de estruturas internas parciais com as quais o organismo se apresenta como indivíduo e como espécie diferente de todas as outras Auto organização é o resultado de um longo processo de evolução e adaptação ao meio que permite a um organismo tornarse cada vez mais complexo e ter interna e externamente funções cada vez mais especializadas para seus órgãos Autoreprodução por meio da função sexual o organismo é capaz de reproduzir um outro seu semelhante perpetuando tanto quanto possível a espécie por meio da divisão e da separação no caso dos seres que se reproduzem assexuadamente o organismo é capaz de engendrar um outro semelhante a si perpetuandose Dificuldades metodológicas da biologia As ciências biológicas enfrentam várias dificuldades para a definição de seu objeto e de seus métodos As principais dificuldades são definição e classificação dos objetos biológicos o objeto da biologia não é o indivíduo mas o gênero e a espécie As dificuldades científicas estão na escolha dos critérios de classificação para definir um gênero e uma espécie É a forma dos seres vivos que determina o gênero e a espécie Nesse caso o critério é a morfologia Ou é a ordem temporal de aparição de um gênero e uma espécie que deve ser o critério Nesse caso a paleontologia e a embriologia definiriam gêneros e espécies dificuldades do método experimental a vida é uma relação ativa dinâmica e diferenciada dos organismos com o meio ambiente mas o conhecimento experimental é realizado em laboratórios que definem condições fixas para o relacionamento organismomeio Como confiar inteiramente nos resultados Convite à Filosofia 342 experimentais se as condições de laboratório são abstratas e artificiais não correspondendo à situação vital concreta dos organismos dificuldades de experimentação no organismo humano de modo geral a experimentação biológica trabalha com animais e não com seres humanos e o primeiro problema consiste em saber se as conclusões obtidas com animais teriam validade para o organismo humano Procurase compensar tal dificuldade com o estudo dos organismos humanos doentes tomandose a doença como uma espécie de experimento natural Mas o problema agora é saber se o modo de funcionamento de um organismo doente pode ser generalizado para o sadio O mesmo problema se põe quando a biologia estuda os cadáveres humanos pois cabe perguntar se o morto pode explicar o vivo Finalidade evolução e origem da vida Uma disputa atravessou a história das ciências biológicas e pode ser assim formulada É a vida de mesma natureza que os demais fenômenos físico químicos e está como eles submetida ao determinismo das causas e efeitos ou é um fenômeno totalmente diferente com suas leis próprias A primeira tendência chamase mecanicismo a segunda vitalismo O vitalismo tendeu a ser vitorioso por invocar dois fenômenos que só existem para os seres vivos a relação com o tempo diferença entre vida e morte e a finalidade a vida é um processo ativo de interação com o meio ambiente para a realização de fins como conservação reprodução reparação O vitalismo é filosoficamente problemático De fato durante muitos séculos para explicar a temporalidade e a finalidade dos fenômenos vitais afirmouse a existência nos corpos vivos de almas ou inteligências que dirigiriam racionalmente a vida Mesmo afastando essas idéias a finalidade não se torna um conceito cientificamente claro Por exemplo devemos dizer que é para poder voar finalidade que os pássaros desenvolvem a forma ovóide de tronco a estrutura de ossos leves e ocos a leveza do pescoço e da cabeça a disposição das penas nas asas ou ao contrário que é por haver desenvolvido essas características que com o passar do tempo os pássaros puderam voar Os embaraços para definir com clareza o que seja a finalidade repercute numa outra idéia da biologia a de evolução A vida por ser interação ativa com o meio ambiente leva a mudanças nos organismos para a adaptação dos indivíduos e a manutenção da espécie Como essas transformações ocorrem no tempo e como se considera que os organismos progridem ou melhoram o desempenho graças à invenção de mecanismos novos de adaptação falase em evolução A finalidade da evolução é a preservação da espécie Surge então a pergunta O que leva a vida à finalidade evolutiva Essa pergunta é difícil de ser respondida porque a idéia de evolução se refere às espécies não aos indivíduos e pressupõe a noção de hereditariedade isto é Marilena Chauí 343 transmissão dos caracteres adquiridos por evolução a todos os membros da espécie Com a idéia de evolução das espécies e hereditariedade dos caracteres adquiridos surgem novas indagações se a evolução não é do indivíduo e sim da espécie porém se são os indivíduos que são levados a se transformar para se adaptar o que é uma espécie se a espécie evolui mas se o faz transmitindo as estruturas hereditárias o que podem ser as leis de hereditariedade já que uma espécie pode mudar se há leis de hereditariedade e se há mutação das espécies como se relacionam a finalidade hereditária e a finalidade evolutiva se o organismo vivo é como dizem a bioquímica e a genética contemporâneas uma máquina que se constrói a si mesma e dá a si mesma sua finalidade o que significa a idéia de adaptação ao meio central na teoria da evolução Questões como essas não invalidam a biologia como ciência pelo contrário indicam que esta não é um conjunto de verdades acabadas e absolutas mas um processo de conhecimento Por isso a biologia também possui suas rupturas epistemológicas e suas revoluções científicas A mais recente dessas rupturas e revoluções ligase ao que se convencionou chamar de descoberta do segredo da origem da vida isto é a descoberta das nucleoproteínas ou do ADN ácido desoxirribonucléico definido como código genético Essa descoberta recentíssima data dos fins dos anos 60 resulta do estudo microscópico de açúcares e bases nitrogenadas que são macromoléculas constituídas por micromoléculas chamadas aminoácidos o DNA e o RNA considerados até o momento responsáveis pelo fenômeno da vida Essa descoberta revela algo muito novo por um lado que a vida resulta de um processo químico mas por outro que esse processo é uma ruptura que separa os seres naturais inorgânicos e os seres naturais vivos No entanto os estudiosos do ADN não hesitam em afirmar que embora com esse conceito se possa construir um paradigma biológico que tenha por modelo a cibernética e a informática donde a idéia de código genético a existência e os modos de funcionamento do ADN são enigmas e mistérios e por enquanto a origem da vida parece ter resultado de um puro acaso e não de uma necessidade causal nem de uma finalidade necessária O que é espantoso porém é que mesmo sem conhecer exata e rigorosamente os fenômenos investigados a biologia genética já desenvolveu tecnologias para a invenção de novos alimentos mutações em animais e vegetais a fabricação de vacinas contra vírus etc Os dois grandes campos da biologia A biologia contemporânea trabalha em dois grandes campos de investigação Convite à Filosofia 344 1 o da investigação genética e fisiológica no nível hipermicroscópico dos processos e formas micromoleculares e com ajuda da bioquímica o estudo da célula em seus fenômenos internos e de reprodução isto é investiga o ADN 2 o da investigação das formas das estruturas e dos processos visíveis dos organismos na relação com o meio ambiente isto é o estudo do comportamento dos seres vivos e portanto as relações vitais entre meios e fins Tem em seu centro a idéia de equilíbrio vital entendido como conjunto de processos e funções que permitem ao organismo conservarse e reproduzirse Marilena Chauí 345 Capítulo 4 As ciências humanas São possíveis ciências humanas Embora seja evidente que toda e qualquer ciência é humana porque resulta da atividade humana de conhecimento a expressão ciências humanas referese àquelas ciências que têm o próprio ser humano como objeto A situação de tais ciências é muito especial Em primeiro lugar porque seu objeto é bastante recente o homem como objeto científico é uma idéia surgida apenas no século XIX Até então tudo quanto se referia ao humano era estudado pela Filosofia Em segundo lugar porque surgiram depois que as ciências matemáticas e naturais estavam constituídas e já haviam definido a idéia de cientificidade de métodos e conhecimentos científicos de modo que as ciências humanas foram levadas a imitar e copiar o que aquelas ciências haviam estabelecido tratando o homem como uma coisa natural matematizável e experimentável Em outras palavras para ganhar respeitabilidade científica as disciplinas conhecidas como ciências humanas procuraram estudar seu objeto empregando conceitos métodos e técnicas propostos pelas ciências da Natureza Em terceiro lugar por terem surgido no período em que prevalecia a concepção empirista e determinista da ciência também procuraram tratar o objeto humano usando os modelos hipotéticoindutivos e experimentais de estilo empirista e buscavam leis causais necessárias e universais para os fenômenos humanos Como entretanto não era possível realizar uma transposição integral e perfeita dos métodos das técnicas e das teorias naturais para os estudos dos fatos humanos as ciências humanas acabaram trabalhando por analogia com as ciências naturais e seus resultados tornaramse muito contestáveis e pouco científicos Essa situação levou muitos cientistas e filósofos a duvidar da possibilidade de ciências que tivessem o homem como objeto Quais as principais objeções feitas à possibilidade das ciências humanas A ciência lida com fatos observáveis isto é com seres e acontecimentos que nas condições especiais de laboratório são objetos de experimentação Como observarexperimentar por exemplo a consciência humana individual que seria o objeto da psicologia Ou uma sociedade objeto da sociologia Ou uma época passada objeto da história Convite à Filosofia 346 A ciência busca as leis objetivas gerais universais e necessárias dos fatos Como estabelecer leis objetivas para o que é essencialmente subjetivo como o psiquismo humano Como estabelecer leis universais para algo que é particular como é o caso de uma sociedade humana Como estabelecer leis necessárias para o que acontece uma única vez como é o caso do acontecimento histórico A ciência opera por análise decomposição de um fato complexo em elementos simples e síntese recomposição do fato complexo por seleção dos elementos simples distinguindo os essenciais dos acidentais Como analisar e sintetizar o psiquismo humano uma sociedade um acontecimento histórico A ciência lida com fatos regidos pela necessidade causal ou pelo princípio do determinismo universal O homem é dotado de razão vontade e liberdade é capaz de criar fins e valores de escolher entre várias opções possíveis Como dar uma explicação científica necessária àquilo que por essência é contingente pois é livre e age por liberdade A ciência lida com fatos objetivos isto é com os fenômenos depois que foram purificados de todos os elementos subjetivos de todas as qualidades sensíveis de todas as opiniões e todos os sentimentos de todos os dados afetivos e valorativos Ora o humano é justamente o subjetivo o sensível o afetivo o valorativo o opinativo Como transformálo em objetividade sem destruir sua principal característica a subjetividade O humano como objeto de investigação Embora as ciências humanas sejam recentes a percepção de que os seres humanos são diferentes das coisas naturais é antiga Sob esse ponto de vista podemos dizer que do século XV ao início do século XX a investigação do humano realizouse de três maneiras diferentes 1 Período do humanismo iniciase no século XV com a idéia renascentista da dignidade do homem como centro do Universo prossegue nos séculos XVI e XVII com o estudo do homem como agente moral político e técnicoartístico destinado a dominar e controlar a Natureza e a sociedade chegando ao século XVIII quando surge a idéia de civilização isto é do homem como razão que se aperfeiçoa e progride temporalmente através das instituições sociais e políticas e do desenvolvimento das artes das técnicas e dos ofícios O humanismo não separa homem e Natureza mas considera o homem um ser natural diferente dos demais manifestando essa diferença como ser racional e livre agente ético político técnico e artístico 2 Período do positivismo iniciase no século XIX com Augusto Comte para quem a humanidade atravessa três etapas progressivas indo da superstição religiosa à metafísica e à teologia para chegar finalmente à ciência positiva ponto final do progresso humano Comte enfatiza a idéia do homem como um ser social e propõe o estudo científico da sociedade assim como há uma física da Marilena Chauí 347 Natureza deve haver uma física do social a sociologia que deve estudar os fatos humanos usando procedimentos métodos e técnicas empregados pelas ciências da Natureza A concepção positivista não termina no século XIX com Comte mas será uma das correntes mais poderosas e influentes nas ciências humanas em todo o século XX Assim por exemplo a psicologia positivista afirma que seu objeto não é o psiquismo enquanto consciência mas enquanto comportamento observável que pode ser tratado com o método experimental das ciências naturais A sociologia positivista iniciada por Comte e desenvolvida como ciência pelo francês Emile Durkheim estuda a sociedade como fato afirmando que o fato social deve ser tratado como uma coisa à qual são aplicados os procedimentos de análise e síntese criados pelas ciências naturais Os elementos ou átomos sociais são os indivíduos obtidos por via da análise as relações causais entre os indivíduos recompostas por via da síntese constituem as instituições sociais família trabalho religião Estado etc 3 Período do historicismo desenvolvido no final do século XIX e início do século XX por Dilthey filósofo e historiador alemão Essa concepção herdeira do idealismo alemão Kant Fichte Schelling Hegel insiste na diferença profunda entre homem e Natureza e entre ciências naturais e humanas chamadas por Dilthey de ciências do espírito ou da cultura Os fatos humanos são históricos dotados de valor e de sentido de significação e finalidade e devem ser estudados com essas características que os distinguem dos fatos naturais As ciências do espírito ou da cultura não podem e não devem usar o método da observaçãoexperimentação mas devem criar o método da explicação e compreensão do sentido dos fatos humanos encontrando a causalidade histórica que os governa O fato humano é histórico ou temporal surge no tempo e se transforma no tempo Em cada época histórica os fatos psíquicos sociais políticos religiosos econômicos técnicos e artísticos possuem as mesmas causas gerais o mesmo sentido e seguem os mesmos valores devendo ser compreendidos simultaneamente como particularidades históricas ou visões de mundo específicas ou autônomas e como etapas ou fases do desenvolvimento geral da humanidade isto é de um processo causal universal que é o progresso O historicismo resultou em dois problemas que não puderam ser resolvidos por seus adeptos o relativismo numa época em que as ciências humanas buscavam a universalidade de seus conceitos e métodos e a subordinação a uma filosofia da História numa época em que as ciências humanas pretendiam separarse da Filosofia Relativismo as leis científicas são válidas apenas para uma determinada época e cultura não podendo ser universalizadas Filosofia da História os indivíduos humanos e as instituições socioculturais só são compreensíveis se seu estudo Convite à Filosofia 348 científico subordinarse a uma teoria geral da História que considere cada formação sociocultural seja como visão de mundo particular seja como etapa de um processo histórico universal Para escapar dessas conseqüências o sociólogo alemão Max Weber propôs que as ciências humanas no caso a sociologia e a economia trabalhassem seus objetos como tipos ideais e não como fatos empíricos O tipo ideal como o nome indica oferece construções conceituais puras que permitem compreender e interpretar fatos particulares observáveis Assim por exemplo o Estado se apresenta como uma forma de dominação social e política sob vários tipos ideais dominação carismática dominação pessoal burocrática etc cabendo ao cientista verificar sob qual tipo encontrase o caso particular investigado Fenomenologia estruturalismo e marxismo A constituição das ciências humanas como ciências específicas consolidouse a partir das contribuições de três correntes de pensamento que entre os anos 20 e 50 do século passado provocaram uma ruptura epistemológica e uma revolução científica no campo das humanidades A contribuição da fenomenologia Como vimos em vários momentos deste livro a fenomenologia introduziu a noção de essência ou significação como um conceito que permite diferenciar internamente uma realidade de outras encontrando seu sentido sua forma suas propriedades e sua origem Dessa maneira a fenomenologia começou por permitir que fosse feita a diferença rigorosa entre a esfera ou região da essência Natureza e a esfera ou região da essência homem A seguir permitiu que a esfera ou região homem fosse internamente diferenciada em essências diversas o psíquico o social o histórico o cultural Com essa diferenciação garantia às ciências humanas a validade de seus projetos e campos científicos de investigação psicologia sociologia história antropologia lingüística economia Qual a diferença entre a perspectiva positivista e a fenomenológica Dois exemplos podem ajudarnos a compreendêla Recusando a perspectiva metafísica que se referia ao psíquico em termos de alma e de interioridade a psicologia voltase para o estudo dos fatos psíquicos diretamente observáveis Ao radicalizar essa concepção a psicologia positivista fazia do psiquismo uma soma de elementos físicoquímicos anatômicos e fisiológicos de sorte que não havia propriamente falando um objeto científico denominado o psíquico mas efeitos psíquicos de causas nãopsíquicas físicas químicas fisiológicas anatômicas Por isso a psicologia consideravase uma ciência natural próxima da biologia tendo como objeto o comportamento como um fato externo observável e experimental Marilena Chauí 349 Ao contrário a psicologia como ciência humana do psiquismo tornouse possível a partir do momento em que um conjunto de fatos internos e externos ligados à consciência sensação percepção motricidade linguagem etc puderam ser definidos como dotados de significação objetiva própria Recusando a perspectiva da filosofia da História que considerava as sociedades etapas culturais e civilizatórias de um processo histórico universal a sociologia voltase para o estudo dos fatos sociais observáveis Inspirandose nas ciências naturais a sociologia positivista fazia da sociedade uma soma de ações individuais e tomava o indivíduo como elemento observável e causa do social de sorte que não havia a sociedade como um objeto ou uma realidade propriamente dita mas um efeito de ações psicológicas dos indivíduos Somente a definição do social como algo essencialmente diferente do psíquico e como não sendo a mera soma de ações individuais permitiu o surgimento da sociologia como ciência propriamente dita Em resumo antes da fenomenologia cada uma das ciências humanas desfazia seu objeto num agregado de elementos de natureza diversa do todo estudava as relações causais externas entre esses elementos e as apresentava como explicação e lei de seu objeto de investigação A fenomenologia garantiu às ciências humanas a existência e a especificidade de seus objetos A contribuição do estruturalismo O estruturalismo permitiu que as ciências humanas criassem métodos específicos para o estudo de seus objetos livrandoas das explicações mecânicas de causa e efeito sem que por isso tivessem que abandonar a idéia de lei científica A concepção estruturalista veio mostrar que os fatos humanos assumem a forma de estruturas isto é de sistemas que criam seus próprios elementos dando a estes sentido pela posição e pela função que ocupam no todo As estruturas são totalidades organizadas segundo princípios internos que lhes são próprios e que comandam seus elementos ou partes seu modo de funcionamento e suas possibilidades de transformação temporal ou histórica Nelas o todo não é a soma das partes nem um conjunto de relações causais entre elementos isoláveis mas é um princípio ordenador diferenciador e transformador Uma estrutura é uma totalidade dotada de sentido Já vimos a noção de estrutura quando nos capítulos dedicados à teoria do conhecimento nos referimos à teoria da percepção formulada pela psicologia da Gestalt ou da forma bem como quando nos referimos à teoria da linguagem elaborada pela lingüística contemporânea Após a psicologia e a lingüística a primeira das ciências humanas a se transformar profundamente graças à idéia de estrutura e ao método estrutural foi a antropologia social Esta pôde mostrar que ao contrário do que pensava a antropologia positivista as chamadas sociedades primitivas não são uma etapa Convite à Filosofia 350 atrasada da evolução da história social da humanidade mas uma forma objetiva de organizar as relações sociais de modo diferente do nosso constituindo estruturas culturais O antropólogo Claude LéviStrauss por exemplo mostrou que as estruturas dessas sociedades são baseadas no princípio do valor ou da equivalência que permite a troca e a circulação de certos seres de maneira a constituir o todo da sociedade organizando todas as relações sociais a troca ou circulação das mulheres estrutura do parentesco como sistema social de alianças a troca ou circulação de objetos especiais estrutura do dom como sistema social da guerra e da paz e troca e circulação da palavra estrutura da linguagem como sistema do poder religioso e político O modo como cada um desses sistemas ou estruturas parciais se organiza e se relaciona com os outros define a estrutura geral e específica de uma sociedade primitiva que pode assim ser compreendida e explicada cientificamente A contribuição do marxismo O marxismo permitiu compreender que os fatos humanos são instituições sociais e históricas produzidas não pelo espírito e pela vontade livre dos indivíduos mas pelas condições objetivas nas quais a ação e o pensamento humanos devem realizarse Levou a compreender que os fatos humanos mais originários ou primários são as relações dos homens com a Natureza na luta pela sobrevivência e que tais relações são as de trabalho dando origem às primeiras instituições sociais família divisão sexual do trabalho pastoreio e agricultura divisão social do trabalho troca e comércio distribuição social dos produtos do trabalho Assim as primeiras instituições sociais são econômicas Para mantêlas o grupo social cria idéias e sentimentos valores e símbolos aceitos por todos e que justificam ou legitimam as instituições assim criadas Também para conserválas o grupo social cria instituições de poder que sustentem pela força pelas armas ou pelas leis as relações sociais e as idéiasvaloressímbolos produzidos Dessa maneira o marxismo permitiu às ciências humanas compreender as articulações necessárias entre o plano psicológico e o social da existência humana entre o plano econômico e o das instituições sociais e políticas entre todas elas e o conjunto de idéias e de práticas que uma sociedade produz Graças ao marxismo as ciências humanas puderam compreender que as mudanças históricas não resultam de ações súbitas e espetaculares de alguns indivíduos ou grupos de indivíduos mas de lentos processos sociais econômicos e políticos baseados na forma assumida pela propriedade dos meios de produção e pelas relações de trabalho A materialidade da existência econômica comanda as outras esferas da vida social e da espiritualidade e os processos históricos abrangem todas elas Marilena Chauí 351 Enfim o marxismo trouxe como grande contribuição à sociologia à ciência política e à história a interpretação dos fenômenos humanos como expressão e resultado de contradições sociais de lutas e conflitos sóciopolíticos determinados pelas relações econômicas baseadas na exploração do trabalho da maioria pela minoria de uma sociedade Em resumo a fenomenologia permitiu a definição e a delimitação dos objetos das ciências humanas o estruturalismo permitiu uma metodologia que chega às leis dos fatos humanos sem que seja necessário imitar ou copiar os procedimentos das ciências naturais o marxismo permitiu compreender que os fatos humanos são historicamente determinados e que a historicidade longe de impedir que sejam conhecidos garante a interpretação racional deles e o conhecimento de suas leis Com essas contribuições que foram incorporadas de maneiras muito diferenciadas pelas várias ciências humanas os obstáculos epistemológicos foram ultrapassados e foi possível demonstrar que os fenômenos humanos são dotados de sentido e significação são históricos possuem leis próprias são diferentes dos fenômenos naturais e podem ser tratados cientificamente Os campos de estudo das ciências humanas Se tomarmos as ciências humanas de acordo com seus campos de investigação podemos distribuílas da seguinte maneira Psicologia estudo das estruturas do desenvolvimento das operações da mente humana consciência vontade percepção linguagem memória imaginação emoções estudo das estruturas e do desenvolvimento dos comportamentos humanos e animais estudo das relações intersubjetivas dos indivíduos em grupo e em sociedade estudo das perturbações patologias da mente humana e dos comportamentos humanos e animais Sociologia estudo das estruturas sociais origem e forma das sociedades tipos de organizações sociais econômicas e políticas estudo das relações sociais e de suas transformações estudo das instituições sociais origem forma sentido Economia estudo das condições materiais naturais e sociais de produção e reprodução da riqueza de suas formas de distribuição circulação e consumo Convite à Filosofia 352 estudo das estruturas produtivas relações de produção e forças produtivas segundo o critério da divisão social do trabalho da forma da propriedade das regras do mercado e dos ciclos econômicos estudo da origem do desenvolvimento das crises das transformações e da reprodução das formas econômicas ou modos de produção Antropologia estudo das estruturas ou formas culturais em sua singularidade ou particularidade isto é como diferentes entre si por seus princípios internos de funcionamento e transformação A cultura é entendida como modo de vida global de uma sociedade incluindo religião formas de poder formas de parentesco formas de comunicação organização da vida econômica artes técnicas costumes crenças formas de pensamento e de comportamento etc estudo das comunidades ditas primitivas isto é tanto das que desconhecem a divisão social em classes e recusam organizarse sob a forma do mercado e do poder estatal quanto daquelas que já iniciaram o processo de divisão social e política História estudo da gênese e do desenvolvimento das formações sociais em seus aspectos econômicos sociais políticos e culturais estudo das transformações das sociedades e comunidades como resultado e expressão de conflitos lutas contradições internas às formações sociais estudo das transformações das sociedades e comunidades sob o impacto de acontecimentos políticos revoluções guerras civis conquistas territoriais econômicos crises inovações técnicas descobertas de novas formas de exploração da riqueza ou procedimentos de produção mudanças na divisão social do trabalho sociais movimentos sociais movimentos populares mudanças na estrutura e organização da família da educação da moralidade social etc e culturais mudanças científicas tecnológicas artísticas filosóficas éticas religiosas etc estudo dos acontecimentos que em cada caso determinaram ou determinam a preservação ou a mudança de uma formação social em seus aspectos econômicos políticos sociais e culturais estudo dos diferentes suportes da memória coletiva documentos monumentos pinturas fotografias filmes moedas lápides funerárias testemunhos e relatos orais e escritos etc Lingüística estudo das estruturas da linguagem como sistema dotado de princípios internos de funcionamento e transformação Marilena Chauí 353 estudo das relações entre língua a estrutura e fala ou palavra o uso da língua pelos falantes estudo das relações entre a linguagem e os outros sistemas de signos e símbolos ou outros sistemas de comunicação Psicanálise estudo da estrutura e do funcionamento do inconsciente e de suas relações com o consciente estudo das patologias ou perturbações inconscientes e suas expressões conscientes neuroses e psicoses Devemos observar que cada uma das ciências humanas subdividese em vários ramos definidos pela especificidade crescente de seus objetos e métodos Assim podemos falar em psicologia social clínica do desenvolvimento da aprendizagem da criança do adolescente etc Ou em sociologia política do trabalho rural urbana econômica etc Também podemos falar em história econômica política oral social etc Ou levar em consideração que a antropologia depende de investigações feitas pela etnografia e pela etnologia ou pela arqueologia assim como a lingüística trabalha com a fonologia a fonética a gramática a semântica a sintaxe etc embora com campos e métodos específicos as ciências humanas tendem a apresentar resultados mais completos e satisfatórios quando trabalham interdisciplinarmente de modo a abranger os múltiplos aspectos simultâneos e sucessivos dos fenômenos estudados os desenvolvimentos da lingüística da antropologia e da psicanálise suscitaram o aparecimento de uma nova disciplina ou interdisciplina científica a semiologia que estuda os diferentes sistemas de signos e símbolos que constituem as múltiplas e diferentes formas de comunicação O desenvolvimento da semiologia conduziu à idéia de que signos e símbolos são ações e práticas sóciohistóricas isto é estão referidos às relações sociais e às suas condições históricas cada sociedade e cada cultura constituindose como um sistema que integra e totaliza vários subsistemas de signos e símbolos linguagem arte religião instituições sociais e políticas costumes etc Vários estudiosos propuseram que o método das ciências humanas fosse capaz de descrever e interpretar esses subsistemas e o sistema geral que os unifica Esse método é a semiótica tomada como metodologia própria às ciências humanas e capaz de unificálas Convite à Filosofia 354 Capítulo 5 O ideal científico e a razão instrumental O ideal científico O percurso que fizemos no estudo das ciências evidencia a existência de um ideal científico embora continuidades e rupturas marquem os conhecimentos científicos a ciência é a confiança que a cultura ocidental deposita na razão como capacidade para conhecer a realidade mesmo que esta afinal tenha que ser inteiramente construída pela própria atividade racional A lógica que rege o pensamento científico contemporâneo está centrada na idéia de demonstração e prova a partir da definição ou construção do objeto do conhecimento por suas propriedades e funções e da posição do sujeito do conhecimento através das operações de análise síntese e interpretação A ciência contemporânea fundase na distinção entre sujeito e objeto do conhecimento que permite estabelecer a idéia de objetividade isto é de independência dos fenômenos em relação ao sujeito que conhece e age na idéia de método como um conjunto de regras normas e procedimentos gerais que servem para definir ou construir o objeto e para o autocontrole do pensamento durante a investigação e após esta para a confirmação ou falsificação dos resultados obtidos A idéia de método tem como pressuposto que o pensamento obedece universalmente a certos princípios internos identidade nãocontradição terceiro excluído razão suficiente dos quais dependem o conhecimento da verdade e a exclusão do falso A verdade pode ser compreendida seja como correspondência necessária entre os conceitos e a realidade seja como coerência interna dos próprios conceitos nas operações de análise e síntese isto é de passagem do todo complexo às suas partes constituintes ou de passagem das partes ao todo que as explica e determina O objeto científico é um fenômeno submetido à análise e à síntese que descrevem os fatos observados ou constroem a própria entidade objetiva como um campo de relações internas necessárias isto é uma estrutura que pode ser conhecida em seus elementos suas propriedades suas funções e seus modos de permanência ou de transformação na idéia de lei do fenômeno isto é de regularidades e constâncias universais e necessárias que definem o modo de ser e de comportarse do objeto seja este tomado como um campo separado dos demais seja tomado em suas relações com Marilena Chauí 355 outros objetos ou campos de realidade A lei científica define o que é o fato fenômeno ou o objeto construído pelas operações científicas Em outras palavras a lei científica diz como o objeto se constitui como se comporta por que e como permanece por que e como se transforma sobre quais fenômenos atua e de quais sofre ação A lei define o objeto segundo um sistema complexo de relações necessárias de causalidade complementaridade inclusão e exclusão A idéia de lei visa a marcar o caráter necessário do objeto e a afastar as idéias de acaso contingência indeterminação oferecendo o objeto como completamente determinado pelo pensamento ou completamente conhecido ou cognoscível no uso de instrumentos tecnológicos e não simplesmente técnicos Os instrumentos técnicos são prolongamentos de capacidades do corpo humano e destinamse a aumentálas na relação do nosso corpo com o mundo Os instrumentos tecnológicos são ciência cristalizada em objetos materiais nada possuem em comum com as capacidades e aptidões do corpo humano visam a intervir nos fenômenos estudados e mesmo a construir o próprio objeto científico destinamse a dominar e transformar o mundo e não simplesmente a facilitar a relação do homem com o mundo A tecnologia confere à ciência precisão e controle dos resultados aplicação prática e interdisciplinaridade O caso da biologia genética revela como a tecnologia da física da química e da cibernética determinaram uma atividade interdisciplinar que resultou em descobertas e mudanças na biologia na criação de uma linguagem específica e própria distante da linguagem cotidiana e da linguagem literária A ciência procura afastar os dados qualitativos e perceptivoemotivos dos objetos ou dos fenômenos para guardar ou construir apenas seus aspectos quantitativos e relacionais A linguagem cotidiana e a literária são conotativas e polissêmicas isto é nelas as palavras possuem múltiplos significados simultâneos subentendidos ambigüidades e exprimem tanto o sujeito quanto as coisas ou seja exprimem as relações vividas entre o sujeito e o mundo qualitativo de sons cores formas odores valores sentimentos etc Nas ciências porém sons e cores são explicados como variação no comprimento das ondas sonoras e luminosas observadas e medidas no laboratório Valores e sentimentos são explicados pelas análises do corpo vivido e da consciência feitas pela psicologia pelas análises da estrutura e organização da sociedade feitas pela sociologia e pela antropologia A linguagem científica destaca o objeto das relações com o sujeito separao da experiência vivida cotidiana e constrói uma linguagem puramente denotativa para exprimir sem ambigüidades as leis do objeto O simbolismo científico rompe com o simbolismo da linguagem cotidiana construindo uma linguagem própria com símbolos unívocos e denotativos de significado único e universal Convite à Filosofia 356 A ciência constrói o algoritmo e fala através dos algoritmos ou de uma combinatória de estilo matemático Justamente por serem estes os principais traços do ideal científico podemos compreender por que existem os problemas epistemológicos examinados nos capítulos precedentes Em outras palavras o ideal de cientificidade impõe às idéias critérios e finalidades que quando impedidos de se concretizarem forçam rupturas e mudanças teóricas profundas fazendo desaparecer campos e disciplinas científicos ou levando ao surgimento de objetos métodos disciplinas e campos de investigação novos Ciência desinteressada e utilitarismo Desde a Renascença isto é desde o humanismo que colocava o homem no centro do Universo e afirmava seu poder para conhecer e dominar a realidade duas concepções sobre o valor da ciência estiveram sempre em confronto A primeira delas que chamaremos de ideal do conhecimento desinteressado afirma que o valor de uma ciência encontrase na qualidade no rigor e na exatidão na coerência e na verdade de uma teoria independentemente de sua aplicação prática A teoria científica vale por trazer conhecimentos novos sobre fatos desconhecidos por ampliar o saber humano sobre a realidade e não por ser aplicável praticamente Em outras palavras é por ser verdadeira que a ciência pode ser aplicada na prática mas o uso da ciência é conseqüência e não causa do conhecimento científico A segunda concepção conhecida como utilitarismo ao contrário afirma que o valor de uma ciência encontrase na quantidade de aplicações práticas que possa permitir É o uso ou a utilidade imediata dos conhecimentos que prova a verdade de uma teoria científica e lhe confere valor Os conhecimentos são procurados para resolver problemas práticos e estes determinam não só o aparecimento de uma ciência mas também suas transformações no decorrer do tempo As duas concepções são verdadeiras mas parciais Se uma teoria científica fosse elaborada apenas por suas finalidades práticas imediatas inúmeras pesquisas jamais teriam sido feitas e inúmeros fenômenos jamais teriam sido conhecidos pois com freqüência os conhecimentos teóricos estão mais avançados do que as capacidades técnicas de uma época e em geral sua aplicação só é percebida e só é possível muito tempo depois de haver sido elaborada No entanto se uma teoria científica não for capaz de suscitar aplicações se não for capaz de permitir o surgimento de objetos técnicos e tecnológicos instrumentos utensílios máquinas medicamentos de resolver problemas importantes para os seres humanos então seremos obrigados a dizer que a técnica e a tecnologia são cegas incertas arriscadas e perigosas porque são práticas sem bases teóricas seguras Na realidade teoria e prática científicas estão Marilena Chauí 357 relacionadas na concepção moderna e contemporânea de ciência mesmo que uma possa estar mais avançada do que a outra A distinção e a relação entre ciência pura e ciência aplicada pode solucionar o impasse ou o confronto entre as duas concepções sobre o valor das teorias científicas garantindo por um lado que uma teoria possa e deva ser elaborada sem a preocupação com fins práticos imediatos embora possa mais tarde contribuir para eles e por outro lado garantindo o caráter científico de teorias construídas diretamente com finalidades práticas as quais podem por sua vez suscitar investigações puramente teóricas Podese dizer que são problemas e dificuldades técnicas e práticas que suscitam o desenvolvimento de conhecimentos teóricos Sabemos por exemplo que o químico Lavoisier decidiu estudar o fenômeno da combustão para resolver problemas econômicos da cidade de Paris que Galileu e Torricelli investigaram o movimento dos corpos no vácuo para resolver problemas de carregamento de grandes pesos nos portos e para responder a uma pergunta dos construtores de fontes dos jardins da cidade de Florença No entanto o que sempre se verifica é que a explicação científica e a teoria acabam conhecendo muito mais fatos e relações do que o que era necessário para solucionar o problema prático de tal modo que as pesquisas teóricas vão avançando já sem a preocupação prática embora comecem a surgir e a suscitar tempos depois soluções práticas para problemas novos Assim por exemplo passouse muito tempo até que a teoria eletromagnética de Hertz levasse às técnicas de radiodifusão A ideologia cientificista O senso comum ignorando as complexas relações entre as teorias científicas e as técnicas entre ciência pura e ciência aplicada entre teoria e prática e entre verdade e utilidade tende a identificar as ciências com os resultados de suas aplicações Essa identificação desemboca numa atitude conhecida como cientificismo isto é fusão entre ciência e técnica e a ilusão da neutralidade científica Examinemos brevemente cada um desses aspectos que constituem a ideologia da ciência na sociedade contemporânea O cientificismo O cientificismo é a crença infundada de que a ciência pode e deve conhecer tudo que de fato conhece tudo e é a explicação causal das leis da realidade tal como esta é em si mesma Ao contrário dos cientistas que não cessam de enfrentar obstáculos epistemológicos problemas e enigmas o senso comum cientificista desemboca numa ideologia e numa mitologia da ciência Convite à Filosofia 358 Ideologia da ciência crença no progresso e na evolução dos conhecimentos que um dia explicarão totalmente a realidade e permitirão manipulála tecnicamente sem limites para a ação humana Mitologia da ciência crença na ciência como se fosse magia e poderio ilimitado sobre as coisas e os homens dandolhe o lugar que muitos costumam dar às religiões isto é um conjunto doutrinário de verdades intemporais absolutas e inquestionáveis A ideologia e a mitologia cientificistas encaram a ciência não pelo prisma do trabalho do conhecimento mas pelo prisma dos resultados apresentados como espetaculares e miraculosos e sobretudo como uma forma de poder social e de controle do pensamento humano Por este motivo aceitam a ideologia da competência isto é a idéia de que há na sociedade os que sabem e os que não sabem que os primeiros são competentes e têm o direito de mandar e de exercer poderes enquanto os demais são incompetentes devendo obedecer e ser mandados Em resumo a sociedade deve ser dirigida e comandada pelos que sabem e os demais devem executar as tarefas que lhes são ordenadas A ilusão da neutralidade da ciência Como a ciência se caracteriza pela separação e pela distinção entre o sujeito do conhecimento e o objeto como a ciência se caracteriza por retirar dos objetos do conhecimento os elementos subjetivos como os procedimentos científicos de observação experimentação e interpretação procuram alcançar o objeto real ou o objeto construído como modelo aproximado do real e enfim como os resultados obtidos por uma ciência não dependem da boa ou má vontade do cientista nem de suas paixões estamos convencidos de que a ciência é neutra ou imparcial Diz à razão o que as coisas são em si mesmas Desinteressadamente Essa imagem da neutralidade científica é ilusória Quando o cientista escolhe uma certa definição de seu objeto decide usar um determinado método e espera obter certos resultados sua atividade não é neutra nem imparcial mas feita por escolhas precisas Vamos tomar três exemplos que nos ajudarão a esclarecer este ponto O racismo não é apenas uma ideologia social e política É também uma teoria que se pretende científica apoiada em observações dados e leis conseguidas com a biologia a psicologia a sociologia É uma certa maneira de construir tais dados de sorte a transformar diferenças étnicas e culturais em diferenças biológicas naturais imutáveis e separar os seres humanos em superiores e inferiores dando aos primeiros justificativas para explorar dominar e mesmo exterminar os segundos Por que Copérnico teve que esconder os resultados de suas pesquisas e Galileu foi forçado a comparecer perante a Inquisição e negar que a Terra se movia ao redor do Sol Porque a concepção astronômica geocêntrica elaborada na Marilena Chauí 359 Antiguidade por Ptolomeu e Aristóteles permitia que a Igreja Romana mantivesse a idéia de que a realidade é constituída por uma hierarquia de seres que vão dos mais perfeitos os celestes aos mais imperfeitos os infernais e que essa hierarquia colocava a Igreja acima dos imperadores estes acima dos barões e estes acima dos camponeses e servos Se a astronomia demonstrasse que a Terra não é o centro do Universo e que o Sol não é apenas uma perfeição imóvel e se a mecânica galileana demonstrasse que todos os seres estão submetidos às mesmas leis do movimento então as hierarquias celestes naturais e humanas perderiam legitimidade e fundamento não precisando ser respeitadas A física e a astronomia précopernicanas elaboradas por Ptolomeu e Aristóteles serviam independentemente da vontade de Ptolomeu e de Aristóteles é verdade a uma sociedade e a uma concepção do poder que se viram ameaçadas por uma nova concepção científica Um último exemplo pode ser dado através da antropologia Durante muito tempo os antropólogos afirmaram que havia duas formas de pensamento cientificamente observáveis e com leis diferentes o pensamento lógicoracional dos civilizados europeus brancos adultos e o pensamento prélógico e pré racional dos selvagens ou primitivos africanos índios tribos australianas O primeiro era considerado superior verdadeiro e evoluído o segundo inferior falso supersticioso e atrasado cabendo aos brancos europeus auxiliar os selvagens primitivos a abandonar sua cultura e adquirir a cultura evoluída dos colonizadores O melhor caminho para perceber a impossibilidade de uma ciência neutra é levar em consideração o modo como a pesquisa científica se realiza em nosso tempo Durante séculos os cientistas trabalharam individualmente mesmo que possuíssem auxiliares e discípulos em seus pequenos laboratórios Suas pesquisas eram custeadas ou por eles mesmos ou por reis nobres e burgueses ricos que desejavam a glória de patrocinar descobertas e as vantagens práticas que delas poderiam advir Por sua vez o senso comum social olhava o cientista como inventor e gênio Hoje os cientistas trabalham coletivamente em equipes nos grandes laboratórios universitários nos dos institutos de pesquisa e nos das grandes empresas transnacionais que participam de um sistema conhecido como complexo industrialmilitar As pesquisas são financiadas pelo Estado nas universidades e institutos pelas empresas privadas em seus laboratórios e por ambos nos centros de investigação do complexo industrialmilitar São pesquisas que exigem altos investimentos econômicos e das quais se esperam resultados que a opinião pública nem sempre conhece Além disso os cientistas de uma mesma área de investigação competem por recursos tendem a fazer segredo de suas descobertas pois dependem delas para conseguir fundos e vencer a competição com outros Convite à Filosofia 360 Sabemos hoje que a maioria dos resultados científicos que usamos em nossa vida cotidiana máquinas remédios fertilizantes produtos de limpeza e de higiene materiais sintéticos computadores tiveram como origem investigações militares e estratégicas competições econômicas entre grandes empresas transnacionais e competições políticas entre grandes Estados Muito do que usamos em nosso cotidiano provém de pesquisas nucleares bacteriológicas e espaciais O senso comum social agora vê o cientista como engenheiro e mago em roupas brancas no interior de grandes laboratórios repletos de objetos incompreensíveis rodeado de outros cientistas fazendo cálculos misteriosos diante de dezenas de computadores Tanto na visão anterior o cientista como inventor e gênio solitário quanto na atual o cientista como membro de uma equipe de engenheiros e magos o senso comum vê a ciência desligada do contexto das condições de sua realização e de suas finalidades Eis porque tende a acreditar na neutralidade científica na idéia de que o único compromisso da ciência é o conhecimento verdadeiro e desinteressado e a solução correta de nossos problemas A ideologia cientificista usa essa imagem idealizada para consolidar a da neutralidade científica dissimulando com isso a origem e a finalidade da maioria das pesquisas destinadas a controlar a Natureza e a sociedade segundo os interesses dos grupos que controlam os financiamentos dos laboratórios A razão instrumental Por que há uma ideologia e uma mitologia da ciência Quando estudamos a teoria do conhecimento examinamos a noção de ideologia como lógica social imaginária de ocultamento da realidade histórica Ao estudarmos o nascimento da Filosofia examinamos a diferença entre mythos e logos isto é entre a explicação antropomórfica e mágica do mundo e a explicação racional Quando estudamos a razão vimos que alguns filósofos alemães reunidos na Escola de Frankfurt descreveram a racionalidade ocidental como instrumentalização da razão Se reunirmos esses vários estudos que fizemos até aqui poderemos responder à pergunta sobre a ideologização e a mitologização da ciência A razão instrumental que os frankfurtianos como Adorno Marcuse e Horkheimer também designaram com a expressão razão iluminista nasce quando o sujeito do conhecimento toma a decisão de que conhecer é dominar e controlar a Natureza e os seres humanos Assim por exemplo o filósofo Francis Bacon no início do século XVII criou uma expressão para referirse ao objeto do conhecimento científico a Natureza atormentada Atormentar a Natureza é fazêla reagir a condições artificiais criadas pelo homem O laboratório científico é a maneira paradigmática de efetuar esse Marilena Chauí 361 tormento pois nele plantas animais metais líquidos gases etc são submetidos a condições de investigação totalmente diversas das naturais de maneira a fazer com que a experimentação supere a experiência descobrindo formas causas efeitos que não poderiam ser conhecidos se contássemos apenas com a atividade espontânea da Natureza Atormentar a Natureza é conhecer seus segredos para dominála e transformála O tormento da realidade aumenta com a ciência contemporânea uma vez que esta não se contenta em conhecer as coisas e os seres humanos mas os constrói artificialmente e aplica os resultados dessa construção ao mundo físico biológico e humano psíquico social político histórico Assim por exemplo a organização do processo de trabalho nas indústrias apresentase como científica porque é baseada em conceitos da psicologia da sociologia da economia que permitem dominar e controlar o trabalho humano sob todos os aspectos controle sobre o corpo e o espírito dos trabalhadores a fim de que a produtividade seja a maior possível para render lucros ao capital Na medida em que a razão se torna instrumental a ciência vai deixando de ser uma forma de acesso aos conhecimentos verdadeiros para tornarse um instrumento de dominação poder e exploração Para que não seja percebida como tal passa a ser sustentada pela ideologia cientificista que através da escola e dos meios de comunicação de massa desemboca na mitologia cientificista Todavia devemos distinguir entre o momento da investigação científica propriamente dita e o da ideologizaçãomitologização de uma ciência Um exemplo poderá auxiliarnos a perceber essa diferença Quando Darwin elabora a teoria biológica da evolução das espécies o modelo de explicação usado por ele permitialhe supor que o processo evolutivo ocorria por seleção natural dos mais aptos à sobrevivência Ora na mesma época a sociedade capitalista estava convencida de que o progresso social e histórico provi nha da competição e da concorrência dos indivíduos segundo a lei econômica da oferta e da procura Um filósofo Spencer aplicou então a teoria darwiniana à sociedade nesta os mais aptos isto é os mais capazes de competir e concorrer tornamse naturalmente superiores aos outros vencendoos em riqueza privilégios e poder Ao transpor uma teoria biológica para uma explicação filosófica sobre a essência da sociedade Spencer transformou a teoria científica da evolução em ideologia evolucionista Por quê Em primeiro lugar porque generalizou para toda a realidade resultados obtidos num campo particular de conhecimentos específicos Em segundo lugar porque tomou conceitos referentes a fatos naturais e os converteu em fatos sociais como se não houvesse diferença entre Natureza e sociedade Uma vez criada a ideologia evolucionista o evolucionismo tornouse teoria da História e a seguir mitologia científica do progresso humano A noção de razão instrumental nos permite compreender Convite à Filosofia 362 a transformação de uma ciência em ideologia e mito social isto é em senso comum cientificista que a ideologia da ciência não se reduz à transformação de uma teoria científica em ideologia mas encontrase na própria ciência quando esta é concebida como instrumento de dominação controle e poder sobre a Natureza e a sociedade que as idéias de progresso técnico e neutralidade científica pertencem ao campo da ideologia cientificista Confusão entre ciência e técnica Vimos que a ciência moderna e contemporânea transforma a técnica em tecnologia isto é passa da máquinautensílio à máquina como instrumento de precisão que permite conhecimentos mais exatos e novos conhecimentos Essa transformação traz duas conseqüências principais a primeira se refere ao conhecimento científico e a segunda ao estatuto dos objetos técnicos 1 o conhecimento científico é concebido como lógica da invenção para a solução de problemas teóricos e práticos e como lógica da construção de objetos teóricos graças à possibilidade de estudar os fenômenos sem depender apenas dos recursos de nossa percepção e de nossa inteligência É assim que por exemplo Galileu se refere ao telescópio como um instrumento cuja função não é a de simplesmente aproximar objetos distantes mas de corrigir as distorções de nossos olhos e garantirnos a imagem correta das coisas O mesmo foi dito sobre o microscópio sobre a balança de precisão sobre o cronômetro Em nosso tempo os instrumentos técnicotecnológicos vão além da correção de nossa percepção pois corrigem falhas de nosso pensamento uma vez que são inteligências artificiais o computador foi chamado de cérebro eletrônico mais acuradas do que nossa inteligência individual Evidentemente são conhecimentos científicos que permitem a construção desses instrumentos mas dandolhes capacidades que cada um de nós enquanto indivíduo não possui Ora os objetos técnicotecnológicos ampliam a idéia da ciência como invenção e construção dos próprios fenômenos 2 os objetos técnicos são criados pela ciência como instrumentos de auxílio ao trabalho humano máquinas para dominar a Natureza e a sociedade instrumentos de precisão para o conhecimento científico e sobretudo em sua forma contemporânea como autômatos Estes são o objeto técnicotecnológico por excelência porque possuem as seguintes características marcas do novo estatuto desse objeto são conhecimento científico objetivado isto é depositado e concretizado num objeto São resultado e corporificação de conhecimentos científicos Marilena Chauí 363 são objetos que possuem em si mesmos o princípio de sua regulação manutenção e transformação As máquinas antigas dependiam de forças externas para realizar suas funções alavancas polias manivelas força muscular de seres humanos ou de animais força hidráulica etc As máquinas modernas são autômatos porque dado o impulso eletroeletrônico inicial realizam por si mesmas todas as operações para as quais foram programadas incluindo a correção de sua própria ação a realimentação de energia a transformação São autoreguladas e autoconservadas porque possuem em si mesmas as informações necessárias ao seu funcionamento como conseqüência não são propriamente um objeto singular ou individual mas um sistema de objetos interligados por comandos recíprocos são sistemas que uma vez programados realizam operações teóricas complexas que modificam o conteúdo dos próprios conhecimentos científicos isto é os objetos técnicotecnológicos fazem parte do trabalho teórico Ora o senso comum social ignora essas transformações da ciência e da técnica e conhece apenas seus resultados mais imediatos os objetos que podem ser usados por nós máquina de lavar videogame televisão a cabo máquina de calcular computador robô industrial etc Como para usálos precisamos receber um conjunto de informações detalhadas e sofisticadas tendemos a identificar o conhecimento científico com seus efeitos tecnológicos Com isso deixamos de perceber o essencial isto é que as ciências passaram a fazer parte das forças econômicas produtivas da sociedade e trouxeram mudanças sociais de grande porte na divisão social do trabalho na produção e na distribuição dos objetos na forma de consumilos Não percebemos que as pesquisas científicas são financiadas por empresas e governos demandando grandes somas de recursos que retornam graças aos resultados obtidos na forma de lucro e poder para os agentes financiadores Por não percebermos o poderio econômico das ciências lutamos para ter acesso para possuir e consumir os objetos tecnológicos mas não lutamos pelo direito de acesso tanto aos conhecimentos como às pesquisas científicas nem lutamos pelo direito de decidir seu modo de inserção na vida econômica e política de uma sociedade Eis porque entre outros efeitos de nossa confusão entre ciência e tecnologia aceitamos no Brasil políticas educacionais que profissionalizam os jovens no segundo grau portanto antes que tenham podido ter acesso às ciências propriamente ditas e que destinam poucos recursos públicos às áreas de pesquisa nas universidades portanto mantendo os cientistas na mera condição de reprodutores de ciências produzidas em outros países e sociedades Convite à Filosofia 364 O problema do uso das ciências Além do problema anterior isto é de teorias científicas serem formuladas a partir de certas decisões e escolhas do cientista ou do laboratório onde trabalham os cientistas com conseqüências sérias para os seres humanos um outro problema também é trazido pelas ciências o de seu uso Vimos que uma teoria científica pode nascer para dar resposta a um problema prático ou técnico Vimos também que a investigação científica pode ir avançando para descobertas de fenômenos e relações que já não possuem relação direta com os problemas práticos iniciais e como conseqüência é freqüente uma teoria estar muito mais avançada do que as técnicas e tecnologias que poderão aplicála Muitas vezes aliás o cientista sequer imagina que a teoria terá aplicação prática É exatamente isso que torna o uso da ciência algo delicado que em geral escapa das mãos dos próprios pesquisadores É assim por exemplo que a microfísica ou física quântica desemboca na fabricação das armas nucleares a bioquímica e a genética na de armas bacteriológicas Teorias sobre a luz e o som permitem a construção de satélites artificiais que se são conectáveis instantaneamente em todo o globo terrestre para a comunicação e informação também são responsáveis por espionagem militar e por guerras com armas teleguiadas Uma das características mais novas da ciência está em que as pesquisas científicas passaram a fazer parte das forças produtivas da sociedade isto é da economia A automação a informatização a telecomunicação determinam formas de poder econômico modos de organizar o trabalho industrial e os serviços criam profissões e ocupações novas destroem profissões e ocupações antigas introduzem a velocidade na produção de mercadorias e em sua distribuição e consumo modificando padrões industriais comerciais e estilos de vida A ciência tornouse parte integrante e indispensável da atividade econômica Tornouse agente econômico e político Além de fazer parte essencial da atividade econômica a ciência também passou a fazer parte do poder político Não é por acaso por exemplo que governos criem ministérios e secretarias de ciência e tecnologia e que destinem verbas para financiar pesquisas civis e militares Do mesmo modo que as grandes empresas financiam pesquisas e até criam centros e laboratórios de investigação científica assim também os governos determinam quais as ciências que irão ser desenvolvidas e nelas quais as pesquisas que serão financiadas Essa nova posição das ciências na sociedade contemporânea além de indicar que é mínimo ou quase inexistente o grau de neutralidade e de liberdade dos cientistas indica também que o uso das ciências define os recursos financeiros que nelas serão investidos Marilena Chauí 365 A sociedade porém não luta pelo direito de interferir nas decisões de empresas e governos quando estes decidem financiar um tipo de pesquisa em vez de outra Dessa maneira o campo científico tornase cada vez mais distante da sociedade sem que esta encontre meios para orientar o uso das ciências pois este é definido antes do início das próprias pesquisas e fora do controle que a sociedade poderia exercer sobre ele Um exemplo de luta social para intervir nas decisões sobre as pesquisas e seus usos encontrase nos movimentos ecológicos e em muitos movimentos sociais ligados a reivindicações de direitos De um modo geral porém a ideologia cientificista tende a ser muito mais forte do que eles e a limitar os resultados que desejariam obter Convite à Filosofia 366 Unidade 8 O mundo da prática Marilena Chauí 367 Capítulo 1 A cultura Natureza humana É muito comum ouvirmos e dizermos frases do tipo chorar é próprio da natureza humana e homem não chora Ou então é da natureza humana ter medo do desconhecido e ela é corajosa não tem medo de nada Também é comum a frase as mulheres são naturalmente frágeis e sensíveis porque nasceram para a maternidade bem como esta outra fulana é uma desnaturada pois não tem o menor amor aos filhos Com freqüência ouvimos dizer os homens são fortes e racionais feitos para o comando e a vida pública donde como conseqüência esta outra frase fulana nem parece mulher Veja como se veste Veja o emprego que arranjou Não é raro escutarmos que os negros são indolentes por natureza os pobres são naturalmente violentos os judeus são naturalmente avarentos os árabes são naturalmente comerciantes espertos os franceses são naturalmente interessados em sexo e os ingleses são por natureza fleumáticos Frases como essas e muitas outras pressupõem por um lado que existe uma natureza humana a mesma em todos os tempos e lugares e por outro lado que existe uma diferença de natureza entre homens e mulheres pobres e ricos negros índios judeus árabes franceses ou ingleses Haveria assim uma natureza humana universal e uma natureza humana diferenciada por espécies à maneira da diferença entre várias espécies de plantas ou de animais Em outras palavras a Natureza teria feito o gênero humano universal e as espécies humanas particulares de modo que certos sentimentos comportamentos idéias e valores são os mesmos para todo o gênero humano são naturais para todos os humanos enquanto outros seriam os mesmos apenas para cada espécie ou raça ou tipo ou grupo isto é para uma espécie determinada Dizer que alguma coisa é natural ou por natureza significa dizer que essa coisa existe necessária e universalmente como efeito de uma causa necessária e universal Essa causa é a Natureza Significa dizer portanto que tal coisa não depende da ação e intenção dos seres humanos Assim como é da natureza dos corpos serem governados pela lei natural da gravitação universal como é da natureza da água ser composta por H2O ou como é da natureza da abelha produzir mel e da roseira produzir rosas também seria por natureza que os homens sentem pensam e agem A Natureza teria feito a natureza humana como gênero universal e a teria diversificado por espécies naturais brancos negros Convite à Filosofia 368 índios pobres ricos judeus árabes homens mulheres alemães japoneses chineses etc Que aconteceria com as frases que mencionamos acima se mostrássemos que algumas delas são contraditórias e que outras não correspondem aos fatos da realidade Assim por exemplo dizer que é natural chorar na tristeza entra em contradição com a idéia de que homem não chora pois se isso fosse verdade o homem teria que ser considerado algo que escapa das leis da Natureza já que chorar é considerado natural O mesmo acontece com a frase sobre o medo e a coragem nelas é dito que o medo é natural mas que uma certa pessoa é admirável porque não tem medo Aqui a contradição é ainda maior do que a anterior uma vez que parecemos ter admiração por quem misteriosamente escapa da lei da Natureza isto é do medo Em certas sociedades o sistema de alianças que fundamenta as relações de parentesco sobre as quais a comunidade está organizada exige que a criança seja levada ao nascer à irmã do pai que deverá responsabilizarse pela vida e educação da criança Em outras o sistema de parentesco exige que a criança seja entregue à irmã da mãe Nos dois casos a relação da criança é estabelecida com a tia por aliança e não com a mãe biológica Se assim é como fica a afirmação de que as mulheres amam naturalmente os seus filhos e que é desnaturada a mulher que não demonstrar esse amor Em certas sociedades considerase que a mulher é impura para lidar com a terra e com os alimentos Por esse motivo o cultivo da terra a alimentação e a casa ficam sob os cuidados dos homens cabendo às mulheres a guerra e o comando da comunidade Se assim é como fica a frase que afirma que o homem foi feito pela Natureza para o que exige força e coragem para o comando e a guerra enquanto a mulher foi feita pela Natureza para a maternidade a casa o trabalho doméstico as atividades de um ser frágil e sensível Os historiadores brasileiros mostram que por razões econômicas a elite dominante do século XIX considerou mais lucrativo realizar a abolição da escravatura e substituir os escravos africanos pelos imigrantes europeus Essa decisão fez com que o mercado de trabalho fosse ocupado pelos trabalhadores brancos imigrantes e que a maioria dos escravos libertados ficasse no desemprego sem habitação sem alimentação e sem qualquer direito social econômico e político Em outras palavras foram impedidos de trabalhar e foram mantidos sem direitos tais como viviam quando estavam no cativeiro Além disso sabese que quando os colonizadores instituíram a escravidão e trouxeram os africanos para as terras da América fizeram tal escolha por considerarem que os negros possuíam grande força física grande capacidade de trabalho e muita inteligência para realizar tarefas com objetos técnicos como o engenho de açúcar Se assim é se a Marilena Chauí 369 escravidão foi instituída por causa da grande capacidade e inteligência dos africanos para o trabalho da agricultura se a abolição foi realizada por ser mais lucrativo o uso da mãodeobra imigrante para um certo tipo de agricultura o café e para a indústria como fica a afirmação de que a Natureza fez os africanos indolentes preguiçosos e malandros Poderíamos examinar cada uma das frases que dizemos ou ouvimos em nosso cotidiano e que naturalizam os seres humanos naturalizam comportamentos idéias valores formas de viver e de agir Veríamos como em cada caso os fatos desmentem tal naturalização Veríamos como os seres humanos variam em conseqüência das condições sociais econômicas políticas históricas em que vivem Veríamos que somos seres cuja ação determina o modo de ser agir e pensar e que a idéia de um gênero humano natural e de espécies humanas naturais não possui fundamento na realidade Veríamos graças às ciências humanas e à Filosofia que a idéia de natureza humana como algo universal intemporal e existente em si e por si mesma não se sustenta cientificamente filosoficamente e empiricamente Por quê Porque os seres humanos são culturais ou históricos Culto inculto cultura Pedro é muito culto conhece várias línguas entende de arte e de literatura Imagine É claro que o Luís não pode ocupar o cargo que pleiteia Não tem cultura nenhuma É semianalfabeto Não creio que a cultura francesa ou alemã sejam superiores à brasileira Você acha que há alguma coisa superior a nossa música popular Ouvi uma conferência que criticava a cultura de massa mas me pareceu que a conferencista defendia a cultura de elite Por isso não concordei inteiramente com ela O livro de Silva sobre a cultura dos guaranis é bem interessante Aprendi que o modo como entendem a religião e a guerra é muito diferente do nosso Essas frases e muitas outras que fazem parte do nosso diaadia indicam que empregamos a palavra cultura ou seus derivados como culto inculto em sentidos muito diferentes e por vezes contraditórios Na primeira e na segunda frase que mencionamos acima cultura é identificada com a posse de certos conhecimentos línguas arte literatura ser alfabetizado Nelas falase em ter e não ter cultura ser ou não ser culto A posse de cultura é vista como algo positivo enquanto ser inculto é considerado algo negativo A segunda frase deixa entrever que ter cultura habilita alguém a ocupar algum posto ou cargo pois não ter cultura significa não estar preparado para uma certa posição ou função Nessas duas primeiras frases a palavra cultura sugere também prestígio e respeito como se ter cultura ou ser culto fosse o mesmo que ser importante ser superior Convite à Filosofia 370 Ora quando passamos à terceira frase a cultura já não parece ser uma propriedade de um indivíduo mas uma qualidade de uma coletividade franceses alemães brasileiros Também é interessante observar que a coletividade aparece como um adjetivo qualificativo para distinguir tipos de Cultura a francesa a alemã a brasileira Nessa frase a Cultura surge como algo que existe em si e por si mesma e que pode ser comparada Cultura superior Cultura inferior Além disso a Cultura aparece representada por uma atividade artística a música popular Isso permite estabelecer duas relações diferentes com as primeiras frases 1 De fato a terceira frase como a primeira identifica Cultura e artes entender de arte e literatura na primeira frase a música popular brasileira na terceira 2 No entanto algo curioso acontece quando passamos das duas primeiras frases à terceira Com efeito nas duas primeiras culto e inculto surgiam como diferenças sociais Num país como o nosso dizer que alguém é inculto porque é semianalfabeto deixa transparecer que Cultura é algo que pertence a certas camadas ou classes sociais socialmente privilegiadas enquanto a incultura está do lado dos nãoprivilegiados socialmente portanto do lado do povo e do popular Entretanto a terceira frase afirma que a cultura brasileira não é inferior à francesa ou à alemã por causa de nossa música popular Não estaríamos diante de uma contradição Como poderia haver cultura popular a música se o popular é inculto Já a quarta frase a que se refere à conferência sobre cultura de massa introduz um novo significado para a palavra cultura Nela não se trata mais de pessoas cultas ou incultas nem de uma coletividade que possui uma atividade cultural que possa ser comparada à de outras Agora estamos diante da idéia de que numa mesma coletividade ou numa mesma sociedade pode haver dois tipos de Cultura a de massa e a de elite A frase não nos diz o que é a Cultura Seria posse de conhecimentos Ou seria atividade artística Entretanto a frase nos informa sobre uma oposição entre formas de cultura dependendo de sua origem e de sua destinação pois cultura de massa tanto pode significar originada na massa quanto destinada à massa e o mesmo pode ser dito da cultura de elite originada na elite ou destinada à elite Finalmente a última frase que mencionamos como exemplo apresenta um sentido totalmente diverso dos anteriores no que toca à palavra cultura Falase agora na cultura dos guaranis e esta aparece em duas manifestações a guerra e a religião que portanto nada tem a ver com a posse de conhecimentos atividade artística massa ou elite Nessa última frase a cultura aparece como algo dos guaranis e como alguma coisa que não se limita ao campo dos conhecimentos e das artes pois se refere à relação dos guaranis com o sagrado a religião e com o conflito e a morte a guerra Vemos assim que passar da naturalização dos seres humanos à Cultura não resolve nossas dificuldades de compreensão dos humanos uma vez que agora Marilena Chauí 371 precisamos perguntar Como é possível a palavra cultura possuir tantos sentidos alguns deles contraditórios com outros Natureza e Cultura No pensamento ocidental Natureza possui vários sentidos princípio de vida ou princípio ativo que anima e movimenta os seres Nesse sentido falase em deixar agir a Natureza ou seguir a Natureza para significar que se trata de uma força espontânea capaz de gerar e de cuidar de todos os seres por ela criados e movidos A Natureza é a substância matéria e forma dos seres essência própria de um ser ou aquilo que um ser é necessária e universalmente Neste sentido a natureza de alguma coisa é o conjunto de qualidades propriedades e atributos que a definem é seu caráter ou sua índole inata espontânea Aqui Natureza se opõe às idéias de acidental o que pode ser ou deixar de ser e de adquirido por costume ou pela relação com as circunstâncias organização universal e necessária dos seres segundo uma ordem regida por leis naturais Neste sentido a Natureza se caracteriza pelo ordenamento dos seres pela regularidade dos fenômenos ou dos fatos pela freqüência constância e repetição de encadeamentos fixos entre as coisas isto é de relações de causalidade entre elas Em outros termos a Natureza é a ordem e a conexão universal e necessária entre as coisas expressas em leis naturais tudo o que existe no Universo sem a intervenção da vontade e da ação humanas Neste sentido Natureza opõese a artificial artefato artifício técnico e tecnológico Natural é tudo quanto se produz e se desenvolve sem qualquer interferência humana conjunto de tudo quanto existe e é percebido pelos humanos como o meio e o ambiente no qual vivem A Natureza aqui tanto significa o conjunto das condições físicas onde vivemos quanto aquelas coisas que contemplamos com emoção a paisagem o mar o céu as estrelas terremotos eclipses tufões erupções vulcânicas etc A Natureza é o mundo visível como meio ambiente e como aquilo que existe fora de nós mesmo que provoque idéias e sentimentos em nós para as ciências contemporâneas a Natureza não é apenas a realidade externa dada e observada percebida diretamente por nós mas é um objeto de conhecimento construído pelas operações científicas um campo objetivo produzido pela atividade do conhecimento com o auxílio de instrumentos tecnológicos Neste sentido a Natureza paradoxalmente tornase algo que passa a depender da interferência ou da intervenção humana pois o objeto natural é construído cientificamente Esse último sentido da idéia de Natureza indica uma diferença entre a concepção comum e a científica pois a primeira considera a Natureza nos cinco primeiros Convite à Filosofia 372 significados que apontamos enquanto a segunda considera a Natureza como uma noção ou um conceito produzido pelos próprios homens e nesse caso como artifício artefato construção humana Em outras palavras a própria idéia de Natureza tornouse um objeto cultural Mas afinal o que é a Cultura Dois são os significados iniciais da noção de Cultura 1 vinda do verbo latino colere que significa cultivar criar tomar conta e cuidar Cultura significava o cuidado do homem com a Natureza Donde agricultura Significava também cuidado dos homens com os deuses Donde culto Significava ainda o cuidado com a alma e o corpo das crianças com sua educação e formação Donde puericultura em latim puer significa menino puera menina A Cultura era o cultivo ou a educação do espírito das crianças para tornaremse membros excelentes ou virtuosos da sociedade pelo aperfeiçoamento e refinamento das qualidades naturais caráter índole temperamento 2 a partir do século XVIII Cultura passa a significar os resultados daquela formação ou educação dos seres humanos resultados expressos em obras feitos ações e instituições as artes as ciências a Filosofia os ofícios a religião e o Estado Tornase sinônimo de civilização pois os pensadores julgavam que os resultados da formaçãoeducação aparecem com maior clareza e nitidez na vida social e política ou na vida civil a palavra civil vem do latim cives cidadão civitas a cidadeEstado No primeiro sentido a Cultura é o aprimoramento da natureza humana pela educação em sentido amplo isto é como formação das crianças não só pela alfabetização mas também pela iniciação à vida da coletividade por meio do aprendizado da música dança ginástica gramática poesia retórica história Filosofia etc A pessoa culta era a pessoa moralmente virtuosa politicamente consciente e participante intelectualmente desenvolvida pelo conhecimento das ciências das artes e da Filosofia É este sentido que leva muitos ainda hoje a falar em cultos e incultos Podemos observar que neste primeiro sentido Cultura e Natureza não se opõem Os humanos são considerados seres naturais embora diferentes dos animais e das plantas Sua natureza porém não pode ser deixada por conta própria porque tenderá a ser agressiva destrutiva ignorante precisando por isso ser educada formada cultivada de acordo com os ideais de sua sociedade A Cultura é uma segunda natureza que a educação e os costumes acrescentam à primeira natureza isto é uma natureza adquirida que melhora aperfeiçoa e desenvolve a natureza inata de cada um No segundo sentido isto é naquele formulado a partir do século XVIII tem início a separação e posteriormente a oposição entre Natureza e Cultura Os Marilena Chauí 373 pensadores consideram sobretudo a partir de Kant que há entre o homem e a Natureza uma diferença essencial esta opera mecanicamente de acordo com leis necessárias de causa e efeito mas aquele é dotado de liberdade e razão agindo por escolha de acordo com valores e fins A Natureza é o reino da necessidade causal do determinismo cego A humanidade ou Cultura é o reino da finalidade livre das escolhas racionais dos valores da distinção entre bem e mal verdadeiro e falso justo e injusto sagrado e profano belo e feio À medida que este segundo sentido foi prevalecendo Cultura passou a significar em primeiro lugar as obras humanas que se exprimem numa civilização mas em segundo lugar passou a significar a relação que os humanos socialmente organizados estabelecem com o tempo e com o espaço com os outros humanos e com a Natureza relações que se transformam e variam Agora Cultura tornase sinônimo de História A Natureza é o reino da repetição a Cultura o da transformação racional portanto é a relação dos humanos com o tempo e no tempo Cultura e História Foi Hegel e depois dele Marx que enfatizaram a Cultura como História Para o primeiro o tempo é o modo como o Espírito Absoluto ou a razão se manifesta e se desenvolve através das obras e instituições religião artes ciências Filosofia instituições sociais instituições políticas A cada período de sua temporalidade o Espírito ou razão engendra uma Cultura determinada que exprime o estágio de desenvolvimento espiritual ou racional da humanidade China Índia Egito Israel Grécia Roma Inglaterra França Alemanha seriam fases da vida do Espírito ou da razão cada qual exprimindose com uma Cultura própria e ultrapassada pelas seguintes num progresso contínuo Para Marx há em Hegel um engano básico qual seja confundir a História Cultura com a manifestação do Espírito A HistóriaCultura é o modo como em condições determinadas e não escolhidas os homens produzem materialmente pelo trabalho pela organização econômica sua existência e dão sentido a essa produção material A HistóriaCultura não narra o movimento temporal do Espírito mas as lutas reais dos seres humanos reais que produzem e reproduzem suas condições materiais de existência isto é produzem e reproduzem as relações sociais pelas quais distinguemse da Natureza e diferenciamse uns dos outros em classes sociais antagônicas O movimento da HistóriaCultura é realizado pela luta das classes sociais para vencer formas de exploração econômica opressão social dominação política Despotismo asiático modo de produção antigo Grécia Roma modo de produção feudal Idade Média capitalismo comercial ou mercantil capitalismo industrial são as maneiras pelas quais surgem e se organizam as formações sociais internamente divididas por lutas cujo fim dependerá da capacidade de organização política e de consciência da última classe social explorada o Convite à Filosofia 374 proletariado produzido pelo capitalismo industrial para eliminar a desigualdade e injustiça históricas Cultura e antropologia Diferentemente de Hegel e Marx que tomam a Cultura pela perspectiva histórica ou pela relação dos humanos com o tempo a antropologia considera a Cultura por um outro prisma O antropólogo procura antes de tudo determinar em que momento e de que maneira os humanos se afirmam como diferentes da Natureza fazendo o mundo cultural surgir Tradicionalmente diziase que os humanos diferem da Natureza graças à linguagem e à ação por liberdade O antropólogo sem negar essa afirmação procura algo mais profundo do que isso como início das culturas Assim para muitos antropólogos a diferença homemNatureza surge quando os humanos decretam uma lei que não poderá ser transgredida sem levar o culpado à morte exigida pela comunidade a lei da proibição do incesto desconhecida pelos animais Para muitos antropólogos a diferença homemNatureza também é estabelecida quando os humanos definem uma lei que se transgredida causa a ruína da comunidade e do indivíduo a lei que separa o cru e o cozido desconhecida dos animais Não vamos aqui entrar nos detalhes das discussões antropológicas O importante para nós é perceber que os antropólogos buscam algo que demarque o momento da separação homemNatureza como instante de surgimento da Cultura Esse algo é uma regra ou norma humana que opera como lei universal isto é válida para todos os homens e para toda a comunidade A lei humana é um imperativo social que organiza toda a vida dos indivíduos e da comunidade determinando o modo como são criados os costumes como são transmitidos de geração em geração como fundam as instituições sociais religião família formas do trabalho guerra e paz distribuição das tarefas formas do poder etc A lei não é uma simples proibição para certas coisas e obrigação para outras mas é a afirmação de que os humanos são capazes de criar uma ordem de existência que não é simplesmente natural física biológica Esta ordem é a ordem simbólica Vimos que um símbolo é alguma coisa que se apresenta no lugar de outra e presentifica algo que está ausente Quando dizemos que a Cultura é a invenção de uma ordem simbólica estamos dizendo que nela e por ela os humanos atribuem à realidade significações novas por meio das quais são capazes de se relacionar com o ausente pela palavra pelo trabalho pela memória pela diferenciação do tempo passado presente futuro pela diferenciação do espaço próximo distante grande pequeno alto baixo pela diferenciação entre o visível e o invisível os deuses o passado o distante no espaço e pela atribuição de valores às coisas e aos homens bom mau justo injusto verdadeiro falso belo feio possível impossível necessário contingente Marilena Chauí 375 Comunicação por palavras gestos sinais escrita monumentos trabalho transformação da Natureza relação com o tempo e o espaço enquanto valores diferenciação entre sagrado e profano determinação de regras e normas para a realização do desejo percepção da morte e doação de sentido a ela percepção da diferença sexual e doação de sentido a ela interdições e punição das transgressões determinação da origem e da forma do poder legítimo e ilegítimo criação de formas expressivas para a relação com o outro com o sagrado e com o tempo dança música rituais guerra paz pintura escultura construção da habitação culinária tecelagem vestuário etc são as principais manifestações do surgimento da Cultura Em termos antropológicos podemos então definir a Cultura como tendo três sentidos principais 1 criação da ordem simbólica da lei isto é de sistemas de interdições e obrigações estabelecidos a partir da atribuição de valores a coisas boas más perigosas sagradas diabólicas a humanos e suas relações diferença sexual e proibição do incesto virgindade fertilidade puroimpuro virilidade diferença etária e forma de tratamento dos mais velhos e mais jovens diferença de autoridade e formas de relação com o poder etc e aos acontecimentos significado da guerra da peste da fome do nascimento e da morte obrigação de enterrar os mortos proibição de ver o parto etc 2 criação de uma ordem simbólica da linguagem do trabalho do espaço do tempo do sagrado e do profano do visível e do invisível Os símbolos surgem tanto para representar quanto para interpretar a realidade dandolhe sentido pela presença do humano no mundo 3 conjunto de práticas comportamentos ações e instituições pelas quais os humanos se relacionam entre si e com a Natureza e dela se distinguem agindo sobre ela ou através dela modificandoa Este conjunto funda a organização social sua transformação e sua transmissão de geração a geração Em sentido antropológico não falamos em Cultura no singular mas em culturas no plural pois a lei os valores as crenças as práticas e instituições variam de formação social para formação social Além disso uma mesma sociedade por ser temporal e histórica passa por transformações culturais amplas e sob esse aspecto antropologia e História se completam ainda que os ritmos temporais das várias sociedades não sejam os mesmos algumas mudando mais lentamente e outras mais rapidamente A esse sentido históricoantropológico amplo podemos acrescentar um outro restrito ligado ao antigo sentido de cultivo do espírito a Cultura como criação de obras da sensibilidade e da imaginação as obras de arte e como criação de obras da inteligência e da reflexão as obras de pensamento É esse segundo sentido que leva o senso comum a identificar Cultura e escola educação formal Convite à Filosofia 376 de um lado e de outro lado a identificar Cultura e belasartes música pintura escultura dança literatura teatro cinema etc Se porém reunirmos o sentido amplo e o sentido restrito compreenderemos que a Cultura é a maneira pela qual os humanos se humanizam por meio de práticas que criam a existência social econômica política religiosa intelectual e artística A religião a culinária o vestuário o mobiliário as formas de habitação os hábitos à mesa as cerimônias o modo de relacionarse com os mais velhos e os mais jovens com os animais e com a terra os utensílios as técnicas as instituições sociais como a família e políticas como o Estado os costumes diante da morte a guerra o trabalho as ciências a Filosofia as artes os jogos as festas os tribunais as relações amorosas as diferenças sexuais e étnicas tudo isso constitui a Cultura como invenção da relação com o Outro Quem é o Outro Antes de tudo é a Natureza A naturalidade é o Outro da humanidade A seguir os deuses maiores do que os humanos superiores e poderosos Depois os outros humanos os diferentes de nós mesmos os estrangeiros os antepassados e os descendentes os inimigos e os amigos os homens para as mulheres as mulheres para os homens os mais velhos para os jovens os mais jovens para os velhos etc Em sociedades como a nossa divididas em classes sociais o Outro é também a outra classe social diferente da nossa de modo que a divisão social coloca o Outro no interior da mesma sociedade e define relações de conflito exploração opressão luta Entre os inúmeros resultados da existência da alteridade o ser um Outro no interior da mesma sociedade encontramos a divisão entre cultura de elite e cultura popular cultura erudita e cultura de massa Estamos agora em condições de perceber por que as frases de nosso cotidiano sobre cultos e incultos indicam preconceitos e não conceitos Que preconceitos Aquele que ignora que em sentido antropológico e histórico todos os humanos são cultos pois são todos seres culturais Aquele que reduz a Cultura à escola e às belasartes sem se dar conta de que aquela e estas são efeito da vida cultural e um dos aspectos da Cultura mas não toda a Cultura Aquele que partindo da Cultura como cultivo do espírito obras de pensamento e obras de arte ignora que a separação entre cultos e incultos em sociedades divididas em classes sociais é resultado de uma organização social que confere a alguns o direito de produção e acesso às obras negandoo a outros de tal maneira que em lugar de um direito temse de um lado privilégio e de outro exclusão Em outras palavras usase a Cultura como instrumento de discriminação social econômica e política Marilena Chauí 377 Novamente a História Os estudiosos partindo da filosofia da história e da antropologia distinguem dois grandes tipos de cultura a das comunidades e a das sociedades Uma comunidade é um grupo ou uma coletivi dade onde as pessoas se conhecem tratamse pelo primeiro nome possuem contatos cotidianos cara a cara compartilham os mesmos sentimentos e idéias e possuem um destino comum Uma sociedade é uma coletividade internamente dividida em grupos e classes sociais e na qual há indivíduos isolados uns dos outros Seus membros não se conhecem pessoalmente nem intimamente Cada classe social é antagônica à outra ou às outras com valores e sentimentos diferentes e mesmo opostos As relações não são pessoais mas sociais isto é os indivíduos grupos e classes se relacionam pela mediação de instituições como a família a escola a fábrica o comércio os partidos políticos e o Estado Os agrupamentos indígenas por exemplo são comunidades portanto internamente unos e indivisos Em contrapartida nós vivemos em sociedade e não em comunidade O tempo nas comunidades possui um ritmo lento as transformações são raras e em geral causadas por um acontecimento externo que as afeta por exemplo a conquista e colonização branca imposta aos índios Por isso se diz que a comunidade está na História ou no tempo mas não é histórica Ao contrário a sociedade é histórica ou seja para ela as transformações são constantes e velozes causadas pelas lutas e pelas divisões internas Dizse então que uma sociedade é histórica quando para ela ter uma história e estar no tempo são um problema uma indagação que ela não cessa de responder Por quê Uma comunidade baseiase em mitos fundadores ou narrativas sobre sua origem e sobre o que nela aconteceu acontece e acontecerá Os mitos capturam o tempo e oferecem explicações satisfatórias para todos sobre o presente o passado e o futuro Numa sociedade porém cada classe social procura explicar a origem da sociedade e de suas mudanças e conseqüentemente há diferentes explicações para o surgimento a forma e a transformação sociais Os grupos dominantes narram a história da sociedade de modo diferente e oposto à narrativa dos grupos dominados A classe que domina e a que é dominada possuem portanto concepções diferentes e contrárias sobre as causas dos acontecimentos não havendo uma explicação única e idêntica para todos sobre a origem da sociedade e suas transformações Eis por que para uma sociedade ser histórica é um problema e não uma solução Em outras palavras enquanto o mito unifica o tempo comunitário as histórias sociais multiplicam as interpretações sobre as causas e os efeitos temporais Convite à Filosofia 378 Finalmente uma comunidade cria a mesma Cultura para todos os seus membros mas numa sociedade isso não é possível e as diferentes classes sociais produzem culturas diferentes e mesmo antagônicas Por esse motivo é que as sociedades conhecem um fenômeno inexistente nas comunidades a ideologia Esta é resultado da imposição da cultura dos dominantes à sociedade inteira como se todas as classes e todos os grupos sociais pudessem e devessem ter a mesma Cultura embora vivendo em condições sociais diferentes A ideologia é uma das maneiras pelas quais as sociedades históricas buscam oferecer a imagem de uma única Cultura e de uma única história ocultando a divisão social interna Marilena Chauí 379 Capítulo 2 A experiência do sagrado e a instituição da religião A Filosofia e as manifestações culturais A Filosofia se interessa por todas as manifestações culturais pois como escreveu o filósofo Montaigne nada do que é humano me é estranho Os principais campos filosóficos relativos às manifestações culturais são a filosofia das ciências que vimos na teoria do conhecimento da religião das artes da existência ética e da vida política Além disso a Filosofia ocupase também com a crítica das ideologias que se originam na vida política mas se estendem para todas as manifestações da Cultura O sagrado O sagrado é uma experiência da presença de uma potência ou de uma força sobrenatural que habita algum ser planta animal humano coisas ventos água fogo Essa potência é tanto um poder que pertence própria e definitivamente a um determinado ser quanto algo que ele pode possuir e perder não ter e adquirir O sagrado é a experiência simbólica da diferença entre os seres da superioridade de alguns sobre outros do poderio de alguns sobre outros superioridade e poder sentidos como espantosos misteriosos desejados e temidos A sacralidade introduz uma ruptura entre natural e sobrenatural mesmo que os seres sagrados sejam naturais como a água o fogo o vulcão é sobrenatural a força ou potência para realizar aquilo que os humanos julgam impossível efetuar contando apenas com as forças e capacidades humanas Assim por exemplo em quase todas as culturas um guerreiro cuja força destreza e invencibilidade são espantosas é considerado habitado por uma potência sagrada Um animal feroz astuto veloz e invencível também é assim considerado Por sua forma e ação misteriosas benévolas e malévolas o fogo é um dos principais entes sagrados Em regiões desérticas a sacralização concentrase nas águas raras e necessárias O sagrado opera o encantamento do mundo habitado por forças maravilhosas e poderes admiráveis que agem magicamente Criam vínculos de simpatiaatração e de antipatiarepulsão entre todos os seres agem à distância enlaçam entes diferentes com laços secretos e eficazes Todas as culturas possuem vocábulos para exprimir o sagrado como força sobrenatural que habita o mundo Assim nas culturas da Polinésia e da Convite à Filosofia 380 Melanésia a palavra que designa o sagrado é mana e suas variantes Nas culturas das tribos norteamericanas falase em orenda e suas variantes referindose ao poder mágico possuído por todas as coisas dandolhes vida vontade e ação força que se pode roubar de outras coisas para si que se pode perder quando roubada por outros seres que se pode impor a outros mais fracos Entre as culturas dos índios sulamericanos o sagrado é designado por palavras como tunpa e aigres Nas africanas há centenas de termos dependendo da língua e da relação mantida com o sobrenatural mas o termo fundamental embora com variantes de pronúncia é ntu força universal em que coincidem aquilo que é e aquilo que existe Na cultura hebraica dois termos designavam o sagrado qados e herem significando aqueles seres ou coisas que são separados por Deus para seu culto serviço sacrifício punição não podendo ser tocados pelo homem Assim a Arca da Aliança onde estavam guardados os textos sagrados era qados e portanto intocável Também os prisioneiros de uma guerra santa pertenciam a Deus sendo declarados herem Na cultura grega agnos puro e agios intocável e na romana sacer dedicado à divindade e sanctus inviolável constituem a esfera do sagrado Sagrado é pois a qualidade excepcional boa ou má benéfica ou maléfica protetora ou ameaçadora que um ser possui e que o separa e distingue de todos os outros embora em muitas culturas todos os seres possuam algo sagrado pelo que se diferenciam uns dos outros O sagrado pode suscitar devoção e amor repulsa e ódio Esses sentimentos suscitam um outro o respeito feito de temor Nasce aqui o sentimento religioso e a experiência da religião A religião pressupõe que além do sentimento da diferença entre natural e sobrenatural haja o sentimento da separação entre os humanos e o sagrado mesmo que este habite os humanos e a Natureza A religião A palavra religião vem do latim religio formada pelo prefixo re outra vez de novo e o verbo ligare ligar unir vincular A religião é um vínculo Quais as partes vinculadas O mundo profano e o mundo sagrado isto é a Natureza água fogo ar animais plantas astros metais terra humanos e as divindades que habitam a Natureza ou um lugar separado da Natureza Nas várias culturas essa ligação é simbolizada no momento de fundação de uma aldeia vila ou cidade o guia religioso traça figuras no chão círculo quadrado triângulo e repete o mesmo gesto no ar na direção do céu ou do mar ou da floresta ou do deserto Esses dois gestos delimitam um espaço novo sagrado no ar e consagrado no solo Nesse novo espaço erguese o santuário em latim templum templo e à sua volta os edifícios da nova comunidade Marilena Chauí 381 Essa mesma cerimônia da ligação fundadora aparece na religião judaica quando Jeová indica ao povo o lugar onde deve habitar a Terra Prometida e o espaço onde o templo deverá ser edificado para nele ser colocada a Arca da Aliança símbolo do vínculo que une o povo e seu Deus recordando a primeira ligação o arcoíris anunciado por Deus a Noé como prova de seu laço com ele e sua descendência Também no cristianismo a religio é explicitada por um gesto de união No Novo Testamento Jesus disse a Pedro Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela Eu te darei as Chaves do Reino o que ligares na Terra será ligado no Céu o que desligares na Terra será desligado no Céu Através da sacralização e consagração a religião cria a idéia de espaço sagrado Os céus o monte Olimpo na Grécia as montanhas do deserto em Israel templos e igrejas são santuários ou moradas dos deuses O espaço da vida comum separase do espaço sagrado neste vivem os deuses são feitas as cerimônias de culto são trazidas oferendas e feitas preces com pedidos às divindades colheita paz vitória na guerra bom parto fim de uma peste no primeiro transcorre a vida profana dos humanos A religião organiza o espaço e lhe dá qualidades culturais diversas das simples qualidades naturais A religião como narrativa da origem A religião não transmuta apenas o espaço Também qualifica o tempo dandolhe a marca do sagrado O tempo sagrado é uma narrativa Narra a origem dos deuses e pela ação das divindades a origem das coisas das plantas dos animais e dos seres humanos Por isso a narrativa religiosa sempre começa com alguma expressão do tipo no princípio no começo quando o deus x estava na Terra quando a deusa y viu pela primeira vez etc A narrativa sagrada é a história sagrada que os gregos chamavam de mito Este não é uma fabulação ilusória uma fantasia sem consciência mas a maneira pela qual uma sociedade narra para si mesma seu começo e o de toda a realidade inclusive o começo ou nascimento dos próprios deuses Só tardiamente quando surgiu a Filosofia e depois dela a teologia a razão exigirá que os deuses não sejam apenas imortais mas também eternos sem começo e sem fim Antes porém da Filosofia e da teologia a religião narrava teogonias do grego theos deus gonia geração isto é a geração ou o nascimento dos deuses semideuses e heróis O contraste entre dia e noite luz e treva entre as estações do ano frio quente ameno com flores com frutos com chuvas com secas entre o nascimento e a desaparição vida e morte entre tipos de animais terrestres aquáticos voadores ferozes e dóceis entre tipos de humanos brancos negros Convite à Filosofia 382 amarelos vermelhos altos baixos peludos glabros as técnicas obtidas pelo controle sobre alguma força natural fogo água ventos pedras areia ervas evidenciam um mundo ordenado e regular no qual os humanos nascem vivem e morrem A história sagrada ou mito narra como e por que a ordem do mundo existe e como e por que foi doada aos humanos pelos deuses Assim além de ser uma teogonia a história sagrada é uma cosmogonia do grego cosmos mundo gonia geração narra o nascimento a finalidade e o perecimento de todos os seres sob a ação dos deuses Assim como há dois espaços há dois tempos o anterior à criação ou gênese dos deuses e das coisas tempo do vazio e do caos e o tempo originário da gênese de tudo quanto existe tempo do pleno e da ordem Nesse tempo sagrado da ordem novamente uma divisão o tempo primitivo inteiramente divino quando tudo foi criado e o tempo do agora profano em que vivem os seres naturais incluindo os homens Embora a narrativa sagrada seja uma explicação para a ordem natural e humana ela não se dirige ao intelecto dos crentes não é Filosofia nem ciência mas se endereça ao coração deles Desperta emoções e sentimentos admiração espanto medo esperança amor ódio Porque se dirige às paixões do crente a religião lhe pede uma só coisa fé ou seja a confiança adesão plena ao que lhe é manifestado como ação da divindade A atitude fundamental da fé é a piedade respeito pelos deuses e pelos antepassados A religião é crença não é saber A tentativa para transformar a religião em saber racional chamase teologia Ritos Porque a religião liga humanos e divindade porque organiza o espaço e o tempo os seres humanos precisam garantir que a ligação e a organização se mantenham e sejam sempre propícias Para isso são criados os ritos O rito é uma cerimônia em que gestos determinados palavras determinadas objetos determinados pessoas determinadas e emoções determinadas adquirem o poder misterioso de presentificar o laço entre os humanos e a divindade Para agradecer dons e benefícios para suplicar novos dons e benefícios para lembrar a bondade dos deuses ou para exorcizar sua cólera caso os humanos tenham transgredido as leis sagradas as cerimônias ritualísticas são de grande variedade No entanto uma vez fixada a simbologia de um ritual sua eficácia dependerá da repetição minuciosa e perfeita do rito tal como foi praticado na primeira vez porque nela os próprios deuses orientaram gestos e palavras dos humanos Um rito religioso é repetitivo em dois sentidos principais a cerimônia deve repetir um acontecimento essencial da história sagrada por exemplo no cristianismo a eucaristia ou a comunhão que repete a Santa Ceia e em segundo lugar atos gestos palavras objetos devem ser sempre os mesmos porque foram na Marilena Chauí 383 primeira vez consagrados pelo próprio deus O rito é a rememoração perene do que aconteceu numa primeira vez e que volta a acontecer graças ao ritual que abole a distância entre o passado e o presente Os objetos simbólicos A religião não sacraliza apenas o espaço e o tempo mas também seres e objetos do mundo que se tornam símbolos de algum fato religioso Os seres e objetos simbólicos são retirados de seu lugar costumeiro assumindo um sentido novo para toda a comunidade protetor perseguidor benfeitor ameaçador Sobre esse ser ou objeto recai a noção de tabu palavra polinésia que significa intocável é um interdito ou seja não pode ser tocado nem manipulado por ninguém que não esteja religiosamente autorizado para isso É assim por exemplo que certos animais se tornam sagrados ou tabus como a vaca na Índia o cordeiro perfeito consagrado para o sacrifício da páscoa judaica o tucano para a nação tucana do Brasil É assim por exemplo que certos objetos se tornam sagrados ou tabus como o pão e o vinho consagrados pelo padre cristão durante o ritual da missa Do mesmo modo em inúmeras religiões as virgens primogênitas das principais famílias se tornam tabus como as vestais na Roma antiga Também objetos se tornam símbolos sagrados intocáveis como os pergaminhos judaicos contendo os textos sagrados antigos certas pedras usadas pelos chefes religiosos africanos etc Os tabus se referem ou a objetos e seres puros ou purificados para os deuses ou a objetos e seres impuros que devem permanecer afastados dos deuses e dos humanos É assim que em inúmeras culturas a mulher menstruada é tabu está impura e no judaísmo e no islamismo a carne de porco é tabu é impura A religião tende a ampliar o campo simbólico mesmo que não transforme todos os seres e objetos em tabus ou intocáveis Ela o faz vinculando seres e qualidades à personalidade de um deus Assim por exemplo em muitas religiões como as africanas cada divindade é protetora de um astro uma cor um animal uma pedra e um metal preciosos um objeto santo A figuração do sagrado se faz por emblemas assim por exemplo o emblema da deusa Fortuna era uma roda uma vela enfunada e uma cornucópia o da deusa Atena o capacete e a espada o de Hermes a serpente e as botas aladas o de Oxossi as sete flechas espalhadas pelo corpo o de Iemanjá o vestido branco as águas do mar e os cabelos ao vento o de Jesus a cruz a coroa de espinhos o corpo glorioso em ascensão Manifestação e revelação Há religiões em que os deuses se manifestam surgem diante dos homens em beleza esplendor perfeição e poder e os levam a ver uma outra realidade escondida sob a realidade cotidiana na qual o espaço o tempo as formas dos seres os sons e as cores os elementos encontramse organizados e dispostos de Convite à Filosofia 384 uma outra maneira secreta e verdadeira A divindade levando um humano ao seu mundo desvendalhe a verdade e o ilumina com sua luz Era isso como vimos o que significava a palavra grega aletheia a verdade como manifestação ou iluminação A iluminação pode ser terrível porque é dado a um humano ver o que os olhos humanos não conseguem ver ouvir o que os ouvidos humanos não podem ouvir conhecer o que a inteligência humana não tem forças para conhecer As religiões indígenas e a grega são desse tipo Há religiões em que o deus revela verdades aos humanos sem fazêlos sair de seu mundo Podem ter sonhos e visões mas o fundamento é ouvir o que a divindade lhes diz porque dela provém o sentido primeiro e último de todas coisas e do destino humano O que se revela não é a verdade do mundo através da viagem visionária a um outro mundo o que se revela é a vontade do deus na qual o crente confia e cujos desígnios ele cumpre Era isso o que significava como vimos a palavra hebraica emunah assim seja Judaísmo cristianismo e islamismo são religiões da revelação Nas duas modalidades de religião porém a manifestação da verdade e a revelação da vontade exprimem o mesmo acontecimento aos humanos é dado conhecer seu destino e o de todas as coisas isto é as leis divinas A lei divina Os deuses são poderes misteriosos São forças personificadas e por isso são vontades Misteriosos porque suas decisões são imprevisíveis e muitas vezes incompreensíveis para os critérios humanos de avaliação Vontades porque o que acontece no mundo manifesta um querer pessoal supremo e inquestionável A religião ao estabelecer o laço entre o humano e o divino procura um caminho pelo qual a vontade dos deuses seja benéfica e propícia aos seus adoradores A vontade divina pode tornarse parcialmente conhecida dos humanos sob a forma de leis isto é decretos mandamentos ordenamentos comandos emanados da divindade Assim como a ordem do mundo decorre dos decretos divinos isto é da lei ordenadora à qual nenhum ser escapa também o mundo humano está submetido a mandamentos divinos dos quais os mais conhecidos na cultura ocidental são os Dez Mandamentos dados por Jeová a Moisés Também são de origem divina as Doze Tábuas da Lei que fundaram a república romana como eram de origem divina as leis gregas explicitadas na Ilíada e na Odisséia de Homero bem como nas tragédias O modo como a vontade divina se manifesta em leis permite distinguir dois grandes tipos de religião Há religiões em que a divindade usa intermediários para revelar a lei É o caso da religião judaica em que Jeová se vale por exemplo de Noé Moisés Samuel para dar a conhecer a lei Também nessa religião a divindade não cessa de lembrar ao povo as leis sobretudo quando estão sendo transgredidas Essa rememoração da lei e das promessas de castigo e Marilena Chauí 385 redenção nelas contidas é a tarefa do profeta arauto de Deus Também na religião grega os deuses se valem de intermediários para manifestar sua vontade Esta por ser misteriosa e incompreensível exige um tipo especial de intermediário o vidente que interpreta os enigmas divinos vê o passado e o futuro e os expõe aos homens Há religiões porém em que os deuses manifestam sua lei diretamente sem recorrer a intermediários isto é sem precisar de intérpretes São religiões da iluminação individual e do êxtase místico como é o caso da maioria das religiões orientais que exigem para a iluminação e o êxtase uma educação especial do intelecto e da vontade dos adeptos Freqüentemente profetas e videntes entram em transe para receber a revelação mas a recebem não porque tenham sido educados para isso e sim porque a divindade os escolheu para manifestarse O transe dos profetas e dos adivinhos difere do êxtase místico dos iluminados porque nos primeiros o indivíduo tem acesso a um conhecimento que pode compreender mesmo com grande dificuldade e por isso pode transmitilo aos outros enquanto nos segundos não há conhecimento não há atividade intelectual que depois seja transmissível a outros mas há mergulho e fusão do indivíduo na divindade numa experiência intraduzível e intransmissível As religiões reveladas diferentes portanto das religiões extáticas realizam a revelação de duas maneiras numa delas como é o caso da judaica e da cristã aquele que recebe a revelação deve escrevêla para que integre os textos da história sagrada e seja transmissível na outra como é o caso da grega da romana das africanas das indígenas o vi dente é levado perante os deuses e vê a totalidade do tempo e dos acontecimentos devendo após a visão dizêla para integrála à memória religiosa oral Nos dois casos porém para que fique indiscutível a origem divina da revelação a exposição escrita ou oral só pode ser feita por parábolas metáforas imagens e histórias cujo sentido precisará ser decifrado pelos leitores ou ouvintes Deus profetas e videntes falam por meio de enigmas Dessa maneira o caráter transcendente e misterioso da lei divina é preservado A vida após a morte Toda religião explica não só a origem da ordem do mundo natural mas também do mundo humano No caso dos humanos a religião precisa explicar por que são mortais O mistério da morte é sempre explicado como expiação de uma culpa original cometida contra os deuses No princípio os homens eram imortais e viviam na companhia dos deuses a seguir uma transgressão imperdoável tem lugar e com ela a grande punição a mortalidade No entanto a imortalidade não está totalmente perdida Algumas religiões afirmam que o corpo humano possui um duplo feito de outra matéria que permanecerá após a morte usando outros seres para relacionarse com os vivos Convite à Filosofia 386 Certas religiões acreditam que o corpo é habitado por uma entidade espírito alma sombra imaterial sopro que será imortal se os decretos divinos e os rituais tiverem sido respeitados pelo fiel Por acreditarem firmemente numa outra vida que pode ser imediata após a morte do corpo ou pode exigir reencarnações purificadoras até alçarse à imortalidade as religiões possuem ritos funerários encarregados de preparar e garantir a entrada do morto na outra vida Em algumas religiões como na egípcia e na grega a perfeita preservação do corpo morto isto é de sua imagem era essencial para que fosse reconhecido pelos deuses no reino dos mortos e recebesse a imortalidade Por isso além dos ritos funerários os cemitérios na maioria das religiões e particularmente nas africanas indígenas e antigas ocidentais eram lugares sagrados campos santos nos quais somente alguns e sob certas condições podiam penetrar Nas religiões do encantamento como a grega as africanas e as indígenas a morte é concebida de diversas maneiras mas em todas elas o morto fica encantado isto é tornase algo mágico Numa delas o morto deixa seu corpo para entrar num outro e permanecer no mundo sob formas variadas ou deixa seu corpo e seu espírito permanecer no mundo agitando os ventos as águas o fogo ensinando canto aos pássaros protegendo as crianças ensinando os mais velhos escondendo e achando coisas Na outra o morto tem sua imagem ou seu espírito levado ao mundo divino ali desfrutando das delícias de uma vida perenemente perfeita e bela se porém suas faltas terrenas forem tantas e tais que não pôde ser perdoado sua imagem ou espírito vagará eternamente pelas trevas sem repouso e sem descanso O mesmo lhe acontecerá se os rituais fúnebres não puderem ser realizados ou se tiverem sido realizados com falhas Esse perambular pelas trevas não existe nas religiões de reencarnação porque em lugar dessa punição o espírito deverá ter tantas vidas e sob tantas formas quantas necessárias à sua purificação até que possa participar da felicidade perene Nas religiões da salvação como é o caso do judaísmo do cristianismo e do islamismo a felicidade perene não é apenas individual mas também coletiva São religiões em que a divindade promete perdoar a falta originária enviando um salvador que sacrificandose pelos humanos garantelhes a imortalidade e a reconciliação com Deus Como a falta ou queda originária atingiu a todos os humanos o perdão divino e a redenção decorrem de uma decisão divina que deverá atingir a todos os humanos se acreditarem e respeitarem a lei divina escrita nos textos sagrados e se guardarem a esperança na promessa de salvação que lhes foi feita por Deus Nesse tipo de religião a obra de salvação é realizada por um enviado de Deus messias em hebraico cristo em grego As religiões da salvação são messiânicas e coletivas Um povo povo de Deus será salvo pela lei e pelo enviado divino Marilena Chauí 387 Milenarismo O milenarismo é próprio das religiões da salvação É a esperança da felicidade perene no mundo quando após sofrimentos profundos os seres forem regenerados purificados e libertados pela divindade O termo milenarismo provém de uma crença popular cristã embora não seja exclusivo da religião cristã Baseados em profecias dos profetas Daniel e Isaías no Apocalipse de são João e nas predições de magos e sibilas grupos populares cristãos durante a Idade Média esperavam que Cristo voltasse pela segunda vez combatesse os males a peste a fome a guerra e a morte vencesse o demônio encarnado num governante perverso o AntiCristo e instituísse o reino de Deus na Terra com a duração de mil anos de abundância justiça e felicidade Ao fim de mil anos haveria a ressurreição dos mortos o Juízo Final e o fim do mundo terreno Outras religiões e outros grupos culturais humanos possuem religiões milenaristas isto é a esperança de um fim dos tempos quando a dor a miséria a injustiça e a maldade terminarão e a plena felicidade existirá para todos É assim que os índios guaranis do Paraguai e do Brasil acreditam na Terra sem Males que surgirá além dos mares depois que a Terra cansada e infeliz for atravessada por eles e o deus benévolo e clemente lhes der a terra nova onde as flechas voarão sozinhas para trazer a caça e a pesca os frutos encherão as cestas não haverá frio nem chuva nem guerra nem morte O milenarismo em outra forma está presente numa concepção religiosa católica do século XX a Teologia da Libertação desenvolvida nos anos 70 na América Latina e que propunha o retorno da Igreja à pureza igualitária livre e justa dos primeiros cristãos criando o reino de Deus na Terra conforme prometido por Jesus Todas as religiões são experiências de fé mas as religiões da salvação messiânicas são religiões da fé e da esperança O milenarismo exprime no grau mais alto a esperança religiosa das religiões da salvação No caso do milenarismo cristão a esperança voltase para a existência futura de uma sociedade não hierarquizada igualitária e justa por esse motivo foi considerado pela ortodoxia cristã uma heresia isto é um pecado contra a fé estabelecida pela doutrina cristã segundo a qual o reino de Deus já existe na Terra desde a ressurreição de Cristo é a Igreja A esperança milenarista é própria das classes populares em sociedades onde prevalecem a desigualdade a injustiça a exclusão e a miséria O bem e o mal As religiões ordenam a realidade segundo dois princípios fundamentais o bem e o mal ou a luz e a treva o puro e o impuro Convite à Filosofia 388 Sob esse aspecto há três tipos de religiões as politeístas em que há inúmeros deuses alguns bons outros maus ou até mesmo cada deus podendo ser ora bom ora mau as dualistas nas quais a dualidade do bem e do mal está encarnada e figurada em duas divindades antagônicas que não cessam de combaterse e as monoteístas em que o mesmo deus é tanto bom quanto mau ou como no caso do judaísmo do cristianismo e do islamismo a divindade é o bem e o mal provém de entidades demoníacas inferiores à divindade e em luta contra ela No caso do politeísmo e do dualismo a divisão bemmal não é problemática assim como não o é nas religiões monoteístas que não exigem da divindade comportamentos sempre bons uniformes e homogêneos pois a ação do deus é insondável e incompreensível O problema porém existe no monoteísmo judaicocristão e islâmico Com efeito a divindade judaicocristã e islâmica é definida teologicamente como um ser positivo ou afirmativo Deus é bom justo misericordioso clemente criador único de todas as coisas onipotente e onisciente mas sobretudo eterno e infinito Deus é o ser perfeito por excelência é o próprio bem e este é eterno como Ele Se o bem é eterno e infinito como surgiu sua negação o mal Que positividade poderia ter o mal se no princípio havia somente Deus eterna e infinitamente bom Admitir um princípio eterno e infinito para o mal seria admitir dois deuses incorrendo no primeiro e mais grave dos pecados pois tanto os Dez Mandamentos quanto o Credo cristão afirmam haver um só e único Deus Além disso Deus criou todas as coisas do nada tudo o que existe é portanto obra de Deus Se o mal existe seria obra de Deus Porém Deus sendo o próprio bem poderia criar o mal Como o perfeito criaria o imperfeito Qual é pois a origem do mal A criatura Deus criou inteligências imateriais perfeitas os anjos Dentre eles surgem alguns que aspiram a ter o mesmo poder e o mesmo saber que a divindade lutando contra ela Menos poderosos e menos sábios são vencidos e expulsos da presença divina Não reconhecem porém a derrota Formam um reino separado de caos e trevas prosseguem na luta contra o Criador Que vitória maior teriam senão corromper a mais alta das criaturas após os anjos isto é o homem Valendose da liberdade dada ao homem os anjos do mal corrompem a criatura humana e com esta o mal entra no mundo O mal é o pecado isto é a transgressão da lei divina que o primeiro homem e a primeira mulher praticaram Sua punição foi o surgimento dos outros males morte doença dor fome sede frio tristeza ódio ambição luxúria gula preguiça avareza Pelo mal a criatura afastase de Deus perde a presença divina e a bondade original que possuía O mal portanto não é uma força positiva de mesma realidade que o bem mas é pura ausência do bem pura privação do bem negatividade fraqueza Assim como a treva não é algo positivo mas simples ausência da luz assim também o Marilena Chauí 389 mal é pura ausência do bem Há um só Deus e o mal é estar longe e privado dele pois Ele é o bem e o único bem A falta Há religiões da exterioridade e da interioridade Nas primeiras a falta ou pecado é uma ação externa visível cometida voluntária ou involuntariamente contra a divindade A falta é irreverência sentida sob a forma de vergonha trazendo como conseqüência uma impureza que contamina o faltoso e o grupo exigindo rituais de purificação Nas religiões da interioridade como é o caso do cristianismo a falta ou pecado é uma ação interna invisível mesmo que resulte num ato externo visível causada por uma vontade má nesse caso a falta é um crime ou por um entendimento equivocado nesse caso a falta é um erro É uma transgressão experimentada na forma de culpa exigindo expiação Nas religiões da exterioridade o perdão depende exclusivamente de uma graça isto é a divindade pode ou não perdoar independentemente dos rituais de purificação realizados pelo indivíduo ou pelo grupo Nas religiões da interioridade o perdão que virá na forma de graça exige uma experiência interior precisa o arrependimento Nas religiões da exterioridade como a grega a romana as africanas e indígenas a falta é causada por uma fatalidade O fatum destino em latim fado em português ou a moira destino fatal em grego determinou desde sempre que ela seria cometida por alguém para desgraça sua e de seu grupo A falta não depende da vontade do agente mas de uma decisão divina É assim por exemplo que Édipo cumprirá seu destino Nas religiões da interioridade como é o caso do judaísmo e do cristianismo a falta nasce da liberdade do agente que conhecendo o bem e o mal a lei divina transgride consciente e voluntariamente o decreto de Deus Sem dúvida para o cristianismo a falta é um problema teológico insolúvel pois o Deus cristão é onipotente e onisciente sabendo tudo desde a eternidade e portanto conhecendo previamente o pecador Se pune o pecado mas sabia que seria cometido não seria injusto por não impedir que seja cometido Se conhece eternamente quem pecará não será Deus como o fatum e a moira E como falar na liberdade e no livrearbítrio do pecador se desde a eternidade Deus sabia que ele cometeria o pecado Imanência e transcendência Quando estudamos o sagrado vimos que em inúmeras culturas os seres e objetos sacros habitam o nosso mundo são imanentes a ele As primeiras experiências religiosas são por isso panteístas theos em grego significa deus pan em grego significa todos tudo ou seja nelas tudo são deuses e estes estão em toda a parte espalhados pela Natureza Os seres tomam parte na divindade Convite à Filosofia 390 motivo pelo qual possuem mana orenda e tunpa O ntu africano exprime a concepção da imanência panteísta Ao contrário das religiões panteístas ou da imanência dos deuses no mundo as religiões teístas são transcendentes isto é os deuses estão separados do mundo natural e humano vivem noutro mundo e agem sobre o nosso É assim por exemplo que os deuses gregos embora tenham forma humana vivem no monte Olimpo e Jeová que possui atributos humanos como a voz vive no monte Sinai Eis por que nas religiões da transcendência falase na visitação dos deuses para referirse aos momentos em que nos rituais comunicamse com os seres humanos Nas várias religiões da transcendência a visitação divina não é problemática porque os deuses possuem formas materiais animais como na religião egípcia humanas como nas religiões grega e romana A visitação é um problema na religião cristã porque o Deus cristão é duas vezes misterioso e totalmente diferente das formas existentes no mundo em primeiro lugar é constituído por três pessoas que são uma só em segundo lugar é eterno incorpóreo infinito pleno e perfeito Donde o caráter totalmente incompreensível e terrível da encarnação de Jesus Cristo pois como explicar que uma das pessoas da Trindade se separe das outras para vir habitar entre os homens e que um ente eterno imaterial e infinito tome a forma material mortal finita carente e imperfeita do humano Para superar as dificuldades o cristianismo fala na visitação de Deus através dos anjos e santos e na inspiração do Espírito Santo enviado pelo Pai Transcendência e hierarquia Vimos que pela lei divina é instituída a ordem do mundo natural e humano Vimos também que o conhecimento dessa lei tende a tornarse um conhecimento especial seja porque somente alguns são escolhidos para conhecêla seja porque o texto da lei é incompreensível e exige pessoas capazes de fazer a interpretação profetas e videntes seja ainda porque a própria interpretação é obscura e exige novos intérpretes Constatamos que o conhecimento da lei e da vontade divinas são essenciais para a narrativa da história sagrada e para a realização correta e eficaz dos ritos Como conseqüência as religiões tendem a instituir um grupo de indivíduos separados do restante da comunidade encarregados de transmitir a história sagrada interpretar a lei e os sinais divinos realizar os ritos e marcar o espaçotempo sagrados Magos astrólogos videntes profetas xamãs sacerdotes e pajés possuem saberes e poderes especiais São capazes de curar de prever o futuro de aplacar a cólera dos deuses de anunciar a vontade divina de destruir a distância por meio de palavras e gestos Inicialmente sua função é trazer o sagrado para o grupo e aí Marilena Chauí 391 conserválo Pouco a pouco porém formam um grupo separado uma classe social com exigências e poderes próprios privam a comunidade da presença direta do sagrado e distorcem a função originária que possuíam transformandoa em domínio e poder sobre a comunidade Tornamse os portadores simbólicos do sagrado e mediadores indispensáveis A religião como já observamos realiza o encantamento do mundo explicandoo pelo maravilhoso e misterioso O grupo que detém o saber misterioso ao tornar se detentor do poder possui o poder mais alto o de encantar desencantar e reencantar o mundo Por isso num primeiro momento o poder religioso concentrase nas mãos de um só que possui também a autoridade militar e o domínio econômico sobre toda a comunidade À medida que as relações sociais se tornam mais complexas com divisões sociais do trabalho e da propriedade o poder passa por uma divisão um grupo detém a autoridade religiosa e outro a militar e econômica Porém todo o saber da comunidade história sagrada interpretação da lei divina rituais encontra se nas mãos da autoridade religiosa que passa dessa maneira a ser o braço intelectual e jurídico indispensável da autoridade econômica e militar Nas religiões da transcendência três são as conseqüências principais desse desenvolvimento histórico 1 a formação de uma autoridade que detém o privilégio do saber porque conhece a vontade divina e suas leis Com ela surge a instituição sacerdotal e eclesiástica Não por acaso Cícero dirá que a palavra religião vem do verbo legere ler Os sacerdotes são intelectuais O grupo sacerdotal detém vários saberes o da história sagrada o dos rituais o das leis divinas pelas quais é imposta a moralidade ao grupo Como esses saberes se referem ao divino constituem a teologia Os sacerdotes ou uma parte deles são teólogos Tais saberes lhes dão os seguintes poderes mágico são os únicos que conhecem e sabem manipular os vínculos secretos entre as coisas divinatório são os únicos capazes de prever os acontecimentos pela interpretação dos astros de sinais e das entranhas dos animais propiciatório são os únicos capazes de realizar os ritos de maneira correta e adequada para obtenção dos favores divinos punitivo são os únicos que conhecem as leis divinas e podem punir os transgressores ou infiéis 2 a formulação de uma doutrina religiosa baseada na idéia de hierarquia isto é de uma realidade organizada sob a forma de graus superiores e inferiores onde se situam todos os seres por vontade divina Os entes se distinguem por sua proximidade ou distância dos deuses segundo o lugar hierárquico fixo e imutável que lhes foi destinado Convite à Filosofia 392 Assim por exemplo certas religiões podem considerar certos animais mais próximos dos deuses sendo por isso mais poderosos mais sábios e melhores do que todos os outros entes Algumas podem considerar as entidades imateriais superiores e as materiais ou corporais inferiores Outras podem considerar os humanos o grau mais alto da hierarquia todos os outros seres estando subordinados a eles e devendolhes obediência Nas religiões politeístas a hierarquia começa pelos próprios deuses havendo deuses superiores e inferiores Nas religiões monoteístas a hierarquia coloca a divindade no topo de uma escala e os demais seres são ordenados segundo sua maior ou menor semelhança com ela Assim por exemplo no cristianismo há uma hierarquia celeste anjos arcanjos querubins serafins tronos potestades e os santos e uma hierarquia terrestre homens animais plantas minerais estando abaixo dela os demônios e as trevas A noção de hierarquia introduz as noções de superior e inferior definindo a relação entre ambos pelo mando e a obediência Dessa maneira a religião organiza o mundo e com isso a sociedade Evidentemente os que se ocupam com as coisas sagradas estão no topo da hierarquia humana e todos os outros lhes devem obediência 3 o privilégio do uso da violência sagrada para punir os faltosos ou pecadores Inicialmente exigiase que todos os membros da comunidade fossem piedosos isto é respeitassem deuses tabus rituais e a memória dos antepassados Com o surgimento da classe sacerdotal passase a exigir que esses membros da comunidade os sacerdotes sejam castos isto é possuam integridade corporal e espiritual para oficiar os ritos e interpretar as leis Na qualidade de castos são os mais puros e por isso investidos após educação e iniciação do poder de purificação Detêm o poder judiciário Nas religiões da interioridade como é o caso do cristianismo o privilégio judiciário e da violência sagrada é exercido não só sobre o corpo e o comportamento dos fiéis mas sobretudo sobre as almas Como isso é possível No caso do catolicismo por exemplo isso é feito por meio de dois procedimentos principais Em primeiro lugar por meio da confissão das faltas ou dos pecados feita perante o sacerdote que tem o poder para perdoar ou absolver mediante o arrependimento do pecador e das penitências que lhe são impostas Há um código éticoreligioso que determina quais são os pecados pecados mortais pecados veniais pecados capitais quais os modos de pecar por ato palavras e intenções qual o dano causado ao pecador e quais as penitências que deve cumprir O pecador faz um exame de consciência confessa ao sacerdote tornando visível por palavras os segredos de sua alma e entregase à misericórdia de Deus representado pelo sacerdote que pune e perdoa O segundo procedimento é o exame sacerdotal das idéias e das opiniões dos fiéis Marilena Chauí 393 De fato o saber religioso cristão está consignado num texto a Escritura Sagrada e num conjunto de textos interpretativos do primeiro a teologia racional formando a doutrina cristã Parte dessa doutrina é constituída por verdades reveladas compreensíveis para a razão humana parte é constituída por verdades reveladas incompreensíveis para a inteligência humana Essas últimas verdades constituem os dogmas da fé e não podem ser questionadas Questionálas ou proporlhes um conteúdo ou significado diferentes do estabelecido pela doutrina é considerado pecado mortal Isso significa que a transgressão religiosa pode ocorrer através do pensamento ou das idéias É a heresia palavra grega que significa opinião discordante A instituição sacerdotal tem o poder para punir heresias e o faz por três caminhos a excomunhão o fiel é banido da comunidade dos crentes e prometido à punição eterna a obtenção da confissão de arrependimento do herege em geral obtida por meio de tortura ou a condenação à morte Assim o sagrado dá origem à religião enquanto a sociedade faz aparecer o poder teológico da autoridade religiosa As finalidades da religião A invenção cultural do sagrado se realiza como processo de simbolização e encantamento do mundo seja na forma da imanência do sobrenatural no natural seja na transcendência do sobrenatural O sagrado dá significação ao espaço ao tempo e aos seres que neles nascem vivem e morrem A passagem do sagrado à religião determina as finalidades principais da experiência religiosa e da instituição social religiosa Dentre essas finalidades destacamos proteger os seres humanos contra o medo da Natureza nela encontrando forças benéficas contrapostas às maléficas e destruidoras dar aos humanos um acesso à verdade do mundo encontrando explicações para a origem a forma a vida e a morte de todos os seres e dos próprios humanos oferecer aos humanos a esperança de vida após a morte seja sob a forma de reencarnação perene seja sob a forma de reencarnação purificadora seja sob a forma de imortalidade individual que permite o retorno do homem ao convívio direto com a divindade seja sob a forma de fusão do espírito do morto no seio da divindade As religiões da salvação tanto as de tipo judaicocristão quanto as de tipo oriental prometem aos seres humanos libertálos da pena e da dor da existência terrena oferecer consolo aos aflitos dandolhes uma explicação para a dor seja ela física ou psíquica garantir o respeito às normas às regras e aos valores da moralidade estabelecida pela sociedade Em geral os valores morais são estabelecidos pela Convite à Filosofia 394 própria religião sob a forma de mandamentos divinos isto é a religião reelabora as relações sociais existentes como regras e normas expressões da vontade dos deuses ou de Deus garantindo a obrigatoriedade da obediência a elas sob a pena de sanções sobrenaturais Críticas à religião As primeiras críticas à religião feitas no pensamento ocidental vieram dos filósofos présocráticos que criticaram o politeísmo e o antropomorfismo Em outras palavras afirmaram que do ponto de vista da razão a pluralidade dos deuses é absurda pois a essência da divindade é a plenitude infinita não podendo haver senão uma potência divina Declararam também absurdo o antropomorfismo uma vez que este reduz os deuses à condição de seres superhumanos isto é as qualidades da essência divina não podem confundirse com as da natureza humana Essas críticas foram retomadas e sistematizadas por Platão Aristóteles e pelos estóicos Uma outra crítica à religião foi feita pelo grego Epicuro e retomada pelo latino Lucrécio A religião dizem eles é fabulação ilusória nascida do medo da morte e da Natureza É superstição No século XVII o filósofo Espinosa retoma essa crítica mas em lugar de começar pela religião começa pela superstição Os homens diz ele têm medo dos males e esperança de bens Movidos pelas paixões medo e esperança não confiam em si mesmos nem nos conhecimentos racionais para evitar males e conseguir bens Passional ou irracionalmente depositam males e bens em forças caprichosas como a sorte e a fortuna e as transformam em poderes que os governam arbitrariamente instaurando a superstição Para alimentála criam a religião e esta para conservar seu domínio sobre eles institui o poder teológicopolítico Nascida do medo supersticioso a religião está a serviço da tirania tanto mais forte quanto mais os homens forem deixados na ignorância da verdadeira natureza de Deus e das causas de todas as coisas Essa diferença entre religião e verdadeiro conhecimento de Deus levou no século XVIII à idéia de religião natural ou deísmo Voltandose contra a religião institucionalizada como poder eclesiástico e poder teológicopolítico os filósofos da Ilustração afirmaram a existência de um Deus que é força e energia inteligente imanente à Natureza conhecido pela razão e contrário à superstição Observamos portanto que as críticas à religião voltamse contra dois de seus aspectos o encantamento do mundo considerado superstição e o poder teológicopolítico institucional considerado tirânico No século XIX o filósofo Feuerbach criticou a religião como alienação Os seres humanos vivem desde sempre numa relação com a Natureza e desde muito cedo sentem necessidade de explicála e o fazem analisando a origem das coisas a regularidade dos acontecimentos naturais a origem da vida a causa da Marilena Chauí 395 dor e da morte a conservação do tempo passado na memória e a esperança de um tempo futuro Para isso criam os deuses Dãolhes forças e poderes que exprimem desejos humanos Fazemnos criadores da realidade Pouco a pouco passam a concebêlos como governantes da realidade dotados de forças e poderes maiores do que os humanos Nesse movimento gradualmente de geração a geração os seres humanos se esquecem de que foram os criadores da divindade invertem as posições e julgamse criaturas dos deuses Estes cada vez mais tornamse seres onipotentes oniscientes e distantes dos humanos exigindo destes culto rito e obediência Tornamse transcendentes e passam a dominar a imaginação e a vida dos seres humanos A alienação religiosa é esse longo processo pelo qual os homens não se reconhecem no produto de sua própria criação transformandoo num outro alienus estranho distante poderoso e dominador O domínio da criatura deuses sobre seus criadores homens é a alienação A análise de Feuerbach foi retomada por Marx de quem conhecemos a célebre expressão A religião é o ópio do povo Com essa afirmação Marx pretende mostrar que a religião referindose ao judaísmo ao cristianismo e ao islamismo isto é às religiões da salvação amortece a combatividade dos oprimidos e explorados porque lhes promete uma vida futura feliz Na esperança de felicidade e justiça no outro mundo os despossuídos explorados e humilhados deixam de combater as causas de suas misérias neste mundo Todavia Marx fez uma outra afirmação que em geral não é lembrada Disse ele que a religião é lógica e enciclopédia popular espírito de um mundo sem espírito Que significam essas palavras Com elas Marx procurou mostrar que a religião é uma forma de conhecimento e de explicação da realidade usadas pelas classes populares lógica e enciclopédia para dar sentido às coisas às relações sociais e políticas encontrando significações o espírito no mundo sem espírito que lhes permitem periodicamente lutar contra os poderes tirânicos Marx tinha na lembrança as revoltas camponesas e populares durante a Reforma Protestante bem como na Revolução Inglesa de 1644 na Revolução Francesa de 1789 e nos movimentos milenaristas que exprimiram na Idade Média e no início dos movimentos socialistas a luta popular contra a injustiça social e política Se por um lado na religião há a face opiácea do conformismo há por outro lado a face combativa dos que usam o saber religioso contra as instituições legitimadas pelo poder teológicopolítico Mythos e logos Na maioria das culturas a religião se apresenta como sistema explicativo geral oferecendo causas e efeitos relações entre seres valores morais e também sustentação ao poder político Nela se efetiva uma visão de mundo única válida Convite à Filosofia 396 para toda a sociedade e fornecendo a seus membros uma comunidade de ação e de destino No caso da cultura ocidental porém a religião tornouse apenas mais um sistema explicativo da realidade entre outros A ruptura com o mythos efetuada pelo surgimento e desenvolvimento do logos isto é do pensamento racional desfez o privilégio da religião como visão de mundo única Filosofia e ciência elaboraram explicações cujos princípios são completamente diferentes dos da religião Vimos as principais características do pensamento filosófico e quando a Filosofia nasce na Grécia Vimos também os traços que constituem o ideal científico Diante dessas duas formas de conhecimento o mito se apresenta como radicalmente distinto Embora isso já tenha sido analisado anteriormente vejase sobretudo a Unidade 4 capítulos 5 e 6 vamos recapitular essa distinção mythos é uma fala um relato ou uma narrativa cujo tema principal é a origem origem do mundo dos homens das técnicas dos deuses das relações entre homens e deuses etc não se define pelo objeto da narrativa ou do relato mas pelo modo como narra ou pelo modo como profere a mensagem de sorte que qualquer tema e qualquer ser podem ser objeto de mito tornamse míticos ao se transformarem em valores e símbolos sagrados tem como função resolver num plano simbólico e imaginário as antinomias as tensões os conflitos e as contradições da realidade social que não podem ser resolvidas ou solucionadas pela própria sociedade criando assim uma segunda realidade que explica a origem do problema e o resolve de modo que a realidade possa continuar com o problema sem ser destruída por ele O mito cria uma compensação simbólica e imaginária para dificuldades tensões e lutas reais tidas como insolúveis consegue essa solução imaginária porque opera com a lógica invisível e subjacente à organização social Ou seja conflitos tensões lutas e antinomias não são visíveis e perceptíveis mas invisíveis e imperceptíveis comandando o funcionamento visível da organização social O mito se refere a esse fundo invisível e tenso e o resolve imaginariamente para garantir a permanência da organização Além de ser uma lógica da compensação é uma lógica da conservação do social instrumento para evitar a mudança e a desagregação do grupo Em outras palavras é elaborado para ocultar a experiência da História ou do tempo não é apenas efeito das causas sociais mas tornase causa também isto é uma vez elaborado passa a produzir efeitos sociais instituições comportamentos sentimentos etc É uma ação social com efeitos sociais Marilena Chauí 397 ultrapassa as fronteiras da sociedade onde foi suscitado pois sua explicação visa a exprimir estruturas universais do espírito humano e do mundo Assim por exemplo os mitos teogônicos e cosmogônicos concernentes à proibição do incesto embora referentes às necessidades internas de uma sociedade para a elaboração das leis de parentesco e do sistema de alianças ressurge em todas as sociedades exprimindo uma estrutura universal da Cultura revela uma estrutura inconsciente da sociedade de tal modo que é possível distinguir a estrutura inconsciente universal e as mensagens particulares que cada sociedade inventa para resolver as tensões e os conflitos ou contradições inconscientes O mito conta uma história dramática na qual a ordem do mundo o reino mineral vegetal animal e humano foi criada e constituída Os acontecimentos narrados exprimem simultaneamente uma estrutura geral do pensamento humano e uma solução parcial que uma sociedade determinada encontrou para o problema Assim a diferença homemvegetal homemanimal homemmulher vidamorte trevaluz é uma diferença que atormenta universalmente todas as culturas mas cada uma delas possui uma narrativa mítica específica para responder a esse tormento comparado ao discurso filosófico e científico o discurso mítico opera segundo LéviStrauss pelo mecanismo do bricolage isto é assim como alguém junta pedaços e partes de objetos antigos para fazer um objeto novo no qual se podem perceber as partes ou pedaços dos objetos anteriores assim também o mythos constrói sua narrativa não como o logos elaborando de ponta a ponta seu objeto como algo específico mas como um arranjo e uma construção com pedaços de narrativas já existentes O logos busca a coerência construindo conceitualmente seu objeto enquanto o mythos fabrica seu objeto pela reunião e composição de restos díspares e disparatados do mundo existente dandolhes unidade num novo sistema explicativo no qual adquirem significado simbólico O logos procura a unidade sob a diversidade e a multiplicidade o mythos faz exatamente o oposto isto é procura a multiplicidade e a diversidade sob a unidade É um pensamento empírico e concreto e não um pensamento conceitual e abstrato comparado ao discurso filosófico e científico o mito se mostra uma operação lingüística oposta ao logos Este purifica a linguagem dos elementos qualitativos e emotivos busca retirar tanto quanto possível a ambigüidade dos termos que emprega utilizando provas demonstrações e argumentos racionais O mito ao contrário opera por metaforização contínua isto é um mesmo significante palavra ou conjunto de palavras tenderá a possuir um número imenso de significações ou de sentidos O mito opera com a saturação do sentido ou seja um mesmo fato pode ser narrado de inúmeras maneiras diferentes dependendo do que se queira enfatizar e as coisas do mundo minerais vegetais animais humanos podem receber Convite à Filosofia 398 inúmeros sentidos conforme o lugar que ocupem na narrativa Assim a oposição vidamorte homemmulher humanoanimal luztreva quentefrio secoúmido bommau justoinjusto certoerrado grandepequeno crucozido paimãe irmãirmão paifilho paifilha mãefilho mãefilha etc serão oposições constantes e regulares em todos os mitos mas os conteúdos que as exprimem são inumeráveis Ao instaurar a ruptura entre mythos e logos a cultura ocidental provocou um acontecimento desconhecido em outras culturas o conflito entre a fé e a razão que se manifestou desde muito cedo Já na Grécia antiga as críticas de Heráclito Pitágoras e Xenófanes à religião assinalavam a ruptura com ela Mais tarde Atenas forçou o filósofo Anaxágoras a fugir para evitar a condenação pública acusado pelo tribunal ateniense de inventar um novo deus Sócrates julgado culpado de impiedade e de corrupção da juventude foi condenado à morte Na Renascença Giordano Bruno que afirmara a imanência da Inteligência infinita ao mundo o Uno é forma e matéria figura da Natureza inteira operando de seu interior dizia ele foi condenado à fogueira Galileu na época moderna foi forçado a abjurar suas teses sobre o movimento solar as manchas lunares e solares e o princípio da inércia fundamento da mecânica clássica Nem sempre a Filosofia abandonou os temas da religião Todavia ocupouse deles do ponto de vista do logos e não do mythos Assim procedendo despojou os de sua condição de mistérios para transformálos em conceitos e teorias Para a alma religiosa há um Deus para a Filosofia é preciso provar a existência da divindade Para a alma piedosa Deus é um ente perfeito bom e misericordioso mas justo punindo os maus e recompensando os bons Para a Filosofia Deus é uma substância infinita mas é preciso demonstrar que sua essência é constituída por um intelecto onisciente e uma vontade onipotente Para o crente a espiritualidade divina não é incompatível com a esperança de poder ver Deus atuar materialmente sobre o mundo realizando milagres para a Filosofia é preciso demonstrar a possibilidade de uma ação do espírito sobre a matéria e por que sendo Deus onisciente suspenderia a ordenação necessária do mundo que Ele próprio estabeleceu fazendo milagres Mais do que isso Sendo Deus perfeito e infinito que necessidade teria de criar um mundo material finito e imperfeito Como uma causa infinita produz um efeito finito Mais ainda Deus é eterno portanto alheio ao tempo mas o mundo não é eterno pois foi criado por Deus e nesse caso como um ser eterno realiza uma ação temporal Como falar em Deus antes do mundo e depois do mundo se antes e depois são qualidades do tempo e não da eternidade Para o fiel a alma é imortal e destinada a uma vida futura para a Filosofia cabe oferecer provas que demonstrem a imortalidade Marilena Chauí 399 Os místicos experimentam a fusão plena no seio de Deus sentem estar nele e nele viver Para a Filosofia não sentimos Deus mas o conhecemos pela razão Essa peculiaridade da cultura ocidental afetou a própria religião De fato para competir com a Filosofia e suplantála a religião precisou oferecerse sob a forma de provas racionais conceitos teses teorias Tornouse teologia ciência sobre Deus Transformou os textos da história sagrada em doutrina Todavia certas crenças religiosas jamais poderão ser transformadas em teses e demonstrações racionais sem serem destruídas Não há como provar racionalmente que Jeová falou a Moisés no monte Sinai Não há como provar racionalmente a virgindade de Maria a encarnação do Filho de Deus a Santíssima Trindade a Eucaristia São verdades da fé e como tais mistérios Estes são verdades inquestionáveis isto é dogmas Eis por que o apóstolo Paulo declarou que a razão é um escândalo para a fé Tomemos um exemplo do Antigo Testamento Ali é narrado que durante uma batalha Josué fez o Sol parar a fim de que com o prolongamento do dia pudesse vencer a guerra Essa história sagrada pressupõe que o Sol se movimenta em torno da Terra e que esta permanece imóvel Estando narrada no texto revelado pelo próprio Deus a história de Josué não pode ser contestada A mesma teoria da mobilidade do Sol e imobilidade da Terra existia como tese filosóficocientífica no pensamento de Aristóteles e como tal foi refutada pela ciência de Copérnico Galileu e Kepler Porém se a estes era permitido refutar uma teoria filosóficocientífica por meio de outra não lhes era permitido negar a história de Josué Eis por que durante séculos a Igreja considerou o heliocentrismo uma heresia condenoua e submeteu sábios como Galileu aos tribunais da Inquisição Um outro exemplo agora vindo da biologia vai na mesma direção a teoria da evolução de Darwin que demonstra a origem do homem a partir de primatas A Bíblia afirma que o homem foi criado diretamente por Deus à sua imagem e semelhança no sexto dia da criação Sob essa perspectiva a teoria darwiniana foi considerada heresia condenada e durante anos não pôde ser ensinada nas escolas cristãs tendo mesmo havido um caso nos Estados Unidos de um professor primário processado por um tribunal por ensinála Um exemplo agora vindo do Novo Testamento apresenta o mesmo problema Historiadores lingüistas e antropólogos fizeram estudos sobre as culturas de toda a região do Oriente Médio e do norte da África nelas encontrando uma referência constante ao pão ao vinho ao cordeiro imolado e ao deus morto e ressuscitado Eram culturas de uma sociedade agrária com ritos de fertilidade da terra e dos animais realizando cerimônias muito semelhantes às que seriam realizadas depois pela missa cristã Desse ponto de vista o ritual da missa pertence a uma tradição religiosa agrária oriental e africana muito anterior ao cristianismo Essa descoberta científica porém contraria as verdades cristãs na Convite à Filosofia 400 medida em que a missa é considerada liturgia que repete e rememora um conjunto único e novo de eventos relativos à vida paixão e morte de Jesus Poderíamos prosseguir com os exemplos mas não é necessário O que queremos destacar aqui é a peculiaridade da relação que na cultura ocidental criadora da Filosofia e da ciência se estabeleceu entre a razão e a fé As dificuldades dessa relação ocuparam os medievais modernos e nossos contemporâneos parecendo insolúveis A religião acusa a Filosofia e a ciência de heresia e ateísmo enquanto ambas acusam a religião de dogmatismo atraso e intolerância Conciliação entre Filosofia e religião Vários filósofos procuraram conciliar Filosofia e religião Das tentativas feitas mencionaremos três cronologicamente mais próximas de nós a de Kant a de Hegel e a da fenomenologia A crítica kantiana à pretensão da metafísica de ser ciência dirigese à Filosofia quando esta assume o conteúdo de uma teologia racional demonstração racional da essência e existência de Deus uma psicologia racional demonstração da imortalidade da alma e uma cosmologia racional demonstração da origem e essência do mundo ou Natureza A distinção entre fenômeno e nôumeno permite ao filósofo limitar o campo do conhecimento teórico ao primeiro e impedir a pretensão de teorizar sobre o segundo A metafísica não é conhecimento da essência em si de Deus alma e mundo estes são nôumenos realidade em si inacessíveis ao nosso entendimento A religião por sua vez não é teologia não é teoria sobre Deus alma e mundo mas resposta a uma pergunta da razão que esta não pode responder teoricamente O que podemos esperar Qual o papel da religião Oferecer conceitos e princípios para a ação moral e fortalecer a esperança num destino superior da alma humana Sem Deus e a alma livre não haveria a humanidade mas apenas a animalidade natural sem a imortalidade o dever tornarseia banal Hegel segue numa direção diversa da de Kant Para ele a realidade não é senão a história do Espírito em busca da identidade consigo mesmo Deus não é uma substância cuja essência foi fixada antes e fora do tempo mas é o sujeito espiritual que se efetua como sujeito temporal cuja ação é ele mesmo manifestandose para si mesmo A mais baixa manifestação do Espírito é a Natureza a mais alta a Cultura Na Cultura o Espírito se realiza como Arte Religião e Filosofia numa seqüência que é o aperfeiçoamento rumo ao término do tempo Isso significa que Deus se manifesta primeiro como Arte nas artes depois como Religião nas religiões depois disso como Estado nos estados e finalmente como Filosofia nas Marilena Chauí 401 filosofias Em lugar de opor religião e Filosofia Hegel faz da primeira uma etapa preparatória da segunda A fenomenologia como vimos descreve essências constituídas pela intencionalidade da consciência que é doadora de sentido à realidade A consciência constitui as significações assumindo atitudes diferentes cada qual com seu campo específico sua estrutura e finalidades próprias Assim como há a atitude natural a crença realista ingênua na existência das coisas e a atitude filosófica a reflexão há também a atitude religiosa como uma das possibilidades da vida da consciência Quando esta se relaciona com o mundo através das categorias e das práticas ligadas ao sagrado constitui a atitude religiosa Assim a consciência pode relacionarse com o mundo de maneiras variadas senso comum ciência filosofia artes religião de sorte que não há oposição nem exclusão entre elas mas diferença Isso significa que a oposição só surgirá quando a consciência estando numa atitude pretender relacionarse com o mundo utilizando significações e práticas de uma outra atitude Foi isso que engendrou a oposição e o conflito entre Filosofia e religião pois sendo atitudes diferentes da consciência cada uma delas não pode usurpar os modos de conhecer e agir nem as significações da outra Convite à Filosofia 402 Capítulo 3 O universo das artes Unidade do eterno e do novo Alberto Caeiro um dos heterônimos do poeta Fernando Pessoa levanos ao âmago da arte quando escreve O meu olhar é nítido como um girassol Tenho o costume de andar pelas estradas Olhando para a direita e para a esquerda E de vez em quando olhando para trás E o que vejo a cada momento É aquilo que nunca antes eu tinha visto E eu sei dar por isso muito bem Sei ter o pasmo essencial Que tem uma criança se ao nascer Reparasse que nascera deveras Sintome nascido a cada momento Para a eterna novidade do Mundo A eterna novidade do mundo Alberto CaeiroFernando Pessoa une duas palavras que normalmente estão separadas e mesmo em oposição eterna e novidade pois o eterno é o que fora do tempo permanece sempre idêntico a si mesmo enquanto o novo é pura temporalidade o tempo como movimento e inquietação que se diferencia de si mesmo No entanto essa unidade do eterno e do novo aparentemente impossível realizase pelos e para os humanos Chama se arte MerleauPonty dizia que a arte é advento um vir a ser do que nunca antes existiu como promessa infinita de acontecimentos as obras dos artistas No ensaio A linguagem indireta e as vozes do silêncio ele escreve O primeiro desenho nas paredes das cavernas fundava uma tradição porque recolhia uma outra a da percepção A quase eternidade da arte confundese com a quase eternidade da existência humana encarnada e por isso temos no exercício de nosso corpo e de nossos sentidos com que compreender nossa gesticulação cultural que nos insere no tempo Que dizem os desenhos nas paredes da caverna Que o mundo é visível e para ser visto e que o artista dá a ver o mundo Que mundo Aquele eternamente novo buscado incessantemente pelos artistas É assim que Monet pinta várias vezes a Marilena Chauí 403 mesma catedral e em cada tela nasce uma nova catedral Referindose a essa busca do eterno novo em Monet o filósofo Gaston Bachelard escreve num ensaio denominado O pintor solicitado pelos elementos Um dia Claude Monet quis que a catedral fosse verdadeiramente aérea aérea em sua substância aérea no próprio coração das pedras E a catedral tomou da bruma azulada toda a matéria azul que a própria bruma tomara do céu azul Num outro dia outro sonho elementar se apodera da vontade de pintar Claude Monet quer que a catedral se torne uma esponja de luz que absorva em todas as suas fileiras de pedras e em todos os seus ornamentos o ocre de um sol poente Então nessa nova tela a catedral é um astro doce um astro ruivo um ser adormecido no calor do dia As torres brincavam mais alto no céu quando recebiam o elemento aéreo Ei las agora mais perto da Terra mais terrestres ardendo apenas um pouco como fogo guardado nas pedras de uma lareira Que procura o artista Responde CaeiroPessoa o pasmo essencial que tem uma criança se ao nascer reparasse que nascera deveras O artista busca o mundo em estado nascente tal como seria não só ao ser visto por nós pela primeira vez mas tal como teria sido no momento originário da criação Mas simultaneamente busca o mundo em sua perenidade e permanência É o que procura o pintor Cézanne cujo trabalho é assim comentado por MerleauPonty no ensaio A dúvida de Cézanne Vivemos em meio aos objetos construídos pelos homens entre utensílios casas ruas cidades e na maior parte do tempo só os vemos através das ações humanas de que podem ser os pontos de aplicação A pintura de Cézanne suspende estes hábitos e revela o fundo de Natureza inumana sobre a qual se instala o homem A paisagem aparece sem vento a água do lago sem movimento os objetos transidos hesitando como na origem da Terra Um mundo sem familiaridade Só um humano contudo é justamente capaz desta visão que vai até as raízes aquém da humanidade constituída O artista é aquele que fixa e torna acessível aos demais humanos o espetáculo de que participam sem perceber A obra de arte dá a ver a ouvir a sentir a pensar a dizer Nela e por ela a realidade se revela como se jamais a tivéssemos visto ouvido sentido pensado ou dito A experiência de nascer todo dia para a eterna novidade do mundo pode ser feita por nós quando lemos o poema de Jorge de Lima Poema do nadador A água é falsa a água é boa Nada nadador A água é mansa a água é doida Aqui é fria ali é morna A água é fêmea Convite à Filosofia 404 Nada nadador A água sobe a água desce A água é mansa a água é doida Nada nadador A água te lambe a água te abraça A água te leva a água te mata Nada nadador Se não que restará de ti nadador Nada nadador Rigorosamente não há nada nesse poema que desconheçamos Nenhuma das palavras empregadas pelo poeta nos é desconhecida E no entanto tudo aí é inteiramente novo O poema diz o que antes dele jamais havia sido dito e que sem ele nunca seria dito O nada é nadar verbo mas é também o nada pronome indefinido negativo e o jogo único e inesperado desse dois sentidos cria um terceiro o nadador que é um nadador que nada no nada e por isso é um nada dor O poeta transfigura a linguagem para fazêla dizer algo mas esse algo não existe antes aquém depois além do poema pois é o próprio poema Um livro diz MerleauPonty é uma máquina infernal de produzir significações Começamos a lêlo preguiçosamente meio distraídos De repente algumas palavras nos despertam como que nos queimam o livro já não nos deixa indiferentes passamos realmente a lêlo Que se passa A passagem da linguagem falada aquela que possuíamos em comum com o escritor à linguagem falante uma certa operação com os signos e a significação uma certa torção nas palavras um ligeiro descentramento do sentido instituído e a explosão de um sentido novo que nos pega A literatura como a pintura a música a escultura e qualquer das artes é a passagem do instituído ao instituinte transfiguração do existente numa outra realidade que o faz renascer sob a forma de uma obra O que é ler A leitura é um afrontamento entre os corpos gloriosos e impalpáveis de minha palavra e a do autor a descoberta do poder da linguagem instituinte que aparece quando a linguagem instituída é privada de seu equilíbrio costumeiro ordenandose novamente para ensinar ao leitor o que este não sabia pensar ou dizer Que é escrever Para o poeta e o romancista diz Sartre é distanciarse da linguageminstrumento e entrar na atitude poética tratando as palavras como entes reais e não como meros signos ou sinais estabelecidos Apanham a linguagem em estado selvagem como o pintor apanha a natureza inumana como se as palavras fossem seres como a Terra a relva a montanha ou a água O prosador faz algo diverso do poeta quer que as palavras além de por si e em si significarem alguma coisa designem o mundo ainda que para isso o escritor tenha que inventar novamente o mundo por meio das palavras O prosador Marilena Chauí 405 escreve Sartre é aquele que escolheu um modo de ação que se poderia chamar de ação por desvendamento O que há de espantoso nas artes é que elas realizam o desvendamento do mundo recriando o mundo noutra dimensão e de tal maneira que a realidade não está aquém e nem na obra mas é a própria obra de arte Talvez a melhor comprovação disso seja a música Feita de sons será destruída se tentarmos ouvir cada um deles ou reproduzilos como no toque de um corpo de cristal ou de metal A música pela harmonia pela proporção pela combinação de sons pelo ritmo e pela percussão cria um mundo sonoro que só existe por ela nela e que é ela própria Recolhe a sonoridade do mundo e de nossa percepção auditiva mas reinventa o som e a audição como se estes jamais houvessem existido tornando o mundo eternamente novo Arte e técnica A palavra arte vem do latim ars e corresponde ao termo grego techne técnica significando o que é ordenado ou toda espécie de atividade humana submetida a regras Em sentido lato significa habilidade destreza agilidade Em sentido estrito instrumento ofício ciência Seu campo semântico se define por oposição ao acaso ao espontâneo e ao natural Por isso em seu sentido mais geral arte é um conjunto de regras para dirigir uma atividade humana qualquer Nessa perspectiva falamos em arte médica arte política arte bélica retórica lógica poética dietética Platão não a distinguia das ciências nem da Filosofia uma vez que estas como a arte são atividades humanas ordenadas e regradas A distinção platônica era feita entre dois tipos de artes ou técnicas as judicativas isto é dedicadas apenas ao conhecimento e as dispositivas ou imperativas voltadas para a direção de uma atividade com base no conhecimento de suas regras Aristóteles porém estabeleceu duas distinções que perduraram por séculos na Cultura ocidental Numa delas distingue ciênciaFilosofia de arte ou técnica a primeira referese ao necessário isto é ao que não pode ser diferente do que é enquanto a segunda se refere ao contingente ou ao possível portanto ao que pode ser diferente do que é Outra distinção é feita no campo do próprio possível pela diferença entre ação e fabricação isto é entre praxis e poiesis A política e a ética são ciências da ação As artes ou técnicas são atividades de fabricação Plotino completa a distinção separando teoria e prática e distinguindo as técnicas ou artes cuja finalidade é auxiliar a Natureza como a medicina a agricultura daquelas cuja finalidade é fabricar um objeto com os materiais oferecidos pela Natureza o artesanato Distingue também um outro conjunto de artes e técnicas que não se relacionam com a Natureza mas apenas com o próprio homem para tornálo melhor ou pior música e retórica por exemplo Convite à Filosofia 406 A classificação das técnicas ou artes seguirá um padrão determinado pela sociedade antiga e portanto pela estrutura social fundada na escravidão isto é uma sociedade que despreza o trabalho manual Uma obra As núpcias de Mercúrio e Filologia escrita pelo historiador romano Varrão oferece a classificação que perdurará do século II dC ao século XV dividindo as artes em liberais os dignas do homem livre e servis ou mecânicas próprias do trabalhador manual São artes liberais gramática retórica lógica aritmética geometria astronomia e música compondo o currículo escolar dos homens livres São artes mecânicas todas as outras atividades técnicas medicina arquitetura agricultura pintura escultura olaria tecelagem etc Essa classificação diferenciada será justificada por santo Tomás de Aquino durante a Idade Média como diferença entre as artes que dirigem o trabalho da razão e as que dirigem o trabalho das mãos Ora somente a alma é livre e o corpo é para ela uma prisão de sorte que as artes liberais são superiores às artes mecânicas As palavras mecânica e máquina vêm do grego e significam estratagema engenhoso para resolver uma dificuldade corporal Assim a alavanca ou a polia são mecânicas ou máquinas Qual é o estratagema astucioso Fazer com que alguém fraco realize uma tarefa acima de suas forças graças a um instrumento engenhoso Uma alavanca permite deslocar um peso que uma pessoa sozinha jamais deslocaria A técnica pertence assim ao campo dos instrumentos engenhosos e astutos para auxiliar o corpo a realizar uma atividade penosa dura difícil A partir da Renascença porém travase uma luta pela valorização das artes mecânicas pois o humanismo renascentista dignifica o corpo humano e essa dignidade se traduz na batalha pela dignidade das artes mecânicas para convertêlas à condição de artes liberais Além disso à medida que o capitalismo se desenvolve o trabalho passa a ser considerado fonte e causa das riquezas sendo por isso valorizado A valorização do trabalho acarreta a valorização das técnicas e artes mecânicas A primeira dignidade obtida pelas artes mecânicas foi sua elevação à condição de conhecimento como as artes liberais A segunda dignidade foi alcançada no final do século XVII e a partir do século XVIII quando distinguiramse as finalidades das várias artes mecânicas isto é as que têm como fim o que é útil aos homens medicina agricultura culinária artesanato e aquelas cujo fim é o belo pintura escultura arquitetura poesia música teatro dança Com a idéia de beleza surgem as sete artesxi ou as belasartes modo pelo qual nos acostumamos a entender a arte A distinção entre artes da utilidade e artes da beleza acarretou uma separação entre técnica o útil e arte o belo levando à imagem da arte como ação individual espontânea vinda da sensibilidade e da fantasia do artista como gênio Marilena Chauí 407 criador Enquanto o técnico é visto como aplicador de regras e receitas vindas da tradição ou da ciência o artista é visto como dotado de inspiração entendida como uma espécie de iluminação interior e espiritual misteriosa que leva o gênio a criar a obra Além disso como a obra de arte é pensada a partir de sua finalidade a criação do belo tornase inseparável da figura do público espectador ouvinte leitor que julga e avalia o objeto artístico conforme tenha ou não realizado a beleza Surge assim o conceito de juízo de gosto que será amplamente estudado por Kant Gênio criador e inspiração do lado do artista falase nele como animal incomparável beleza do lado da obra e juízo de gosto do lado do público constituem os pilares sobre os quais se erguerá como veremos adiante uma disciplina filosófica a estética Todavia desde o final do século XIX e durante o século XX modificouse a relação entre arte e técnica Por um lado como vimos ao estudar as ciências o estatuto da técnica modificou se quando esta se tornou tecnologia portanto uma forma de conhecimento e não simples ação fabricadora de acordo com regras e receitas Por outro lado as artes passaram a ser concebidas menos como criação genial misteriosa e mais como expressão criadora isto é como transfiguração do visível do sonoro do movimento da linguagem dos gestos em obras artísticas As artes tornamse trabalho da expressão e mostram que desde que surgiram pela primeira vez foram inseparáveis da ciência e da técnica Assim por exemplo a pintura e a arquitetura da Renascença são incompreensíveis sem a matemática e a teoria da harmonia e das proporções a pintura impressionista incompreensível sem a física e a óptica isto é sem a teoria das cores etc A novidade está no fato de que agora as artes não ocultam essas relações os artistas se referem explicitamente a elas e buscam nas ciências e nas técnicas respostas e soluções para problemas artísticos A arte não perde seu vínculo com a idéia de beleza mas a subordina a um outro valor a verdade A obra de arte busca caminhos de acesso ao real e de expressão da verdade Em outras palavras as artes não pretendem imitar a realidade nem pretendem ser ilusões sobre a realidade mas exprimir por meios artísticos a própria realidade O pintor deseja revelar o que é o mundo visível o músico o que é o mundo sonoro o dançarino o que é o mundo do movimento o escritor o que é o mundo da linguagem o escultor o que é o mundo da matéria e da forma Para fazêlo recorrem às técnicas e aos instrumentos técnicos como aliás sempre o fizeram apesar da imagem do gênio criador inspirado que tira de dentro de si a obra Convite à Filosofia 408 Três manifestações artísticas contemporâneas podem ilustrar o modo como arte e técnica se encontram e se comunicam a fotografia o cinema e o design Fotografia e cinema surgem inicialmente como técnicas de reprodução da realidade Pouco a pouco porém tornamse interpretações da realidade e artes da expressão O design por sua vez introduz as artes pintura escultura arquitetura no desenho e na produção de objetos técnicos usados na indústria e nos laboratórios científicos e de utensílios cotidianos máquinas domésticas automóveis mobiliário talheres copos pratos xícaras lápis canetas aviões tecidos para móveis e cortinas etc As fronteiras entre arte e técnica tornamse cada vez mais tênues é preciso uma película tecnicamente perfeita para a foto artística e para o cinema de arte é preciso um material tecnicamente perfeito para que um disco possa reproduzir um concerto é preciso equipamentos técnicos de alta qualidade e precisão para produzir fotos filmes discos vídeos cenários e iluminação teatrais A técnica de fabricação dos instrumentos musicais e a invenção de aparelhos eletrônicos para música as possibilidades técnicas de novas tintas e cores graças aos materiais sintéticos modificando a pintura as possibilidades técnicas de novos materiais de construção modificando a arquitetura o surgimento de novos materiais sintéticos modificando a escultura são alguns exemplos da relação interna entre atividade artística e invenção técnicotecnológica Em nossos dias a distinção entre arte erudita e arte popular passa pela presença ou ausência da tecnologia de ponta nas artes A arte popular é artesanal a erudita tecnológica No entanto em nossa sociedade industrial ainda é possível distinguir as obras de arte e os objetos técnicos produzidos a partir do design e com a preocupação de serem belos A diferença está em que a finalidade desses objetos é funcional isto é os materiais e as formas estão subordinados à função que devem preencher uma cadeira deve ser confortável para sentar uma caneta adequada para escrever um automóvel adequado para a locomoção uma geladeira adequada para a conservação dos alimentos etc Da obra de arte porém não se espera nem se exige funcionalidade havendo nela plena liberdade para lidar com formas e materiais Arte e religião As duas primeiras manifestações culturais foram historicamente o trabalho e a religião Ambas instituíram as primeiras formas da sociabilidade a vida comunitária e da autoridade o poder religioso Ambas instituíram os símbolos de organização humana do espaço e do tempo do corpo e do espírito As artes isto é as técnicas ou artes mecânicas foram assim inseparáveis de ambas Mais do que isso Vimos que a relação com o sagrado ao organizar o espaço e o tempo e o sentimento da comunhão ou separação entre os humanos e a Natureza Marilena Chauí 409 e deles com o divino simbolizou o todo da realidade pela sacralização Assim todas as atividades humanas assumiram a forma de rituais a guerra a semeadura e a colheita a culinária as trocas o nascimento e a morte a doença e a cura a mudança das estações a passagem do dia à noite ventos e chuvas o movimento dos astros tudo se realiza ritualisticamente tudo assume a forma de um culto religioso A sacralização e a ritualização da vida fazem com que a medicina agricultura culinária edificações produção de utensílios música instrumentos musicais dança adornos tornemse ritos ou elementos de cultos Semear e colher caçar e pescar cozer alimentos tanto quanto fiar e tecer pintar dançar e cantar são atividades técnicoreligiosas As futuras sete artes as belasartes nascem pois no interior dos cultos e para servilos Serão necessários milhares de anos e profundas transformações históricosociais para que um dia surjam como atividade cultural autônoma dotadas de valor e significação próprias O artista era mago como o médico e o astrólogo artesão como o arquiteto o pintor e o escultor iniciado num ofício sagrado como o músico e o dançarino É na qualidade de mago artífice e detentor de um ofício que realizava sua arte Esta por ser parte inseparável do culto e do ritual não se efetuava segundo a liberdade criadora do técnicoartesão mas exigia a repetição das mesmas regras e normas para a fabricação dos objetos e a realização dos gestos O artífice iniciavase nos segredos das artes ou técnicas recebendo uma educação especial tornandose um iniciado em mistérios Aprendia a conhecer a matéria prima preestabelecida para o exercício de sua arte a usar utensílios e instrumentos preestabelecidos para sua ação a realizar gestos utilizar cores manipular ervas segundo um receituário fixo e secreto conhecido apenas pelos iniciados O artista era oficiante de cultos e fabricador dos objetos e gestos dos cultos Seu trabalho nascia de um dom dos deuses que deram aos humanos o conhecimento do fogo dos metais das sementes dos animais das águas e dos ventos etc e era um dom para os deuses A dimensão religiosa das artes deu aos objetos artísticos ou às obras de arte uma qualidade que foi estudada pelo filósofo alemão Walter Benjamin a aura Que é a aura A aura é a absoluta singularidade de um ser natural ou artístico sua condição de exemplar único que se oferece num aqui e agora irrepetível sua qualidade de eternidade e fugacidade simultâneas seu pertencimento necessário ao contexto onde se encontra e sua participação numa tradição que lhe dá sentido É no caso da obra de arte sua autenticidade o vínculo interno entre unidade e durabilidade Única una irrepetível duradoura e efêmera aquiagora e parte de uma tradição autêntica a obra de arte aurática é aquela que torna distante o que está perto porque transfigura a realidade dandolhe a qualidade da transcendência Convite à Filosofia 410 No ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica Walter Benjamin escreve Em suma o que é a aura É uma figura singular composta de elementos especiais e temporais a aparição única de uma coisa distante por mais perto que ela esteja Observar em repouso numa tarde de verão uma cadeia de montanhas no horizonte ou um galho que projeta sua sombra sobre nós significa respirar a aura dessas montanhas desse galho Porque as artes tinham como finalidade sacralizar e divinizar o mundo tornandoo distante e transcendente e ao mesmo tempo presentificar os deuses aos homens tornando o divino próximo e imanente sua origem religiosa transmitiu às obras de arte a qualidade aurática mesmo quando deixaram de ser parte da religião para se tornarem autônomas e belasartes No mesmo ensaio escreve Benjamin A unicidade da obra de arte é idêntica à sua inserção no contexto da tradição Sem dúvida essa tradição é algo muito vivo extraordinariamente variável Uma antiga estátua de Vênus por exemplo estava inscrita numa certa tradição entre os gregos que faziam dela um objeto de culto e em outra tradição na Idade Média quando os doutores da Igreja viam nela um ídolo malfazejo O que era comum às duas tradições contudo era a unicidade da obra ou em outras palavras sua aura A forma mais primitiva de inserção da obra de arte no contexto da tradição se exprimia no culto As mais antigas obras de arte como sabemos surgiram a serviço de um ritual inicialmente mágico e depois religioso O que é de importância decisiva é que esse modo de ser aurático da obra de arte nunca se destaca completamente de sua função ritual Em outras palavras o valor único da obra de arte autêntica tem sempre um fundamento teológico pois mais remoto que seja ele pode ser reconhecido mesmo nas formas mais profanas do culto do belo Essas formas profanas do culto do belo surgidas na Renascença e vigentes durante três séculos deixaram manifesto esse fundamento Passando do divino ao belo as artes não perderam o que a religião lhes dera a aura Não por acaso o artista foi visto como gênio criador inspirado indivíduo excepcional que cria uma obra excepcional isto é manteve em sua figura o mistério do mágico antigo Arte e Filosofia Do ponto de vista da Filosofia podemos falar em dois grandes momentos de teorização da arte No primeiro inaugurado por Platão e Aristóteles a Filosofia trata as artes sob a forma da poética no segundo a partir do século XVIII sob a forma da estética Marilena Chauí 411 Arte poética é o nome de uma obra aristotélica sobre as artes da fala e da escrita do canto e da dança a poesia e o teatro tragédia e comédia A palavra poética é a tradução para poiesis portanto para fabricação A arte poética estuda as obras de arte como fabricação de seres e gestos artificiais isto é produzidos pelos seres humanos Estética é a tradução da palavra grega aesthesis que significa conhecimento sensorial experiência sensibilidade Foi empregada para referirse às artes pela primeira vez pelo alemão Baumgarten por volta de 1750 Em seu uso inicial referiase ao estudo das obras de arte enquanto criações da sensibilidade tendo como finalidade o belo Pouco a pouco substituiu a noção de arte poética e passou a designar toda investigação filosófica que tenha por objeto as artes ou uma arte Do lado do artista e da obra buscase a realização da beleza do lado do espectador e receptor buscase a reação sob a forma do juízo de gosto do bom gosto A noção de estética quando formulada e desenvolvida nos séculos XVIII e XIX pressupunha 1 que a arte é produto da sensibilidade da imaginação e da inspiração do artista e que sua finalidade é a contemplação 2 que a contemplação do lado do artista é a busca do belo e não do útil nem do agradável ou prazeroso e do lado do público é a avaliação ou o julgamento do valor de beleza atingido pela obra 3 que o belo é diferente do verdadeiro De fato o verdadeiro é o que é conhecido pelo intelecto por meio de demonstrações e provas que permitem deduzir um particular de um universal dedução ou inferir um universal de vários particulares indução por meio de conceitos e leis O belo ao contrário tem a peculiaridade de possuir um valor universal embora a obra de arte seja essencialmente particular Em outras palavras a obra de arte em sua particularidade e singularidade única oferece algo universal a beleza sem necessidade de demonstrações provas inferências e conceitos Quando leio um poema escuto uma sonata ou observo um quadro posso dizer que são belos ou que ali está a beleza embora esteja diante de algo único e incomparável O juízo de gosto teria assim a peculiaridade de emitir um julgamento universal referindose porém a algo singular e particular Desde o início do século passado todavia abandonase a idéia de juízo de gosto como critério de apreciação e avaliação das obras de arte De fato as artes deixaram de ser pensadas exclusivamente do ponto de vista da produção da beleza para serem vistas sob outras perspectivas tais como expressão de emoções e desejos interpretação e crítica da realidade social atividade criadora de procedimentos inéditos para a invenção de objetos artísticos etc Essa mudança Convite à Filosofia 412 fez com que a idéia de gosto e de beleza perdessem o privilégio estético e que a estética se aproximasse cada vez mais da idéia de poética a arte como trabalho e não como contemplação e sensibilidade fantasia e ilusão A estética ou filosofia da arte possui três núcleos principais de investigação a relação entre arte e Natureza arte e humano e finalidadesfunções da arte Relação entre arte e Natureza A primeira e mais antiga relação entre arte e Natureza proposta pela Filosofia foi a da imitação a arte imita a Natureza escreve Aristóteles A obra de arte resulta da atividade do artista para imitar outros seres por meio de sons sentimentos cores formas volumes etc e o valor da obra decorre da habilidade do artista para encontrar materiais e formas adequados para obter o efeito imitativo Evidentemente imitar não significa reproduzir mas representar a realidade através da fantasia e da obediência a regras para que a obra figure algum ser natural ou sobrenatural algum sentimento ou emoção algum fato acontecido ou inventado Harmonia e proporção das formas dos ritmos das cores das palavras ou dos sons oferecem a finalidade a ser alcançada e estabelecem as regras a serem seguidas pelos artistas A partir do Romantismo portanto após quase 23 séculos de definição da arte como imitação a Filosofia passa a definir a obra de arte como criação Enquanto na concepção anterior o valor era buscado na qualidade do objeto imitado imitar um deus é mais valioso do que imitar um humano imitar um humano mais valioso do que imitar um animal planta ou coisa agora o valor é localizado na figura do artista como gênio criador e imaginação criadora Agora a idéia de inspiração tornase explicadora da atividade artística o artista interioridade e subjetividade especial recebe uma espécie de sopro sobrenatural que o impele a criar a obra Esta deve exprimir sentimentos e emoções muito mais do que figurar ou representar a realidade A obra é a exteriorização dos sentimentos interiores do gênio excepcional A arte não imita nem reproduz a Natureza mas libertase dela criando uma realidade puramente humana e espiritual pela atividade livre do artista a fantasia os homens se igualam à ação criadora de Deus Essa concepção é contemporânea na Filosofia à idéia kantiana de diferença entre o reino natural da causalidade necessária e o reino humano da liberdade e dos fins diferença essencial para a ética e à idéia hegeliana do Espírito como Cultura e História oposto e negador da passividade e da causalidade mecânica da Natureza Em suma a estética da criação corresponde ao momento em que a Filosofia separa homem e Natureza A terceira concepção nossa contemporânea concebe a arte como expressão e construção A obra de arte não é pura receptividade imitativa ou reprodutiva Marilena Chauí 413 nem pura criatividade espontânea e livre mas expressão de um sentido novo escondido no mundo e um processo de construção do objeto artístico em que o artista colabora com a Natureza luta com ela ou contra ela separase dela ou volta a ela vence a resistência dela ou dobrase às exigências dela Essa concepção corresponde ao momento da sociedade industrial da técnica transformada em tecnologia e da ciência como construção rigorosa da realidade A arte é trabalho da expressão que constrói um sentido novo a obra e o institui como parte da Cultura O artista é um ser social que busca exprimir seu modo de estar no mundo na companhia dos outros seres humanos reflete sobre a sociedade voltase para ela seja para criticála seja para afirmála seja para superála Essa terceira concepção filosófica da arte coloca o artista num embate contínuo com a Natureza e com a sociedade deixando de vêlo como gênio criador solitário e excepcional Relação entre arte e humano Duas grandes concepções percorrem a história das relações entre arte e humano ambas iniciadas na Grécia com Platão e Aristóteles A concepção platônica que sofrerá alterações no curso da História sociocultural considera a arte uma forma de conhecimento A aristotélica que também sofrerá mudanças no correr da História toma a arte como atividade prática Para Platão a arte se situa no plano mais baixo do conhecimento pois é imitação das coisas sensíveis elas próprias imitações imperfeitas das essências inteligíveis ou idéias Na Renascença porém a concepção platônica é retomada mas com novo sentido afirmase agora que a arte é uma das formas altas de acesso ao conhecimento verdadeiro e ao divino fica abaixo apenas da Filosofia e do êxtase místico Essa mudança se deve ao fato de que a Renascença platônica redescobre os escritos herméticos e de magia natural nos quais se afirma que Deus criou o homem dandolhe a capacidade de criar novos deuses e novos mundos o que ele faz através das artes e estas por sua vez lhe dão o conhecimento das formas secretas e invisíveis das coisas A valorização das artes como expressão do conhecimento encontra seu apogeu durante o Romantismo quando a arte é concebida como o órgão geral da Filosofia sob três aspectos diferentes para alguns a arte é a única via de acesso ao universal e ao absoluto para outros como Hegel as artes são a primeira etapa da vida consciente do Espírito preparando a religião e a Filosofia e outros enfim a concebem como o único caminho para reatar o singular e o universal o particular e o geral pois através da singularidade de uma obra artística temos acesso ao significado universal de alguma realidade Essa última perspectiva é a Convite à Filosofia 414 que encontramos por exemplo no filósofo Martin Heidegger para quem a obra de arte é desvelamento e desvendamento da verdade A concepção aristotélica parte da diferença entre o teórico e o prático decorrente da diferença entre o necessário e o possível tomando a arte como atividade prática fabricadora Essa concepção mantida durante séculos e rivalizando com as variantes platônicas recebe duas grandes contribuições no século XIX a dos que afirmam a utilidade social das artes particularmente a arquitetura e a dos que afirmam o caráter lúdico das artes como Nietzsche para quem a arte é jogo liberdade criadora embriaguez e delírio vontade de potência afirmativa da vida é um estado de vigor animal uma exaltação do sentimento da vida e um estimulante da vida Fantasia jogo sabedoria oculta desejo explosão vital afirmação da vida acesso ao verdadeiro eis algumas maneiras pela quais a estética concebe a atividade artística Finalidadesfunções da arte Duas concepções predominam no correr da História das artes concernentes às finalidades e às funções da atividade artística a concepção pedagógica e a expressiva A concepção pedagógica encontra sua primeira formulação em Platão e Aristóteles Na República expondo a pedagogia para a criação da cidade perfeita Platão exclui poetas pintores e escultores porque imitam as coisas sensíveis e oferecem uma imagem desrespeitosa dos deuses tomados pelas paixões humanas porém coloca a dança e a música como disciplinas fundamentais na formação do corpo e da alma isto é do caráter das crianças e dos adolescentes Como para Platão gramática estratégia aritmética geometria e astronomia são artes seu ensino é considerado indispensável na formação dos guerreiros e acrescentadas da arte dialética na formação dos filósofos Aristóteles na Arte poética desenvolve longamente o papel pedagógico das artes particularmente a tragédia que segundo o filósofo tem a função de produzir a catarse isto é a purificação espiritual dos espectadores comovidos e apavorados com a fúria o horror e as conseqüências das paixões que movem as personagens trágicas Essa função catártica é atribuída sobretudo à música Na Arte poética Aristóteles escreve A música não deve ser praticada por um só tipo de benefício que dela pode derivar mas por usos múltiplos já que pode servir para a educação para proporcionar a catarse e em terceiro lugar para o repouso da alma e a suspensão de suas fadigas Ecoando as palavras de Aristóteles lemos em O mercador de Veneza de Shakespeare Marilena Chauí 415 Todo homem que em si não traga música E a quem não toquem doces sons concordes É de traições pilhagens armadilhas Seu espírito vive em noite obscura Seus afetos são negros como o Érebo Não se confie em homem tal A concepção pedagógica da arte reaparece em Kant quando afirma que a função mais alta da arte é produzir o sentimento do sublime isto é a elevação e o arrebatamento de nosso espírito diante da beleza como algo terrível espantoso aproximação do infinito Também Hegel insiste no papel educativo da arte A pedagogia artística se efetua sob duas modalidades sucessivas na primeira a arte é o meio para a educação moral da sociedade como Aristóteles havia mostrado a respeito da tragédia na segunda pela maneira como destrói a brutalidade da matéria impondolhe a pureza da forma educa a sociedade para passar do artístico à espiritualidade da religião isto é para passar da religião da exterioridade os deuses e espíritos estão visíveis na Natureza à religião da interioridade o Absoluto é a razão e a verdade Por estabelecer uma relação intrínseca entre arte e sociedade o pensamento estético de esquerda também atribui finalidade pedagógica às artes dandolhe a tarefa de crítica social e política interpretação do presente e imaginação da sociedade futura A arte deve ser engajada ou comprometida isto é estar a serviço da emancipação do gênero humano oferecendose como instrumento do esforço de libertação Essa posição foi defendida pelo teatro de Brecht e no Brasil pelo de Augusto Boal pela poesia de Maiakovski e Pablo Neruda e no Brasil pela de Ferreira Gullar e José Paulo Paes pelo romance de Sartre e no Brasil pelo de Graciliano Ramos pelo cinema de Eisenstein e Chaplin e no Brasil pelo Cinema Novo pela pintura de Picasso e no Brasil pela de Portinari na música a música popular dos anos 60 e 70 foi de protesto político com Edu Lobo Chico Buarque Caetano Veloso Gilberto Gil Geraldo Vandré Milton Nascimento entre outros Numa outra perspectiva a arte é concebida como expressão transformando num fim aquilo que para as outras atividades humanas é um meio É assim que se diz que a arte faz ver a visão faz falar a linguagem faz ouvir a audição faz sentir as mãos e o corpo faz emergir o natural da Natureza o cultural da Cultura Aqui a arte é revelação e manifestação da essência da realidade amortecida e esquecida em nossa existência cotidiana reduzida a conceitos nas ciências e na Filosofia transformada em instrumento na técnica e na economia Foi com essa concepção que abrimos este capítulo Como expressão as artes transfiguram a realidade para que tenhamos acesso verdadeiro a ela Desequilibra o instituído e o estabelecido descentra formas e palavras retirandoas do contexto costumeiro para fazernos conhecêlas numa Convite à Filosofia 416 outra dimensão instituinte ou criadora A arte inventa um mundo de cores formas volumes massas sons gestos texturas ritmos palavras para nos dar a conhecer nosso próprio mundo Por ser expressiva é alegórica e simbólica A palavra alegoria vem do grego significando falar de outra coisa ou falar de uma coisa por meio de outra Essa outra coisa é o símbolo Assim a balança e a estátua de olhos vendados são símbolos da justiça a pomba do Espírito Santo a bandeira vermelha da revolução O símbolo em grego é o que une junta sintetiza numa unidade os diferentes dandolhes um sentido único e novo que não possuíam quando separados A obra de arte é essa unidade simbólica e alegórica que nos abre o acesso ao verdadeiro ao sublime ao terrível ao belo à dor e ao prazer Um quadro como a Guernica de Picasso é uma síntese poderosa de todas essas dimensões da expressão A arte como expressão não é apenas alegoria e símbolo É algo mais profundo pois procura exprimir o mundo através do artista Ao fazêlo levanos a descobrir o sentido da Cultura e da História Tomemos a literatura por exemplo embora se pudesse tomar qualquer uma das artes para expor o significado da atividade expressiva Quando um poeta ou um romancista escrevem trabalham à maneira do tecelão Este trabalha com fios e pelo avesso mas produz do outro lado uma tapeçaria isto é desenho cor forma e figura O escritor trabalha apenas com palavras com a materialidade de sinais gráficos mas o livro poema ou romance conto ou novela é imaterial é puro sentido pura significação a tal ponto que quando acabamos de lêlo temos o sentimento de que houve uma comunicação entre nosso espírito e o do escritor sem palavras Assim a primeira revelação que a literatura nos traz é a do mundo da linguagem como materialidade sonora e gráfica que é e faz sentido e este é imaterial mas não pode existir sem a materialidade das palavras Do mesmo modo um quadro não é senão tinta traço cor contornos e no entanto quando o vemos não olhamos essa materialidade e sim o mundo de significações ali expresso e que não poderia exprimirse sem aquela materialidade que o tornou possível O escritor exprime algo novo como vimos na abertura deste capítulo porque descentra desequilibra torce e deforma o sentido das palavras dandolhes um outro inteiramente novo Com isso uma segunda revelação é trazida pela literatura a diferença entre linguagem instituída aquela que usamos todos os dias e que constitui o repertório de sinais sonoros e gráficos com que indicamos e denotamos as coisas e linguagem instituinte ou expressiva isto é a linguagem nova que foi criada pela ação do escritor O mesmo poderia ser mostrado em cada uma das artes pois em todas elas o momento fundamental o instante expressivo é instituinte do novo Marilena Chauí 417 Realizada a obra o instituinte ela passa graças aos leitores espectadores ouvintes a fazer parte da cultura existente tornandose instituída Dessa maneira a obra de arte nos traz uma terceira revelação Mostra que a Cultura é um movimento contínuo em que o instituído é descentrado desequilibrado deformado modificado pelo novo que a seguir graças aos destinatários da obra o seu público é depositado e sedimentado como parte do instituído ficando disponível para todos como algo que é integrante de sua Cultura Esse duplo movimento do instituído ao instituinte e deste para aquele assinala que a obra de arte expressiva é interminável De fato cada artista para exprimir se retoma as obras dos outros e as suas próprias para produzir uma obra nova que por sua vez será retomada por outros para novas expressões Um artista supera e ultrapassa outros porque os retoma e os transforma fazendo vir à expressão aquilo que outros prepararam para ele Cada obra de arte parte de um duplo ponto de partida do desejo do artista de exprimir alguma coisa que ainda não sabe bem o que é e que somente a obra realizada lhe dirá e do excesso de significações que as outras obras possuem e que elas próprias não chegaram a exprimir excesso que só existe porque tais obras existem e o fizeram aparecer Assim a obra de arte nos traz uma última revelação mostra que a História é o movimento incessante no qual o presente o artista trabalhando retoma o passado o trabalho dos outros e abre o futuro a nova obra instituinte Arte e sociedade Se acompanharmos as transformações sofridas pelas artes passando da função religiosa à autonomia da obra de arte como criação e expressão veremos que as mudanças foram de dois tipos De um lado mudanças quanto ao fazer artístico diferenciandose em escolas de arte ou estilos artísticos clássico gótico renascentista barroco rococó romântico impressionista realista expressionista abstrato construtivista surrealista etc Essas mudanças concernem à concepção do objeto artístico às relações entre matéria e forma às técnicas de elaboração dos materiais à relação com o público ao lugar ocupado por uma arte no interior das demais e servindo de padrão a elas às descobertas de procedimentos e materiais novos etc De outro lado porém concernem à determinação social da atividade artística seja do ponto de vista da finalidade social das obras por exemplo o culto religioso ou o mercado de arte do lugar ocupado pelo artista por exemplo iniciado numa seita secreta financiado por um mecenas renascentista profissional liberal ligado ao mercado de arte etc das condições de recepção da obra de arte a comunidade de fiéis a elite cultivada e economicamente poderosa as classes populares a massa etc Convite à Filosofia 418 A discussão sobre a relação artesociedade levou a duas atitudes filosóficas opostas A primeira afirma que a arte só é arte se for pura isto é se não estiver preocupada com as circunstâncias históricas sociais econômicas e políticas Tratase da defesa da arte pela arte A segunda afirma que o valor da obra de arte decorre de seu compromisso crítico diante das circunstâncias presentes Tratase da arte engajada na qual o artista toma posição diante de sua sociedade lutando para transformála e melhorála e para conscientizar as pessoas sobre as injustiças e as opressões do presente As duas concepções são problemáticas A primeira porque imagina o artista e a obra de arte como desprovidos de raízes no mundo e livres das influências da sociedade sobre eles o que é impossível A segunda porque corre o risco de sacrificar o trabalho artístico em nome das mensagens que a obra deve enviar à sociedade para mudála dando ao artista o papel de consciência crítica do povo oprimido A primeira concepção desemboca no chamado formalismo é a perfeição da forma que conta e não o conteúdo da obra A segunda no conteudismo é a mensagem que conta mesmo que a forma da obra seja precária descuidada repetitiva e sem força inovadora Numa perspectiva diferente na qual se deixa de lado a querela do formalismo puro e do conteudismo engajado Walter Benjamin analisou o modo de relação entre arte e sociedade na sociedade capitalista tecnológica contemporânea Benjamin tomou como referencial a destruição da aura pela reprodução técnica das obras de arte No ensaio já mencionado escreve ele é fácil identificar os fatores sociais específicos que condicionam o declínio atual da aura Ele deriva de duas circunstâncias estreitamente ligadas à crescente difusão e intensidade dos movimentos de massas Fazer as coisas ficarem mais próximas é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos através da sua reprodutibilidade Cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o objeto tão perto quanto possível na imagem ou antes na sua cópia na sua reprodução Cada dia fica mais nítida a diferença entre a reprodução como ela nos é oferecida pelas revistas ilustradas e pelas atualidades cinematográficas e a imagem Nesta a unidade e a durabilidade se associam tão intimamente como na reprodução a transitoriedade e a repetitividade Retirar o objeto do seu invólucro destruir sua aura é a característica de uma forma de percepção cuja capacidade de captar o semelhante no mundo é tão aguda que graças à reprodução ela consegue captálo até no fenômeno único Marilena Chauí 419 Assim se manifesta na esfera sensorial a tendência que na esfera teórica explica a importância crescente da estatística Orientar a realidade em função das massas e as massas em função da realidade é um processo de imenso alcance tanto para o pensamento como para a intuição Evidentemente diz Benjamin a arte sempre foi reprodutível bastando ver discípulos imitando os mestres A questão portanto não está no fato da reprodução e sim na nova modalidade de reproduzir a reprodução técnica que permite a existência do objeto artístico em série e em certos casos como na fotografia no disco e no cinema tornando impossível distinguir original e cópia isto é desfazendo as próprias idéias de original e cópia Prossegue o filósofo a reprodução técnica da obra de arte representa um processo novo que se vem desenvolvendo na História intermitentemente através de saltos separados por longos intervalos mas com intensidade crescente Com a xilogravura o desenho tornouse pela primeira vez tecnicamente reprodutível muito antes que a imprensa prestasse o mesmo serviço para a palavra escrita Conhecemos as gigantescas transformações provocadas pela imprensa a reprodução técnica da escrita Mas a imprensa representa apenas um caso especial embora de importância decisiva de um processo histórico mais amplo À xilogravura na Idade Média seguemse a estampa em chapa de cobre e a águaforte assim como a litografia no início do século XIX Com a litografia a técnica de reprodução atinge uma etapa essencialmente nova Esse procedimento muito mais preciso que distingue a transcrição do desenho numa pedra de sua incisão sobre um bloco de madeira ou uma prancha de cobre permitiu às artes gráficas pela primeira vez colocar no mercado suas produções não somente em massa como já acontecia antes mas também sob a forma de criações sempre novas Dessa forma as artes gráficas adquiriram os meios de ilustrar a vida cotidiana Graças à litografia elas começaram a situarse no mesmo nível que a imprensa Mas a litografia ainda estava em seus primórdios quando foi ultrapassada pela fotografia Pela primeira vez no processo de reprodução da imagem a mão foi liberada das responsabilidades artísticas mais importantes que agora cabiam unicamente ao olho Como o olho apreende mais depressa do que a mão desenha o processo de reprodução das imagens experimentou tal aceleração que começou a situarse no mesmo nível que a palavra oral Se o jornal ilustrado estava contido virtualmente na litografia o cinema falado estava virtualmente contido na fotografia A reprodução técnica do Convite à Filosofia 420 som iniciouse no fim do século XIX Com ela a reprodução técnica atingiu tal padrão de qualidade que ela não somente podia transformar em seus objetos a totalidade das obras de arte tradicionais submetendoas a transformações profundas como conquistar para si um lugar próprio entre os procedimentos artísticos A destruição da aura está prefigurada na própria essência da obra de arte como algo possível porque ela possui dois valores o de culto e o de exposição e este último suscita a reprodutibilidade quando as condições sóciohistóricos a exigirem e a possibilitarem Benjamin diz ainda Seria possível reconstituir a História da arte a partir do confronto de dois pólos no interior da própria obra de arte e ver o conteúdo dessa História na variação do peso conferido seja a um pólo seja a outro Os dois pólos são o valor de culto da obra e seu valor de exposição A reprodução artística começa com imagens a serviço da magia O que importa nessas imagens é que existem e não que sejam vistas O alce copiado pelo homem paleolítico nas paredes de sua caverna é um instrumento de magia só ocasionalmente exposto aos olhos dos outros homens no máximo ele deve ser visto pelos espíritos O valor de culto como tal quase obriga a manter secretas as obras de artes certas estátuas divinas somente são acessíveis ao sumo sacerdote na cella certas madonas permanecem cobertas quase o ano inteiro certas esculturas em catedrais da Idade Média são invisíveis do solo para o observador À medida que as obras de arte se emancipam do seu uso ritual aumentam as ocasiões para que sejam expostas A exponibilidade de um busto que pode ser deslocado de um lugar para outro é maior que a de uma estátua divina que tem sua sede fixa no interior de um templo A exponibilidade de um quadro é maior que a de um mosaico ou de um afresco que o precederam E se a exponibilidade de uma missa por sua própria natureza não era talvez menor que a de uma sinfonia esta surgiu num momento em que sua exponibilidade prometia ser maior que a da missa A exponibilidade de uma obra de arte cresceu em tal escala com os vários métodos de sua reprodutibilidade técnica que a mudança de ênfase de um pólo para outro corresponde a uma mudança qualitativa comparável à que ocorreu na préHistória Com efeito assim como na préHistória a preponderância absoluta do valor de culto conferido à obra levoua a ser concebida em primeiro lugar como instrumento mágico e só mais tarde como obra de arte do mesmo modo a preponderância absoluta conferida hoje a seu valor de exposição atribuilhe funções inteiramente novas entre as quais a artística a única de que temos consciência e que talvez se revele mais tarde como secundária Marilena Chauí 421 Uma coisa é certa o cinema nos fornece a base mais útil para examinar essa questão É certo também que o alcance histórico dessa refuncionalização da arte especialmente visível no cinema permite um confronto com a arte da préHistória não só do ponto de vista metodológico como material Essa arte registrava certas imagens a serviço da magia com funções práticas seja como execução de atividades mágicas seja a título de ensinamento dessas práticas mágicas seja como objeto de contemplação à qual se atribuíram efeitos mágicos Os temas eram o homem e seu meio copiados segundo as exigências de uma sociedade cuja técnica se fundia inteiramente com o ritual Essa sociedade é a antítese da nossa cuja técnica é a mais emancipada que jamais existiu Mas essa técnica emancipada se confronta com a sociedade moderna sob a forma de uma segunda natureza não menos elementar que a da sociedade primitiva como provam as guerras e as crises econômicas Diante dessa segunda natureza que o homem inventou mas há muito não controla somos obrigados a aprender como outrora diante da primeira Mais uma vez a arte põese a serviço desse aprendizado Isso se aplica em primeira instância ao cinema O filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada ve z mais em sua vida cotidiana Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo o objeto das inervações humanas é essa tarefa histórica cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro sentido Ao escrever sobre a mudança das artes nos anos 30 Benjamin tinha presente uma realidade e uma esperança A realidade era o nazifascismo e a guerra a esperança a revolução socialista A primeira havia transformado a política e a guerra em espetáculos artísticos Benjamin fala na estetização da política e da guerra transformadas em obras de arte pela propaganda e pelos grandes espetáculos de massa nos quais jogos paradas militares danças ginástica discursos políticos e música formavam um conjunto ou uma totalidade visando a tocar fundo nas emoções e paixões mais primitivas da sociedade Nessa perspectiva a reprodutibilidade técnica das artes estava a serviço da propaganda de mobilização totalitária das classes sociais em torno do grande chefe Ao contrário a esperança na revolução socialista como emancipação do gênero humano levava Benjamin a considerar favoravelmente a perda da aura e a reprodutibilidade da obra de arte como processo de democratização da Cultura como direito de acesso às obras artísticas por toda a sociedade e especialmente pelos trabalhadores Em lugar de a arte ser um privilégio de uma elite seria um direito universal A esperança de Walter Benjamin malogrou Embora o nazifascismo houvesse terminado com o final da Segunda Guerra Mundial a massificação Convite à Filosofia 422 propagandística da arte não terminou com ele foi incorporada pelo stalinismo que desfigurou e destruiu qualquer esperança socialista e pela indústria cultural dos países capitalistas Surgia a cultura de massas Indústria cultural e cultura de massa A modernidade terminou um processo que a Filosofia começara desde a Grécia o desencantamento do mundo isto é a passagem do mito à razão da magia à ciência e à lógica Esse processo liberou as artes da função e finalidade religiosas dandolhes autonomia No entanto a partir da segunda revolução industrial no século XIX e prosseguindo no que se denomina agora sociedade pósindustrial ou pósmoderna iniciada nos anos 70 do século passado as artes foram submetidas a uma nova servidão as regras do mercado capitalista e a ideologia da indústria cultural baseada na idéia e na prática do consumo de produtos culturais fabricados em série As obras de arte são mercadorias como tudo o que existe no capitalismo Perdida a aura a arte não se democratizou massificouse para consumo rápido no mercado da moda e nos meios de comunicação de massa transformandose em propaganda e publicidade sinal de status social prestígio político e controle cultural Sob os efeitos da massificação da indústria e consumo culturais as artes correm o risco de perder três de suas principais características 1 de expressivas tornaremse reprodutivas e repetitivas 2 de trabalho da criação tornaremse eventos para consumo 3 de experimentação do novo tornaremse consagração do consagrado pela moda e pelo consumo A arte possui intrinsecamente valor de exposição ou exponibilidade isto é existe para ser contemplada e fruída É essencialmente espetáculo palavra que vem do latim e significa dado à visibilidade No entanto sob o controle econômico e ideológico das empresas de produção artística a arte se transformou em seu oposto é um evento para tornar invisível a realidade e o próprio trabalho criador das obras É algo para ser consumido e não para ser conhecido fruído e superado por novas obras As obras de arte e de pensamento poderiam democratizarse com os novos meios de comunicação pois todos poderiam em princípio ter acesso a elas conhecê las incorporálas em suas vidas criticálas e os artistas e pensadores poderiam superálas em outras novas A democratização da cultura tem como precondição a idéia de que os bens culturais no sentido restrito de obras de arte e de pensamento e não no sentido antropológico amplo que apresentamos no estudo sobre a idéia de Cultura são direito de todos e não privilégio de alguns Democracia cultural significa direito Marilena Chauí 423 de acesso e de fruição das obras culturais direito à informação e à formação culturais direito à produção cultural Ora a indústria cultural acarreta o resultado oposto ao massificar a Cultura Por quê Em primeiro lugar porque separa os bens culturais pelo seu suposto valor de mercado há obras caras e raras destinadas aos privilegiados que podem pagar por elas formando uma elite cultural e há obras baratas e comuns destinadas à massa Assim em vez de garantir o mesmo direito de todos à totalidade da produção cultural a indústria cultural introduz a divisão social entre elite culta e massa inculta O que é a massa É um agregado sem forma sem rosto sem identidade e sem pleno direito à Cultura Em segundo lugar porque cria a ilusão de que todos têm acesso aos mesmos bens culturais cada um escolhendo livremente o que deseja como o consumidor num supermercado No entanto basta darmos atenção aos horários dos programas de rádio e televisão ou ao que é vendido nas bancas de jornais e revistas para vermos que através dos preços as empresas de divulgação cultural já selecionaram de antemão o que cada grupo social pode e deve ouvir ver ou ler No caso dos jornais e revistas por exemplo a qualidade do papel a qualidade gráfica de letras e imagens o tipo de manchete e de matéria publicada definem o consumidor e determinam o conteúdo daquilo a que terá acesso e tipo de informação que poderá receber Se compararmos numa manhã cinco ou seis jornais perceberemos que o mesmo mundo este no qual todos vivemos transformase em cinco ou seis mundos diferentes ou mesmo opostos pois um mesmo acontecimento recebe cinco ou seis tratamentos diversos em função do leitor que a empresa jornalística pretende atingir Em terceiro lugar porque inventa uma figura chamada espectador médio ouvinte médio e leitor médio aos quais são atribuídas certas capacidades mentais médias certos conhecimentos médios e certos gostos médios oferecendolhes produtos culturais médios Que significa isso A indústria cultural vende Cultura Para vendêla deve seduzir e agradar o consumidor Para seduzilo e agradálo não pode chocálo provocálo fazêlo pensar fazêlo ter informações novas que o perturbem mas deve devolverlhe com nova aparência o que ele já sabe já viu já fez A média é o senso comum cristalizado que a indústria cultural devolve com cara de coisa nova Em quarto lugar porque define a Cultura como lazer e entretenimento diversão e distração de modo que tudo o que nas obras de arte e de pensamento significa trabalho da sensibilidade da imaginação da inteligência da reflexão e da crítica não tem interesse não vende Massificar é assim banalizar a expressão artística e intelectual Em lugar de difundir e divulgar a Cultura despertando Convite à Filosofia 424 interesse por ela a indústria cultural realiza a vulgarização das artes e dos conhecimentos Os meios de comunicação Dos meios de comunicação sem dúvida o rádio e a televisão manifestam mais do que todos os outros esses traços da indústria cultural Começam introduzindo duas divisões a dos públicos as chamadas classes A B C e D e a dos horários a programação se organiza em horários específicos que combinam a classe a ocupação donasdecasa trabalhadores manuais profissionais liberais executivos a idade crianças adolescentes adultos e o sexo Essa divisão é feita para atender às exigências dos patrocinadores que financiam os programas em vista dos consumidores potenciais de seus produtos e portanto criam a especificação do conteúdo e do horário de cada programa Em outras palavras o conteúdo a forma e o horário do programa já trazem em seu próprio interior a marca do patrocinador Muitas vezes o patrocinador financia um programa que nada tem a ver diretamente com o conteúdo e a forma veiculados Ele o faz porque nesse caso não está vendendo um produto mas a imagem de sua empresa É assim por exemplo que uma empresa de cosméticos pode em lugar de patrocinar um programa feminino patrocinar concertos de música clássica uma revendedora de motocicletas em lugar de patrocinar um programa para adolescentes pode patrocinar um programa sobre ecologia A figura do patrocinador determina o conteúdo e a forma de outros programas ainda que não patrocinados por ele Por exemplo um banco de um governo estadual pode patrocinar um programa de auditório pois isto é conveniente para atrair clientes mas pode indiretamente influenciar o conteúdo veiculado pelos noticiários Por quê Porque a quantidade de dinheiro paga pelo banco à rádio ou à televisão para o programa de auditório é muito elevada e interessa aos proprietários daquela rádio ou televisão Se o noticiário apresentar notícias desfavoráveis ao governo do Estado ao qual pertence o banco este pode suspender o patrocínio do programa de auditório Para não perder o cliente a emissora de rádio ou de televisão não veicula notícias desfavoráveis àquele governo e pior veicula apenas as que lhe são favoráveis Dessa maneira o direito à informação desaparece e os ouvintes ou telespectadores são desinformados ou ficam mal informados A desinformação aliás é o principal resultado da maioria dos noticiários de rádio e televisão Com efeito como são apresentadas as notícias De modo geral são apresentadas de maneira a impedir que o ouvinte e o espectador possam localizá la no espaço e no tempo Marilena Chauí 425 Falta de localização espacial o espaço real é o aparelho de rádio e a tela da televisão que tem a peculiaridade de retirar as diferenças e distâncias geográficas de tal modo que algo acontecido na China na Índia nos Estados Unidos ou em Campina Grande pareça igualmente próximo e igualmente distante Falta de localização temporal os acontecimentos são relatados como se não tivessem causas passadas nem efeitos futuros surgem como pontos puramente atuais ou presentes sem continuidade no tempo sem origem e sem conseqüências existem enquanto forem objetos de transmissão e deixam de existir se não forem transmitidos Paradoxalmente rádio e televisão podem oferecernos o mundo inteiro num instante mas o fazem de tal maneira que o mundo real desaparece restando apenas retalhos fragmentados de uma realidade desprovida de raiz no espaço e no tempo Nada sabemos depois de termos tido a ilusão de que fomos informados sobre tudo Também é interessante a inversão entre realidade e ficção produzida pela mídia Acabamos de mencionar o modo como o noticiário nos apresenta um mundo irreal sem História sem causas nem conseqüências descontínuo e fragmentado Em contrapartida as novelas criam o sentimento de realidade Elas o fazem usando três procedimentos principais 1 o tempo dos acontecimentos novelísticos é lento para dar a ilusão de que a cada capítulo passouse apenas um dia de nossa vida ou passaramse algumas horas tais como realmente passariam se fôssemos nós a viver os acontecimentos narrados 2 os personagens seus hábitos sua linguagem suas casas suas roupas seus objetos são apresentados com o máximo de realismo possível de modo a impedir que tenhamos distância diante deles ao contrário do cinema e do teatro que suscitam em nós o sentimento de proximidade justamente porque nos fazem experimentar o da distância 3 como conseqüência a novela nos aparece como relato do real enquanto o noticiário nos aparece como irreal Basta ver por exemplo a reação de cidades inteiras quando uma personagem da novela morre as pessoas choram querem ir ao enterro ficam de luto e a falta de reação das pessoas diante de chacinas reais apresentadas nos noticiários Vale a pena também mencionar dois outros efeitos que a mídia produz em nossas mentes a dispersão da atenção e a infantilização Para atender aos interesses econômicos dos patrocinadores a mídia divide a programação em blocos que duram de sete a dez minutos cada bloco sendo interrompido pelos comerciais Essa divisão do tempo nos leva a concentrar a Convite à Filosofia 426 atenção durante os sete ou dez minutos de programa e a desconcentrála durante as pausas para a publicidade Pouco a pouco isso se torna um hábito Artistas de teatro afirmam que durante um espetáculo sentem o público ficar desatento a cada sete minutos Professores observam que seus alunos perdem a atenção a cada dez minutos e só voltam a se concentrar após uma pausa que dão a si mesmos como se dividissem a aula em programa e comercial Ora um dos resultados dessa mudança mental transparece quando criança e jovem tentam ler um livro não conseguem ler mais do que sete a dez minutos de cada vez não conseguem suportar a ausência de imagens e ilustrações no texto não suportam a idéia de precisar ler um livro inteiro A atenção e a concentração a capacidade de abstração intelectual e de exercício do pensamento foram destruídas Como esperar que possam desejar e interessarse pelas obras de arte e de pensamento Por ser um ramo da indústria cultural e portanto por ser fundamentalmente uma vendedora de Cultura que precisa agradar o consumidor a mídia infantiliza Como isso acontece Uma pessoa criança ou não é infantil quando não consegue suportar a distância temporal entre seu desejo e a satisfação dele A criança é infantil justamente porque para ela o intervalo entre o desejo e a satisfação é intolerável por isso a criança pequenina chora tanto Ora o que faz a mídia Promete e oferece gratificação instantânea Como o consegue Criando em nós os desejos e oferecendo produtos publicidade e programação para satisfazêlos O ouvinte que gira o dial do aparelho de rádio continuamente e o telespectador que muda continuamente de canal o fazem porque sabem que em algum lugar seu desejo será imediatamente satisfeito Além disso como a programação se dirige ao que já sabemos e já gostamos e como toma a cultura sob a forma de lazer e entretenimento a mídia satisfaz imediatamente nossos desejos porque não exige de nós atenção pensamento reflexão crítica perturbação de nossa sensibilidade e de nossa fantasia Em suma não nos pede o que as obras de arte e de pensamento nos pedem trabalho sensorial e mental para compreendêlas amálas criticálas superálas A Cultura nos satisfaz se tivermos paciência para compreendêla e decifrála Exige maturidade A mídia nos satisfaz porque nada nos pede senão que permaneçamos sempre infantis Um último traço da indústria cultural que merece nossa atenção é seu autoritarismo sob a aparência de democracia Um dos melhores exemplos encontrase nos programas de aconselhamento Um especialista é sempre um especialista nos ensina a viver um outro nos ensina a criar os filhos outro nos ensina a fazer sexo e assim vão se sucedendo especialistas que nos ensinam a ter um corpo juvenil e saudável boas maneiras jardinagem meditação espiritual Marilena Chauí 427 enfim não há um único aspecto de nossa existência que deixe de ser ensinado por um especialista competente Em princípio seria absurdo e injusto considerar tais ensinamentos como autoritários Pelo contrário deveríamos considerálos uma forma de democratizar e sociabilizar conhecimentos Onde se encontra o lado autoritário desse tipo de programação no rádio e na televisão e de publicação no caso de jornais revistas e livros No fato de que funcionam como intimidação social De fato como a mídia nos infantiliza diminui nossa atenção e capacidade de pensamento inverte realidade e ficção e promete por meio da publicidade colocar a felicidade imediatamente ao alcance de nossas mãos transformanos num público dócil e passivo Uma vez que nos tornamos dóceis e passivos os programas de aconselhamento longe de divulgar informações como parece ser a intenção generosa dos especialistas tornase um processo de inculcação de valores hábitos comportamentos e idéias pois não estamos preparados para pensar avaliar e julgar o que vemos ouvimos e lemos Por isso ficamos intimidados isto é passamos a considerar que nada sabemos que somos incompetentes para viver e agir se não seguirmos a autoridade competente do especialista Dessa maneira um conjunto de programas e publicações que poderiam ter verdadeiro significado cultural tornamse o contrário da Cultura e de sua democratização pois se dirigem a um público transformado em massa inculta desinformada e passiva Cinema e televisão Como a televisão o cinema é uma indústria Como ela depende de investimentos mercados propaganda Como ela preocupase com o lucro a moda o consumo No entanto independentemente da boa ou má qualidade dos filmes o cinema difere da televisão em um aspecto fundamental A televisão é um meio técnico de comunicação à distância que empresta do jornalismo a idéia de reportagem e notícia da literatura a idéia do folhetim novelesco do teatro a idéia de relação com um público presente e do cinema os procedimentos com imagens Do ponto de vista do receptor o aparelho televisor é um eletrodoméstico como o liquidificador ou a geladeira O cinema é a forma contemporânea da arte a da imagem sonora em movimento Nele a câmera capta uma sociedade complexa múltipla e diferenciada combinando de maneira totalmente nova música dança literatura escultura pintura arquitetura história e pelos efeitos especiais criando realidades novas insólitas numa imaginação plástica infinita que só tem correspondência nos sonhos Convite à Filosofia 428 Como o livro o cinema tem o poder extraordinário próprio da obra de arte de tornar presente o ausente próximo o distante distante o próximo entrecruzando realidade e irrealidade verdade e fantasia reflexão e devaneio Nele a criatividade do diretor e a expressividade dramática ou cômica do intérprete pode manifestarse e oferecerse plenamente ao público sem distinção étnica sexual religiosa ou social Apesar dos pesares Benjamin tinha razão ao considerar o cinema a arte democrática do nosso tempo Marilena Chauí 429 Capítulo 4 A existência ética Senso moral e consciência moral Muitas vezes tomamos conhecimento de movimentos nacionais e internacionais de luta contra a fome Ficamos sabendo que em outros países e no nosso milhares de pessoas sobretudo crianças e velhos morrem de penúria e inanição Sentimos piedade Sentimos indignação diante de tamanha injustiça especialmente quando vemos o desperdício dos que não têm fome e vivem na abundância Sentimos responsabilidade Movidos pela solidariedade participamos de campanhas contra a fome Nossos sentimentos e nossas ações exprimem nosso senso moral Quantas vezes levados por algum impulso incontrolável ou por alguma emoção forte medo orgulho ambição vaidade covardia fazemos alguma coisa de que depois sentimos vergonha remorso culpa Gostaríamos de voltar atrás no tempo e agir de modo diferente Esses sentimentos também exprimem nosso senso moral Em muitas ocasiões ficamos contentes e emocionados diante de uma pessoa cujas palavras e ações manifestam honestidade honradez espírito de justiça altruísmo mesmo quando tudo isso lhe custa sacrifícios Sentimos que há grandeza e dignidade nessa pessoa Temos admiração por ela e desejamos imitá la Tais sentimentos e admiração também exprimem nosso senso moral Não raras vezes somos tomados pelo horror diante da violência chacinas de seres humanos e animais linchamentos assassinatos brutais estupros genocídio torturas e suplícios Com freqüência ficamos indignados ao saber que um inocente foi injustamente acusado e condenado enquanto o verdadeiro culpado permanece impune Sentimos cólera diante do cinismo dos mentirosos dos que usam outras pessoas como instrumento para seus interesses e para conseguir vantagens às custas da boafé de outros Todos esses sentimentos manifestam nosso senso moral Vivemos certas situações ou sabemos que foram vividas por outros como situações de extrema aflição e angústia Assim por exemplo uma pessoa querida com uma doença terminal está viva apenas porque seu corpo está ligado a máquinas que a conservam Suas dores são intoleráveis Inconsciente geme no sofrimento Não seria melhor que descansasse em paz Não seria preferível deixála morrer Podemos desligar os aparelhos Ou não temos o direito de fazê lo Que fazer Qual a ação correta Convite à Filosofia 430 Uma jovem descobre que está grávida Sente que seu corpo e seu espírito ainda não estão preparados para a gravidez Sabe que seu parceiro mesmo que deseje apoiála é tão jovem e despreparado quanto ela e que ambos não terão como se responsabilizar plenamente pela gestação pelo parto e pela criação de um filho Ambos estão desorientados Não sabem se poderão contar com o auxílio de suas famílias se as tiverem Se ela for apenas estudante terá que deixar a escola para trabalhar a fim de pagar o parto e arcar com as despesas da criança Sua vida e seu futuro mudarão para sempre Se trabalha sabe que perderá o emprego porque vive numa sociedade onde os patrões discriminam as mulheres grávidas sobretudo as solteiras Receia não contar com os amigos Ao mesmo tempo porém deseja a criança sonha com ela mas teme darlhe uma vida de miséria e ser injusta com quem não pediu para nascer Pode fazer um aborto Deve fazêlo Um pai de família desempregado com vários filhos pequenos e a esposa doente recebe uma oferta de emprego mas que exige que seja desonesto e cometa irregularidades que beneficiem seu patrão Sabe que o trabalho lhe permitirá sustentar os filhos e pagar o tratamento da esposa Pode aceitar o emprego mesmo sabendo o que será exigido dele Ou deve recusálo e ver os filhos com fome e a mulher morrendo Um rapaz namora há tempos uma moça de quem gosta muito e é por ela correspondido Conhece uma outra Apaixonase perdidamente e é correspondido Ama duas mulheres e ambas o amam Pode ter dois amores simultâneos ou estará traindo a ambos e a si mesmo Deve magoar uma delas e a si mesmo rompendo com uma para ficar com a outra O amor exige uma única pessoa amada ou pode ser múltiplo Que sentirão as duas mulheres se ele lhes contar o que se passa Ou deverá mentir para ambas Que fazer Se enquanto está atormentado pela decisão um conhecido o vê ora com uma das mulheres ora com a outra e conhecendo uma delas deve contar a ela o que viu Em nome da amizade deve falar ou calar Uma mulher vê um roubo Vê uma criança maltrapilha e esfomeada roubar frutas e pães numa mercearia Sabe que o dono da mercearia está passando por muitas dificuldades e que o roubo fará diferença para ele Mas também vê a miséria e a fome da criança Deve denunciála julgando que com isso a criança não se tornará um adulto ladrão e o proprietário da mercearia não terá prejuízo Ou deverá silenciar pois a criança corre o risco de receber punição excessiva ser levada para a polícia ser jogada novamente às ruas e agora revoltada passar do furto ao homicídio Que fazer Situações como essas mais dramáticas ou menos dramáticas surgem sempre em nossas vidas Nossas dúvidas quanto à decisão a tomar não manifestam apenas nosso senso moral mas também põem à prova nossa consciência moral pois exigem que decidamos o que fazer que justifiquemos para nós mesmos e Marilena Chauí 431 para os outros as razões de nossas decisões e que assumamos todas as conseqüências delas porque somos responsáveis por nossas opções Todos os exemplos mencionados indicam que o senso moral e a consciência moral referemse a valores justiça honradez espírito de sacrifício integridade generosidade a sentimentos provocados pelos valores admiração vergonha culpa remorso contentamento cólera amor dúvida medo e a decisões que conduzem a ações com conseqüências para nós e para os outros Embora os conteúdos dos valores variem podemos notar que estão referidos a um valor mais profundo mesmo que apenas subentendido o bom ou o bem Os sentimentos e as ações nascidos de uma opção entre o bom e o mau ou entre o bem e o mal também estão referidos a algo mais profundo e subentendido nosso desejo de afastar a dor e o sofrimento e de alcançar a felicidade seja por ficarmos contentes conosco mesmos seja por recebermos a aprovação dos outros O senso e a consciência moral dizem respeito a valores sentimentos intenções decisões e ações referidos ao bem e ao mal e ao desejo de felicidade Dizem respeito às relações que mantemos com os outros e portanto nascem e existem como parte de nossa vida intersubjetiva Juízo de fato e de valor Se dissermos Está chovendo estaremos enunciando um acontecimento constatado por nós e o juízo proferido é um juízo de fato Se porém falarmos A chuva é boa para as plantas ou A chuva é bela estaremos interpretando e avaliando o acontecimento Nesse caso proferimos um juízo de valor Juízos de fato são aqueles que dizem o que as coisas são como são e por que são Em nossa vida cotidiana mas também na metafísica e nas ciências os juízos de fato estão presentes Diferentemente deles os juízos de valor avaliações sobre coisas pessoas e situações são proferidos na moral nas artes na política na religião Juízos de valor avaliam coisas pessoas ações experiências acontecimentos sentimentos estados de espírito intenções e decisões como bons ou maus desejáveis ou indesejáveis Os juízos éticos de valor são também normativos isto é enunciam normas que determinam o dever ser de nossos sentimentos nossos atos nossos comportamentos São juízos que enunciam obrigações e avaliam intenções e ações segundo o critério do correto e do incorreto Os juízos éticos de valor nos dizem o que são o bem o mal a felicidade Os juízos éticos normativos nos dizem que sentimentos intenções atos e comportamentos devemos ter ou fazer para alcançarmos o bem e a felicidade Enunciam também que atos sentimentos intenções e comportamentos são condenáveis ou incorretos do ponto de vista moral Convite à Filosofia 432 Como se pode observar senso moral e consciência moral são inseparáveis da vida cultural uma vez que esta define para seus membros os valores positivos e negativos que devem respeitar ou detestar Qual a origem da diferença entre os dois tipos de juízos A diferença entre a Natureza e a Cultura A primeira como vimos é constituída por estruturas e processos necessários que existem em si e por si mesmos independentemente de nós a chuva é um fenômeno meteorológico cujas causas e cujos efeitos necessários podemos constatar e explicar Por sua vez a Cultura nasce da maneira como os seres humanos interpretam a si mesmos e suas relações com a Natureza acrescentandolhe sentidos novos intervindo nela alterandoa através do trabalho e da técnica dandolhe valores Dizer que a chuva é boa para as plantas pressupõe a relação cultural dos humanos com a Natureza através da agricultura Considerar a chuva bela pressupõe uma relação valorativa dos humanos com a Natureza percebida como objeto de contemplação Freqüentemente não notamos a origem cultural dos valores éticos do senso moral e da consciência moral porque somos educados cultivados para eles e neles como se fossem naturais ou fáticos existentes em si e por si mesmos Para garantir a manutenção dos padrões morais através do tempo e sua continuidade de geração a geração as sociedades tendem a naturalizálos A naturalização da existência moral esconde portanto o mais importante da ética o fato de ela ser criação históricocultural Ética e violência Quando acompanhamos a história das idéias éticas desde a Antiguidade clássica grecoromana até nossos dias podemos perceber que em seu centro encontra se o problema da violência e dos meios para evitála diminuíla controlála Diferentes formações sociais e culturais instituíram conjuntos de valores éticos como padrões de conduta de relações intersubjetivas e interpessoais de comportamentos sociais que pudessem garantir a integridade física e psíquica de seus membros e a conservação do grupo social Evidentemente as várias culturas e sociedades não definiram e nem definem a violência da mesma maneira mas ao contrário dãolhe conteúdos diferentes segundo os tempos e os lugares No entanto malgrado as diferenças certos aspectos da violência são percebidos da mesma maneira nas várias culturas e sociedades formando o fundo comum contra o qual os valores éticos são erguidos Fundamentalmente a violência é percebida como exercício da força física e da coação psíquica para obrigar alguém a fazer alguma coisa contrária a si contrária aos seus interesses e desejos contrária ao seu corpo e à sua consciência causandolhe danos profundos e irreparáveis como a morte a loucura a autoagressão ou a agressão aos outros Marilena Chauí 433 Quando uma cultura e uma sociedade definem o que entendem por mal crime e vício circunscrevem aquilo que julgam violência contra um indivíduo ou contra o grupo Simultaneamente erguem os valores positivos o bem e a virtude como barreiras éticas contra a violência Em nossa cultura a violência é entendida como o uso da força física e do constrangimento psíquico para obrigar alguém a agir de modo contrário à sua natureza e ao seu ser A violência é a violação da integridade física e psíquica da dignidade humana de alguém Eis por que o assassinato a tortura a injustiça a mentira o estupro a calúnia a máfé o roubo são considerados violência imoralidade e crime Considerando que a humanidade dos humanos reside no fato de serem racionais dotados de vontade livre de capacidade para a comunicação e para a vida em sociedade de capacidade para interagir com a Natureza e com o tempo nossa cultura e sociedade nos definem como sujeitos do conhecimento e da ação localizando a violência em tudo aquilo que reduz um sujeito à condição de objeto Do ponto de vista ético somos pessoas e não podemos ser tratados como coisas Os valores éticos se oferecem portanto como expressão e garantia de nossa condição de sujeitos proibindo moralmente o que nos transforme em coisa usada e manipulada por outros A ética é normativa exatamente por isso suas normas visando impor limites e controles ao risco permanente da violência Os constituintes do campo ético Para que haja conduta ética é preciso que exista o agente consciente isto é aquele que conhece a diferença entre bem e mal certo e errado permitido e proibido virtude e vício A consciência moral não só conhece tais diferenças mas também reconhecese como capaz de julgar o valor dos atos e das condutas e de agir em conformidade com os valores morais sendo por isso responsável por suas ações e seus sentimentos e pelas conseqüências do que faz e sente Consciência e responsabilidade são condições indispensáveis da vida ética A consciência moral manifestase antes de tudo na capacidade para deliberar diante de alternativas possíveis decidindo e escolhendo uma delas antes de lançarse na ação Tem a capacidade para avaliar e pesar as motivações pessoais as exigências feitas pela situação as conseqüências para si e para os outros a conformidade entre meios e fins empregar meios imorais para alcançar fins morais é impossível a obrigação de respeitar o estabelecido ou de transgredilo se o estabelecido for imoral ou injusto A vontade é esse poder deliberativo e decisório do agente moral Para que exerça tal poder sobre o sujeito moral a vontade deve ser livre isto é não pode estar submetida à vontade de um outro nem pode estar submetida aos instintos e às paixões mas ao contrário deve ter poder sobre eles e elas Convite à Filosofia 434 O campo ético é assim constituído pelos valores e pelas obrigações que formam o conteúdo das condutas morais isto é as virtudes Estas são realizadas pelo sujeito moral principal constituinte da existência ética O sujeito ético ou moral isto é a pessoa só pode existir se preencher as seguintes condições ser consciente de si e dos outros isto é ser capaz de reflexão e de reconhecer a existência dos outros como sujeitos éticos iguais a ele ser dotado de vontade isto é de capacidade para controlar e orientar desejos impulsos tendências sentimentos para que estejam em conformidade com a consciência e de capacidade para deliberar e decidir entre várias alternativas possíveis ser responsável isto é reconhecerse como autor da ação avaliar os efeitos e conseqüências dela sobre si e sobre os outros assumila bem como às suas conseqüências respondendo por elas ser livre isto é ser capaz de oferecerse como causa interna de seus sentimentos atitudes e ações por não estar submetido a poderes externos que o forcem e o constranjam a sentir a querer e a fazer alguma coisa A liberdade não é tanto o poder para escolher entre vários possíveis mas o poder para autodeterminarse dando a si mesmo as regras de conduta O campo ético é portanto constituído por dois pólos internamente relacionados o agente ou sujeito moral e os valores morais ou virtudes éticas Do ponto de vista do agente ou sujeito moral a ética faz uma exigência essencial qual seja a diferença entre passividade e atividade Passivo é aquele que se deixa governar e arrastar por seus impulsos inclinações e paixões pelas circunstâncias pela boa ou má sorte pela opinião alheia pelo medo dos outros pela vontade de um outro não exercendo sua própria consciência vontade liberdade e responsabilidade Ao contrário é ativo ou virtuoso aquele que controla interiormente seus impulsos suas inclinações e suas paixões discute consigo mesmo e com os outros o sentido dos valores e dos fins estabelecidos indaga se devem e como devem ser respeitados ou transgredidos por outros valores e fins superiores aos existentes avalia sua capacidade para dar a si mesmo as regras de conduta consulta sua razão e sua vontade antes de agir tem consideração pelos outros sem subordinarse nem submeterse cegamente a eles responde pelo que faz julga suas próprias intenções e recusa a violência contra si e contra os outros Numa palavra é autônomo xii Do ponto de vista dos valores a ética exprime a maneira como a cultura e a sociedade definem para si mesmas o que julgam ser a violência e o crime o mal e o vício e como contrapartida o que consideram ser o bem e a virtude Por Marilena Chauí 435 realizarse como relação intersubjetiva e social a ética não é alheia ou indiferente às condições históricas e políticas econômicas e culturais da ação moral Conseqüentemente embora toda ética seja universal do ponto de vista da sociedade que a institui universal porque seus valores são obrigatórios para todos os seus membros está em relação com o tempo e a História transformandose para responder a exigências novas da sociedade e da Cultura pois somos seres históricos e culturais e nossa ação se desenrola no tempo Além do sujeito ou pessoa moral e dos valores ou fins morais o campo ético é ainda constituído por um outro elemento os meios para que o sujeito realize os fins Costumase dizer que os fins justificam os meios de modo que para alcançar um fim legítimo todos os meios disponíveis são válidos No caso da ética porém essa afirmação deixa de ser óbvia Suponhamos uma sociedade que considere um valor e um fim moral a lealdade entre seus membros baseada na confiança recíproca Isso significa que a mentira a inveja a adulação a máfé a crueldade e o medo deverão estar excluídos da vida moral e ações que os empreguem como meios para alcançar o fim serão imorais No entanto poderia acontecer que para forçar alguém à lealdade seria preciso fazêlo sentir medo da punição pela deslealdade ou seria preciso mentirlhe para que não perdesse a confiança em certas pessoas e continuasse leal a elas Nesses casos o fim a lealdade não justificaria os meios medo e mentira A resposta ética é não Por quê Porque esses meios desrespeitam a consciência e a liberdade da pessoa moral que agiria por coação externa e não por reconhecimento interior e verdadeiro do fim ético No caso da ética portanto nem todos os meios são justificáveis mas apenas aqueles que estão de acordo com os fins da própria ação Em outras palavras fins éticos exigem meios éticos A relação entre meios e fins pressupõe que a pessoa moral não existe como um fato dado mas é instaurada pela vida intersubjetiva e social precisando ser educada para os valores morais e para as virtudes Poderíamos indagar se a educação ética não seria uma violência Em primeiro lugar porque se tal educação visa a transformarnos de passivos em ativos poderíamos perguntar se nossa natureza não seria essencialmente passional e portanto forçarnos à racionalidade ativa não seria um ato de violência contra a nossa natureza espontânea Em segundo lugar porque se a tal educação visa a colocarnos em harmonia e em acordo com os valores de nossa sociedade poderíamos indagar se isso não nos faria submetidos a um poder externo à nossa consciência o poder da moral social Para responder a essas questões precisamos examinar o desenvolvimento das idéias éticas na Filosofia Convite à Filosofia 436 Capítulo 5 A filosofia moral Ética ou filosofia moral Toda cultura e cada sociedade institui uma moral isto é valores concernentes ao bem e ao mal ao permitido e ao proibido e à conduta correta válidos para todos os seus membros Culturas e sociedades fortemente hierarquizadas e com diferenças muito profundas de castas ou de classes podem até mesmo possuir várias morais cada uma delas referida aos valores de uma casta ou de uma classe social No entanto a simples existência da moral não significa a presença explícita de uma ética entendida como filosofia moral isto é uma reflexão que discuta problematize e interprete o significado dos valores morais Podemos dizer a partir dos textos de Platão e de Aristóteles que no Ocidente a ética ou filosofia moral iniciase com Sócrates Percorrendo praças e ruas de Atenas contam Platão e Aristóteles Sócrates perguntava aos atenienses fossem jovens ou velhos o que eram os valores nos quais acreditavam e que respeitavam ao agir Que perguntas Sócrates lhes fazia Indagava O que é a coragem O que é a justiça O que é a piedade O que é a amizade A elas os atenienses respondiam dizendo serem virtudes Sócrates voltava a indagar O que é a virtude Retrucavam os atenienses É agir em conformidade com o bem E Sócrates questionava Que é o bem As perguntas socráticas terminavam sempre por revelar que os atenienses respondiam sem pensar no que diziam Repetiam o que lhes fora ensinado desde a infância Como cada um havia interpretado à sua maneira o que aprendera era comum no diálogo com o filósofo uma pergunta receber respostas diferentes e contraditórias Após um certo tempo de conversa com Sócrates um ateniense viase diante de duas alternativas ou zangarse e ir embora irritado ou reconhecer que não sabia o que imaginava saber dispondose a começar na companhia socrática a busca filosófica da virtude e do bem Por que os atenienses sentiamse embaraçados e mesmo irritados com as perguntas socráticas Por dois motivos principais em primeiro lugar por perceberem que confundiam valores morais com os fatos constatáveis em sua vida cotidiana diziam por exemplo Coragem é o que fez fulano na guerra contra os persas em segundo lugar porque inversamente tomavam os fatos da Marilena Chauí 437 vida cotidiana como se fossem valores morais evidentes diziam por exemplo É certo fazer tal ação porque meus antepassados a fizeram e meus parentes a fazem Em resumo confundiam fatos e valores pois ignoravam as causas ou razões por que valorizavam certas coisas certas pessoas ou certas ações e desprezavam outras embaraçandose ou irritandose quando Sócrates lhes mostrava que estavam confusos Tais confusões porém não eram e não são inexplicáveis Nossos sentimentos nossas condutas nossas ações e nossos comportamentos são modelados pelas condições em que vivemos família classe e grupo social escola religião trabalho circunstâncias políticas etc Somos formados pelos costumes de nossa sociedade que nos educa para respeitarmos e reproduzirmos os valores propostos por ela como bons e portanto como obrigações e deveres Dessa maneira valores e maneiras parecem existir por si e em si mesmos parecem ser naturais e intemporais fatos ou dados com os quais nos relacionamos desde o nosso nascimento somos recompensados quando os seguimos punidos quando os transgredimos Sócrates embaraçava os atenienses porque os forçava a indagar qual a origem e a essência das virtudes valores e obrigações que julgavam praticar ao seguir os costumes de Atenas Como e por que sabiam que uma conduta era boa ou má virtuosa ou viciosa Por que por exemplo a coragem era considerada virtude e a covardia vício Por que valorizavam positivamente a justiça e desvalorizavam a injustiça combatendoa Numa palavra o que eram e o que valiam realmente os costumes que lhes haviam sido ensinados Os costumes porque são anteriores ao nosso nascimento e formam o tecido da sociedade em que vivemos são considerados inquestionáveis e quase sagrados as religiões tendem a mostrálos como tendo sido ordenados pelos deuses na origem dos tempos Ora a palavra costume se diz em grego ethos donde ética e em latim mores donde moral Em outras palavras ética e moral referemse ao conjunto de costumes tradicionais de uma sociedade e que como tais são considerados valores e obrigações para a conduta de seus membros Sócrates indagava o que eram de onde vinham o que valiam tais costumes No entanto a língua grega possui uma outra palavra que infelizmente precisa ser escrita em português com as mesmas letras que a palavra que significa costume ethos Em grego existem duas vogais para pronunciar e grafar nossa vogal e uma vogal breve chamada epsilon e uma vogal longa chamada eta Ethos escrita com a vogal longa ethos com eta significa costume porém escrita com a vogal breve ethos com epsilon significa caráter índole natural temperamento conjunto das disposições físicas e psíquicas de uma pessoa Nesse segundo sentido ethos se refere às características pessoais de cada um que determinam quais virtudes e quais vícios cada um é capaz de praticar Referese portanto ao senso moral e à consciência ética individuais Convite à Filosofia 438 Dirigindose aos atenienses Sócrates lhes perguntava qual o sentido dos costumes estabelecidos ethos com eta os valores éticos ou morais da coletividade transmitidos de geração a geração mas também indagava quais as disposições de caráter ethos com epsilon características pessoais sentimentos atitudes condutas individuais que levavam alguém a respeitar ou a transgredir os valores da cidade e por quê Ao indagar o que são a virtude e o bem Sócrates realiza na verdade duas interrogações Por um lado interroga a sociedade para saber se o que ela costuma ethos com eta considerar virtuoso e bom corresponde efetivamente à virtude e ao bem e por outro lado interroga os indivíduos para saber se ao agir possuem efetivamente consciência do significado e da finalidade de suas ações se seu caráter ou sua índole ethos com epsilon são realmente virtuosos e bons A indagação ética socrática dirigese portanto à sociedade e ao indivíduo As questões socráticas inauguram a ética ou filosofia moral porque definem o campo no qual valores e obrigações morais podem ser estabelecidos ao encontrar seu ponto de partida a consciência do agente moral É sujeito ético moral somente aquele que sabe o que faz conhece as causas e os fins de sua ação o significado de suas intenções e de suas atitudes e a essência dos valores morais Sócrates afirma que apenas o ignorante é vicioso ou incapaz de virtude pois quem sabe o que é o bem não poderá deixar de agir virtuosamente Se devemos a Sócrates o início da filosofia moral devemos a Aristóteles a distinção entre saber teorético e saber prático O saber teorético é o conhecimento de seres e fatos que existem e agem independentemente de nós e sem nossa intervenção ou interferência Temos conhecimento teorético da Natureza O saber prático é o conhecimento daquilo que só existe como conseqüência de nossa ação e portanto depende de nós A ética é um saber prático O saber prático por seu turno distinguese de acordo com a prática considerada como práxis ou como técnica A ética referese à práxis Na práxis o agente a ação e a finalidade do agir são inseparáveis Assim por exemplo dizer a verdade é uma virtude do agente inseparável de sua fala verdadeira e de sua finalidade que é proferir uma verdade Na práxis ética somos aquilo que fazemos e o que fazemos é a finalidade boa ou virtuosa Ao contrário na técnica diz Aristóteles o agente a ação e a finalidade da ação estão separados sendo independentes uns dos outros Um carpinteiro por exemplo ao fazer uma mesa realiza uma ação técnica mas ele próprio não é essa ação nem é a mesa produzida pela ação A técnica tem como finalidade a fabricação de alguma coisa diferente do agente e da ação fabricadora Dessa maneira Aristóteles distingue a ética e a técnica como práticas que diferem pelo modo de relação do agente com a ação e com a finalidade da ação Também devemos a Aristóteles a definição do campo das ações éticas Estas não só são definidas pela virtude pelo bem e pela obrigação mas também pertencem Marilena Chauí 439 àquela esfera da realidade na qual cabem a deliberação e a decisão ou escolha Em outras palavras quando o curso de uma realidade segue leis necessárias e universais não há como nem por que deliberar e escolher pois as coisas acontecerão necessariamente tais como as leis que as regem determinam que devam acontecer Não deliberamos sobre as estações do ano o movimento dos astros a forma dos minerais ou dos vegetais Não deliberamos e nem decidimos sobre aquilo que é regido pela Natureza isto é pela necessidade Mas deliberamos e decidimos sobre tudo aquilo que para ser e acontecer depende de nossa vontade e de nossa ação Não deliberamos e não decidimos sobre o necessário pois o necessário é o que é e o que será sempre independentemente de nós Deliberamos e decidimos sobre o possível isto é sobre aquilo que pode ser ou deixar de ser porque para ser e acontecer depende de nós de nossa vontade e de nossa ação Aristóteles acrescenta à consciência moral trazida por Sócrates a vontade guiada pela razão como o outro elemento fundamental da vida ética A importância dada por Aristóteles à vontade racional à deliberação e à escolha o levou a considerar uma virtude como condição de todas as outras e presente em todas elas a prudência ou sabedoria prática O prudente é aquele que em todas as situações é capaz de julgar e avaliar qual a atitude e qual a ação que melhor realizarão a finalidade ética ou seja entre as várias escolhas possíveis qual a mais adequada para que o agente seja virtuoso e realize o que é bom para si e para os outros Se examinarmos o pensamento filosófico dos antigos veremos que nele a ética afirma três grandes princípios da vida moral 1 por natureza os seres humanos aspiram ao bem e à felicidade que só podem ser alcançados pela conduta virtuosa 2 a virtude é uma força interior do caráter que consiste na consciência do bem e na conduta definida pela vontade guiada pela razão pois cabe a esta última o controle sobre instintos e impulsos irracionais descontrolados que existem na natureza de todo ser humano 3 a conduta ética é aquela na qual o agente sabe o que está e o que não está em seu poder realizar referindose portanto ao que é possível e desejável para um ser humano Saber o que está em nosso poder significa principalmente não se deixar arrastar pelas circunstâncias nem pelos instintos nem por uma vontade alheia mas afirmar nossa independência e nossa capacidade de autodeterminação O sujeito ético ou moral não se submete aos acasos da sorte à vontade e aos desejos de um outro à tirania das paixões mas obedece apenas à sua consciência que conhece o bem e as virtudes e à sua vontade racional que conhece os Convite à Filosofia 440 meios adequados para chegar aos fins morais A busca do bem e da felicidade são a essência da vida ética Os filósofos antigos gregos e romanos consideravam a vida ética transcorrendo como um embate contínuo entre nossos apetites e desejos as paixões e nossa razão Por natureza somos passionais e a tarefa primeira da ética é a educação de nosso caráter ou de nossa natureza para seguirmos a orientação da razão A vontade possuía um lugar fundamental nessa educação pois era ela que deveria ser fortalecida para permitir que a razão controlasse e dominasse as paixões O passional é aquele que se deixa arrastar por tudo quanto satisfaça imediatamente seus apetites e desejos tornandose escravo deles Desconhece a moderação busca tudo imoderadamente acabando vítima de si mesmo Podemos resumir a ética dos antigos em três aspectos principais 1 o racionalismo a vida virtuosa é agir em conformidade com a razão que conhece o bem o deseja e guia nossa vontade até ele 2 o naturalismo a vida virtuosa é agir em conformidade com a Natureza o cosmos e com nossa natureza nosso ethos que é uma parte do todo natural 3 a inseparabilidade entre ética e política isto é entre a conduta do indivíduo e os valores da sociedade pois somente na existência compartilhada com outros encontramos liberdade justiça e felicidade A ética portanto era concebida como educação do caráter do sujeito moral para dominar racionalmente impulsos apetites e desejos para orientar a vontade rumo ao bem e à felicidade e para formálo como membro da coletividade sociopolítica Sua finalidade era a harmonia entre o caráter do sujeito virtuoso e os valores coletivos que também deveriam ser virtuosos O cristianismo interioridade e dever Diferentemente de outras religiões da Antiguidade que eram nacionais e políticas o cristianismo nasce como religião de indivíduos que não se definem por seu pertencimento a uma nação ou a um Estado mas por sua fé num mesmo e único Deus Em outras palavras enquanto nas demais religiões antigas a divindade se relacionava com a comunidade social e politicamente organizada o Deus cristão relacionase diretamente com os indivíduos que nele crêem Isso significa antes de qualquer coisa que a vida ética do cristão não será definida por sua relação com a sociedade mas por sua relação espiritual e interior com Deus Dessa maneira o cristianismo introduz duas diferenças primordiais na antiga concepção ética em primeiro lugar a idéia de que a virtude se define por nossa relação com Deus e não com a cidade a polis nem com os outros Nossa relação com os outros depende da qualidade de nossa relação com Deus único mediador entre cada indivíduo e os demais Por esse motivo as duas virtudes cristãs primeiras e Marilena Chauí 441 condições de todas as outras são a fé qualidade da relação de nossa alma com Deus e a caridade o amor aos outros e a responsabilidade pela salvação dos outros conforme exige a fé As duas virtudes são privadas isto é são relações do indivíduo com Deus e com os outros a partir da intimidade e da interioridade de cada um em segundo lugar a afirmação de que somos dotados de vontade livre ou livrearbítrio e que o primeiro impulso de nossa liberdade dirigese para o mal e para o pecado isto é para a transgressão das leis divinas Somos seres fracos pecadores divididos entre o bem obediência a Deus e o mal submissão à tentação demoníaca Em outras palavras enquanto para os filósofos antigos a vontade era uma faculdade racional capaz de dominar e controlar a desmesura passional de nossos apetites e desejos havendo portanto uma força interior a vontade consciente que nos tornava morais para o cristianismo a própria vontade está pervertida pelo pecado e precisamos do auxílio divino para nos tornarmos morais Qual o auxílio divino sem o qual a vida ética seria impossível A lei divina revelada que devemos obedecer obrigatoriamente e sem exceção O cristianismo portanto passa a considerar que o ser humano é em si mesmo e por si mesmo incapaz de realizar o bem e as virtudes Tal concepção leva a introduzir uma nova idéia na moral a idéia do dever Por meio da revelação aos profetas Antigo Testamento e de Jesus Cristo Novo Testamento Deus tornou sua vontade e sua lei manifestas aos seres humanos definindo eternamente o bem e o mal a virtude e o vício a felicidade e a infelicidade a salvação e o castigo Aos humanos cabe reconhecer a vontade e a lei de Deus cumprindoas obrigatoriamente isto é por atos de dever Estes tornam morais um sentimento uma intenção uma conduta ou uma ação Mesmo quando a partir do Renascimento a filosofia moral distanciase dos princípios teológicos e da fundamentação religiosa da ética a idéia do dever permanecerá como uma das marcas principais da concepção ética ocidental Com isso a filosofia moral passou a distinguir três tipos fundamentais de conduta 1 a conduta moral ou ética que se realiza de acordo com as normas e as regras impostas pelo dever 2 a conduta imoral ou antiética que se realiza contrariando as normas e as regras fixadas pelo dever 3 a conduta indiferente à moral quando agimos em situações que não são definidas pelo bem e pelo mal e nas quais não se impõem as normas e as regras do dever Juntamente com a idéia do dever a moral cristã introduziu uma outra também decisiva na constituição da moralidade ocidental a idéia de intenção Convite à Filosofia 442 Até o cristianismo a filosofia moral localizava a conduta ética nas ações e nas atitudes visíveis do agente moral ainda que tivessem como pressuposto algo que se realizava no interior do agente em sua vontade racional ou consciente Eram as condutas visíveis que eram julgadas virtuosas ou viciosas O cristianismo porém é uma religião da interioridade afirmando que a vontade e a lei divinas não estão escritas nas pedras nem nos pergaminhos mas inscritas no coração dos seres humanos A primeira relação ética portanto se estabelece entre o coração do indivíduo e Deus entre a alma invisível e a divindade Como conseqüência passouse a considerar como submetido ao julgamento ético tudo quanto invisível aos olhos humanos é visível ao espírito de Deus portanto tudo quanto acontece em nosso interior O dever não se refere apenas às ações visíveis mas também às intenções invisíveis que passam a ser julgadas eticamente Eis por que um cristão quando se confessa obrigase a confessar pecados cometidos por atos palavras e intenções Sua alma invisível tem o testemunho do olhar de Deus que a julga Natureza humana e dever O cristianismo introduz a idéia do dever para resolver um problema ético qual seja oferecer um caminho seguro para nossa vontade que sendo livre mas fraca sentese dividida entre o bem e o mal No entanto essa idéia cria um problema novo Se o sujeito moral é aquele que encontra em sua consciência vontade razão coração as normas da conduta virtuosa submetendose apenas ao bem jamais submetendose a poderes externos à consciência como falar em comportamento ético por dever Este não seria o poder externo de uma vontade externa Deus que nos domina e nos impõe suas leis forçandonos a agir em conformidade com regras vindas de fora de nossa consciência Em outras palavras se a ética exige um sujeito autônomo a idéia de dever não introduziria a heteronomia isto é o domínio de nossa vontade e de nossa consciência por um poder estranho a nós Um dos filósofos que procuraram resolver essa dificuldade foi Rousseau no século XVIII Para ele a consciência moral e o sentimento do dever são inatos são a voz da Natureza e o dedo de Deus em nossos corações Nascemos puros e bons dotados de generosidade e de benevolência para com os outros Se o dever parece ser uma imposição e uma obrigação externa imposta por Deus aos humanos é porque nossa bondade natural foi pervertida pela sociedade quando esta criou a propriedade privada e os interesses privados tornandonos egoístas mentirosos e destrutivos O dever simplesmente nos força a recordar nossa natureza originária e portanto só em aparência é imposição exterior Obedecendo ao dever à lei divina inscrita em nosso coração estamos obedecendo a nós mesmos aos nossos sentimentos e às nossas emoções e não à nossa razão pois esta é responsável pela sociedade egoísta e perversa Marilena Chauí 443 Uma outra resposta também no final do século XVIII foi trazida por Kant Opondose à moral do coração de Rousseau Kant volta a afirmar o papel da razão na ética Não existe bondade natural Por natureza diz Kant somos egoístas ambiciosos destrutivos agressivos cruéis ávidos de prazeres que nunca nos saciam e pelos quais matamos mentimos roubamos É justamente por isso que precisamos do dever para nos tornarmos seres morais A exposição kantiana parte de duas distinções 1 a distinção entre razão pura teórica ou especulativa e razão pura prática 2 a distinção entre ação por causalidade ou necessidade e ação por finalidade ou liberdade Razão pura teórica e prática são universais isto é as mesmas para todos os homens em todos os tempos e lugares podem variar no tempo e no espaço os conteúdos dos conhecimentos e das ações mas as formas da atividade racional de conhecimento e da ação são universais Em outras palavras o sujeito em ambas é sujeito transcendental como vimos na teoria do conhecimento A diferença entre razão teórica e prática encontrase em seus objetos A razão teórica ou especulativa tem como matéria ou conteúdo a realidade exterior a nós um sistema de objetos que opera segundo leis necessárias de causa e efeito independentes de nossa intervenção a razão prática não contempla uma causalidade externa necessária mas cria sua própria realidade na qual se exerce Essa diferença decorre da distinção entre necessidade e finalidadeliberdade A Natureza é o reino da necessidade isto é de acontecimentos regidos por seqüências necessárias de causa e efeito é o reino da física da astronomia da química da psicologia Diferentemente do reino da Natureza há o reino humano da práxis no qual as ações são realizadas racionalmente não por necessidade causal mas por finalidade e liberdade A razão prática é a liberdade como instauração de normas e fins éticos Se a razão prática tem o poder para criar normas e fins morais tem também o poder para impôlos a si mesma Essa imposição que a razão prática faz a si mesma daquilo que ela própria criou é o dever Este portanto longe de ser uma imposição externa feita à nossa vontade e à nossa consciência é a expressão da lei moral em nós manifestação mais alta da humanidade em nós Obedecêlo é obedecer a si mesmo Por dever damos a nós mesmos os valores os fins e as leis de nossa ação moral e por isso somos autônomos Resta porém uma questão se somos racionais e livres por que valores fins e leis morais não são espontâneos em nós mas precisam assumir a forma do dever Responde Kant porque não somos seres morais apenas Também somos seres naturais submetidos à causalidade necessária da Natureza Nosso corpo e nossa psique são feitos de apetites impulsos desejos e paixões Nossos sentimentos Convite à Filosofia 444 nossas emoções e nossos comportamentos são a parte da Natureza em nós exercendo domínio sobre nós submetendose à causalidade natural inexorável Quem se submete a eles não pode possuir a autonomia ética A Natureza nos impele a agir por interesse Este é a forma natural do egoísmo que nos leva a usar coisas e pessoas como meios e instrumentos para o que desejamos Além disso o interesse nos faz viver na ilusão de que somos livres e racionais por realizarmos ações que julgamos terem sido decididas livremente por nós quando na verdade são um impulso cego determinado pela causalidade natural Agir por interesse é agir determinado por motivações físicas psíquicas vitais à maneira dos animais Visto que apetites impulsos desejos tendências comportamentos naturais costumam ser muito mais fortes do que a razão a razão prática e a verdadeira liberdade precisam dobrar nossa parte natural e impornos nosso ser moral Elas o fazem obrigandonos a passar das motivações do interesse para o dever Para sermos livres precisamos ser obrigados pelo dever de sermos livres Assim à pergunta que fizemos no capítulo anterior sobre o perigo da educação ética ser violência contra nossa natureza espontaneamente passional Kant responderá que pelo contrário a violência estará em não compreendermos nossa destinação racional e em confundirmos nossa liberdade com a satisfação irracional de todos os nossos apetites e impulsos O dever revela nossa verdadeira natureza O dever afirma Kant não se apresenta através de um conjunto de conteúdos fixos que definiriam a essência de cada virtude e diriam que atos deveriam ser praticados e evitados em cada circunstância de nossas vidas O dever não é um catálogo de virtudes nem uma lista de faça isto e não faça aquilo O dever é uma forma que deve valer para toda e qualquer ação moral Essa forma não é indicativa mas imperativa O imperativo não admite hipóteses se então nem condições que o fariam valer em certas situações e não valer em outras mas vale incondicionalmente e sem exceções para todas as circunstâncias de todas as ações morais Por isso o dever é um imperativo categórico Ordena incondicionalmente Não é uma motivação psicológica mas a lei moral interior O imperativo categórico exprimese numa fórmula geral Age em conformidade apenas com a máxima que possas querer que se torne uma lei universal Em outras palavras o ato moral é aquele que se realiza como acordo entre a vontade e as leis universais que ela dá a si mesma Essa fórmula permite a Kant deduzir as três máximas morais que exprimem a incondicionalidade dos atos realizados por dever São elas 1 Age como se a máxima de tua ação devesse ser erigida por tua vontade em lei universal da Natureza Marilena Chauí 445 2 Age de tal maneira que trates a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem sempre como um fim e nunca como um meio 3 Age como se a máxima de tua ação devesse servir de lei universal para todos os seres racionais A primeira máxima afirma a universalidade da conduta ética isto é aquilo que todo e qualquer ser humano racional deve fazer como se fosse uma lei inquestionável válida para todos e em todo tempo e lugar A ação por dever é uma lei moral para o agente A segunda máxima afirma a dignidade dos seres humanos como pessoas e portanto a exigência de que sejam tratados como fim da ação e jamais como meio ou como instrumento para nossos interesses A terceira máxima afirma que a vontade que age por dever institui um reino humano de seres morais porque racionais e portanto dotados de uma vontade legisladora livre ou autônoma A terceira máxima exprime a diferença ou separação entre o reino natural das causas e o reino humano dos fins O imperativo categórico não enuncia o conteúdo particular de uma ação mas a forma geral das ações morais As máximas deixam clara a interiorização do dever pois este nasce da razão e da vontade legisladora universal do agente moral O acordo entre vontade e dever é o que Kant designa como vontade boa que quer o bem O motivo moral da vontade boa é agir por dever O móvel moral da vontade boa é o respeito pelo dever produzido em nós pela razão Obediência à lei moral respeito pelo dever e pelos outros constituem a bondade da vontade ética O imperativo categórico não nos diz para sermos honestos oferecendonos a essência da honestidade nem para sermos justos verazes generosos ou corajosos a partir da definição da essência da justiça da verdade da generosidade ou da coragem Não nos diz para praticarmos esta ou aquela ação determinada mas nos diz para sermos éticos cumprindo o dever as três máximas morais É este que determina por que uma ação moral deverá ser sempre honesta justa veraz generosa ou corajosa Ao agir devemos indagar se nossa ação está em conformidade com os fins morais isto é com as máximas do dever Por que por exemplo mentir é imoral Porque o mentiroso transgride as três máximas morais Ao mentir não respeita em sua pessoa e na do outro a humanidade consciência racionalidade e liberdade pratica uma violência escondendo de um outro ser humano uma informação verdadeira e por meio do engano usa a boafé do outro Também não respeita a segunda máxima pois se a mentira pudesse universalizarse o gênero humano deveria abdicar da razão e do conhecimento da reflexão e da crítica da capacidade para deliberar e escolher vivendo na mais completa ignorância no erro e na ilusão Convite à Filosofia 446 Por que um político corrupto é imoral Porque transgride as três máximas Por que o homicídio é imoral Porque transgride as três máximas As respostas de Rousseau e Kant embora diferentes procuram resolver a mesma dificuldade qual seja explicar por que o dever e a liberdade da consciência moral são inseparáveis e compatíveis A solução de ambos consiste em colocar o dever em nosso interior desfazendo a impressão de que ele nos seria imposto de fora por uma vontade estranha à nossa Cultura e dever Rousseau e Kant procuraram conciliar o dever e a idéia de uma natureza humana que precisa ser obrigada à moral No entanto ao enfatizarem a questão da natureza Natureza e natureza humana tenderam a perder de vista o problema da relação entre o dever e a Cultura pois poderíamos repetir agora a pergunta que fizemos antes Se a ética exige um sujeito consciente e autônomo como explicar que a moral exija o cumprimento do dever definido como um conjunto de valores normas fins e leis estabelecidos pela Cultura Não estaríamos de volta ao problema da exterioridade entre o sujeito e o dever A resposta a essa questão foi trazida no século XIX por Hegel Hegel critica Rousseau e Kant por dois motivos Em primeiro lugar por terem dado atenção à relação sujeito humanoNatureza a relação entre razão e paixões esquecendo a relação sujeito humanoCultura e História Em segundo lugar por terem admitido a relação entre a ética e a sociabilidade dos seres humanos mas tratandoa a partir de laços muito frágeis isto é como relações pessoais diretas entre indivíduos isolados ou independentes quando deveriam tê la tomado a partir dos laços fortes das relações sociais fixadas pelas instituições sociais família sociedade civil Estado As relações pessoais entre indivíduos são determinadas e mediadas por suas relações sociais São estas últimas que determinam a vida ética ou moral dos indivíduos Somos diz Hegel seres históricos e culturais Isso significa que além de nossa vontade individual subjetiva que Rousseau chamou de coração e Kant de razão prática existe uma outra vontade muito mais poderosa que determina a nossa a vontade objetiva inscrita nas instituições ou na Cultura A vontade objetiva impessoal coletiva social pública cria as instituições e a moralidade como sistema regulador da vida coletiva por meio de mores isto é dos costumes e dos valores de uma sociedade numa época determinada A moralidade é uma totalidade formada pelas instituições família religião artes técnicas ciências relações de trabalho organização política etc que obedecem todas aos mesmos valores e aos mesmos costumes educando os indivíduos para interiorizarem a vontade objetiva de sua sociedade e de sua cultura Marilena Chauí 447 A vida ética é o acordo e a harmonia entre a vontade subjetiva individual e a vontade objetiva cultural Realizase plenamente quando interiorizamos nossa Cultura de tal maneira que praticamos espontânea e livremente seus costumes e valores sem neles pensarmos sem os discutirmos sem deles duvidarmos porque são como nossa própria vontade os deseja O que é então o dever O acordo pleno entre nossa vontade subjetiva individual e a totalidade ética ou moralidade Como conseqüência o imperativo categórico não poderá ser uma forma universal desprovida de conteúdo determinado como afirmara Kant mas terá em cada época em cada sociedade e para cada Cultura conteúdos determinados válidos apenas para aquela formação histórica e cultural Assim cada sociedade em cada época de sua História define os valores positivos e negativos os atos permitidos e os proibidos para seus membros o conteúdo dos deveres e do imperativo moral Ser ético e livre será portanto pôrse de acordo com as regras morais de nossa sociedade interiorizandoas Hegel afirma que podemos perceber ou reconhecer o momento em que uma sociedade e uma Cultura entram em declínio perdem força para conservarse e abremse às crises internas que anunciam seu término e sua passagem a uma outra formação sociocultural Esse momento é aquele no qual os membros daquela sociedade e daquela Cultura contestam os valores vigentes sentemse oprimidos e esmagados por eles agem de modo a transgredilos É o momento no qual o antigo acordo entre as vontades subjetivas e a vontade objetiva rompemse inexoravelmente anunciando um novo período histórico Numa perspectiva algo semelhante à hegeliana encontrase no século XX o filósofo francês Henri Bergson Como Hegel Bergson procura compreender a relação deverCultura ou deverHistória e portanto as mudanças nas formas e no conteúdo da moralidade Distingue ele duas morais a moral fechada e a aberta A moral fechada é o acordo entre os valores e os costumes de uma sociedade e os sentimentos e as ações dos indivíduos que nela vivem É a moral repetitiva habitual respeitada quase automaticamente por nós Em contrapartida a moral aberta é uma criação de novos valores e de novas condutas que rompem a moral fechada instaurando uma ética nova Os criadores éticos são para Bergson indivíduos excepcionais heróis santos profetas artistas que colocam suas vidas a serviço de um tempo novo inaugurado por eles graças a ações exemplares que contrariam a moral fechada vigente Hegel diria que a moral aberta bergsoniana só pode acontecer quando a moralidade vigente está em crise prestes a terminar porque um novo período históricocultural está para começar A moral fechada quando sentida como repressora e opressora e a totalidade ética quando percebida como contrária à subjetividade individual indicam aquele momento em que as normas e os valores morais são experimentados como violência e não mais como realização ética Convite à Filosofia 448 História e virtudes Viemos observando que os valores morais modificamse na História porque seu conteúdo é determinado por condições históricas Podemos comprovar a determinação histórica do conteúdo dos valores examinando as virtudes definidas em diferentes épocas Se tomarmos a Ética a Nicômaco de Aristóteles nela encontraremos a síntese das virtudes que constituíam a arete a virtude ou excelência ética e a moralidade grega durante o tempo em que a polis autônoma foi a referência social da Grécia Aristóteles distingue vícios e virtudes pelo critério do excesso da falta e da moderação um vício é um sentimento ou uma conduta excessivos ou ao contrário deficientes uma virtude um sentimento ou uma conduta moderados Resumidamente eis o quadro aristotélico Virtude Vício por excesso Vício por deficiência Coragem Temeridade Covardia Temperança Libertinagem Insensibilidade Prodigalidade Esbanjamento Avareza Magnificência Vulgaridade Vileza Respeito próprio Vaidade Modéstia Prudência Ambição Moleza Gentileza Irascibilidade Indiferença Veracidade Orgulho Descrédito próprio Agudeza de espírito Zombaria Rusticidade Amizade Condescendência Enfado Justa indignação Inveja Malevolência Quando examinamos as virtudes definidas pelo cristianismo descobrimos que embora as aristotélicas não sejam afastadas deixam de ser as mais relevantes O quadro cristão pode ser assim resumido Virtudes teologais fé esperança caridade Virtudes cardeais coragem justiça temperança prudência Pecados capitais gula avareza preguiça luxúria cólera inveja e orgulho Marilena Chauí 449 Virtudes morais sobriedade prodigalidade trabalho castidade mansidão generosidade modéstia Observamos o aparecimento de virtudes novas concernentes à relação do crente com Deus virtudes teologais e da justiça como virtude particular para Aristóteles a justiça é o resultado da virtude e não uma das virtudes a amizade é substituída pela caridade responsabilidade pela salvação do outro os vícios são transformados em pecados portanto voltados para a relação do crente com a lei divina e nas virtudes morais encontramos um vício aristotélico a modéstia além do aparecimento de virtudes ignoradas ou desconhecidas por Aristóteles humildade castidade mansidão Surge também como virtude algo que para um grego ou um romano jamais poderia fazer parte dos valores do homem livre o trabalho O ócio considerado pela sociedade escravista grecoromana como condição para o exercício da política tornase agora vício da preguiça Lutero dirá Mente desocupada oficina do diabo Se agora tomarmos como referência um filósofo do século XVII Espinosa veremos o quadro alterarse profundamente Para Espinosa somos seres naturalmente passionais porque sofremos a ação de causas exteriores a nós Em outras palavras ser passional é ser passivo deixandose dominar e conduzir por forças exteriores ao nosso corpo e à nossa alma Ora por natureza vivemos rodeados por outros seres mais fortes do que nós que agem sobre nós Por isso as paixões não são boas nem más são naturais Três são as paixões originais alegria tristeza e desejo As demais derivamse destas Assim da alegria nascem o amor a devoção a esperança a segurança o contentamento a misericórdia a glória da tristeza surgem o ódio a inveja o orgulho o arrependimento a modéstia o medo o desespero o pudor do desejo provém a gratidão a cólera a crueldade a ambição o temor a ousadia a luxúria a avareza Uma paixão triste é aquela que diminui a capacidade de ser e agir de nosso corpo e de nossa alma ao contrário uma paixão alegre aumenta a capacidade de existir e agir de nosso corpo e de nossa alma No caso do desejo podemos ter paixões tristes como a crueldade a ambição a avareza ou alegres como a gratidão e a ousadia Que é o vício Submeterse às paixões deixandose governar pelas causas externas Que é a virtude Ser causa interna de nossos sentimentos atos e pensamentos Ou seja passar da passividade submissão a causas externas à atividade ser causa interna A virtude é pois passar da paixão à ação tornarse causa ativa interna de nossa existência atos e pensamentos As paixões e os desejos tristes Convite à Filosofia 450 nos enfraquecem e nos tornam cada vez mais passivos As paixões e os desejos alegres nos fortalecem e nos preparam para passar da passividade à atividade Como sucumbimos ao vício Deixandonos dominar pelas paixões tristes e pelas desejantes nascidas da tristeza O vício não é um mal é fraqueza para existir agir e pensar Como passamos da paixão à ação ou à virtude Transformando as paixões alegres e as desejantes nascidas da alegria em atividades de que somos a causa A virtude não é um bem é a força para ser e agir autonomamente Observamos assim que a ética espinosista evita oferecer um quadro de valores ou de vícios e virtudes distanciandose de Aristóteles e da moral cristã para buscar na idéia moderna de indivíduo livre o núcleo da ação moral Em sua obra Ética Espinosa jamais fala em pecado e em dever fala em fraqueza e em força para ser pensar e agir As virtudes aristotélicas inseremse numa sociedade que valorizava as relações sociopolíticas entre os seres humanos donde a proeminência da amizade e da justiça As virtudes cristãs inseremse numa sociedade voltada para a relação dos humanos com Deus e com a lei divina A virtude espinosista toma a relação do indivíduo com a Natureza e a sociedade centrandose nas idéias de integridade individual e de força interna para relacionarse livremente com ambas Como porém vivemos numa cultura cristã a perspectiva do cristianismo embora historicamente datada tende a ser dominante ainda que se altere periodicamente para adaptarse a novas exigências históricas Assim no século XVII Espinosa abandona as noções cristãs de pecado e dever que no século XVIII reaparecem com Kant Razão desejo e vontade A tradição filosófica que examinamos até aqui constitui o racionalismo ético pois atribui à razão humana o lugar central na vida ética Duas correntes principais formam a tradição racionalista aquela que identifica razão com inteligência ou intelecto corrente intelectualista e aquela que considera que na moral a razão identificase com a vontade corrente voluntarista Para a concepção intelectualista a vida ética ou vida virtuosa depende do conhecimento pois é somente por ignorância que fazemos o mal e nos deixamos arrastar por impulsos e paixões contrários à virtude e ao bem O ser humano sendo essencialmente racional deve fazer com que sua razão ou inteligência o intelecto conheça os fins morais os meios morais e a diferença entre bem e mal de modo a conduzir a vontade no momento da deliberação e da decisão A vida ética depende do desenvolvimento da inteligência ou razão sem a qual a vontade não poderá atuar Para a concepção voluntarista a vida ética ou moral depende essencialmente da nossa vontade porque dela depende nosso agir e porque ela pode querer ou não Marilena Chauí 451 querer o que a inteligência lhe ordena Se a vontade for boa seremos virtuosos se for má seremos viciosos A vontade boa orienta nossa inteligência no momento da escolha de uma ação enquanto a vontade má desvia nossa razão da boa escolha no momento de deliberar e de agir A vida ética depende da qualidade de nossa vontade e da disciplina para forçála rumo ao bem O dever educa a vontade para que se torne reta e boa Nas duas correntes porém há concordância quanto à idéia de que por natureza somos seres passionais cheios de apetites impulsos e desejos cegos desenfreados e desmedidos cabendo à razão seja como inteligência no intelectualismo seja como vontade no voluntarismo estabelecer limites e controles para paixões e desejos Egoísmo agressividade avareza busca ilimitada de prazeres corporais sexualidade sem freios mentira hipocrisia máfé desejo de posse tanto de coisas como de pessoas ambição desmedida crueldade medo covardia preguiça ódio impulsos assassinos desprezo pela vida e pelos sentimentos alheios são algumas das muitas paixões que nos tornam imorais e incapazes de relações decentes e dignas com os outros e conosco mesmos Quando cedemos a elas somos viciosos e culpados A ética apresentase assim como trabalho da inteligência eou da vontade para dominar e controlar essas paixões Uma paixão amor ódio inveja ambição orgulho medo colocanos à mercê de coisas e pessoas que desejamos possuir ou destruir O racionalismo ético define a tarefa da educação moral e da conduta ética como poderio da razão para impedirnos de perder a liberdade sob os efeitos de paixões desmedidas e incontroláveis Para tanto a ética racionalista distingue necessidade desejo e vontade A necessidade diz respeito a tudo quanto necessitamos para conservar nossa existência alimentação bebida habitação agasalho no frio proteção contra as intempéries relações sexuais para a procriação descanso para desfazer o cansaço etc Para os seres humanos satisfazer às necessidades é fonte de satisfação O desejo parte da satisfação de necessidades mas acrescenta a elas o sentimento do prazer dando às coisas às pessoas e às situações novas qualidades e sentidos No desejo nossa imaginação busca o prazer e foge da dor pelo significado atribuído ao que é desejado ou indesejado A maneira como imaginamos a satisfação o prazer o contentamento que alguma coisa ou alguém nos dão transforma esta coisa ou este alguém em objeto de desejo e o procuramos sempre mesmo quando não conseguimos possuílo ou alcançálo O desejo é pois a busca da fruição daquilo que é desejado porque o objeto do desejo dá sentido à nossa vida determina nossos sentimentos e nossas ações Se como os animais temos necessidades somente como humanos temos desejos Por isso muitos filósofos afirmam que a essência dos seres humanos é Convite à Filosofia 452 desejar e que somos seres desejantes não apenas desejamos mas sobretudo desejamos ser desejados por outros A vontade difere do desejo por possuir três características que este não possui 1 o ato voluntário implica um esforço para vencer obstáculos Estes podem ser materiais uma montanha surge no meio do caminho físicos fadiga dor ou psíquicos desgosto fracasso frustração A tenacidade e a perseverança a resistência e a continuação do esforço são marcas da vontade e por isso falamos em força de vontade 2 o ato voluntário exige discernimento e reflexão antes de agir isto é exige deliberação avaliação e tomada de decisão A vontade pesa compara avalia discute julga antes da ação 3 a vontade referese ao possível isto é ao que pode ser ou deixar de ser e que se torna real ou acontece graças ao ato voluntário que atua em vista de fins e da previsão das conseqüências Por isso a vontade é inseparável da responsabilidade O desejo é paixão A vontade decisão O desejo nasce da imaginação A vontade se articula à reflexão O desejo não suporta o tempo ou seja desejar é querer a satisfação imediata e o prazer imediato A vontade ao contrário realizase no tempo o esforço e a ponderação trabalham com a relação entre meios e fins e aceitam a demora da satisfação Mas é o desejo que oferece à vontade os motivos interiores e os fins exteriores da ação À vontade cabe a educação moral do desejo Na concepção intelectualista a inteligência orienta a vontade para que esta eduque o desejo Na concepção voluntarista a vontade boa tem o poder de educar o desejo enquanto a vontade má submetese a ele e pode em muitos casos pervertêlo Consciência desejo e vontade formam o campo da vida ética consciência e desejo referemse às nossas intenções e motivações a vontade às nossas ações e finalidades As primeiras dizem respeito à qualidade da atitude interior ou dos sentimentos internos ao sujeito moral as últimas à qualidade da atitude externa das condutas e dos comportamentos do sujeito moral Para a concepção racionalista a filosofia moral é o conhecimento das motivações e intenções que movem interiormente o sujeito moral e dos meios e fins da ação moral capazes de concretizar aquelas motivações e intenções Convém observar que a posição de Kant embora racionalista difere das demais porque considera irrelevantes as motivações e intenções do sujeito uma vez que a ética diz respeito à forma universal do ato moral como ato livre de uma vontade racional boa que age por dever segundo as leis universais que deu a si mesma O imperativo categórico exclui motivos e intenções que são sempre particulares porque estes o transformariam em algo condicionado por eles e portanto o tornariam um Marilena Chauí 453 imperativo hipotético destruindoo como fundamento universal da ação ética por dever Ética das emoções e do desejo O racionalismo ético não é a única concepção filosófica da moral Uma outra concepção filosófica é conhecida como emotivismo ético Para o emotivismo ético o fundamento da vida moral não é a razão mas a emoção Nossos sentimentos são causas das normas e dos valores éticos Inspirandose em Rousseau alguns emotivistas afirmam a bondade natural de nossos sentimentos e nossas paixões que são por isso a forma e o conteúdo da existência moral como relação intersubjetiva e interpessoal Outros emotivistas salientam a utilidade dos sentimentos ou das emoções para nossa sobrevivência e para nossas relações com os outros cabendo à ética orientar essa utilidade de modo a impedir a violência e garantir relações justas entre os seres humanos Há ainda uma outra concepção ética francamente contrária à racionalista e por isso muitas vezes chamada de irracionalista que contesta à razão o poder e o direito de intervir sobre o desejo e as paixões identificando a liberdade com a plena manifestação do desejante e do passional Essa concepção encontrase em Nietzsche e em vários filósofos contemporâneos Embora com variantes essa concepção filosófica pode ser resumida nos seguintes pontos principais tendo como referência a obra nietzscheana A genealogia da moral a moral racionalista foi erguida com finalidade repressora e não para garantir o exercício da liberdade a moral racionalista transformou tudo o que é natural e espontâneo nos seres humanos em vício falta culpa e impôs a eles com os nomes de virtude e dever tudo o que oprime a natureza humana paixões desejos e vontade referemse à vida e à expansão de nossa força vital portanto não se referem espontaneamente ao bem e ao mal pois estes são uma invenção da moral racionalista a moral racionalista foi inventada pelos fracos para controlar e dominar os fortes cujos desejos paixões e vontade afirmam a vida mesmo na crueldade e na agressividade Por medo da força vital dos fortes os fracos condenaram paixões e desejos submeteram a vontade à razão inventaram o dever e impuseram castigos para os transgressores transgredir normas e regras estabelecidas é a verdadeira expressão da liberdade e somente os fortes são capazes dessa ousadia Para disciplinar e dobrar a vontade dos fortes a moral racionalista inventada pelos fracos transformou a transgressão em falta culpa e castigo Convite à Filosofia 454 a força vital se manifesta como saúde do corpo e da alma como força da imaginação criadora Por isso os fortes desconhecem angústia medo remorso humildade inveja A moral dos fracos porém é atitude preconceituosa e covarde dos que temem a saúde e a vida invejam os fortes e procuram pela mortificação do corpo e pelo sacrifício do espírito vingarse da força vital a moral dos fracos é produto do ressentimento que odeia e teme a vida envenenandoa com a culpa e o pecado voltando contra si mesma o ódio à vida a moral dos ressentidos baseada no medo e no ódio à vida às paixões aos desejos à vontade forte inventa uma outra vida futura eterna incorpórea que será dada como recompensa aos que sacrificarem seus impulsos vitais e aceitarem os valores dos fracos a sociedade governada por fracos hipócritas impõe aos fortes modelos éticos que os enfraqueçam e os tornem prisioneiros dóceis da hipocrisia da moral vigente é preciso manter os fortes dizendolhes que o bem é tudo o que fortalece o desejo da vida e o mal tudo o que é contrário a esse desejo Para esses filósofos que podemos chamar de antiracionalistas a moral racionalista ou dos fracos e ressentidos que temem a vida o corpo o desejo e as paixões é a moral dos escravos dos que renunciam à verdadeira liberdade ética São exemplos dessa moral de escravos a ética socrática a moral kantiana a moral judaicocristã a ética da utopia socialista a ética democrática em suma toda moral que afirme que os humanos são iguais seja por serem racionais Sócrates Kant seja por serem irmãos religião judaicocristã seja por possuírem os mesmos direitos ética socialista e democrática Contra a concepção dos escravos afirmase a moral dos senhores ou a ética dos melhores dos aristoixiii a moral aristocrática fundada nos instintos vitais nos desejos e naquilo que Nietzsche chama de vontade de potência cujo modelo se encontra nos guerreiros belos e bons das sociedades antigas baseadas na guerra nos combates e nos jogos nas disputas pela glória e pela fama na busca da honra e da coragem Essa concepção da ética suscita duas observações Em primeiro lugar lembremos que a ética nasce como trabalho de uma sociedade para delimitar e controlar a violência isto é o uso da força contra outrem Vimos que a filosofia moral se ergue como reflexão contra a violência em nome de um ser humano concebido como racional desejante voluntário e livre que sendo sujeito não pode ser tratado como coisa A violência era localizada tanto nas ações contra outrem assassinato tortura suplício escravidão crueldade mentira etc como nas ações contra nós mesmos passividade covardia ódio medo adulação inveja remorso etc A ética se propunha assim a instituir valores meios e fins que nos libertassem dessa dupla violência Marilena Chauí 455 Os críticos da moral racionalista porém afirmam que a própria ética transformada em costumes preconceitos cristalizados e sobretudo em confiança na capacidade apaziguadora da razão tornouse a forma perfeita da violência Contra ela os antiracionalistas defendem o valor de uma violência nova e purificadora a potência ou a força dos instintos considerada libertadora O problema consiste em saber se tal violência pode ter um papel liberador e suscitar uma nova ética Em segundo lugar é curioso observar que muitos dos chamados irracionalistas contemporâneos baseiamse na psicanálise e na teoria freudiana da repressão do desejo fundamentalmente do desejo sexual Propõem uma ética que libere o desejo da repressão a que a sociedade o submeteu repressão causadora de psicoses neuroses angústias e desesperos O aspecto curioso está no fato de que Freud considerava extremamente perigoso liberar o id as pulsões e o desejo porque a psicanálise havia descoberto uma ligação profunda entre o desejo de prazer e o desejo de morte a violência incontrolável do desejo se não for orientado e controlado pelos valores éticos propostos pela razão e por uma sociedade racional Essas duas observações não devem porém esconder os méritos e as dificuldades da proposta moral antiracionalista É o seu grande mérito desnudar a hipocrisia e a violência da moral vigente trazer de volta o antigo ideal de felicidade que nossa sociedade destruiu por meio da repressão e dos preconceitos Porém a dificuldade como acabamos de assinalar acima está em saber se o que devemos criticar e abandonar é a razão ou a racionalidade repressora e violenta inventada por nossa sociedade que precisa ser destruída por uma nova sociedade e uma nova racionalidade Sob esse aspecto é interessante observar que não só Freud e Nietzsche criticaram a violência escondida sob a moral vigente em nossa Cultura mas a mesma crítica foi feita por Bergson quando descreveu a moral fechada e por Marx quando criticou a ideologia burguesa Marx afirmava que os valores da moral vigente liberdade felicidade racionalidade respeito à subjetividade e à humanidade de cada um etc eram hipócritas não em si mesmos como julgava Nietzsche mas porque eram irrealizáveis e impossíveis numa sociedade violenta como a nossa baseada na exploração do trabalho na desigualdade social e econômica na exclusão de uma parte da sociedade dos direitos políticos e culturais A moral burguesa dizia Marx pretende ser um racionalismo humanista mas as condições materiais concretas em que vive a maioria da sociedade impedem a existência plena de um ser humano que realize os valores éticos Para Marx portanto tratavase de mudar a sociedade para que a ética pudesse concretizarse Críticas semelhantes foram feitas por pensadores socialistas anarquistas utópicos para os quais o problema não se encontrava na razão como poderio dos Convite à Filosofia 456 fracos ressentidos contra os fortes mas no modo como a sociedade está organizada pois nela o imperativo categórico kantiano por exemplo não pode ser respeitado uma vez que a organização social coloca uma parte da sociedade como coisa instrumento ou meio para a outra parte Ética e psicanálise Quando estudamos o sujeito do conhecimento unidade 4 capítulo 7 vimos que a psicanálise introduzia um conceito novo o inconsciente que limitava o poder soberano da razão e da consciência além de descortinar a sexualidade como força determinante de nossa existência nosso pensamento e nossa conduta No caso da ética a descoberta do inconsciente traz conseqüências graves tanto para as idéias de consciência responsável e vontade livre quanto para os valores morais De fato se como revela a psicanálise somos nossos impulsos e desejos inconscientes e se estes desconhecem barreiras e limites para a busca da satisfação e sobretudo se conseguem a satisfação burlando e enganando a consciência como então manter por exemplo a idéia de vontade livre que age por dever Por outro lado se o que se passa em nossa consciência é simples efeito disfarçado de causas inconscientes reais e escondidas como falar em consciência responsável Como a consciência poderia responsabilizarse pelo que desconhece e que jamais se torna consciente Mais grave porém é a conseqüência para os valores morais Em lugar de surgirem como expressão de finalidades propostas por uma vontade boa e virtuosa que deseja o bem os valores e fins éticos surgem como regras e normas repressivas que devem controlar nossos desejos e impulsos inconscientes Isso coloca dois problemas éticos novos Em primeiro lugar como falar em autonomia moral se o dever os valores e os fins são impostos ao sujeito por uma razão oposta ao inconsciente e portanto oposta ao nosso ser real A razão não seria uma ficção e um poder repressivo externo incompatível com a definição da autonomia Em segundo lugar visto que os desejos inconscientes se manifestam por disfarces como a razão poderia pretender controlálos sob o dever e as virtudes se não tem acesso a eles A psicanálise mostra que somos resultado e expressão de nossa história de vida marcada pela sexualidade insatisfeita que busca satisfações imaginárias sem jamais poder satisfazerse plenamente Não somos autores nem senhores de nossa história mas efeitos dela Mostranos também que nossos atos são realizações inconscientes de motivações sexuais que desconhecemos e que repetimos vida afora Do ponto de vista do inconsciente mentir matar roubar seduzir destruir temer ambicionar são simplesmente amorais pois o inconsciente desconhece valores morais Inúmeras vezes comportamentos que a moralidade julga imorais são Marilena Chauí 457 realizados como autodefesa do sujeito que os emprega para defender sua integridade psíquica ameaçada real ou fantasmagoricamente Se são atos moralmente condenáveis podem porém ser psicologicamente necessários Nesse caso como julgálos e condenálos moralmente Faríamos porém uma interpretação parcial da psicanálise se considerássemos apenas esse aspecto de sua grande descoberta ignorando um outro que também lhe é essencial De fato a psicanálise encontra duas instâncias ou duas faces antagônicas no inconsciente o id ou libido sexual em busca da satisfação e o superego ou censura moral interiorizada pelo sujeito que absorve os valores de sua sociedade Nossa psique é um campo de batalha inconsciente entre desejos e censuras O id ama o proibido o superego quer ser amado por reprimir o id imaginandose tanto mais amado quanto mais repressor O id desconhece fronteiras o superego só conhece barreiras Vencedor o id é violência que destrói os outros Vencedor o superego é violência que destrói o sujeito Neuroses e psicoses são causadas tanto por um id extremamente forte e um superego fraco quanto por um superego extremamente forte e um id fraco A batalha interior só pode ser decidida em nosso proveito por uma terceira instância a consciência Descobrir a existência do inconsciente não significa portanto esquecer a consciência e abandonála como algo ilusório ou inútil Pelo contrário a psicanálise não é somente uma teoria sobre o ser humano mas é antes de tudo uma terapia para auxiliar o sujeito no autoconhecimento e para conseguir que não seja um joguete das forças inconscientes do id e do superego No caso específico da ética a psicanálise mostrou que uma das fontes dos sofrimentos psíquicos causa de doenças e de perturbações mentais e físicas é o rigor excessivo do superego ou seja de uma moralidade rígida que produz um ideal do ego valores e fins éticos irrealizável torturando psiquicamente aqueles que não conseguem alcançálo por terem sido educados na crença de que esse ideal seria realizável Quando uma sociedade reprime os desejos inconscientes de tal modo que não possam encontrar meios imaginários e simbólicos de expressão quando os censura e condena de tal forma que nunca possam manifestarse prepara o caminho para duas alternativas igualmente distantes da ética ou a transgressão violenta de seus valores pelos sujeitos reprimidos ou a resignação passiva de uma coletividade neurótica que confunde neurose e moralidade Em outras palavras em lugar de ética há violência por um lado violência da sociedade que exige dos sujeitos padrões de conduta impossíveis de serem realizados e por outro lado violência dos sujeitos contra a sociedade pois somente transgredindo e desprezando os valores estabelecidos poderão sobreviver Convite à Filosofia 458 Em suma sem a repressão da sexualidade não há sociedade nem ética mas a excessiva repressão da sexualidade destruirá primeiro a ética e depois a sociedade O que a psicanálise propõe é uma nova moral social que harmonize tanto quanto for possível os desejos inconscientes as formas de satisfazêlos e a vida social Essa moral evidentemente só pode ser realizada pela consciência e pela vontade livre de sorte que a psicanálise procura fortalecêlas como instâncias moderadoras do id e do superego Somos eticamente livres e responsáveis não porque possamos fazer tudo quanto queiramos nem porque queiramos tudo quanto possamos fazer mas porque aprendemos a discriminar as fronteiras entre o permitido e o proibido tendo como critério ideal a ausência da violência interna e externa Marilena Chauí 459 Capítulo 6 A liberdade A liberdade como problema A torneira seca mas pior a falta de sede A luz apagada mas pior o gosto do escuro A porta fechada mas pior a chave por dentro Este poema de José Paulo Paes nos fala de forma extremamente concentrada e precisa do núcleo da liberdade e de sua ausência O poeta lança um contraponto entre uma situação externa experimentada como um dado ou como um fato a torneira seca a luz apagada a porta fechada e a inércia resignada no interior do sujeito a falta de sede o gosto do escuro a chave por dentro O contraponto é feito pela expressão mas pior Que significa ela Que diante da adversidade renunciamos a enfrentála fazemonos cúmplices dela e é isso o pior Pior é a renúncia à liberdade Secura escuridão e prisão deixam de estar fora de nós para se tornarem nós mesmos com nossa falta de sede nosso gosto do escuro e nossa falta de vontade de girar a chave Um outro poema também oferece o contraponto entre nós e o mundo Mundo mundo vasto mundo Se eu me chamasse Raimundo Seria uma rima não seria uma solução Mundo mundo vasto mundo Mais vasto é meu coração Neste poema Carlos Drummond de Andrade como José Paulo Paes confronta nos com a realidade exterior o vasto mundo do qual somos uma pequena parcela e no qual estamos mergulhados Todavia os dois poemas diferem pois em vez da inércia resignada estamos agora diante da afirmação de que nosso ser é mais vasto do que o mundo pelo nosso coração sentimentos e imaginação Convite à Filosofia 460 somos maiores do que o mundo criamos outros mundos possíveis inventamos outra realidade Abrimos a torneira acendemos a luz e giramos a chave Embora diferentes os dois poemas apontam para o grande tema da ética desde que esta se tornou questão filosófica O que está e o que não está em nosso poder Até onde de estende o poder de nossa vontade de nosso desejo de nossa consciência Em outras palavras Até onde alcança o poder de nossa liberdade Podemos mais do que o mundo ou este pode mais do que nossa liberdade O que está inteiramente em nosso poder e o que depende inteiramente de causas e forças exteriores que agem sobre nós Por que o pior é a falta de sede e não a torneira seca o gosto do escuro e não a luz apagada a chave imobilizada e não a porta fechada O que depende do vasto mundo e o que depende de nosso mais vasto coração Essa mesma interrogação embora não explicitada nesses termos encontrase presente no que escreveu o poeta Vicente de Carvalho em Velho tema Só a leve esperança em toda a vida Disfarça a pena de viver mais nada Nem é mais a existência resumida Que uma grande esperança malograda O eterno sonho da alma desterrada Sonho que a traz ansiosa e embevecida É uma hora feliz sempre adiada E que não chega nunca em toda a vida Essa felicidade que supomos Árvore milagrosa que sonhamos Toda arreada de dourados pomos Existe sim mas nós não a alcançamos Porque está sempre apenas onde a pomos E nunca a pomos onde nós estamos O poeta contrasta a esperança malograda de felicidade e a felicidade que existe sim mas que não alcançamos porque nunca a pomos onde nós estamos embora esteja sempre apenas onde a pomos Nossa alma fica desterrada no sonho exilada do real porque incapaz de reconhecer que a felicidade não é uma árvore distante situada em algum lugar não localizável do vasto mundo mas está em nós em nossa leve esperança em nosso mais vasto coração dependendo apenas de nós mesmos porque está sempre apenas onde a pomos Porta fechada vasto mundo árvore milagrosa a felicidade parece depender inteiramente do que se encontra fora de nós Marilena Chauí 461 Chave por dentro coração mais vasto estar sempre apenas onde a pomos a felicidade parece depender inteiramente de nós Seja de modo pessimista como em José Paulo Paes e Vicente de Carvalho seja de modo otimista como em Carlos Drummond os três poetas nos colocam diante da liberdade como problema Filosoficamente este se apresenta sob a forma de dois pares de opostos 1 o par necessidadeliberdade 2 o par contingêncialiberdade Torneira seca luz apagada porta fechada a realidade é feita de situações adversas e opressoras contra as quais nada podemos pois são necessárias Vasto mundo se a realidade natural e cultural possui leis causais necessárias e normas regras obrigatórias se tanto as leis naturais como as leis culturais não dependem de nós se sermos seres naturais e culturais não depende de nós se somos seres naturais e culturais cuja consciência e vontade são determinadas por aquelas leis da Natureza e normasregras da Cultura como então falar em liberdade humana A necessidade que rege as leis naturais e as normasregras culturais não seria mais vasta maior e mais poderosa do que nossa liberdade O que poderia estar em nosso poder Árvore milagrosa se a felicidade e o bem são milagres então são puro acaso pura contingência e não resta senão o jogo interminável entre a leve esperança e a grande esperança malograda Se o mundo é um tecido de acasos felizes e infelizes como esperar que sejamos sujeitos livres se tudo o que acontece é imprevisível fruto da boa e da má sorte de acontecimentos sem causa e sem explicação Como sermos sujeitos responsáveis num mundo feito de acidentes e de total indeterminação Se tudo é contingência onde colocar a liberdade O par necessidadeliberdade também pode ser formulado em termos religiosos como fatalidadeliberdade e em termos científicos como determinismo liberdade Necessidade é o termo empregado para referirse ao todo da realidade existente em si e por si que age sem nós e nos insere em sua rede de causas e efeitos condições e conseqüências Fatalidade é o termo usado quando pensamos em forças transcendentes às nossas e que nos governam quer o queiramos ou não Determinismo é o termo empregado a partir do século XIX para referirse à realidade conhecida e controlada pela ciência e no caso da ética particularmente ao ser humano como objeto das ciências naturais química e biologia e das ciências humanas sociologia e psicologia portanto como completamente determinado pelas leis e causas que condicionam seus pensamentos sentimentos e ações tornando a liberdade ilusória Convite à Filosofia 462 O par contingêncialiberdade também pode ser formulado pela oposição acaso liberdade Contingência ou acaso significam que a realidade é imprevisível e mutável impossibilitando deliberação e decisão racionais definidoras da liberdade Num mundo onde tudo acontece por acidente somos como um frágil barquinho perdido num mar tempestuoso levado em todas as direções ao sabor das vagas e dos ventos Necessidade fatalidade determinismo significam que não há lugar para a liberdade porque o curso das coisas e de nossas vidas já está fixado sem que nele possamos intervir Contingência e acaso significam que não há lugar para a liberdade porque não há curso algum das coisas e de nossas vidas sobre o qual pudéssemos intervir Tomemos um exemplo da necessidade oposta à liberdade Não escolhi nascer numa determinada época num determinado país numa determinada família com um corpo determinado As condições de meu nascimento e de minha vida fazem de mim aquilo que sou e minhas ações meus desejos meus sentimentos minhas intenções minhas condutas resultam dessas condições nada restando a mim senão obedecêlas Como dizer que sou livre e responsável Se por exemplo nasci negra mulher numa família pobre numa sociedade racista machista e classista que me discrimina racial sexual e socialmente que me impede o acesso à escola e a um trabalho bem remunerado que me proíbe a entrada em certos lugares que me interdita amar quem não for da mesma raça e classe social como dizer que sou livre para viver sentir pensar e agir de uma maneira que não escolhi mas foime imposta Tomemos agora um exemplo da contingência oposta à liberdade Quando minha mãe estava grávida de mim houve um acidente sanitário provocando uma epidemia Minha mãe adoeceu Nasci com problemas de visão Foi por acaso que a gravidez de minha mãe coincidiu com o acaso da epidemia por acaso ela adoeceu por acaso nasci com distúrbios visuais Tendo tais distúrbios preciso de cuidados médicos especiais No entanto na época em que nasci o governo de meu país instituiu um plano econômico de redução de empregos e privatização do serviço público de saúde Meu pai e minha mãe ficaram desempregados e não podiam contar com o serviço de saúde para meu tratamento Tivesse eu nascido em outra ocasião talvez pudesse ter sido curada de meus problemas visuais Quis o acaso que eu nascesse numa época funesta Tal como sou há coisas que não posso fazer Sou porém bem dotada para música e poderia receber uma educação musical Porém houve a decisão do governo municipal de minha cidade de demolir o conservatório musical público Não posso pagar um conservatório particular e ficarei sem a educação musical porque por acaso Marilena Chauí 463 moro numa cidade que deixará de ter um serviço público de educação artística Morasse eu em outra cidade ou fosse outro o governo municipal isso não aconteceria comigo Como então dizer que sou livre para decidir e escolher se vivo num mundo onde tudo acontece por acaso Diante da necessidade e da contingência como afirmar que mais vasto é meu coração ou que a felicidade está sempre onde a pomos Examinemos mais de perto os dois exemplos mencionados No primeiro exemplo negra mulher pobre numa sociedade racista machista classista parece que nada posso fazer A porta está fechada e a luz apagada Porém nada estará no poder de minha liberdade Terei que gostar do escuro e permanecer com a porta fechada Se a ética afirmar que a discriminação étnica sexual e de classe é imoral isto é violenta se eu tiver consciência disso nada farei Serei impotente para lutar livremente contra tal situação Mantendome resignada conformada passiva e omissa não estarei fazendo da necessidade uma desculpa um álibi para não agir No segundo exemplo epidemia desemprego fim dos serviços públicos de saúde e educação artística também parece que nada posso fazer Será verdade Não estarei transformando os acasos de meu nascimento e das condições políticas em desculpa e álibi para minha resignação Falarei em destino e má sorte para explicar o fechamento de todos os possíveis para fim Renunciarei à vastidão do meu coração aceitando que a felicidade sempre será posta onde não estou Nos dois casos podemos indagar se afinal para nós resta somente a pena de viver mais nada ou se como escreveu o filósofo Sartre o que importa não é saber o que fizeram de nós e sim o que fazemos com o que quiseram fazer conosco Três grandes concepções filosóficas da liberdade Na história das idéias ocidentais necessidade e contingência foram representadas por figuras míticas A primeira pelas três Parcas ou Moiras representando a fatalidade isto é o destino inelutável de cada um de nós do nascimento à morte Uma das Parcas ou Moiras era representada fiando o fio de nossa vida enquanto a outra o tecia e a última o cortava simbolizando nossa morte A contingência ou o acaso era representada pela Fortuna mulher volúvel e caprichosa que trazia nas mãos uma roda fazendoa girar de tal modo que quem estivesse no alto a boa fortuna ou boa sorte caísse infortúnio ou má sorte e quem estivesse embaixo fosse elevado Inconstante incerta e cega a roda da Fortuna era a pura sorte boa ou má contra a qual nada se poderia fazer como na música de Chico Buarque Eis que chega a rodaviva levando a saudade pra lá As teorias éticas procuraram sempre enfrentar o duplo problema da necessidade e da contingência definindo o campo da liberdade possível Convite à Filosofia 464 A primeira grande teoria filosófica da liberdade é exposta por Aristóteles em sua obra Ética a Nicômaco e com variantes permanece através dos séculos chegando até o século XX quando foi retomada por Sartre Nessa concepção a liberdade se opõe ao que é condicionado externamente necessidade e ao que acontece sem escolha deliberada contingência Diz Aristóteles que é livre aquele que tem em si mesmo o princípio para agir ou não agir isto é aquele que é causa interna de sua ação ou da decisão de não agir A liberdade é concebida como o poder pleno e incondicional da vontade para determinar a si mesma ou para ser autodeterminada É pensada também como ausência de constrangimentos externos e internos isto é como uma capacidade que não encontra obstáculos para se realizar nem é forçada por coisa alguma para agir Tratase da espontaneidade plena do agente que dá a si mesmo os motivos e os fins de sua ação sem ser constrangido ou forçado por nada e por ninguém Assim na concepção aristotélica a liberdade é o princípio para escolher entre alternativas possíveis realizandose como decisão e ato voluntário Contrariamente ao necessário ou à necessidade sob a qual o agente sofre a ação de uma causa externa que o obriga a agir sempre de uma determinada maneira no ato voluntário livre o agente é causa de si isto é causa integral de sua ação Sem dúvida poderseia dizer que a vontade livre é determinada pela razão ou pela inteligência e nesse caso seria preciso admitir que não é causa de si ou incondicionada mas que é causada pelo raciocínio ou pelo pensamento No entanto como disseram os filósofos posteriores a Aristóteles a inteligência inclina a vontade numa certa direção mas não a obriga nem a constrange tanto assim que podemos agir na direção contrária à indicada pela inteligência ou razão É por ser livre e incondicionada que a vontade pode seguir ou não os conselhos da consciência A liberdade será ética quando o exercício da vontade estiver em harmonia com a direção apontada pela razão Sartre levou essa concepção ao ponto limite Para ele a liberdade é a escolha incondicional que o próprio homem faz de seu ser e de seu mundo Quando julgamos estar sob o poder de forças externas mais poderosas do que nossa vontade esse julgamento é uma decisão livre pois outros homens nas mesmas circunstâncias não se curvaram nem se resignaram Em outras palavras conformarse ou resignarse é uma decisão livre tanto quanto não se resignar nem se conformar lutando contra as circunstâncias Quando dizemos estar fatigados a fadiga é uma decisão nossa Quando dizemos estar enfraquecidos a fraqueza é uma decisão nossa Quando dizemos não ter o que fazer o abandono é uma decisão nossa Ceder tanto quanto não ceder é uma decisão nossa Por isso Sartre afirma que estamos condenados à liberdade É ela que define a humanidade dos humanos sem escapatória É essa idéia que encontramos no Marilena Chauí 465 poema de Carlos Drummond quando afirma que somos maiores do que o vasto mundo É ela também que se encontra no poema de Vicente de Carvalho quando nos diz que a felicidade está sempre apenas onde a pomos e nunca a pomos onde nós estamos Somos agentes livres tanto para ter quanto para perder a felicidade A segunda concepção da liberdade foi inicialmente desenvolvida por uma escola de Filosofia do período helenístico o estoicismo ressurgindo no século XVII com o filósofo Espinosa e no século XIX com Hegel e Marx Eles conservam a idéia aristotélica de que a liberdade é a autodeterminação ou ser causa de si Conservam também a idéia de que é livre aquele que age sem ser forçado nem constrangido por nada ou por ninguém e portanto age movido espontaneamente por uma força interna própria No entanto diferentemente de Aristóteles e de Sartre não colocam a liberdade no ato de escolha realizado pela vontade individual mas na atividade do todo do qual os indivíduos são partes O todo ou a totalidade pode ser a Natureza como para os estóicos e Espinosa ou a Cultura como para Hegel ou enfim uma formação históricosocial como para Marx Em qualquer dos casos é a totalidade que age ou atua segundo seus próprios princípios dando a si mesma suas leis suas regras suas normas Essa totalidade é livre em si mesma porque nada a força ou a obriga do exterior e por sua liberdade instaura leis e normas necessárias para suas partes os indivíduos Em outras palavras a liberdade agora não é um poder individual incondicionado para escolher a Natureza não escolhe a Cultura não escolhe uma formação social não escolhe mas é o poder do todo para agir em conformidade consigo mesmo sendo necessariamente o que é e fazendo necessariamente o que faz Como podemos observar essa concepção não mantém a oposição entre liberdade e necessidade mas afirma que a necessidade as leis da Natureza as normas e regras da Cultura as leis da História é a maneira pela qual a liberdade do todo se manifesta Em outras palavras a totalidade é livre porque se põe a si mesma na existência e define por si mesma as leis e as regras de sua atividade e é necessária porque tais leis e regras exprimem necessariamente o que ela é e faz Liberdade não é escolher e deliberar mas agir ou fazer alguma coisa em conformidade com a natureza do agente que no caso é a totalidade O que é então a liberdade humana São duas as respostas a essa questão 1 a primeira afirma que o todo é racional e que suas partes também o são sendo livres quando agirem em conformidade com as leis do todo para o bem da totalidade 2 a segunda afirma que as partes são de mesma essência que o todo e portanto são racionais e livres como ele dotadas de força interior para agir por si mesmas de sorte que a liberdade é tomar parte ativa na atividade do todo Tomar parte Convite à Filosofia 466 ativa significa por um lado conhecer as condições estabelecidas pelo todo conhecer suas causas e o modo como determinam nossas ações e por outro lado graças a tal conhecimento não ser um joguete das condições e causas que atuam sobre nós mas agir sobre elas também Não somos livres para escolher tudo mas o somos para fazer tudo quanto esteja de acordo com nosso ser e com nossa capacidade de agir graças ao conhecimento que possuímos das circunstâncias em que vamos agir Além da concepção de tipo aristotélicosartreano e da concepção de tipo estóico hegeliano existe ainda uma terceira concepção que procura unir elementos das duas anteriores Afirma como a segunda que não somos um poder incondicional de escolha de quaisquer possíveis mas que nossas escolhas são condicionadas pelas circunstâncias naturais psíquicas culturais e históricas em que vivemos isto é pela totalidade natural e histórica em que estamos situados Afirma como a primeira que a liberdade é um ato de decisão e escolha entre vários possíveis Todavia não se trata da liberdade de querer alguma coisa e sim de fazer alguma coisa distinção feita por Espinosa e Hobbes no século XVII e retomada no século XVIII por Voltaire ao dizerem que somos livres para fazer alguma coisa quando temos o poder para fazêla Essa terceira concepção da liberdade introduz a noção de possibilidade objetiva O possível não é apenas alguma coisa sentida ou percebida subjetivamente por nós mas é também e sobretudo alguma coisa inscrita no coração da necessidade indicando que o curso de uma situação pode ser mudado por nós em certas direções e sob certas condições A liberdade é a capacidade para perceber tais possibilidades e o poder para realizar aquelas ações que mudam o curso das coisas dandolhe outra direção ou outro sentido Na verdade a não ser aqueles filósofos que afirmaram a liberdade como um poder absolutamente incondicional da vontade em quaisquer circunstâncias como o fizeram por razões diferentes Kant e Sartre os demais nas três concepções apresentadas sempre levaram em conta a tensão entre nossa liberdade e as condições naturais culturais psíquicas que nos determinam As discussões sobre as paixões os interesses as circunstâncias históricosociais as condições naturais sempre estiveram presentes na ética e por isso uma idéia como a de possibilidade objetiva sempre esteve pressuposta ou implícita nas teorias sobre a liberdade Liberdade e possibilidade objetiva O possível não é o provável Este é o previsível isto é algo que podemos calcular e antever porque é uma probabilidade contida nos fatos e nos dados que analisamos O possível porém é aquilo criado pela nossa própria ação É o que vem à existência graças ao nosso agir No entanto não surge como árvore milagrosa e sim como aquilo que as circunstâncias abriram para nossa ação A Marilena Chauí 467 liberdade é a consciência simultânea das circunstâncias existentes e das ações que suscitadas por tais circunstâncias nos permitem ultrapassálas Nosso mundo nossa vida e nosso presente formam um campo de condições e circunstâncias que não foram escolhidas e nem determinadas por nós e em cujo interior nos movemos No entanto esse campo é temporal teve um passado tem um presente e terá um futuro cujos vetores ou direções já podem ser percebidos ou mesmo adivinhados como possibilidades objetivas Diante desse campo poderíamos assumir duas atitudes ou a ilusão de que somos livres para mudálo em qualquer direção que desejarmos ou a resignação de que nada podemos fazer Deixado a si mesmo o campo do presente seguirá um curso que não depende de nós e seremos submetidos passivamente a ele a torneira permanecerá seca ou vazará inundando a casa a luz permanecerá apagada ou haverá um curto circuito incendiando a casa a porta permanecerá fechada ou será arrombada deixando a casa ser invadida A liberdade porém não se encontra na ilusão do posso tudo nem no conformismo do nada posso Encontrase na disposição para interpretar e decifrar os vetores do campo presente como possibilidades objetivas isto é como abertura de novas direções e novos sentidos a partir do que está dado Nada melhor do que um outro poema de Carlos Drummond para expressar essa idéia Tratase de um poema no qual o poeta reconhece que seu coração não é mais vasto do que o mundo como ele imaginara MUNDO GRANDE Não meu coração não é maior que o mundo É muito menor Nele não cabem nem as minhas dores Por isso gosto tanto de me contar Por isso me dispo Por isso me grito Por isso freqüento os jornais me exponho cruamente nas livrarias Preciso de todos Sim meu coração é muito pequeno Só agora vejo que nele não cabem os homens Os homens estão cá fora estão na rua A rua é enorme Maior muito maior do que eu esperava Mas também na rua não cabem todos os homens A rua é menor que o mundo O mundo é grande Tu sabes como é grande o mundo Conheces os navios que levam petróleo e livros carne e algodão Viste as diferentes cores dos homens Convite à Filosofia 468 As diferentes dores dos homens Sabes como é difícil sofrer tudo isso amontoar tudo isso Num só peito de homem sem que ele estale Fecha os olhos e esquece Escuta a água nos vidros Tão calma Não anuncia nada Entretanto escorre nas mãos Tão calma Vai inundando tudo Renascerão as cidades submersas Os homens submersos voltarão Meu coração não sabe Estúpido ridículo e frágil é meu coração Só agora descubro Como é triste ignorar certas coisas Na solidão de indivíduo desaprendi a linguagem com que os homens se comunicam Outrora escutei os anjos As sonatas os poemas as confissões patéticas Nunca escutei voz de gente Em verdade sou muito pobre Outrora viajei Países imaginários fáceis de habitar Ilhas sem problemas não obstante exaustivas e convocando ao suicídio Meus amigos foram às ilhas Ilhas perdem o homem Entretanto alguns se salvaram e Trouxeram a notícia De que o mundo o grande mundo está crescendo todos os dias Entre o fogo e o amor Então meu coração também pode crescer Entre o amor e o fogo Entre a vida e o fogo Meu coração cresce dez metros e explode Ó vida futura Nós te criaremos Que nos diz o poeta Que não é na solidão de uma vontade individual mais vasto é meu coração como o poeta escrevera antes que podemos enfrentar livremente o mundo grande mas na companhia dos outros que nos trazem a notícia de que o mundo Marilena Chauí 469 cresce todo dia isto é transformase incessantemente entre fogo e amor entre lutas guerras conflitos e busca de paz entendimento e justiça Somos livres não contra o mundo mas no mundo meu coração cresce meu poder de querer e de fazer aumenta mudandoo na companhia dos outros aprendendo a linguagem com que os homens se comunicam isto é suas dores seus sofrimentos suas batalhas e suas esperanças Somente tendo contato com o mundo conhecendo seus limites e suas aberturas para os possíveis é que nossa liberdade poderá exclamar Ó vida futura nós te criaremos É essa mesma concepção da liberdade como possibilidade objetiva inscrita no mundo que encontramos no filósofo MerleauPonty quando escreve Nascer é simultaneamente nascer do mundo e nascer para o mundo Sob o primeiro aspecto o mundo já está constituído e somos solicitados por ele Sob o segundo aspecto o mundo não está inteiramente constituído e estamos abertos a uma infinidade de possíveis Existimos porém sob os dois aspectos ao mesmo tempo Não há pois necessidade absoluta nem escolha absoluta jamais sou como uma coisa e jamais sou uma pura consciência A situação vem em socorro da decisão e no intercâmbio entre a situação e aquele que a assume é impossível delimitar a parte que cabe à situação e a parte que cabe à liberdade Torturase um homem para fazêlo falar Se ele recusa dar nomes e endereços que lhe querem arrancar não é por sua decisão solitária e sem apoios no mundo É que ele se sente ainda com seus companheiros e ainda engajado numa luta comum ou é porque desde há meses ou anos tem enfrentado essa provocação em pensamento e nela apostara toda sua vida ou enfim é porque ele quer provar ultrapassandoa o que ele sempre pensou e disse sobre a liberdade Tais motivações não anulam a liberdade mas lhe dão ancoradouro no ser Ele não é uma consciência nua que resiste à dor mas o prisioneiro com seus companheiros ou com aqueles que ama e sob cujo olhar ele vive ou enfim a consciência orgulhosamente solitária que é ainda um modo de estar com os outros Escolhemos nosso mundo e nosso mundo nos escolhe Concretamente tomada a liberdade é sempre o encontro de nosso interior com o exterior degradandose sem nunca tornarse nula à medida que diminui a tolerância dos dados corporais e institucionais de nossa vida Há um campo de liberdade e uma liberdade condicionada porque tenho possibilidades próximas e distantes A escolha de vida que fazemos tem sempre lugar sobre a base de situações dadas e possibilidades abertas Minha liberdade pode desviar minha vida do sentido espontâneo que teria mas o faz deslizando sobre este sentido Convite à Filosofia 470 esposandoo inicialmente para depois afastarse dele e não por uma criação absoluta Sou uma estrutura psicológica e histórica Recebi uma maneira de existir um estilo de existência Todas as minhas ações e meus pensamentos estão em relação com essa estrutura No entanto sou livre não apesar disto ou aquém dessas motivações mas por meio delas são elas que me fazem comunicar com minha vida com o mundo e com minha liberdade A liberdade é a capacidade para darmos um sentido novo ao que parecia fatalidade transformando a situação de fato numa realidade nova criada por nossa ação Essa força transformadora que torna real o que era somente possível e que se achava apenas latente como possibilidade é o que faz surgir uma obra de arte uma obra de pensamento uma ação heróica um movimento antiracista uma luta contra a discriminação sexual ou de classe social uma resistência à tirania e a vitória contra ela O possível não é pura contingência ou acaso O necessário não é fatalidade bruta O possível é o que se encontra aberto no coração do necessário e que nossa liberdade agarra para fazerse liberdade Nosso desejo e nossa vontade não são incondicionados mas os condicionamentos não são obstáculos à liberdade e sim o meio pelo qual ela pode exercerse Se nascemos numa sociedade que nos ensina certos valores morais justiça igualdade veracidade generosidade coragem amizade direito à felicidade e no entanto impede a concretização deles porque está organizada e estruturada de modo a impedilos o reconhecimento da contradição entre o ideal e a realidade é o primeiro momento da liberdade e da vida ética como recusa da violência O segundo momento é a busca das brechas pelas quais possa passar o possível isto é uma outra sociedade que concretize no real aquilo que a nossa propõe no ideal Esse segundo momento indaga se um possível existe e se temos o poder para tornálo real isto é se temos como passar da pena de viver e da árvore milagrosa a uma felicidade que enfim esteja onde nós estamos O terceiro momento é o da nossa decisão de agir e da escolha dos meios para a ação O último momento da liberdade é a realização da ação para transformar um possível num real uma possibilidade numa realidade Eis por que o poeta José Paulo Paes introduz o mas o pior em seu poema De fato a torneira está seca mas o pior é não ter sede isto é não agir para que a água possa correr pela torneira De fato a luz está apagada mas o pior é gostar do escuro isto é não agir para que a luz possa acenderse De fato a porta está trancada mas o pior é saber que a chave está do lado de dentro e nada fazer para girála O mundo já está constituído escreve MerleauPonty a torneira está seca a luz apagada e a porta fechada Porém o mundo prossegue o filósofo não está completamente constituído não está pronto e acabado mas como escreve Marilena Chauí 471 Carlos Drummond o grande mundo está crescendo todo dia pelo fogo e amor dos seres humanos e o pior seria renunciar a ele por estarmos nele Vida e morte Vida e morte não são para nós humanos simples acontecimentos biológicos Como disse um filósofo as coisas aparecem e desaparecem os animais começam e acabam somente o ser humano vive e morre isto é existe Vida e morte são acontecimentos simbólicos são significações possuem sentido e fazem sentido Viver e morrer são a descoberta da finitude humana de nossa temporalidade e de nossa identidade uma vida é minha e minha a morte Esta e somente ela completa o que somos dizendo o que fomos Por isso os filósofos estóicos propunham que somente após a morte quando terminam as vicissitudes da vida podemos afirmar que alguém foi feliz ou infeliz Enquanto vivos somos tempo e mudança estamos sendo Os filósofos existencialistas disseram a existência precede a essência significando com isso que nossa essência é a síntese final do todo de nossa existência Quem não souber morrer bem terá vivido mal afirmou Sêneca Num de seus ensaios Que filosofar é aprender a morrer Montaigne escreve Qualquer que seja a duração de nossa vida ela é completa Sua utilidade não reside na quantidade de duração e sim no emprego que lhe dais Há quem viveu muito e não viveu Meditai sobre isso enquanto o podeis fazer pois depende de vós e não do número de anos terdes vivido bastante E conclui Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade quem aprendeu a morrer desaprendeu de servir nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal saber morrer nos exime de toda sujeição e coação Morrer é um ato solitário Morrese só a essência da morte é a solidão O morto parte sozinho os vivos ficam sozinhos ao perdêlo Resta saudade e recordação Viver é estar com os outros Vivese com outrem a essência da vida é a intercorporeidade e a intersubjetividade Os vivos estão entrelaçados estamos com os outros e eles estão conosco somos para os outros e eles são para nós No ensaio O filósofo e sua sombra MerleauPonty nos diz De morrese só para vivese só a conseqüência não é exata pois se apenas a dor e a morte forem invocadas para definir a subjetividade então para ela a vida com outros e no mundo serão impossíveis Estamos verdadeiramente sós apenas quando não o sabemos Essa ignorância é a solidão A solidão de onde emergimos para a vida intersubjetiva é Convite à Filosofia 472 apenas a névoa de uma vida anônima e a barreira que nos separa dos outros é impalpável A ética é o mundo das relações intersubjetivas isto é entre o eu e o outro como sujeitos e pessoas portanto como seres conscientes livres e responsáveis Nenhuma experiência evidencia tanto a dimensão essencialmente intersubjetiva da vida e da vida ética quanto a do diálogo Ouçamos ainda uma vez Merleau Ponty Na experiência do diálogo constituise entre mim e o outro um terreno comum meu pensamento e o dele formam um só tecido minhas falas e as dele são invocadas pela interlocução inseremse numa operação comum da qual nenhum de nós é o criador Há um entredois eu e o outro somos colaboradores numa reciprocidade perfeita coexistimos no mesmo mundo No diálogo fico liberado de mim mesmo os pensamentos de outrem são dele mesmo não sou eu quem os formo embora eu os aprenda tão logo nasçam e mesmo me antecipe a eles assim como as objeções de outrem arrancam de mim pensamentos que eu não sabia possuir de tal modo que se lhe empresto pensamentos em troca ele me faz pensar Somente depois quando fico sozinho e me recordo do diálogo fazendo deste um episódio de minha vida privada solitária quando outrem tornou se apenas uma ausência é que posso talvez sentilo como uma ameaça pois desapareceu a reciprocidade que nos relacionava na concordância e na discordância Porque a vida é intersubjetividade corporal e psíquica e porque a vida ética é reciprocidade entre sujeitos tantos filósofos deram à amizade o lugar de virtude proeminente expressão do mais alto ideal de justiça Num ensaio Discurso da servidão voluntária procurando compreender por que os homens renunciam à liberdade e voluntariamente servem aos tiranos La Boétie contrapôs a amizade à servidão voluntária escrevendo Certamente o tirano nunca ama e nem é amado A amizade é nome sagrado coisa santa só pode existir entre gente de bem nasce da mútua estima e se conserva não tanto por meio de benefícios mas pela vida boa e pelos costumes bons O que torna um amigo seguro de outro é a sua integridade Como garantias tem seu bom natural sua fidelidade sua constância Não pode haver amizade onde há crueldade e injustiça Entre os maus quando se juntam há uma conspiração não sociedade Não se apóiam mutuamente mas tememse mutuamente Não são amigos são cúmplices Assim também Espinosa afirma que o ser humano é mais livre na companhia dos outros do que na solidão e que somente os seres humanos livres são gratos e reconhecidos uns aos outros porque os sujeitos livres são aqueles que nunca agem com fraude mas sempre de boafé Marilena Chauí 473 Se perguntarmos quais são afinal os valores os motivos os fins e os comportamentos éticos responderemos dizendo que são aqueles nos quais buscamos eliminar a violência na relação com o outro ao mesmo tempo em que procuramos manter a fidelidade a nós mesmos Ético é não desaprender a linguagem com que os homens se comunicam e deixar o coração crescer para sermos mais nós mesmos quanto mais formos capazes de reciprocidade e solidariedade A ética se move no campo das paixões dos desejos das ações e dos princípios possuindo uma dimensão valorativa e normativa Por um lado valores e normas são exteriores e anteriores a nós definidos pela Cultura e pela sociedade onde vivemos mas por outro lado somos sujeitos éticos e portanto capazes tanto de interiorizar valores e normas existentes quanto de criar novos valores e normas Minha liberdade escreve um filósofo é o poder fundamental que tenho de ser o sujeito de todas as minhas experiências Por atos de liberdade interpretamos nossa situação valores normas princípios e dessa interpretação nasce em nós a aceitação ou a recusa a interiorização ou a transgressão a continuação ou a criação A ação mais alta da vida livre disse Nietzsche é nosso poder para avaliar os valores O filósofo grego Epicuro escreveu O essencial para nossa felicidade é nossa condição íntima e dela somos senhores Ser senhor de si isto é autônomo e ser capaz de philia isto é de reciprocidade de relação intersubjetiva como coexistência e nãoviolência é o núcleo da vida ética Como disse Epicuro a justiça não existe por si própria mas encontrase sempre nas relações recíprocas em qualquer tempo e lugar em que exista entre os humanos o pacto de não causar nem sofrer dano Convite à Filosofia 474 Capítulo 7 A vida política Paradoxos da política Não é raro ouvirmos dizer que lugar de estudante é na sala de aula e não na rua fazendo passeata ou estudante estuda não faz política Mas também ouvimos o contrário quando alguém diz que os estudantes estão alienados não se interessam por política No primeiro caso considerase a política uma atividade própria de certas pessoas encarregadas de fazêla os políticos profissionais enquanto no segundo caso considerase a política um interesse e mesmo uma obrigação de todos Assim um primeiro paradoxo da política faz aqui sua aparição é ela uma atividade específica de alguns profissionais da sociedade ou concerne a todos nós porque vivemos em sociedade Como se observa usamos a palavra política ora para significar uma atividade específica o governo realizada por um certo tipo de profissional o político ora para significar uma ação coletiva o movimento estudantil nas ruas de reivindicação de alguma coisa feita por membros da sociedade e dirigida aos governos ou ao Estado Afinal a política é uma profissão entre outras ou é uma ação que todos os indivíduos realizam quando se relacionam com o poder A política se refere às atividades de governo ou a toda ação social que tenha como alvo ou como interlocutor o governo ou o Estado No entanto podemos usar a palavra política ainda noutro sentido De fato freqüentemente encontramos expressões como política universitária política da escola política do hospital política da empresa política sindical Nesse conjunto de expressões já não encontramos a referência ao governo nem a profissionais da política Política universitária e política da escola referemse à maneira como uma instituição de ensino pública ou privada define sua direção e o modo de participação ou não de professores e estudantes em sua gestão ao modo como os recursos serão empregados ao currículo às formas de avaliação dos alunos e professores ao tipo de pessoa que será recebida como estudante ou como docente à carreira dos docentes aos salários e se a instituição for privada ao custo das mensalidades e matrículas etc Em sentido próximo a esse falase de política do hospital Já política da empresa referese ao modo de organização e divisão de poderes relativos aos investimentos e aos lucros de uma empresa à distribuição dos serviços à divisão Marilena Chauí 475 do trabalho às decisões sobre a produção e a distribuição dos produtos às relações com as outras empresas etc Política do sindicato referese à maneira de preencher os cargos de direção sindical às formas de representação e participação dos sindicalizados na direção do sindicato aos conteúdos e às formas das reivindicações e lutas dos sindicalizados em face de outros poderes etc Podemos então indagar Afinal o que é a política É a atividade de governo É a administração do que é público É profissão de alguns especialistas É ação coletiva referida aos governos Ou é tudo que se refira à organização e à gestão de uma instituição pública ou privada No primeiro caso governo e administração usamos política para nos referirmos a uma atividade que exige formas organizadas de gestão institucional e no segundo caso gestão e organização de instituições usamos política para nos referirmos ao fato de que organizar e gerir uma instituição envolve questões de poder Em resumo Política diz respeito a tudo quanto envolva relações de poder ou a tudo quanto envolva organização e administração de grupos Como veremos posteriormente o crescimento das atribuições conferidas aos governos sob a forma do Estado levou a uma ampliação do campo das atividades políticas que passaram a abranger questões administrativas e organizacionais decisões econômicas e serviços sociais Essa ampliação acabou levando a um uso generalizado da palavra política para referirse a toda modalidade de direção de grupos sociais que envolva poder administração e organização Podemos assim distinguir entre o uso generalizado e vago da palavra política e um outro mais específico e preciso que fazemos quando damos a ela três significados principais interrelacionados 1 o significado de governo entendido como direção e administração do poder público sob a forma do Estado O senso comum social tende a identificar governo e Estado mas governo e Estado são diferentes pois o primeiro diz respeito a programas e projetos que uma parte da sociedade propõe para o todo que a compõe enquanto o segundo é formado por um conjunto de instituições permanentes que permitem a ação dos governos Ao Estado conferese autoridade para gerir o erário ou fundo público por meio de impostos taxas e tributos para promulgar e aplicar as leis que definem os costumes públicos lícitos os crimes bem como os direitos e as obrigações dos membros da sociedade Também se reconhece como autoridade do governo ou do Estado o poder para usar a força polícia e exército contra aqueles que forem considerados inimigos da sociedade criminosos comuns e criminosos políticos Conferese igualmente ao governo ou ao Estado o poder para decretar a guerra e a paz Exigese dos membros da sociedade obediência ao governo ou ao Estado Convite à Filosofia 476 mas reconhecese o direito de resistência e de desobediência quando a sociedade julga o governo ou mesmo o Estado injusto ilegal ou ilegítimo A política neste primeiro sentido referese portanto à ação dos governantes que detêm a autoridade para dirigir a coletividade organizada em Estado bem como às ações da coletividade em apoio ou contrárias à autoridade governamental e mesmo à forma do Estado 2 o significado de atividade realizada por especialistas os administradores e profissionais os políticos pertencentes a um certo tipo de organização sociopolítica os partidos que disputam o direito de governar ocupando cargos e postos no Estado Neste segundo sentido a política aparece como algo distante da sociedade uma vez que é atividade de especialistas e profissionais que se ocupam exclusivamente com o Estado e o poder A política é feita por eles e não por nós ainda que eles se apresentem como representantes nossos 3 o significado derivado do segundo sentido de conduta duvidosa não muito confiável um tanto secreta cheia de interesses particulares dissimulados e freqüentemente contrários aos interesses gerais da sociedade e obtidos por meios ilícitos ou ilegítimos Este terceiro significado é o mais corrente para o senso comum social e resulta numa visão pejorativa da política Esta aparece como um poder distante de nós passase no governo ou no Estado exercido por pessoas diferentes de nós os administradores e profissionais da política através de práticas secretas que beneficiam quem as exerce e prejudicam o restante da sociedade Falase na política como mal necessário que precisamos tolerar e do qual precisamos desconfiar A desconfiança pode referirse tanto aos atuais ocupantes dos postos e cargos políticos quanto a grupos e organizações que lhes fazem oposição e pretendem derrubálos seja para ocupar os mesmos postos e cargos seja para criar um outro Estado através de uma revolução sócio econômica e política Onde está o paradoxo Na divergência entre o primeiro e o terceiro sentido da palavra política pois o primeiro se refere a algo geral que concerne à sociedade como um todo definindo leis e costumes garantindo direitos e obrigações criando espaço para contestações através da reivindicação da resistência e da desobediência enquanto o terceiro sentido afasta a política de nosso alcance fazendoa surgir como algo perverso e maléfico para a sociedade A divergência entre o primeiro e o terceiro é provocada pelo segundo significado isto é aquele que reduz a política à ação de especialistas e profissionais Essa situação paradoxal da política acaba por fazernos aceitar como óbvias e verdadeiras certas atitudes e afirmações que se examinadas mais a fundo seriam percebidas como absurdas Tomemos um exemplo recente da história da política do País Em 1993 durante o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal STF do pedido do expresidente Marilena Chauí 477 da república Fernando Collor de Mello de nãosuspensão de seus direitos políticos ouvimos em toda a parte a afirmação de que o Poder Judiciário do qual o Supremo Tribunal Federal é o órgão mais alto só teria sua dignidade preservada se o julgamento do pedido não fosse um julgamento político Onde está o paradoxo No fato de que a república brasileira é constituída por três poderes políticos executivo legislativo judiciário e portanto o Supremo Tribunal Federal sendo um poder político da República um poder do Estado não pode ficar fora da política Que sentido portanto poderia ter a idéia de que o órgão mais alto do Poder Judiciário não deve julgar politicamente Como desejar que um poder do Estado portanto um poder político aja fora da política Mais paradoxal ainda foi o modo como os juízes após o julgamento avaliaram seu próprio trabalho dizendo Foi um julgamento legal e não político Ora e nisso reside o paradoxo a lei não é feita pelo Poder Legislativo Não é parte da Constituição da República Não é parte essencial da política Como então separar o legal e o político se a lei é uma das formas fundamentais da ação política Na verdade quando se insistia em que o julgamento não fosse político e se elogiava o julgamento por ter sido apenas legal o que estava sendo pressuposto por todos sociedade e juízes era a identificação costumeira entre política e interesses particulares escusos contrários aos da maioria que por isso deve ser protegida pela lei contra a política O paradoxo está no fato de que uma forma essencial da política a lei aparece como proteção contra a própria política Uma outra afirmação que aceitamos tranqüilamente é aquele que acusa e critica uma greve declarando que se trata de greve política É curioso que usemos sem problema a expressão política sindical e ao mesmo tempo a condenemos criticando uma greve sob a alegação de ser política Em certos casos é compreensível o paradoxo Quando por exemplo se trata de trabalhadores de uma fábrica de automóveis que em nome de melhores salários entram em greve contra a direção da empresa compreendese que a greve seja considerada simplesmente econômica Ao criticála como greve política estáse como sempre querendo dizer que os grevistas sob a aparência de uma reivindicação salarial estariam defendendo interesses particulares escusos e ilegítimos ou buscando dissimuladamente vantagens e poderes para alguns sindicalistas A palavra política é assim empregada para dar um sentido pejorativo à greve Há casos porém em que a expressão greve política usada como crítica ou acusação é surpreendente Suponhamos por exemplo que os trabalhadores de um país façam uma greve geral contra o plano econômico do governo Estão portanto recusando uma política econômica e nesse caso a greve é e só pode ser política Por que então acusar uma greve por ela ser o que ela é O motivo é Convite à Filosofia 478 simples para o senso comum social dizer de alguma coisa que ela é política é fazer uma acusação A crítica só em aparência está dirigida contra a greve pois realmente está voltada contra a política imaginada como algo maléfico Essa visão generalizada da política como algo perverso perigoso distante de nós passase no Estado praticado por eles os políticos profissionais contra nós sob o disfarce de agirem por nós faz com que seja sentida como algo secreto e desconhecido uma conduta calculista e oportunista uma força corrupta e através da polícia uma força repressora usada contra a sociedade Essa imagem da política como um poder do qual somos vítimas tolerantes que consentem a violência é paradoxal pelo menos por dois motivos principais Em primeiro lugar porque a política foi inventada pelos humanos como o modo pelo qual pudessem expressar suas diferenças e conflitos sem transformálos em guerra total em uso da força e extermínio recíproco Numa palavra como o modo pelo qual os humanos regulam e ordenam seus interesses conflitantes seus direitos e obrigações enquanto seres sociais Como explicar então que a política seja percebida como distante maléfica e violenta Em segundo lugar porque a política foi inventada como o modo pelo qual a sociedade internamente dividida discute delibera e decide em comum para aprovar ou rejeitar as ações que dizem respeito a todos os seus membros Como explicar então que seja percebida como algo que não nos concerne mas nos prejudica não nos favorece mas favorece aos interesses escusos e ilícitos de outros Que aconteceu a essa invenção humana para tornarse paradoxalmente um fardo de que gostaríamos de nos livrar Cotidianamente jornais rádios televisões mostram no mundo inteiro fatos políticos que reforçam a visão pejorativa da política corrupção fraudes crimes impunes praticados por políticos mentiras provocando guerras para satisfazer aos interesses econômicos dos fabricantes de armamentos desvios de recursos públicos que deveriam ser usados contra a fome as doenças a pobreza aumento das desigualdades econômicas e sociais uso das leis com finalidades opostas aos objetivos que tiveram ao ser elaboradas etc Ao lado desses fatos não passa um dia sem que saibamos o modo desumano autoritário violento com que funcionários públicos cujo salário é pago por nós através de impostos tratam a população que busca os serviços públicos Também contribui para a visão negativa da política a maneira como as leis estão redigidas tornandose incompreensíveis para a sociedade e exigindo que sejam interpretadas por especialistas sem que tenhamos garantia de que as interpretam corretamente se o fazem em nosso favor ou em favor de privilégios escondidos O que é curioso porém aumentando nossa percepção da política como algo paradoxal é o fato de que só podemos opornos a tais fatos e lutar contra eles Marilena Chauí 479 através da própria política pois mesmo quando se faz uma guerra civil ou se realiza uma revolução os motivos e objetivos são a política isto é mudanças na forma e no conteúdo do poder Mesmo as utopias de emancipação do gênero humano contra todas as modalidades de servidão escravidão autoritarismo violência e injustiça concebem o término de poderes ilegítimos mas não o término da própria política As pessoas que desgostosas e decepcionadas não querem ouvir falar em política recusamse a participar de atividades sociais que possam ter finalidade ou cunho políticos afastamse de tudo quanto lembre atividades políticas mesmo tais pessoas com seu isolamento e sua recusa estão fazendo política pois estão deixando que as coisas fiquem como estão e portanto que a política existente continue tal qual é A apatia social é pois uma forma passiva de fazer política O vocabulário da política O historiador helenista Moses Finley estudando as sociedades grega e romana concluiu que o que chamamos de política foi inventado pelos gregos e romanos Antes de examinarmos o que foi tal invenção já podemos compreender a origem grecoromana do que chamamos de política pelo simples exame do vocabulário usado em política democracia aristocracia oligarquia tirania despotismo anarquia monarquia são palavras gregas que designam regimes políticos república império poder cidade ditadura senado povo sociedade pacto consenso são palavras latinas que designam regimes políticos agentes políticos formas de ação política A palavra política é grega ta politika vinda de polis Polis é a Cidade entendida como a comunidade organizada formada pelos cidadãos politikos isto é pelos homens nascidos no solo da Cidade livres e iguais portadores de dois direitos inquestionáveis a isonomia igualdade perante a lei e a isegoria o direito de expor e discutir em público opiniões sobre ações que a Cidade deve ou não deve realizar Ta politika são os negócios públicos dirigidos pelos cidadãos costumes leis erário público organização da defesa e da guerra administração dos serviços públicos abertura de ruas estradas e portos construção de templos e fortificações obras de irrigação etc e das atividades econômicas da Cidade moeda impostos e tributos tratados comerciais etc Civitas é a tradução latina de polis portanto a Cidade como ente público e coletivo Res publica é a tradução latina para ta politika significando portanto os negócios públicos dirigidos pelo populus romanus isto é os patrícios ou cidadãos livres e iguais nascidos no solo de Roma Convite à Filosofia 480 Polis e civitas correspondem imperfeitamente ao que no vocabulário político moderno chamamos de Estado o conjunto das instituições públicas leis erário público serviços públicos e sua administração pelos membros da Cidade Ta politika e res publica correspondem imperfeitamente ao que designamos modernamente por práticas políticas referindose ao modo de participação no poder aos conflitos e acordos na tomada de decisões e na definição das leis e de sua aplicação no reconhecimento dos direitos e das obrigações dos membros da comunidade política e às decisões concernentes ao erário ou fundo público Dizer que os gregos e romanos inventaram a política não significa dizer que antes deles não existiam o poder e a autoridade mas sim que inventaram o poder e a autoridade políticos propriamente ditos Para compreendermos o que se pretende dizer com isso convém examinarmos como era concebido e praticado o poder nas sociedades não grecoromanas O poder despótico Nas realezas existentes antes dos gregos nos territórios que viriam a formar a Grécia realezas micênicas e cretenses bem como as que existiam nos territórios que viriam a formar Roma realezas etruscas assim como nos grandes impérios orientais Pérsia Egito Babilônia Índia China vigorava o poder despótico ou patriarcal Em grego despotes e em latim paterfamilias o patriarca é o chefe de famíliaxiv cuja vontade absoluta é a lei Aquilo que apraz ao rei tem força de lei O poder era exercido por um chefe de família ou de famílias clã tribo aldeia cuja autoridade era pessoal e arbitrária decidindo sobre a vida e a morte de todos os membros do grupo sobre a posse e a distribuição das riquezas a guerra e a paz as alianças em geral sob a forma de casamentos o proibido e o permitido Embora de fato a origem desse poder estivesse na propriedade da terra e dos rebanhos sendo chefe o detentor da riqueza procuravase garantilo contra revoltas e desobediências afirmandose uma origem sobrenatural e divina para ele Aparecendo como designado pelos deuses e desejado por eles o detentor do poder também era detentor do privilégio de relacionarse diretamente com o divino ou com o sagrado concentrando em suas mãos a autoridade religiosa Por sua riqueza autoridade religiosa e posse de armas o detentor do poder era também chefe militar concentrando em suas mãos a chefia dos exércitos e a decisão sobre a guerra e a paz Era comandante O chefe era um senhor enfeixando em suas mãos a propriedade do solo e tudo quanto nele houvesse portanto a riqueza do grupo a autoridade religiosa e militar sendo por isso rei sacerdote e capitão Com o crescimento demográfico através das alianças pelos casamentos entre famílias régias a expansão territorial através das guerras de conquista a Marilena Chauí 481 divisão social do trabalho através da escravização dos vencidos de guerra e das funções domésticas das mulheres e os acordos militares e navais entre grupos a autoridade embora concentrada nas mãos do rei passa a ser delegada por ele a seus representantes em geral membros de sua família e das famílias aliadas Surge assim uma repartição das funções de direção ou de poder a casta sacerdotal detém a autoridade religiosa e a dos guerreiros a militar Senhores das terras dos escravos das mulheres das armas e dos deuses os grupos detentores da autoridade formavam a classe dominante economicamente e dirigente da comunidade sob o poder do rei ao qual prestavam juramento de lealdade e pagavam tributo pelo usufruto das terras pertencentes a ele e por ele cedidas aos demais A propriedade da terra e de seus produtos existia sob duas formas principais 1 como propriedade privada do rei e portanto como domínio pessoal do chefe ou patriarca Esse patrimônio ou propriedade patrimonial era cedido segundo a vontade arbitrária do rei aos chefes de clãs e tribos aos grupos sacerdotais e militares mediante serviços eou tributos Em geral esse tipo de propriedade prevalecia naquelas regiões em que o cultivo da terra exigia trabalhos imensos de irrigação e de transporte de água que um proprietário isolado não poderia realizar não só por lhe faltarem recursos para isso como também porque teria que atravessar terras de outros proprietários devendo pagarlhes tributos ou fazerlhes guerra A propriedade ficando na posse do rei permitia que este usasse os recursos vindos dos tributos para as grandes obras de irrigação e transporte de águas ao mesmo tempo em que possuía o poder para atravessar toda e qualquer terra para realizar as obras 2 como propriedade coletiva das aldeias ou propriedade comunal do chefe da aldeia que pagava tributos ao rei em troca de proteção submetendose ao poder régio e portanto à autoridade religiosa e militar do senhor Seja num caso como noutro o rei era forçado a exercer um controle cerrado sobre as chefias locais e sobre os que usufruíam as terras pois as rebeliões eram freqüentes e a disputa pelo poder interminável Tal controle era feito por representantes do rei quando percorriam as terras registrando a produção e recolhendo tributos punindo crimes cometidos contra as decisões e decretos régios sufocando revoltas e impedindo o surgimento de federações e confederações de aldeias Com isso o rei passou a ter uma imensa burocracia e imensos exércitos custeados pelos chefes locais e suas aldeias Os funcionários régios precisavam saber ler escrever e contar Nas sociedades de que falamos tais conhecimentos eram privilégio de um grupo os sacerdotes Por esse motivo a ênfase no caráter sagrado ou religioso do poder tendia a aumentar à medida que aumentava o poderio sacerdotal sustentáculo indispensável do poder régio Deuses e armas eram os pilares da autoridade Convite à Filosofia 482 Assim constituído o poder possuía as seguintes características despótico ou patriarcal era exercido pelo chefe de família sobre um conjunto de famílias a ele ligadas por laços de dependência econômica e militar por alianças matrimoniais numa relação pessoal em que o chefe garantia proteção e os súditos ofereciam lealdade e obediência jurando cumprir a vontade do primeiro total o detentor da autoridade possuía poder supremo inquestionável para decidir quanto ao permitido e ao proibido a lei exprime a vontade pessoal do chefe para estabelecer os vínculos com o sagrado isto é com os deuses e antepassados o chefe detém o poder religioso para decidir quanto à guerra e à paz o chefe detém o poder militar A tomada de decisão cabia exclusivamente ao rei Este possuía conselheiros sacerdotes e militares que o informavam e lhe sugeriam condutas e ações mas a decisão cabia apenas a ele O conselho era secreto os motivos de uma decisão eram secretos o que se passava entre o rei e seus conselheiros era secreto Somente a decisão tornavase pública sob a forma de um decreto real incorporado ou corporificado o detentor do poder figurava em seu próprio corpo as características do poder apresentandose como manifestação da própria comunidade Sua cabeça encarnava a autoridade que dirige seu peito encarnava a vontade que ordena seus membros superiores encarnavam os delegados que o representavam sacerdotes e militares seus membros inferiores encarnavam os súditos que o obedeciam Essa figuração do poder no corpo do próprio rei indicava a existência de uma organização social fortemente hierarquizada na qual cada indivíduo possuía um lugar fixo e predeterminado só tendo existência social graças a esse lugar O corpo do rei permitia não só figurar a hierarquia mas também a forte centralização da autoridade concentrada na cabeça e no peito do dirigente mágico por receber a autoridade dos deuses o detentor do poder possuía força sobrenatural ou mágica Sua palavra era um comando misterioso que fazia existir aquilo que era dito o rei dizia façase e as coisas aconteciam simplesmente porque ele as havia dito e desejado seus gestos e desejos tinham força para matar e curar sua maldição destruía tudo quanto fosse amaldiçoado por ele dele dependiam a fertilidade da terra a vitória ou a derrota na guerra o início ou o fim de uma peste fenômenos meteorológicos cataclismos transcendente por ser de origem divina o rei era divinizado e acreditavase em sua imortalidade como condição da preservação da comunidade Essa divinização o colocava acima e fora da comunidade Tal separação levava a considerar que o dirigente ocupava um lugar transcendente graças ao qual via tudo sabia tudo e podia tudo tendo o império total sobre a comunidade hereditário era transmitido ao primogênito do rei ou na falta deste a um membro da família real A família reinante constituía uma linhagem e uma Marilena Chauí 483 dinastia que só findava ou por falta de herdeiros diretos ou por usurpação do poder por uma outra família que dava início a uma nova linhagem ou dinastia A invenção da política Quando se afirma que os gregos e romanos inventaram a política o que se diz é que desfizeram aquelas características da autoridade e do poder Embora nos começos gregos e romanos tivessem conhecido a organização econômicosocial de tipo despótico ou patriarcal um conjunto de medidas foram tomadas pelos primeiros dirigentes os legisladores de modo a impedir a concentração dos poderes e da autoridade nas mãos de um rei senhor da terra da justiça e das armas representante da divindade A propriedade da terra não se tornou propriedade régia ou patrimônio privado do rei nem se tornou propriedade comunal ou da aldeia mas mantevese como propriedade de famílias independentes cuja peculiaridade estava em não formarem uma casta fechada sobre si mesma porém aberta à incorporação de novas famílias e de indivíduos ou nãoproprietários enriquecidos no comércio Apesar das diferenças históricas na formação da Grécia e de Roma há três aspectos comuns a ambas e decisivos para a invenção da política O primeiro como assinalamos há pouco é a forma da propriedade da terra o segundo o fenômeno da urbanização e o terceiro o modo de divisão territorial das cidades Como a propriedade da terra não pertencia à aldeia nem ao rei mas às famílias independentes e como as guerras ampliavam o contingente de escravos formou se na Grécia e em Roma uma camada pobre de camponeses que migraram para as aldeias ali se estabeleceram como artesãos e comerciantes prosperaram fizeram das aldeias cidades passaram a disputar o direito ao poder com as grandes famílias agrárias Uma luta de classes perpassa a história grega e romana exigindo solução A urbanização significou uma complexa rede de relações econômicas e sociais que colocava em confronto não só proprietários agrários de um lado e artesãos e comerciantes de outro mas também a massa de assalariados da população urbana os nãoproprietários genericamente chamados de os pobres A luta de classes incluía assim lutas entre os ricos e lutas entre ricos e pobres Tais lutas eram decorrentes do fato de que todos os indivíduos participavam das guerras externas tanto para a expansão territorial quanto para a defesa de sua cidade formando as milícias dos nativos da cidade Essa participação militar fazia com que todos se julgassem no direito de algum modo de intervir nas decisões econômicas e legais das cidades A luta das classes pedia uma solução Essa solução foi a política Finalmente os primeiros chefes políticos ou legisladores introduziram uma divisão territorial das cidades que visava a diminuir o poderio das famílias ricas agrárias dos artesãos e comerciantes urbanos ricos e à satisfazer a reivindicação Convite à Filosofia 484 dos camponeses pobres e dos artesãos e assalariados urbanos pobres Em Atenas por exemplo a polis foi subdividida em unidades sociopolíticas denominadas demos em Roma em tribus Quem nascesse num demos ou numa tribus independentemente de sua situação econômica tinha assegurado o direito de participar das decisões da cidade No caso de Atenas todos os naturais do demos tinham o direito de participar diretamente do poder donde o regime ser uma democracia Em Roma os não proprietários ou os pobres formavam a plebe que tinha o direito de eleger um representante o tribuno da plebe para defender e garantir os interesses plebeus junto aos interesses e privilégios dos que participavam diretamente do poder os patrícios que constituíam o populus romanus O regime político romano era assim uma oligarquia Diante do poder despótico gregos e romanos inventaram o poder político porque separaram a autoridade pessoal privada do chefe de família senhorio patriarcal e patrimonial e o poder impessoal público pertencente à coletividade separaram privado e público e impediram a identificação do poder político com a pessoa do governante Os postos de governo eram preenchidos por eleições entre os cidadãos de modo que o poder deixou de ser hereditário separaram autoridade militar e poder civil subordinando a primeira ao segundo Isso não significa que em certos casos como em Esparta e Roma o poder político não fosse também um poder militar mas sim que as missões militares deviam ser primeiro discutidas e aprovadas pela autoridade política e só depois realizadas Os chefes militares não eram vitalícios nem seus cargos eram hereditários mas eram eleitos periodicamente pelas assembléias dos cidadãos separaram autoridade mágicoreligiosa e poder temporal laico impedindo a divinização dos governantes Isso não significa que o poder político deixasse de ter laços com a autoridade religiosa os oráculos na Grécia e os augúrios em Roma eram respeitados firmemente pelo poder político Significa porém que os dirigentes desejavam a aprovação e a proteção dos deuses sem que isso implicasse a divinização dos governantes e a submissão da política à autoridade sacerdotal criaram a idéia e a prática da lei como expressão de uma vontade coletiva e pública definidora dos direitos e deveres para todos os cidadãos impedindo que fosse confundida com a vontade pessoal de um governante Ao criarem a lei e o direito afirmaram a diferença entre o poder político e todos os outros poderes e autoridades existentes na sociedade pois conferiram a uma instância impessoal e coletiva o direito exclusivo ao uso da força para punir crimes reprimir revoltas e matar para vingar em nome da coletividade um delito julgado intolerável por ela Em outras palavras retiraram dos indivíduos o direito de fazer justiça com as Marilena Chauí 485 próprias mãos e de vingar por si mesmos uma ofensa ou um crime O monopólio da força da vingança e da violência passou para o Estado sob a lei e o direito criaram instituições públicas para aplicação das leis e garantia dos direitos isto é os tribunais e os magistrados criaram a instituição do erário público ou do fundo público isto é dos bens e recursos que pertencem à sociedade e são por ela administrados por meio de taxas impostos e tributos impedindo a concentração da propriedade e da riqueza nas mãos dos dirigentes criaram o espaço político ou espaço público a assembléia grega e o senado romano no qual os que possuem direitos iguais de cidadania discutem suas opiniões defendem seus interesses deliberam em conjunto e decidem por meio do voto podendo também pelo voto revogar uma decisão tomada É esse o coração da invenção política De fato e como vimos a marca do poder despótico é o segredo a deliberação e a decisão a portas fechadas A política ao contrário introduz a prática da publicidade isto é a exigência de que a sociedade conheça as deliberações e participe da tomada de decisão Além disso a existência do espaço público de discussão deliberação e decisão significa que a sociedade está aberta aos acontecimentos que as ações não foram fixadas de uma vez por todas por alguma vontade transcendente que erros de avaliação e de decisão podem ser corrigidos que uma ação pode gerar problemas novos não previstos nem imaginados que exigirão o aparecimento de novas leis e novas instituições Em outras palavras gregos e romanos tornaram a política inseparável do tempo e como vimos no caso da ética ligada à noção de possível ou de possibilidade isto é a idéia de uma criação contínua da realidade social Para responder às diferentes formas assumidas pelas lutas de classes a política é inventada de tal maneira que a cada solução encontrada um novo conflito ou uma nova luta podem surgir exigindo novas soluções Em lugar de reprimir os conflitos pelo uso da força e da violência das armas a política aparece como trabalho legítimo dos conflitos de tal modo que o fracasso nesse trabalho é a causa do uso da força e da violência A democracia ateniense e as oligarquias de Esparta e da república romana fundaram a idéia e a prática da política na Cultura ocidental Eis por que os historiadores gregos quando a Grécia caiu sob o domínio do império de Alexandre da Macedônia e os historiadores romanos quando Roma sucumbiu ao domínio do império dos césares falaram em corrupção e decadência da política para eles o desaparecimento da polis e da res publica significava o retorno ao despotismo e o fim da vida política propriamente dita Evidentemente não devemos cair em anacronismos supondo que gregos e romanos instituíram uma sociedade e uma política cujos valores e princípios fossem idênticos aos nossos Em primeiro lugar a economia era agrária e Convite à Filosofia 486 escravista de sorte que uma parte da sociedade os escravos estava excluída dos direitos políticos e da vida política Em segundo lugar a sociedade era patriarcal e conseqüentemente as mulheres também estavam excluídas da cidadania e da vida pública A exclusão atingia também os estrangeiros e os miseráveis A cidadania era exclusiva dos homens adultos livres nascidos no território da Cidade Além disso a diferença de classe social nunca era apagada mesmo que os pobres tivessem direitos políticos Assim para muitos cargos o prérequisito da riqueza vigorava e havia mesmo atividades portadoras de prestígio que somente os ricos podiam realizar Era o caso por exemplo da liturgia grega e do evergetismo romano isto é de grandes doações em dinheiro à cidade para festas construção de templos e teatros patrocínio de jogos esportivos de trabalhos artísticos etc O que procuramos apontar não foi a criação de uma sociedade sem classes justa e feliz mas a invenção da política como solução e resposta que uma sociedade oferece para suas diferenças seus conflitos e suas contradições sem escondêlos sob a sacralização do poder e sem fecharse à temporalidade e às mudanças Sociedade contra o Estado Examinamos até aqui duas grandes respostas sociais ao poder a resposta despótica e a política Em ambas a sociedade procura organizarse economicamente a forma da propriedade mantendo e mesmo criando diferenças sociais profundas entre proprietários e nãoproprietários ricos e pobres livres e escravos homens e mulheres Essas diferenças engendram lutas internas que podem levar à destruição de todos os membros do grupo social Para regular os conflitos determinar limites às lutas garantir que os ricos conservem suas riquezas e os pobres aceitem sua pobreza surge uma chefia que como vimos pode tomar duas direções ou o chefe se torna senhor das terras armas e deuses e transforma sua vontade em lei ou o poder é exercido por uma parte da sociedade os cidadãos através de práticas e instituições públicas fundadas na lei e no direito como expressão da vontade coletiva Nos dois casos surge o Estado como poder separado da sociedade e encarregado de dirigila comandála arbitrar os conflitos e usar a força Há porém um terceiro caminho Fomos acostumados pela tradição antropológica européia a considerar as sociedades existentes na América como atrasadas primitivas e inferiores Essa visão nasceu do processo de colonização e conquista iniciado no século XVI Os conquistadores e colonizadores que aportaram na América interpretaram as diferenças entre eles e os nativos americanos como distinção hierárquica entre superiores e inferiores para eles os índios não tinham lei rei fé escrita moeda comércio História eram seres desprovidos dos traços daquilo que para o europeu cristão súdito de monarquias constituiria a civilização Marilena Chauí 487 Sem dúvida os conquistadores encontraram grandes impérios na América incas astecas e maias Por isso os destruíram a ferro e fogo exterminando as gentes pilhando as riquezas e erigindo igrejas sobre seus templos Todavia exceto por esses impérios destruídos os conquistadores encontraram as demais nações americanas organizadas de maneira incompreensível para os padrões europeus Transformaram o que eram incapazes de compreender em inferioridade dos americanos Considerandoos selvagens e bárbaros justificavam a escravidão a evangelização e o extermínio A visão européia depois compartilhada pelos brancos americanos era e é etnocêntrica isto é considera padrões valores e práticas dos brancos adultos proprietários europeus como universais e definidores da Cultura e da civilização Para o etnocentrismo portanto os nativos americanos possuíam e possuem sociedades carentes faltalhes o mercado moeda e comércio a escrita alfabética a História e o Estado Possuem portanto sociedades sem comércio sem escrita sem memória e sem Estado O antropólogo francês Pierre Clastres estudou essas sociedades por um prisma completamente diferente longe do etnocentrismo costumeiro Mostrou que possuem escrita mas que esta não é alfabética nem ideográfica ou hieroglífica isto é não é a escrita conhecida pelos ocidentais e orientais mas é simbólica gravada nos corpos das pessoas por sinais específicos inscrita com sinais específicos em objetos determinados e em espaços determinados Somos nós que não sabemos lêla Mostrou também que possuem memória mitos e narrativas dos povos transmitida oralmente de geração em geração transformandose de geração em geração Mostrou pelas mudanças na escrita e na memória que tais sociedades possuem História mas que esta é inseparável da relação dos povos com a Natureza diferentemente da nossa História que narra como nos separamos da Natureza e como a dominamos Mas sobretudo mostrou por que e como tais sociedades são contra o mercado e contra o Estado Em outras palavras não são sociedades sem comércio e sem Estado mas contrárias a eles As sociedades indígenas estudadas por Clastres são sulamericanas encontrando se num estágio anterior ao das sociedades indígenas da América do Norte e dos três grandes impérios situados no México na América Central e no norte da América do Sul São portanto sociedades que não se organizaram na forma das chefias norteamericanas nem dos grandes impérios mas inventaram uma organização deliberada para evitar aquelas duas formas de poder As sociedades indígenas são tribais ou comunais Nelas não há propriedade privada nem divisão social do trabalho não havendo portanto classes sociais nem luta de classes A propriedade é tribal ou comum e o trabalho se divide por sexo e idade São comunidades no sentido pleno do termo isto é são internamente homogêneas unas e indivisas possuindo uma História e um destino Convite à Filosofia 488 comuns São sociedades do caraacara onde todos se conhecem pelo nome e são vistos uns pelos outros diariamente Por isso mesmo nelas o poder não se destaca nem se separa não forma uma instância acima dela como na política nem fora dela como no despotismo A chefia não é um poder de mando a que a comunidade obedece O chefe não manda a comunidade não obedece A comunidade decide para si mesma de acordo com suas tradições e necessidades A oposição se estabelece não no interior da comunidade mas em seu exterior isto é nas relações com as outras comunidades portanto no que se refere à guerra e às alianças de sangue pelo casamento A função da chefia é representar a comunidade perante outras comunidades O que é e o que faz o chefe uma vez que não tem a função do poder pois este pertence à comunidade e dela não se separa O chefe possui três funções doar presentes fazer a paz e falar Exprimindo a benevolência dos deuses e a prosperidade da comunidade o chefe deve em certos períodos oferecer presentes a todos os membros da tribo isto é devolver a ela o que ela mesma produziu A doação de presentes é a maneira deliberada que a comunidade inventou para impedir que alguém possa concentrar bens e riquezas tornarse proprietário privado criar desigualdade econômica e social de onde surgem a luta de classes e a necessidade do poder do Estado Quando famílias ou indivíduos entram em conflito o chefe deve intervir Não dispõe de códigos legais para arbitrar o conflito em nome da lei Que faz ele A paz Como a obtém Apelando para o bom senso das partes aos bons sentimentos à memória da comunidade à tradição do bom convívio entre as pessoas Em suma através dele a comunidade fala para reafirmarse como comunidade indivisa Excetuandose a doação de presentes a paz entre membros da comunidade a diplomacia para tratar com outras comunidades aliadas e o direito a usar a força liderando os guerreiros durante a guerra a grande função da chefia situase na fala ou na Grande Palavra Todas as tardes o chefe se dirige a um local distante da aldeia mas visível e de onde possa ser ouvido e ali discursa Embora ouvido ninguém deve darlhe atenção e o que ele diz não é ordem ou comando obrigando à obediência Que diz ele Diz a palavra do poder canta sua força e coragem seu prestígio sua relação com os deuses seus grandes feitos Mas ninguém lhe dá atenção Ninguém o escuta A Grande Palavra tem significado simbólico a comunidade lembra a si mesma diariamente o risco e o perigo que correria se possuísse um chefe que lhe desse ordens e ao qual devesse obedecer A Grande Palavra simboliza a maneira pela qual a comunidade impede o advento do poder como algo separado dela e que a Marilena Chauí 489 comandaria pela coerção da lei e das armas Com a cerimônia da Grande Palavra a sociedade se coloca contra o surgimento do Estado Toda vez que o chefe não realiza as três funções internas e a função externa tais como a comunidade as define todas as vezes que pretende usar suas funções para criar o poder separado ele é morto pela comunidade Evidentemente nossa tendência será dizer que tal organização é própria de povos pouco numerosos e de uma vida sócioeconômica muito simples parecendonos a nós membros de sociedades complexas e de classes uma vaga lembrança utópica Pierre Clastres porém indaga Por que outras comunidades mundo afora não foram capazes de impedir o surgimento da propriedade privada das divisões sociais de castas e classes das desigualdades que resultaram na necessidade de criar o poder separado seja como poder despótico seja como poder político Por que afinal os homens sucumbiram à necessidade de criar o Estado como poder de coerção social Convite à Filosofia 490 Capítulo 8 As filosofias políticas 1ª parte A vida boa Quando lemos os filósofos gregos e romanos observamos que tratam a política como um valor e não como um simples fato considerando a existência política como finalidade superior da vida humana como a vida boa entendida como racional feliz e justa própria dos homens livres Embora considerem a forma mais alta de vida a do sábio contemplativo isto é do filósofo afirmam que para os nãofilósofos a vida superior só existe na Cidade justa e por isso mesmo o filósofo deve oferecer os conceitos verdadeiros que auxiliem na formulação da melhor política para a Cidade Política e Filosofia nasceram na mesma época Por serem contemporâneas dizse que a Filosofia é filha da polis e muitos dos primeiros filósofos os chamados présocráticos foram chefes políticos e legisladores de suas cidades Por sua origem a Filosofia não cessou de refletir sobre o fenômeno político elaborando teorias para explicar sua origem sua finalidade e suas formas A esses filósofos devemos a distinção entre poder despótico e poder político Origem da vida política Entre as explicações sobre a origem da vida política três foram as principais e as mais duradouras 1 As inspiradas no mito das Idades do Homem ou da Idade de Ouro Esse mito recebeu inúmeras versões mas em suas linhas gerais narra sempre o mesmo no princípio durante a Idade de Ouro os seres humanos viviam na companhia dos deuses nasciam diretamente da terra e já adultos eram imortais e felizes sua vida transcorria em paz e harmonia sem necessidade de leis e governo Em cada versão a perda da Idade de Ouro é narrada de modo diverso porém em todas a narrativa relata uma queda dos humanos que são afastados dos deuses tornamse mortais vivem isoladamente pelas florestas sem vestuário moradia alimentação segura sempre ameaçados pelas feras e intempéries Pouco a pouco descobrem o fogo passam a cozer os alimentos e a trabalhar os metais constroem cabanas tecem o vestuário fabricam armas para a caça e proteção contra animais ferozes formam famílias A última idade é a Idade do Ferro em geral descrita como a era dos homens organizados em grupos fazendo guerra entre si Para cessar o estado de guerra os deuses fazem nascer um homem eminente que redigirá as primeiras leis e Marilena Chauí 491 criará o governo Nasce a política com a figura do legislador enviado pelos deuses Com variantes esse mito será usado na Grécia por Platão e em Roma por Cícero para simbolizar a origem da política através das leis e da figura do legislador Leis e legislador garantem a origem racional da vida política a obra da razão sendo a ordem a harmonia e a concórdia entre os humanos sob a forma da Cidade A razão funda a política 2 As inspiradas pela obra do poeta grego Hesíodo O trabalho e os dias Agora a origem da vida política vinculase à doação do fogo aos homens feita pelo semideus Prometeu Graças ao fogo os humanos podem trabalhar os metais cozer os alimentos fabricar utensílios e sobretudo descobrirse diferentes dos animais Essa descoberta leva a perceber que viverão melhor se viverem em comunidade dividindo os trabalhos e as tarefas Organizados em comunidades colocamse sob a proteção dos deuses de quem receberam as leis e as orientações para o governo Pouco a pouco porém descobrem que sua vida possui problemas e exige soluções que somente eles podem enfrentar e encontrar Mantendo a piedade pelos deuses entretanto criam leis e instituições propriamente humanas dando origem à comunidade política propriamente dita É a teoria política defendida pelos sofistas Nessa concepção o desenvolvimento das técnicas e dos costumes leva a convenções entre os humanos para a vida em comunidade sob leis A convenção funda a política 3 As teorias que afirmam que a política decorre da Natureza e que a Cidade existe por natureza Os humanos são por natureza diferentes dos animais porque são dotados do logos isto é da palavra como fala e pensamento Por serem dotados da palavra são naturalmente sociais ou como diz Aristóteles são animais políticos Não é preciso buscar nos deuses nas leis ou nas técnicas a origem da Cidade basta conhecer a natureza humana para nela encontrar a causa da política Os humanos falantes e pensantes são seres de comunicação e é essa a causa da vida em comunidade ou da vida política Nessa concepção a Natureza funda a política Na primeira teoria a política é o remédio que a razão encontra para a perda da felicidade da comunidade originária Na segunda a política resulta do desenvolvimento das técnicas e dos costumes sendo uma convenção humana Na terceira enfim a política define a própria essência do homem e a Cidade é considerada uma instituição natural Enquanto as duas primeiras reelaboram racionalmente as explicações míticas a terceira parte diretamente da definição da natureza humana Finalidade da vida política Para os gregos a finalidade da vida política era a justiça na comunidade Convite à Filosofia 492 A noção de justiça fora inicialmente elaborada em termos míticos a partir de três figuras principais themis a lei divina que institui a ordem do Universo cosmos a ordem universal estabelecida pela lei divina e dike a justiça entre as coisas e entre os homens no respeito às leis divinas e à ordem cósmica Pouco a pouco a noção de dike tornase a regra natural para a ação das coisas e dos homens e o critério para julgálas A idéia de justiça se refere portanto a uma ordem divina e natural que regula julga e pune as ações das coisas e dos seres humanos A justiça é a lei e a ordem do mundo isto é da Natureza ou physis Lei nomos Natureza physis e ordem cosmos constituem assim o campo da idéia de justiça A invenção da política exigiu que as explicações míticas fossem afastadas themis e dike deixaram de ser vistas como duas deusas que impunham ordem e leis ao mundo e aos seres humanos passando a significar as causas que fazem haver ordem lei e justiça na Natureza e na polis Justo é o que segue a ordem natural e respeita a lei natural Mas a polis existe por natureza ou por convenção entre os homens A justiça e a lei política são naturais ou convencionais Essas indagações colocam de um lado os sofistas defensores do caráter convencional da justiça e da lei e de outro lado Platão e Aristóteles defensores do caráter natural da justiça e da lei Para os sofistas a polis nasce por convenção entre os seres humanos quando percebem que lhes é mais útil a vida em comum do que em isolamento Convencionam regras de convivência que se tornam leis nomos A justiça é o consenso quanto às leis e a finalidade da política é criar e preservar esse consenso Se a polis e as leis são convenções humanas podem mudar se mudarem as circunstâncias A justiça será permitir a mudança das leis sem que isso destrua a comunidade política e a única maneira de realizar mudanças sem destruição da ordem política é o debate para chegar ao consenso isto é a expressão pública da vontade da maioria obtida pelo voto Por esse motivo os sofistas se apresentavam como professores da arte da discussão e da persuasão pela palavra retórica Mediante remuneração ensinavam os jovens a discutir em público a defender e combater opiniões ensinandolhes argumentos persuasivos para os prós e os contras em todas as questões A finalidade da política era a justiça entendida como concórdia conseguida na discussão pública de opiniões e interesses contrários O debate dos opostos a exposição persuasiva dos argumentos antagônicos deviam levar à vitória do interesse mais bem argumentado aprovado pelo voto da maioria Marilena Chauí 493 Em oposição aos sofistas Platão e Aristóteles afirmam o caráter natural da polis e da justiça Embora concordem sob esse aspecto diferem no modo como concebem a própria justiça Para Platão os seres humanos e a polis possuem a mesma estrutura Os humanos são dotados de três almas ou três princípios de atividade a alma concupiscente ou desejante situada no ventre que busca satisfação dos apetites do corpo tanto os necessários à sobrevivência quanto os que simplesmente causam prazer a alma irascível ou colérica situada no peito que defende o corpo contra as agressões do meio ambiente e de outros humanos reagindo à dor na proteção de nossa vida e a alma racional ou intelectual situada na cabeça que se dedica ao conhecimento tanto sob a forma de percepções e opiniões vindas da experiência quanto sob a forma de idéias verdadeiras contempladas pelo puro pensamento Também a polis possui uma estrutura tripartite formada por três classes sociais a classe econômica dos proprietários de terra artesãos e comerciantes que garante a sobrevivência material da cidade a classe militar dos guerreiros responsável pela defesa da cidade e a classe dos magistrados que garante o governo da cidade sob as leis Um homem diz Platão é injusto quando a alma concupiscente os apetites e prazeres é mais forte do que as outras duas dominandoas Também é injusto quando a alma irascível a agressividade é mais poderosa do que a racional dominandoa O que é pois o homem justo Aquele cuja alma racional pensamento e vontade é mais forte do que as outras duas almas impondo à concupiscente a virtude da temperança ou moderação e à irascível a virtude da coragem que deve controlar a concupiscência O homem justo é o homem virtuoso a virtude domínio racional sobre o desejo e a cólera A justiça ética é a hierarquia das almas a superior dominando as inferiores O que é a justiça política Essa mesma hierarquia mas aplicada à comunidade Como realizar a Cidade justa Pela educação dos cidadãos homens e mulheres Platão não exclui as mulheres da política e critica os gregos por excluílas Desde a primeira infância a polis deve tomar para si o cuidado total das crianças educandoas para as funções necessárias à Cidade A educação dos cidadãos submete as crianças a uma mesma formação inicial em cujo término passam por uma seleção as menos aptas serão destinadas à classe econômica enquanto as mais aptas prosseguirão os estudos Uma nova seleção separa os jovens os menos aptos serão destinados à classe militar enquanto os mais aptos continuarão a ser educados O novo ciclo educacional ensina as ciências aos jovens e os submete a uma última seleção os menos aptos serão os administradores da polis enquanto os mais aptos prosseguirão os estudos Aprendem agora a Filosofia que os transformará em sábios legisladores para que sejam a classe dirigente Convite à Filosofia 494 A Cidade justa é governada pelos filósofos administrada pelos cientistas protegida pelos guerreiros e mantida pelos produtores Cada classe cumprirá sua função para o bem da polis racionalmente dirigida pelos filósofos Em contrapartida a Cidade injusta é aquela onde o governo está nas mãos dos proprietários que não pensam no bem comum da polis e lutarão por interesses econômicos particulares ou na dos militares que mergulharão a Cidade em guerras para satisfazer seus desejos particulares de honra e glória Somente os filósofos têm como interesse o bem geral da polis e somente eles podem governá la com justiça Por seu turno Aristóteles terá uma teoria política diversa da dos sofistas e de Platão Para determinar o que é a justiça diz ele precisamos distinguir dois tipos de bens os partilháveis e os participáveis Um bem é partilhável quando é uma quantidade que pode ser dividida e distribuída a riqueza é um bem partilhável Um bem é participável quando é uma qualidade indivisível que não pode ser dividida nem distribuída podendo apenas ser participada o poder político é um bem participável Existem pois dois tipos de justiça na Cidade a distributiva referente aos bens econômicos e a participativa referente ao poder político A Cidade justa saberá distinguilas e realizar ambas A justiça distributiva consiste em dar a cada um o que é devido e sua função é dar desigualmente aos desiguais para tornálos iguais Suponhamos por exemplo que a polis esteja atravessando um período de fome em decorrência de secas ou enchentes e que adquira alimentos para distribuílos a todos Para ser justa a Cidade não poderá repartilos de modo igual para todos De fato aos que são pobres deve doálos mas aos que são ricos deve vendêlos de modo a conseguir fundos para aquisição de novos alimentos Se doar a todos ou vender a todos será injusta Também será injusta se atribuir a todos as mesmas quantidades de alimentos pois dará quantidades iguais para famílias desiguais umas mais numerosas do que outras A função ou finalidade da justiça distributiva sendo a de igualar os desiguais dandolhes desigualmente os bens implica afirmar que numa cidade onde a diferença entre ricos e pobres é muito grande vigora a injustiça pois não dá a todos o que lhes é devido como seres humanos Na cidade injusta em lugar de permitirem aos pobres o acesso às riquezas por meio de limitações impostas à extensão da propriedade de fixação da boa remuneração do trabalho dos trabalhadores pobres de impostos e tributos que recaiam sobre os ricos apenas etc vedamlhes tal direito Ora somente os que não são forçados às labutas ininterruptas para a sobrevivência são capazes de uma vida plenamente humana e feliz A Cidade injusta portanto impede que uma parte dos cidadãos tenha assegurado o direito à vida boa Marilena Chauí 495 A justiça política consiste em respeitar o modo pelo qual a comunidade definiu a participação no poder Essa definição depende daquilo que a Cidade mais valoriza os regimes políticos variando em função do valor mais respeitado pelos cidadãos Há Cidades que valorizam a honra isto é a hierarquia social baseada no sangue na terra e nas tradições julgando o poder a honra mais alta que cabe a um só temse a monarquia onde é justo que um só participe do poder Há Cidades que valorizam a virtude como excelência de caráter coragem lealdade fidelidade ao grupo e aos antepassados julgando que o poder cabe aos melhores temse a aristocracia onde é justo que somente alguns participem do poder Há Cidades que valorizam a igualdade são iguais os que são livres consideram a diferença entre ricos e pobres econômica e não política julgando que todos possuem o direito de participar do poder temse a democracia onde é justo que todos governem Os regimes políticos Dois vocábulos gregos são empregados para compor as palavras que designam os regimes políticos arche o que está à frente o que tem comando e kratos o poder ou autoridade suprema As palavras compostas com arche arquia designam quantos estão no comando As compostas com kratos cracia designam quem está no poder Assim do ponto de vista da arche os regimes políticos são monarquia ou governo de um só monas oligarquia ou governo de alguns oligos poliarquia ou governo de muitos polos e anarquia ou governo de ninguém ana Do ponto de vista do kratos os regimes políticos são autocracia poder de uma pessoa reconhecida como rei aristocracia poder dos melhores democracia poder do povoxv Na Grécia e na Roma arcaicas predominaram as monarquias No entanto embora os antigos reis afirmassem ter origem divina e vontade absoluta a sociedade estava organizada de tal forma que o governante precisava submeter as decisões a um Conselho de Anciãos e à assembléia dos guerreiros ou chefes militares Isso fez com que pouco a pouco o regime se tornasse oligárquico ficando nas mãos das famílias mais ricas e militarmente mais poderosas cujos membros se consideravam os melhores donde a formação da aristocracia O único regime verdadeiramente democrático foi o de Atenas Nas demais cidades gregas e em Roma o regime político era oligárquicoaristocrático as famílias ricas sendo hereditárias no poder mesmo quando admitiam a entrada de novos membros no governo pois as novas famílias também se tornavam hereditárias Convite à Filosofia 496 Devemos a Platão e a Aristóteles duas idéias políticas elaboradas a partir da experiência política antiga a primeira delas é a distinção entre regimes políticos e nãopolíticos a segunda a da transformação de um regime político em outro Um regime só é político se for instituído por um corpo de leis publicamente reconhecidas e sob as quais todos vivem governantes e súditos governantes e cidadãos Em suma é político o regime no qual os governantes estão submetidos às leis Quando a lei coincide com a vontade pessoal e arbitrária do governante não há política mas despotismo e tirania Quando não há lei de espécie alguma não há política mas anarquia A presença ou ausência da lei conduz à idéia de regimes políticos legítimos e ilegítimos Um regime é legítimo quando além de legal é justo as leis são feitas segundo a justiça um regime é ilegítimo quando a lei é injusta ou quando é contrário à lei isto é ilegal ou enfim quando não possui lei alguma Os regimes políticos se transformam em decorrência de mudanças econômicas aumento do número de ricos e diminuição do número de pobres diminuição do número de ricos e aumento do número de pobres e de resultados de guerras conquistas de novos territórios e populações submissão a vencedores que conquistam a Cidade Presença ou ausência da lei variação econômica e militar determinam segundo Platão e Aristóteles a corrupção ou decadência dos regimes políticos a monarquia degenera em tirania quando um só governa para servir aos seus interesses pessoais a aristocracia degenera em oligarquia dos muito ricos plutocracia ou dos guerreiros timocracia que também governam apenas em seu interesse próprio a democracia degenera em demagogia e esta em anarquia Em geral a anarquia leva à tirania quando a sociedade desgovernada apela para um homem superior aos outros no manejo das armas e dos argumentos nele buscando a salvação A tipologia platônicoaristotélica segundo o valor dos que participam do poder e a teoria da decadência ou corrupção dos regimes políticos serão mantidas até o século XVIII aparecendo com vigor numa das obras políticas mais importantes da Ilustração O espírito das leis de Montesquieu Nessa obra encontramos também uma idéia desenvolvida por Aristóteles para quem a variação dos regimes políticos depende de dois fatores principais a natureza ou índole do povo e a extensão do território Assim por exemplo um povo cuja índole ou natureza tende espontaneamente para a igualdade e a liberdade e cuja Cidade é de pequena extensão territorial naturalmente instituirá uma democracia e será malavisada se a substituir por um outro regime Em contrapartida um povo cuja índole ou natureza tende espontaneamente para a obediência a uma única autoridade e que vive num território extenso naturalmente instituirá a monarquia sendo desavisada se a Marilena Chauí 497 substituir por outro regime político Em outras palavras os filósofos gregos legaram ao Ocidente a idéia de regimes políticos naturais Ética e política Se a política tem como finalidade a vida justa e feliz isto é a vida propriamente humana digna de seres livres então é inseparável da ética De fato para os gregos era inconcebível a ética fora da comunidade política a polis como koinonia ou comunidade dos iguais pois nela a natureza ou essência humana encontrava sua realização mais alta Quando estudamos a ética vimos que Aristóteles distinguira entre teoria e prática e nesta entre fabricação e ação isto é diferenciara poiesis e praxis Vimos também que reservara à praxis um lugar mais alto do que à fabricação definindo a como ação voluntária de um agente racional em vista de um fim considerado bom A praxis por excelência é a política A esse respeito na Ética a Nicômaco escreve Aristóteles Se em nossas ações há algum fim que desejamos por ele mesmo e os outros são desejados só por causa dele e se não escolhemos indefinidamente alguma coisa em vista de uma outra pois nesse caso iríamos ao infinito e nosso desejo seria fútil e vão é evidente que tal fim só pode ser o bem o Sumo Bem Se assim é devemos abarcar pelo menos em linhas gerais a natureza do Sumo Bem e dizer de qual saber ele provém Consideramos que ele depende da ciência suprema e arquitetônica por excelência Ora tal ciência é manifestamente a política pois é ela que determina entre os saberes quais são os necessários para as Cidades e que tipos de saberes cada classe de cidadãos deve possuir A política se serve das outras ciências práticas e legisla sobre o que é preciso fazer e do que é preciso absterse assim sendo o fim buscado por ela deve englobar os fins de todas as outras donde se conclui que o fim da política é o bem propriamente humano Mesmo se houver identidade entre o bem do indivíduo e o da Cidade é manifestamente uma tarefa muito mais importante e mais perfeita conhecer e salvaguardar o bem da Cidade pois o bem não é seguramente amável mesmo para um indivíduo mas é mais belo e mais divino aplicado a uma nação ou à Cidade Platão identificara a justiça no indivíduo e a justiça na polis Aristóteles subordina o bem do indivíduo ao Bem Supremo da polis Esse vínculo interno entre ética e política significava que as qualidades das leis e do poder dependiam das qualidades morais dos cidadãos e viceversa das qualidades da Cidade dependiam as virtudes dos cidadãos Somente na Cidade boa e justa os homens poderiam ser bons e justos e somente homens bons e justos são capazes de instituir uma Cidade boa e justa Convite à Filosofia 498 Romanos a construção do príncipe Após o primeiro período de sua história política a época arcaica e lendária dos reis patriarcais semihumanos e semidivinos Roma tornase uma república aristocrática governada pelos grandes senhores de terras os patrícios e pelos representantes eleitos pela plebe os tribunos da plebe O poder cabe a uma instituição designada como o Senado e o Povo Romano que pode em certas circunstâncias previstas na lei receber os homens novos isto é os plebeus que por suas riquezas casamentos ou feitos militares passam a fazer parte do grupo governante Roma é uma república por três motivos principais 1 o governo está submetido a leis escritas impessoais 2 a res publica coisa pública é o solo público romano distribuído às famílias patrícias mas pertencentes legalmente a Roma 3 o governo administra os fundos públicos recursos econômicos provenientes de impostos taxas e tributos usandoos para a construção de estradas aquedutos templos monumentos e novas cidades e para a manutenção dos exércitos No centro do governo estavam dois cônsules eleitos pelo Senado e pelo Povo Romano aos quais eram entregues dois poderes o administrativo gestão dos fundos e serviços públicos e o imperium isto é o poder judiciário e militar O Senado reservava para si duas autoridades o conselho dos magistrados e a autoridade moral sobre a religião e a política República oligárquica Roma é uma potência com vocação militar Em 50 anos conquista todo o mundo conhecido com exceção da Índia e da China Esse feito é obra militar dos cônsules que como dissemos foram investidos com o imperium poder judiciário e militar São imperadores Pouco a pouco à medida que Roma se torna uma potência mundial alguns dos cônsules Júlio César Numa Pompeu reivindicam mais poder e mais autoridade que lhes vão sendo concedidos pelo Senado e pelo Povo Romano Gradualmente sob a aparência de uma república aristocrática instalase uma república monárquica que se inicia com Júlio César e se consolidará nas mãos de Augusto Com ele a monarquia irá perdendo o caráter republicano até substituir o consulado tornandose senhorial e instituirse como Principado O príncipe é imperador chefe militar detentor do poder judiciário magistrado senhor das terras do império romano autoridade suprema Essa mudança transparece na teoria política Embora esta continue afirmando os valores republicanos importância das leis do direito e das instituições públicas particularmente do Senado e Povo Romano a preocupação dos teóricos estará voltada para a figura do príncipe Inspirandose no governantefilósofo de Platão os pensadores romanos como Cícero e Sêneca produzirão o ideal do príncipe perfeito ou do Bom Governo A nova teoria política mantém a idéia grega de que a comunidade política tem como finalidade a vida boa ou a justiça identificada com a ordem harmonia ou Marilena Chauí 499 concórdia no interior da Cidade No entanto agora a justiça dependerá das qualidades morais do governante O príncipe deve ser o modelo das virtudes para a comunidade pois ela o imitará Na verdade os pensadores romanos viramse entre duas teorias a platônica que pretendia chegar à política legítima e justa educando virtuosamente os governantes e a aristotélica que pretendia chegar à política legítima e justa propondo qualidades positivas para as instituições da Cidade das quais dependiam as virtudes dos cidadãos Entre as duas os romanos escolheram a platônica mas tenderam a dar menor importância à organização política da sociedade as três classes platônicas e maior importância à formação do príncipe virtuoso O príncipe como todo ser humano é passional e racional porém diferentemente dos outros humanos não poderá ceder às paixões mas apenas à razão Por isso deve ser educado para possuir um conjunto de virtudes que são próprias do governante justo ou seja as virtudes principescas O verdadeiro vir varão em latim possui três séries de virtutes ou qualidades morais A primeira delas é comum a todo homem virtuoso sendo constituída pelas quatro virtudes cardeais sabedoria ou prudência justiça ou eqüidade coragem e temperança ou moderação A segunda série constitui o conjunto das virtudes propriamente principescas honradez ou disposição para manter os princípios em todas as circunstâncias magnanimidade ou clemência isto é capacidade para dar punição justa e para perdoar e liberalidade isto é disposição para colocar sua riqueza a serviço do povo Finalmente a terceira série de virtudes referese aos objetivos que devem ser almejados pelo príncipe virtuoso honra glória e fama Cícero insiste em que o verdadeiro príncipe é aquele que nunca se deixa arrastar por paixões que o transformem numa besta Não pode ter a violência do leão nem a astúcia da raposa mas deve em todas as circunstâncias comportarse como homem dotado de vontade racional O príncipe será o Bom Governo se for um Bom Conselho isto é sábio devendo buscar o amor e o respeito dos súditos Em contraponto ao Bom Governo a teoria política ergue o retrato do tirano ou o príncipe vicioso bestial intemperante passional injusto covarde impiedoso avarento e perdulário sem honra fama ou glória odiado por todos e de todos temeroso Inseguro e odiado rodeiase de soldados vivendo isolado em fortalezas temendo a rua e a corte A teoria do Bom Governo deposita na pessoa do governante a qualidade da política e faz de suas virtudes privadas virtudes públicas O príncipe encarna a comunidade e a espelha sendo por ela imitado tanto na virtude quanto no vício Convite à Filosofia 500 O poder teológicopolítico o cristianismo Para compreendermos as teorias políticas cristãs precisamos ter em mente as duas tradições que o cristianismo recebe como herança e sobre as quais elaborará suas próprias idéias a hebraica e a romana Os hebreus embora tenham conhecido várias modalidades de governo patriarcas juízes reis deram ao poder sob qualquer forma em que fosse exercido uma marca fundamental irrevogável o caráter teocrático Em outras palavras consideravam eles que o poder em sua plenitude e verdade pertence exclusivamente a Deus e que este por meio dos anjos e dos profetas elege o dirigente ou os dirigentes O poder kratos pertence a Deus theos donde teocracia Além disso os hebreus se fizeram conhecer não só como Povo de Deus mas também como Povo da Lei a lei divina doada a Moisés e codificada por escrito A legalidade era algo tão profundo que quando o cristianismo se constitui como nova religião falase na Antiga Lei a aliança de Deus com o povo prometida a Noé Abraão e dada a Moisés e na Nova Lei a nova aliança de Deus com o povo através do messias Jesus Do lado romano o processo que viemos descrevendo acima prosseguiu e no período em que o cristianismo se expande e se encontra em vias de tornarse religião oficial do Império Romano o príncipe já se encontra investido de novos poderes Sendo Roma senhora do Universo o imperador romano tenderá a ser visto como senhor do Universo ocupando o topo da hierarquia do mundo em cujo centro está Roma a Cidade Eterna Ao imperador ou ao césar xvi cabe manter a harmonia e a concórdia no mundo a pax romana garantida pela força das armas Com isso o príncipe passou a enfeixar em suas mãos todos os poderes que antes cabiam ao Senado e Povo Romano foi sendo sacralizado à maneira do déspota oriental até ser considerado divino sendolhe atribuídos poderes que pertenciam a Júpiter fundador do povo restaurador da ordem universal e salvador do Universo Para cumprir suas tarefas o poder imperial centralizado e hierarquizado desenvolve um complexo sistema estatal em que prevalece o poderio dos funcionários imperiais civis e militares que se estende como uma rede intrincada de pequenos poderes por todo o território do Império Romano A elaboração da teoria política cristã como teologia política resultará da apropriação dessa dupla herança pelo poder eclesiástico A instituição eclesiástica Quando estudamos a ética vimos que o cristianismo diferentemente da maioria das religiões antigas não surge como religião nacional ou de um povo ou de um Estado determinados No entanto ele deveria ter sido uma religião nacional uma vez que Jesus se apresentava como o messias esperado pelo povo judaico Em outras palavras se Jesus tivesse sido vitorioso teria sido capitão rei e sacerdote Marilena Chauí 501 pois era assim que o messias havia sido imaginado e esperado Derrotado pela monarquia judaica que usara o poder do Império Romano para julgálo e condenálo Jesus ressurge ressuscita como figura puramente espiritual rei de um reino que não é deste mundo O cristianismo se constitui portanto à margem do poder político e contra ele pois os reinos deste mundo serão pouco a pouco vistos como obra de Satanás para a perdição do gênero humano Separado da ordem política estatal o cristianismo será organizado de maneira semelhante a outras crenças religiosas não oficiais tomará a forma de uma seita religiosa Nessa época seitas religiosas e correntes filosóficas que não possuíam a polis como referência pois Roma tudo dominava imperialmente não podiam mais dirigirse a uma comunidade política determinada a um povo determinado e por isso dirigiamse ao ser humano em geral sem distinção de nação ou povo O poder imperial romano criara sem o saber a idéia do homem universal sem pátria e sem comunidade política O cristianismo será uma seita religiosa dirigida aos seres humanos em geral com a promessa de salvação individual eterna À idéia política da lei escrita e codificada em regras objetivas contrapõe a idéia de lei moral invisível o dever à obediência a Deus e o amor ao próximo inscrita pelo Pai no coração de cada um Todavia a seita cristã irá diferenciarse de outras porque a herança judaica dos primeiros apóstolos e romana dos primeiros padres conduzirá à idéia de povo de Deus e de lei de Deus isto é a duas idéias políticas A seita cristã é uma comunidade cujos membros formam o povo de Deus sob a lei de Deus Essa comunidade é feita de iguais os filhos de Deus redimidos pelo Filho que recebem em conjunto a Palavra Sagrada e pelo batismo e eucaristia participam da nova lei a aliança do Pai com seu povo pela mediação do Filho A comunidade é a ekklesia isto é a assembléia dos fiéis a Igreja E esta é designada como reino de Deus Povo lei assembléia e reino essas palavras indicam por si mesmas a vocação política do cristianismo pois escolhe para referirse a si mesmo os vocábulos da tradição política judaica e romana A ekklesia organizase a partir de uma autoridade constituída pelo próprio Cristo quando na última ceia autoriza os apóstolos a celebrar a eucaristia o pão e o vinho como símbolos do corpo e sangue do messias e no dia de Pentecostes ordenalhes que preguem ao mundo inteiro a nova lei e a Boa Nova o Evangelho A autoridade apostólica não se limita a batismo eucaristia e evangelização Jesus deu aos apóstolos o poder para ligar os homens a Deus e dele desligálos quando lhes disse através de Pedro Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela Eu te darei as chaves do reino o que ligares na Terra será ligado no Céu o que desligares na Terra será desligado no Céuxvii Está fundada a Igreja como instituição de poder Esse poder como se observa é teocrático pois sua fonte é o próprio Deus e é Convite à Filosofia 502 superior ao poder político temporal uma vez que este seria puramente humano frágil e perecível criado por sedução demoníaca A ekklesia comunidade de bons e justos separada do Estado e do poder imperial organizase com normas e regras que estabelecem hierarquias de autoridade e de poder formando o que o romano santo Agostinho chamará de Civitas Dei a Cidade de Deus oposta à Cidade dos Homens injusta e satânica isto é Roma Essa instituição eclesiástica conseguirá converter o imperador Constantino transformará o cristianismo em religião oficial do Império Romano e absorverá a estrutura militar e burocrática do Império em sua própria organização O poder teológicopolítico O poderio da Igreja cresce à medida que se esfacela e desmorona o Império Romano Dois motivos levam a esse crescimento em primeiro lugar a expansão do próprio cristianismo pela obra da evangelização dos povos realizada pelos padres nos territórios do Império Romano e para além deles em segundo lugar porque o esfacelamento de Roma do qual resultará nos séculos seguintes a formação sócioeconômica conhecida como feudalismo fragmentou a propriedade da terra anteriormente tida como patrimônio de Roma e do imperador e fez surgirem pequenos poderes locais isolados de sorte que o único poder centralizado e homogeneamente organizado era o da Igreja A Igreja tanto em Roma quanto em Bizâncio tanto no Ocidente quanto no Oriente detém três poderes crescentes à medida que o Império decai 1 o poder religioso de ligar os homens a Deus e dele desligálos 2 o poder econômico decorrente de grandes propriedades fundiárias acumuladas no correr de vários séculos seja porque os nobres do Império ao se converterem doaram suas terras à instituição eclesiástica seja porque esta recebera terras como recompensa por serviços prestados aos imperadores 3 o poder intelectual porque se torna guardiã e intérprete única dos textos sagrados a Bíblia e de todos os textos produzidos pela cultura grecoromana direito filosofia literatura teatro manuais de técnicas etc Saber ler e escrever tornouse privilégio exclusivo da instituição eclesiástica Será a Igreja portanto a formuladora das teorias políticas cristãs para os reinos e impérios cristãos Essas teorias elaborarão a concepção teológicopolítica do poder isto é o vínculo interno entre religião e política As teorias teológicopolíticas Na elaboração da teologia política os teóricos cristãos dispunham de três fontes principais a Bíblia latina os códigos dos imperadores romanos conhecidos como Direito Romano e as idéias retiradas de algumas poucas obras conhecidas de Platão Aristóteles e sobretudo Cícero De Platão vinha a idéia da comunidade justa organizada hierarquicamente e governada por sábios legisladores De Aristóteles vinha a idéia de que a Marilena Chauí 503 finalidade do poder era a justiça como bem supremo da comunidade De Cícero a idéia do Bom Governo do príncipe virtuoso espelho para a comunidade De todos eles a idéia de que a política era resultado da Natureza e da Razão No entanto essas idéias filosóficas precisavam ser conciliadas com a outra fonte do conhecimento político a Bíblia E a conciliação não era fácil uma vez que a Escritura Sagrada não considera o poder como algo natural e originado da razão mas proveniente da vontade de Deus sendo portanto teocrático A Bíblia como se sabe é um conjunto de textos de proveniências épocas e autores muito diferentes escritos em várias línguas hebraico aramaico grego etc e formando dois grupos principais o Antigo e o Novo Testamento Ao ser traduzida para o latim os tradutores só dispunham da língua culta romana e dos textos que formavam o chamado Direito Romano A tradução verteu os diferentes textos para a linguagem latina clássica fazendo prevalecer a língua jurídica e legal romana combinando assim a forte tradição legalista judaica e a latina Essa Bíblia latinizada servirá de base para as teorias políticas e fornecerá os critérios para decidir o que aceitar e o que recusar das idéias de Platão Aristóteles e Cícero combinando de maneira complexa e às vezes pouco aceitável as concepções filosóficas e as teocráticas As teorias do poder teológicopolítico embora tenham recebido diferentes formulações no correr da Idade Média variando conforme as condições históricas exigiam apresentavam os seguintes pontos em comum o poder é teocrático isto é pertence a Deus e dele vem aos homens por ele escolhidos para representálo O fundamento dessa idéia é uma passagem do Antigo Testamento onde se lê Todo poder vem do Alto Por mim reinam os reis e governam os príncipesxviii O poder é um fator divino ou uma graça divina e o governante não representa os governados mas representa Deus perante os governados O regime político é a monarquia teocrática em que o monarca é rei pela graça de Deus A comunidade política se forma pelo pacto de submissão dos súditos ao rei o rei traz a lei em seu peito e o que apraz ao rei tem força de lei O rei é portanto a fonte da lei e da justiça afirmase que é pai da lei e filho da justiça Sendo autor da lei e tendo o poder pela graça de Deus está acima das leis e não pode ser julgado por ninguém tendo poder absoluto O fundamento dessa idéia é retirado de um preceito do Direito Romano que afirma Ninguém pode dar o que não tem e ninguém pode tirar o que não deu Se não foi o povo quem deu o poder ao rei pois o povo não tem o poder uma vez que este a Deus pertence o povo também não pode julgar o rei nem tirarlhe o poder Se um rei for tirânico e injusto nem assim os súditos podem resistirlhe nem depôlo pois ele está no poder pela vontade de Deus que para punir os pecados do povo o faz sofrer sob um tirano Este é um flagelo de Deus Porque o Convite à Filosofia 504 poder vem do alto porque o rei é pai da lei e está acima dela e porque os súditos fizeram o pacto de submissão o rei é intocável o príncipe cristão deve possuir o conjunto das virtudes cristãs fé esperança e caridade e o conjunto das virtudes definidos por Cícero e Sêneca como próprias do Bom Governo Sendo o espelho da comunidade em sua pessoa devem estar encarnadas as qualidades cristãs que a comunidade deve imitar Mesmo que considere a política algo natural como dizia Aristóteles e dirão vários teólogos como são Tomás de Aquino e mesmo que se considere que a comunidade política é obra da razão como diziam Platão e Cícero e afirmarão vários teólogos como Guilherme de Ockham ainda assim a finalidade suprema do poder político isto é o bem e a justiça não são estritamente terrenos ou temporais mas espirituais O príncipe é responsável pela finalidade mais alta da política a salvação eterna de seus súditos a comunidade e o rei formam o corpo político a cabeça é a coroa ou o rei o peito é a legislação sob a guarda dos magistrados e conselheiros do rei os membros superiores são os senhores ou barões que formam os exércitos do rei e a ele estão ligados por juramento de fidelidade ou de vassalagem e os membros inferiores são o povo que trabalha para o sustento do corpo político A polis platônica é assim transformada no corpo político do rei a hierarquia política e social é considerada ordenada por Deus e natural O mundo é um cosmos isto é uma ordem fixa de lugares e funções que cada ser minerais vegetais animais e humanos ocupa necessariamente e nos quais realiza sua natureza própria Os seres do cosmos estão distribuídos em graus e o grau inferior deve obediência ao superior submetendose a ele No caso da comunidade política a hierarquia obedece aos critérios das funções e da riqueza formando ordens sociais e corpos ou corporações que são órgãos do corpo político do rei Não existe a idéia de indivíduo mas de ordem ou corporação a que cada um pertence por vontade divina por natureza e por hereditariedade ninguém podendo subir ou descer na hierarquia a não ser por vontade expressa do rei Cada um nasce vive e morre no mesmo lugar social transmitindoo aos descendentes Esse papel central que as teorias conferem à idéia de cosmos hierárquico responde a três exigências práticas manter a concepção imperial romana e eclesiástica manter a concepção teocrática judaica e sobretudo oferecer uma garantia teóricopolítica a uma sociedade fragmentada em propriedades isoladas e espalhadas pelo antigo território do Império para as quais já não existe a referência urbana de Roma no topo da hierarquia encontramse o papa e o imperador O primeiro exige o poder espiritual o segundo o temporal Dada a ruralização da vida econômico social e sua fragmentação cada região possui um conjunto de senhores que Marilena Chauí 505 escolhe um rei entre seus pares garantindolhe e à sua dinastia a permanência indefinida no poder Este só passa a outro rei se o reinante morrer sem herdeiro do sexo masculino ou se trair seus pares e for por eles deposto ou se houver uma guerra na qual seja derrotado e o vencedor tenha força para reivindicar o poder régio A assembléia dos reis subordinase ao Grande Rei ou imperador da Europa Sacro Império RomanoGermânico que possui o poder teocrático isto é ele é escolhido por Deus e não pelos outros reis a justiça finalidade da comunidade cristã é a hierarquia de submissão e obediência do inferior ao superior pois é essa a ordem natural criada pela lei divina A vida temporal é inferior à vida espiritual e por isso a finalidade maior do governante é a salvação da alma imortal de seus súditos pela qual responderá perante Deus Auctoritas e potestas O vocabulário da política romana distinguia auctoritas e potestas a primeira é o poder no sentido pleno isto é a autoridade para promulgar as leis e fazer a justiça a segunda é o poder de fato para administrar coisas e pessoas A primeira é fundadora da comunidade política a segunda a atividade executiva A vida política cristã durante toda a Idade Média viuse envolvida no conflito entre esses dois poderes pois é evidente que um deles está subordinado ao outro e que a potestas e inferior à auctoritas No início da Idade Média não há conflito O papa possui a autoridade espiritual voltada para a salvação enquanto os reis possuem a autoridade legal e a potência administrativa temporais Pouco a pouco porém o conflito entre as duas autoridades se instala expressandose na chamada querela das investiduras Padres e bispos são administradores da Igreja no interior dos reinos e do conjunto formado por eles o Sacro Império RomanoGermânico Se são administradores devem ser investidos em seus cargos pelo rei e pelo imperador Isso significa porém que reis e imperadores passam a intervir na autoridade da Igreja e do papa o que para ambos é inaceitável Os juristas eclesiásticos elaboram uma legislação o direito canônico para garantir o poder do papa na investidura de padres e bispos Essa elaboração gradualmente leva à teoria do poder papal como autoridade suprema à qual deve submeterse o imperador As teorias teológicopolíticas foram elaboradas para resolver dois conflitos que atravessam toda a Idade Média o conflito entre o papa e o imperador de um lado e entre o imperador e as assembléias dos barões de outro O conflito papaimperador é conseqüência da concepção teocrática do poder Se Deus escolhe quem deverá representálo dando o poder ao escolhido quem é este o papa ou o imperador A primeira solução encontrada após a querela das investiduras foi trazida pelos juristas de Carlos Magno com a teoria da dupla investidura o imperador é Convite à Filosofia 506 investido no poder temporal pelo papa que o unge e o coroa o papa recebe do imperador a investidura da espada isto é o imperador jura defender e proteger a Igreja sob a condição de que esta nunca interfira nos assuntos administrativos e militares do império Assim o imperador depende do papa para receber o poder político mas o papa depende do imperador para manter o poder eclesiástico O conflito entre o imperador e as assembléias dos barões e reis diz respeito à escolha do imperador Este conflito revela o problema de uma política fundada em duas fontes antagônicas De fato barões e reis invocam a chamada Lei Régia Romana segundo a qual o governante recebe do povo o poder sendo portanto ocupante eleito do poder Barões e reis afirmam que são os instituidores do imperador Este porém invoca a Bíblia e a origem teocrática do poder afirmando que seu poder não vem dos barões e reis mas de Deus A solução será trazida pela teoria que distingue entre eleição e unção O imperador de fato é eleito pelos pares para o cargo mas só terá o poder através da unção com óleos santos afirmase que é ungido com o mesmo óleo que ungiu Davi e Salomão e quem unge o imperador é a Igreja isto é o papa Como se observa a teoria da dupla investidura e da distinção entre eleição e unção deixa o imperador à mercê do papa Para fortalecer o imperador contra o papa os reis e os barões é elaborada uma teoria que mais tarde sustentará as teorias da monarquia absoluta por direito divino Tratase da teologia política dos dois corpos do rei isto é do imperador Um reipelagraçadeDeus é a imitação de Jesus Cristo Jesus possui duas naturezas a humana mortal e a mística ou divina imortal Como Jesus o rei tem dois corpos um corpo humano que nasce vive adoece envelhece e morre e um corpo místico perene e imortal seu corpo político O corpo político do rei não nasce nem adoece envelhece ou morre Por isso ninguém a não ser Deus pode lhe dar esse corpo e ninguém a não ser Deus pode tirarlhe tal corpo Não o recebe nem dos barões e reis nem do papa e não pode serlhe tirado pelos reis pelos barões ou pelo papa O que é o corpo místicopolítico do rei A coroa o cetro o manto a espada o trono as terras as leis os impostos e tributos e seus descendentes ou sua dinastia Filho da justiça pai da lei marido da terra e de tudo o que nela existe o rei é inviolável e eterno porque é imitação do Cristo e imagem de Deus Nem eleito nem deposto por ninguém o poder político do rei o coloca fora e acima da comunidade tornandoo transcendente a ela Em relação ao papa a teoria dos dois corpos do rei dá ao imperador uma força teológica semelhante àquela que a doação das Chaves do Reino dava ao Vigário de Cristo Em relação aos reis e barões a teoria dá ao imperador a inviolabilidade do cargo e mais do que isso faz com que seja ele o doador de poder a seus inferiores Reis e barões terão poder por um favor do imperador assim como este recebe poder por um favor de Deus Marilena Chauí 507 O dualismo do poder No final da Idade Média sobretudo com a retomada das obras de Aristóteles pelos teólogos haverá um esforço para separar a Cidade de Deus a Igreja e a Cidade dos Homens a comunidade política Considerase que a primeira foi instituída e fundada diretamente por Deus com a doação das Chaves do Reino aos apóstolos mas a segunda foi instituída ou fundada pela Natureza que fez o homem um ser racional e um animal político Sem dúvida a boa cidade é a cidade dos homens cristã em harmonia com a Cidade de Deus mas as instituições políticas devem ser consideradas humanas criadas em concordância com a ordem e a lei naturais derivadas da lei divina eterna Um dos teóricos mais importantes da naturalidade da política é o teólogo são Tomás de Aquino para quem sendo o homem um animal social a sociabilidade natural já existia no Paraíso antes da queda e da expulsão dos seres humanos Após o pecado original os seres humanos não perderam sua natureza sociável e por isso naturalmente organizaramse em comunidades deramse leis e instituíram as relações de mando e obediência criando o poder político Diferentemente de santo Agostinho para quem o pecado tornara o homem perverso e violento injusto e fundador da Cidade dos Homens injusta como ele para são Tomás os humanos perderam a inocência original mas não perderam a natureza original que lhes fora dada por Deus Por esse motivo neles permaneceu o senso de justiça entendida como o dever de dar a cada um o que lhe é devido e com ela fundaram a comunidade política A finalidade da comunidade política é a ordem o inferior deve obedecer ao superior e a justiça dar a cada um segundo suas necessidades e méritos Ordem e justiça definem a comunidade política como o único instrumento humano legítimo para assegurar o bem comum Na mesma linha de separação entre poder espiritual da Igreja e poder temporal da comunidade política encontrase o teólogo inglês Guilherme de Ockham que para melhor definir a justiça e o bem comum introduz a idéia de direito subjetivo natural Para que a comunidade política possa realizar a justiça isto é dar a cada um o que lhe é devido segundo suas necessidades e seus méritos é preciso que o legislador e o magistrado possuam um critério ou uma medida que defina o justo Essa medida é o direito subjetivo natural de cada um e de todos os homens como o direito à vida à consciência e aos bens materiais e espirituais necessários à garantia da vida e da consciência Com são Tomás e Ockham novas idéias são trazidas à teoria política ainda que continue teológica isto é referida à vontade suprema de Deus Diante da tradição teocrática medieval são novas as idéias de comunidade política natural lei Convite à Filosofia 508 humana política e direito natural dos indivíduos como sujeitos dotados de consciência e de vontade Os dois teólogos mantêm a idéia de bom governo do príncipe cristão virtuoso e a de que a monarquia é a forma natural e melhor de governo a mais adequada para realizar a justiça como bem comum Conservam também a idéia de hierarquia natural criada pela lei divina eterna e concretizada pela lei natural Finalmente introduzem o primeiro esboço do que viria a ser conhecido com a Reforma Protestante como o direito de resistência dos súditos do tirano Os governados não podem depor nem matar o tirano mas podem resistir a ele buscando instrumentos legais que contestem sua autoridade forçandoo a abdicar do poder Um dos instrumentos legais mais importantes para isso é a idéia de direito subjetivo natural quando este é violado pelo governante o governo se torna ilegítimo o pacto de submissão perde a validade e o governante deve abdicar do poder Marilena Chauí 509 Capítulo 9 As filosofias políticas 2ª parte O ideal republicano À volta dos castelos feudais durante a Idade Média formaramse aldeias ou burgos Enquanto na sociedade como um todo prevalecia a relação de vassalagem juramento de fidelidade prestado por um inferior a um superior que prometia proteger o vassalo nos burgos a divisão social do trabalho fez aparecer uma outra organização social a corporação de ofício Tecelões pedreiros ferreiros médicos arquitetos comerciantes etc organizavamse em confrarias em que os membros estavam ligados por um juramento de confiança recíproca Embora internamente as corporações também fossem hierárquicas era possível a partir de regras convencionadas entre seus membros ascender na hierarquia e externamente nas relações com outras corporações todos eram considerados livres e iguais As corporações fazem surgir uma nova classe social que nos séculos seguintes irá tornarse economicamente dominante e buscará também o domínio político a burguesia nascida nos burgos Desde o início do século XV em certas regiões da Europa as antigas cidades do Império Romano e as novas cidades surgidas dos burgos medievais entram em desenvolvimento econômico e social Grandes rotas comerciais tornam poderosas as corporações e as famílias de comerciantes enquanto o poderio agrário dos barões começa a diminuir As cidades estão iniciando o que viria a ser conhecido como capitalismo comercial ou mercantil Para desenvolvêlo não podem continuar submetidas aos padrões às regras e aos tributos da economia feudal agrária e iniciam lutas por franquias econômicas As lutas econômicas da burguesia nascente contra a nobreza feudal prosseguem sob a forma de reivindicações políticas as cidades desejam independência em face de barões reis papas e imperadores Na Itália a redescoberta das obras de pensadores artistas e técnicos da cultura grecoromana particularmente das antigas teorias políticas suscitam um ideal político novo o da liberdade republicana contra o poder teológicopolítico de papas e imperadores Estamos no período conhecido como Renascimento no qual se espera reencontrar o pensamento as artes a ética as técnicas e a política existentes antes que o saber tivesse sido considerado privilégio da Igreja e os teólogos houvessem adquirido autoridade para decidir o que poderia e o que não poderia Convite à Filosofia 510 ser pensado dito e feito Filósofos historiadores dramaturgos retóricos tratados de medicina biologia arquitetura matemática enfim tudo o que fora criado pela cultura antiga é lido traduzido comentado e aplicado Esparta Atenas e Roma são tomadas como exemplos da liberdade republicana Imitálas e valorizar a prática política a vita activa contra o ideal da vida espiritual contemplativa imposto pela Igreja Falase agora na liberdade republicana e na vida política como as formas mais altas da dignidade humana Nesse ambiente entre 1513 e 1514 em Florença é escrita a obra que inaugura o pensamento político moderno O príncipe de Maquiavel Antes de O príncipe Embora diferentes e muitas vezes contrárias as obras políticas medievais e renascentistas operam num mundo cristão Isso significa que para todas elas a relação entre política e religião é um dado de que não podem escapar É verdade que as teorias medievais são teocráticas enquanto as renascentistas procuram evitar a idéia de que o poder seria uma graça ou um fator divino no entanto embora recusem a teocracia não podem recusar uma outra idéia cristã qual seja a de que o poder político só é legítimo se for justo e só será justo se estiver de acordo com a vontade de Deus e a Providência divina Assim elementos de teologia continuam presentes nas formulações teóricas da política Se deixarmos de lado as diferenças entre medievais e renascentistas e considerarmos suas obras políticas como cristãs poderemos perceber certos traços comuns a todas elas encontram um fundamento para a política anterior e exterior à própria política Em outras palavras para uns o fundamento da política encontrase em Deus seja na vontade divina que doa o poder aos homens seja na Providência divina que favorece o poder de alguns homens para outros encontrase na Natureza isto é na ordem natural que fez o homem um ser naturalmente político e para alguns encontrase na razão isto é na idéia de que existe uma racionalidade que governa o mundo e os homens tornaos racionais e os faz instituir a vida política Há pois algo Deus Natureza ou razão anterior e exterior à política servindo de fundamento a ela afirmam que a política é instituição de uma comunidade una e indivisa cuja finalidade é realizar o bem comum ou justiça A boa política é feita pela boa comunidade harmoniosa pacífica e ordeira Lutas conflitos e divisões são vistos como perigos frutos de homens perversos e sediciosos que devem a qualquer preço ser afastados da comunidade e do poder assentam a boa comunidade e a boa política na figura do bom governo isto é no príncipe virtuoso e racional portador da justiça da harmonia e da indivisão da comunidade Marilena Chauí 511 classificam os regimes políticos em justoslegítimos e injustosilegítimos colocando a monarquia e a aristocracia hereditárias entre os primeiros e identificando com os segundos o poder obtido por conquista e usurpação denominandoo tirânico Este é considerado antinatural irracional contrário à vontade de Deus e à justiça obra de um governante vicioso e perverso Em relação à tradição do pensamento político a obra de Maquiavel é demolidora e revolucionária Maquiavélico maquiavelismo Estamos acostumados a ouvir as expressões maquiavélico e maquiavelismo São usadas quando alguém deseja referirse tanto à política quanto aos políticos quanto a certas atitudes das pessoas mesmo quando não ligadas diretamente a uma ação política falase por exemplo num comerciante maquiavélico numa professora maquiavélica no maquiavelismo de certos jornais etc Quando ouvimos ou empregamos essas expressões Sempre que pretendemos julgar a ação ou a conduta de alguém desleal hipócrita fingidor poderosamente malévolo que brinca com sentimentos e desejos dos outros mentelhes faz a eles promessas que sabe que não cumprirá usa a boafé alheia em seu próprio proveito Falamos num poder maquiavélico para nos referirmos a um poder que age secretamente nos bastidores mantendo suas intenções e finalidades desconhecidas para os cidadãos que afirma que os fins justificam os meios e usa meios imorais violentos e perversos para conseguir o que quer que dá as regras do jogo mas fica às escondidas esperando que os jogadores causem a si mesmos sua própria ruína e destruição Maquiavélico e maquiavelismo fazem pensar em alguém extremamente poderoso e perverso sedutor e enganador que sabe levar as pessoas a fazerem exatamente o que ele deseja mesmo que sejam aniquiladas por isso Como se nota maquiavélico e maquiavelismo correspondem àquilo que em nossa cultura é considerado diabólico Que teria escrito Maquiavel para que gente que nunca leu sua obra e que nem mesmo sabe que existiu um dia em Florença uma pessoa com esse nome fale em maquiavélico e maquiavelismo A revolução maquiavelista Diferentemente dos teólogos que partiam da Bíblia e do Direito Romano para formular teorias políticas e diferentemente dos contemporâneos renascentistas que partiam das obras dos filósofos clássicos para construir suas teorias políticas Maquiavel parte da experiência real de seu tempo Foi diplomata e conselheiro dos governantes de Florença via as lutas européias de centralização monárquica França Inglaterra Espanha Portugal viu a Convite à Filosofia 512 ascensão da burguesia comercial das grandes cidades e sobretudo viu a fragmentação da Itália dividida em reinos ducados repúblicas e Igreja A compreensão dessas experiências históricas e a interpretação do sentido delas o conduziram à idéia de que uma nova concepção da sociedade e da política tornarase necessária sobretudo para a Itália e para Florença Sua obra funda o pensamento político moderno porque busca oferecer respostas novas a uma situação histórica nova que seus contemporâneos tentavam compreender lendo os autores antigos deixando escapar a observação dos acontecimentos que ocorriam diante de seus olhos Se compararmos o pensamento político de Maquiavel com os quatro pontos nos quais resumimos a tradição política observaremos por onde passa a ruptura maquiavelista 1 Maquiavel não admite um fundamento anterior e exterior à política Deus Natureza ou razão Toda Cidade diz ele em O príncipe está originariamente dividida por dois desejos opostos o desejo dos grandes de oprimir e comandar e o desejo do povo de não ser oprimido nem comandado Essa divisão evidencia que a Cidade não é uma comunidade homogênea nascida da vontade divina da ordem natural ou da razão humana Na realidade a Cidade é tecida por lutas internas que a obrigam a instituir um pólo superior que possa unificála e darlhe identidade Esse pólo é o poder político Assim a política nasce das lutas sociais e é obra da própria sociedade para dar a si mesma unidade e identidade A política resulta da ação social a partir das divisões sociais 2 Maquiavel não aceita a idéia da boa comunidade política constituída para o bem comum e a justiça Como vimos o ponto de partida da política para ele é a divisão social entre os grandes e o povo A sociedade é originariamente dividida e jamais pode ser vista como uma comunidade una indivisa homogênea voltada para o bem comum Essa imagem da unidade e da indivisão diz Maquiavel é uma máscara com que os grandes recobrem a realidade social para enganar oprimir e comandar o povo como se os interesses dos grandes e dos populares fossem os mesmos e todos fossem irmãos e iguais numa bela comunidade A finalidade política não é como diziam os pensadores gregos romanos e cristãos a justiça e o bem comum mas como sempre souberam os políticos a tomada e manutenção do poder O verdadeiro príncipe é aquele que sabe tomar e conservar o poder e que para isso jamais deve aliarse aos grandes pois estes são seus rivais e querem o poder para si mas deve aliarse ao povo que espera do governante a imposição de limites ao desejo de opressão e mando dos grandes A política não é a lógica racional da justiça e da ética mas a lógica da força transformada em lógica do poder e da lei 3 Maquiavel recusa a figura do bom governo encarnada no príncipe virtuoso portador das virtudes cristãs das virtudes morais e das virtudes principescas O príncipe precisa ter virtu mas esta é propriamente política referindose às Marilena Chauí 513 qualidades do dirigente para tomar e manter o poder mesmo que para isso deva usar a violência a mentira a astúcia e a força A tradição afirmava que o governante devia ser amado e respeitado pelos governados Maquiavel afirma que o príncipe não pode ser odiado Isso significa em primeiro lugar que deve ser respeitado e temido o que só é possível se não for odiado Significa em segundo lugar que não precisa ser amado pois isto o faria um pai para a sociedade e sabemos um pai conhece apenas um tipo de poder o despótico A virtude política do príncipe aparecerá na qualidade das instituições que soube criar e manter e na capacidade que tiver para enfrentar as ocasiões adversas isto é a fortuna ou sorte 4 Maquiavel não aceita a divisão clássica dos três regimes políticos monarquia aristocracia democracia e suas formas corruptas ou ilegítimas tirania oligarquia demagogiaanarquia como não aceita que o regime legítimo seja o hereditário e o ilegítimo o usurpado por conquista Qualquer regime político tenha a forma que tiver e tenha a origem que tiver poderá ser legítimo ou ilegítimo O critério de avaliação ou o valor que mede a legitimidade e a ilegitimidade é a liberdade Todo regime político em que o poderio de opressão e comando dos grandes é maior do que o poder do príncipe e esmaga o povo é ilegítimo caso contrário é legítimo Assim legitimidade e ilegitimidade dependem do modo como as lutas sociais encontram respostas políticas capazes de garantir o único princípio que rege a política o poder do príncipe deve ser superior ao dos grandes e estar a serviço do povo O príncipe pode ser monarca hereditário ou por conquista pode ser todo um povo que conquista pela força o poder Qualquer desses regimes políticos será legítimo se for uma república e não despotismo ou tirania isto é só é legítimo o regime no qual o poder não está a serviço dos desejos e interesses de um particular ou de um grupo de particulares Dissemos que a tradição grega tornara ética e política inseparáveis que a tradição romana colocara essa identidade da ética e da política na pessoa virtuosa do governante e que a tradição cristã transformara a pessoa política num corpo místico sacralizado que encarnava a vontade de Deus e a comunidade humana Hereditariedade personalidade e virtude formavam o centro da política orientada pela idéia de justiça e bem comum Esse conjunto de idéias e imagens é demolido por Maquiavel Um dos aspectos da concepção maquiavelista que melhor revela essa demolição encontrase na figura do príncipe virtuoso Quando estudamos a ética vimos que a questão central posta pelos filósofos sempre foi O que está e o que não está em nosso poder Vimos também que estar em nosso poder significava a ação voluntária racional livre própria da virtude e não estar em nosso poder significava o conjunto de circunstâncias externas que agem sobre nós e determinam nossa vontade e nossa ação Vimos ainda que esse conjunto de circunstâncias que não dependem de nós nem de Convite à Filosofia 514 nossa vontade foi chamado pela tradição filosófica de fortuna A oposição virtudefortuna jamais abandonou a ética e como esta surgia inseparável da política a mesma oposição se fez presente no pensamento político Neste o governante virtuoso é aquele cujas virtudes não sucumbem ao poderio da caprichosa e inconstante fortuna Maquiavel retoma essa oposição mas lhe imprime um sentido inteiramente novo A virtu do príncipe não consiste num conjunto fixo de qualidades morais que ele oporá à fortuna lutando contra ela A virtu é a capacidade do príncipe para ser flexível às circunstâncias mudando com elas para agarrar e dominar a fortuna Em outras palavras um príncipe que agir sempre da mesma maneira e de acordo com os mesmos princípios em todas as circunstâncias fracassará e não terá virtu alguma Para ser senhor da sorte ou das circunstâncias deve mudar com elas e como elas ser volúvel e inconstante pois somente assim saberá agarrálas e vencêlas Em certas circunstâncias deverá ser cruel em outras generoso em certas ocasiões deverá mentir em outras ser honrado em certos momentos deverá ceder à vontade dos outros em algumas ser inflexível O ethos ou caráter do príncipe deve variar com as circunstâncias para que sempre seja senhor delas A fortuna diz Maquiavel é sempre favorável a quem desejar agarrála Oferece se como um presente a todo aquele que tiver ousadia para dobrála e vencêla Assim em lugar da tradicional oposição entre a constância do caráter virtuoso e a inconstância da fortuna Maquiavel introduz a virtude política como astúcia e capacidade para adaptarse às circunstâncias e aos tempos como ousadia para agarrar a boa ocasião e força para não ser arrastado pelas más A lógica política nada tem a ver com as virtudes éticas dos indivíduos em sua vida privada O que poderia ser imoral do ponto de vista da ética privada pode ser virtu política Em outras palavras Maquiavel inaugura a idéia de valores políticos medidos pela eficácia prática e pela utilidade social afastados dos padrões que regulam a moralidade privada dos indiví duos O ethos político e o ethos moral são diferentes e não há fraqueza política maior do que o moralismo que mascara a lógica real do poder Por ter inaugurado a teoria moderna da lógica do poder como independente da religião da ética e da ordem natural Maquiavel só poderia ter sido visto como maquiavélico As palavras maquiavélico e maquiavelismo criadas no século XVI e conservadas até hoje exprimem o medo que se tem da política quando esta é simplesmente política isto é sem as máscaras da religião da moral da razão e da Natureza Para o Ocidente cristão do século XVI o príncipe maquiavelista não sendo o bom governo sob Deus e a razão só poderia ser diabólico À sacralização do poder feita pela teologia política só poderia oporse a demonização É essa Marilena Chauí 515 imagem satânica da política como ação social puramente humana que os termos maquiavélico e maquiavelismo designam O mundo desordenado A obra de Maquiavel criticada em toda a parte atacada por católicos e protestantes considerada atéia e satânica tornouse porém a referência obrigatória do pensamento político moderno A idéia de que a finalidade da política é a tomada e conservação do poder e que este não provém de Deus nem da razão nem de uma ordem natural feita de hierarquias fixas exigiu que os governantes justificassem a ocupação do poder Em alguns casos como na França e na Prússia surgirá a teoria do direito divino dos reis baseada na reformulação jurídica da teologia política do rei pela graça divina e dos dois corpos do rei Na maioria dos países porém a concepção teocrática não foi mantida e partindo de Maquiavel os teóricos tiveram que elaborar novas teorias políticas Para compreendermos os conceitos que fundarão essas novas teorias precisamos considerar alguns acontecimentos históricos que mudaram a face econômica e social da Europa entre os séculos XV e XVII Já mencionamos ao tratar do ideal republicano o novo papel das cidades e da nova classe social a burguesia no plano econômico social e político Outros fatores além do crescimento das corporações de ofício e do comércio são também importantes para o fortalecimento dessa nova classe a decadência e ruína de inúmeras famílias aristocráticas cujas riquezas foram consumidas nas guerras das Cruzadas contra os árabes e cujas terras ficaram abandonadas porque seus nobres senhores partiram para a guerra e ali morreram sem deixar herdeiros Outros contraíram dívidas com a coroa para compra de armamentos e pagamentos de exércitos para as Cruzadas suas terras sendo confiscadas pelo rei para cobrir as dívidas Os servos da gleba que trabalhavam nessas propriedades bem como os camponeses pobres e livres que as arrendavam em troca de serviços migravam para as cidades tornandose membros das corporações de ofícios ou servos urbanos de famílias nobres que haviam passado a dedicarse ao comércio a decadência agrária foi acelerada também por uma grande peste que assolou a Europa no final da Idade Média a chamada peste negra que dizimou gente gado e colheitas arruinando a nobreza fundiária e causando migrações para as cidades a vida urbana provocou o crescimento de atividades artesanais e com elas o desenvolvimento comercial para compra e venda dos produtos criando especialidades regionais e o intercâmbio comercial em toda a Europa as grandes rotas do comércio com o Oriente dominadas primeiro pelas cidades italianas e depois pelos impérios ultramarinos de Portugal Espanha Convite à Filosofia 516 Inglaterra e França deram origem a um novo tipo de riqueza o capital baseado no lucro advindo da exploração do trabalho dos homens pobres e livres que haviam migrado para as cidades e na exploração do trabalho escravo de nativos e negros nas Américas Nas cidades primeiro e no campo depois a miséria e as péssimas condições de trabalho e de vida levam os pobres a revoltas contra os ricos No campo tais revoltas foram um dos efeitos da Reforma Protestante que acusara a Igreja e a nobreza de cometerem o pecado da ambição explorando e oprimindo os pobres Nas cidades as revoltas populares eram também um efeito da Reforma Protestante que havia declarado a igualdade dos seres humanos afirmando como principal virtude o trabalho e principal vício a preguiça O desenvolvimento econômico das cidades o surgimento da burguesia comerciante ou mercantil o crescimento da classe dos trabalhadores pobres mas livres isto é sem laços de servidão com os senhores feudais a Reforma Protestante que questionara o poder econômico e político da Igreja as revoltas populares a guerra entre potências pelo domínio dos mares e dos novos territórios descobertos a queda de reis e de famílias da nobreza a ascensão de famílias comerciantes e de novos reis que as favoreciam contra os nobres todos esses fatos evidenciavam que a idéia cristã herdada do Império Romano e consolidada pela Igreja Romana de um mundo constituído naturalmente por hierarquias era uma idéia que não correspondia à realidade A nova situação histórica fazia aparecer dois fatos impossíveis de negar 1 a existência de indivíduos um burguês e um trabalhador não podiam invocar sangue família linhagem e dinastia para explicar por que existiam e por que haviam mudado de posição social mas só podiam invocar a si mesmos como indivíduos 2 a existência de conflitos entre indivíduos e grupos de indivíduos pela posse de riquezas cargos postos e poderes anulava a imagem da comunidade cristã una indivisa e fraterna Os teóricos precisavam portanto explicar o que eram os indivíduos e por que lutavam mortalmente uns contra os outros além de precisarem oferecer teorias capazes de solucionar os conflitos e as guerras sociais Em outras palavras foram forçados a indagar qual é a origem da sociedade e da política Por que indivíduos isolados formam uma sociedade Por que indivíduos independentes aceitam submeterse ao poder político e às leis A resposta a essas duas perguntas conduz às idéias de Estado de Natureza e Estado Civil Marilena Chauí 517 Estado de Natureza contrato social Estado Civil O conceito de Estado de Natureza tem a função de explicar a situação présocial na qual os indivíduos existem isoladamente Duas foram as principais concepções do Estado de Natureza 1 a concepção de Hobbes no século XVII segundo a qual em Estado de Natureza os indivíduos vivem isolados e em luta permanente vigorando a guerra de todos contra todos ou o homem lobo do homem Nesse estado reina o medo e principalmente o grande medo o da morte violenta Para se protegerem uns dos outros os humanos inventaram as armas e cercaram as terras que ocupavam Essas duas atitudes são inúteis pois sempre haverá alguém mais forte que vencerá o mais fraco e ocupará as terras cercadas A vida não tem garantias a posse não tem reconhecimento e portanto não existe a única lei é a força do mais forte que pode tudo quanto tenha força para conquistar e conservar 2 a concepção de Rousseau no século XVIII segundo a qual em Estado de Natureza os indivíduos vivem isolados pelas florestas sobrevivendo com o que a Natureza lhes dá desconhecendo lutas e comunicandose pelo gesto o grito e o canto numa língua generosa e benevolente Esse estado de felicidade original no qual os humanos existem sob a forma do bom selvagem inocente termina quando alguém cerca um terreno e diz É meu A divisão entre o meu e o teu isto é a propriedade privada dá origem ao Estado de Sociedade que corresponde agora ao Estado de Natureza hobbesiano da guerra de todos contra todos O Estado de Natureza de Hobbes e o Estado de Sociedade de Rousseau evidenciam uma percepção do social como luta entre fracos e fortes vigorando a lei da selva ou o poder da força Para cessar esse estado de vida ameaçador e ameaçado os humanos decidem passar à sociedade civil isto é ao Estado Civil criando o poder político e as leis A passagem do Estado de Natureza à sociedade civil se dá por meio de um contrato social pelo qual os indivíduos renunciam à liberdade natural e à posse natural de bens riquezas e armas e concordam em transferir a um terceiro o soberano o poder para criar e aplicar as leis tornandose autoridade política O contrato social funda a soberania Como é possível o contrato ou o pacto social Qual sua legitimidade Os teóricos invocarão o Direito Romano Ninguém pode dar o que não tem e ninguém pode tirar o que não deu e a Lei Régia romana O poder é conferido ao soberano pelo povo para legitimar a teoria do contrato ou do pacto social Partese do conceito de direito natural por natureza todo indivíduo tem direito à vida ao que é necessário à sobrevivência de seu corpo e à liberdade Por natureza todos são livres ainda que por natureza uns sejam mais fortes e outros mais fracos Um contrato ou um pacto dizia a teoria jurídica romana só tem Convite à Filosofia 518 validade se as partes contratantes forem livres e iguais e se voluntária e livremente derem seu consentimento ao que está sendo pactuado A teoria do direito natural garante essas duas condições para validar o contrato social ou o pacto político Se as partes contratantes possuem os mesmos direitos naturais e são livres possuem o direito e o poder para transferir a liberdade a um terceiro e se consentem voluntária e livremente nisso então dão ao soberano algo que possuem legitimando o poder da soberania Assim por direito natural os indivíduos formam a vontade livre da sociedade voluntariamente fazem um pacto ou contrato e transferem ao soberano o poder para dirigilos Para Hobbes os homens reunidos numa multidão de indivíduos pelo pacto passam a constituir um corpo político uma pessoa artificial criada pela ação humana e que se chama Estado Para Rousseau os indivíduos naturais são pessoas morais que pelo pacto criam a vontade geral como corpo moral coletivo ou Estado A teoria do direito natural e do contrato evidencia uma inovação de grande importância o pensamento político já não fala em comunidade mas em sociedade A idéia de comunidade pressupõe um grupo humano uno homogêneo indiviso compartilhando os mesmos bens as mesmas crenças e idéias os mesmos costumes e possuindo um destino comum A idéia de sociedade ao contrário pressupõe a existência de indivíduos independentes e isolados dotados de direitos naturais e individuais que decidem por um ato voluntário tornarem se sócios ou associados para vantagem recíproca e por interesses recíprocos A comunidade é a idéia de uma coletividade natural ou divina a sociedade a de uma coletividade voluntária histórica e humana A sociedade civil é o Estado propriamente dito Tratase da sociedade vivendo sob o direito civil isto é sob as leis promulgadas e aplicadas pelo soberano Feito o pacto ou o contrato os contratantes transferiram o direito natural ao soberano e com isso o autorizam a transformálo em direito civil ou direito positivo garantindo a vida a liberdade e a propriedade privada dos governados Estes transferiram ao soberano o direito exclusivo ao uso da força e da violência da vingança contra os crimes da regulamentação dos contratos econômicos isto é a instituição jurídica da propriedade privada e de outros contratos sociais como por exemplo o casamento civil a legislação sobre a herança etc Quem é o soberano Hobbes e Rousseau diferem na resposta a essa pergunta Para Hobbes o soberano pode ser um rei um grupo de aristocratas ou uma assembléia democrática O fundamental não é o número de governantes mas a determinação de quem possui o poder ou a soberania Esta pertence de modo absoluto ao Estado que por meio das instituições públicas tem o poder para promulgar e aplicar as leis definir e garantir a propriedade privada e exigir obediência incondicional dos governados desde que respeite dois direitos naturais intransferíveis o direito à vida e à paz pois foi por eles que o soberano Marilena Chauí 519 foi criado O soberano detém a espada e a lei os governados a vida e a propriedade dos bens Para Rousseau o soberano é o povo entendido como vontade geral pessoa moral coletiva livre e corpo político de cidadãos Os indivíduos pelo contrato criaramse a si mesmos como povo e é a este que transferem os direitos naturais para que sejam transformados em direitos civis Assim sendo o governante não é o soberano mas o representante da soberania popular Os indivíduos aceitam perder a liberdade civil aceitam perder a posse natural para ganhar a individualidade civil isto é a cidadania Enquanto criam a soberania e nela se fazem representar são cidadãos Enquanto se submetem às leis e à autoridade do governante que os representa chamamse súditos São pois cidadãos do Estado e súditos das leis A teoria liberal No pensamento político de Hobbes e Rousseau a propriedade privada não é um direito natural mas civil Em outras palavras mesmo que no Estado de Natureza em Hobbes e no Estado de Sociedade em Rousseau os indivíduos se apossem de terras e bens essa posse é o mesmo que nada pois não existem leis para garantilas A propriedade privada é portanto um efeito do contrato social e um decreto do soberano Essa teoria porém não era suficiente para a burguesia em ascensão De fato embora o capitalismo estivesse em vias de consolidação e o poderio econômico da burguesia fosse inconteste o regime político permanecia monárquico e o poderio político e o prestígio social da nobreza também permaneciam Para enfrentálos em igualdade de condições a burguesia precisava de uma teoria que lhe desse legitimidade tão grande ou maior do que o sangue e a hereditariedade davam à realeza e à nobreza Essa teoria será a da propriedade privada como direito natural e sua primeira formulação coerente será feita pelo filósofo inglês Locke no final do século XVII e início do século XVIII Locke parte da definição do direito natural como direito à vida à liberdade e aos bens necessários para a conservação de ambas Esses bens são conseguidos pelo trabalho Como fazer do trabalho o legitimador da propriedade privada enquanto direito natural Deus escreve Locke é um artífice um obreiro arquiteto e engenheiro que fez uma obra o mundo Este como obra do trabalhador divino a ele pertence É seu domínio e sua propriedade Deus criou o homem à sua imagem e semelhança deulhe o mundo para que nele reinasse e ao expulsálo do Paraíso não lhe retirou o domínio do mundo mas lhe disse que o teria com o suor de seu rosto Por todos esses motivos Deus instituiu no momento da criação do mundo e do Convite à Filosofia 520 homem o direito à propriedade privada como fruto legítimo do trabalho Por isso de origem divina ela é um direito natural O Estado existe a partir do contrato social Tem as funções que Hobbes lhe atribui mas sua principal finalidade é garantir o direito natural de propriedade Dessa maneira a burguesia se vê inteiramente legitimada perante a realeza e a nobreza e mais do que isso surge como superior a elas uma vez que o burguês acredita que é proprietário graças ao seu próprio trabalho enquanto reis e nobres são parasitas da sociedade O burguês não se reconhece apenas como superior social e moralmente aos nobres mas também como superior aos pobres De fato se Deus fez todos os homens iguais se a todos deu a missão de trabalhar e a todos concedeu o direito à propriedade privada então os pobres isto é os trabalhadores que não conseguem tornarse proprietários privados são culpados por sua condição inferior São pobres não são proprietários e são obrigados a trabalhar para outros seja porque são perdulários gastando o salário em vez de acumulálo para adquirir propriedades ou são preguiçosos e não trabalham o suficiente para conseguir uma propriedade Se a função do Estado não é a de criar ou instituir a propriedade privada mas de garantila e defendêla contra a nobreza e os pobres qual é o poder do soberano A teoria liberal primeiro com Locke depois com os realizadores da independência norteamericana e da Revolução Francesa e finalmente no século passado com pensadores como Max Weber dirão que a função do Estado é tríplice 1 por meio das leis e do uso legal da violência exército e polícia garantir o direito natural de propriedade sem interferir na vida econômica pois não tendo instituído a propriedade o Estado não tem poder para nela interferir Donde a idéia de liberalismo isto é o Estado deve respeitar a liberdade econômica dos proprietários privados deixando que façam as regras e as normas das atividades econômicas 2 visto que os proprietários privados são capazes de estabelecer as regras e as normas da vida econômica ou do mercado entre o Estado e o indivíduo intercala se uma esfera social a sociedade civil sobre a qual o Estado não tem poder instituinte mas apenas a função de garantidor e de árbitro dos conflitos nela existentes O Estado tem a função de arbitrar por meio das leis e da força os conflitos da sociedade civil 3 o Estado tem o direito de legislar permitir e proibir tudo quanto pertença à esfera da vida pública mas não tem o direito de intervir sobre a consciência dos governados O Estado deve garantir a liberdade de consciência isto é a liberdade de pensamento de todos os governados e só poderá exercer censura nos casos em que se emitam opiniões sediciosas que ponham em risco o próprio Estado Marilena Chauí 521 Na Inglaterra o liberalismo se consolida em 1688 com a chamada Revolução Gloriosa No restante da Europa será preciso aguardar a Revolução Francesa de 1789 Nos Estados Unidos consolidase em 1776 com a luta pela independência Liberalismo e fim do Antigo Regime As idéias políticas liberais têm como pano de fundo a luta contra as monarquias absolutas por direito divino dos reis derivadas da concepção teocrática do poder O liberalismo consolidase com os acontecimentos de 1789 na França isto é com a Revolução Francesa que derrubou o Antigo Regime Antigo em primeiro lugar porque politicamente teocrático e absolutista Antigo em segundo lugar porque socialmente fundado na idéia de hierarquia divina natural e social e na organização feudal baseada no pacto de submissão dos vassalos ou súditos ao senhor Com as idéias de direito natural dos indivíduos e de sociedade civil relações entre indivíduos livres e iguais por natureza quebrase a idéia de hierarquia Com a idéia de contrato social passagem da idéia de pacto de submissão à de pacto social entre indivíduos livres e iguais quebrase a idéia da origem divina do poder e da justiça fundada nas virtudes do bom governante O término do Antigo Regime se consuma quando a teoria política consagra a propriedade privada como direito natural dos indivíduos desfazendo a imagem do rei como marido da terra senhor dos bens e riquezas do reino decidindo segundo sua vontade e seu capricho quanto a impostos tributos e taxas A propriedade ou é individual e privada ou é estatal e pública jamais patrimônio pessoal do monarca O poder tem a forma de um Estado republicano impessoal porque a decisão sobre impostos tributos e taxas é tomada por um parlamento o poder legislativo constituído pelos representantes dos proprietários privados As teorias políticas liberais afirmam portanto que o indivíduo é a origem e o destinatário do poder político nascido de um contrato social voluntário no qual os contratantes cedem poderes mas não cedem sua individualidade vida liberdade e propriedade O indivíduo é o cidadão Afirmam também a existência de uma esfera de relações sociais separadas da vida privada e da vida política a sociedade civil organizada onde proprietários privados e trabalhadores criam suas organizações de classes realizam contratos disputam interesses e posições sem que o Estado possa aí intervir a não ser que uma das partes lhe peça para arbitrar os conflitos ou que uma das partes aja de modo que pareça perigoso para a manutenção da própria sociedade Afirmam o caráter republicano do poder isto é o Estado é o poder público e nele os interesses dos proprietários devem estar representados por meio do parlamento e do poder judiciário os representantes devendo ser eleitos por seus pares Quanto ao poder executivo em caso de monarquia pode ser hereditário mas o rei está submetido às leis como os demais súditos Em caso de democracia será Convite à Filosofia 522 eleito por voto censitário isto é são eleitores ou cidadãos plenos apenas os que possuírem uma certa renda ou riqueza O Estado através da lei e da força tem o poder para dominar exigir obediência e para reprimir punir o que a lei defina como crime Seu papel é a garantia da ordem pública tal como definida pelos proprietários privados e seus representantes A cidadania liberal O Estado liberal se apresenta como república representativa constituída de três poderes o executivo encarregado da administração dos negócios e serviços públicos o legislativo parlamento encarregado de instituir as leis e o judiciário magistraturas de profissionais do direito encarregados de aplicar as leis Possui um corpo de militares profissionais que formam as forças armadas exército e polícia encarregadas da ordem interna e da defesa ou ataque externo Possui também um corpo de servidores ou funcionários públicos que formam a burocracia encarregada de cumprir as decisões dos três poderes perante os cidadãos O Estado liberal julgava inconcebível que um nãoproprietário pudesse ocupar um cargo de representante num dos três poderes Ao afirmar que os cidadãos eram os homens livres e independentes queriam dizer com isso que eram dependentes e nãolivres os que não possuíssem propriedade privada Estavam excluídos do poder político portanto os trabalhadores e as mulheres isto é a maioria da sociedade Lutas populares intensas desde o século XVIII até nossos dias forçaram o Estado liberal a tornarse uma democracia representativa ampliando a cidadania política Com exceção dos Estados Unidos onde os trabalhadores brancos foram considerados cidadãos desde o século XVIII nos demais países a cidadania plena e o sufrágio universal só vieram a existir completamente no século XX como conclusão de um longo processo em que a cidadania foi sendo concedida por etapas Não menos espantoso é o fato de que em duas das maiores potências mundiais Inglaterra e França as mulheres só alcançaram plena cidadania em 1946 após a Segunda Guerra Mundial Podese avaliar como foi dura penosa e lenta essa conquista popular considerandose que por exemplo os negros do sul dos Estados Unidos só se tornaram cidadãos nos anos 60 do século passado Também é importante lembrar que em países da América Latina sob a democracia liberal os índios ficaram excluídos da cidadania e que os negros da África do Sul votaram pela primeira vez em 1994 As lutas indígenas em nosso continente e as africanas continuam até nossos diasxix Marilena Chauí 523 A idéia de revolução A política liberal foi o resultado de acontecimentos econômicos e sociais que impuseram mudanças na concepção do poder do Estado considerado instituído pelo consentimento dos indivíduos através do contrato social Tais acontecimentos ficaram conhecidos com o nome de revoluções burguesas isto é mudanças na estrutura econômica na sociedade e na política efetuadas por uma nova classe social a burguesia O uso da palavra revolução para designar tais mudanças é curioso De fato essa palavra provém do vocabulário da astronomia significando o movimento circular completo que um astro realiza ao voltar ao seu ponto de partida Uma revolução se efetua quando o movimento total de um astro faz coincidirem seu ponto de partida e seu ponto de chegada Revolução designa movimento circular cíclico isto é repetição contínua de um mesmo percurso Como entender que essa palavra tenha entrado para o vocabulário político significando mudanças e alterações profundas nas relações sociais e no poder Como entender que em vez de significar retorno circular e cíclico ao ponto de partida signifique exatamente o contrário isto é percurso rumo ao tempo novo e à sociedade nova Para responder a essas perguntas precisamos examinar um pouco mais de perto as revoluções burguesas isto é a Revolução Inglesa de 1644 a Revolução Norte Americana de 1776 e a Revolução Francesa de 1789 Embora em todas elas o resultado tenha sido o mesmo qual seja a subida e consolidação política da burguesia como classe dominante nas três houve o que um historiador denominou de revolução na revolução indicando com isso a existência de um movimento popular radical ou a face democrática e igualitária da revolução derrotada pela revolução burguesa Em outras palavras nas três revoluções a burguesia pretendeu e conseguiu derrotar a realeza e a nobreza passou a dominar o Estado e julgou com isso terminada a tarefa das mudanças enquanto as classes populares que participaram daquela vitória desejavam muito mais desejavam instituir uma sociedade inteiramente nova justa livre e feliz Ora as classes populares não possuíam teorias políticas de tipo filosófico e científico Para explicar o mundo em que viviam e o mundo que desejavam dispunham de uma única fonte a Bíblia Através da religião possuíam duas referências de justiça e felicidade a imagem do Paraíso terrestre no Antigo Testamento e o Reino de Deus na Terra ou Nova Jerusalém no Novo Testamento que restauraria o Paraíso depois que Cristo viesse ao mundo pela segunda vez e no fim dos tempos ou tempo do fim derrotasse para sempre o Mal As classes populares revolucionárias dispunham portanto de um imaginário messiânico e milenarista milenarista porque o Reino de Deus na Terra duraria mil anos de felicidade abundância e justiça Convite à Filosofia 524 Ao lutarem politicamente as classes populares olhavam para o passado o ponto de partida dos homens no Paraíso e para o futuro o ponto de chegada dos homens na Nova Jerusalém Olhavam para o tempo futuro e novo a sociedade dos justos na Terra que seria a restituição ou restauração do tempo passado original o Paraíso Porque o ponto de chegada e o ponto de partida do movimento político coincidiam com a existência da justiça e da felicidade o futuro e o passado se encontravam fechando o ciclo e o círculo da existência humana graças à ação do presente Por isso designaram os acontecimentos de que eram os sujeitos e protagonistas com a palavra revolução Se compararmos os movimentos revolucionários dos séculos XVII e XVIII com a teoria política liberal notaremos uma diferença importante entre eles De fato as teorias liberais separam o Estado e a sociedade civil O primeiro aparece como instância impessoal de dominação impõe obediência de estabelecimento e aplicação das leis como garantidor da ordem através do uso legal da violência para punir todo o crime definido pelas leis e como árbitro dos conflitos sociais A sociedade civil por seu turno aparece como um conjunto de relações sociais diversificadas entre classes e grupos sociais cujos interesses e direitos podem coincidir ou oporse Nela existem as relações econômicas de produção distribuição acumulação de riquezas e consumo de produtos que circulam através do mercado O centro da sociedade civil é a propriedade privada que diferencia indivíduos grupos e classes sociais e o centro do Estado é a garantia dessa propriedade sem contudo mesclar política e sociedade O coração do liberalismo é a diferença e a distância entre Estado e sociedade Ora as revoluções e sobretudo a face popular das revoluções operam exatamente com a indistinção entre Estado e sociedade entre ação política e relações sociais As revoluções pretendem derrubar o poder existente ou o Estado porque o percebem como responsável ou cúmplice das desigualdades e injustiças existentes na sociedade Em outras palavras a percepção de injustiças sociais leva às ações políticas Uma revolução pode começar como luta social que desemboca na luta política contra o poder ou pode começar como luta política que desemboca na luta por uma outra sociedade Eis por que em todas as revoluções burguesas vemos sempre acontecer o mesmo processo a burguesia estimula a participação popular porque precisa que a sociedade toda lute contra o poder existente conseguida a mudança política com a passagem do poder da monarquia à república a burguesia considera a revolução terminada as classes populares porém a prosseguem pois aspiram ao poder democrático e desejam mudanças sociais a burguesia vitoriosa passa a reprimir as classes populares revolucionárias desarma o povo que ela própria armara prende tortura e mata os chefes populares e encerra pela força o Marilena Chauí 525 processo revolucionário garantindo com o liberalismo a separação entre Estado e sociedade Significado político das revoluções Uma revolução seja ela burguesa ou popular possui um significado político da mais alta importância porque desvenda a estrutura e a organização da sociedade e do Estado Ela evidencia a divisão social e política sob a forma de uma polarização entre um alto opressor e um baixo oprimido a percepção do alto pelo baixo da sociedade como um poder que não é natural nem necessário mas resultado de uma ação humana e como tal pode ser derrubado e reconstruído de outra maneira a compreensão de que os agentes sociais são sujeitos políticos e como tais dotados de direitos A consciência dos direitos faz com que os sujeitos sóciopolíticos exijam reconhecimento e garantia de seus direitos pela sociedade e pelo poder político Eis por que toda revolução culmina numa declaração pública conhecida como Declaração Universal dos Direitos dos Cidadãos pela via da declaração dos direitos uma revolução repõe a relação entre poder político e justiça social mas com uma novidade própria do mundo moderno pois a justiça não depende mais da figura do bom governo do príncipe virtuoso e sim de instituições públicas que satisfaçam à demanda dos cidadãos ao Estado Cabe ao novo poder político criar instituições que possam satisfazer e garantir a luta revolucionária por direitos As revoluções sociais Acabamos de ver que as revoluções modernas possuem duas faces a face burguesa liberal a revolução é política visando à tomada do poder e à instituição do Estado como república e órgão separado da sociedade civil e a face popular a revolução é política e social visando à criação de direitos e à instituição do poder democrático que garanta uma nova sociedade justa e feliz Vimos também que nas revoluções modernas a face popular é sufocada pela face liberal embora esta última seja obrigada a introduzir e garantir alguns direitos políticos e sociais para o povo de modo a conseguir manter a ordem e evitar a explosão contínua de revoltas populares A face popular vencida não desaparece Ressurge periodicamente em lutas isoladas por melhores condições de vida de trabalho de salários e com reivindicações isoladas de participação política Essa face popular tende a crescer e manifestarse em novas revoluções derrotadas durante todo o século XIX à medida que se desenvolve o capitalismo industrial e as classes populares se tornam uma classe social de perfil muito definido os proletários ou trabalhadores industriais Convite à Filosofia 526 Correspondendo à emergência e à definição da classe trabalhadora proletária e à sua ação política em revoluções populares de caráter políticosocial surgem novas teorias políticas as várias teorias socialistas As teorias socialistas tomam o proletariado como sujeito político e histórico e procuram figurar uma nova sociedade e uma nova política na qual a exploração dos trabalhadores a dominação política a que estão submetidos e as exclusões sociais e culturais a que são forçados deixem de existir Porque seu sujeito político são os trabalhadores essas teorias políticas tendem a figurar a sociedade futura como igualitária feita de abundância justiça e felicidade Como percebem a cumplicidade entre o Estado e a classe economicamente dominante julgam que a existência do primeiro se deve apenas às necessidades econômicas da burguesia e por isso afirmam que na sociedade futura quando não haverá divisão social de classes nem desigualdades a política não dependerá do Estado São portanto teorias antiestatais que apostam na capacidade de autogoverno ou de autogestão da sociedade Marilena Chauí 527 Capítulo 10 A política contra a servidão voluntária A tradição libertária As teorias socialistas modernas são herdeiras da tradição libertária isto é das lutas sociais e políticas populares por liberdade e justiça contra a opressão dos poderosos Nessa tradição encontramse as revoltas camponesas e dos artesãos do final da Idade Média do início da Reforma Protestante e da Revolução Inglesa de 1644 Essas revoltas são conhecidas como milenaristas pois como vimos as classes populares possuem como referencial para compreender e julgar a política as imagens bíblicas do Paraíso da Nova Jerusalém e do tempo do fim quando o Bem vencerá perpetuamente o Mal instaurando o Reino dos Mil Anos de felicidade e justiça Na Revolução Inglesa os pobres tinham certeza de que chegara o tempo do fim e se aproximava o milênio Viam os sinais do fim fome peste guerras eclipses cometas prodígios inexplicáveis que anunciavam a vinda do AntiCristo e exigiam que fosse combatido pelos justos e bons Em geral o AntiCristo era identificado à pessoa de um governante tirânico papas reis imperadores Contra ele os pobres se reuniam em comunidades igualitárias armavamse e partiam para a luta pois deveriam preparar o mundo para a chegada triunfal de Cristo que venceria definitivamente o AntiCristo A esperança milenarista sempre viu a luta política como conflagração cósmica entre a luz e a treva o justo e o injusto o bem e o mal Também na tradição libertária encontrase a obra de um jovem filósofo francês La Boétie escrita no século XVI depois da derrota popular contra os exércitos e fiscais do rei que vinham cobrar um novo imposto sobre o sal La Boétie indaga como é possível que burgos inteiros cidades inteiras nações inteiras se submetam à vontade de um só em geral o mais covarde e temeroso de todos De onde um só tira o poder para esmagar todos os outros Duas são as respostas Na primeira La Boétie mostra que não é por medo que obedecemos à vontade de um só mas porque desejamos a tirania Como explicar que o tirano cujo corpo é igual ao nosso tenha crescido tanto com mil olhos e mil ouvidos para nos espionar mil bocas para nos enganar mil mãos para nos esganar mil pés para nos pisotear Quem lhe deu os olhos e os ouvidos dos espiões as bocas dos magistrados as mãos e os pés dos soldados O próprio povo Convite à Filosofia 528 A sociedade é como uma imensa pirâmide de tiranetes que se esmagam uns aos outros o corpo do tirano é formado pelos seis que o aconselham pelos sessenta que protegem os seis pelos seiscentos que defendem os sessenta pelos seis mil que servem aos seiscentos e pelos seis milhões que obedecem aos seis mil na esperança de conseguir o poder para mandar em outros A primeira resposta nos diz que o poder de um só sobre todos foi dado ao tirano por nosso desejo de sermos tiranos também A segunda resposta porém vai mais fundo La Boétie indaga De onde vem o próprio desejo de tirania Do desejo de ter bens e riquezas do desejo de ser proprietário Mas de onde vem esse desejo de ter de posse Do desprezo pela liberdade Se desejássemos verdadeiramente a liberdade jamais a trocaríamos pela posse de bens que nos escravizam aos outros e nos submetem à vontade dos mais fortes e tiranos Ao trocar o direito à liberdade pelo desejo de posses aceitamos algo terrível a servidão voluntária Não somos obrigados a obedecer ao tirano e aos seus representantes mas desejamos voluntariamente servilos porque deles esperamos bens e a garantia de nossas posses Usamos nossa liberdade para nos tornarmos servos Como derrubar um tirano e reconquistar a liberdade A resposta de La Boétie é espantosa basta não dar ao tirano o que ele pede e exige Não é preciso tomar das armas e fazerlhe a guerra Basta que não seja dado o que este deseja e será derrubado Que quer ele Nossa consciência e nossa liberdade sob o desejo de posses e de mando Se não trocarmos nossa consciência pela posse de bens e se não trocarmos nossa liberdade pelo desejo de mando nada daremos ao tirano e sem poder ele cairá como um ídolo de barro Das lutas populares e das tradições libertárias nascem as teorias socialistas modernas As teorias socialistas São três as principais correntes socialistas modernas Vejamos a seguir o que cada uma defende Socialismo utópico Essa corrente socialista vê a classe trabalhadora como despossuída oprimida e geradora da riqueza social sem dela desfrutar Para ela os teóricos imaginam uma nova sociedade onde não existam a propriedade privada o lucro dos capitalistas a exploração do trabalho e a desigualdade econômica social e política Imaginam novas cidades organizadas em grandes cooperativas geridas pelos trabalhadores e nas quais haja escola para todos liberdade de pensamento e de expressão igualdade de direitos sociais moradia alimentação transporte saúde abundância e felicidade Marilena Chauí 529 As cidades são comunidades de pessoas livres e iguais que se autogovernam Por serem cidades perfeitas que não existem em parte alguma mas que serão criadas pela vontade livre dos despossuídos dizse que são cidades utópicas e as teorias que as criaram são chamadas de utopiasxx Os principais socialistas utópicos foram os franceses SaintSimon Fourier Proudhon Louis Blanc e Banqui e o inglês Owen Anarquismo O principal teórico dessa corrente socialista foi o russo Bakunin inspirado nas idéias socialistas de Proudhon Seu ponto de partida é a crítica do individualismo burguês e do Estado liberal considerado autoritário e antinatural Como Rousseau os anarquistas acreditam na liberdade natural e na bondade natural dos seres humanos e em sua capacidade para viver felizes em comunidades atribuindo a origem da sociedade os indivíduos isolados e em luta à propriedade privada e à exploração do trabalho e a origem do Estado ao poder dos mais fortes os proprietários privados sobre os fracos os trabalhadores Contra o artificialismo da sociedade e do Estado propõem o retorno à vida em comunidades autogovernadas sem a menor hierarquia e sem nenhuma autoridade com poder de mando e direção Afirmam dois grandes valores a liberdade e a responsabilidade em cujo nome propõem a descentralização social e política a participação direta de todos nas decisões da comunidade a formação de organizações de bairro de fábrica de educação moradia saúde transporte etc Propõem também que essas organizações comunitárias participativas formem federações nacionais e internacionais para a tomada de decisões globais evitando porém a forma parlamentar de representação e garantindo a democracia direta As comunidades e as organizações comunitárias enviam delegados às federações Os delegados são eleitos para um mandato referente exclusivamente ao assunto que será tratado pela assembléia da federação terminada a assembléia o mandato também termina de sorte que não há representantes permanentes Visto que o delegado possui um mandato para expor e defender perante a federação as opiniões e decisões de sua comunidade se não cumprir o que lhe foi delegado seu mandato será revogado e um outro delegado eleito Como se observa os anarquistas procuram impedir o surgimento de aparelhos de poder que conduzam à formação do Estado Recusam por isso a existência de exércitos profissionais e defendem a tese do povo armado ou das milícias populares que se formam numa emergência e se dissolvem tão logo o problema tenha sido resolvido Consideram o Estado nacional obra do autoritarismo e da opressão capitalista e por isso contra ele defendem o internacionalismo sem fronteiras pois só o capital tem pátria e os trabalhadores são cidadãos do mundo Convite à Filosofia 530 Os anarquistas são conhecidos como libertários pois lutam contra todas as formas de autoridade e de autoritarismo Além de Bakunin outros importantes anarquistas foram Kropotkin Ema Goldman Tolstoi Malatesta e George Orwell autor do livro 1984xxi Comunismo ou socialismo científico Crítico não só do Estado liberal mas também do socialismo utópico e do anarquismo Encontrase desenvolvido nas obras de Marx e Engels A perspectiva marxista Com a obra de Marx estamos colocados diante de um acontecimento comparável apenas ao de Maquiavel Embora suas teorias sejam completamente diferentes pois respondem a experiências históricas e a problemas diferentes ambos representam uma mudança decisiva no modo de conceber a política e a relação entre sociedade e poder Maquiavel desmistificou a teologia política e o republicanismo italiano que simplesmente pretendia imitar gregos e romanos Marx desmistificou a política liberal Marx parte da crítica da economia política A expressão economia política é curiosa Com efeito a palavra economia vem do grego oikonomia composta de dois vocábulos oikos e nomos Oikos é a casa ou família entendida como unidade de produção agricultura pastoreio edificações artesanato trocas de bens entre famílias ou trocas de bens por moeda etc Nomos significa regra acordo convencionado entre seres humanos e por eles respeitado nas relações sociais Oikonomia é portanto o conjunto de normas de administração da propriedade patrimonial ou privada dirigida pelo chefe da família o despotes Vimos que os gregos inventaram a política porque separaram o espaço privado a oikonomia e o espaço público das leis e do direito a polis Como então falar em economia política Os dois termos não se excluem reciprocamente A crítica da economia política consiste justamente em mostrar que apesar das afirmações grecoromanas e liberais de separação entre a esfera privada da propriedade e a esfera pública do poder a política jamais conseguiu realizar a diferença entre ambas Nem poderia O poder político sempre foi a maneira legal e jurídica pela qual a classe economicamente dominante de uma sociedade manteve seu domínio O aparato legal e jurídico apenas dissimula o essencial que o poder político existe como poderio dos economicamente poderosos para servir seus interesses e privilégios e garantirlhes a dominação social Divididas entre proprietários e nãoproprietários trabalhadores livres escravos servos as sociedades jamais foram comunidades de iguais e jamais permitiram que o poder político fosse compartilhado com os nãoproprietários Por que a expressão economia política tornouse possível na modernidade e doravante visível Porque a idéia moderna liberal de sociedade civil tornou Marilena Chauí 531 explícita a significação da economia política ainda que a ideologia liberal exista para esconder tal fato De fato a economia política surge como ciência no final do século XVIII e início do século XIX na França e na Inglaterra para combater as limitações que o Antigo Regime impunha ao capitalismo As restrições econômicas próprias da sociedade feudal e o controle da atividade mercantil pelo Estado monárquico eram vistos como prejudiciais ao desenvolvimento da riqueza das nações Baseandose nos mesmos princípios que criaram o liberalismo político a economia política é elaborada como liberalismo econômico Diferentemente dos gregos que definiram o homem como animal político e diferentemente dos medievais que definiram o homem como ser sociável a economia política define o homem como indivíduo que busca a satisfação de suas necessidades consumindo o que a Natureza lhe oferece ou trabalhando para obter riquezas e bemestar Por ser mais vantajosa aos indivíduos a vida em comum pactuam para criar a sociedade e o Estado As idéias de Estado de Natureza e de direito natural conduziram a duas noções essenciais à economia política a primeira é a noção de ordem natural racional que garante a todos os indivíduos a satisfação de suas necessidades e seu bem estar a segunda é a noção de que seja por bondade natural seja por egoísmo os homens agem em seu próprio benefício e interesse e assim fazendo contribuem para o bem coletivo ou social A propriedade privada é natural e útil socialmente além de legítima moralmente porque estimula o trabalho e combate o vício da preguiça A economia política buscará as leis dos fenômenos econômicos na natureza humana e os efeitos das causas econômicas sobre a vida social Visto que a ordem natural é racional e que os seres humanos possuem liberdade natural a economia política deverá garantir que a racionalidade natural e a liberdade humana se realizem por si mesmas sem entraves e sem limites Para alguns economistas políticos como Adam Smith a concorrência ou lei econômica da oferta e da procura é responsável pela riqueza social e pela harmonia entre interesse privado e interesse coletivo Para outros como David Ricardo as leis econômicas revelam antagonismos entre os vários interesses dos grupos sociais Assim por exemplo a diferença entre o preço das mercadorias e os salários indica uma oposição de interesses na sociedade de modo que a concorrência exprime esses conflitos sociais Em ambos os casos porém a economia se realiza como sociedade civil capaz de se autoregular sem que o Estado deva interferir na sua liberdade Donde o liberalismo econômico fundando o liberalismo político Marx indaga O que é a sociedade civil E responde Não é a manifestação de uma ordem natural racional nem o aglomerado conflitante de indivíduos famílias grupos e corporações cujos interesses antagônicos serão conciliados Convite à Filosofia 532 pelo contrato social que instituiria a ação reguladora e ordenadora do Estado expressão do interesse e da vontade gerais A sociedade civil é o sistema de relações sociais que organiza a produção econômica agricultura indústria e comércio realizandose através de instituições sociais encarregadas de reproduzilo família igrejas escolas polícia partidos políticos meios de comunicação etc É o espaço onde as relações sociais e suas formas econômicas e institucionais são pensadas interpretadas e representadas por um conjunto de idéias morais religiosas jurídicas pedagógicas artísticas científico filosóficas e políticas A sociedade civil é o processo de constituição e reposição das condições materiais da produção econômica pelas quais são engendradas as classes sociais os proprietários privados dos meios de produção e os trabalhadores ou não proprietários que vendem sua força de trabalho como mercadoria submetida à lei da oferta e da procura no mercado de mãodeobra Essas classes sociais são antagônicas e seus conflitos revelam uma contradição profunda entre os interesses irreconciliáveis de cada uma delas isto é a sociedade civil se realiza como luta de classes Sem dúvida os liberais estão certos quando afirmam que a sociedade civil por ser esfera econômica é a esfera dos interesses privados pois é exatamente isso o que ela é O que é porém o Estado Longe de diferenciarse da sociedade civil e de separarse dela longe de ser a expressão da vontade geral e do interesse geral o Estado é a expressão legal jurídica e policial dos interesses de uma classe social particular a classe dos proprietários privados dos meios de produção ou classe dominante E o Estado não é uma imposição divina aos homens nem é o resultado de um pacto ou contrato social mas é a maneira pela qual a classe dominante de uma época e de uma sociedade determinadas garante seus interesses e sua dominação sobre o todo social O Estado é a expressão política da luta econômicosocial das classes amortecida pelo aparato da ordem jurídica e da força pública policial e militar Não é mas aparece como um poder público distante e separado da sociedade civil Não por acaso o liberalismo define o Estado como garantidor do direito de propriedade privada e não por acaso reduz a cidadania aos direitos dos proprietários privados vimos que a ampliação da cidadania foi fruto de lutas populares contra as idéias e práticas liberais A economia portanto jamais deixou de ser política Simplesmente no capitalismo o vínculo interno e necessário entre economia e política tornouse evidente No entanto se perguntarmos às pessoas que vivem no Estado liberal capitalista se para elas é evidente tal vínculo certamente dirão que não Por que o vínculo Marilena Chauí 533 interno entre o poder econômico e o poder político permanece invisível aos olhos da maioria Marx faz duas indagações 1 Como surgiu o Estado Isto é como os homens passaram da submissão ao poder pessoal visível de um senhor à obediência ao poder impessoal invisível de um Estado 2 Por que o vínculo entre o poder econômico e o poder político não é percebido pela sociedade e sobretudo por que não é percebido pelos que não têm poder econômico nem político Antecedentes da teoria marxista Antes de examinarmos as respostas de Marx a essas indagações devemos lembrar um conjunto de idéias e de fatos existentes quando ele iniciou seu trabalho teórico Do ponto de vista dos fatos estamos na era do desenvolvimento do capitalismo industrial com a ampliação da capacidade tecnológica de domínio da Natureza pelo trabalho e pela técnica Essa ampliação aumenta também o campo de ação do capital que passa a absorver contingentes cada vez maiores de pessoas no mercado da mãodeobra e do consumo rumando para o mercado capitalista mundial A burguesia se organiza através do Estado liberal enquanto os trabalhadores industriais ou proletários se organizam em associações profissionais e sindicatos para as lutas econômicas salários jornada de trabalho sociais condições de vida e políticas reivindicação de cidadania Greves revoltas e revoluções eclodem em toda a parte as mais importantes vindo a ocorrer na França em 1830 1848 e 1871 No Brasil em 1858 eclode a primeira greve dos trabalhadores e em 1878 a primeira greve dos trabalhadores do campo em Amparo Estado de São Paulo Simultaneamente consolidase em alguns países ou iniciase em outros países o Estado nacional unificado e centralizado definido pela unidade territorial e pela identidade de língua religião raça e costumes O capital precisa de suportes territoriais e por isso leva à constituição das nações forçando pelas guerras e pelo direito internacional a delimitação e a garantia de fronteiras e pelo aparato jurídico policial e escolar a unidade de língua religião e costumes Em suma inventase a pátria ou nação sob a forma de Estado nacional Como se observa a nação não é natural nem existe desde sempre mas foi inventada pelo capitalismo no século XIX Do ponto de vista das idéias além das teorias liberais e socialistas e da economia política Hegel propõe uma filosofia política a filosofia do direito Convite à Filosofia 534 Hegel explica a gênese do Estado moderno sem recorrer à teoria do direito natural e do contrato social O Estado surge como superação nacional das limitações que bloqueavam o desenvolvimento do espírito humano o isolamento dos indivíduos na família e as lutas dos interesses privados na sociedade civil O Estado absorve e transforma a família e a sociedade civil numa totalidade racional mais alta e perfeita que exprime o interesse e a vontade gerais Por isso é a realização mais importante e a última da razão na História uma vez que supera os particularismos numa unidade universal que pelo direito garante a ordem a paz a moralidade a liberdade e a perfeição do espírito humano A História é a passagem da família à sociedade civil e desta ao Estado término do processo histórico Esse processo é concebido como realização da Cultura isto é da diferença e da separação entre Natureza e Espírito e como absorção da primeira pelo segundo O processo histórico é desenvolvimento da consciência que se torna cada vez mais consciente de si através das obras espirituais da Cultura isto é das idéias que se materializam em instituições sociais religiosas artísticas científicofilosóficas e políticas O Estado é a síntese final da criação racional ou espiritual expressão mais alta da Idéia ou do Espírito Liberalismo político liberalismo econômico ou economia política e idealismo político hegeliano formam o pano de fundo do pensamento de Marx voltado para a compreensão do capitalismo e das lutas proletárias Contra o liberalismo político Marx mostrará que a propriedade privada não é um direito natural e o Estado não é resultado de um contrato social Contra a economia política mostrará que a economia não é expressão de uma ordem natural racional Contra Hegel mostrará que o Estado não é a Idéia ou o Espírito encarnados no real e que a História não é o movimento da consciência e suas idéias Gênese da sociedade e do Estado Dissemos acima que Marx indaga como os homens passaram da submissão ao poder pessoal de um senhor à obediência ao poder impessoal do Estado Para responder a essa questão é preciso desvendar a gênese do Estado Os seres humanos escrevem Marx e Engels distinguemse dos animais não porque sejam dotados de consciência animais racionais nem porque sejam naturalmente sociáveis e políticos animais políticos mas porque são capazes de produzir as condições de sua existência material e intelectual Os seres humanos são produtores são o que produzem e são como produzem A produção das condições materiais e intelectuais da existência não são escolhidas livremente pelos seres humanos mas estão dadas objetivamente independentemente de nossa vontade Eis porque Marx diz que os homens fazem sua própria História mas não a fazem em condições escolhidas por eles São historicamente determinados pelas condições em que produzem suas vidas Marilena Chauí 535 A produção material e intelectual da existência humana depende de condições naturais as do meio ambiente e as biológicas da espécie humana e da procriação Esta não é apenas um dado biológico a diferença sexual necessária para a reprodução mas já é social pois decorre da maneira como se dá o intercâmbio e a cooperação entre os humanos e do modo como é simbolizada psicológica e culturalmente a diferença dos sexos Por seu turno a maneira como os humanos interpretam e realizam a diferença sexual determina o modo como farão a divisão social do trabalho distinguindo trabalhos masculinos femininos infantis e de velhice A produção e a reprodução das condições de existência se realizam portanto através do trabalho relação com a Natureza da divisão social do trabalho intercâmbio e cooperação da procriação sexualidade e instituição da família e do modo de apropriação da Natureza a propriedade Esse conjunto de condições forma em cada época a sociedade e o sistema das formas produtivas que a regulam segundo a divisão social do trabalho Essa divisão que começa na família com a diferença sexual das tarefas prossegue na distinção entre agricultura e pastoreio entre ambas e o comércio conduzindo à separação entre o campo e a cidade Em cada uma das distinções operam novas divisões sociais do trabalho A divisão social do trabalho não é uma simples divisão de tarefas mas a manifestação da existência da propriedade ou seja a separação entre as condições e os instrumentos do trabalho e o próprio trabalho incidindo a seguir sobre a forma de distribuição dos produtos do trabalho A propriedade introduz a existência dos meios de produção condições e instrumentos de trabalho como algo diferente das forças produtivas trabalho Analisando as diferentes formas de propriedade as diferentes formas de relação entre meios de produção e forças produtivas as diferentes formas de divisão social do trabalho decorrentes das formas de propriedade e das relações entre os meios de produção e as forças produtivas é possível perceber a seqüência do processo histórico e as diferentes modalidades de sociedade A propriedade começa como propriedade tribal e a sociedade tem a forma de uma comunidade baseada na família a comunidade é vista como a família ampliada à qual pertencem todos os membros do grupo Nela prevalece a hierarquia definida por tarefas funções poderes e consumo Essa forma da propriedade se transforma numa outra a propriedade estatal ou seja propriedade do Estado cujo dirigente determina o modo de relações dos sujeitos com ela em certos casos como na Índia na China na Pérsia o Estado é o proprietário único e permite as atividades econômicas mediante pagamento de tributos impostos e taxas em outros casos Grécia Roma o Estado cede mediante certas regras a propriedade às grandes famílias que se tornam proprietárias privadas Convite à Filosofia 536 A sociedade se divide agora entre senhores e escravos Nos grandes impérios orientais os senhores se ocupam da guerra e da religião na Grécia e em Roma tornamse cidadãos e ocupamse da política além de possuírem privilégios militares e religiosos vivem nas cidades e em luta permanente com os que permaneceram no campo bem como com os homens livres que trabalham nas atividades urbanas artesanato e comércio e com os escravos do campo e da cidade A terceira forma de propriedade é a feudal apresentandose como propriedade privada da terra pelos senhores e propriedade dos instrumentos de trabalho pelos artesãos livres membros das corporações dos burgos A terra é trabalhada por servos da gleba e a sociedade se estrutura pela divisão entre nobreza fundiária e servos no campo e artesãos livres e aprendizes na cidade Entre elas surge uma figura intermediária o comerciante As lutas entre comerciantes e nobres o desenvolvimento dos burgos do artesanato e da atividade comercial conduzem à mudança que conhecemos a propriedade privada capitalista Essa nova forma de propriedade possui características inéditas e é uma verdadeira revolução econômica porque realiza a separação integral entre proprietários dos meios de produção e forças produtivas isto é entre as condições e os instrumentos de trabalho e o próprio trabalho Os proprietários privados possuem meios condições e instrumentos do trabalho possuem o controle da distribuição e do consumo dos produtos No outro pólo social encontramse os trabalhadores como massa de assalariados inteiramente expropriada dos meios de produção possuindo apenas a força do trabalho colocada à disposição dos proprietários dos meios de produção no mercado de compra e venda da mãodeobra Essas diferentes formas da propriedade dos meios de produção e das relações com as forças produtivas ou de determinações sociais decorrentes da divisão social do trabalho constituem os modos de produção Marx e Engels observaram que a cada modo de produção a consciência dos seres humanos se transforma Descobriram que essas transformações constituem a maneira como em cada época a consciência interpreta compreende e representa para si mesma o que se passa nas condições materiais de produção e reprodução da existência Por esse motivo afirmaram que ao contrário do que se pensa não são as idéias humanas que movem a História mas são as condições históricas que produzem as idéias Na obra Contribuição à crítica da economia política Marx escreve O conjunto das relações de produção que corresponde ao grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais constitui a estrutura econômica da sociedade a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social O modo de reprodução de vida material Marilena Chauí 537 determina o desenvolvimento da vida social política e intelectual em geral Não é a consciência dos homens que determina o seu ser é o seu ser social que inversamente determina sua consciência É por afirmar que a sociedade se constitui a partir de condições materiais de produção e da divisão social do trabalho que as mudanças históricas são determinadas pelas modificações naquelas condições materiais e naquela divisão do trabalho e que a consciência humana é determinada a pensar as idéias que pensa por causa das condições materiais instituídas pela sociedade que o pensamento de Marx e Engels é chamado de materialismo histórico Materialismo porque somos o que as condições materiais as relações sociais de produção nos determinam a ser e a pensarxxii Histórico porque a sociedade e a política não surgem de decretos divinos nem nascem da ordem natural mas dependem da ação concreta dos seres humanos no tempo A História não é um progresso linear e contínuo uma seqüência de causas e efeitos mas um processo de transformações sociais determinadas pelas contradições entre os meios de produção a forma da propriedade e as forças produtivas o trabalho seus instrumentos as técnicas A luta de classes exprime tais contradições e é o motor da História Por afirmar que o processo histórico é movido por contradições sociais o materialismo histórico é dialéticoxxiii As relações sociais de produção não são responsáveis apenas pela gênese da sociedade mas também pela do Estado que Marx designa como superestrutura jurídica e política correspondente à estrutura econômica da sociedade Qual a gênese do Estado Conflitos entre proprietários privados dos meios de produção e contradições entre eles e os nãoproprietários escravos servos trabalhadores livres Os conflitos entre proprietários e as contradições entre proprietários e nãoproprietários aparecem para a consciência social sob a forma de conflitos e contradições entre interesses particulares e o interesse geral Aparecem dessa maneira mas não são realmente como aparecem Em outras palavras onde há propriedade privada há interesse privado e não pode haver interesse coletivo ou geral Os proprietários dos meios de produção podem ter interesses comuns pois necessitam do intercâmbio e da cooperação para manter e fazer crescer a propriedade de cada um Assim embora estejam em concorrência e competição precisam estabelecer certas regras pelas quais não se destruam reciprocamente nem às suas propriedades Sabem também que não poderão resolver as contradições com os não proprietários e que estes podem por revoltas e revoluções populares destruir a propriedade privada É preciso portanto que os interesses comuns entre os proprietários dos meios de produção e a força para dominar os nãoproprietários sejam estabelecidos de maneira tal que pareçam corretos legítimos e válidos para Convite à Filosofia 538 todos Para isso criam o Estado como poder separado da sociedade portador do direito e das leis dotado de força para usar a violência na repressão de tudo quanto pareça perigoso à estrutura econômica existente No caso do poder despótico a legitimação é feita pela divinização do senhor o detentor do poder um indivíduo uma família ou um grupo de famílias apresentase como filho de um humano e de uma divindade isto é o nascimento justifica o poderio No caso do poder teocrático a legitimação é feita pela sacralização do governante o detentor do poder o recebe diretamente de Deus No caso das repúblicas democracia grega o senado e o povo romano a legitimação é feita pela instituição do direito e das leis que definem quem pode ser cidadão e participar do governo Nos três casos a divisão social aparece como hierarquia divina eou natural que justifica a exclusão dos nãoproprietários do poder e sobretudo estabelece princípios divinos ou naturais para a submissão e a obediência transformadas em obrigações No caso do Estado moderno como vimos as idéias de Estado de Natureza direito natural contrato social e direito civil fundam o poder político na vontade dos proprietários dos meios de produção que se apresentam como indivíduos livres e iguais que transferem seus direitos naturais ao poder político instituindo a autoridade do Estado e das leis Eis por que o Estado precisa aparecer como expressão do interesse geral e não como senhorio particular de alguns poderosos Os nãoproprietários podem recusar como fizeram inúmeras vezes na História o poder pessoal visível de um senhor mas não o fazem quando se trata de um poder distante separado invisível e impessoal como o do Estado Julgando que este se encontra a serviço do bem comum da justiça da ordem da lei da paz e da segurança aceitam a dominação pois não a percebem como tal Resta a segunda indagação de Marx qual seja por que os sujeitos sociais não percebem o vínculo entre o poder econômico e o poder político A ideologia Quando citamos o texto da Contribuição à crítica da economia política vimos que Marx afirma que a consciência humana é sempre social e histórica isto é determinada pelas condições concretas de nossa existência Isso não significa porém que nossas idéias representem a realidade tal como esta é em si mesma Se assim fosse seria incompreensível que os seres humanos conhecendo as causas da exploração da dominação da miséria e da injustiça nada fizessem contra elas Nossas idéias historicamente determinadas têm a peculiaridade de nascer a partir de nossa experiência social direta A marca da experiência social é oferecerse como uma explicação da aparência das coisas como se esta fosse a essência das próprias coisas Marilena Chauí 539 Não só isso As aparências ou o aparecer social à consciência são aparências justamente porque nos oferecem o mundo de cabeça para baixo o que é causa parece ser efeito o que é efeito parece ser causa Isso não se dá apenas no plano da consciência individual mas sobretudo no da consciência social isto é no conjunto de idéias e explicações que uma sociedade oferece sobre si mesma Feuerbach como vimosxxiv estudara esse fenômeno na religião designandoo com o conceito de alienação Marx interessase por esse fenômeno porque o percebeu em outras esferas da vida social por exemplo na política que como analisamos há pouco leva os sujeitos sociais a aceitarem a dominação estatal porque não reconhecem quem são os verdadeiros criadores do Estado Ele o observou também na esfera da economia no capitalismo os trabalhadores produzem todos os objetos existentes no mercado todas as mercadorias após havêlas produzido as entregam aos proprietários dos meios de produção mediante um salário quando vão ao mercado não conseguem comprar essas mercadorias Olham os preços contam o dinheiro e voltam para casa de mãos vazias como se o preço das mercadorias existisse por si mesmo e como se elas estivessem à venda porque surgiram do nada e alguém as decidiu vender Em outras palavras os trabalhadores não só não se reconhecem como autores ou produtores das mercadorias mas ainda acreditam que elas valem o preço que custam e que não podem têlas porque valem mais do que eles Alienaram nos objetos seu próprio trabalho e não se reconhecem como produtores da riqueza e das coisas A inversão entre causa e efeito princípio e conseqüência condição e condicionado leva à produção de imagens e idéias que pretendem representar a realidade As imagens formam um imaginário social invertido um conjunto de representações sobre os seres humanos e suas relações sobre as coisas sobre o bem e o mal o justo e o injusto os bons e os maus costumes etc Tomadas como idéias essas imagens ou esse imaginário social constituem a ideologia A ideologia é um fenômeno históricosocial decorrente do modo de produção econômico À medida que numa formação social uma forma determinada da divisão social se estabiliza se fixa e se repete cada indivíduo passa a ter uma atividade determinada e exclusiva que lhe é atribuída pelo conjunto das relações sociais pelo estágio das forças produtivas e pela forma da propriedade Cada um por causa da fixidez e da repetição de seu lugar e de sua atividade tende a considerá los naturais por exemplo quando alguém julga que faz o que faz porque tem talento ou vocação natural para isso quando alguém julga que por natureza os negros foram feitos para serem escravos quando alguém julga que por natureza as mulheres foram feitas para a maternidade e o trabalho doméstico A naturalização surge sob a forma de idéias que afirmam que as coisas são como são porque é natural que assim sejam As relações sociais passam portanto a Convite à Filosofia 540 serem vistas como naturais existentes em si e por si e não como resultados da ação humana A naturalização é maneira pela qual as idéias produzem alienação social isto é a sociedade surge como uma força natural estranha e poderosa que faz com que tudo seja necessariamente como é Senhores por natureza escravos por natureza cidadãos por natureza proprietários por natureza assalariados por natureza etc A divisão social do trabalho iniciada na família prossegue na sociedade e à medida que esta se torna mais complexa leva a uma divisão entre dois tipos fundamentais de trabalho o trabalho material de produção de coisas e o trabalho intelectual de produção de idéias No início essa segunda forma de trabalho social é privilégio dos sacerdotes depois tornase função de professores e escritores artistas e cientistas pensadores e filósofos Os que produzem idéias separamse dos que produzem coisas formando um grupo à parte Pouco a pouco à medida que vão ficando cada vez mais distantes e separados dos trabalhadores materiais os que pensam começam a acreditar que a consciência e o pensamento estão em si e por si mesmos separados das coisas materiais existindo em si e por si mesmos Passam a acreditar na independência entre a consciência e o mundo material entre o pensamento e as coisas produzidas socialmente Conferem autonomia à consciência e às idéias e finalmente julgam que as idéias não só explicam a realidade mas produzem o real Surge a ideologia como crença na autonomia das idéias e na capacidade de as idéias criarem a realidade Ora o grupo dos que pensam sacerdotes professores artistas filósofos cientistas não nasceu do nada Nasceu não só da divisão social do trabalho mas também de uma divisão no interior da classe dos proprietários ou classe dominante de uma sociedade Como conseqüência o grupo pensante os intelectuais pensa com as idéias dos dominantes julga porém que tais idéias são verdadeiras em si mesmas e transformam idéias de uma classe social determinada em idéias universais e necessárias válidas para a sociedade inteira Como o grupo pensante domina a consciência social tem o poder de transmitir as idéias dominantes para toda a sociedade através da religião das artes da escola da ciência da filosofia dos costumes das leis e do direito moldando a consciência de todas as classes sociais e uniformizando o pensamento de todas as classes Os ideólogos são membros da classe dominante e das classes aliadas a ela que como intelectuais sistematizam as imagens e as idéias sociais da classe dominante em representações coletivas gerais e universais Essas imagens e idéias não exprimem a realidade social mas representam a aparência social do ponto de vista dos dominantes São consideradas realidades autônomas que produzem a realidade material ou social São imagens e idéias postas como universais abstratos uma vez que concretamente não correspondem à Marilena Chauí 541 realidade social dividida em classes sociais antagônicas Assim por exemplo existem na sociedade concretamente capitalistas e trabalhadores mas na ideologia aparece abstratamente o Homem A ideologia tornase propriamente ideologia quando não aparece sob a forma do mito da religião e da teologia Com efeito nestes a explicação sobre a origem dos seres humanos da sociedade e do poder político encontra a causa fora e antes dos próprios humanos e de sua ação localizando a causa originária nas divindades A ideologia propriamente dita surge quando no lugar das divindades encontramos as idéias o Homem a Pátria a Família a Escola o Progresso a Ciência o Estado o Bem o Justo etc Com isso podemos dizer que a ideologia é um fenômeno moderno substituindo o papel que antes dela tinham os mitos e as teologias Com a ideologia a explicação sobre a origem dos homens da sociedade e da política encontrase nas ações humanas entendidas como manifestação da consciência ou das idéias Assim por exemplo julgar que o Estado se origina das idéias de Estado de Natureza direito natural contrato social e direito civil é supor que a consciência humana independentemente das condições históricas materiais pensou nessas idéias julgouas corretas e passou a agir por elas criando a realidade designada e representada por elas Que faz a ideologia Oferece a uma sociedade dividida em classes sociais antagônicas e que vivem na forma da luta de classes uma imagem que permita a unificação e a identificação social uma língua uma religião uma raça uma nação uma pátria um Estado uma humanidade mesmos costumes Assim a função primordial da ideologia é ocultar a origem da sociedade relações de produção como relações entre meios de produção e forças produtivas sob a divisão social do trabalho dissimular a presença da luta de classes domínio e exploração dos nãoproprietários pelos proprietários privados dos meios de produção negar as desigualdades sociais são imaginadas como se fossem conseqüência de talentos diferentes da preguiça ou da disciplina laboriosa e oferecer a imagem ilusória da comunidade o Estado originada do contrato social entre homens livres e iguais A ideologia é a lógica da dominação social e política Porque nascemos e somos criados com essas idéias e nesse imaginário social não percebemos a verdadeira natureza de classe do Estado A resposta à segunda pergunta de Marx qual seja por que a sociedade não percebe o vínculo interno entre poder econômico e poder político pode ser respondida agora por causa da ideologia Práxis e revolução Quando estudamos a ética vimos Aristóteles estabelecer uma distinção que foi mantida no pensamento ocidental a diferença entre poiesis ação fabricadora o trabalho e as técnicas e praxis a ação livre do agente moral e do sujeito Convite à Filosofia 542 político Vimos também que Aristóteles valorizava muito mais a praxis do que a poiesis o que é compreensível De fato a sociedade grega onde vivia Aristóteles era escravista desvalorizando o trabalho como atividade inferior se comparada à ação livre do cidadão isto é dos proprietários de terra do artesanato e do comércio Liberdade diziam gregos e romanos é não precisar ocuparse com as atividades de sobrevivência mas dispor de ócio para cuidar da coisa pública O desprezo pelo trabalho aparece em vários sintomas significativos não há na língua grega uma palavra para significar trabalho usase a palavra ergon obra ou a palavra ponos esforço penoso e doloroso a palavra latina de onde trabalho deriva é tripalium um instrumento de três estacas destinado a prender bois e cavalos difíceis de ferrar portanto um instrumento de tortura A outra palavra latina empregada para designar o trabalho é labor que corresponde ao grego ponos portanto indica pena fadiga cansaço dor e é nesse sentido que se fala em trabalho de parto Os homens livres dispõem de otium lazer e os não livres estão no negotium negação de ócio trabalho O protestantismo o capitalismo e o liberalismo não podem manter essa imagem do homem livre como homem desocupado porque como vimos fazem o direito de propriedade repousar sobre o trabalho trabalho de Deus fazendo o mundo propriedade do artífice divino trabalho do homem instituindo a legitimidade da propriedade privada dos meios de produção isto é das condições materiais do trabalho O negócio negotium é a alma do capitalismo No entanto algo curioso acontece Apesar da valorização do trabalho e apesar da ideologia do direito natural que afirma serem todos os homens livres e iguais no momento de definir quem tem direito ao poder político a classe dominante como vimos esquece a dignidade do trabalho e declara o poder político um direito exclusivo dos homens independentes ou livres isto é dos que não dependem de outros para viver Em outras palavras dos que não precisam trabalhar Do ponto de vista moral valorizase o trabalho é ele que disciplina os apetites e desejos imoderados dos seres humanos mas do ponto de vista político ele não tem valor algum Na política a praxis continua sendo a greco romana Marx critica a ideologia da praxis liberal e a concepção protestante do trabalho como esforço disciplina e controle moral dos indivíduos O ser humano é praxis Esta é social e histórica É o trabalho Que é o trabalho O trabalho como vimos ao estudar o conceito de Cultura é a relação dos seres humanos com a Natureza e entre si na produção das condições de sua existência Pelo trabalho os seres humanos não consomem diretamente a Natureza nem se apropriam diretamente dela mas a transformam em algo humano também Marilena Chauí 543 A subjetividade humana se exprime num objeto produzido por ela e a objetividade do produto é a materialização externa da subjetividade Pelo trabalho os seres humanos estendem sua humanidade à Natureza É nesse sentido que o trabalho é praxis ação em que o agente e o produto de sua ação são idênticos pois o agente se exterioriza na ação produtora e no produto ao mesmo tempo em que este interioriza uma capacidade criadora humana ou a subjetividade Vimos que para Marx nossa consciência é determinada pelas condições históricas em que vivemos Vimos também que para ele os seres humanos fazem a sua própria História são os sujeitos práticos dela mas não a fazem em condições escolhidas voluntariamente por eles Isso significa que a praxis se realiza em condições históricas dadas e como sabemos as condições são postas pela divisão social do trabalho pelas relações de produção relação entre meios de produção e forças produtivas portanto pela forma da propriedade e pela divisão social das classes Vimos enfim que embora a consciência seja determinada pelas condições materiais em que vive as idéias não representam a realidade tal como é e sim tal como aparece dando ensejo ao surgimento do imaginário social e com a divisão entre trabalho material e intelectual ao surgimento da ideologia No caso do modo de produção capitalista a ideologia utiliza a idéia do trabalho de duas maneiras A primeira como vimos é o emprego dessa idéia para legitimar a propriedade privada capitalista A segunda é seu uso para legitimar a idéia de contrato social e de contrato de trabalho Com efeito a idéia de contrato vem do Direito Romano que exige para validar uma relação contratual que as partes contratantes sejam livres e iguais Para afirmar que a sociedade e o Estado nascem de um contrato social a ideologia burguesa precisa afirmar que todos os homens nascem livres e iguais embora a Natureza os faça desiguais em talentos e a sociedade os faça desiguais economicamente A ideologia burguesa precisa portanto da idéia de trabalhador livre Por sua vez o salário só aparecerá como legítimo se resultar de um contrato de trabalho entre os iguais e livres Segundo Marx o capitalismo efetivamente produziu o trabalhador livre está despojado de todos os meios e instrumentos de produção de todas as posses e propriedades restandolhe apenas a liberdade de vender sua força de trabalho O trabalhador que a ideologia designa como trabalhador livre é o trabalhador realmente expropriado o assalariado submetido às regras do modo de produção capitalista convencido de que o contrato de trabalho torna seu salário legal legítimo e justo Assim num primeiro momento o quadro oferecido por Marx é pessimista Embora o ser humano seja praxis e esta seja o trabalho o processo histórico desfigura o trabalho e o trabalhador aliena os trabalhadores que não se Convite à Filosofia 544 reconhecem nos produtos de seus trabalhos A ideologia burguesa por sua vez cria a idéia de Homem Universal livre e igual dálhe o rosto dos proprietários privados dos meios de produção e persuade os trabalhadores de que também são esse Homem Universal embora vivam miseravelmente No entanto se a praxis é socialmente determinada se a consciência é determinada pelas condições sociais do trabalho nem tudo está perdido Pelo contrário Diferentemente de outros modos de produção nos quais os trabalhadores escravos servos e homens livres trabalhavam isoladamente e não podiam perceberse formando uma classe social no capitalismo industrial as condições de trabalho as fábricas as grandes empresas comerciais os grandes bancos etc forçam os trabalhadores a trabalhar juntos e a conviver em seu local de trabalho Podem por isso perceber que há classes sociais cujos interesses não são os mesmos e sim contrários e podem ver diariamente que o que a ideologia lhes ensina como verdade é falso Por exemplo a ideologia lhes diz que são livres mas não têm liberdade para escolher o ofício para definir o salário para fixar a jornada de trabalho A ideologia lhes diz que todos os homens são iguais mas percebem que não podem ter moradia vestuário transporte educação saúde como os seus patrões Assim pelas próprias condições de sua praxis cotidiana têm condições para duvidar do que lhes é dito e ensinado São porém capazes de algo mais O capital é uma propriedade privada diferente de todas as outras que existiram na História De fato as outras formas de propriedade davam riquezas aos seus proprietários mas não davam lucro Com o lucro obtido na venda dos produtos do trabalho o capital se acumula cresce se desenvolve e se amplia Pela primeira vez na História surge uma forma da propriedade privada capaz de aumentar e desenvolverse Os trabalhadores podem afinal perguntar de onde vem a capacidade espantosa de crescimento do capital Dizem os ideólogos que esse aumento vem do comércio cujos lucros são investidos na produção Nesse caso por que os capitalistas não investem tudo no comércio em vez de investir prioritariamente na indústria e na agroindústria É que o lucro não vem da comercialização dos produtos para o consumo mas nasce na própria esfera da produção isto é resulta da divisão social do trabalho e do tempo socialmente necessário para produzir alguma coisa O que é o modo de produção capitalista A produção de mercadorias isto é de produtos cujo valor não é determinado por seu uso mas pelo seu valor de troca Este é determinado pelo custo total para produzir uma mercadoria custo da matériaprima dos instrumentos de trabalho dos conhecimentos técnicos e dos salários custo calculado a partir do tempo socialmente necessário para produzi la horas de trabalho horas de transporte horas de descanso para reposição das Marilena Chauí 545 forças horas necessárias para a extração da matériaprima e seu transporte horas necessárias para a fabricação das máquinas e outros instrumentos de trabalho etc Quem produz as mercadorias Os trabalhadores assalariados que vendem sua força de trabalho aos proprietários privados dos meios de produção Como as vendem Como uma mercadoria entre outras Qual o procedimento que regula a compra e venda da tal força de trabalho O contrato de trabalho que sendo um contrato pressupõe que as partes contratantes são livres e iguais e portanto que é por livre e espontânea vontade que o trabalhador vende sua força de trabalho pelo salário O que é o salário O que é pago ao trabalhador para garantir sua subsistência e a reprodução de sua força de trabalho alimentação moradia vestuário e condições para procriar Quanto vale a mercadoriatrabalhador isto é quanto vale o salário A economia política afirma que o salário corresponde aos custos e ao preço da produção de uma mercadoria Calculase assim o que o trabalhador precisa para manterse e reproduzirse deduzindose esse montante do custo total da produção e determinando o salário Na realidade porém não é o que ocorre Para produzir uma determinada mercadoria um trabalhador precisa de um certo número de horas suponhamos por exemplo quatro horas e seu salário será calculado a partir desse tempo entretanto o trabalhador trabalha durante muito mais tempo suponhamos por exemplo oito horas e conseqüentemente produz muito mais mercadorias estas porém não são computadas para o cálculo do salário de modo que há um trabalho excedente não pago isto é não coberto pelo salário Esse procedimento ocorre em toda a indústria na agricultura e no comércio de maneira que a massa social dos salários de todos os assalariados corresponde apenas a uma parte do tempo socialmente necessário para a produção das mercadorias A outra parte permanece não paga formando uma gigantesca massa social de maisvalia o valor do trabalho excedente não pago É a maisvalia que forma o lucro que será investido para aumentar o capital Assim essa propriedade privada espantosa o capital que parece magia porque parece crescer sozinho aumentando como se possuísse um fermento interno na realidade se acumula e se reproduz se amplia e se estende mundo afora porque se funda na exploração social da massa dos assalariados Se os trabalhadores puderem descobrir pela compreensão do processo de trabalho que formam uma classe social oposta aos senhores do capital que estes retiram o lucro da exploração do trabalho que sem o trabalho não pago não haveria capital e que a ideologia e o Estado capitalistas existem para impedilos de tal percepção se puderem compreender isso sua consciência será conhecimento verdadeiro da praxis social Terão a ciência de sua praxis Convite à Filosofia 546 Se tiverem essa ciência se conseguirem unirse e organizarse para transformar a sociedade e criar outra sem a divisão e a luta de classes passarão à praxis política Visto que a burguesia dispõe de todos os recursos materiais intelectuais jurídicos políticos e militares para conservar o poderio econômico e estatal buscará impedir a praxis política dos trabalhadores e estes não terão outra saída senão aquela que sempre foi usada pelas classes populares insubmissas e radicais a revolução A teoria marxista da revolução não se confunde portanto com as teorias utópicas e libertárias porque não se baseia na miséria na infelicidade e na injustiça a que estão submetidos os trabalhadores mas se fundamenta na análise científica da sociedade capitalista nas leis do capital ou da economia política e nela encontra os modos pelos quais os trabalhadores realizam sua própria emancipação Por isso Marx e Engels disseram que a emancipação dos trabalhadores terá que ser obra histórica dos próprios trabalhadores A sociedade comunista sem propriedade privada dos meios de produção sem classes sociais sem exploração do trabalho sem poder estatal livre e igualitária resulta portanto da praxis revolucionária da classe trabalhadora Num célebre panfleto político o Manifesto comunista que conclamava os proletários do mundo todo a se unir e a se organizar para a longa luta contra o capital Marx e Engels consideravam que a fase final do combate proletário seria a revolução e que esta antes de chegar à sociedade comunista teria que demolir o aparato estatal jurídico burocrático policial e militar burguês Essa demolição foi designada por eles com a expressão ditadura do proletariado tomando a palavra ditadura do vocabulário político dos romanos Estes toda vez que Roma atravessava uma crise que poderia destruíla convocavam um homem ilustre e lhe davam por um período determinado o poder para refazer as leis e punir os inimigos de Roma retirandolhe o poder assim que a crise estivesse superada A ditadura do proletariado seria um breve período de tempo em que não existindo ainda a sociedade sem Estado e já não existindo o Estado burguês os proletários portanto uma classe social governariam no sentido de desfazer todos os mecanismos econômicos e políticos responsáveis pela existência de classes sociais e portanto causadores da exploração social Julgava Marx que essa seria a última revolução popular Por que a última Porque aboliria a causa de todas as revoluções que as anteriores não haviam conseguido abolir a propriedade privada dos meios de produção Só assim o trabalho poderia ser verdadeiramente praxis humana criadora Marilena Chauí 547 Capítulo 11 A questão democrática As experiências totalitárias fascismo e nazismo O século XX durante os decênios de 19201940 viu acontecer uma experiência política sem precedentes o totalitarismo realizado por duas práticas políticas o fascismo originado na Itália e o nazismo ou nacionalsocialismo originado na Alemanha A Alemanha derrotada na Primeira Guerra Mundial perde territórios e é obrigada a pagar somas vultosas aos vencedores para ressarcilos dos prejuízos da guerra A economia está destroçada reinam o desemprego a recessão e a inflação galopante A crise toma proporções excessivas quando em 1929 a Bolsa de Valores de Nova York quebra levando à ruína boa parte do capital mundial Partindo da crítica marxista ao liberalismo mas recusando a idéia de revolução proletária comunista o austríaco Adolf Hitler se oferece à burguesia e à classe média para salválas da revolução operária Propõe o reerguimento da Alemanha através do fortalecimento do Estado do nacionalismo geopolítico a nação é o espaço vital do povo que deve conquistar e manter territórios necessários ao seu desenvolvimento econômico e da aliança com os setores conservadores do capital industrial e sobretudo do capital financeiro Hitler é eleito em eleições livres e diretas para o parlamento e a seguir dá o golpe de Estado nazista A Itália embora estivesse do lado dos vencedores da Primeira Guerra Mundial ficou insatisfeita com as compensações que lhe foram dadas e ao mesmo tempo tentava manterse economicamente pela exploração de colônias na África Benito Mussolini como Hitler partiu da crítica marxista ao liberalismo mas como Hitler recusava a idéia de revolução proletária comunista Em vez dela propôs o fortalecimento do Estado nacional a aliança com setores conservadores do capital industrial e financeiro a guerra de conquista de territórios e o nacionalismo baseado nas glórias do antigo Império Romano Por que nazismo Essa palavra é a abreviação do nome de um partido político ao qual Hitler se filiou Inicialmente o partido denominavase Partido Operário Alemão mas Hitler propôs que fosse denominado Partido Operário Alemão NacionalSocialista Nationalsozialistische Nazi Operário para indicar a oposição aos liberais mas nacionalsocialista para indicar a oposição aos comunistas e socialistas críticos do nacionalismo por ser uma ideologia necessária ao capital Convite à Filosofia 548 A palavra fascismo foi inventada por Mussolini a partir do vocábulo italiano fascio feixe É dupla a significação do fascio por um lado referese ao conjunto de machados reunidos por meio de um feixe de varas carregados por funcionários que precediam a aparição pública dos magistrados na antiga Roma os machados significando o poder do Estado para decapitar criminosos e as varas a unidade do povo romano em torno do Estado por outro lado referese a uma tradição popular do século XIX em que certas comunidades lutando por seus interesses e direitos simbolizavam sua luta e unidade pelos fasci Mussolini se apropria do símbolo romano e popular criando por toda a Itália os fasci de combate Embora de origem e significação diferentes nazismo e fascismo possuem aspectos comuns o antiliberalismo não como afirmação do socialismo e sim como defesa da total intervenção do Estado na economia e na sociedade civil Em sua fase inicial ambos se apresentam contra a ordem burguesa e conseguem a adesão da maioria da classe trabalhadora que sofria as misérias da recessão e do desemprego a colaboração de classe afirmação de que o capital e o trabalho não são contrários nem contraditórios mas podem e devem colaborar em harmonia para o bem da coletividade No lugar das classes sociais propõem e criam as corporações de ofício e de categoria de modo a ocultar a divisão entre o capital e o trabalho A idéia de Estado Corporativo havia sido elaborada pela Igreja Católica e exposta na bula do papa Leão XIII Rerum Novarum escrita contra socialistas e comunistas aliança com o capital industrial monopolista e financeiro isto é com os setores do capital cuja vocação é imperialista exigindo a conquista de novos territórios para a ampliação do mercado e o acúmulo do capital nacionalismo a realidade social é a Nação entendida como unidade territorial e identidade racial lingüística de costumes e tradições A nação é o espírito do povo a pátriamãe dos antepassados de sangue una única e indivisa corporativismo a sociedade como propunha o papa Leão XIII deve ser organizada pelo Estado sob a forma de corporações do trabalho e do capital hierarquizadas por suas funções e harmonizadas pela política econômica do Estado partido único que organiza as massas em lugar de classes sociais a nação é vista como constituída pelo povo e este é a massa organizada pelo partido único que a exprime e representa O partido organiza a sociedade não só em sindicatos corporativos mas também em associações de jovens de mulheres de crianças de artistas de escritores de cientistas de bairro de ginástica e dança de música etc A relação entre a sociedade a nação e o Estado é feita pela mediação do partido Marilena Chauí 549 ideologia de classe média no modo de produção capitalista há uma camada social que não é proletáriacamponesa nem é proprietária privada dos meios de produção não é burguesa tratase da classe média constituída por comerciantes profissionais liberais intelectuais artistas artesãos independentes e funcionários públicos Essa classe valoriza os valores e os costumes da burguesia e teme a proletarização sendo por isso antisocialista e anticomunista Embora admire a burguesia sente rancor por não possuir a riqueza e os privilégios burgueses Com efeito a classe média acredita no individualismo competitivo na idéia do homem que se faz sozinho graças à disciplina à boa família aos bons costumes e ao trabalho Mas ao contrário de suas expectativas não consegue apesar dos esforços subir na vida e responsabiliza a cobiça dos ricos por sua situação inferiorizada atribuindoa à desordem do liberalismo Por essas características a classe média é conservadora e reacionária tendo predileção por propostas políticas que lhe prometam organizar o Estado e a economia de tal modo que desapareçam o liberalismo e o risco do socialismocomunismo É o destinatário privilegiado e preferido do nazismo e do fascismo imperialismo belicista pela aliança com o capital monopolista e financeiro pela ideologia nacionalista expansionista pela ideologia de classe média que espera das conquistas militares melhoria de suas condições sociais nazismo e fascismo são políticas de guerra e de conquista Hitler falará do sangue germânico que corre nas veias dos povos da Europa central e deverá ser reconduzido à mãepátria alemã pela guerra Mussolini falará nas glórias do Império Romano e em sua reconquista pelas guerras italianas educação moral e cívica para garantir a adesão das massas à ideologia nazi fascista o Estado introduz a educação moral e cívica pela qual crianças e adolescentes aprenderão os valores nazifascistas de pátria disciplina força do caráter formação de corpos belos saudáveis poderosos necessários aos guerreiros dos novos impérios propaganda de massa o nazifascismo introduz pela primeira vez na História a prática hoje cotidiana e banal da propaganda dirigida às massas Essa propaganda é política voltada para a manifestação de sentimentos emoções e paixões desvalorizando a razão o pensamento e a consciência crítica Por meio do rádio e da imprensa de cartazes desfiles bandas jogos atléticos filmes o nazifascismo procura incutir na massa a devoção incondicional à pátria e aos chefes o amor à hierarquia à disciplina e à guerra prática da censura e da delação o Estado através do partido das associações e de aparelhos especializados policiais e militares controla o pensamento as ciências e as artes por meio da censura queimando livros e obras de arte contrários à pátria e aos chefes prendendo e torturando os dissidentes perseguindo os inimigos internos Estimula também sobretudo em crianças e Convite à Filosofia 550 jovens a prática da delação contra os dissidentes desviantes e inimigos internos do Estado racismo menos forte no fascismo é um componente essencial do nazismo que inventa a idéia de raça ariana ou raça nórdica superior a todas as outras devendo conquistar algumas para que a sirvam e aniquilar outras porque inservíveis e perigosas A idéia de aniquilação das raças inferiores faz do genocídio uma política do Estado O nazismo considerou os negros africanos poloneses tchecos húngaros romenos croatas sérvios e demais brancos europeus como raças inferiores a serem conquistadas Considerou ciganos e judeus como raças a serem eliminadas exterminou seis milhões de judeus estatismo contra o Estado liberal considerado caótico e contra as revoluções socialistas e comunistas que recusam o Estado o nazifascismo cria o Estado forte centralizado administrativamente militarizado que controla toda a sociedade por meio do partido das milícias de jovens da educação moral e cívica da propaganda da censura e da delação Existe apenas o Estado como totalidade que engloba em seu interior o todo da sociedade Totalitarismo portanto significa Estado total que absorve em seu interior e em sua organização o todo da sociedade e suas instituições controlandoa por inteiro O nazifascismo proliferou por toda a parte Foi vitorioso não apenas na Itália e na Alemanha mas com variações tomou o poder na Espanha de Franco em Portugal com Salazar e em vários países da Europa Oriental Conseguiu ter partidos significativos em países como França Ação Francesa Inglaterra Bélgica Áustria Argentina No Brasil deu origem à Ação Integralista Brasileira criada por Plínio Salgado A Revolução de Outubro Em outubro de 1917 contra toda expectativa marxista tem lugar a Revolução Russa sob a liderança do Partido Bolchevique Por que contra toda expectativa marxista Porque Marx julgara que a revolução proletária só poderia realizarse quando as contradições internas ao capitalismo esgotassem as possibilidades econômicas e políticas da burguesia e o proletariado através da revolução instaurasse a nova sociedade comunista Em termos marxistas a revolução proletária deveria acontecer nos países de capitalismo avançado como a Inglaterra a França a Alemanha Era essencial para a teoria da praxis revolucionária o pleno desenvolvimento do capitalismo pois isso significava que a infraestrutura econômica o avanço tecnológico e o grau de organização da classe trabalhadora preparariam a grande mudança histórica Não era concebível portanto a revolução na Rússia que vivia sob o Antigo Regime a monarquia por direito divino absoluta ou czarista era majoritariamente précapitalista com pequeno desenvolvimento do Marilena Chauí 551 capitalismo em alguns centros urbanos promovido não pela burguesia quase inexistente mas pelo próprio Estado e pelo capital externo inglês francês e alemão sem forte consciência e organização proletárias Foi ali porém que aconteceu a primeira revolução proletária antecedida por duas revoluções menores a de 1905 que instaurou o parlamento com partidos políticos da burguesia liberal e a de fevereiro de 1917 que proclamou a república e convocou uma assembléia constituinte mas cujo governo provisório não realizou as reformas prometidas e prosseguiu na guerra contra a Alemanha provocando reação popular e rebelião das tropas Nas circunstâncias russas o grande sujeito revolucionário não pôde ser a classe proletária organizada mas teve que ser uma vanguarda política liderada por intelectuais acostumados às lutas clandestinas o Partido Bolchevique ou a fração majoritária do Partido SocialDemocrata que iria tornarse o Partido Comunista Russo Que dificuldades enfrentou a Revolução de Outubro as dificuldades previsíveis que toda revolução comunista enfrentaria isto é a reação militar e econômica do capital sob a forma de guerra civil e de boicote econômico internacional a existência da Primeira Guerra Mundial que não só depauperou a precária economia russa mas também permitiu que os poderes capitalistas enviassem tropas para auxiliar a contrarevolução o chamado Exército dos Brancos o fracasso da revolução comunista alemã em 1919 da qual se esperava não só apoio para o desenvolvimento da sociedade socialista russa mas também que fosse o estopim da revolução proletária mundial esta se ocorresse livraria a revolução russa do isolamento do boicote capitalista internacional e da ameaça permanente de invasão militar capitalista a ausência de forte consciência política e organização operárias num país majoritariamente camponês e no qual as atividades políticas tinham sido necessariamente obra de grupos clandestinos formados sobretudo por intelectuais e estudantes O contingente revolucionário mais significativo que os bolcheviques conseguiram não veio do proletariado organizado mas das tropas exército e marinha rebeladas contra a guerra mundial iniciada em 1914 A militarização inevitável em toda revolução no caso da russa institucionalizouse como organização do Partido Bolchevique a ausência de economia capitalista desenvolvida que houvesse preparado a infraestrutura econômica e a organização sociopolítica para a nova sociedade A revolução teve que realizar duas revoluções numa só a burguesa de destruição do Antigo Regime e a comunista contra a burguesia Essa situação mais a ruína econômica causada pela guerra e pela continuação da guerra civil bem como o boicote do capitalismo internacional obrigaram ao chamado comunismo de Convite à Filosofia 552 guerra que transformou a ditadura do proletariado em ditadura do Partido Bolchevique para a instauração de uma nova forma inesperada de capitalismo o capitalismo de Estado considerado etapa socialista para a futura sociedade comunista Em outras palavras a estatização da economia substituiu a abolição do Estado prevista pelo Manifesto comunista Assenhoreandose do Estado o Partido Bolchevique criou um poderoso aparato militar e burocrático que evidentemente entrou em conflito com os conselhos populares de operários camponeses e soldados os sovietes pois estes haviamse organizado para realizar o autogoverno de uma sociedade sem Estado Os sovietes foram sendo dizimados e substituídos por órgãos do Partido Bolchevique deles restando apenas o nome que seria colado ao de república socialista República Socialista Soviética Em 1923 o Partido Bolchevique está profundamente dividido entre a posição de Trotski que critica a burocratização e propõe a tese da revolução permanente e a de Stalin que conseguira galgar o posto de secretáriogeral do partido acumulando enormes poderes em suas mãos Doente Lênin escreve um testamento político no qual sugere o afastamento de Stalin alertando para o perigo de seu autoritarismo Não foi porém atendido Morre em janeiro de 1924 Valendose do cargo e colocando a direção partidária contra Trotski Stalin assume o poder do Estado Sob sua orientação embora ficasse nos bastidores as principais lideranças da revolução foram expulsas do partido Trotski foi banido e em 1940 assassinado por um agente stalinista no México Com a tese socialismo num só país portanto oposta à tese marxista do internacionalismo proletário e da revolução mundial Stalin implanta à força a coletivização da economia sob a direção do Estado e do partido Exerce controle militar policial e ideológico sobre toda a sociedade institui o culto à personalidade e em 1936 começa os grandes expurgos políticos conhecidos como processos de Moscou Sempre nos bastidores conseguiu que seus aliados forjassem todo tipo de acusação contra lideranças políticas de oposição levandoas à condenação à morte ou à prisão perpétua em campos de concentração Fortaleceu a polícia secreta e consolidou o totalitarismo Além da coletivização econômica planejou a economia para investimentos na indústria pesada sacrificando a produção de bens de consumo e os serviços públicos sociais Prevendo a Segunda Guerra Mundial orientou a economia para a indústria bélica química pesada e energia elétrica produzindo às custas de enormes sacrifícios e privações da população o maior crescimento econômico da história da Rússia que se tornou potência econômica e militar mundial O totalitarismo stalinista Embora o totalitarismo russo esteja ligado indissoluvelmente ao nome de Stalin isso não significa que tenha terminado com sua morte Marilena Chauí 553 Até a chamada glasnost transparência proposta nos anos 80 por Gorbatchev existiu o stalinismo sem Stalin ou seja o totalitarismo Muitos traços do stalinismo são semelhantes aos do nazifascismo centralização estatal partido único com controle total sobre a sociedade militarização nacionalismo imperialismo censura do pensamento e da expressão propaganda estatal no lugar da informação campos de concentração invenção contínua dos inimigos internos mas a diferença fundamental e trágica entre eles está no fato de que o stalinismo sufocou a primeira revolução proletária e deformou profundamente o marxismo marcando com o selo totalitário os partidos comunistas do mundo inteiro As grandes teses de Marx foram destruídas pelas teses stalinistas à tese marxista da revolução proletária mundial o stalinismo contrapôs a tese do socialismo num só país transformandoa em diretriz obrigatória para os partidos comunistas do mundo inteiro Isso significou que tais partidos deveriam abandonar práticas revolucionárias em seus países para não prejudicar as relações internacionais da União Soviética Eram estimuladas porém as guerras de libertação nacional contra os países colonialistas sempre que isso fosse do interesse econômico e geopolítico da Rússia à tese marxista da ditadura do proletariado para a derrubada do Estado o stalinismo contrapôs a ditadura do partido único e do Estado forte à tese marxista da abolição do Estado na sociedade comunista sem classes sociais contrapôs o agigantamento do Estado a absorção da sociedade pelo aparelho estatal e pelos órgãos do partido cuja burocracia constituiuse numa nova classe dominante com interesses e privilégios próprios à tese marxista da luta proletária contra a burguesia e a pequena burguesia bem como à afirmação de que em muitos processos revolucionários parte da burguesia e da pequena burguesia se aliam ao proletariado mas o abandonam a partir de certo ponto devendo ele prosseguir sozinho na ação revolucionária o stalinismo contrapôs a tese oportunista da estratégia e da tática segundo a qual em certos casos o proletariado faria alianças e nelas permaneceria e em outros não faria aliança alguma se isso não fosse do interesse da vanguarda partidária à tese marxista do internacionalismo proletário Proletários de todos os países univos dizia o Manifesto comunista contrapôs o nacionalismo e o imperialismo russos primeiro invadindo e dominando a Europa Oriental e depois os países asiáticos não dominados pela China à tese marxista do partido político como instrumento de organização da classe trabalhadora e expressão prática de suas idéias e lutas contrapôs a burocracia partidária como vanguarda política que não só representa os interesses proletários mas os encarna e os dirige pois é detentora do poder e do saber Convite à Filosofia 554 à tese marxista da relação indissolúvel entre as idéias e as condições materiais isto é entre teoria e prática que permitia o desenvolvimento da consciência crítica da classe trabalhadora contrapôs a propaganda estatal a ideologia do chefe como pai dos povos o controle da educação e dos meios de comunicação pelo partido e pelo Estado à tese de Marx de que a teoria e a prática estão numa relação dialética que o conhecimento é histórico e um processo interminável de análise e compreensão das condições concretas postas pela realidade social o stalinismo contrapôs uma invenção o Diamat materialismo dialético isto é o marxismo como doutrina ahistórica fixada em dogmas expostos sob a forma de catecismos de vulgarização da ideologia stalinista Foi tão longe nisso que considerou função do Estado definir o pensamento correto Para tanto os intelectuais do partido foram encarregados de determinar as linhas corretas para a Filosofia as ciências e as artes Instituiuse a psicologia oficial a medicina e a genética oficiais a literatura a pintura a música e o cinema oficiais a filosofia e a ciência oficiais encarregandose a polícia secreta de queimar obras prender torturar assassinar ou enviar para campos de concentração os dissidentes ou desviantes Os herdeiros de Stalin foram mais longe consideravam que como o partido e o Estado dizem a verdade absoluta os desvios intelectuais artísticos e políticos eram sintomas de distúrbios psíquicos e de loucura enviando os dissidentes para hospitais psiquiátricos à tese marxista de que a classe trabalhadora é sujeito de sua própria história quando toma consciência de sua situação e luta contra ela aprendendo com a memória dos combates e a tradição das derrotas o stalinismo contrapôs a idéia de história oficial da classe proletária identificada com a história do partido comunista e com a interpretação dada por este último aos acontecimentos históricos roubando assim dos trabalhadores o direito à memória à tese marxista de que os inimigos da classe trabalhadora não são indivíduos dessa ou daquela classe mas uma outra classe social enquanto classe contrapôs a idéia de inimigos do povo saídos do seio do próprio povo como inimigos de sua própria classe porque são agentes estrangeiros infiltrados no seio do povo uno indiviso bom e homogêneo à tese de Marx da nova sociedade como concretização da liberdade da igualdade da abundância da justiça e da felicidade o stalinismo contrapôs o operáriomodelo e o militante exemplar acostumados à obediência cega aos comandos do Estado e do partido e à hierarquia social imposta por eles Viver pelo e para o Estado e o partido tornaramse sinônimos de felicidade liberdade e justiça A transformação das idéias e práticas stalinistas em instituições sociais fez com que o stalinismo não fosse um acontecimento de superfície que pudesse ser apagado com a morte de Stalin Pelo contrário Foi instituída uma nova Marilena Chauí 555 formação social que modelou corpos corações e mentes e que só desapareceu parcialmente no fim dos anos 80 e inícios dos 90 porque a crise econômica provocada pelo delírio armamentista fez emergirem contradições sufocadas durante 70 anos A democracia como ideologia Dois acontecimentos políticos marcaram o período posterior à Segunda Guerra Mundial a guerra fria e o surgimento do Estado do BemEstar Social Welfare State A guerra fria foi a divisão geopolítica econômica e militar entre dois grandes blocos o bloco capitalista sob a direção dos Estados Unidos e o bloco comunista sob a direção da União Soviética e da China Uma das principais razões para essa divisão foi militar isto é a invenção da bomba atômica que punha fim às guerras convencionais Inicialmente cada bloco julgava que a posse de armamentos nucleares lhe daria mais poder para eliminar o outro Pouco a pouco porém a chamada corrida armamentista deixou de visar diretamente à guerra voltandose para a intimidação recíproca dos adversários limitando suas ações imperialistas Finalmente percebeuse que uma guerra não convencional ou nuclear teria resultado zero ou seja não teria vencedores pois o planeta seria inteiramente destruído Antes porém que se chegasse a essa conclusão a guerra fria definiu o alinhamento político e econômico de todos os países à volta dos dois blocos hegemônicos O Estado do BemEstar Social Welfare State foi implantado nos países capitalistas avançados do hemisfério norte como defesa do capitalismo contra o perigo do retorno do nazifascismo e da revolução comunista A crise econômica gerada pela guerra as críticas nazifascista e socialista ao liberalismo a imagem da sociedade socialista em construção na União Soviética e na China fazendo com que os trabalhadores encontrassem nelas ignorando o que ali realmente se passava um contraponto para as desigualdades e injustiças do capitalismo tudo isso levou a prática política a afirmar a necessidade de alterar a ação do Estado corrigindo os problemas econômicos e sociais O Estado passa a intervir na economia investindo em indústrias estatais subsidiando empresas privadas na indústria na agricultura e no comércio exercendo controle sobre preços salários e taxas de juros Assume para si um conjunto de encargos sociais ou serviços públicos sociais saúde educação moradia transporte previdência social segurodesemprego Atende demandas de cidadania política como o sufrágio universal Sob os efeitos da guerra fria e do Estado do BemEstar Social o bloco capitalista procurou impedir nos países economicamente subdesenvolvidos ou do Terceiro Mundo América Latina África Oriente Médio rebeliões populares que Convite à Filosofia 556 desembocassem em revoluções socialistas O perigo existe por dois motivos principais ou porque os países do Terceiro Mundo são colônias dos países capitalistas ou porque neles a desigualdade econômicosocial a miséria e as injustiças são de tal monta que nas colônias guerras de libertação nacional e nos demais países rebeliões populares podem acontecer a qualquer momento e transformarse em revoluções O caso de Cuba em 1958 evidenciou essa possibilidade Os países mais fortes do bloco capitalista adotaram duas medidas através do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional FMI fizeram empréstimos aos Estados do Terceiro Mundo para investir nos serviços sociais e em empresas estatais e através dos serviços de espionagem e das forças armadas ofereceram ajuda militar para reprimir revoltas e revoluções Com isso estimularam sobretudo a partir dos anos 60 a proliferação de ditaduras militares e regimes autoritários no Terceiro Mundo como foi o caso do Brasil No centro do discurso político capitalista encontrase a defesa da democracia Vimos que as formações sociais totalitárias cresceram à sombra da crítica à democracia liberal considerada responsável pela desordem e caos sócio econômicos porque abandona a sociedade à cobiça ilimitada dos ricos e poderosos A democracia é o mal Por seu turno na luta contra os totalitarismos os Estados capitalistas afirmaram tratarse do combate entre a opressão e a liberdade a ditadura e a democracia A democracia é o bem Nos dois casos a democracia erguida ora como o mal ora como o bem deixava de ser encarada como forma da vida social para tornarse um tipo de governo e um instrumento ideológico para esconder o que ela é em nome do que ela vale Tanto assim que os grandes Estados capitalistas campeões da democracia não tiveram dúvida em auxiliar a implantação de regimes autoritários portanto antidemocráticos toda vez que lhes pareceu conveniente Embora liberalismo e Estado do BemEstar Social ou socialdemocracia sejam diferentes quanto à questão dos direitos o primeiro limita os direitos à cidadania política da classe dominante o segundo amplia a cidadania política e acolhe a idéia de direitos sociais no que tange à democracia são semelhantes Como a definem Como regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais O que isso quer dizer Em primeiro lugar que identificam liberdade e competição tanto a competição econômica da chamada livre iniciativa quanto a competição política entre partidos que disputam eleições Em segundo lugar que identificam a lei com a potência judiciária para limitar o poder político defendendo a sociedade contra a tirania a lei garantindo os governos escolhidos pela vontade da maioria Marilena Chauí 557 Em terceiro lugar que identificam a ordem com a potência do executivo e do judiciário para conter e limitar os conflitos sociais impedindo o desenvolvimento da luta de classes seja pela repressão seja pelo atendimento das demandas por direitos sociais emprego boas condições de trabalho e salário educação moradia saúde transporte lazer Em quarto lugar que embora a democracia apareça justificada como valor ou como bem é encarada de fato pelo critério da eficácia Em outras palavras defendem a democracia porque lhes parece um regime favorável à apatia política a política seria assunto dos representantes que são políticos profissionais que por seu turno favorece a formação de uma elite de técnicos competentes aos quais cabe a direção do Estado evitando dessa maneira uma participação política que traria à cena os extremistas e radicais da sociedade A democracia é assim reduzida a um regime político eficaz baseado na idéia de cidadania organizada em partidos políticos e manifestandose no processo eleitoral de escolha dos representantes na rotatividade dos governantes e nas soluções técnicas e não políticas para os problemas sociais Vista por esse prisma é realmente uma ideologia política e justifica a crítica que lhe dirigiu Marx ao referirse ao formalismo jurídico que preside a idéia de direitos do cidadão Em outras palavras desde a Revolução Francesa de 1789 essa democracia declara os direitos universais do homem e do cidadão mas a sociedade está estruturada de tal maneira que tais direitos não podem existir concretamente para a maioria da população A democracia é formal não é concreta A sociedade democrática Vimos que uma ideologia não nasce do nada nem repousa no vazio mas exprime de maneira invertida dissimulada e imaginária a praxis social e histórica concretas Isso se aplica à ideologia democrática Em outras palavras há na prática democrática e nas idéias democráticas uma profundidade e uma verdade muito maiores e superiores ao que a ideologia democrática percebe e deixa perceber Que significam as eleições Muito mais do que a mera rotatividade de governos ou a alternância no poder Simbolizam o essencial da democracia que o poder não se identifica com os ocupantes do governo não lhes pertence mas é sempre um lugar vazio que os cidadãos periodicamente preenchem com um representante podendo revogar seu mandato se não cumprir o que lhe foi delegado para representar As idéias de situação e oposição maioria e minoria cujas vontades devem ser respeitadas e garantidas pela lei vão muito além dessa aparência Significam que a sociedade não é uma comunidade una e indivisa voltada para o bem comum obtido por consenso mas ao contrário que está internamente dividida e que as Convite à Filosofia 558 divisões são legítimas e devem expressarse publicamente A democracia é a única forma política que considera o conflito legítimo e legal permitindo que seja trabalhado politicamente pela própria sociedade As idéias de igualdade e liberdade como direitos civis dos cidadãos vão muito além de sua regulamentação jurídica formal Significam que os cidadãos são sujeitos de direitos e que onde tais direitos não existam nem estejam garantidos temse o direito de lutar por eles e exigilos É esse o cerne da democracia Um direito difere de uma necessidade ou carência e de um interesse Uma necessidade ou carência é algo particular e específico Alguém pode ter necessidade de água outro de comida Um grupo social pode ter carência de transportes outro de hospitais Há tantas necessidades quanto indivíduos tantas carências quanto grupos sociais Um interesse também é algo particular e específico Os interesses dos estudantes brasileiros podem ser diferentes dos interesses dos estudantes argentinos Os interesses dos agricultores podem ser diferentes dos interesses dos comerciantes Os interesses dos bancários diferentes dos interesses dos banqueiros Os interesses dos índios diferentes dos interesses dos garimpeiros Necessidades ou carências podem ser conflitantes Suponhamos que por exemplo numa região de uma grande cidade as mulheres trabalhadoras tenham necessidade ou carência de creches para seus filhos e que na mesma região um outro grupo social favelado tenha carência de moradia O governo municipal dispõe de recursos para atender a uma das carências mas não a ambas de sorte que resolver uma significará abandonar a outra Interesses também podem ser conflitantes Suponhamos por exemplo que interesse a grandes proprietários de terra deixálas inativas esperando a valorização imobiliária mas que interesse a trabalhadores rurais sem terra o cultivo de alimentos para a sobrevivência temos aí um conflito de interesses Suponhamos que interesse aos proprietários de empresas comerciais estabelecer um horário de trabalho que aumente as vendas mas que interesse aos comerciários um outro horário no qual possam dispor de horas para estudar cuidar da família e descansar Temos aqui um outro conflito de interesses Um direito ao contrário de necessidades carências e interesses não é particular e específico mas geral e universal válido para todos os indivíduos grupos e classes sociais Assim por exemplo a carência de água e de comida manifesta algo mais profundo o direito à vida A carência de moradia ou de transporte também manifesta algo mais profundo o direito a boas condições de vida O interesse dos estudantes o direito à educação e à informação O interesse dos semterra o direito ao trabalho O dos comerciários o direito a boas condições de trabalho Marilena Chauí 559 Dizemos que uma sociedade e não um simples regime de governo é democrática quando além de eleições partidos políticos divisão dos três poderes da república respeito à vontade da maioria e das minorias institui algo mais profundo que é condição do próprio regime político ou seja quando institui direitos A criação de direitos Quando a democracia foi inventada pelos atenienses criouse a tradição democrática como instituição de três direitos fundamentais que definiam o cidadão igualdade liberdade e participação no poder Igualdade significava perante as leis e os costumes da polis todos os cidadãos possuem os mesmos direitos e devem ser tratados da mesma maneira Por esse motivo Aristóteles afirmava que a primeira tarefa da justiça era igualar os desiguais seja pela redistribuição da riqueza social seja pela garantia de participação no governo Também pelo mesmo motivo Marx afirmava que a igualdade só se tornaria um direito concreto quando não houvesse escravos servos e assalariados explorados mas fosse dado a cada um segundo suas necessidades e segundo seu trabalho A observação de Aristóteles e depois a de Marx indicam algo preciso a mera declaração do direito à igualdade não faz existir os iguais mas abre o campo para a criação da igualdade através das exigências e demandas dos sujeitos sociais Em outras palavras declarado o direito à igualdade a sociedade pode instituir formas de reivindicação para criálo como direito real Liberdade significava todo cidadão tem o direito de expor em público seus interesses e suas opiniões vêlos debatidos pelos demais e aprovados ou rejeitados pela maioria devendo acatar a decisão tomada publicamente Na modernidade com a Revolução Inglesa de 1644 e a Revolução Francesa de 1789 o direito à liberdade ampliouse Além da liberdade de pensamento e de expressão passou a significar o direito à independência para escolher o ofício o local de moradia o tipo de educação o cônjuge em suma a recusa das hierarquias fixas supostamente divinas ou naturais Acrescentouse em 1789 um direito de enorme importância qual seja o de que todo indivíduo é inocente até prova em contrário que a prova deve ser estabelecida perante um tribunal e que a liberação ou punição devem ser dadas segundo a lei Com os movimentos socialistas a luta social por liberdade ampliou ainda mais esse direito acrescentandolhe o direito de lutar contra todas as formas de tirania censura e tortura e contra todas as formas de exploração e dominação social econômica cultural e política Observamos aqui o mesmo que na igualdade a simples declaração do direito à liberdade não a institui concretamente mas abre o campo histórico para a criação desse direito pela práxis humana Convite à Filosofia 560 Participação no poder significava todos os cidadãos têm o direito de participar das discussões e deliberações públicas da polis votando ou revogando decisões Esse direito possuía um significado muito preciso Nele afirmavase que do ponto de vista político todos os cidadãos têm competência para opinar e decidir pois a política não é uma questão técnica eficácia administrativa e militar nem científica conhecimentos especializados sobre administração e guerra mas ação coletiva isto é decisão coletiva quanto aos interesses e direitos da própria polis A democracia ateniense como se vê era direta A moderna porém é representativa O direito à participação tornouse portanto indireto através da escolha de representantes Ao contrário dos outros dois direitos este último parece ter sofrido diminuição em lugar de ampliação Essa aparência é falsa e verdadeira Falsa porque a democracia moderna foi instituída na luta contra o Antigo Regime e portanto em relação a esse último ampliou a participação dos cidadãos no poder ainda que sob a forma da representação Verdadeira porque como vimos a república liberal tendeu a limitar os direitos políticos aos proprietários privados dos meios de produção e aos profissionais liberais da classe média aos homens adultos independentes Todavia as lutas socialistas e populares forçaram a ampliação dos direitos políticos com a criação do sufrágio universal todos são cidadãos eleitores homens mulheres jovens negros analfabetos trabalhadores índios e a garantia da elegibilidade de qualquer um que não estando sob suspeita de crime se apresente a um cargo eletivo Vemos aqui portanto o mesmo que nos direitos anteriores lutas sociais que transformam a simples declaração de um direito em direito real ou seja vemos aqui a criação de um direito As lutas por igualdade e liberdade ampliaram os direitos políticos civis e a partir destes criaram os direitos sociais trabalho moradia saúde transporte educação lazer cultura os direitos das chamadas minoriasxxv mulheres idosos negros homossexuais crianças índios e o direito à segurança planetária as lutas ecológicas e contra as armas nucleares As lutas populares por participação política ampliaram os direitos civis direito de oporse à tirania à censura à tortura direito de fiscalizar o Estado por meio de organizações da sociedade associações sindicatos partidos políticos direito à informação pela publicidade das decisões estatais A sociedade democrática institui direitos pela abertura do campo social à criação de direitos reais à ampliação de direitos existentes e à criação de novos direitos Com isso dois traços distinguem a democracia de todas as outras formas sociais e políticas Marilena Chauí 561 1 a democracia é a única sociedade e o único regime político que considera o conflito legítimo Não só trabalha politicamente os conflitos de necessidade e de interesses disputas entre os partidos políticos e eleições de governantes pertencentes a partidos opostos mas procura instituílos como direitos e como tais exige que sejam reconhecidos e respeitados Mais do que isso Na sociedade democrática indivíduos e grupos organizamse em associações movimentos sociais e populares classes se organizam em sindicatos e partidos criando um contrapoder social que direta ou indiretamente limita o poder do Estado 2 a democracia é a sociedade verdadeiramente histórica isto é aberta ao tempo ao possível às transformações e ao novo Com efeito pela criação de novos direitos e pela existência dos contrapoderes sociais a sociedade democrática não está fixada numa forma para sempre determinada ou seja não cessa de trabalhar suas divisões e diferenças internas de orientarse pela possibilidade objetiva a liberdade e de alterarse pela própria praxis Os obstáculos à democracia Liberdade igualdade e participação conduziriam à célebre formulação da política democrática como governo do povo pelo povo e para o povo Entretanto o povo da sociedade democrática está dividido em classes sociais sejam os ricos e os pobres Aristóteles os grandes e o povo Maquiavel as classes sociais antagônicas Marx É verdade que a sociedade democrática é aquela que não esconde suas divisões mas procura trabalhálas pelas instituições e pelas leis Todavia no capitalismo são imensos os obstáculos à democracia pois o conflito dos interesses é posto pela exploração de uma classe social por outra mesmo que a ideologia afirme que todos são livres e iguais É verdade que as lutas populares nos países de capitalismo avançado ampliaram os direitos e que a exploração dos trabalhadores diminuiu muito sobretudo com o Estado do BemEstar Social No entanto houve um preço a pagar a exploração mais violenta do trabalho pelo capital recaiu sobre as costas dos trabalhadores nos países do Terceiro Mundo Houve uma divisão internacional do trabalho e da exploração que ao melhorar a igualdade e a liberdade dos trabalhadores de uma parte do mundo agravou as condições de vida e de trabalho da outra parte E não foi por acaso que enquanto nos países capitalistas avançados cresciam o Estado de BemEstar e a democracia social no Terceiro Mundo eram implantadas ditaduras e regimes autoritários com os quais os capitalistas desses países se aliavam aos das grandes potências econômicas A situação do direito de igualdade e de liberdade é também muito frágil nos dias atuais porque o modo de produção capitalista passa por uma mudança profunda para resolver a recessão mundial Essa mudança conhecida com o nome de Convite à Filosofia 562 neoliberalismo implicou o abandono da política do Estado do BemEstar Social políticas de garantia dos direitos sociais e o retorno à idéia liberal de autocontrole da economia pelo mercado capitalista afastando portanto a interferência do Estado no planejamento econômico O abandono das políticas sociais chamase privatização e o do planejamento econômico resregulação Ambas significam o capital é racional e pode por si mesmo resolver os problemas econômicos e sociais Além disso o desenvolvimento espantoso das novas tecnologias eletrônicas trouxe a velocidade da comunicação e da informação e a automação da produção e distribuição dos produtos Essa mudança nas forças produtivas pois a tecnologia alterou o processo social do trabalho vem causando o desemprego em massa nos países de capitalismo avançado movimentos racistas contra imigrantes e migrantes exclusão social política e cultural de grandes massas da população Esse fenômeno começa também a atingir alguns países do Terceiro Mundo como o Brasil Em outras palavras os direitos econômicos e sociais conquistados pelas lutas populares estão em perigo porque o capitalismo está passando por uma mudança profunda De fato tradicionalmente o capital se acumulava se ampliava e se reproduzia pela absorção crescente de pessoas no mercado de mãodeobra ou mercado de trabalho e no mercado de consumo dos produtos Hoje porém com a presença da tecnologia de ponta como força produtiva o capital pode acumularse e reproduzirse excluindo cada vez mais as pessoas do mercado de trabalho e de consumo Não precisa mais de grandes massas trabalhadoras e consumidoras pode ampliarse graças ao desemprego em massa e não precisa preocuparse em garantir direitos econômicos e sociais aos trabalhadores porque não necessita de seus trabalhos e serviços Por isso o Estado do BemEstar Social tende a ser suprimido pelo Estado neoliberal defensor da privatização das políticas sociais educação saúde transporte moradia alimentação O direito à participação política também encontra obstáculos De fato no capitalismo da segunda metade do século XX a organização industrial do trabalho foi feita a partir de uma divisão social nova a separação entre dirigentes e executantes Os primeiros são os que recebem a educação científica e tecnológica são considerados portadores de saberes que os tornam competentes e por isso com poder de mando Os executantes são aqueles que não possuem conhecimentos tecnológicos e científicos mas sabem apenas executar tarefas sem conhecer as razões e as finalidades de sua ação São por isso considerados incompetentes e destinados a obedecer Essa forma de organização da divisão social do trabalho propagouse para a sociedade inteira No comércio na agricultura nas escolas nos hospitais nas universidades nos serviços públicos nas artes todos estão separados entre competentes que sabem e incompetentes que executam Em outras palavras Marilena Chauí 563 a posse de certos conhecimentos específicos tornouse um poder para mandar e decidir Essa divisão social converteuse numa ideologia a ideologia da competência técnicocientífica isto é na idéia de que quem possui conhecimentos está naturalmente dotado de poder de mando e direção Essa ideologia fortalecida pelos meios de comunicação de massa que a estimula diariamente invadiu a política esta passou a ser considerada uma atividade reservada para administradores políticos competentes e não uma ação coletiva de todos os cidadãos Não só o direito à representação política ser representante diminui porque se restringe aos competentes como ainda a ideologia da competência oculta e dissimula o fato de que para ser competente é preciso ter recursos econômicos para estudar e adquirir conhecimentos Em outras palavras os competentes pertencem à classe economicamente dominante que assim dirige a política segundo seus interesses e não de acordo com a universalidade dos direitos Um outro obstáculo ao direito à participação política é posto pelos meios de comunicação de massa Só podemos participar de discussões e decisões políticas se possuirmos informações corretas sobre aquilo que vamos discutir e decidir Ora como já vimos os meios de comunicação de massa não informam desinformam Ou melhor transmitem as informações de acordo com os interesses de seus proprietários e das alianças econômicas e políticas destes com grupos detentores de poder econômico e político Assim por não haver respeito ao direito de informação não há como respeitar o direito à verdadeira participação política Os obstáculos à democracia não inviabilizam a sociedade democrática Pelo contrário Somente nela somos capazes de perceber tais obstáculos e lutar contra eles Dificuldades para a democracia no Brasil Periodicamente os brasileiros afirmam que vivemos numa democracia depois de concluída uma fase de autoritarismo Por democracia entendem a existência de eleições de partidos políticos e da divisão republicana dos três poderes além da liberdade de pensamento e de expressão Por autoritarismo entendem um regime de governo em que o Estado é ocupado através de um golpe em geral militar ou com apoio militar não há eleições nem partidos políticos o poder executivo domina o legislativo e o judiciário há censura do pensamento e da expressão por vezes com tortura e morte dos inimigos políticos Em suma democracia e autoritarismo são vistos como algo que se realiza na esfera do Estado e este é identificado com o modo de governo Essa visão é cega para algo profundo na sociedade brasileira o autoritarismo social Nossa sociedade é autoritária porque é hierárquica pois divide as pessoas Convite à Filosofia 564 em qualquer circunstância em inferiores que devem obedecer e superiores que devem mandar Não há percepção nem prática da igualdade como um direito Nossa sociedade também é autoritária porque é violenta nos termos em que no estudo da ética definimos a violência nela vigoram racismo machismo discriminação religiosa e de classe social desigualdades econômicas das maiores do mundo exclusões culturais e políticas Não há percepção nem prática do direito à liberdade O autoritarismo social e as desigualdades econômicas fazem com que a sociedade brasileira esteja polarizada entre as carências das camadas populares e os interesses das classes abastadas e dominantes sem conseguir ultrapassar carências e interesses e alcançar a esfera dos direitos Os interesses porque não se transformam em direitos tornamse privilégios de alguns de sorte que a polarização social se efetua entre os despossuídos os carentes e os privilegiados Estes porque são portadores dos conhecimentos técnicos e científicos são os competentes cabendolhes a direção da sociedade Como vimos uma carência é sempre específica sem conseguir generalizarse num interesse comum nem universalizarse num direito Um privilégio por definição é sempre particular não podendo generalizarse num interesse comum nem universalizarse num direito pois se tal ocorresse deixaria de ser privilégio Ora a democracia é criação e garantia de direitos Nossa sociedade polarizada entre a carência e o privilégio não consegue ser democrática pois não encontra meios para isso Esse conjunto de determinações sociais manifestase na esfera política Em lugar de democracia temos instituições vindas dela mas operando de modo autoritário Assim por exemplo os partidos políticos costumam ser de três tipos os clientelistas que mantêm relações de favor com seus eleitores os vanguardistas que substituem seus eleitores pela vontade dos dirigentes partidários e os populistas que tratam seus eleitores como um pai de família o despotes trata seus filhos menores Favor substituição e paternalismo evidenciam que a prática da participação política através de representantes não consegue se realizar no Brasil Os representantes em lugar de cumprir o mandato que lhes foi dado pelos representados surgem como chefes mandantes detentores de favores e poderes submetendo os representados transformandoos em clientes que recebem favores dos mandantes A indústria política isto é a criação da imagem dos políticos pelos meios de comunicação de massa para a venda do político aos eleitoresconsumidores aliada à estrutura social do país alimenta um imaginário político autoritário As lideranças políticas são sempre imaginadas como chefes salvadores da nação verdadeiros messias escolhidos por Deus e referendados pelo voto dos eleitores Marilena Chauí 565 Na verdade não somos realmente eleitores os que escolhem mas meros votantes os que dão o voto para alguém A imagem populista e messiânica dos governantes indica que a concepção teocrática do poder não desapareceu ainda se acredita no governante como enviado das divindades o número de políticos ligados a astrólogos e videntes fala por si mesmo e que sua vontade tem força de lei As leis porque exprimem ou os privilégios dos poderosos ou a vontade pessoal dos governantes não são vistas como expressão de direitos nem de vontades e decisões públicas coletivas O poder judiciário aparece como misterioso envolto num saber incompreensível e numa autoridade quase mística Por isso mesmo aceitase que a legalidade seja por um lado incompreensível e por outro ineficiente a impunidade não reina livre e solta e que a única relação possível com ela seja a da transgressão o famoso jeitinho Como se observa a democracia no Brasil ainda está por ser inventada i Como já vimos o juízo relaciona positiva ou negativamente um sujeito S e um predicado ou conjunto de predicados P S é P S não é P Também relaciona S e P necessariamente Sócrates é mortal acidentalmente Sócrates é pequeno possivelmente Sócrates poderá vir à praça Se não chover Sócrates virá à praça etc ii Quando Édipo nasce um vidente Tirésias prevê que o menino matará o pai e se casará com a mãe Apavorado o rei Laio o pai manda matar Édipo O escravo que deveria matar o menino sente piedade e o lança num precipício sem verificar se está ou não morto e entrega ao rei o coração de uma corça como se fosse o de Édipo A criança não morre e é recolhida por um pastor Este por sua vez a entrega a um outro rei que idoso lamentava não ter filhos Ao crescer Édipo suspeita que não é filho de seus pais adotivos e sai à procura dos pais verdadeiros No caminho vê uma batalha entre um grupo numeroso e um pequeno colocase ao lado deste último e mata o chefe do outro grupo seu pai Laio Chegando à sua cidade natal fica sabendo que um monstro estava devorando as virgens e só interromperá a matança se alguém decifrar um enigma que propõe Édipo decifra o enigma Como recompensa recebe a rainha em casamento Casase com Jocasta sem saber que se tratava de sua verdadeira mãe e com ela tem filhos A profecia se cumpre A cidade será castigada com a peste e ao tentar combatêla pedindo aos deuses que lhe digam o que a causou Édipo fica sabendo por Tirésias que matou o pai e casouse com a mãe Fura os olhos e exila se enquanto Jocasta se suicida iii Conta o mito que o jovem Narciso belíssimo nunca tinha visto sua própria imagem Um dia passeando por um bosque viu um lago Aproximouse e viu nas águas um jovem de extraordinária beleza e pelo qual apaixonouse perdidamente Desejava que o outro saísse das águas e viesse ao seu encontro mas como o outro parecia recusarse a sair do lago Narciso mergulhou nas águas foi às profundezas à procura do outro que fugia morrendo afogado Narciso morreu de amor por si mesmo ou melhor de amor por sua própria imagem ou pela autoimagem O narcisismo é o encantamento e a paixão que sentimos por nossa própria imagem ou por nós mesmos porque não conseguimos diferenciar o eu e o outro iv No século XX os lógicos afirmaram que a lógica aristotélica não deveria ser considerada plenamente formal porque Aristóteles não afastara por inteiro os conteúdos pensados para ficar apenas com a forma vazia de conteúdo No entanto vamos aqui manter essa característica para a lógica aristotélica porque se comparada à dialética platônica nela o papel do conteúdo pensado é menor do que a forma de pensamento estudada pelo filósofo v Kant emprega a palavra crítica no sentido que possuía em grego estudo das condições de possibilidade de alguma coisa No caso estudo das condições de possibilidade do conhecimento verdadeiro É a análise da estrutura da razão humana enquanto atividade teórica de conhecimento Veja se o capítulo 4 da Unidade 2 em que a posição kantiana é examinada Convite à Filosofia 566 vi Lembremos que o movimento kinesis é toda e qualquer alteração ou mudança experimentada por um ser mudança de qualidade e quantidade mudança de lugar nascer e morrer O Primeiro Motor o divino é Imóvel porque perfeito jamais submetido a qualquer tipo de movimento sempre idêntico a si mesmo Os seres mudam movemse para realizar todas as alterações e um dia deixarem de moverse vii Ver Unidade 2 especialmente o capítulo 4 e também a Unidade 3 especialmente o capítulo 3 viii A palavra transcendental vem do vocabulário medieval significando aquilo que torna possível alguma coisa a condição necessária de possibilidade da existência e do sentido de alguma coisa Ao falar em Sujeito Transcendental Kant está afirmando que o sujeito do conhecimento ou a razão pura universal é a condição necessária de possibilidade dos objetos do conhecimento que por isso são postos por ele ix Kant como já vimos emprega a palavra crítica no sentido de condição de possibilidade A crítica da razão é o estudo das condições de possibilidade do conhecimento e da ação moral x Lembremos que a palavra epistemologia é composta de dois termos gregos episteme que significa ciência e logia vinda de logos significando conhecimento Epistemologia é o conhecimento filosófico sobre as ciências xi Arquitetura pintura escultura gravura música dança e cinema xii A palavra autônomo vem do grego autos eu mesmo si mesmo e nomos lei norma regra Aquele que tem o poder para dar a si mesmo a lei a norma a regra é autônomo e goza de autonomia ou liberdade Autonomia significa autodeterminação Quem não tem a capacidade racional para a autonomia é heterônomo Heterônomo vem do grego hetero outro e nomos receber de um outro a lei a norma ou a regra xiii Aristoi do grego os melhores Essa palavra referiase àqueles que realizavam de um modo excelente os valores gregos da coragem na guerra da beleza física e do respeito aos deuses São a elite ou a classe dominante xiv Na Antiguidade família não era o que é hoje para nós pai mãe e filhos mas era uma unidade econômica constituída pelos antepassados e descendentes pai mãe filhos genros noras tios e sobrinhos escravos animais terras edificações plantações bens móveis e imóveis pessoas e coisas eram propriedades do patriarca despotes ou paterfamilias xv Os termos compostos com cracia são autos eu mesmo eu próprio si mesmo aristos o melhor o mais excelente demos o povo xvi Título dos imperadores romanos de Augusto 63 aC14 aC a Adriano 76138 Nota de Pausa para a Filosofia xvii Mt 161819 Também eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja e as portas do inferno não prevalecerão sobre ela Darteei as chaves do reino dos céus o que ligares na terra terá sido ligado nos céus e o que desligares na terra terá sido desligado nos céus Nota de Pausa para a Filosofia xviii Pv 81516 Por meu intermédio reinam os reis e os príncipes decretam justiça Por meu intermédio governam os príncipes os nobres e todos os juízes da terra Nota de Pausa para a Filosofia xix A vitória de Mandela na África do Sul resulta de longa e sangrenta luta contra o apartheid isto é a segregação e exclusão impostas pelos brancos colonizadores aos negros xx A palavra utopia foi empregada pela primeira vez pelo filósofo inglês Thomas Morus no livro Utopia a cidade ideal perfeita A palavra é uma composição de palavras gregas e rigorosamente significa em lugar nenhum lugar inexistente imaginário Por esse motivo estamos acostumados a identificar utopia e utópico com impossível aquilo que só existe em nosso desejo e imaginação e que não encontrará nunca condições objetivas para se realizar xxi Do artigo Big Brother zangou e nós pagamos o pato escrito por Alberto Dines e publicado no Observatório da Imprensa nº 172 de 15052002 Para quem não sabe ou esqueceu antes de ser nome de reality show Big Brother é a alcunha da entidade inventada por George Orwell em 1984 sua fábula sobre o futuro Inspirado na máquina de propaganda nazista posteriormente aperfeiçoada pelo stalinismo o rebelde Orwell concebeu na sua trágica utopia um Grande Irmão protetor e castrador capaz de controlar acontecimentos informações e aniquilar vontades Nota de Pausa para a Filosofia xxii A noção de materialismo surge pela primeira vez na filosofia grega As escolas filosóficas estóica e epicurista afirmaram contra Platão Aristóteles e neoplatônicos que só existem corpos ou a matéria Os epicuristas retomando idéias dos présocráticos atomistas Leucipo e Demócrito afirmaram que o espírito era átomo material sutil e diáfano Nos séculos XVII e XVIII reagindo contra o espiritualismo cristão muitos filósofos se disseram materialistas querendo com isto dizer que só existe a Natureza e que Marilena Chauí 567 esta é matéria átomos movimento massa figura etc Como vivemos em sociedades cristãs mesmo que haja outras religiões minoritárias o materialismo sempre foi considerado blasfêmia e heresia porque nega a existência de puros espíritos a imortalidade da alma e a separação entre Deus e Natureza O senso comum social absorvendo a crítica espiritualista fala em materialismo para referirse a pessoas que só acreditam nesta vista terrena egoístas e ambiciosas sem preocupação com a salvação eterna e com o bem e a salvação do próximo O materialista é o que gosta de prazeres riquezas e luxo rigorosamente portanto deverseia dizer que os burgueses são materialistas embora se digam cristãos espiritualistas Quando Marx fala em materialismo a matéria à qual se refere não são os corpos físicos os átomos os seres naturais e sim as relações sociais de produção econômica Seu materialismo visa oporse ao idealismo espiritualista hegeliano para o qual a força que move a História é a Idéia o Espírito a Consciência xxiii Ver o que foi examinado sobre a dialética no capítulo 4 da unidade 5 xxiv Ver capítulo 4 da unidade 7 xxv Parece estranho falar em minoria para referirse a mulheres negros idosos crianças pois quantitativamente formam a maioria É que a palavra minoria não é usada em sentido quantitativo mas qualitativo Quando o pensamento político liberal definiu os que teriam direito à cidadania usou como critério a idéia de maioridade racional seriam cidadãos aqueles que houvessem alcançado o pleno uso da razão Alcançaram o pleno uso da razão ou a maioridade racional os que são independentes isto é não dependem de outros para viver São independentes os proprietários privados dos meios de produção e os profissionais liberais São dependentes e portanto em estado de minoridade racional as mulheres as crianças os adolescentes os trabalhadores e os selvagens primitivos africanos e índios Formam a minoria Como há outros grupos cujos direitos não são reconhecidos por exemplo os homossexuais falase em minorias A maioridade liberal referese pois ao homem adulto branco proprietário ou profissional liberal ATIVIDADE DE FILOSOFIA 1 O que é Filosofia A filosofia é um campo de estudo e investigação que busca entender e explicar questões fundamentais sobre a realidade a existência a moralidade a política a linguagem a mente e o conhecimento entre outros temas Ela se originou na Grécia Antiga com pensadores como Sócrates Platão e Aristóteles e evoluiu ao longo dos séculos abrangendo várias correntes e tradições filosóficas Russell 1945 2 Conceito de Filosofia A palavra filosofia vem do grego philosophia que significa amor à sabedoria Ferrater Mora 1965 A filosofia pode ser entendida como uma atividade intelectual que busca compreender e analisar os princípios fundamentais e conceitos subjacentes às diversas áreas do conhecimento humano bem como refletir criticamente sobre as nossas crenças e valores 3 Sofistas e o Direito Os sofistas foram um grupo de pensadores gregos que atuavam como professores e retóricos itinerantes no século V aC ensinando habilidades de argumentação e persuasão especialmente em contextos políticos e jurídicos Guthrie 1971 Eles contribuíram para o desenvolvimento do direito já que a habilidade de argumentar e persuadir era crucial nas assembleias e nos tribunais da Grécia Antiga Os sofistas também questionaram as noções tradicionais de justiça e moralidade argumentando que esses conceitos eram relativos e dependentes das convenções sociais Kerferd 1981 4 Sócrates Maiêutica e Ironia Sócrates 469399 aC foi um filósofo grego que ficou conhecido pelo seu método dialético de questionamento e investigação chamado de maiêutica Platão 1997 A maiêutica consiste em fazer perguntas para ajudar o interlocutor a chegar às suas próprias conclusões guiandoo na descoberta de verdades universais e princípios éticos Este método foi fundamental para o desenvolvimento da filosofia ocidental e do pensamento crítico Taylor 2001 Sócrates também era conhecido pelo uso da ironia uma técnica de comunicação em que o falante expressa o oposto do que realmente pensa com o ATIVIDADE DE FILOSOFIA objetivo de desafiar as crenças e opiniões de seus interlocutores e fazêlos questionar as suas próprias suposições Nehamas 1998 A ironia socrática foi uma ferramenta importante na busca pela sabedoria e na construção do pensamento filosófico 5 Platão mundo das Ideias Platão em sua teoria das Ideias ou das Formas propôs que existem duas realidades distintas A primeira é o mundo sensível composto por objetos materiais e perceptíveis que são mutáveis e imperfeitos A segunda é o mundo das Ideias um reino eterno e imutável que contém as formas perfeitas e imutáveis de todas as coisas Platão 2008 Segundo Platão o mundo das Ideias é mais real e verdadeiro do que o mundo sensível No contexto desta teoria Platão distingue dois tipos de conhecimento doxa e episteme A doxa se refere às opiniões e crenças baseadas na percepção sensorial e na experiência cotidiana que são consideradas conhecimentos inferiores e enganosos A episteme por outro lado é o conhecimento verdadeiro e certo que se obtém ao compreender e acessar as Ideias ou Formas que existem no mundo das Ideias Fine 1993 Para Platão a busca pela episteme é o objetivo principal da filosofia e do filósofo 6 Aristóteles Animal Político Aristóteles 384322 aC foi um filósofo grego e aluno de Platão que abordou uma ampla gama de questões incluindo política e ética Em sua obra Política Aristóteles defende a ideia de que o ser humano é um animal político zoon politikon ou seja um ser que se realiza plenamente apenas em uma sociedade organizada e governada por leis Aristóteles 1984 Para Aristóteles a vida em comunidade e a participação política são essenciais para o desenvolvimento moral e intelectual do indivíduo 7 Felicidade Conceito A felicidade também conhecida como eudaimonia em grego é um conceito central na ética e na filosofia moral Embora as definições de felicidade variem entre os filósofos ela é geralmente entendida como um estado de bemestar e satisfação duradouros em que o indivíduo alcança a realização pessoal e o florescimento ATIVIDADE DE FILOSOFIA humano Annas 1993 Filósofos como Aristóteles entendiam a felicidade como a atividade da alma de acordo com a virtude enquanto Epicuro via a felicidade como a ausência de dor e o prazer moderado Epicuro 1994 8 Contratualidade A contratualidade é um princípio filosófico que se refere à ideia de que a sociedade e as relações políticas são baseadas em acordos voluntários e consensuais entre os indivíduos Filósofos contratualistas como Thomas Hobbes John Locke e JeanJacques Rousseau argumentavam que o estado e as leis são justificados na medida em que resultam de um contrato social entre os cidadãos que concordam em submeterse a uma autoridade comum em troca de proteção e segurança Gaus 2018 Esses filósofos diferem em suas concepções sobre a natureza do contrato as condições précontratuais e os direitos e deveres dos cidadãos mas todos compartilham a ideia básica de que a legitimidade do governo deriva do consentimento dos governados Referências Bibliográficas ANNAS J A moralidade da felicidade New York Oxford University Press 1993 ARISTÓTELES Política Tradução de Mário da Gama Kury Brasília Editora UnB 1984 EPICURO Carta sobre a felicidade a Meneceu Tradução de Alvaro Lorencini e Enzo Del Carratore São Paulo UNESP 1994 FINE G On Ideas Aristotles Criticism of Platos Theory of Forms Oxford Clarendon Press 1993 FERRATER MORA J Dicionário de Filosofia Buenos Aires Sudamericana 1965 GAUS G The Idea of a Social Contract In ZALTA E Ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Spring 2018 Edition Disponível em httpsplatostanfordeduarchivesspr2018entriescontractarianism Acesso em 15 abr 2023 GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University Press 1971 ATIVIDADE DE FILOSOFIA KERFERD G B The Sophistic Movement Cambridge Cambridge University Press 1981 KENNY A Uma nova história da filosofia ocidental Oxford Oxford University Press 2008 NEHAMAS A A arte de viver reflexões socráticas de Platão a Foucault Berkeley University of California Press 1998 PLATÃO A República Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian 2008 PLATÃO Teeteto Tradução de Carlos Alberto Nunes Belém EDUFPA 1997 RUSSELL B História da Filosofia Ocidental New York Simon Schuster 1945 TAYLOR CCW Sócrates Uma breve introdução Oxford Oxford University Press 2001 A importância da busca pela verdade na filosofia A busca pela verdade é um dos pilares fundamentais da filosofia desde seus primórdios na Grécia Antiga A tentativa de compreender o mundo a realidade e o conhecimento humano tem sido a força motriz por trás dos trabalhos de muitos filósofos ao longo da história Neste contexto a noção de verdade tem sido objeto de diferentes abordagens e interpretações Platão um dos primeiros filósofos a abordar a questão da verdade propôs a teoria das Ideias segundo a qual o mundo sensível é uma cópia imperfeita do mundo das Ideias o qual contém as formas perfeitas e imutáveis de todas as coisas Platão 2008 Para Platão a busca pela verdade consiste em alcançar a episteme ou seja o conhecimento das Ideias em contraste com a doxa a opinião baseada na percepção sensorial e na experiência cotidiana Fine 1993 Aristóteles por sua vez criticou a teoria das Ideias de Platão e propôs uma abordagem empírica e mais centrada na realidade observável Aristóteles 1984 Para Aristóteles a verdade é encontrada na investigação das causas e princípios que governam a realidade e não em um mundo transcendental e separado como propunha seu mestre Os sofistas um grupo de pensadores contemporâneos de Sócrates e Platão tinham uma visão mais relativa da verdade Eles acreditavam que a verdade era algo construído e moldado pelo discurso e pela retórica em vez de ser uma entidade objetiva e imutável Guthrie 1971 Essa abordagem contrastava com a busca pela verdade defendida por Sócrates que valorizava o diálogo e a interrogação crítica como meios de alcançar a sabedoria Taylor 2001 A busca pela verdade na filosofia continua sendo um tema central na filosofia contemporânea como exemplificado pelos debates em torno do realismo e do antirrealismo a natureza da verdade e as teorias do conhecimento A importância dessa busca reside em sua capacidade de estimular o pensamento crítico a investigação rigorosa e a reflexão sobre as crenças e valores humanos Em suma a busca pela verdade na filosofia é um empreendimento que atravessa a história do pensamento humano desde os tempos dos filósofos gregos até os debates contemporâneos Através do diálogo com as tradições passadas e presentes a filosofia promove a compreensão de diferentes perspectivas sobre a verdade e incentiva a investigação e a reflexão crítica em busca de respostas às perguntas fundamentais da existência humana
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saraiva jur Filosofia Geral e Jurídica Ricardo Castilho 5ª edição ISBN 9788547229610 Castilho Ricardo Filosofia geral e jurídica Ricardo Castilho 5 ed São Paulo Saraiva Educação 2018 Título anterior Filosofia do direito 1 Direito Filosofia I Tıtulo 171295 CDU 34012 Índices para catálogo sistemático 1 Direito Filosofia 34012 2 Filosofia do direito 34012 3 Filosofia jurıdica 34012 Presidente Eduardo Mufarej Vicepresidente Claudio Lensing Diretora editorial Flávia Alves Bravin Conselho editorial Presidente Carlos Ragazzo Consultor acadêmico Murilo Angeli Gerência Planejamento e novos projetos Renata Pascoal Müller Concursos Roberto Navarro Legislação e doutrina Thaís de Camargo Rodrigues Edição Eveline Gonçalves Denardi Sergio Lopes de Carvalho Produção editorial Ana Cristina Garcia coord Luciana Cordeiro Shirakawa Rosana Peroni Fazolari Arte e digital Mônica Landi coord Claudirene de Moura Santos Silva Guilherme H M Salvador Tiago Dela Rosa Verônica Pivisan Reis Planejamento e processos Clarissa Boraschi Maria coord Juliana Bojczuk Fermino Kelli Priscila Pinto Marília Cordeiro Fernando Penteado Tatiana dos Santos Romão Novos projetos Laura Paraíso Buldrini Filogônio Diagramação Livro Físico Claudirene de Moura Santos Silva Revisão Luciana Cordeiro Shirakawa Rosana Peroni Fazolari Comunicação e MKT Elaine Cristina da Silva Capa Tiago Dela Rosa Livro digital Epub Produção do epub Guilherme Henrique Martins Salvador Data de fechamento da edição 14112017 Dúvidas Acesse wwweditorasaraivacombrdireito Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia autorização da Editora Saraiva A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n 961098 e punido pelo artigo 184 do Código Penal SUMÁRIO Apresentação Nota à 5ª edição PRIMEIRA PARTE PRIMÓRDIOS DA FILOSOFIA Em busca do direito A SUPREMACIA DA GRÉCIA OS FILÓSOFOS PRÉSOCRÁTICOS O direito para os présocráticos Escola jônica Os epígonos jônicos Hípon de Samos Crátilo de Atenas Arquelaos de Atenas Escola itálica ou pitagórica Os epígonos pitagóricos Hípasus de Metaponto Ecfanto de Siracusa Álcméon de Crotona Árquitas de Tarento Escola eleática Epígono eleata Escola atomista ou pluralista OS FILÓSOFOS DA GRÉCIA CLÁSSICA Os sofistas primeiros advogados Os sofistas e suas circunstâncias Os sofistas e suas ideias Os principais sofistas Sofistas da segunda geração Os sofistas e sua influência no direito Sócrates Sócrates e suas circunstâncias Sócrates e suas ideias Sócrates e sua influência no direito Platão Platão e suas circunstâncias Platão e suas ideias Platão e sua influência no direito Aristóteles Aristóteles e suas circunstâncias Aristóteles e suas ideias Aristóteles e sua influência no direito OUTRAS CORRENTES DO PENSAMENTO GREGO Epicurismo prazer com ética Epicuro e suas circunstâncias Epicuro e suas ideias Epicuro e sua influência no direito Estoicismo a resistência ao prazer Os estoicos e suas circunstâncias Os estoicos e suas ideias Entendendo a história o direito em Roma LINHA DO TEMPO PRIMÓRDIOS DA FILOSOFIA OS FILÓSOFOS DO CRISTIANISMO Santo Ambrósio precursor de Santo Agostinho Santo Agostinho religião e filosofia Santo Agostinho e suas circunstâncias Santo Agostinho e suas ideias A escolástica Santo Tomás de Aquino e a ética Santo Tomás de Aquino e suas circunstâncias Santo Tomás de Aquino e suas ideias Santo Tomás de Aquino e sua influência no direito OUTROS PENSADORES DA IDADE MÉDIA Os franciscanos ingleses Guilherme de Ockham e suas circunstâncias Guilherme de Ockham e sua influência no direito Duns Scotus e suas circunstâncias Duns Scotus e sua influência no direito Roger Bacon e suas circunstâncias Roger Bacon e sua influência no direito LINHA DO TEMPO OS FILÓSOFOS DO CRISTIANISMO SEGUNDA PARTE OS PRIMEIROS PASSOS PARA A MODERNIDADE Transição da Idade Média para a modernidade RENASCIMENTO E HUMANISMO Erasmo de Rotterdam o grande humanista Thomas Morus crítico da realeza Maquiavel e a decadência política LINHA DO TEMPO OS PRIMEIROS PASSOS PARA A MODERNIDADE TERCEIRA PARTE A IDADE MODERNA DA FILOSOFIA As circunstâncias do início da Idade Moderna A REFORMA PROTESTANTE Martinho Lutero o rebelde ativo João Calvino o teórico do protestantismo Henrique VIII e a Igreja Anglicana A CONTRARREFORMA O ÉDITO DE NANTES O ABSOLUTISMO Jean Bodin teórico do absolutismo Jacques Bossuet monarquista absoluto Thomas Hobbes e o contrato social O Brasil sob o absolutismo As Ordenações Filipinas O Iluminismo Os déspotas esclarecidos Marquês de Pombal déspota no Brasil Montesquieu e as bases do constitucionalismo Montesquieu e suas circunstâncias Montesquieu e suas ideias Montesquieu e sua influência no direito Reflexões sobre o constitucionalismo A Magna Carta Voltaire e a propaganda iluminista Voltaire e suas circunstâncias Voltaire e suas ideias Voltaire e sua influência no direito NA TANGÊNCIA DA FILOSOFIA Jonathan Swift O EMPIRISMO O empirismo e a responsabilidade de cada um A tábula rasa de John Locke John Locke e suas circunstâncias John Locke e suas ideias John Locke e sua influência no direito O empirismo de Francis Bacon Hugo Grócio e a natureza humana Hugo Grócio e suas circunstâncias Hugo Grócio e suas ideias Hugo Grócio e sua influência no direito Samuel Pufendorf o eclético Samuel Pufendorf e suas circunstâncias Samuel Pufendorf e suas ideias Samuel Pufendorf e sua influência no direito O JANSENISMO Deus e a monarquia Robert Pothier e a racionalização do direito Robert Pothier e suas circunstâncias Robert Pothier e sua influência no direito NA TANGÊNCIA DA FILOSOFIA Blaise Pascal O sensacionismo de Condillac empirismo exacerbado Condillac e suas circunstâncias Condillac e suas ideias UMA REFLEXÃO ACERCA DOS CÓDIGOS Os Códigos Napoleônicos O Código Civil alemão A ESCOLA HISTÓRICA DO DIREITO Savigny precursor do Código Civil alemão Savigny e suas circunstâncias Savigny e suas ideias Savigny e sua influência no direito Georg Friedrich Puchta e a jurisprudência dos conceitos Georg Friedrich Puchta e suas circunstâncias Georg Friedrich Puchta e suas ideias Georg Friedrich Puchta e sua influência no direito Rudolf von Ihering e a luta pelo direito Rudolf von Ihering e suas circunstâncias Rudolf von Ihering e suas ideias Rudolf Von Ihering e sua influência no direito David Hume empirista radical Hume e suas circunstâncias Hume e suas ideias Hume e sua influência no direito LIBERALISMO E RACIONALISMO O conceito de propriedade A propriedade na doutrina brasileira Liberalismo no Brasil Merquior um pensador liberal do século XX Merquior e suas circunstâncias Merquior e suas ideias RACIONALISMO René Descartes e a dúvida metódica Descartes e suas circunstâncias Descartes e suas ideias Malebranche e a busca da verdade Malebranche e suas circunstâncias Malebranche e suas ideias Baruch Espinosa e a substância única Baruch Espinosa e suas circunstâncias Baruch Espinosa e suas ideias Gottfried Leibniz e a monadologia Leibniz e suas circunstâncias Leibniz e suas ideias Leibniz e sua influência no direito Christian Wolff o racional iluminado Christian Wolff e suas circunstâncias Christian Wolff e suas ideias Christian Wolff e sua influência no direito NA TANGÊNCIA DA FILOSOFIA Adam Smith o liberalismo na economia Adam Smith e suas circunstâncias Adam Smith e suas ideias Adam Smith e sua influência no direito Isaac Newton o liberalismo na ciência Isaac Newton e suas circunstâncias Isaac Newton e suas ideias Rousseau e o contrato social Rousseau e suas circunstâncias Rousseau e suas ideias Rousseau e sua influência no direito FrançoisRené de Chateaubriand e o bom selvagem Alexis de Tocqueville e a sistematização da democracia Alex de Tocqueville e suas circunstâncias Alexis de Tocqueville e suas ideias Alexis de Tocqueville e sua influência no direito LINHA DO TEMPO A IDADE MODERNA DA FILOSOFIA QUARTA PARTE A SÍNTESE NA FILOSOFIA Immanuel Kant o grande filósofo do iluminismo Kant e suas circunstâncias Kant e suas ideias Kant e sua influência no direito Kant e o imperativo categórico Johann Gottlieb Fichte e o Estado forte Fichte e suas circunstâncias Fichte e suas ideias Fichte e sua influência no direito Schelling e a natureza autônoma Schelling e suas circunstâncias Schelling e suas ideias Hegel e a síntese dos opostos Hegel e suas circunstâncias Hegel e suas ideias Hegel e sua influência no direito O DECLÍNIO DO RACIONALISMO O idealismo romântico na Alemanha NA TANGÊNCIA DA FILOSOFIA Charles Darwin e a evolução das espécies Precursores da teoria da evolução natural Oliver Wendell Holmes Jr e o realismo jurídico Oliver Wendell Holmes Jr e suas circunstâncias Oliver Wendell Holmes Jr e suas ideias Oliver Wendell Holmes Jr e sua influência no direito Jerome Frank e o americanismo Jerome Frank e suas circunstâncias Jerome Frank e sua influência no direito DEBATES EM TORNO DA FILOSOFIA DE KANT Sören Kierkgaard um crítico da razão Kierkgaard e suas circunstâncias Kierkgaard e suas ideias Arthur Schopenhauer o pessimista Schopenhauer e suas circunstâncias Schopenhauer e suas ideias Friedrich Nietzsche e o poder Nietzsche e suas circunstâncias Nietzsche e suas ideias MUNDO NOVO o materialismo O materialismo Ludwig Feuerbach e o materialismo dialético Feurbach e suas circunstâncias Feuerbach e suas ideias LINHA DO TEMPO A SÍNTESE NA FILOSOFIA QUINTA PARTE A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA Uma ideia universal de justiça CAPITAL E TRABALHO O SOCIALISMO Principais nomes do socialismo utópico O socialismo científico ou socialismo marxista Friedrich Engels e o materialismo histórico Friedrich Engels e suas circunstâncias Friedrich Engels e suas ideias Karl Marx e a revolução de classes Karl Marx e suas circunstâncias Karl Marx e suas ideias Entendendo a maisvalia Karl Marx e sua influência no direito Manifesto comunista Georg Lukács e a totalidade Georg Lukács e suas circunstâncias Georg Lukács e sua influência no direito Antonio Gramsci e a emancipação pela educação Gramsci e suas circunstâncias Gramsci e suas ideias A FALÊNCIA DA FÉ O POSITIVISMO Augusto Comte e a ordem como valor Augusto Comte e suas circunstâncias Augusto Comte e suas ideias John Stuart Mill e as mudanças sociais John Stuart Mill e suas circunstâncias John Stuart Mill e suas ideias John Stuart Mill e sua influência no direito Herbert Spencer o inconformado Herbert Spencer e suas circunstâncias Herbert Spencer e suas ideias O POSITIVISMO NO BRASIL Eugen Ehrlich e a sociologia do direito Eugen Ehrlich e suas circunstâncias Eugen Ehrlich e suas ideias Eugen Ehrlich e sua influência no direito Émile Durkheim um dissidente do positivismo Durkheim e suas circunstâncias Durkheim e suas ideias Durkheim e sua influência no direito PENSADORES ALEMÃES DO SÉCULO XX Versalhes um tratado que mudou o mundo A República de Weimar Um caso à parte a Escola de Frankfurt Max Horkheimer e a Teoria crítica Max Horkheimer e suas circunstâncias Max Horkheimer e suas ideias Theodor Adorno e a indústria cultural Theodor Adorno e suas circunstâncias Theodor Adorno e suas ideias Theodor Adorno e sua influência no direito Herbert Marcuse e a ditadura da tecnologia Herbert Marcuse e suas circunstâncias Herbert Marcuse e suas ideias Herbert Marcuse e sua influência no direito NA TANGÊNCIA DA FILOSOFIA Sigmund Freud o criador da psicanálise Albert Einstein e a física moderna Filósofos positivistas do século XX Henri Bergson e o fim da era cartesiana Henri Bergson e suas circunstâncias Henri Bergson e suas ideias Edmund Husserl e o método fenomenológico Edmund Husserl e suas circunstâncias Edmund Husserl e suas ideias Bertrand Russell e a filosofia na vida política Bertrand Russell e suas circunstâncias Bertrand Russell e suas ideias O Manifesto RussellEinstein Carlos Cossio e a teoria egológica Carlos Cossio e suas circunstâncias Carlo Cossio e sua influência no direito Ludwig Wittgenstein e a precisão da linguagem Ludwig Wittgenstein e suas circunstâncias Ludwig Wittgenstein e suas ideias O Círculo de Viena e o positivismo lógico Moritz Schlick e suas circunstâncias Rudolf Carnap e suas circunstâncias Karl Popper e suas circunstâncias O EXISTENCIALISMO Martin Heidegger e o sernomundo Martin Heidegger e suas circunstâncias Martin Heidegger e suas ideias Martin Heidegger e sua influência no direito Giorgio Del Vecchio e a pessoa humana Giorgio Del Vecchio e suas circunstâncias Giorgio Del Vecchio e sua influência no direito Hannah Arendt e a condição humana Hannah Arendt e suas circunstâncias Hannah Arendt e suas ideias Hannah Arendt e sua influência no direito NA TANGÊNCIA DA FILOSOFIA Mahatma Ghandi e a não violência Carl Schmitt fé e política Carl Schmitt e suas circunstâncias Carl Schmitt e suas ideias JeanPaul Sartre e o espírito da solidariedade JeanPaul Sartre e suas circunstâncias JeanPaul Sartre e suas ideias Maurice MerleauPonty e a linguagem do corpo Maurice MerleauPonty e suas circunstâncias Maurice MerleauPonty e suas ideias LINHA DO TEMPO A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA SEXTA PARTE A FILOSOFIA DO DIREITO CONTEMPORÂNEA O NEOKANTISMO Max Weber e a influência recíproca entre direito e economia Max Webber e suas circunstâncias Max Weber e suas ideias Max Weber e sua influência no direito Rudolf Stammler e o direito como querer Rudolf Stammler e suas circunstâncias Rudolf Stammler e sua influência no direito Oskar von Büllow e o processo como relação jurídica Oskar von Büllow e suas circunstâncias Oskar von Büllow e suas ideias Oskar von Büllow e sua influência no direito Gustav Radbruch contra a injustiça legal Gustav Radbruch e suas circunstâncias Gustav Radbruch e suas ideias Gustav Radbruch e sua influência no direito José Ortega y Gasset e a rebelião das massas José Ortega y Gasset e suas circunstâncias José Ortega y Gasset e suas ideias Wilhelm Dilthey natureza e vida William Dilthey e suas circunstâncias Wilhelm Dilthey e suas ideias Wilhelm Dilthey e sua influência no direito O POSITIVISMO FILOSÓFICO E O POSITIVISMO JURÍDICO Origens do positivismo jurídico A Escola da Exegese A escola científica John Austin fundador do positivismo jurídico John Austin e suas circunstâncias John Austin e suas ideias John Austin e sua influência no direito Jeremy Bentham e o princípio da utilidade Jeremy Bentham e suas circunstâncias Jeremy Bentham e suas ideias Jeremy Bentham e sua influência no direito Hans Kelsen e o positivismo jurídico Hans Kelsen e suas circunstâncias Hans Kelsen e suas ideias Hans Kelsen e sua influência no direito Herbert Hart e a conceituação do direito Herbert Hart e suas circunstâncias Herbert Hart e suas ideias Herbert Hart e sua influência no direito O NEOPOSITIVISMO Michel Foucault e o poder Michel Foucault e suas circunstâncias Michel Foucault e suas ideias Michel Foucault e sua influência no direito NORMATIVISMO JURÍDICO O PÓSMODERNISMO Jacques Derrida e a desconstrução Jacques Derrida e suas circunstâncias Jacques Derrida e suas ideias Jacques Derrida e sua influência no direito JeanFrançois Lyotard e a ausência de crenças JeanFrançois Lyotard e suas circunstâncias JeanFrançois Lyotard e suas ideias JeanFrançois Lyotard e sua influência no direito Richard Rorty e a ironia necessária Richard Rorty e suas circunstâncias Richard Rorty e suas ideias Richard Rorty e sua influência no direito Jürgen Habermas e os direitos humanos Jürgen Habermas e suas circunstâncias Jürgen Habermas e suas ideias Jürgen Habermas e sua influência no direito John Rawls e a teoria da justiça John Rawls e suas circunstâncias John Rawls e suas ideias John Rawls e sua influência no direito Ronald Dworkin e a negação do positivismo jurídico Ronald Dworkin e suas circunstâncias Ronald Dworkin e suas ideias Ronald Dworkin e sua influência no direito Niklas Luhmann a lei como sistema social Niklas Luhmann e suas circunstâncias Niklas Luhmann e suas ideias Niklas Luhman e sua influência no direito Norberto Bobbio filósofo da democracia Norberto Bobbio e suas circunstâncias Norberto Bobbio e suas ideias Norberto Bobbio e sua influência no direito Chaïm Perelman e a moderna retórica Chaïm Perelman e suas circunstâncias Chaïm Perelman e suas ideias Chaïm Perelman e sua influência no direito Amartya Sen a liberdade e o desenvolvimento Amartya Sen e suas circunstâncias Amartya Sen e suas ideias Amartya Sen e sua influência no direito LINHA DO TEMPO A FILOSOFIA DO DIREITO CONTEMPORÂNEA SÉTIMA PARTE FILOSOFIA DO DIREITO CONTEMPORÂNEA NO BRASIL Clóvis Beviláqua autor do Código Civil brasileiro Clóvis Beviláqua e suas circunstâncias Clóvis Beviláqua e suas ideias Clóvis Beviláqua e sua influência no direito Farias de Brito Deus e a ordem moral Farias de Brito e suas circunstâncias Farias de Brito e suas ideias Farias de Brito e sua influência no direito Pontes de Miranda um pensador social Pontes de Miranda e suas circunstâncias Pontes de Miranda e suas ideias Pontes de Miranda e sua influência no direito CirneLima e a sistematização da Filosofia CirneLima e suas circunstâncias CirneLima e suas ideias Miguel Reale e a tridimensionalidade do direito Miguel Reale e suas circunstâncias Miguel Reale e suas ideias Miguel Reale e sua influência no direito Tercio Sampaio Ferraz Junior e a teoria da comunicação Tercio Sampaio Ferraz Junior e suas circunstâncias Tercio Sampaio Ferraz Junior e suas ideias Tercio Sampaio Ferraz Junior e sua influência no direito Goffredo Telles Junior e o direito quântico Goffredo Telles Junior e suas circunstâncias Goffredo Telles Junior e suas ideias Goffredo Telles Junior e sua influência no direito Lourival Vilanova e o direito livre Lourival Vilanova e suas circunstâncias Lourival Vilanova e suas ideias Lourival Vilanova e sua influência no direito Linha do tempo FILOSOFIA DO DIREITO CONTEMPORÂNEA NO BRASIL Referências Para meu Pai Osvaldo Castilho in memoriam Um homem do qual caíram os costumeiros grilhões da vida a tal ponto que ele só continua a viver para conhecer sempre mais deve poder renunciar sem inveja e desgosto a muita coisa a quase tudo o que tem valor para os outros homens develhe bastar como a condição mais desejável pairar livre e destemido sobre os homens costumes leis e avaliações tradicionais das coisas Friedrich Nietzsche Humano demasiado humano 34 APRESENTAÇÃO A filosofia do direito observa o direito como ele é e pensa no direito como deveria ser Algo como a gramática descritiva que analisa o comportamento da língua para auxiliar a gramática normativa a estabelecer as regras gramaticais Já dizia Max Weber que o homem tem menos sentido como indivíduo do que como agente social O liberal em desespero conforme o chamou Anthony Kronman1 na notável biografia que produziu sobre o pensador alemão O próprio sentido da vida humana inclusive o da preservação só existe em sociedade E sociedade significa necessariamente convivência de pessoas diferentes com urgências diferenciadas e posições por vezes divergentes Por isso mesmo onde quer que exista uma sociedade deve haver o direito ubi societas ibi jus Entretanto as sociedades mudam evoluem alteramse Justamente esta é a razão pela qual a filosofia do direito deve caracterizar uma crítica do seu tempo indicando limites para o pensamento jurídico e propondo horizontes para as ações jurídicas políticas e sociais O homem tem capacidades identificadas desde as mais remotas idades da nossa existência sobre a Terra Uma dessas capacidades é o pensamento outra a ação Aristóteles já falava em ato e potência em similaridade ao que os romanos chamavam de actio e contemplatio O homem antigo baseava suas indagações em premissas míticas ou religiosas Paulatinamente evoluiu para uma consciência racional e filosófica Entretanto durante muitos séculos ainda a referência religiosa e a racional coexistiram no seio das sociedades da Idade Antiga como facilmente se pode constatar através das principais linhas de pensamento da Grécia Clássica Não há como se falar em filosofia do direito sem a necessária remissão à história da filosofia Isso porque o status do pensamento jusfilosófico só chegou ao atual patamar graças ao conhecimento acumulado e continuamente aperfeiçoado por pensadores de tendências diversas ao longo dos séculos e dos milênios A filosofia do direito nada mais é do que a filosofia aplicada ao caso concreto do direito É a filosofia tendo como objeto particular de estudo o direito Ou como diria Hegel é a parte da filosofia que tem por objeto a ideia do direito o seu conceito e a sua realização Há autores que discordam dessa associação como estudou Javier Hervada2 Mas fiquemos com a definição acima para efeito de nosso modesto trabalho O estudo da história nos dará razão Inicialmente os filósofos consideravam como verdadeiro apenas aquilo que podia ser visto tocado e sentido fosse pelo corpo ou pelo espírito Tudo o que era oculto disfarçado ou dissimulado era falso A primeira grande evolução deuse quando pela primeira vez Parmênides ponderou que o simples fato de pensar em algo já faz com que ele exista Mesmo que ele se transforme como uma semente que um dia irá transmutarse em fruto a sua essência permanece a mesma Lançada estava assim a ideia da distinção entre o ser e o não ser uma quase revolução na história do pensamento Essa noção seria recuperada mais tarde por Descartes com o seu histórico cogito ergo sum Quando se chega à filosofia moderna percebese que todo o seu eixo gira em torno de um problema central a separação e a conexão entre o mundo ideal subjetivo que se apresenta somente como representação em nossa mente e o mundo real objetivo que existe independentemente da nossa mente e portanto em si mesmo Justamente quando o foco das meditações se volta para esse tipo de questionamento a interrelação entre o real e o ideal é que surgem com grande importância as discussões acerca dos conceitos de direito e justiça Tendo como principal objetivo a regulamentação da vida em sociedade e a solução dos conflitos que lhe são característicos enfrentar o direito vive um eterno dilema a compreensão das interrelações sociais da forma como elas são e o estabelecimento de diretrizes que possibilitem transformálas naquilo que deveriam ser É justamente para que possa cumprir tão honroso mister que o direito se socorre da filosofia como substrato necessário a essa tomada de posição entre o real e o ideal Este portanto é o campo da Filosofia do Direito a fundamentação do direito na natureza do homem como ser racional e passível de socialização Como ser social o homem enfrenta sofre e recebe mudanças de acordo com as alterações da realidade em que se encontra inserido A filosofia do direito como pensamento jurídico mais abstrato e geral deve buscar as causas e motivações das ações e do pensamento humano refletindo a respeito das modificações desejáveis da realidade de tal forma que se realizem em cada um dos campos do Direito as adaptações necessárias para tanto Simplificadamente o direito tem caráter universal A justiça deve ter caráter de respeito à individualidade O meiotermo necessário deve ser incessantemente pensado e repensado e essa é a missão que caracteriza a filosofia do direito Uma investigação filosófica que busque incessantemente a adequação da realidade jurídica mas evidentemente com base em premissas consolidadas em metodologias e sistemas que permitam análise crítica e criteriosa Portanto a filosofia do direito revisa o direito para que as normas apresentem sempre a solução mais justa possível dentro daquilo que for possível à compreensão humana conceber em cada momento histórico acerca do conteúdo de tão abstrato conceito o de justiça Percebese portanto que o direito é necessariamente um sistema vivo evolutivo baseado na ciência da vida Justamente por esse motivo teve configurações teóricas e práticas bem diferentes no decorrer da civilização E por civilização nos referimos aqui à ocidental que é aquela da qual nos ocuparemos neste livro De início na Idade Antiga especialmente na Grécia o direito era considerado como a virtude que orientava a dispensação da justiça Já na Idade Média dominava o Ius Comune nome em latim do direito romano baseado nas leis naturais como o renascimento do direito romano clássico com ampla divulgação pelo Papa Gregório VII de textos de imperadores romanos tais como o Pandectas e o Codex Na Idade Moderna o direito romano e o direito canônico passaram a oferecer uma mescla de entendimento jurídico que as universidades recémimplantadas estudavam como fonte de direito do Estado nacional que as monarquias consolidavam Mais adiante já nos séculos XVII e XVIII as leis passaram a ter por paradigma o iluminismo da ciência especialmente a geometria e a física Por fim o século XIX trouxe o constitucionalismo com o surgimento de supernormas que tinham por objetivo evitar que o Estado exorbitasse de suas atribuições de legislador produzindo leis arbitrárias A par da evolução observada no direito o próprio conceito de justiça basilar ao regramento jurídico vem também evoluindo ao longo dos séculos graças principalmente a grandes eventos que motivaram pensadores a novas análises Em outras palavras o direito evoluiu em razão de crises A mais recente crise do direito ocorreu com Karl Marx com um posicionamento seguido mais tarde por Michel Foucault Ambos de maneira pessimista consideravam que o direito não passava de instrumento de imposição da vontade dos mais fortes Entretanto não podemos nos esquecer de que Marx observou em 1845 a guerra civil francesa com o golpe de Estado que colocou Napoleão III no poder e depois a guerra francoprussiana 1870 1871 que resultou na constituição do chamado império alemão Deutsches Reich Foucault por sua vez nasceu oito anos após a Primeira Grande Guerra e viveu em plena mocidade o segundo conflito mundial com a ocupação pelos nazistas de sua França natal Natural portanto que esses dois filósofos tivessem o grau de pessimismo que pode ser notado em seu pensamento Mas coube ao inglês John Rawls iniciar em 1971 um movimento destinado a revigorar as bases do direito com seu livro A theory of justice Apenas cinco anos mais tarde o pensador alemão Jürgen Habermas publicava o seu Para a reconstrução do materialismo histórico trazendo para o escopo do direito considerações avançadas sobre o Estado Democrático e os direitos humanos Como se pode perceber para a correta compreensão e aplicação do direito imperativo que todo jurista realize uma análise percuciente da filosofia do direito bem como de seu fundamento histórico Foi justamente buscando oferecer um substrato teórico para tão nobre tarefa que desenvolvemos o presente livro Ensina Javier Hervada acerca do nascimento da ciência jurídica como conhecimento autônomo diferente do filosófico A ciência jurídica a nova ciência do direito obtida no nível fenomenológico supõe a um saber e não só uma técnica b um saber geral válido sem estar ligado à contingência do singular c alguns princípios próprios a concatenação interna de conhecimentos e sua redução à unidade sistema jurídico d limitação do conhecimento da realidade jurídica aos fenômenos observados e observáveis isto é em sua positividade enquanto captáveis fenomenologicamente sem recorrer ao nível filosófico para conhecêlos3 Não pretendemos aqui esgotar nenhuma discussão Muito pelo contrário O escopo principal é aproximar o leitor dos mais diversos fundamentos teóricos das principais correntes e escolas que já passaram ao longo da história por nossa civilização Por esse motivo optamos aqui em não entrar no mérito de cada filósofo nem avaliar a complexidade de cada pensamento Procuramos a simplicidade Em um primeiro momento realizaremos um apanhado sintético do pensamento filosófico ocidental desde as suas raízes gregas até a modernidade Posteriormente já respaldados nessa base teórica passaremos a abordar a filosofia do direito propriamente dita Isso através de uma reflexão do pensamento dos principais doutrinadores jurídicos que lançaram as bases do direito moderno e suas variantes Esperamos assim que as linhas que aqui estão sirvam de base segura para leituras de maior fôlego fornecendo desde já o necessário panorama sobre o estágio atual das principais discussões filosóficas em curso O número de filósofos e correntes de pensamento abordados e os questionamentos trazidos à baila certamente demonstrarão ao leitor atento que o direito fenômeno social que simultaneamente produz e limita os poderes político e econômico ao tempo em que tem por finalidade proporcionar segurança encontrase também repleto de pressupostos e discursos que não são tão óbvios assim e cuja demonstração passa por sérios entraves de ordem lógica A superação dessas dificuldades há que começar pelo pensamento não há dúvida As condições em que este é forjado exercem influência não apenas no conteúdo que possa vir a ter mas na própria repercussão social que possa gerar Na sociedade industrial o que importa é produzir Dessa lógica não escapou o direito de modo que ao valor justiça se agregou nas últimas décadas o valor eficiência Como consequência também no campo da filosofia do direito passouse a sustentar uma leitura econômica do direito A própria produção de obras jurídicas nessa área escasseouse eis que em comparação há outras áreas muito mais rentáveis Nosso intuito aqui é de modo singelo contribuir para a superação desse estado de coisas auxiliando tanto o leigo como o já iniciado a compreender as correntes por que enveredou o ser humano nessa nobre arte de pensar Utilizamos para tal mister linguagem simples e tanto quanto possível empregamos a terminologia própria de cada filósofo Esperamos assim contribuir para formar novas gerações de pensadores Ou minimamente despertar entusiasmos por essa marcante disciplina para a humanidade que é a filosofia do direito Ricardo Castilho São Paulo primavera de 2012 NOTA À 5ª EDIÇÃO As coisas do mundo se modificam se alternam ou se substituem Umas fenecem vitimadas pela sua própria característica de obsolescência outras nascem originadas de sua própria qualidade de regeneração Assim são as coisas assim são as pessoas E assim são as leis A dinâmica das leis não é exclusiva do Direito que apenas expressa a vontade de uma comunidade para que viva em harmonia Há leis na Física para nos ensinar como se comportam os fluidos as ondas eletromagnéticas o nascer e o pôr do sol a duração do tempo e a sua relatividade à massa ao espaço à velocidade Há leis na Medicina e nós as aprendemos para que ninguém morra antes do tempo nem adoeça por causa da ignorância Há leis ou antes pressupostos em todos os campos do conhecimento Na base de todos os pressupostos há a experiência de alguém que um dia sentouse à beira de um penhasco e considerou como é minúsculo o ser humano que habita esse gigantesco monstro chamado Terra alguém que contemplou em seguida a abóbada celeste e supôs que a própria Terra é infinitamente minúscula diante do gigante cósmico chamado universo E meditou esse alguém sobre o ar que respiramos o fogo que nos aquece a água que nos hidrata a terra que nos sustenta e ao final nos cobre Esse alguém não tinha outro instrumento que não fosse o seu pensamento Não tinha ainda o ábaco nem a calculadora científica nem o computador Tinha apenas o seu ilimitado pensamento melhor do que qualquer máquina que viria a ser inventada Esse alguém era um filósofo Diante de si enxergou um oceano Uma imensidão de possibilidades ondeando qual a gigantesca colossal imensurável massa de água que ocupa todos os vãos e reentrâncias da geografia A visão do oceano praticamente infinito levou o filósofo a pensar em todas as substâncias intangíveis que ocupam a geografia humana E pôsse ele a observar o mundo para propor conjecturas Não eram observações científicas exatas mas cognitivas que conduziam a explicações que pudessem permitir compreender o mundo suas causas e origens E continuou a observar não esse único homem que contemplava mas toda a sua estirpe de pensadores E levaram esses homens séculos e séculos de arguta e cumulativa observação para criar a Filosofia mãe de todas as ciências a despeito de não ser exata nem possuir métodos formais de comprovação Concluo a partir de refletir sobre esse homem que se sentou à beira de um penhasco naquele dia longínquo que não existe nem obstáculo que impeça o alcance do nosso pensamento nem fim nesse oceano de probabilidades Por isso não há como falar em Filosofia do Direito ou Filosofia Política Existe sim a Filosofia a célulamater do conhecimento Essa é a razão pela qual decidimos pela alteração do título da nossa obra que já alcança a sua 5ª edição Aqui tratamos de reflexões e recortes de muitos e muitos pensadores de todos os tempos que se debruçaram sobre todos os assuntos Tratamos de temas fundamentais da Filosofia aplicáveis a qualquer área do conhecimento e ao mesmo tempo basilares para a compreensão do mundo e do homem inserido no mundo Este nosso livro tem sido muitíssimo bem recebido por várias áreas de estudo além daquela para a qual foi inicialmente idealizado o Direito Nosso livro fala do mundo este vasto oceano de informações que o filósofo primeiro e todos os seus seguidores organizaram para que pudéssemos entender tanto os males que nos afligem quanto os bens que nos elevam Fica portanto rebatizada nossa modesta obra para Filosofia Geral e Jurídica Não é exatamente um batismo mas uma retomada Afinal as coisas do mundo se modificam se alternam ou se substituem A essência esta não muda São Paulo setembro de 2017 PRIMEIRA PARTE PRIMÓRDIOSdaFILOSOFIA EM BUSCA DO DIREITO Desde o momento em que o homem primitivo sentouse numa pedra e contemplou a abóbada celeste indagandose de sua própria origem e de seu próprio destino sobre a Terra aplicava um esforço racional para buscar explicações sobre o mundo Sem respostas e acossado pela infinitude de eventos que não podia explicar o homem inventou entidades O trovão o relâmpago a chuva o sol a noite Todas essas manifestações da natureza eram consideradas fenômenos causados por uma força superior à do homem e sobre as quais ele não tinha controle Eram forças de divindades cuja vontade o homem tentava adivinhar Assim que pela primeira vez um homem depois de um dia de refregas pela sobrevivência questionou em seu abrigo solitário por que o seu vizinho podia pela ameaça da clava tomarlhe a posse da cabra ou da caverna Estava lançada a dúvida acerca do que era justo e do que era direito Esse homem questionando racionalmente a validade da força sobre a posse procurando explicações para o modo de vida em grupo praticava sem saber a filosofia do direito e era ele próprio um filósofo sem o saber A avaliação racional das circunstâncias da vida em comunidade em suas variantes culturais sociais econômicas e enfim políticas começou assim esparsa aleatória sem método sem sistematização Foram os gregos antigos que pela primeira vez organizaram o pensamento filosófico especialmente no que nos interessa neste livro que é a contemplação das questões acerca dos conceitos de direito e de justiça A SUPREMACIA DA GRÉCIA A filosofia naturalista1 fundamentada na observação da natureza e do mundo físico foi o primeiro passo na organização do pensamento filosófico Em grego physis significa natureza mas tem significado mais amplo porque diz respeito à matéria essencial eterna e imutável de que é feito o universo Para os gregos antigos em seu primitivismo a natureza era considerada o centro de tudo Estamos falando de uma época que remonta a 1500 anos aC numa região situada onde hoje estão a Grécia Turquia e Chipre região ocupada então por algumas tribos como os jônios os eólios e os aqueus Eram povos eminentemente agrícolas e pastoris sem literatura de modo que o conhecimento era transmitido apenas pela tradição oral Como exemplo o grande poeta Homero nada deixou escrito toda a sua narrativa épica da guerra de Troia e a odisseia de Ulisses em sua volta para a ilha natal de Ítaca foram passadas oralmente por gerações Consta que essas narrativas foram reunidas em livros apenas por volta do século IX aC A Ilíada é considerada a mais antiga obra da literatura ocidental Os gregos tinham como líderes os monarcas num sistema político aristocrático aquele em que as elites econômicas e intelectuais formavam a classe dominante Habitavam ilhas pedregosas cujo potencial agrícola em breve ficaria exaurido forçando o desenvolvimento naval para que pudessem ocupar outras terras Esse foi o início da expansão grega contada em versos pelo poeta Homero2 O primeiro passo foi ocupar uma região da Europa que corresponde atualmente ao sul da Itália e parte da França que passou a ser denominada Magna Grécia Mais tarde os gregos ocuparam também o sudeste da Turquia na região da Anatólia onde se localizavam por exemplo Mileto e Éfeso foi a chamada Grécia Continental As aventuras navais dos argonautas gregos propiciaram o contato com outras civilizações da época levandoos a aperfeiçoar o comércio Por esse motivo a classe dos comerciantes foi alçada cada vez mais a uma condição de maior poder o que levou ao enfraquecimento da autoridade da aristocracia Consequentemente enfraqueciam também os valores que os monarcas preconizavam em relação aos mitos e à tradição cultural Paralelamente com a nova classe econômica evoluíam as artes a arquitetura e a própria organização política o indivíduo ganhava importância no conjunto da sociedade Graças a essa evolução os gregos criaram comunidades poleis baseadas em três categorias sociais homens livres ou cidadãos estrangeiros e escravos em geral advindos de povos vencidos em batalhas Supridas as necessidades básicas da sobrevivência os gregos puderam dedicarse a atividades mais contemplativas buscando entender o mundo e os fenômenos que os rodeavam Estabeleciam assim novas concepções e pensamentos críticos sobre religião ciência e política mas ainda tendo por base a natureza em seus movimentos e convulsões O homem era insignificante quase nada diante das imensas ondas do oceano e da tormentosa força da borrasca Por isso os fenômenos naturais eram ainda enigmas a serem decifrados OS FILÓSOFOS PRÉSOCRÁTICOS As primeiras explicações para fenômenos tão imponderáveis como o movimento das marés os eclipses as estações do ano a duração dos dias estavam baseadas em mitos desenvolvidos ao longo de séculos obscuros entre os quais se destacava a figura dos deuses No entanto os pensadores da época3 já não mais se satisfaziam com essas explicações por não acreditarem que tais mitos explicassem suficientemente os mistérios da natureza A filosofia grega costuma ser dividida em dois períodos antes e depois de Sócrates considerado o mais importante dos pensadores da Grécia Antiga Aqueles aos quais aqui nos referimos justamente por fazerem parte do primeiro desses períodos são chamados présocráticos Tais pensadores constituíram o que se convencionou chamar de fase inaugural da filosofia grega iniciada com Tales de Mileto por volta do ano 600 aC e perdurando até o surgimento de Sócrates aproximadamente em 440 aC Talvez a contribuição mais fundamental dos présocráticos tenha sido a contestação da antiga visão a respeito de justiça Segundo os conceitos de então os deuses detinham o papel de julgar os homens e distribuir justiça Os présocráticos entretanto começaram a se perguntar qual o papel e a participação de cada homem na atribuição da justiça assumindo assim a responsabilidade por essa tarefa antes relegada às divindades Surgiram então novos padrões de pensamento não mais de passividade e expectativa somente mas fundamentados sobre a racionalidade Infelizmente são praticamente inexistentes fontes documentais a respeito desses pensadores a não ser por testemunhos daqueles que os seguiram e por fragmentos deixados por filósofos posteriores a exemplo de Aristóteles outro dos três grandes da filosofia grega ao lado de Platão e Sócrates A fase présocrática da filosofia grega tem por base o que se convencionou chamar dualismo grego De modo simples o dualismo prega a existência de uma realidade tangível que pode ser vista ouvida sentida experimentada enquanto existe também um poder superior que move essa realidade que a fomenta que a organiza e sobre o qual os homens não têm qualquer ingerência Acreditavase no chamado Eterno Retorno isto é que as coisas seguiam acontecendo repetidamente independentemente da vontade dos homens A humanidade portanto como todos os demais elementos da realidade terrena era comandada por essa força superior É a base da noção de destino de fatalidade O direito para os présocráticos Como já afirmado para os pensadores desse período naturalista a natureza o chamado mundo exterior constituía o princípio de todas as coisas e estudála com as alterações e mudanças a que está sujeita permitia obter as explicações necessárias para as dúvidas dos homens Foi um período que durou cerca de dois séculos VI a V aC caracterizado principalmente pelas constantes indagações a respeito da origem do mundo cosmogonia O direito no pensamento présocrático tinha por base a religião Aos deuses era atribuída a posição central na órbita dos acontecimentos criadores e ordenadores do mundo eram eles que dispensavam a justiça aos homens conforme as suas vontades e humores O próprio conceito de direito tinha uma deusa por paraninfa Themis4 Era uma das deusas originais da cosmogonia grega filha de Urano e Gaia e irmã de Zeus É ela quem aparece até os dias atuais nas estátuas que simbolizam a justiça uma deusa de olhos vendados que segura em uma das mãos a balança e na outra a espada em algumas ilustrações pode aparecer segurando a cornucópia no lugar da espada Segundo a mitologia grega uma de suas filhas Dike representava a justiça Pesquisadores como Jaeger Werner5 costumam explicar que em decorrência da mitologia a palavra themis significa o direito o conjunto das normas legais impostas pela autoridade em um grupo social Mais tarde na época da Nova Atenas de Péricles que se convencionou chamar de Período Clássico surgiu a ideia de que o direito implicava necessariamente o cumprimento da justiça e a palavra dike passou a representar a preocupação com aquilo que era efetivamente justo na sociedade O período naturalista da filosofia grega é dividido em quatro correspondentes às principais escolas filosóficas que a seguir abordaremos Escola Jônica Escola Itálica Escola Eleática e Escola Atomística Escola jônica A escola jônica não é uma designação perfeita porque os pensadores que a compunham apresentavam pensamentos de tal maneira diversos que não se pode dizer que formassem uma escola Na realidade mais do que qualquer outra coisa a denominação de escola jônica tem caráter geográfico uma vez que os integrantes desse grupo eram oriundos de Mileto na Jônia região da Ásia Menor que hoje corresponde à Turquia cidade que seria posteriormente destruída pelos persas no ano de 494 aC Seus representantes os primeiros pensadores présocráticos chamados por Aristóteles de physiologoi ou aqueles que discursam sobre a natureza achavam que havia uma substância primitiva em todas as coisas do universo a constituir a matéria da qual derivavam todas as outras Era o que chamavam de matéria animada A essa matéria davam o nome de physis Em outras palavras em que pese a matéria ser algo em constante transformação deveria existir intrinsecamente a todos os corpos um núcleo comum imutável inalterável Os pensadores dessa época jamais chegaram a um consenso acerca do que seria esse elemento Tão diversas foram as teorias apresentadas que muitos pesquisadores costumam apontar dificuldades em reconhecer entre os présocráticos uma escola filosófica específica Entretanto cremos poder apontar como a maior contribuição apresentada por esses pensadores o fato de pela primeira vez a busca das explicações dos fenômenos naturais ter se afastado de formulações religiosas ou mitológicas para dar lugar a elucubrações racionais abstratas Vamos a seguir listar os mais destacados pensadores entre os présocráticos Tales de Mileto é o fundador da escola jônica e considerado o primeiro representante da filosofia ocidental Sua busca pelo princípio primordial que explicasse o mundo resumia o próprio ideal da filosofia Tales de Mileto é o mais antigo dos pensadores gregos embora tivesse nascido na Fenícia Considerava que a água era o elemento primordial da natureza Isso porque a água é a resposta que encontrou para esta sua indagação Qual é a causa última o princípio supremo de todas as coisas Nasceu em 624 e morreu em 548 aC Segundo os poucos relatos existentes sobre sua vida alguns deles divulgados por Aristóteles vários séculos depois Tales de Mileto dedicouse à filosofia mas também à engenharia especialmente em projetos voltados para o aproveitamento da água dos rios para o abastecimento das cidades à matemática e à astronomia Consta que teria sido o primeiro grego capaz de predizer eclipses lunares e solares Anaximandro de Mileto escreveu um Tratado da natureza Considerava existir um elemento indefinido que funcionava como princípio universal de todas as coisas o ápeiron ou o infinito O ápeiron é vivo imortal e imperecível Anaximandro de Mileto foi discípulo de Tales e seu sucessor na escola jônica Nasceu em 610 e morreu possivelmente em 546 aC Foi geógrafo talvez o primeiro a desenhar um mapa em que eram mostrados os continentes rodeados pelos oceanos Como matemático e astrônomo criou mecanismos de medição do tempo entre eles o relógio de sol Consta que teria avisado o povo de Esparta da ocorrência de um terremoto Anaxímenes de Mileto escreveu o livro Sobre a natureza Considerava que o ar era a substância elementar do universo a respiração para ele era a força vital mais importante Com nossa alma que é ar soberanamente nos mantém unidos assim também todo o cosmo sopra e ar o mantém Sua teoria do infinito um elemento primitivo indefinido ápeiron imperecível e em constante mutação do qual todos os corpos seriam derivados foi citado por Hipólito no livro Refutação de todas as heresias Philosophumena Anaxímenes de Mileto nasceu em 588 e morreu em 524 aC Dedicouse especialmente à meteorologia daí talvez a sua teoria considerar que o elemento primitivo o ápeiron do universo fosse o ar Todos os corpos do universo como a pedra a terra a água e mesmo o fogo seriam formas mais ou menos densas do ar Sua teoria do ar como elemento primordial foi citada pelo teólogo sírio Aécio Foi o primeiro estudioso a afirmar que a lua brilha porque recebe luz do sol Heráclito nascido em Éfeso também na Jônia por volta de 540 aC e morto possivelmente em 480 aC defendia que há uma incessante transformação no universo Nada é imutável tudo flui estamos em constante movimentação Heráclito de Éfeso com sua teoria do devir eterno em que todas as coisas do mundo se transformam em outras por causa da dinâmica natural do universo influenciou muitos filósofos ao longo dos séculos Cada coisa segundo ele é apenas um viraser de outra coisa futura Segundo ele em afirmação que seria posteriormente retomada por Leibniz e Hegel a essência do mundo é a transformação Principalmente do próprio homem noção que está expressa nesta frase Eu me busco a mim mesmo Sua frase mais conhecida é esta Não se pode percorrer duas vezes o mesmo rio e não se pode tocar duas vezes uma substância mortal no mesmo estado por causa da impetuosidade e da velocidade da mutação esta se dispersa e se recolhe vem e vai Anaxágoras de Clazômenas nasceu na Jônia no ano 500 aC mas viveu em Atenas durante trinta anos atuando como professor Anaxágoras de Clazômenas considerava que em cada coisa há uma partícula de todas as demais e que portanto tudo está em tudo Para ele havia uma força suprema uma espécie de inteligência que ordenava as coisas separando os elementos de cada corpo Fundou a primeira escola de Atenas Por isso foi reconhecido como importante precursor da divulgação do conhecimento filosófico e científico grego para o mundo Teria sido também o primeiro a conseguir explicar o fenômeno dos eclipses Sua principal obra é um pequeno tratado intitulado Sobre a Natureza Entre seus alunos mais destacados estavam os famosos generais Péricles e Tucídides e o poeta trágico Eurípedes Dando continuidade ao pensamento de seus precursores tentava equacionar a multiplicidade das manifestações da natureza com a existência de um ser único e imutável conforme pregado por Parmênides a respeito de quem falaremos adiante Para isso desenvolveu um novo princípio denominado homeomerias Segundo Anaxágoras a realidade ou o mundo sensível seria formada pelo Nous palavra geralmente traduzida como inteligência espírito ou mente que ele utilizava para identificar um algo autônomo ilimitado e puro atuando sobre uma mistura inicial de homeomerias uma espécie de semente que abrigaria um pouco da essência de todas as coisas Seria essa portanto a origem da diversidade das manifestações naturais Suas ideias o levariam a ser acusado de impiedade principalmente por ensinar que a lua tinha sido um pedaço da Terra Dessa forma buscou refúgio em Lâmpsaco na Jônia onde morreria de fome como forma de protesto ou as fontes divergem em um naufrágio a caminho da Sicília Suas ideias principalmente no que tange à existência de uma realidade superior ao mundo sensível plano de atuação de uma causa inteligente geradora das manifestações naturais e da evolução universal seriam mais tarde retomadas por Platão e Aristóteles Igualmente o conceito de homeomerias seria retomado por Leibniz na elaboração de suas teorias Os epígonos jônicos Epígono é o termo que designa o discípulo ou continuador dos pensamentos de uma escola ou de um filósofo notável Dentre os epígonos dos filósofos présocráticos jônicos citaremos os mais famosos Hípon de Samos Foi um médico de cujas obras resta apenas um pequeno fragmento mas há menções de seu trabalho em Aristóteles e em Simplício Assim como Tales de Mileto considerava que a água fosse o princípio primordial do universo Quatro outros filósofos são normalmente citados como os seguidores do pensamento meteorológico de Anaxímenes visto logo acima de que o ar fosse o princípio primordial do universo até mesmo representando Deus ou a alma São eles Hideo de Himera Cleidemo Enópides de Quios e Diógenes de Apolônia Crátilo de Atenas Seguiu o pensamento de Heráclito defendendo que tudo se move e está em perene transformação Esse pensador é citado no livro Diálogos de Platão quando debate com Hermógenes sobre a origem dos nomes das coisas Arquelaos de Atenas Foi discípulo de Anaxágoras e como ele mestre de Sócrates Afirmase que teria sido o primeiro a afirmar que a voz é o efeito da passagem do ar Nada restou do que possa ter escrito mas seu nome é mencionado por Diógenes Laércio6 como o primeiro na Jônia a tratar de filosofia natural Escola itálica ou pitagórica A escola fundada por Pitágoras também foi chamada itálica tendo em vista que esse filósofo nasceu na ilha de Samos na então Itália grega Pitágoras era um racionalista que privilegiava o raciocínio o pensamento ao contrário dos seus antecessores da escola de Mileto considerados moderados porque privilegiavam os sentidos e a experimentação Para Pitágoras a razão supera os sentidos porque permite a aquisição de conhecimentos sem o contato com a superfície experimentável dos objetos Para esse filósofo o conhecimento do Ser da verdade absoluta só é possível ao homem através de um processo de purificação Tal processo consistiria justamente na separação da alma tanto quanto possível do corpo Somente assim o pensamento não seria conspurcado pelas informações trazidas pelos sentidos que segundo Sócrates nunca asseguram qualquer verdade Sendo assim o desejo último de qualquer filósofo seria naturalmente a morte momento culminante desse processo de purificação quando enfim atingiriam tão elevado fim Com esse posicionamento opunhase aos sofistas seus contemporâneos que representavam o empirismo e condenavam os conceitos puramente racionais Para os pitagóricos a experiência podia ser espiritual como a intuição e permitia fazer avaliações de grande magnitude como a do espaço do tempo ou da essência Já aos empiristas era impossível por exemplo raciocinar sobre a distância entre planetas porque é fisicamente impossível experimentálas Destacamse na doutrina de Pitágoras o dualismo entre corpo e espírito e a noção de que os elementos do universo são complementares finito e infinito calor e frio cheio e vazio Pitágoras imaginava existir um mundo superior perfeito que servia como modelo arquetípico para o mundo real As regras gerais desse mundo ideal é que regulavam a vida dos seres que habitam a Terra A ideia seria desenvolvida mais tarde por Platão que denominaria esses arquétipos de ideias reais O racionalismo de Pitágoras sobre a validade do pensamento só voltaria a ser estudado em profundidade com a chamada Teoria do Conhecimento ou Epistemologia inicialmente por Santo Tomás de Aquino na Idade Média século XIII e na Idade Moderna por Descartes no século XVI e Leibniz no século XVII Pitágoras nasceu em Samos mas com a conquista da ilha pelos persas emigrou para Crotona no sul da península da Itália onde fundou a sua sociedade O grupo de fortes convicções religiosas defendia a ideia de que tudo o que existe no universo está em harmonia baseada em proporções equilibradas Pitágoras afirmava que o princípio essencial de todas as coisas é o número ou seja as relações matemáticas Creditase a ele o famoso teorema de que em qualquer triângulo retângulo o quadrado do comprimento da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos comprimentos dos catetos Não se conhece qualquer texto originado dele mas apenas informações dadas pelos seus seguidores principalmente Filolau de Crotona e Árquitas de Tarento Filolau de Crotona escreveu um livro um século depois de Pitágoras que teria sido estudado por Platão ele próprio um seguidor do pensamento pitagórico Esses dois fragmentos segundo se sabe foram formulados por Pitágoras e registrados no livro de Filolau E O CERTO é que todas as coisas que se conhece têm número pois sem ele nada se pode pensar ou conhecer A NATUREZA DO UNIVERSO foi harmonizada a partir de ilimitados e de limitadores e não apenas o universo como um todo mas também tudo o que nele existe Os epígonos pitagóricos O pensamento pitagórico foi seguido por diversos pensadores dentre os quais se destacam os apresentados a seguir Hípasus de Metaponto Foi matemático Nasceu em Metaponto cidade grega localizada no sul da Itália a mesma onde morreu seu mestre Pitágoras Desenvolveu várias fórmulas matemáticas principalmente aplicáveis à geometria Suas descobertas em especial a dos números incomensuráveis acabaram por contradizer a doutrina pitagórica de que tudo podia ser explicado por números racionais e acabou expulso do grupo de filósofos pitagóricos Relatos históricos afirmam que seus próprios companheiros o teriam assassinado Ecfanto de Siracusa Físico foi o primeiro estudioso a afirmar que a Terra é dotada de um movimento de rotação ao redor de seu próprio eixo Formulou uma teoria segundo a qual os elementos constituintes da matéria eram átomos tão mínimos que pareciam invisíveis e que eram separados entre si por espaços vazios Álcméon de Crotona É geralmente citado como o avô da Medicina Médico suas teorias teriam sido decisivas para a elaboração da doutrina de Hipócrates que representou a evolução médica a partir do século V aC7 Teriam contribuído para o seu trabalho outros dois médicos também epígonos de Sócrates Empédocles de Agrigento e Diógenes de Apolônia Creditase a Álcméon a autoria da primeira doutrina médica ocidental sobre o binômio saúdedoença por ter criado um sistema que investiga as leis que regulam os fenômenos da natureza Foi também um dos primeiros a dissecar animais para compreender o funcionamento dos organismos Desenvolveu a teoria humoral das doenças com base em quatro humores corpóreos a bílis amarela o sangue o fleugma e a bílis negra Restaram apenas fragmentos das obras médicas e filosóficas desse pensador É possível que ele seja autor de alguns dos textos do Corpus Hipocraticum Árquitas de Tarento Foi matemático mas também militou na música e na política Nasceu em Tarento cidade grega no sul da Itália Formulou teorias que aperfeiçoaram a matemática tirando dela a componente religiosa que os pitagóricos lhe davam Afirmava ele que mais importante que os números era a geometria Foi eleito várias vezes como governante da cidade Nessa posição notabilizouse por ter interferido junto ao tirano Dionísio para salvar a vida do seu amigo Platão Entre várias obras a ele atribuídas e das quais só existem fragmentos está Harmonia um estudo que introduziu a média harmônica na música As primeiras bibliotecas O mundo antigo começou a instituir bibliotecas no chamado século de ouro século V aC em Atenas que era considerada na época a capital intelectual do Ocidente sob o comando do general Péricles Essas primeiras bibliotecas reuniam papiros rolos de papel impresso e pergaminhos escritos em peles de animais Cerca de duzentos anos depois no século III aC todo o acervo bibliográfico grego cerca de 400000 volumes foi reunido na Biblioteca de Alexandria no Egito No ano de 642 os árabes invadiram o Egito e cometeram o grande crime do conhecimento ocidental queimaram todos os volumes existentes O que chegou até os tempos atuais foram apenas algumas cópias de documentos existentes em outros locais e umas poucas páginas que escaparam do incêndio que destruiu a história do antigo pensamento ocidental Escola eleática Com Parmênides de Eleia foi iniciado o estudo da Ontologia ciência que investiga a existência dos seres vivos e inanimados Naturalmente não haveria o estudo dos seres sem a Lógica instrumento primordial para o conhecimento Parmênides desprezava as opiniões doxa em grego porque originavamse dos sentidos Para conhecer a essência dos seres pensava ele era preciso chegar à verdade alétheia Os eleatas assim foram chamados porque esta escola foi originada na cidade de Eleia cidade grega no sul da Itália embora tivesse encontrado seguidores em Atenas para onde convergiam os gregos em função do desenvolvimento econômico e cultural da cidade O próprio Aristóteles que viveu em Atenas foi um continuador do pensamento eleático Os filósofos eleatas tinham grande identificação com o racionalismo pitagórico do qual sofreram influência No entanto enquanto aqueles imaginavam haver um mundo ideal exemplar e estruturado uma espécie de modelo matemático dentro do qual os seres viviam em obediência a regras gerais os eleatas consideravam que a transformação dos seres os entes objeto de estudo da Ontologia a partir de uma substância original é que representaria a lei geral de tudo É importante observar que os filósofos partiram inicialmente de pressupostos religiosos ou míticos para os seus postulados Aos poucos transitaram para a racionalidade o que levou à filosofia Parmênides de Eleia foi um legislador que viveu entre os anos de 530 e 460 aC Escreveu um longo poema chamado Sobre a natureza que continha as suas ideias filosóficas Considerase que Sócrates teria desenvolvido suas ideias a partir da doutrina de Parmênides Segundo Parmênides somente pela razão o homem obtém a revelação da verdade alétheia O outro lado da verdade para ele é a opinião que é enganosa e ilusória Dizia também que a verdade do ser é imutável Portanto para Parmênides a aparência não é a verdade nem pode conduzir a ela Afirmava que havia diferença entre perceber sentir as aparências do ser e pensar contemplar a realidade do ser Basicamente considerava que ser pensar e dizer eram uma coisa só Se nós podemos pensar em alguma coisa e falar sobre ela então esta coisa existe é verdadeira Essa foi a base de desenvolvimento do pensamento dos sofistas que como veremos privilegiaram a palavra o discurso A noção de permanência e imutabilidades dos seres representou uma oposição radical à filosofia então reinante mudando o foco de atenção da filosofia que passou do universo ou cosmos para o ser ou ente É considerado o primeiro materialista da história da filosofia Xenófanes de Cólofon foi principalmente poeta mas sua produção poética tem grande conteúdo filosófico Xenófanes era um cético em relação às divindades gregas Foi o primeiro filósofo a defender a ideia de um deus único Saiu de Cólofon sua cidade natal depois da invasão dos persas Sua frase mais conhecida Todo inteiro vê todo inteiro pensa todo inteiro ouve Nasceu provavelmente em 570 aC e morreu por volta de 475 aC com quase cem anos Questionou corajosamente a tradição grega de representar as divindades em forma humana e a qualidade moral desses deuses Existem 41 fragmentos de suas obras Na astronomia ensinava que existem vários sóis e várias luas no universo Zenon de Eleia conviveu com Parmênides de quem foi ferrenho defensor contra os pitagóricos buscando provar que o movimento a mudança é algo que não existe Zenão de Eleia foi o mais jovem dos eleatas É considerado o criador da dialética a técnica da argumentação Opôsse como Parmênides ao pensamento de Heráclito ao dizer que o universo é imutável porque o que muda deixa de ser Nasceu em 495 e morreu em 430 aC datas não comprovadas historicamente Escreveu vários livros Discussões Contra os físicos Sobre a natureza Explicação crítica de Empédocles Considerava impossível que algo surgisse do nada e referiase diretamente à divindade ao dizer isso Melisso de Samos foi militar e ficou famoso por ter comandado a esquadra que derrotou os atenienses do general Péricles no ano de 441 aC Também poeta escreveu Sobre o ser ou sobre a natureza poema do qual ainda existem dez fragmentos Melisso de Samos foi o seguidor de Parmênides que conseguiu sistematizar a sua doutrina Seu trabalho teve influência na escola filosófica que se seguiu a dos atomistas Tal como fez Zenon defendeu Parmênides contra os pitagóricos Além de sistematizar a doutrina eleata chegou a modificar alguns conceitos afirmou que o ser é infinito no tempo ou seja o ser é eterno Epígono eleata O mais importante dos epígonos eleatas foi Euclides nascido na Síria tendo vivido e estudado em Atenas Euclides de Alexandria é considerado o Pai da Geometria É tido como um dos matemáticos mais importantes do período clássico da Grécia com importantes descobertas na álgebra e na geometria Ensinou na escola criada pelo rei egípcio Ptolomeu I que ficou conhecida como Museu Sua principal obra Os elementos é uma coleção de treze livros publicada por volta do ano 300 aC Euclides também escreveu sobre perspectivas seções cônicas geometria esférica e teoria dos números A geometria euclidiana foi seguida pelo pensamento matemático medieval e renascentista Somente a partir da Idade Moderna foram construídos modelos de geometria não euclidianas Escola atomista ou pluralista Os filósofos présocráticos atomistas partiam da premissa de que o átomo é a substância primordial do universo Esse elemento inicial seria homogêneo em conteúdo e a maneira como se agrupa ou se compõe é que determina a diversificação dos seres e das coisas Leucipo foi o primeiro filósofo a estabelecer o átomo como elemento primordial de todas as coisas Suas descobertas tiveram grande influência na química e na física modernas Para eles o ser era o conjunto sólido de átomos O vazio onde não havia átomos segundo o pensamento desses filósofos era o não ser Foram portanto os precursores da química e da física moderna Os atomistas defendiam que conforme a maneira como os átomos se compõem os seres apresentam três diferenças estruturais na figura na ordem e na mudança E como as maneiras de composição seriam infinitas os corpos seriam infinitos ou plurais o que justifica a forma como a escola foi chamada Leucipo de Abdera também conhecido como Leucipo de Mileto ou Leucipo de Eleia nasceu provavelmente em 470 a C e morreu em 420 aC Dedicouse à astronomia e formulou a teoria de que a Lua está mais próxima que o Sol em relação à Terra Foi contemporâneo de Sócrates e Empédocles e teria sido mestre de Demócrito As informações sobre ele são fragmentadas existem referências a ele nas obras de Aristóteles Demócrito de Abdera foi discípulo de Leucipo e aprimorou a teoria atomista Demócrito de Abdera é considerado um dos primeiros filósofos materialistas Os átomos segundo ele as partículas originais de todas as coisas e seres são invisíveis indivisíveis e eternos Como Heráclito defende que o homem esteja em constante movimento porque os átomos se movem Acreditase que tenha nascido em 460 aC e morrido em 370 aC Consta que teria deixado cerca de noventa obras escritas Em sua teoria o universo seria composto por átomos considerados as partículas primordiais A própria alma seria composta de átomos que por ocasião da morte do ser se desintegrariam Para Demócrito portanto já que a alma é algo físico não pode haver imortalidade Suas ideias são geralmente consideradas as mais lógicas dentre os filósofos présocráticos Empédocles de Agrigento datas prováveis de nascimento e morte 490 e 430 aC foi médico e estudou a evolução dos seres vivos Empédocles de Agrigento foi um seguidor das ideias de Pitágoras com relação à constituição da matéria Criou uma doutrina em que havia uma raiz das coisas que era a composição de quatro substâncias água fogo terra e ar Os princípios de sua doutrina o amor une o ódio divide Para ele não havia um princípio único para todas as coisas mas misturas em níveis diferentes de quatro substâncias água fogo terra e ar Cada uma dessas substâncias era igualmente importante e cada ser era diferente na medida da proporção em que elas se misturavam Aristóteles mais tarde chamaria essas substâncias de elementos Entre as conquistas de Empédocles nas pesquisas físicas está a de ter provado a existência do ar que chamava de éter Empédocles foi também político e implantou iniciativas de prevenção de saúde como drenagem de cursos dágua Com isso teria evitado uma epidemia de malária É tido justamente por isso como o primeiro sanitarista Deixou dois livros escritos na forma de poemas São eles Sobre a natureza e Purificações Eratóstenes considerado o Pai da Geografia nasceu na cidade de Cirene antiga colônia grega depois incorporada ao Egito por Ptolomeu III atualmente está na Líbia no ano de 276 aC Passou a juventude estudando em Atenas Além de filósofo présocrático foi geógrafo e astrônomo tendo realizado importantes estudos com base na matemática Entre outras realizações desenvolveu um método para medir as dimensões da Terra tendo sido o primeiro a calcular o raio do planeta Criou também um algoritmo ainda hoje utilizado que serve para encontrar números primos Escreveu livros técnicos de astronomia geometria e geografia e também um volume de poemas Seu trabalho lhe rendeu convite para ser professor do herdeiro do faraó Ptolomeu III do Egito da longa dinastia ptolomaica à qual pertenceu Cleópatra filha de Ptolomeu XII Em 236 aC o faraó o nomeou bibliotecáriochefe da importante Biblioteca de Alexandria no Egito Permaneceu na função até morrer em 194 aC OS FILÓSOFOS DA GRÉCIA CLÁSSICA Os sofistas primeiros advogados Sócrates representou o novo pensamento grego uma revolução filosófica que ainda hoje influencia e inspira os pensadores Antes de falarmos dele entretanto é preciso lembrar que na mesma época desenvolveuse uma escola de filosofia que teve por base o discurso Era a escola dos sofistas Esses pensadores desenvolveram a oratória e a capacidade de argumentação a tal ponto que se profissionalizaram passaram a exigir remuneração para ensinar bem como para defender causas e pontos de vista Foram por esse motivo os primeiros advogados de que se tem notícia Com os sofistas a dialética estabelecida anteriormente por Zenon ultrapassou as fronteiras da metafísica tornandose universal Entendiam que a natureza não bastava para explicar o mundo Mas não tinham como intenção buscar a verdade como os présocráticos pretendiam até porque pregavam a inexistência de verdades absolutas Ao contrário utilizavamse da dialética e do conhecimento como recursos de ascensão social SOFISTA QUER DIZER mestre da sabedoria Os sofistas e suas circunstâncias Sob o comando do general Péricles e tendo se beneficiado pela migração de milhares de gregos de localidades na Magna Grécia que como já vimos era a designação da região do sul da Itália invadida pelos persas Atenas havia se tornado um poderoso centro econômico Atenas por isso era integrada por pessoas de diversas culturas que ajudavam a enriquecer a sociedade grega Mais que isso Atenas estava sob regras políticas avançadas para a época Os cidadãos habitantes que não fossem nem estrangeiros nem escravos eram os que decidiam em discussões públicas as questões importantes para a administração das comunidades Nessas discussões a habilidade da oratória era importante para a formação de seguidores de modo a fazer aprovar projetos Quanto a esse aspecto Protágoras o idealizador da sofística dizia que uma ideia só ganhava força quando era compartilhada Justamente por isso pregava a necessidade de um discurso forte e convincente Assim a participação dos cidadãos crescia cada vez mais na administração das cidades Era praticamente a decadência da aristocracia e o alvorecer da democracia Pela ausência de guerras com os vizinhos Atenas e boa parte da Grécia vivia um período histórico sem grandes perturbações Atenas sob o comando dos generais Milcíades e Temístocles já havia vencido os reis persas Dario e Xerxes que ocupavam a Jônia nas chamadas Guerras Médicas Nesse ambiente de prosperidade e de paz os pensadores tinham tempo e condições para se dedicar a atividades mais contemplativas A modificação nos hábitos políticos que resultaria em mudança de costumes e até de atitudes deixou clara a necessidade de investimento na educação do povo Os sofistas considerados mestres da sabedoria surgiram nesse período tendo como meta humanizar a cultura ou seja mostrar de que modo na prática o homem pode se beneficiar dos achados filosóficos Atuaram em várias partes da Grécia mas seus principais representantes estavam em Atenas a capital cultural do Ocidente Com a mudança social que então era observada a noção de que o direito seria um conjunto de normas que os deuses haviam enunciado para organização da polis e das poleis passou a ser questionada Passaram assim a pregar a responsabilidade do homem no cumprimento do que fosse realmente justo ou seja a dike Os sofistas e suas ideias Enquanto os présocráticos queriam entender a natureza das coisas os sofistas discutiam as convenções que o homem em sociedade havia estabelecido Para esses pensadores verdade moral justiça e todos os demais preceitos sociais não passavam de invenções humanas Em outras palavras não seriam coisas verdadeiras mas apenas juízos sobre as coisas A grande crítica feita aos sofistas principalmente por Sócrates e Aristóteles que os consideravam céticos8 esteve sempre relacionada à forma como viam os valores e as questões éticas Para os sofistas o que realmente importava eram o interesse e a conveniência pessoal Em nome de uma vantagem ou de um benefício usavam todos os recursos do discurso para demonstrar aquilo que mais lhes conviesse fosse verdadeiro ou falso9 Essa argumentação baseada na retórica e muitas vezes até em raciocínios ilógicos ficou conhecida como sofisma A sofística pregava a satisfação dos desejos e dos instintos Digase em defesa deles que consideravam que os présocráticos ocupavamse de assuntos irrelevantes para o dia a dia dos cidadãos e por isso buscavam analisar temas de maior aplicação na vida prática das poleis De qualquer modo dada a relatividade dos valores já que esses podiam variar de pessoa para pessoa os sofistas praticamente impediam com sua filosofia o estabelecimento de normas gerais de comportamento em sociedade Portanto tornavam impossível a aplicação de direitos para todos os cidadãos e mais que tudo não permitiam que se chegasse à determinação de um conceito universal de virtude coisa que Aristóteles faria mais tarde principalmente no seu livro Ética a Nicômaco O HOMEM é a medida de todas as coisas Protágoras Os sofistas não foram apenas pessoas que comerciavam seus conhecimentos como professores e oradores Também desenvolveram teorias filosóficas a respeito da vida do homem em sociedade Uma delas que ganha sentido quando se pensa em democracia era a de que o Bem não pode estar só nem pode ser único Para fazer o bem portanto o homem precisava ter apoio de outros homens às suas ideias como já vimos era a teoria do discurso forte de Protágoras que em última análise devia levar ao discurso unânime Protágoras sofista que viveu entre 492 aC e 422 aC é tido como o primeiro a utilizar o termo filosofia no sentido daquele que anseia pelo conhecimento Os principais sofistas Protágoras foi o primeiro a cobrar para dar aulas Foi o idealizador da sofística afirmava que como seu objetivo era formar cidadãos por meio da educação política merecia ser chamado sofista mestre da sabedoria Sua teoria baseavase na premissa de que o homem é a referência de tudo Dizia O homem é a medida de todas as coisas das coisas que são enquanto são das coisas que não são enquanto não são Protágoras nasceu possivelmente em 492 aC dois anos antes da invasão das tropas do rei Dario da Pérsia atual Irã na Magna Grécia Viveu até 422 aC Sua existência tem algo de lendária mas de acordo com referências de Aristóteles que escreveu sobre ele no livro Sobre a educação teria vindo de família modesta tendo inclusive desempenhado funções de auxiliar em estabelecimentos de transporte de cargas Chegou a ser amigo íntimo do dirigente ateniense Péricles que o chamou para escrever a constituição de Thurii cidade construída pelos atenienses onde antes existira Sibaris um balneário famoso Sibaris foi tão opulenta que o gentílico sibarita ainda hoje quer dizer pessoa dada aos prazeres físicos à voluptuosidade e à indolência Thurii foi anexada por Roma sendo mais tarde devastada pelo exército de Aníbal durante a Segunda Guerra Púnica Protágoras escreveu duas obras importantes Na primeira As antilogias trata da natureza recíproca dos contrários visível e invisível crença e descrença o que o levou a duvidar da existência de um ser divino No livro seguinte A verdade afirma que o homem é que devia ser o centro de todos os contrários Por causa disso foi expulso de Atenas e suas obras foram queimadas Górgias de Leontini foi escolhido para viajar a Atenas no ano de 427 aC para pedir aos gregos que socorressem sua cidade natal Leontinos sob ameaça de invasão dos habitantes da italiana Siracusa Como sofista defendeu com tamanha eloquência a causa diante da Assembleia do Povo que foi contratado como professor de filhos de aristocratas Górgias nasceu na Magna Grécia em 483 ou 484 aC e morreu com mais de cem anos Das obras de todos os sofistas é dele a maior quantidade de fragmentos preservados possivelmente porque foi o mais famoso na sua época Seus livros tratam especialmente da ontologia e da retórica Os principais são O elogio de Helena A defesa de Palamedes Sobre o não ser ou sobre a natureza A oração fúnebre O discurso olímpico O elogio dos elisinos O elogio de Aquiles A arte oratória e O onosmástico Defendia a ideia de que a poesia cria uma ilusão mas uma ilusão legítima e desejável É razoável supor que a poesia para ele representava a arte da linguagem instrumento dos sofistas para a criação de uma ilusão justificada Seu conceito retórico mais conhecido embora já existisse na época de Pitágoras é o kairós momento oportuno tempo certo que em teologia significa o tempo de Deus É diferente de chronos o tempo cronológico humano que pode ser medido pelo relógio Isócrates nasceu em Atenas 436 aC e foi aluno de Górgias Conviveu com Platão e Sócrates Fundou a paideia como ideal educacional da Grécia Assim como fez Platão afirmava que a educação deve ter algo mais do que apenas ginástica música e linguagem Deveria construir o homem como pessoa e como cidadão Para defender a paideia escreveu um manifesto chamado Contra os sofistas em que censura a técnica retórica vazia de sentido que só servia para mostrar conhecimento e talento bem como aqueles que não buscam a verdade Nesse manifesto sua grande crítica é de que os sofistas como professores pagos não ensinavam mas apenas adestravam seus alunos Sofistas da segunda geração Isócrates dizia que a verdadeira educação paideia é que dá ao homem o desejo de se tornar um cidadão perfeito e justo Defendia que o estudo das humanidades era mais importante que o ensino das ciências Para ele ninguém pode aprender a ser sábio e justo se não tiver inclinação para a virtude Creditase aos sofistas da segunda geração o desenvolvimento da erística uma espécie de exercício retórico que privilegiava a persuasão Mas há que se considerar que as ideias de Górgias foram fundamentais para isso dentro do raciocínio de que o poeta ou artista como Górgias se referia aos que dominavam a arte da linguagem devia criar uma ilusão boa que compensasse o sofrimento causado pelas contradições da realidade Vamos a seguir enumerar os mais conhecidos Pródico Escreveu pelo menos uma grande obra chamada As estações em que discorre sobre as interferências das entidades divinas sobre os destinos do homem Isso porque segundo ele os deuses podiam se transformar no que quisessem como o pão o vinho ou o fogo Sendo assim sua teoria é de que o homem é capaz de escolhas mas sempre sob orientação de uma divindade Com isso prega a formação do homem para uma vida prática voltada às artes e ao conhecimento da natureza Hípias Escreveu discursos obras filosóficas e obras poéticas Exaltava a natureza considerandoa composta de coisas distintas mas unidas por algo que lhes dava continuidade Tendo por pilar de pensamento essa totalidade esse grande todo que é a natureza rejeitava qualquer separatismo inclusive a diferença que se pensava existir entre o ser concreto e sua essência De sua teoria da natureza sobreveio uma abordagem antropológica de mesmo sentido Dizia que a lei é o tirano dos homens Trasímaco Foi possivelmente o primeiro a denunciar formalmente o que se considera o principal defeito da democracia o de ser o sistema das maiorias Achava que o problema da justiça era filosófico e não histórico Defendia a concórdia ou a conciliação como solução para os conflitos Diferenciava a ética da política e considerava ambas coisas dissociadas Os sofistas e sua influência no direito Isócrates pregava que o homem precisava da paideia a verdadeira educação para utilizar uma inclinação natural para a virtude no aprendizado da sabedoria e da justiça Hípias um racionalista achava que a lei positiva disciplinava a atitude do homem diante da natureza para instaurar a verdadeira justiça Mas que a lei só servia aos poderosos Por isso estudou muitas legislações positivas com o intuito de reformar a democracia Trasímaco por sua vez também via a lei como mero instrumento do poder e que estava longe de ser como deveria o enunciado racional que garantisse a moralidade Notese como fechamento deste tópico que os sofistas despertaram entusiasmo de muitos e ódio de outros tantos Não tiveram unanimidade como ninguém teve em todo o mundo O fator positivo dos sofistas o que de longe supera a sua infâmia de vendedores de conhecimento é que representaram a diversidade propiciada por uma grande mudança social que se operava na cidade de Atenas e de resto em toda a Grécia Mais que tudo esses filósofos foram os primeiros a apresentar a ideia de que o destino do homem está nas mãos do próprio homem contribuindo inclusive para a construção e consolidação da democracia grega Sócrates Em Atenas graças aos sofistas o pensamento evoluíra do naturalismo para uma definição de que o homem tinha responsabilidade ocasional sobre a construção das coisas do mundo Sócrates queria ir além achava que o homem devia usar a razão para encontrar o que é justo Sócrates e suas circunstâncias Sócrates dizia que quando o homem alcança conhecer a verdade necessariamente passa a agir bem porque o bem está indissociavelmente ligado à verdade Quem agisse mal segundo ele faziao por ignorância Seus alunos mais destacados foram Platão e Aristóteles que registraram os seus ensinamentos já que não deixou nada escrito A cidadeEstado de Atenas como já vimos experimentava grande pujança Vitoriosa sobre os persas tornarase o centro militar da época Dirigida pelo iluminado Péricles tinha comércio poderoso boas escolas incentivo às artes e estava organizada sob um sistema político inovador e inclusivo a democracia idealizada por Sólon um dos sete sábios da Grécia antiga10 A principal criação da democracia de Sólon era a eclésia como era chamada a assembleia popular Nessas assembleias os cidadãos podiam falar livremente defendendo pontos de vista sobre a administração da cidade e projetos de desenvolvimento Não havia líderes eleitos para falar em nome do povo como na democracia atual A palavra podia ser tomada por qualquer pessoa que reunisse as condições então necessárias para ser considerada cidadã ser homem ser livre ser natural de Atenas e estar em idade produtiva por isso estavam excluídos os velhos e as crianças Como a boa argumentação e a boa retórica eram importantes para um desempenho favorável nas assembleias muitas pessoas contratavam os sofistas para que lhes ensinassem a bem expor suas ideias ou até para falar em nome delas Levantouse Sócrates contra os sofistas seus contemporâneos que ele se recusava a chamar de filósofos condenando isso que denominava de venda de ideias Sócrates viveu entre 470 e 399 aC Era pobre filho de uma parteira Não criou uma escola Ensinava onde pudesse reunir seus alunos Algo como o nosso brasileiro Paulo Freire que dizia que o bom professor pode dar aulas até embaixo de uma mangueira Sócrates percorria a cidade de Atenas praticando a sua técnica do diálogo com os jovens sempre em lugares públicos Essa técnica chamada maiêutica ou parto de ideias consistia em manter um diálogo irônico que conduzia o interlocutor a aprender e a atingir conclusões Seu pensamento tinha uma sólida base ética Achava que o homem chegava a ser virtuoso quando alcançava o conhecimento Conhecete a ti mesmo dizia ele e em decorrência do conhecimento inclinavase à obediência da lei para Sócrates a obediência à lei era o que diferenciava o homem civilizado do bárbaro A democracia ateniense no entanto era uma ameaça à supremacia dos aristocratas porque dava poderes ao cidadão comum Os aristocratas que haviam perdido prestígio em razão de Atenas ter sucumbido a Esparta na Guerra do Peloponeso conflito entre Atenas e Esparta entre 431 e 404 aC achavam que era preciso um regime de governo mais forte e mais centralizado do que a democracia para resgatar o prestígio ateniense Sócrates democrata de grande popularidade estimulava os jovens de Atenas à análise crítica da sociedade e ao conhecimento dos grandes conceitos da humanidade o que é a justiça o que é a verdade Por esse motivo passou a incomodar um grupo desses aristocratas que buscaram pretextos para acusálo de corrupção da juventude ateniense Em 399 aC foi chamado diante do conselho de justiça em honra à deusa da justiça Dike os membros desse conselho eram chamados dikastas e formalmente acusado de impiedade por desrespeito aos deuses Também foi acusado de desvirtuar o pensamento dos jovens que o ouviam levandoos a se comportarem inadequadamente Declarouse inocente e travou um brilhante embate com seus acusadores Mas não pôde suplantálos Julgaramno culpado e deram a ele a alternativa de renegar suas ideias diante do conselho e caso não o fizesse seria executado por envenenamento Tão fiel foi Sócrates ao seu pensamento que considerando o conselho a expressão da lei obedeceu recusandose a desmentir seus ideais Ingeriu cicuta e morreu no cárcere Sócrates e suas ideias Talvez a maior das divergências entre Sócrates e os sofistas consistisse no seguinte enquanto os sofistas acreditavam que a justiça e até própria verdade era apenas uma convenção dos homens Sócrates achava necessário buscar o fundamento de todas as coisas porque só assim seria possível encontrar a verdade e assim chegar ao bem na vida em sociedade Sócrates e sua influência no direito O filósofo ateniense ensinou principalmente pelo exemplo Deu uma lição de submissão à lei ao acatar a decisão do tribunal de justiça de sua época ainda que discordando dele Acreditava que assim fazendo beneficiava a cidade a polis Ao mesmo tempo reafirmava suas convicções religiosas de que a sua vida virtuosa lhe dava direito a uma vida feliz do outro lado da vida Uma convicção religiosa que os seus acusadores disseram que ele não tinha A condenação de Sócrates teve efeitos marcantes para a filosofia porque demonstrou renunciando à própria vida o princípio da anulação ou seja que o mal deve ser combatido com o bem e que um ato de injustiça pode ser anulado por um ato de justiça Suas ideias foram prosseguidas pelo seu principal discípulo Platão SÁBIO É AQUELE QUE CONHECE os limites da própria ignorância Sócrates Platão Foi principalmente graças a esse ateniense que as ideias de Sócrates ganharam o mundo e conseguiram a imensa influência que tiveram na filosofia ocidental da época Um de seus livros mais importantes é Apologia de Sócrates escrito exatamente para difundir o que o mestre pensava Em O banquete discute o mito do amor pelo método dialético do diálogo Podese dizer que sua obra A República é a mais importante para o mundo jurídico Nela esse filósofo discursa sobre a administração e o funcionamento das cidades o papel que devem desempenhar os cidadãos e os juízes além de discorrer minudentemente sobre uma série de importantes conceitos como o de justiça virtude educação entre outros Platão e suas circunstâncias O principal discípulo de Sócrates vinha de rica família aristocrata ateniense Aos 20 anos travou contato com o filósofo tornandose seu mais assíduo aluno Como já dito anteriormente foi quem registrou de forma mais completa as ideias do mestre dado que este nada deixou escrito Consta ter nascido em 428 aC tendo portanto 29 anos quando Sócrates foi executado Testemunhou no tribunal a sentença do mestre à morte sem nada poder fazer Depois da execução passou um período estudando com Euclides em Mégara Posteriormente dedicouse a conhecer o mundo com destaque para o Egito Contribuiu para o seu afastamento o fato de Esparta haver assumido o governo de Atenas após Guerra do Peloponeso Embora fosse um governo progressista a administração dos Trinta Tiranos que durou de 404 a 403 aC era arbitrária Isso o levou a idealizar uma nova forma de governo que descreveu no livro A República Em visita à Sicília foi convidado pelo rei Dionísio o Antigo de Siracusa então província grega para assumir a tarefa de ensinar filosofia aos cortesãos Alguns anos depois caiu em desgraça e o rei o vendeu como escravo Conseguiu escapar e voltou a Atenas onde fundou numa localidade chamada Academos uma espécie de escola em que ensinava ciências retórica e filosofia e que ficou conhecida como Academia Morreu possivelmente no ano de 348 aC com 80 anos portanto teve cinquenta anos de vida depois do desaparecimento do mestre para dar prosseguimento às suas doutrinas Platão e suas ideias Platão diferentemente de Sócrates preferiu ensinar em uma escola Fundou em Atenas a Academia onde ensinava as ciências a retórica e a filosofia Foi o primeiro a criar um sistema de reflexão sobre o direito e o justo Era um idealista Acreditava que o mundo era dividido em duas partes o mundo sensível aquele que pode ser captado pelos sentidos onde estão os seres vivos e a matéria e o mundo das ideias um ambiente perene mas imaterial que só pode ser alcançado pela inteligência pela razão Platão personifica ao lado de Sócrates e de Aristóteles os criadores da nova filosofia ocidental que em vez de lidar com os dilemas da humanidade a partir de uma explicação unicamente baseada nos mitos e na religião prefere uma explicação fundada na razão Claro que não deixou os mitos de lado porque eles são componentes culturais importantes Ao contrário utilizouos para comprovar suas teorias Um exemplo disso pode ser visto quando trata do mito de Eros o deus do amor no livro O banquete Com uma abordagem filosófica questiona a natureza humana em relação aos sentimentos e à sexualidade Para ele o homem tem que ter amor também à sabedoria logos ao conhecimento que o levaria a ser um cidadão virtuoso e feliz Como se pode constatar suas principais ideias foram as mesmas defendidas por Sócrates o conhecimento leva à virtude que por sua vez conduz ao caminho do bem e à felicidade Platão foi principalmente um educador Pela educação do corpo e do espírito o homem conseguiria segundo ele superar os problemas da vida inclusive os de ordem moral Por isso a Academia ensinava também a música Foi possivelmente o primeiro filósofo a defender que as mulheres mereciam receber a mesma educação que os homens Platão e sua influência no direito Platão foi um idealista no sentido de que teve por base a noção de eîdos ideia um bem supremo inalcançável pelos sentidos humanos mas que existe dentro de cada pessoa Nessa ideia de bem residem a ética e a virtude É o que diz por exemplo no mito da caverna Nele o filósofo simboliza a distinção entre o mundo exterior para onde o homem não consegue sair e onde estão as ideias e o mundo sensível que seria aquele constituído pelas coisas tangíveis existentes dentro da caverna Com esse conceito Platão aduz existir uma justiça divina diferente da justiça praticada pelos homens Para que a justiça fosse eficientemente distribuída havia que existir um pacto de cooperação entre os homens estabelecendo a ordem de que alguns mandam e os demais obedecem Essa ideia está em A República onde Platão também estabelece que a tarefa de educar as almas é do Estado provendo educação pública e gratuita para formar cidadãos que trabalhem pelo bem da polis e dos outros cidadãos A EDUCAÇÃO deve possibilitar ao corpo e à alma toda a perfeição e a beleza que podem ter Platão Aristóteles Se em Sócrates houve exagero no realismo e se em Platão houve exagero no idealismo Aristóteles surge com o princípio da moderação A grandeza de seu nome está justamente no fato de conseguir realizar a síntese do saber universal existente até então num trabalho que influenciou todo o desenvolvimento da filosofia ocidental moderna Aristóteles e suas circunstâncias Era chamado O Estagirita por ter nascido 384 aC na colônia grega de Estagira na Trácia território da Grécia Continental onde hoje estão a Turquia e a Bulgária Estudou desde os 18 anos de idade na Academia que Platão fundou Saiu de lá vinte anos depois quando da morte do mestre Foi por três anos preceptor de Alexandre o Grande a pedido do pai deste Filipe II da Macedônia que havia conquistado a Trácia Não podemos nos esquecer de que as tropas do rei Filipe na batalha de Queroneia conquistaram Atenas além de Tebas Egito Pérsia atual Irã e Ásia Menor atual Turquia acabando com a democracia grega e encerrando o Século de Ouro de Péricles Os atenienses ansiavam por obter novamente a independência Com a morte de Alexandre em 323 aC Aristóteles voltou a Atenas e fundou uma escola perto do templo de Apolo Lício de onde o nome Liceu dado à sua escola A escola também recebeu o nome de Perípato e nela estudaram grandes nomes da ciência como o físico Estratão de Lâmpsaco e o astrônomo Aristarco de Samos Todo o pensamento de Aristóteles foi recolhido registrado e publicado por Andrônico de Rodes quase duzentos anos depois da morte do mestre Outros importantes seguidores da escola peripatética foram Alexandre de Afrodisia filósofo Galeno médico e Cláudio Ptolomeu astrônomo Aristóteles e suas ideias Aristóteles costumava dizer Platão e a verdade são meus amigos É considerado o filósofo do Bem Criou a teoria do motor imóvel algo puro e eterno que seria a essência de tudo ou seja Deus causa absoluta de todas as coisas Suas ideias sobre teologia e filosofia formariam a base do pensamento escolástico de Santo Tomás de Aquino na Idade Média É considerado o fundador da ciência moderna Aristóteles acreditava como Platão que a alma já existe antes do nascimento da pessoa sendo independente do corpo e imortal Esse dualismo entre corpo e alma era explicado como o viraser e o que realmente existe Aristóteles pregava que existe algo que move todas as coisas e que por sua vez não é movido por nada Seria esse algo aquilo que origina todas as coisas o ato é Deus e a potência a matéria Escreveu muitos livros que os estudiosos distribuem em quatro categorias escritos lógicos escritos sobre a física escritos metafísicos e escritos morais e políticos Dentre suas principais obras podem ser citadas Metafísica em que discute o ser vários diálogos Sobre a Justiça Sobre o Bem Sobre as Ideias Ética a Nicômaco livro escrito para o filho discorrendo sobre virtude justiça e ética e Politheia coleção de oito livros sobre sociologia filosofia e direito Também escreveu sobre a arte da retórica e a arte da poética dos quais apenas fragmentos chegaram até nós Aristóteles e sua influência no direito O pensamento de Aristóteles teve grande influência no direito que temos contemporaneamente em várias dimensões Uma delas foi a questão da justiça que ele considerava uma virtude como a coragem e a temperança Para ele toda virtude é um hábito racional adquirido com o exercício e com a ação Já a justiça é a procura da ponderação entre dois extremos para não incorrer nem no excesso nem na deficiência ou insuficiência Haveria distinções entre as formas de justiça o justo legal o justo por natureza o justo pela troca o justo pela distribuição etc Tais considerações sobre a justiça estão no livro Ética a Nicômaco Outra dessas dimensões foi sua teoria sobre a moral Ele considera que todo ser deve realizar sua natureza de maneira plena e assim alcançará a felicidade como a natureza do homem é a racionalidade o homem se realiza quando vive ancorado na razão Essa é a base do racionalismo aristotélico que diz que as virtudes devem ser adquiridas pela educação e pela vontade A terceira dimensão é a ética Dizia Aristóteles que as virtudes éticas são fundamentalmente sentimentais e afetivas ao contrário das virtudes intelectuais que decorrem de atividade racional e que devem ser governadas pela razão Mas moderado como era Aristóteles defendia que a virtude intelectual precisa da virtude ética para ser completa Aristóteles no livro A política explica que a moral é individual enquanto a política é coletiva A cidade ou o Estado tem primazia sobre o indivíduo e o bem comum sobre o bem particular porque o homem é um ser social Compete ao Estado a tarefa de educar os indivíduos para que se tornem cidadãos úteis à polis A FINALIDADE DA ARTE é dar corpo à essência secreta das coisas não copiar sua aparência Aristóteles OUTRAS CORRENTES DO PENSAMENTO GREGO Ao tempo de Sócrates um grupo de filósofos desenvolveu uma corrente de pensamento chamada cinismo Segundo os cínicos a virtude consistiria em libertarse das normas sociais e dos costumes Para atingir essa virtude o homem devia despojarse de todas as imposições sociais como a riqueza e o poder considerados fúteis e dedicarse apenas a satisfazer as necessidades vitais básicas como comer e dormir O principal representante do cinismo foi Diógenes um filósofo que levou o pensamento ao extremo tendo passado a vida na mais completa pobreza Segundo relatos históricos ele vivera nu dentro de um barril Outra corrente de pensamento foi desenvolvida por Pirro e chamavase ceticismo Segundo os céticos era impossível conhecer a verdade de qualquer coisa que fosse portanto a filosofia devia ser uma negação da sabedoria Com isso tudo o que era considerado valor para a sociedade devia ser desprezado e o homem devia manterse indiferente a tudo o que ocorre no mundo O ceticismo teve por base o pensamento brâmane uma das castas do povo da Índia A felicidade para os céticos era obtida quando se alcançasse um estado que chamavam de atraxia um estado de paz que não se deixa perturbar por nada Essas duas correntes não tiveram maior destaque na construção da filosofia do direito principalmente porque não defendiam valores Para o pensamento que os filósofos do cristianismo elaboraram na Idade Média foram outras duas correntes que se destacaram o epicurismo e o estoicismo que veremos a seguir Epicurismo prazer com ética Há uma certa confusão quando se fala em epicurismo porque algumas pessoas imaginam que é a corrente filosófica que prega a entrega total aos desejos e aos prazeres mundanos Nada disso Epicurismo é um posicionamento espiritual no sentido de negar a dor e as perturbações privilegiando ao contrário as coisas positivas e a natureza humana sempre respeitando a ética Já vimos que a Grécia estava sob a dominação da Macedônia no século IV aC O povo grego submetido a um poder estrangeiro perdia não só liberdade política mas a própria identidade O centro do poder deslocouse de Atenas para Alexandria no Egito As cidades gregas acostumadas a ter cada uma o seu governo foram reunidas sob um único governante e a organização política baseada na democracia foi eliminada Viveu nessa época o historiador Heródoto amigo e seguidor de Epicuro que registrou a derrocada da civilização helênica A situação ficaria ainda pior com o surgimento do Império Romano que tomaria o lugar das tropas de Alexandre Magno na conquista da Grécia Os pensadores gregos nessa época não se ocupavam mais da política porque não havia mais a liberdade de consciência que a participação popular fizera florescer no século anterior Passaram a refletir pois sobre a ética Por meio do estudo do comportamento humano julgavam obter instrumentos para estabelecer normas práticas de conduta que permitiriam alcançar a serenidade interior e a felicidade Epicuro e suas circunstâncias Epicuro buscava alcançar a felicidade um estado de espírito caracterizado pela inexistência de dor física aponia com simultânea tranquilidade completa da alma ataraxia A dor existe ele admitia mas provém de desejos insatisfeitos é passageira e pode ser atenuada por bons pensamentos de experiências prazerosas O epicurismo é basicamente o domínio das emoções A natureza é a mestra dos homens dizia ele Observar e imitar os animais que se afastam do sofrimento e buscam o prazer é o caminho Epicuro de Samos que viveu entre 341 aC e 270 aC foi quem formulou essa corrente de pensamento Atuou como professor de gramática durante algum tempo Mais tarde abriu uma escola em Atenas que ficaria conhecida como o Jardim de Epicuro Ensinava que a filosofia tem o papel de libertar o homem dos seus medos como o medo da morte e o medo dos deuses Para ele a morte nada mais era do que a desintegração dos átomos que compõem o corpo e a alma E que esses átomos já que eram eternos e indestrutíveis depois de morto o indivíduo ficavam livres para se combinarem de outra forma e constituir outro indivíduo Nas suas mais de 300 obras sua principal inspiração foi a teoria atômica de Demócrito que vimos anteriormente de que tudo o que existe seja matéria seja a própria alma é formado de átomos de diferentes naturezas combinados de diferentes maneiras Com essa explicação pretendia que as pessoas enxergassem a morte como uma consequência natural da condição humana sem precisar portanto causar tristeza a ninguém Até porque cessada a vida cessavam os sentimentos portanto morto não sofre Da mesma forma se o mundo é formado de átomos deuses são entidades que alcançaram o equilíbrio total e vivem em estado de felicidade Com esse pensamento contestava o senso comum da época de que os deuses eram seres vingativos dominados por paixões humanas cuja ocupação principal era atormentar os homens e mantêlos em estado de constante purificação Epicuro é considerado o principal precursor do movimento anarquista que ocorreu no período clássico Modernamente o anarquismo foi primeiramente formulado por William Godwin e aperfeiçoado por PierreJoseph Proudhon Para esses estudiosos contrariamente à ideia geral anarquismo não é a ausência de ordem mas a ausência de coerção principalmente de governantes Epicuro e suas ideias O filósofo do prazer considerava fundamental que o homem conhecesse a realidade por meio das sensações para o entendimento da natureza e de suas leis A partir dessa compreensão devia estudar a ética para que praticando a conduta correta pudesse ser feliz como indivíduo e em consequência fizesse o grupo social feliz Em outras palavras pela procura incessante do conhecimento o indivíduo saberia distinguir com sabedoria aquilo que é necessário para a vida e aquilo que não importa O papel do homem na terra portanto era aprender sem parar para conseguir escapar a tudo aquilo que lhe causava sofrimento Epicuro considerava que o ponto inicial de qualquer conhecimento era a sensação Em seguida ao primeiro contato o conhecimento precisava ser ratificado confirmado pela alma porque aquilo que é alcançado pelos sentidos deve servir de parâmetro para aquilo que não se vê não se apalpa não se sente Epicuro e sua influência no direito No aspecto jurídico uma nota característica desse pensador foi a relativização do conceito de justiça Distanciandose de aspectos mais abstratos passou a pregar que a justiça não seria mais do que uma espécie de pacto que as pessoas celebravam entre si para não prejudicar nem ser prejudicado Percebese portanto a grande aproximação de Epicuro com o pensamento do famoso pretor Ulpiano que tanto no Digesta quanto no Instituitionis já pregava Iuris praecepta sunt haec honeste vivere alterum non laedere suum cuique tribuere ou seja São estes os preceitos do Direito viver honestamente não lesar o próximo dar a cada um o que é seu A esse preceito Epicuro denominava justo segundo a natureza Quem burlasse esse pacto ou mesmo cometesse injustiça no seu caminho para fugir do sofrimento era punido principalmente por ele mesmo pelo temor de um dia ser descoberto e castigado por aqueles que têm a função de descobrir e castigar Em suma para Epicuro o bem está no equilíbrio O HOMEM BEMNASCIDO SE DEDICA principalmente à sabedoria e à amizade dois bens dos quais um é mortale o outro imortal Epicuro Estoicismo a resistência ao prazer Os filósofos do estoicismo diferentemente dos epicuristas pregavam que o homem devia enfrentar os seus deveres mesmo que tivesse que suportar dores e desconfortos Desse modo a recomendação era de que a vida devia ser uma constante prática virtuosa o que incluía despirse de preocupações com a riqueza a morte a fome o cansaço Tudo isso deveria ser aturado em nome de alcançarse a sabedoria o único valor efetivo da humanidade Portanto o objetivo maior era a virtude O mundo para os estoicos era regido por uma lógica universal Ser estoico equivalia a ser indiferente em relação a tudo fosse prazer ou sofrimento que não tivesse ligação direta com a aquisição da sabedoria Viver de acordo com a natureza e não contra ela superando paixões e desejos Os estoicos e suas circunstâncias Embora Zenon de Cítio tenha sido o fundador do estoicismo foram seus seguidores que transformaram sua doutrina em contribuições diretas para a organização social da época Um deles foi o imperador romano Marco Aurélio Outro foi o escritor Sêneca que defendia uma vida simples e despojada obediente à ética e à predestinação11 Mas talvez o mais importante dos estoicos tenha sido o romano Marco Túlio Cícero Grande orador e advogado tinha especial ojeriza por um dos chefes políticos Lúcio Catilina auxiliar do imperador Pompeu Contra esse chefe Cícero um dia teria dito segundo relata Plutarco Uma vez que empregamos no governo eu a palavra e tu as armas é preciso que um muro se erga entre nós Cícero viveu em uma Roma violenta onde a República incipiente não se consolidava por causa de intermináveis intrigas de poder Havia assassinatos frequentes os escravos eram tratados com a máxima brutalidade e o triunvirato governante estava mais ocupado em guerras de conquistas do que em cuidar da organização políticosocial da capital Pompeu na Ásia César na Gália e Crasso na Pérsia Os estoicos e suas ideias Cícero sintetizando o pensamento estoico dizia que a elevação da alma se percebe nos perigos e nos trabalhos Para os filósofos do estoicismo os epicuristas erravam quando orientavam os cidadãos a trabalhar por si próprios pela sua comodidade individual O correto seria lutar pelo bem comum pela sociedade como um todo A filosofia para os estoicos servia apenas para a solução dos problemas morais da humanidade Portanto a filosofia era um instrumento uma ferramenta pragmática Da mesma forma que os epicuristas os estoicos ensinavam que os sentidos são os fundamentos para o conhecimento Do ponto de vista político não limitavam o homem à sua cidade natal ou de adoção Ao contrário o homem era considerado um cidadão do mundo um habitante do universo ou do cosmos e daí surgiu a palavra cosmopolita Epiteto ou Epitecto foi um dos filósofos estoicos Nasceu na cidade de Hierápolis na Frígia região da Grécia localizada no continente asiático que hoje é a Turquia Viveu entre os anos 50 e 135 depois de Cristo as datas são aproximadas Menino ainda foi levado para Roma como escravo Mas graças aos bons relacionamentos de seu senhor estudou filosofia com o estoico Musônio Rufo Sabese que por volta dos 40 anos de idade obteve a libertação por condescendência do imperador ou simplesmente porque o monarca queria os filósofos estoicos exilados longe de Roma Epiteto seguiu então para a Grécia onde na cidade de Nicópolis abriu uma escola Nada escreveu mas seus ensinamentos foram registrados por Flavio Arriamo que viria a ser mais tarde o historiador de Alexandre o Grande que publicou seus discursos num livro conhecido como Manual ou Discursos de Epiteto Seu pensamento influenciou inclusive o imperador Marco Aurélio na produção do livro Meditações Ao lado de Sêneca outro filósofo que havia sido escravo e do próprio Marco Aurélio Epiteto inaugurou o movimento conhecido como os novos estoicos que prezava a virtude como o único valor real da sociedade O fundamento de sua doutrina que passou a fazer parte da Ética era o sentimento do dever e da responsabilidade Quando Platão sonhou com a existência de um líder que pensasse como filósofo e que avaliasse o mundo por meio da razão mas com sensibilidade pelo bem da coletividade não imaginou certamente que menos de cinco séculos depois surgiria um homem assim Marco Aurélio o imperador filósofo responsável pelo que talvez tenha sido o momento mais digno e importante da Roma dos Césares foi esse homem Viveu entre os anos 121 e 180 depois de Cristo e enfrentou muitas guerras para manter a hegemonia de um império já decadente mas mesmo nos acampamentos nos intervalos entre batalhas encontrou tempo e serenidade para escrever sobre o sentido da passagem do homem pela Terra Suas reflexões em trechos curtos mas de grande densidade e muita doçura foram reunidas depois de sua morte e publicadas num livro que se intitulou Meditações É um livro de posições sábias no qual o filósofo demonstra a necessidade de compreender mais do que censurar as pessoas que apresentam defeitos de caráter Assim recomenda perdoar o mentiroso o arrogante o avarento o invejoso e até mesmo o traidor E não apenas recomendou mas agiu conforme pregava Foi um imperador bondoso e sábio Num filme lançado no ano 2000 chamado O gladiador dirigido por Ridley Scott o imperador é vivido pelo ator Richard Harris Foram respeitadas as atitudes do imperador no sentido de percepção racional do mundo mas ao mesmo tempo de sensibilidade e de respeito pelas pessoas inclusive os inimigos e o próprio filho traidor interpretado pelo ator Joaquim Phoenix O MELHOR MODO DE VINGARSE DE UM INIMIGO é não se assemelhar a ele Marco Aurélio Entendendo a história o direito em Roma O direito romano teve por base a doutrina estoica no sentido de que formulava deveres e atitudes que deviam ser seguidos universalmente Cícero pensava serem mais importantes os padrões morais do que as leis outorgadas pelos governantes verificandose aí portanto o princípio do Direito Natural O governo para ele servia tão somente para proteger a vida e a propriedade dos cidadãos Resumidamente podemos dizer que a moral estoica determinava que o homem para ser virtuoso usasse a racionalidade para respeitar a ordem divina e viver de acordo com essa ordem Dois acontecimentos alteraram o quadro político e social depois de Aristóteles Um deles foi o surgimento de Roma como potência militar e já vimos que o estoicismo desenvolveuse ao tempo do Império Romano tendo contribuído largamente para a construção do pensamento jurídico O outro acontecimento foi o advento do cristianismo que representou uma nova maneira de pensar o papel do homem no mundo e que de certa forma levou à queda do Império Romano Enquanto o pensamento cristão se consolidava surgiram alguns movimentos filosóficos mas sem grande originalidade Um desses movimentos foi o gnosticismo um misto de filosofia antiga elementos cristãos e mitos pagãos Seus representantes mais importantes Basílides e Valentim Já dentro do cristianismo no século II depois de Cristo o primeiro movimento filosófico ficou conhecido como apologista Era formado por padres católicos que buscavam divulgar a doutrina religiosa aos intelectuais da época como se fosse uma corrente filosófica Desse modo pretendiam escapar do martírio imposto a quem negava os deuses pagãos Um desses padres foi Santo Aristides que teria sido responsável pela decisão do imperador romano Adriano de moderar a perseguição aos cristãos Mas um dos mais importantes foi o neoplatonismo uma espécie de resgate da filosofia de Platão combinada com algumas ideias de Aristóteles as coisas chegam mais perto da perfeição quando se aproximam de Deus Seu principal representante foi Plotino Plotino nasceu em 205 já na era cristã em Licópolis no Alto Egito Aos 28 anos como costumavam fazer todos os intelectuais da época seguiu para Alexandria a cidade onde havia a mais importante biblioteca da Antiguidade Ali foi ser discípulo de Amônio Sacas que lhe ensinou a filosofia da escola neoplatônica Entusiasmado pretendeu aprofundarse e quis conhecer a filosofia dos persas a Pérsia é o atual Irã Assim no ano de 243 da era cristã alistouse no exército do imperador Giordano Participou de várias batalhas militares e acabou por desistir Seguiu para Roma e abriu uma escola onde passou a ensinar uma doutrina que reuniu em 54 tratados O pensamento de Plotino tem por base três substâncias que ele chamou de hipóstases A primeira é o Uno um deus absoluto que é a fonte de todo ser e de todo conhecimento A segunda substância é a Inteligência princípio geral que faz com que se desenvolva a justiça a virtude e a beleza A terceira substância é a Alma não a alma individual mas uma alma universal superior Abaixo dessas substâncias ou hipóstases está o mundo material onde estamos nós humanos não criaturas do Uno mas apenas derivadas de sua essência e que devem absorver a Inteligência para desenvolver a alma individual no sentido do que é bom e do que é belo como queria Platão A doutrina de Plotino foi difundida pelo seu discípulo Porfírio e consta que influenciou profundamente o pensamento e a obra de Santo Agostinho A ALMA SÓ É BELA PELA INTELIGÊNCIA e as outras coisas tanto nas ações como nas intenções só são belas pela alma que lhes dá a forma da beleza Plotino LINHA DO TEMPO PRIMÓRDIOS DA FILOSOFIA datas prováveis Ano 2100 aC Primeira tentativa conhecida de organização de leis o Código de UrNammu na Assíria Ano 1780 aC Criado o Código de Hamurabi com forte reciprocidade entre delito e pena Ano 1500 aC Surge a filosofia naturalista primeira organização do pensamento grego na região que hoje compreende Grécia Turquia e Chipre Ano 600 aC Considerase a data de início da fase inaugural da filosofia grega com Tales de Mileto Ano 580 aC Anaximandro de Mileto desenvolve a teoria do infinito Ano 560 aC Anaxímeses de Mileto afirma que a lua brilha porque recebe luz do sol Ano 530 aC Xenófanes de Cólofon questiona a tradição grega de representar as divindades em forma humana com igual qualidade moral Ano 520 aC Heráclito defende que há uma constante transformação no universo Ano 510 aC Pitágoras defende o racionalismo para validade do pensamento Na mesma época surgem os sofistas Ano 500 aC Parmênides iniciou o estudo da Ontologia ciência que investiga a existência dos seres vivos e inanimados Ano 490 aC Empédocles de Agrigento criou a doutrina de que o universo é composto de quatro substâncias água fogo terra e ar Ano 470 aC Anaxágoras de Clazômenas explica o fenômeno dos eclipses Ano 460 aC Zenon de Eleia cria a dialética a técnica da argumentação Na mesma época Protágoras o idealizador da sofística utiliza pela primeira vez o termo filosofia no sentido daquele que anseia pelo conhecimento Ano 450 aC Leucipo de Abdera estabelece o átomo como elemento primordial de todas as coisas Suas descobertas tiveram grande influência na química e na física modernas Ano 441 aC Melisso de Samos comanda a esquadra que derrotou os atenienses de Péricles Também filósofo afirmou que o ser é infinito no tempo Ou seja o ser é eterno Ano 440 aC Demócrito de Abdera primeiro filósofo materialista conclui que a alma não pode ser imortal já que é uma coisa física Ano 440 aC Surge Sócrates que inicia a segunda fase da filosofia grega também chamada de fase dualista Segundo ele quando o homem chega à verdade passa a agir conforme o bem Ano 430 aC Górgias outro sofista afirma o conceito retórico do kairós momento oportuno tempo certo que em teologia significa o tempo de Deus em oposição ao conceito de chronos o tempo cronológico humano que pode ser medido pelo relógio Ano 420 aC Diógenes cria a corrente dos cínicos para quem a virtude consistia em libertarse das normas sociais dos costumes da riqueza e do poder Ano 410 aC Isócrates também sofista afirma o conceito da paideia a educação global que dá ao homem o desejo de se tornar um cidadão perfeito e justo Ano 400 aC Hípias defende uma lei positiva para disciplinar o homem diante da natureza Trasímaco afirma que a lei é apenas instrumento do poder e não garante a moralidade Ano 399 aC Platão principal discípulo de Sócrates assiste à condenação do mestre sobre quem escreveria Apologia de Sócrates Ano 340 aC Epicuro desenvolve a teoria epicurista em que o homem deve privilegiar as coisas positivas sempre respeitando a ética Ano 330 aC Surge a doutrina do estoicismo com Zenon de Cítio pregando que o homem deve enfrentar os seus deveres ainda que isso represente dor e desconforto Ano 322 aC Morre Aristóteles o filósofo que conseguiria fazer a síntese da filosofia existente até então OS FILÓSOFOS DO CRISTIANISMO O pensamento grego clássico foi de tal maneira importante que os primeiros filósofos que seguiam o cristianismo já no início da Idade Média12 ou seja mais de 500 anos depois recorriam ainda aos métodos dos gregos para refletir sobre o homem e sobre o universo A diferença é que naquela época a filosofia baseavase em uma nova premissa a do teocentrismo Deus passava a ser o centro de todas as análises filosóficas das coisas dos seres e dos acontecimentos do mundo Entre as preocupações dos filósofos do cristianismo estava além da religião a moral A um primeiro exame o advento do cristianismo podia representar um retrocesso em relação aos avanços do pensamento da filosofia até aquele momento Era em suma um movimento religioso que usava a filosofia apenas como suporte e colocava a fé acima da razão Isso explica a rejeição inicial que sofreu Mas a dissolução do Império Romano e a presença dos bárbaros na Europa permitiram a organização de uma classe eclesiástica fortalecida e com ela a consolidação do culto cristão Outra diferença entre o cristianismo e o pensamento religioso que imperava na Grécia e em Roma tem conexão com a noção de divindade Aristóteles falava de um deus perfeito olímpico disposto a uma altura de onde apenas observava o mundo O cristianismo por seu turno trazia um Deus tomado pelas paixões humanas como a ira a vingança e a comiseração A partir dessas diferenças e graças a pensadores que se debruçaram sobre as possibilidades abertas pela nova religião começou a ser constituída uma corrente filosófica que seria consolidada inicialmente no primeiro século depois de Cristo por São Paulo considerado o organizador das ideias basilares do cristianismo como doutrina religiosa A principal contribuição de São Paulo no campo do Direito foi uma nova visão do conceito de justiça diferente do que era aceito pela filosofia grega Para ele o homem justo era aquele que vivia pela fé mesmo que não houvesse leis Considerava que toda autoridade provinha de Deus e portanto o homem justo devia obediência às autoridades Em outras palavras assim como o estoicismo de Cícero aproximavase muito do conceito de Direito Natural Mas foi no começo do segundo milênio que a filosofia do cristianismo foi sistematizada por Santo Ambrósio e pouco tempo depois ganhou corpo com Santo Agostinho13 Santo Ambrósio precursor de Santo Agostinho Foi a pregação de Santo Ambrósio como bispo que converteu Santo Agostinho ao cristianismo Santo Ambrósio foi o responsável pelo que se chamou o auge da patrística Nasceu no ano de 340 na cidade de Tiel na Germânia atualmente Alemanha Era irmão de Santa Marcelina Teve origem nobre e chegou a ser governador de Milão Nessa função graças à sua notável capacidade de oratória foi convidado a substituir o bispo de Milão que falecera Para aceitar teve que ser batizado ordenado padre e consagrado bispo tudo isso a um só tempo Durante sua vida religiosa escreveu muitas cartas para governantes pedindo a compreensão deles para com os cristãos Morreu no ano de 397 NINGUÉM CURA a si próprio ferindo o outro Santo Ambrósio Santo Agostinho religião e filosofia Com os aspectos mundanos de sua vida exerceu no seu tempo e continua a exercer hoje muita influência em toda a cultura ocidental mesmo entre os não cristãos Dono de retórica inigualável aproveitou a habilidade para enorme correspondência e para produzir vários livros Escreveu além dos tratados teológicos obras de filosofia embora não tenha proposto um sistema filosófico completo Na filosofia foi um apaixonado em busca da verdade que acreditava estar no interior do homem Seguiu Platão ao afirmar que para conhecer verdadeiramente é preciso estar em contato com o mundo inteligível Seu trabalho tem traços do pensamento estoico Sua obra mais importante A Cidade de Deus tem sido vista como uma afirmação da oposição entre Igreja e Estado mas na realidade é uma lição de síntese entre a religião e a filosofia Santo Agostinho e suas circunstâncias Os escritos de Santo Agostinho representaram uma síntese positiva entre religião e filosofia principalmente nas obras Confissões e A cidade de Deus Concordando com Platão seu principal inspirador Santo Agostinho achava que o homem mesmo submetido à predestinação de origem divina devia permanecer livre em sua vontade Estava posta portanto a diferença entre a lex aeterna lei natural ou lei de Deus que se preocupa com a alma e a lex temporalem lei temporal ou lei dos homens que trata da justiça Santo Agostinho ou Aurélio Agostinho nasceu na província romana de Tagaste na África local onde hoje é a Argélia no ano de 354 Mandado para estudar em Cartago também na África aprendeu literatura e retórica e pôsse a dar aulas Insatisfeito seguiu para Roma em busca de desafios e acabou sendo nomeado para um cargo de professor em Milão onde conheceu Santo Ambrósio que o influenciou profundamente Seu despertar para a filosofia teve esse apoio mas também contribuiu a leitura que fez aos 28 anos da obra de Cícero Decidiuse por receber o batismo das mãos de Santo Ambrósio Algum tempo depois voltou para Hipona onde foi consagrado bispo e onde permaneceu até a morte no ano 430 Como bispo Santo Agostinho promoveu a canonização da própria mãe Santa Mônica Santo Agostinho e suas ideias Da mesma forma que já o fizeram Sócrates e Platão Santo Agostinho ensinava que a melhor maneira de purificar o espírito era a educação porque o espírito educado pensaria com clareza e com verdade Além disso quando a pessoa tem fé estaria também mais perto de Deus Em resumo pregava que era preciso chegar ao íntimo do ser para crer e era preciso crer para chegar ao íntimo do ser A forma de fazêlo não seria outra senão estudando conhecendo o mundo pela inteligência e pela razão mas mantendo a fé de que cada coisa já que fora criada por Deus tinha qualidade essencial de bondade e de beleza A partir de Santo Agostinho que tirou a religião da condição de metafísica aproximandoa da filosofia com metodologia de estudo e enfim transformandoa em teologia o cristianismo deixou a clandestinidade e mudou a história do Ocidente JUSTIÇA é dar a cada um o que é seu Santo Agostinho A escolástica Algumas correntes filosóficas foram elaboradas depois de Santo Agostinho umas com mais e outras com menos expressão Não se pode desprezar a importância de Boécio responsável pela tradução das principais obras de Platão e Aristóteles para o latim o que possibilitou que o platonismo e o aristotelismo fossem disseminados no Ocidente Já era de algum modo a escolástica surgindo incipiente Mais tarde já durante e depois do império de Carlos Magno outros pensadores se dedicariam a essa corrente filosófica de retomada do aristotelismo como o irlandês João Escoto o iraniano Avicena e os espanhóis Averróis e Maimônides Santo Tomás de Aquino e a ética A escolástica foi mais um método de aprendizagem do que propriamente uma filosofia O conjunto das doutrinas teológicas e filosóficas de São Tomás de Aquino é chamado de tomismo Foi adotado pelos dominicanos em 1278 e marcou toda a filosofia medieval a ponto de ser declarado o pensamento oficial da Igreja Católica no Concílio de Trento entre 1545 e 1563 Seu ponto mais alto para o direito é a chamada ética tomista embasada na lei eterna e na lei natural Santo Tomás de Aquino e suas circunstâncias A queda do Império Romano do Ocidente em 476 marcou o começo da Idade Média Na Europa esse período histórico é dividido para efeito de estudo em duas etapas A Alta Idade Média que vai do século V ao século X é marcada pelas invasões dos chamados povos bárbaros14 no continente europeu porque a desorganização do Império Romano havia deixado a região indefesa Os bárbaros que habitavam os limites do Império Romano aproveitaram o vazio de poder deixado pelos romanos e atacaram em ondas crescentes a Europa para repartir o legado germanos entre eles os visigodos ostrogodos anglosaxões e francos os eslavos russos poloneses tchecos e sérvios e os tártarosmongóis turcos búlgaros e hunos esses últimos chefiados por Átila que liderou uma invasão que devastou as cidades italianas de Aquileia Milão e Pavia só não chegou até Roma por intervenção do papa Leão I o Grande15 Cada povo que arrancava um naco do Império Romano fixavase em um ponto e ali constituía um reino O primeiro reino organizado foi o Reino Franco criado pelo rei Clóvis em 481 apenas cinco anos depois da queda de Roma Em 493 o rei Teodorico criava o Reino da Itália Quando Carlos Magno foi coroado imperador no ano 800 o poderoso exército franco o ajudou a criar um império quase tão importante quanto o romano Carlos Magno foi quem fez começar o feudalismo na Europa Era costume desse rei presentear seus comandantes com faixas de terra desde que lhe prestassem obediência Os comandantes cobravam impostos dos camponeses que viviam em suas terras e os subjugavam pela força Todos aqueles que conhecem a lenda de Robin Hood podem ter uma boa ideia de como funcionava o sistema feudal Carlos Magno era um homem apegado à cultura e ao conhecimento Estimulou a criação de escolas promoveu a organização política de seu império incentivou a economia produtiva Foi nesse ambiente que surgiu a escolástica a doutrina mais importante da Idade Média Falaremos da escolástica a seguir mas antes é preciso completar a informação a respeito das duas etapas desse período histórico É preciso dizer que a Baixa Idade Média vai do século XI ou XII para alguns historiadores até o ano de 1453 com a queda de Constantinopla sede do Império Romano do Oriente16 Encerrado o ciclo de invasões bárbaras o continente europeu passou a viver em relativa paz A produção agrícola aumentava e o comércio florescia em decorrência das riquezas trazidas do Oriente pelos cruzados Começava a surgir a nova classe da burguesia Foi o período em que o feudalismo entrava em decadência e o império francês perdia terreno para uma nova força a dos ingleses Surgiam os primeiros artefatos que mais tarde quando plenamente desenvolvidos resultariam da Revolução Industrial por exemplo o arado de ferro equipado com rodas o que facilitou sobremaneira a agricultura Santo Tomás de Aquino foi o maior representante da doutrina escolástica Viveu entre 1225 e 1274 Também foi um dos doutores da Igreja sob o codinome de Doctor Angelicus Era filho de nobres feudais e causou grande polêmica na família ao abandonar tudo para juntarse à ordem dos dominicanos seguindo o exemplo de seu mestre na Universidade de Paris Alberto Magno também filho de nobres e o grande responsável pelo resgate do pensamento de Aristóteles para a cultura ocidental também é santo e um dos doutores da Igreja Depois de estudar na Universidade de Colônia na Alemanha Santo Tomás de Aquino voltou para Paris para lecionar teologia Ensinou também em Nápoles Foi homem de confiança do papa Gregório X tendo sido chamado por ele para ajudar a organizar o Concílio de Lião evento que não pôde acompanhar porque morreu antes Santo Tomás de Aquino e suas ideias Santo Tomás de Aquino sistematizou a obra de Aristóteles dando nova feição ao pensamento do grego sobre lógica física metafísica e ética Em suas obras tratou de considerar a filosofia um tema distinto da teologia A teologia para ele tinha relação com a fé com a revelação enquanto a filosofia era um estudo racional Nove anos antes de morrer começou a sua obra mais expressiva Suma Teológica que ficou inacabada Enquanto Santo Agostinho considerava que a fé era o principal instrumento para que o homem alcançasse a virtude Santo Tomás de Aquino veio colocar a razão ao nível da fé fides et ratio o que foi tremenda novidade para a época Para ele os atos humanos na vida política e social devem ser considerados para efeito de atribuição de justiça Por ser um ente racional inteligente o homem saberia naturalmente o que fazer para fazer o bem e evitar o mal Era o que o filósofo chamava de lei natural emanada de Deus Mas admitia a existência de outra lei concebida pelos homens constituída pelas normas jurídicas estabelecidas pelos homens revestidos de autoridade diante do seu grupo No entanto os governantes embora fossem necessários para orientar a vida em comunidade não poderiam fazer leis que entrassem em contradição com a lei natural As leis dos homens teriam que ser pedagógicas para mostrar o caminho do bem e prever castigo para quem insistisse em desviarse dele Seu grande mestre foi Santo Alberto Magno alemão com quem trabalhou na Universidade de Colônia Santo Alberto Magno foi o responsável pela introdução do pensamento de Aristóteles na filosofia cristã e no estudo das ciências contribuindo para o desenvolvimento da cultura ocidental As ideias de Santo Tomás de Aquino pregam que o homem com sua inteligência deve perceber Deus e adequar as suas atitudes a valores perenes só assim conseguindo realizar a felicidade Entre as disposições necessárias para alcançar o bem estava o afastamento do materialismo Santo Tomás de Aquino e sua influência no direito Ao contrário de seu inspirador Aristóteles Santo Tomás de Aquino considerava que a moral deveria ser pensada em termos de obrigação e dever recompensa e castigo O homem tomaria o caminho do bem pela vontade ou seja pela inteligência e não somente pela fé em Deus e em seus ensinamentos Tomaria o caminho do bem por meio de atitudes éticas que objetivassem obter a convivência dos homens num ambiente de paz A ação boa leva a um bom fim dizia Santo Tomás de Aquino De forma semelhante ao que já dizia Sócrates afirmava que o homem que pratica o mal não o faz simplesmente porque o quer mas porque ignora o bem E eis aí porque considera a educação uma prática fundamental principalmente dos governos O condutor da vontade coletiva ou seja a moral deveria ser o governo não importava que forma tivesse aristocracia democracia monarquia ou república o fundamental era que servisse ao povo Miguel Reale afirma que Santo Tomás de Aquino subordina a sua teoria de justiça ao conceito objetivo de lei ou mais precisamente da lex aeterna a qual ordena o cosmos de conformidade com a razão do Legislador supremo assim como numa comunidade a lex humana representa a ordem dada por quem racionalmente a dirige de conformidade com o bem comum17 Haveria pois nas lições de Santo Tomás de Aquino três categorias de leis A lei eterna emanada de Deus é aquela segundo a qual o cosmos está disciplinado e se mantém equilibrado com seus planetas em órbita A lei natural é aquela que ordena a vida dos seres vivos no aspecto biológico e é resultado direto da lei eterna portanto também provém de Deus E a lei humana é o conjunto de normas que regula a vida em sociedade e que abrange a justiça a moral e a ética Vamos detalhar melhor esses conceitos A lei eterna se constitui na razão ou plano da divina sabedoria enquanto dirige todos os atos e movimentos das criaturas É o que Santo Tomás de Aquino dizia tratarse do plano de Deus para o governo de suas criaturas Cada criatura tem uma lei própria que rege sua natureza segundo o projeto de Deus A lei eterna é a base de todas as demais leis tem como essência a verdade e a justiça e é sobre ela que repousa a autoridade originada em Deus A lei natural emanada da lei eterna abrange a atividade humana moral Resulta da inteligência e da vontade do homem mas não pode se opor à lei eterna Tem por princípio a sindérese que é o conjunto dos princípios que norteiam o homem a praticar o bem e evitar o mal A lei positiva humana em conceito simplificado é a regra a norma que rege as atividades humanas específicas Como normas particulares são mutáveis mas são regidas pela lei natural e pela lei eterna e deverão ser sempre orientadas para a rejeição do mal e para a busca da virtude A LEI NÃO É O MESMO DIREITO senão certa razão deste Santo Tomás de Aquino JUSTIÇA É DAR A CADA UM de acordo com o seu merecimento Santo Tomás de Aquino OUTROS PENSADORES DA IDADE MÉDIA Os franciscanos ingleses Embora a Igreja Católica tivesse oficializado o tomismo de Santo Tomás de Aquino como a doutrina teológica e filosófica da moderação vários pensadores que vieram depois insistiam em seguir os pensamentos mais radicais de Santo Agostinho Foi o caso dos frades da Ordem de São Francisco Guilherme de Ockham e suas circunstâncias A doutrina de Guilherme de Ockham opunhase radicalmente ao pensamento de Aristóteles e consequentemente ao de Santo Tomás de Aquino para quem a natureza de um ser forçosamente exibia relações com outros elementos do universo Suas ideias inspiraram Hans Kelsen Guilherme de Ockham frade franciscano pregava e vivia a pobreza como meio de aproximação com a doutrina de São Francisco fundador da ordem Perseguido pelo papa João XXII que decretou em 1324 que os bens doados à Ordem Franciscana deveriam pertencer ao Vaticano revoltouse e teve que se refugiar na corte do rei Luís da Baviera então inimigo do papa Começou então a defender a separação do poder secular dos reis do poder da igreja Acusado de heresia foi excomungado Guilherme de Ockham e sua influência no direito Era adepto da chamada doutrina nominalista segundo a qual o indivíduo não é ligado por natureza ao caráter universal do mundo O indivíduo para os nominalistas é apenas ele próprio representado pelo seu nome e essa é a razão pela qual a corrente filosófica recebeu essa denominação Frequentemente conhecida como Lei da Parcimônia ou Lex parcimoniae pregava que a natureza é em sim mesma econômica De tal forma o homem deveria sempre imitar a natureza buscando em suas teorias eliminar todos os conceitos supérfluos e adotar o caminho mais simples Essa simplicidade de raciocínio ficou conhecida como a navalha de Ockham porque corta as relações do indivíduo com o meio onde vive No âmbito jurídico o nominalismo orientaria a ciência do direito para o chamado positivismo ou afastamento dessa ciência de todas as influências externas que não lhe diriam respeito tais como a moral e as valorações Outra grande contribuição desse pensador para o direito foi estabelecer um contraponto ao pensamento de Santo Tomás de Aquino pregando a separação entre fé teologia e razão filosofia Para ele a prova de algo deve ter concretude e evidência em si mesma É o empirismo levado às últimas consequências Portanto o direito natural não tinha ascendência sobre a norma legal Tais ideias inspirariam Hans Kelsen no desenvolvimento de sua Teoria Pura do Direito É VÃO FAZER com mais quando se pode fazer com menos Guilherme de Ockham Duns Scotus e suas circunstâncias Foi Duns Scotus o Doutor Sutil quem iniciou a grande discussão entre o individual e universal que Guilherme de Ockham seu seguidor consolidaria como o nominalismo Opunhase a Santo Tomás de Aquino no tocante à relação entre razão e fé Johannes Duns Scotus também franciscano também inglês e também crítico de Santo Tomás de Aquino considerava que Deus estava acima de qualquer atitude racional Como Ockham de quem foi precursor separava fé e razão As intenções de Deus segundo ele estão acima da inteligência do homem e não podem ser percebidas pela filosofia mas apenas pela fé Em razão de sua atividade religiosa foi elevado a Beato da Igreja pelo papa João Paulo II em 1993 Duns Scotus e sua influência no direito Deus é a liberdade absoluta e aos homens cabe seguir a lei dos homens Considerava que as verdades da fé não poderiam ser compreendidas pela razão A filosofia assim deveria deixar de ser uma serva da teologia como vinha ocorrendo ao longo de toda a Idade Média e adquirir autonomia Não defendia a ética das virtudes mas a moral Trabalhou com a lei natural e o direito natural defendendo que esse imperativo não está baseado em autoridade ou lei positiva Por isso seu pensamento auxilia grandemente nas questões morais como a bioética por exemplo O CONHECIMENTO científico deve captar o que há de necessário nas coisas finitas Duns Scotus Roger Bacon e suas circunstâncias Os estudos realizados por Roger Bacon o Doutor Mirabilis principalmente na matemática e na ótica foram uma espécie de iniciação para a transição entre o pensamento clássico e o pensamento científico que levaria à ciência moderna Considerava que São Tomás de Aquino tinha ajudado a destruir a teologia Roger Bacon foi outro frade franciscano cuja contribuição filosófica é de que a razão base do conhecimento deve servir como suporte para a fé teológica Considerava a fé a base de todo conhecimento mas aceitava que a razão era importante para alcançar o saber Diferentemente da maioria dos filósofos de seu tempo mais dados à especulação e à teoria Roger Bacon lançou mão de experiências como forma de ampliação de conhecimentos Essas experiências foram confundidas com alquimia na época que era condenada pela Igreja Por isso foi acusado de heresia e acabou preso entre 1277 e 1279 Roger Bacon e sua influência no direito Roger Bacon acreditava que embora as Escrituras fossem a base de todo conhecimento o homem podia usar a razão para apreender o conhecimento Achava impossível que um argumento racional fosse capaz de fornecer qualquer prova convincente de algo mas admitia que com a razão uma pessoa podia formular hipóteses que viriam ou não a ser confirmadas pela experiência Suas ideias têm especial aplicação no direito canônico LINHA DO TEMPO OS FILÓSOFOS DO CRISTIANISMO datas aproximadas Ano 40 São Paulo organiza as ideias basilares do cristianismo como doutrina religiosa Ano 100 São Justo e Santo Irineu produzem os primeiros comentários teológicos da doutrina cristã com base no pensamento de Platão Ano 340 Nasce Santo Ambrósio que seria o responsável pelo período mais importante da patrística Ano 354 Nasce Santo Agostinho responsável por fazer uma síntese entre religião e filosofia principalmente nas obras Confissões e A cidade de Deus Ano 476 Começa a Idade Média com a queda do Império Romano do Ocidente Ano 480 Nasce Boécio filósofo romano que traduziria para o latim as obras clássicas dos gregos Porfírio e Aristóteles nas quais seria fundamentada a filosofia da Europa medieval Ano 533 O imperador Justiniano publica a reunião de comentários de juristas romanos sobre as leis em uso no Império O trabalho constituiria o Digesto ou Pandectas além das Institutas espécie de manual do direito Ano 1215 João SemTerra promulga a Magna Carta talvez o primeiro documento oficial relativo a direitos humanos na história Ano 1225 Nasce Santo Tomás de Aquino que sistematizou a obra de Aristóteles dando nova feição ao pensamento do grego sobre lógica física metafísica e ética Essa nova feição foi chamada escolástica Ano 1324 O papa João XXII toma os bens dos frades da Ordem Franciscana que se recusavam a seguir o tomismo de Santo Tomás de Aquino e insistiam em seguir as ideias de Santo Agostinho Os principais frades franciscanos foram Johannes Duns Scotus Guilherme de Ockham e Roger Bacon SEGUNDA PARTE OS PRIMEIROS PASSOSpara aMODERNIDADE TRANSIÇÃO DA IDADE MÉDIA PARA A MODERNIDADE Veio o primeiro milênio e crescia a tendência de privilegiar a ciência e não mais a religião como forma de atingir o conhecimento A reação da Igreja a essa ideia foi feroz e a maior prova disso foi a instituição da chamada Santa Inquisição em Verona na Itália em 1184 A inquisição foi oficializada em 1229 pelo papa Gregório IX sob a denominação de Tribunal do Santo Ofício e espalhouse rapidamente para a Espanha Portugal França Escócia Inglaterra e Alemanha18 Mas o fim da Idade Média oficialmente medido pela tomada de Constantinopla já tinha sido marcado por um prelúdio religioso em 1054 o Grande Cisma19 Com duas sedes o Império Romano que já então era o império carolíngio fundado por Carlos Magno no ano 800 com apoio do papa Leão III estava no Ocidente instalado em Milão e no Oriente em Constantinopla atual Istambul No Oriente o islamismo começava a ocupar grandes espaços entre a população Os católicos do Oriente enxergavam atos de corrupção entre os membros do alto clero houve até aventureiros que apoiados por reis conseguiram tornarse papas Benedito IX por exemplo foi entronizado como papa aos 12 anos de idade Alexandre VI outro papa de triste memória era acusado entre outros crimes de ser amante da própria filha Lucrécia Bórgia Por seu lado o papa Leão IX considerava que os orientais desvirtuavam os rituais e punham em risco a credibilidade da Igreja Católica Por isso escreveu e mandou entregar uma relação de erros da Igreja oriental na sua avaliação O patriarca oriental Cerulárius reagiu escrevendo outra relação descrevendo erros que a Igreja ocidental cometia Em ato oficial ambos declararam que o outro estava excomungado E assim foi bipartida há mais de mil anos a Igreja Católica a Igreja GregaOrtodoxa e a Igreja Católica Apostólica Romana O segundo momento que a história descreve como o início oficial da Idade Moderna foi a tomada de Constantinopla pelo Império Otomano em 1453 Com essa invasão pôsse fim à hegemonia carolíngia e desenharamse novos perfis religiosos políticos e comerciais para o mundo Com a principal rota de comércio bloqueada pelas tropas do sultão Maomé II os europeus tiveram que buscar caminhos alternativos o que deu ensejo às chamadas Grandes Navegações Para atravessar novos mares foi preciso estudar astronomia engenharia naval técnicas de suprimento cartografia matemática tudo isso constituindo impulso tremendo para a ciência Estava posta a utilidade do pensamento científico que passa portanto a se sobrepujar ao pensamento filosófico RENASCIMENTO E HUMANISMO Como decorrência das grandes mudanças impulsionadas na Europa pelas Grandes Navegações invenção da bússola desenvolvimento da indústria naval e descoberta de novos centros de comércio os homens foram deixando a agricultura de subsistência e se concentrando em centros urbanos Foram sendo criadas as cidades Vivendo mais estreitamente em grupo os homens principiaram uma tendência de valorização de si mesmos contra a determinação até então vigente de submissão completa à ideia de que tudo provinha e era determinado por Deus O humanismo como movimento filosófico mas principalmente estético colocava o homem como centro do universo definia a natureza como domínio do homem e privilegiava a ação em detrimento da contemplação Em suma o homem passava no humanismo a ser dono do seu próprio destino e em benefício dele é que deviam ser realizados todos os estudos Talvez o poeta italiano Francisco Petrarca 13041374 tenha sido o primeiro pensador do humanismo Em seus livros promoveu a crítica e o julgamento do período medieval Especialmente em Estudos de humanidades consegue elaborar os primeiros conceitos do que viria a ser a consciência moderna que o Renascimento celebraria Ao seu lado compartilhando amizade e pensamento podemos colocar como iniciador do humanismo o escritor florentino Giovanni Boccaccio 13131375 autor de Decameron considerado o criador da prosa italiana Na base filosófica do humanismo estava a retomada do pensamento de Platão Em primeiro lugar porque era uma forma de oposição à doutrina dominante da Igreja a escolástica de Santo Tomás de Aquino calcada em Aristóteles Mas também porque parecia aos humanistas que o pensamento de Platão retomava um conceito estético mais direcionado para o homem do que para a divindade Com efeito Platão dizia que o homem pode alcançar a perfeição do corpo e da alma pela via da educação Esse ensinamento agradava muito aos humanistas A Igreja medieval pela escolástica pregava que a desigualdade era natural e que o homem devia ter a humildade de submeterse às autoridades definidas por Deus mas essas autoridades usavam o poder para oprimir O novo conceito trazido pelo humanismo pregava a igualdade e a elevação dos humildes a novos níveis sociais Mais do que isso o humanismo fazia emergir a noção de que todos os homens têm direitos já que todos são iguais Admirando Platão era natural que no humanismo a admiração pela cultura clássica antiga ressurgisse renascesse e daí a denominação de Renascimento dada a esse movimento estético do qual o holandês Erasmo de Rotterdam foi o maior representante Erasmo de Rotterdam o grande humanista Erasmo de Rotterdam dedicou a Thomas Morus a sua maior obra Elogio à loucura No livro credita à loucura as mediocridades e hipocrisias humanas Mas a loucura é na realidade uma grande metáfora para criticar os desmandos das autoridades eclesiásticas Padre e teólogo holandês Erasmo de Rotterdam nasceu em 1467 e morreu em 1536 Passou a maior parte da vida na França Sua primeira obra Colóquios e antibárbaros tem conteúdo escolástico contra a valorização da Antiguidade Clássica Mas numa viagem à Inglaterra conheceu Thomas Morus e tomou contato com o humanismo Começou a questionar as práticas dos representantes da Igreja da época que haviam perdido a simplicidade e o despojamento Escreve Filosofia christi condenando a estrutura da Igreja e as atitudes mercantilistas dos padres Erasmo de Rotterdam chegou a ser convidado por Martinho Lutero para juntarse ao novo protestantismo mas recusou e permaneceu na Igreja Católica Escreveu obras de cunho político em que condena a monarquia hereditária e defende a eleição direta Pregava que o governante só seria legítimo se fosse aceito pelos cidadãos Thomas Morus crítico da realeza Thomas Morus é autor de muitas obras sendo a mais conhecida o livro Utopia em que descreve uma ilha em referência clara à Inglaterra onde o povo tem participação no governo e é corresponsável ao lado dos governantes pela definição do seu destino Segundo Thomas Morus um Estado sobrevive quando consegue se apoiar na capacidade individual de seus habitantes Outro filósofo renascentista a discutir as instituições da época foi o inglês Thomas More mais tarde canonizado como São Tomás Morus Nasceu em 1478 e morreu em 1535 Filho de juiz foi advogado e depois parlamentar influente Graças a isso foi levado a participar da corte do rei Henrique VIII primeiro como embaixador e depois como chanceler da Inglaterra Contrariado como católico pela intenção do rei de se separar de Catarina de Aragão para se casar com Ana Bolena abandonou o cargo em 1532 O rei em retaliação convocouo para prestar juramento do seu casamento depois de se declarar líder da Igreja na Inglaterra em 1534 Ao recusar foi preso na Torre de Londres e decapitado O papa João Paulo II o declarou patrono dos políticos Foi partidário do Direito Natural aquele concedido por Deus a todos os homens e que não pode ser suplantado por qualquer outra norma elaborada pelos homens Sua crítica mais profunda dirigiase aos reis que utilizavam o poder apenas para satisfazer seus próprios caprichos em vez de usálo para preencher as necessidades do povo O pensamento de Thomas Morus teve também grande importância para o sistema jurídico Já naquela época em palavras que muito se adéquam à realidade atual de muitos ordenamentos ao redor do mundo alertava para o fato de que uma excessiva quantidade de leis decretos e normas conduzem o Estado à imobilidade e à inoperância e mais do que isso ajuda a disfarçar desmandos e atos de corrupção Maquiavel e a decadência política Nicolau Maquiavel escreveu O príncipe em 1512 que só seria publicado cinco anos depois de sua morte Uma obra ainda hoje mal interpretada Embora se imagine que o livro defenda os soberanos autoritários na realidade é um manual de política que lista e condena atos que agridem os direitos humanos e que exibem a decadência da Europa da época A frase mais conhecida do livro de que o fim justifica os meios é apenas uma constatação de como agem os tiranos No aspecto político filósofos humanistas como o italiano Nicolau Maquiavel20 punham sob dúvida o poder divino de reis e imperadores que centralizavam com despóticas mãos de ferro o controle político e religioso Esses governantes tinham quase sempre apoio de papas prelados e bispos que se aproveitavam da proximidade com a realeza para justificar as práticas mais mundanas como ocorria com a venda de indulgência Maquiavel mudou o foco não mais a predestinação estabelecida pela divindade e seus representantes mas a ação humana como elemento definidor do destino do próprio homem Nasceu em Florença em 1469 Cresceu num ambiente de transformações de toda ordem religiosas sociais e políticas Era o tempo do papa Alexandre VI da família Bórgia famosa pela sua falta de ética na condução da Igreja Na economia emergia uma classe burguesa que disputava poder com os monarcas e com os líderes religiosos Na política Florença havia se tornado república com a destituição da dinastia dos Médici mas com o retorno da família ao poder Maquiavel foi exilado aproveitando o período de afastamento para escrever O príncipe talvez segundo alguns historiadores como forma de tentar se reaproximar dos poderosos Na política interessouo especialmente o absolutismo que era então uma novidade que se contrapunha aos soberanos feudais Encantouse com a ideia de um governante absolutista com papel de unificador Tal postura se justifica em grande parte pelas circunstâncias históricas em que viveu Não se deve esquecer que a Itália do tempo de Maquiavel era uma verdadeira colcha de retalhos de ducados condados e principados com dialetos e costumes A unificação da Itália só seria finalizada de fato na segunda metade do século XIX após décadas de lutas com a anexação dos dois últimos territórios Roma e Veneza Já a luta pelo fim das monarquias só chegaria a seu fim muitos anos mais tarde Em 1946 após o efêmero reinado de apenas um mês de Humberto II um plebiscito levaria à proclamação da República o que mudaria definitivamente os rumos da história da Itália LINHA DO TEMPO OS PRIMEIROS PASSOS PARA A MODERNIDADE Ano 1054 Ocorre o Grande Cisma em que a Igreja Católica ficou bipartida a Igreja GregaOrtodoxa e a Igreja Católica Apostólica Romana Ano 1184 Criada a Inquisição em Verona na Itália para combater os pensadores que queriam privilegiar a ciência e não mais a religião como forma de atingir o conhecimento Ano 1229 O papa Gregório IX oficializa a Inquisição sob o nome de Tribunal do Santo Ofício Ano 1304 Nasce Francisco Petrarca possivelmente o primeiro pensador do humanismo movimento filosófico que punha o homem como figura central do universo O humanismo retoma o pensamento de Platão mais voltado para o homem do que para a divindade Ano 1313 Nasce Giovanni Boccaccio considerado o criador da prosa italiana um dos primeiros autores do renascimento Ano 1378 Novo cisma na Igreja Católica coexistem dois papas um em Roma e outro na França Ano 1453 O império otomano toma a cidade de Constantinopla fato que inaugura a Idade Moderna Ano 1467 Nasce Erasmo de Rotterdam considerado o grande humanista Autor de Elogio à loucura Condenava a monarquia hereditária e defendia a eleição direta Ano 1469 Nasce Nicolau Maquiavel Autor de O príncipe Defendia a ideia de um governo absolutista que funcionasse como unificador Ano 1478 Nasce Thomas Morus Autor de Utopia Em sua obra criticou os reis que utilizavam o poder apenas para satisfazer seus próprios caprichos em vez de usálo para preencher as necessidades do povo Alertou para o fato de que uma excessiva quantidade de leis decretos e normas conduzem o Estado à imobilidade e à inoperância e mais do que isso ajuda a disfarçar desmandos e atos de corrupção TERCEIRA PARTE A IDADE MODERNAdaFILOSOFIA AS CIRCUNSTÂNCIAS DO INÍCIO DA IDADE MODERNA Na arte o humanismo despontava com a estética chamada renascentista representando a volta da sociedade aos valores do período clássico Nesse período Michelangelo pintou o teto da capela Sistina em 1512 e Da Vinci produziu suas obras mais expressivas Miguel de Cervantes escreveu Dom Quijote de la Mancha e Shakespeare as suas principais tragédias Na economia o feudalismo entrava em declínio com a diminuição da dependência da agricultura de subsistência Aparatos mecânicos eram continuamente introduzidos em todas as áreas produtivas levando a importantes alterações em praticamente todas as instituições O homem aprendeu a usar a lã de ovelhas em teares semiautomáticos para produzir tecidos de qualidade Aprendeu a usar arados mais sofisticados que encurtavam o ciclo de plantio Aprendeu técnicas de conservação de alimentos e aprendeu a lidar com a madeira E mais importante aperfeiçoou a siderurgia Também na filosofia grandes foram as evoluções verificadas A Idade Moderna coincide com o declínio da escolástica de Santo Tomás de Aquino em prol do subjetivismo moderno Com efeito o pluralismo escolástico que pregava ser natural que por uma determinação divina os seres fossem diferentes e tivessem diferentes graus de importância para o mundo não mais satisfazia os pensadores modernos Já influenciados pelo movimento do humanismo viam o indivíduo como centro do mundo liberto de sua submissão a Deus podendo ascender e evoluir a despeito de sua condição de nascimento Com essa nova maneira de pensar e galgando novos patamares econômicos o povo mais consciente de si mesmo começava a desejar direitos individuais nas asas do nominalismo que os frades franciscanos pregavam em oposição a Santo Tomás de Aquino Da mesma forma a limitada lógica formal pregada pela escolástica deixou de oferecer respostas suficientes aos questionamentos que naturalmente emergiam A filosofia moderna queria o conhecimento universal e passaram a buscálo pela via da articulação de sistemas mecânicos pelo pensamento pela postura racional Mas a grande batalha contra o imenso poder da Igreja Católica só seria travada por Calvino e Lutero na Reforma Protestante A REFORMA PROTESTANTE O ordenamento social político e jurídico era praticado de maneira indissociável pelos reis e pelos líderes eclesiásticos Portanto todos os acontecimentos que envolveram a religião dominante tinham natural consequência sobre a filosofia do direito em todas as épocas que precederam a Idade Contemporânea Um grande exemplo disso foi o caso da Reforma Protestante Martinho Lutero o rebelde ativo A tese de n 86 de Lutero fazia a seguinte pergunta Por que o papa cuja fortuna é maior do que a de qualquer Creso não prefere construir a basílica de São Pedro de seu próprio bolso em vez de o fazer com o dinheiro de cristãos pobres Lutero ainda escreveu diversos panfletos Discurso à nobreza alemã Cativeiro babilônico da Igreja e Sobre a liberdade do homem cristão discutindo principalmente a supremacia da lei de Deus sobre a lei dos homens entre eles os papas Martinho Lutero monge alemão nascido em 1483 foi um grande crítico dos líderes católicos da época Considerava que as autoridades eclesiásticas pregavam uma coisa e praticavam outra e passou anos compilando evidências de hipocrisia privilégios indevidos e abuso de poder Padres desrespeitavam o celibato ocupavam vários cargos ao mesmo tempo e até moravam fora da paróquia que deveriam administrar Além disso muitas pessoas praticavam a simonia que era a compra de posição eclesiástica tornandose padres ou bispos sem terem passado pelos ritos de formação O papa Leão X por exemplo que ficou famoso por determinar em 1517 o aumento da venda de indulgências para levantar fundos para a construção da Basílica de São Pedro em Roma só foi ordenado sacerdote e consagrado bispo após a sua eleição ao papado Descontente com todo esse quadro em 31 de outubro de 1517 afinal Lutero pregou nas portas da Abadia de Wittenberg na Alemanha para discussão pública um relatório que ficou famoso com a denominação de 95 Teses Contra o Comércio de Indulgências Entre elas condenava a cobrança de taxas em dinheiro pelos padres da família de moribundos para que estes não tivessem que passar pelo purgatório Condenava também o costume de religiosos de vender indulgências o perdão dos pecados O papa Leão X em 10 de dezembro de 1520 emitiu uma bula papal excomungando Lutero e ordenando que toda a sua obra fosse queimada Lutero atirou o documento do papa ao fogo e esse gesto fez estremecer a Europa inteira Não podemos nos esquecer de que a Europa vivia sob o jugo do Tribunal do Santo Ofício a Inquisição que poderia prender torturar e matar qualquer pessoa que se manifestasse contra a Igreja Aliás foi o que aconteceu com dois predecessores de Lutero o inglês João Wycliffe 13241384 e o alemão João Huss 13691415 Mas Lutero escapou da perseguição porque se aliou a vários nobres que queriam ocupar terras então pertencentes à Igreja uma de suas principais ideias era de que os bens da Igreja deviam ser confiscados Em 1521 Carlos V imperador do Sacro Império RomanoGermânico que naquele ano contava apenas 19 anos de idade convocou Lutero a defenderse na Dieta de Worms Insatisfeito com as respostas condenouo à morte mas Lutero conseguiu escapar e refugiarse no sul da Alemanha Pouco depois 15231525 um outro acontecimento contribuiu para reforçar as ideias de Lutero O pastor Thomas Munzer liderou mineiros e trabalhadores rurais numa rebelião contra os nobres no que ficou conhecido como a Guerra dos Camponeses Mais de dez mil camponeses morreram e Munzer foi executado Mas o levante resultou em fortalecimento das noções pregadas por Lutero embora ele mesmo tenha sido contrário à pretensão dos camponeses De qualquer maneira estava estabelecida a separação da Igreja Católica O protestantismo eliminava o celibato padres e freiras abandonaram conventos para se casarem o próprio Martinho Lutero casouse também em 1525 com Katherine von Bora O protestantismo acabava ainda com o latim como língua oficial das missas que deveriam ser celebradas no idioma local facilitando assim o acesso do povo ao conhecimento ali pregado Ficava eliminada a hierarquia eclesiástica e ficavam banidos cinco dos sete sacramentos restando apenas o batismo e a comunhão Carlos V baixou em 1526 um decreto estabelecendo a religião católica como a religião oficial do império imaginando dessa forma sufocar as tentativas de criação de uma nova ala da Igreja Tornou as decisões ainda mais radicais três anos depois mandando excomungar e até matar os dissidentes Contra essa decisão do imperador um grupo de luteranos publicou em 23 de abril de 1529 o Protesto de onde a denominação Protestantismo João Calvino o teórico do protestantismo Em Genebra entre 1536 e 1538 João Calvino escreveu aquela que é considerada a maior obra da Reforma As institutas da religião cristã Duas das principais ideias defendidas por ele nessa obra levaram a uma modificação fundamental na estrutura filosófica dos séculos que se seguiram uma delas é a noção de predestinação e outra a de que o sucesso econômico advindo do trabalho não pode ser considerado pecado Com isso o calvinismo tornouse praticamente a Bíblia do capitalismo O francês João Calvino tinha 8 anos de idade quando Martinho Lutero escreveu as 95 Teses Contra o Comércio de Indulgências Apenas dezesseis anos mais tarde já doutorado em Direito pela Universidade de Orleans tomaria contato com o protestantismo Nessa época o papa Clemente VII Júlio de Médici da família que imperava em Florença na Itália pressionava o rei da França para sufocar a reforma protestante Já por esse tempo um humanista afamado Calvino foi convencido por Guilherme de Farel evangelista francês que foi um dos fundadores da Igreja Reformada na Suíça a ajudálo a implantar o protestantismo em suas terras O sociólogo alemão Max Weber foi um dos teóricos que defendeu a ideia de que a religião exerce influência decisiva sobre a economia social Partindo de uma pesquisa entre empreendedores europeus da época chegou à conclusão de que entre protestantes a obtenção do lucro era quase uma obrigação religiosa Essa constatação obtida na pesquisa de Weber está no livro A ética protestante e o espírito do capitalismo de 1915 Nessa obra Weber credita aos escritos de Calvino o desenvolvimento do capitalismo na Europa e nos Estados Unidos21 Calvino efetivamente escreveu sobre questões econômicas além da ética e da teologia Mas certamente não teria concordado com os excessos do capitalismo atual com suas cruéis práticas de mercado como a manipulação de preços e a usura Henrique VIII e a Igreja Anglicana Não de todo sem querer mas certamente sem imaginar o impacto de suas decisões o rei inglês Henrique VIII ajudou a promover o protestantismo Mas o fez por motivos puramente pessoais Queria licença do pontífice Clemente VII para divorciarse de Catarina de Aragão e casarse com Ana Bolena então apenas uma adolescente O pretexto era o fato de que a rainha não conseguia engravidar para dar um herdeiro ao trono inglês Como Henrique VIII não era um teólogo fora motivado por interesses absolutamente egoístas não teve efetiva intenção de reforma Por essa razão manteve todos os rituais da igreja católica unicamente acrescentando o direito ao divórcio e a noção de infalibilidade do chefe supremo ele mesmo Mais tarde alterações baseadas no calvinismo foram acrescentadas A igreja anglicana só deixou de sofrer mudanças quando a filha de Henrique VIII com Ana Bolena subiu ao trono como a rainha Elizabeth I Acontece que Catarina de Aragão era da família do imperador Carlos V a quem o papa não queria desgostar A autorização foi negada E Henrique VIII em 1534 desligouse da Igreja Católica E o fez do modo mais espetacular possível criou a sua própria Igreja Não se vinculou à igreja luterana porque anos antes havia socorrido o papa com seu exército contra os seguidores de Martinho Lutero Optou portanto por criar a Igreja Anglicana o que levou o papa a excomungálo Imediatamente pelo Ato da Supremacia aprovado pelo parlamento nomeou a si mesmo como chefe supremo da Igreja Anglicana aproveitando no mesmo decreto para confiscar todos os bens da Igreja Católica em solo inglês A criação da igreja anglicana foi pretexto para vários conflitos que Elizabeth I e seus sucessores tiveram que enfrentar Naturalmente por causa de outros motivos conjugados entre eles a sucessão ao trono do Reino Unido houve conflitos sérios na Escócia e na Irlanda Na Irlanda aliás há quase novecentos anos que católicos e protestantes guerreiam Hoje o Exército Republicano Irlandês IRA para a sigla Irish Republican Army é dos mais ativos grupos armados do mundo considerados terroristas Representa a província do norte da Irlanda que a GrãBretanha até hoje não quer deixar independente a província do Sul atual República do Eire conseguiu a independência em 1937 Atualmente Irlanda do Norte tem 60 de protestantes que se impõem sobre a minoria católica A CONTRARREFORMA A Igreja Católica romana demorou muito tempo para reagir à implantação da Igreja Anglicana O papa Paulo III convocou o Concílio de Trento em 1545 quase dez anos depois do início dos movimentos Essa assembleia dos 31 bispos apresentou uma resposta feroz ao protestantismo elaborou o Index Librorum Prohibitorum uma lista de livros proibidos em especial as obras de Lutero e Calvino recolocou em atividade a Inquisição e criou a Companhia de Jesus e uma força armada formada pelos dominicanos22 O Concílio de Trento permaneceu em assembleia pelos dezoito anos subsequentes pelos papas que sucederam Paulo III Júlio III Paulo IV Pio IV Gregório XIII Sisto V e Pio IV Outras iniciativas destinadas a valorizar a religião católica foram a criação de seminários para a formação de padres a instituição do catecismo e a manutenção do celibato As decisões radicais do Concílio de Trento realmente levaram a um efeito sanitário a melhoria da qualidade da conduta dos padres da época Mas de qualquer maneira a Igreja Católica que já estava dividida em apostólica e ortodoxa teria de conviver com uma terceira vertente o protestantismo O ÉDITO DE NANTES Católicos e protestantes nas décadas que se seguiram ao Concílio de Trento envolveramse em lutas sangrentas especialmente na França onde os protestantes eram chamados huguenotes palavra que conforme alguns historiadores teria derivado do sobrenome de Besançon Hugues líder da reforma protestante na Suíça A França foi um dos primeiros países católicos da Europa Antes mesmo da sua constituição como nação o rei Clóvis da tribo dos francos deixarase batizar juntamente com três mil dos seus soldados no natal do ano de 496 Mais tarde no ano de 752 o rei Pepino o Breve cedeu para a Igreja um território da Itália que seria transformado nos Estados Pontifícios com capital em Roma23 Atados à tradição os católicos da França não receberam com simpatia a reforma protestante O catolicismo entretanto não estava muito sólido no território francês No ano de 1305 já havia ocorrido um período de descrédito para a Igreja porque o papa Clemente V francês resolveu transferir a sede da Igreja para Avignon Em 1377 os papas voltaram para Roma Mas dois deles conhecidos como antipapas Clemente VII e Bento XIII continuaram comandando a Igreja a partir da França Como resultado dessa decisão houve o afamado Grande Cisma do Ocidente quando coexistiram dois papas um em Roma e outro em Avignon Além disso os católicos costumavam sufocar com fúria os cultos dissidentes como fizeram com os cátaros e os valdenses E com os protestantes não foi diferente O rei Francisco I e seu filho Henrique II perseguiram ferozmente os seguidores da reforma de Martinho Lutero e de João Calvino Outro fator importante para fazer recrudescer a guerra religiosa foi o apoio dado por uma parte da nobreza ao calvinismo A família Bourbon huguenote pretendia o trono da França então nas mãos da regente Catarina de Médici A regente foi obrigada a fazer concessões ao protestantismo tendo inclusive nomeado o almirante Gaspar de Coligny da família Montmorency para o posto de membro do conselho real No entanto o apoio de Coligny ao protestantismo holandês irritou a rainha regente que mandou assassiná lo juntamente com outros seis mil seguidores no atentado que ficou conhecido como o Massacre do dia de São Bartolomeu Após uma sequência de sucessões de curta duração no trono francês afinal assumiuo o rei huguenote Henrique IV em 1588 Ele foi obrigado a converterse ao catolicismo para manter o poder mas não esqueceu suas origens religiosas Em 1598 publicou um programa de tolerância chamado Édito de Nantes Esse programa restituía aos huguenotes que constituíam 15 da população francesa os direitos civis como os de ocupar cargos públicos direitos políticos como o de viver em comunidades e direitos religiosos como a liberdade de consciência Mas era uma tolerância limitada Pelo documento a Igreja Católica era confirmada como igreja oficial com todos os direitos bens e rendas os huguenotes podiam promover cultos mas não dentro de um raio de 30 km da cidade de Paris A intolerância religiosa voltaria a se estabelecer oficialmente na França oitenta e sete anos mais tarde Em 1685 o rei Luís XIV revogou o Édito de Nantes substituindoo pelo Édito de Fontainebleau Os huguenotes voltaram a ser perseguidos e cerca de trezentos mil se refugiaram em outros países da Europa América e África O ABSOLUTISMO Embora Maquiavel tivesse festejado o advento do absolutismo com monarcas poderosos que teriam como principal função a de unificar as tribos e possessões em que muitos reinos estavam divididos não tardaria a que a concentração excessiva de poder levasse a perigosos deslizes desses governantes Mas antes disso esse sistema político e administrativo que prevaleceu na Europa entre os séculos XVI e XVIII serviu perfeitamente aos propósitos da nova classe social então em ascensão a burguesia comercial A sociedade recémsaída do feudalismo estava dispersa e desorganizada Não havia conexão adequada entre os setores produtivos e o restante da rede que faria a distribuição de venda de produtos Os reis absolutistas apoiados pela burguesia usaram da mão de ferro para legislar criar e disciplinar sistemas financeiros construir portos e armazéns e principalmente ceder exércitos para fazer a proteção das rotas comerciais Isso tudo principalmente nas três potências ocidentais da época Inglaterra França e Espanha Os reis intrometiamse até em assuntos religiosos como pudemos ver no caso de Henrique VIII um dos mais destacados reis absolutistas Sentiamse legitimados entre outras coisas por escritos de filósofos que defendiam a situação Dentre os mais importantes filósofos que defenderam o absolutismo estão Jean Bodin Jacques Bossuet e Thomas Hobbes Jean Bodin teórico do absolutismo Considerado o primeiro documento teórico do absolutismo Os seis livros da República de Jean Bodin foi uma mescla de política e de religião Fez sucesso imediato na Europa sendo logo traduzido para vários idiomas A tese mais conhecida da obra era de que soberania é um poder indivisível portanto o rei não podia repartir poder com ninguém nem prestar obediência a quem quer que fosse Acima do rei dizia Bodin só estava Deus Este francês que viveu entre 1530 e 1596 começou carreira como frade carmelita mas deixou a ordem para seguir o direito civil Lecionou na Universidade de Toulouse e depois foi para Paris onde foi deputado e mais tarde chegou a ser advogado do rei Henrique III Escreveu sua principal obra Os seis livros da República em 1576 inspirado pelas guerras religiosas de seu país Em 1562 a rainha regente Catarina de Médici havia assinado o Édito de SaintGermain em que alguma tolerância era dada aos huguenotes O conteúdo do decreto real porém não satisfez os protestantes que só podiam realizar cultos na zona rural e ao mesmo tempo descontentou os católicos que acharam demasiada a condescendência e promoveram um massacre de protestantes dando início a um conflito que duraria até 1598 Jean Bodin considerou que a decisão da regente Catarina de Médici demonstrara fraqueza e que os protestantes deviam ser esmagados pela força Seu livro estava centrado sobre a questão da autoridade do governante porque temia que a guerra civil francesa pudesse levar o país à anarquia que seria na sua opinião um desastre institucional Jacques Bossuet monarquista absoluto Bossuet escreveu o livro A política tirada das Santas Escrituras publicado em 1709 baseado na teoria de Jean Bodin sobre a soberania que lhe valeu para as gerações seguintes a fama de teórico do absolutismo Argumentou no livro que o rei era o representante de Deus na Terra Sendo assim seu poder era incondicionalmente legítimo e suas decisões sempre justas Dizia também que o rei devia ser como um pai para os seus súditos e exercer o que chamava de monarquia absoluta Jacques Bossuet era considerado um pregador apaixonado Foi arcediago vigáriogeral e bispo Em Paris doutorouse em teologia e foi eleito para a Academia Francesa Em 1671 passou a atuar como preceptor do futuro rei Luís XIV da França o ReiSol então com apenas 10 anos de idade e acompanharia o herdeiro do trono francês até 1681 Era intransigente e autoritário Como bispo de Meaux manteve grandes polêmicas contra os protestantes Na função de conselheiro do rei Luís XIV levou a sua tese ao extremo Formulou a ideologia gaulesa que estabelecia para o rei direitos equivalentes aos do papa Clemente XI Mais tarde voltou atrás temendo represálias do clero e aceitou ratificar um documento que definia que o papa era a autoridade máxima mas apenas em assuntos religiosos Defendeu até o fim da vida 1704 a tese de que qualquer governo formado legalmente é expressão da vontade de Deus e que portanto é sagrado sendo criminosa qualquer atitude de revolta insubordinação ou insurreição contra ele Thomas Hobbes e o contrato social O legalista britânico Thomas Hobbes foi o autor da famosa obra publicada em 1651 Leviatã ou Matéria forma e poder da comunidade eclesiástica e civil Nela consta a seguinte representação o cidadão abre mão de parte de sua liberdade que é total no estado de natureza em prol de uma autoridade que lhe dê em troca a segurança oferecida pela lei na vida em sociedade Era a doutrina do pacto associativo pactum associationis que também podemos ver em Locke no Tratado do governo civil e em Rousseau em O contrato social Em outras palavras uma sociedade não é de fato política enquanto o poder estatal não garante os bens públicos como justiça saúde e educação Aí sim estará configurado o pacto social Thomas Hobbes nasceu em 1588 ainda no reinado de Elizabeth I num período politicamente tumultuado em que a Inglaterra enfrentava a ameaça de invasão pela Espanha Thomas Hobbes afirmava que o homem em estado de natureza era naturalmente propenso a abusar da liberdade e a erguerse em guerra contra seus semelhantes Para ele o homem sem a necessária intervenção do Estado era lobo do próprio homem homo homini lupus Hobbes foi o teórico do poder soberano com o l i v r o Leviatã Dizia que a igualdade era responsável pelos males que os homens podem causar aos outros homens Por isso pensava ser necessário legitimar um poder maior que impedisse as guerras e a violência Estudou ciência e filosofia em Oxford e depois ligouse à corte do rei James I Conviveu com filósofos e cientistas entre eles Francis Bacon e Descartes Ainda enfrentaria entre 1642 e 1649 a guerra civil inglesa ocorrida entre os partidários do rei Carlos I e os parlamentaristas chefiados por Oliver Cromwell Possivelmente em decorrência desse ambiente belicoso desenvolveu a teoria de que a democracia enfraquecia os países e defendeu a ideia de que a monarquia absolutista era a alternativa recomendável para uma sociedade pacífica Dizia que respeitar tratados e convênios não é questão de direito é questão de conveniência Suas ideias desagradaram tanto os monarquistas quanto os parlamentaristas e ele teve que refugiarse em Paris No começo do século XVII em suas viagens pela Europa Hobbes percebeu o declínio acentuado da escolástica Diante disso decidiu voltar ao seu país natal a Inglaterra para aprofundarse nos estudos da Ciência Política e do Direito Com ideologia diferente da escolástica e do aristotelismo estreitou as relações com o filósofo e político Francis Bacon Foi pioneiro ao conceituar o contratualismo moderno24 Sustentava que após o estado de natureza em que os homens são plenamente livres estes firmam um contrato social cujo desdobramento resulta na formação da sociedade civil moderna chamada de Estado Para Hobbes o estado de natureza representa a situação em que não existe governo para manter a ordem social O direito natural é o direito que cada indivíduo possui para manter a sua integridade e para fazer valer os seus direitos compreende a liberdade que tem cada um de servirse da própria força segundo sua vontade No estado de natureza de Hobbes os homens são livres e seus direitos não encontram limitações Como se trata de situação em que todos podem tudo a ocorrência de lutas e disputas pela posse de determinada coisa é sempre iminente Nesse quadro não existe poder superior a se afirmar entre os homens pois o mais fraco pode se utilizar de qualquer artifício para obter aquilo que o mais forte possui É a partir dessa constatação que Thomas Hobbes formulou sua mais célebre frase O Homem é o lobo do Homem Em O Leviatã o filósofo sustenta que o único modo de manter um Estado controlador civilizado e em paz é implantando o regime absolutista Dessa forma concentrase o poder nas mãos do Estado Soberano e os súditos abrem mão da liberdade individual em troca de proteção Hobbes criticava a Igreja Para ele o rei deveria exercer poder sobre assuntos que envolvessem doutrina e fé pois a livre leitura da Bíblia poderia enfraquecer o absolutismo da majestade Foi defendendo essa ordem de ideias limitadoras da força dos preceitos bíblicos e sobretudo da própria Igreja que Hobbes angariou a antipatia desta que então iniciou ferrenha perseguição contra ele A filosofia verdadeira para Hobbes é aquela que se concentra na descrição e na observação dos corpos e de suas propriedades Ele foi contrário a todos os pressupostos da filosofia grega principalmente a defendida por Aristóteles e a Escolástica Sua filosofia é materialista mecanicista e baseada em três princípios o corpo o cidadão e o ser humano São dois os pressupostos do Estado absolutista diz o filósofo em O Leviatã O primeiro está diretamente relacionado à vida humana o homem deve trabalhar em sociedade e para a sociedade de modo a garantir a continuidade de sua própria vida O segundo pressuposto é o convencionalismo o homem adquire o conceito de justiça e cria normas para sobreviver de acordo com ele O egoísmo quando racionalizado facilita a busca do homem pela paz e a paz adquirida de modo racional é mais facilmente garantida Com isso Hobbes sustenta que o melhor modo de conquistar e assegurar a paz é criando pactos e garantindo meios para que esses durem por muito tempo O Estado absolutista de Hobbes é chamado Leviatã em metáfora referente ao monstro bíblico que possuía coração de pedra e era extremamente poderoso Em um tal Estado os súditos escolhem seu governante que é absoluto imbuído de plenos poderes mas que pode ser deposto caso não cumpra sua função perante a sociedade Em 1645 mesmo depois de tantas perseguições principalmente por parte da Igreja que afirmava que suas obras O Cidadão e O Leviatã faziam apologia ao ateísmo fez publicar seu primeiro tratado Elementos da lei natural e política Em síntese Hobbes enxerga no Estado absolutista a forma mais acabada e segura para assegurar os direitos básicos de todo cidadão Para ele se não existisse o Estado seríamos incapazes de sobreviver e conviver em uma sociedade civilizada Eis aí a gênese do contratualismo consistente na abdicação ou melhor dizendo na limitação de parte dos direitos individuais para recolocálos nas mãos de um Estado firme soberano o Estado Leviatã o qual se assemelha ao Deus Imortal Em 1665 publica o De Corpore obra em que estudou os corpos em movimento Mais uma vez a Igreja enxergou em seus escritos certo teor de ateísmo No ano de 1666 as perseguições voltaram a se intensificar tendo em vista que suas obras geravam repercussões negativas para a Igreja Nesse mesmo ano os livros de Hobbes foram queimados em Oxford como forma de repúdio às suas ideias Mesmo perseguido Hobbes continuou escrevendo e dedicandose aos estudos dos clássicos e às suas traduções Em 1668 traduziu para o inglês as célebres obras A Ilíada e A Odisséia Um de seus últimos trabalhos foi sua autobiografia escrita em 1672 que também gerou grande polêmica Morreu muito velho em 1679 famoso e prestigiado mas ainda com muitos inimigos Seu pensamento foi contestado cerca de dez anos depois de sua morte por John Locke que pregava a paz como estado natural da humanidade OS PACTOS SEM A ESPADA são apenas palavras e não têm a força para defender ninguém Thomas Hobbes O contratualismo O contratualismo é a alavanca do Direito na época moderna segundo Miguel Reale em seu livro Filosofia do direito Diz ele que o Direito existe segundo os jusnaturalistas porque os homens pactuaram viver segundo regras delimitadoras dos arbítrios Do contrato deriva a norma Vamos ver o que diz Miguel Reale Notese que se opera uma inversão completa na concepção do Direito Tudo converge para a pessoa do homem em estado de natureza concebido por abstração como anterior à sociedade A sociedade é fruto do contrato dizem uns enquanto outros mais moderados limitarão o âmbito da gênese contratual a sociedade é um fato natural mas o Direito é um fato contratual O Brasil sob o absolutismo A tomada de Constantinopla pelos mouros eliminou a possibilidade de existir na Europa um império ocidental como havia ocorrido com Roma Sem um poder central as tribos europeias entraram em sangrentas guerras Os dois países de navegadores Portugal e Espanha sem disposição para enfrentar territórios com vizinhos mais fortes voltaram as proas de suas embarcações para o oceano Atlântico e saíram em busca de novas terras que fornecessem matériaprima para comerciarem Chegaram à África e ao Brasil Descobriram o oceano Pacífico Elaboraram um novo mapa mundial ao dobrarem o Cabo das Tormentas provando ser possível a chegada à Ásia pelo sul do continente africano Além disso e talvez mais importante do ponto de vista da compreensão do mundo circumnavegaram o mundo conhecido provando que a terra era redonda A descoberta do Brasil foi decorrência dessa política expansionista durante o reinado de Dom Manuel o Venturoso Nos primeiros anos do século XVII o Brasil não era mais que uma colônia primitiva e selvagem uma espécie de armazém de vastidão exuberante para Portugal Nessa época Dom Felipe II ocupava os tronos de Portugal e Algarves prosseguindo o reinado do pai Dom Felipe I Como se sabe Portugal e Espanha tiveram o mesmo rei entre 1580 e 1640 As Ordenações Filipinas Por volta do século XV Portugal padecia de uma séria falta de sistematização de suas leis De fato seu ordenamento jurídico era composto por diversas leis esparsas emanadas das mais diversas fontes algumas provenientes da antiga Roma outras dos povos germanos e outras ainda da herança eclesiástica Buscando solucionar tal problema foram editadas compilações que passaram a ser conhecidas como Ordenações do Reino A primeira delas conhecida como Ordenações Afonsinas foi realizada por Dom Afonso no ano de 1446 Após numerosas reformas e revisões desse primeiro texto seguiuse nova sistematização das leis alteradoras Estas realizadas por Dom Manuel no primeiro quartel do século XVI receberiam o nome de Ordenações Manuelinas Entretanto a dinâmica das relações sociais continuava a impor constantes modificações legislativas Tantas foram as leis alteradoras publicadas que foram compiladas em um livro à parte denominado Leis Extravagantes uma espécie de ordenamento paralelo às ordenações Por fim visando a resgatar a unidade e sistematicidade perdidas em 1595 a legislação foi novamente agrupada e reorganizada por Dom Felipe I que editou as chamadas Ordenações Filipinas Eram tais ordenações distribuídas em cinco livros estabelecendo as normas para a distribuição da justiça e as providências da corte em relação ao direito As Ordenações Filipinas posteriormente revisadas e republicadas por Dom Felipe II em 1603 formaram a base do direito civil brasileiro Elaboradas por soberanos absolutistas e com raízes fincadas na Idade Média sem quaisquer avanços de natureza filosófica política ou social não se admira constituíssem um código autoritário e atrasado Ainda assim tal sistematização vigorou no Brasil durante todo o período colonial passou pelo reinado e só foi suspensa oficialmente com a proclamação da independência brasileira embora tenham continuado a ser aplicadas na prática por bastante tempo ainda Em Portugal estenderamse até 1867 quando passou a vigorar o primeiro Código Civil português O primeiro Código Civil brasileiro foi aprovado finalmente em 1916 com o famoso projeto redigido por Clóvis Beviláqua Seria exagero dizer que as Ordenações Filipinas fossem um código civil compilado Era mais um apanhado de normas embasadas no Direito Romano e no Direito Canônico não nos esqueçamos de que a separação entre Igreja e Estado só ocorreria no Brasil com a primeira Constituição da República em 1891 O Livro V das três Ordenações do Reino foi dedicado ao direito penal Demonstrando a grande vinculação existente entre Estado e Igreja o crime mais grave previsto pelas Ordenações era a heresia Além disso o julgamento de tais delitos era realizado pelos clérigos embora a execução da pena cumprisse ao Estado O texto ainda justifica tal medida dizendo que a todo Rei católico como braço da Santa Igreja pertence fazer e mandar cumprir e guardar suas sentenças Não há dúvidas de que a grande marca de tais ordenações era o excessivo rigor das leis e a crueldade de tratamento aos condenados por seu descumprimento o que envolvia tortura penas corporais pena de morte bem como a punição das gerações descendentes do infrator pelos crimes praticados Ainda no Livro V dois títulos chamam a atenção por sua conexão direta com o absolutismo e com a existência de algo que podemos denominar de direitos individuais Um deles o de número CXXXVI trata de que os julgadores não apliquem as penas a seu arbítrio cujo preâmbulo merece aqui ser mencionado Mandamos a todos os corregedores ouvidores e juízes assim de fora como ordinários e a todas as outras Justiças que poder têm para pôr penas que nenhum deles ponha pena de qualquer quantidade que seja para a Chancelaria sob pena de a pagar anoveada a metade para quem o acusar e a outra para os Cativos e de ser suspenso de seu ofício até nossa mercê e mais as penas que por ele assim forem postas não hajam efeito Entendendo a história das codificações Corpus Iuris Civilis O primeiro povo a considerar a necessidade de reunir as leis esparsas em um código foi o romano O código compilado pelo imperador Justiniano chamouse Corpus Iuris Civile e foi uma das mais importantes heranças do Direito Romano O Corpus Iuris Civilis que na prática constitui o Direito Romano era composto de quatro partes o Codex que reunia todas as constituições imperiais editadas desde o governo do imperador Adriano entre 117 e 138 o Digesto ou Pandectas que reunia os comentários dos grandes juristas romanos o Institutas espécie de manual para os amantes do Direito e as Novelas que foram as constituições elaboradas depois do ano de 534 A partir da Renascença com os crescentes movimentos de fortalecimento da autoridade do rei e consequente enfraquecimento da autoridade do papa os códigos ganharam importância em praticamente todos os países A Áustria foi uma das primeiras nações na Europa a organizar o seu Código Civil em 1786 Mas o mais importante para o Ocidente foi o Código Civil francês elaborado no reinado de Napoleão Bonaparte O ILUMINISMO O termo iluminismo representa um dos mais importantes períodos da história cultural e intelectual do Ocidente Os ideais daí decorrentes constituíram sem dúvida um marco para o direito moderno Embora não haja total consenso entre os estudiosos estabelecese como seu marco inaugural o início do século XVIII por isso denominado século das luzes tendo se encerrado apenas no início do século XIX com o advento das guerras napoleônicas Miguel Reale considera que a primeira fase do direito moderno estendese grosso modo desde a Revolução Francesa até a última década do século passado século XIX tendo como termo referencial o Código alemão de 1900 que assinala o apogeu de uma era de marcado cunho sistemáticoformal ainda sob o influxo das ideias individualistas25 Um de seus mais importantes expoentes Immanuel Kant diria mais tarde que o Iluminismo teria sido o único caminho para que o homem saísse da minoridade em que ele mesmo se havia colocado Em um pequeno texto denominado O que é o iluminismo o pensador esclarece as bases desse novo movimento conclamando a todos a sair de sua posição de passividade e submissão e a fazer uso da própria razão independente da direção de outrem Os filósofos desse período portanto deslocavam o eixo do debate de tal forma que o pilar teórico não era mais Deus mas o homem Por isso mesmo o Iluminismo é também chamado de Humanismo Pontificavase o uso da razão ilustrada ou seja educada Assim equipado o homem ficava livre das superstições dos abusos dos juristas bem como das determinações sacerdotais Em outras palavras passavam a se emancipar daqueles que até então proclamavamse detentores do conhecimento O homem comum antes submetido pela doutrina escolástica a uma posição social irremediável que interessava aos poderosos enxergou na nova corrente filosófica a escapatória da predestinação com que era ameaçado pela Igreja O Iluminismo defendia o antropocentrismo e o individualismo Falava de direitos individuais de propriedade privada de evolução pelo trabalho de revolta contra o rei Era uma nova maneira de viver e de pensar Com defeitos é claro mas melhor do que o absolutismo egoísta dos reis que se diziam prediletos de Deus Os iluministas eram portanto de todas as formas contrários aos ideais defendidos pela Igreja E com toda essa atitude de negação das concepções religiosas era natural que o homem se inclinasse para a ciência como ferramenta de desenvolvimento Por tal razão entram em cena cientistas como Isaac Newton pesquisadores como Descartes bem como artistas do porte de Leonardo da Vinci e Michelangelo Cada um na sua área de conhecimento tentando entender com a razão mais do que com a fé o funcionamento do mundo No âmbito jurídico o Iluminismo teve importante contribuição Justamente em razão do posicionamento do homem como centro da filosofia surgiram no direito os jusnaturalistas pósIdade Média Eram eles contrários aos dogmas defendidos pela Igreja de submissão passiva às determinações superiores advindas de Deus por intermédio de seus representantes Mas ao mesmo tempo negavamse a aceitar as acentuadas limitações trazidas pelo pensamento positivista que pregava a observância incondicional das determinações legais sempre que estas encontrassem respaldo em uma lei superior que lhes serviria de fundamento de validade Afastados desses dois extremos defendiam a existência de direitos que antecedem a lei escrita e que portanto devem ser por ela obedecidos como a vida e a liberdade Por fim salientase que o ideal de verdade passou a partir do Iluminismo a estar mais vinculado a questões subjetivas como a prática profissional e às decisões que respeitassem os direitos individuais Os déspotas esclarecidos O movimento teve participação fundamental de alguns governantes já que imperava ainda o absolutismo e portanto somente os reis tinham poder para promover quaisquer reformas Os monarcas que aderiram ao Iluminismo passaram para a história com o apelido de déspotas esclarecidos Governando sob princípios iluministas esses monarcas conseguiram acelerar o desenvolvimento da economia e modernizar as nações em que pese a verdadeira intenção ter sido o fortalecimento de sua posição política Os principais déspotas esclarecidos ou absolutistas ilustrados foram Frederico II da Prússia que chegou a acolher Voltaire como seu conselheiro e amigo Catarina II da Rússia e Maria Tereza e José II da Áustria O Brasil colônia também teve o seu déspota esclarecido Marquês de Pombal déspota no Brasil Inspirado pelos ideais das luzes o Marquês de Pombal implantou um programa político avançado para o seu tempo Dentre seus muitos feitos garantiu a Portugal o nobre lugar de primeiro país da Europa a abolir a escravidão em 1761 Sebastião José de Carvalho e Melo teve o título de Marquês de Pombal Por ter conseguido reconstruir Lisboa depois do terremoto de 1717 ganhou a confiança irrestrita do rei e foi nomeado primeiro ministro Sendo assim foi ele quem na prática dirigiu Portugal e suas colônias durante o reinado de Dom José I o Reformador a partir de 1750 Foi um importante estadista responsável por numerosas e bemvindas medidas Aperfeiçoou o sistema educacional e reformou a Universidade de Coimbra Criou a Imprensa Real Mandou elaborar um código penal que substituísse em sua maior parte as Ordenações Filipinas Promoveu a povoação das colônias portuguesas do Brasil Índia e África Fundou a Companhia das Índias Orientais Equipou o Exército e fortaleceu a Marinha Deu estímulos à agricultura e ao comércio com base nos princípios mercantilistas fundando o Banco Real Português e a Escola de Comércio Incentivou a implantação de manufaturas para que Portugal passasse a depender menos da Inglaterra Apesar de todas as reformas que promoveu a atitude do Marquês de Pombal era de ditador O seu período ficou conhecido como o Terror Pombalino Seus maiores inimigos foram os jesuítas que ele expulsou do Brasil e os aristocratas dos quais ele retirou poderes Esses esperaram que o rei Dom José I morresse para tramar a desgraça do marquês acusandoo de abuso de poder e corrupção A rainha Dona Maria I mãe de Dom João VI que ficaria conhecida como Maria a Louca sucumbiu à pressão dos nobres e dos padres e afastou o Marquês de Pombal do governo Após a expulsão ele retirouse para sua propriedade rural na cidade de Pombal onde morreu em 1782 Suas reformas como aliás praticamente todas as reformas promovidas pelos déspotas esclarecidos não perduraram Foram canceladas por Dona Maria I e Portugal regrediu voltando a permanecer na esfera de domínio da Inglaterra O terremoto de Lisboa Em 1755 um terremoto atingiu Lisboa matando mais de cem mil pessoas ou metade da população da cidade O terremoto durou apenas cinco minutos mas a devastação foi imensa O sismo causou um maremoto que ocasionou três tsunâmis seguidas com ondas de mais de 20 metros de altura Lisboa foi praticamente arrasada e grande parte do território espanhol também foi afetada inclusive as cidades de Sevilha Salamanca e Valladolid Os franceses acreditavam que teria sido um castigo divino numa demonstração de atraso que irritou Voltaire que dedicou trechos de seu livro Cândido ao terremoto A teoria otimista de Leibniz de que vivemos no melhor dos mundos possíveis foi contestada Os católicos de muitos países fizeram grande alarido penitenciandose preventivamente porque se Portugal um país com tantos crentes sofrera um castigo tão grande o que seria de outras nações onde havia pagãos e seguidores de outras religiões como o protestantismo MONTESQUIEU E AS BASES DO CONSTITUCIONALISMO A França estava descontente com o rei Luís XIV o famoso Rei Sol talvez o mais ferrenho de todos os monarcas absolutistas Foi ele o autor da tão afamada frase LEtat cest moi O Estado sou eu Esse rei durante seu longo reinado de cinquenta e quatro anos organizou e equipou o exército francês a ponto de tornálo o mais poderoso de toda a Europa Em vista disso empreendeu diversas guerras a maioria delas com objetivos pessoais que resultaram em grandes fracassos Em 1667 invadiu a Espanha Pretendia intrometerse na sucessão ao trono daquele país considerando que parte do território seria herança de sua esposa Maria Teresa de Espanha filha do rei Felipe IV A chamada Guerra da Devolução da qual o imperador participou pessoalmente terminou após a Espanha ter recebido apoio de outros dois países a Inglaterra e a Suécia Sob a perspectiva de envolverse em uma guerra de maiores dimensões Luis XIV se viu obrigado a assinar o Tratado de Paz de Aquisgran em 1668 que conferia à França tão somente o controle do pequeno território de Flandres antigamente pertencente à Holanda e que hoje é a região norte da Bélgica Porém naquele momento tal empreitada já havia implicado desarrazoados custos tanto econômicos quanto humanos Ferrenho defensor do catolicismo Luís XIV perseguiu também os protestantes na Holanda no que ficou conhecida como a Guerra dos Nove Anos que perdurou de 1688 a 1697 Tal investida somada à revogação do Édito de Nantes que como vimos fora assinado pelo rei francês Henrique IV em 1598 garantindo o fim das perseguições aos protestantes resultou na formação da chamada Liga de Habsburgo um grupo de países desgostosos com a política religiosa do rei francês A própria Grã Bretanha entrou nesse conflito que só seria resolvido com o Tratado de Ryswick em 1697 Poucos anos mais tarde em 1702 engajarseia na conhecida Guerra da Sucessão espanhola Tal conflito só se encerraria cerca de dez anos mais tarde com o Tratado de Utrecht Em suma Luís XIV exauria o tesouro francês em busca de vantagens pessoais que em nada contribuíam para com a sociedade Também era propenso a ditar regras para a religião e para a cultura Os intelectuais eram os principais críticos do reinado do Rei Sol e insuflavam o povo a questionar os atos do governante Foi nesse ambiente social que viveu Montesquieu Montesquieu e suas circunstâncias Charles Louis de Secondat o barão de Montesquieu foi o primeiro dos grandes pensadores franceses associados ao Iluminismo Era um escritor satírico que mesmo em seus trabalhos de filosofia política usava o sarcasmo como forma de comunicação Montesquieu foi o primeiro dos filósofos modernos a defender a distribuição dos Poderes em três campos o executivo o legislativo e o judiciário Haveria representantes das três classes sociais monárquica aristocrática e do povo nos três campos de modo que um fiscalizasse o outro para impedir privilégios e corrupção Foi dos primeiros teóricos do jusnaturalismo Montesquieu nasceu em 1689 filho de aristocratas o que explica a sua defesa insistente a essa classe social Já desde a infância no colégio Juilly passou a ser instruído dentro dos ideais iluministas Viveu nessa época na propriedade rural da família tendo convivido muito proximamente com os filhos de camponeses Esse fato o inspiraria posteriormente em suas teses de filosofia social Aos 16 anos de idade ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de Bordeaux onde pôde aprofundar seus estudos Ávido por conhecimento buscava desvendar as relações sociais e a forma de como disciplinálas Para tanto dedicouse intensamente à pesquisa dos mais diversos povos e etnias e a forma como se deu sua configuração política e social em cada período da história Já em sua fase adulta chegou a ser presidente do Senado e herdou do tio o título de barão e também a posição de presidente do Parlamento de Bordeaux cargo que ocupou por dez anos e que depois vendeu em 1721 Pertenceu à Academia de Ciências de Bordeaux onde realizou diversos de seus estudos e pesquisas Escreveu dois livros principais Cartas persas em 1721 e Espírito das leis em 1748 ambos de cunho racionalista Em Cartas persas faz uma análise crítica dos costumes sociais europeus do ponto de vista fictício de dois persas que visitam a França de Luís XIV Estabelecendo uma comparação da civilização ocidental da época com outra que em tudo dela se diferenciava inaugurava uma ampla crítica contra a forma de organização da sociedade os costumes nela estabelecidos bem como as instituições políticas e suas relações com o clero Nessa obra por muitos conhecida como o manual do iluminismo acaba por concluir que apenas a virtude e a justiça fazem com que uma sociedade seja duradoura Em sua maior obra Espírito das leis analisou as relações sociais que regem a sociedade por trás das leis Morreu em 1755 aos 66 anos de idade deixando inconcluso um ensaio que integraria a famosa Enciclopédia de Diderot e DAlembert Montesquieu e suas ideias Seus escritos evidenciavam um certo titubeio em relação às questões políticoadministrativas da época Por um lado considerava necessária a existência da classe aristocrática Essa serviria como elemento fiscalizador dos desmandos e abusos do rei absolutista e ao mesmo tempo contribuía para controlar eventuais revoltas da plebe Ou seja se o direito do rei não vinha de Deus o direito de liberdade dos cidadãos também não podia ter vindo dessa fonte numa clara contraposição à filosofia escolástica vigente Por outro lado temia que esse poder dado aos aristocratas pudesse leválos a uma atitude igualmente perigosa de prepotência e arrogância Por isso defendia que a melhor forma de constituir o Estado era manter as três classes a monárquica a aristocrática e a dos comuns desde que elas se dividissem no desempenho dos poderes próprios do Estado executivo legislativo e judiciário A isso denominou equilíbrio dos poderes Como forma ideal de governo recomendava a monarquia constitucional algo como o que a Inglaterra havia tentado com a declaração de João Sem Terra Para Montesquieu a Constituição teria o papel de limitar as ações do rei a partir das noções de honra e de justiça A divisão do Estado em três poderes como proposta por Montesquieu foi efetivada pela primeira vez na Constituição dos Estados Unidos da América em 1787 Dada a sua descrença no direito natural de herança divina seja ela do rei dos nobres ou mesmo das pessoas do povo Montesquieu não contemplou na sua divisão de classes os representantes da Igreja Ficou clara a sua intenção de separar Igreja e Estado Montesquieu e sua influência no direito Já munido de notável conhecimento jurídico Montesquieu empreendeu longa viagem pela Europa onde pôde tomar contato com diversas culturas e civilizações Pôde com isso aprender muito acerca do funcionamento das sociedades observando também a influência que exercem sobre elas os costumes e os diversos tipos de organização social e política Tal fato propiciou ao pensador um olhar crítico fundamentado sobre a forma e o sistema de governo vigentes na França de então Como resultado de todo esse processo publicou seu livro Espírito das leis em 1748 lançando as bases do constitucionalismo movimento que influenciou toda a Europa e até a América como Estados Unidos e México Era uma nova concepção de governo regido por uma lei consolidada Certamente influenciado pelas ideias aristotélicas presentes no livro A política Montesquieu além de reconhecer a importância das leis para evitar um absolutismo despótico defendia a ideia de que para o estabelecimento de um governo ideal era necessário considerar também a tradição os costumes as características geográficas e até o meio físico como o clima PARECE MEU CARO que as cabeças dos homens mais notáveis minguam quando se reúnem e que onde há mais sábios há também menos sabedoria Os grandes grupos prendemse tanto aos momentos e aos vãos costumes que o essencial não vem senão depois Montesquieu REFLEXÕES SOBRE O CONSTITUCIONALISMO Em meu livro Direitos humanos processo histórico26 refleti longamente sobre o impacto que as ideias de Montesquieu tiveram em todos os países que optaram pela Constituição como máxima norma jurídica Resumirei aqui essas reflexões para melhorar o esclarecimento dos leitores sobre a importância dessas ideias para o combate às monarquias absolutistas Os governantes absolutistas da Idade Média estavam acostumados a impor sua vontade pela força Não precisavam de leis porque todas as suas decisões eram totalitárias O descontentamento dos povos crescia na medida diretamente proporcional das vozes que se levantavam contra essa categoria de governantes A insatisfação popular começou a ser especialmente notável no Iluminismo embora Santo Tomás de Aquino tivesse falado ainda na Idade Média da Constituição como a ordem que fundamenta e substantiva as leis Na Renascença o povo queria que o poder real fosse limitado para que cessassem os desmandos os abusos os privilégios e a corrupção Buscavam principalmente que o desrespeito aos direitos dos súditos fosse punido Naturalmente Montesquieu não foi o primeiro a pensar em constitucionalismo Uma tentativa grosseira já havia sido feita em torno do ano 2100 aC com o Código de UrNammu editado por esse soberano assírio para punir apenas com multas certos delitos que a Lei de Talião mandava punir com a mutilação e a morte Mais tarde seria editado o Código de Hamurabi que também atenuava um pouco as legislações então existentes Mas nenhum desses códigos continha formas de proteção do indivíduo contra o seu soberano até porque era o próprio rei quem os promulgava Decorre disso que os direitos individuais dependiam unicamente da boa vontade do soberano Como vimos o início da Idade Moderna foi marcado por uma reordenação social e principalmente econômica Essas alterações sociais resultariam no Iluminismo com o seu compreensível retorno aos ideais clássicos Aliás o primeiro trabalho escrito por um grego sobre a necessidade de normas para uma sociedade política é o ensaio sobre a Constituição de Atenas cujos fragmentos originais foram descobertos no Egito no final do século XIX Inicialmente atribuída a Xenofonte hoje sabese que a peça é de autoria de Aristóteles e considerada a segunda obra mais importante desse filósofo sobre política O documento traça um quadro histórico das experiências constitucionais realizadas em Atenas pelos seus principais legisladores como Drácon Sólon Pisístrato Clístenes e Péricles Aristóteles também tratou de constituição no Livro IV de A política definindoa como a distribuição de poderes num Estado sempre baseada sobre a educação e os hábitos da população As leis colocadas em prática nas cidadesEstado foram o início da democracia direta grega no século V Mas foi na Europa medieval que o constitucionalismo encontrou seu maior expoente a Magna Carta de João Sem Terra rei da Inglaterra É importante conhecer as peculiaridades desse evento histórico A Magna Carta Na Europa feudal as cidades medievais eram praticamente propriedades dos senhores feudais que submetiam os habitantes à sua absoluta autoridade Entretanto o comércio crescia e a burguesia ficava fortalecida e por isso mesmo ameaçadora para os governantes Estes não tiveram opção senão vender cartas de franquia a alguns povoados que com isso ganhavam autonomia política e administrativa Às vezes os senhorios outorgavam essas cartas como prêmio Nesses documentos ficavam expressas as condições e os limites em que o senhor feudal poderia exigir tributos e serviços Nessa época o povo era dividido em três categorias guerreiros sacerdotes e trabalhadores Montesquieu mais tarde proporia uma nova divisão que eliminava os sacerdotes do estrato social como classe específica Os guerreiros eram os nobres que serviam como apoio ao soberano da mesma forma que os sacerdotes Nesse pactum subjetionis27 praticamente só o povo trabalhava para sustentar as classes dominantes Não havia forma de ascensão social por causa da doutrina da lei eterna que dominava a Igreja e em consequência o Estado Foi a era da desigualdade e da injustiça por isso mesmo chamada Idade das Trevas O abuso dos governantes atingiu tal ponto que alguns barões resolveram apoiar os camponeses temendo que eles pudessem exercer o direito previsto no pactum sujectionis de rebelarse O rei da Inglaterra João I que ficou famoso como João Sem Terra após uma sucessão de fracassos políticos e militares viu Londres ser invadida por um grupo de barões burgueses e populares em busca do atendimento de suas reivindicações Fortemente pressionado acabou aceitando assinar um documento em que prometia obedecer à lei e abria mão de certos direitos que os camponeses consideravam exagerados Entre esses direitos estavam o Direito de Nomeação o soberano podia nomear bispos abades e funcionários eclesiásticos e o Direito de Veto o soberano podia excluir pessoas de determinadas funções ou impedir que tomassem posse Esse documento assinado em 1215 foi chamado Magna Charta Libertatum Entretanto em que pese a assinatura formal a Magna Carta foi repudiada pelo soberano assim que o grupo revoltoso deixou Londres o que fez com que a Inglaterra mergulhasse em alarmante guerra civil Porém tal documento foi reiterado pelos sucessores de João I ao trono a ponto de tornarse parte integrante e indissociável da tradição jurídica inglesa Para a História foi um grande marco que inspira o constitucionalismo no mundo ocidental até os dias atuais28 O artigo mais conhecido da Magna Carta de 1215 é o que consta da cláusula 39 NENHUM HOMEM LIVRE SERÁ PRESO encarcerado ou privado de uma propriedade ou tornado fora da lei ou exilado ou de maneira alguma destruído nem agiremos contra ele ou mandaremos alguém contra ele a não ser por julgamento legal dos seus pares ou pela lei da terra Magna Carta de 1215 Tendo em vista sua grande importância histórica temos por bem reproduzir a seguir uma versão da carta que consta do livro de Comparato 199929 com seus primeiros vinte artigos Magna Charta Libertatum Concordiam inter regem Johannen at barones pro concessione libertatum ecclesiae et regni angliae Carta Magna das Liberdades ou Concórdia entre o Rei João e os Barões para a outorga das liberdades da Igreja e do rei inglês João pela graça de Deus rei da Inglaterra senhor da Irlanda duque da Normandia e da Aquitânia e conde de Anjou aos arcebispos bispos abades barões juízes couteiros xerifes prebostes ministros bailios e a todos os seus fiéis súditos Sabei que sob a inspiração de Deus para a salvação da nossa alma e das almas dos nossos antecessores e dos nossos herdeiros para a honra de Deus e exaltação da Santa Igreja e para o bem do reino e a conselho dos veneráveis padres Estevão arcebispo de Cantuária primaz de Inglaterra e cardeal da Santa Igreja Romana e dos nobres senhores William Marshall conde de Pembroke oferecemos a Deus e confirmamos pela presente Carta por nós e pelos nossos sucessores para todo o sempre o seguinte 1 A Igreja de Inglaterra será livre e serão invioláveis todos os seus direitos e liberdades e queremos que assim seja observado em tudo e por isso de novo asseguramos a liberdade de eleição principal e indispensável liberdade da Igreja de Inglaterra a qual já tínhamos reconhecido antes da desavença entre nós e os nossos barões 2 Concedemos também a todos os homens livres do reino por nós e por nossos herdeiros para todo o sempre todas as liberdades abaixo remuneradas para serem gozadas e usufruídas por eles e seus herdeiros para todo o sempre 3 Não lançaremos taxas ou tributos sem o consentimento do conselho geral do reino commue concilium regni a não ser para resgate da nossa pessoa para armar cavaleiro nosso filho mais velho e para celebrar mas uma única vez o casamento da nossa filha mais velha e esses tributos não excederão limites razoáveis De igual maneira se procederá quanto aos impostos da cidade de Londres 4 E a cidade de Londres conservará todas as suas antigas liberdades e usos próprios tanto por terra como por água e também as outras cidades e burgos vilas e portos conservarão todas as suas liberdades e usos próprios 5 E quando o conselho geral do reino tiver de reunir para se ocupar do lançamento dos impostos exceto nos três casos indicados e do lançamento de taxas convocaremos por carta individualmente os arcebispos abades condes e os principais barões do reino além disso convocaremos para dia e lugar determinados com a antecedência pelo menos de quarenta dias por meio dos nossos xerifes e bailios todas as outras pessoas que nos têm por suserano e em todas as cartas de convocatória exporemos a causa da convocação e procederseá à deliberação do dia designado em conformidade com o conselho dos que não tenham comparecido todos os convocados 6 Ninguém será obrigado a prestar algum serviço além do que for devido pelo seu feudo de cavaleiro ou pela sua terra livre 7 A multa a pagar por um homem livre pela prática de um pequeno delito será proporcionada à gravidade do delito e pela prática de um crime será proporcionada ao horror deste sem prejuízo do necessário à subsistência e posição do infrator contenementum a mesma regra valerá para as multas a aplicar a um comerciante e a um vilão ressalvando se para aquele a sua mercadoria e para este a sua lavoura e em todos os casos as multas serão fixadas por um júri de vizinhos honestos 8 Não serão aplicadas multas aos condes e barões senão pelos pares e de harmonia com a gravidade do delito 9 Nenhuma cidade e nenhum homem livre serão obrigados a construir pontes e diques salvo se isso constar de um uso antigo e de direito 10 Os xerifes e bailios só poderão adquirir colheitas e quaisquer outras coisas mediante pagamento imediato exceto se o vendedor voluntariamente oferecer crédito 11 Nenhum xerife ou bailio poderá servirse dos cavalos ou dos carros de algum homem livre sem o seu consentimento 12 Nem nós nem os nossos bailios nos apoderaremos das bolsas de alguém para serviço dos nossos castelos contra a vontade do respectivo dono 13 A ordem Writ de investigação da vida e dos membros será para futuro concedida gratuitamente e em caso algum negada 14 Nenhum homem livre será detido ou sujeito à prisão ou privado dos seus bens ou colocado fora da lei ou exilado ou de qualquer modo molestado e nós não procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com a lei do país 15 Não venderemos nem recusaremos nem protelaremos o direito de qualquer pessoa a obter justiça 16 Os mercadores terão plena liberdade para sair e entrar em Inglaterra e para nela residir e a percorrer tanto por terra como por mar comprando e vendendo quaisquer coisas de acordo com os costumes antigos e consagrados e sem terem de pagar tributos injustos exceto em tempo de guerra ou quando pertencerem a alguma nação em guerra contra nós E se no começo da guerra houver mercadores no nosso país eles ficarão presos embora sem dano para os seus corpos e os seus bens até ser conhecido por nós ou pelas nossas autoridades judiciais como são tratados os nossos mercadores na nação em guerra conosco e se os nossos não correrem perigo também os outros não correrão perigo 17 Daqui para diante será lícito a qualquer pessoa sair do reino e a ele voltar em paz e segurança por terra e por mar sem prejuízo do dever de fidelidade para conosco excetuamse as situações de tempo de guerra em que tal direito poderá ser restringido por um curto período para o bem geral do reino e ainda prisioneiros e criminosos à face da lei do país e pessoas de países em guerra conosco e mercadores sendo estes tratados conforme acima prescrevemos 18 Só serão nomeados juízes oficiais de justiça xerifes ou bailios os que conheçam a lei do reino e se disponham a observála fielmente 19 Todos os direitos e liberdades que concedemos e que reconhecemos enquanto for nosso o reino serão igualmente reconhecidos por todos clérigos e leigos àqueles que deles dependerem 20 Considerando que foi para honra de Deus e bem do reino e para melhor aplanar o dissídio surgido entre nós e os nossos barões que outorgamos todas as coisas acabadas de referir e querendo tornálas sólidas e duradouras concedemos e aceitamos para sua garantia que os barões elejam livremente um conselho de vinte e cinco barões do reino incumbidos de defender e observar e mandar observar a paz e as liberdades por nós reconhecidas e confirmadas pela presente Carta e se nós a nossa justiça os nossos bailios ou algum dos nossos oficiais em qualquer circunstância deixarmos de respeitar essas liberdades em relação a qualquer pessoa ou violarmos alguma destas cláusulas de paz e segurança e da ofensa for dada notícia a quatro barões escolhidos de entre os vinte e cinco para de tais fatos conhecerem estes apelarão para nós ou se estivermos ausentes do reino para a nossa justiça apontando as razões de queixa e à petição será dada satisfação sem demora e se por nós ou pela nossa justiça no caso de estarmos fora do reino a petição não for satisfeita dentro de quarenta dias a contar do tempo em que foi exposta a ofensa os mesmos quatro barões apresentarão o pleito aos restantes barões e os vinte e cinco barões juntamente com a comunidade de todo o reino comuna totiu terrae poderão embargarnos e incomodarnos apoderandose de nossos castelos terras e propriedades e utilizando quaisquer outros meios ao seu alcance até ser atendida a sua pretensão mas sem ofenderem a nossa pessoa e as pessoas da nossa rainha e dos nossos filhos e logo que tenha havido reparação eles obedecernosão como antes E qualquer pessoa neste reino poderá jurar obedecer às ordens dos vinte e cinco barões e juntarse a eles para nos atacar e nós damos pública e plena liberdade a quem quer que seja para assim agir e não impediremos ninguém de fazer idêntico juramento VOLTAIRE E A PROPAGANDA ILUMINISTA Escritor autor de mais de 70 obras conhecido e admirado no mundo inteiro FrançoisMarie Arouet que passou para a história com o pseudônimo de Voltaire foi um dos maiores escritores e filósofos franceses e o grande responsável pela disseminação dos ideais do liberalismo que podemos considerar o filho inglês do Iluminismo Como Locke foi um defensor da tolerância religiosa principalmente no livro Dicionário Filosófico Curiosamente não era ateu como a maioria dos filósofos iluministas chegou inclusive a defender no livro Tratado de metafísica a existência de Deus Em todos os seus trabalhos fazia questão de incluir referências à excelência dos ideais iluministas que uma vez aplicados poderiam fazer com que os países saíssem do atraso social Sua concepção de sociedade é de que o mal não é uma abstração metafísica mas algo que existe concretamente como dado social e que só pode ser corrigido pela educação pelo trabalho e pela razão Rousseau considerou afirmações como essa como críticas pessoais Aliás Voltaire condenava o ócio Ele era efetivamente um trabalhador o que pode ser comprovado pelas 70 obras que produziu em 99 volumes e por uma correspondência vastíssima que pode ultrapassar a marca de dez mil cartas Sua obra mais importante Cândido ou o otimismo por exemplo foi escrita em três dias O livro é considerado um romance filosófico um relato que reúne ironia e dramaticidade a respeito de um homem que acredita na humanidade a despeito de todas as vicissitudes que enfrenta Alguns estudiosos enxergam nessa obra uma crítica ao otimismo de Leibniz e à teoria do bom selvagem de Rousseau Voltaire e suas circunstâncias Voltaire foi ao lado de Montesquieu e de Rousseau o intelectual mais influente da Revolução Francesa Exilado na Inglaterra por dois anos teve contato com as ideias liberais e as levou para a França onde imediatamente encontrou seguidores Defendeu a divisão dos poderes a educação como ferramenta de ascensão social e a liberdade como princípio para que o indivíduo pudesse resistir às injustiças FrançoisMarie Arouet Voltaire era filho de um tabelião que conseguira formar família abastada Foi educado em colégio jesuíta onde aprendeu segundo ele mesmo apenas latim e outras estupidezas razão pela qual abandonou os estudos aos 17 anos Começou a escrever aos 20 e logo sua língua ferina lhe traria problemas Tendo satirizado o governo francês foi preso na Bastilha por onze meses período que aproveitou para escrever sua primeira peça teatral Édipo Em 1726 ofendeu um jovem nobre e como punição foilhe dada a oportunidade de escolher entre a prisão e o exílio Foi para a Inglaterra onde viveu durante dois anos Voltaire e suas ideias Nesse tempo Voltaire conheceu as obras de John Locke que veremos adiante neste livro e o pensamento científico de Isaac Newton Também familiarizouse com a monarquia constitucional da Inglaterra novidade na época por ter sido a primeira Ficou particularmente impressionado pela tolerância religiosa que havia naquele país Voltando para a França publicou o Cartas sobre os ingleses enaltecendo aspectos da sociedade britânica O trabalho desagradou o governo francês que o considerou como crítica e Voltaire refugiou se no leste da França no castelo da amante Marquesa de Chatelet com quem estudou ciências naturais Permaneceu ali por dez anos até a morte da marquesa Depois seguiu para a Prússia a convite do rei Frederico II o Grande Em 1759 voltou para a França Trabalhou como historiógrafo da corte e escreveu o livro O século de Luís XIV Foi eleito para a Academia Francesa Comprou uma propriedade chamada Ferney perto da fronteira com a Suíça onde escreveu grande parte de seus livros e peças de teatro Além do sucesso editorial envolveuse em outros negócios que lhe garantiram grande riqueza Em 1778 aos 83 anos foi convidado para uma visita a Paris onde recebeu calorosa acolhida com direito a festas e homenagens Morreu pouco tempo depois Infelizmente não pôde ver a Revolução Francesa pela qual trabalhara tanto que ocorreria somente onze anos mais tarde Voltaire e sua influência no direito Defensor da liberdade como elemento fundamental para a felicidade humana Voltaire foi um grande crítico da intolerância religiosa Jamais conseguiu aceitar as disputas e retaliações originadas de diferenças religiosas A respeito do tema escreveu em 1756 Ensaio sobre os costumes e o espírito das nações Considerava fundamental a liberdade de expressão Queria a igualdade de todos os homens perante a lei com especial preocupação com a justiça AQUELES QUE FAZEM você acreditar em besteiras podem fazer você cometer atrocidades Voltaire NA TANGÊNCIA DA FILOSOFIA Jonathan Swift Esse famoso escritor irlandês na juventude chegou a ser secretário do político e escritor Sir William Temple com quem aprendeu a gostar de livros Mais tarde doutorouse em Teologia em Oxford e passou a ocupar a função de pastor da Igreja Anglicana Teve intensa atuação política na Inglaterra É autor dentre outros trabalhos de As viagens de Gulliver publicado em 1726 O livro é uma sátira dirigida especialmente aos whigs membros do partido liberal inglês que são retratados como os anões da terra de Lilliput em referência à sua pequenez de caráter e de inteligência Jonathan Swift era ele próprio um liberal mas estava desgostoso com o partido Além disso a obra trata de censurar os tories uma analogia aos membros do partido conservador inglês retratandoos como os miseráveis gigantes de Brobdingnag O livro satiriza ainda outros membros da sociedade como os juristas os militares e os supostos intelectuais Jonathan Swift morreu surdo e louco em 1745 Ele mesmo escreveu em latim a inscrição de sua lápide mortuária AQUI JAZ O CORPO DE JONATHAN SWIFT doutor em Teologia e deão desta catedral onde a colérica indignação não poderá mais dilacerarlhe o coração Segue passante e imita se puderes esse que se consumiu até o extremo pela causa da Liberdade O EMPIRISMO Embora o empirismo tenha sido iniciado por Francis Bacon no final do século XVI sem dúvida seu doutrinador mais importante viria a ser o filósofo britânico John Locke quase um século depois A doutrina do empirismo de que todo conhecimento só é adquirido pela experiência por meio do método da tentativa erro e acerto era clara oposição ao racionalismo então em voga Com efeito o racionalismo apregoava que o homem nascia com as suas principais ideias já prontas essas ideias ficariam latentes em algum lugar da mente e à medida que o homem se desenvolvia emergiam para a consciência Portanto para os racionalistas a verdade não dependia dos sentidos O empirismo e a responsabilidade de cada um No aspecto jurídico o empirismo foi fundamental porque passou a atribuir ao homem a responsabilidade pelo entendimento de todas as questões Isso traria para o direito a noção de autonomia No entanto a introdução do pensamento empírico no direito o faria enfrentar um de seus maiores desafios Conforme já anteriormente afirmado para os empiristas toda a verdade emana das observações e experiências particulares Entretanto os indivíduos são intrinsecamente diferentes uns dos outros e igualmente distintas são as experiências vivenciadas por cada um e os resultados delas extraídos Dessa forma uma das características mais proeminentes do empirismo foi justamente a negação da possibilidade de existência de uma Verdade que pudesse ser dita Universal Em decorrência disso não haveria qualquer possibilidade teórica de estabelecimento de um padrão universal de referência que permitisse a valoração de algo como certo ou errado justo ou injusto bom ou mau e assim por diante Em outras palavras tornase impossível o estabelecimento de um norte de conduta a ser imposto a todos os homens através das leis Seria necessário haver uma lei para cada homem o que do ponto de vista da justiça social seria infactível e impraticável Justamente por essa razão é que do empirismo originaramse diversas peculiares linhas de pensamento que passaram a combater a obrigatoriedade das leis e a existência dos governos tais como o ceticismo o anarquismo e o individualismo Locke não concordava com essa doutrina e seguiu o caminho oposto afirmando que os sentidos e a experiência eram os reais instrumentos do conhecimento No entanto admitia a existência de algo inexplicável intangível pelos sentidos relacionado com a substância30 O empirismo que defende o método da experimentação tornouse importante base filosófica da ciência moderna embora recomendasse mais a indução que a dedução A tábula rasa de John Locke O filósofo britânico John Locke é certamente o maior nome do empirismo ou a Escola da Epistemologia Recuperando Francis Bacon e Hugo Grócio sua teoria pregava em síntese que a busca do conhecimento deveria ocorrer por meio de experiências e não por deduções ou especulações Esse empirismo filosófico refutava explicações baseadas na fé e por isso mesmo apregoava ser necessário separar a Igreja do Estado Não é preciso dizer portanto que a teoria fez com que seu autor fosse alvo de feroz oposição da Igreja Católica Não chegou no entanto a sofrer maiores retaliações porque era aristocrata e chegou a exercer a função de ministro do Comércio do rei Guilherme III de Orange John Locke e suas circunstâncias Locke estudou em Oxford onde depois lecionou Tinha ideias políticas avançadas para a época Questionava o poder divino dos governantes formulado por Thomas Hobbes Dizia que era necessário haver três poderes o executivo o judiciário e o legislativo esse último mais importante porque representava o povo Foi justamente dentro dessa linha de pensamento que em 1689 escreveu o seu Dois tratados sobre o governo descrevendo os contratos que deviam existir entre governantes e governados e da autonomia entre os poderes de Estado ainda hoje considerados pontos básicos da liberdade humana John Locke e suas ideias Segundo John Locke o homem nascia em um estado de pureza como uma tábula rasa ou um quadro em branco que era preenchido aos poucos à medida que a pessoa evoluía e tudo o que adquiria ao longo da vida advinha das experiências principalmente na sociedade O homem em estado de natureza era um homem pacífico Portanto era a base do ideal iluminista mais tarde defendido por Rousseau por exemplo de que todos os homens nascem bons a sociedade é que os corrompe ou aperfeiçoa Como o conhecimento depende da percepção segundo Locke o empirismo tem caráter individual o entendimento de cada coisa depende da percepção de cada indivíduo Para os empiristas o que importava não era a coisa nem a ideia que temos sobre essa coisa mas o processo pelo qual essa coisa chega ao entendimento da mente pelos sentidos Esse conceito teve repercussão no desenvolvimento da corrente psicológica do behaviorismo Em 1690 foi publicada a sua principal obra denominada Ensaio sobre o entendimento humano Foi aqui que Locke desenvolveu a sua teoria das ideias simples e complexas Dentro da lógica do empirismo afirmava o autor que a origem de todas as ideias são os sentidos Em um primeiro momento através da utilização deles o homem abstrai suas primeiras impressões da situação ou objeto experimentados A essas primeiras e evidentes impressões Locke dava o nome de ideias simples Para John Locke tais ideias seriam o substrato de todo o nosso conhecimento Dizia quanto a elas que a mente não pode formálas nem destruílas As únicas vias capazes de sugerilas ou fornecêlas à mente seriam a sensação e a reflexão Exemplificadamente quando um indivíduo toma contato com a água rapidamente através de seus sentidos chega a conclusões básicas como o fato de ela ser incolor inodora insípida molhada fria e assim por diante Agora a partir do momento em que estamos preenchidos de ideias primárias nosso entendimento teria o poder de repetilas comparálas e unilas numa variedade quase infinita Seria essa a forma a partir da qual surgiriam as impressões mais profundas acerca daqueles mesmos objetos e situações as chamadas ideias complexas Em outras palavras as ideias complexas são aquelas formadas por várias ideias simples interligadas comparadas dimensionadas Como exemplos podemse citar as ideias de beleza e feiura imensidão e pequenez ou mesmo a ideia de homem John Locke e sua influência no direito John Locke pensava que a soberania devia ser exercida pela população representada pelo Poder Legislativo e não pelo Estado Dizia também que a legitimação do poder político adviria da adesão da maioria dos cidadãos ao contrato ou pacto social Ao governo cabia apenas fazer aplicar as leis naturais e civis Sua teoria do Direito Natural imutável que não dependia de costumes e tradições teve grande influência no processo de independência dos Estados Unidos NÃO SE REVOLTA um povo inteiro a não ser que a opressão seja geral John Locke O empirismo de Francis Bacon Francis Bacon elevou a experiência a um ponto que tornava quase desnecessário o uso da razão porque a partir da repetição de experimentações a pessoa podia chegar aos resultados pelo método indutivo Deixou extensa obra chamada Instauratio magna scientiarum Queria com esses livros estabelecer as bases para a ciência moderna Mas o trabalho ficou incompleto com apenas dois volumes prontos Foi sob o reinado de Elizabeth I em plena Renascença que despontou o talento de Francis Bacon o iniciador do empirismo teoria filosófica que estabelece que o conhecimento deve advir da experiência Dizia ele que o hábito é o principal juiz da vida de um homem O pensamento de Francis Bacon influenciaria toda uma geração de filósofos britânicos ao longo de todo o século seguinte o século XVII O representante mais renomado desse movimento foi John Locke mas é preciso lembrar que o empirismo já era uma característica do pensamento de Aristóteles que Santo Tomás de Aquino aperfeiçoou Francis Bacon nasceu de família nobre inglesa em 1561 e educouse em Cambridge e em Paris Foi eleito para o parlamento Exerceu cargos de alto nível na corte de Elizabeth I e mais tarde na corte de James I tendo recebido deste dois títulos de nobreza de barão e de visconde No entanto acusado de abuso de confiança teve que renunciar aos cargos Foi perdoado pelo rei mas teve que se retirar para sua propriedade onde permaneceu dedicado aos estudos até morrer em 1626 Achava que a ciência deveria ser instrumento para que o homem dominasse a natureza e assim se servisse dela Desenvolveu uma teoria segundo a qual para alcançar o verdadeiro conhecimento o homem deveria libertarse do que chamava de ídolos ou seja noções que lhe eram impostas pelo grupo social pela própria origem pessoal pelas interações sociais e pelas variadas doutrinas existentes De certa maneira é a ideia da tábula rasa que John Locke desenvolveria mais tarde Francis Bacon consideravase um cientista mas ficou conhecido também como escritor Produziu textos literários de grande qualidade entre eles muitos ensaios em que trata de política e de filosofia NÃO EXISTE COMPARAÇÃO entre aquilo que é perdido por não se obter êxito e aquilo que é perdido por não se tentar Francis Bacon OS HOMENS ASTUTOS condenam os estudos os homens simples os admiram e os homens sábios se utilizam deles Francis Bacon Hugo Grócio e a natureza humana Tendo vivido em uma época em que a Holanda mergulhava em disputas internacionais intensas na tentativa de tornarse uma potência marítima Hugo Grócio produziu vasta obra em que pregava a libertação dos mares rebelandose contra a quase monopolização dos oceanos por alguns países da Europa à época Considerase que sua obra foi a base do moderno Direito Internacional Sua abordagem filosófica era pelas liberdades individuais embora defendesse que os interesses coletivos se sobreponham aos individuais Hugo Grócio e suas circunstâncias Hugo Grócio é tido como o criador do Direito Internacional Em suas obras discutiu com profundidade questões relacionadas com situações de guerra Dizia que o poder e a força não criam direitos De Mare Liberum é tido como o primeiro tratado escrito sobre Direito Internacional Público Foi o inspirador de juristas como Hans Kelsen O holandês Hugo Grócio Huig de Groot nasceu em 1583 filho de pai protestante e mãe católica Ingressou na Universidade de Leyden aos 11 anos de idade e aos 16 anos defendia o seu primeiro caso como advogado Aos 18 anos obteve o grau de doutor e escreveu em latim um livro sobre a história da Holanda Foi embaixador na Suécia Hugo Grócio e suas ideias Concentrou seus estudos principalmente sobre a natureza humana Talvez o fato de viver entre duas doutrinas religiosas contrastantes em casa o tenha levado a defender a natureza como elemento fundamental do direito e não a lei de Deus Isso era basicamente o conceito do livrearbítrio Com isso opunhase a Calvino com quem também teve desavenças no campo da política Chegou a ser preso por causa de suas ideias Hugo Grócio e sua influência no direito Hugo Grócio dizia em sua teoria do Direito Natural que as coisas são boas ou más por sua própria natureza e não porque Deus lhes atribuísse qualidade Sua obra considerada mais importante é De Mare Liberum Sobre a liberdade dos mares em que contesta o direito que Inglaterra Espanha e Portugal teriam nessa época 1609 de dominar os mares Grócio defendia que a Holanda também tinha direito de navegar até o ponto conhecido então como Índias Ocidentais No campo do Direito escreveu sobre a guerra na sua opinião legítima e justificável porquanto criação humana desde que justa Escreveu também sobre a paz definindo maneiras de procurar soluções pacíficas para os conflitos Para ele o direito existe em função da sociedade Um dos pontos chave de seu pensamento é a questão da propriedade por meio da qual explica a transição do Direito Natural para o Direito Positivo NADA HÁ de arbitrário no direito natural como não há arbitrariedade na aritmética Hugo Grócio Samuel Pufendorf o eclético É conhecido como importante precursor do Iluminismo na Alemanha Discípulo de Hugo Grócio Samuel Pufendorf foi professor de Direito Natural na famosa Universidade de Heidelberg na Alemanha Aderiu desde logo ao método matemático e utilizava tanto a dedução quanto a indução para a filosofia e também para o direito Revisou a teoria do direito natural de Thomas Hobbes e Hugo Grócio Jurista e historiador suas ideias influenciaram grandes nomes de sua época como Thomas Jefferson que as aplicou na revolução norteamericana Samuel Pufendorf e suas circunstâncias Samuel Pufendorf avançou em relação ao pensamento de Hugo Grócio especialmente no que diz respeito ao sistema jurídico Foi acima de tudo um eclético É um dos primeiros teóricos do moderno direito natural Também defendeu o contrato social de Thomas Hobbes mas com aperfeiçoamentos Suas principais obras foram Elementos do direito universal e Do direito natural e das gentes Samuel Pufendorf nasceu na Alemanha em 1632 O pai pastor luterano o encaminhou para a carreira religiosa mandandoo estudar teologia na Universidade de Leipzig Não gostou do curso e dedicouse a estudar Direito na Universidade de Jena Formado conseguiu emprego como tutor da família de um dos ministros do rei Carlos X da Suécia em Copenhague Por essa época eclodiu o conflito entre Suécia e Dinamarca Pufendorf foi preso pelos dinamarqueses e mantido encarcerado por oito meses Durante esse período aproveitou para formular um sistema de direito universal que publicou mais tarde em 1661 com o nome de Elementos jurisprudenciais universais O trabalho lhe rendeu uma cátedra na Universidade de Heidelberg foi o primeiro curso do mundo de direito internacional Perdeu a cátedra em 1668 por ter se posicionado contrariamente a uma nova taxação oficial sobre documentos Voltou então para a Suécia para a Universidade de Lund Na Suécia publicou vários outros livros que lhe valeram a nomeação como Historiador do Rei Em 1694 recebeu título de nobreza do rei da Suécia tornandose o Barão Samuel Pufendorf poucos meses antes de morrer aos 62 aos de idade de ataque do coração em Berlim Samuel Pufendorf e suas ideias Em relação ao posicionamento religioso contestava a doutrina cristã da contrarreforma e ao mesmo tempo a doutrina luterana da revelação pela fé por isso acabou chegando a uma teoria em que não constava a presença de Deus O governante portanto não recebe o poder de Deus que apenas define que há os que mandam e há os que obedecem o governante portanto exerce o poder porque a sua característica individual o leva a isso e porque os outros homens precisam ser liderados Essa teoria o fez defender na política a necessidade social de um governante despótico mas de boas intenções que atuasse dentro de um sistema jurídico estruturado como uma engrenagem mecânica Os cidadãos ficavam ligados ao governante por meio de contratos implícitos porque era lógico que assim fosse já que o homem tem natureza social E como os homens são livres e também diferentes entre si um conjunto de leis é necessário para ordenar as suas ações Samuel Pufendorf e sua influência no direito Samuel Pufendorf escreveu suas principais obras entre 1660 e 1672 Nelas define que um sistema jurídico estruturado devia conter alguns elementos básicos e fundamentais Dentre tais elementos declarou que não bastava o pacto associativo previsto por Thomas Hobbes Mais do que isso era preciso haver um pacto de união pactum unionis entre o governante e os governados Defendeu também uma Constituição que estabelecesse a forma de governo adotada e suas regras gerais Além disso previu a necessidade de um terceiro contrato social a que chamou pactum subjetionis pacto de sujeição ou subordinação no qual os cidadãos concordavam em obedecer ao governante O Direito Natural de Pufendorf não coloca a natureza nem Deus como referência de todas as coisas mas sim o processo originado da razão humana No direito internacional defendia que este não se restringia aos cristãos mas que deveria constituir um laço comum entre todas as nações MESMO NO ESTADO de natureza existe a sociabilidade e a razão Samuel Pufendorf O JANSENISMO O jansenismo foi uma variante do calvinismo que teve origem nas pregações de Cornelius Jansen bispo da cidade de Yprès na Bélgica no século XVII O movimento teve grande importância principalmente na Bélgica e na França durante o século XVIII e abalou profundamente a Igreja Católica Propunha a retomada do pensamento de Santo Agostinho em clara rejeição à escolástica de Santo Tomás de Aquino Os jansenistas achavam que a escolástica era exageradamente racional e queriam que a Igreja retornasse à disciplina e à moral religiosa do início do cristianismo defendendo a predestinação e opondose ao livrearbítrio Condenavam o culto aos santos e a realização das missas em latim exigindo que fosse utilizado o idioma local Além disso defendiam a eleição dos bispos e dos padres ideal que os levou a apoiar a Revolução Francesa Um dos dogmas jansenistas dizia respeito ao pecado original que figuraria como o retrato da corrupção do homem que nasce com vocação para o mal Além disso na moral jansenista a ignorância não é desculpa para o pecado ao contrário do que ensinavam os jesuítas O papa Inocêncio X declarou em 1653 que o livro Agostinho do bispo Cornelius Jansen continha propostas heréticas Um filósofo importante da época Blaise Pascal saiu em defesa do bispo e a polêmica arrastouse por muitos anos Dizia ele que na prática a Igreja condenava os jansenistas porque estimulavam o aumento da autoridade local contribuindo para a perda de prestígio do papa Para se defender das retaliações dos padres os jansenistas buscaram apoio de autoridades civis e o movimento ganhou contornos políticos Acabou sendo proibido definitivamente pelo papa Alexandre VI A importância do jansenismo para o Direito reside no contraponto que representa para a questão dos direitos individuais se o homem peca é porque é mau por natureza se realiza obras boas foi porque Deus mandou que ele assim o fizesse Deus e a monarquia Vulto importante para o direito moderno o jansenista francês Jean Domat procurou sistematizar o direito comum de seu tempo Para tanto desenvolveu um trabalho que ficou organizado no livro As leis civis na sua ordem natural publicado em 1689 O trabalho fora encomendado por Luís XIV que lhe pagou uma pensão de 2000 francos até que terminasse Justamente por esse motivo é que o livro tem como objetivo principal apoiar o rei e a monarquia absolutista Para atingir tal escopo utilizouse de elementos metafísicos como Deus e as leis da natureza pontos importantes para o povo da época Entretanto a despeito dos seus motivos esse sumário legal dos preceitos contidos no Código de Justiniano que ele traduziu do latim é considerado um dos mais importantes da Ciência do Direito realizados na França Jean Domat sistematizou as leis esparsas do direito comum em sua época baseadas no Código de Justiniano Considerava que toda lei devia estar fundada sobre a ética e sobre os princípios religiosos Era defensor da monarquia absolutista de Luís XIV Jean Domat foi amigo íntimo do filósofo Blaise Pascal tendo lhe confiado ao morrer muitos documentos confidenciais Domat nasceu em 1625 mas publicou seu primeiro trabalho apenas em 1689 em três volumes um quarto sobre direito público foi editado em 1697 depois da sua morte Foi o primeiro a promover a separação das leis civis e das leis públicas num trabalho que facilitaria a elaboração dos Códigos de Napoleão Código Civil de 1804 Código Comercial de 1808 e Código Penal de 1810 HÁ UMA DIFERENÇA imensa entre a maneira pela qual sentimos as injustiças feitas a nós e como julgamos as que atingem o próximo Jean Domat Robert Pothier e a racionalização do direito Nos primeiros séculos da Idade Moderna a França aplicava diferentes normas jurídicas em diferentes espaços do seu território Os juízes do sul usavam leis escritas que interpretavam conforme a situação e os juízes do norte preferiam aplicar as regras do direito consuetudinário baseado exclusivamente nos costumes Após a separação das leis promovida por Jean Domat foi o trabalho do juiz Robert Joseph Pothier que permitiu a uniformização da legislação civil francesa servindo como base mais tarde para a elaboração dos Códigos Napoleônicos Robert Pothier e suas circunstâncias Robert Pothier estruturou a legislação francesa organizando as diferentes formas de julgamento aplicadas no país direito romano direito canônico e direito consuetudinário Seus estudos ao lado daqueles desenvolvidos por Jean Domat foram fundamentais para a elaboração do Código Civil francês de 1804 Robert Joseph Pothier foi juiz e professor de Direito francês em Orleans cidade onde nasceu e onde sempre viveu lecionando na universidade local Teve uma vida modesta e sem eventos marcantes Seu principal trabalho foi organizar textos do Direito Romano especialmente no livro Pandectae Justinianeae in novum ordinem digestae em três volumes publicados entre 1748 e 1752 em Paris É conhecido pela publicação de uma série de tratados sobre aspectos legais dos deveres de quem vende troca compra ou aluga também escreveu sobre direito de propriedade Robert Pothier e sua influência no direito Nas suas atividades judiciárias percebeu a dificuldade de julgar assuntos civis por causa da profusão de diferentes instrumentos de interpretação das situações Por isso aplicouse em sistematizar o direito dentro de uma perspectiva racionalista Escreveu em 1748 uma obra chamada As Pandectas de Justiniano dispostas em uma nova ordem reorganizando o Direito Romano Nesses estudos desenvolveu teses que se converteram em princípios fundamentais do próprio direito francês reunidas no livro Tratado das obrigações publicado entre 1761 e 1764 Uma delas foi a regra que limita a recuperação em caso de má execução de uma obrigação contratual para danos previsíveis Pothier também estudou a posse num livro que seria fundamental para as posteriores pesquisas de Savigny Muitas de suas ideias foram inseridas nos Códigos Napoleônicos e influenciaram também as leis de contratos editadas na Inglaterra e nos Estados Unidos NÃO PODE HAVER OBRIGAÇÃO sem pessoa obrigada Sem devedor não há dívida Robert Joseph Pothier NA TANGÊNCIA DA FILOSOFIA Blaise Pascal Embora também tivesse sido filósofo Blaise Pascal ficou mais conhecido como matemático Curiosamente seu pai mesmo percebendo seu grande interesse pela matemática quis que Blaise tivesse uma infância normal e chegou a esconder todos os livros que tratavam do assunto Mas o menino antes dos 12 anos 1635 estudou Geometria sozinho e descobriu que a soma dos ângulos de um triângulo era igual a dois ângulos retos ou seja havia chegado por si mesmo à 32ª proposição do matemático grego Euclides Pascal daria ainda muitas contribuições à ciência Aos 19 anos inventou uma calculadora mecânica para ajudar no trabalho do pai coletor de impostos Estudou os trabalhos do físico Torricelli sobre a pressão atmosférica e iniciou uma série de experiências que o levaram a comprovar a existência do vácuo Num período de sua juventude teve participação importante no movimento religioso conhecido como jansenismo Foi amigo de Jean Domat Blaise Pascal fez outras descobertas entre elas o cálculo de probabilidades chamado Geometria Aleatória Desenvolveu também uma tabela numérica que leva o seu nome Triângulo de Pascal Um trabalho importante para a física foi o livro O tratado do equilíbrio dos líquidos publicado em 1653 Escreveu também o Tratado sobre as potências numéricas tratando dos objetos infinitamente pequenos Suas pesquisas inspirariam posteriormente Leibniz e Isaac Newton Sua contribuição para a filosofia foi com o livro Pensamentos Umas de suas frases mais famosas é esta O coração tem razões que a própria razão desconhece O sensacionismo de Condillac empirismo exacerbado Étienne Bonnot abade de Condillac foi o expoente de uma variante radical do empirismo que ficou conhecida como sensacionismo Condillac e suas circunstâncias Étienne Bonnot de Condillac a partir de um empirismo radical conhecido como sensacionismo acabou desenvolvendo uma teoria que pode ser considerada de psicologia desenvolvimentista Elaborou uma teoria da percepção com método próprio Achava que a mente era imaterial Étienne Bonnot abade de Condillac nasceu em 1714 e morreu em 1780 De saúde precária chegou a ser considerado intelectualmente pobre mas conseguiu estudar num seminário e depois na Sorbonne Foi amigo de Diderot e de Rousseau Pertenceu à Academia Prussiana de Ciências e à Academia Francesa Suas principais obras são Ensaio sobre a origem do conhecimento do homem de 1746 e Tratado das sensações de 1754 Os dois livros versam sobre o papel da experiência no desenvolvimento das capacidades cognitivas Basicamente o autor procura demonstrar o desenvolvimento do conhecimento em um ser através de uma analogia onde uma estátua recebe gradativamente os sentidos corporais próprios do homem Assim seguindo a mesma linha de raciocínio de Locke mostra como tal estátua através dos resultados sensíveis colhidos das experiências consegue interpretálos e relacionálos a ponto de desenvolver ideias e noções cada vez mais complexas e abstratas Condillac e suas ideias Enquanto o empirismo de John Locke rejeitava a existência apenas de princípios e ideias inatos Condillac foi além e rejeitou também as habilidades inatas Segundo ele a experiência obtida por meio de cada um dos órgãos dos sentidos nos dá as ideias que são a matériaprima do conhecimento mas também nos ensina a trabalhar com atenção imaginação abstração julgamento e razão Afirma que a experiência forma os nossos desejos e conduz o nosso querer a experiência nos apresenta material que nossa mente transformará em crenças a respeito do mundo que nos cerca Ficou célebre um desafio que lançou uma pessoa que nasceu cega e depois obteve a visão seria capaz de identificar espacialmente à primeira vista uma esfera ou um cubo sem tocálos Condillac afirmava que a percepção a consciência e a atenção eram diferentes aspectos de uma mesma operação mental derivada da sensação Interessante é observar que mesmo após esse extenuante processo racional um dado permaneceria impossível de ser demonstrado qual seja a própria existência do mundo a realidade Assim tal dado deveria necessariamente ser afirmado de forma dogmática o que retira a certeza e a objetividade de todo o conhecimento anteriormente angariado Em outras palavras mais uma vez provase o quanto já afirmado anteriormente que o empirismo em sua última instância leva inexoravelmente à conclusão da inexistência de qualquer verdade incontestavelmente válida ou seja lança as bases filosóficas do ceticismo George Berkeley a voz dissonante Dentro do empirismo uma voz se levantou para combater as discussões da época quando o bispo irlandês George Berkeley publicou em 1710 o livro Tratado sobre os princípios do conhecimento Contestando John Locke em relação ao conceito das ideias complexas afirmava que todas as ideias são simples George Berkeley viveu entre 1685 e 1753 Foi aluno do célebre escritor Jonathan Swift o autor de As viagens de Gulliver Desenvolveu um pensamento empírico muito particular pregando que o conhecimento tinha mais relação com o espírito do que com os sentidos Segundo ele quando fechamos os olhos o mundo desaparece inexiste ao abrirmos os olhos de novo é como se o mundo fosse reconstruído dentro de nossa mente Portanto a substância não teria materialidade existiria apenas como resultado da percepção e da vontade O fogo existe mas a noção de calor associada a ele depende da mente que o enxerga Essa visão espiritualista da realidade divergia frontalmente do conceito vigente Inclusive condenava o racionalismo da época porque achava que conduzia a sociedade ao materialismo e à descrença em Deus Segundo Berkeley é o temor que o homem tem de Deus que o afasta do mal e o leva a ser virtuoso Foi considerado um filósofo realista porque censurava os filósofos que defendiam a existência de ideias abstratas Afirmava que a única base que pode justificar nossas crenças sobre as coisas comuns é a consciência direta UMA REFLEXÃO ACERCA DOS CÓDIGOS O absolutismo teve o seu papel histórico porque foi graças ao poder central do rei que se conseguiu criar Estados Nacionais a França foi o primeiro Estado Nacional moderno Mas no absolutismo imperava a segregação social A Revolução Francesa derrubou privilégios de classe e mais do que isso influenciou a atualização dos sistemas jurídicos desses Estados Nacionais com ideais de humanização dos direitos e de liberdade inclusive sobre a propriedade que no absolutismo estava concentrada nas mãos dos senhores feudais e dos representantes do clero O passo seguinte necessário era a elaboração de um compêndio jurídico que registrasse valores sociais permanentes Desse modo farseia perdurar pela aplicação continuada o espírito da Revolução Francesa bem como se garantiria a segurança jurídica aos cidadãos Para isso os dirigentes do século XVIII entenderam necessário estudar as leis de cada país numa ação de relacionamento internacional para que o sistema jurídico adotado tivesse universalidade e permanência Como vimos páginas atrás a codificação levada a cabo por Jean Domat foi fundamental para o avanço da França nesta direção Já os Códigos Napoleônicos elaborados entre 1804 e 1810 com base naquela codificação preliminar de Jean Domat foram os grandes precursores da modernidade jurídica ocidental Não deve ser esquecida a contribuição ainda no século XVIII do sacerdote italiano Ludovico Antonio Muratori 16721750 que escreveu um livro chamado Dos defeitos da jurisprudência enumerando a confusão reinante no seu tempo no estudo do Direito Com efeito a partir da separação dos poderes proposta por Montesquieu os juízes deixaram de legislar a função passava a ser atribuída aos legisladores Os magistrados por sua vez passaram a se ocupar estritamente do cumprimento de leis gerais cuja elaboração cuidadosa deveria deixar pouca margem a interpretações Essa decisão ocasionou a neutralização política do judiciário o que levou a uma especialização dos funcionários encarregados da execução das leis Com isso o direito também evoluiu até para atender ao anseio burguês por maior segurança jurídica Essa evolução ficou marcada pelo surgimento da Escola da Exegese radicalmente legalista Os Códigos Napoleônicos Algumas tentativas de elaboração de códigos já tinham sido realizadas em Atenas no século de Péricles e em Roma como o Pandectas e o Codex textos aliás que o papa Gregório VII procurou resgatar na Idade Média como inspiração para o Ius Comune como se chamava em latim o Direito Natural Essa mescla do direito romano com o direito canônico formou a base jurídica da Idade Média A superação desse patamar viria apenas com o Iluminismo e sua valorização do indivíduo Os modernos códigos foram inspirados nessa corrente filosófica mas motivados por uma nova doutrina econômica o capitalismo Os líderes da Revolução Francesa fizeram incluir na primeira Constituição daquele país datada de 1791 a promessa de produzir um código com todas as leis civis existentes Quatro juízes renomados foram encarregados do trabalho Treonchet Portalis BigotPrémeneu e Maleville O próprio Napoleão Bonaparte presidiu várias das sessões realizadas para a discussão dos temas Foi necessário aprovar 36 leis para permitir a promulgação do Código Civil em 1804 Era composto de três livros o primeiro tratando de pessoas o segundo de bens e o terceiro da propriedade O Código Civil francês privilegia o direito privado em suas relações com o direito público Recebeu muitas críticas por ter sido considerado excessivamente burguês Apesar disso constituise no verdadeiro pensamento jurídico dos séculos XIX e XX e até hoje conserva em sua maior parte a estrutura original O Código Civil alemão Um segundo passo para a codificação do direito foi dado em 1900 pelo Código Civil alemão Burgerlich Gesetzbuch BGB que influenciou grande parte da Europa representando a evolução do Código Civil francês Tratouse de uma decisão política para apoiar a fundação do chamado segundo império alemão segundo Reich em 1871 No processo liderado pelo primeiroministro Otto von Bismarck a uniformização do ordenamento jurídico contribuiria para agrupar todos os Estados germânicos em um só país a Alemanha Até aquele momento o sistema jurídico dominante era ainda o direito romano o Ius Comune Dois filósofos alemães iniciaram uma polêmica pública sobre a necessidade de um código que sistematizasse num só diploma legal o direito civil de todos os estados alemães Anton Friedrich Justus Thibaut no livro Da necessidade de um Direito Civil Geral para a Alemanha de 1814 defendeu a criação do código fundamentandose nos muitos inconvenientes políticos e comerciais que ocorriam em razão das disparidades existentes entre as leis e os costumes dos Estados alemães E chamava a atenção para o benefício complementar que seria a ampliação do sentimento de unidade nacional O outro lado da polêmica foi protagonizado por Friedrich Carl von Savigny No mesmo ano de 1814 publicou o livro Da vocação de nosso tempo para a legislação e a jurisprudência declarandose contra a codificação do direito alemão Ele acreditava que os costumes do povo e sua história seriam fontes primárias do direito Codificar a legislação resultaria imobilizar o direito no tempo o que poderia limitar a atuação das forças históricas e da consciência coletiva para o aprimoramento do ordenamento jurídico A frase é de Alessandro Gropalli jurista italiano que estudou profundamente a Teoria Geral do Estado Porém a tese da necessidade da codificação venceu e o Código ficou pronto em 1896 mas só entrou em vigor quatro anos depois O Código Civil alemão de 1900 dividiase em duas partes A primeira era geral abrangendo o direito das pessoas dos bens e os negócios jurídicos servindo como preceitos de direito civil A segunda parte especial estava disposta em quatro livros direito das obrigações direitos reais direito de família e direito das sucessões Dois países profundamente influenciados pelo Código Civil alemão foram o Japão que editou seu código em 1898 e China que editaria o seu em 1930 O Código Civil brasileiro entrou em vigor em 1916 E teve vida longa sendo substituído somente em 2002 A ESCOLA HISTÓRICA DO DIREITO Foi um movimento que não se restringiu à filosofia mas atingiu escala de movimento cultural Teve grande repercussão na França com a publicação dos treze volumes do Repertório de Jurisprudência de Merlin de Douai em 1815 obra que analisava o Código de Napoleão comparandoo com o antigo direito francês Entretanto foi na Alemanha que a Escola Histórica do Direito floresceu com os trabalhos de Gustav von Hugo posteriormente desenvolvidos por Savigny e Puchta O pressuposto da Escola Histórica do Direito era reconhecer a importância à tradição jurídica ou seja os costumes e a história no estudo dos fatos jurídicos e sociais Sua base de estudos era o direito romano recompilado pelo imperador Justiniano no ano de 533 e publicado em cinquenta volumes sob o título de Pandectas ou Digesto A intenção era recuperar o propósito da lei no momento em que havia sido criada Isso porque pensavam os filósofos dessa escola a lei não surge apenas da razão do legislador mas também das circunstâncias históricas nas quais foi redigida Considerase como o ponto alto da Escola Histórica do Direito a já citada antológica disputa intelectual entre Savigny e Thibaut sobre a necessidade de criação de um código civil para a Alemanha Savigny precursor do Código Civil alemão Friedrich Carl von Savigny foi professor de Direito em várias universidades alemãs entre seus alunos estiveram por exemplo os irmãos Grimm famosos pela coleta de narrativas infantis do folclore alemão É considerado o principal representante da Escola Histórica de juristas fundada por Gustav von Hugo jurista alemão que viveu entre 1764 e 1844 A obra de Gustav von Hugo sobre o método de ensino do direito romano resume a intenção de revisar o racionalismo que não usava a história como forma de apreensão e estudo das normas Savigny e suas circunstâncias Savigny estudou a história e a influência do direito romano nas legislações ao longo da história A grande importância dos seus estudos está relacionada à abordagem filosófica que realizou sobre o tema não se limitando apenas aos registros históricos Por causa do livro Tratado da posse é tido como o fundador do moderno direito internacional privado Friedrich Carl von Savigny publicou em 1803 quando tinha apenas 24 anos de idade sua obra mais importante Tratado da posse Tal obra fora recebida com aplausos pelos juristas da época e teve importância fundamental para os formuladores do Código Civil alemão um século depois Aliás como já mencionado anteriormente Savigny era contrário à elaboração de um Código alemão acreditava no que chamava de volkgeist espírito do povo e na força dos costumes e da tradição Em 1810 passou a lecionar Direito Romano na nova Universidade de Berlim graças à amizade com o naturalista Wilhelm von Humboldt Em 1815 publicou o primeiro volume de sua História do direito romano na Idade Média que continuaria escrevendo até 1831 quando publicou o último volume Também em 1815 Savigny fundou a Revista por uma Ciência Jurídica Histórica publicação que inaugurou os estudos da história do direito Nessa revista conseguiu divulgar entre outras informações importantes a descoberta do manuscrito do jurista romano Gaio datado do ano de 161 e que serviria de base 300 anos depois para o Corpus Iuris Civilis do Imperador Justiniano O texto de Gaio considerado perdido foi encontrado na biblioteca da catedral de Verona na Itália pelo naturalista alemão Carsten Niebuhr em 1816 Em 1835 Savigny começou a segunda fase do seu estudo histórico que denominou Sistema do direito romano atual publicado entre 1840 e 1849 em oito volumes Sua ideia sobre o direito era a de um sistema funcionando como organismo com um centro em torno do qual os elementos constitutivos estavam postos sem referência hierárquica Em 1842 assume a função de Ministro da Justiça para a Revisão da Legislação Prussiana Morreu em Berlim em 1861 Savigny e suas ideias Savigny no início de sua carreira assim como Gustav von Hugo era radicalmente contrário ao Direito Natural Para eles o direito não era fruto da razão mas resultado e consequência de eventos históricos Era portanto uma ciência que variava no tempo e no espaço Por isso defendia que só um estudo histórico do direito positivo permitiria o entendimento do Direito como ciência Recuaria mais tarde dessa posição Para Savigny o importante para o direito era o sentimento e não a razão A fonte original do direito não devia ser a lei mas a convicção jurídica do povo traduzida na sua forma de conduta Em suma defendia que a sociedade devia ter primazia sobre o Estado Era o que chamava de espírito do povo A crítica que se faz às obras da primeira fase de Savigny é de que ao se colocar o direito numa situação de dependência das conjunturas históricas ficaria prejudicada a sua estrutura como sistema e portanto a sua validade universal e permanente No entanto na fase mais madura de sua produção aperfeiçoou a sua teoria deixou de entender que o desenvolvimento das leis era apenas um fenômeno social e passou a defender a noção de que em cada momento histórico juristas e professores elaboraram leis mais convenientes para o seu tempo Savigny e sua influência no direito As legislações do século XIX tiveram grande influência do livro Tratado da posse de Savigny Suas considerações sobre o conceito e os elementos essenciais da posse numa espécie de reconstrução do direito romano ganharam o nome de teoria subjetiva da posse Mesmo opositores de Savigny como Rudolf von Ihering que desenvolveu teoria oposta conhecida como teoria objetiva da posse e que domina as legislações atuais elogiam o seu trabalho de sistematização e simplificação das muitas obras já publicadas em sua época sobre direito possessório Isso porque se os romanos já aplicavam a posse não haviam se preocupado em conceituála ou mesmo diferenciála em relação à origem aos seus elementos constituintes efeitos ou natureza jurídica Uma noção fundamental que Savigny definiu e que perdura até hoje na doutrina é a necessidade de distinguir entre aquele que possui o bem e aquele que apenas o detém Para o autor o elemento que distinguiria essas duas categorias jurídicas estaria ligado tanto a um aspecto material chamado corpus quanto a um aspecto moral que denominou animus No direito devemse a Savigny algumas considerações importantes em relação à doutrina possessória como a aquisição a apreensão de móveis e imóveis a custódia a conservação e a perda da posse O QUE QUER que existe está certo Friedrich Carl von Savigny Georg Friedrich Puchta e a jurisprudência dos conceitos Foi discípulo de Savigny e um dos representantes da Escola Histórica É considerado ao lado de Gustav von Hugo e Friedrich Carl von Savigny precursor do positivismo jurídico Especialista em Direito Romano foi professor dessa disciplina na Universidade de Munique durante muitos anos Seu trabalho mais importante foi o livro Manual das Pandectas publicado em 1838 Pandectas ou Digesto como já vimos neste livro é a recopilação de leis feita pelo imperador romano Justiniano O pandectismo ou jurisprudência dos conceitos foi um movimento surgido na Alemanha no século XIX a partir do livro de Puchta mas que ganhou força com a publicação do Tratado das Pandectas de Bernhard Windscheid Georg Friedrich Puchta e suas circunstâncias Georg Friedrich Puchta foi integrante da Escola Histórica do Direito Foi um dos precursores do positivismo jurídico ao elaborar a jurisprudência dos conceitos em que se manifestava grande preocupação com o formalismo Especialista em direito romano estudou as Pandectas do imperador Justiniano e abriu caminho para o movimento liderado por Bernhard Windscheid e que ficou conhecido como o pandectismo alemão Georg Friedrich Puchta nasceu na Bavária Alemanha em 1798 então pertencente à Prússia Era filho do juiz Wolfgang Heinrich Puchta que escreveu várias obras acadêmicas Obteve o grau de doutor em Direito pela Universidade de Erlangen onde lecionou por algum tempo até conseguir cátedra na Universidade de Munique Passou por outras universidades como professor mas fixouse em Berlim sucedendo Savigny que se afastava para ocupar o posto de Ministro da Justiça para a Revisão da Legislação Prussiana Em 1845 integrou o Conselho de Estado e a Comissão Legislativa da Prússia Morreu jovem aos 47 anos em 1846 Georg Friedrich Puchta e suas ideias Georg Friedrich Puchta entendia o Direito como uma ciência positiva um sistema que devia ser visto como expressão sociocultural da experiência histórica de determinada sociedade aproximandose muito daquilo que Savigny denominava de espírito do povo Por essa razão considerava que o Direito a Filosofia do Direito e a Jurisprudência deviam ser ciências distintas Elaborou a afamada jurisprudência dos conceitos corrente de pensamento jusfilosófico que apresentou a ideia de Direito como um sistema conceitual hierarquizado em forma de pirâmide No topo da pirâmide de Puchta estaria o conceito supremo uma ideia fundamental irrefutável em relação à qual por dedução lógica todos os outros conceitos seriam esclarecidos Todos os conceitos segundo Puchta relacionamse uns com os outros de modo a gerar novos conceitos Com tal postura opunhase ao sistema desenvolvido por Savigny que tinha forma orgânica com os elementos constitutivos orbitando sem hierarquia ao redor de um centro Georg Friedrich Puchta e sua influência no direito Para Puchta as três fontes do Direito são estas a consciência espontânea do povo a legislação e a ciência Desse modo como fato histórico e social o direito é uma ciência em constante movimento e seu objeto está sujeito a mudanças ao longo do tempo Justamente por essa razão é que Puchta condenava o legislador que criava leis arbitrárias sem observar as necessidades da nação Em suma pensava que o direito só tinha sentido pelo valor que lhe dava o espírito humano Por causa da preocupação com a forma mais do que com o conteúdo o sistema de Puchta foi praticamente um esboço do positivismo A VIDA NO TEMPO é um perene movimento uma ininterrupta sucessão Georg Friedrich Puchta O pandectismo Todas as leis do Império Romano distribuídas por mais de 1500 livros foram recopiladas e sintetizadas em cinquenta volumes por ordem do imperador Justiniano no ano de 533 Essa recopilação conhecida como Pandectas ou Digesto foi recuperada por filósofos alemães do século XIX interessados em observar como o direito romano que ao longo do tempo foi sendo modificado pelo direito canônico podia ser adaptado às leis do império alemão Esse movimento ficou conhecido como pandectismo Teve como precursores os trabalhos de Georg Friedrich Puchta mas ganhou corpo definitivo com a publicação do Tratado das Pandectas de Bernhard Windscheid O movimento pandectista buscou a normatização das leis alemãs somando a elas o direito consuetudinário originado dos costumes e da tradição local isto é pregando a inserção no sistema jurídico pelo legislador do que chamava de razão dos povos O pandectismo tinha a mesma essência da corrente denominada teoria geral do direito surgida também do século XIX que considerava o direito mais do que uma simples coleção de leis mas um sistema regido por princípios jurídicos fundamentais Desse modo e antecipando os valores que viriam a fundamentar o chamado positivismo jurídico o direito segundo Bernhard Windscheid tinha que estar alheio a interferências de questões de ordem filosófica moral ou política e não depender da vontade de quem aplicava a lei No entanto a interpretação das leis buscava compreender a vontade do legislador Com esse subjetivismo o movimento pandectista não duraria muito Acabou praticamente ao mesmo tempo em que acabou a teoria geral do direito Ambas as tendências procuravam substituir a filosofia do direito mas não tiveram consistência suficiente para isso No lugar delas surge a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen que veremos no decorrer deste livro Seria o desenvolvimento efetivo do positivismo jurídico Rudolf von Ihering e a luta pelo direito Foi um dos principais críticos da obra de Savigny embora reconhecesse nela muitos pontos válidos De certo modo Ihering antecipou Wittgenstein ao afirmar que a palavra está para a língua assim como as relações jurídicas estão para o direito Miguel Reale no livro Nova fase do direito moderno considera que os escritos de Ihering inauguraram a segunda fase do direito moderno31 Rudolf von Ihering e suas circunstâncias Rudolf von Ihering defende a luta pelos direitos como obrigação ética do indivíduo porque uma violação ao direito individual é uma violação ao direito da coletividade Idealizou a teoria objetiva da posse em oposição ao pensamento do seu conterrâneo Savigny Tem influência de Hegel no sentido de que do debate de ideias surge a síntese que favorece a solução Rudolf von Ihering tem raízes marxistas como veremos adiante mas sua atitude é de ponderação Segundo ele sempre haverá o conflito social mas ao contrário de Marx não culpava a burguesia pelas afrontas ao direito Segundo ele a propriedade tem origem no trabalho e ainda se opondo a Marx defende a valorização da propriedade individual como condição da dignidade humana Em sua obra Espírito do Direito Romano defende o direito como organismo num claro apoio ao pensamento de Savigny e consequente negação das ideias de Puchta Rudolf von Ihering e suas ideias Rudolf von Ihering trouxe grande contribuição para a filosofia do direito ao considerar o Direito um produto social Nele vêse a importância histórica para a compreensão das normas jurídicas porque apoiada na visão dialética de Hegel o homem cria ou recria o seu destino pela via da luta incansável contra as injustiças Essa luta é validada pela ética segundo Ihering é cabível a luta por um direito individual violado porque a violação agride o direito como conjunto da sociedade Negar o direito subjetivo é negar o direito como um todo são as suas palavras a esse respeito Defende portanto que o indivíduo tem o dever ético para consigo mesmo e para com a sociedade de lutar por seus próprios direitos Rudolf von Ihering foi discípulo de Georg Friedrich Puchta O conjunto do seu pensamento na fase mais madura de seu trabalho ficou conhecido como Jurisprudência de Interesses e era uma crítica à Jurisprudência dos Conceitos desenvolvida por seu mestre O ponto alto de sua crítica foi uma carta satírica publicada 1884 sob o título O que é sério e não sério na Jurisprudência Rudolf Von Ihering e sua influência no direito Para Rudolf von Ihering a liberdade deve estar condicionada às leis Ele afirma que o objetivo do direito é a paz mas que a paz de que usufruímos no presente é resultado de guerras passadas Sua principal contribuição para o direito foi a teoria objetiva da posse Concebida como alternativa para a teoria subjetiva da posse de Savigny influenciou grande parte da legislação contemporânea Como vimos em Savigny a posse tem dois elementos constituintes o corpus e o animus O primeiro conhecido como elemento material representa o poder de dispor fisicamente da coisa e inclusive de defendêla de qualquer tentativa de agressão é também chamado de fato exterior Já o segundo chamado fato interior representa a intenção de uma pessoa de ter a coisa como sua São esses os dois elementos que conjugados constituem a diferença entre a posse e a mera detenção conforme estivesse presente ou não o animus É justamente por causa desse elemento que a teoria de Savigny é denominada subjetiva Já Ihering passou a defender a ausência de importância da intenção elemento subjetivo na relação entre a pessoa e a propriedade Considera ele que no corpus já está implícita a noção de animus portanto afirma que a posse é o exercício de um dos poderes inerentes à propriedade Mais ainda contribuiu o autor para a identificação de que a posse não trata necessariamente da disposição física da coisa mas abrangeria diversos outros tipos de relações fáticas ou jurídicas que um sujeito poderia ter com a coisa em si Assim para Ihering a posse é um fato mas também um direito O FIM DO DIREITO É A PAZ o meio de que se serve para conseguilo é a luta Enquanto o direito estiver sujeito às ameaças da injustiça e isso perdurará enquanto o mundo for mundo ele não poderá prescindir da luta A vida do direito é a luta a luta dos povos dos governos das classes sociais dos indivíduos Rudolf von Ihering David Hume empirista radical Seguidor de Locke David Hume discordou de muitas de suas ideias especialmente no que diz respeito ao conceito de ideias complexas Assim como George Berkeley afirmava que todas as ideias existentes são simples o homem faz associação entre elas e supõe determinados resultados que não necessariamente estão conectados por uma relação de causa e efeito ou pelo menos tal reação não pode ser demonstrada objetivamente O caráter habitual dos eventos naturais pode nos levar a crer que tudo sempre se repete da mesma forma mas Hume não concorda com isso porque os caminhos da natureza podem ser alterados Hume e suas circunstâncias David Hume definiu o método crítico para entender o conhecimento Cada ideia complexa tem que ser entendida como um conjunto de ideias simples e por meio da razão o homem precisa reduzir os seus componentes até entender as ideias iniciais Essa teoria foi chamada de empirismo psicológico David Hume escocês de Edimburgo e filho de aristocratas viveu entre 1711 e 1776 Chegou a estudar Direito mas desistiu Publicou cedo aos 28 anos sua obra principal Tratado sobre a natureza humana em que contestava aspectos da filosofia praticada na época Manteve contato com luminares da ciência e da filosofia da época como o economista e filósofo escocês Adam Smith o enciclopedista e matemático francês Jean dAlembert e o filósofo francês Jean Jacques Rousseau Como esses pensadores defendia a ideia do contrato social e afirmava que o cidadão tem o direito de resistir a uma eventual tirania Dizia que as coisas em si não têm as características que lhes atribuímos Seus escritos influenciariam decisivamente os trabalhos de Immannuel Kant Hume e suas ideias Outra discussão está relacionada com a noção de substância que para ele não provém dos sentidos Não aceitou a inexistência material de Berkeley nem a existência de uma substância impossível de ser captada pelos sentidos de Locke Para ele as duas hipóteses não valem O que existiria são dois níveis de percepção as impressões vívidas e nítidas captadas pelos sentidos e as ideias estas apenas cópias mentais e de menor força das impressões As ideias portanto são apenas representações do que o homem experimentou e que processadas pela mente produzem as suposições fantasias e os sonhos Portanto não há impressões complexas mas apenas a associação entre impressões simples Hume e sua influência no direito Hume fez uma crítica ao jusnaturalismo do seu tempo afirmando que as regras de justiça não são inatas no ser humano o que existiria são experiências de justiça que o homem vai acumulando Na sua teoria de justiça portanto a experiência é que determina o que é bom ou mau justo ou injusto Ainda sobre a justiça acreditava que os homens respeitam os outros por uma convenção utilitarista ou seja não agrediam os direitos alheios por pura conveniência porque a paz social interessa a cada um A BELEZA DAS COISAS existe no espírito de quem as contempla David Hume Direito natural No direito o humanismo do século XVIII representou o ressurgimento do direito natural ou jusnaturalismo já preconizado anteriormente pelos gregos O homem deveria estar sujeito às leis da natureza e não mais às leis de Deus Foi um movimento racionalista o que quer dizer que o homem precisava utilizarse da razão da inteligência para elaborar o conhecimento que lhes era oferecido pelos fenômenos naturais Essa corrente filosófica seria consolidada mais tarde pelos pensadores que fundamentaram o Iluminismo e seu ponto alto a Revolução Francesa marco histórico da Idade Contemporânea LIBERALISMO E RACIONALISMO O racionalismo filosófico buscava meios e modos de chegar ao entendimento das leis universais que devem reger o homem em sociedade Enquanto os empiristas tentavam explicar a presença e o papel do homem no mundo pelas sensações particulares experimentadas por um e cada indivíduo o racionalismo pensava no conjunto dos indivíduos defendendo a ideia platônica de que o conhecimento nasce de algo que existe anteriormente à experiência sensível o que Kant chamaria de princípios apriorísticos Durante todos os anos em que as duas correntes coexistiram os principais representares do empirismo e do racionalismo dialogaram sendo que muitos foram grandes amigos Dos racionalistas de primeira hora devemos destacar por ordem cronológica René Descartes 1596 1650 Spinosa 16321677 e Leibniz 16461716 Adam Smith 17231790 economista e filósofo escocês foi um dos maiores teóricos do racionalismo aplicado à economia Não podemos esquecer ainda esse que foi um dos maiores nomes da filosofia moderna Friedrich Hegel 17701831 cuja proposta de apenas ser racional o que é real dava um novo rumo para o estudo da filosofia32 Segundo os racionalistas pensar em leis que objetivassem o interesse coletivo faria com que fossem eliminados os conflitos de interesses entre membros ou grupos de uma sociedade Portanto lutavam pelo estabelecimento de um Estado forte com autoridade para elaborar e fazer cumprir leis comuns que atendesse no mínimo medianamente as necessidades e expectativas de toda a sociedade Mas de novo uma questão se levantava como era possível estabelecer parâmetros universais a partir da análise racional de cada indivíduo Os racionalistas consideravam que entre as necessidades e expectativas destacavase a propriedade O homem precisava sentirse dono de seus bens como os instrumentos de trabalho para sentirse valorizado dentro do seu grupo Esse pensamento acabou formando a base filosófica do movimento social que se chamou liberalismo embora todo liberal fosse basicamente um empírico A ideia básica de funcionamento econômico era de que os homens prestariam serviço a quem tivesse a propriedade da terra em troca de salários Os donos da terra comercializariam o produto da terra para obter lucro pagar os empregados e produzir mais para vender mais Era o início do capitalismo moderno Entretanto seria necessária uma revolta armada para que se chegasse a essa nova configuração social com a eliminação definitiva dos feudos da escravidão e da vassalagem A chamada Revolução Burguesa que ocorreu na Inglaterra entre os anos de 1640 e 1660 acabou por fazer com que pensadores liberais fossem de inclinação racionalista como Descartes ou empirista como John Locke orientassem suas meditações e pesquisas para dois elementos que à época passavam a ser fundamentais para a organização social propriedade e liberdade O conceito de propriedade Acabamos de ver que o liberalismo de onde se origina o capitalismo e a sociedade burguesa centrada na produção comércio e lucro inaugura na filosofia a questão da propriedade como elemento integrante da liberdade do indivíduo Os direitos individuais portanto fizeram parte do programa de consolidação do capitalismo na era moderna Adam Smith quando preconizava a livre concorrência sem interferência do Estado já tornava explícita a noção de que esta só podia existir entre indivíduos juridicamente dotados de liberdade e igualdade O terceiro ponto do triângulo a fraternidade somente viria a ser debatido depois da Revolução Francesa No século XVII foram lançados os fundamentos de um sistema jurídico baseado no direito natural contestando a doutrina da teologia moral a escolástica O conceito de propriedade privada defendido por Hugo Grócio Thomas Hobbes Samuel Pufendorf e John Locke era filosófico mas servia às novas urgências das nações agora voltadas para uma nova economia John Locke pregava que a propriedade privada é fruto direto do trabalho do homem sobre as coisas da natureza Desse modo atentar contra a propriedade privada seria um atentado contra a lei natural e portanto um crime Essa ideia seria contestada no Terceiro Manuscrito EconômicoFilosófico de Karl Marx publicado em 1844 Segundo Marx havia que desaparecer a propriedade privada para que nascesse o homem social É a base do comunismo No mesmo sentido Rousseau na esteira de Locke considera que o homem em seu estado de natureza é puro e bom e que a propriedade privada foi o passo principal para a corrupção dos homens porque foi a partir dela que se deu a divisão entre pobres e ricos Foi a propriedade privada que fez começarem as guerras dizia ele Rousseau afirmava que o contrato social foi um artifício criado pelos poderosos para ludibriar e subjugar os mais fracos Assim evitariam guerras em que os ricos sairiam perdendo mais do que os pobres A saída para Rousseau seria a celebração de um contrato em que imperasse a vontade geral Dois grandes teóricos da doutrina possessória foram Savigny e Ihering na Alemanha Uma das frases de Ihering define que a propriedade nada mais é senão a periferia da pessoa projetada no terreno material A propriedade na doutrina brasileira Um dos primeiros governantes medievais a considerar seriamente a questão da propriedade foi Dom Sancho I segundo rei de Portugal que reinou entre 1154 e 1211 Foi chamado de Rei Povoador porque na contramão da tendência da época que era de a nobreza manter o povo subjugado a contratos de servidão concedeu várias cartas de foral A Carta de Foral era o documento real que dava foro jurídico próprio aos habitantes medievais de uma povoação que quisesse libertarse do poder feudal Com esse documento a povoação ganhava autonomia de município Uma carta foral permitia à população colocarse sob domínio e jurisdição exclusivas da Coroa Portuguesa A carta concedia ainda terras baldias para uso coletivo da comunidade regulava impostos taxas multas e estabelecia direitos de proteção e obrigações militares para serviço real A iniciativa de Dom Sancho I prestavase a povoar o território do reino de Portugal especialmente as localidades reconquistadas dos muçulmanos Em seu governo foram criados 34 dos atuais 308 municípios de Portugal Seu filho Dom Afonso III deu continuidade ao projeto e criou outros 88 municípios Como eu disse no meu livro Direitos humanos processo histórico o defeito do sistema era que originou um Estado fragmentário porque cada município tinha leis particulares e o poder dos senhorios sobrepunhase ao direito público o que gerava arbitrariedades Em 1496 o rei Dom João II determinou novo enquadramento legal dos municípios para os organizar e eliminar conflitos Em decorrência haveria outro grande momento de concessão de cartas forais chamados Forais Novos em 1514 no reinado de Dom Manuel I com a criação de novéis 29 municípios A reforma dos Forais só terminou em 1920 Foi um dos mais importantes instrumentos unificadores do Estado português Atualmente na área jurídica o direito de propriedade é um reconhecimento da causalidade Explicando temos direito de propriedade sobre coisas que existem por causa de nossa ação ou seja uma pessoa tem direito de propriedade sobre alguma coisa útil que produz com seu trabalho porque essa coisa só existe em razão do seu trabalho O Código Civil brasileiro estabelece no seu artigo 1228 que o proprietário tem a faculdade de usar gozar e dispor da coisa e o direito de reavêla do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha Notese que não se fala em direito mas em faculdade Liberalismo no Brasil No século XIX ser liberal era ser defensor da liberdade de culto e da separação de poderes entre Igreja e Estado Originase do pensamento liberal a expressão sociedade civil Ao contrário do que possa parecer não é a sociedade da qual estão excluídos os militares Sociedade civil é na verdade aquela representada por cidadãos com direitos e deveres estatuídos em cartas constitucionais Portanto trata se de uma questão conceitual e filosófica o cidadão o civil é diferente do vassalo do súdito O cidadão não existe para servir o senhor mas para viver em sociedade com a garantia jurídica de direitos iguais para todos sejam direitos individuais políticos ou sociais No Brasil foram os liberais os responsáveis por fazer incluir na Constituição de 1891 a primeira da República a definição do Brasil como um Estado laico determinando ainda a separação dos poderes Sobre essa influência do movimento liberal no constitucionalismo brasileiro Afonso Arinos de Mello Franco relata No Brasil como nos EUA o liberalismo nasceu estreitamente vinculado ao federalismo e pelas mesmas causas nas quais se amalgamavam interesses econômicos e políticos Manifestase pelo menos desde o século XVIII com a Inconfidência Mineira provoca crises no BrasilReino intervém no movimento da independência ensanguenta o Primeiro Reinado e a Regência sempre desfraldando a bandeira liberal33 Em outras palavras quando cidadãos livres escolhem viver sob uma Constituição esperam certo grau de autonomia local e oportunidades econômicas e sociais iguais para todos Uma das possibilidades de sistematização dessa distribuição de poderes é o federalismo um sistema de governo em que o poder e a tomada de decisão são compartilhados entre governos locais estaduais e federal livremente eleitos com autoridade sobre as mesmas pessoas e a mesma área geográfica Municípios e Estados administram os problemas sociais em parceria com o governo nacional O Partido Liberal destacouse no Império brasileiro entre 1830 e 1840 Nessa época a civilização do café fez crescer a riqueza agrícola do Brasil Afonso Arinos no mesmo estudo diz Formouse então um grupo poderoso de interesses econômicos fundados na lavoura cafeeira e escravocrata e esse movimento ascensional da economia vai mandando à Câmara deputados de índole conservadora e mais voltados para as realidades econômicas do que para as teorias liberais ou vai mudando a posição de alguns representantes sensíveis à transformação que se operava Era o início do Partido Conservador José Luis Quadros de Magalhães também anotou em seu livro a seguinte consideração A partir do constitucionalismo liberal o cidadão pode afirmar que é livre para expressar o seu pensamento uma vez que o Estado não censura sua palavra o cidadão é livre para se locomover uma vez que o Estado não o prende arbitrariamente o cidadão é livre uma vez que o Estado não invade sua liberdade a economia é livre uma vez que o Estado não regula ou exerce atividade econômica Lembramos que o Estado que os liberais combatiam era o Estado absoluto34 Em questões econômicas como se verificará mais adiante com Adam Smith o liberalismo aplicavase como a teoria que sustentava que o Estado não podia controlar a economia nem restringir a produção e a distribuição de riquezas Mas como o conceito de liberdade é de certo modo subjetivo prestarseia mais tarde a ser manipulado por regimes extremistas como o fascismo e o comunismo Organizações liberais chegariam inclusive a lutar contra a regulamentação do trabalho nas fábricas no início do século XIX Por isso a teoria liberal seria revista transformandose na democracia social35 Merquior um pensador liberal do século XX Considerado o maior pensador do liberalismo no Brasil o carioca José Guilherme Merquior morto em 1991 aos 50 anos de idade foi diplomata filósofo sociólogo e escritor Merquior e suas circunstâncias Dentre sua vasta obra de crítica literária estética e política podemos destacar O argumento liberal e O estruturalismo dos pobres e outras questões José Guilherme Merquior também produziu dezenas de artigos e ensaios em parceria com luminares como Roberto Campos Lucio Colleti Antonio Houaiss Manuel Bandeira e Eduardo Portella Manteve sérias polêmicas pelos jornais com a filósofa Marilena Chauí e com o jornalista Paulo Francis Com três doutorados sendo o primeiro em Letras na Universidade de Paris e o último em Sociologia sob orientação de Ernest Gellner na London School of Economics foi diplomata tendo servido em Paris Bonn Londres Montevidéu e novamente Londres Foi professor universitário no Instituto de Belas Artes no Rio de Janeiro na Universidade Nova de Lisboa e na Universidade de Montevidéu Graças a uma prolífica produção literária foi eleito para a cadeira 36 da Academia Brasileira de Letras sucedendo a Paulo Carneiro Tomou posse em 1983 muito jovem aos 42 anos Depois de sua morte seria substituído por João de Scantimburgo Integrou a equipe de governo do presidente Fernando Collor de Mello ao lado de Roberto Campos Sobre esse período costumava dizer que as pessoas em geral têm uma concepção vulgar de Estado porque só veem o seu ramo executivo Essa não é uma concepção correta nem jurídica nem historicamente nem para o Direito nem para as ciências sociais O Estado não é só o governo Merquior e suas ideias José Guilherme Merquior se autodenominava politicamente como liberal social ou conservador civilizado Era contra o radicalismo fosse de esquerda ou de direita mas devotou suas críticas principalmente ao marxismo Para ele a tradição marxista tratava o Estado como sinônimo do mal de instrumento de opressão Na década de 1970 o pensamento marxista na América Latina preso ao conceito leninista de imperialismo que era uma espécie de projeção da luta de classes para a política internacional passou a ver o Estado como denominador comum das classes contra a opressão internacional mais tarde os marxistas entraram em devoção ao pensador italiano Antonio Gramsci Disse Merquior em entrevista publicada pela Revista Veja em 1981 O que num certo sentido implica a volta às matrizes marxistas que sempre viram no Estado um instrumento de opressão Essa é a origem esquerdista do mito da sociedade civil Por outro lado Merquior vergastava os neoliberais brasileiros que preferia chamar de paleoliberais Disse deles que se juntaram à esquerda nessa festa de rejeição do Estado porque o Estado deve ser um promotor de progresso e do equilíbrio social Disse Merquior na mesma entrevista Mas os paleoliberais rejeitam essa função do Estado e por isso se juntaram aos gramscianos na criação do mito da sociedade civil chamada a resolver os problemas brasileiros sem a interferência do Estado ou contra ela Isso é uma bobagem Merquior considerava que leninismo e democracia são incompatíveis Enfureciase contra intelectuais que tendiam a minimizar o problema do ensino básico da alfabetização de dotar as pessoas com o instrumental mínimo do pensamento articulado Para ele o único fenômeno literário recente no Brasil desde 1922 foi a febre do memorialismo uma tendência tão forte que já chegou até aos jovens O país segundo ele sofre de grafocracia termo cunhado pelo marxista austríaco Karl Renner depois da Segunda Guerra para designar a vocação moderna do intelectual para exercer o poder através do que ensina ou escreve Nem todos os males humanos têm causas sociais sendo portanto elimináveis através de mudanças sociais pensava Merquior Defendia a ideia de que a finalidade do Estado é dar segurança sem esclerosar a sociedade com um sistema demasiado refratário à iniciativa individual O progresso deve ser alcançado pela racionalidade RACIONALISMO O racionalismo Essa doutrina filosófica é contemporânea do empirismo Ambas foram opositoras uma da outra por séculos Para os racionalistas tudo o que existe no universo tem uma causa que a razão pode explicar mesmo que não possa ser demonstrada objetivamente Até mesmo mistérios tidos como insondáveis para a época como a origem do universo ou a substância de Deus podem ser explicados pela inteligência e não somente pelas sensações como queriam os empiristas Um indivíduo tem a sua razão a sua consciência Por isso cada pessoa reage distintamente a uma determinada situação de felicidade ou de conflito Como seria possível estabelecer decisões para o conjunto da coletividade se cada julgamento tivesse que levar em conta as características limitações ou qualidades individuais A importância do racionalismo para o direito é equivalente à importância que os empiristas receberam O homem sempre procurou afirmar os direitos naturais de um modo que não fosse casual ou seja avaliado diante de cada circunstância individual O que a filosofia procurava era a formulação de leis que pudessem ser universais aplicáveis a todos os homens Cada corrente tentava chegar a essa universalidade por um caminho e não se pode dizer que um fosse mais ou menos válido do que o outro René Descartes e a dúvida metódica O francês René Descartes 15961650 filho de família abastada chegou a estudar em colégio jesuíta mas decepcionouse muito cedo com a doutrina escolástica considerando que não levava a nenhuma verdade indiscutível Por esse motivo dedicouse à matemática e à física como as ciências que permitiriam com o rigor metodológico que possuem chegar a conclusões definitivas Foi contemporâneo de Galileu e como ele foi acusado de heresia Suas obras fizeram parte do índice dos livros proibidos pela Inquisição Descartes e suas circunstâncias René Descartes é o autor de Discurso sobre o método em que utiliza as ciências matemáticas para a busca filosófica da verdade Em resumo afirma que os indivíduos são diferentes entre si mas que o espírito humano tem uma unidade que permite elaborar um método universal baseado em evidência análise e síntese René Descartes serviu como soldado voluntariamente e por cinco anos no exército do príncipe holandês Maurício de Nassau que era protestante Entretanto lutava menos do que escrevia Foi nessa época que escreveu Regras para a direção do espírito falando sobre a unidade do espírito humano Em sua obra Discurso sobre o método publicada em 1637 ele busca provar a existência de Deus e a superioridade da alma sobre o corpo com base na matemática Em 1644 aperfeiçoaria suas ideias no livro Princípios da filosofia que dedicou à princesa Elizabeth I da Boêmia de quem era conselheiro Mais tarde foi convidado para ser preceptor da rainha Cristina da Suécia Descartes e suas ideias René Descartes foi o representante máximo do racionalismo Ensinava que o homem deveria por si próprio por meio da razão encontrar a verdade e não se submeter ao preceitos fornecidos pelas autoridades religiosas Advogava a ideia de que um ser concreto estava baseado em duas realidades a substância e o atributo uma espiritual e outra material por isso foi considerado dualista Substância era a qualidade essencial e atributo a sua representação aquilo que a razão permite conhecer Para ele a substância fundamental é Deus Pela razão dizia Descartes é possível perceber o que é real que existe independentemente do meu conhecimento e o que é ideal que pertence ao meu repertório de conhecimento O que temos sobre as coisas são as imagens estas não surgem de dentro de nós espontaneamente nem surgem da associação de ideias portanto só podem vir do mundo exterior Por isso Descartes recomendava que a cada imagem enxergada o homem devia duvidar dela a imagem é a representação de uma coisa real explica a natureza daquele objeto ou é algo que está em mim E mais as coisas existem ainda que eu não tenha conhecimento delas O chamado método cartesiano consiste na atitude constante de duvidar de cada ideia Por isso é conhecido como um ceticismo metodológico Para ele só se pode afirmar a existência de algo se isso puder ser provado Importante notar que o ceticismo a que aqui se refere não tem qualquer relação com a corrente filosófica homônima derivada do empirismo Isso porque os filósofos céticos acreditavam na impossibilidade da existência de qualquer verdade universal e indubitável Já o ceticismo metodológico de Descartes adota um ponto de partida diametralmente oposto o da plena existência de uma verdade universal Ocorre que o homem só poderia chegar a essa verdade por meio de uma postura racional e constante questionamento de todo o conhecimento a fim de que possa distinguir aquilo que é verdade daquilo que não passa de uma ilusão causada pelos sentidos Uma frase de Descartes sintetiza o seu questionamento SE OLHO PELA JANELA e vejo homens passando pela rua não estou errado ao dizer que ao vêlos vejo homens Ainda assim o que vejo da janela além de chapéus e capas que podem cobrir fantasmas ou manequins que se movem apenas por meio de molas Mas julgo que sejam realmente homens e assim entendo pelo mero poder de julgamento que reside em minha mente o que acredito que vi com meus olhos A influência de Descartes para a filosofia além do método é a recomendação de que nada deve ser desconsiderado quando se examina algo A própria fé devia ser submetida ao método cartesiano Achava que as sensações podem nos enganar mas a razão nunca Por isso seu ponto de partida era sempre a dúvida inclusive sobre as verdades matemáticas Somente em relação a uma coisa não era possível duvidar o homem pensa Foi justamente baseado na aplicação desse seu método que Descartes parte para uma longa jornada intelectual na qual efetiva uma desconstrução de todo o conhecimento humano Chegou ao extremo de duvidar do próprio raciocínio ao observar que não conseguia em um primeiro momento sequer afirmar a veracidade de seus pensamentos Foi nesse momento que pôde perceber pela primeira vez uma verdade que era efetivamente irrefutável não havia como negar que ele estava pensando Provada a existência do pensamento logicamente pôde inferir a necessidade da existência do ser pensante Essa é a origem de sua mais conhecida afirmação Dubito cogito ergo sum Duvido penso logo existo São as seguintes as palavras do autor acerca do que aqui afirmado Imediatamente que eu observava isso que os pensamentos de sonho se confundem com a realidade ainda assim eu desejava pensar que tudo era falso era absolutamente necessário que eu quem pensa seja algo e enquanto eu observava que isso é verdadeiro eu penso logo existo era tão certo e tão evidente que eu aceitei este como primeiro princípio de filosofia que eu estava refletindo PENSO logo existo René Descartes Malebranche e a busca da verdade Nicolas Malebranche defendeu o princípio da harmonia preestabelecida que Espinosa e Leibniz desenvolveriam e modificariam mais tarde Dizia que todas as coisas contêm Deus que não só as anima e lhes dá dinâmica mas que o próprio Deus é toda a atividade que está nas coisas Assim as causas físicas são apenas aparentes ocasionais Com essa ideia desenvolveu o sistema de causas ocasionais Malebranche e suas circunstâncias Nicolas Malebranche foi um racionalista radical Afirmava inspirado em Santo Agostinho e em Descartes que o conhecimento do mundo material vinha das ideias e não dependia de nenhuma sensação anterior Para ele as ideias são objetivamente verdadeiras porque são eternas imutáveis necessárias e universais Nicolas Malebranche nasceu na França tendo vivido entre 1638 e 1715 Depois de estudar teologia na Universidade de Sorbonne entrou para a Ordem dos Oratorianos de São Filipe Neri tendo sido ordenado sacerdote em 1664 Nessa época leu a obra de Descartes e encantouse com o racionalismo Em 1674 escreveu Da busca da verdade discutindo as substâncias reconhecidas por Descartes corpo e alma e afirmando que não há relações entre elas o espírito não comandava o corpo nem o contrário Malebranche e suas ideias Para o autor Deus é quem comanda todas as coisas e todos os atos Sendo assim Deus é causa mas não é substância Suas obras o levaram a travar grandes polêmicas com filósofos da época Uma de suas ideias envolve a moral o homem tem livrearbítrio segundo ele para interferir na ação de Deus e escapar das penas resultantes do pecado original HÁ MUITAS PESSOAS a quem a vaidade faz falar grego e até por vezes uma língua que não entendem Nicolas Malebranche Baruch Espinosa e a substância única A Holanda país protestante serviu de refúgio a muita gente que perseguida pela Igreja Católica e sua Santa Inquisição precisava de abrigo Uma dessas famílias foi a do pensador Baruch Espinosa ou Bento Espinosa na forma latina originária de Portugal Espinosa nasceu em Amsterdã Educado como judeu fez contato com obras de Thomas Hobbes e de René Descartes Caiu em desgraça junto à comunidade judaica ao afirmar em obras que escreveu durante o ano de 1655 que a Bíblia não revelava verdades absolutas Baruch Espinosa e suas circunstâncias Baruch Espinosa é autor de uma das mais importantes obras do racionalismo Ética demonstrada pelo método geométrico No livro busca mostrar como devem ser tratados temas que escapem da análise subjetiva Para Espinosa tudo deriva de uma única substância imutável que é Deus teoria monista A natureza tem essa mesma substância por isso Deus e a natureza são a mesma coisa Baruch Espinosa no livro Tratado teológicopolítico publicado em 1670 propõe a separação entre filosofia e teologia o que foi o mesmo que pregar a separação entre a Igreja e o Estado As suas ideias de que filosofia e teologia deviam ser tratadas separadamente também desagradaram a comunidade cristã Por isso foi amaldiçoado e excomungado e a família o expulsou Passou a viver pobremente como polidor de lentes perambulando de uma cidade para outra na Holanda Mas não deixou de escrever nem de exercitar a crítica Baruch Espinosa e suas ideias Espinosa negava a divindade de Cristo achava a religião um grande teatro inventado pelos homens e condenava a obediência cega e temerosa aos preceitos das igrejas Concluiu que essas eram as verdadeiras causas da servidão humana Isso lhe valeu perseguição e prisão Morreu no cárcere sete anos depois da publicação com menos de 45 anos de idade Defendeu o direito natural bem como o liberalismo na política Mas diferentemente de outros racionalistas achava que a democracia servia melhor ao liberalismo do que a monarquia Com isso afasta a concepção de um Estado absolutista TENHO ME ESFORÇADO por não rir das ações humanas por não deplorálas nem odiálas mas por entendêlas Baruch Espinosa Gottfried Leibniz e a monadologia Gottfried Wilhelm von Leibniz nasceu em 1646 na Alemanha Matemático que era produziu grandes obras racionalistas dentre as quais se destacam Discurso da Metafísica Novos ensaios sobre o entendimento humano Sobre a origem das coisas e Sobre o verdadeiro método da filosofia Em uma espécie de evolução do pensamento de Anaxágoras a respeito das homeomerias Leibniz utilizavase do termo mônadas originado do grego monas que significa unidade para designar uma espécie de substância simples imaterial que se moveria no vazio do universo e que se agruparia com outras de mesma natureza de forma a dar origem aos diferentes seres Para o autor as mônadas eram ao mesmo tempo pontos matemáticos átomos materiais e almas Não possuiriam massa nem mesmo qualquer caráter especial Cada mônada seria como que um espelho da realidade porque conteria o universo inteiro dentro de si De certo modo a imanência de Deus em todas as coisas Tudo é tudo dizia ele Leibniz e suas circunstâncias Gottfried Leibniz teve grande influência de Espinosa e Descartes na associação entre filosofia e matemática Suas pesquisas o levaram a definir em 1676 a teoria do cálculo infinitesimal para valores extremamente pequenos teoria esta que durante muito tempo foi erroneamente atribuída a Isaac Newton seu contemporâneo Ao que se sabe ambos desenvolveram a mesma teoria sem conhecerem um ao outro um encontro entre eles só ocorreria depois Gottfried Wilhelm von Leibniz 16461716 foi um leitor voraz desde cedo Aos 15 anos já lia os filósofos de sua época como Descartes e Thomas Hobbes Estudou filosofia e jurisprudência Viveu por vários anos na França embora tenha servido na corte alemã de justiça como conselheiro e depois viajado por toda a Europa Conheceu Espinosa em Londres e com ele manteve produtivas discussões científicas No campo da física Leibniz definiu o conceito de uma ação recíproca entre os corpos Algo que Isaac Newton elaborou como a sua segunda lei a lei da ação e reação a cada ação corresponde uma ação oposta de mesma intensidade Durante muito tempo Leibniz tentou articular os aspectos comuns das diferentes correntes filosóficas com a intenção de unificálas num esforço que não logrou grande êxito Leibniz e suas ideias Na realidade o conceito de que o princípio do universo é o movimento já podia ser encontrado em Heráclito de Éfeso Na Renascença foi recuperado por Giordano Bruno que defendia que cada coisa tinha dentro de si uma força vital anima que fazia com que se movesse e se modificasse como os organismos vivos Os corpos vivos seriam animados por uma força chamada enteléquia Deus o motor único estava em todas as coisas portanto era imanente Mais tarde Albert Einstein em sua eterna busca pelo desenvolvimento da chamada Teoria do Campo Unitário viria a chegar à mesma conclusão dizendo que a síntese de todo o conhecimento poderia ser expressa na palavra movimento Leibniz desenvolveu essa doutrina afirmando que Deus é a causa de tudo e porque Deus é bom todas as coisas têm um sentido um propósito e uma finalidade É o chamado princípio da razão suficiente basilar em Leibniz e que diz que cada coisa existe com uma razão Além disso afirmava que as substâncias existentes apenas na aparência agiriam de maneira causal Na realidade seguiriam determinadas programações já anteriormente estabelecidas por Deus no sentido de harmonizaremse entre si A essa afirmação foi dado o nome de princípio da harmonia preestabelecida harmonia praestabilita Com esse pensamento Leibniz definiu um conceito pluralista da substância da realidade Não existiriam duas substâncias idênticas se fossem idênticas seriam a mesma Leibniz e sua influência no direito Para o direito Leibniz deu grande contribuição com o livro Teodiceia ao estabelecer o que é o mal Colocando Deus como a perfeição ele explica que há o mal metafísico que seria intrínseco a tudo aquilo que não é Deus o mal moral que seria o pecado cometido pelo homem e que não é autorizado por Deus e o mal físico que Deus enviaria para corrigir desvios NADA É MAIS IMPORTANTE do que ver as origens da invenção que são na minha opinião mais interessantes do que as próprias invenções Gottfried Leibniz Christian Wolff o racional iluminado Foi o responsável pela introdução do alemão como língua oficial das universidades de seu país na época todas as aulas eram dadas em latim Christian Wolff e suas circunstâncias Christian Wolff defendia a ideia de que o direito deve constituir uma ciência coerente porque para ele a verdade está na coerência nexus veritatum Portanto defende que a organização deve pressupor uma ideia de conexão lógica e ordenada e não apenas uma classificação Christian Wolff nasceu em 1679 na Alemanha Aluno e seguidor de Leibniz foi o fundador do chamado iluminismo alemão Seus pensamentos tiveram grande impacto só sendo suplantados com o surgimento das obras de Immanuel Kant Recebeu influência de Espinosa e Descartes e desenvolveu um método matemático demonstrativo dedutivo para provar suas teses inclusive a existência de Deus Algumas de suas ideias foram contestadas mais tarde por Savigny como vãs abstrações Também implantou a economia e a administração pública como disciplinas regulares das universidades Foi expulso da Universidade de Halle e perdeu a cátedra de matemática acusado de ateísmo porque afirmava que a moral existiria mesmo que não houvesse Deus Com efeito afirmava que a lei moral não dependia do arbítrio divino porque deriva da própria natureza de Deus e das coisas que Ele criou Tinha uma visão muito ampla e abrangente da filosofia e por isso estudou praticamente todos os campos da vida humana e razão pela qual funcionou como conselheiro científico do rei Pedro o Grande da Rússia um governante voltado para as artes e a cultura Voltaria em 1741 para ocupar a função de reitor até sua morte em 1754 Christian Wolff e suas ideias Definia a filosofia como a ciência do possível com uma parte teórica formada pela lógica bem como pela ontologia cosmologia e teologia racional e com uma parte prática que também incluía a lógica e além dela a ética a economia e a política A partir desse pensamento sistematizou o racionalismo moderno inserindoo num sistema rígido e formal baseado na matemática Seu critério de verdade é baseado exclusivamente na coerência entre as ideias não há para ele relação entre o pensamento e o ser Christian Wolff e sua influência no direito Wolff está entre os filósofos que procuraram construir os elementos fundamentais do direito moderno Ele como Grócio Pufendorf Kant Rousseau e Hegel entre outros pretendia edificar um sistema que permitisse compreender racionalmente toda a realidade Com isso queria estabelecer uma metodologia própria da ciência dogmática o que equivale dizer que seria testada e provada a fim de resistir a qualquer contestação No campo do direito internacional cunhou a expressão civitas maxima para expressar a predominância da ordem jurídica de uma société des nations diante de um Estado individual Essa noção seria recuperada por um seu aluno o diplomata suíço Emerich de Vattel em 1758 no livro A lei das nações ou os princípios da lei natural quando consolidou a expressão sociedade de nações Mais tarde Hans Kelsen abordaria a mesma questão defendendo que o direito internacional acaba por pautar as atitudes dos Estados modernos NINGUÉM deve locupletarse com prejuízo de outrem Christian Wolff NA TANGÊNCIA DA FILOSOFIA Adam Smith o liberalismo na economia Seguindo os pressupostos do Iluminismo trabalhou para buscar conhecimentos científicos sobre a natureza do universo que pudessem ser aplicados na melhoria das condições de vida da humanidade Adam Smith e suas circunstâncias Adam Smith pertenceu à escola empirista do iluminismo escocês que se inspirou em Isaac Newton para promover a aplicação do estudo da filosofia no cotidiano das pessoas Entre suas indagações destacavase esta Em que consiste a virtude Na busca dessa resposta Adam Smith pretendia chegar ao certoerrado justoinjusto Afirmava que as indicações morais sobre esses temas são apresentadas a cada indivíduo pelo sentimento imediato e não pela razão Adam Smith filósofo e economista escocês nasceu em 1723 No seu caso estudou as ciências naturais para desenvolver a teoria da total liberdade econômica para que a iniciativa privada se desenvolvesse e prosperasse sem qualquer intervenção do Estado Para chegar a isso era necessário deixar que a livre concorrência regulasse o mercado isso levaria a automática redução nos preços e a inovações tecnológicas para melhorar o sistema produtivo A teoria se contrapunha ao mecanismo mercantilista dos reis absolutistas que intervinham na economia todo o tempo As ideias de Adam Smith foram fundamentais para o desenvolvimento do capitalismo dos séculos XIX e XX Foi estudar filosofia moral na Universidade de Glasgow aos 16 anos onde mais tarde lecionaria Lógica e Filosofia Moral e completou os estudos em Oxford Foi grande amigo de David Hume e de dAlembert Escreveu seu primeiro livro em 1759 Teoria dos sentimentos morais considerado um importante tratado sobre a ética comparável à obra de Kant Mas ficaria conhecido ao publicar A riqueza das nações em 1776 Adam Smith e suas ideias Algumas das afirmações de Adam Smith estavam intimamente relacionadas com a filosofia Por exemplo dizia que a moral não pode estar ligada à religião já que não era Deus quem determinava a vontade dos homens embora fosse Ele quem determinasse a lei natural Afirmava ainda que a vontade dos homens variava conforme as mais diversas motivações interesses e propósitos o que David Hume já chamava egoísmo moral Vêse aqui portanto uma reminiscência do pensamento pessimista de Thomas Hobbes a respeito da condição de beligerância em que o homem se coloca diante dos demais quando em seu estado natural Portanto as virtudes naturais do homem não bastam para manter a convivência pacífica da sociedade Era necessária a intervenção de uma outra virtude esta não natural a justiça Adam Smith e sua influência no direito Mas se a justiça é elaborada por homens que têm motivações interesses e propósitos vinculados ao egoísmo moral como pode ser a justiça uma virtude Hume dera a solução o princípio de humanidade que nos leva a nos impressionar com os sentimentos dos nossos semelhantes Smith levou esse argumento que chamou de simpatia e que já existia nos estoicos mais além Passou a dizer que a moralidade está necessariamente conectada com a sociabilidade ou seja é uma convenção declarada entre os homens em sociedade Com base nesse princípio criou um sistema econômico que levasse ao bemestar de todos os homens eliminando a economia movida pelo interesse individual e respeitando os ideais iluministas de tolerância de liberdade de igualdade e de propriedade A RIQUEZA DE UMA NAÇÃO se mede pela riqueza do povo e não pela riqueza dos príncipes Adam Smith Isaac Newton o liberalismo na ciência O inglês Isaac Newton utilizou os conhecimentos propiciados pela filosofia para entender as conexões ocultas que regem os fenômenos naturais físicos e químicos Foi um dos precursores do Iluminismo movimento sobre o qual Kant diria que era mais do que um sistema filosófico mas uma atitude própria de quem ousa conhecer a si mesmo Isaac Newton e suas circunstâncias Isaac Newton foi um dos precursores do Iluminismo Estudou filosofia dedicandose especialmente a Aristóteles e a Descartes Suas principais obras foram De rerum natura Sobre a natureza das coisas e Principia ou Princípios Matemáticos da Filosofia Natural Essa última que ficou conhecida como Leis de Newton é considerada uma das obras científicas mais importantes da humanidade Entre suas contribuições destacamse a descoberta da lei da gravidade e a formulação da teoria ótica sobre a natureza das cores Isaac Newton nasceu em Londres no ano de 1643 Estudava Direito na Universidade de Cambridge quando em 1665 a peste alastrouse pela Europa matando mais de 70000 pessoas A universidade foi fechada e Isaac Newton voltou para a fazenda da família onde viveram isolados durante dois anos para escapar do contágio Nesse período desenvolveu suas principais teorias na química física ótica e mecânica Uma de suas formulações matemáticas o cálculo infinitesimal chegou a ser simultaneamente realizado por Leibniz sem que se conhecessem Isaac Newton foi amigo e inspirador de muitos filósofos do seu tempo Conhecia profundamente filosofia e teologia Pertenceu à Royal Society e foi eleito presidente em 1703 tendo sido reeleito até morrer em 1727 Foi o primeiro cientista a receber o título de cavalheiro Sir da coroa britânica Isaac Newton e suas ideias Como já visto a base do pensamento iluminista era a contraposição aos hábitos da chamada Idade das Trevas Idade Média autoridade despótica dos governantes e obediência cega às doutrinas da Igreja Por meio da ciência o Iluminismo procurava tirar o cidadão de sua condição de subserviência aos poderosos O trabalho de Isaac Newton em conformidade com a estética iluminista era a aplicação do conhecimento em favor da felicidade da coletividade SE VI MAIS LONGE foi por estar de pé sobre ombros de gigantes Isaac Newton Rousseau e o contrato social A lei de Deus até então a determinante da condição dos homens como queria a corrente filosófica dominante perdia supremacia Intelectuais de várias áreas do conhecimento como John Locke e Isaac Newton pregavam uma atitude libertária do homem em relação às amarras do poder eclesiástico E não apenas isso mas os homens se organizavam para resistir aos desmandos dos soberanos absolutistas Um exemplo marcante foi a chamada revolta do chá que eclodiria na guerra de independência das colônias da Inglaterra na América Como matriz a Inglaterra do rei Jorge III subjugava com mão de ferro suas colônias Para impedir que se desenvolvessem e começassem a ter ideias de emancipação proibiu que comercializassem o chá que plantavam Centralizou todo o comércio na empresa Companhia das Índias Orientais Descontentes sessenta colonos liderados pelo próprio governador de Massachusetts nomeado pelo rei renderam três navios britânicos carregados de chá no porto de Boston O episódio ficou conhecido na história como o Boston Tea Party a Festa do Chá de Boston A coroa britânica vingouse interditando o porto de Boston nomeando novo governador para a colônia de Massachusetts e mandando tropas para vigiar as colônias Os colonos iniciaram então o movimento separatista boicotando produtos ingleses e mais tarde pegando em armas Nada mais queriam do que a liberdade de comerciar com quem quisessem A liberdade era um sopro de esperança sobre o mundo inteiro Paris era sem dúvidas a capital intelectual da época Luís XV como de resto muitos reis absolutistas da Europa vinha tendo o seu poder divino questionado Montesquieu em 1748 já pregava a separação dos poderes no livro O espírito das leis Diderot em 1750 escreveu um manifesto que expunha a fé no progresso contínuo da humanidade obtido principalmente por meio da ciência O trabalho de Diderot afirmava que a religião devia limitarse a orientar o comportamento prático dos fiéis que a tecnologia seria a responsável pela economia do futuro e que política nada mais é do que a arte de eliminar desigualdades sociais Essa última obra inclusive serviu de base ideológica para a Revolução Francesa um movimento que Diderot não testemunharia porque morreu cinco anos antes Isso sem mencionar diversas outras ilustres figuras como DAlembert Condorcet e Voltaire Foi com esses gigantes intelectuais que JeanJacques Rousseau conviveu Rousseau e suas circunstâncias JeanJacques Rousseau celebrizouse principalmente pela teoria do contrato social inspirada no pacto associativo de Thomas Hobbes Mas escreveu sobre religião artes e educação Suas obras inspiraram as principais revoluções libertárias pelo mundo especialmente a Revolução Francesa já que influenciou os seus principais líderes como Robespierre e Voltaire Defendeu a resistência legítima à opressão pela força Apesar de abrir mão de direitos pelo bem da sociedade no contrato social o indivíduo tinha direito de resistir à tirania JeanJacques Rousseau nasceu em Genebra na Suíça em 1712 A mãe morrera no momento do parto e o pai um relojoeiro calvinista morreu quando Rousseau tinha 10 anos Foi levado para uma escola religiosa onde desenvolveu gosto pelos livros e pela música Terminando os estudos mudouse para Paris onde desenvolveria suas teses em contato com grandes nomes da intelectualidade de então como Diderot Escreveu muito sobre política e religião Desagradou aos poderosos de ambas as áreas Hostilizado foi obrigado a refugiarse primeiro na Suíça e depois em Londres para onde foi a convite do amigo David Hume No fim da vida escreveu o livro Confissões uma autobiografia Morreu na França em 1778 Rousseau e suas ideias As coisas são boas por natureza e são boas quando estão em conformidade com a natureza e esse caráter independe das convenções humanas Essa é a base do pensamento de JeanJacques Rousseau que o mundo sintetizou na expressão bom selvagem Com efeito afirmava o autor que o homem é naturalmente bom a sociedade é que o corrompe e degenera Porém disse mais que isso pontificou que o homem nasce livre Esse pensamento era revolucionário para a época já que se pensava que o homem nascera algemado a uma camada social e se tivesse nascido escravo morreria escravo O Iluminismo foi a base filosóficoteórica do liberalismo e Rousseau um de seus mais ilustres representantes Essa nova ideia humanista despertava os homens para a modernidade social de que eles não estavam fadados à condição social que tinham por ocasião do nascimento Graças ao esforço individual e ao relacionamento com o grupo podiam ascender a uma posição de maior destaque social A teoria de Rousseau de certo modo questionava a doutrina religiosa da predestinação divina diminuindo o poder e a ascendência religiosa sobre a vida civil das pessoas o que lhe valeu ferrenha perseguição por parte dos eclesiásticos O pensamento de Rousseau espalhouse de tal modo por toda a Europa do século XVII que foi responsável por praticamente todos os movimentos antiabsolutistas e libertários que varreram o continente e até o mundo no período O principal deles sem a menor sombra de dúvida foi a Revolução Francesa As considerações de Rousseau sobre a pedagogia foram consolidadas no livro Emílio ou da educação e são até hoje inspiração para educadores de todo o mundo Tinha como pressuposto a ideia de que a educação era a maneira de transformar o homem e assim transformar a sociedade Sua teoria mais célebre entretanto é a do contrato social Afirmava que os indivíduos organizados em sociedade concedem alguns direitos ao Estado em troca de proteção e organização numa espécie de pacto social Seu livro O contrato social é quase um diálogo com a obra O Leviatã de Thomas Hobbes Rousseau e sua influência no direito Defendia a libertação do indivíduo para que pudesse exercer a sua atividade criadora e com isso criticava a injustiça e a opressão vivenciadas pela sociedade de seu tempo Defendia a igualdade entre os homens afirmando que todos nasciam igualmente bons E defendia que a educação era a base do desenvolvimento de toda sociedade A Revolução Francesa foi o maior movimento político e social já ocorrido em todo o mundo Encerrou na Europa a sociedade feudal e inaugurou a Idade Moderna No seu livro Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens Rousseau discutiu a desigualdade que se processava a partir da noção exacerbada de propriedade É de um trecho dessa obra que se extrai o seguinte excerto O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que tendo cercado um terreno lembrouse de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditar nele Quantos crimes guerras assassínios misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que arrancando as estacas ou enchendo o fosso tivesse gritado a seus semelhantes Defendeivos de ouvir esse impostor estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém Para Rousseau era fundamental que a lei definisse com toda a clareza o que é público e o que é privado A importância disso é que o Estado que existe para atender as necessidades do povo usaria a propriedade pública para o bem da coletividade compensando assim as propriedades privadas concentradas nas mãos de alguns grupos Somente dessa forma o cidadão conseguiria obter igualdade perante a lei pensava Rousseau Se igualdade implica liberdade para Rousseau uma coisa não é decorrência absoluta da outra O indivíduo só seria livre se seguisse a lei que ele mesmo como membro da sociedade havia criado Afinal se o Estado criou a lei e se o indivíduo é parte do Estado o indivíduo teve responsabilidade na criação e na aprovação da lei Em sentido diametralmente oposto ao que viria afirmar Immanuel Kant dizia Rousseau que o homem que só seguisse os seus próprios instintos ou seja o seu estado de natureza tinha um nível menor de liberdade do que aquele que segue as leis da sociedade Um famoso aforismo seu dizia isto O mais forte não é suficientemente forte se não conseguir transformar a sua força em direito e a obediência em dever Rousseau defendia que o pacto social era uma questão de vontade geral e coletiva de que os homens se associassem para formar a sociedade sob a égide de um poder central governo abaixo do soberano junto com os quais formariam o que o filósofo chamava de corpo político Para o sucesso dessa sociedade o homem devia abrir mão de seus interesses e vontades particulares Mas como a possibilidade de corrupção era ampliada quando em sociedade era necessário existir a figura do legislador cuja função era formular as leis que regem esse corpo político e esclarecer pontos que alguns indivíduos não entendessem A civilização era culpada pensava ele pela degradação moral porque o homem no convívio com outros homens abandonava as suas qualidades naturais Era essa a base da teoria do bom selvagem Entretanto ao contrário do que afirmou Voltaire não era o abandono da civilização que Rousseau pregava mas sim a volta do homem aos valores que possuía antes da civilização Miguel Reale ao comentar o contratualismo afirma que Hobbes era um pessimista por achar que o homem é um ser mau por natureza somente preocupado com os próprios interesses e sem cuidados pelos interesses alheios só se decidiu a viver em sociedade ao perceber que a violência era causadora de maiores danos Diz ele textualmente A sociedade terseia originado da limitação recíproca dos egoísmos Em contraponto a isso comenta Para Rousseau o homem natural é um homem bom que a sociedade corrompeu sendo necessário libertálo do contrato de sujeição e de privilégios para se estabelecer um contrato social legítimo conforme a razão Ao contrato social e histórico leonino Rousseau contrapõe o contrato puro da razão Daí duas obras que se completam Discursos sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens e Do contrato social ou princípios do direito político Na primeira mostra os erros de um contrato tal como foi constituído em que os indivíduos foram vítimas dos mais fortes e dos mais astutos na outra passa a conceber a sociedade do futuro oriunda de um contrato segundo as linhas puras da razão36 O HOMEM NASCE LIVRE e em toda parte é posto a ferros Quem se julga o senhor dos outros não deixa de ser tão escravo quanto eles Jean Jacques Rousseau FrançoisRené de Chateaubriand e o bom selvagem A teoria do bom selvagem de Rousseau encontrou ressonância no pensamento de outro francês o escritor FrançoisRené Auguste de Chateaubriand É considerado o primeiro escritor do movimento romântico da França Quando eclodiu a Revolução Francesa Chateaubriand era oficial da cavalaria real Optou por não lutar ao lado da coroa e exilouse nos Estados Unidos no ano de 1791 Na América conviveu com os índios e dessa experiência tirou a noção do bom selvagem que incluiria em seus livros Em razão das descrições que realizou dos costumes dos índios norteamericanos inspirou os escritores indigenistas brasileiros como Gonçalves Dias e José de Alencar Publicou ao voltar para a Europa o livro Ensaio sobre as revoluções discutindo argumentos racionalistas usados pelos iluministas contra a religião cristã Publicou depois Atala Em 1811 foi eleito para a Academia Francesa Dentre sua vasta produção bibliográfica que abrangia romances novelas poesias inúmeros ensaios e até uma peça de teatro podese dizer que seu livro mais importante é Memórias de alémtúmulo publicado em 1841 Alexis de Tocqueville e a sistematização da democracia Tendo vivido a efervescência da Revolução Francesa de 1789 cujos ideais nortearam a implantação da democracia como sistema de governo no então recémcriado país os Estados Unidos Alexis de Tocqueville elaborou modelos de sistematização daquele novo sistema de governo O que mais o entusiasmou foi o fato de que os Estados Unidos eram ao mesmo tempo uma república e uma confederação uma novidade na época Chamoulhe a atenção também que os costumes costumavam valer mais do que as leis o que evidenciava na sua opinião a soberania do povo Alex de Tocqueville e suas circunstâncias Alexis de Tocqueville passou um ano nos Estados Unidos em 1831 buscando inspiração no modelo seguido pela Constituição norteamericana para sistematizar a democracia como sistema de governo O principal aspecto que lhe chamou a atenção foi o fato de que cada Estado manteve a sua individualidade que representa o sistema federativo O relatório que produziu foi transformado em 1831 naquela que se tornou a sua obra mais importante A democracia na América A segunda parte do livro foi publicada em 1840 Alexis Henri Charles Clérel de Tocqueville nasceu em 1805 mesma data em que Napoleão publicara o Código Civil francês Sua família de aristocratas apoiava o chamado Antigo Regime deposto pela Revolução Francesa de 1789 com o chamado movimento legitimalista liderado pelo rei Carlos X Participou da segunda República francesa tendo ajudado a escrever a segunda Constituição do país Assumiu a função de ministro das Relações Exteriores do governo de Luís Napoleão Durante um ano viveu nos Estados Unidos observando as tradições democráticas locais A partir dessa experiência escreveu A democracia na América um livro que traz um imponente subtítulo Leis e Costumes De certas leis e certos costumes políticos que foram naturalmente sugeridos aos americanos por seu estado social democrático Publicou mais dois livros O Antigo Regime e a Revolução 1856 e Lembranças de 1848 1893 Morreu em 1859 com apenas 54 anos de idade Alexis de Tocqueville e suas ideias Seu trabalho teve importância destacada porque a partir da Constituição norteamericana como referência fez uma análise comparativa com outras democracias A partir da observação do sistema aplicado nos Estados Unidos firmou convicção de que movimentos revolucionários como o que ocorreu na França não eram justos achava que a ideia de igualdade era opressiva porque sufocava a liberdade individual Pregava que a igualdade devia ser ponderada pela justiça para não permitir nem opressão nem egoísmos Sua principal defesa foi a liberdade que fundava o sistema democrático norteamericano contra o regime colonialista inglês praticado até então na América Portanto igualdade e liberdade foram os aspectos principais de sua obra Foi um dos autores mais influentes do liberalismo ocidental ao lado de Adam Smith Joseph Schumpeter e Raymond Aron Alexis de Tocqueville e sua influência no direito No sistema democrático a maioria comanda mas o indivíduo deve ter o direito de recorrer de decisões da maioria que considerar injustas para si O sistema democrático assim fortalecido pela aplicação da justiça levará progressivamente a uma igualdade entre as pessoas cada vez mais aperfeiçoada Não haverá democracia sem igualdade e liberdade A JUSTIÇA constitui o limite do direito de cada povo Alexis de Tocqueville LINHA DO TEMPO A IDADE MODERNA DA FILOSOFIA Ano 1490 Leonardo Da Vinci desenha o esboço do homem perfeito O homem vitruviano Ano 1512 Michelangelo pinta o teto da Capela Sistina Ano 1517 Martinho Lutero inaugura a Reforma Protestante pregando nas portas da Abadia de Wittenberg na Alemanha as 95 Teses Contra o Comércio de Indulgências Ano 1526 Carlos V decreta que o catolicismo é a religião oficial do império germânico Ano 1529 Um grupo de luteranos publica contra a decisão de Carlos V o Protesto de onde vem a denominação protestantismo Ano 1534 o rei inglês Henrique VIII cria a Igreja Anglicana Ano 1536 João Calvino escreve a maior obra da Reforma Protestante As Institutas da Religião Cristã que viriam a ser a Bíblia do capitalismo Ano 1545 O papa Paulo III convoca o Concílio de Trento que elabora o Index Librorum Prohibitorum uma lista de livros proibidos em especial as obras de Lutero e Calvino Foi a chamada contrarreforma Ano 1576 Jean Bodin considerado o principal teórico do absolutismo escreve Os seis livros da República Ano 1595 Felipe I edita as Ordenações Filipinas estabelecendo normas para a distribuição da justiça Essas ordenações teriam repercussão futura sobre o Brasil Ano 1598 O rei Henrique IV da França divulga o Édito de Nantes que trata com tolerância as diferenças religiosas entre cristãos e protestantes Ano 1601 Skakespeare publica Hamlet Ano 1603 As Ordenações Filipinas são revisadas pelo rei Felipe II e formam a base do direito civil brasileiro Ano 1605 Cervantes publica a primeira parte de Dom Quijote de La Mancha Ano 1609 Hugo Grócio considerado o criador do direito internacional publica De Mare Liberum Sobre a liberdade dos mares em que contesta o direito que Inglaterra Espanha e Portugal teriam nessa época 1609 de dominar os mares Ano 1620 Francis Bacon o primeiro empirista inicia a produção de sua obra chamada Instauratio magna scientiarum Ano 1637 René Descartes publica Discurso sobre o método onde tenta provar a existência de Deus e a superioridade da alma sobre o corpo com base na matemática Ano 1640 A Revolução Burguesa que ocorreu na Inglaterra entre os anos de 1640 e 1660 despertou os filósofos para orientar suas meditações e pesquisas para dois elementos que à época passavam a ser fundamentais para a organização social propriedade e liberdade Ano 1651 Thomas Hobbes publica Leviatã Lança a ideia do contrato social Ano 1653 O papa Inocêncio X proíbe o livro Agostinho do bispo Cornelius Jansen As ideias formariam o movimento conhecido como jansenismo que abalaria a religião católica na França e na Bélgica Ano 1653 Blaise Pascal publica O tratado do equilíbrio dos líquidos sobre os efeitos da pressão nos líquidos Pascal foi um defensor ferrenho de Jansen contra a perseguição promovida pelo papa Inocêncio X Ano 1657 Isaac Newton publica suas principais obras Sobre a natureza das coisas e Princípios matemáticos da filosofia natural Ano 1660 Samuel Pufendorf inicia a produção de suas principais obras Elementos do Direito Universal e Do direito natural e das gentes Ano 1670 Baruch Espinosa no livro Tratado teológicopolítico propõe a separação entre filosofia e teologia o que foi o mesmo que pregar a separação entre a Igreja e o Estado Ano 1674 Nicolas Malebranche publica Da busca da verdade discutindo as substâncias reconhecidas por Descartes corpo e alma e afirmando que não há relações entre elas Ano 1676 Gottfried Leibniz define a teoria do cálculo infinitesimal Teve grande importância na associação entre filosofia e matemática Ano 1685 É revogado o Édito de Nantes pelo rei Luís XIV Ano 1689 Jean Domat publica As leis civis na sua ordem natural defendendo que as leis deviam estar fundadas sobre a ética e sobre os princípios religiosos Ano 1690 John Locke escreve Ensaio acerca do entendimento humano descrevendo os contratos que deviam existir entre governantes e governados e da autonomia entre os poderes de Estado ainda hoje considerados pontos básicos da liberdade humana Ano 1709 Publicado postumamente o livro de Jacques Bossuet A política tirada das Santas Escrituras defendendo o absolutismo Ano 1710 George Berkeley publica Tratado sobre os princípios do conhecimento contestando John Locke em relação ao conceito das ideias complexas Ano 1717 Christian Wolff escreve Princípios básicos de toda a ciência matemática Ano 1726 Voltaire é exilado na Inglaterra onde toma conhecimento das ideias liberais e as leva para a França essas ideias seriam fundamentais para a Revolução Francesa No mesmo ano Jonathan Swift publica As viagens de Gulliver Ano 1739 David Hume publica Tratado sobre a natureza humana em que contestava aspectos da filosofia praticada na época Ano 1746 Étienne Bonnot Condillac publica Ensaio sobre a origem do conhecimento do homem sobre o papel da experiência no desenvolvimento das capacidades cognitivas Ano 1748 Montesquieu publica O espírito das leis livro em que defende a divisão dos poderes em executivo legislativo e judiciário Ano 1748 Robert Joseph Pothier publica As Pandectas de Justiniano dispostas em uma nova ordem reorganizando o direito romano Seu trabalho seria fundamental para a elaboração mais tarde do Código Civil francês Ano 1750 Diderot escreveu um manifesto em que expunha a fé no progresso contínuo da humanidade obtido principalmente por meio da ciência Dizia que a religião devia limitarse a orientar o comportamento prático dos fiéis Ano 1750 Rousseau publica o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens Ano 1759 Adam Smith escreve Teoria dos sentimentos morais considerado um importante tratado sobre a ética Ano 1788 Immanuel Kant escreve a obra que foi a sua grande contribuição para o direito Crítica da razão prática Ano 1789 Explode a Revolução Francesa dando início à Idade Contemporânea Ano 1831 Alexis de Tocqueville escreve A democracia na América QUARTA PARTE A SÍNTESEnaFILOSOFIA IMMANUEL KANT O GRANDE FILÓSOFO DO ILUMINISMO Criado numa família luterana Kant questionava a religiosidade exigida pela sua igreja de vida frugal e a obediência total à lei moral Achava que a igreja praticava com relação aos jovens uma espécie de escravidão Kant e suas circunstâncias Immanuel Kant escreveu sua obra fundamental Crítica da razão pura em 1781 para discutir os princípios e limites do entendimento Nesse livro dizia que apenas a razão é insuficiente para realizar a felicidade Em 1788 escreveu Crítica da razão prática discutindo a ação moral do indivíduo em relação aos outros que foi a sua grande contribuição para o direito A base do seu pensamento é de que a verdadeira ética consiste no cumprimento do dever Immanuel Kant nasceu de família pobre em 1724 na cidade de Königsberg atual Kaliningrad que à época pertencia à Prússia e que hoje faz parte da Rússia Teve uma vida totalmente regular até metódica Jamais saiu da cidade onde nasceu Ali se doutorou em filosofia em 1755 tornouse professor e mais tarde reitor Nunca se casou Escrevia diariamente em pé em sua casa apoiado a uma espécie de púlpito Teve grande influência de Isaac Newton para escrever sobre as forças cinéticas no livro Pensamentos sobre o verdadeiro valor das forças vivas Escreveu também sobre estética e religião inspirado nos iluministas franceses Morreu em 1804 Kant foi pobre durante quase toda a vida Após a morte do pai um modesto artesão que trabalhava com couro foi ser professor particular para garantir o sustento da mãe e dos dez irmãos Quando concluiu o doutorado e tornouse catedrático de lógica e metafísica da mesma universidade a vida melhorou Na época em que começou a desenvolver sua filosofia a Alemanha já estava imbuída dos ideais liberais e burgueses Christian Wolff havia trazido da França o Iluminismo e por isso mesmo os intelectuais alemães receberam as ideias de Kant com reservas e até reprovação A primeira fase de Kant foi marcantemente empirista dogmática e voltada para as ciências naturais Depois de entrar em contato com o pensamento de David Hume modificou e aperfeiçoou muitas de suas ideias Foi proibido pelo rei Frederico Guilherme II da Prússia sucessor do déspota esclarecido Frederico II de escrever sobre temas religiosos depois que publicou A religião nos limites da simples razão um livro antiiluminista em 1793 Só voltou a publicar depois da morte do rei cinco anos depois A Prússia tinha sido chamada até a promulgação da sua Constituição a primeira da Europa de Primeira República da Polônia ou República das Duas Nações porque reunia Polônia e Lituânia Fora possivelmente a primeira federação do mundo Sua principal característica foi a redução gradual dos poderes do soberano dando à nobreza o papel de controlar o poder legislativo Também por isso o sistema político ficou conhecido como a democracia dos nobres A rigor era uma monarquia constitucional parlamentarista na qual o rei funcionava mais como presidente do que como soberano O mote da República dos Dois Povos era este Rex regnat et non gubernat O rei reina mas não governa Com a Constituição a república foi extinta e o país tornouse uma monarquia constitucional um sistema político sobre o qual se basearam muitas das atuais democracias ocidentais Foi um dos primeiros países a seguir o pensamento de Montesquieu ao definir a separação dos poderes executivo legislativo e judiciário A Prússia deixou de existir com a Primeira Guerra Mundial em 1918 quando Polônia e Lituânia recuperaram seu status de países independentes Kant e suas ideias Immanuel Kant obteve com suas obras uma síntese entre o empirismo e o racionalismo duas correntes que se complementavam mas que lutavam em torno de algumas diferenças Kant viria a apresentar soluções aos problemas filosóficos de ambas Defendia a existência de uma lei natural como Rousseau mas descartava o domínio da experiência sobre a razão como queriam os empiristas ou mesmo o contrário conforme pregavam os racionalistas Foi assim que logrou fugir do dilema secular entre essas duas correntes filosóficas embora reconhecesse qualidades em ambas Admitia que o conhecimento começa com a experiência Mas pondera que a percepção só nos permite conhecer o fenômeno que as coisas apresentam Pela experiência dos sentidos apenas não é possível conhecer as coisas em si Portanto não se consegue traçar a universalidade do conhecimento somente por meio da realidade objetiva Uma frase sua em Crítica da Razão Pura sintetiza o que pensa Todo o nosso conhecimento parte dos sentidos vai daí ao entendimento e termina a razão acima da qual não é encontrado em nós nada mais alto para elaborar a matéria da intuição e levála à suprema unidade do pensamento Sua teoria tem portanto caráter alternativo ao empirismo e ao racionalismo e fez parte do idealismo alemão como Hegel mais tarde Kant conciliava realidade e razão sem desprezar a importância da percepção mas esclarecendo que esta nos propicia apenas a representação das coisas não as coisas em si Para organizar as informações propiciadas pela percepção é preciso que o homem aplique a razão mas também certas estruturas de apoio que já existem no espírito humano Essas estruturas são o que chamou de condições a priori a que acresceu as formas da sensibilidade que são o tempo para os objetos internos e o espaço para objetos externos Tais estruturas de pensamento que são universais são formadas pela soma dos conhecimentos adquiridos e complementam a apreensão sensível dos fenômenos Portanto a realidade requer a razão para ser tomada como dado concreto E o uso da razão implica forçosamente outra característica humana que é a capacidade de julgamento ou juízo como ele chamou o processo de avaliação da realidade Chamou a isso de formas do entendimento Somadas as formas de sensibilidade e as formas do entendimento fazem aflorar conceitos puros que sempre existiram na nossa consciência Kant chamou esses conceitos de categorias que afloram por meio da intuição ou da experiência sensível São figuras que já existem em nosso espírito Kant formulou doze categorias como conceitos puros apriorísticos do entendimento São elas unidade pluralidade totalidade realidade negação limitação substância causalidade comunidade possibilidade existência e necessidade Por meio dessas categorias apontou os limites do conhecimento Para Kant portanto a razão é uma estrutura vazia uma forma pura sem conteúdos Em suma uma estrutura apriorística que é universal diferentemente dos conteúdos por ela assimilados oriundos da experiência sempre variável A inovação de sua filosofia está em que ela não se centra na realidade objetiva das coisas como até então se procedia mas na própria razão que apreende tal realidade incorporandoa ao sujeito conhecedor Como exposto acima são três as partes ou formas que compõem a estrutura da razão a forma da sensibilidade a forma do entendimento e a forma da razão propriamente dita A forma da sensibilidade relacionase à percepção que capta os objetos da realidade objetiva sujeitandoos à razão Sua estrutura é composta pelas dimensões apriorísticas do tempo e do espaço A forma do entendimento organiza os conteúdos oriundos da sensibilidade Da organização das percepções resultam os conhecimentos intelectuais ou os conceitos A forma da razão propriamente dita por fim regula e controla a sensibilidade e o conhecimento Organiza os conteúdos empíricos chamados por Kant de categorias O conhecimento racional pode versar sobre objetos e sobre suas próprias leis Quanto aos objetos há dois tipos a natureza objeto da física e a liberdade objeto da filosofia moral ou ética As leis da própria razão são estudadas pela lógica conhecimento puramente formal independente da natureza Para Kant metafísica é a ciência que trata dos princípios puros estabelecidos pela razão previamente a qualquer experiência A metafísica da moral se subdivide em duas partes a primeira se refere à justiça e a segunda à virtude Ambas estudam leis de liberdade Kant diferencia as leis morais das jurídicas pelo âmbito de atuação aquelas são internas ao indivíduo e consubstanciam nele o sentimento da obrigação em relação aos deveres morais os homens são responsáveis perante si mesmos ao passo que estas são a ele externas coagindoo ao seu cumprimento na esfera jurídica os homens são responsáveis perante os demais Na formulação kantiana portanto a moral abrange o direito sendo ambos repositórios de leis fundamentadas na autonomia da vontade Idealmente a lei positiva está sobreposta à lei moral As paixões humanas contudo controladas de maneira imperfeita pela razão fazem com que na prática isso não ocorra Na chamada fase madura fundou o criticismo Assim foi denominado o seu sistema filosófico apresentado principalmente no livro Crítica da razão pura de 1781 Kant explica nesse trabalho por que motivo a razão sozinha é insuficiente para permitir o conhecimento profundo das coisas e para permitir que o homem chegue à felicidade O criticismo baseavase como o próprio nome já indica na crítica Em outras palavras na análise reflexiva de um tema para verificar as condições que o legitimassem Para essa análise propôs como ferramentas diferentes tipos de juízos O juízo analítico a priori é aquele cuja definição está contida no próprio sujeito basta que eu diga a palavra bola para pensar num objeto redondo característica necessária e universal porque todas as bolas são redondas Em outras palavras nos juízos analíticos o predicado não é senão a explicitação do conteúdo do sujeito O juízo sintético por sua vez define o atributo complementar desse sujeito o predicado acrescenta dados sobre o sujeito bola vermelha por exemplo é um juízo que só se pode fazer depois de ver a bola aplicar sobre ela a sensibilidade e verificar que nem todas as bolas são vermelhas por isso o juízo sintético é sempre a posteriori O valor científico e filosófico de um juízo advém de sua universalidade e de sua correspondência com a realidade Os juízos analíticos são sempre universais e verdadeiros mas não acrescentam conhecimentos ao sujeito que conhece Fonte de conhecimento portanto é apenas o juízo sintético o qual para tanto deve ser universal e verdadeiro pelo que não pode depender da experiência ou seja o juízo sintético que resulta em conhecimento é apriorístico Kant dedicouse à demonstração da existência e da validade de juízos sintéticos apriorísticos nas ciências bem como à elucidação da metafísica possível Kant e sua influência no direito É essencial em Kant a questão da liberdade individual Retoma o tema em vários trabalhos quando fala de escolha ou quando fala de moral Em Kant liberdade é agir segundo as próprias leis Para ele a moral pressupõe liberdade de pensamento sempre relacionada com o dever e essa é a grande diferença para o direito que para ele deve considerar o aspecto punitivo A justiça segundo Kant tem como função social e jurídica a eliminação de obstáculos à liberdade individual O ideal de Kant de justiça como liberdade inspirou a teoria do Estado liberal o conceito é de que liberdade é o não impedimento por nossas próprias paixões ou normas particulares liberdade interna ou pela intervenção e arbítrio dos outros liberdade externa Segundo Norberto Bobbio no livro Direito e Estado no pensamento de Kant a teoria da paz perpétua de Kant está baseada em quatro pontos principais Detalhadamente os Estados em suas relações externas encontramse num estado jurídico provisório o estado de natureza é um estado de guerra em consequência tão injusto quanto o estado de natureza entre os indivíduos quando o Estado é injusto guerreiro os indivíduos têm o dever de abandonálo e fundar uma federação na qual não há um Estado chefe mas que funciona como uma associação de iguais regida por um pacto social A filosofia do direito deve a Kant a doutrina do Rechtsstaat37 palavra que pode ser traduzida como Estado legal ou Estado de direitos Referese a um Estado que se apoie em uma Constituição escrita em que o exercício do poder pelos governantes é limitado pelas leis e fiscalizado pelo poder judiciário Segundo Kant não há como um Estado se tornar uma democracia sem ter sido antes um Rechtsstaat E para ele é a Constituição que assegura direitos aos cidadãos e facilita o atingimento da paz perpétua como premissa para a felicidade e prosperidade do povo Para o filósofo a dignidade da pessoa humana constitui um valor intrínseco sem equivalente O homem como ser racional possui dignidade porque não obedece senão às leis que ele próprio estabelece para si Daí a conhecida frase de Kant O homem é um fim em si mesmo Kant não se preocupa com o direito positivo mas com o conceito universal apriorístico do direito fornecido pela razão Para ele a lei universal do direito é a seguinte agir exatamente de modo que o livre uso do arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um segundo uma lei universal Vêse em Kant portanto a ideia bastante vulgarizada na forma do jargão o direito de cada um acaba quando começa o do outro Em verdade em sua formulação filosófica ele aduz que uma sociedade justa é aquela em que cada um tem a liberdade de fazer o que quiser contanto que não interfira na liberdade dos demais Para a garantia desse estado de coisas o direito imbuise de caráter coercitivo Já em Kant portanto a liberdade individual está ligada à coerção propiciada pelo direito ideia que seria depois amplamente desenvolvida entre outros por Hans Kelsen Para Kant a base da legitimidade da norma é o consenso O próprio Estado diz ele é fruto de um consenso Na teoria kantiana a obrigação política vinculase à concepção apriorística de contrato segundo a qual as leis vigentes devem ser obedecidas ainda que injustas ponto em que destoa de Locke que admitia o direito de resistência no caso de leis injustas O Estado existente representa um progresso em direção ao Estado ideal e por isso Kant não admite de forma alguma o direito de resistência A revolta é sempre ilegal nenhuma Constituição pode outorgar ao povo um tal direito Kant é um teórico do liberalismo Seguindo Rousseau recusa o dilema hobbesiano que postulava liberdade sem paz ou paz mediante submissão ao Estado Em verdade compatibiliza no plano teórico liberdade e Estado por meio do conceito de autonomia aduzindo que as leis do soberano são as leis que as pessoas dão a si próprias Em Kant o Estado é um meio necessário para a garantia da liberdade das pessoas A convivência entre estas é possibilitada apenas pela promulgação das leis universais papel desempenhado pelo Estado A finalidade do Estado é promover o bem público isto é a manutenção da juridicidade das relações interpessoais e não conquistas individuais subjetivas como a felicidade e o bemestar O bem público para Kant é precisamente a Constituição legal que garante a cada um sua liberdade por meio da lei A melhor forma de Estado é a República Como acima consignado essa é a forma ideal de Estado porque é uma ideia objetivamente necessária e universalmente válida Seus atributos são apriorísticos e não inferidos de observações empíricas Na República diz Kant a lei manifesta a vontade do povo em geral não a vontade de grupos particulares O princípio da Constituição republicana é a liberdade Vejase que o conceito de autonomia é central na teoria da razão de Kant O filósofo busca compreender as formas de organização que melhor a preservam não apenas no plano individual mas também no espaço público Daí também ter procurado se posicionar pela garantia da liberdade política pondoa a salvo de influências particulares o que poderia ser obtido por meio da tripartição do poder estatal Executivo Legislativo e Judiciário Mas é importante consignar uma vez mais que Kant nega ao povo o direito à revolução Assim as reformas necessárias para se chegar à tripartição haveriam que ser implementadas pelo próprio soberano o qual deveria evitar a todo o custo o despotismo demonstração maior de irracionalidade Kant é partidário da ideia de progresso da humanidade cujo processo seguiria a dialética sendo portanto lento e contraditório Por ser dialético fundamental a preservação da liberdade de opinião e de imprensa para que as diferentes opiniões possam se encontrar alargando o debate público e propiciando maiores condições para tal progresso Kant defende ainda a ideia de confederação dos Estados livres como forma de alcançar a paz internacional Há é verdade certa similitude do pensamento do filósofo com o de Hobbes nesse ponto pois também ele entende que o estado natural dos Estados no plano internacional é a guerra não a paz É pois dever dos Estados pactuar entre si o fim das hostilidades de acordo com a razão estabelecendo a comunidade jurídica internacional Kant fala então em uma Liga das Nações para a Paz algo bastante semelhante com a atual Organização das Nações Unidas Como Kant elege a República como forma ideal de Estado não causa espécie também ter pressuposto que todos os Estados componentes da Liga das Nações adotassem tal forma Kant e o imperativo categórico Imperativo é uma figura filosófica criada por Immanuel Kant e que equivale à noção bíblica de mandamento É o ponto central do seu sistema filosófico para a compreensão do que é moral e do que é ético Tem o traço da universalidade porque é aplicável a todos Mas não se trata de uma lista de normas morais o imperativo categórico é antes de tudo um mecanismo da razão No livro Fundamentos da metafísica dos costumes publicado em 1785 Kant estabeleceu a existência de três modalidades de imperativos Imperativo categórico o indivíduo deve agir de tal modo que sua atitude seja correta a ponto de tornarse uma lei universal Imperativo universal o indivíduo deve agir de acordo com uma atitude que por sua vontade possa tornarse uma lei universal Imperativo prático o indivíduo deve agir de modo a que a humanidade seja o fim de seu objetivo e não apenas o meio Resumidamente o imperativo categórico é a afirmação do dever como fundamento da conduta humana Ser ético segundo Kant é cumprir com o dever e agindo assim cada homem contribuiria para fazer com que a coletividade alcançasse a felicidade Por meio do imperativo categórico o homem seria capaz de viver em paz evitando a guerra O imperativo categórico é em verdade um comando moral que relaciona um deverser estabelecido pela razão e determinados móveis humanos Dizse que é categórico porque as ações por ele definidas são objetivamente necessárias pouco importando sua finalidade A objetividade da necessidade resulta de que o imperativo categórico é válido para todos os seres humanos de modo que o comando moral é uma norma universal Em Kant boa conduta é a que se universaliza pela razão ou em outros termos é aquela racionalmente universalizável Vejase que o imperativo categórico é um enunciado a priori da razão e não o resultado de observação empírica da natureza humana Admirador de Rousseau Kant desenvolveu um sistema liberal de espírito burguês e capitalista dentro do qual incluía a questão da ascensão social Como vimos acima o pensamento de Kant prezava o esforço do homem para evoluir mas sempre dentro de um contexto social regido por leis elaboradas para privilegiar o bem coletivo É esclarecedor o conceito de Kant sobre a liberdade que a classificava em positiva ou negativa No livro Crítica da razão pura define liberdade como a independência do arbítrio humano relativamente aos impulsos sensíveis que o afetam mas vai além afirmando a capacidade do homem de autodeterminação A liberdade é positiva quando o homem faz o que lhe dá vontade de fazer conscientemente com conhecimento das regras e das leis liberdade positiva portanto é autonomia mas tem reciprocidade com o conceito de moral A liberdade entretanto é negativa quando o sujeito não sofre coerção alguma o indivíduo pode ser um mendigo morar embaixo de um viaduto e não se banhar mas ninguém o obriga a nada Em outras palavras em sua acepção negativa liberdade é a ausência de determinações externas ao comportamento O DIREITO É portanto o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de um pode unirse ao arbítrio de outro segundo uma lei universal da liberdade Immanuel Kant DUAS COISAS ME ENCHEM o ânimo de admiração e respeito o céu estrelado acima de mim e a lei moral que está em mim Immanuel Kant JOHANN GOTTLIEB FICHTE E O ESTADO FORTE Fichte foi discípulo de Kant que o incentivou a publicar seu primeiro livro No entanto contrariando as ideias de liberdade e de direito do mestre defendia para o Estado um papel de polícia e de força Rejeitava também a ideia da separação dos três poderes para ele o governo devia administrar a nação e também cuidar da distribuição da justiça como forma de garantirse como Estado forte Entendia que o Estado tendo a obrigação de realizar os princípios do direito ficava obrigado a esses mesmos princípios que limitavam a sua atuação De certa maneira um conceito que se aproximava do Rechtsstaat de Kant e depois de Hegel apesar de não concordar com a separação dos poderes Fichte e suas circunstâncias Johann G Fichte destoou do pensamento libertário de Kant e ao contrário deste defendia para o Estado um papel de polícia Embora suas ideias autoritárias estivessem na contramão da doutrina liberal Fichte acabou por se tornar popular porque pregava a necessidade do nacionalismo alemão Johann Gottlieb Fichte de família humilde nasceu em 1756 Estudou teologia na Universidade de Jena Nunca terminou os estudos Para ajudar os nove irmãos passou a atuar como preceptor de filhos de aristocratas aos 28 anos Por essa época leu as obras de Kant fato que teria mudado sua concepção da filosofia Aprofundouse no estudo da estrutura da razão O sucesso do seu primeiro livro Fundamento do direito natural rendeulhe convite para lecionar na Universidade de Jena Ficou famoso como escritor e conferencista Fichte e suas ideias Argumentava que havendo lei bastava que os governantes as cumprissem mas previa a existência de um conselho que fiscalizasse o governo Também afirmava que há assuntos sobre os quais o Estado não tem o menor direito de intervir Um deles é o domicílio outro a propriedade intelectual Seu trabalho Discursos à nação alemã publicado entre 1807 e 1808 defendendo o nacionalismo numa época em que a Europa estava sob o domínio do império de Napoleão influenciou os filósofos que o seguiram como Hegel e Schelling O movimento nacionalista alemão defendia a preservação de valores linguísticos e culturais de uma nação contra a interferência de outros países O nacionalismo tinha a sua vertente econômica que era a condenação do domínio da nobreza feudal e apoio à nascente burguesia industrial Mas continha também uma vertente religiosa porque desaprovava o cristianismo que se mancomunava com os nobres do feudalismo enquanto os protestantes orientavamse para a modernidade do mercado capitalista Fichte e sua influência no direito Para Fichte sociedade não se confunde com Estado A primeira é regida por leis gerais de direito privado além de uma relação moral que envolve direitos e deveres recíprocos O segundo pelo contrato social Essa distinção faz pressupor o direito coletivo de insubordinação e de insurreição que pode levar a que o contrato social seja revogado por qualquer uma das partes Em outras palavras o vínculo social não é político em sua essência Por isso mesmo Fichte defende que o Estado precisa impor o Direito para garantir a liberdade pessoal e civil E por meio da educação fazer com que os indivíduos sigam na direção da sociedade perfeita que em última análise acabará prescindindo do próprio governo A VONTADE HUMANA É LIVRE e a felicidade não é o fim do nosso ser mas a dignidade de ser feliz Johann Gottlieb Fichte SCHELLING E A NATUREZA AUTÔNOMA Friedrich Schelling estudou já aos 16 anos no seminário protestante de Tübingen o que pode ajudar a explicar sua noção teísta do mundo de que as coisas existem porque foram pensadas por Deus Schelling e suas circunstâncias Friedrich Schelling foi inicialmente seguidor de Hegel e mais tarde seu opositor Sua filosofia buscava a descoberta de um princípio único para o universo Para ele o início do mundo é a intuição intelectual que chamava de razão absoluta Com isso discordava de Hegel que considerava que o princípio era o vazio Friedrich Schelling foi um dos principais idealistas alemães ao lado de Fichte e Hegel Sua filosofia influenciou a literatura do seu país principalmente de autores que iniciaram o movimento romântico como o poeta Hölderlin os irmãos August Wilhelm e Friedrich Schlegel Ludwig Tieck e Georg Philipp Friedrich von Hardenberg que ficou conhecido pelo pseudônimo Novalis e foi o criador da flor azul principal símbolo do romantismo alemão Talvez influenciado por essa grande proximidade com escritores e poetas desenvolveu o conceito de que é por meio da atividade artística que o homem consegue apreender o mundo Conviveu também no ambiente universitário em Tübingen Munique Würzburg Jena e Leipzig com expoentes da intelectualidade da época como Goethe Fichte e Hegel Foi aluno e depois assistente de Fichte sucedendoo na Universidade de Jena Mais tarde sucedeu Hegel na cátedra de Filosofia da Universidade de Berlim e passou a combater suas ideias Schelling e suas ideias Como a maioria dos idealistas voltavase para a natureza Com base nos estudos de cientistas do seu tempo considerava a natureza um conjunto vivo e autônomo bastante em si mesma com capacidade para se renovar e para criar Questionava em suas obras a afirmação de que o homem só adquiria conhecimento por meio de suas experiências reais Para ele o conhecimento era algo infinito e quando instalado na consciência do homem ganhava substância A aquisição do conhecimento dependia do nível de liberdade consciente do homem É considerado o precursor do existencialismo corrente filosófica fundada na liberdade e responsabilidade do ser humano como mestre de seus próprios atos e de seu próprio destino FILOSOFAR sobre a natureza significa produzir a natureza Friedrich Schelling HEGEL E A SÍNTESE DOS OPOSTOS Filho de funcionário público na região então chamada Prússia Georg Hegel viu a queda prussiana diante de Napoleão Não se incomodou com isso achava o governo corrupto e antiquado Antes disso tinha visto a Revolução Francesa e aos poucos construiu uma opinião sobre os efeitos da revolta popular que mudou a França e o mundo A partir de suas meditações sobre o tema passou a considerar a história como uma manifestação progressiva da razão Seguindo a mesma linha de pensamento de Aristóteles que já na Antiguidade dizia que o homem é um ser perfectível Georg Hegel afirmava que o homem está fadado ao progresso Esse filósofo alemão que foi um dos mais influentes do século XIX alegava que o mundo é um todo sistemático regido pela fé Na busca do sentido da vida o homem atravessa os séculos sempre em situação de avanço e se realiza na história Costumava dizer que a história é o tribunal do mundo Em suas palavras A história é o desenvolvimento do espírito universal no tempo Esse é em resumo simplificado o arcabouço lógico do sistema filosófico que criou e registrou no livro Ciência da lógica publicado entre 1812 e 1816 O pensamento de Hegel tinha dois pressupostos principais necessidade e possibilidade Onde há possibilidade há opção portanto há liberdade Onde há necessidade ou seja a predestinação o homem é apenas um escravo de forças da natureza Hegel concebeu a verdade como resultado de uma lógica baseada em três aspectos afirmação negação e identidade O primeiro é a evidência que indica o que uma coisa é o segundo são as evidências que indicam o que aquela mesma coisa não é o terceiro aspecto é a compreensão de que aquilo é uma coisa e ao mesmo tempo não é esta coisa Em outras palavras a lógica tradicional pautada nos princípios da identidade e da contradição afirmava que o ser é idêntico a si mesmo excluindo o seu oposto Já a lógica de Hegel no mesmo sentido do princípio de movimento já defendido por Leibniz afirmava que o ser é essencialmente mudança ou seja retoma o conceito de devir eterno proposto por Heráclito em que os elementos se encontram em constante passagem de seu ser para o seu oposto Hegel pensava que todo conceito é formulado racionalmente opondose uma abstração a outra e ao final atingindose a unidade do conceito ou conclusão exatamente pela oposição É o que se chamou d e método dialético que foi inaugurado por Platão em uma espécie de evolução do método da maiêutica utilizado por Sócrates e seria agora aperfeiçoado por Hegel Em breves palavras tal método trabalha com a existência de uma tese sua antítese e a síntese Essa última por sua vez estabelece uma nova tese que novamente deveria ser contestada por outra antítese e coroada por nova síntese num processo interminável Esse método seria utilizado mais tarde por Karl Marx na concepção do materialismo histórico também por JeanPaul Sartre na concepção do existencialismo e por muitos outros filósofos do século XX A dialética de Hegel procura explicar o caráter dinâmico do mundo dos homens Fenômenos culturais e históricos careciam de uma explicação científica desde os clássicos Ele parte de um postulado ontológico segundo o qual o ser somente se afirma pela contradição ao seu oposto contradição cujo resultado é a vitória com a sujeição do outro Hegel retira assim a capa de harmonia da natureza da realidade Para ele a realidade é essencialmente conflituosa Sob os influxos da teologia cristã o filósofo incorpora ao seu método três categorias que não se excluem antes se complementam em uma dinâmica irrefreável Importante ressaltar que a filosofia de Hegel foi o último grande ensaio de explicação global do mundo e do homem de que se tem notícia no Ocidente tendo gerado forte impacto tanto na Europa como na América impacto que se faz sentir ainda na atualidade38 A forma prolixa que emprega em seus escritos a vastidão e a profundidade de sua obra provocaram desde logo certo temor nos que o sucederam no que toca à formulação de interpretações pessoais Exemplificando o método dialético Maquiavel defendia a tese de que o rei devia ter todos os poderes e reinar com absolutismo Depois dele os renascentistas lutaram pela limitação dos poderes do soberano Era a antítese de certo modo já pressuposta na afirmação original Adiante no tempo histórico viria Hume com uma síntese das duas ideias até com certa moderação propondo a resistência a eventual tirania e o contrato social Hegel e suas circunstâncias Georg Hegel foi um dos filósofos mais influentes do século XIX graças ao modelo racional de análise da realidade que desenvolveu Seu sistema filosófico baseado no método dialético é considerado o último já concebido e teve grande repercussão em trabalhos de autores como Goethe Rousseau e até em Karl Marx Era grande admirador de Espinosa e Kant Contribuiu de forma significativa para a evolução do direito com sua obra Elementos de filosofia do direito em 1821 Georg Wilhelm Friedrich Hegel nasceu em Stuttgart na Alemanha em 1770 Era filho de um funcionário público Estudou teologia e filosofia no seminário protestante em Tübingen ainda hoje um dos centros universitários mais importantes da Alemanha onde estudaram por exemplo Goethe e Schelling esse último seu amigo de toda vida Depois de formado mudouse para Berna na Suíça Viveu em um tempo repleto de transformações Quando contava 19 anos irrompeu a Revolução Francesa apoiada nos ideais do Iluminismo Os Estados Unidos tinham poucos anos antes vencido a guerra de independência contra a Inglaterra Pouco mais tarde a Revolução Industrial alterava definitivamente os estratos sociais do mundo ocidental Foi um entusiasta da Revolução Francesa e um admirador da filosofia de Kant Escreveu A fenomenologia do espírito considerada uma das mais importantes obras da história da filosofia Hegel lecionou em várias universidades até estabelecerse em Frankfurt de onde teve que fugir quando Napoleão invadiu a cidade Foi nomeado reitor da Universidade de Berlim em 1830 Morreria um ano depois de cólera Hegel e suas ideias Já no prefácio de seus Princípios da filosofia do direito Hegel critica o conhecimento baseado do senso comum obtido por meio da atitude do sentimento ingênuo que se limita à verdade publicamente reconhecida Faltava a esse conhecimento um sólido critério de validade eis que há no mundo diversidade de opiniões e interesses Renegava assim a ciência fundada no sentimento imediato e na imaginação contingente tão comum em seu tempo segundo aponta de modo a propiciar que cada um tivesse a sua filosofia abandonando o mundo à contingência subjetiva da opinião e da arbitrariedade Se a maneira de pensar mudasse com o passar do tempo seria impossível atingir uma verdade universal filosofava Hegel Por isso propôs critérios que estabelecessem um modo histórico de reflexão Fundamenta na história ou seja no contexto sociológico a racionalidade de cada ideia Isso porque segundo ele o contexto histórico define os valores do homem e da sociedade e esses valores por sua vez condicionam a verdade universal daquele tempo Para chegar ao sistema filosófico que criou passou por várias áreas do conhecimento como a psicologia a estética a religião e o direito Conforme já mencionado Hegel defendia que o homem está em constante evolução Portanto cada alteração da maneira de pensar na sequência histórica eleva a humanidade a um patamar mais avançado na direção do autoconhecimento Essa fé na humanidade que Hegel chamava de espírito do mundo era típica da corrente de pensamento conhecida como idealismo que encontrou grande acolhida entre os românticos alemães O sistema dialético de análise da realidade de Hegel está fundado sobre três elementos como ele explica em Enciclopédia das ciências filosóficas os momentos do Ser da Natureza e do Espírito O Ser se refere ao conjunto dos elementos lógicos de toda realidade A ideia é algo concreto o princípio inteligível da realidade que existe na consciência sujeito ao processo dialético da tese antítese e síntese A Natureza é a manifestação do Ser no mundo fenomênico É a forma pela qual a ideia se exterioriza no espaço e no tempo realizase ganhando concretude e tangibilidade O Espírito é afinal a síntese entre a ideia inicial e a sua natureza que ganha substância É a consciência da realidade Deus é o espírito absoluto daí por que o sistema filosófico de Hegel é baseado na fé O homem é o espírito finito ou espírito subjetivo e a sociedade é o espírito objetivo A natureza por sua vez é finita mas não é espírito porque faz parte das relações externas ao homem O Espírito encontrase pois numa posição elevada em relação ao Ser e à Natureza Representa a ascensão histórica do humano ao divino O método dialético hegeliano tem por objetivo apreender o concreto e o universal não o individual e o abstrato Daí que na apreensão concreta do real busque a unidade entre o ser e o pensamento Trata se em verdade de um processo dinâmico que se repete sem cessar no qual aquilo que é se contrapõe à sua expressão exterior alcançando com isso uma nova forma de ser superior à que era antes Justamente nesse ponto Hegel critica Kant que segundo ele se contenta em converter uma máxima pessoal de vida em lei universal tornandoa um imperativo categórico o que permite justificar tanto o bem como o mal Para se evitar esse equívoco devese recorrer ao contexto humano concreto ao homem situado na História com suas sucessivas contradições numa cadeia ininterrupta de superações Hegel aplicou esse método de forma sistemática a todos os objetos de estudo independentemente de sua natureza mesmo quando disso resultava certo artificialismo como se o real tivesse que se adaptar a seu esquema teórico e não o contrário39 Para ele a própria vida é dialética e assim outro não pode ser o modo do pensamento senão o baseado no conflito e na integração dos opostos Assim mesmo os três elementos de sua teoria o Ser a Natureza e o Espírito são compostos por uma estrutura triádica Há o Ser por si o Ser para si ou essência e o Ser que exteriorizado retorna a si ao qual Hegel denominou de conceito Do mesmo modo há a Natureza por si conjunto das leis físicas a Natureza para si conjunto de forças físicoquímicas e a Natureza em si e para si o organismo vivo Por fim há o Espírito por si o espírito subjetivo o indivíduo o Espírito para si o espírito objetivo a cultura e o Espírito absoluto Hegel e sua influência no direito Os indivíduos estão organizados em sua base na família depois na sociedade civil e no ápice da pirâmide o Estado O Estado é o nível máximo da vida social esta essencial para que o homem se desenvolva O Estado para ser adequado tem que ser único dotado de autoridade e atuar pelo bem de toda a coletividade Para cumprir esse papel o Estado deve produzir leis corretas porque não pode haver liberdade sem lei e os indivíduos devem obedecer às leis porque não pode haver liberdade sem obediência à lei A Filosofia do Direito de Hegel sugere leis universais que todas as pessoas devem seguir não importando que razões possam ter para obedecêlas Hegel reconhece a abstração inerente ao direito Enxergao como apenas uma possibilidade diante do conteúdo da ação concreta e das relações morais e éticas Nesse sentido o mandamento jurídico é apenas uma permissão ou uma autorização Vejase que aqui temos o âmbito a que se restringirá posteriormente o positivismo jurídico com sua análise eminentemente lógica do ordenamento desvinculada por imposição metodológica dos influxos sociais e econômicos A proposta de Hegel em Princípios da filosofia do direito é demonstrar uma concepção do Estado como algo racional em si A missão da filosofia para ele está em conceber o que é pois o que é é a razão Reconhece a limitação temporal de toda filosofia como também se dá com o indivíduo que não pode se colocar fora de sua própria vida Desconsiderar esse aspecto implica segundo ele emitir mera opinião elemento inconsciente sempre pronto a adaptarse a qualquer forma Seu projeto é pois delimitar objetos e conceitos dados pela razão mas apartados da subjetividade individual A razão existe por si só A unidade abstrata de forma e conteúdo possui também um sentido concreto a forma é a razão como conhecimento conceitual o conteúdo é a razão como essência substancial da realidade moral e também natural A identidade consciente de conteúdo e forma é a ideia filosófica O objeto da ciência filosófica do direito é para Hegel a ideia do direito ou seja o conceito do direito e a sua realização Não o conceito em sentido estrito que não é objeto da filosofia mas o conceito em sua realização da realidade historicamente inserido Nesse sentido para o filósofo a ciência do direito está inserida na filosofia Seu objeto de estudo encontrase fora da própria ciência do direito sua dedução é suposta e deverá ser aceita como um dado Hegel passa então a definir o conceito de direito positivo a será positivo pelo caráter formal de ser válido em um Estado aqui a forma b quanto ao conteúdo o direito será positivo b1 pelo caráter nacional particular de um povo o nível de seu desenvolvimento histórico e as condições correspondentes às suas necessidades culturais b2 por ser genérico e abstrato como todo sistema de leis aplicável portanto à natureza particular dos objetos e das causas b3 pelas últimas disposições necessárias para decidir na realidade Pelos critérios expostos Hegel reconhece que a violência e a tirania podem constituir um elemento do direito positivo o que em verdade é um acidente em nada relacionado com sua natureza No que toca às condições históricas do direito positivo essenciais como visto para a determinação de seu conceito Hegel aponta que foi Montesquieu quem definiu a verdadeira visão histórica a respeito em um tratamento abrangente e preocupado com a relação entre o povo e sua época A investigação histórica conquanto não deixe de representar valor e interesse não constitui objeto da filosofia Levando isso em consideração Hegel critica os que formulam conceitos sem maiores reflexões a partir de regras do direito romano denominando de concepções ou conceitos o que não passava de regra para um dado povo Essa imprecisão não há que ser admitida em sede filosófica Com efeito alerta não se pode confundir a busca da verdadeira legitimação com o que não passa de uma justificação pelas circunstâncias Em suma descabido o esforço de legitimação pela história que coloca em lugar da gênese conceitual a gênese temporal O que deve ficar claro é o fato de as leis positivas terem significado e utilidade de acordo com as circunstâncias é dizer possuem sim um valor histórico e são transitórias Para Hegel o domínio do direito é o espírito em geral Seu ponto de partida está na vontade livre a liberdade constitui a sua substância e o seu destino de sorte que o sistema do direito é em suas palavras o império da liberdade realizada Mas o que é a vontade O que ela contém Hegel aponta três elementos e demonstra que a vontade confundese com o Eu O primeiro é a pura indeterminação ou a pura reflexão do Eu em si mesmo É o puro pensamento de si mesmo a infinitude ilimitada da abstração e da generalidade absolutas É em outras palavras a possibilidade de se abstrair de todas as determinações a própria liberdade do intelecto ou como dizia Hegel a liberdade do vazio O segundo elemento é a passagem da indeterminação indiferenciada à diferenciação à elaboração de uma determinação específica que passa a caracterizar um conteúdo e um objeto É a afirmação de si mesmo como determinado pela qual o Eu entra na existência em geral e se particulariza Esse elemento particular não nega o anterior universal eis que nele se encontra contido O terceiro elemento ressalta Hegel é a vontade como unidade dos dois anteriores é a particularidade refletida sobre si e que assim se ergue ao universal Em suma é a individualidade Mais uma vez como visto temos uma estrutura triádica que perfaz uma conciliação de opostos característica do método dialético hegeliano Vê ele a autodeterminação do Eu a Vontade como o posicionamento do Eu diante de sua negação sem deixar de ser ele mesmo Assim o diz o filósofo O Eu determinase enquanto é relação de negatividade consigo mesmo Tanto assim que esclarece toda consciência se concebe simultaneamente como universal acima de toda e qualquer limitação externamente oponível e como particular provida portanto de um certo objeto de um certo conteúdo de um certo fim Ambas as categorias o universal e o particular todavia são apenas abstrações o que existe de fato ou na linguagem de Hegel o que é concreto e verdadeiro é a integração do particular ao universal isto é a unidade formada por ambos Como já mencionado enfim na filosofia de Hegel o Direito é constituído pelo fato de uma existência em geral ser a existência de uma vontade livre o Direito é a liberdade em geral como Ideia Ao trazer tal definição no 29 de sua Filosofia Hegel formula uma crítica à concepção de direito de Kant a qual afinal se funda na ideia de contrato social de Rousseau com efeito Kant também concebe a liberdade como elemento central do Direito definindoo como a limitação do livrearbítrio próprio a fim de que esteja ele de acordo com o livrearbítrio de cada um segundo uma lei geral A crítica de Hegel está em que a racionalidade numa tal concepção aparece apenas como elemento de limitação constitui uma determinação negativa e não como razão imanente Com efeito para ele o Direito é algo de sagrado precisamente porque é o conceito absoluto da liberdade consciente de si As diferentes formas de Direito assim devemse às diferentes fases por que passou o conceito de liberdade Para Hegel o que é racional é real Isso trouxe problemas ao paradigma do direito natural de acordo com o qual o direito natural engendraria o deverser pois ser e deverser em Hegel são a mesma e única coisa A racionalidade do processo histórico é que explica o real daí a quebra daquele paradigma A evolução da ciência também contribuiu nesse sentido ao demonstrar não ser imutável a natureza O HOMEM NÃO É mais do que a série dos seus atos A necessidade a natureza e a história não são mais do que instrumentos da revelação do Espírito Georg Hegel O DECLÍNIO DO RACIONALISMO O idealismo romântico na Alemanha Como vimos a Alemanha foi berço das principais correntes recentes da filosofia representadas por Kant e Hegel ambos resistentes ao racionalismo Também foi berço do movimento artístico que ficou conhecido como Romantismo estética que tomou conta de todas as artes e geograficamente por toda a Europa e pelas Américas E por que o movimento romântico alemão foi tão importante Porque embora a teoria iluminista fosse bonita especialmente no quesito liberdade a conjuntura alemã do final do século XVIII não permitia a sua aplicação prática A Alemanha era ainda um amontoado de Estados reinos principados ducados e condados sem a coordenação de um governo central forte e ainda sujeita a guerras internas Em muitos pontos da região ainda existia o regime de servidão num feudalismo obsoleto que o exemplo da Revolução Francesa não tinha sido capaz de eliminar A tentativa de Otto von Bismarck de unificação dos Estados numa só Alemanha esbarrou na indisposição de Napoleão III que achava que estaria sendo criado um oponente poderoso demais na Europa a desafiar a sua hegemonia Entretanto as tropas prussianas tinham acabado de vencer a Áustria e estavam tão motivadas que não tiveram maior dificuldade em marchar sobre a França e cercar a cidade de Paris Napoleão III assinou a rendição A vitória prussiana acabou sendo responsável pelo fim do império francês e a consequente proclamação da Terceira República da França em 1871 Esse era o ambiente político da Europa no final do século XVIII A outra questão decorrente dessa situação política dizia respeito à supremacia da razão O racionalismo de caráter pragmático e de aplicabilidade prática servia de instrumento para governos totalitários como fundamentação filosófica Kant em sua Crítica da razão pura criticou o racionalismo exacerbado que podia levar líderes de má intenção a causar guerras e a subjugar pessoas O privilégio que a filosofia kantiana emprestava à liberdade motivou muitos pensadores de sua época a rever o racionalismo e revendoo optar por uma estética de conhecimento mais amena mais humana e mais tolerante A Inglaterra já ensaiava uma literatura romântica em 1793 com William Blake e pouco depois com Edward Young Coleridge e Wordsworth Na França René de Chateaubriand e Victor Hugo iriam na direção romântica por inspiração da Revolução Francesa Mas foi mesmo na Alemanha país das grandes universidades Tübingen Colônia Leipzig Jena Heidelberg Berlim Frankfurt que o idealismo romântico começou a ser definitivamente desenhado num retorno à essência humana da sensibilidade não sufocada pela razão Goethe com o livro O sofrimento do jovem Werther de 1774 dava um passo gigantesco no lançamento dessa corrente Em 1785 Schiller escreveria Ode à alegria que outro romântico alemão Ludwig van Beethoven musicou em 1824 como a famosa Sinfonia n 9 em ré menor contendo em um de seus movimentos uma parte do texto de Schiller O grande mentor do romantismo alemão porém foi Johann Gottfried von Herder um pesquisador da literatura alemã que escreveu entre 1766 e 1767 o livro Fragmentos sobre a literatura alemã moderna clamando os autores germânicos a produzirem uma literatura genuinamente nacional questionava o retorno à estética dos antigos gregos que imperava na Europa NA TANGÊNCIA DA FILOSOFIA Charles Darwin e a evolução das espécies Uma das teorias de maior impacto sobre a questão da natureza e portanto a sua validade como fundamento de várias vertentes da filosofia foi a doutrina do britânico Charles Darwin consolidada em dois livros Origem das espécies 1859 e Origem do homem 1871 Charles Darwin 18091882 pesquisou durante cinco anos espécimes da fauna e da flora nas ilhas Galápagos que ficam a 1000 km de distância do litoral do Equador Tinha 26 anos quando iniciou a expedição a bordo do navio Beagle Reuniu coleções de amostras de rochas plantas e animais fósseis e vivos de todos os lugares por onde passou inclusive no Brasil e as enviou para a Inglaterra Quando voltou estudou cada uma e reuniu suas observações no livro que ia sacudir os conceitos científicos do seu tempo com relação à origem da vida na Terra Foi combatido pela Igreja que considerava que as espécies criadas por Deus eram perfeitas e imutáveis Mas praticamente a totalidade dos cientistas o aplaudiu embora reconhecendo algumas inconsistências em seu trabalho No entanto demoraria cerca de um século para que sua doutrina fosse universalmente aceita Basicamente concluiu que as espécies que sobrevivem são aquelas que conseguem se adaptar às circunstâncias do ambiente Outra conclusão é de que o homem descende diretamente do macaco Suas pesquisas tiveram influência sobre o naturalismo literário movimento que se posicionou contra o Romantismo Mas a importância de Charles Darwin para o presente livro reside principalmente na sua influência sobre as ciências jurídicas A partir das conclusões do darwinismo o direito passou a ser considerado um sistema evolutivo como a ciência da vida O novo modelo legal contrariando o anterior tornavase sistemático a codificação propiciou isso e foi sendo organizado segundo uma lógica dedutiva em que o universal podia ser aplicado ao particular Precursores da teoria da evolução natural Antes de Charles Darwin outros pesquisadores contribuíram grandemente para a história natural entre eles o naturalista Georges Buffon e o biólogo JeanBaptiste de Monet O francês GeorgesLouis Leclerc conde de Buffon 17071788 membro da Academia de Ciências era tão interessado em ciências naturais que o rei Luís XV de França o nomeou intendente do Jardim do Rei em Paris Buffon transformou o jardim em um verdadeiro laboratório da vida e chegou à seguinte conclusão A natureza não precisa de Deus para criar a vida Publicou importantes trabalhos sobre a classificação biológica utilizando a metodologia desenvolvida por Carl Lineus 17071778 e que é usada até hoje Considerase que o naturalista francês JeanBaptiste de Monet que ficou conhecido como o cavalheiro de Lamarck tenha sido o primeiro a usar o termo biologia em 1802 Nascido em 1744 dedicouse a comparar fósseis com animais vivos Seus estudos tiveram grande influência sobre a genética moderna Isso porque afirmava o autor antes mesmo de Darwin que as espécies mudam conforme muda o meio por necessidade de adaptação e que seus novos caracteres eram herdados pelas gerações subsequentes JeanBaptiste também é considerado o idealizador do moderno conceito de museu no sentido de um local patrocinado onde espécies permanecem organizadas sob a guarda de especialistas Morreu em 1829 na mesma época em que Darwin iniciava suas viagens de pesquisa As ideias do cavalheiro de Lamarck só foram contestadas pelos geneticistas da escola russa a partir de 1930 O mais renomado representante da escola russa de genética foi Trofim Lysenko que viveu entre 1898 e 1976 Ficara famoso durante o período da Grande Fome Soviética na década de 1930 propondo técnicas de melhoria da produtividade das lavouras que incluíam entre outras o rodízio de culturas em contradição às técnicas ortodoxas de Mendel o pai da genética O austríaco Gregor Mendel nasceu em 1822 Chegou a ser monge agostiniano mas abandonou a carreira para estudar ciências na Universidade de Viena Ficou célebre entre outras descobertas por uma série de experiências que fez com ervilhas para entender como as características hereditárias são passadas de geração para geração Os resultados foram publicados em 1866 Suas descobertas ajudariam a derrubar a tese dos caracteres adquiridos de Lamarck quase 100 anos depois Oliver Wendell Holmes Jr e o realismo jurídico O realismo jurídico que alguns autores chamam de pragmatismo jurídico alcançou o ápice na obra de Oliver Wendell Holmes Jr que se resume a dois livros The Common Law e The Path of the Law Esse jurista ficou famoso pelas suas sentenças que contrariavam o formalismo Era o que se costuma chamar de pessoa do contra No entanto suas decisões acabavam por se mostrar acertadas Costumava recomendar aos juízes que estudassem economia porque acreditava que as decisões em geral têm como embasamento motivações políticas sociais e principalmente econômicas Para ele a lei e de resto a Constituição precisava ser interpretada de maneira flexível porque achava que as gerações e as demandas se modificavam com o tempo e que o direito não pode estar eternamente atrelado ao passado Oliver Wendell Holmes Jr e suas circunstâncias Oliver Wendell Holmes Jr é considerado o herói americano do Direito Apesar disso foi criticado especialmente pelos católicos por concordar com a noção de darwinismo social em que os fortes sobrevivem e os fracos perecem Atuando como juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos era contrário ao formalismo o que lhe valeu a antonomásia de o grande dissidente Oliver Wendell Holmes Jr nasceu em 1841 Lutou pelo Norte na guerra civil norteamericana tendo chegado ao posto de tenente defendendo o abolicionismo Filho de médico o pai ensinou medicina em Harvard mesmo casado viveu com o pai e à custa dele até os 30 anos Cursou Direito em Harvard universidade onde era tradição familiar estudar Durante o curso realizava encontros festivos em casa com jovens intelectuais da época como Charles Pierce e John Chapman Gray Era um leitor disciplinado Estudou os principais pensadores desde Platão e Aristóteles a Montesquieu Hume Locke Hobbes e os contemporâneos como John Stuart Mill Destacouse na faculdade e foi convidado pelo chefe do Departamento de Direito Charles Eliot a lecionar na mesma escola Aceitou mas queria mesmo era ser juiz da Suprema Corte em Massachusetts o que conseguiu em 1882 por indicação uma vez que não há concurso para juízes nos Estados Unidos Em 1902 Holmes foi elevado a juiz da Suprema Corte em Washington pelo presidente Theodore Roosevelt Exerceu o cargo até 1932 quando pediu aposentadoria Morreu em 1935 apenas três anos depois Oliver Wendell Holmes Jr e suas ideias Esse filósofo pensava que o Direito não é simplesmente o exercício de seguir a lógica da letra da lei mas uma análise das experiências e das condições das partes O juiz que julga apenas de acordo com a lei segundo ele não passa de apenas um prático de alguém que segue receita ou método E mais incisivo ainda dizia no início de um de seus artigos publicado na Harvard Law Review edição de número 457 que há predição da incidência do poder público por meio do auxílio dos tribunais Essas opiniões e algumas de suas sentenças desfavoráveis ao governo levaram o presidente Theodore Roosevelt a decepcionarse com ele Mas como o juiz da Suprema Corte depois de aprovado pelo Senado tem cargo vitalício o presidente nada podia fazer a não ser torcer os bigodes Holmes era um liberal Segundo Clarecen Morris da Escola de Direito da Universidade da Pensilvânia era um aristocrata que não compartilhava das opiniões comerciais da classe média e que acreditava que os tribunais não deviam impor ao povo suas teorias econômicas e sociais40 Oliver Wendell Holmes Jr e sua influência no direito Holmes dizia que um homem mau diante do tribunal não se importa com aqueles a quem prejudicou importase apenas em prever o que os tribunais decidirão ou seja nas consequências que sofrerá Holmes faz a comparação para condenar aqueles que praticam a advocacia buscando prever qual será a opinião dos juízes conseguindo assim preparar defesa prévia Essa rejeição à separação entre moralidade e direito está presente em grande parte dos mais de 1000 votos que Holmes prolatou Discordava da ideia de que as pessoas respeitam o direito apenas por temer o que lhes acontecerá se não cumprirem a lei No livro The Common Law Holmes defendeu que julgar não é simplesmente aplicar um precedente porque isso seria permanecer preso ao passado um formalismo jurídico acomodado então em voga nos Estados Unidos No livro The Path of Law Holmes discute a validade do direito se ele se transforma em mecanismo baseado em posturas previsíveis do julgador Segundo ele os julgados de um determinado período representam o conjunto do direito disponível naquele período o que não significa que continuem válidos para outro momento Quem se beneficia da previsão é o fora da lei41 Tem sido pensado que o motivo determinante da punição seja a reabilitação do criminoso isto é o objetivo é de impedir que o criminoso cometa outros crimes e que as pessoas em geral cometam crimes similares e isto é uma retribuição Poucos iriam sustentar que o primeiro destes propósitos é apenas um E se fosse assim todo prisioneiro deveria ser colocado em liberdade assim que ficasse claro que ele jamais voltaria a cometer o mesmo crime e se não há cura nem remédio para o prisioneiro ele nem mesmo deveria ser punido Certamente seria difícil conciliarmos a pena de morte com essa doutrina Oliver Wendell Holmes Jr Jerome Frank e o americanismo O realismo jurídico norteamericano teve outro representante no período que se concentra na década de 1930 quando os Estados Unidos pela via do cinema difundia a sua maneira de enxergar o mundo o American way of life Jerome Frank e suas circunstâncias Jerome Frank desempenhou papel importante no movimento do realismo jurídico Publicou vários livros em que enfatiza as forças psicológicas que atuam sobre as questões legais Jerome New Frank nasceu em Nova York em 1889 Filho de advogado graduouse em Direito pela Universidade de Chicago em 1909 com apenas 20 anos e com as melhores notas da escola Começou a advogar em 1912 e em 1919 já era sócio da firma especializandose em reorganizações corporativas Em 1930 depois de passar por seis meses de terapia publicou A lei e a mente moderna livro que propunha que as decisões judiciais eram motivadas primariamente pela influência de fatores psicológicos sobre julgamento individual Mudouse para Nova York também para advogar e para atuar como pesquisador da Escola de Direito da Universidade de Yale onde conviveu com Karl Llewellyn e Roscoe Pound com esse último teve polêmicas famosas De tendências esquerdistas foi preterido seguidamente para alguns cargos públicos mas sua amizade com William O Douglas lhe valeu um cargo no governo Em 1941 foi levado pelo presidente Roosevelt para a Suprema Corte norte americana onde serviu até morrer em 1957 Jerome Frank e sua influência no direito Foi considerado juiz competente baseando suas decisões em posições liberais sobre questões de liberdade civil Manteve acesos debates sobre preceitos de Common Law Era contrário a qualquer forma de censura de ideias ou imagens e seus pareceres contribuíram para fortalecer as posições da Suprema Corte no mesmo sentido Participou do trio de juízes que julgou o caso do casal Rosemberg Julius e Ethel acusado de espionagem tendo votado pela pena de morte embora se diga que em particular tivesse aconselhado um dos outros juízes a não votar pela pena máxima Em relação ao terceiro réu Morton Sobell engenheiro da General Electric acusado de enviar informações atômicas para a então União Soviética Frank sugeriu à Suprema Corte que não aplicasse a pena de morte para crimes de traição Em 1942 escreveu um livro chamado Se os homens fossem anjos em que defendia os programas d o New Deal do presidente Roosevelt programas que buscavam combater os efeitos da grande depressão econômica Em 1945 publicou Destino e liberdade criticando as posições teóricas do marxismo e negando que as sociedades seguiam qualquer progresso estrito e insistindo em que o povo era livre para moldar o desenvolvimento da própria sociedade Em 1946 ministrou em Yale um curso que enfatizava o papel que a falibilidade humana e o partidarismo desempenhavam nos processos em tribunal Seu trabalho mais importante para efeito de filosofia do direito foi Tribunais em julgamento de 1949 que enfatiza as incertezas e a falibilidade dos processos judiciais Seu último livro Inocente relatando casos de condenações erradas por tribunais foi concluído por sua filha Barbara e publicado depois de sua morte DEBATES EM TORNO DA FILOSOFIA DE KANT Algumas correntes inspiradas na filosofia de Immanuel Kant foram concebidas no período que compreende o final do século XIX e o início do século XX Kant idealista opunhase ao realismo que fundamentava a visão corrente da filosofia O Realismo afirmava que o objeto existe quer o indivíduo tenha conhecimento dele ou não Era basicamente a noção de independência entre a realidade e a consciência oposta ao Idealismo que sustentava que as coisas reais só existem quando são captadas e interiorizadas pelo indivíduo O Realismo na filosofia teve forte repercussão nas artes principalmente na literatura com uma temática que enfatizava o cotidiano das pessoas Esse movimento artístico reagia ao Romantismo buscando a realidade objetiva e rejeitando características românticas como a imaginação e a fuga da realidade Mesmo depois de Kant surgiram filósofos na própria Alemanha e em outros países que ainda apoiavam o Realismo preconizando que embora o fenômeno mental das coisas exista como ideia a priori a coisa em si existe fora da consciência do sujeito São muitos os filósofos que defendiam essas ideias Entretanto tendo em vista que seu pensamento não está diretamente ligado ao tema do presente livro que é a filosofia do direito limitarnosemos a citar alguns poucos apenas a título de registro São eles Friedrich Heinrich Jacobi Rudolf Hermann Lotze Friedrich Ernst Daniel Schleiermacher e Johann Gottfried von Herder Destacamse o dinamarquês Sören Kierkgaard e os alemães Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche Sobre esses últimos falaremos mais detidamente a seguir Sören Kierkgaard um crítico da razão Sören Kierkegaard pesquisou formas de encontrar o homem como indivíduo e não as verdades de uma realidade universal da qual o homem faz parte Nessa busca achava mais importante o subjetivismo do que a objetividade e valorizava a reflexão de cada homem sobre si mesmo Considerava que o homem era dotado de liberdade e responsabilidade e que não era um ser pré definido ao nascer Ao contrário à medida que o homem vive existe adquire novas experiências e a partir delas redefine seu pensamento Chamou a atenção do mundo pela primeira vez com o livro Ou isso ou aquilo de 1843 em que rejeitava uma perspectiva determinada pela sensibilidade Costumava dizer que nada tenho em minha vida que ponho diretamente em jogo cada vez que uma dificuldade aparece Foi grande crítico do racionalismo de Hegel discordando da teoria de que o homem seja resultado do meio em que vive Por isso é considerado um dos primeiros filósofos do Existencialismo movimento que ganharia destaque na França mais tarde com JeanPaul Sartre Dizia que a teoria de Hegel era puramente intelectual e transformava o homem numa coisa pública numa instância coletiva retirando dele o arbítrio a eleição a escolha Afirmava que ao contrário o homem construía o seu saber por meio de atitudes éticas estéticas e religiosas Para Kierkgaard em primeiro lugar estava o indivíduo depois o sistema E o indivíduo como ser único e inigualável evoluiu não por causa da sociedade mas de seus próprios esforços e movido pelas circunstâncias de sua existência Kierkgaard e suas circunstâncias Sören Kierkgaard foi fundador da escola existencialista na filosofia Ficou famoso pela intensidade com que rejeitou as ideias de Hegel Chegou ao exagero de argumentar que a razão não era essencial para a vida do homem mas sim os sentimentos as crenças e a fé Seu pensamento seria retomado por JeanPaul Sartre na França Sören Kierkgaard nasceu em Copenhague em 1813 Vindo de família luterana estudou teologia e filosofia na Universidade de Copenhague Tinha 25 anos de idade quando morreu seu pai e essa perda realçou algumas características que ele já carregava Transformouse num homem melancólico depressivo e solitário Três anos depois concluiu sua tese de doutorado sobre o conceito da ironia em Sócrates na qual questionava essa característica presente no romantismo então em voga Escreveu centenas de textos mas não chegou a reunir sua obra numa só edição porque dizia não acreditar em sistemas filosóficos Usava pseudônimos como Victor Eremita Johannes de Silentio e AntiClimacus Morreu em 1855 em razão de uma queda Considerava a teologia a mãe de todas as ciências mas questionava fortemente as questões da Igreja especialmente no que diz respeito ao determinismo cristão e na crença corrente de que os fiéis deviam ser conduzidos pelos líderes religiosos Defendia um cristianismo baseado na fé e na conversão e não no temor e no castigo Kierkgaard e suas ideias Questionava o pensamento de Descartes que colocava a dúvida como método mas ao mesmo tempo discordava da ideia de que a filosofia poderia reivindicar plena certeza Para ele o individual sobrepunhase ao geral portanto não haveria verdades eternas Dizia Todo conhecer essencial concerne à existência ou apenas o conhecer cuja relação para com a existência é essencial é conhecimento essencial O conhecer que voltado para dentro na reflexão da interioridade não atinge a existência é essencialmente visto conhecimento fortuito essencialmente visto seu grau e abrangência são indiferentes Como se vê defendia o autoconhecimento ao estilo de Sócrates e pregava que o sofrimento é necessário para atingilo Sua filosofia tem forte base religiosa embora tenha combatido a igreja oficial e seus sistemas Acreditava que o homem enfrenta três esferas da existência estética ética e religiosa Seus escritos têm sido estudados atualmente especialmente por pesquisadores da Linguística e da Crítica Literária A MAIORIA DOS HOMENS PERSEGUE o prazer com tanta impetuosidade que passa por ele sem vêlo Sören Kierkegaard Arthur Schopenhauer o pessimista O romantismo gerou uma corrente secundária o irracionalismo também chamado voluntarismo cujo princípio original era oporse ao racionalismo de Hegel Mas essa nova corrente acabou rebelando se ao próprio romantismo alemão Seu representante principal foi Arthur Schopenhauer que defendia que a razão não era o valor absoluto mas sim o instinto e a irrefreável vontade humana Para ele a vontade é a intuição do Eu e pelo vocábulo vontade ele englobava o desejo a esperança o amor o sofrimento e conduz todas as iniciativas humanas inclusive o dispêndio de energia física A vontade levaria inexoravelmente ao sofrimento e à morte Schopenhauer foi possivelmente o maior pessimista da filosofia na afirmação de que as atitudes do homem guiadas pela vontade irracional acabam por leválo ao pecado O pecado na opinião do filósofo é necessário para a purificação e a única forma de limitar a vontade é por meio do saber do conhecimento embora este não consiga suplantar a vontade Esse pensamento influenciaria pouco mais tarde outro filósofo alemão Friedrich Nietzsche Arthur Schopenhauer colocou o foco de suas ideias portanto no existir e não no ser A diferença é essencial porque envolve a vontade de viver uma força que leva o homem à evolução gradual O resultado desse pensamento é um acentuado pessimismo em relação à existência presente Schopenhauer achava que o homem vai sempre melhorar ser mais perfeito do que é hoje Essa ideia seria retomada pelos existencialistas Schopenhauer e suas circunstâncias Arthur Schopenhauer centra a existência humana sobre a vontade Diz que a vontade ou o instinto é cega e que o homem não a consegue dominar Sua obra principal foi O mundo como vontade e representação publicado em 1819 Teve grande influência no pensamento de Sigmund Freud Foi um pessimista Criticou o romantismo da Alemanha de sua época e a filosofia racionalista Propôs uma revisão da filosofia de Kant apresentando um novo sistema que coloca as representações em quatro planos lógico material psíquico e causal Arthur Schopenhauer nasceu em 1788 na cidade alemã de Dantzig que hoje pertence à Polônia com o nome de Gdansk Veio de família rica e estudou em boas escolas como a Universidade de Berlim onde passou a lecionar em 1820 Depois de viver em alguns lugares da Europa fixouse em Frankfurt Ali produziu grande parte de suas obras e alcançou prestígio As mais importantes obras de sua fase madura são as seguintes Sobre a vontade na natureza de 1836 Sobre os dois problemas fundamentais da ética de 1841 e Parerga e parigômena aforismos sobre a sabedoria da vida de 1847 Morreu em 1860 Schopenhauer e suas ideias Arthur Schopenhauer recebeu grande influência do pensamento de Kant embora se afaste dele em muitos momentos Entende que o homem compreende apenas as representações do real e que só por meio da vontade se aproxima da realidade em si A vontade para Schopenhauer é uma tirania natural e o homem só consegue libertarse do seu domínio por meio de três estágios espirituais O primeiro é a contemplação condição estética que só pode ser atingida por alguns poucos espíritos iluminados O segundo estágio é a solidariedade quando o homem atinge uma identificação com o sofrimento e a dor de todos os outros homens é uma afirmação ética O terceiro estágio que só os santos conseguem atingir é o despojamento a completa indiferença em relação ao mundo material QUANTO MAIS ELEVADO é o espírito mais ele sofre Arthur Schopenhauer Friedrich Nietzsche e o poder Admirador confesso de Schopenhauer de quem se considerava sucessor Friedrich Nietzsche analisou profundamente a cultura grega e sua influência sobre o pensamento ocidental ao longo dos séculos Buscou nos clássicos principalmente gregos os elementos de base da sua filosofia Foi ele quem propôs a ideia dos dois elementos básicos da cultura o espírito apolíneo e o espírito dionisíaco o primeiro relacionado com o deus Apolo e seus apanágios que são a harmonia e a razão e o segundo relacionado com o deus Dionísio cujos apanágios são a anarquia a desordem e a alegre irresponsabilidade Nietzsche e suas circunstâncias Friedrich Nietzsche defendia a primazia da vontade como condição humana seguindo as ideias de Arthur Schopenhauer Desenvolveu a teoria do superhomem aquele que escapa da condição de homem comum por meio do controle e submissão dos instintos Não acreditava em vida após a morte e dizia que o único mundo real é este em que vivemos Para ele o mundo repete sempre as mesmas condições e situações que o homem deve entender e superar se puder é a teoria conhecida como Eterno Retorno Friedrich Wilhelm Nietzsche embora originário de uma família luterana nasceu em 1844 na Alemanha rejeitou a fé cristã já na adolescência Mesmo assim estudou teologia na Universidade de Bonn dedicandose também à filologia Nesse período tomou contato com a obra de Arthur Schopenhauer cujas ideias passou a seguir Aos 24 anos já era professor na Universidade da Basileia na Suíça Foi voluntário na guerra francoprussiana de 1870 Testemunhou os horrores e sofrimentos da guerra que ficaram marcados em sua vida e em sua obra Passou a sofrer de crises nervosas que alguns historiadores acham que pode ter sido câncer no cérebro Chegou a ser internado num manicômio em Jena Por conta de todo esse quadro em 1879 foi obrigado a abandonar a cátedra na universidade A partir de 1882 dedicouse a escrever o livro que se transformaria em sua obraprima Assim falou Zaratustra Em 1888 escreveu sua autobiografia intitulada Ecce Hommo como alguém se torna aquilo que é Pouco depois teve uma crise de loucura da qual jamais se recuperaria Morreu no dia 3 de janeiro de 1889 Seu livro foi utilizado como base teórica do nazismo Vários estudiosos defendem que o texto original foi alterado para agradar os adeptos do partido alemão da socialdemocracia Nietzsche e suas ideias Nietzsche era um crítico radical do cristianismo que considerava junto com o budismo a religião da decadência Chegou ao extremo de dizer essa que talvez seja sua mais famosa frase Deus está morto Defendia uma moral cujo objetivo era o poder Por meio desse poder o homem suplantaria o seu condicionamento à vontade à emocionalidade e portanto ao espírito dionisíaco ao contrário do que determinava a Igreja Afirmou que tanto a Igreja quanto os filósofos que defendiam uma moral tradicional preconceituosa porque baseada no ressentimento e na culpa e universal como Kant e Hegel apenas contribuíam para mascarar a dolorosa realidade e assim evitar que o homem alcançasse a visão completa do que é a vida No entanto confessa que apenas alguns homens especiais seriam capazes de atingir tamanha compreensão e superação A esses homens chamou de superhomens aqueles capazes de se despir completamente de preconceitos e ideias prontas e autênticos a ponto de serem capazes até de crueldades para satisfazer a sua vontade de poder Esse despojamento de preconceitos por um lado e de normas por outro lado pode ser considerado libertário e entrava em oposição ao racionalismo que Nietzsche considerava ser uma prisão Costumava dizer numa crítica ao romantismo que o amor é o estado no qual os homens têm mais probabilidades de ver as coisas tal como elas não são Contrariando o pensamento de Locke Hume e Voltaire esse filósofo alemão afirmava junto com Immanuel Kant que ao homem comum não era dado o direito de rebelarse Portanto negava os conceitos de democracia e de socialismo Do mesmo modo negava os governos O que defendia era a anarquia aristocrática em que o poder estaria nas mãos dos superhomens NÓS HOMENS DO CONHECIMENTO não nos conhecemos de nós mesmos somos desconhecidos Friedrich Nietzsche MUNDO NOVO O MATERIALISMO O materialismo Na filosofia o materialismo representa a doutrina filosófica de que tudo o que existe é matéria A matéria é a única realidade a substância de todas as coisas e é gerada ou degenerada em conformidade com leis físicas Sendo assim a matéria está em permanente transformação Consequentemente os materialistas negam a alma a divindade ou qualquer princípio inteligente independente da matéria Também acham que os sentimentos são atributos da matéria Parmênides na Grécia Antiga pode ter sido o primeiro materialista da história da filosofia Para ele os fenômenos deviam ser explicados pela observação da realidade e não por crenças ou mitos religiosos Com essas mesmas teses mas sob formas diferentes o materialismo ressurgiu na Europa no século XVI com Thomas Hobbes Apesar de todo o idealismo de que se revestiu a filosofia depois da Idade Média trazendo o indivíduo para o centro do pensamento filosófico e apesar de todo o idealismo concretizado pela corrente estética do romantismo as ciências haviam entrado numa correnteza de progresso que não permitia ao homem remeterse ao passado como fizeram os renascentistas Ao contrário do romantismo que primava pela exaltação do espírito o desenvolvimento das ciências da natureza ofereceu uma visão mais materialista do mundo Um materialismo que de qualquer modo já existira em Thomas Hobbes mas ganhou adeptos ao longo dos séculos que se seguiram e foi uma corrente de pensamento que conviveu com outras correntes da filosofia Um dos mais importantes seguidores de Hobbes no materialismo filosófico foi Julien Offray de La Mettrie físico e filósofo francês do século XVIII Seu principal livro publicado em 1747 foi O homemmáquina considerado uma das obras mais radicais do Iluminismo francês Nele afirma o autor que o homem é apenas um artefato mecânico que funciona através de processos metabólicos Como médico pretendeu conhecer o ser humano fisiológica e psicologicamente Desenvolveu teorias materialistas para fundamentar sua própria filosofia médica em relação à saúde pública Seus escritos objetivavam pela sátira trazer iluminação intelectual aos médicos de sua época Seu primeiro trabalho filosófico foi A história natural da alma de 1745 uma leitura materialista da obra de John Locke No livro argumenta que a alma humana pode estar completamente identificada com as funções físicas do corpo e que a fisiologia confirma a existência da alma Considerado ateu seus livros foram proibidos e ele foi banido para a Holanda onde permaneceu até morrer em 1751 Outros materialistas importantes foram Denis Diderot o afamado enciclopedista que teve um desempenho importante na Revolução Francesa Etienne Bonnet Paul Heinrich Dietrich von Holbach e Claude Adrien Helvetius Todos eles questionavam o idealismo puro como explicação da realidade mas contrapunhamse às análises áridas e secas dos mecanicistas e também não aceitavam o império da razão A participação alemã na filosofia foi crucial como vimos especialmente pelas propostas de Kant Fichte Schelling e Hegel Mas também da Alemanha veio contribuição do materialismo defendido por Ludwig Feuerbach por exemplo Ele e seus seguidores chegaram ao extremo de negar a existência do espírito Ludwig Feuerbach e o materialismo dialético O materialismo dialético ou científico surgiu na Alemanha do século XIX Derivou do idealismo de Hegel pela interpretação racionalista de Ludwig Feuerbach Feurbach e suas circunstâncias Ludwig Feuerbach foi o criador do materialismo dialético Materialismo porque considerava a natureza como princípio filosófico e dialético porque usava a dialética de Hegel como método uma tese continha em si uma antítese o que fazia chegar à síntese Negava a existência da alma e negava a existência de Deus que considerava ser apenas uma exteriorização do homem Ludwig Andreas Feuerbach foi um filósofo alemão nascido na Baviera em 1804 Estudou nas Universidades de Heidelberg e de Berlim Foi aluno de Hegel Em 1830 publicou Pensamentos sobre a morte e a imortalidade em que rejeita a ideia da imortalidade individual da alma Por causa do livro teve que abandonar a carreira de professor do ensino oficial Mas como a família da mulher era rica pôde dedicarse a escrever durante quase quinze anos sem preocupações financeiras Em 1859 um incêndio destruiu a fábrica da família e ele teve que mudarse para Nuremberg onde viveu modestamente até morrer em 1872 O materialismo dialético de Feuerbach foi instituído como doutrina por Lênin no início do século XX42 Essas ideias foram posteriormente adaptadas por Karl Marx que acrescentou a elas as causas econômicas para a elaboração do materialismo histórico Segundo Marx a história do homem é a da luta entre as diferentes classes sociais determinada pelas relações econômicas de cada época Feuerbach e suas ideias Hegel afirmava que a natureza era a concretização da ideia já Feuerbach afirmava que a natureza era a representação da ideia Portanto para esse autor a natureza matéria é a realidade que cria representações Transportando o raciocínio para a filosofia religiosa concluiu que Deus não passava de uma fantasia da mente uma invenção da Igreja para afastar os fieis da realidade O materialismo científico substitui Deus pela razão ou pelo homem e pregava que o pensamento é apenas um produto do cérebro A intenção de Feuerbach ao criar o materialismo dialético era ter um instrumento que permitisse compreender a realidade e se possível transformála O SER ABSOLUTO o Deus do homem é o próprio ser do homem Ludwig Feuerbach A SITUAÇÃO MATERIAL em que o homem vive é o que o cria Ludwig Feuerbach LINHA DO TEMPO A SÍNTESE NA FILOSOFIA Ano 1781 Immanuel Kant escreve sua obra fundamental Crítica da razão pura para discutir os princípios e limites do entendimento Ano 1791 Promulgação da Constituição da França como resultado da Revolução Francesa Ano 1793 A literatura romântica dá seus primeiros passos na Inglaterra com William Blake Ano 1804 Promulgado por Napoleão Bonaparte o Código Civil francês Ano 1807 Johann Gottlieb Fichte divulga Discursos à nação alemã defendendo o nacionalismo numa época em que a Europa estava sob o domínio do império de Napoleão Ano 1807 Georg Wilhelm Friedrich Hegel publica A fenomenologia do espírito Ano 1809 Friedrich Schelling publica Investigações filosóficas sobre a essência da liberdade humana Ano 1814 Thibaut publica o livro Da necessidade de um direito civil geral para a Alemanha Ano 1814 Savigny publica o livro Da vocação de nosso tempo para a legislação e a jurisprudência declarandose contra a codificação do direito alemão Ano 1815 Merlin Douai publica na França o Repertório de jurisprudência que analisava o Código de Napoleão comparandoo com o antigo direito francês Ano 1819 Arthur Schopenhauer escreve O mundo como vontade e representação Ano 1821 Hegel publica a obra Elementos de filosofia do direito Ano 1822 Friedrich Nietzsche inicia sua obraprima Assim falou Zaratustra Ano 1830 Ludwig Feuerbach o criador do materialismo dialético publica Pensamentos sobre a morte e a imortalidade em que rejeita a ideia da imortalidade individual da alma Ano 1838 Georg Friedrich Puchta publica o Manual das Pandectas em que define a Jurisprudência dos Conceitos Ano 1840 Charles Darwin publica A evolução das espécies Ano 1846 Sören Kierkgaard publica Pósescrito final não científico às migalhas filosóficas Ano 1871 A Prússia vence Napoleão III e determina o fim do império francês e consequente proclamação da Terceira República da França Ano 1884 Rudolf von Ihering cria o conceito da Jurisprudência de Interesses criticando a Jurisprudência dos Conceitos de Puchta Ano 1891 Promulgada a primeira Constituição Republicana do Brasil de espírito liberal Ano 1898 O Japão edita o seu Código Civil Ano 1900 Edição do Código Civil alemão considerado uma evolução do similar francês e que influenciou toda a Europa Ano 1916 Entra em vigor o Código Civil brasileiro que seria substituído somente em 2002 QUINTA PARTE A CRISEdaFILOSOFIA MODERNA A filosofia moderna entrou em crise no século XIX As duas posições dominantes o mecanicismo e o subjetivismo começavam a encontrar opositores de peso Tudo porque a Europa ficou abalada com seguidas guerras no aspecto econômico e social com repercussões na arte e até na religião Iniciava se o império da lógica A França destacouse nesse novo caminho de pensamento com o positivismo fundado por Augusto Comte de que trataremos adiante Nesse período Isaac Newton foi contestado assim como Descartes As pessoas começavam a ter uma nova concepção do universo físico que era uma concepção relativa e consequentemente o universo espiritual também foi colocado em xeque Consequentemente toda a filosofia de Kant seria igualmente contestada UMA IDEIA UNIVERSAL DE JUSTIÇA Todo ideal de justiça depende das conjunturas e das circunstâncias históricas Miguel Reale comenta a crise histórica que se desenrolou ao longo dos séculos XIX e XX ocasionada pelos fatos econômicos e sociais e que pela via do conflito romperam o equilíbrio reinante entre as pautas da justiça e a experiência jurídica Diz ele Podese dizer que desde a eclosão da Primeira Guerra Mundial recrudesceu a atenção de jurisfilósofos e juristas pela problemática da justiça não se podendo afirmar que os incessantes e renovados estudos sobre o grande tema tenha tido a virtude de aplacar as dúvidas imensas que ainda o cercam Penso que pelo menos uma conclusão plausível podemos tirar e de fundamental importância no sentido da inconsistência de qualquer estudo da justiça desvinculado do cenário históricocultural que lhe corresponde Se algo me parece possível afirmar com segurança a esta altura das indagações havidas é o superamento de toda e qualquer doutrina que pretenda oferecernos a um paradigma ideal de justiça de validade universal seja ele concebido à luz da razão ou pretensamente inferido de dados empíricos ou b uma categorização formal de critérios aferidores do que deva ser considerado justo ou injusto c a solução de compreenderse o ordenamento jurídicopositivo com abstração da ideia de justiça43 CAPITAL E TRABALHO O SOCIALISMO Os dicionários definem socialismo como a teoria que defende a posse ou o controle dos meios de produção como o capital e a terra pela comunidade em conjunto sob uma administração que seja orientada para o interesse de todos A primeira versão desse pensamento foi o socialismo utópico surgido no início do século XIX Chamavase utópico em referência ao livro Utopia de Thomas Morus de 1516 porque seus idealizadores imaginavam ser possível eliminar a miséria e reduzir a desigualdade social sem que houvesse conflito entre burgueses e proletários Essas duas classes tinham ascendido em razão da Revolução Industrial e da consequente expansão do capitalismo Principais nomes do socialismo utópico ClaudeHenri de Rouvroy também conhecido como Conde de SaintSimon foi um dos primeiros socialistas utópicos Em 1814 escreveu Da reorganização da sociedade europeia onde lançava a primeira ideia de uma união de países nos moldes em que existe hoje a União Europeia Propunha para acabar com as guerras a criação de um novo regime políticoeconômico baseado no desenvolvimento científico e industrial em que todos os homens tivessem os mesmos interesses e recebessem adequada remuneração pelo seu trabalho Segundo ele a sociedade deveria ser dividida entre os produtores classe trabalhadora capaz de gerar riquezas e os ociosos os capitalistas Esses capitalistas tinham obrigação de assumir responsabilidades sociais para com os trabalhadores SaintSimon é considerado um dos fundadores da Sociologia Participou da Revolução Francesa e sofreu com o subsequente período de terror comandado por Robespierre Defendeu a necessidade do surgimento de uma nova religião que denominou religião da razão Nessa religião utópica os padres seriam substituídos pelos cientistas na condução dos destinos da sociedade Em suas obras SaintSimon afirmava que o progresso da ciência é que determinava as transformações sociais políticas morais e religiosas Augusto Comte o criador do positivismo foi seu secretário durante alguns anos Outro filósofo do socialismo utópico foi Charles Fourier economista que defendia o associativismo e o cooperativismo como formas de organizar as relações econômicas Lançou em 1822 um jornal chamado O Falanstério para defender a ideia de reconstrução da sociedade francesa com base no idealismo de JeanJacques Rousseau Pregava a criação de falanstérios espécie de comunas de produção e moradia cada uma para 1800 pessoas que teriam o tempo dividido entre atividades agrícolas e industriais e atividades de lazer e de aprendizado intelectual Os bens de cada comuna seriam divididos conforme as necessidades de cada membro Do ponto de vista educacional achava que o sistema de ensino devia se adaptar aos talentos e habilidades de cada criança O filósofo mais atuante do socialismo utópico foi o escocês Robert Owen Também defendia o cooperativismo como forma de combater os excessos do capitalismo contra os trabalhadores Criou em 1817 uma empresa para fiação de algodão e implantou um regime de trabalho de dez horas na época as fábricas exigiam dos empregados um expediente de catorze a dezesseis horas diárias Também oferecia assistência escolar à saúde e social aos seus empregados Criou várias comunidades operárias com o conceito de autogestão onde circulavam em vez de dinheiro vales correspondentes ao número de horas trabalhadas Embora tivessem gozado de sucesso por algum tempo essas cooperativas não duraram muito Roberto Owen dedicouse então a organizar associações de trabalhadores matrizes dos atuais sindicatos Em seu livro O novo mundo moral publicado em 1834 usou pela primeira vez a palavra socialismo para designar a sua maneira de pensar O socialismo científico ou socialismo marxista Enquanto os pensadores do socialismo utópico alimentavam a esperança romântica de que os chefes das classes dominantes um dia despertariam para os problemas de miséria e de desigualdade que o capitalismo acarretava e promoveriam então as reformas necessárias para a justiça social os socialistas científicos tinham uma posição mais radical Karl Marx e Friedrich Engels formuladores do socialismo moderno ou socialismo científico viam a revolução como única maneira de o proletariado obter respeito e justiça Analisavam a sociedade capitalista de modo mais crítico e defendiam contra ele ações mais práticas e mais diretas O método dialético aproveitado de Hegel pelos marxistas assevera que não se pode compreender nenhum fenômeno se a sua análise for feita isoladamente de outros fenômenos porque tudo é processo e está em movimento e em transformação Marx não definiu exatamente o que viria depois da sociedade capitalista Mas atreveuse a antecipar que com a elevação do proletariado à condição de classe dominante o Estado iria aos poucos desaparecendo Entre os socialistas não marxistas há os que defendem um socialismo estatal e os que defendem um socialismo corporativo Ambos porém convergem para uma organização da sociedade que garanta aos trabalhadores não apenas os direitos políticos mas também segurança econômica pleno emprego assistência à saúde pelo Estado e redistribuição de renda Friedrich Engels e o materialismo histórico O materialismo histórico estende os princípios do materialismo dialético ao estudo da vida social e ao estudo da história da sociedade A expressão materialismo histórico surgiu em 1877 Foi utilizada por Engels na seguinte afirmação A concepção materialista da história parte da tese de que a produção e junto com ela a troca dos produtos constitui a base de toda a ordem social Esse trecho faz parte do prefácio de sua obra Do socialismo utópico ao socialismo científico A teoria do materialismo histórico passou para a história com o nome de marxismo em homenagem a Karl Marx mas o trabalho de elaboração é de ambos Friedrich Engels e suas circunstâncias Friedrich Engels foi um dos fundadores do socialismo moderno também chamado de socialismo científico cujos princípios delineou inicialmente no livro Esboço de uma crítica da economia política de 1844 Amigo de Karl Marx escreveu com ele o Manifesto Comunista em 1848 e numerosos textos teóricos sobre economia filosofia e política Depois da morte de Marx completou e publicou o segundo e o terceiro volumes de O capital Friedrich Engels nasceu em 1820 na Prússia Alemanha atual numa família burguesa protestante Na juventude integrouse ao grupo Jovens Hegelianos que seguia o conceito dialético de que as mudanças históricas resultam do conflito de ideias opostas que são concluídas numa nova síntese Interpretavam de modo revolucionário a dialética de Hegel porque rejeitavam a doutrina de que o poder devia pertencer ao Estado Nesse grupo conheceu Karl Marx de quem se tornou amigo Ambos romperiam com o grupo em 1844 Rejeitou o cristianismo e tornouse ateu Em 1841 conheceu Moses Hess que o converteu ao comunismo Viveu na Inglaterra ponto central da Revolução Industrial por três anos Lá reuniu material para o livro A situação da classe trabalhadora na Inglaterra publicado em 1845 que exibe o contraste entre a pujança da indústria e a miserável condição dos trabalhadores Passou a escrever sobre as contradições da doutrina da economia liberal e da divisão da sociedade em classes Defendia a revolução social e a eliminação da propriedade privada Fundou com Marx a Liga Comunista em 1847 com a seguinte divisa Trabalhadores de todo o mundo univos Escreveu o livro Princípios do comunismo no mesmo ano e por isso foi indicado ao lado de Marx para elaborar uma declaração política e de princípios do comunismo Essa declaração ficou conhecida como Manifesto do Partido Comunista publicada em 1848 O documento argumenta que o capitalismo transforma em cruas relações mercantis os fetiches morais religiosos e políticos do passado Com a derrota na Revolução de 1848 Engels e Marx foram exilados e jamais puderam voltar à Alemanha Nesse período produziu diversos livros em parceira com Marx sendo o mais importante deles o afamado O capital Friedrich Engels e suas ideias O método dialético construído por Engels e Marx vê a natureza como um conjunto de elementos ligados e reciprocamente dependentes sempre em movimento e sempre em transformação De tal modo nada pode ser entendido isoladamente para considerar um fenômeno específico é necessário estudar o ambiente inteiro Isso porque cada elemento ou fenômeno da natureza traz em sua essência contradições internas com aspectos positivos e negativos AS IDEIAS DOMINANTES de uma época sempre foram as ideias da classe dominante Friedrich Engels Karl Marx e a revolução de classes O socialismo de Karl Marx principalmente em relação à economia mudou definitivamente a face do mundo contemporâneo e continua tendo influência sobre ele O materialismo filosófico idealizado por Ludwig Feuerbach foi a base do pensamento de Marx entre 1844 e 1845 A principal qualidade que Marx enxergava na teoria de Feuerbach era o seu conteúdo contrário às instituições políticas existentes na época e contrário também à religião à teologia e à metafísica Repudiou o idealismo assim como repudiou Hegel Hume e Kant porque achava que faziam concessões reacionárias ao idealismo Pregou e realizou a revolução Feuerbach como já exposto no tópico respectivo influenciado pelo materialismo francês do século XVIII foi o primeiro a debater contra a religião a partir de um viés materialista 1841 A essência do cristianismo A essência de sua crítica voltase contra a alienação religiosa Em Hegel o sentido de alienação é positivo em Feuerbach é negativo quanto mais o homem sublima Deus mais ele se torna miserável Deus se torna uma potência estranha que justifica a condição miserável do homem Essas ideias surtiram enorme influência em Marx como se pode ver em seus Manuscritos econômico filosóficos obra em que formula incisiva crítica à alienação econômica Marx muitos o afirmam substituiu o Deus de Feuerbach pela mercadoria e o ateísmo pelo comunismo Logo todavia o filósofo desencantase do legado de Feuerbach acabando por concluir com Engels que sua crítica à religião não passara de uma simples luta contra frases Marx e Engels então ao amadurecerem seus pensamentos colocamse contra o materialismo feuerbachiano o qual segundo eles limitavase a apreender o mundo como objeto de contemplação ignorando a importância da ação humana Com efeito Feuerbach limita seu materialismo ao homem como ser corpóreo como se sua natureza se esgotasse em seu ser em sua consciência No âmbito social entretanto apontou Marx o filósofo preconizava o mesmo idealismo ingênuo até então em voga Karl Marx e suas circunstâncias Karl Marx foi o idealizador do socialismo moderno Sua doutrina pregava o desenvolvimento e a evolução do homem pela via da tecnologia Socialmente pregou a luta de classes em que os trabalhadores devem oporse à ideologia das classes dominantes sob pena de tornaremse escravos O antagonismo das classes segundo Marx é a chave para entender a história da humanidade Considerava como ideal uma sociedade sem classes Karl Marx nasceu na Prússia em 1818 a região pertence atualmente à Alemanha Originário de família rica protestante cursou as excelentes universidades de Bonn e de Berlim e defendeu tese de doutorado sobre a filosofia de Demócrito e Epicuro Foi nessa época que fez contato com o grupo Jovens Hegelianos para o qual o Estado era o resultado de uma evolução racional e deveria ser celebrado o Estado seria a consubstanciação da razão e pouco depois conheceu Friedrich Engels seu companheiro intelectual de toda a vida Também nessa época interessouse pelo pensamento de Ludwig Feuerbach que criticava a teologia Assim como Engels converteuse ao materialismo e tornouse comunista Foi redator de um jornal revolucionário em Colônia e por causa de seus artigos teve que se exilar na França Em Paris editou uma revista radical e também de lá foi expulso indo viver em Bruxelas na Bélgica Foi ali que junto com Engels filiouse à Liga dos Comunistas Ganharam destaque e como já salientado anteriormente foram chamados a redigir o Manifesto do Partido Comunista publicado em fevereiro de 1848 Foi expulso também da Bélgica mas pôde voltar a Paris e depois à Colônia Julgado em 1849 foi novamente expulso e teve que se exilar em Londres onde viveu miseravelmente sustentado apenas por uma pensão oferecida por Friedrich Engels até morrer em 1883 Não obstante a pobreza produzia intensamente Sobre a crítica da filosofia do direito de Hegel Teses sobre Feuerbach A ideologia alemã esse em coautoria com Engels Miséria da filosofia Manifesto comunista também com Engels O dezoito de Brumário de Luís Bonaparte Sobre a crítica da economia política Esboços de crítica de economia política e O capital Pouco importa para Marx o resultado do pensamento isoladamente Uma de suas teses em A ideologia alemã referese precisamente a isso Os filósofos só interpretaram o mundo de diferentes maneiras do que se trata é de transformálo Podese dizer com isso que a filosofia de Marx e Engels inaugura uma nova filosofia que já não é mais puramente contemplativa mas antes instrumento concreto para a ação dos homens a filosofia da praxis Em Marx é de grande importância o conceito de práxis revolucionária a objetividade da matéria resulta da subjetividade humana e viceversa práxis é essa relação subjetivaobjetiva do mundo relação dialética entre materialidade e subjetividade A ação humana é portanto ao mesmo tempo matéria e ideia A essência humana não é fruto de uma ideia préconcebida mas o resultado do conjunto das relações sociais subjacentes Em outras palavras não é um atributo metafísico não é predeterminada mas sim historicamente determinada O homem é produto das relações sociais as quais por sua vez são também por ele alteradas transformandoo encetando um incessante ciclo de influências O materialismo filosófico de Marx tem como princípio a noção de que o homem é aquilo que as condições materiais o determinam a ser e a pensar o mundo é material objetivo e existe mesmo fora da consciência humana Seu pensamento é chamado de materialismo histórico porque afirmava que a sociedade não nasce do desejo divino ou da ordem natural do universo mas das ações dos homens ao longo do tempo especialmente ações de força Segundo Marx a história determinava o conjunto das relações sociais que compunham a essência humana e o caráter dinâmico da história exigia do homem transformações Essas transformações deveriam darse no ambiente nas relações sociais nos sistemas dominantes etc por meio de revoluções Marx redefine a trajetória da filosofia ocidental ao preconizar novas relações entre ser e consciência o ser do homem é seu processo de vida real Já em A ideologia alemã o filósofo se incumbe da tentativa de reconstruir a história universal da Europa centroocidental por meio da crítica às doutrinas idealistas partindo do pressuposto de que os indivíduos devem ser considerados em seu contexto histórico em sua ação real Tratase de concepção eminentemente materialista A premissa fundamental da obra referida é a seguinte o trabalho é o substrato objetivo de toda a história Com efeito os indivíduos vivos são que por meio do trabalho produzem história produzem seus meios de vida comem vestem moram O trabalho por sua vez assume formas históricas as quais estão intimamente relacionadas com as diversas espécies de propriedade Assim nos primórdios quando a propriedade era predominantemente tribal observavase a organização familiar na execução do trabalho Já na propriedade comunal ou estatal como existiu na Grécia e em Roma observase o predomínio do trabalho escravo A propriedade feudal de seu turno foi acompanhada do trabalho servil Por fim na propriedade privada capitalista a forma de trabalho característica é a assalariada Afirmava o autor que os indivíduos manifestam o que são por meio do que produzem e pela forma com que o fazem Nesse sentido aquilo que os indivíduos são depende das condições materiais de sua produção A produção por sua vez é levada a efeito por meio do trabalho em condições historicamente determinadas como mencionado acima Impróprio dizer portanto que as relações burguesas de produção são naturais ou seja decorram das leis da natureza como se pudessem ser eternas Da mesma forma incabível pensar em um fim da história com o alcance do capitalismo Todos os processos ligados à produção são transitórios e dependem das relações sociais subjacentes como também delas dependem o pensamento e a consciência Karl Marx e suas ideias O maior legado de Karl Marx foi a sua doutrina econômica Nela analisava o capitalismo baseandose em alguns conceitos O primeiro deles é o conceito de valor Dizia que a mercadoria é algo que satisfaz a necessidade de qualquer homem e também pode ser trocada por outra portanto tem valor de uso e valor de troca Outro conceito marxista é que a mercadoria é produto do trabalho A troca de mercadorias leva o homem a criar relações de equivalência entre os mais diferentes gêneros de trabalho o que Marx chamou de divisão social do trabalho O terceiro conceito é a maisvalia A maisvalia conforme já salientado é o lucro obtido com um acréscimo no valor entre a aquisição e a revenda que se transforma no capital que financia a produção A força de trabalho que propicia esse lucro não é compensada pelo capitalista por esse aumento de valor E nisso reside toda a injustiça do sistema capitalista de acordo com a doutrina marxista Entendendo a maisvalia Uma das principais bases do capitalismo é sem dúvida o lucro razão pela qual esse conceito foi profundamente analisado por Marx O lucro não está centrado sobre o valor original da mercadoria porque esse valor só serve para produtos equivalentes Tampouco está centrado sobre o aumento de preços porque o mercado acaba se acomodando e eliminando a diferença Portanto dizia o autor o lucro está centrado sobre a maisvalia isto é o esforço de trabalho extraordinário aplicado visando à ampliação da produção em jornadas mais longas ou à sua melhoria em processos que reduzem o tempo de trabalho necessário A força de trabalho é portanto a única mercadoria que o proletário tem para vender O proletário deve ter liberdade para vender a sua força de trabalho a quem oferecer maior valor de troca E precisa igualmente ter liberdade para vender apenas um volume razoável de horas por dia A diminuição da jornada de trabalho foi por essa razão a primeira grande batalha travada pela classe operária A segunda foi pela melhora da produtividade por meio da cooperação da divisão do trabalho e da introdução de maquinário Karl Marx condenou a sociedade capitalista e defendeu a sua transformação em sociedade socialista pregando o fim da propriedade privada e a socialização do trabalho O proletariado deveria segundo ele conquistar o poder político Previu a valorização do papel da mulher na base econômica da sociedade Foi um pensador essencialmente dialético Entretanto não se trata aqui da mesma dialética proposta por Hegel eis que Marx a tornou histórica o que Hegel não fez Como se sabe a lógica analítica que enfeixa a ideia de estática se baseia em dois princípios i da identidade ii da não contradição Por sua vez a lógica dialética que enfeixa a ideia de movimento e pressupõe a analítica toma por base outros dois princípios diametralmente opostos i da não identidade ii da contradição É essa última composta por três momentos afirmação tese negação antítese e negação da negação síntese E m A ideologia alemã Marx aduz que a ideologia não passa de elucubrações metafísicas falsos estados da mente visão que não corresponde à verdade Já em Contribuição à economia política texto de 1859 concebe as ideologias como formas superestruturais e nesse sentido não são falsas mas a verdade delas depende das circunstâncias e devem ser entendidas dialeticamente Para Marx não existia ciência absoluta mas sim ciência mais verdadeira que seria aquela produzida pelo proletariado por ser a classe menos conservadora com menos interesses na manutenção da ideologia vigente e mais comprometida com a busca da verdade Reconhece portanto haver um horizonte intelectual a ideologia de classes impõe limites à cientificidade A pertença a uma classe diz Marx limita a produção científica Interesses imediatos limitam a ciência e por isso o proletariado que não tinha interesse na manutenção do status quo seria a classe mais apropriada para produzir ciência No que toca à ontogênese da atividade humana Marx afirma que a atividade humana sociometabólica natural corresponde à atividade dos primatas originários Contudo o homem se destacaria das relações naturais em um primeiro momento a partir do instante em que começa a produzir seus instrumentos de trabalho A isso denominou consciência prática linguagens rudimentares Em um segundo momento há a criação de novas necessidades as necessidades propriamente sociais as quais vão progressivamente ocasionando a diferenciação entre o homem e os demais animais A essa associação social corresponde o que Marx denomina de consciência necessária Temse até aqui a humanização dos instintos baseada em uma divisão de trabalho primitiva ainda sexual Por fim surge a consciência gregária na qual subsiste a cooperação social por intermédio do trabalho consciente Para Marx a história humana começa efetivamente a partir da oposição entre trabalho manual e trabalho intelectual criada pela divisão do trabalho o que ocorreu ainda no período Neolítico início do excedente de produção a proporcionar que determinada classe da sociedade deixasse de se dedicar exclusivamente à reprodução material de sua existência A partir de então observase o surgimento de interesses particulares os interesses da casta que consome e não trabalha Tais interesses acabam por dar origem a ideologias que para Marx consistem em fazer passar os interesses da minoria como os da maioria em outras palavras o propósito de universalizar os interesses particulares Vejase portanto que a divisão de trabalho produz e reproduz a oposição entre interesses particulares e coletivos O proletário ao trabalhar coisificase ou seja transformase ele também em mercadoria E é tanto mais pobre quanto mais riqueza produz O próprio Estado deriva da divisão do trabalho e da oposição acima mencionada O Estado na concepção de Marx representa o interesse particular que se quer crer coletivo utilizandose para isso da ideologia e constitui verdadeiro instrumento de dominação Marx não percebe a sociedade como sendo formada por apenas duas classes sociais burguesia e proletariado mas afirma que do ponto de vista da produção objetiva direta são essas as classes existentes no capitalismo Karl Marx e sua influência no direito Para Marx não há como entender o direito independentemente das relações sociais e econômicas A luta de classes portanto é motor para o rompimento das estruturas dominantes entendase por isso o capitalismo e o estabelecimento de redução das desigualdades sociais Marx chamava a base econômica da sociedade de infraestrutura e afirmava que era ela que determina a superestrutura A superestrutura é representada pela ideologia religião moral filosofia e pela política Estado polícia direito As principais superestruturas dos dominadores para Marx são o Direito e o Estado a religião serviria como elemento de alienação do povo a serviço dos poderosos justamente por isso Marx chegou a dizer que a religião é o ópio do povo O Direito serve aos poderosos dizia ele e é contra a opressão burguesa que as classes oprimidas devem executar a revolução O elemento mais valioso da sociedade deve ser o trabalho Por isso deveria ser instaurado o comunismo dos bens em vez da propriedade privada Nem o Estado nem o Direito deveriam intrometer se na vida das pessoas e a burocracia deveria ser eliminada O Direto de acordo com Karl Marx deveria ser a teoria fundamental para equacionar politicamente a sociedade conforme um modelo justo de distribuição de riquezas Em suma a sociedade ideal seria uma sociedade sem classes Há em Marx uma relação entre base material e representações ideológicas consubstanciada no conceito de totalidade estruturada A base material que não é homogênea mas estruturada é constituída segundo o autor pela articulação entre forças produtivas trabalho humano vivo instrumento de trabalho e meios de produção e relações de produção ou formas sociais de intercâmbio relações de propriedade e relação salarial que são aquelas necessárias do ponto de vista histórico à reprodução da vida social como a servidão a propriedade privada dos meios de produção etc O fundamento empírico da história é sua base material É a partir da análise desta que se explicam as formas sociais de consciência e não o contrário Não se deve por exemplo analisar o indivíduo pela ideia que faz de si mesmo Sobre essa base material e dela derivada se ergue todo um conjunto complexo de instituições superestrutura como o Estado o Direito a Filosofia a Religião As classes que se organizam dentro das superestruturas são fundamentalmente conservadoras daí a conhecida frase já mencionada nesta obra a ideia dominante de uma época é a ideia da classe dominante Em Marx o direito aparece como produto do desenvolvimento da base material compondo a superestrutura Nesse ponto Marx diverge profundamente de Hegel para quem o direito tem vida própria sendo fruto da objetivação da vontade do Espírito Para o materialismo histórico portanto o direito não se assenta em si mesmo sua história corresponde à da evolução da propriedade Ele surge da necessidade de organizar o Estado cuja finalidade é assegurar a preponderância do interesse particular sobre o coletivo O direito depende pois fundamentalmente do Estado e este carrega consigo uma contradição a tarefa de fazer o interesse particular parecer coletivo Dessa forma pela primeira vez na história das ideias políticas o Estado deixa de ser tido como representante dos interesses coletivos da sociedade e passa a ser concebido como instrumento de dominação da classe dominante Por ser o Estado a forma encontrada pela classe dominante para dominar as lutas de classe a serem travadas devem necessariamente assumir a forma de lutas políticas visando à conquista do poder Como abstração o Estado não aparece como a síntese do poder social mas antes como um poder alienado fora do alcance dos homens algo superior a eles PARA HEGEL o processo do pensamento que ele mesmo transforma num sujeito autônomo sob o nome de Ideia é o demiurgo do real Para mim inversamente o ideal não é senão o material transposto e traduzido na cabeça do homem Karl Marx HEGEL FAZ NOTAR algures que todos os grandes acontecimentos e personagens históricos ocorrem por assim dizer duas vezes Esqueceuse de acrescentar a primeira vez como tragédia a segunda como farsa Karl Marx Manifesto comunista Tendo em vista sua grande relevância história citase aqui um pequeno excerto do Manifesto Comunista As acusações contra o modo comunista de produção e de apropriação dos produtos materiais têm sido feitas igualmente contra a produção e a apropriação dos produtos do trabalho intelectual Assim como o desaparecimento da propriedade de classe equivale para o burguês ao desaparecimento de toda a produção também o desaparecimento da cultura de classe significa para ele o desaparecimento de toda a cultura A cultura cuja perda o burguês deplora é para a imensa maioria dos homens apenas um adestramento que os transforma em máquinas Mas não discutais conosco enquanto aplicardes à abolição da propriedade burguesa o critério de vossas noções burguesas de liberdade cultura direito etc Vossas próprias ideias decorrem das relações de produção e de propriedade burguesas assim como vosso direito não passa da vontade de vossa classe erigida em lei vontade cujo conteúdo é determinado pelas condições materiais de vossa existência como classe A falsa concepção interesseira que vos leva a erigir em leis eternas da natureza e da razão as relações sociais oriundas do vosso modo transitório de produção e de propriedade relações históricas que surgem e desaparecem no curso da produção a compartilhais com todas as classes dominantes já desaparecidas O que admitis para a propriedade antiga o que admitis para a propriedade feudal já não vos atreveis a admitir para a propriedade burguesa Abolição da família Até os mais radicais ficam indignados diante desse desígnio infame dos comunistas Sobre que fundamento repousa a família atual a família burguesa No capital no ganho individual A família na sua plenitude só existe para a burguesia mas encontra seu complemento na supressão forçada da família para o proletário e na prostituição pública A família burguesa desvanecese naturalmente com o desvanecer de seu complemento e uma e outra desaparecerão com o desaparecimento do capital Acusainos de querer abolir a exploração das crianças por seu próprios pais Confessamos este crime Dizeis também que destruímos os vínculos mais íntimos substituindo a educação doméstica pela educação social E vossa educação não é também determinada pela sociedade pelas condições sociais em que educais vossos filhos pela intervenção direta ou indireta da sociedade do meio de vossas escolas etc Os comunistas não inventaram essa intromissão da sociedade na educação apenas mudam seu caráter e arrancam a educação da influência da classe dominante As declamações burguesas sobre a família e a educação sobre os doces laços que unem a criança aos pais tornamse cada vez mais repugnantes à medida que a grande indústria destrói todos os laços familiares do proletário e transforma as crianças em simples objetos de comércio em simples instrumentos de trabalho Toda a burguesia grita em coro Vós comunistas quereis introduzir a comunidade das mulheres Para o burguês sua mulher nada mais é que um instrumento de produção Ouvindo dizer que os instrumentos de produção serão explorados em comum conclui naturalmente que ocorrerá o mesmo com as mulheres Não imagina que se trata precisamente de arrancar a mulher de seu papel atual de simples instrumento de produção44 Georg Lukács e a totalidade Georg Lukács escreveu em 1920 o livro História e consciência de classe Apontou certa discordância do marxismo no sentido de não considerar o objeto de análise filosófica o capital como a essência do pensamento de Karl Marx mas sim o método Para ele o conceito de totalidade e o domínio universal do todo sobre as partes constituem o método de Hegel aproveitado por Marx e que seria o princípio revolucionário da ciência A filosofia capitalista e burguesa observa a realidade e portanto a sociedade de forma fragmentada Assim vê com naturalidade a estratificação social a existência de dominadores e dominados a liberdade relativa a exploração dos fracos pelos poderosos Já a classe trabalhadora afirmava Lukács justamente por ser objeto da exploração e lidar com a parte mais importante da lógica do capital que é a mercadoria conseguiria ver a realidade de forma não fragmentada até porque para o capitalismo o próprio homem é tratado como mercadoria Por isso somente essa classe na sua luta por ascensão social tem condições concretas de apreender a totalidade O próprio Lukács disse textualmente Não é o predomínio dos motivos econômicos o que diferencia decisivamente o marxismo da ciência burguesa e sim o ponto de vista da totalidade Interessante notar como essa crítica se encontra diretamente ligada com a noção de totalidade porque destaca a quebra de unidade entre a representação da obra de arte e o mundo Defendia uma literatura engajada politicamente Por isso depois de aproximarse do marxismo Lukács renegaria o que escreveu em Teoria do Romance o que não impediu o livro de tornarse um clássico da crítica literária Georg Lukács e suas circunstâncias Georg Lukács foi um dos principais filósofos marxistas Analisou o capitalismo e a burguesia com a tendência de enxergar o mundo de maneira fragmentada Uma análise que transpôs para a literatura como crítico literário importante que foi Nesse campo é famosa sua comparação entre as obras de dois autores da época no livro Kafka ou Thomas Mann em que defende o primeiro Georg Lukács nasceu em Budapeste na Hungria mas teve toda a sua formação intelectual influenciada pela Alemanha onde estudou na Universidade de Berlim e onde conviveu com intelectuais como Max Weber e Ernst Bloch Antes de converterse ao marxismo na maturidade foi neokantiano e hegeliano Depois de duas temporadas na Alemanha voltou para a Hungria em 1915 e integrou um grupo de esquerda que contava entre outros com Béla Bartok e Karl Polanyi Em 1918 depois da Revolução Russa filiouse ao então clandestino Partido Comunista Húngaro e trabalhou para criar a República Soviética da Hungria No entanto a derrota do Império AustroHúngaro na Primeira Guerra Mundial enterrou as pretensões da república que não durou mais que quatro meses de março a agosto de 1919 Lukács teve que fugir para Viena onde foi preso mas escapou da extradição por interferência do escritor Thomas Mann Mudouse para Berlim onde permaneceu até 1933 quando a ascensão do nazismo o levou a exilarse em Moscou onde ficaria até o fim da Segunda Guerra Mundial Em 1956 Lukács participou da refundação do Partido Comunista Húngaro e chegou a ser ministro da nova república Novamente foi exilado dessa vez na Romênia mas voltaria para Budapeste Depois de 1968 após os movimentos revoltosos da Tchecoslováquia e da França tornouse um crítico ferrenho do Partido Comunista Soviético Morreu em 1971 Georg Lukács e sua influência no direito Para Lukács o capitalismo inverteu a própria noção de direito O que era empírico e tradicional virou racional e objetivo mas rígido a ponto de ocultar a sua imobilidade atrás de um aparente dinamismo ou seja o próprio direito coisificouse contribuindo para deixar propositalmente confusas as relações de poder entre as classes O pensamento estético de Lukács teve também grande aplicação na literatura a ponto de ele ser conhecido como um dos mais importantes críticos literários do século XX Nesse sentido é famoso o seu Teoria do romance publicado em 1916 em que faz uma reflexão sobre o romance realista clássico como o gênero literário próprio do capitalismo porque mostrava o distanciamento entre o homem e o mundo QUEM IRÁ nos salvar da cultura ocidental Georg Lukács Antonio Gramsci e a emancipação pela educação Enquanto grande parte dos seguidores de Karl Marx centravam suas teses na economia e na política pregando a tomada de poder pelo proletariado até pelas armas o filósofo italiano Antonio Gramsci afirmava que para ascender ao poder os trabalhadores precisavam primeiro evoluir culturalmente Pregava que o único caminho para isso é uma educação geral e humanista que ofereça ao indivíduo um espírito crítico Gramsci e suas circunstâncias Antonio Gramsci foi um dos fundadores do Partido Comunista Italiano em plena era fascista Passou muito tempo na prisão por defender a tomada de poder pelo proletariado Mas considerava que era necessário antes que os trabalhadores evoluíssem pela educação Foi o criador do conceito de cidadania que para ele devia ser ensinado na escola No Brasil o educador Paulo Freire adotou suas ideias de pedagogia crítica e instrução popular Essa teoria era uma reação à posição de Benito Mussollini ditador da Itália no período que precedeu a Segunda Guerra Mundial de manter dois tipos de ensino no Ministério da Educação chefiado por Giovanni Gentile A chamada Reforma Gentile oferecia para os alunos oriundos de famílias de classes altas o ensino integral com todas as disciplinas já para os alunos de classes economicamente mais baixas apenas disciplinas voltadas para o ensino técnico profissionalizante Mussolini implantou o fascismo na Itália dez anos antes de Hitler chegar ao poder instituindo na Alemanha o nazismo Essas duas correntes de extrema direita se uniriam na Segunda Guerra Mundial para compor o Eixo completado pelo Japão Como chefe de um regime autoritário Mussolini não suportou as provocações do comunista Antonio Gramsci e mandou prendêlo durante oito anos 1926 até o ano de sua morte em 1934 sob a acusação de instigar os trabalhadores a se rebelarem contra o fascismo Antonio Gramsci nasceu na Itália em 1891 Aos 2 anos de idade sofreu de uma doença que o deixaria corcunda e que lhe prejudicou o crescimento Compensou a saúde precária com grande interesse pelos estudos a ponto de aos 21 anos receber uma bolsa de estudos por mérito para a Universidade de Turim Matriculouse no curso de Letras Já no ano seguinte ingressou no Partido Socialista Tornouse jornalista Em 1919 rompeu com o Partido Socialista e aproximouse dos comunistas Visitou a Rússia e ao voltar ajudou a fundar o Partido Comunista Italiano Foi preso em 1926 pela polícia de Mussolini Só seria libertado em 1937 porque estava mal de saúde e precisava de tratamento Morreu numa clínica na cidade de Roma nesse mesmo ano Na prisão escreveu a maior parte de sua obra que foi chamada de Cadernos do cárcere e Cartas do cárcere Gramsci e suas ideias No Brasil o conceito de Gramsci de pedagogia crítica e de instrução popular para elevação moral do povo foi apropriado por Paulo Freire A pedagogia do oprimido de Paulo Freire é dedicada a transformar as oligarquias fortalecendo as classes subjugadas e também educando os opressores No pensamento do pedagogo brasileiro está contemplada a falsa consciência do opressor Paulo Freire considera necessário esclarecer o opressor de que impedir o processo educativo desumaniza tanto o opressor como o oprimido Gramsci considerava que havia dois instrumentos utilizados para efetivar a dominação de um grupo social sobre o restante da sociedade força exercida pela polícia e tropas militares e consenso obtido em geral por meio de táticas pedagógicas Discordou de Karl Marx na medida em que achava que o filósofo alemão idealizava demais o trabalhador intelectualmente Por isso mesmo entendia ser fundamental o estímulo à educação para que o homem comum pudesse desenvolver criticismo e escapar da condição de portador da sabedoria apenas relacionada ao folclore Fascismo no Brasil A Primeira Guerra Mundial deixou sequelas no mundo inteiro especialmente na economia A debilidade do sistema capitalista em decorrência da guerra ocasionaria a quebra da Bolsa de Nova York em 1929 aprofundando uma recessão que atingiu vários países entre eles o Brasil Vários governantes passaram a acreditar que era preciso firmeza e autoridade para superar esses problemas Em decorrência disso é que surgiram movimentos extremistas tais como o fascismo italiano No Brasil os mesmos reflexos puderam ser sentidos O Partido Fascista Brasileiro foi fundado em 1923 em São Paulo pelo italiano Emilio Rochette Em 1930 Getúlio Vargas liderou uma revolução e subiu ao poder com promessas de inspiração fascista Em 1932 o escritor Plínio Salgado criou o partido da Aliança Integralista Brasileira com ideologia anticomunista Por fim em 1937 Getúlio Vargas editou a Constituição que passou a ser conhecida como A Polaca por ter sido influenciada pela Carta autoritária da Polônia que resultou na implantação do chamado Estado Novo Essa Constituição aliás foi redigida pelo ministro da justiça de Getúlio o jurista Francisco Campos que era membro do Partido Fascista Brasileiro O integralismo no Brasil chegou a reunir mais de 500 mil adeptos É preciso dizer que houve simultaneamente no Brasil movimentos antifascistas liderados por outro italiano Antonio Piccarolo Manifesto de Outubro Plínio Salgado jornalista e escritor que se denominava Chefe Nacional do Integralismo redigiu em 1932 o Manifesto de Outubro documento que definia os princípios do fascismo brasileiro sob o lema DeusPátriaFamília Dada a importância histórica de tal documento principalmente no que tange à afirmação dos valores filosóficos que regiam o movimento abrese aqui espaço para que o leitor conheça resumidamente o seu conteúdo Deus dirige o destino dos povos O homem deve praticar sobre a terra as virtudes que o elevam e o aperfeiçoam O homem vale pelo trabalho pelo sacrifício em favor da Família da Pátria e da Sociedade Vale pelo estudo pela inteligência pela honestidade pelo progresso nas ciências nas artes na capacidade técnica tendo por fim o bemestar da nação e o elevamento moral das pessoas A riqueza é bem passageiro que não engrandece ninguém desde que não sejam cumpridos pelos seus detentores os deveres que rigorosamente impõe para com a Sociedade e a Pátria Precisamos de hierarquia de disciplina sem o que só haverá desordem Um governo que saia da livre vontade de todas as classes é representativo da Pátria como tal deve ser auxiliado respeitado estimado e prestigiado Nele deve repousar a confiança do povo A ele devem ser facultados os meios de manter a justiça social a harmonia de todas as classes visando sempre os superiores interesses da coletividade brasileira Hierarquia confiança ordem paz respeito eis o de que precisamos no Brasil O cosmopolitismo isto é a influência estrangeira é um mal de morte para o nosso Nacionalismo Combatêlo é o nosso dever E isso não quer dizer má vontade para com as Nações amigas para com os filhos de outros países que aqui também trabalham objetivando o engrandecimento da Nação Brasileira e cujos descendentes estão integrados em nossa própria vida de povo Referimonos aos costumes que estão enraizados principalmente em nossa burguesia embevecida por essa civilização que está periclitando na Europa e nos Estados Unidos Os nossos lares estão impregnados de estrangeirismo as nossas palestras o nosso modo de encarar a vida não são mais brasileiros Os brasileiros das cidades não conhecem os pensadores os escritores os poetas nacionais Envergonhamse também do caboclo e do negro de nossa terra E somos contra a influência do comunismo que representa o capitalismo soviético o imperialismo russo que pretende reduzirnos a uma capitania Levantamonos num grande movimento nacionalista para afirmar o valor do Brasil e de tudo que é útil e belo no caráter e nos costumes brasileiros para unir todos os brasileiros num só espírito O nacionalismo para nós não é apenas o culto da Bandeira e do Hino Nacional é a profunda consciência das nossas necessidades do caráter das tendências das aspirações da Pátria e do valor de um povo Essa é uma grande campanha que vamos empreender A nossa Pátria está miseravelmente lacerada de conspiratas Políticos e governos tratam de interesses imediatos por isso é que conspiram Todos os seus programas são os mesmos e esses homens estão separados por motivos de interesses pessoais e de grupos Por isso uns tramam contra os outros E enquanto isso o comunismo trama contra todos A questão social deve ser resolvida pela cooperação de todos conforme a justiça e o desejo que cada um nutre de progredir e melhorar O direito de propriedade é fundamental para nós considerado no seu caráter natural e pessoal O capitalismo atenta hoje contra esse direito baseado como se acha no individualismo desenfreado assinalador da fisionomia do sistema econômico liberaldemocrático Temos de adotar novos processos reguladores da produção e do comércio de modo que o governo possa evitar os desequilíbrios nocivos à estabilidade social O comunismo não é uma solução porque se baseia nos mesmos princípios fundamentais do capitalismo com a agravante de reduzir todos os patrões a um só e escravizar o operariado a uma minoria de funcionários cruéis recrutados todos na burguesia O comunismo destrói a religião para melhor escravizar o ser humano aos instintos destrói a iniciativa de cada um mata o estímulo sacrifica uma humanidade inteira por um sonho falsamente científico que promete realizar o mais breve possível isto é daqui duzentos anos no mínimo Tão grande a importância que damos à Família Ela é a base da felicidade na terra das únicas venturas possíveis O município é uma reunião de famílias O homem e a mulher como profissionais como agentes de produção e de progresso devem se inscrever nas classes respectivas a fim de que sejam por estas amparados nas ocasiões de enfermidade e desemprego Dessa maneira os que trabalham e produzem estão garantidos pela sua própria classe não dependem de favores de chefes políticos de caudilhos de diretórios locais de cabos eleitorais É a única maneira de se tornar o voto livre e consciente As classes elegem seus representantes às Câmaras Municipais como dissemos e estas elegem seu presidente e prefeito Os municípios devem ser autônomos em tudo o que respeita a seus interesses peculiares porque o município é uma reunião de moradores que aspiram ao bemestar e ao progresso locais A moralidade administrativa pode ser fiscalizada pelas próprias classes pois o que determinava a desmoralização das Câmaras Municipais no sistema liberal era a politicagem o apoio com que contavam os chefes políticos locais dirigentes da política estadual extintos os partidos o governo municipal repousará na vontade das classes Dentro destas nenhuma influência estranha poderá ser exercida porque todos se sentem amparados pela própria classe a que pertencem Não haverá jeito algum de se fazerem perseguições políticas porque o governo local estará livre de injunções de homens que morando fora do município se metem nos seus negócios como tem sido comum O município portanto será administrado com honestidade será autônomo e estará diretamente ligado aos desígnios nacionais Pretendemos realizar o Estado Integralista livre de todo e qualquer princípio de divisão partidos políticos estadualismos em luta pela hegemonia lutas de classes facções locais caudilhismos economia desorganizada antagonismos de militares e civis antagonismos entre milícias estaduais e o Exército entre o governo e o povo entre o governo e os intelectuais entre estes e a massa popular Pretendemos fazer funcionar os poderes clássicos Executivo Legislativo e Judiciário segundo os impositivos da Nação Organizada com bases nas suas Classes Produtoras no Município e na Família Pretendemos criar a suprema autoridade da Nação Pretendemos mobilizar todas as capacidades técnicas todos os cientistas todos os profissionais cada qual agindo na sua esfera para realizar a grandeza da Nação Brasileira Esses são os rumos da nossa marcha A FALÊNCIA DA FÉ O POSITIVISMO Podese dizer que o positivismo foi em sua essência uma retomada dos valores pregados pelo empirismo porém em versão mais desenvolvida Tinha por princípio o conceito de que a única fonte real do saber é a experiência Baseavase na ciência e na técnica que formavam os pilares da sociedade industrial moderna e apenas levava em consideração o que podia ser cientificamente comprovado ou seja havia uma identidade fundamental entre as ciências exatas e as ciências humanas A filosofia positivista rejeita a ideia de que a explicação dos fenômenos naturais ou sociais tenha origem em um só princípio Em outras palavras contrariava a visão dominante da época que considerava Deus ou a natureza como causa de todos os fenômenos Prega que o mundo resulta de relações constantes entre fenômenos que podem ser observados e analisados cientificamente Para os positivistas a filosofia é apenas a síntese das ciências O fundamento científico que escolheram foi a teoria de Charles Darwin que ensinava que a evolução das espécies ocorre por fenômenos estritamente mecanicistas Surgido na França no começo do século XIX o positivismo foi inicialmente formulado por Augusto Comte nos livros Opúsculos de filosofia social publicados entre 1819 e 1828 Pouco mais tarde o economista inglês John Stuart Mill desenvolveria o pensamento de Comte para aplicação em diversas áreas do conhecimento Na Alemanha o positivismo seria introduzido por Ernst Laas e Friedrich Jodl O positivismo é uma linha teórica da sociologia porque atribui fatores humanos não a razão isoladamente à explicação dos fenômenos Com isso nega a teologia bem como a metafísica crença fé superstição nada disso pode ser levado em consideração por não serem passíveis de comprovação científica Sua formulação tem grande influência ainda do socialismo de Karl Marx e do evolucionismo de Charles Darwin Decorre daí a descrição crua da realidade a partir da observação e a convicção de que o homem é resultado das suas heranças biológicas e do meio social em que vive O pensamento de Augusto Comte teve influência direta sobre a economia a política e até a literatura da época O positivismo foi representado na literatura pela escola do naturalismo O francês Emile Zola foi o iniciador do naturalismo na literatura principalmente com seu livro O germinal de 1885 Nesse livro examina a realidade dos trabalhadores em minas de extração de carvão Para escrever o livro Zola passou um período convivendo com uma família de mineiros para experimentar pessoalmente o cotidiano daqueles trabalhadores No Brasil a corrente naturalista da qual foram representantes principais Aluísio de Azevedo Adolfo Caminha Raul Pompeia e Inglês de Souza cuidou de abordar a realidade social brasileira como a vida nas favelas e cortiços urbanos e o preconceito Euclides da Cunha foi outro grande escritor que sofreu as mesmas influências O positivismo também teve grande repercussão nos processos educacionais especialmente na implantação de testes e avaliações nas escolas Embora tenha sido recebido com grande aceitação na Europa e também no Brasil o positivismo de Augusto Comte foi duramente criticado pelos marxistas principalmente pelos representantes da Escola de Frankfurt Resta dizer que na mesma época surgiram outras correntes de pensamento que não tiveram a mesma aceitação mas que não podem ser esquecidas Uma delas foi o irracionalismo de Arthur Schopenhauer e Sören Kierkgaard Outra foi a chamada corrente metafísica com Johann Friedrich Herbart e Gustav Theodor Feche entre outros na Alemanha e Victor Cousinha Felix RavaissonMolien e Jules Lachelier na França Correntes do direito O direito contemporâneo se divide em duas correntes juspositivismo e jusnaturalismo O jusnaturalismo acredita que o direito independe da vontade humana uma vez que é preexistente ao homem e portanto não se submete às leis humanas mas a leis superiores Os pressupostos do direito são os valores que ajudam na busca de um ideal de justiça Por sua vez o juspositivismo acredita que a vida social deve ser governada por princípios e regras que dependem do povo e do momento histórico que esse povo vive Por isso mesmo o direito deve ser flexível devendo as leis ser alteradas conforme a conjuntura do momento As ideias de Comte foram adotadas no Brasil por volta de 1870 quando seu pensamento deixou o âmbito acadêmico e foi adotado pelos politicos da época Os positivistas dentre eles Benjamin Constant coronel e professor do Colégio Militar onde estudou Euclides da Cunha por exemplo tiveram participação decisiva no movimento pela Proclamação da República em 1889 e na elaboração da Constituição de 1891 A inscrição que consta da bandeira brasileira Ordem e Progresso é o lema clássico do positivismo Veremos mais sobre esse tema no tópico O positivismo no Brasil adiante Augusto Comte e a ordem como valor O positivismo foi concebido por Augusto Comte como reação ao idealismo É chamado de o antigo positivismo uma tendência filosófica de permitir apenas proposições que se apoiem exclusivamente nas observações Portanto não admite qualquer espécie de pensamento metafísico Augusto Comte e suas circunstâncias Augusto Comte é considerado o organizador da sociologia moderna foi o primeiro a utilizar o termo sociologia Elaborou o positivismo corrente filosófica que defendia que tudo o que o homem sabe pode ser sistematizado de acordo com os critérios usados para as ciências Chegou a pregar que os cientistas deviam formar a elite dominante Afirmava que os súditos devem obediência aos governantes em nome da grandeza e prosperidade da humanidade Augusto Comte nasceu em 1798 Testemunhou na sua França natal revoluções regimes despóticos e guerras Tudo isso o levou a questionar os valores da filosofia reinante e a propor novas formas de organização social que podiam levar ao bemestar da coletividade Foi secretário de SaintSimon que como vimos foi um dos primeiros socialistas utópicos e iniciador da Sociologia Mas Comte se afastou dele para escrever o seu primeiro trabalho Curso de filosofia positiva entre 1830 e 1842 Também se aproximou de outro grande nome do positivismo John Stuart Mill mas também o abandonou Interessouse pelo método das ciências especialmente as ciências sociais que permite estabelecer relações entre os fatos independetemente de interpretações Chegou a um tal radicalismo que propôs a criação de templos positivistas para culto de uma nova religião da humanidade baseada no materialismo científico ideia que foi ridicularizada Augusto Comte e suas ideias A construção do seu pensamento teve início com a lei dos três estágios que demonstra que o homem por natureza utiliza três métodos de investigação em sequência teológico metafísico e positivo Essa lei foi associada por Augusto Comte a outro princípio a classificação das ciências fundamentais puras e abstratas que para ele eram a matemática a astronomia a física a química a biologia a sociologia e a moral Em seguida procurou coordenálas por meio do cálculo algébrico idealizado por Descartes para as ciências inorgânicas e por meio da síntese para as ciências orgânicas A sociedade para Augusto Comte seria como um organismo vivo em que nenhuma parte pode subsistir desvinculada das outras Suas ideias foram consolidadas no livro Curso de filosofia positiva publicado em 1830 Para a sociologia previu o organismo social como elemento estático mas condicionado por uma evolução dinâmica ao longo da história A estática social estuda as forças que mantêm a sociedade unida sendo a principal delas a ordem A dinâmica social estuda as mudanças sociais e suas causas fundamentandose no progresso Esse pensamento é a base do lema Ordem e progresso que consta da bandeira brasileira por inspiração positivista Como símbolo de sua filosofia usava uma escada para ilustrar a imagem de que o homem está em contínuo progresso e evolução e que havia uma hierarquia na ordem de importância das ciências Nessa ideia de ordem Comte tinha certo desprezo pela democracia Ao contrário pregava a disciplina e a hierarquia como elementos que garantiriam a adequada organização da sociedade Sua concepção da educação escolar por exemplo era rígida A solidariedade que ele considerava ser impulso natural do homem devia ser promovida pela escola quase como obrigação o que de fato acabava sendo uma solidariedade falsa e por isso mesmo é um modelo superado Comte criticava a liberdade de consciência para ele o homem devia estar mais preocupado com os seus deveres do que com os seus direitos Esperava que o espírito positivo criasse uma comunhão entre os homens que resultasse numa associação harmoniosa Essa ideia chegou a constituir uma proposta de organização de uma república ocidental algo como o que é hoje a União Europeia O projeto positivista de Comte era na realidade um projeto sociopolítico almejava uma sociedade que progredisse em paz de modo ordeiro sem guerras revoluções ou mudanças bruscas A MORAL CONSISTE em fazer prevalecer os instintos simpáticos sobre os impulsos egoístas Augusto Comte John Stuart Mill e as mudanças sociais John Stuart Mill foi um crítico do racionalismo e de Immanuel Kant Na esteira do empirismo achava que o conhecimento era dado pela experiência presente ou percepção do momento Desenvolveu trabalhos sobre as relações entre a linguagem e a lógica em que estabelece relações de verdade e falsidade a partir da denotação Defensor do método indutivo é o autor deste famoso silogismo O homem é mortal Sócrates é homem Portanto Sócrates é mortal John Stuart Mill e suas circunstâncias John Stuart Mill foi considerado um dos mais influentes economistas da era moderna Foi o grande inspirador de Alfred Marshall Desenvolveu trabalhos que visavam reorganizar a sociedade britânica que saía de uma crise social nos campos da política da economia e do direito Foi um dos primeiros filósofos a se ocupar do papel das mulheres na sociedade defendendo para elas o direito ao voto John Stuart Mill nasceu em Londres em 1806 em plena fase de industrialização da Inglaterra Precoce contou ainda com o preparo intelectual do pai o filósofo e historiador James Mill que o iniciou nos estudos muito cedo Aos 18 anos John Stuart Mill já preparava textos sobre a obra de Jeremy Bentham sobre evidências legais Aos 22 anos conheceu Gustave dEichtahl que o apresentou aos trabalhos de Saint Simon e de Augusto Comte Convenceuse pela leitura das obras de Comte de que as mudanças sociais avançam por meio de períodos de crise em que velhas instituições são derrubadas seguidos por períodos orgânicos quando novas formas sociais harmônicas emergem e são consolidadas John Stuart Mill e suas ideias Considerava que a classe letrada teria que ser responsável pela consolidação dessas mudanças sociais e que o papel do cidadão devia ser o de superar obstáculos impostos pelo Estado Achava que a verdadeira definição de liberdade era a ausência de coerção A educação para esse filósofo tem o papel de determinar os atos livres do indivíduo no futuro porque esclarece as suas motivações Talvez pelo fato de sofrer de graves crises de depressão estudou também a mente humana e desenvolveu a teoria do associacionismo defendendo que a mente humana deriva do processo da memória associativa Desse estudo concluiu algumas regras que governam o aprendizado humano Foi um defensor do prazer como elemento motivador primário da espécie humana portanto um epicurista Despontou para a comunidade filosófica com o livro Sistema de lógica publicado em 1843 em que trata do método da ciência experimental baseado na indução a partir de fenômenos observados e analisados cientificamente seria lícito generalizar a conclusão para outros fenômenos semelhantes Cinco anos depois em 1848 publicaria a sua obra mais conhecida Princípios de economia política de espírito liberal Na área da filosofia moral escreveu Sobre a liberdade em 1859 e Utilitarismo em 1861 Nesse último pondera que a concepção de bem e de mal depende do momento vivenciado pelo homem O principal critério para julgamento do comportamento do homem é a utilidade de seus atos Absorveu de Saint Simon e de Augusto Comte o espírito do altruísmo Trabalhou com o pai na Companhia das Índias Orientais tendo chegado a ocupar o posto máximo aposentandose quando a instituição foi dissolvida Foi eleito para a Casa dos Comuns em 1865 e participou da reforma de 1866 ao lado de Herbert Spencer Morreu em 1873 É considerado o último dos grandes autores da escola clássica da economia política John Stuart Mill e sua influência no direito Para esse filósofo inglês que concordava com David Hume há motivações para atos das pessoas que estão acima de sua capacidade de resistência e por essas motivações não há como responsabilizar os indivíduos como a fome ou o medo Mas há muitas outras motivações que o homem tem obrigação de dominar A base do pensamento social de Mill é essa um homem é livre quando consegue resistir à tentação de se deixar levar por motivos que ele pode controlar ou seja o ser humano tem papel ativo em relação à sua autodeterminação Dentro da teoria do utilitarismo Mill argumentava que o valor moral das ações devia ser julgado em face de suas consequências Pensava que o utilitarismo não era um princípio moral simplista para ser aplicado mecanicamente mas um projeto social de longo prazo Sobre o governo discordava dos liberais que consideravam que esse provinha de direitos naturais ou de contratos sociais Ao contrário o governo devia ser olhado como um elemento de permanente interesse do homem como ser em constante progresso ou seja o governo só teria utilidade se preenchesse a necessidade humana de atingir formas refinadas de felicidade Como membro do parlamento inglês defendeu a ideia de que as minorias deveriam ter representatividade proporcional Chegou até mesmo a defender a concessão de propriedades para os camponeses Por outro lado achava que as pessoas letradas deveriam ter direito a votos proporcionalmente mais valiosos que os votos de pessoas iletradas Além disso era contra a educação geral do Estado porque a considerava padronizada e destinada a impor um despotismo sobre o espírito AS AÇÕES SÃO CORRETAS na medida em que tendem a promover a felicidade erradas na medida em que tendem a promover o reverso da felicidade John Stuart Mill Herbert Spencer o inconformado O sociólogo Herbert Spencer nasceu em Derby Inglaterra em 1820 Viveu os últimos anos da era vitoriana período da história inglesa marcado pela austeridade pelo puritanismo e pela autoridade de ferro da Rainha Vitória Desde muito jovem Spencer mostrouse um insatisfeito com a situação políticosocial do Reino Unido Sua obra foi grandemente influenciada por Augusto Comte mas discordou de várias de suas ideias tornandose um dos principais críticos do criador do positivismo Isso se deu especialmente depois que conheceu a teoria evolucionista de Charles Darwin Procurou aplicar as ideias do evolucionismo às ciências sociais como a Psicologia Sociologia e Política Foi o autor da ideia da seleção natural na sociedade por meio da automática eliminação dos menos aptos Isso antes do seu compatriota Charles Darwin que afinal foi quem formulou a teoria que ficou conhecida como darwinismo social Formulou uma classificação das ciências que divergia da classificação feita anteriormente por Comte Para ele as ciências deviam estar divididas em três grupos ciências abstratas lógica e matemática ciências concretas astronomia geologia biologia e psicologia e ciências concretoabstratas mecânica física e química Como símbolo de sua classificação usou a imagem de uma árvore cujos galhos representavam o conceito da eterna interação entre os ramos do conhecimento a partir de um tronco comum Herbert Spencer e suas circunstâncias Herbert Spencer foi um admirador do evolucionismo Seu pensamento influenciou de maneira importante os Estados Unidos principalmente com a noção da competição contida no darwinismo social segundo a qual a sociedade naturalmente elimina os seus elementos mais fracos Foi um crítico de Augusto Comte embora seguisse o mesmo conceito de que a sociedade precisava estar firmada sobre as ciências Defendeu a implantação do ensino básico obrigatório e laico e as ideias liberais da não intromissão do Estado na economia Foi o ideólogo da luta pela vida Herbert Spencer nasceu numa época em que o desenvolvimento técnico e científico da Inglaterra estava no apogeu Mas ao mesmo tempo era uma época em que ficavam patentes os contrastes sociais que vieram à tona com as revoltas operárias A GrãBretanha liberal assistia ao questionamento das religiões e do imperialismo Floresciam as ideias socialistas Nesse ambiente o menino Herbert Spencer foi obrigado a frequentar uma escola protestante o que fez a contragosto até os 16 anos quando decidiu que aquela educação não lhe convinha A partir daí cuidou sozinho de sua formação com leituras voltadas principalmente para as ciências Encantado com as novas tecnologias como o telégrafo dedicouse a estudar engenharia e iniciou carreira nas ferrovias então em processo de expansão Tomou contato com as pesquisas de Charles Darwin e tornouse admirador do evolucionismo Entre 1848 e 1853 foi subeditor da revista The Economist Nessa época já escrevia artigos de conteúdo liberal defendendo que o papel dos governos devia se limitar a garantir os direitos naturais do cidadão Em 1853 recebeu uma vultosa herança e decidiu dedicarse unicamente a escrever Em 1855 publicou o livro Princípios de psicologia Alguns anos mais tarde em 1896 escreveu aquelas que são consideradas suas principais obras A filosofia sintética e Estática social Herbert Spencer e suas ideias Esse pensador aplicou à sociologia muitas ideias que observou nas ciências naturais sempre tomando a natureza como fonte da verdade Constatando a sobrevivência do animal mais propenso a adaptarse ao ambiente foi levado a defender a primazia do indivíduo em relação à sociedade e na sociedade incluía o Estado Lutou pela implantação do ensino da ciência nas escolas e condenava a interferência do Estado na educação que devia ser conduzida pelos educadores Para ele o que chamou de lei da persistência da força era a lei fundamental da matéria Grupos homogêneos fossem de animais ou humanos ao entrarem em contato com forças externas pela primeira vez eram obrigados a sair da homogeneidade e entravam num processo de heterogeneidade e portanto de variedade Quanto mais os grupos sofrem interferência externa tanto mais se tornam heterogêneos Com isso e dado que o homem devia ser livre pregava que o Estado deveria ser ignorado já que era imperfeito e portanto não adiantava que as leis fossem perfeitas A CIVILIZAÇÃO É UM PROGRESSO de homogeneidade indefinida e incoerente rumo a uma heterogeneidade definida e coerente Herbert Spencer O POSITIVISMO NO BRASIL Recémlibertado da condição de colônia portuguesa o Brasil do início do século XIX buscava uma nova emancipação uma espécie de independência intelectual Os líderes da nova pátria procuravam extirpar dos costumes e da cultura brasileira os hábitos da antiga metrópole Isso justificou a natural aproximação cultural com a França Inglaterra e Estados Unidos como alternativa para afastar a influência portuguesa O positivismo mostrouse excelente opção filosófica para a velha escolástica das cortes e da igreja portuguesas Isso porque a teoria dos três estágios de Comte explicava à perfeição a história brasileira com a passagem da etapa teológica liderada pelos jesuítas e pelos inquisidores para a fase metafísica e desta para a positivista Intelectuais brasileiros em busca de fundamentação teórica para uma nova ordem política queriam a República O pensamento de Augusto Comte mais uma vez se harmonizava perfeitamente com os ideais dessa nova geração de brasileiros que incluiu entre outros Benjamin Constant Tobias Barreto e Euclides da Cunha O positivismo era visto como um instrumento educativo cujo objetivo era o de formar uma sociedade de homens práticos parecidos com os ingleses e os norteamericanos que eram os povos que lideravam o processo evolutivo da sociedade da época Entre as ideias de Comte na área da filosofia social os brasileiros da nova geração aprovavam especialmente a abolição da escravatura Benjamin Constant criou em 1868 um centro para o estudo do positivismo Seus alunos da Escola Militar entre eles Euclides da Cunha recebiam lições consistentes a favor da república e contra a monarquia Tobias Barreto por seu lado escreveu continuamente nos jornais do Recife a respeito da filosofia positivista formando uma geração de jovens admiradores da nova doutrina O mesmo se deu com as obras de Euclides da Cunha Pereira Barreto e Sílvio Romero Quando da proclamação da República Benjamin Constant forjou a frase que figura na bandeira brasileira Ordem e Progresso de inspiração positivista A frase contida em nossa bandeira foi retirada da fórmula máxima do positivismo cunhada por Comte O amor por princípio a ordem por base o progresso por fim No campo do Direito Clóvis Beviláqua foi um positivista tendo inclusive escrito em 1883 o livro A filosofia positiva no Brasil O positivismo no Brasil foi duradouro e inflamou a sociedade a reagir contra o tradicionalismo e o provincianismo influenciado pelo evolucionismo de Spencer Seu representante mais radical depois de Benjamin Constant foi Júlio de Castilhos que chegou a implantar uma Constituição estadual no Rio Grande do Sul em 1861 na qual concedia isonomia salarial aos funcionários daquele Estado O seguidor mais ferrenho de Júlio de Castilhos foi Getúlio Vargas Aos positivistas opunhamse os liberais dos quais o mais famoso foi Rui Barbosa Eugen Ehrlich e a sociologia do direito Eugen Ehrlich foi o primeiro jurista a escrever um livro especialmente sobre sociologia aplicada ao direito e por isso é considerado o fundador da Sociologia Jurídica Pretendeu modernizar o conhecimento acerca do direito em sua época Eugen Ehrlich e suas circunstâncias Eugen Ehrlich defendeu em seus dois livros que a ciência do direito deve atender não apenas às palavras mas também aos fatos subjacentes ao direito pela indução ou seja que o direito não tem origem apenas no Estado mas na organização interna das sociedades Eugen Ehrlich nasceu em 1862 na cidade de Chernovtsky atualmente pertencente à Ucrânia mas à época parte da Áustria O pai era advogado Estudou Direito em Viena onde permaneceu por alguns anos como professor assistente Aos 35 anos de volta à cidade natal foi convidado a lecionar Direito Romano na Universidade de Chernovtsky Tinha temperamento difícil o que lhe causou problemas para a reputação Entendia as opiniões judiciais como racionalizações de decisões tomadas com base em equilíbrio de interesses consciente ou intuitivo Escreveu A livre procura do direito e a livre jurisprudência em 1903 e Fundamentos da sociologia do direito em 1912 Mas a obra mais importante de sua produção é Princípios da sociologia do direito publicada em 1913 Eugen Ehrlich e suas ideias Esse filósofo elaborou várias pesquisas que se tornaram inspiração para as modernas pesquisas científicas de opinião pública Um estudo que realizou mostrou por exemplo que os costumes familiares variavam muito em grupos raciais romenos e divergiam amplamente do direito codificado45 Eugen Ehrlich e sua influência no direito Existem conforme o filósofo fenômenos jurídicosociais reveladores do direito Assim por exemplo o costume a posse a família os estatutos associativos as declarações de vontade Por isso achava que o direito criado pelo Estado pode ser considerado como mero fenômeno social específico servindo tão somente para organizar a sociedade e dirimir disputas jurídicas portanto uma função secundária O direito para ele deve ser mais sujeito a regras de harmonia entre os homens regras de conduta do que propriamente a uma norma de decisão É o que Ehrlich chama de direito vivo fazendo ver que a base do direito não está na lei mas na própria sociedade contrapondose à jurisprudência que é a base do positivismo jurídico Dizia Ehrlich que a jurisprudência encerra em si ao mesmo tempo a teoria e a prática e que o juiz não pode ser um servidor cego da lei QUERER APRISIONAR O DIREITO de uma época ou de um povo nos parágrafos de um código corresponde mais ou menos ao mesmo que querer represar um grande rio num açude o que entra não é mais correnteza viva mas água morta e muita coisa simplesmente não entra Eugen Ehrlich Émile Durkheim um dissidente do positivismo Na França uma corrente de pensamento liderada pelo sociólogo Émile Durkheim 18581917 mostrouse importante dissidente do positivismo de Augusto Comte Professor da famosa Universidade de Sorbonne Durkheim procurou desenvolver um sistema que explicasse as leis gerais de funcionamento da sociedade Foi um sistema fundado na educação a que se denominou sociologismo Durkheim e suas circunstâncias A obra mais famosa de Émile Durkheim é A divisão do trabalho social Foi em verdade uma das suas teses de doutoramento tendo sido publicada em 1893 e reeditada em 1902 Foi considerado o pai da sociologia moderna disciplina a que deu metodologia específica objeto e objetivos no livro As regras do método sociológico 1895 sempre com base nas ciências naturais Émile Durkheim nasceu em 15 de abril de 1858 em Épinal Departamento de Vosges localizado entre a Alsácia e a Lorena De família judia sendo seu pai um rabino veio a se desvencilhar do misticismo apenas ao conhecer Paris após o que se tornou agnóstico Foi ao lecionar Filosofia em diversos liceus da França que se interessou pela Sociologia Apesar de ter lido autores franceses e alemães não chegou a tomar contato com a monumental obra de Max Weber que também não conheceu pessoalmente Ministrou o primeiro curso de Sociologia numa universidade francesa o curso denominavase Pedagogia e Ciência Social na Faculté de Lettres de Bordeaux no período compreendido entre 1887 e 1902 Tornouse titular na Sorbonne em 1902 Apenas em 1910 conseguiu criar a cátedra de Sociologia consolidando assim o status acadêmico dessa disciplina Foi o criador da Escola Sociológica Francesa Procurou conduzir a Sociologia àquilo que Augusto Comte havia denominado de era da especialidade como já mencionado sua obra visou a conferir à Sociologia objeto e metodologia próprios tornandoa um ramo autônomo da ciência Durkheim e suas ideias Segundo Durkheim um sistema educacional moderno seria necessário para modificar ao longo do tempo a conduta dos indivíduos na direção da solidariedade e isso seria a base de uma nova ordem social Durkheim considerava a educação um fato social porque contemplava as três características necessárias para isso generalidade exterioridade e coercitividade A sociedade para ele era um organismo vivo com todos os seus elementos interligados se uma parte não funciona bem todo o restante será prejudicado Nesse chamado positivismo social a sociedade é algo mais do que a simples soma dos indivíduos que a compõem é uma entidade com atribuições e características específicas Isso porque por meio da vivência social e da educação o homem deixa a sua condição inata de indivíduo bruto uma espécie de retomada da tábula rasa de John Locke para se transformar em um ser dotado de consciência consciência que é formada nele pela sociedade O objeto segundo ele são os fatos sociais já o método é a observação e a experimentação indireta em outras palavras o método comparativo Reconhece contudo que os múltiplos aspectos da vida social dão origem a um semnúmero de ramificações da Sociologia Define fatos sociais como maneiras de agir de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo dotadas de um poder de coerção em virtude do qual se lhe impõem Diferem pois dos fenômenos orgânicos já que são representações e ações e também dos fenômenos psíquicos eis que estes existem apenas na consciência individual e precisamente por meio dela O substrato do fato social não é o indivíduo mas a sociedade em sua integralidade ou apenas parte dela confissões religiosas escolas políticas corporações profissionais etc O conceito abrange assim tudo quanto é externo ao indivíduo impondose à consciência individual por meio de um aparato coercitivo que pode ser de diferentes ordens e graus Um claro exemplo do quanto afirmado é a educação a que as crianças são submetidas desde o início de suas existências Dizia Durkheim que a educação tem justamente por objeto formar o ser social fazendoo pela imposição às crianças de determinados modos de ver sentir e agir aos quais elas não chegariam espontaneamente A coerção externa é pois o traço marcante do fato social É interessante também notar que o suicídio tema pretensamente marcado pelo egoísmo e pela individualidade tenha sido objeto de profundas considerações do filósofo Ainda na última década do século XIX fez publicar O suicídio obra considerada um ícone da Sociologia Isso porque foi o primeiro estudo de caso de suicídio que não se ateve a aspectos particulares focandose isso sim nas conexões existentes entre o indivíduo e a sociedade Buscava provar o quanto os atos individuais são influenciados pelas conjunturas sociais que envolvem os homens Para isso analisou as diferenças no número de mortes voluntárias em diferentes grupos principalmente religiosos comparandoas com o grau de integração social vivenciado por aqueles indivíduos O filósofo notou que a taxa de suicídio relação entre o número global de mortes voluntárias e a população de todas as idades e dos dois sexos é uma ordem de fatos única e determinada permanecendo constante durante longos períodos de tempo Tal invariabilidade constatou ele é mesmo maior que a dos principais fenômenos demográficos Durkheim concluiu que há sempre uma certa tendência ao suicídio claramente observável em todos os países europeus pesquisados Sendo assim estudou essa predisposição com foco nas causas pelas quais tal tendência pôde surgir Entretanto não o fez sob o ponto de vista dos indivíduos isoladamente considerados o que constituiria objeto de estudo da Psicologia mas analisando o seu grupo social daí a importância da obra para a Sociologia Quanto a esse objeto o filósofo estabelece três proposições A princípio postulou que o suicídio varia na razão inversa do grau de integração da sociedade religiosa depois que o suicídio varia na razão inversa do grau de integração da sociedade doméstica por fim que o mesmo fenômeno varia na razão inversa do grau de integração da sociedade política Durkheim aponta uma causa comum a essas três sociedades como fator de moderação da taxa de suicídios de forma a ser possível a seguinte síntese o suicídio varia na razão inversa do grau de integração dos grupos sociais de que o indivíduo faz parte Em outras palavras quanto mais enfraquecidos são os grupos a que pertence o indivíduo menos este depende deles e mais de si próprio já que não reconhece outras regras de conduta senão as estabelecidas em prol de seu interesse particular A esse estado Durkheim denomina de egoísmo ou seja o suicídio egoísta é fruto da afirmação demasiada do ego individual em face do ego social O interessante é que o filósofo vislumbra no ceifar a própria vida um relaxamento dos próprios laços sociais responsável direto pela atitude egoística do indivíduo Os incidentes da vida privada ficam nesse sentido em segundo plano Tanto assim que o suicídio é excepcional entre crianças e diminui sensivelmente entre os velhos que atingem os limites da vida O mesmo se diga da imunidade dos animais ao fenômeno Também por isso essa espécie de suicídio é raramente encontrada nas sociedades primitivas nas quais a vida social é mais simples e portanto em cujo seio menor dificuldade encontra o indivíduo em obter socialmente tudo de que necessita Nesse ponto em particular o filósofo aponta que o fato de segundo ele as mulheres suportarem melhor a vida em isolamento devese não às suas faculdades afetivas supostamente mais intensas que as do homem mas sim ao caráter rudimentar de dita sensibilidade Dizia ele como a mulher vive mais que o homem fora da vida comum a vida comum penetraa menos Assim a sociedade lhe é menos necessária porque está menos impregnada da sociabilidade Durkheim como se vê considera o homem um ser social mais complexo que a mulher Há ainda de acordo com o filósofo outras duas espécies de suicídio o altruísta e o anômico O suicídio altruísta pode ser encontrado nas sociedades primitivas já vimos que o egoísta nelas não tem lugar ou apenas raramente ocorrem Apenas no Exército ele ainda remanesce na modernidade Durkheim aduz que este pode ser reduzido a três categorias 1 suicídio de homens que chegaram ao limiar da velhice ou foram atingidos por doença 2 suicídio de mulheres por ocasião da morte do marido 3 suicídio de fiéis ou de servidores por ocasião da morte de seus chefes Em casos tais o homem privase da própria vida não porque entende possuir o direito de fazêlo mas para além disso porque se sente no dever de fazêlo O desrespeito a esse dever implica desonra ou castigos religiosos Em outras palavras no suicídio altruísta a sociedade impele o indivíduo a se sacrificar Aliás a diferença entre o suicídio egoísta e o altruísta está no papel desempenhado pela sociedade como causa naquele ela se limita a envolver o homem numa linguagem que o desliga da existência neste prescrevelhe formalmente a abandonála Sob outra perspectiva no suicídio egoísta como dissemos há um individualismo exacerbado no altruísta ocorre o oposto vislumbramos um individualismo rudimentar prostrado em relação aos fins maiores da sociedade Por fim Durkheim trata do suicídio anômico que decorre do estado de verdadeiro caos daí o termo anomia em que se encontra determinada sociedade é dizer tem lugar nos casos em que a atividade dos homens encontrase desregrada Reconhece que ele está ligado ao suicídio egoísta pois em ambos a sociedade não se faz presente nos indivíduos Mas há diferenças entre eles no egoísta a sociedade falta à atividade propriamente coletiva que fica então sem qualquer finalidade ou significação já no anômico a sociedade falta às paixões propriamente individuais deixandoas sem freio que as regule Assim ambas as espécies de suicídio são mesmo independentes uma da outra como aliás o demonstram suas clientelas o egoísta atinge mais as carreiras intelectuais ao passo que o anômico o mundo industrial ou comercial O suicídio anômico em suma ligase a desastres econômicos ou inversamente a crises originadas por um brusco aumento de poder e de riqueza No primeiro caso os indivíduos não estão ajustados à condição que lhes é imposta e tal perspectiva lhes é mesmo intolerável daí porque arrefecemse os seus laços com a existência No segundo caso as ambições superexcitadas vão sempre além dos resultados obtidos independentemente de quais sejam como resultado nada contenta o indivíduo e essa agitação permanece sem alcançar qualquer apaziguamento E os laços da vida vão progressivamente se enfraquecendo Em suma e transpondo agora o resultado de todo esse estudo para o âmbito jurídico Durkheim logrou demonstrar que níveis anormais de integração social seja para mais seja para menos podem implicar em um aumento do número de autocídios Fundamentase assim a necessidade de um correto e presente controle social Durkheim e sua influência no direito Interessante notar no ponto a aproximação com Kelsen que vê como nota característica da norma jurídica o ser dotado de sanção Veremos adiante com mais detalhamento o pensamento de Kelsen Durkheim considera a solidariedade como fato social de primeira categoria que pode ser sentido em suas formas particulares como a solidariedade doméstica a profissional a nacional etc Para ele há duas espécies de solidariedade a mecânica e a orgânica A mecânica diz o filósofo está relacionada a um certo número de estados de consciência comuns a todos os membros da mesma sociedade e é representada materialmente pelo direito repressivo ao menos no que tem de essencial Pode assim ser medida pela própria extensão do direito penal Nasce das semelhanças e liga o indivíduo à sociedade A solidariedade orgânica por sua vez é produzida pela divisão social do trabalho e difere por completo da mecânica pois ao contrário desta supõe que os indivíduos diferem uns dos outros Assim enquanto a solidariedade mecânica só se faz possível na medida em que a personalidade individual seja absorvida pela coletiva a solidariedade orgânica somente se viabiliza se ao indivíduo for assegurada uma esfera própria de ação A coesão que resulta dessa solidariedade conclui o filósofo é mais forte isso porque quanto maior a divisão do trabalho mais o indivíduo depende da sociedade para sobreviver Durkheim equipara a solidariedade orgânica àquela observada nos animais superiores no que toca à diferenciação de seus órgãos a unidade do organismo é tanto maior quanto mais acentuada seja a individualização das partes Precisamente por isso denomina dita solidariedade de orgânica O filósofo faz menção à lei histórica segundo a qual a solidariedade mecânica inicialmente a única ou quase isso perde progressivamente espaço para a solidariedade orgânica À primeira corresponde idealmente uma massa absolutamente homogênea a que Durkheim propõe chamar de horda Existe ainda hoje em sociedades inferiores como a dos índios da América do Norte Com efeito a solidariedade orgânica fruto de um sistema de órgãos diferentes a desempenhar cada qual um papel especial só pode ter lugar na medida em que a mecânica desapareça Baseiase na função que cada indivíduo desempenha no tecido social e não na consanguinidade real ou fictícia típica de estados sociais primitivos O tipo social que a caracteriza idealmente é definido pela divisão do trabalho social que determinará os traços constitutivos de sua estrutura Obviamente a passagem de um estado para outro se faz por meio de uma lenta evolução resultado do desenvolvimento e da complexidade da sociedade A EDUCAÇÃO tem por objetivo suscitar e desenvolver na criança estados físicos e morais que são requeridos pela sociedade política no seu conjunto Émile Durkheim PENSADORES ALEMÃES DO SÉCULO XX Versalhes um tratado que mudou o mundo A Primeira Guerra Mundial oficialmente encerrada em 1918 continuou seus efeitos maléficos sobre a população mundial por muitos anos Mas decerto quem sofreu mais foi o país derrotado Escrevi sobre isso em meu livro Direitos humanos 2010 A história conta que embora tivessem capitulado os dirigentes da Alemanha recusavamse a assinar o acordo internacional que lhes foi apresentado em 7 de maio de 1919 determinando os termos da paz Os alemães consideravam o acordo rigoroso demais e com cláusulas que achavam humilhantes Esse acordo de 440 artigos ficou conhecido como Tratado de Versalhes Os alemães só assinaram o documento depois que os países aliados promoveram um embargo naval que durou mais de um mês O processo de paz subordinado ao Tratado de Versalhes alterou de maneira sensível a configuração do mundo moderno tanto no sentido político quanto geográfico A Alemanha perdeu mais de 13 do seu território porque teve que abrir mão de todas as colônias ultramarinas Na Europa devolveu a Alsácia e a Lorena para a França e o porto de Dantzig e a província de Posen para a Polônia também foi forçada a reconhecer a independência da Áustria e perdeu territórios para a Bélgica Lituânia e Dinamarca A configuração mundial mudara substancialmente O Império AustroHúngaro foi desmontado em quatro países Tchecoslováquia hoje República Tcheca Hungria Polônia e Iugoslávia hoje dividida em vários países Mais ainda os países aliados também tiveram que abrir mão de protetorados no Oriente Médio com o fim do Império TurcoOtomano o Iraque a Jordânia e a Palestina deixaram o poder dos britânicos e a Síria e o Líbano dos franceses Além de perda de possessões a Alemanha sofreu outras penalidades entre elas a de pagar aos países aliados uma indenização de guerra de US 33 bilhões equivalentes a 270 milhões de marcos ouro Esses tributos de guerra levaram a Alemanha a enfrentar nas décadas seguintes inflação altíssima e consequente desemprego As revoltas internas seguiram em estado crescente e foram agravadas pela quebra da Bolsa de Nova York em 1929 que teve efeitos devastadores sobre a economia alemã A República de Weimar O Tratado de Versalhes derrubou a monarquia alemã e o país se debateu por breve período de tempo entre o socialismo e a democracia parlamentar Esse último regime venceu a disputa política e em 1919 o então presidente da Assembleia Nacional Constituinte Philipp Scheidemann proclamou a República de Weimar Sob essa nova nomenclatura a Alemanha tornouse um Estado federal democrático Gozou de certa prosperidade até 1929 mas os efeitos do Tratado de Versalhes continuavam a sufocar o país e a quebra da Bolsa de Valores de Nova York como vimos acentuou a cris e econômica levando os dirigentes a deixarem de pagar indenizações à França e à Bélgica Nesse ambiente surgiu a figura de Adolf Hitler nomeado chanceler em 1933 Esse líder iniciou campanha interna contra o que os alemães consideravam ser uma grande injustiça o Tratado de Versalhes Desenhavase um cenário de conflito que acabaria deflagrando a Segunda Guerra Mundial Um caso à parte a Escola de Frankfurt Os intelectuais alemães também procuraram participação política na vida do país Em 1924 num período em que como vimos a Alemanha se debatia entre inflação alta e tumultos sociais um grupo de pensadores decidiu criar o Instituto de Pesquisa Social Esse instituto funcionou como anexo da Universidade de Frankfurt num momento democrático da Alemanha que coincidiu com a existência da República de Weimar e com os efeitos da Revolução Russa de 1917 Nesse contexto surge um movimento em 1924 conhecido como a Escola de Frankfurt encabeçado pelo economista austríaco Carl Grumberg editor do Arquivo para a História do Pensamento Operário Compunham o grupo Theodor W Adorno filósofo sociólogo e musicólogo Walter Benjamin ensaísta e crítico literário Herbert Marcuse filósofo e Max Horkheimer filósofo e sociólogo Todos marxistas que sonhavam com a convivência harmônica entre povo e governo mais tarde se afastariam da doutrina de Karl Marx deixando a crítica da economia política para adotar a crítica da sociedade tecnicista Outros nomes importantes do marxismo foram sendo acrescentados ao longo da existência do instituto Ernst Bloch Erich Fromm Friedrich Pollock Georg Lucáks Karl Wittfogel Karl Korsh e Victor Sorge Schopenhauer e Nietzsche embora não pertencessem ao grupo também tiveram participação no movimento Salientase ainda a presença de Félix Weil como mais um dos membros da Escola mas sua importância é relativamente secundária porque foi apenas o financiador da Revista de Pesquisa Social editada pelo grupo que se tornou um dos documentos mais importantes para a compreensão do espírito europeu do século XX A Escola de Frankfurt tornase conhecida por desenvolver uma teoria crítica da sociedade unindo elementos da filosofia e da sociologia para combater o totalitarismo buscar o entendimento e promover a transformação da sociedade Seus objetivos foram consolidados no ensaio publicado em 1937 por Max Horkheimer chamado Teoria Tradicional e Teoria Crítica A Escola reunia materialismo histórico marxismo e psicanálise numa espécie de retomada do pensamento de Hegel Os seus integrantes especialmente Theodor Adorno Max Horkheimer e Herbert Marcuse consideravam que a sociedade alemã havia atingido o que se poderia chamar de sociedade de massas ou sociedade totalmente administrada com as pessoas voltadas para o individualismo acomodadas e presas à rotina Era um nivelamento por baixo Chamavam a isso de sociedade unidimensional Muitos dos intelectuais da Escola de Frankfurt foram banidos em razão de suas convicções políticas eminentemente de esquerda e também por terem origem judaica numa época em que o nazismo tomou conta da Alemanha Por essa razão o grupo perambulou por vários países Um fato marcou mundialmente a importância desse grupo Em 1940 perseguidos pela Gestapo a polícia política de Hitler alguns deles tentaram ingressar na Espanha pela fronteira com a França Foram proibidos de entrar por um funcionário da alfândega espanhola leal a Francisco Franco o ditador espanhol aliado dos nazistas Desgostoso com a situação Walter Benjamin um dos mais importantes intelectuais da Escola de Frankfurt suicidouse O incidente assumiu proporções muito grandes porque Walter Benjamin jornalista crítico de cinema e ensaísta era considerado o autor da mais perfeita tradução para o alemão do livro Em busca do tempo perdido de Marcel Proust Seu suicídio marcaria o início de uma grande resistência dos intelectuais de todo o mundo ao nazismo Embora se denominassem marxistas os participantes da Escola de Frankfurt consideravam seus estudos estritamente científicos no campo da filosofia economia estética psicanálise e ciência política O grupo aliás contestou a tese fundamental marxista de que a revolução é papel histórico do proletariado afirmava que o proletariado falhou nessa sua responsabilidade histórica ao permitir a ascensão de sistemas totalitários como o nazismo e o stalinismo Sendo assim em vez de apoiarem a revolução de classes os membros da Escola de Frankfurt voltaramse para a arte como instrumento essencial de transformação da sociedade Para lograr tal objetivo entretanto ela teria de ser aplicada adequadamente ao processo educacional Para eles o sujeito da história é o capitalismo tardio que manipula as massas O Instituto de Pesquisas Sociais lançou os fundamentos da teoria crítica um conjunto de ideias multidisciplinares sobre a cultura contemporânea que contestava o positivismo Max Horkheimer e a Teoria crítica Max Horkheimer foi o líder mais importante da Escola de Frankfurt Sucedeu o economista e historiador austríaco Carl Grünberg que ocupou a função de diretor do Instituto de Pesquisas Sociais entre 1923 e 1930 Seu pensamento chamado de Teoria Crítica foi a mais importante contribuição alemã para a filosofia na década que antecedeu a Segunda Guerra Mundial Era um posicionamento filosófico de oposição ao positivismo Max Horkheimer e suas circunstâncias Max Horkheimer liderou um grupo de intelectuais que influenciou o pensamento filosófico alemão na defesa da democracia Foi expulso pelos nazistas e viveu nos Estados Unidos onde lecionou na Universidade de Colúmbia e publicou seus principais livros Depois da guerra voltou para a Alemanha e chegou a ser reitor da Universidade de Frankfurt Foi o grande inspirador dos movimentos estudantis na França em 1968 Max Horkheimer nasceu em Stuttgart em 1895 e morreu em Nuremberg em 1973 Foi o principal pensador da teoria crítica na década que precedeu a Segunda Guerra Mundial Filósofo e psicólogo foi o criador do Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt ao lado de Friedrich Pollock e Theodor Adorno Foi o principal diretor da famosa Revista de Pesquisa Social que reuniu artigos e ensaios dos principais pensadores alemães da época Seus principais escritos foram publicados nessa revista Materialismo e metafísica O problema da verdade O último ataque à metafísica e Teoria tradicional e teoria crítica Em 1930 tornouse professor da Universidade de Frankfurt mas em 1934 com a ascensão do nazismo teve que se refugiar nos Estados Unidos Voltaria para a Alemanha em 1949 para reorganizar o Instituto de Pesquisas Sociais e para reassumir sua cadeira na Universidade de Frankfurt Max Horkheimer e suas ideias Segundo Horkheimer os fatos sensíveis vistos pelos positivistas como possuidores de um valor irredutível são formados socialmente pelos eventos históricos que os envolvem bem como pela conjuntura social em que estão inseridos Horkheimer analisou as teorias de Marx e Engels concluindo que essas ideias devem ser entendidas como indicações para pesquisas futuras e não como conceitos definitivos Contrapunha a teoria tradicional ou seja a noção de ciência concebida por Descartes a uma teoria crítica segundo a qual a ciência teria uma gênese social Por isso discordava da relevância do método para a investigação da verdade como queriam os positivistas Ao contrário defendia que o homem se rebelasse contra a ordem imposta de maneira totalitária Considerava que a existência social é que determinava a consciência dos homens dentro do seu tempo e sob certas condições com a ajuda de instrumentos de trabalho Era o que chamava de razão polêmica que somente seria possível quando o homem se libertasse de qualquer dominação e que era o oposto da razão instrumental Defendia ser necessária uma síntese entre o individual e o coletivo Para Horkheimer assim como para todos os integrantes da Escola de Frankfurt a relação entre homem e máquina é basicamente uma relação de dominação AQUELES QUE NÃO QUEREM FALAR criticamente sobre o capitalismo deveriam manter silêncio semelhante sobre o fascismo Max Horkheimer Theodor Adorno e a indústria cultural A principal contribuição desse filósofo nascido em Frankfurt em 1903 foi analisar o envolvimento das massas populares com as artes Ele considerava o racionalismo de um otimismo ingênuo Por isso acreditava que as artes seriam instrumento de emancipação cultural do povo e até de renovação da estrutura social desde que não estivessem sob o controle e monopólio de empresários interessados apenas em lucros Achava que o cinema e o rádio não passavam de negócios o que lhes tirava o caráter de arte e por isso os chamava de elementos da indústria cultural expressão que usou pela primeira vez em 1947 Theodor Adorno e suas circunstâncias Theodor Adorno foi ao lado de Max Horkheimer o criador do Instituto de Pesquisas Sociais que reunia intelectuais contrários ao positivismo vigente Envolvido com a música trabalhou com a perspectiva marxista de que a arte deve ser ferramenta de libertação social Refugiouse nos EUA durante a Segunda Guerra Mundial e lá publicou uma obra importante em parceria com Horkheimer Dialética do iluminismo Theodor Ludwig WiesengrundAdorno ao lado de ter criado com Horkheimer o Instituto de Pesquisas Sociais foi um apaixonado pela música Estudou composição musical com Alban Berg em Viena e produziu textos importantes como o ensaio A situação social da música Em 1925 conheceu outro filósofo Georg Luckács que publicou A teoria do romance e História e consciência de classe A primeira obra de sua trajetória foi uma tese sobre Kierkegaard em 1933 Outro filósofo que influenciou seus ideais foi seu amigo Walter Benjamin o pensamento adorniano é completamente identificado com os conceitos defendidos por ele Suas obras umas das mais complexas do século XX fomentaram a crítica e a rebeldia radical da sociedade dos anos 1960 e teve como vertente principal a profunda insatisfação com o mundo Com a subida dos nazistas ao poder em 1933 refugiouse na Inglaterra para lecionar na Universidade de Oxford Em 1937 mudouse para os Estados Unidos onde escreveu uma obra em parceria com Max Horkheimer Com forte influência marxista a produção intelectual de Adorno é marcada pela perspectiva da dialética Uma de suas importantes obras foi a Dialética do esclarecimento Dialetik des Aufklärun escrita em parceria com seu amigo e também filósofo Mark Horkheimer durante a Segunda Guerra Mundial Nela Adorno interpreta de forma negativa o Iluminismo e o sistema econômico e cultural do capitalismo Exilouse nos Estados Unidos entre 1937 e 1941 Para ele um europeu apurado que passara considerável parte de sua vida a se dedicar à música de Alban Berge e Schönberg a América era toda igual Um país que celebrava e pregava a individualidade visando à diferenciação entre os indivíduos para que cada um tivesse sua opinião própria e fosse diferente dos demais ao mesmo tempo em que imprimia e produzia tudo idêntico plagiado visando ao principal objetivo do sistema capitalista o lucro Analisando a mídia norteamericana ele percebeu que jornais revistas filmes rádios e os demais meios de comunicação tinham como objetivo último domesticar e monopolizar ideologicamente as massas Concluiu que o cidadão ao chegar do trabalho procurava alternativas de lazer em sua casa e era bombardeado por programas de níveis intelectuais baixíssimos intercalados com anúncios comerciais o que segundo o filósofo constituía uma espécie de monopólio das massas comprometido com a produção e o consumo desenfreado Em 1950 depois de publicar também nos Estados Unidos a obra de sociologia A personalidade autoritária voltou para a Alemanha e dedicouse a reorganizar o Instituto de Pesquisas Sociais Em 1969 envolveuse em uma polêmica com seu amigo e companheiro da Escola de Frankfurt Herbert Marcuse Adorno não apoiou estudantes que invadiram a sala em que dava aula e que tentavam dar prosseguimento dentro do Instituto aos protestos que assolavam as ruas das capitais europeias e acionou a polícia Marcuse que apoiava os estudantes repreendeuo severamente em uma série de cartas Uma delas dizia acreditar que em determinadas situações a ocupação de prédios e a interrupção de aulas são atos legítimos de protesto político Adorno veio a falecer meses depois no dia 6 de agosto de 1969 com problemas cardíacos Theodor Adorno e suas ideias Adorno explicava que o capitalismo aumentou o poder de compra da maioria da população transformandoa em simples consumidores Essa massificação do consumo é uma estratégia que apoiada pela indústria cultural mantém a sociedade dentro de uma estrutura unidimensional ou seja uma uniformização da forma de agir e de pensar A moda por exemplo é para ele um instrumento de massificação Foi um dos críticos mais fervorosos dos meios de comunicação de massa Antes de se formar iniciou a amizade com Walter Benjamin e Max Horkheimer que se tornariam seus companheiros na militância política e intelectual De acordo com o filósofo a civilização atual baseada no espírito do Iluminismo representa um domínio racional sobre a natureza e diante disso um domínio paralelo e irracional sobre o homem O nazismo e o fascismo para ele foram a pior maneira de demonstrar essa atitude autoritária de domínio de um homem sobre outro Theodor Adorno tentou mostrar na Dialética negativa o melhor caminho para uma reforma da razão com a finalidade exclusiva de pôr um fim nesse domínio autoritário sobre o homem e sobre as coisas A atitude dominadora da razão só poderia ser mudada se aceitássemos a dualidade entre sujeito e objeto interrogandose o aquele diante deste sem a noção de que se pode chegar a compreender o sujeito totalmente É preciso considerar que Adorno viveu numa época em que o mundo passava por uma completa mudança na economia advinda principalmente da Revolução Industrial iniciada na Inglaterra e que se difundiu pelo mundo a partir do século XIX Nesse contexto como já apontado acima criticava o que chamou de indústria cultural Sua tese era de que a mídia moderna não queria somente proporcionar horas de lazer ou dar informações e notícias aos seus espectadores ou ouvintes mas também e sobretudo manipular o homem até mesmo em suas horas de lazer Em sua concepção tudo o que o homem moderno faz segue a ideologia dominante que é difundida pela mídia moderna e que impede a formação de indivíduos independentes autônomos e capazes de decidir e julgar conscientemente O homem perdeu sua autonomia e em consequência disso a sociedade tornouse cada vez mais desumanizada Adorno escreveu a respeito de pequenos detalhes da vida sob um novo estilo de sociedade por ele denominada de sociedade administrada Nela o antigo liberalismo não mais estaria em vigência eis que a liberdade individual fora perdida para uma sociedade classificadora caracterizada por uma massificação intensa Na sociedade administrada em suma encontramos os elementos centrais responsáveis pela perda da individualidade e pela conformação do indivíduo à vontade das massas Para o filósofo a indústria cultural é puramente voltada aos negócios o cinema é tomado como exemplo em sua obra como um dos mecanismos de manipulação da massa O que antes era uma atividade de lazer do cidadão uma arte tornarase um eficaz meio de controle e manipulação visando dirimir toda forma de pensamento livre que o homem possa ter Em sua Teoria estética aborda a questão de como se dará a salvação do homem Alegava que o combate do mal com o próprio mal provou ser ineficaz e um exemplo dessa afirmação é a sucessão interminável de guerras Diante disso sustentava que a salvação do homem viria por meio da arte eis que ela liberta o homem das garras do sistema e o transforma em um ser autônomo portanto um ser humano Na arte o homem seria livre para agir pensar falar de seu modo possuindo total autonomia sobre seus atos o oposto portanto do observado na indústria cultural que trata o homem como mero objeto de consumo e trabalho e que visa a suprir a necessidade voraz do sistema vigente o consumismo Adorno cunhou a expressão apatia burguesa que é a melhor designação para a insensibilidade do mundo moderno Com ela buscava demonstrar sua crença de que que o mundo ficava cada vez mais insensível aos acontecimentos Vislumbrava ainda o ponto em que o homem tornarseia totalmente apático sem reação nenhuma a qualquer espécie de barbárie Seus textos e obras são de fato atemporais Uma espécie rara de construção intelectual que mesmo com o passar dos anos consegue permanecer atual Adorno logrou escrever de modo a sintetizar realidades diferentes sobre um mesmo contexto conduzindo o leitor a uma perspectiva diferente de análise e portanto de consciência De acordo com o filósofo é melhor manter em cada expressão em cada palavra uma insistência desconfiada Theodor Adorno e sua influência no direito Esse pensador colocava o nazismo como sinônimo de barbárie Considerava que a educação tinha o papel principal de impedir a volta da barbárie nazismo ou qualquer outra manifestação totalitária Até o fim da vida argumentou que todas as condições históricas e sociais que resultaram no nazismo continuam existindo por isso é preciso formar o caráter de crianças que bem educadas não permitirão que a violência ressurja violência que ele chamava como Freud de fuga da civilização Segundo Adorno a educação emancipa porque estimula a ojeriza à repressão Mas existem os obstáculos como a idolatria pelas máquinas e pela tecnologia o que chamava de fetichismo da técnica Isso torna o homem individualista egocêntrico e insensível e em resumo torna repressiva a sociedade inteira Ele considerava que existe uma tensão dialética entre indivíduo e Estado O pensamento de Adorno tem sido base para o debate da forma jurídica e do Estado Em especial para a análise de julgadores sobre as condições atenuantes de um delito como a violência familiar a fome a dominação do capitalismo repressivo etc DESBARBARIZAR tornouse a questão mais urgente da educação hoje em dia Theodor Adorno Herbert Marcuse e a ditadura da tecnologia Estudioso do pensamento de Hegel sobre quem escreveu sua tese de doutoramento em filosofia Hebert Marcuse integrou o Instituto de Pesquisas Sociais ao lado de Max Horkheimer e Theodor Adorno Como eles fugiu para os Estados Unidos para escapar da perseguição nazista mas diferentemente dos companheiros não quis voltar para a Alemanha depois que acabou a Segunda Guerra Mundial preferiu ficar na América lecionando Ciência Política na Universidade Brandeis e na Universidade da Califórnia Herbert Marcuse e suas circunstâncias Herbert Marcuse foi um crítico do socialismo soviético por ter se transformado em sistema totalitário Criticou também a ditadura da tecnologia que transforma o homem em uma espécie de autômato sem possibilidade de escolha Foi um dos criadores do Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt ao lado de Horkheimer e Adorno Tornouse uma espécie de guru dos estudantes europeus e suas ideias foram a base para as revoltas estudantis da Alemanha e da França no final da década de 1960 Herbert Marcuse nasceu em Berlim em 1898 Foi considerado o filósofo da revolução ao estudar profundamente o capitalismo e o comunismo Contra o capitalismo escreveu que a industrialização promoveu uma pasteurização de necessidades limitando as potencialidades individuais e praticando uma nova espécie de dominação totalitária baseada na tecnologia industrial Contra o comunismo questionou a sua transformação em um sistema totalitário baseado na burocracia e na repressão às liberdades individuais Em ambos os sistemas políticos enxergava a noção de nacionalismo como pretexto das classes dominantes para atuarem de maneira totalitária uma ideia já contida no pensamento de Karl Marx Judeu foi perseguido pela polícia política nazista e precisou refugiarse nos Estados Unidos em 1942 Além de lecionar ciência política trabalhou no Departamento de Estado norteamericano Naturalizouse cidadão norteamericano mas morreu em Frankfurt em 1979 de infarto aos 81 anos Herbert Marcuse e suas ideias Na década de 1950 publicou dois livros importantes O primeiro foi Eros e a civilização em que mostra numa perspectiva freudiana que a sociedade cria obstáculos para a realização dos desejos individuais e portanto para a concretização da felicidade O segundo foi Marxismo soviético voltado para a crítica aos desvios que os soviéticos aplicaram ao pensamento humanista de Karl Marx Para Marcuse a sociedade moderna impôs uma racionalidade tecnológica de dominação e manipulação em massa do controle da ideologia e dos pensamentos humanos Assim o homem se tornou objeto da sociedade industrial Por não ter liberdade de pensamento e estar sujeito a tal manipulação o homem não consegue se opor ao sistema e se torna completamente submisso Em Eros e a civilização 1955 Marcuse se utiliza da psicanálise para compreender melhor a repressão sexual utilizada para a autoconservação da sociedade Ele também abordou o que chamou de super repressão e princípio do rendimento segundo o qual uma série de imposições e restrições auxiliam na domesticação do homem para o convívio em sociedade De acordo com essa tese a integridade e a existência da sociedade constituem prioridades perante a conservação do indivíduo a superrepressão não apenas fragmenta as condições existenciais e sociais como também a sexualidade O conceito de superrepressão e o princípio do rendimento foram em verdade uma tentativa de Marcuse de relacionar a psicanálise de Freud com o marxismo Foram desenvolvidos com o intuito de conjugar as concepções sociológicas com as históricas da psicanálise e desse modo adequálas ao marxismo Em 1964 publicou A ideologia da sociedade industrial mostrando que o homem é produto de uma sociedade massificada esmagado pelo aparato da tecnologia sem liberdade de escolha Diz ainda que a sociedade pósindustrial é repressiva e estimula um constante estado de beligerância Nessa obra questiona o capitalismo globalizado com ideias que foram fundamentais para a eclosão dos movimentos estudantis na Alemanha e na França no final da década de 1960 Herbert Marcuse preocupouse com o desenvolvimento descontrolado da tecnologia especialmente na produção industrial que leva à massificação do consumo e à invenção de necessidades o que apartaria o homem da possibilidade de escolha Foi ele quem criou a já citada expressão sociedade unidimensional que reflete o tamanho do poder exercido pela sociedade industrial sobre o pensamento humano e as falsas necessidades criadas que integravam o indivíduo ao sistema de produção e de consumo Em 1969 envolveuse na já mencionada polêmica com seu colega da Escola de Frankfurt Theodor Adorno Marcuse manifesto defensor dos direitos estudantis digladiouse em cartas trocadas com o amigo após Adorno chamar a polícia quando teve a sala onde ministrava aulas invadida por uma manifestação estudantil Da mesma forma que Adorno Marcuse criticava os meios de comunicação de massa bem como a cultura e os modos de pensamento contemporâneos tudo a formar uma sociedade unidimensional nas ideias e no comportamento eliminando assim qualquer aptidão para o pensamento crítico Para o filósofo a tecnologia no modo de produção é fundamental como forma de modificar e organizar as relações sociais A manifestação do pensamento e dos padrões de comportamento dominantes é reproduzida de forma fiel e isso decorre diretamente da organização da estrutura industrial voltada integralmente para satisfazer as necessidades crescentes dos indivíduos Marcuse também sustentou em suas obras que a crescente produtividade de serviços e mercadorias traz hábitos e atitudes anteriormente abolidos e acaba por mobilizar a sociedade com a utópica promessa do entretenimento do lazer e do ócio Nesse sentido a sociedade tornase totalitária e pode exigir dos indivíduos a aceitação de suas instituições e princípios pois o objetivo fulcral é o aumento de produtividade para a satisfação das necessidades do homem A realidade contemporânea foi apresentada por Marcuse da seguinte forma consumir para produzir e produzir para consumir Sendo assim o indivíduo que não atinge as demandas e as necessidades de consumo e produção impostas pela sociedade sentese humilhado é esta a essência do consumismo O sistema de vida imposto pela indústria moderna é eficaz e conveniente para o trabalhador No capitalismo contestado por Marcuse os valores que predominam na sociedade estão inequivocadamente ligados a esse princípio em torno do qual tudo gira no mundo moderno o lucro As necessidades dos cidadãos que eles consideram úteis não passam de necessidades forjadas e impostas pelos interesses do capital mormente a necessidade de consumir em sobejo Sustenta Marcuse que a sociedade industrial transforma todo o progresso técnico e científico em meio de manipulação Quanto mais a tecnologia gera condições para a pacificação mais o corpo e a mente dos indivíduos são dispostos contra essa alternativa Segundo o filósofo essa é a incoerência interna desta sociedade o elemento irracional de sua racionalidade Por consequência a sociedade industrial acaba sendo estruturada de modo que a dominação do homem também sirva para utilização eficaz de seus recursos A dominação se propaga por todas as esferas das vidas privada e pública A racionalidade tecnológica mostra o seu caráter político no qual a natureza o corpo a sociedade mantêmse num estado ininterrupto de mobilização para defesa desse sistema Herbert Marcuse questiona a ideia superficial de progresso segundo a qual a produtividade é o objetivo principal afastada a indagação sobre a finalidade almejada pelo referido progresso econômico Segundo o filósofo a racionalidade tecnológica possui no capitalismo uma ligação moral indissolúvel com a manipulação política O processo de reconquista da liberdade individual somente seria viável com a denominada Grande Recusa ou seja recusar totalmente o sistema de vida estabelecido pela sociedade atual o que deveria ocorrer por meio de manifestações revolucionárias lideradas pelos jovens estudantes Marcuse acreditava que os jovens eram a melhor arma revolucionária pois o restante do povo em geral já estaria corrompido pelo sistema da sociedade industrial Herbert Marcuse e sua influência no direito Na chamada sociedade tecnológica diz Marcuse desaparecem os direitos e liberdades individuais porque o indivíduo está alienado oprimido não tem os seus valores respeitados A máquina é mais importante do que ele Com isso a sociedade se degrada É o que ele chama de mecânica do conformismo o homem sucumbe ao sistema capitalista de consumo adere às necessidades falsas veiculadas pela publicidade para de pensar e de contestar e com isso deixa de ser livre Em suma o progresso e os avanços da tecnologia acabam se transformando em instrumentos de dominação Não há como não considerar o que ocorre nos dias de hoje de consumo de massa com a invasão do espaço privado nos email nos celulares nas páginas das redes sociais Recordar Herbert Marcuse é pensar na sua contribuição ao desenvolver uma teoria social que prima pela crítica à sociedade industrial de exploração A partir de sua teoria no livro A ideologia da sociedade industrial de 1964 estudantes de vários países promoveram manifestações revolucionárias em 1968 contra o imperialismo capitalista e socialista e as ditaduras E o pensamento desse filósofo pode ajudar a explicar os movimentos de junho de 2013 nas grandes cidades brasileiras é o que ele chamou de A grande recusa em que as massas contestam fortemente a falta de autonomia imposta pelo mercado do consumo A SOCIEDADE UNIDIMENSIONAL em desenvolvimento altera a relação entre o racional e o irracional Contrastado com os aspectos fantásticos e insanos de sua irracionalidade o reino do irracional se torna o lar do realmente racional das ideias que podem promover a arte da vida Herbert Marcuse Cronologia da Escola de Frankfurt 1924 Fundação do Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt A ideia teve início durante um colóquio de que participaram Georg Lukács Pollock entre outros 1928 Benjamin vê rejeitada sua tese sobre As origens da tragédia barroca na Alemanha 1932 Criação da Revista para a Pesquisa Social editada em Leipzig entre 1932 e 1933 A revista mudou o foco de análise da economia para a filosofia social 1933 O Instituto de Pesquisas Sociais transferese para Genebra com a chegada do nazismo ao poder na Alemanha A Revista para a Pesquisa Social passa a ser editada na França 1936 Benjamin publica em francês A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica 1937 Horkheimer lança o ensaio Teoria tradicional e teoria crítica uma espécie de manifesto da Escola de Frankfurt 1938 Adorno viaja para os Estados Unidos 1939 Adorno publica Fragmentos sobre Wagner no ano em que começa a Segunda Guerra Mundial A Revista para a Pesquisa Social começa a ser editada em Nova York e muda de nome Estudos de Filosofia e Ciência Social Em 1941 a revista foi descontinuada 1940 Benjamin suicidase No mesmo ano são publicadas suas teses sobre a Filosofia da História 1947 Adorno e Horkheimer empregam pela primeira vez a expressão indústria cultural 1950 Reorganização do Instituto de Pesquisas Sociais na Alemanha Adorno publica seu estudo sobre a Personalidade autoritária 1951 Horkheimer profere as primeiras conferências sobre o conceito de razão 1954 Habermas defende tese sobre Schelling O absoluto e a história 1955 Publicação do original alemão de A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica de Walter Benjamin Herbert Marcuse publica Eros e a civilização 1956 Adorno publica Para a metacrítica da teoria do conhecimento estudos sobre Husserl e as antinomias fenomenológicas 1958 Adorno inicia uma série de publicações chamada Ensaios de literatura Herbert Marcuse publica Marxismo soviético 1959 Habermas inicia colaboração com Adorno 1961 Adorno inicia a Teoria estética 1962 Habermas publica sua tese de doutorado Evolução estrutural da vida pública 1963 Habermas publica Teoria e práxis 1964 Herbert Marcuse publica A ideologia da sociedade industrial 1966 Adorno publica a Dialética negativa 1968 Adorno conclui a primeira versão da Teoria estética No mesmo ano Habermas publica Técnica e ciência como ideologia 1969 A 6 de agosto com 66 anos falece Theodor WiesengrundAdorno 1973 A 9 de julho com 78 anos de idade morre Max Horkheimer 1979 A 29 de julho com 81 anos incompletos morre Herbert Marcuse NA TANGÊNCIA DA FILOSOFIA Sigmund Freud o criador da psicanálise Os filósofos da Escola de Frankfurt basearam muitos de seus estudos na concepção psicanalítica de Sigmund Freud Médico austríaco que viveu entre 1856 e 1939 Freud nasceu na cidade de Freiberg então pertencente ao Império AustroHúngaro hoje Pribor na República Tcheca Aos 4 anos foi levado com a família a morar em Viena em razão da falência do comércio de tecidos do pai um negociante judeu Na capital da Áustria estudou Medicina e especializouse em neurologia Foi aluno de Franz Brentano e colega de Edmund Husserl Embora tido como bemhumorado Freud sofreu de depressão principalmente por causa da perseguição praticada contra os judeus na época de sua infância e mocidade Passou a usar cocaína então um medicamento recomendado como estimulante Estudou os efeitos anestésicos da droga na medicina tendo chegado a publicar o artigo científico Sobre a cocaína em 1884 Seu primeiro livro foi Estudo sobre a histeria de 1895 explicando que muitas vezes são as emoções reprimidas que levam à histeria verificando ainda que os sintomas desaparecem quando a pessoa consegue expressarse Era o primeiro passo para estabelecer o desejo como força motora da personalidade humana A livre associação de ideias base da técnica psicanalítica é considerada a sua grande contribuição para a psicologia e a própria medicina Nessa técnica o médico estimula o paciente a exprimir sem censura qualquer coisa que lhe venha à mente exibindo assim memórias reprimidas que inconscientemente podem ter se transformado em neuroses Para confirmar suas teses Freud fez autoanálise durante anos para perscrutar a sua vida inconsciente o que lhe permitiu perceber que os sonhos são maneiras simbólicas encontradas pela mente para expressar desejos não preenchidos e memórias escondidas A partir dessa conclusão estabeleceu que os sonhos se encontram num patamar além do consciente o inconsciente e podem ajudar a explicar a razão de determinadas atitudes e comportamentos Seus dois principais livros são A interpretação dos sonhos e Psicopatologia da vida diária ambos publicados em 1899 Em 1923 escreveu O ego e o id com uma teoria completa sobre a mente humana Foi também ele quem elaborou a afamada teoria do complexo de Édipo Em 1908 criou a Sociedade Psicanalítica de Viena Um de seus seguidores foi Ernest Jones que mais tarde seria seu principal biógrafo Outros membros importantes do grupo foram Karl Abraham e Sandor Ferenczi Também discípulos inicialmente Alfred Adler e Carl Jung terminaram por discordar das ideias do mestre e criar cada um a sua teoria Adler elegeu o poder como força motora da personalidade humana e Jung colocou o indivíduo como mera parte de um todo maior que chamou de inconsciente coletivo Com a tomada de poder pelos nazistas Freud foi perseguido e teve seus livros queimados Em 1938 fugiu para a Inglaterra onde morreu um ano depois A RENÚNCIA PROGRESSIVA dos instintos parece ser um dos fundamentos do desenvolvimento da civilização humana Sigmund Freud Albert Einstein e a física moderna Nascido na cidade de Ulm na Alemanha em 1879 Albert Einstein é considerado o mais importante cientista dos séculos XIX e XX Levado pela família para a Suíça lá estudou e obteve o grau de doutor Lecionou física teórica em Berna Zurique e Praga Voltou para a Alemanha em 1914 tornandose diretor do Instituto Kaiser Guilherme de Física e professor na Universidade de Berlim Em 1933 perseguido pelos nazistas por ser judeu renunciou à cidadania alemã imigrou para os Estados Unidos e foi lecionar na Universidade de Princeton Fato interessante foi que os alemães chegaram a invadir a sua casa sob o argumento de que ele possuiria armas de destruição em massa ali escondidas Entretanto segundo os relatórios oficiais o objeto mais mortal encontrado pelos alemães nessa investida foi uma faca de cozinha Ficou muitos anos na situação de apátrida consideravase um cidadão do mundo Em 1940 adotou a cidadania norteamericana tendo ajudado grandemente os aliados contra a ameaça nazista na Segunda Guerra Mundial Em 1952 depois que a ONU criou o Estado de Israel Einstein foi convidado pelo primeiroministro Bem Gurion para assumir o posto de presidente do recémcriado Estado não aceitou porque estava doente mas colaborou com o Dr Chaim Weizmann na implantação da Universidade Hebraica de Jerusalém No início de seu trabalho científico questionou a mecânica de Newton Mais tarde com a Teoria da Relatividade publicada em 1905 com o título de Teoria Especial da Relatividade completada em 1916 com Fundamento geral da teoria da relatividade estabeleceu as conexões entre as leis da mecânica e as leis do campo eletromagnético explicando o movimento das moléculas Em 1919 durante um eclipse solar teve oportunidade de ver sua teoria da Relatividade Geral comprovada por uma série de estudos desenvolvidos na cidade de Sobral no Ceará Ganhou o Prêmio Nobel de Física de 1921 por causa de suas descobertas que propiciaram verdadeira revolução não apenas na ciência mas em todas as áreas do pensamento humano inclusive a filosofia Interessante que na época suas teorias eram ainda de tal forma desconhecidas e criticadas pela comunidade científica que o referido prêmio foi concedido tendo em vista uma de suas teorias hoje considerada diante do restante de sua produção intelectual de somenos importância aquela relacionada ao efeito fotoelétrico Einstein realizou em 1925 uma viagem à América do Sul onde visitou diversos países entre eles o Brasil Infelizmente dos relatos de Einstein acerca desta viagem ao nosso país extraise que o que mais lhe marcou a viagem foi a desorganização dos eventos em que aqui participou Importante registrar que foi devido à propaganda nazista que este grande cientista ficou mundialmente conhecido como o responsável pelo desenvolvimento da bomba atômica Entretanto na realidade justamente por ter origem alemã nunca teve qualquer participação no afamado Projeto Manhatam que se iniciou em 1941 e foi coordenado por seu amigo o físico nuclear e antifascista Julius Robert Oppenheimer A famosa carta enviada em 1955 ao então presidente dos Estados Unidos Bertrand Russell que passou para a história como o documento no qual Einstein teria incentivado as autoridades ao desenvolvimento de armas nucleares em realidade nunca teve esse escopo Ocorre que naquela época alguns físicos alemães tomaram contato com transações secretas de compra de urânio e outros materiais radioativos por parte das tropas alemães Receosos do pior houveram por bem alertar Einstein justamente por sua grande influência política e social na América Sendo assim a afamada carta apenas alertava ao presidente do risco que tais materiais poderiam representar Em verdade durante toda a sua vida Einstein foi um pacifista Sempre exortou todas as nações a abandonarem as pesquisas para a construção de bombas nucleares chegando até mesmo a aproveitarse da fama que tanto desprezava para promover diversas manifestações públicas nesse sentido Seu trabalho científico apesar de direcionado para a física propiciou aos intelectuais da época uma compreensão aperfeiçoada de todo o universo Outras obras importantes de Albert Einstein Sobre o sionismo Por que a guerra e talvez a mais famosa delas Minha filosofia Ainda no campo da Filosofia outro importante resultado adveio de suas pesquisas científicas Einstein sempre olhou com desconfiança a forma como a física pretendia explicar o Universo Na época para cada tipo de circunstância e interrelação observadas pela experiência as ciências apresentavam fórmulas e sistemas distintos para descrever os fenômenos físicos Entretanto Einstein acreditava que o Universo deveria ser considerado um todo harmônico de tal forma que não poderiam existir leis que fossem válidas para descrever uma parte de suas manifestações e ao mesmo tempo inaplicáveis à descrição de outras Resumindo essa sua inquietude intelectual chegou a afirmar Sou por natureza inimigo das dualidades Dois fenômenos ou dois conceitos que parecem opostos ou diversos me ofendem Assim agindo permaneço fiel ao espírito da ciência que desde o tempo dos gregos sempre aspirou à unidade Foi com base nesse grande objetivo que desenvolveu suas tão revolucionárias teorias Através delas conseguiu demonstrar que inúmeros fenômenos antes considerados distintos e independentes eram na realidade simples manifestações distintas de uma única realidade Assim demonstrou que o espaço e o tempo na realidade eram manifestações de uma única entidade que passou a denominar espaçotempo A partir do momento que demonstrou que essa nova entidade espaçotempo curvavase com a presença de massa também demonstrou que os conceitos de aceleração e gravidade estavam profundamente relacionados Por fim em uma das mais belas simplificações já vistas na história da ciência mundial conseguiu solucionar a grande questão que assolou filósofos e cientistas por tantos séculos demonstrou que matéria e energia não são mais que manifestações diferentes de um mesmo objeto Com isso desenvolveu essa que talvez seja a mais famosa em que pese menos compreendida fórmula de física Emc2 Entretanto ainda não estava satisfeito Observava que a física moderna ainda se encontrava e em geral até os dias atuais ainda está dividida em dois grandes campos A Física Relativística utilizada para a descrição dos fenômenos macroscópicos e a Física Quântica que ele ajudou a desenvolver utilizada para a descrição dos fenômenos microscópicos Foi com o intuito de unificálos que Einstein mergulhou em sua última e maior empreitada o desenvolvimento de uma Teoria Sobre Tudo que pudesse ser aplicada indistintamente desde as menores até as mais extremas manifestações do universo conhecido Abandonado pela comunidade científica que não acreditava ser possível semelhante formulação empreendeu sozinho essa heroica caminhada em busca daquela que ficou mundialmente conhecida como Teoria do Campo Unitário Até os dias atuais alguns dos maiores nomes da física continuam defendendo a impossibilidade dessa tese tais como o afamado professor emérito da Universidade de Cambrige e sucessor da cátedra de Isaac Newton Stephen William Hawking Entretanto sem nunca desistir desse seu propósito foi ao final de sua vida que escreveu um pequeno texto autobiográfico denominado A unidade da vida onde afirmava ter encontrado a tão buscada formulação É nesse singelo mas significativo texto até hoje não foi levado em consideração pela sociedade científica tendo em vista que não traz explicações técnicas acerca de suas afirmações que Einstein vem a concluir que todos os esforços de síntese das ciências levariam invariavelmente a um único conceito o Movimento Retomando esse conceito que como dito anteriormente já era mencionado por Heráclito de Éfeso e foi retomado por Giordano Bruno e após por Leibniz Einstein encerra seu texto com os seguintes dizeres No Princípio disse São João era o Verbo No Princípio disse Goethe era a Ação No Princípio e no Fim digo eu era o Movimento Não podemos dizer nem saber mais À força de Unificar é necessário obter algo incrivelmente simples NÃO SEI COMO SERÁ a Terceira Guerra Mundial mas a quarta será lutada com paus e pedras Albert Einstein FILÓSOFOS POSITIVISTAS DO SÉCULO XX O século XX foi marcado com significativos avanços em diversas áreas Inúmeras evoluções da tecnologia e da política determinaram a independência de antigas colônias por todo o globo Já com o advento da informática com as pesquisas nucleares e com a crise do petróleo que definiu nova abordagem econômica mundial surgem novas reflexões filosóficas e consequentemente jurídicas Uma das questões levantadas nas primeiras décadas do século foi a rejeição ao materialismo até então a doutrina dominante a partir do positivismo Alguns filósofos passaram a defender que embora a base do conhecimento continuasse a ser científica apenas a consciência permitiria a compreensão do resultado das pesquisas A consciência formaria o conjunto da cultura somada aos sentimentos e aos ideais religiosos e morais Esse movimento intelectual seria chamado de neopositivismo ou espiritualismo Henri Bergson e o fim da era cartesiana Com uma análise social que desce à grande profundidade Bergson criou um sistema filosófico que representou um marco porque contesta a dialética de Hegel e também as ideias racionais de Descartes Filosofia é uma coisa ciência é outra dizia Bergson criticando os cartesianos Seu sistema é um novo positivismo não mais baseado no materialismo da ciência mas apoiado numa visão biológica o que vale a partir de seu sistema é a consciência algo que o homem adquire como resultado do somatório de sua individualidade psíquica da vida em grupo e da cultura de sua época Henri Bergson e suas circunstâncias Henri Bergson recebeu o prêmio Nobel de Literatura em 1927 pelo conjunto de suas obras Influenciou escritores importantes como Marcel Proust e George Bernard Shaw Costumava dizer que o homem é o único animal que ri No livro Introdução à metafísica de 1903 criou um sistema filosófico que prevê que a consciência existe em dois níveis O primeiro nível está no eu profundo que o homem alcança pela introspecção intuitiva e é lá que reside a criatividade e a vontade O segundo nível é apenas uma projeção exterior do primeiro Henri Bergson nasceu em Paris em 1859 Passou a vida ensinando em vários colégios da França Produziu muitos livros propondo uma nova abordagem positiva da realidade tendo como base a consciência e não mais a subjetividade ou a história Inaugurou uma nova fase do positivismo que contesta o racionalismo do século XVII Seus livros não eram somente tratados de filosofia mas textos literários primorosos cheios de metáforas e analogias o que lhe valeu o prêmio Nobel de Literatura de 1927 Teve grande expressão nos meios acadêmicos com a sua tese de doutorado sobre o riso especialmente na área da crítica literária O riso ensaio sobre a significação da comicidade publicado em 1900 é uma retomada aristotélica da noção de que o riso é a atitude que representa de melhor forma a vida social o homem ri depois que se acostuma aos seus próprios dramas e assim acostumado tornase insensível e por essa razão deixa de dar importância aos problemas que passam a ser vistos sob uma perspectiva cômica Aristóteles falou sobre o hábito social de rir dos outros em seu livro A retórica Nessa teoria da comédia a vida é mais cômica do que dramática dizia Henri Bergson ou seja algo próximo do que Marx dizia sobre a história que se repete da primeira vez como tragédia da segunda vez como farsa Não devemos nos esquecer de que o riso na Idade Média era considerado instrumento do demônio e era proibido Morreu em 1941 Henri Bergson e suas ideias Sofreu grande influência de Herbert Spencer John Stuart Mill e Charles Darwin mas sua filosofia contesta principalmente os sistemas racionalistas desses três pensadores Determinou que o mundo real tem uma metade composta de matéria mas a outra metade é um elã vital vontade desejo alma que constitui a base da evolução Com essa ideia opunhase à seleção natural de Charles Darwin Em vários livros debateu o que considerava equívocos da filosofia e da ciência nesse estudo principalmente o dualismo almacorpo da metafísica clássica Para Bergson o conhecimento era multidisciplinar e a sua aquisição tinha grande influência da percepção Seu sistema filosófico era composto de quatro elementos O primeiro é a intuição uma capacidade intelectual que nos leva a identificar o que uma coisa tem de único O segundo é a durée duração em francês uma teoria que relaciona tempo espaço e consciência O terceiro é a memória ou seja o acúmulo de conhecimento incorporado que permite a análise comparativa de um objeto ou de um ser com outros objetos ou seres conhecidos O quarto elemento é o elã vital ou seja a alma Suas ideias são muito utilizadas em psicologia na teoria da percepção e até na música na relação tempoespaço O QUE TEM MAIS faltado à filosofia é a precisão Henri Bergson Edmund Husserl e o método fenomenológico O pensamento filosófico contemporâneo foi decisivamente influenciado por Edmund Husserl e por Henri Bergson Inicialmente dedicado a estudos matemáticos Husserl surgiu como filósofo em 1900 com o livro Investigações lógicas Em 1913 porém publicou aquela que é considerada a sua maior obra Ideias relativas a uma fenomenologia pura um aprofundamento da teoria de seu professor Franz Brentano sobre a intencionalidade da consciência humana Com esse livro estudou os fenômenos ou seja os dados reais oferecidos pela consciência Edmund Husserl e suas circunstâncias Edmund Husserl estudou com o filósofo Franz Brentano tendo sido colega de Sigmund Freud Teve como assistente quando lecionava na Universidade de Friburgo ninguém menos que Martin Heidegger que seguiria suas ideias Sua doutrina da fenomenologia foi ampliada na França principalmente na filosofia existencialista de JeanPaul Sartre e nos estudos de Merleau Ponty Edmund Husserl nasceu na Morávia uma província do então Império AustroHúngaro que hoje pertence à República Tcheca em 1859 Obteve grau de doutor em matemática na Universidade de Berlim Dedicouse à filosofia depois de ter sido aluno de Franz Brentano Foi professor nas Universidades de Halle Goettingen e Friburgo Em 1900 publicou As investigações lógicas mas ganharia prestígio em 1911 ao publicar na revista Logus um artigo chamado A filosofia como ciência rigorosa que abriu caminho para a produção da sua obra mais importante Ideias relativas a uma fenomenologia pura e uma filosofia fenomenológica publicada em 1913 Produziu ainda muitos outros livros cujos originais tiveram que ser levados para o exterior porque seus trabalhos foram proibidos na Alemanha nazista Vários dos seus livros só seriam publicados depois do fim da Segunda Guerra Mundial Husserl não testemunhou isso porque morreu em 1938 Ainda existem escritos inéditos seus guardados na Universidade de Louvain na Bélgica e na Universidade de Colônia na Alemanha Para entender a fenomenologia de Franz Brentano A fenomenologia foi a teoria elaborada pelo filósofo alemão Franz Brentano que viveu entre 1838 e 1917 Autor do livro Psicologia a partir de um ponto de vista empírico Brentano buscou sistematizar o que chamava de ciência da alma Para esse alemão no relacionamento entre o físico e o psíquico era mais importante o processo mental do que o conteúdo da mente Brentano propunha a eliminação da distinção entre sujeito e objeto ao contrário do que queriam os positivistas do século XIX Acreditava que a mente podia referirse aos objetos de três maneiras por meio da percepção e da idealização para isso usava a sensação e as imagens pelo julgamento que seria baseado em reconhecimento rejeição e recordação e pelo amor ou pelo ódio ambos baseados em desejos vontade e sentimentos Edmund Husserl e suas ideias O método fenomenológico de Husserl consiste simplesmente em mostrar o objeto o dado real e em esclarecer esse dado Por isso o saber está baseado na essência do objeto e não nas impressões do sujeito sobre o objeto Nesse sentido Husserl é positivista No entanto seu método considera que o objeto é mais do que aquilo que se pode verificar com a experiência sensível É exatamente nisso que reside a originalidade de Husserl Ele queria ver o mundo de maneira pura despida de impressões comparações ou associações Ao buscar a essência de cada objeto ou ser nessa chamada consciência pura Husserl escapa do racionalismo que dizia que o conhecimento se originava somente da razão do sujeito e ao mesmo tempo escapa do empirismo que dizia que o conhecimento era obtido apenas por meio da experiência sobre o objeto EU EXISTO e tudo o que não sou eu é um mero fenômeno que se dissolve em ligações fenomenais Edmund Husserl Bertrand Russell e a filosofia na vida política Considerado um dos fundadores da filosofia analítica foi um matemático britânico cuja principal contribuição está contida no livro Principia mathematica Princípios matemáticos Nesse livro desenvolveu a chamada Teoria dos Tipos Segundo essa teoria matemática existe uma hierarquia nas coisas um conjunto não pode ser membro de si mesmo nem de qualquer conjunto de tipo inferior Com esse livro Bertrand Russell entrou para a história como um dos maiores lógicos do século XX Mas não foi somente na matemática que a contribuição de Bertrand Russell é apreciada Ao longo de sua extensa carreira morreu aos 97 anos escreveu também sobre educação história teoria política e religião Bertrand Russell e suas circunstâncias Bertrand Russell foi contemplado com o prêmio Nobel de Literatura em 1950 É considerado um dos maiores lógicos do século XX Escreveu alguns livros de modo bastante simples contribuindo para a popularização da filosofia Foi um dos fundadores da filosofia analítica Além de filósofo foi ativista político participando de importantes protestos contra as guerras e contra as armas nucleares Bertrand Russell nasceu em 1872 no País de Gales Foi criado pelo avô Lord John Russell ex primeiroministro britânico Estudou filosofia e lógica na Universidade de Cambridge Iniciou carreira publicando ensaios em revistas especializadas Durante a Primeira Guerra Mundial foi um ativista político Em razão de seus protestos contra a guerra foi expulso do Colégio Trinity e mais tarde condenado a cinco meses de prisão Foi na prisão em 1918 que escreveu Introdução à filosofia matemática Depois da Primeira Guerra Mundial viveu na Rússia e na China Tornouse conhecido escrevendo livros populares sobre ética e filosofia Voltou para a Inglaterra onde fundou uma escola experimental chamada Beacon Hill Chegou a concorrer a uma vaga no Parlamento inglês por três vezes e por três vezes foi derrotado em 1907 1922 e 1923 Em 1939 foi morar nos Estados Unidos onde lecionou na Universidade da Califórnia e depois no City College de Nova York mas teve sua nomeação como professor anulada por causa de suas opiniões radicais Ainda assim permaneceu nos Estados Unidos até 1944 quando retornou para a Inglaterra voltando a lecionar no Colégio Trinity de onde fora expulso em 1916 Não deixou de ter participação política nos eventos mundiais Em 1957 foi o responsável por uma campanha global pelo desarmamento nuclear de cuja origem participaram grandes nomes como o de Albert Einstein no movimento denominado Pugwash Pugwash uma cidade do Canadá foi onde Bertrand Russell e Joseph Rotblat promoveram as Conferências sobre Ciência e Negócios Mundiais depois da publicação do Manifesto RussellEinstein ver adiante neste tópico Em 1962 Bertrand Russell foi mediador na famosa crise dos mísseis em Cuba e sua ingerência impediu a ocorrência de um conflito atômico que poderia ter assumido repercussão mundial Também nos anos 1960 protestou ferozmente contra a intervenção norteamericana no Vietnã Em 1963 criou a Fundação Bertrand Russell para a Paz Morreu em 1970 Bertrand Russell e suas ideias Esse pensador promoveu a famosa distinção entre duas espécies de conhecimento da verdade Uma delas é direta intuitiva e infalível A outra é indireta derivativa e sujeita a erro Cada conhecimento indireto só pode ser justificado se derivar de um conhecimento direto Por exemplo quando alguém sente calor ou frio sente sem precisar perguntar a um cientista se realmente está fazendo calor ou frio Portanto a verdade que pode ser conhecida diretamente está embasada sobre fatos imediatos da sensação e verdades lógicas Bertrand Russell considerava que uma das tarefas dos filósofos era descobrir uma linguagem logicamente ideal que pudesse evidenciar a verdadeira natureza do mundo de modo a impedir desentendimentos decorrentes da estrutura vaga e ambígua da linguagem natural uma ideia que Ludwig Wittgenstein desenvolveria mais profundamente Por exemplo separou três diferentes sentidos da forma verbal é Esse verbo pode ser usado para indicar predicado identidade ou existência Sendo assim propôs usar um símbolo para cada sentido para determinar logicamente a intenção de quem formula a frase Desse modo pensava ele seria possível dar clareza e lógica a uma afirmação filosófica A EDUCAÇÃO é a chave para o novo mundo Bertrand Russell O Manifesto RussellEinstein Em 1954 o mundo ainda estava estarrecido diante da brutalidade que fora o lançamento pelos Estados Unidos de duas bombas atômicas sobre o território japonês que atingiram Hiroshima e Nagasaki Mas desde 1946 os Estados Unidos vinham fazendo testes com bombas de hidrogênio e bombas nucleares detonando mais de vinte ogivas no Atol de Bikini pertencente às Ilhas Marshall Em 1954 Bertrand Russell leu na BBC um texto que teve por título O perigo do homem condenando os testes no Atol de Bikini Em 1955 Bertrand Russell escreveu junto com Albert Einstein um manifesto contra o uso bélico desses artefatos A seguir o texto do manifesto numa tradução livre de nossa autoria Na trágica situação que a humanidade enfrenta entendemos que os cientistas devem se reunir em conferência para avaliar os perigos que surgiram como resultado do desenvolvimento de armas de destruição em massa e para discutir uma resolução de acordo com o espírito do rascunho anexado Estamos falando nesta ocasião não como membros deste ou daquele país continente ou credo mas como seres humanos membros da espécie humana cuja sobrevivência está em dúvida O mundo está cheio de conflitos e fazendo sombra a todos os conflitos menores a luta titânica entre comunismo e anticomunismo Quase todo mundo que é politicamente consciente tem fortes sentimentos acerca de uma ou mais dessas questões mas queremos que você se puder ponha de lado esses sentimentos e considerese apenas como membro de uma espécie biológica que teve uma excelente história e cujo desaparecimento nenhum de nós deseja Tentaremos não usar qualquer palavra que possa indicar apelo a um grupo em detrimento de outro Todos igualmente estamos em perigo e se o perigo for compreendido há esperança de que possamos coletivamente evitálo Temos de aprender a pensar de um jeito novo Temos de aprender a nos perguntar não sobre os passos que devem ser tomados para dar vitória militar para qualquer grupo que preferimos uma vez que não existem esses passos a questão que temos de nos perguntar é esta que medidas podem ser tomadas para evitar uma corrida militar que deve ser desastrosa para todas as partes O público geral e mesmo muitos homens em posições de autoridade não se aperceberam de que estariam envolvidos em uma guerra com bombas nucleares O público geral ainda pensa em termos de obliteração de cidades É claro que as novas bombas são mais poderosas do que as velhas e que enquanto uma bomba A pôde obliterar Hiroshima uma bomba H poderia obliterar cidades maiores como Londres Nova York e Moscou Sem dúvida numa guerra travada com bomba H as grandes cidades seriam obliteradas Mas esta é uma das menores catástrofes que teriam de ser enfrentadas Se todos em Londres Nova York e Moscou fossem exterminados o mundo poderia no decurso de poucos séculos se recuperar do golpe Mas sabemos agora especialmente desde o teste em Bikini que bombas nucleares podem gradualmente espalhar destruição sobre uma área muito mais vasta do que antes se supunha Afirmase com grande autoridade que a bomba que agora pode ser fabricada será 2500 vezes mais poderosa do que aquela que destruiu Hiroshima Tal bomba se explodir perto do chão ou sob a água enviará partículas radiativas para a atmosfera superior Essas partículas descerão gradualmente e alcançarão a superfície da terra sob a forma de pó ou chuva letal Foi um pó assim que infectou pescadores japoneses e suas cargas de peixes Ninguém sabe quão largamente tais partículas radiativas letais poderão ser difundidas mas os melhores especialistas são unânimes em afirmar que uma guerra com bombas H poderia possivelmente pôr fim à raça humana O que se teme é que se muitas bombas H forem utilizadas haverá a morte universal súbita apenas para uma minoria mas para a maioria uma lenta tortura de doença e desintegração Muitos avisos têm sido emitidos por eminentes homens de ciência e por autoridades em estratégia militar Nenhum deles dirá que os piores resultados são certos O que eles dizem é que esses resultados são possíveis e ninguém pode ter certeza de que não se realizarão Ainda não concluímos se as opiniões de peritos sobre esta questão dependem em algum grau de suas convicções políticas ou de seus preconceitos Elas dependem apenas pelo que revelam nossas pesquisas da extensão do conhecimento de cada especialista em particular O que verificamos foi que os homens que mais sabem são ao mesmo tempo os mais sombrios Eis portanto o problema que apresentamos a vocês completo terrível e inescapável devemos dar fim à raça humana ou deve a raça humana renunciar à guerra As pessoas não enfrentarão essa alternativa porque é muito difícil abolir a guerra A abolição da guerra exigirá desconfortáveis limitações para a soberania nacional Mas o que talvez impeça a compreensão da situação acima de tudo é que o termo humanidade parece vago e abstrato As pessoas raramente percebem em sua imaginação que o perigo existe para si mesmas e para seus filhos e netos e não apenas para uma indistintamente apreendida humanidade Dificilmente as pessoas entenderão que elas individualmente e aqueles a quem amam estão em risco iminente de morte agonizante E assim alimentam esperanças de que talvez a guerra possa continuar desde que armas modernas sejam proibidas Essa esperança é ilusória Embora acordos de não utilização de bombas H sejam alcançados em tempo de paz em tempos de guerra esses acordos perdem a validade e ambos os lados iniciariam a fabricação de bombas H assim que a guerra fosse desencadeada para prevenir que se um dos lados construísse a bomba e os outros não o lado que construísse inevitavelmente acabaria vitorioso Embora um acordo de renúncia a armas nucleares como parte de uma redução geral de armamento não garantisse uma solução definitiva serviria para importantes propósitos Em primeiro lugar qualquer acordo entre Oriente e Ocidente é bom na medida em que tende a diminuir a tensão Em segundo lugar a abolição das armas termonucleares se cada um dos lados acreditasse que o outro a encarasse sinceramente reduziria o receio de um ataque súbito no estilo de Pearl Harbour o que hoje mantém ambos os lados em estado de nervosa apreensão Devemos portanto saudar esse acordo ainda que apenas como um primeiro passo A maioria de nós não é neutra em sentimento mas como seres humanos temos de lembrar que se as questões entre Oriente e Ocidente devem ser decididas de tal maneira a dar alguma satisfação a alguém seja comunista ou anticomunista seja asiático ou europeu ou americano seja branco ou negro então essas questões não devem ser decididas pela guerra Desejaríamos que isto fosse compreendido tanto no Oriente quanto no Ocidente Está aí diante de nós se assim o escolhermos contínuo progresso em felicidade conhecimento e sabedoria Devemos ao contrário escolher a morte porque não conseguimos resolver nossas querelas Apelamos como seres humanos para seres humanos lembremse de sua condição humana e esqueçam do resto Se puder fazer isso o caminho permanece aberto para um novo Paraíso se não pode está diante de si o risco de morte universal Resolução Convidamos este Congresso e por meio dele os cientistas do mundo e o público em geral a subscrever a seguinte Resolução Tendo em vista o fato de que em qualquer futura guerra mundial armas nucleares serão certamente utilizadas e que tais armas ameaçam a continuidade da existência da humanidade exortamos os governos do mundo a assumir e a reconhecer publicamente que o seu propósito não pode ser fomentado por uma guerra mundial e os exortamos consequentemente a encontrar meios pacíficos para a solução de todas as questões de litígio entre elas Max Born Percy W Bridgman Albert Einstein Leopold Infeld Frederic JoliotCurie Herman J Muller Linus Pauling Cecil F Powell Joseph Rotblat Bertrand Russell Hideki Yukawa Para entender o paradoxo de Russell Em 1901 descobriu o famoso paradoxo de Russell com grande repercussão no campo da lógica O paradoxo tem a seguinte formulação Há em Sevilha um barbeiro que reúne as duas condições seguintes 1 Faz a barba a todas as pessoas de Sevilha que não fazem a barba a si próprias e 2 Só faz a barba a quem não faz a barba a si próprio O paradoxo nessa proposição é o seguinte se o barbeiro de Sevilha faz a barba a si próprio não pode fazer a barba a si próprio para não violar a condição 2 mas se não fizer a barba a si próprio então tem de fazer a barba a si próprio pois essa é a condição 1 Foi a partir desse paradoxo que Bertrand Russell desenvolveu a sua Teoria dos Tipos POR QUE REPETIR ERROS ANTIGOS se há tantos erros novos a escolher Bertrand Russell Carlos Cossio e a teoria egológica Segundo Carlos Cossio mais importante do que a lei é a conduta do indivíduo e sua interação com outras condutas em sociedade Carlos Cossio e suas circunstâncias Carlos Cossio criou o egologismo jurídico uma aplicação das noções da fenomenologia existencial à experiência jurídica É uma teoria da liberdade inspirada em Hans Kelsen Carlos Cossio nasceu em 1903 na Argentina Foi militante universitário e participou ativamente do movimento que resultou na reforma universitária argentina Foi professor de Filosofia do Direito nas Universidades de La Plata e de Buenos Aires Publicou A valoração jurídica e a ciência do direito em 1941 mas retomaria a teoria egológica em outras obras publicadas entre 1944 e 1963 Estudou também em profundidade a verdade jurídica Morreu em 1987 Carlo Cossio e sua influência no direito A teoria egológica que desenvolveu é um estudo sobre o direito como a tutela da conduta humana em sociedade Ego significa eu portanto egologia é o estudo direto do indivíduo do sujeito Cada homem tem as suas especificidades portanto é importante segundo o criador da teoria egológica que cada homem seja partícipe da elaboração da norma jurídica Carlos Cossio buscou inspiração na fenomenologia de Edmund Husserl para compor essa teoria do direito A fenomenologia apresentava cinco noções fundamentais para permitir a análise despojada de qualquer fenômeno intencionalidade temporalidade transcendência subjetividade e liberdade A essas noções Carlos Cossio agregou os valores Segundo ele valores são a soma dos valores pessoais os valores da sociedade e mais os chamados valores do direito que incluem justiça solidariedade paz poder segurança e ordem Em resumo Carlos Cossio sugere que para construir a normatividade jurídica é preciso fazer a análise da relação que o sujeito tem com a norma jurídica por meio dos seus atos São famosos os debates que Carlos Cossio travou com Hans Kelsen porque este defendia que a normatividade prescindia da análise da conduta Cossio ao contrário considerava necessário para entender um fenômeno em sua totalidade analisar todos os seus elementos formais e materiais Defendia também que a norma contém elementos lógicos estimativos e dogmáticos e que é tarefa do jurista considerálos Para ele dogmática jurídica é a experiência jurídica vista como uma unidade A lógica jurídica afirma que uma norma não se resume a um enunciado um ser em relação a um objeto mas a uma definição do deverser E finalmente a estimativa jurídica é a utilização de valores para a identificação da verdade ou do erro jurídico MAIS IMPORTANTE que a própria norma é a conduta humana e a interação do ego em sociedade sendo que uma de suas projeções é o deverser Carlos Cossio Ludwig Wittgenstein e a precisão da linguagem O austríaco Ludwig Wittgenstein engenheiro mecânico de formação dedicouse a estudos matemáticos e por essa razão aproximouse de Bertrand Russell na Inglaterra Frequentou as aulas de Russell em Cambridge e interessouse em aprofundar os conhecimentos de lógica que obteve do mestre Uma questão que aproximou grandemente os dois estudiosos foi o uso da linguagem na filosofia Ambos acreditavam que a linguagem devia expressar a realidade essencial dos fatos e que cabia aos filósofos trabalhar a linguagem para que as proposições fossem claras e impedissem desentendimentos Essa afirmação seria modificada por Wittgenstein no fim da vida naquela que seria chamada de sua segunda fase quando admitiu que o inverso é que era verdadeiro a linguagem revela a nossa concepção de mundo e não o mundo é que determina a nossa linguagem Ludwig Wittgenstein e suas circunstâncias Ludwig Wittgenstein concebeu o seu Tratado lógicofilosófico com base em sete proposições em torno da ideia de que o pensamento e a linguagem são imagens lógicas da realidade Trabalhou com a noção de que o significado de uma palavra depende da sua inserção na linguagem introduziu a noção de jogos de linguagem como chamava esse fenômeno linguístico Foi aluno de Gottlob Frege e de Bertrand Russell Integrou o círculo de Viena Somente depois de sua morte em 1951 seu segundo livro foi publicado Ludwig Wittgenstein nasceu em Viena na Áustria em 1889 Vinha de família rica Estudou engenharia mecânica no seu país de origem Seguiu em 1908 para a Inglaterra a fim de estudar engenharia aeronáutica em Manchester onde se aproximou de Gottlob Frege filósofo e matemático alemão considerado o principal criador da moderna lógica matemática Por sugestão de Frege entre 1911 e 1913 foi aluno de Bertrand Russell de quem se tornou grande amigo Em 1914 ao eclodir a Primeira Guerra Mundial voltou para a Áustria e alistouse no Exército austríaco Foi capturado em 1917 e permaneceu preso até o fim da guerra Durante o confinamento aproveitou para fazer as anotações para o seu livro Tratado lógicofilosófico publicado em alemão em 1921 e um ano depois traduzido para o inglês Em 1922 publicou o Tratado lógicofilosófico que recebeu introdução de Bertrand Russell No prefácio o mestre dizia que certamente o aluno resolveria problemas matemáticos que ele estava muito velho para resolver Sofreu influência da filosofia existencialista Seu livro trata de problemas centrais da filosofia que têm a ver com as relações entre a realidade o pensamento e a linguagem Passou a frequentar o chamado Círculo de Viena até 1929 quando decidiu voltar para a Inglaterra Conduziu seminários em Cambridge famosos pelas rusgas que manteve com alunos Suas anotações de aulas constituiriam seu livro seguinte Investigações filosóficas que ele só permitiu que fosse publicado postumamente No final da vida retratouse a respeito do que disse em seu Tratado lógicofilosófico mudando de ideia especialmente em relação ao papel da linguagem Debateu frequentemente sobre o sentido das coisas e sobre a falta de sentido em algumas delas sense e nonsense Achava que atrás da ineficiência da linguagem estava a falta de sentido ou seja uma proposição que não queria dizer coisa alguma Ludwig Wittgenstein achava que filosofia não era uma doutrina mas algo que devia estar acima ou abaixo das ciências naturais e nunca ao lado delas A filosofia dizia ele apenas põe as coisas diante de nós não deduz nada Já que tudo está diante de nós para ser visto nada há que explicar Morreu de câncer em 1951 Ludwig Wittgenstein e suas ideias Wittgenstein apresenta soluções baseadas na lógica e na natureza da representação Para ele o mundo é representado pelo pensamento desde que mundo pensamento e linguagem tenham a mesma forma lógica Portanto pensamento e linguagem ou proposição como a chamava podem ser imagens lógicas dos fatos E a imagem para Wittgenstein era o modelo da realidade Para ele diferentemente do que pensavam os atomistas o mundo era feito de fatos e não de objetos Cada proposição é o resultado de sucessivas aplicações de operações lógicas a proposições elementares ou seja a estrutura da linguagem revela a estrutura do mundo portanto revela a nossa concepção sobre a realidade Cada proposição dizia Wittgenstein tem valor igual A FILOSOFIA deve tornar claros e delimitar rigorosamente os pensamentos que de outro modo são turvos e vagos Ludwig Wittgenstein O Círculo de Viena e o positivismo lógico O mundo ocidental do século XIX estava atrelado quase obrigatoriamente a duas correntes de pensamento filosófico que contestavam o idealismo da Teoria do Conhecimento os positivistas seguidores da doutrina de Kant e os fenomenologistas baseados na doutrina de Hegel Nenhuma das duas correntes porém parecia satisfazer os cientistas na sua necessidade de estabelecer os fundamentos da ciência Além disso Ludwig Wittengestein tinha jogado uma pá de cal na metafísica não apenas abolindo o dualismo inerente a ela almacorpo interiorexterior serparecer mas rejeitando todo conhecimento que não pudesse ser validado pela experiência Para discutir a filosofia da ciência e buscar nas ciências a fundamentação do verdadeiro conhecimento um grupo de cientistas de áreas diversas como a física e a economia passou a se reunir na Universidade de Viena na Áustria por volta de 1922 O elemento catalisador do grupo era Moritz Schlick professor de Filosofia da Natureza daquela universidade Os debates que esses homens empreenderam levaram à criação de uma corrente de pensamento que ficaria conhecida como positivismo lógico Apesar de eminentemente empiristas ou seja de considerarem que o conhecimento científico só chega à verdade por meio da experiência os participantes desse grupo levaram em conta as então modernas concepções da lógica e da matemática para o estudo do processo de aquisição do conhecimento por influência principalmente de Bertrand Russell Einstein Frege e Wittgenstein Por esse motivo o positivismo lógico também recebeu a denominação de empirismo lógico porque tinha como base o princípio da verificabilidade o que excluía forçosamente da filosofia as especulações metafísicas A liderança do grupo inicialmente era desempenhada por Philipp Frank Moritz Schilick Otto Neurath e Hans Hahn Alguns anos mais tarde o trio ganhou a participação de Friedrich Waismann Herbert Feigl Karl Gödel e Rudolf Carnap Esse último ao lado de Hans Hahn e Otto Neurath redigiu em 1929 o manifesto A visão científica do mundo o Círculo de Viena Estava batizado o grupo que com esse nome passou para a história A principal influência do grupo foi a filosofia analítica que parte da lógica da linguagem preconizada por Bertrand Russel e Ludwig Wittgenstein Entre os anos de 1930 e 1938 o Círculo de Viena editou a revista Erkemtnis Quando a Áustria foi ocupada pelas tropas de Hitler na invasão denominada Anschluss em 1938 alguns dos integrantes tiveram que fugir para o exterior e outros morreram Moritz Schlick e suas circunstâncias Moritz Schlick publicou várias obras que contestavam a teoria de Immanuel Kant Foi também o responsável por inserir a ética como ramo da filosofia O manifesto A visão científica do mundo o Círculo de Viena foi escrito em sua homenagem Moritz Schlick que viveu entre 1882 e 1936 foi o grande incentivador das reuniões regulares do grupo na Universidade de Viena onde lecionava É considerado o criador do positivismo lógico Alemão de Berlim estudou física tendo sido aluno de Max Planck o pai da física quântica que ganhou o prêmio Nobel de Física de 1918 Aos 23 anos de idade escreveu um ensaio sobre a Teoria Especial da Relatividade de Einstein que lhe propiciou prestígio Aos 30 anos já era professor de filosofia na Universidade de Viena Foi nessa época que liderou a formação da Associação Ernst Mach rebatizada em 1929 como Círculo de Viena para discutir filosofia e ciência O tema constante dos debates era o livro Tratado lógico filosófico de Wittgenstein O próprio autor chegou a ser convidado e compareceu a algumas das reuniões Quando os nazistas subiram ao poder promoveram intensa perseguição aos intelectuais alemães e austríacos que não seguiam os mandamentos políticos da socialdemocracia e por isso vários integrantes do Círculo de Viena tiveram de fugir Schlick apesar das ameaças de perseguição escolheu continuar lecionando na Universidade de Viena Em junho de 1936 numa discussão a respeito de um trabalho um aluno nazista o assassinou com um tiro no peito nas escadarias da universidade Rudolf Carnap e suas circunstâncias Rudolf Carnap enriqueceu o princípio da verificabilidade instituído pelos pensadores do Círculo de Viena com outro princípio o da confirmabilidade que é a possibilidade de uma teoria proposição ou questão que não tenha caráter geral ser confirmada gradualmente pela experiência Rudolf Carnap 18911970 foi o responsável pelo Manifesto do Círculo de Viena e considerado um dos principais membros Como Wittgenstein foi aluno de Gottlob Frege Alemão Carnap doutorouse em física na Universidade de Jena aos 30 anos e logo foi convidado para o cargo de professor assistente de Schilik desse modo passando a frequentar as reuniões do Círculo de Viena Em 1930 assumiu o papel de editor da revista Erkenntnis dividindo a tarefa com Hans Reichenbach criador do Círculo de Berlim uma associação muito semelhante ao Círculo de Viena da qual diferia apenas em alguns pontos de vista Perseguido pelos nazistas emigrou para os Estados Unidos Lecionou nas Universidades de Chicago Harvard Princeton e Los Angeles Naturalizouse norteamericano em 1941 Publicou algumas obras entre as quais se destacam A construção lógica do mundo e Sintaxe lógica da linguagem Seus estudos principais tinham por base as proposições ou seja a linguagem Morreu nos Estados Unidos em 1970 Karl Popper e suas circunstâncias Karl Popper criou a expressão racionalismo crítico para nomear a sua filosofia que rejeitava o empirismo clássico Como todos os integrantes do Círculo de Viena apreciava Wittgenstein e dedicouse a estudar a filosofia da linguagem Karl Raimund Popper 19021994 austríaco foi outro dos integrantes do Círculo de Viena a se refugiar no exterior por causa da ascensão do nazismo Em 1937 fugiu para a Nova Zelândia e em 1946 mudouse para a Inglaterra para trabalhar como professor da renomada London School of Economics e naturalizouse inglês Graças à sua atuação como filósofo social e político defendendo a democracia liberal e protestando contra qualquer espécie de autoritarismo foi nomeado cavaleiro da Rainha Elisabete II em 1965 Em 1982 recebeu a importante comenda de Companheiro de Honra Companion of Honour No Círculo de Viena sua contribuição foi o critério da falsibilidade ou falseacionismo ou ainda falseabilidade segundo o qual uma teoria somente pode ser considerada científica se admitir refutação pelos fatos Por isso mesmo era contrário à metafísica porque contém afirmações que não podem ser nem comprovadas nem refutadas cientificamente Com esse critério demarcava a distinção entre o que é e o que não é ciência Dizia que o papel da filosofia era buscar provas de que uma ou outra teoria é falsa para que nova teoria ocupe o seu lugar Como se pode deduzir considerava a verdade inalcançável mas acreditava que a busca da verdade por meio de tentativas é um caminho correto para o conhecimento Morreu em 1994 O EXISTENCIALISMO Como vimos a fenomenologia de Edmund Husserl afirmava que a vivência subjetiva é mais importante do que a realidade objetiva Husserl procurava compreender os fenômenos tais como eles se apresentam sem se preocupar com o conhecimento da natureza essencial dos fenômenos ou seja o importante é a existência Também vimos que antes mesmo de Husserl Sören Kierkgaard valorizava a reflexão de cada homem sobre si mesmo e que considerava o homem dotado de liberdade e responsabilidade e que não era um ser prédefinido ao nascer Ao contrário à medida que o homem vive existe adquire novas experiências e a partir delas redefine seu pensamento Aí está novamente a existência como ponto fundamental Somando essas duas correntes dois filósofos e literatos o alemão Martin Heidegger e o francês JeanPaul Sartre definiram os conceitos e proposições do existencialismo logo depois do encerramento da Segunda Guerra Mundial A base desse pensamento é esta o homem tem responsabilidade sobre seu próprio destino porque é dotado de livrearbítrio Dado que o homem tem livrearbítrio e não está preso a qualquer condição previamente determinada sua existência é mais importante do que a sua essência Existir simplesmente retira então do homem as preocupações repassadas pelas descobertas da ciência ou pelas revelações da fé A própria vida é uma constante aquisição de conhecimento e consequente construção do ser humano E à medida que vai vivendo vai existindo o homem procura encontrar o sentido da própria existência diante das circunstâncias e dos acontecimentos que muitas vezes não compreende Suas escolhas é que vão definir a sequência seguinte desses acontecimentos É por isso que segundo Sartre o viver é sempre acompanhado de angústia porque o homem abandona opções quando faz a escolha de uma das possibilidades apresentadas a ele O existencialismo e o direito Por causa das rejeições a preceitos científicos e religiosos o existencialismo é considerado um dos movimentos filosóficos mais radicais da história Desse modo o existencialismo de Sartre tem grande relação com o direito natural e pouco influenciou o direito adotado no Brasil que é positivista Sartre deu espaço em suas considerações para essa angústia que acomete o homem de errar ao escolher seus atos e assim ferir o direito natural das pessoas que serão influenciadas pelas suas decisões Essas escolhas segundo Kierkgaard estão categorizadas em três opções principais estética o homem escolhe para aproveitar o máximo que puder daquele momento ética buscando viver de acordo com preceitos morais corretos e religiosa apoiada sobre a fé e a crença dada pela religião Embora Heidegger tenha sido o formulador inicial do existencialismo com o livro O ser e o tempo publicado em 1927 foi Sartre quem deu nome a essa corrente filosófica no seu tratado filosófico O ser e o nada de 1943 Martin Heidegger e o sernomundo O existencialismo não recomenda apenas viver a vida porque isso significaria simples sobrevivência O homem deve voltarse para si mesmo indagar aprender até mesmo por meio da angústia natural e assim enriquecer a existência Martin Heidegger e suas circunstâncias Martin Heidegger foi o criador do existencialismo corrente que Sartre prosseguiu na França Seu livro mais importante O ser e o tempo trata da existência humana sempre relacionada com o tempo Propõe que o homem viva intensamente o momento presente o aqui e agora em razão da finitude humana E afirma que o homem tem uma angústia atávica relacionada com a única certeza que tem a morte O alívio a essa angústia deve ser o relacionamento com as outras pessoas para o enriquecimento da existência É considerado o líder da Escola de Weimar da qual participaram Karl Jaspers e Hannah Arendt Martin Heidegger nasceu na Alemanha em 1889 na região da Suábia Assistiu na mocidade à queda do II Reich alemão com a derrota para os países aliados e a deposição do Kaiser Guilherme II Viveu a fase da República de Weimar com o florescimento da intelectualidade alemã A Alemanha foi o centro cultural do Ocidente durante os quinze anos que durou a República de Weimar terminaria com a ascensão de Hitler ao poder O país viveria depois disso anos de conflito político entre comunistas e nazistas Heidegger jamais publicou comentários sobre a filosofia de Karl Marx de quem foi contemporâneo Ultraconservador apoiou o partido nacionalsocialista cerrando fileira ao lado do filósofo nazista Carl Schmidt Chegou a se filiar ao partido nazista em 1933 para auxiliar na chamada revolução parda de Adolf Hitler que dizia pretender implantar uma nova ordem na Alemanha Contase que teria dito a Alfred Rosemberg ministro da Cultura do III Reich que para construir uma nação era necessário haver Dichter Führer und Denker o poeta o chefe político e o filósofo O poeta seria Hölderlin o líder político Adolf Hitler e o filósofo o próprio Heidegger Depois da derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial foi proibido de lecionar Nunca se retratou pela participação no partido nacionalsocialista Filho de um sacristão católico pobre Martin Heidegger conseguiu bolsa de estudos para o Liceu de Constança em 1903 Em 1909 ingressou no seminário de Friburgo onde desenvolveria um ensaio de defesa ao monge Abraham a Sancta Clara cujo nome real era Uleich Megeele importante orador alemão reconhecido como xenófobo e antissemita Esses estudos possivelmente o aproximariam mais tarde da doutrina nazista da raça superior Mas em 1919 deixou o seminário e rompeu definitivamente com o catolicismo Também na Universidade de Friburgo foi aluno e assistente de Edmund Husserl o fundador da fenomenologia A partir daí dedicouse ao desenvolvimento do existencialismo Lecionou na Universidade de Marburgo época em que teve relacionamento amoroso com a aluna Hannah Arendt Martin Heidegger e suas ideias O existencialismo afirma que a arte deve ser instrumento de promoção da liberdade Por isso a corrente filosófica de Sartre influenciou a partir da década de 1950 várias gerações de escritores Albert Camus e Simone de Beauvoir por exemplo e artistas plásticos Bernard Buffet por exemplo e até psicoterapeutas Ronald David Laing por exemplo Também influenciou fortemente a moda e a música especialmente entre os jovens nos anos 60 e 70 Martin Heidegger foi assistente de Edmund Husserl e cuidou de editar vários de seus escritos Seu pensamento foi uma mescla da fenomenologia de Husserl dos estudos de Nietszche e do existencialismo de Kierkgaard Por ter apoiado os nazistas em 1931 que preparavam a Segunda Guerra Mundial para implantar o III Reich alemão foi visto com reservas pelos intelectuais europeus durante muitos anos mas depois passou a ser reconhecido como um dos mais influentes pensadores do século XX Seu livro mais importante é O ser e o tempo publicado em 1927 Teve como escopo investigar a natureza do ser e a sua existência de onde vem o nome de existencialismo à filosofia que desenvolveu Foi uma retomada do pensamento dos gregos clássicos no estudo da ontologia O existencialismo de Heidegger negou a metafísica clássica e negou Deus Sem a predestinação imposta pela religião o homem era responsável pelo seu destino que resultava de suas próprias escolhas e de seus próprios atos Essa solidão dizia Heidegger levava o homem a viver em estado de angústia sabendo que a existência é transitória e que a morte é certa Sua doutrina define três fenômenos que regem a existência a afetividade a memória do passado que serve para julgar os acontecimentos presentes a fala sua ligação direta com o momento presente e o entendimento com que julga o passado e projeta o futuro Martin Heidegger e sua influência no direito Com o existencialismo a liberdade volta para a discussão da filosofia Principalmente no seu envolvimento com o conceito de moral dado que o homem é um ser social e os seus atos esbarram forçosamente nos outros A repercussão do existencialismo no direito assume assim relação com a liberdade O debate jurídico ganhou praticidade porque a liberdade deixou de ser tomada apenas como conceito essencial e passou a ser encarada como prática diária e casos exemplares de constrangimento à liberdade ilustraram o cotidiano jurídico O HOMEM age como se fosse o senhor e mestre da linguagem enquanto que na verdade a linguagem permanece mestra do homem Martin Heidegger Giorgio Del Vecchio e a pessoa humana Nas primeiras décadas do século XX foi o primeiro jusfilósofo italiano a tecer considerações não mais focadas no objeto passivo mas na pessoa humana em contraposição à filosofia positivista da Itália da época Desprezava o pacto social de Rousseau É considerado um dos principais jusfilósofos contemporâneos Giorgio Del Vecchio e suas circunstâncias Giorgio Del Vecchio foi um neokantiano Tratou a Filosofia do Direito como a própria filosofia aplicada ao direito Do ponto de vista lógico costumava fazer duas perguntas O que é o Direito e O que é de direito Do ponto de vista fenomenológico buscava comparar sistemas jurídicos de diferentes nações tentando encontrar pontos que evidenciassem a universalidade do direito E afinal do ponto de vista da deontologia fazia a análise ética dos sistemas normativos Giorgio Del Vecchio nasceu em 1878 em Bolonha O pai era professor de estatística na Universidade de Bolonha Obteve o doutorado em Direito aos 22 anos em Gênova publicou seu primeiro livro Le dichiarazioni dei diritti delluomo e del cittadino nella rivoluzione francese e logo em seguida foi lecionar Filosofia do Direito em universidades de várias cidades como Ferrara e Messina Suas principais obras foram escritas muito cedo O sentimento jurídico em 1902 Os pressupostos filosóficos da noção do direito em 1905 traduzido para o inglês e o espanhol e O conceito do direito em 1906 Em 1921 fundou e passou a dirigir o Arquivo Jurídico Filippo Serafini e a Revista Internacional de Filosofia e de Direito Uma de suas principais obras foi publicada em 1922 A justiça De 1925 a 1927 foi reitor da Universidade de Roma Em 1927 tornouse reitor da Universidade de Bolonha até 1970 quando morreu Giorgio Del Vecchio e sua influência no direito O pensamento jurídico de Del Vecchio está condensado nesta frase O direito é a coordenação objetiva das ações possíveis de vários sujeitos segundo um princípio ético que as determina excluindo se o motivo Notase aí evidente influência de Kant Diz Paulo Nader que a noção constante do direito segundo Del Vecchio não se manifesta por um conteúdo da realidade jurídica por norma ou proposição mas por pressupostos de natureza formal uniformemente presentes em toda experiência jurídica independente do seu conteúdo46 Paulo Nader também relata que Del Vecchio refutava o direito da força segundo o qual o justo é aquilo que convém ao mais forte E na multiplicidade que reconhecia a respeito das normas que regulam o convívio social admitia apenas Moral e Direito porque seriam as duas únicas normas éticas Essas duas categorias decorreriam da atividade humana portanto ação é a base da análise do direito Tanto que afirmava que os fenômenos da natureza e as próprias ações humanas estão subordinados ao princípio da causalidade Portanto como parte integrante da natureza o homem deve agir em harmonia com as leis físicas ou seja tem liberdade de ação mas deve agir de acordo com os princípios universais e absolutos de sua consciência e não pelo que constitui a sua individualidade Hannah Arendt e a condição humana Nascida na Alemanha em 1906 Hannah Arendt é autora de dois livros que marcaram o século XX Origens do totalitarismo em 1951 e A condição humana em 1958 Nesses dois trabalhos principais embora tenha publicado outros livros faz uma análise profunda da sociedade contemporânea abordando liberdade poder e comunicação Hannah Arendt e suas circunstâncias Hannah Arendt é considerada uma das precursoras dos direitos do homem consolidados na Declaração da ONU de 1948 Escreveu sempre sobre a liberdade mostrando que os regimes totalitários como o nazismo e o comunismo prosperaram exatamente porque se serviam do trabalhador comum como massa de manobra para suas pretensões de poder Foi além vinculou o poder à violência lamentando que essa conexão seja mais frequente do que se poderia esperar Diz ela também que inversamente a violência costuma gerar um poder que aniquila o poder legítimo De ascendência judia Hannah Arendt foi perseguida pelos nazistas já no início do governo de Hitler em 1933 e teve que passar uma temporada em Paris onde conheceu o filósofo Walter Benjamin da Escola de Frankfurt que também estava refugiado naquela cidade francesa Voltou para a Alemanha e durante a guerra chegou a ser confinada num campo de concentração em 1941 mas conseguiu fugir e asilouse em Nova York onde permaneceu até morrer em 1975 Com essa experiência credenciouse a escrever para a revista The New Yorker um ensaio sobre o oficial da Gestapo nazista Adolf Eichmann quando este foi julgado por crimes de guerra em Israel em 1961 Ele fora capturado pelo Mossad serviço secreto israelense em 1960 na Argentina onde vivia desde 1950 sob o nome falso de Ricardo Klement O julgamento durou quase um ano teve repercussão mundial e em vários momentos foi transmitido ao vivo pelos principais veículos de comunicação Adolf Eichmann tido como responsável pelos campos de extermínio alemães foi considerado culpado das acusações de crimes contra a humanidade crimes contra o povo judeu e de participação em organização criminosa Apesar de a lei israelense não prever a pena de morte foi aberta uma exceção e Adolf Eichmann foi enforcado no dia 1º de junho de 1962 O ensaio de Hannah Arendt sobre esse julgamento foi ampliado e transformado em livro sob o título Eichmann em Jerusalém Nesse livro ela criou uma expressão que ficou célebre a banalidade do mal Como existencialista costumava dizer que para compreender a realidade era preciso observála e enfrentála sem preconceitos e sem a ajuda de antecedentes históricos Como ativista política atuou intensamente nas campanhas contra a Guerra do Vietnã Hannah Arendt e suas ideias Em A condição humana a filósofa emprega a expressão vita activa para designar três atividades humanas fundamentais o labor o trabalho e a ação O labor segundo ela é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano é a própria vida biologicamente considerada O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana A condição humana do trabalho é a mundanidade A ação por fim única atividade que os homens exercem sem a mediação das coisas ou da matéria corresponde à condição humana da pluralidade ao fato de sermos todos semelhantes isto é humanos sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido exista ou venha a existir Essas três atividades relacionamse intimamente com o nascimento e a morte Não obstante a ação é a mais intimamente relacionada com a condição humana da natalidade No sentido de iniciativa todas as atividades humanas possuem um elemento de ação e portanto de natalidade sendo essa a categoria central do pensamento político Diz Hannah Arendt que a condição humana compreende algo mais que as condições nas quais a vida foi dada ao homem Os homens são seres condicionados tudo o que os circunda e acaba por ser por eles percebido tornase imediatamente uma condição de sua existência Mas a partir de tais condições os homens constantemente criam as suas próprias condições que a despeito de sua variabilidade e sua origem humana possuem a mesma força condicionante das coisas naturais Assume o caráter de condição da existência humana tudo o que com ela entre em contato Daí que os homens sejam todos condicionados independentemente do que venham a fazer na vida Arendt ressalva que a condição humana não é o mesmo que a natureza humana Igualmente não se equipararia a esse conceito a soma total das atividades e capacidades humanas que correspondem à condição humana Segundo ela o problema da natureza humana parece insolúvel tanto em seu sentido psicológico como em seu sentido filosófico geral Tentar definila seria como pular sobre nossa própria sombra Para a filósofa se o ser humano possuir alguma natureza que lhe seja intrínseca certamente só um deus pode conhecêla e definila e a condição prévia é que ele possa falar de um quem como se fosse um quê As limitações cognitivas do ser humano impedem uma tal perquirição Assim não há diferença relevante segundo Arendt entre investigar a natureza humana e buscar compreender a natureza de Deus A resposta em ambos os casos somente pode ser divinamente revelada É preciso esclarecer que Hannah Arendt não é determinista a ponto de afirmar que as condições da existência humana explicam o que o homem é em sua totalidade O condicionamento advindo da mundanidade jamais é absoluto e portanto nesse sentido não somos meras criaturas terrenas Em A condição humana em suma Arendt debruçase sobre a vita activa do homem expressão que na filosofia medieval corresponde ao bios politikos de Aristóteles cujo significado é uma vida dedicada aos assuntos públicos e políticos Aristóteles ensinava ela não considerava livre quem estivesse preso ao reino da necessidade isto é quem dependesse para viver do labor ou do trabalho Seriam livres aqueles cuja vida estivesse voltada para os prazeres do corpo dedicada aos assuntos da polis bem como a vida do filósofo esta dedicada à investigação e à contemplação das coisas eternas No decorrer da história o conceito de vita activa deixou de designar apenas a ação propriamente política do ser humano para passar a denotar todo tipo de engajamento ativo nas coisas deste mundo A ação nesse sentido passara a ser vista como uma das necessidades da vida terrena de onde se conclui que apenas a contemplação passou a ser tida como modo de vida realmente livre Em outras palavras a contemplação passou a uma posição notável de superioridade em relação à ação Já em Aristóteles vêse que a verdade do Ser só pode ser revelada por meio da completa quietude humana A abstenção estática do próprio movimento físico externo é tida como necessária para uma elevação da racionalidade do ser humano a ponto de se alcançar a verdadeira liberdade Hannah Arendt e sua influência no direito Até o início da Era Moderna a expressão vita activa possui uma conotação negativa Designa uma não quietude Revela ainda a concepção grega de superioridade da contemplação sobre a atividade pois por meio desta da atividade o homem produz coisas em nada comparáveis à singular beleza dos objetos da natureza Por certo o cristianismo bem o nota Arendt contribuiu para o rebaixamento da vida ativa ao enaltecer a contemplação a Deus Não obstante a própria descoberta da contemplação como faculdade humana distinta do pensamento e do raciocínio ocorrida na escola socrática deu a ela o status de superioridade que a acompanhou desde então a ponto de a contemplação ter norteado o pensamento metafísico e político de toda a nossa tradição Arendt todavia não parte dessa concepção isto é não acata a subordinação hierárquica da vita activa em relação à contemplação pois segundo ela tal hierarquia tradicional obscureceu as diferenças e manifestações no âmbito da própria vita activa o que não restou superado nem mesmo pela inversão da ordem hierárquica em Marx e Nietzsche já na Era Moderna A filósofa assim o diz porque a inversão da ordem hierárquica por si só não altera a maneira de pensar o problema No cerne da preocupação da investigação filosófica persiste a premissa em assim procedendo de que há um único princípio global a prevalecer em todas as atividades humanas tal e qual se sucedia na hierarquia tradicional Arendt aduz que tal premissa não é necessária nem axiomática Por esse motivo não a acata e utiliza a expressão vita activa pressupondo que não há hierarquia entre ela e a vida contemplativa e que cada qual envolve preocupações próprias não reconduzíveis a um núcleo comum Vita activa portanto na obra arendtiana é empregada de um modo singular original havendo nesse sentido um rompimento com a tradição filosófica Não se baseia em um sentido universal como até então ocorria ou seja reconhece a filósofa que cada atividade humana possui um sentido próprio e que não é possível estabelecer qualquer hierarquia entre cada um desses sentidos Há de fato uma diferença entre o princípio global do labor do trabalho e da ação e o princípio global da vida contemplativa Todavia conclui a filósofa do ponto de vista racional não há nada que permita afirmar que a contemplação é a atividade superior do ser humano Referida diferença é ilustrada por Arendt por meio da distinção entre imortalidade e eternidade Imortalidade diz ela significa continuidade no tempo vida sem morte nesta terra e neste mundo mortalidade é moverse ao longo de uma linha reta num universo em que tudo o que se move o faz num sentido cíclico Os homens são capazes de feitos imortais de sorte que a despeito de sua mortalidade individual atingem o seu próprio tipo de imortalidade e demonstram sua natureza divina O eterno por sua vez constitui o verdadeiro centro do pensamento estritamente metafísico Em Platão diz Arendt o eterno e a vida do filósofo são vistos como inerentemente contraditórios e em conflito com a luta pela imortalidade que é o modo de vida do cidadão o bios politikos Isso porque o filósofo ao escrever os seus pensamentos adota a vita activa busca a imortalidade deixar aos vindouros vestígios de seus pensamentos e por consequência afastase da eternidade O filósofo somente pode passar pela experiência do eterno ao deixar de estar com outros homens correspondendo nesse sentido à morte A experiência do eterno diferentemente da experiência do imortal não corresponde a qualquer tipo de atividade nem pode nela ser convertida Designase a experiência do eterno por theoria ou contemplação em contraposição a todas as outras atitudes que no máximo podem estar relacionadas com a imortalidade Como já mencionado a história consagrou a visão da contemplação como superior hierárquica à vita activa Diz Hannah Arendt que isso não se deveu propriamente ao pensamento filosófico A queda do Império Romano é emblemática nesse sentido pois por um lado demonstrou que nenhuma obra de mãos mortais pode ser imortal e por outro foi acompanhada da ascensão do evangelho cristão pregador da vida individual eterna Diminuise assim a importância de qualquer busca pela imortalidade terrena Como resultado a vita activa e o bios politikos desvalorizaramse em face da contemplação ESTAR EM SOLIDÃO significa estar consigo mesmo e portanto o ato de pensar embora possa ser a mais solitária das atividades nunca é realizado inteiramente sem um parceiro e sem companhia Hannah Arendt NA TANGÊNCIA DA FILOSOFIA Mahatma Ghandi e a não violência Mohandas Karamchand Gandhi mais conhecido como Mahatma Gandhi que em sânscrito significa grande alma nasceu em 1869 na cidade de Porbandar da Índia Ocidental Casouse aos 13 anos de idade por um arranjo familiar prática comum ainda hoje naquela sociedade Estudou Direito em Londres na Inglaterra Voltou à Índia no ano de 1891 quando da morte de sua mãe e logo depois mudouse para a África do Sul Foi lá que diante das mazelas causadas pela exacerbada discriminação social percebeu que era capaz de utilizar seus conhecimentos jurídicos para ajudar o próximo e mergulhou em uma quase interminável empreitada pela defesa da minoria Hindu Por sugestão de Leon Tolstoi tomou contato com a obra de Henry David Thoureau de onde retiraria a ideia de promover modificações sociais não pela revolução mas sim pela desobediência civil a que denominou Satyagraha que em sânscrito significa força da verdade Para tanto desenvolveu um método de atuação que viria a chocar o mundo o da não violência chamado por ele de ahimsa Surpreendentemente através desse método conseguiu atingir todos os objetivos a que se propôs inclusive o mais marcante deles a Independência da Índia em agosto de 1947 Surpreendentemente apesar da grande vitória Gandhi não comemorou a conquista Ao contrário lamentou o fato de o país ter se dividido em dois de um lado a República da Índia com maioria hindu e de outro a República Islâmica do Paquistão de maioria muçulmana o que só viria a agravar a intolerância religiosa e a não aceitação mútua Trecho do discurso pronunciado por Gandhi na reunião do Congresso PanIndu realizado em Bombaim Índia no dia 7 de agosto de 1942 Li muito sobre a Revolução Francesa No cárcere li as obras de Carlyle Grande é minha admiração pelo novo francês Pandit Nehrú faloume extensamente sobre a Revolução Russa Posso dizervos que conquanto a deles fosse uma luta para o povo não foi uma luta para a verdadeira democracia que eu procuro Minha democracia significa que cada um é o seu próprio dono Tenho lido bastante a história e não encontrei tamanha experiência em escala parecida para o estabelecimento da democracia pela não violência Quando tenhais compreendido essas coisas esquecereis as diferenças entre hindus e muçulmanos A resolução que vos apresento diz Não queremos ser rãs num poço Visamos à Federação Mundial que apenas pode ser estabelecida pela não violência O desarmamento é unicamente possível se usais da arma incomparável da não violência Há gente que me pode chamar de visionário mas sou um verdadeiro homem de negócios e meu negócio consiste em obter a independência Se não aceitardes esta resolução não o lamentarei muito Contrariamente dançarei de alegria porque então me tereis descarregado da tremenda responsabilidade que de outra maneira me colocaríeis nos ombros Desejo que adoteis a não violência como tática política Para mim é uma crença mas no que a vós se refere quero que a aceiteis como tática política Deveis aceitála como soldados disciplinados e praticála quando estiverdes na luta Há muita gente que me pergunta se sou o mesmo que em 1920 A única diferença que há é que estou muito mais forte em certos aspectos do que em 192047 Carl Schmitt fé e política Foi jurista professor e filósofo reconhecido com um dos mais importantes teóricos políticos da Alemanha Considerado um dos grandes especialistas em direito internacional do século XX foi um obstinado defensor do nazismo Nessa defesa desenvolveu um conceito de democracia pura baseado no princípio da identidade Segundo esse conceito somente um povo que tenha identidade com seus governantes é capaz de reação diante de circunstâncias adversas de sua realidade imediata e portanto pode ser verdadeiramente democrático Carl Schmitt e suas circunstâncias Carl Schmitt foi um importante filósofo alemão do século XX Especialista em direito internacional foi membro e grande defensor do partido nazista Escreveu entre outras obras A ditadura sobre a República de Weimar No livro comenta a figura do Reichspräsident presidente da nação Seu pensamento tinha bases firmes na fé católica Suas teses estão no livro Teologia política de 1922 Carl Schmitt nasceu em 1888 na Alemanha Graduouse em Direito em Estrasburgo em 1915 Em 1933 assumiu cátedra na Universidade de Berlim e no mesmo ano ingressou no Partido do Nacional Socialismo o partido nazista de Hitler Ao fim da guerra ficou durante dois anos numa prisão mas nunca se retratou pelo apoio ao nazismo Sobre esse período de cativeiro escreveu o livro O cativeiro liberta Iniciou uma campanha contra o pensamento de Ortega y Gasset com um livro chamado A tirania dos valores de 1960 Mas sua obra mais famosa é o O conceito do político escrito em 1932 um livro em que estabelece a xenofobia como elemento legítimo de manutenção da identidade nacional Morreu em 1985 Carl Schmitt e suas ideias Para Carl Schmitt contradizendo o liberalismo de Kant a liberdade não é um princípio político porque nenhuma forma de governo tem origem na liberdade Complementava essa teoria a ideia de que esse povo tinha que ter uma característica existencial ou seja psicológica e sociológica de homogeneidade o que praticamente implicava afastar todos os que não teriam igualdade com ele Com isso concluiu que eleição secreta não seria representativa e devia ser substituída pela aclamação Essa homogeneidade se traduz em todos os campos segundo Schmitt língua religião moral tradição expectativas E ao Estado cabe preservar a homogeneidade do povo Por isso defendeu no livro A ditadura publicado em 1921 que um ditador forte representa a vontade popular mais efetivamente do que um grupo legislativo O livro foi escrito para comentar a República de Weimar que acabava de ser criada Com essa noção de mito de nação e ditadura que o caracteriza como inimigo da democracia liberal Carl Schmitt manteve intenso debate com Hans Kelsen acerca de quem seria o responsável pela guarda da Constituição Para Schmitt a Constituição de um país devia obrigatoriamente prever a situação de estado de exceção em que o líder teria liberdade de executar ações necessárias e até violentas para defender a nação Seria uma suspensão temporária do Estado de Direito em benefício do interesse público segundo afirmava AQUELES QUE GOVERNAM se diferenciam através do povo mas não frente ao povo Carl Schmitt JeanPaul Sartre e o espírito da solidariedade Em visão diametralmente oposta à de Schmitt a premissa básica do existencialismo de Sartre foi a liberdade JeanPaul Sartre e suas circunstâncias JeanPaul Sartre elaborou o existencialismo moderno profundamente original em relação aos seus inspiradores Sören Kierkgaard e Edmund Husserl Sua filosofia ficou registrada em todas as suas obras com destaque para O ser e o nada Depois do fim da Segunda Guerra Mundial passou a viver como escritor independente Entre seus escritos sobre literatura estão ensaios sobre Baudelaire e Jean Genet Foi indicado para o prêmio Nobel de Literatura em 1964 mas recusou se a recebêlo JeanPaul Sartre nasceu em Paris em 1905 Perdeu o pai aos 2 anos de idade e foi criado pela mãe e pelo avô Formouse na Escola Normal Superior Em 1928 cumpriu o serviço militar obrigatório como meteorologista Ao terminar tornouse professor de filosofia na Universidade La Havre Com uma bolsa de estudos do Instituto Francês passou o ano de 1932 em Berlim estudando os trabalhos de Edmund Husserl e de Martin Heidegger Voltou para Paris para lecionar na Universidade La Havre e no Liceu Pasteur até que eclodiu a Segunda Guerra Mundial Foi convocado para a guerra na função de meteorologista Chegou a cair prisioneiro dos alemães tendo sido levado para um campo de concentração mas conseguiu fugir Em 1941 conheceu Simone de Beauvoir em Paris que seria sua companheira até o fim da vida Com ela fundou um grupo para ajudar na resistência francesa contra a ocupação alemã Depois que acabou a guerra criou a revista Le Temps Modernes Os Tempos Modernos com intelectuais marxistas entre eles MerleauPonty e Raymond Aron Em 1952 filiase ao Partido Comunista com o qual romperia em 1956 JeanPaul Sartre visitou o Brasil em 1961 durante a campanha que promovia pelo mundo contra a guerra do Vietnã Morreu em 1980 JeanPaul Sartre e suas ideias Segundo Sartre o homem é livre de qualquer predestinação inclusive da igreja uma vez que afirmava a não existência de Deus Sem as imposições da religião o homem é absolutamente livre para fazer escolhas e realizar os atos que decidir realizar A existência precede a essência assegurava Sartre portanto não é possível que haja uma força nem mesmo uma força divina que defina o que o homem deve ser ou fazer antes do nascimento O homem é livre e por isso mesmo o único responsável pelos seus atos e decisões Com esse pensamento ateu retomou as ideias de Sören Kierkgaard o primeiro pensador existencialista Dele também colheu a noção de que essas duas forças a liberdade e a responsabilidade trazem ao homem uma angústia atávica de viver porque exige de si mesmo uma batalha diária ao longo da vida para praticar um comportamento adequado do ponto de vista moral e ético Isso porque o homem é livre para fazer o bem e também é livre para fazer o mal quando pratica algo errado não pode usar como desculpa as crenças como desígnios de Deus destino e coisas semelhantes Uma frase famosa de sua autoria dá a medida de quanto a interação com as outras pessoas pode trazer sentido à existência de alguém O inferno são os outros O significado da frase não é negativo ao contrário expressa a importância que a solidariedade pode levar para a vida de alguém porque esse alguém se esforçará para merecer o respeito e a confiança de quem convive com ele O existencialismo de Sartre como se pode ver foi um dos movimentos mais radicais da filosofia em todos os tempos Essa concepção de que não há nada antes da existência e que nada faz sentido antes que o próprio ser dê sentido à existência é o que se chama de niilismo Seus trabalhos pregavam o combate individual à alienação assegurando que a arte é um dos componentes mais importantes para a salvação do homem Ele mesmo dedicouse à literatura a tal ponto que escreveu um livro chamado O que é literatura em 1948 No livro Sartre afirma que para ele a literatura é um compromisso porque a criação artística é um compromisso moral Sua dedicação à literatura rendeulhe indicação para o prêmio Nobel em 1964 mas recusou o prêmio sob a alegação de que aceitálo equivaleria a submeterse à autoridade intelectual dos juízes Para a construção do existencialismo Sartre uniu aos ensinamentos de Kierkgaard a fenomenologia de Edmund Husserl que defendia a supremacia da consciência livre e completamente intencional do homem As ideias de JeanPaul Sartre foram registradas em vários escritos voltados inicialmente para estudos psicológicos como A imaginação de 1936 Esboço de uma teoria das emoções de 1939 e O imaginário psicologia fenomenológica da imaginação de 1940 Todas as suas obras contêm os fundamentos do existencialismo como se pode ver nas duas novelas Náusea de 1930 e Caminhos da liberdade de 1945 que lhe deram prestígio e reconhecimento em todo o mundo Sua fama cresceu muito com as peças teatrais As moscas Entre quatro paredes e Sem saída e também com a publicação do ensaio Existencialismo é um humanismo de 1946 Ainda escreveu romances A idade da razão Sursis Com a morte na alma Mas sua obra mais expressiva foi um trabalho filosófico O ser e o nada que trava uma espécie de diálogo com O ser e o tempo de Martin Heidegger o outro nome forte do existencialismo O INFERNO são os outros JeanPaul Sartre Maurice MerleauPonty e a linguagem do corpo Em geral esse filósofo é inserido na categoria de existencialista embora não defendesse com tanto ardor a liberdade radical e a angústia existencial temas que nortearam as teses de JeanPaul Sartre e Simone de Beauvoir Seu ponto central é o mecanismo psicológico que baseia o conhecimento Deu ênfase especial à linguagem e como Jacques Derrida pregou a análise da origem da comunicação para que se possa apreender o seu real sentido Maurice MerleauPonty e suas circunstâncias Maurice MerleauPonty reformulou algumas das teses existencialistas de JeanPaul Sartre especialmente no que diz respeito ao dualismo entre mente e corpo por exemplo O corpo diz ele é um excelente instrumento de comunicação Sua filosofia da linguagem afirma que aquilo que percebemos do mundo é influenciado por uma série de fatores que influenciam a conexão entre o mundo exterior e o mundo interior Maurice MerleauPonty nasceu em 1908 Formouse em Filosofia na Escola Normal Superior de Paris em 1930 Na Segunda Guerra Mundial serviu como oficial de infantaria Logo depois do fim da guerra publicou seus primeiros livros de filosofia e assumiu a cadeira de filosofia na Universidade de Lyon e na Sorbonne Colaborou na revista Les Temps Modernes com JeanPaul Sartre Entretanto rompeu com Sartre em 1953 porque não concordava com o apoio deste ao regime de Stalin Morreu em 1961 Maurice MerleauPonty e suas ideias O principal trabalho de MerleauPonty Fenomenologia da percepção de 1962 discute as dicotomias filosóficas tradicionais em especial o dualismo entre corpo e consciência Sua teoria da comunicação descrita nesse livro enfatiza que nós somos nosso corpo o corpo tem relação estreita com o mundo é a articulação do nosso ser social e portanto cada gesto agrega significação às palavras O corpo não é simplesmente um instrumento que a mente comanda como pensava Descartes Portanto diz MerleauPonty a linguagem falada não é exemplo de manifestação do pensamento puro O essencial é captar na fala e no comportamento a percepção em via de realização o que só conseguiremos depois de nos livrar de preconceitos e dogmas que nos prendem a ideias antigas Na sua filosofia da linguagem embasada na fenomenologia de Edmund Husserl MerleauPonty critica tanto o empirismo quanto o idealismo e anota o distanciamento que existe entre a palavra e o objeto que essa palavra designa Filosoficamente MerleauPonty busca a rearticulação entre sujeito e objeto ou seja entre o eu e o mundo porque considera ao contrário do empirismo que há uma conexão interna entre o objeto e a ação AO QUEBRAR O SILÊNCIO a linguagem realiza o que o silêncio pretendia e não conseguiu obter Maurice MerleauPonty LINHA DO TEMPO A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA Ano 1819 Augusto Comte inicia a publicação dos livros Opúsculos de filosofia social propondo as bases do positivismo Ano 1844 Friedrich Engels estabelece os princípios do socialismo moderno no livro Esboço de uma crítica da economia política Ano 1848 Engels e Marx publicam o Manifesto Comunista Ano 1848 John Stuart Mill publica Princípios de economia política Ano 1867 Karl Marx inicia a publicação dos livros que compõem a obra O capital Ano 1868 Benjamin Constant cria no Brasil um centro para o estudo do positivismo Ano 1883 Clóvis Beviláqua publica o livro A filosofia positiva no Brasil Ano 1893 Émile Durkheim publica na França A divisão do trabalho social Ano 1896 Herbert Spencer publica A filosofia sintética e Estática social Ano 1903 Henri Bergson publica Introdução à metafísica Ano 1905 Albert Einstein publica Teoria especial da relatividade que seria completada em 1916 com a Teoria geral da relatividade Ano 1913 Edmund Husserl publica Ideias relativas a uma fenomenologia pura Ano 1918 Bertrand Russell escreve na prisão durante a Primeira Guerra em 1918 Introdução à filosofia matemática Ano 1919 O Tratado de Versalhes muda a geografia e a política mundial Ano 1920 Georg Lukács publica História e consciência de classes Ano 1922 Ludwig Wittgenstein publica Tratado lógicofilosófico Ano 1922 Carl Schmidt publica A ditadura Ano 1923 Mussolini implanta o fascismo na Itália No mesmo ano Emilio Rochette cria o Partido Fascista Brasileiro em São Paulo Ano 1923 Sigmund Freud publica O ego e o id com uma teoria completa sobre a mente humana Ano 1924 Criada a Escola de Frankfurt importante centro de discussão políticofilosófica Ano 1927 Martin Heidegger publica O ser e o tempo Ano 1929 Criado o Círculo de Viena Ano 1932 O escritor Plínio Salgado lança a Aliança Integralista Brasileira com ideologia anticomunista Ano 1937 Depois da morte de Antonio Gramsci sua obra é publicada sob o título de Cadernos do cárcere e Cartas do cárcere Ano 1941 Carlo Cossio publica La valoración jurídica y la ciência del derecho Ano 1943 JeanPaul Sartre publica o tratado filosófico O ser e o nada Ano 1958 Hannah Arendt publica A condição humana Ano 1962 Maurice MerleauPonty publica Fenomenologia da percepção SEXTA PARTE A FILOSOFIAdoDIREITO CONTEMPORÂNEA O NEOKANTISMO O pensamento de Immanuel Kant chama a atenção de filósofos juristas e professores até hoje Mas ao longo do tempo o idealismo alemão do século XVIII e o positivismo foram sendo superados embora jamais tenham sido desvalorizados Pequenas dissidências ao conjunto do pensamento kantiano foram desenvolvidas na Alemanha principalmente As teorias do filósofo alemão ganharam nova fisionomia no século XIX sem perder porém a estrutura Essas novas faces do pensamento de Kant foram chamadas neokantismo Foi uma espécie de retorno ao idealismo iniciado na Inglaterra com Thomas Hill Green e Edward Caird Na Alemanha pátria de Immanuel Kant o neokantismo teve como representantes mais importantes Otto Liebmann Johannes Volkelt e as escolas de Marburgo e de Baden Não se pode dizer que tenha havido um representante mais expressivo desse retorno à doutrina de Kant iniciado por volta de 1850 Mas é importante destacar alguns pensadores que marcaram posição no neokantismo principalmente na Alemanha Por ordem cronológica o primeiro deles foi o médico Hermann von Helmholtz cujos estudos foram mais orientados para a psicologia Pouco depois observase o surgimento de Eduard Zeller que foi discípulo de Hegel e Kuno Fischer que sucedeu Zeller na cadeira de filosofia da Universidade de Heidelberg Mas todas elas foram abordagens individualizadas cada uma com a sua novidade em relação ao pensamento de Kant Exceções foram a Escola de Marburgo que defendia a ideia de que tudo inclusive as sensações está contido no pensamento com Hermann Cohen Paul Natorp e Ernst Cassirer e a Escola de Baden que defendia a ideia de que os valores estão numa categoria separada da lógica numa concepção histórica do fenômeno jurídico com Wilhelm Windelband e Heinrisch Rickert Fez parte da Escola de Baden o pensador Max Weber cujo pensamento detalharemos adiante neste livro Já no século XX houve um movimento mais organizado a pregar o retorno ao pensamento de Kant Um dos responsáveis foi o filósofo Otto Liebmann que publicou a obra Kant e seus epígonos um ensaio crítico em 1865 Outro pensador que seguiu a atitude de Otto Liebmann foi Friedrich Albert Lange com o livro História do materialismo Junto com outros intelectuais criaram a revista Kantstudien para debater as ideias de Kant sobre o conhecimento O movimento neokantiano perdurou bastante Já no século XX podemos destacar Georg Simmel e Hans Cornelius Mas para efeito da filosofia do direito é necessário pontuar entre os neokantistas a contribuição de Max Weber Max Weber e a influência recíproca entre direito e economia O alemão Max Weber dedicouse à economia e à sociologia valorizando a história como forma de compreender a evolução das sociedades Doutor em Direito estudou principalmente o capitalismo inglês como forma de organização econômica que ele considerava ser a força mais arbitrária da vida moderna Segundo ele direito e economia influenciaramse reciprocamente ao longo do tempo as iniciativas capitalistas teriam tido repercussão sobre a racionalização formal do direito e viceversa o desenvolvimento jurídico teria influenciado o desenvolvimento histórico do capitalismo A revolução bolchevique de 1917 influenciou a obra de Weber particularmente no que diz respeito à sua teoria política e à ideia de dominação carismática Sua obra é de tal importância que juntamente com Marx Comte e Durkheim é considerado um dos fundadores da metodologia da sociologia moderna Max Webber e suas circunstâncias Max Weber é considerado um dos fundadores da sociologia Criou a teoria dos tipos puros de poder legítimos que são modelos de comportamento social Defendia a educação jurídica formal como uma necessidade para impedir que o capitalismo prejudicasse a sociedade Foi quem relacionou capitalismo e protestantismo porque essa doutrina cristã tem como doutrina o sucesso econômico e não a realização transcendental como o catolicismo Max Weber nasceu em Erfurt Turíngia em 1864 na Alemanha de família rica seu pai era advogado e político e sua mãe culta e liberal de fé protestante Consta que aos 13 anos já redigia ensaios históricos de fôlego Doutor em Direito atuou como professor na Universidade de Berlim e também como assessor do governo Interessouse por várias áreas do conhecimento especialmente a economia política filosofia e história Atuou como coeditor do Arquivo de Ciências Sociais publicação importante para os estudos sociológicos na Alemanha Foi professor em Berlim Friburgo Heidelberg Viena e Munique Em 1891 participou da fundação da Federação PanGermanista Em 1918 como um dos fundadores do Partido Democrático Alemão DDP fez conferências em que pedia que o imperador Guilherme II abdicasse do trono Também fez parte da delegação alemã que negociou a paz no fim da Primeira Guerra negociação essa que culminou no Tratado de Versalhes Participou do movimento de criação da República de Weimar tendo sido um dos redatores da Constituição promulgada em 1919 De saúde precária nos seus últimos anos de vida restringiuse a dar conferências em Viena e em Munique Desde 1898 foi assolado por depressões agudas e crises nervosas entre as quais produzia sem cessar sua obra intelectual Morreu em 1920 Max Weber e suas ideias Webber defendia que quanto mais sistematizadas fossem a ordem jurídica e a administração mais previsíveis seriam os resultados de qualquer ação econômica Com isso censurava a maneira como a common law evoluiu à mercê de casos particulares acrescentados à jurisprudência embora admitisse que algo de formalismo existia no processo o que teria impedido uma balbúrdia jurídica Pregava a necessidade de implantação de uma educação jurídica universitária e formal porque o empreendedor capitalista não quer saber de leis mas deveria conhecêlas Realizou importante pesquisa sociológica sobre a dominação analisando diversos modelos de democracia De orientação marxista Max Weber discordou em parte da corrente de Engels e Marx ao considerar que não é apenas a luta de classes a causa das transformações sociais Seu primeiro livro Para a história das sociedades comerciais da Idade Média de 1889 analisou a situação agrícola de Roma Antiga fazendo uma analogia sobre a funcionalidade do latifúndio na Alemanha de sua época Criou o conceito da ação social como denomina a conduta humana dotada de sentido com metas e propósitos determinados para interferir na vida de outros indivíduos O fenômeno social assim pode ser explicado pela conduta social de cada indivíduo cada ato social é baseado em interesses e juízos individuais e está vinculado ao grupo Criou a teoria do poder de tipo puro para explicar os fenômenos sociais Segundo a teoria são três os tipos de poder ou dominação Importante ressaltar que os tipos ideais não são dogmas mas apenas esquemas interpretativos da realidade podem assim ser úteis ou inúteis mas não verdadeiros ou falsos Não são modelos descritivos da realidade são categorias interpretativas não existem na realidade em sua forma pura Um deles é o tipo racionallegal despido de sentimentos e que domina por meio de um sistema de normas o Estado pela sua burocracia é um exemplo de autoridade desse tipo A dominação racionallegal é aquela em que vigora a crença em regras abstratas e impessoais intencionalmente estabelecidas O pressuposto de tais regras é a igualdade todos se submetem a elas da mesma forma Assim essa espécie de dominação consiste em um tipo de exercício do poder desprovido de afeição ou paixão Há uma indiferença emocional O funcionário burocrata deve agir sem nenhum tipo de envolvimento emocional Deve apenas executar o que dispõem as regras A dominação racionallegal implica pois rejeição de qualquer ética ou privilégio É típica de sociedades modernas nas quais entre em crise a ideia de Deus como fundamento único Com efeito a progressiva racionalização observada ao longo da história mostrou a crescente afinidade entre esse modo de dominação e a democracia nos Estados modernos A passagem do Estado absolutista para o moderno é acompanhada preponderantemente pela dominação racionallegal a qual ocasionou a separação entre a vida privada e a esfera pública Weber reconhece a primazia dessa forma de dominação sobre as demais por dois motivos i histórico a história mostra a evolução dos tipos de dominação culminando neste tipo ii metodológico é a forma de dominação que mais se adequa às premissas weberianas Esse último aspecto será retomado no próximo tópico O poder de tipo carismático é aquele em que um indivíduo submete o grupo seja pelo desempenho da liderança seja pela simpatia pelo misticismo ou até pela demagogia Na dominação carismática observase uma crença no caráter sagrado das características excepcionais mediante prova do líder ditador líder militar líder revolucionário e profeta O grande exemplo desse tipo é Cristo características excepcionais comprovadas pelos milagres A dominação carismática é típica de sociedades primitivas Observase nessa espécie uma devoção à santidade ao líder espiritual que deve ser obedecido devido a suas excepcionais e particulares características O líder carismático possui uma característica que é inacessível à pessoa comum por ser personalíssima Percebese pois que a dominação racionallegal leva em consideração na sua dinâmica a racionalidade do mercado ao passo que a carismática não Esta aliás é instável por natureza diferentemente das outras formas de dominação que tendem a se perpetuar no tempo É possível entretanto que haja uma rotineira reiteração do carisma o que gera institucionalização e uma maior estabilidade O terceiro tipo é o poder de tipo tradicional em que as leis são baseadas na tradição daquela comunidade Os súditos prestam obediência incondicional aos senhores porque sempre foi assim pensam que desobedecer aos líderes equivale a desobedecer à tradição Há na dominação tradicional uma crença no caráter sagrado do costume que se localiza numa autoridade tradicionalmente constituída por exemplo o respeito que se deve ter em relação ao chefe familiar É típica de sociedades prémodernas Esse tipo ideal de dominação não é visível em curto prazo Envolve desigualdade distanciamento entre os agentes relação desigual Pressupõe uma diferença de status ou posições sociais diferentes Uma espécie de dominação tradicional é o patriarcalismo no qual a autoridade pessoal do patriarca se sobressai e ele então se apresenta como líder natural Costuma ser em certo grau religioso As normas costumam ter um certo grau de sacralidade e a desobediência é quase pecaminosa implicando malefícios quase mágicos ao transgressor Vejase que há algo em comum entre a dominação carismática e a tradicional em ambas quem domina não é um igual mas um excepcional o que não ocorre na dominação racionallegal Ambas diferem contudo na medida em que na carismática o fundamento da autoridade não se baseia em regras preestabelecidas mas sim em um comportamento revolucionário na mudança o líder carismático cria novas regras e as positiva e nesse sentido há aproximação com a dominação racional legal Em resumo a autoridade ideal ou o Estado ideal é aquela em que a legitimidade reside na associação voluntária de pessoas livres e iguais e não na submissão a um líder a costumes nem sempre corretos ou a leis impostas por um grupo dominante Como se pode ver o Estado ideal não existe e Max Weber sabia disso o que ele fez foi criar modelos de análise do comportamento social para servirem de parâmetro Esses modelos foram entre outros o feudalismo o capitalismo e o protestantismo O meio específico da política para Weber é a força que dá sustento ao poder à legitimidade e à dominação Poder segundo ele é a capacidade de um indivíduo fazer valer sua vontade sobre a de outros a despeito das resistências tal capacidade é expressada de modo probabilístico Legitimidade diz respeito à adesão ativa do grupo social à autoridade constituída Já a dominação é a oportunidade que se expressa também de modo probabilístico de um indivíduo ou um grupo obter exitosamente o que deseja tratase de conceito que envolve relações de mando e obediência em um agrupamento territorial determinado o Estado nacional por exemplo A dominação pode ser imposta ao passo que a legitimidade implica envolvimento uma fé na autoridade O Estado seguindo essa ordem de ideias seria um agrupamento político sempre de uma minoria que exerce legitimamente a violência física Todo Estado portanto tem por base o direito de dominação Estado em particular aponta Weber é o Estado moderno baseado no modo de produção capitalista Tratase de Estado que se fundamenta na legalidade no direito racional direito normativo e procedimental No Estado moderno portanto há um grupo que se destaca da sociedade e se incumbe de aplicar as leis é a chamada burocracia A dominação burocráticolegal aliás é a forma típica do Estado moderno e se fundamenta na crença do caráter sagrado da lei Para aplicála o Estado institui uma polícia e consolida forças militares regulares A burocracia possui caráter nacional o indivíduo exerce sua função não em nome próprio mas em nome da lei é cinza se move das sombras os membros da sociedade não conhecem de fato o funcionamento do Estado e por fim serve sempre ao grupo dirigente exceto em momentos de crise No campo da ética Weber dessacralizou a religião ao negar que fosse ela a chave para o entendimento das relações entre os indivíduos e a sociedade Esses estudos de Max Weber foram importantes para a compreensão dos processos de legitimação do poder na formação das sociedades Entre os pensadores que analisaram o comportamento humano e que foram influenciados por esses estudos está Émile Durkheim Na modernidade dizia ele a religião perde seu papel de centralidade Há a racionalização das esferas e o reconhecimento cada vez maior de que é a vontade humana que positiva os valores e não Deus A Sociologia Religiosa de Max Weber procura estabelecer a relação entre capitalismo e protestantismo O capitalismo é visto pelo senso comum como um sistema econômico em que predomina a ânsia pelo lucro caracterizado por um impulso racional direcionado para o acúmulo de riqueza Para Weber entretanto tal não há no capitalismo moderno Segundo ele o capitalismo moderno em sua vertente ocidental tem como principal característica a renovação do lucro por meio da organização racional do trabalho trabalho livre e da produção organização burocrática A característica predominante é então a racionalização que define o modo de desenvolvimento do capitalismo moderno Racionalização no sentido usado por Weber é a aplicação do racionalismo vertente cultural moderna que diferencia o Ocidente e o Oriente à base material A preocupação de Weber em sua Sociologia Religiosa é perquirir a origem desse processo mais precisamente busca estabelecer qual o papel da religião na organização da racionalidade que se inclina à prática de determinado ato de teor econômico Aduz Weber que o capitalismo explica o protestantismo e não o contrário mesmo porque o capitalismo é a ele anterior De qualquer forma a ascese protestante potencializa a racionalidade do capitalismo porque elimina as barreiras que a tradição católica havia criado para a acumulação de riquezas Weber procura relacionar determinada conduta racional a certa ética religiosa Nesse sentido segundo ele a formação profissional que se origina da formação familiar inclina os protestantes a atividades economicamente mais rentáveis iniciativa privada e os católicos a atividades burocráticas carreiras de Estado A tradição católica enfatiza colocava barreiras ao desenvolvimento capitalista Com efeito a ética católica tendia ao livrearbítrio e privilegiava a bondade do cristão Essa bondade por exemplo impedia que dinheiro fosse emprestado a juros proibição da usura Calvino critica o livrearbítrio e prega a predestinação alguns serão salvos e outros não não há meio de se conhecer a vontade de Deus não há meio ou instrumento para a salvação para a Igreja Católica havia e eram os sacramentos as boas obras embora por um longo período tenha existido também a venda de indulgências Há entretanto indícios de que alguém será salvo indícios psicológicos a vocação a disciplina e a obrigação na fé Esses indícios podem também ser ampliados para a esfera social por exemplo disciplina na profissão devese ser o melhor profissional Essa ética protestante seria segundo Weber o espírito do capitalismo A ascese protestante com efeito preconiza o trabalho duro e a abstenção dos prazeres da vida como imperativos da conduta estabelecendo parâmetros racionais condizentes com os pressupostos para a origem do capitalismo Isso porque uma vida dedicada ao trabalho intenso e com abdicação dos prazeres mundanos conduz fatalmente à sobra de dinheiro que uma vez investida fomenta o ciclo do capital e assim a origem do sistema capitalista A teoria de Weber nesse campo é preciso salientar procura explicar a origem do capitalismo não seu ulterior desenvolvimento Além disso importante ter em mente que Weber não explica a conduta racional exclusivamente por meio da religião ele se utiliza também da história ocidental O papel decisivo da religião está sim na massificação daquela conduta racional mormente a partir da reforma protestante Para Weber as ordens exaradas do Estado nas sociedades ocidentais modernas são manifestações do que chama de dominação legal São comandos legítimos na direta proporção da fé que as pessoas têm na legalidade com que o poder dessas autoridades é exercido admitidas a força e a violência nesse processo político Isso porque segundo Weber os sistemas políticos pretendem a dominação mas têm necessidade da legitimação para serem duráveis Em suma não há dominação sem legitimação Por isso os governantes usam a técnica de morder e assoprar aplicando coerção e obtendo consentimento Weber afirma que mesmo nos sistemas democráticos impera a dominação A preocupação central da obra weberiana é a racionalidade Ele procura perquirir as condições para sua formação e seu fomento em diferentes campos de conhecimento e em especial no direito e na economia Daí que como mencionado acima Weber tenha preconizado que toda ação humana é realizada visando a determinados fins ou valores O homem age segundo ele sempre de acordo com o esquema mental de meiosfim visando adequar aqueles a este As condições em que as opções pelo meio são tomadas é que constituem o grande objeto de estudo do filósofo Weber com efeito acreditava que o fenômeno característico da sociedade era a racionalização da vida Para que a ação possa ser objeto de conhecimento deve estar regulada por algum tipo de regra não é possível conhecer o sentido de uma ação sem que se examine a regra que a regula A ação social é uma ação com sentido visa a alguma coisa com um mínimo de racionalidade é o objeto da Sociologia Em outras palavras toda ação social está influenciada por algum tipo de regra ou norma Exemplo parar no semáforo é uma ação social uma vez que se dá mediante as regras de trânsito mesmo aquele que avança o sinal agindo ilicitamente pratica uma ação social mas dessa vez negando ou burlando a norma por ele considerada Toda ação social excetuandose assim os comportamentos meramente reativos respirar à noite por exemplo regulase por um conjunto de regras Pressupõe portanto um mínimo de racionalidade bem como algum tipo de liberdade de decisão não se trata de uma ação necessária mas de uma ação escolhida É importante considerar o contexto da Alemanha na segunda metade do século XIX quando nasce Weber enfrentavase então um processo tardio de unificação nacional com uma Prússia fortemente desenvolvida do ponto de vista industrial e as demais unidades alemãs em absoluto atraso Diferentemente do que se passou na unificação italiana na qual houve considerável participação popular na Alemanha o processo foi encabeçado pela Prússia capitaneada por Bismarck sem aquela participação A Prússia assim foi responsável pela transição da Alemanha para o capitalismo monopolista sem que o país contudo tenha passado pela experiência do capitalismo concorrencial A burguesia simplesmente capitulou perante o Estado que passou a ser administrado pela aristocracia fundiária alemã O resultado forças feudais e capitalistas se uniram para conter a participação popular na unificação alemã O fato de ter se unificado tardiamente por outro lado fomentou o militarismo exacerbado na Alemanha que se viu de imediato envolvida na disputa por novas colônias Weber foi defensor e entusiasta da unificação alemã e também do imperialismo que constituiriam na sua visão caminhos para potencializar a produção material da sociedade permitindo melhores condições de vida para as diferentes classes Podese dizer assim que era um liberalnacionalista Do ponto de vista filosófico Weber pode ser tido como existencialista preocupavase com o modo pelo qual o sujeito afirma conscientemente o seu ser para o mundo Reconhece que fenômenos sociais carregam consigo uma singularidade são sempre valorativos subjetivos O problema da Sociologia é precisamente analisar cientificamente isto é de modo objetivo algo marcadamente subjetivo Reconhece contudo que uma atitude completamente isenta de valoração perante a realidade é impossível a valoração é por assim dizer inescapável A própria escolha do objeto de estudo já está impregnada por valores Além disso a própria neutralidade é um valor Nesse plano existe um tipo de conhecimento valorativo inescapável a saber o baseado na neutralidade que no limite é um valor e esse tipo de conhecimento é o científico Ainda que se parta de uma valoração controlada a Sociologia segundo Weber pode produzir conhecimento neutro e objetivo Para essa explicação científica Weber critica a adoção de um reducionismo analítico que preconiza uma causalidade mecânica Em Weber a ideia de causalidade está ligada à probabilidade à causalidade múltipla Isso porque a realidade social é infinitamente mais complexa do que a capacidade humana de compreensão ou em outras palavras diante da limitação da cognição humana podese mesmo falar em irredutibilidade do fenômeno social Nas ciências sociais todo conhecimento possui um caráter probabilístico o conhecimento científico nas ciências sociais se reflete não em uma relação de causalidade necessária mas em uma relação de causalidade provável Essa noção é central na obra weberiana A Sociologia para Weber é uma ciência compreensiva baseada na empatia tentativa de se fazer a conexão entre duas subjetividades a de quem analisa e a do próprio fenômeno e na neutralidade axiológica o observador deve desconsiderar os juízos de valor e tomar como objetos de estudo o valor em si de modo sistematizado Esse ramo de conhecimento cuida basicamente de identificar as regras que dão sentido às ações sociais Compreender de modo causal uma circunstância em Sociologia implica um duplo movimento a empatia e o distanciamento são atitudes praticamente antagônicas É importante considerar que conhecer e avaliar são atitudes distintas muito embora o acolhimento dessa distinção não seja pacífico no plano filosófico Platão por exemplo aduzia que a descoberta da verdade traz a capacidade de avaliála se conheço o bem consigo julgar o mundo segundo ele Já para Weber conhecer um valor não implica necessariamente avaliar o mundo por meio dele Assim surge a indagação se não é por meio de uma especulação filosófica que se pode estabelecer o que é certo e o que é errado como os indivíduos escolhem seus valores Em outras palavras se não fazem suas escolhas a partir do conhecimento como o fazem então A origem dos valores estaria para Weber em um ato de vontade ou seja nossos valores não são escolhidos racionalmente por meio de reflexão Esse ato de vontade não é totalmente livre devese considerar o ambiente cultural em que se vive a influência da família etc Não existe pois um fundamento racional universal que explique a adoção individual de valores os condicionamentos históricos não podem ser desprezados Para Weber os valores são positivados instituídos por um ato de vontade e não por um fundamento racional Há em Weber portanto uma radical distinção entre valores e conhecimento para este seriam necessárias duas coisas empatia pelo objeto de estudo e distanciamento em relação a ele Nas ciências sociais a objetividade não é algo acabado como nas ciências naturais mas algo a ser buscado Aduz Weber como já indicado que a objetividade do conhecimento não pode ser reduzida a uma única fonte Daí sua crítica ao materialismo histórico redução dos fenômenos sociais a um determinado comportamento econômico o qual segundo ele não é científico mas sim apenas dogmático A realidade social de fato é composta por várias esferas religião cultura ideologia política economia etc cada uma delas com um sentido inerente a religião por exemplo traz o sentido inerente da salvação Essas esferas não são redutíveis umas as outras mas também não são completamente independentes entre si Como resultado temse que o fenômeno social é sempre fruto de uma pluralidade causal o que justifica a importância da noção de probabilidade da obra weberiana ponto que merece aprofundamento Com efeito a explicação científica sempre possui um caráter probabilístico A ação social orientase por regras mas não se pode determinar com absoluta certeza o motivo que a causou Um exemplo é oportuno para esclarecer parar no semáforo que é uma ação social se dá preponderantemente em virtude do direito mas pode também ter por causa motivos morais é certo parar religiosos respeito à vida ou econômicos o valor do carro entre outros Max Weber e sua influência no direito Sua maior contribuição ao direito está no conceito da mão de obra livre que foi uma crítica à modernidade Esse conceito afirma em primeiro lugar que há diferença entre homens e coisas o homem pode possuir coisas mas não pode possuir outros homens Portanto Weber elimina a servidão ou a escravidão do ambiente capitalista moderno A mão de obra livre também afirma que o trabalhador é dono de sua capacidade de trabalho e que pode vendêla por um determinado período de tempo a outra pessoa Mas o conceito também implica a ideia de que o trabalhador foi expropriado da posse dos meios de produção ou seja trabalha com materiais e instrumentos que pertencem a outra pessoa no caso o dono do capital Uma parte do conjunto do pensamento jurídico de Max Weber está no livro Rechssoziologie Sociologia da lei em que raciocina a respeito da estrutura da sociedade moderna em que impera a racionalização Weber admite que a racionalização do direito permitiu maior controle da vida social mas lamenta que o homem comum tenha sido obrigado a depender de especialistas para auxiliálo nas avenças ou desavenças jurídicas Segundo Weber o indivíduo pode assumir três diferentes tipos de atitude diante das regras i moral ii dogmáticojurídica iii sociológica A atitude moral busca um critério externo ao conjunto de regras para estabelecer um juízo acerca delas Assim todo juízo moral é avaliativo e como tal sugere um posicionamento Além disso o juízo moral geralmente se apoia na presunção de que determinado padrão é legítimo válido Por fim de alguma forma juízos morais levam o indivíduo a realizar um encadeamento entre determinadas premissas e determinadas conclusões Há inclusive questionamento por parte de alguns autores sobre tais apontamentos de Weber sob o argumento de que os princípios morais de certa maneira estão embutidos no ordenamento político o que Weber rechaça aduzindo que mesmo que tal ocorresse o ordenamento não mudaria apenas se tornaria mais complexo A atitude dogmáticojurídica por sua vez busca estabelecer quais são as regras do jogo Suas características não é avaliativa mas descritiva embora não haja uma avaliação externa há uma análise da regra em face das demais regras Por fim o sociólogo do direito de acordo com os apontamentos weberianos não avalia as regras de direito ele basicamente quer saber como os comportamentos dos indivíduos são causalmente determinados por um sentido sentido esse dado pelo ordenamento jurídico Em outras palavras procurase determinar em que medida a normatividade influencia o comportamento dos indivíduos A atitude sociológica se aproxima da atitude do advogado as regras do jogo são avaliadas e analisa se como essas regras influem nas decisões dos juízes Por óbvio diferentemente do advogado o sociólogo busca a partir da compreensão das decisões dos tribunais um conhecimento universal não casuístico Além disso como já mencionado o verdadeiro conhecimento sociológico busca se revestir de neutralidade axiológica O direito em suma é um conhecimento dogmático premissas estabelecidas em crenças não questionáveis A Sociologia é um conhecimento zetético postura explicativa e atitude não valorativa em face dos fatos Para Weber ordem jurídica é aquela garantida por uma alta probabilidade de que a transgressão a uma norma seja sucedida por uma sanção imposta por um órgão especializado burocrático Não existe nenhum campo da atividade humana que não esteja regulado pelo direito Assim direito não se define pelo tipo de sanção que esteja a ele relacionado nem pelo procedimento utilizado para produção das normas nem tampouco pelo tipo de comportamento regulado Pode mesmo haver direito sem Estado desde que as sanções sejam ainda assim impostas por um órgão especializado conselho dos anciãos ou dos guerreiros por exemplo A noção moderna de direito entretanto está ligada à ideia de Estado Direito em suma caracterizase pelo modo como a norma é aplicada por um órgão especializado Há casos limites todavia em que o descumprimento de uma norma não implica imposição de sanção para tomarmos o contexto brasileiro nas favelas por exemplo há um órgão responsável pela aplicação das sanções e entretanto não se fala em direito naquele ambiente Tais casos poderiam colocar em xeque a noção weberiana de direito Ocorre porém que Weber se refere ao direito prevalecente que na atualidade é o estatal Vejase que a concepção de direito de Weber é distinta da de Kelsen e Hobbes eis que não considera que a ordem jurídica tenha por origem a ordem constituída a autoridade mas antes o órgão burocrático que aplica as sanções Weber busca entender em que medida a economia influi na constituição do direito Nessa busca sustenta uma explicação causal hermenêutica de dois níveis enfatizando as relações recíprocas entre os objetos de seus estudos Quando o indivíduo age no mercado ele procura a maximização da satisfação de suas vontades individuais Na esfera religiosa age ele de maneira também racional em relação ao fim ir para o céu obter a salvação praticando fervorosamente sua fé Como já indicado para Weber existe uma certa autonomia entre as esferas do comportamento humano econômica jurídica religiosa etc no que se diferencia de Marx que deduz da econômica todas as demais A Sociologia Jurídica então estuda a normatividade emanada da esfera jurídica Assim reciprocamente com as Sociologias religiosa econômica etc Existem sim articulações de sentido entre fatos que ocorrem nas diferentes esferas Há um processo presente em todas as esferas do comportamento humano a racionalização tendência de organizar e sistematizar as regras além de criar mecanismos interpretativos avançados bem como um corpo especializado para a aplicação delas Essa racionalização não pode ser explicada de modo causalmente mecânico Não se pode afirmar por exemplo que a racionalização do direito foi causada pela evolução do capitalismo essa dedução não pode ser mecânica automática Aliás se assim fosse o direito racionalizado teria surgido primeiro na Inglaterra o que como se sabe não ocorreu As esferas do comportamento se influenciam mutuamente mas não são determinantes umas as outras O tema weberiano por excelência é o que provoca e o que resulta da racionalização nas diferentes esferas mesmo que esse processo não seja idêntico em cada particular situação em sua obra ele procura os pontos em comum Exemplo por que o direito racionalizouse na Inglaterra e na Alemanha mas não na China Quais os motivos Weber reconhece que processos de racionalização não são necessários a evolução pode se dar de outra forma Na história ocidental entretanto observase um predomínio daqueles processos Toda ação social e toda organização institucional guardam sempre um aspecto de contingência há um alto grau de probabilidade de que determinados padrões se repitam de que determinados processos ocorram mas não há processo necessário No campo do Direito impossível desconsiderarse a obediência Por que afinal as pessoas obedecem Por que essa ação faz sentido Em que medida podemos compreender a ação social de obediência Para responder é necessário antes entender o que é poder Poder como já apontado é a possibilidade no sentido de probabilidade de que determinados atos sociais de alguém se sobreponham à vontade alheia mesmo mediante resistência Dominação é um tipo especial de poder espécie do gênero envolve uma forma de aceitação do poder a pura coerção não constitui relação de dominação O elemento de voluntariedade assim não é necessário para a definição do conceito de poder mas o é para o de dominação O gênero poder portanto subdividese nas espécies violência e dominação É sobre essa última que Weber concentra suas atenções Isso porque dominação é a forma mais estável de exercício do poder Nenhuma estrutura de poder perdura se estiver estabelecida exclusivamente na violência há necessidade de legitimação para a estabilidade Justamente por esse motivo a dominação permite o desenvolvimento dos institutos sociais Daí o interesse de Weber sobre o tema Para ele a relação de dominação ou autoridade diferentemente da coerção violenta é uma relação tipicamente humana pois há um sentido na obediência Não se trata apenas de uma causa ou puro condicionamento o homem tem uma necessidade natural de encontrar um sentido para sua existência o pior inferno para o homem é viver sem sentido esse é um elemento que funda a relação de dominação Essa busca por sentido é particularmente aguda entre pessoas mais abastadas elas procuram justificar a sua situação comparandoa com a dos demais De qualquer modo o homem procura legitimar conferir sentido a situação por ele vivida Por que Weber se interessa pelo direito pela religião pela cultura pela música São segundo ele esferas doadoras de sentido para a vida das pessoas O impulso humano universal de viver significativamente encontra respaldo nos diferentes tipos de dominação tais tipos assim doam significado à vida das pessoas Enfim a questão do sentido e a questão da dominação estão diretamente ligadas Para Weber como já afirmado os valores são positivados Assim racionalmente é impossível estabelecer hierarquia entre eles As escolhas valorativas portanto não estão ligadas à razão a algum fundamento racional Valores nascem da mesma forma que as leis por um ato de vontade e como tal um ato de poder É impossível qualificar um valor de racional ou não racional A questão assim posta simplesmente não tem qualquer sentido Weber portanto sustenta uma teoria positivista dos valores valores como atos de vontade Entende que cabe à Sociologia explicar como surgem e como se mantêm os valores que como dito não são fatos naturais mas humanos e conferem sentido às ações sociais e às relações de dominação Valores são inventados e por isso mesmo positivados São impostos por algum tipo de vontade não se trata de ato racional mas ato de poder isto é essencialmente irracional Em suma é uma decisão não redutível ao critério racional que impõe os valores e o processo de imposição destes é descrito por Weber por meio de seus tipos ideais de dominação tema já tratado em tópico anterior É preciso ainda estabelecer qual a afinidade entre o tipo ideal da dominação racionallegal e os pressupostos metodológicos weberianos tema também mencionado no tópico anterior Convém então uma vez mais explicitar os principais pontos de partida da metodologia de Weber i os valores não podem ser fundamentados racionalmente e por consequência não é possível uma ciência dos valores mas apenas sobre os valores os quais como já mencionado são produzidos por um ato de vontade teoria positivista dos valores ii os valores são importantes para orientar a ação são códigos de sentido para a ação iii a ação científica é orientada também por um valor o da neutralidade iv outras formas de ação são cada qual orientadas por valores políticos ideológicos etc Todas as formas de dominação são úteis para compreender um tipo específico de ação social a obediência Na forma de dominação racionallegal é evidente que a escolha do conteúdo das leis é claramente derivado de um ato de vontade Na tradicional diferentemente a origem dos valores se reportava a um tempo imemorial isto é nela não há clareza de que o valor foi criado por um ato de vontade ao contrário é reconhecido como se sempre tivesse existido A percepção de que os valores tinham sido positivados não era nítida É na distinção entre fatos e valores no reconhecimento de que não se podem derivar valores da análise do assento que se pode vislumbrar a semelhança entre a metodologia weberiana e a dominação legalracional motivo pelo qual aliás Weber confere primazia a esta sobre as demais Somente na forma de dominação legalracional é que se pode ver claramente a origem dos valores em um ato de vontade as leis promulgadas são produto da vontade do legislador Assim resta claro nesse tipo ideal que os valores não estão escritos na natureza como preconiza o jusnaturalismo Vêse claramente em suma a separação radical entre valores e mundo entre deverser e ser Para Weber enfatizese uma vez mais todo valor é constituído em última instância por um ato de vontade Na dominação legalracional essa criação voluntarista é evidente ao passo que nos outros tipos ideais de dominação essa premissa metodológica de Weber não é tão perceptível A forma racionallegal em resumo é aquela em que as pessoas aceitam obedecer às regras cujo conteúdo foram obrigadas a criar sem qualquer fundamento racional mas por atos de vontade Reconhecese pois nesse tipo um certo vazio valorativo Na modernidade Weber aponta que na medida em que as pessoas não mais encontram um sentido único para suas vidas papel atribuído à religião na Idade Média por exemplo são desafiadas a reencontrar um novo sentido o que se liga diretamente a uma tentativa de instituir valores Esse processo por sua vez relacionase intimamente com a racionalização e é concomitante às passagens das dominações tradicional e carismática para a racionallegal Esse movimento também ocorre no direito que passa a ser racionalizado formal e substancialmente De um lado essa racionalização é posta como forma de libertação de valores outrora únicos De outro lado também serve para criar uma espécie de vida racionalizada que pode ser descrita como uma jaula de ferro o homem se vê criando sentido para suas ações sem ter a consciência dos motivos para tal proceder O homem se escraviza a valores criados Age racionalmente de acordo com valores irracionalmente postos Assim por exemplo o burocrata que age segundo regras e perde a referência sobre qual é o sentido de sua obediência a elas Em suma passa o indivíduo moderno a um automatismo A ideia de dominaçãoracional portanto deriva não da noção de justiça mas da positivação de dados valores por um ato de vontade investido de autoridade Não há qualquer predeterminação desses valores não há valores necessários para esse tipo de dominação Daí se dizer que apenas a dominação racionallegal mantém vínculo com a teoria dos valores de Weber Weber aponta também a existência de um processo de afirmação da ciência moderna bem como da filosofia moderna como padrão de conhecimento científico libertase o conhecimento progressivamente de qualquer vinculação metafísica Na Idade Média a Bíblia onde Deus se revelava era tida como a fonte de todo o conhecimento visto que todo conhecimento tinha fonte sagrada Daí se considerar heresia em suas respectivas épocas as afirmações de Giordano Bruno sobre astronomia e de Darwin sobre a evolução das espécies afirmações que questionaram todo o conhecimento tradicional existente até então como dogma sem que seus autores tivessem autoridade para fazêlo Houve em tais heresias uma contestação do saber filosóficopolítico As consequências foram revolucionárias eis que comprometeram toda uma base de fundamentação Locke por exemplo questionou o poder divino dos reis ao colocar dúvidas sobre o fato de serem os reis descendentes de Adão Locke aliás escreve contra o fundamento teológico da autoridade dos reis sendo nesse sentido um expoente do processo racionalista que não admite que a legitimidade repouse na autoridade tradicional dos reis da Igreja etc Hobbes e Hume diferentemente de Rousseau e Locke apontam ser impossível uma fundamentação racional dos valores Weber se filia à tradição dos primeiros Hobbes afirmava que o fundamento do direito é o poder soberano a autoridade e não a verdade mesmo porque não seria possível conhecer o que é a verdade ou o justo Weber como já dito outras vezes aduzia que conhecer o mundo não permite ao conhecedor apreender o sentido dele Na modernidade o uso da razão permitiu criar novos valores e fundamentálos racionalmente Assim uma época que admite que o fundamento do conhecimento é a razão e não a religião permeada de autores que vão de Hobbes a Weber e tão somente ela o cientista não pode trabalhar com algo que não seja racional demonstrável reconheceu que não é possível raptar o sentido das coisas É possível pois explicar o mundo mas não captar o sentido das coisas o porquê de tal e tal coisa acontecerem sentido que outrora era fornecido pela religião Assim na Idade Moderna sabese que existe a gravidade mas não o sentido o porquê de ela existir O ser humano da modernidade está assim acostumado a descrever as coisas e a tentar explicar o porquê das coisas por sua finalidade Tratase de legado deixado pelo modo de pensar da chamada era das trevas Com efeito para o religioso a explicação está no destino Deus sabe o que está fazendo A religião atribui sempre um sentido às coisas mesmo que as pessoas não consigam apreendêlo Na modernidade diferentemente afirma Weber as causas podem ser explicadas e toda fundamentação pela finalidade é inválida eis que nesse sentido essa finalidade não pode ser apreendida Afirma ainda que a ciência moderna não conseguiu se desvencilhar totalmente do viés de atribuir sentido às coisas constatação que pode também ser vista em Kant e em Habbermas Daí concluir Weber que o sentido do mundo não pode ser apreendido pelo resultado de sua análise O pensamento moderno assim não aponta qual valor deve necessariamente fundamentar a ação do ser humano Surge então a indagação sobre onde buscar os valores a serem acolhidos se a ciência não os fornece e ademais rejeita a fundamentação religiosa A resposta dada por Weber cada um deve criar seus próprios valores ou seja por força de vontade positivar valores que atribuam sentido a um mundo que não tem sentido A nossa era está pois condenada a criar o seu sentido No campo jurídico isso significa que não sendo mais possível a fundamentação jusnaturalista deve o homem criar os valores a que quer obedecer como a democracia De todo modo para contornar essa ausência de sentido imanente o homem busca racionalizar os valores adotados elegendoos como dogmas com natureza normativa Com isso o homem admite que a própria religião seja adotada como uma das fontes doadoras de sentido à ação de igual modo o ateísmo mostrase válido e faz sentido para quem o adota e racionaliza essa escolha No mesmo sentido os valores inerentes ao chamado direito natural podem em verdade ser escolhidos a qualquer tempo e por qualquer um daí a coexistência de valores diferentes em sociedades distintas cada qual com seu direito natural Não há portanto uma razão única que revele um valor único O que ocorre é que cada agrupamento humano escolhe um valor ou conjunto de valores escolhe um sentido para suas ações e tenta justificar racionalmente sua escolha para os muçulmanos a ditadura religiosa é plena de sentido para os ocidentais só a democracia possui sentido mas ambas as posições são válidas eis que cada qual tem sentido para aqueles que as positivaram Esse posicionamento metodológico vai de encontro às tentativas de fundamentar uma verdade ou razão universal Weber fala por isso em desencantamento do mundo atribuindoo à ciência moderna que traz em seu bojo o desenvolvimento tecnológico e cultura solapando valores tradicionais e religiosos A tarefa do sociólogo é pois segundo Weber buscar qual o sentido mais próximo de certa racionalidade qual o sentido que orienta cada ação social Com isso porém não deve se deixar levar pela ilusão de que é possível estabelecer e determinar o fundamento de cada ação como se houvesse um sentido único Isso não é possível porque não há uma mente coletiva e cada pessoa positiva seus próprios valores Mas diante da existência de fatores uniformizadores das escolhas podese entender por que dada coletividade adotou um valor comum sem olvidar que essa escolha não foi racional e sim derivou de atos de vontade Vejase em síntese que a novidade metodológica de Weber se liga à ideia de multiplicidade de normatividades estética direito moral religião etc que se entrelaçam na orientação do indivíduo O desencantamento do mundo a que faz referência é a dessacralização dos valores religiosos donde o caráter subversivo da ciência moderna que substitui valores tradicionais por outros pautados na neutralidade mas sem conexões necessárias e intrínsecas podese fazer uso da ciência para curar doenças ou para fazer bombas Com efeito no mundo moderno a moral perde seu caráter absoluto e surge com força a ideia de tolerância ou relativismo moral a admissão de que é possível conviver com diversos padrões Tal resulta da constatação de que não há fundamento racional a apontar que determinados valores devem preponderar sobre outros No máximo podese entender tais valores o porquê de obedecêlos Valores como já tantas vezes reiterado aqui resultam de um ato de vontade e hoje são relativos não se consegue por exemplo conceber arte perfeita como os gregos antigos o faziam Algo semelhante ocorre com o direito não há em Weber o direito absoluto fruto de autoridade soberana concepção hobbesiana há segundo ele um corpo de funcionários burocratas a que se atribui uma função especializada qual seja a aplicação do direito O direito veicula valores não é neutro a experiência do direito contemporâneo tem como fundamento a ideia de que a ordem jurídica não se vincula a um determinado valor preestabelecido mas pode se ligar a qualquer valor não há problema algum em existirem leis injustas Kelsen segue Weber nesse ponto donde não vê qualquer problema quanto à legitimidade de um ordenamento nazista por exemplo essa aliás a maior crítica sofrida pelos sistemas positivistas Weber de fato admite que qualquer conteúdo valorativo pode ser conteúdo de direito tratase de uma dimensão contingente A AÇÃO ECONÔMICA é o exercício pacífico do controle do agente sobre os recursos que é orientada racionalmente por planejamento deliberado para fins econômicos Max Weber Rudolf Stammler e o direito como querer Expoente da Escola de Marburgo Rudolf Stammler foi um estudioso da ciência do direito É considerado um filósofo neokantiano porque retomou a obra Crítica da razão pura de Immanuel Kant para determinar os pressupostos do direito É preciso lembrar que o direito foi objeto de estudo dos filósofos desde a Antiguidade clássica até Hegel Apenas modernamente é que passou a ser estudado pelos jusfilósofos ou juristasfilósofos Rudolf Stammler foi um dos primeiros jusfilósofos que adotaram o direito como objeto de estudo Sua originalidade foi construir um sistema filosófico do direito que o distinguiu da filosofia comum Rudolf Stammler e suas circunstâncias Rudolf Stammler inaugurou a fase em que o direito passou a ser observado como fenômeno universal porque o direito existe em qualquer lugar onde existam pessoas É considerado um dos precursores da moderna filosofia do direito O ponto de partida do método de Stammler é que o homem deve seguir a sua consciência e atuar para obter o que deseja O homem deve querer Rudolf Stammler nasceu em 1856 Foi professor em várias universidades alemãs como Leipzig Hamburgo e Berlim Morreu em 1938 Suas obras mais importantes foram A teoria do direito justo escrita em 1902 A escola histórica do direito de 1908 e Tratado de filosofia do direito de 1930 Com seu método contrário ao positivismo procurou dar ao direito instrumentos que permitissem lidar com o objetivo e os meios dessa ciência ao contrário do que pregavam os jusnaturalistas que preferiam lidar com causa e efeito Rudolf Stammler e sua influência no direito Com a filosofia do direito de Stammler tornouse possível definir questões que a filosofia não resolvia como por exemplo o que é justo e o que é injusto Que diferença existe entre moral e direito O direito segundo Stammler segue o princípio da finalidade Por isso o maior pressuposto de seu pensamento é de que o homem deve assumir uma atitude que o situe na realidade em que vive Não basta observar o mundo contemplálo apenas mas agir com um objetivo definido Toda atividade humana está envolvida com uma questão de consciência com o querer alguma coisa Nesse aspecto a juridicidade é um acordo formal de vontades Com essa visão formalista Stammler compreende a justiça como um valor abstrato e apenas ideal desvinculado da realidade social e política Por isso mesmo há diferentes direitos justos Rudolf Stammler influenciou jusfilósofos como Kelsen Para esse filósofo o objetivo do direito é a justiça Mas quando o conceito de justiça é aplicado ao cotidiano dos diferentes povos com suas peculiaridades sociais e culturais o resultado é que surgem diferentes direitos justos O homem tem a capacidade com o livrearbítrio de modificar as coisas Stammler suprimiu a metafísica e buscou uma justificação formal da moralidade na sua concepção do direito Rejeitando o materialismo histórico afirmou que existe diálogo entre direito e economia porque ambas as ciências tratam do mesmo objeto de estudo que é o homem como ser social submetido a uma regulação e em contínua cooperação com outros homens para a satisfação de suas necessidades sejam essas materiais ou ideais TODO DIREITO é um ensaio no sentido de ser justo Rudolf Stammler Oskar von Büllow e o processo como relação jurídica Até 1868 o direito processual era apenas uma parte do direito civil Daí ter recebido a denominação tão abominada pelos processualistas modernos de direito adjetivo em contraposição ao direito substantivo relativa ao direito civil Os contratualistas inspirados em Robert Joseph Pothier de que já tratamos neste livro dominavam a doutrina processual então dividida em duas categorias o direito material e o direito processual Até aquele momento não era permitido ao cidadão acompanhar o seu processo porque não havia a figura da autodefesa a não ser em casos muito específicos como a legítima defesa E o juiz como representante do Estado e com a obrigação de resolver conflitos tinha um papel que nada mais era do que aplicar uma norma existente ao caso concreto posto em análise Oskar von Büllow e suas circunstâncias Oskar von Büllow foi o responsável por transformar o direito processual em ciência autônoma desvinculada do direito material No livro A teoria das exceções processuais e os pressupostos processuais definiu as bases para a Teoria da Relação Jurídica que revolucionou o direito processual e que é praticada até hoje Oskar von Büllow é o fundador do moderno processualismo Nasceu em 1837 na Alemanha Obteve o grau de Doutor em Direito em 1859 Foi professor de Direito Romano e Direito Civil na Universidade de Giessen depois em Tübingen e por fim em Leipzig Aposentouse cedo aos 55 anos em função de problemas cardíacos mas continuou escrevendo Morreu em 1907 Oskar von Büllow e suas ideias Oskar von Büllow em 1868 publicou A teoria das exceções processuais e os pressupostos processuais tendo sido o primeiro jurista a defender que a lei não é a única fonte criadora do Direito Oskar von Büllow afirmou em sua teoria que existem duas relações jurídicas em um processo Uma é a relação material relativa aos bens de que trata o processo A outra é a relação formal estabelecida entre as pessoas envolvidas no processo Oskar von Büllow e sua influência no direito Esse autor defendia que a teoria do processo implicava necessariamente uma relação entre o juiz e as partes envolvidas Oskar von Büllow é considerado o primeiro teórico a tratar da sistematização da relação processual Sua obra foi responsável pela transformação do direito processual em ciência autônoma Embora tenha sido o formulador da Teoria da Relação Jurídica não foi o primeiro jurista a pensar no assunto Antes dele houve na Alemanha a célebre polêmica entre Bernhard Windscheid professor da Universidade de Greifswald e Theodor Müther da Universidade de Königsberg nos anos de 1856 e 1857 Ambos divergiram sobre o direito de ação isto é em que circunstâncias um indivíduo que se sente lesado pode impetrar ação contra o ofensor e até invocar a tutela do Estado O debate foi travado sobre os preceitos defendidos por Savigny de que não há ação sem direito não há direito sem ação e que a ação segue a natureza do direito Apesar das discordâncias esse famoso debate despertou os juristas da época para a necessidade de conceder autonomia ao direito processual o que acabou sendo realizado por Von Büllow alguns anos depois O PROCESSO é uma relação de direitos e obrigações recíprocas a dizer uma relação jurídica Oskar von Büllow Gustav Radbruch contra a injustiça legal Também neokantiano Gustav Radbruch celebrizouse como o autor do Código Penal alemão O princípio neokantiano é de que a lei é definida por valores morais Pertenceu à Escola de Baden Como vimos a Escola de Baden e a Escola de Marburgo foram os dois movimentos neokantianos efetivamente organizados A diferença de visão entre as duas escolas relacionavase com a noção de apreensão do genérico e do particular Gustav Radbruch e suas circunstâncias Gustav Radbruch foi o autor do Código Penal alemão Considerava o direito um fato cultural Contrariando filósofos de sua época afirmou a validade das ciências históricas que junto com as ciências matemáticas levavam o homem a participar dos valores culturais de seu grupo social Dizia que esses valores são atemporais e universais e consolidamse no transcorrer da história Gustav Radbruch nasceu em 1878 Foi professor de Direito Penal e de Filosofia do Direito nas Universidades de Königsberg Kiel e Heidelberg Foi ministro da justiça da República de Weimar entre 1921 e 1923 Nessa função redigiu o Projeto do Código Penal alemão em 1922 Também foi deputado constituinte de Weimar entre 1920 e 1924 Foi proibido de lecionar por uma medida de Hitler em 1933 por ter tido atividades políticas anteriores contrárias ao partido nacionalsocialista sempre foi fiel ao partido socialdemocrata Só conseguiria voltar a lecionar depois do fim da guerra Gustav Radbruch e suas ideias Inicialmente Radbruch foi seguidor do positivismo jurídico que veremos no próximo tópico deste livro mas desiludiuse com leis cruéis e injustas dos governantes alemães durante a Segunda Guerra Mundial e por isso alterou sua maneira de pensar e tornouse jusnaturalista Trabalhou então para acumular argumentos para a negação de validade de leis injustas impostas pela coação e pela força Entre suas principais obras estão Introdução à ciência do direito de 1910 Fundamentos de filosofia do direito de 1914 Minuta de um Código Penal alemão de 1922 e até uma autobiografia O caminho interior a trajetória de minha vida publicada em 1951 Suas obras configuram uma observação do direito por meio de juízos de existência que avaliam o ser e juízos de valor que avaliam o deverser No entanto considerava que todos os juízos eram relativos Gustav Radbruch e sua influência no direito Para Radbruch o direito é formado por três pilares centrais O primeiro é a Justiça que pode ser atingida com base em conteúdo formal universal e numa relação jurídica ideal entre os indivíduos envolvidos em um processo O segundo pilar é a Finalidade que configura o interesse político O terceiro pilar é a Segurança Social que daria segurança jurídica à população pela existência de um sistema legal adequado e estável A partir de 1933 com a ascensão do nazismo ao poder e principalmente depois do fim da guerra em 1945 a justiça como valor assumiu fundamental importância nos trabalhos de Radbruch que temia um Estado em que a formalidade legal servisse para disfarçar a injustiça Por isso estabeleceu em suas obras que a justiça deve ter como base a retidão ou seja a aplicação rigorosa e imparcial da lei pelo juiz mas sem deixar de ser apoiada pela igualdade no sentido da isonomia A IDEIA DE DIREITO não pode ser diferente da ideia de Justiça Gustav Radbruch José Ortega y Gasset e a rebelião das massas Foi um filósofo da chamada Escola de Madri que teve grande influência no Brasil principalmente sobre Gilberto Freyre no sentido de que ambos trataram das populações excluídas e dos problemas ocultos da sociedade Depois de obter o grau de doutor na Espanha seguiu para a Alemanha onde estudou com os neokantistas da Escola de Marburgo principalmente Herman Cohen José Ortega y Gasset e suas circunstâncias José Ortega y Gasset foi um dos mais importantes ensaístas do século XX sempre defendendo a ideia de que o homem deve manter diálogo com seu meio e às vezes submeterse ao coletivo Dizia que as massas foram responsáveis pelas grandes transformações do mundo mas ao mesmo tempo permitiram o advento dos regimes totalitários José Ortega y Gasset nasceu em Madri em 1883 Sempre teve proximidade com a imprensa porque o pai era diretor do jornal El Imparcial e isso contribuiu para que definisse um estilo literário em seus escritos É considerado um dos jornalistas e filósofos mais importantes da Espanha no século XX Fundou dois jornais diários El Faro e El Sol e a Revista de Occidente No jornal El Sol publicaria em fascículos sua obraprima Rebelião das massas Obteve o doutorado em Filosofia em Madri Depois estudou em Marburgo na Alemanha De volta para a Espanha passou a lecionar na Universidade Central de Madri onde ficaria até 1936 quando explodiu a guerra civil espanhola Antes disso teve grande participação política protestando contra a ditadura de Primo Rivera e a monarquia Com a queda do rei Afonso XIII participou da Assembleia Constituinte da Segunda República entre 1931 e 1932 como deputado eleito Durante a guerra civil decidido a não apoiar o ditador Francisco Franco deixou a Espanha para um exílio voluntário em vários países como Argentina França Holanda e Portugal Foi um grande crítico de Kant Suas principais obras Meditações de Quixote de 1914 e Rebelião das massas de 1930 Morreu em 1955 José Ortega y Gasset e suas ideias É considerado um dos grandes escritores modernos da Espanha ao lado de Don Miguel de Unamuno Azorín e Pio Baroja Trabalhou com a linguagem da mesma forma que trabalhou com suas teorias filosóficas com método refinamento e clareza Costumava dizer que la clareza es la cortesia del filósofo Sua maneira de encarar a filosofia da linguagem tinha algo de existencialista De Kant e Hegel herdou a admiração pela importância da história e da razão no pensamento da humanidade Foi um liberal Escreveu um livro chamado A história como sistema mas não chegou a desenvolver um sistema filosófico No livro Rebelião das massas fez a análise histórica da evolução do proletariado na direção do poder graças à liberdade política e ao progresso econômico O livro critica a sociedade de massas Mostra que o homem espanhol mediano acomodouse depois da guerra civil numa postura individualista que prejudicava o país como um todo porque acomodado o povo permitia o Estado autoritário e violento e nesse ponto Ortega y Gasset dá como exemplo o fascismo e o bolchevismo Ortega diz que toda sociedade está e deve estar dividida entre a maioria inculta cujo destino é obedecer e a minoria que sabe e por isso tem autoridade para mandar EU SOU EU e minha circunstância e se não salvo a ela não salvo a mim Ortega y Gasset Wilhelm Dilthey natureza e vida Para o psicólogo alemão Wilhelm Dilthey o estatuto das ciências é a vida A vida não é para ele apenas um conjunto de elementos mas um princípio original que norteia o mundo A concepção da existência do seu sentido e do seu significado deve ser observada de modo histórico A filosofia de Dilthey histórica e relativa pretende analisar os comportamentos humanos e esclarecer as estruturas do mundo no qual vive o homem Essa noção filosófica aproximavase da noção de Ortega y Gasset de que o conhecimento devese à vontade consciente Ao mesmo tempo discordava de Durkheim que considerava os fatos da vida como coisas William Dilthey e suas circunstâncias Wilhelm Dilthey afirmava que as ciências humanas ciências do espírito devem tentar compreender os fenômenos relacionados com o homem e com o comportamento humano a partir da realidade histórica Segundo ele os métodos das ciências naturais como a matemática não seriam aplicáveis por exemplo à arte e ao direito Para as ciências humanas recomendava a hermenêutica Wilhelm Dilthey nasceu na Alemanha em 1833 Estudou teologia em Heidelberg Foi professor de filosofia nas Universidades de Breslau Kiel e Berlim Em 1883 publicou Estudos sobre os fundamentos das ciências do espírito em 1890 Tratado da realidade e em 1900 Origem da hermenêutica Esses estudos fundamentaram a hermenêutica filosófica que ocorreria mais tarde Em 1907 escreveu A essência da filosofia Morreu na Áustria em 1911 Wilhelm Dilthey e suas ideias A vida é um todo dizia Dilthey e cada fato constitui um fenômeno da vida Sua afirmação era de que a natureza pode ser explicada mas a vida tem que ser compreendida A compreensão da vida deve estar embasada nas ciências humanas principalmente na psicologia mas também na história na religião na linguagem e na arte que segundo Dilthey constroem imagens do mundo Mesmo a interpretação de uma lei por exemplo consiste em integrar as palavras num sentido e de maneira lógica integrar esse sentido a uma estrutura do todo Wilhelm Dilthey e sua influência no direito Pelas razões que vimos Dilthey afirmava que as ciências humanas eram as verdadeiras ciências do espírito Geisteswissenschaften que estudavam o homem e o comportamento humano Chamava as demais de ciências da natureza que teriam como objetivo explicar o real e não explicar o homem Às ciências do espírito que refletem os estados de consciência não era possível aplicar as leis da matemática por exemplo mas era importante ao observador manter a neutralidade Entre as ciências do espírito estaria a ciência do direito Foi o primeiro pesquisador a apontar diferenças entre ciências naturais e ciências humanas Com essas ideias foi considerado o responsável por aplicar o procedimento hermenêutico às ciências humanas Seus estudos sobre a compreensão seriam retomados mais tarde por Martin Heidegger No campo do Direito a hermenêutica jurídica é a técnica de interpretação que permite compreender a aplicabilidade de um texto legal AS CIÊNCIAS DO ESPÍRITO estão assim fundadas nesse nexo de vivência expressão e compreensão Wilhelm Dilthey O POSITIVISMO FILOSÓFICO E O POSITIVISMO JURÍDICO No começo do século XIX o Estado liberal mostrouse inadequado o que acabou resultando em agravamento das diferenças sociais Não existiam mais senhores absolutistas não havia mais o feudalismo mas havia os capitães de indústria os empresários A realidade social era outra e necessitava agora de novo ordenamento O Estado moderno passou a se apoiar numa nova circunstância que se poderia chamar de império das leis Sendo a lei o padrão ideal da sociedade tratouse de retirar do direito a face interpretativa tornando o uma ciência baseada em fatos Fatos e normas bastavam por isso valores sociais e morais não precisavam estar nesse ordenamento positivo O positivismo considerava que direito se reduz às normas jurídicas emanadas pelo Estado que por sua vez garantia a sanção institucional Estado e sociedade eram coisas separadas não havia conexão entre o Estado e o seu contexto social Direito para o positivismo jurídico era apenas forma Mas se não havia interpretação desapareciam as possibilidades de atenuantes ou de agravantes Além disso os estratos sociais tinham cada um a sua peculiaridade Se não eram atendidas as necessidades exigidas para cada caso específico não havia como oferecer tratamento justo e igualitário E como seria possível oferecer justiça se não havia igualdade Mais ainda a interpretação da lei baseada apenas no texto concentrava o direito nas mãos do Estado permitindo o surgimento de governos intervencionistas e autoritários A história com a eclosão da Primeira Guerra Mundial e o surgimento do Estado do BemEstar Social mostraria com clareza essa faceta maligna do positivismo jurídico Na doutrina jurídica o positivismo relacionase com a noção de que o direito é prerrogativa humana e não produto da interferência divina ou das leis da natureza como preconizava o jusnaturalismo Santo Tomás de Aquino por exemplo um defensor do direito natural afirmava existir uma hierarquia piramidal das leis no alto estavam as determinações divinas e na base as leis exaradas pelos governantes Nesse sentido positivismo filosófico e positivismo jurídico decorrem da mesma matriz de pensamento No positivismo filosófico o pensamento humano atinge a maturidade ao se desvincular de crenças e mitos encarando a realidade a partir de leis universais que regem os fenômenos A ciência moderna tem todas as suas fundamentações no positivismo filosófico Segundo o positivismo o homem é civilizado quando aplica a ciência ao seu dia a dia e primitivo quando não o faz No positivismo jurídico quem é o responsável pela imposição e pelo cumprimento da lei é o Estado como autoridade que comanda a sociedade A religião e a natureza não têm supremacia sobre as leis impostas pelos governantes A lei é a consolidação do direito positivo Essa é a base do direito moderno que define complementarmente que não há relação entre direito moral e justiça Isso porque se o direito é uma ciência permanente justiça e moral são conceitos relativos que podem ser flexibilizados ao longo do tempo e da história No entanto há quem discorde dessa doutrina especialmente aqueles que defendem o racionalismo jurídico Detalharemos adiante a doutrina dos seguidores do racionalismo jurídico mas antes precisamos tratar do pensamento de alguns dos principais positivistas Origens do positivismo jurídico O homem precisou de leis para disciplinar a sua própria selvageria e para domar os seus próprios instintos Com a evolução das sociedades surgiram as leis e os códigos como vimos Esse impulso histórico para a legislação desde Hamurabi conduziu a uma doutrina que hoje é conhecida como positivismo jurídico doutrina na qual a lei é a fonte exclusiva do direito O positivismo jurídico surgiu na Alemanha com o filósofo Savigny que já estudamos neste livro com a sua Escola Histórica do Direito Tinha como característica a rejeição do direito natural pontificado pelos iluministas de caráter universal e imutável A Escola da Exegese Esse movimento surgiu em 1804 para promover a defesa do então recémpromulgado Código Civil francês 1804 Seus integrantes dentre eles Hans Kelsen considerado o seu maior representante defendiam a construção lógica e dogmática do novo conjunto de normas uma determinada lei seria validada por outra lei superior e esta por sua vez em uma lei ainda mais superior A abordagem da Escola da Exegese era de que a lei era a única fonte legítima do direito limitando assim a possibilidade de interpretação do juiz ou seja lei e direito seriam realidades idênticas e para compreender o significado das leis era necessário partir apenas do texto e não de suas fontes O espírito das leis estaria de tal modo articulado que pelo raciocínio o juiz chegaria à chamada norma fundamental ou Grundnorm que tem validade em si mesma Desnecessário dizer que esse tipo de arbitragem deixava o direito integralmente a cargo do Estado A escola científica A escola da livre investigação científica do direito fundada pelo francês Gény François cujos argumentos foram expostos no livro Método de interpretação e fontes no direito positivo privado veio oporse à Escola da Exegese clamando que o direito não se reduz à lei e que a sociedade tem demandas que quase sempre superam as simples possibilidades previstas por um sistema legal Desse modo não recusava a lei como fonte do direito mas defendia que a interpretação da lei devia darse com base na história na sociologia e na economia fontes que a Escola da Exegese havia negado John Austin fundador do positivismo jurídico John Austin é considerado o primeiro jurista a tratar da teoria da lei de maneira analítica até então a lei era vista como algo embasado na história ou na sociologia e conceitualmente menos importante do que moral ou política John Austin tratou do direito como algo desvinculado da moral e dos costumes sistematizandoo como entidade autônoma Não foi o primeiro filósofo a pensar nisso porque Thomas Hobbes e David Hume defendiam posição semelhante Mas o trabalho de John Austin foi a primeira sistematização do positivismo legal a lei tem que ser neutra em relação à moral vigente John Austin e suas circunstâncias John Austin foi o primeiro jurista a promover a reflexão sobre conceitos fundamentais do direito como lei dever legal e validade legal Até hoje a jurisprudência analítica que ele desenvolveu é importante para as discussões sobre a natureza da lei e do direito John Austin nasceu na Inglaterra em 1790 Começou na carreira militar que durou pouco tempo Estudou Direito durante dois anos em Bonn na Alemanha De volta à Inglaterra privouse da amizade de personalidades como Jeremy Bentham John Stuart Mill e Thomas Carlyle Em 1825 foi indicado para ensinar Jurisprudência na então recéminaugurada Universidade de Londres Em 1832 reuniu seis de suas aulas em um livro chamado Província da jurisprudência determinada O livro investiga a natureza de conceitos jurídicos entre eles o próprio conceito de lei Seu trabalho teve grande repercussão John Austin formou a partir de suas ideias sobre jurisprudência uma geração de juristas e legisladores ingleses Em sua obra o filósofo posicionase contrariamente ao uso da denominação lei natural pois considera que apenas as leis divinas podem assim ser designadas Leis positivas e leis da moralidade positiva foram duas expressões utilizadas pelo jurista para diferenciar as leis humanas As leis da moralidade positiva como o nome já diz baseiamse em leis impostas pela sociedade como forma de reprovação ou repúdio a um tipo de comportamento considerado inadequado o que equivale atualmente ao costume em nosso ordenamento jurídico As leis positivas são criadas pelos políticos e servem de base para a jurisprudência Em 1835 renunciou à cátedra na Universidade de Londres porque seu curso não atraía alunos Dedicouse apenas a escrever Sua mulher tradutora e revisora era quem sustentava a casa John Austin e suas ideias John Austin desenvolveu a jurisprudência analítica Para ele o termo jurisprudência não significa o estudo de casos precedentes para a fundamentação do caso presente Austin pensa em jurisprudência como a investigação filosófica sobre o fenômeno do direito considerando a lei um fenômeno independente da moral embora inserido em um sistema e obrigatoriamente relacionado dentro de instituições políticas e sociais ou seja direito e justiça são conceitos complementares mas autônomos Austin diz que o objeto próprio da jurisprudência é a lei positiva ou seja a lei imposta por uma autoridade política para os indivíduos que estão submetidos à sua autoridade É o autor da Teoria dos Atos de Linguagem segundo a qual uma afirmação uma enunciação sempre contém algo mais além do que está dito São as interrogações ou exclamações que podem disfarçar ordens desejos expectativas ou concessões Por isso considera que um enunciado não pode ser compreendido apenas a partir da sua aparência estritamente gramatical Falsa ou verdadeira uma frase tem potencialidade para intervir no mundo Portanto falar já é uma forma de ação John Austin também desenvolveu o conceito de comando que na sua época não teve grande aceitação e que ganhou força quando quase um século depois Herbert Hart autor de O conceito de direito passou a utilizálo O comando para Austin é manifestado em duas categorias leis laws e regras rules Quem determina o comando é o governante ou soberano a quem também cabe punir a desobediência Para Austin comando e punição estão diretamente relacionados É necessário lembrar que na Inglaterra da época os juízes privilegiavam o que se chamava common law ou seja a ideia de que a lei devia ser criada ou alterada em conformidade com resoluções judiciais que tratavam de disputas particulares Isso é exatamente o que Savigny afirmava a lei deve refletir o espírito ou os costumes da comunidade Certamente as ideias de John Austin se direcionam para governos centralizadores o que talvez explique a rejeição de sua teoria à época John Austin e sua influência no direito Com efeito no século XIX as escolas inglesas de jurisprudência baseavamse nas teorias de John Austin principalmente no preceito segundo o qual a lei deve ser entendida como um comando Partindo dessa premissa Austin alegava que a finalidade da lei era centralizar o modo de pensamento do indivíduo de modo que a obediência se tornasse um hábito Segundo o jurista inglês o Governo usa o comando como instrumento de poder de modo que o indivíduo fique submisso àquelas regras e caso as descumpra sofra uma sanção É desse modo que segundo Austin ocorre o domínio estatal sobre o cidadão Esse comando nada mais é que uma vontade da parte que o estabelece O indivíduo que recebe o comando sabe que está sujeito a uma sanção caso não cumpra a imposição e é dessa forma que a lei leiase o poder estatal constituído exerce o poder de obediência sobre ele O comando do direito positivo quando se trata das leis e normas deve ser interpretado diferentemente do comando divino que é moral e o comando imposto pelo empregador tido por Austin como uma mera ordem O filósofo aduzia que o comando não envolve o conceito de recompensa e sim de sanção diversamente do sustentado por alguns filósofos de seu tempo O esquema teórico de Austin é de fato direto e simples o cumprimento do comando é imposto pela lei positiva e caso não seja obedecido o indivíduo sofrerá alguma medida sancionatória Já no caso de receber uma recompensa para a prestação de algum serviço ela no máximo gera uma vontade um desejo de executar o serviço mas de modo algum cria um vínculo um dever Austin sustentava a diferenciação dos comandos particulares e gerais alegando que o comando não é somente aplicado em grupos como se fosse uma lei ou regra De forma mais precisa define a lei como um comando que obriga uma ou diversas pessoas Reconhecia ainda que nem todas as leis são imperativas e tentou provar não existirem leis que apenas criem direitos as normas que criam deveres também criam direitos Quem teve seu direito violado quer ver assegurado que o violador sofra uma sanção Daí afirmar Austin inexistirem leis garantidoras apenas de direitos ou somente de deveres toda lei consagra em si direitos e deveres O filósofo procurou diferenciar o direito positivo da moralidade Jurisprudência e Ética são pontos conflitantes em sua obra O direito no Brasil tem como base o direito romano e o direito germânico Por isso a simpatia de John Austin pelo direito germânico torna os seus estudos bastante interessantes para o direito brasileiro A EXISTÊNCIA DA LEI É UMA COISA seu mérito ou demérito é outra Que seja ou não seja é uma questão se é ou não adaptável a um padrão presumido é outra questão Uma lei que realmente exista é uma lei embora possamos não gostar dela ou embora varie do texto pelo qual regulamos nossa aprovação ou desaprovação John Austin A LEI É UMA REGRA estabelecida para a conduta de um ser inteligente por um ser inteligente tendo poder sobre ele John Austin Jeremy Bentham e o princípio da utilidade O utilitarismo é uma doutrina elaborada por Jeremy Bentham na Inglaterra A doutrina recebeu vários nomes como liberalismo clássico ou moralismo inglês e foi a principal base do pensamento jurídico e filosófico europeu por mais de duzentos anos Foi professor de John Stuart Mill sobre quem já falamos neste livro e suas ideias estimularam o aluno a lançar os fundamentos da democracia liberal no início do século XIX Jeremy Bentham e suas circunstâncias Jeremy Bentham criou a doutrina do utilitarismo considerada bastante atual Os argumentos dessa doutrina mais focados nas consequências têm sido utilizados com grande frequência nos processos decisórios Em resumo a ética preconizada pelo filósofo manda definir primeiro os bens a serem atingidos ou protegidos A partir dessa definição o Direito seria o meio de conseguilos Atribuise a Bentham a criação da palavra deontologia o conjunto de princípios morais e legais aplicados às atividades profissionais Bentham nasceu em Londres em 1748 Seu pai era advogado Foi um fenômeno de precocidade entrou no Queens College em Oxford aos 12 anos e aos 15 tornavase bacharel em Humanidades Exerceu a advocacia por breve período abandonando a profissão com cujos métodos se decepcionou para se dedicar à filosofia Publicou o primeiro livro Um fragmento sobre o governo aos 28 anos mas ganhou fama internacional com Uma introdução aos princípios da moral e da legislação publicado em 1789 Vivendo em Paris recebeu o título de cidadão francês em 1792 Nesse período viajou para a Rússia Itália e Turquia tendo estabelecido relações com importantes políticos desses países De volta a Londres criou a Revista de Westminster onde publicaria extenso material sobre política internacional Essa experiência o fez passar a utilizar a expressão Direito Internacional no lugar da até então utilizada expressão Direitos das Gentes Foi um dos fundadores da instituição que depois da sua morte se transformaria na Universidade de Londres oficializada em 1836 é hoje uma das maiores do mundo O cadáver de Jeremy Bentham embalsamado está na Universidade de Londres Morreu aos 84 anos em 1832 Jeremy Bentham e suas ideias Conservador e temendo que o Reino Unido pudesse enfrentar uma revolução popular como ocorreu na França em 1789 desenvolveu a ideia do Panoptismo um projeto que previa que os governantes fiscalizassem pela observação contínua e integral a vida do indivíduo comum Seria quase como o espírito do Big Brother mostrado por George Orwell no livro 1984 com o indivíduo sendo controlado e dirigido pelos governantes O projeto foi inicialmente concebido para ser aplicado em prisões mas deveria ser estendido para escolas e entidades assistenciais com o objetivo de constatar atitudes errôneas e permitir corrigilas A base de sua ética é de que o homem é regido pela busca do prazer enquanto foge da dor Por isso o homem age procurando a felicidade e com isso deve se tornar melhor para si e para os outros Considerava Bentham que os indivíduos agem motivados pelo interesse e pela obrigação As ideias de Bentham constituíram a base do liberalismo clássico de John Stuart Mill que governou a economia do século XIX Jeremy Bentham e sua influência no direito Ao Direito para Bentham cabia reformar a sociedade por meio da disciplina obtida pelo método de recompensas e punições O remédio seria a educação que favorece a disciplina Para isso e diferentemente do que pensavam seus contemporâneos achava que as leis deveriam ser revogáveis e passíveis de aperfeiçoamento Acima de todas as necessidades sociais estavam para Bentham a ordem e a segurança Esse fim justificaria sacrificar direitos de minorias caso estivessem em jogo os interesses da maioria Por exemplo punir comerciantes porque causam prejuízos aos consumidores Por essa razão o poder legislativo só deveria aprovar leis que cumprissem o princípio da utilidade isto é que disciplinassem as pessoas no sentido de buscarem a felicidade social o prazer A lei boa é aquela que aumenta a felicidade social Como se vê Bentham considerava as sanções como poderoso instrumento de consolidação de lei ou norma Mas as sanções por representarem em si um prejuízo só deveriam ser utilizadas para evitar um mal social Poderiam ser de quatro tipos físicas públicas morais ou religiosas E aplicadas apenas quando pudessem impedir uma ação prejudicial de alguém e desse grupo de pessoas estavam excluídos os incapazes os loucos e as crianças Mas Bentham não admitia impunidade absoluta nem para as crianças nem para os dependentes químicos A obra Teoria dos deveres ou A ciência da moral foi publicada em 1834 dois anos depois da morte de Jeremy Bentham O livro serviu de base para a elaboração da doutrina do liberalismo na economia A NATUREZA COLOCOU A HUMANIDADE sob o domínio de dois senhores soberanos a dor e o prazer Só a eles compete indicar o que devemos fazer assim como determinar o que faremos A seu trono estão atrelados por um lado o critério que diferencia o certo do errado e por outro a cadeia das causas e dos efeitos Jeremy Bentham O utilitarismo de Jeremy Bentham Filósofo inglês do início do século XVIII Jeremy Bentham teve grande influência sobre o pensamento de John Austin especialmente na sua doutrina do utilitarismo embora seus pontos de vista divergissem em relação à primazia das leis naturais Para Austin somente as leis de Deus poderiam ser consideradas leis naturais John Stuart Mill foi outro dos seguidores de Bentham O utilitarismo foi uma doutrina ética segundo a qual a ação é a maneira de promover o bemestar social O princípio utilitarista é este agir sempre de modo a produzir a maior quantidade de bemestar As ideias de Jeremy Bentham sobre moralidade e justiça baseadas em punições e recompensas tiveram impacto transformador sobre o sistema legal de todo o mundo Segundo o filósofo a natureza colocou a humanidade sob dois mestres soberanos o prazer e a dor Sobre esses dois sentimentos construiu uma tabela de valores no livro O cálculo hedonista Diz Bentham que todas as ações de uma pessoa são julgadas pela comunidade ou pelo grupo de indivíduos para determinar se tal ação é moralmente boa ou moralmente errada A ação moralmente boa é aquela que causa o bem ao maior número possível de pessoas Seu livro traz seis critérios para mensurar dor e prazer Para Bentham atos de virtude não precisam ser gigantescos mas gestos comuns que tragam benefícios a outros Esses atos merecem recompensas Na mesma proporção e na direção oposta atos de prejuízo merecem ser punidos Suas teorias publicadas em dois livros O raciocínio da punição e O raciocínio da recompensa foram largamente aplicadas no sistema de justiça criminal Hans Kelsen e o positivismo jurídico A principal obra sobre positivismo jurídico Teoria pura do direito foi escrita no início do século XX pelo filósofo austríaco Hans Kelsen Embora seja um neokantiano optamos por inserir a figura de Hans Kelsen neste tópico da filosofia do direito contemporânea porque ele é considerado um dos autores mais importantes do positivismo jurídico O positivismo jurídico como já vimos foi uma reação ao jusnaturalismo dominante nos séculos XVIII e XIX Tinha como objetivo construir uma nova ordem jurídica baseada não mais em leis divinas ou da natureza mas em princípios de igualdade e liberdade Hans Kelsen e suas circunstâncias Hans Kelsen foi o primeiro teórico do positivismo jurídico com seu livro Teoria Pura do Direito Inovou ao propor que não mais a lei mas a norma jurídica passasse a ser o objeto de estudo da ciência do direito Suas ideias inspiraram a Constituição da Áustria uma carta inovadora porque criava um tribunal constitucional Hans Kelsen nasceu em 1881 na cidade de Praga atual capital da República Tcheca que à época pertencia ao Império AustroHúngaro Formouse na Universidade de Direito de Viena Depois foi professor em Viena Colônia Genebra e Praga Assumiu durante a Primeira Guerra Mundial o posto de consultor jurídico do Ministério da Guerra da Áustria Terminado o conflito e desfeito o Império AustroHúngaro elaborou a Constituição da Áustria em 1920 quando era juiz da Suprema Corte Constitucional Na década de 1930 Kelsen foi alvo de perseguição política principalmente por ter travado um debate feroz com o filósofo nazista Carl Schmitt sobre quem deveria ser o guardião da Constituição Schmitt defendia que esse papel era político e não jurídico e deveria ser entregue ao chefe do Reich na época essa opinião foi partilhada por Martin Heidegger Kelsen rebateu dizendo que o papel político é transitório e mutante enquanto o conceito jurídico deveria ser permanente e consolidado por isso a Constituição deveria estar sob a guarda de um tribunal constitucional Perdeu a discussão para o gabinete de Hitler Por isso emigrou para os Estados Unidos em 1940 Lecionou nas Universidades de Harvard e de Berkeley Publicou nos Estados Unidos Princípios da lei internacional em 1952 propondo uma unidade jurídica mundial que prevaleceria sobre as leis de cada país Morreu em Berkeley na Califórnia Hans Kelsen e suas ideias Para Kelsen o direito deveria ter uma função meramente descritiva e deveria ser entendido como norma despida de qualquer concepção social ou de valores valores para ele são objeto de estudo da Sociologia Psicologia e Filosofia Este é o princípio positivista que rege a sua obra Teoria pura do direito libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos Desse modo o direito não deve tratar do ser mas do deverser Seus críticos censuraram o seu formalismo normativista porque sem o apoio da ética ao conteúdo das normas qualquer coisa seria válida por princípio até mesmo o nazismo Hoje se sabe da importância do contexto e das circunstâncias sociais e políticas para a exequibilidade de uma lei Hans Kelsen e sua influência no direito São numerosas as ideias de Hans Kelsen entre elas a conceituação de norma jurídica fundamental Integrante da Escola de Viena ao lado de Adolf Merkl Hans Kelsen acreditava que o positivismo do século XIX errou ao fazer uma simplificação do direito considerando a lei como a única fonte do direito Mas é considerada uma das grandes contribuições de Hans Kelsen à filosofia do direito a introdução do conceito de controle concentrado da constitucionalidade das leis a cargo de um tribunal constitucional que guarde a integridade da Constituição O Brasil influenciado pelas ideias de Kelsen pratica a jurisdição constitucional de duas maneiras Uma delas é o controle concentrado em que o Supremo Tribunal Federal e os tribunais de justiça estaduais analisam a constitucionalidade das leis e normas estaduais e municipais A própria Constituição Federal de 1988 registra a expressão guarda da Constituição no artigo 23 inciso I É competência comum da União dos Estados do Distrito Federal e dos Municípios I zelar pela guarda da Constituição das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público e no artigo 102 Compete ao Supremo Tribunal Federal precipuamente a guarda da Constituição A outra maneira é o controle difuso realizado pelos tribunais em todas as ações e recursos UMA DISTINÇÃO entre o Direito e a Moral não pode encontrarse naquilo que as duas ordens sociais prescrevem ou proíbem mas no como elas prescrevem ou proíbem uma determinada conduta humana Hans Kelsen A questão do valor na teoria positivista de Kelsen A validade do direito para Hans Kelsen não está condicionada a valores Validade ou vigência é o termo utilizado para significar que as regras jurídicas são obrigatórias e que os homens devem se conduzir de acordo com o que as normas prescrevem Notese que a realização da justiça é considerada um valor relativo na concepção desse jurista assim como outros valores morais políticos ou religiosos que podem sofrer diferentes interpretações de acordo com o contexto histórico e social O direito na teoria de Kelsen deve ser visto como a coleção de normas legitimamente produzidas dentro de um sistema normativo Essas normas podem ser estáticas quando o seu conteúdo determina diretamente a conduta que um indivíduo deve ter no seu meio social ou dinâmicas aquelas que definem de que maneira devem ser criadas as normas Na abordagem positivista de Hans Kelsen a autoridade jurídica é quem cria interpreta e aplica a norma jurídica Para ele o papel do direito é rigorosamente a aplicação da norma jurídica Os valores constituem uma questão à parte dessa A ORDEM JURÍDICA de um Estado é assim um sistema hierárquico de normas gerais Hans Kelsen Herbert Hart e a conceituação do direito Os fundamentos principais do positivismo jurídico moderno foram lançados em 1950 por Herbert L A Hart no livro O conceito do direito A principal contribuição dessa obra foi distinguir as regras jurídicas de todas as demais regras sociais inclusive as morais embora não exclua totalmente a moral do direito ao contrário de seus antecessores Herbert Hart e suas circunstâncias H L A Hart desenvolveu teoria sobre o positivismo jurídico em seu livro O conceito do direito publicado em 1950 Seu grande mérito foi trabalhar com a conceituação do direito de modo a distinguilo de regras morais É considerado neopositivista Recuperou o conceito de comando desenvolvido por John Austin e deu lhe publicidade Trabalhou também com direito penal e responsabilidade jurídica H L A Hart como preferia ser chamado Herbert Lionel Adolphus Hart foi um filósofo inglês nascido em 1907 e falecido em 1994 Filho de um negociante de algodão cursou filosofia e história antiga na Universidade de Oxford onde mais tarde foi lecionar Jurisprudência Entre seus alunos estão filósofos importantes como Neil MacCormick e John Finnis Recebeu grande influência de Jeremy Bentham Dedicouse ao trato da moral num período crítico da Europa que foi o pósguerra e são famosas as suas polêmicas com juristas de sua época que defendiam o moralismo jurídico Considerase que tenha reinventado a filosofia do direito no século XX combinando a tradição utilitária com a nova filosofia linguística de John Austin e Ludwig Wittgenstein Em 1961 teve um famoso debate acadêmico com Hans Kelsen durante um evento na Universidade da Califórnia em Berkeley Herbert Hart e suas ideias O filósofo categorizou as normas em primárias que são ordens ou mandados de caráter geral e secundárias aquelas que corrigem o caráter estático das normas primárias por meio de reconhecimento autorização modificação ou derrogação por exemplo Segundo ele a combinação das duas espécies de normas consegue explicar melhor o direito Um exemplo clássico é este a norma primária que é a norma jurídica diz não matarás determinando a proibição dada pelo direito Já a norma secundária estabelece as sanções adequadas para quem apresenta desvio da conduta em questão dizendo Se matares tu serás condenado a tantos anos de reclusão Como obra de filosofia o livro de Herbet Hart lida com a essência do direito buscando critérios para definilo como ciência Para isso lança mão da filosofia da linguagem como o fizeram os positivistas alemães antes dele Herbert Hart e sua influência no direito O livro O conceito do direito desenvolveu uma visão sofisticada do positivismo legal Entre as ideias principais estão uma crítica à teoria positivista de John Austin de que a lei é comando do governante apoiada na ameaça de punição uma distinção entre normas primárias e normas secundárias em que as regras primárias governam a conduta e as secundárias permitem a criação alteração ou extinção das regras primárias a ideia da regra de reconhecimento uma regra social que permite diferenciar as normas que têm status de lei e aquelas que não têm Hart dedicouse especialmente à questão da moral Segundo ele o sistema jurídico deve ser um sistema lógico e fechado Dentro dessa ideia construiu um conjunto de critérios para definir as regras morais e assim diferenciálas de regras jurídicas Os critérios são quatro importância porque o indivíduo mantém suas regras morais mesmo em situação de pressão social imunidade à alteração deliberada ou seja não há um órgão legislativo que mande modificar a moral caráter voluntário dos delitos morais a pessoa sabe que está errando e forma de pressão moral que não se manifesta pela ameaça mas normalmente pelo apelo à própria natureza moral da ação Um bordão típico do positivismo é de que lei não é moralidade Hart acreditou ter superado as dificuldades de exagero formal apresentadas na doutrina de Hans Kelsen propondo que o direito encare a lei como alguém que participa do sistema e não como um simples observador externo HÁ DUAS CONDIÇÕES mínimas necessárias e suficientes para a existência de um sistema legal De um lado aquelas regras de comportamento que são válidas de acordo com os critérios fundamentais do sistema de validade devem ser obedecidas De outro lado as regras de reconhecimento especificando os critérios de validade legal e suas regras de mudança e adjudicação devem ser efetivamente aceitas como padrões públicos de comportamento oficial pelas autoridades H L A Hart O NEOPOSITIVISMO O positivismo jurídico reinou durante muito tempo na Europa apoiado na razão Mas chegou um momento em que dois eventos abalaram a confiança dos intelectuais em sua efetividade como teoria filosófica lastreada exclusivamente sobre a razão O primeiro solavanco foi o materialismo de Karl Marx afirmando que a razão é sempre refém da ideologia de uma classe que domina o grupo social em determinado momento histórico a exemplo como já vimos aqui do fascismo nazismo ou socialismo Os governantes seguidores de uma ideologia controlam a produção de leis para beneficiar sua própria doutrina colocando o povo em segundo lugar O segundo surge com Sigmund Freud o homem não controla com a razão o que sente nem como age mas é dominado pelo inconsciente Fica fácil perceber somando os acontecimentos que não era mais possível aceitar uma doutrina filosófica que não levasse em conta as questões éticas morais e até psicológicas no trato com o direito Desse modo a hermenêutica ganha força Não foi por acaso que em 1900 Wilhelm Dilthey publicava o livro Origem da hermenêutica que abriu caminho para novas leituras da ciência do direito E pouco depois H A L Hart colocava no seu O conceito do direito o raciocínio de que a lei não deve ser uma abstração mas regras efetivas de ação Entre os pensadores mais recentes que se ocuparam de analisar o positivismo não podemos nos esquecer do francês Michel Foucault Michel Foucault e o poder Não é fácil nem definitivo incluir Michel Foucault em uma corrente filosófica Apenas para efeito didático vamos considerálo pósmoderno neste livro mas há estudiosos que o colocaram na categoria de estruturalista Sua contribuição mais patente para a filosofia foi a teoria do poder Em seus trabalhos buscou compreender os nexos estruturais do poder e os instrumentos e mecanismos de dominação que existem na sociedade Michel Foucault e suas circunstâncias Michel Foucault trabalhou com a linguagem especialmente em A palavra e as coisas livro em que denuncia mecanismos de segregação principalmente pela rotulação Com isso opõese aos positivistas no sentido de considerar que a verdade do direito penal só pode ser obtida dentro das instituições penais nas práticas do cotidiano e não nas normas jurídicas que o Estado produz Na verdade para Michel Foucault o direito é mais um instrumento de dominação da classe governante do que uma formalidade legítimada pela sociedade Um dos mais conhecidos filósofos franceses contemporâneos Michel Foucault teve grande influência de Thomas Hobbes John Locke JeanJacques Rousseau Karl Marx e principalmente de Martin Heidegger JeanPaul Sartre e Friedrich Nietzsche Desenvolveu um trabalho importante na análise do papel da disciplina na sociedade moderna Visitou o Brasil algumas vezes uma delas em 1965 quando deu uma série de palestras junto com o também filósofo Gilles Deleuze Politicamente defendeu as liberdades individuais Chegou a filiarse ao Partido Comunista francês mas desligouse por causa de divergências de ideias Morreu aos 58 anos em 1984 Michel Foucault e suas ideias Para Foucault há expressões de poder em todas as pessoas e não apenas naquelas revestidas de autoridade ou de mando Há expressões de poder nas grandes questões sociais mas também nas pequenas ocorrências do dia a dia Poder segundo Foucault não é apenas aquela prática de governantes por exemplo em todas as relações sociais em todos os comportamentos e atitudes há práticas de poder não necessariamente o poder repressor mas de qualquer maneira pequenos poderes do cotidiano Segundo ele são as minorias sociais que se rebelam contra esse tipo de poder do qual muitas vezes as pessoas nem se dão conta de estarem praticando Suas pesquisas buscaram sustentação em nichos sociais específicos interrogando temas característicos das classes marginais Assim pesquisou a loucura a exclusão a sexualidade a tortura Michel Foucault e sua influência no direito Pela afirmação de que o direito é instrumento dos poderosos poderseia pensar que o pensamento de Foucault é marxista no sentido de achar que o que prevalece é a ideologia das classes dominantes Mas sua conclusão é mais ampla do que isso ele revela que existe uma rede de poder dominação e sujeição em todas as relações sociais em todas as classes sociais Além disso Foucault rechaça a ideia de que o poder seja ideológico Para ele o poder está acima da ideologia e é utilizado por ela Partindo dessa ideia desenvolveu a teoria dos corpos dóceis segundo a qual a dominação se dá por meio de vigilância hierárquica com controle de atividade por meio de horário cartão de ponto relatório etc sanção normalizadora quem chega atrasado é descontado no salário quem discorda do chefe não recebe promoção e exame testes de verificação de evolução por exemplo NÃO HÁ SABER que não produza poder Michel Foucault NORMATIVISMO JURÍDICO O positivismo jurídico continua a ter em nossos dias grande aceitação entre os juristas depois de sofrer modificações ao longo dos anos Mas a sua atualização mais notável foi já no século XX com o normativismo lógico de Hans Kelsen A norma jurídica e não mais simplesmente a lei passou a ser o objeto de estudo da Ciência do Direito Norma é um parâmetro de interpretação que apresenta o sentido do deverser e por isso tem efeito vinculatório sobre os seus destinatários Naturalmente a sua eficácia e validade dependem da sua aceitação social Para efeito de metodologia do direito Kelsen afirmou que a realidade é dividida em natureza e sociedade Há uma ordem na natureza Para o entendimento dessa ordem pensou o filósofo austríaco existem as ciências explicativas que tratam da essência da origem e da finalidade de um objeto ou de um ser Também há uma ordem na liberdade das ações humanas Para o entendimento da ordem existente na sociedade Kelsen colocou as ciências normativas que tratam das normas de conduta e das relações dos homens com o seu meio social Desnecessário aduzir que para Hans Kelsen o direito é ciência normativa dotada de intencionalidade método e objetivo A partir da norma diz ele é possível analisar fatos e interpretálos transformando os em fatos jurídicos Mas não interpretálos em termos de serem justos ou injustos ou de serem bons ou maus porque isso é papel da moral Interpretálos sob termos de serem fatos válidos ou inválidos A principal novidade trazida pelo normativismo sobre o positivismo do século XIX foi a noção de que a norma é aceita pela sociedade ao contrário da lei positiva que é imposta pelo Estado Mas é necessário entender que direito não é só a norma mas o conjunto ordenado de normas que constitui um sistema Como sistema está em interação constante com outros sistemas como veremos ao estudar Niklas Luhman O PÓSMODERNISMO A História nos dá a perspectiva da realidade Muitas vezes somente com o tempo será possível determinar em que classe categoria ou tipo se enquadram determinados pensadores Por isso selecionamos para encerrar este livro uma série de filósofos do século XX que por serem contemporâneos não tiveram ainda o beneplácito da História ao seu favor Vamos deixálos todos para errar menos sob o título de pósmodernistas O pósmodernismo que sacudiu o mundo das artes no começo do século XX com o dadaísmo iniciado em Zurique em 1915 por artistas como Marcel Janco e o poeta romeno Tristan Tzara e o surrealismo iniciado em Paris nos anos 1920 por André Breton e Salvador Dali também teve impacto sobre a filosofia Seu objetivo era questionar o pensamento tradicional e questionar as verdades tidas como definitivas No pensamento de um dos mais importantes filósofos pósmodernos Jacques Derrida era preciso desconstruir a realidade não exatamente para mostrar os intestinos dessa realidade mas exibir aquilo que não teria sido dito que jazia oculto atrás das figuras e da semântica Para isso o pósmodernismo buscou promover uma aproximação da linguagem escrita ou pictórica com a realidade Como nomenclatura a expressão pósmodernismo aplicase apenas como referência didática neste livro porque não há unanimidade entre os estudiosos sobre ela Há inclusive autores que acham que esse movimento começou somente depois das revoluções estudantis de 1968 De certa maneira esses autores têm razão porque na filosofia o pósmodernismo aconteceu mesmo na década de 1960 Como era de se esperar as correntes que compõem o movimento pósmodernista variaram no tempo de país para país Por exemplo o futurismo foi lançado em 1909 na França quando o poeta italiano Filippo Marinetti publicou no jornal Le Figaro o Manifesto Futurista movimento semelhante com as mesmas tendências de rejeição do moralismo do culto ao passado e à forma foi a Semana de Arte Moderna brasileira que por causa da guerra só pôde ser realizada treze anos depois em 1922 Aliás no Brasil o modernismo que chegou a ser confundido com o futurismo por causa de várias semelhanças permaneceu em destaque principalmente na literatura até pelos menos a chamada Geração de 1945 da qual participaram nomes como Guimarães Rosa e Cassiano Ricardo entre outros Jacques Derrida e a desconstrução Jacques Derrida foi o filósofo das minorias Iniciou sua teoria da desconstrução inicialmente na década de 1960 como uma crítica ampla ao momento da filosofia europeia Jacques Derrida e suas circunstâncias Jacques Derrida foi o fundador da desconstrução uma abordagem crítica aplicável tanto a textos literários quanto filosóficos e políticos Sua teoria foi muito popular em vários campos das artes mas ganhou popularidade quando foi adotada pelo movimento feminista Suas ideias foram também aplicadas ao direito especialmente nos livros A força da lei e Desconstrução da possibilidade de justiça Jacques Derrida nasceu na Argélia então colônia francesa em 1930 Adolescente mudouse para Vichy para estudar no liceu Ali participou de movimentos de resistência ao governo que queria proibir que os imigrantes argelinos falassem o idioma nativo o berbere o que o levou a ser expulso o pretexto alegado foi a redução das cotas para judeus de 14 para 7 Em 1949 mudouse para Paris para estudar na Escola Normal Superior onde iria lecionar na década de 1960 Fez amizade com intelectuais da época como Michel Foucault Louis Althusser e Gilles Deleuze Seu primeiro trabalho produzido em 1954 mas que seria publicado somente em 1990 foi O problema da gênese na filosofia de Husserl Mas foi em 1967 que se tornaria famoso com a publicação em sequência de três livros Mais tarde publicaria Violência e metafísica enfatizando a alteridade a preocupação com o outro e também reforçando Husserl a potencialidade da linguagem como elemento gerador de violência pelo desentendimento Suas teses sobre a violência originaram a noção do politicamente correto Foi contemporâneo de pensadores como Lyotard Roland Barthes MerleauPonty JeanPaul Sartre Simone de Beauvoir LeviStrauss Jaques Lacan e Paul Ricœur Nos Estados Unidos lecionou nas Universidades de Harvard Yale e John Hopkins Em 1981 fundou a Associação Jan Hus para prestar assistência a intelectuais da Tchecoslováquia que combatiam os governos comunistas que se sucederam até 1991 depois da morte do marechal Tito em 1980 Jacques Derrida chegou a ser detido em Praga ao sair de um seminário clandestino mas a intervenção de François Mitterrand o salvou da prisão Em 1983 criou o Colégio Internacional de Filosofia Também em 1983 tornouse diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris função que ocupou até morrer de câncer em 2004 Jacques Derrida e suas ideias A síntese do pensamento de Derrida é esta qualquer texto contém ambiguidades obscuridades ideias ocultas e até dissimulações pela análise radical da construção do texto é possível obter entendimento do raciocínio aplicado em sua produção compreender premissas não esclarecidas estabelecer a ordem de prioridades que o autor usou Essa técnica de caminhar inversamente do texto pronto para a sua origem desconstruindo a narrativa é aplicada à literatura mas teve influência decisiva na filosofia Suas ideias foram adotadas com destaque nos Estados Unidos onde os intelectuais de esquerda principalmente nas universidades sentiam falta de uma ferramenta eficiente para realizar a crítica social A técnica da desconstrução foi utilizada então para a análise mais radical de textos filosóficos de discursos políticos e principalmente das próprias instituições políticas Aliás esse era um tema recorrente no pensamento de Jacques Derrida o filósofo tem que ter participação política mas com muita prudência Um exemplo de sua participação pessoal foi na denúncia do autoritarismo e da opressão praticados pelo regime do apartheid na África do Sul Criou o termo iterabilidade ou reiterabilidade para designar a capacidade das pessoas que se repetem em diferentes contextos Em literatura e por extensão na produção de textos é a marca de identidade da escrita que pode ser repetida sem variações Basicamente referese ao fato de que preso a tradições e a ideias cristalizadas na mente o homem repete erros mecanicamente sem parar para pensar na origem de sua atitude O método que permite identificar atitudes repetitivas é a desconstrução Devese inverter o processo de raciocínio partindo do resultado para a origem a fim de entender o processo que leva à repetição mecânica Dessa maneira é possível compreender e evitar os erros Na realidade Jacques Derrida não desconstrói mas decompõe Veremos adiante como essa ideia se aplica ao direito O conceito de iterabilidade foi aplicado à linguagem Para Derrida é impossível assegurar para um determinado termo ou expressão dentro de um texto um significado primeiro Mas ao mesmo tempo existem termos e expressões que se repetem nas comunicações e que são identificáveis mesmo fora de um texto ou seja conseguimos identificar os termos mas não conseguiremos saber se o significado primeiro fundamental aplicado a ele é o mesmo Só saberemos se for possível ler o texto além do seu contexto original no momento da produção Lendo o livro mais tarde estaremos distantes desse contexto e vamos interpretálo sem o apoio das informações do contexto ou seja a leitura será outra Como se vê tudo ocorre em função do tempo o que remete a Heidegger e ao seu O ser e o tempo Aliás o termo desconstrução parece ter sido inspirado no termo destruição usado por Heidegger no mesmo livro Para o platonismo a essência é mais importante do que a aparência por isso havia uma hierarquia entre o visível e o apenas sensível entre corpo e alma entre bem e mal Derrida critica essa visão de opostos como Nietzsche já fizera antes e coloca a aparência numa condição de mais importância diante da essência O pensamento empírico é de que a essência depende em grande parte de experimentarmos o que se nos aparece das coisas Mas isso não quer dizer que essência e aparência sejam coisas opostas e não relacionadas Portanto é possível chegar à essência ou imanência por meio de análise de várias manifestações da aparência e para isso é preciso memória e espírito de antecipação Em resumo a essência pode ser encontrada na aparência ela existe dentro da aparência Mas a aparência é temporal Observamos algo no momento presente que é diferente mesmo minimamente num momento anterior e será diferente num momento posterior Por isso não conseguimos decidir se estamos observando a aparência presente a aparência que ficou em nossa memória de um momento atrás ou a aparência que a nossa mente projeta para um momento à frente Essa hesitação é chamada por Derrida de indecidível e é por ela que não podemos estabelecer hierarquia sobre o que é mais importante ou superior Nessa análise Derrida estabelece diferenças não hierarquias e essa noção é aplicada entre os conceitos de lei e justiça no livro A força da lei A palavra diferença na teoria de Derrida constitui um outro conceito filosófico A partir do verbo latino differre diferir comporta dois significados designar alguma coisa que tem como característica ser distinta de outra e designar algo que remete para o futuro Jacques Derrida e sua influência no direito Para o filósofo há algumas ideias impossíveis de serem desconstruídas Uma delas é a justiça Seu trabalho mais importante nessa área é de 1989 A força da lei em que afirma que o direito deve ter supremacia sobre o poder contestando o direito da força Para ele não basta aplicar a regra justa mas é preciso aplicar a regra justa com espírito de justiça Espírito de justiça para Derrida é considerar que a regra deve levar em consideração que fora da sua generalidade existe aquilo que é singular diferente e único em cada indivíduo Como exemplo podese raciocinar como Derrida a respeito do conceito de liberdade Para praticar a justiça o indivíduo precisa ser livre e responsável pelas suas próprias ações e decisões Então a essência de liberdade é formada de algumas aparências ser livre é seguir regras mas apenas seguir a regra não garante a aplicação da justiça por isso aplicar a justiça representa seguir a regra mas usar um julgamento que não está na regra então ser livre é às vezes não seguir a regra O juiz que só segue regras é uma máquina de calcular dizia Derrida Mas ao mesmo tempo diz ele o juiz dá a decisão baseado no indecidível aquilo que vê no momento presente na memória do que viu há um momento ou na antecipação de futuro que sua mente elaborou Seja como for está seguindo uma regra muitas vezes ideológica mas está também praticando uma violência contra a regra Assim é impossível que consiga dar uma decisão completamente imparcial completamente apoiada na lei Portanto Jacques Derrida conclui que a justiça é impossível pelo menos no momento presente Justiça será sempre algo a ocorrer no futuro É a essência do que Jacques Derrida explica em seu livro Desconstrução da possibilidade de justiça ao questionar os conceitos tradicionais de verdade e memória TENHO ENORME APREÇO por tudo o que eu desconstruo Jacques Derrida COMO O PRÓPRIO NOME GREGO sugere um horizonte é ao mesmo tempo uma abertura e um limite que define um infinito progresso de um período de espera Jacques Derrida JeanFrançois Lyotard e a ausência de crenças Um dos mais importantes filósofos pósmodernos ocidentais JeanFrançois Lyotard concentrou suas teses sobre a pragmática da linguagem Estudou as formas do discurso retomando Wittgenstein e entendeu que o homem mantémse preso às tradições e que a história acaba por não ser mais do que uma narrativa e a ciência uma narrativa da narrativa Para que alcance a evolução o homem precisa duvidar do que tradicionalmente é relatado e assim construir uma nova visão da realidade É o que chama de estatuto do saber Adotando essa posição pósmoderna de incredulidade em relação ao conhecimento o indivíduo obtém nova consciência sobre todos os agentes do saber sejam referentes ou destinatários JeanFrançois Lyotard e suas circunstâncias JeanFrançois Lyotard foi o formulador do pós modernismo no livro Condição pósmoderna de 1979 No mesmo ano produziu uma versão chamada O pósmoderno explicado para crianças Seus estudos envolvem além da filosofia a psicanálise a política a economia e a estética JeanFrançois Lyotard nasceu em 1924 na França Estudou filosofia na Sorbonne tendo sido colega de Gilles Deleuze Na Segunda Guerra Mundial integrou a resistência francesa Em 1950 foi lecionar filosofia em escolas secundárias da cidade de Constantina na Argélia então ocupada pela França Em 1954 fez parte do movimento revolucionário argelino de independência escrevendo panfletos e artigos contra a dominação francesa naquele país Acreditava que a França praticava a política de manter o povo argelino no subdesenvolvimento e na pobreza impondo a ele a cultura europeia Ao fim da ocupação francesa escreveu textos em que lamentava que a Argélia não tivesse se tornado um país socialista Seus primeiros livros da década de 1950 foram defesas radicais do marxismo Mais tarde porém concluiu que a realidade social é complexa demais para ser descrita por um discurso ideológico e acabou renunciando ao marxismo Em 1959 assumiu a posição de professor assistente na Sorbonne e em 1966 assumiu cadeira como titular na Universidade de Paris onde ficaria por mais de trinta anos Foi ativista do movimento estudantil de 1968 Ganhou fama internacional com a publicação do livro Condição pósmoderna em 1979 No mesmo ano veio ao Brasil para dar aulas na Universidade de São Paulo Nas décadas de 1980 e 1990 dedicou se a dar aulas e palestras fora da França Alemanha Canadá e Estados Unidos Morreu de leucemia em Paris em 1998 JeanFrançois Lyotard e suas ideias Foi o filósofo da heterogeneidade e da diferença A realidade para ele consiste de eventos singulares que não podem ser representados com precisão pela teoria racional devendo considerar emoções e sensações A manifestação mais evidente de que a história é uma narrativa é a perda ao longo do tempo da autoria de determinada pesquisa ou descoberta Lyotard afirma que pessoas são conhecimento Quando o conhecimento passa a existir independentemente do sujeito autoral tornase apenas mais um bem de consumo não possui mais caráter pessoal e humano e as pessoas se transformam em consumidoras e não produtoras do conhecimento Saber é poder garante Lyotard Se a pessoa não detém o saber perde o poder social que lhe garante a troca social necessária para a sobrevivência e a evolução Em resumo Lyotard afirma que em razão do volume de informações da sociedade contemporânea o homem está perdendo a crença em valores como justiça e verdade Lyotard fez também a análise do marxismo e do estruturalismo especialmente na psicanálise de Jacques Lacan e estudou as relações entre política economia e psicanálise Lyotard desenvolveu uma filosofia baseada na teoria da libido de Freud segundo a qual a sensualidade pode explicar algumas transformações que ocorrem na sociedade Vinculou o desejo a situações políticas e sociais que culminam em alterações na economia global Suas ideias foram consolidadas no livro Economia libidinal de 1974 No campo da filosofia da linguagem criou a ideia complexa do diferendo um gênero de discurso composto pela argumentação e oposição das suas partes Na forma a escrita do diferendo é sempre desarticulada e descontínua Lyotard refere como diferendo a perda de credibilidade ao longo da história de certos discursos ideológicos como o marxista Para ele a história vista como narrativa científica tende a cristalizar e universalizar conceitos É uma negação do conceito de Hegel da história Na prática diferendo é a técnica criativa de não aplicar uma regra de justiça a uma situação que apenas sujeita a uma regra não promoverá a justiça A visão linear da história tende a ocultar relações de dominação Assim a injustiça pode se dar também no nível da linguagem O diferendo é aplicado no direito na questão da legitimação do discurso da vítima porque é um discurso emotivo e desarticulado propicia a perda dos meios de prova da injustiça e leva à impossibilidade de provar de argumentar e de apresentar Por isso o julgador deve levar em conta as interrupções as incertezas e até o silêncio Cada frase no diferendo tem valor porque tem relação com o sentido com o referente aquilo a que a frase refere com o emissor ou com o receptor A oposição ao diferendo é o discurso do litígio porque nesse caso há regras claras e estabelecidas que permitem a aplicação da justiça sem prejuízo a qualquer das partes Com o diferendo Lyotard afirma a diferença entre vítima a parte ofendida num diferendo e queixoso a parte ofendida num litígio JeanFrançois Lyotard e sua influência no direito Na década de 1980 Lyotard desenvolveu uma teoria da justiça em que analisa problemas decorrentes de interpretações diferentes de um mesmo evento o que resultaria em grandes diferenças Chamou essa teoria de paganismo em referência ao fato de que povos pagãos celebravam muitos deuses ao mesmo tempo a justiça teria também o mesmo sentido de pluralidade e multiplicidade Em suma a justiça para Lyotard deve ter preocupação com a diferença porque se a realidade é constituída de eventos singulares não há como uma lei universal abranger todos os casos A noção de justiça portanto não passa de discurso para Lyotard e nem sempre está ancorada na verdade Por isso a sua teoria do paganismo recomenda promover um julgamento sem um deus único ou seja sem um critério universal único quando se tratar de temas que envolvam a ética a verdade a política e a beleza Lyotard apela para Kant que afirmava ser possível o julgamento através da imaginação constitutiva Em obras posteriores Lyotard renegaria o paganismo para formular o pósmodernismo NÃO SE BUSCA A VERDADE com a ciência apenas o poder JeanFrançois Lyotard Richard Rorty e a ironia necessária Richard Rorty acreditou que a solidariedade e a esperança são preferíveis à objetividade e ao saber Ao falar em solidariedade por exemplo no uso da linguagem alertava para o fato de que o indivíduo consciente utiliza o pronome nós muito mais do que utiliza o pronome eles é a inclusão do indivíduo no universo mas sem perder a sua individualidade Richard Rorty publicou em 1979 Filosofia e o espelho da natureza que lhe trouxe fama imediata não só nos Estados Unidos mas na Europa também Nesse livro explica que o conhecimento é uma representação mas é mais do que isso é uma espécie de espelho mental de um mundo externo à mente Portanto o que existe são múltiplas leituras do mundo como existem múltiplas leituras de um texto Por isso a grande proximidade de Richard Rorty com a questão da linguagem Politicamente foi esquerdista mas inimigo do regime de Stalin Mais recentemente condenou a guerra no Iraque Criticou as noções correntes de verdade razão e ciência que chamava de categorias tradicionais de interesse defendendo que é possível assumir uma atitude irônica diante dessas convicções Ironia é uma figura de discurso que dá a entender exatamente o contrário do que é dito Portanto entendase Rorty não negou verdade razão e ciência mas questionou a maneira como entendemos essas noções por causa de nossas limitações e preconceitos de fundo cultural religioso político e econômico Richard Rorty e suas circunstâncias Richard Rorty revitalizou o pragmatismo idealizado quase um século antes dele ao defender que a filosofia só serve se usada para melhorar o indivíduo Richard McKay Rorty nasceu em Nova York em 1931 em uma família de escritores e ativistas de esquerda Fez mestrado em Filosofia na Universidade de Chicago tendo sido aluno de Rudolf Carnap um dos grandes nomes do Círculo de Viena Depois fez doutorado na Universidade de Yale Serviu o Exército em seguida por dois anos Mais tarde lecionou filosofia e literatura em Princeton Virginia e Stanford Foi conceituado palestrante nas principais universidades inglesas e norteamericanas Chegou a ser convidado para aconselhar o então presidente Bill Clinton Morreu em 2007 Richard Rorty e suas ideias Seu pensamento é pragmático em que mais importante do que o conhecimento da verdade é o conhecimento da utilidade ou seja a verdade está nas consequências da ação e não nos seus pressupostos De certo modo retomou as ideias pragmáticas de William James John Dewey e Charles Sanders Peirce desenvolvendo o argumento de que a teoria moral e a teoria política não podem ser construídas sobre bases objetivas mas sobre a simpatia e a solidariedade humanas David Hume dizia que quase nada no mundo pode ser explicado pela razão ao contrário dizia haver mecanismos de crença natural e pressupostos que nos levam a acreditar num mundo que pode não ser exatamente o real Kant por sua vez acreditava no númeno que é a realidade das coisas em si mesmas e que não dependem da percepção mas do intelecto não conseguimos alcançar o númeno mas apenas a sua representação Ambos concordavam em suma que não existe a verdade mas pontos de vista sobre a verdade De modo sintético a doutrina de Richard Rorty fundase em três ideias A primeira é de que a democracia possibilita a filosofia e não o contrário A segunda é de que a liberdade gera a verdade E a terceira é de que a filosofia só serve para produzirmos versões melhoradas de nós mesmos no lugar da filosofia ele prega que a busca das causas primeiras das coisas pode se dar pela poesia ou pela crítica literária ou seja pela linguagem Segundo ele esse é o papel do filósofo irônico Diz ele que usando a razão poderemos entender e enfrentar nosso próprio sistema de crenças Segundo ele temos crenças consolidadas sobre o que é bom ou o que é verdadeiro No seu pragmatismo recomenda que a teoria só possa ser adotada quanto se mostrar útil na prática social para a solução de problemas e necessidades Pragmatismo um método para resolver disputas William James foi o responsável pela popularização do pragmatismo corrente da filosofia iniciada por Charles Sanders Peirce segundo a qual os pensamentos só podem ser considerados verdadeiros se forem instrumentos para melhorar a vida do indivíduo e da sociedade William James afirmava que a verdade é uma das espécies do bem como a saúde Sua teoria apresentava o pragmatismo como um sistema prático para a resolução de disputas Seu principal livro é Os princípios da psicologia publicado em 1890 obra em que são discutidos e aproximados os conceitos da fisiologia psicologia e filosofia Já defendia as primeiras noções de fenomenologia e foi a fonte em que Edmund Husserl bebeu Norteamericano de Nova York onde nasceu em 1842 passou parte da adolescência na Europa mais precisamente em Genebra onde desenvolveu interesse pela ciência e pela pintura Chegou a graduarse em Medicina mas jamais praticou a profissão Integrou a equipe de pesquisadores em uma expedição científica à Amazônia em 1865 Foi professor de psicologia e filosofia em Harvard Em 1907 publicou Pragmatismo um novo nome para velhas maneiras de pensar Morreu de ataque do coração em 1910 John Dewey filósofo também norteamericano nascido em 1859 aplicou os princípios do pragmatismo à educação No Brasil suas ideias influenciaram um movimento pedagógico chamado Nova Escola caracterizada pela educação da criança em todos os campos simultaneamente físico emocional e intelectual O educador Anísio Teixeira foi o líder desse movimento A premissa mais importante da escola pragmática ou instrumentalista como Dewey preferia chamála era de que a educação progressiva servisse de instrumento para a resolução de tarefas práticas do dia a dia John Dewey recebeu influência dos evolucionistas e dos positivistas Achava importante a participação da filosofia na vida política por isso defendia a aplicação da democracia inclusive dentro das escolas Dentre seus livros estão Escola e sociedade de 1900 e Democracia e educação de 1916 Morreu em 1952 Richard Rorty e sua influência no direito Richard Rorty argumentou em várias de suas palestras que aquilo que chamamos verdade tem usos diferentes Mas a verdade ela mesma não é propriamente uma causa um objetivo um conceito que resista a argumentações ou justificações O que há é o seguinte considerase verdadeiro aquilo que satisfaz algumas condições que nós mesmos estabelecemos para garantir a sua veracidade Portanto não é possível medir a veracidade mas apenas as garantias que queremos dessa veracidade Em resumo a verdade é arbitrária representativa e nunca é exterior às nossas crenças Julgamos então segundo Rorty uma ou algumas propriedades da verdade forma estrutura conteúdo e não a verdade em si O mesmo se dá com outros conceitos como a bondade a justiça a realidade Isso é o que configura o nosso sistema de crenças e a nossa linguagem com os quais legitimamos nossos conceitos Inclusive os conceitos que norteiam o direito Richard Rorty afirma que toda investigação filosófica e aqui podemos incluir as nossas crenças está condicionada pelo contexto social político econômico e religioso Por essa razão afirma Rorty nem mesmo os direitos humanos são naturais eternos e imutáveis AOS 12 ANOS eu soube que o importante na vida humana era lutar contra a injustiça social Richard Rorty Jürgen Habermas e os direitos humanos Jürgen Habermas foi uma das mais importantes figuras mundiais no debate político pósSegunda Guerra Mundial Segundo ele a sociedade contemporânea passa por um processo de racionalização exacerbada um fenômeno que tem raízes ideológicas A sociedade é regida pela razão instrumental voltada apenas para o raciocínio dedicado ao campo da técnica o que representa restrição ao desenvolvimento global do indivíduo Com isso ele tem autonomia relativa permanecendo suscetível à dominação de grupos intelectualmente mais preparados Esse processo de racionalização causa tensões que dificultam especialmente a implementação democrática dos direitos A razão instrumental dizia Habermas interrompeu uma tarefa humana que é a crítica Em um breve resumo o projeto filosófico de Habermas é uma crítica ao positivismo e ao que considera ser uma ideologia resultante do pensamento positivista que é o tecnicismo segundo o qual somente a pesquisa técnica e científica promove o desenvolvimento A filosofia para Habermas não pode ser apenas uma observadora das ciências mas um instrumento para refinar o pensamento do homem Jürgen Habermas e suas circunstâncias Jürgen Habermas foi um dos grandes filósofos do nosso tempo É considerado herdeiro da Escola de Frankfurt embora não tenha sido contemporâneo dela em função da sua convicção de que a sociedade alemã estava voltada fundamentalmente para o individualismo com as pessoas transformadas em massas em rebanhos acomodados Discutiu os conceitos de moralidade e de legalidade no pensamento de Max Weber Jürgen Habermas nasceu em Düsseldorf na Alemanha em 1929 Aos 25 anos defendeu a tese O absoluto e a história sobre o filósofo Schelling O trabalho despertou a atenção de Theodor Adorno que o convidou para ser seu assistente na Escola de Frankfurt então associada à Universidade de Frankfurt Aos 31 anos Habermas foi lecionar filosofia na Universidade de Heidelberg Em 1961 publicou sua obra mais famosa Entre a filosofia e a ciência o marxismo como crítica Passou a lecionar filosofia e sociologia na Universidade de Frankfurt Publicou seguidamente outros livros até 1968 quando se mudou para os Estados Unidos para assumir a função de professor da New York School for Social Research Em 1972 voltou para a Alemanha para assumir a direção do Instituto MaxPlanck renomada sociedade dedicada à pesquisa científica e tecnológica Em 1983 reassumiu cátedra na Universidade de Frankfurt até aposentarse em 1994 Jürgen Habermas e suas ideias Habermas é considerado um prosseguidor da Escola de Frankfurt embora não fosse contemporâneo desse movimento Considerase que ele representa uma quarta fase da Escola de Frankfurt porque durante o tempo em que a escola existiu foram três fases distintas do pensamento conhecido como Teoria Crítica A primeira fase marcada pelos textos de Adorno Horkheimer e Marcuse que discutiam a teoria do conhecimento A segunda fase foram os trabalhos de Horkheimer e Adorno na década de 1940 buscando compreender o nazismo não mais a partir da tese marxista da luta de classes eou na crise econômica e sim em razão da civilização dominada exclusivamente pela técnica Na terceira fase a Escola de Frankfurt se dedicaria à crítica da sociedade massificada na qual os indivíduos perderam autonomia e liberdade de ação Habermas somou a esses posicionamentos filosóficos o que pode ser considerada a quarta fase da Escola de Frankfurt que foi a ideia de que a Teoria Crítica deve estar engajada nas lutas políticas para obter a transformação do futuro Jürgen Habermas e sua influência no direito Habermas considera que numa democracia o cidadão deve ser ao mesmo tempo destinatário e autor das normas jurídicas Por isso define uma relação de autonomia recíproca entre soberania do povo pública e direitos humanos privados Soberania popular porque todos os destinatários da norma jurídica devem concordar com ela E direitos humanos porque a norma jurídica deve abranger a ação orientada pelo interesse privado Como racionalista Habermas entende que o homem é livre quando sua vontade é guiada somente pela razão Essa liberdade é tolhida quando a vontade se submete a princípios morais regidos pela intuição ou pelo sentimento como buscar entender por que a ação que pratica é útil ou é boa Este é o princípio da razão prática de Kant não é o objeto que determina a ação mas o próprio eu do indivíduo a sua razão Um exemplo prático pode ser encontrado numa empresa quando na frente do diretor um funcionário cumprimenta o faxineiro com um abraço Não o faz porque a razão lhe diz que o faxineiro é um ser igual a ele apenas desempenhando uma função mais humilde ao contrário abraçao para impressionar o chefe e causar boa impressão com o fim de obter reconhecimento esse ato não é livre e é até imoral Ética e moral foram pontos centrais no pensamento de Habermas A moral tem um caráter universal diz ele porque deve ser aceita por todos os indivíduos que devem cumprir suas regras e nesse ponto discorda de Max Weber que dizia que a ética é relativa A moral também deve ser cognitiva dizia Habermas porque precisa ter como base a razão e o conhecimento Weber dizia que a norma jurídica é racional pelos seus fins direito e moral são autônomos enquanto Habermas defendia que a norma jurídica é racional pelos seus valores direito e moral são complementares Para Habermas o princípio moral é o próprio princípio da democracia A saída para o indivíduo é sociabilizarse cooperar uns com os outros E o melhor começo é pela comunicação Essa é a tese da razão comunicativa conceito básico na filosofia de Habermas Uma tese que tem relação direta com a verdade universal Habermas afirma que o uso da linguagem pode ser validado ou seja não é distorcido quando atende a quatro premissas seja qual for a pessoa que emite uma comunicação A primeira delas seria a comunicação é inteligível baseada em regras semânticas que os interlocutores compreendem A segunda ser o conteúdo da comunicação verdadeiro A terceira utilizarse o emissor das normas sociais típicas do idioma Por fim ser ele sincero não distorcendo a comunicação Portanto a linguagem para Habermas serve como garantia da democracia porque a democracia depende da compreensão de interesses mútuos e do consenso A DUALIDADE ENTRE FATOS e decisões leva à validação do conhecimento fundado nas ciências da natureza e desta forma eliminase a práxis vital do âmbito destas ciências A divisão positivista entre valores e fatos longe de indicar uma solução define um problema Jürgen Habermas John Rawls e a teoria da justiça O norteamericano John Rawls é o grande teórico contemporâneo da democracia liberal Desenvolveu uma teoria da justiça baseada no conceito geral da equidade todos os bens sociais primários liberdade oportunidade renda riqueza e amorpróprio devem ser distribuídos equitativamente a menos que uma distribuição desigual de tais bens represente vantagem para os menos favorecidos Sua base de pensamento é o contrato social de John Locke de que pessoas livres precisam concordar com algumas regras básicas para poder viver em harmonia O conceito de prioridade dos bens sociais primários varia de pessoa para pessoa porque cada um é livre para fazer os planos que quiser para a sua própria vida Mas a concepção de justiça de Rawls é dirigida para a coletividade e não para o indivíduo John Rawls aponta a fragilidade do utilitarismo como fundamento das instituições da democracia constitucional e por esse motivo busca formular uma concepção da justiça que sirva de alternativa sistemática a ele Considerava que a ideia utilitarista de Jeremy Bentham e John Stuart Mill de praticar o maior bem possível para o maior número possível de pessoas podia ser uma fonte de injustiça porque eventualmente resultaria no que chamava de tirania da maioria Dava como exemplo a perseguição dos judeus pelos nazistas e o tratamento injusto dos americanos contra seus compatriotas de origem africana John Rawls tinha como máxima filosófica minorar a dor Sua perspectiva era de que cada ação é julgada boa ou má dependendo das consequências que tiver para você e para os outros John Rawls e suas circunstâncias John Rawls publicou o livro Teoria da justiça em 1971 e imediatamente ganhou fama mundial convertendose num dos principais filósofos sociais do século XX Apresentou ideias sobre como garantir direitos iguais em uma sociedade desigual Para ele justiça social é dar amparo aos desvalidos Devese à sua teoria da justiça por exemplo a ideia de estabelecer cotas para negros nas universidades John Bordley Rawls nasceu em Baltimore nos Estados Unidos em 1921 Perdeu dois irmãos ainda pequenos fato que pode ter causado a gagueira que o perseguiu Devido à militância de sua mãe no movimento feminista acompanhou causas sociais desde criança Cursou filosofia na Universidade de Princeton dedicandose a Kant John Stuart Mill e Wittgenstein Foi convocado para combater na Segunda Guerra Mundial e serviu por dois anos em Nova Guiné e nas Filipinas Depois disso ficou por quatro meses nas forças que ocuparam o Japão Em 1946 retoma os estudos de graduação em Filosofia Mais tarde passa a lecionar na mesma universidade De 1952 a 1953 participa de um convênio para pesquisas na Universidade de Oxford Ali trava contato com H L A Hart e começa a elaborar sua ideia de justificar princípios morais de acordo com um processo deliberativo construído para esse fim Ao voltar é nomeado professor na Universidade de Cornell onde se torna editor do famoso jornal Philosophical Rewiew Mais tarde lecionou na Universidade de Harvard e no Massachusetts Institute of Technology MIT Em 1962 volta para Harvard onde permanece até aposentarse em 1991 Chegou a ocupar a função de chefe do departamento de filosofia Inicia a elaboração do livro Uma teoria da justiça em 1964 No final da década de 1960 integrou movimentos contra a Guerra do Vietnã quando começou a formular suas ideias sobre desobediência civil e sobre a ética nas relações internacionais John Rawls morreu em 2002 John Rawls e suas ideias O conceito mais importante em seu pensamento é de que o certo é aquilo que é justo Contidas nessa ideia estão as duas regras principais que são a liberdade e a riqueza Riqueza para ele é isto as desigualdades sociais e econômicas devem ser arranjadas de tal maneira que beneficiem mais aqueles menos favorecidos pela sorte e abram condições justas de igualdade de oportunidade Observese que John Rawls não defende distribuição de bens igual para todos numa igualdade absoluta como aquela desejada pelos socialistas Ao contrário considera mais importante praticar uma distribuição equitativa que minimize os efeitos negativos da desigualdade uma desigualdade que muitas vezes é até congênita É um verdadeiro pacto social que beneficia a coletividade o que resulta em última análise em benefício para cada indivíduo que compõe a sociedade Coletividade para John Rawls tem uma dimensão de significado bastante ampla porque também pode significar instituição O filósofo entende que a Justiça Política é formada pelos direitos e deveres estruturais de Justiça Social e de Justiça Distributiva Ele afirma na sua teoria equitativa da justiça duas tarefas da Justiça Política A primeira é estruturar instituições fundamentais da sociedade que nada mais são do que os direitos e deveres fundamentais dos indivíduos e do Estado Essas instituições promovem a ordenação das distribuições dos bens econômicos sociais e culturais entre os indivíduos para evitar que entrem em conflito pela titularidade destes Para o funcionamento dessas estruturas entra em campo a segunda tarefa da Justiça Social de regular a cooperação interindividual que deve reger todas as democracias Nesse ponto Rawls discorda do postulado marxista de que toda sociedade seja inerentemente conflituosa ao contrário acredita em situações em que indivíduos se sacrifiquem para melhorar as condições de vida dos outros Mas diferentemente do imperativo categórico de Kant Rawls negava a aplicação dos princípios da justiça política à vida privada John Rawls observa que os princípios da justiça social independem de ideologia Devem estar embasados unicamente sobre a racionalidade Ele explica a ocorrência de conflitos pela presença de uma espécie de véu de ignorância que leva os indivíduos a agirem exclusivamente em benefício próprio e que os impede de considerar a si próprios e aos demais segundo qualidades outras que não a mera condição humana A educação retiraria esse véu de ignorância e levaria o homem a usar a razão Com isso tornarse iam irrelevantes noções como o pertencimento a determinadas classes sociais os diferentes graus de prosperidade econômica os dotes culturais os talentos naturais e outras referências da diferenciação John Rawls e sua influência no direito Rawl é um dos autores mais comentados na atualidade Ainda que tenha sido um filósofo político exerceu enorme influência em teóricos importantes dedicados ao estudo de questões centrais da teoria geral do direito como Ronald Dworkin que chegou a afirmar que cada um de nós tem seu próprio Immanuel Kant e de agora em diante cada um de nós lutará pela benção de John Rawls É possível dividir sua produção acadêmica em duas fases marcadas respectivamente por suas principais obras Uma teoria da justiça e O liberalismo político Nessa última revisa várias das formulações teóricas elaboradas na primeira sem que contudo possase apontar uma ruptura profunda entre tais fases Sua teoria da justiça busca conjugar os dois principais valores morais do mundo moderno a liberdade e a igualdade Em Uma teoria da justiça como faz ver logo no prefácio empreende uma tentativa de generalizar e elevar a uma ordem mais alta de abstração a teoria do contrato social de Locke Rousseau e Kant Com tal construção teórica pretende oferecer uma explicação sistemática alternativa da justiça que reputa superior ao utilitarismo dominante na tradição de Hume Adam Smith Bentham e Mill Reconhece que a teoria que resulta desse esforço é altamente kantiana em sua natureza motivo pelo qual abdica de qualquer pretensão de originalidade e afirma que apenas reorganizou as ideias clássicas em uma estrutura geral de forma a demonstrar toda a sua força Há em Rawls portanto a crença de que a teoria da justiça baseada na tradição contratualista constitui a base moral mais apropriada para uma sociedade democrática Sua teoria é a da justiça como equidade Reconhece que a justiça é a primeira virtude das instituições sociais Segundo essa concepção refutase a possibilidade de que a perda de liberdade de alguns se justifique por um bem maior partilhado por outros ou seja as liberdades da cidadania igual são consideradas invioláveis em uma sociedade justa não havendo que se cogitar de qualquer parâmetro utilitarista nesse campo Liberdades da cidadania simplesmente não se sujeitam à negociação política ou ao cálculo de interesses sociais A justiça como a verdade é indisponível A justiça constitui a carta fundamental de uma associação humana bemordenada Na concretude da vida real todavia raramente são encontradas sociedades bemordenadas nesse sentido pois há disputa mesmo sobre quanto ao que é ou não justo os homens controvertemse sobre os princípios que consubstanciam a justiça Não obstante todos eles guardam para si uma noção de justiça e o debate sobre o tema é possibilitado pelo fato de que são acatadas pela generalidade das pessoas noções abstratas que compõem o conceito e permitem interpretações individuais Assim todos concordam que as instituições são justas quando não procedem a distinções arbitrárias entre as pessoas na atribuição de direitos e obrigações básicos e quando as regras determinam um equilíbrio adequado entre reivindicações concorrentes das vantagens da vida social Isso porque remanesce ainda a discussão sobre o que seja arbitrário e o que seja equilíbrio adequado conceitos que se sujeitam a interpretações individuais Em Rawls dos muitos objetos a que a justiça pode se referir há a escolha pela estrutura básica da sociedade isto é a justiça social Em suas palavras sua teoria da justiça busca compreender a maneira pela qual as instituições sociais mais importantes a constituição política e os principais acordos econômicos e sociais distribuem direito e deveres fundamentais e determinam a divisão de vantagens provenientes da cooperação social Essa estrutura básica é portanto o objeto primário da justiça Os princípios da justiça social devem ser aplicados em primeiro lugar às desigualdades existentes em tal estrutura básica oriundas das diferentes posições sociais e das peculiariedades do sistema político e das circunstâncias econômicas e sociais Isso porque essas desigualdades em nada se relacionam com as noções de mérito ou de valor Vejase portanto que a teoria da justiça de Rawls foi pensada não para aplicação às práticas sociais ou às instituições nem mesmo às leis nacionais e às relações internacionais não obstante reconhece possa ser aplicada em tais âmbitos talvez com ligeiras modificações Sua preocupação repousa sobre os aspectos distributivos da estrutura básica da sociedade Os princípios da justiça que os norteiam são o objeto do contrato social e devem orientar todos os acordos subsequentes É a essa forma de considerar os princípios da justiça tomandoos como diretrizes para os tipos de cooperação social e para as formas de governo que Rawls denomina justiça como equidade O que enfim determina os princípios da justiça São eles determinados pela escolha que homens racionais fariam na situação hipotética de liberdade equitativa ao escolherem viver juntos A justiça como igualdade pressupõe que no estado de natureza as pessoas eram todas iguais umas às outras Isso significa que no início por hipótese ninguém conhecia sua posição e seu status na sociedade nem tampouco sua própria sorte na distribuição das riquezas e das habilidades naturais Assim diz Rawls os princípios da justiça são escolhidos sob um véu de ignorância O que isso significa Que originalmente ninguém é prejudicado pela escolha de tais princípios ou seja eles são o resultado de um consenso ou ajuste equitativo Essa a origem da justiça como equidade de Rawls que seus princípios resultam de um acordo em uma situação inicial que por hipótese é equitativa Mas a justiça não se confunde com equidade adverte O véu de ignorância diz respeito ao fato de que na situação inicial sempre adotada a hipótese formulada por Rawls ninguém é consciente de ser favorecido ou desfavorecido por contingências sociais e naturais Portanto ninguém tem interesse particular na adoção deste ou daquele princípio de modo que todos se orientam pela promoção consensual dos interesses em condições de igualdade A justiça como equidade concebe as partes na situação inicial como racionais e mutuamente desinteressadas Isso significa que pressupõe que as pessoas sejam capazes de adotar os meios mais eficientes para determinados fins e que não tenham interesses nos interesses das outras Logo de inicío Rawls refuta o princípio da utilidade eis que na condição de igualdade inicial que pressupõe seria de se estranhar que as pessoas concordassem com um princípio que pode resultar em condições de vida inferiores para alguns em benefício de uma soma maior de vantagens para outros O homem racional diz não aceitaria uma estrutura básica simplesmente porque ela maximizaria a soma algébrica de vantagens independentemente dos efeitos que possam vir a ser gerados para os direitos básicos Em outras palavras iguais que cooperam para vantagens mútuas não têm por que racionalmente acatar o princípio da utilidade Quais então seriam os princípios escolhidos pelas pessoas em um tal contexto Rawls sustenta que seriam dois i a igualdade na atribuição de direitos e deveres básicos e ii em suas palavras o segundo afirma que desigualdades econômicas e sociais por exemplo desigualdade de riqueza e autoridade são justas apenas se resultam em benefícios compensatórios para cada um e particularmente para os membros menos favorecidos da sociedade48 Rawls para confirmação desses dois princípios faz uso do que denomina de equilíbrio reflexivo que não é necessariamente estável Tratase da tentativa de acomodar em um único sistema tanto os pressuspostos filosóficos razoáveis impostos aos princípios quanto seus juízos ponderáveis sobre a justiça É a procura da justificativa para os princípios escolhidos por meio da corroboração mútua de muitas considerações ajustadas em uma única visão coerente As teorias de John Rawls tiveram grande influência sobre o direito contemporâneo especialmente na regulação pelo Estado da Ordem Econômica e da Ordem Social No caso brasileiro essa regulação está explicitada no artigo 3º da Constituição Federal que estabelece como objetivos fundamentais da República dentre outros o erradicamento da pobreza a redução das desigualdades sociais bem como a promoção do bemestar de todos Rawls postula a tese da existência digna pela definição dos bens mínimos a serem garantidos a cada cidadão para o desenvolvimento das técnicas legislativas de declaração dos direitos sociais Ademais defende uma necessária interrelação entre bens dos particulares e bem comum A promoção do bem de todos os indivíduos é a finalidade da atuação estatal no Brasil A Constituição Federal determina que o poder público deva promover um mínimo de bens materiais e imateriais necessário à existência digna referido no dispositivo constitucional acima reproduzido pela menção à erradicação da pobreza e da marginalização Rawls tolera a desobediência civil como ato de resposta a injustiças internas a uma dada sociedade Diz que a desobediência civil pode ser justificada se todas as seguintes condições foram preenchidas se a injustiça é substancial e clara e especialmente se constituir em obstáculo para a remoção de outras injustiças se todos os recursos normais tenham sido feitos de boafé à maioria política e tenham sido recusados se não existirem muitos outros grupos minoritários com queixas igualmente válidas porque desobediência civil generalizada pode desestruturar o conceito constitucional A ÚNICA COISA QUE NOS PERMITE aquiescer com uma teoria errônea é a falta de uma melhor analogamente uma injustiça é tolerável apenas quando necessária para impedir uma injustiça ainda maior John Rawls Ronald Dworkin e a negação do positivismo jurídico Professor de Teoria Geral do Direito na University College London e na New York University School of Law Ronald Dworkin formula incisiva crítica ao positivismo jurídico fazendo uso da metodologia de John Rawls o método de equilíbrio reflexivo Como em Rawls sua produção intelectual pode ser didaticamente dividida em duas fases uma produzida sob os influxos de seu Levando os direitos a sério e outra sob a influência de seu O império do direito Em Levando os direitos a sério segundo o próprio filósofo há a defesa de uma teoria liberal do direito e o combate ao que denomina de teoria dominante do direito o positivismo jurídico e o utilitarismo ambos derivados da filosofia de Jeremy Bentham Defende que uma teoria geral do direito deva ser ao mesmo tempo normativa e conceitual Normativa por conter em si uma teoria da legislação da decisão judicial adjudication e da observância da lei compliance correspondentes respectivamente às perspectivas do legislador do juiz e do cidadão comum E conceitual ao recorrer à filosofia da linguagem bem como à lógica e à metafísica Segundo Dworkin Bentham foi o último filósofo da corrente angloamericana a propor uma teoria geral do direito e suas ideias ainda prevalecem nas universidades inglesas e norteamericanas O positivismo jurídico de Bentham foi aperfeiçoado por H L A Hart cujo sucessor em Oxford foi o próprio Dworkin Tratase de teoria eminentemente individualista e racionalista que recebeu severas críticas tanto da esquerda como da direita política Ronald Dworkin e suas circunstâncias Ronald Dworkin escreveu por mais de 40 anos artigos na New York Review of Books analisando decisões tomadas pela Suprema Corte norte americana Em seus escritos comentava as principais polêmicas em pauta nos Estados Unidos acerca de temas como aborto e pornografia Pregava que para a formação da decisão política deviam ser levadas em conta as ideias de sinceridade de argumentação e de responsabilidade Ronald Dworkin filósofo norteamericano nasceu em Worcester Massachusetts em 1931 Estudou em Harvard nos Estados Unidos e em Oxford na Inglaterra duas das principais universidades do mundo Chegou a ser assistente do juiz Learned Hand da Corte de Apelação dos Estados Unidos Esse juiz era famoso por defender a liberdade de expressão e por utilizar argumentos de economia em suas decisões Trabalhou depois em importante escritório de advocacia de Nova York Mais tarde lecionou Direito na Universidade de Yale Desenvolveu a Teoria do Direito como Integridade que é considerada uma das mais importantes análises contemporâneas da natureza do direito Em 1969 assumiu a cátedra de Teoria Geral do Direito em Oxford sucedendo a Herbert Hart onde se aposentou Em seguida ocupou a cátedra de Teoria do Direito na Universidade de Londres até 2013 quando morreu de leucemia Ronald Dworkin e suas ideias A esquerda aduz que o formalismo do positivismo jurídico impede a realização de uma justiça substantiva mais densa por parte dos tribunais Entende que o utilitarismo produz consequências injustas e perpetua a pobreza ao se pautar apenas pela eficiência A direita por sua vez aponta que o positivismo jurídico despreza a influência da moral costumeira difusa no processo de formação das decisões judiciais Além disso o utilitarismo seria irrecuperavelmente otimista ao insistir que decisões tomadas contra aquela moral podem aumentar o bemestar da comunidade Seria descabido ademais desprezar a cultura social como quer o positivismo Reconhece que a atividade do jurista consiste basicamente em analisar situações complexas com o objetivo de resumir os fatos essenciais de acordo com o que preconiza a lei a doutrina e a jurisprudência É o que denomina de abordagem profissional da teoria geral do direito a qual segundo ele produziu apenas uma ilusão de progresso ao ter deixado intocadas questões de princípios estas sim genuinamente importantes existentes no direito Nesse sentido não basta estudar os conceitos relativos a termos presentes nos diversos ramos do Direito determinandolhes o conteúdo a partir da utilização que deles fazem os tribunais eis que em última análise tratase de cristalização de concepções advindas do senso comum do emprego popular de determinadas expressões com base em princípios morais e éticos disseminados na sociedade E no entanto o modo tradicional de se ensinar direito nas faculdades é justamente esse analítico preocupado em extrair o viés propriamente jurídico de determinados conceitos Em outras palavras Dworkin aduz ser imprescindível a análise do uso moral dos conceitos pois é na moral que repousa sua origem Também não lhe escapa a crítica ao realismo jurídico O realismo preconiza uma abordagem científica do direito com ênfase no que os juízes efetivamente fazem e não naquilo que dizem e com foco também no impacto real das decisões sobre a comunidade mais ampla Os problemas dessa corrente de pensamento são evidentes o juiz fica reduzido não a um oráculo da doutrina mas a um homem que responde a diferentes tipos de estímulos sociais e pessoais cuja amplitude é de difícil aferição e em segundo lugar é considerável a complexidade em se aferir estatisticamente o impacto social das decisões jurídicas abordagem que ao final coube à sociologia O realismo em suma elegeu certos objetivos a serem atingidos e concentrou suas atenções em instrumentalizar o direito para atingilos Essa postura segundo Dworkin acabou por distorcer os problemas da teoria geral do direito até de modo parecido com aquela por ele tida como analítica acima mencionada precisamente porque ignorou as questões relacionadas com os princípios morais envolvidos nos problemas sob análise Ronald Dworkin e sua influência no direito O problema realmente é de grande vulto Dworkin se preocupa enfaticamente com os casos em que a Suprema Corte decide com base em princípios de justiça e na política pública sem fazer referência a leis escritas o que é comum em casos difíceis Tais situações foram simplesmente ignoradas pela teoria geral do direito desde há muito O poder político dos juízes ficou a salvo de qualquer análise ou crítica não obstante todos soubessem de sua existência Imperioso portanto que tal teoria se debruce sobre a justificação para um tal proceder isto é sobre os motivos que possibilitam aos juízes criar regras novas baseadas em princípios para casos difíceis A importância da moral é aqui mais uma vez evidenciada pois a justificação não consegue passar ao largo dela Assim a argumentação moral deve ser considerada esclarecida a fim de que se possa avaliar se a prática jurídica de fato corresponde aos seus ditames A teoria do direito norteamericano todavia ignorou essa tarefa Nem mesmo o pósrealismo no qual figura como expoente o ilustre Henry Hart ao reformular a questão conseguiu resolvêla O pósrealismo com efeito indaga como deveriam os juízes chegar às suas decisões a fim de atender da melhor maneira possível os objetivos do processo judicial Tal questionamento todavia não afasta a pertinência dos princípios morais pois mesmo se restar pressuposto que o objetivo do processo judicial é alcançar a justiça ou uma aplicação equânime das regras permanece inconclusa a tarefa se não for também elucidado o que é justiça e o que é equanimidade A questão de fundo em verdade aponta Dworkin é o que é seguir uma regra A resposta não pode ser dada segundo ele por meio de uma análise que apenas associe meios a fins como quer por exemplo uma leitura econômica do direito Em outras palavras dizer que uma regra é mais eficiente do ponto de vista global da economia não significa que necessariamente seja também justa Em suma a teoria geral do direito para Dworkin não pode ignorar que seus maiores problemas são no fundo relativos a princípios morais e não a estratégias ou fatos jurídicos Nesse sentido Dworkin elogia Hart por ter logrado demonstrar como a regra jurídica é uma extensão de teorias populares sobre a moralidade e a causação Mas vai além ao preconizar que a teoria do direito não pode se ater ao estudo dos princípios e à demonstração entre a prática jurídica e a prática social devendo também continuar a examinar e criticar a prática social à luz de padrões independentes de coerência e sentido como os fornecidos pela psicologia por exemplo Dworkin aponta três teses chaves do positivismo Em primeiro lugar faz referência à distinção entre as regras jurídicas e as demais regras sociais em especial as morais A juridicidade de uma regra estaria relacionada com a sua forma pedigree e não com seu conteúdo Em segundo lugar para o positivismo inexistindo regra jurídica expressa para dado caso a resolução deste passará pelo poder discricionário da autoridade competente que criará uma regra nova e a aplicará retroativamente Em terceiro lugar de acordo com o positivismo toda obrigação jurídica baseiase ou encontra fundamento em uma regra jurídica válida que a estatui Inexistinto tal regra não há que se falar em obrigação jurídica propriamente dita Dworkin afirma contudo existirem obrigações que não se acomodam bem a esse modelo como faz ver a prática jurídica cotidiana Para ele especialmente em casos difíceis é comum os juristas recorrerem a padrões relacionados a princípios políticas ou a alguma dimensão da moralidade para identificar os direitos e obrigações dos indivíduos Observase em Dworkin portanto uma fundamentação do direito e da justiça que vai além das regras jurídicas postas Também o padrão moral e político vigentes são incorporados ao discurso jurídico sem se olvidar ainda a importância das teorias da argumentação Dworkin escreveu em 2002 sobre as ideias de John Rawls e Amartya Sen a respeito da ideia de igualdade de recursos na justiça distributiva em contraste com a igualdade de bemestar A LIBERDADE RESIDE nos corações de homens e mulheres se morre ali não há constituição lei ou tribunal que possa salvála aliás nem constituição lei ou tribunal vai poder sequer ajudar Ronald Dworkin Niklas Luhmann a lei como sistema social Considerado o grande representante da sociologia alemã contemporânea ao lado de Jürgen Habermas O ponto central de seu pensamento é a comunicação Para ele todos os sistemas sociais constituem basicamente sistemas de comunicação que ultrapassam os limites da fala e da escrita e envolvem um universo complexo que inclui a mídia a cultura e as relações sociais A comunicação em Luhmann tal como no conceito da razão comunicativa de Habermas confere unidade a um grupo social porque lhe dá sentido Comunicandose o grupo consegue uma generalização simbólica importante para as suas definições de identidade e até de diferenciação Comunicandose o grupo consegue implantar mudanças através do aprendizado mútuo Comunicando se enfim o grupo pode alcançar o consenso Admite porém que a comunicação é improvável Por isso do ponto de vista oposto também pode ocorrer que a comunicação conduza à consolidação das diferenças à resistência contra as mudanças e ao desentendimento O positivismo jurídico dizia que o direito é representado pela lei como regra geral e abstrata Mas para Luhmann a lei também é um sistema social Como sistema social a lei deve ser legitimada pelo consenso E isso já era dito pelos pensadores do Iluminismo francês que propositalmente incluíram na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão o artigo 6º que diz A Lei é a expressão da vontade geral Todos os cidadãos devem concorrer pessoalmente ou através de mandatários para a sua formação Ela deve ser a mesma para todos seja para proteger seja para punir Todos os cidadãos são iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a todas as dignidades lugares e empregos públicos segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos Niklas Luhmann e suas circunstâncias Niklas Luhmann inaugurou o conceito do iluminismo sociológico em 1967 iluminismo porque como os pensadores das luzes do século XVIII considera que é a razão e não a fé que liberta o homem da ignorância Somente trinta anos depois completaria o seu projeto metodológico de analisar a supremacia da razão com a publicação do livro A sociedade da sociedade Suas pesquisas sociais têm grande importância para o direito especialmente a teoria da diferenciação Para ele sem o direito não há um sistema de orientação de condutas para a sociedade Niklas Luhmann nasceu na Alemanha em 1927 Fez doutorado em Direito na Universidade de Freiburg em 1949 Trabalhou na administração pública até 1962 quando decidiu fazer pósdoutorado na Universidade de Ciências Administrativas em Speyer Durante esse período atuou simultaneamente no departamento de pesquisa social da Universidade de Münster Em 1965 foi contratado como professor dessa universidade Mas antes disso em 1961 passou um ano em Harvard estudando a sociologia de Talcott Parsons No biênio 19681969 ocupou na Universidade de Frankfurt a cadeira que tinha sido de Theodor Adorno Foi indicado em seguida para ocupar a função de professor na então novíssima Universidade de Bielefeld onde permaneceu até aposentarse em 1993 Sua grande obra é A sociedade da sociedade publicada em 1997 em que discute noções centrais do Iluminismo Mas continuaria escrevendo até o ano de sua morte em 1998 nesse ano publicaria O sistema educacional da sociedade Publicou mais de 60 livros Niklas Luhmann e suas ideias Um sistema existe dentro de um ambiente Mas está delimitado dentro desse contexto os limites no entanto podem mudar porque o mundo tem sempre probabilidade de mudar Além disso é como a teoria dos conjuntos na matemática cada sistema com seu ambiente desempenha uma função e interage com outros sistemas diferentes isso estabelece relações mais ou menos complexas Pela observação os sistemas se autoorganizam A teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann estes organizados em sistemas de primeira ordem e de segunda ordem apoiase em quatro fundamentos Em primeiro lugar pretende que a sua teoria ultrapasse as fronteiras da sociologia e seja universal abrangendo conteúdos da economia do direito da política e até da religião para ele os sistemas não devem ser apenas observados mas devem observarse uns aos outros Em segundo lugar todos os sistemas devem admitir contribuições de outras disciplinas do conhecimento que não apenas as ciências humanas mas também a matemática a biologia e até a cibernética Em terceiro lugar os sistemas são agrupados pela função como numa estrutura matricial o que interessa é o fim a que se destinam os sistemas a solução que vão apresentar e não a característica de cada um Por fim em quarto lugar os sistemas utilizam a noção de paradoxos para se aperfeiçoar e se reconstruir internamente na medida da necessidade Segundo Luhmann é pela diferença que se encontra a unidade Niklas Luhman e sua influência no direito Luhmann afirma existirem três classes de sistemas que seguem esses fundamentos São os sistemas biológicos como as células os sistemas psíquicos como a fantasia e a concentração e os sistemas sociais como as organizações corporativas e a sociedade A sociedade é o mais complexo sistema social E dentro dele o direito funciona como uma estrutura O ideal iluminista era oferecer oportunidades iguais a todos de escapar da ignorância e reduzir a complexidade do mundo Luhmann prossegue esse ideal mas com uma abordagem moderna que ultrapassa os limites do Iluminismo original A estrutura que vai possibilitar essa evolução do homem é o sistema social e a ideia básica é que pela observação das diferenças o homem infere soluções Especificamente as diferenças entre um sistema e seu ambiente que o homem apreende pela racionalidade Como estrutura do sistema social o direito contém normas gerais que determinam o que se espera do comportamento dos indivíduos desse sistema Com essa regulação as condutas não contempladas pelas regras são punidas o que faz com que o direito funcione como um complexo programa de embasamento de decisões para orientar condutas Para Luhmann o direito se legitima pelo consenso e pela sua forma de operação ou seja o seu próprio procedimento A legitimação pelo consenso se dá ou pela eleição ou pelo processo legislativo ou pelo processo judiciário DEPOIS DE NOTÁVEIS ESFORÇOS nos anos 50 e 60 a Sociologia encontrase hoje numa fase de esgotamento Agora cuida das suas feridas e deixou de cuidar das suas ambições Niklas Luhmann Norberto Bobbio filósofo da democracia Talvez o mais importante pensador italiano contemporâneo Norberto Bobbio foi um ativo defensor da democracia e em consequência um combatente das ditaduras do preconceito e do racismo Seu principal livro sobre teoria política é O futuro da democracia de 1984 Mas dedicou também grande parte dos seus escritos à ética considerando que havia uma ligação essencial entre tolerância e democracia Norberto Bobbio e suas circunstâncias Norberto Bobbio inovou o estudo do direito ao utilizar a análise linguística para isso Defendeu a democracia como princípio de todas as atitudes sociais e políticas Em relação à lei recomendava a sanção positiva recompensa e não apenas a repressiva punição ou a negativa proibição como forma de obter comportamento que o legislador considera desejável A ética tem lugar de destaque em sua produção editorial Para Norberto Bobbio a ética é um elemento indispensável para que exista relação saudável entre moral e política Norberto Bobbio nasceu em Turim na Itália em 1909 Estudou na sua cidade natal tendo se formado em Filosofia e Direito na Universidade de Turim em 1931 Passou um ano em Marburgo na Alemanha estagiando Ao voltar inscreveuse no doutorado e em 1933 defendeu tese sobre Husserl e a fenomenologia Em 1934 obteve o grau de livredocente Militante socialista integrou na Segunda Guerra Mundial movimentos socialistas de resistência ao regime fascista italiano Chegou a ser preso por duas vezes Também durante a guerra ensinou nas Universidades de Camerino Padova e Siena Em 1948 assumiu a cadeira de Filosofia do Direito na Universidade de Turim Em 1955 escreveu seu livro mais conhecido Política e cultura Escreveu centenas de artigos para jornais importantes da Itália como o Corriere della Sera e mais de vinte livros Organizou debates históricos sobre democracia a tal ponto que chegou a ser em 1984 nomeado senador vitalício pelo então presidente italiano Sandro Pertini Foi professor emérito de várias universidades entre elas a de Madri Buenos Aires Paris e Bolonha Morreu em 2004 Norberto Bobbio e suas ideias Norberto Bobbio colocouse em uma posição intermediária que rejeitava tanto o fascismo quanto o comunismo Costumava dizer que a democracia é o regime político mais adequado porque impede que seja repetido o passado de guerras religiosas e perseguições políticas Segundo ele há processos no mundo decorrentes do autoritarismo que conspiram contra os direitos humanos a saber a questão dos imigrantes o armamentismo a exploração dos oprimidos o racismo o preconceito a miséria Numa de suas conferências disse os direitos do homem são indubitavelmente um fenômeno social Ou pelo menos são também um fenômeno social e entre os vários pontos de vista de onde podem ser examinados filosófico jurídico econômico etc há lugar para o sociológico precisamente o da sociologia jurídica Em 1983 Norberto Bobbio produziu um ensaio para apresentar em uma conferência onde lançou a ideia da serenidade como virtude essencial da democracia no Brasil esse ensaio fez parte do livro Elogio da serenidade e outros escritos morais publicado pela editora da Unesp em 2002 Serenidade que para Bobbio equivale à noção de moderação proposta por Aristóteles em Ética a Nicômaco é a virtude típica dos homens comuns muitas vezes oprimidos mas que não buscam o conflito para sobreviver Norberto Bobbio e sua influência no direito Em um de seus livros Teoria da norma jurídica Norberto Bobbio apresenta suas ideias sobre a eficácia da sanção Para ele tão importante quanto a função de punição ou de proibição é a função de recompensa da sanção e lamenta que as pessoas que detêm o poder sejam autoridades do Estado ou das empresas deem tão pouca importância ao aspecto positivo de encorajamento da sanção pelas atitudes corretas de um indivíduo Um de seus livros mais importantes para a filosofia do direito foi O positivismo jurídico de 1961 em que influenciado por H L A Hart fazia a distinção entre positivismo jurídico e positivismo filosófico Nesse livro comentou o que considerava uma racionalidade abstrata dentro da Teoria Geral do Direito de Hans Kelsen e propôs outra abordagem racional que pudesse ser demonstrada pela análise linguística Muitos juristas seguiram suas ideias e assim foi constituída a Escola Analítica Italiana de Filosofia Jurídica Norberto Bobbio estudou também o direito internacional detendose sobre a questão de que o respeito aos direitos humanos e a atenção à justiça social são atitudes necessárias e essenciais para a obtenção da paz Analisou a guerra sob todos os prismas do conceito à doutrina e à justificação levando ao extremo as definições possíveis E concluiu pela defesa da paz positiva que é mais do que a simples ausência de guerra para o progresso da humanidade Obra de grande representatividade do pensamento desse importante jusfilósofo italiano A era dos direitos é formada por quatro partes Logo na introdução Bobbio trata de estabelecer a relação de interdependência entre paz direitos humanos e democracia sendo o processo de implementação desta em âmbito internacional o caminho obrigatório para a busca do ideal kantiano da paz perpétua Processo em cujo bojo salienta deverão os direitos humanos ser ampliados e reconhecidos em uma esfera acima de cada Estado Logo de início o pensador deixa claras três de suas teses 1 os direitos naturais são direitos históricos 2 tais direitos surgem no início da Era Moderna em que predomina a concepção individualista da sociedade 3 tornamse um dos principais indicadores do progresso histórico Na primeira parte da obra mencionada composta por quatro ensaios Bobbio procura desmistificar a origem jusnaturalista dos direitos humanos Estes como base de um sistema que garanta a convivência coletiva pacífica a democracia possuem em verdade diversas fundamentações sendo na modernidade ancorados no consenso firmado na Declaração Universal de 1948 consensus omnium gentium ou humani generis primeira vez na história em que um sistema de princípios fundamentais da conduta humana foi livre e expressamente aceito pela maioria dos homens que vivem na Terra Não haveria sentido assim buscar um fundamento absoluto para os direitos humanos à revelia da circunstância histórica de sua consagração e de sua proteção Direitos humanos Bobbio os chama de direitos do homem independentemente de sua fundamentalidade são sempre históricos surgem das lutas sociais entre os detentores do poder e os que a ele se encontram submetidos São do filósofo as consagradas palavras Nascidos de modo gradual não todos de uma vez e nem de uma vez por todas Em sua historicidade os direitos humanos passaram por diversas fases Desde sua concepção meramente filosófica passando por seu reconhecimento legislativo longo tempo se passou até sua universalização e sua positivação em âmbito internacional Nesse sentido a Declaração Universal representa apenas a consciência histórica da humanidade na segunda metade do século XX uma síntese do passado e uma inspiração para o futuro constituindo sólido vetor para a concretização de um sistema internacional que efetivamente consiga assegurar os direitos ali mencionados e os demais que venham a ser reconhecidos Já na segunda parte de A era dos direitos Bobbio limitase a analisar a importância da Revolução Francesa e as consequências que se lhe seguiram Foi segundo ele em verdade a primeira vez que o povo exercitou o direito de decidir seu próprio destino Não obstante a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 foi objeto de críticas formuladas por Marx e pela esquerda em geral que nela viam um documento excessivamente ligado a uma classe em particular a burguesia e também pelos reacionários e conservadores em geral que a acusavam de ser excessivamente abstrata Na terceira parte da obra o jusfilósofo trata de temas contemporâneos como a resistência à opressão a pena de morte e as razões da tolerância Demonstra como o problema da resistência mudou de contornos ao longo da história sendo antes de cunho eminentemente individual e nos dias atuais de caráter coletivo relacionado à concepção da sociedade que se quer e não mais à forma de Estado adotada Por fim a discussão sobre a resistência sobre a desobediência civil cingese na atualidade aos aspectos políticos ao passo que no início da Era Moderna a reflexão filosófica debruçavase sobre sua licitude No que toca à pena de morte Bobbio afirma que sua proibição é tema colocado apenas na modernidade Na Antiguidade a pena capital aparece como a rainha das penas aquela apta a satisfazer ao mesmo tempo as necessidades de vingança de justiça e de segurança do corpo coletivo Menciona aliás que Platão em as Leis dizia que se o delinquente for incurável a morte será para ele o menor dos males Com efeito Platão preconiza a pena de morte para uma série ampla de delitos que vai desde crimes contra os genitores a homicídios voluntários Há em verdade desde os pitagóricos uma noção de reciprocidade era como se a quem matasse a imposição da morte fosse natural Platão efetivamente fala em pena natural Essa noção perpassa a Idade Média e chega à Era Moderna praticamente intocada Mas por que deve a pena de morte ser proibida É com o Iluminismo que o tema passará a ser discutido em toda a sua profundidade Beccaria em Dos delitos e das penas será o primeiro a tratálo com seriedade apresentando argumentos de cunho racional Sua obra ganhará grande notoriedade devido à acolhida por Voltaire Não obstante a pena de morte continuou e ainda continua prevista na legislação de muitos países sendo até defendida no campo filosófico por Kant e Hegel partindo de uma concepção retributiva da pena Na verdade a discussão entre abolicionistas e entre defensores da pena de morte parte de diferentes concepções sobre a função da pena Em geral os primeiros centram seus argumentos na sua função preventiva ao passo que os últimos agarramse à sua função retributiva Bobbio todavia amplia a discussão ressaltando que há outras funções a serem consideradas a pena como expiação como emenda e como defesa social A segunda delas à evidência exclui cabalmente a pena de morte por inviável Não escapa ao filósofo que a força da intimidação da pena de morte sempre esteve no centro do debate Tal força passou a ser contestada com o Iluminismo e em tempos atuais aferida por pesquisas de opinião Em matéria de bem e de mal todavia adverte Bobbio o princípio da maioria não vale e além disso as pesquisas de opinião têm exígua força probatória eis que sujeitas às mudanças de humor das pessoas de grande variabilidade ante o contexto de tranquilidade social por elas vivenciado Representaria um grande limite entretanto opor qualquer óbice à pena de morte partindose do argumento utilitarista de sua ineficácia intimidatória pois tal implicaria admitir que se a pena capital tivesse de fato considerável efeito dissuasório haveria que ser admitida o que Bobbio não aceita Para Bobbio em suma a abolição da pena de morte encontra fundamento tão somente no mandamento de não matar O filósofo não vê outra razão para tal Todos os demais argumentos segundo ele valem pouco ou nada Por fim encerrando essa terceira parte do livro Bobbio trata das razões da tolerância religiosa Reconhece que não existe tolerância absoluta que é pura abstração Toda tolerância é histórica real concreta e nesse sentido sempre relativa Com efeito nenhuma forma de tolerância diz ele é tão ampla que compreenda todas as ideias possíveis tolerância é sempre tolerância em face de alguma coisa e exclusão de outra coisa Em que consiste então a tolerância O que está no núcleo da ideia Para Bobbio é o reconhecimento do igual direito de conviver e também o reconhecimento por quem se entenda portador da verdade do direito ao erro ao menos ao erro de boafé O problema nesse campo é como determinar o tratamento dispensado aos intolerantes O único critério razoável para o filósofo é que todos devem ser tolerados menos os intolerantes Critério que como ele bem reconhece não é de fácil realização na prática e que não pode ser aceito sem reservas A dificuldade da aplicação do critério está em que a intolerância comporta várias gradações e vários âmbitos de manifestação Já a aceitação sem reservas deve ser afastada porque tal seria algo eticamente pobre e talvez também politicamente inoportuno Em todo caso o contexto histórico sempre exerce considerável influência nesse campo Finalizando a quarta parte trata dos direitos humanos na contemporaneidade A proclamação dos direitos do homem aduz dividiu em dois o curso da história da humanidade no que toca à concepção da relação política Reviravolta também assinalada pela convergência das três grandes correntes de pensamento político moderno sem que contudo percam sua identidade o liberalismo o socialismo e o cristianismo social Ao longo da história a defesa dos três bens supremos a vida a liberdade e a segurança social norteou a construção dos direitos do homem como salvaguardas contra toda forma de poder o religioso o político e o econômico Na chamada pósmodernidade o enorme progresso tecnológico verificado conduziu a uma potencialização do domínio do homem sobre o homem Daí que o discurso dos direitos do homem tenha ganhado importância no século XX Os direitos da nova geração são sintomáticos nesse sentido O direito de viver em um ambiente não poluído o direito à privacidade e o direito à integridade do próprio patrimônio genético demonstram que a preservação de todo e qualquer ser humano encontrase ameaçada como nunca antes Bobbio entretanto reconhece que se a internacionalização da proteção do ser humano foi um fenômeno sem precedentes também pudemos observar no decorrer do século XX uma sistemática violação dos direitos do homem em quase todos os países do mundo Aqui mais uma vez com toda a força aparece a distinção entre os planos do ser e do deverser Afinal o desejo de potência dominou e continua a dominar o curso da história Com sua arguta inteligência aponta o filósofo que o vocábulo direito é empregado de diferentes formas e com variadas finalidades Assim é que em se tratando de direitos sociais ou de segunda geração o nome de direitos não passa de um título de nobreza Não obstante a linguagem dos direitos inequivocamente possui importante função prática consistente na atribuição às pessoas e aos movimentos sociais da possibilidade de virem a demandar para si a satisfação de suas carências materiais e morais Por outro lado e infelizmente a consagração de um direito não basta em si e serve não raro ao falacioso discurso que não distingue a previsão legal de sua efetiva implementação o texto dos tratados e convenções da situação de fato de ampla parcela da população mundial O PROBLEMA FUNDAMENTAL em relação aos direitos do homem hoje não é tanto o de justificálos mas o de protegêlos Tratase de um problema não filosófico mas político Norberto Bobbio CADA VEZ sabemos menos Norberto Bobbio Chaïm Perelman e a moderna retórica Como é possível raciocinar sobre um juízo de valor como a justiça A procura pela resposta a essa pergunta que incomoda os filósofos há muitos anos levou à constatação que pode ter sido a grande contribuição do filósofo contemporâneo Chaïm Perelman ao direito Para aplicar racionalidade a juízos de valor é preciso usar uma lógica não formal baseada somente no que é provável ou verossímil Concentrando seus estudos na área da argumentação o filósofo permitiu que fosse resgatado o valor filosófico da retórica aristotélica principalmente no discurso jurídico Mas essa nova retórica não trata só de persuadir ao contrário busca obter a adesão intelectual do ouvinte por meio do debate ou seja um método dialético mas apoiado na argumentação refinada Chaïm Perelman é considerado o fundador da retórica moderna Chaïm Perelman e suas circunstâncias Chaïm Perelman estudou com profundidade as técnicas da argumentação dando novo sentido à retórica aristotélica Dedicouse inicialmente ao estudo do positivismo lógico mas logo o renegaria para tornarse um póspositivista Discutiu principalmente a noção de justiça no seu primeiro livro Da justiça publicado em 1944 Mas sua grande obra é Teoria da argumentação uma nova retórica Chaïm Perelman nasceu na Polônia em 1912 Quando contava 13 anos sua família emigrou para Antuérpia na Bélgica Estudou na Universidade Livre de Bruxelas onde também defendeu duas teses de doutorado uma em Direito e outra em Filosofia Em 1938 assumiu a cadeira de filosofia tendo sido o mais jovem professor de toda a história daquela universidade permaneceria lecionando no mesmo lugar durante quarenta anos Em 1944 publicou seu primeiro estudo filosófico Da justiça Em 1958 publicou seu livro Teoria da argumentação um clássico na área Em 1962 tornouse professor visitante da Universidade do Estado da Pensilvânia nos Estados Unidos Mais tarde dirigiu o Centro Nacional para Pesquisas em Lógica da Universidade de Bruxelas Em 1983 recebeu do parlamento belga o título de barão Morreu em 1984 Chaïm Perelman e suas ideias Seu primeiro trabalho foi um estudo sobre a justiça datado de 1944 Nesse livro concluiu que como todo julgamento envolve juízos de valor e como o valor não tem relação direta com a lógica logo os fundamentos da justiça são arbitrários Mais tarde Chaïm Perelman percebeu que a mesma avaliação pode ser estendida para os processos de tomada de decisão Para ele sem ética e sem lógica não pode haver justiça Começa aí a sua dedicação ao tema da retórica como base da lógica dos juízos de valor Essas ideias seriam retomadas no livro que escreveu em parceria com a pesquisadora Lucie OlbrechtsTyteca e que foi publicado em 1958 Tratado da argumentação a nova retórica é talvez a obra mais importante de Chaïm Perelman Chaïm Perelman e sua influência no direito Tendo estudado com profundidade a justiça Chaïm Perelman pretendeu provar a impossibilidade de uma definição universal do que seja a justiça Para isso propôs seis noções de justiça cada uma delas embasada em uma corrente filosófica para estimular uma reflexão sobre a adequação de cada uma Todas as noções propostas têm os seus pontos favoráveis e seus pontos negativos Por isso Perelman sugere que o melhor caminho pode ser a adaptação ou até mesmo a mescla de noções diferentes de justiça para suportar determinada tomada de decisão Considerada a justiça como igualdade absoluta ou seja a cada qual a mesma coisa contrariase o pressuposto de que as pessoas são diferentes têm diferentes necessidades e estão submetidas a diferentes contextos portanto essa noção de justiça não é totalmente adequada Considerada a justiça como igualdade distributiva ou seja a cada qual segundo seus méritos como pensavam Aristóteles e Santo Tomás de Aquino ignoramse as limitações que algumas pessoas têm em relação ao conjunto da sociedade o que as torna incapacitadas de obter por si mesmas o sucesso que as outras pessoas conseguem Pelo mérito julgase apenas a intenção da ação o que não configura um julgamento moral Considerada a justiça como igualdade comutativa ou seja a cada qual segundo suas obras correse o risco de ignorar os contextos as circunstâncias e as oportunidades que não são as mesmas para todos os componentes de um grupo social Por esse critério julgase apenas o resultado das ações o que também não configura um julgamento moral Considerada a justiça como igualdade de caridade ou seja a cada qual segundo suas necessidades como pensava John Rawls ignoramse os méritos Considerada a justiça como igualdade aristocrática ou seja a cada qual segundo sua posição revertese a noção para um período histórico em que imperava o absolutismo E por fim considerada a justiça como igualdade formal ou seja a cada qual segundo o que a lei lhe atribui restringese a noção de justiça ao positivismo jurídico de Hans Kelsen que Chaïm Perelman censurava Não há portanto como racionalizar a justiça como um valor universal O julgador deve adaptar um ou mais conceitos à situação do momento para melhor distribuição da justiça APENAS PELO FATO de selecionar certos elementos e apresentálos para a plateia sua importância e pertinência à discussão estão implícitas Chaïm Perelman Amartya Sen a liberdade e o desenvolvimento Logo depois da Segunda Guerra a maior parte dos países defendia uma política de aceleração do crescimento sempre com alguma intervenção dos governos Analisando a conjuntura global Amartya Sen verificou que contemporaneamente o mundo enfrenta abundância de produção uma interação jamais vista entre os países avanços marcantes dos direitos humanos e aumento progressivo de governos democráticos com a queda de ditaduras em praticamente todos os continentes A despeito disso e talvez por essas mesmas razões o ambiente está sendo ameaçado em nome do chamado desenvolvimento E na esteira desse desenvolvimento ocorrem subempregos fome violências discriminações e violações da liberdade Concluiu então que esses desvios são manifestações da privação de liberdade Sua bandeira portanto como economista e como homem político é que o verdadeiro desenvolvimento só é passível de ser atingido quando existe liberdade Amartya Sen e suas circunstâncias Amartya Sen em seus trabalhos contrapôsse à ideia geral de que o desenvolvimento era alcançável por meio do aumento da renda per capita produto interno bruto ou avanço tecnológico Sua teoria de que a liberdade é que estimula o desenvolvimento valeulhe o Prêmio Nobel de Economia de 1998 Para ele o objetivo último do desenvolvimento é o bemestar O Índice de Desenvolvimento Humano IDH do Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento foi baseado principalmente em suas ideias Amartya Sen nasceu em 1933 em Santiniketan cidade da Índia onde Rabindranath Tagore prêmio Nobel de Literatura de 1913 ergueu a sua universidade livre hoje chamada VisvaBharati University Passou parte da vida na cidade de Dhaka em Bangladesh Amartya Sen é considerado bengali porque após a Partição de 1947 divisão territorial de caráter religioso que dividiu Bengala em duas ficando a Bengala Ocidental como um Estado da Índia com capital em Calcutá emigrou com a família para a Índia onde estudou antes de se doutorar em economia pelo Trinity College em Cambridge Reino Unido Sen recebeu em 1998 o Prêmio Nobel de Economia por seu trabalho sobre a economia do bem estar social Foi professor da Universidade Harvard Atualmente é reitor da Universidade de Cambridge Amartya Sen e suas ideias Pessoas sem liberdade cívica não têm oportunidade de desenvolver as suas potencialidades e construir assim a sua própria história afirma o vencedor do Prêmio Nobel de Economia 1998 Amartya Sen Porque sem liberdade o indivíduo está perdendo o seu valor intrínseco mais importante que é o valor da própria vida Com esse pensamento rejeitou a noção da chamada economia do desenvolvimento em que os valores são a renda e a riqueza A riqueza para ele é apenas utilitária ou seja um instrumento para alcançar o bemestar Nisso se aproxima de Aristóteles que no livro Ética a Nicômaco dizia mais ou menos a mesma coisa Pensa que a liberdade deve ser pensada em termos de eficácia O homem é livre para suprir as suas necessidades básicas Livre para ter emprego e viver bem acolhido sob um teto confortável Livre para selecionar a cultura em que quer estar inserido e as tradições que deseja seguir Livre enfim para se aposentar dignamente e sobreviver escapando inclusive da taxa geral de mortalidade causada pela inoperância dos sistemas de previdência e de assistência social dos governos Seu livro Desenvolvimento como liberdade é a estruturação de uma ideia radical desenvolvimento nada mais é do que o processo de expansão das liberdades efetivas de que goza um indivíduo e que não são obtidas apenas com o dinheiro como reza a teoria utilitarista mas com apoio e incentivo das políticas públicas Naturalmente esse processo é muito mais passível de acontecer em regimes democráticos porque a liberdade política pode fortalecer outras liberdades Nessa perspectiva aproximase de John Rawls quando este fala na prioridade da liberdade em sua teoria da justiça embora a abordagem de Rawls seja mais voltada para o homem enquanto ser político O Índice de Desenvolvimento Humano IDH da ONU foi baseado principalmente nas ideias de Sen Amartya Sen e sua influência no direito Quando fala em justiça Sen novamente se aproxima do moderno liberalismo de John Rawls ao mencionar que a falta de liberdade resulta em ausência de significância do indivíduo para si para a sociedade e para o mundo O indivíduo livre é capaz de formar valores fazer escolhas emanciparse e em decorrência evoluir O desenvolvimento para ele deve ser avaliado em termos das políticas públicas colocadas à disposição dos indivíduos como educação e saúde e dos direitos civis como a liberdade política para aferição do que chama de liberdades substantivas entre elas as capacidades de evitar a fome a mortalidade precoce o analfabetismo Também menciona aquelas que denomina de liberdades instrumentais categorizandoas em cinco tipos liberdades políticas econômicas sociais garantias de transparência e segurança protetora Assim como Rawls Sen contribuiu decisivamente para o debate a respeito da justiça distributiva Todavia Sen discorda de Rawls numa questão crucial a renda ou a riqueza por exemplo ou os bens primários não devem ser considerados fins mas sim meios para que se alcance o bemestar Até porque diz Sen não se pode comparar pessoas pelo que elas conseguiram amealhar bens primários mas pelo que elas evoluíram e se desenvolveram a partir do que amealharam capacitações Os dois filósofos chegaram a debater entre si em seus livros e em publicações como a revista Economics and Philosophy na primeira década do século XXI sobre essas discordâncias Sen chegou a dizer que Rawls estava imbuído do fetichismo da mercadoria numa alusão a uma expressão usada por Karl Marx para mostrar que a ênfase em mercadorias ou bens não era correta O princípio basilar do pensamento de Sen é de que ética e economia são complementares contrariando o pensamento vigente no final do século XX O DESENVOLVIMENTO É na verdade um tremendo compromisso com as possibilidades da liberdade Amartya Sen O QUE AS PESSOAS conseguem realizar é influenciado por oportunidades econômicas liberdades políticas poderes sociais e por condições habilitadoras como boa saúde educação básica e incentivo e aperfeiçoamento de iniciativas Amartya Sen LINHA DO TEMPO A FILOSOFIA DO DIREITO CONTEMPORÂNEA Ano 1804 Surge a Escola da Exegese para promover a defesa do recémpromulgado Código Civil francês Ano 1832 John Austin funda o positivismo jurídico investigando a natureza de conceitos jurídicos no livro chamado Província da jurisprudência determinada Ano 1865 Otto Liebmann inicia o neokantismo com a publicação da obra Kant e seus epígonos um ensaio crítico Ano 1868 Oskar von Büllow escreve o livro A teoria das exceções processuais e os pressupostos processuais e transforma o direito processual em ciência autônoma desvinculada do direito material Ano 1889 Max Weber publica seu primeiro livro Para a história das sociedades comerciais da Idade Média Ano 1899 Gény François cria a Escola Científica em oposição à Escola da Exegese com a publicação de Método de interpretação e fontes no direito positivo privado Ano 1900 Wilhelm Dilthey fundamenta a hermenêutica filosófica com a publicação de Origem da hermenêutica Ano 1902 Rudolf Stammler determina os pressupostos do direito no livro A teoria do direito justo Ano 1905 Hans Kelsen escreve a principal obra do positivismo jurídico Teoria pura do direito Ano 1914 Gustav Radbruch escreve Fundamentos de filosofia do direito Ano 1915 Surge o pósmodernismo nas artes em Zurique com o dadaísmo de Marcel Janco e Tristan Tzara Ano 1930 Ortega y Gasset publica Rebelião das massas Ano 1944 Chaïm Perelman publica Da justiça Ano 1950 H L A Hart lança os fundamentos principais do positivismo jurídico moderno no livro O conceito do direito Ano 1955 Norberto Bobbio escreve o livro Política e cultura Ano 1961 Jürgen Habermas publica sua obra mais famosa Entre a filosofia e a ciência o marxismo como crítica Ano 1966 Michel Foucault publica A palavra e as coisas opondose aos positivistas Ano 1967 Jacques Derrida lança três livros importantes para a filosofia do direito entre eles A força da lei e Desconstrução da possibilidade de justiça Também em 1967 Niklas Luhmann escreve A sociedade da sociedade livro que só publicaria trinta anos depois Ano 1971 John Rawls publica Teoria da justiça Ano 1979 JeanFrançois Lyotard formula o pósmodernismo no livro Condição pósmoderna Também em 1979 Richard Rorty publica Filosofia e o espelho da natureza Ano 1990 Norberto Bobbio publica A era dos direitos Ano 1997 Niklas Luhmann publica sua grande obra A sociedade da sociedade trinta anos depois de ter sido escrita Ano 1998 Amartya Sen publica Desenvolvimento como liberdade que lhe valeu o Prêmio Nobel de Economia No text found SÉTIMA PARTE FILOSOFIAdoDIREITO CONTEMPORÂNEAnoBRASIL Nos primórdios do Brasilcolônia um líder nacionalista já produzia obras de filosofia do direito conforme nos conta Paulo Nader49 Tomás Antônio Gonzaga ainda no século XVIII publicou Tratado de direito natural inspirado em Grócio e Pufendorf No século XIX Avelar Brotero famoso por ter sido o primeiro professor de Direito Natural da Faculdade de Direito de São Paulo nomeado pelo próprio imperador Pedro I escreveu em 1829 Princípios de direito natural João Theodoro Xavier também catedrático da Faculdade de Direito de São Paulo escreveu em 1876 Teoria transcendental do direito Tobias Barreto professor da Faculdade de Direito do Recife escreveu Sobre uma nova intuição do direito em 1881 Ainda no século XIX José Maria Corrêa de Sá e Benevides catedrático de Direito Natural Público e das Gentes da Academia de Direito de São Paulo escreveu Elementos de filosofia do direito privado em 1884 Sílvio Romero aluno de Tobias Barreto e sergipano como ele escreveu Ensaios de filosofia do direito em 1895 Já no século XX um nome se destaca entre tantos Clóvis Beviláqua considerado o principal jurista da chamada Escola do Recife embora nascido no Ceará Clóvis Beviláqua autor do Código Civil brasileiro Além de jurista e jusfilósofo também atuou nas letras com tal excelência que foi convocado a ser membro fundador da Academia Brasileira de Letras Foi inicialmente positivista tendo inclusive escrito em 1883 o livro A filosofia positiva no Brasil depois aderiu ao liberalismo Escreveu em 1899 o Anteprojeto do Código Civil Brasileiro com 40 anos de idade a convite de Epitácio Pessoa então ministro da justiça do presidente Campos Sales O trabalho foi realizado em seis meses entre março e outubro de 1900 mas levou quinze anos para ser transformado no Código Civil sancionado por outro presidente Venceslau Brás em 1916 ele vigorou até 2002 O Código foi elogiado à época por ser sucinto e claro Clóvis Beviláqua e suas circunstâncias Clóvis Beviláqua seguiu os conceitos do alemão Ihering com relação ao conceito do direito defendendo que a lei deve se sobrepor aos costumes embora admirasse o pensamento de Del Vecchio acerca de Moral e Direito Clóvis Beviláqua nasceu no interior do Ceará em 1859 O pai procurou darlhe educação de boa qualidade impossível de conseguir numa cidade pequena e pobre Assim enviouo primeiro para Sobral depois para Fortaleza e afinal para o Rio de Janeiro onde permaneceu por dois anos entre 1876 e 1878 Nesse período jovem ainda com 17 anos criou um jornal literário Laborum Literarium em sociedade com Paula Ney e Silva Jardim Em 1878 ingressou na Faculdade de Direito do Recife tendo sido aluno de Tobias Barreto Integrou a chamada Escola do Recife ao lado de intelectuais da época como Sílvio Romero e Capistrano de Abreu Em 1883 iniciou efetivamente carreira na magistratura assumindo a função de promotor público na cidade de Alcântara no Maranhão Em 1889 prestou concurso para professorassistente e em 1891 assumiu a cadeira de Legislação Comparada da Faculdade de Direito do Recife Foi deputado constituinte representando o Ceará Escreveu regularmente para diversos jornais e revistas do Recife e do Rio de janeiro especialmente sobre crítica literária Atuou brevemente como secretário no governo do Estado do Piauí Em 1906 foi nomeado consultor jurídico do Ministério das Relações Exteriores pelo Barão do Rio Branco Permaneceu no cargo até a aposentadoria em 1934 Morreu no Rio de Janeiro em 1944 Clóvis Beviláqua e suas ideias Estudou longamente a obra de Von Ihering na busca de solução para o problema do direito como fenômeno social e como conceito filosófico Considera o Direito sociologicamente como o organismo coletivo da liberdade humana passível de apreciação por meio de sua anatomia e de sua fisiologia na época imperavam as metáforas biológicas Dizia que não basta a pessoa ter ideias revolucionárias se a sociedade não estiver preparada para compreendêlas Uma de suas ideias recusada pela comissão revisora do Código Civil era equiparar a condição da mulher em relação a direitos e à capacidade jurídica no ordenamento jurídico brasileiro Clóvis Beviláqua e sua influência no direito O jusfilósofo renovou o direito civil brasileiro até aquele momento dominado pelas Ordenações Filipinas apesar de que em Portugal essas ordenações já tinham sido abolidas em 1867 Introduziu conceitos inovadores na época inspirados em Ihering e Savigny Inicialmente adepto do positivismo seguiu a evolução do seu tempo e apoiou o liberalismo embora acrescentando às suas ideias uma preocupação social foi quem obteve que o direito do trabalho constituísse matéria de lei especial e fez inserir no direito de família o instituto do reconhecimento dos filhos ilegítimos O INDIVÍDUO QUE EMPREENDE uma excursão pelos vastos domínios da ciência jurídica tem obrigação de premunirse com certas ideias fundamentais que serão os seus guias através dessas regiões tão trilhadas e apesar disso ainda tão desconhecidas Sem esse preparo prévio arriscase a mostrarse como um espírito lamentavelmente vacilante e desconjuntado que pode ser evolucionista em ciências naturais metafísico em direito e fetichista em religião Clóvis Beviláqua Farias de Brito Deus e a ordem moral Considerado por Miguel Reale como um dos maiores jusfilósofos brasileiros Raimundo Farias de Brito marcou sua obra com um pensamento voltado para a metafísica tradicional de caráter espiritualista Em suas obras iniciais questionava a filosofia do seu tempo criticando principalmente o materialismo e a teoria darwinista da evolução Seu trabalho apresentava profundo traço religioso sugerindo que Deus era o responsável pela ordem social o que incluía o conceito de moral Segundo Miguel Reale em seu livro Filosofia do Direito Farias de Brito foi o filósofo autêntico um verdadeiro cientista um pesquisador incansável que procurou sempre renovar as perguntas formuladas no sentido de alcançar respostas que sejam condições das demais Farias de Brito e suas circunstâncias Nasceu no interior do Ceará na cidade de São Benedito em 1862 mas deixou cedo a terra natal para estudar em Sobral onde havia mais recursos Também de lá foi obrigado a se mudar tangido pela seca e foi completar o ensino médio em Fortaleza no Liceu Cearense Muito jovem em 1884 contava 22 anos quando concluiu o curso de direito na Faculdade de Direito do Recife Foi um dos alunos mais respeitados por Tobias Barreto e conviveu com Silvio Romero e Clóvis Beviláqua Foi promotor por alguns anos e depois assumiu a função de secretário do governo do Estado do Ceará Entre 1902 e 1909 foi professor da Faculdade de Direito de Belém do Pará Já então autor de vários livros Finalidade do mundo em três volumes publicados em 1895 1899 e 1905 e A verdade como regra das ações em 1905 prestou concurso para a cátedra de Lógica do Colégio Pedro II no Rio de Janeiro e lecionou naquela instituição até o fim da vida Tinha tentado antes mas perdeu a vaga para Euclides da Cunha depois da morte deste acabou obtendo a cátedra O nome de Farias de Brito atualmente designa a cidade que antigamente se chamava Quixará no interior do Ceará Farias de Brito e suas ideias Suas obras tratam da missão do filósofo que para ele era buscar a verdade muitas vezes oculta e que em geral se apresenta ao homem como enigma Ele reconhecia que a verdade é frequentemente inalcançável mas a sua busca leva o homem a ver o mundo com mais clareza Para alcançar essa iluminação o homem deve fazer um exercício incessante e consciente de introspecção Filosofia para esse pensador era a ferramenta da consciência humana Naturalmente tendo sido profundamente religioso o seu pensamento denotava tendência ao naturalismo No entanto é tido por vários autores como um precursor do existencialismo entre eles Fred Gillette Sturm Aquiles Côrtes Guimarães e Williams Roosevelt Monjardim Isso porque Farias de Brito aborda temas ligados à existência humana como a vida a morte a moral as questões do espírito e do mundo interior entre outros Com isso se posicionava contra o pensamento positivista reinante na época especialmente entre os autores da chamada Escola do Recife Farias de Brito e sua influência no direito A principal contribuição de Farias de Brito para o direito está no campo da ética Seu último livro O mundo interior publicado em 1914 prega que a filosofia aliada à psicologia e à arte é objeto de ciência porque é intuitiva e concreta a psicologia porque mostra o consciente e a arte porque manifesta o inconsciente Para ele direito e moral são os dois pilares que sustentam o mecanismo social e cabe à filosofia organizar o direito que por sua vez organiza o mundo social oferecendo os princípios que devem regular a conduta do homem em sociedade Para Farias de Brito a razão deve superar as paixões portanto a moral deve ser prática e o homem deve se afastar da concepção materialista do mundo Se o homem busca a verdade e amplia sua consciência a sua norma de conduta será imposta pela sua própria consciência e assim o mundo moral se resumiria a duas leis a primeira é fazer o bem e a segunda é não fazer o mal Pontes de Miranda um pensador social Esse jusfilósofo foi um liberal e um democrata tendo produzido suas obras com o viés dos direitos sociais Produziu vasta obra não apenas no direito mas também como poeta romancista e crítico de literatura Seus trabalhos continuam modernos ainda hoje Pontes de Miranda e suas circunstâncias Pontes de Miranda foi o maior tratadista brasileiro tendo produzido um total de oito Era neokantiano Nos seus trabalhos de filosofia do direito tinha traços neopositivistas Criticava as posições de Wittgenstein e de Bertrand Russell Em toda a sua obra especialmente aquelas constitucionalistas valorizou os direitos sociais Alagoano de Maceió 1892 Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda era filho de produtores de açúcar Gostava de matemática mas acabou optando pela advocacia Completou a Faculdade de Direito do Recife com apenas 19 anos Aos 20 já publicava um ensaio filosófico A moral do futuro Em 1924 ganhou o prêmio Pedro Lessa da Academia Brasileira de Letras com o livro Introdução à sociologia geral Nesse mesmo ano ingressou na magistratura como juiz de órfãos Chegou a desembargador do Tribunal de Apelação do Distrito Federal Foi chamado a representar o Brasil em duas conferências internacionais Santiago do Chile em 1923 e Haia na Holanda em 1932 Chefiou a delegação brasileira à 26ª Sessão da Conferência Internacional do Trabalho em Nova York 1941 Depois disso foi nomeado embaixador do Brasil na Colômbia Em 1943 abandonou a carreira diplomática e dedicouse a escrever pareceres e literatura Escreveu o Tratado do direito privado imensa obra em 60 volumes entre 1955 e 1970 É considerada a maior obra escrita por um homem só em todo o mundo Morreu em 1979 Pouco antes tinha sido eleito para a Academia Brasileira de Letras Em 1923 Clóvis Beviláqua dirigiulhe um discurso durante um jantar que o homenageava Segue um pequeno trecho Mas onde está o direito revelandose límpido às consciências como um sol que se ergue no horizonte e envolve o mundo no dilúvio luminoso de sua irradiação O vosso livro oferece instrumentos para descobrilo nas diferentes situações da vida Embora escrito em português há de ter a repercussão que a oportunidade lhe promete porque os seus ensinamentos não interessam apenas à curiosidade mental são reclamados por uma necessidade de situação moral dos homens dos nossos dias Desapareceram as possibilidades de erro em matérias de construção legislativa de decisões judiciárias de interpretação de doutrina Seria ingenuidade supôlo Por mais perfeito que seja o instrumento devemos contar com a inabilidade do operador Por mais larga que se estenda a estrada que conduz à verdade as paixões os preconceitos a falibilidade humana para tudo dizer numa palavra derramarão sobre ela densos nevoeiros que desviarão os transeuntes multiplicaramse porém as possibilidades de acertar e diminuíramse proporcionalmente as causas de erros É quanto podem desejar os que dentro das contingências humanas procuram a verdade e o bemestar dos indivíduos e das agremiações É portanto da mais alta significação o vosso livro para o avanço das ideias jurídicas no mundo o que importa dizer para o melhoramento da organização social Isto explica todo o nosso júbilo de juristas e de brasileiros e esta efusão sincera em que ele se traduz50 Pontes de Miranda e suas ideias Pontes de Miranda dizia que a sociedade é como um organismo biológico relativo no tempo e no espaço e que os indivíduos são regidos por processos sociais de adaptação Adepto do pacifismo achava que o ideal político é o socialismo mas com a presença do Estado para garantir a ordem por meio da regra jurídica Desde que o governo não fosse despótico e assegurasse a democracia e as liberdades individuais Graças ao seu interesse constante pela matemática manteve diálogo com Albert Einstein chegando inclusive a propor alterações na teoria da relatividade Pontes de Miranda e sua influência no direito Foi o primeiro jurista a desenhar uma teoria dos direitos fundamentais em nosso país tendo trazido as melhores doutrinas e práticas processuais adotadas na Europa contribuindo para modernizar o direito brasileiro do século XX e buscando eliminar autoritarismos presentes em nossa legislação Foi um dos pioneiros ao declarar que os governos devem estar comprometidos com a implementação e a consolidação dos direitos humanos do contrário não se promoveria a justiça social e em consequência o desenvolvimento Sistematizou os direitos fundamentais em uma classificação que assim se constitui ordem jurídica organizabilidade prestação e garantias Pregava que o jurista deveria fazer uma interpretação positivista dos fatos sociais de maneira neutra baseada no cumprimento das leis CirneLima e a sistematização da Filosofia Carlos Roberto Velho CirneLima é gaúcho de Porto Alegre Nasceu em 1931 Foi diretor da Faculdde de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Antes disso graças a 20 anos de vida eclesiástica no seminário jesuíta lecionou grego e latim Doutorouse na Áustria e estudou também na Alemanha CirneLima e suas circunstâncias No início da década de 1960 lecionou na Universidade de Viena Nesse período escreveu uma de suas principais obras Analogia e dialética Voltou para o Brasil em 1968 para seguir o curso de livre docência na Faculdade de Filosofia da UFRGS No entanto em 1969 por efeito do Ato Institucional n 5 do regime militar foilhe imposta a aposentadoria compulsória sendolhe vetado o direito de lecionar Dedicouse então a iniciativas empresariais voltando a lecionar apenas dez anos depois com a anistia política Aposentouse na UFRGS em 1991 e tornouse professor titular na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS onde permaneceu até 1999 Em 2000 transferiuse para a Unisinos onde recebeu em 2008 o título de professor emérito Alguns de seus livros Realismo e dialética a analogia como dialética do realismo Dialética para principiantes Nós e o absoluto e Depois de Hegel uma reconstrução crítica do sistema neoplatônico CirneLima e suas ideias Numa de suas obras mais importantes apresentou suas teorias a respeito da dialética e do sistema filosófico Declarava que sua intenção foi tentar reconstruir um sistema neoplatônico de Filosofia que evitasse os erros cometidos por Hegel que considerava o último dos grandes autores sistemáticos Um desses erros segundo ele foi o necessitarismo que perpassa todo o sistema esmagando o indivíduo Ou seja Hegel considerava que as liberdades individuais do cidadão gradualmente vão desaparecendo dentro do Estado CirneLima prefere uma leitura mais libertária de que as liberdades estão sujeitas a contingências De certo modo CirneLima prega que os conceitos de tese antítese e síntese deve considerar a necessidade e a contingência em proporções iguais Foi uma nova forma de entender Hegel e por consequência de entender a teoria hegeliana Esse entendimento leva à existência de um Estado que garanta os direitos fundamentais do indivíduo ou seja cidadãos livres impedem o desenvolvimento de um Estado autoritário Miguel Reale e a tridimensionalidade do direito Miguel Reale é o pensador brasileiro de maior importância para a filosofia do direito Formulou a Teoria Tridimensional do Direito em que fatos valores e normas são elementos que atuam com igual intensidade Organizou e presidiu sete congressos brasileiros de filosofia É autor de um curso de filosofia do direito publicado em 1953 e traduzido em vários idiomas Pertenceu à Academia Brasileira de Letras Foi o supervisor da comissão que elaborou o Código Civil de 2002 Para o filósofo brasileiro que completaria 100 anos de nascimento em 2010 fatos valores e normas se implicam e se exigem reciprocamente Essa é a essência da sua Teoria Tridimensional do Direito Segundo Reale um fenômeno jurídico decorre sempre de um fato social econômico político geográfico etc e portanto é influenciado por circunstâncias e valores da cultura da sociedade em que ocorre Naturalmente esse fenômeno jurídico pode ser encarado de múltiplas maneiras e não somente com base na história E para completar o fenômeno está subordinado a uma norma jurídica Para Miguel Reale esses três aspectos norma fato e valor não existem dissociados um do outro estão absolutamente integrados numa condição dinâmica no momento da aplicação da lei Miguel Reale desenvolveu uma forma bem brasileira de encarar a filosofia do direito um método que privilegiava no julgador a humildade e a pesquisa ao mesmo tempo que buscava desvincular a filosofia de suas raízes religiosas Ele criticava o método estrangeiro vigente na época o formalismo do positivismo jurídico que chamava de filosofia em mangas de camisa Miguel Reale e suas circunstâncias Miguel Reale nasceu em São Bento do Sapucaí Estado de São Paulo em 1910 Estudou Direito em São Paulo e já à época do bacharelado 1934 publicava seu primeiro livro O Estado moderno um ensaio sobre a realidade política da época Começou carreira profissional como advogado da Light Serviços de Eletricidade ainda em 1938 Chegou ao doutorado em Direito em 1941 com uma tese sobre Fundamentos do direito em que apresentava sua Teoria Tridimensional do Direito No mesmo ano assumiu por concurso a cátedra de filosofia do direito na Faculdade de Direito do Largo São Francisco onde em 1980 receberia o título de professor emérito Recebeu quinze títulos de doutor e professor honoris causa em faculdades do Brasil e do exterior Foi o mais importante teórico da Ação Integralista Brasileira e chegou a ser preso pelo regime de Getúlio Vargas em 1941 Em 1947 foi secretário da justiça do Estado de São Paulo Na sua gestão criou a primeira assessoria técnicolegislativa do Brasil Em 1949 assumiu o posto de reitor da Universidade de São Paulo por dois anos cargo que desempenharia novamente entre 1969 e 1973 No mesmo ano fundou o Instituto Brasileiro de Filosofia do qual foi o primeiro presidente De 1974 a 1989 foi membro do Conselho Federal de Cultura Também foi presidente da Fundação Moinho Santista Foi o supervisor da comissão que elaborou o Código Civil Brasileiro de 2002 Como poeta e memorialista foi o quarto ocupante da cadeira n 14 da Academia Brasileira de Letras sucedendo a Fernando de Azevedo tomando posse em 21 de maio de 1975 Também foi membro da Academia Paulista de Letras desde 1977 Publicou mais de 60 livros Morreu em 2006 Miguel Reale e suas ideias O grande jusfilósofo pátrio aponta que o direito nos primórdios foi vivido como um fato enlaçado com fenômenos cósmicos sendo necessários séculos para depuração das normas propriamente jurídicas e sua diferenciação em relação a outras normas de conduta como as morais e as religiosas Foi a capacidade de abstração do ser humano que o conduziu a experimentar o direito para além do mero fato reconduzindoo ao sentimento do justo numa miscelânea de valores nem sempre compatíveis entre si Esse processo entretanto além de não ter sido linear também não se deu por meio de uma autoconsciência reveladora do espírito mas antes pela projeção do homem para fora de si com a alienação da consciência humana em relação a potestades superiores tidas como origem daqueles valores que em verdade brotavam da própria vida humana Como consequência diznos Reale o homem descobriu uma ordem para além da ordem social marcada esta pela histórica força dos costumes Essa nova ordem a ordem dos valores ou axiológica foi tida nos primórdios como uma dádiva da divindade e não como fruto da experiência concreta histórica do ser humano Assim é que a Justiça nos povos antigos aparece como uma deusa Já na Antiguidade o direito é tido como um deverser como um comando uma direção a ser seguida O mito e a experiência humana todavia entrelaçamse e se confundem a ponto de o direito ter sido também desde o início sentido como justiça como um valor e não apenas como um fato conforme apontamos anteriormente Um valor vejase atrelado à noção de divindade de modo que seguir o direito significava em verdade servir a Deus Por essa razão o direito primitivo está essencialmente ligado a rituais e ao formalismo religioso de sorte que violar o rito significava violar também o justo o correto A passagem dos séculos afastou o direito do caráter ritualístico que marcou seu surgimento sem contudo libertálo por completo dessa característica Como fato como acontecimento social e histórico o direito somente seria objeto de uma ciência autônoma no século XIX já na Era Moderna Veio a lume assim a concepção do direito como norma ou como lex Miguel Reale e sua influência no direito Miguel Reale aduz que o estudo das concreções da Justiça no tempo nas experiências humanas já era praticado na antiga Roma Era a chamada Jurisprudência e demonstrava que os romanos já tinham a percepção de que o ideal do justo apenas adquiria sentido no fato concretizado sob sua luz Há pois nos jurisconsultos clássicos uma integração em unidade do fato e do valor à dimensão representada pela norma Com efeito os romanos diferentemente dos gregos que preferiram filosofar sobre a justiça debruçaramse sobre a experiência concreta do justo O direito aparece então como uma ordem normativa da convivência humana Com isso Miguel Reale demonstra como historicamente sua teoria da tridimensionalidade do direito encontra arrimo nas diferentes concepções surgidas sendo afinal a coroação de todas elas Para o filósofo toda experiência jurídica conjuga sempre três elementos fato valor e norma Em outras palavras isso significa admitir que o vocábulo direito possa ser tido em três acepções distintas embora ligadas i direito como valor do justo ii direito como norma ordenadora da conduta iii direito como fato social e histórico A tripartição não é ensina o filósofo rígida e hermética mas sim indica apenas um predomínio ou prevalência de sentido A estrutura do direito é em suma tridimensional Vários teóricos o reconheceram e de diversas formas É então tido como o elemento normativo que ao disciplinar comportamentos humanos pressupõe uma dada situação de fato a qual por sua vez relacionase a determinados valores O modo como se considera a conexão entre as três dimensões fato valor e norma é que diferencia as teorias nesse campo Miguel Reale aponta que as primeiras teorias o fizeram de modo eminentemente abstrato compondo o chamado tridimensionalismo abstrato ou genérico para o qual a conexão entre as dimensões é considerada sob uma visão final e compreensiva com pretensão de integralidade ou dito de outro modo para um tal tridimensionalismo uma visão integral do direito só é obtida mediante a observação dos três elementos em seu conjunto O desenvolvimento dessa concepção conduziu ao que Reale denomina de tridimensionalismo específico uma verdadeira superação das análises em separado do fato do valor e da norma como se fossem elementos de uma realidade decomponível Pelo contrário o tridimensionalismo específico preconiza a inadmissibilidade lógica de se perquirir o direito sem a consideração concomitante daqueles três elementos Os principais teóricos nesse campo foram Wilhelm Sauer e Jerome Hall além de Recaséns Siches Em verdade a diferença entre o tridimensionalismo genérico e o específico está em que o primeiro procura combinar os três pontos de vista unilaterais fundamentados naqueles três elementos constitutivos fato valor e norma que dão origem respectivamente ao sociologismo jurídico ao moralismo jurídico e ao normativismo abstrato ao passo que o último não empreende apenas uma harmonização de resultados de ciências distintas mas se preocupa também com a demonstração de como elas se implicam e se estruturam numa conexão necessária Essa tridimensionalidade específica pode ser sempre de acordo com a lição de Miguel Reale estática dinâmica ou de integração O ilustre filósofo opta por um tridimensionalismo dinâmico que entenda a unidade da experiência jurídica Para ele a teoria tridimensional só se aperfeiçoa ao chegar à afirmação de forma precisa da interdependência dos elementos que fazem do direito uma estrutura social necessariamente axiológico normativa A experiência jurídica há que ser tida como processo histórico Para que a correlação entre fato valor e norma se opere de maneira unitária e concreta dois são os pressupostos i reconhecer que o conceito de valor desempenha o tríplice papel de elemento constitutivo gnoseológico e deontológico da experiência ética ii reconhecer a implicação entre o valor e a história isto é a projeção das exigências ideais na circunstancialidade históricosocial como valor deverser e fim Apenas a partir dessas condições é possível aferir a natureza dialética da unidade do direito Com efeito toda ação humana é orientada por um valor ou pela evitação de um desvalor no sentido de implementálo de vêlo cristalizado aqui nos referimos ao aspecto constitutivo deste Mas o valor também desempenha um papel deontológico ao consubstanciar a noção de dever à imposição de agir de acordo com ele como forma de legitimação do ato Por fim uma experiência ôntica e deontologicamente axiológica somente por ser conhecida por meio de juízos de valor tratase do papel gnoseológico do valor Sustenta Reale que toda ação humana dirigese a um fim O mesmo se passa com o fenômeno jurídico E a finalidade não é nada além de um valor posto e reconhecido como motivo da conduta regulada pelo fenômeno jurídico Uma vez posto o valor constitui aquilo que deve ser ou seja tornase parâmetro de legitimidade para aferição da conduta tomada O jurista deve elevarse ao plano de uma compreensão racional dos valores Não basta para ele a mera intuição É dizer a conversão de um valor em um fim é fruto de atividade eminentemente racional eis que o direito é estrutura formal voltada à consagração da segurança nas relações sociais Reale renega a concepção idealista de valores O valor como deverser não é indiferente ao plano da existência antes é condicionante da experiência histórica e na história se revela sendo que esta apenas consubstancia algumas de suas virtualidades estimativas O valor se realiza no homem que não é mero mediador entre o ideal e a realidade Diz Reale Só ele é enquanto deve ser e deve ser por ser o que é Assim conclui o filósofo que todo fim constitui a determinação do deverser de um valor no plano da práxis Reale ressalva entretanto que o valor não se reduz a um deverser Compreende potencialmente em verdade uma diversidade deles Para ele valor deverser e fim são momentos que se desenrolam na unidade de um processo que é a experiência total do homem Tratase de processo marcado por coerências e contradições por pausas e acelerações por avanços e recuos sempre na busca da adequação entre realidade e valor O direito é um dos fatores primordiais desse processo de integração do ser do homem no seu dever ser Reale bem ressalta que na escolha dos fins há interferência da vontade Daí o Poder estar inserido no processo da normatividade jurídica De fato a escolha do deverser a ser normatizado é sempre um processo de exercício do Poder que almeja a certos fins baseado em circunstâncias de fato Nesse ponto é importante enfatizar que o fato na tridimensionalidade da teoria de Reale é em verdade um conjunto de circunstâncias nas quais o homem se encontra imerso em sua vida cotidiana motivo pelo qual seu estudo é sempre dotado de considerável complexidade O mesmo se diga a respeito do estudo dos valores que segundo Reale constituem na vivência humana uma série de motivos ideológicos a condicionar a visão do legislador cuja decisão converte uma das possíveis proposições normativas em norma jurídica Em se tratando da nomogênese jurídica Reale em síntese recorre à imagem de um raio luminoso as exigências decorrentes dos valores que ao incidir sob um prisma o domínio dos fatos sociais econômicos técnicos etc se refrata em um leque de normas possíveis das quais o Poder seleciona a que constituirá norma jurídica A criação de normas jurídicas portanto de acordo com a teoria tridimensional de Reale é apenas um momento da tensão dialética entre fatos e valores constituindo uma solução temporária apontada pela interferência decisória do Poder em dado momento da experiência social Esse Poder a que o jusfilósofo faz referência pode ser exercido pelo próprio poder estatal expresso como também pelo poder social difuso em uma comunidade faz aqui referência ao direito costumeiro que não passa da consagração de reiterados atos anônimos de decidir ou ainda pode advir do plano privado da chamada autonomia da vontade modelos negociais O jusfilósofo como mencionado também se preocupa com a relação do Poder com os elementos de sua teoria Partindo de uma concepção que leve em conta a conexão entre ele e a experiência axiológica Reale procura uma compreensão realista do direito a qual necessariamente deve abranger a correlação essencial entre o nexo normativo e o Poder Tratase de uma correlação essencial não de um determinismo simplista isto é o direito não é fruto de uma mera decisão do Poder Eis o equívoco do decisionismo considerar o fator volitivo na formação do direito isoladamente como se não estivesse inserido em um conjunto de circunstâncias sociais e uma variedade de motivos axiológicos Uma análise limitada pois Nesse sentido Reale critica a concepção da juridicidade formulada por Kelsen para quem no cerne do fenômeno jurídico estaria o Poder Para Reale a complexidade dessa relação é um tanto maior sustenta ele que o fato do Poder não interessa ao mundo jurídico senão e enquanto se ordena normativamente Em outras palavras antes de o direito constituir mero modo de exercício do Poder é conformador de sua existência na sociedade de modo que quanto mais o Poder concorre para a positivação do direito mais é limitado pelo direito declarado Daí aquela correlação essencial mencionada anteriormente Reale em suma não ignora que Direito e Poder são termos inseparáveis Contudo refuta a ideia de que um se reduz ao outro No centro de suas considerações podese afirmar que se encontra a noção de contingência a integração normativa não esgota todos os motivos axiológicos nem tampouco a totalidade das exigências fáticas entre as quais estão aquelas oriundas das imposições do Poder Poder que por ser exercido no entrelace de circunstâncias fáticas de plúrimos valores muitas vezes contraditórios não se ergue como uma quarta dimensão no processo de integração normativa mesmo porque é impossível sustentar uma abstração da correlação axiológiconormativa existente nesse campo Em suma para Reale na teoria tridimensional o Poder só pode ser compreendido como momento da tensão fáticoaxiológica na concreção do processo nomogenético O ELEMENTO AXIOLÓGICO é a essência da compreensão do mundo da cultura No fundo cultura é compreensão compreensão é valoração Compreender em última análise é valorar é apreciar as coisas sob o prisma do valor Miguel Reale Tercio Sampaio Ferraz Junior e a teoria da comunicação O fenômeno jurídico é marcado pela relação entre poder e liberdade A consagração de direitos do ponto de vista da liberdade implica limitação do poder não obstante ao mesmo tempo o exercício de direitos possa ser visto como um ato de poder Daí ser possível concluir que o fenômeno jurídico implica a noção de poder regulamentado o poder jurídico e de liberdade responsável Tercio vê na relação direito poder e liberdade um equilíbrio instável o que faz ressaltar as noções de abuso e de legitimidade relacionadas intimamente ao tema da justiça tida como razão de existir do direito ao menos na tradição ocidental Tercio Sampaio Ferraz Junior e suas circunstâncias Justiça para Tercio Sampaio Ferraz Junior como parâmetro de legitimidade do direito seria uma razão holística e unificadora Ocorre todavia que a própria relação entre razão e justiça é controversa Sabese também aponta Tercio existir um sentimento de justiça de onde se conclui que também nesse campo há certa instabilidade A própria concepção de equidade baseada numa igualdade abstrata genérica não ligada a regras prévias demonstra essa instabilidade Tercio Sampaio Ferraz Junior é jurista Nasceu em 1941 Graduouse pela Universidade de São Paulo USP em 1964 simultaneamente em Filosofia Letras e Ciências Humanas e em Ciências Jurídicas e Sociais Obteve doutorado em Filosofia em 1968 pela Johannes Gutemberg Universität em Mainz Alemanha e em 1970 o de Direito pela USP tendo como orientador Miguel Reale Em 1974 fez pósdoutorado em Filosofia do Direito É professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP e da PUCSP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Atua como consultor da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CAPES É professor titular do Departamento de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da USP Largo de São Francisco como sucessor de Goffredo da Silva Telles Jr Publicou 17 livros entre eles Estudos de filosofia do direito 2002 e Introdução ao estudo de direito técnica decisão e dominação 1988 Tercio Sampaio Ferraz Junior e suas ideias Ao tratar da fenomenologia do poder ressalta Ferraz Junior que o mais perfeito poder é aquele que não é percebido eis que perfaz na unidade não a supressão da diversidade mas a impressão de que esta não é alterada O fenômeno do poder aduz o jusfilósofo é irredutível o que não significa que definir seu núcleo essencial constitua tarefa fácil Em diversos campos falase em poder da política à economia da ciência ao amor o que revela a dificuldade da empreitada Pelo uso linguístico ter perder dar delegar poder ele poderia ser tido como uma coisa uma res uma substância ou mesmo uma relação Como definirlhe então a natureza Na dogmática jurídica o poder não é tido como elemento básico É considerado como fato extrajurídico estudado superficialmente nas teorias gerais do Estado O vocábulo abrange em geral três ideias 1 poder como algo substância 2 poder como faculdade humana de produzir obediência 3 poder como instrumento de exercício de império e de soberania Tercio Sampaio Ferraz Junior e sua influência no direito Ferraz Junior trata das várias teorias sobre o poder e sobre a soberania Refere também o poder como meio de comunicação ponto no qual ressalta que o poder não se reduz ao direito não obstante as noções jurídicas tentem reduzilo a tal Poder para o jusfilósofo é uma relação simbólica que se manifesta de diferentes formas difícil de ser captada em um todo homogêneo Tanto assim que vejase direito é poder e ao mesmo tempo se contrapõe ao poder limitandoo a todo o momento Como então definir a relação entre ambos Para Ferraz Junior uma possibilidade seria percebêlos como meios simbólicos de comunicação O axioma fundamental aqui é o homem é um ser em comunicação Dito de outro modo a situação humana é uma situação em comunicação ou seja não existe a não comunicação eis que não comunicar significa comunicar o não comunicar Tercio contudo não adota a noção de ação comunicativa proposta por exemplo por Habermas Preconiza em seu lugar uma posição mais radical que não reduz a comunicação a um ato entre ego e alter mas antes a concebe como uma complexa estrutura de comportamento que os envolve de modo que segundo ele é a comunicação que gera a possibilidade de ação comunicativa e não o contrário De acordo com essa concepção de Tercio comunicação não é uma relação entre indivíduos essa relação é que somente se faz possível por meio da comunicação Por óbvio diante desse panorama também a concepção de sociedade resta alterada Tercio adota a formulada por Niklas Luhmann que não vê a sociedade como mero conjunto de indivíduos mas sim como uma situação comunicacional como comunicação não conjunto de atos de comunicação nos termos expostos acima A sociedade para Luhmann constitui uma estrutura comunicacional que permite aos indivíduos estar em contínuo contato uns com os outros Tercio bem aponta que tal concepção inverte a tradicional noção de sociedade esta já não mais é tida como reunião ou agrupamento de indivíduos é ao contrário a própria sociedade que propicia referido agrupamento Nessa perspectiva o poder é tido como um meio de comunicação generalizado simbolicamente Sempre na esteira de Luhmann Tercio parte do pressuposto de que os sistemas sociais se formam via comunicação sendo que esta em sentido amplo equivale a comportamento na acepção de troca de mensagens Aduz Ferraz Junior que a troca de mensagens o comportamento é o elemento básico da sociedade Constitui um dado irrecusável ou seja tratase de um verdadeiro postulado Para ele a comunicação humana ocorre em dois níveis o nível do cometimento e o nível do relato O cometimento é em geral transmitido de forma não verbal pelo tom da voz pela expressão facial pela postura do emissor a forma de se vestir etc e corresponde à mensagem que emana de nós É no dizer de Tercio a mensagem sobre a relação de subordinação de coordenação O relato corresponde ao conteúdo transmitido pela mensagem Assim exemplifica o filósofo ao dizermos Sentese o relato é o ato de sentarse enquanto o cometimento variará se tal mensagem for transmitida por um professor a um aluno ou entre alunos ou por um aluno a um professor Na troca de mensagens há sempre uma expectativa mútua de comportamento expectativa que por sua vez também pode constituir objeto de expectativas prévias Criamse assim situações complexas nas quais expectativas se confirmam ou se desiludem em que os homens apresentam suas verdadeiras intenções ou comunicam conteúdos com segundas intenções de onde se pode verificar um conjunto instável de relacionamentos de relações de expectativa Situações comunicativas são pois caracterizadas pela complexidade entendida esta no sentido empregado por Luhmann como número de possibilidades de ação maior que o das possibilidades atualizáveis Com efeito o número de possibilidades encetado em uma situação comunicacional é sempre maior do que as ações que podem vir a ter lugar Não obstante determinada ação há sempre que ser escolhida ainda que em negação à própria comunicação o que como vimos também constitui um agir comunicativo Assim a seletividade é uma segunda característica das situações comunicativas Da complexidade e da seletividade da comunicação resulta que a interação humana é sempre contingente a expectativa sempre pode ou não se confirmar Daí a contingência ser a terceira característica da situação comunicativa Precisamente em decorrência da contingência inerente a toda interação humana os sistemas sociais cuidam em sua evolução de combatêla ou de reduzila a níveis aceitáveis visando a uma relativa estabilidade Os mecanismos empregados para tal mister de acordo com Ferraz Junior são compostos de uma estrutura conjunto de regras e de um repertório conjunto de símbolos e constituem um código ou meio codificado de comunicação cuja finalidade então é reduzir a carga de complexidade e de contingência inerente à seletividade de cada indivíduo Códigos portanto generalizados simbolicamente ordenam as situações sociais com dupla seletividade Tercio em suma no esteio de sua teoria comunicacional vê o poder como medium para se limitar a dupla contingência Sua performance transmissiva portanto pressupõe liberdade de ambos os lados da relação no sentido de várias alternativas de escolha Trata nessa acepção não do poder de coação que em essência limita a possibilidade de escolha e assim não é comunicação mas exercício da força Nesse ponto contrapõese a Kelsen para quem o direito implica o monopólio da coação Aduz Ferraz Junior que tal monopólio somente se faz possível em sistemas sociais muitíssimo simples nos mais complexos o monopólio se dá quanto à decisão sobre o emprego da coação Reconhece como Foucault que na sociedade moderna o poder tende a se ampliar mas perde progressivamente o sentido de dominação para ganhar o de regulação colocandose antes do exercício da vontade individual Em outras palavras o poder como medium não se liga à produção de determinados efeitos poder como coação mas à transmissão de performances seletivas de ação Visa a regular a contingência não a suprimila Faz funcionar as relações de submissão e obediência ao tornar dinâmicas as consequências de determinadas condutas Como se vê o poder depende da contingência das seletividades sociais motivo pelo qual adquire estrutura própria diferenciada da de outros meios como a moral o direito a religião apenas com o aumento da complexidade social Não é força mas controle O poder para Ferraz Junior é um código que regula as ações entre pessoas O jusfilósofo formula acepção própria para ação em sua teoria tendoa como a unidade entre movimento e sentido de orientação ponto que não será aprofundado aqui Conclui em suma que o poder é constituído sobre o controle das exceções o que pode ser visto mais claramente na relação entre poder e coação Com efeito o poder estabelece a coação como algo a ser evitado pelas duas partes com verdadeira exceção PODER combinação inversamente condicionada de combinações de alternativas relativamente avaliadas como negativas com outras relativamente avaliadas como positivas Tercio Sampaio Ferraz Junior Goffredo Telles Junior e o direito quântico Em seu Direito quântico Goffredo Telles Junior traça uma relação entre conceitos e descobertas na área das ciências naturais e fenômenos e manifestações jurídicas surgidas no seio da comunidade Não obstante a obra tenha sido objeto de diversas críticas ao tempo em que veio a lume principalmente no que toca à suposta incompatibilidade entre o método das ciências naturais e o método das ciências denominadas sociais logo assentouse o reconhecimento da originalidade do pensamento do jusfilósofo As descobertas da Física Quântica a respeito do comportamento dos corpos e ondas em nível microscópico impressionaram Goffredo A estática percebida pelos sentidos humanos em verdade esconde o permanente movimento das partículas no mundo microscópico a evolução da ciência o revelou tudo é rápido e disforme Tudo afinal é na denominação do jusfilósofo corpo e onda movimento e energia A Física Quântica distanciandose da newtoniana passa a reconhecer que a energia não é algo externo à partícula mas sim uma sua parte Energia que se subdivide em pequenas porções denominadas de quanta cuja magnitude por diminuta revestese de continuidade no nível macroscópico eis que os diferentes patamares energéticos escapam à percepção humana A própria estrutura atômica antes tida por indivisível é objeto de grandes descobertas na era da Física Quântica Desvendada sua verdadeira composição como prótons nêutrons elétrons e outras tantas subpartículas sedimentouse o conhecimento de que átomos são estruturas compostas de um núcleo prótons e nêutrons circundado por partículas elétricas os elétrons A localização destes é dificilmente estabelecida e relacionase diretamente ao nível de energia da partícula Em átomos como os metálicos observase que a instabilidade dos elétrons é ainda maior aqueles que se encontram na periferia da nuvem eletrônica deixam de pertencer a um átomo em particular sem contudo se juntar a outro Assim há um fluxo livre de elétrons por todo o metal Chegouse à conclusão também de que nos corpos em que os elétrons têm maior liberdade um número maior de capacidades ou funções pode ser visto Uma delas é a capacidade de conduzir eletricidade Esse espaço em que a energia se manifesta é chamado de campo e existe tanto nos espaços vazios entre os átomos como no interior da própria estrutura atômica O vazio assim não existe Tudo é corpo e onda matéria e campo A existência do corpo não pode ser singularmente compreendida Apenas pode ser entendida em sua relação com outro corpo que se dá por meio do campo Daí a importância do estudo das leis que regem as interações entre os corpos e afinal determinam sua essência A indagação de Goffredo então é precisamente quanto ao possível paralelo existente entre tais leis as leis determinantes das forças de equilíbrio no mundo das partículas dos corpos e aquelas que regem os corpos sociais Goffredo Telles Junior e suas circunstâncias Goffredo Telles Junior afirma que permissões e proibições são criadas pela sociedade de modo instrumental visando a servir ao indivíduo Os valores escolhidos passam a constituir a moral e a ética vigentes com vistas a satisfazer as necessidades surgidas naquele campo A cultura exerce papel fundamental nesse processo de escolha Goffredo concebe a cultura como um aperfeiçoamento uma reordenação realizada pelo homem Nascido em 16 de maio de 1915 no centro de São Paulo Goffredo Carlos da Silva Telles que posteriormente adotou o nome Goffredo da Silva Telles Junior pertenceu à Turma de 1937 da tradicional Faculdade de Direito do Largo São Francisco Antes foi soldado na Revolução Constitucionalista de São Paulo 1932 na qual serviu no Hospital de Guaratinguetá e de Taubaté Como professor ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em 1940 tendo se tornado professor titular ou catedrático como se dizia à época em 1954 na cadeira de Introdução à Ciência do Direito Lecionou até sua aposentadoria compulsória em 1985 O Conselho Universitário da USP o honrou com o título de Professor Emérito da Universidade de São Paulo Foi o primeiro chefe do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade Na política foi Deputado Federal constituinte em 1946 Deputado Federal na legislatura de 19461950 e Secretário da Educação e Cultura da Prefeitura de São Paulo em 1957 Sua Carta aos brasileiros tornouse muito conhecida na época da ditadura e representa um marco no processo de abertura democrática do país Foi lida por ele na noite de 8 de agosto de 1977 no Pátio da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo Entre suas principais obras figuram Direito quântico Ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica Iniciação na ciência do direito e Ética Do mundo da célula ao mundo dos valores Goffredo Telles Junior e suas ideias Por certo sendo o ser humano dotado de livrearbítrio aduz o jusfilósofo qualquer determinação externa dirigida à sua conduta pode ser perquirida apenas na esfera das probabilidades tal e qual a localização de um elétron nas diferentes camadas eletrônicas Assim também no tocante ao comportamento social Goffredo entende haver um campo na mesma acepção utilizada na Física Quântica que seria a esfera dentro da qual se manifesta a energia das pessoas O conjunto de atividades desempenhadas pela pessoa nos mais variados ambientes constituiria seu campo E da mesma forma observada em relação aos átomos que têm sua existência definida a partir da interação com outros átomos e partículas também os corpos sociais se definem pelo exercício de suas ações pela concretização de seu livrearbítrio de onde se conclui pela importância das escolhas éticas na vida do indivíduo eis que ao final elas lhe determinarão a essência A sociedade como campo do homem tem também o mesmo comportamento dos campos estudados pela Física Quântica Estruturas atômicas e subatômicas ao se tornarem mais complexas requerem maior coesão entre seus componentes algo também observado nas formações sociais as quais como campos são determinadas pelos indivíduos ao tempo que buscam também criar permissões e proibições relacionadas às suas condutas de modo a tornálas ao menos previsíveis Permissões e proibições são criadas pela sociedade de modo instrumental visando a servir ao indivíduo Os valores escolhidos passam a constituir a moral e a ética vigentes com vistas a satisfazer as necessidades surgidas naquele campo A cultura exerce papel fundamental nesse processo de escolha Goffredo concebe a cultura como um aperfeiçoamento uma reordenação realizada pelo homem A proposta do filósofo em suma é demonstrar ou ao menos tornar evidente a possibilidade da aproximação que as leis vigentes em determinada sociedade não passam de expressões culturais de nas suas palavras subjacentes silenciosas e perenes disposições genéticas da Mãe Natureza A essa dimensão cultural somase a histórica inerente à vida humana A história do homem diz Goffredo começou com a história do ácido nucleico Goffredo Telles Junior e sua influência no direito O Direito Quântico de acordo com o exposto seria o Direito Natural da organização do humano o Direito que exprime a realidade biótica da sociedade Direito Natural na forma como utilizada a expressão pelo jusfilósofo não corresponde a uma ordenação superior ao homem conforme tradicionalmente entendido mas ao conjunto de normas oficiais em consonância com os ditames éticos de determinada sociedade Possível pois a existência de um Direito promulgado não Natural Lourival Vilanova e o direito livre Lourival Vilanova ao tratar de Estado estabelece uma noção muito parecida com a de Hans Kelsen no que tange à determinação de uma centralização do poder para que se tenha Estado Para ele o que importa não é a existência de um único centro de poder mas de diversos centros compreendidos como estruturas de poder político que conjuguem a capacidade de oferecer uma decisão jurídica Lourival Vilanova e suas circunstâncias Lourival Vilanova se aproxima de Hans Kelsen em sua teoria sobre o Estado Analisa em sua obra Causalidade do direito o relacionamento da norma jurídica com o sujeito de direito e todas as suas conjunturas vinculantes sejam econômicas sociais ou culturais Lourival Vilanova considera que sendo o Estado jurídico pode interferir até mesmo nas relações familiares Lourival Faustino Vilanova ou simplesmente Lourival Vilanova nasceu em 1915 em Caruaru na região agreste do Estado do Pernambuco Graduouse na Universidade Federal do Pernambuco em Recife em 1942 Na mesma instituição obteve os graus de mestre e doutor e lá mesmo assumiu cátedra em Teoria Geral do Direito Teoria Geral da Constituição Teoria da Ciência Lógica e Hermenêutica Foi professor na PUCSP na Faculdade de Direito de Lisboa e na Universidade Nacional de Buenos Aires Participou da comissão instituída pelo Ministério da Educação para elaborar o currículo mínimo do Curso de Direito Foi secretário de Educação e Cultura de Pernambuco e diretor da Faculdade de Direito do Recife Também em Pernambuco Vilanova foi ProcuradorGeral do Estado e ConsultorGeral do Estado É autor de diversas obras sobre lógica e estudos filosóficos e jurídicos Seus principais livros Causalidade e relação no direito e estruturas lógicas Sistema do direito positivo e As tendências atuais do direito público Lourival Vilanova e suas ideias O Direito como ciência precisa estar apartado de influências externas políticas culturais econômicas etc para que se constitua como teoria pura É o que pensava Hans Kelsen em quem Lourival Villanova se fundamentou para as suas ideias Porém Villanova avançou em relação ao seu inspirador propondo uma relação até sociológica entre sujeito e norma jurídica uma vez que admite haver prevalência do domínio de tempo e de espaço na validade da norma jurídica Lourival Vilanova e sua influência no direito Segundo Vilanova é preciso haver um fato para que a norma jurídica se realize Portanto a norma tem efeito sobre o sujeito de direito a partir de um fato Por exemplo o nascimento é um fato que faz com que incidam sobre o sujeito o nascituro várias normas como obrigatoriedade de registro civil normas de conduta etc Além disso Vilanova recorda que o sujeito relacionase também com outros sujeitos o que pressupõe para haver harmonia social e justiça que as normas disciplinem e sancionem quando for o caso essas relações Segundo o autor jamais haverá um fato exclusivamente econômico ou exclusivamente social por exemplo A norma haverá de avaliar o relacionamento desses fatos com o ordenamento jurídico Vilanova também vinculou as normas jurídicas à norma fundamental no topo da pirâmide segundo Kelsen que de certo modo avaliza o Estado como autoridade LINHA DO TEMPO FILOSOFIA DO DIREITO CONTEMPORÂNEA NO BRASIL Ano 1941 Migel Reale formula a Teoria Tridimensional do Direito na sua tese de doutorado Ano 1974 Goffredo Telles Junior publica O direito quântico ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica Ano 1988 Tercio Sampaio Ferraz Junior publica Introdução ao estudo de direito técnica decisão e dominação em que discute direito poder e liberdade Ano 1989 Fábio Konder Comparato publica Para viver a democracia Ano 2001 Morre Lourival Vilanova Em 2003 o professor da PUCSP Paulo de Barros Carvalho reuniu seus escritos em um compêndio de dois volumes chamado Escritos Jurídicos e Filosóficos Ano 2002 Miguel Reale encerra o trabalho como integrante da comissão que elaborou o Novo Código Civil REFERÊNCIAS Livros e revistas ABBAGNANO Nicola Dicionário de filosofia Trad Alfredo Bosi São Paulo Martins Fontes 1998 ALFONSOGOLDFARB A M Da alquimia à química São Paulo Landy 2001 ARENDT Hannah A condição humana Trad Roberto Raposo 10 ed Rio de Janeiro Forense Universitária 2004 A vida do espírito o pensar o querer o julgar Trad Cesar Augusto R de Almeira Antônio Abranches e Helena Franco Martins 2 ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2010 ARISTÓTELES Dos argumentos sofísticos Trad Leonel Vallandro e Gerd Bornheim São Paulo Nova Cultural 1991 Ética a Nicômaco São Paulo Martin Claret 2002 Política São Paulo Martin Claret 2002 AUSTIN J The province of jurisprudence determined Cambridge Cambridge University Press 1995 BAIN A John Stuart Mill a criticism London Longmans 1882 BARBOZA Heloísa Helena Gomes Perspectivas do direito civil brasileiro para o próximo século Revista da Faculdade de Direito da UERJ Rio de Janeiro n 6 p 2739 BERTALANFFY Karl Ludwig von Teoria geral dos sistemas Trad Francisco M Guimarães Petrópolis Vozes 1975 BOBBIO Norberto Teoria do ordenamento jurídico 7 ed Trad Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos Brasília UnB 1996 A era dos direitos Trad Carlos Nelson Coutinho Rio de Janeiro Campus 1992 A grande dicotomia públicoprivado In Estado governo e sociedade São Paulo Paz e Terra 1987 p 1331 BRUN J Os présocráticos Rio de Janeiro Ed 70 1991 CAMPOS Fernando Arruda Tomismo hoje São Paulo Loyola 1989 CANARIS Claus Wilhelm Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito Trad A Menezes Cordeiro 3 ed Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian 2002 CARVALHO José Geraldo Vidigal de Temas filosóficos Ouro Preto UFOP 1982 CASTILHO Ricardo Direitos humanos processo histórico evolução no mundo direitos fundamentais constitucionalismo contemporâneo São Paulo Saraiva 2010 CERQUEIRA Hugo Adam Smith e o surgimento do discurso econômico Revista de Economia Política v 24 n 3 2004 CHAUÍ Marilena Convite à filosofia São Paulo Ática 2002 COELHO Fábio Ulhoa Para entender Kelsen 4 ed rev São Paulo Saraiva 2001 COMPARATO Fábio Konder Ética direito moral e religião no mundo moderno São Paulo Companhia das Letras 2006 O que é filosofia do direito Barueri Manole 2004 Para viver a democracia São Paulo Brasiliense 1989 CONNOR Steven Teoria e valor cultural São Paulo Loyola 1994 COSSIO Carlos La valoración jurídica y la ciencia del derecho Buenos Aires Arayú 1954 DALEMBERT Jean Enciclopédia ou dicionário raciocinado das ciências das artes e dos ofícios São Paulo Unesp 1989 DELEUZE Gilles Conversações Rio de Janeiro Ed 34 1992 DEL VECCHIO Giorgio Lições de filosofia do direito Trad Antônio José Brandão Coimbra Arménio Amado 1972 v 1 DIÓGENES LAÉRCIO Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres Trad Mário da Gama Kury Brasília UnB 1987 DÓRIA Francisco Antônio Marcuse vida e obra Rio de Janeiro Paz e Terra 1974 DURANT Will História da filosofia a vida e as ideias dos grandes filósofos São Paulo Nacional 1926 DWORKIN R Sovereign Virtue Cambridge Mass Harvard University Press 2002 ENTERRÍA Eduardo Garcia Reflexiones sobre la ley y los princípios generales del derecho Madrid Civitas 1996 ESPINOSA Baruch Tratado teológico político São Paulo Martins Fontes 2003 FERRAZ JUNIOR Tercio Sampaio Estudos de filosofia do direito reflexões sobre o poder a liberdade a justiça e o direito 3 ed São Paulo Atlas 2009 Introdução ao estudo do direito técnica decisão dominação 4 ed São Paulo Atlas 2003 FONSECA Marcio Alves da Michel Foucault e o direito São Paulo Max Limonad 2002 FOUCAULT Michel Microfísica do poder sobre a justiça popular 7 ed Rio de Janeiro Graal 1988 Vigiar e punir nascimento da prisão Trad Raquel Ramalhete 35 ed Petrópolis Vozes 2008 FRIEDRICH Carl Joachin Perspectiva histórica da filosofia do direito Rio de Janeiro Zahar 1965 FURTADO C M Teoria e política do desenvolvimento econômico São Paulo Abril Cultural 1983 GRAU Eros Roberto Ensaio e discurso sobre a interpretaçãoaplicação do direito São Paulo Malheiros 2002 GROPPALI Alexandre Doutrina do Estado São Paulo Saraiva 1962 Filosophia do direito Trad Sousa Costa Lisboa Livr Clássica 1926 GROTIUS Hugo O direito da guerra e da paz Trad Ciro Mioranza introdução de Antonio Manuel Hespanha Ijuí EDUNIJUÍ 2004 2 v HABERMAS J Consciência moral e agir comunicativo Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1983 Direito e democracia entre facticidade e validade Trad Flávio Beno Siebeneichler Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1997 HART Herbert L A O conceito de direito 2 ed Trad A Ribeiro Mendes Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian 1994 HEGEL Georg Wilhelm Friedrich Princípios da filosofia do direito Trad Orlando Vitorino São Paulo Martins Fontes 1997 HERVADA Javier Lições propedêuticas de filosofia do direito São Paulo Martins Fontes 2008 HIRONAKA Giselda M Fernandes Novaes A função social do contrato Revista de Direito Civil n 45 p 141152 HIRSCHBERGER J Tomás de Aquino In História da filosofia na Idade Média São Paulo Herder 1966 HOBBES Thomas O Leviatã Trad João Paulo Gomes Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva Col Os Pensadores São Paulo Abril 1974 HOLMES JR Oliver Wendell The Common Law New York Dover 1991 The Essential Holmes Chicago Chicago University Press 1992 HUME David Tratado da natureza humana Trad Déborah Danowski São Paulo UnespImprensa Oficial 2001 IHERING Rudolf von A luta pelo direito Trad J Cretella Júnior Agnes Cretella 2 ed São Paulo Revista dos Tribunais 2001 JAEGER W Paideia a formação do homem grego Trad A M Parreira São Paulo Martins Fontes 1995 KELSEN Hans Teoria geral do direito e do Estado 3 ed Trad Luís Carlos Borges São Paulo Martins Fontes 2000 Teoria pura do direito 6 ed Trad João Baptista Machado São Paulo Martins Fontes 1998 KNOLL Mark A Momentos decisivos na história do cristianismo Trad de Alderi Matos São Paulo Cultura Cristã 1998 KURY M G Diôgenes Laêrtios vidas e doutrinas dos filósofos ilustres Brasília UnB 1977 LESSA Pedro Estudos de filosofia do direito Campinas Bookseller 2002 LOCKE John Dois tratados sobre o governo civil Trad Julio Fisher São Paulo Martins Fontes 1998 LUHMANN Niklas Legitimação pelo procedimento Trad Maria da Conceição CôrteReal Brasília UnB 1980 MACEDO Paulo Emílio Vautthier Borges de Hugo Grócio e o direito o jurista da guerra e da paz Rio de Janeiro Lumen Juris 2006 MAGALHÃESVILHENA V de O problema de Sócrates o Sócrates histórico e o Sócrates de Platão Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian 1984 MARROU H I História da educação na Antiguidade Trad Mário Leônidas Casanova São Paulo HerderEPU 1975 MARX Karl A ideologia alemã Trad Luis Claudio de Castro e Costa São Paulo Martins Fontes 1998 O capital crítica da economia política São Paulo Abril Cultural 1983 MILL John Stuart Capítulos sobre o socialismo Trad Paulo Cezar Castanheira São Paulo Fundação Perseu Abramo 2001 MORA José Ferrater Dicionário de filosofia São Paulo Loyola 2001 NADER Paulo Filosofia do direito Rio de Janeiro Forense 2007 NASCIMENTO C A R do De Tomás de Aquino a Galileu 2 ed Campinas UNICAMP IFCH Col Trajetória 1995 v 2 NEF Frédéric A linguagem uma abordagem filosófica Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1995 NIETZSCHE Friedrich Wilhelm Humano demasiado humano um livro para espíritos livres Trad Paulo César de Souza São Paulo Companhia das Letras 2005 NOZICK R Anarchy State and utopia New York Basic Books 1974 PADOVANI Umberto CASTAGNOLA Luis Historia da filosofia São Paulo Melhoramentos 1978 PESSANHA José Américo Motta org Os présocráticos São Paulo Ed Abril 1978 PLEBE Armando Breve história da retórica antiga Trad Gilda Naécia Maciel de Barros São Paulo EPUEDUSP 1978 QUINTANEIRO Tania BARBOSA Maria Ligia de Oliveira OLIVEIRA Márcia Gardênia de Um toque de clássicos Marx Durkheim e Weber 2 ed Belo Horizonte Ed UFMG 2002 RAWLS J A Theory of justice rev ed Cambridge Harvard University Press 1999 O liberalismo político São Paulo Ática 1992 Uma teoria da justiça Trad Almiro Pissetta e Lenita M R Esteves São Paulo Martins Fontes 1997 REALE Giovanni ANTISERI Dario História da filosofia do humanismo a Kant São Paulo Paulus 1990 REALE Miguel Filosofia do direito 20 ed São Paulo Saraiva 2002 RORTY R A filosofia e o espelho da natureza Trad Jorge Pires Lisboa Publicações Dom Quixote 1988 ROSA Garcia Palavra e verdade na filosofia antiga e na psicanálise Rio de Janeiro Zahar Editor 1990 ROUSSEAU JeanJacques O contrato social Trad Lourival Gomes Machado e Lourdes Santos Machado Coleção Os Pensadores São Paulo Ed Abril 1973 SAVIGNY Friedrich Carl von De la vocación de nuestro siglo para la legislación y la ciencia del derecho Trad Adolfo G Posada Buenos Aires Atalaya 1946 SCHMITT Carl A crise da democracia parlamentar Trad Inês Lohbauer São Paulo Scritta 1996 SCHUMPETER J A A teoria do desenvolvimento econômico São Paulo Abril Cultural 1983 SEN Amartya Desenvolvimento como liberdade São Paulo Companhia das Letras 2010 Development which way now The Economic Journal v 93 n 372 dec 1983 p 745 762 SMITH Adam Essays on philosophical subjects Indianapolis Liberty Fund 1982 TELLES JUNIOR Goffredo O direito quântico ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica São Paulo Max Limonad 1974 TOCQUEVILLE Alexis de A democracia na América Trad Eduardo Brandão São Paulo Martins Fontes 2005 Prefácio bibliografia e cronologia de François Furet VERGEZ André HUISMAN Denis História da filosofia ilustrada pelos textos 4 ed Rio de Janeiro Freitas Bastos 1980 VILANOVA Lourival Causalidade e relação no direito 4ª ed São Paulo Revista dos Tribunais 2000 VILLEY Michel La formation de la pensée juridique moderne Paris PUF 2003 VITA A de O liberalismo igualitário Sociedade democrática e justiça internacional São Paulo Martins Fontes 2008 VOLTAIRE François M A 1734 Cartas inglesas São Paulo Abril Cultural 1978 WEBER Max Economia e sociedade fundamentos da sociologia compreensiva Trad Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa São Paulo Imprensa Oficial do Estado de São Paulo 1999 v 2 Ciência e política duas vocações Trad Leonidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota São Paulo Cultrix WERNER Jaeger Paideia a formação do homem grego São Paulo Martins Fontes 1995 Internet GIBBON Edward Decline and fall of the Roman Empire Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004 Disponível em httpwwwccelorgggibbondecline JUDENSNAIDER Ivy Roger Bacon respostas ao passado Disponível em httpwwwarscientiacombrmateriavermateriaphpidmateria354 Ordenações Filipinas online Disponível em httpwww1ciucptihtiprojfilipinasordenacoeshtm PARMÊNIDES Disponível em httpwwwantroposmodernocombiografiasParmenideshtml No text found 1 Liberal in despair in KRONMAN Anthony Max Weber Stanford Stanford University Press 1983 2 Lições propedêuticas de filosofia do direito São Paulo Martins Fontes 2008 p 1618 Esse autor informa também que a primeira menção oficial à expressão filosofia do direito apareceu em 1800 no título do livro Aforismas sobre a filosofia dos direitos de W T Krug no original Aphorismen zur Philosophie des Rechtes 3 Lições propedêuticas de filosofia do direito São Paulo Martins Fontes 2008 p 416 1 Não confundir com o naturalismo tendência estética surgida na França na segunda metade do século XIX O naturalismo baseiase na filosofia de que somente as leis da natureza podem explicar o mundo e que o homem é condicionado inexoravelmente pelas questões biológicas e sociais As obras naturalistas retratam a realidade com extrema objetividade numa exacerbação do realismo Aplicado na Europa também nas artes plásticas e no teatro o naturalismo na literatura teve grande impacto no Brasil especialmente depois da obra Romance experimental do francês Émile Zola de 1880 o autor escreveria depois outra obra naturalista Germinal em 1885 livro em que uma frase é repetida mil vezes Se ao menos houvesse pão Aluísio de Azevedo com o livro O mulato publicado no Brasil em 1881 é considerado o precursor do naturalismo brasileiro 2 Há controvérsias acerca da autoria dos épicos Ilíada e Odisséia possivelmente criados por volta dos anos 740 a 700 aC Mas é tradição atribuílos a Homero embora existam pesquisadores que afirmem que Homero é uma figura fictícia 3 Notese que não usamos a denominação de filósofos porque a palavra filosofia seria usada pela primeira vez apenas por volta do ano 540 aC por Pitágoras 4 Posteriormente denominada pelos romanos de Justitia 5 Paideia a formação do homem grego São Paulo Martins Fontes 1995 6 M G Kury Diôgenes Laêrtios vidas e doutrinas dos filósofos ilustres Brasília UnB 1977 7 Segundo o médico José Marques Filho em artigo disponível no site do Cremesp httpwwwcremesporgbr siteAcaoRevistaid307 8 Aristóteles chamava a sofística de a arte da sabedoria aparente 9 Hervada observa que a dissociação entre o mundo do espírito e o mundo da natureza leva entre outras possibilidades à teoria dos valores relativos Visto que afirmase o natural é opaco ao espírito esse é quem projeta suas próprias formas a priori suas próprias construções sobre o ser Lições propedêuticas de filosofia do direito São Paulo Martins Fontes 2008 p 47 10 Eram os seguintes os sete sábios da Grécia antiga Brias de Priene Cleóbulo de Lindos Periandro de Corinto Pítaco de Mitilene Quílon de Esparta Sólon de Atenas e Tales de Mileto 11 Os escritos de Sêneca influenciariam mais tarde o pensamento do suíço João Calvino responsável pela reforma do protestantismo 12 O evento que marca historicamente o fim da Idade Antiga foi a deposição de Rômulo Augusto último imperador do Império Romano do Ocidente no ano de 476 dC 13 Os primeiros doutores da Igreja Católica foram Santo Agostinho Santo Ambrósio São Gregório Magno e São Jerônimo de Strídon por proclamação do papa Bonifácio VIII no ano de 1298 O papa Pio V em 1568 proclamaria outros quatro doutores da igreja todos gregos São João Crisóstomo São Basílio de Cesareia São Gregório de Nanzianzo e Santo Atanásio de Alexandria além de Santo Tomás de Aquino Em 1588 foi a vez de São Boaventura Somente mais de um século depois a Igreja retomou a nomeação de seus doutores Santo Anselmo 1720 Santo Isidoro de Sevilha 1722 São Pedro Crisólogo 1729 Papa Leão o Grande 1754 Depois de nova interrupção os papas Leão XII Pio IX e Leão XIII indicaram São Pedro Damião 1823 São Bernardo de Claraval 1830 Santo Hilário de Poitiers 1851 Santo Afonso de Ligório 1871 São Francisco de Sales 1877 em 1883 foram três São Cirilo de Alexandria São Cirilo de Jerusalém e São João Damasceno em 1899 São Beda Todos os demais foram indicados no século XX o papa Bento XV indicou Santo Efrém da Síria 1920 o papa Pio XI indicou São Pedro Canísio 1925 São João da Cruz 1926 São Roberto Belarmino e Santo Alberto Magno 1931 e Santo Antonio de Lisboa e Pádua 1946 O papa João XXIII indicou São Lourenço de Brindisi 1959 Mas foi o papa Paulo VI que elevou a primeira mulher à condição de doutora da igreja Santa Teresa DÁvila em 1970 O mesmo papa elevou no mesmo ano Santa Catarina de Siena A terceira mulher Santa Teresinha do Menino Jesus foi indicada em 1997 pelo papa João Paulo II E afinal o papa Bento XVI indicou em 2012 São João de Ávila e Santa Hildegarda de Bingen 14 Originalmente os bárbaros eram provenientes da chamada Berbéria região noroeste da África que incluía Marrocos Argélia Tunísia e Líbia atualmente a região é chamada Magrebe e a ela pertence ao Egito cujo povo porém não entrava na categoria de bárbaros para os europeus Mais tarde a denominação foi estendida para povos considerados inferiores ou primitivos porque não falavam o latim a língua geral da época não usavam dinheiro como padrão de troca nem tinham governo organizado 15 Leão I foi santificado e é hoje São Leão Sua intervenção junto a Átila salvou o Império Romano mas por pouco tempo Seus sucessores Sisto III e Santo Hilário viram os bárbaros tomarem conta da Europa Mas Roma só cairia realmente diante dos hérulos chefiados pelo rei bárbaro Odoacro que depôs o imperador Rômulo Augusto no pontificado de São Simplício 16 A tomada de Constantinopla marca o início da Idade Moderna O império turcootomano centrado em Constantinopla perduraria até a Segunda Guerra Mundial 17 Nova fase do direito moderno 2 ed 3 tir São Paulo Saraiva 2010 p 11 18 Uma das mais conhecidas vítimas da Inquisição foi precisamente um frade franciscano o italiano Giordano Bruno por defender teorias científicas principalmente astronômicas contrariamente ao que pensava a Igreja Católica Estudou astronomia contestando a teoria de Aristóteles e acreditava na infinitude do universo Foi condenado por heresia e queimado numa fogueira em 1600 19 Haveria outro cisma entre 1378 e 1417 período em que a Igreja Católica teve dois papados um em Roma e outro na França 20 A frase atribuída a Maquiavel de que o fim justifica os meios na realidade tem a seguinte redação Procure pois um príncipe vencer e manter o Estado os meios serão sempre julgados honrosos e por todos louvados porque o vulgo sempre se deixa levar pelas aparências e pelos resultados e no mundo não existe senão o vulgo os poucos não podem existir quando os muitos têm onde se apoiar Algum príncipe dos tempos atuais que não convém nomear não prega senão a paz e fé mas de uma e outra é ferrenho inimigo uma e outra se ele as tivesse praticado terlheiam por mais de uma vez tolhido a reputação ou o Estado 21 Max Weber escreveu ensaios semelhantes relacionando religião e economia em países como China e Índia 22 Aliás em latim a palavra dominicano quer dizer cães do senhor uma designação que dispensa comentários acerca de sua função principal 23 Os Estados Pontifícios existiriam até 1870 sempre protegidos por guarnições francesas Naquele ano quando deflagrou a guerra francoprussiana as tropas italianas aliadas a Otto von Bismarck primeiroministro da Prússia invadiram Roma e instalaram lá a corte do rei Vitório Emanuel II Apenas em 11 de fevereiro de 1929 com o Concílio de Latrão Mussolini e o papa Pio XI entrariam num acordo em que a Igreja reconhecia a Itália como país e o Estado italiano reconhecia a jurisdição do papa sobre a cidadeEstado do Vaticano 24 Ver adiante O contratualismo neste tópico 25 Nova fase do direito moderno São Paulo Saraiva 2010 p 95 26 CASTILHO Ricardo Direitos humanos processo histórico São Paulo Saraiva 2010 27 A doutrina do pactum subjectionis rezava que o povo confiasse no governante na esperança de que esse exercesse o governo com isonomia e justiça Estava incluído no acordo o direito de rebelião popular caso o governante violasse as regras constantes da Magna Carta de 1215 da Petition of Rights de 1628 e a Bill of Rights de 1689 28 A Bill of Rights norteamericana e mesmo a Declaração Universal dos Direitos Humanos foram alguns exemplos de documentos inspirados nesse pacto medieval Mas o grande marco do constitucionalismo no mundo foi a Declaration of Rights do Estado de Virgínia de 1776 que norteou a elaboração das Constituições das excolônias britânicas da América do Norte 29 COMPARATO Fábio Konder A afirmação histórica dos direitos humanos São Paulo Saraiva 1999 30 As ideias de John Locke e sua influência no direito serão analisadas detalhadamente mais à frente neste livro 31 A terceira fase para Miguel Reale Nova fase do direito moderno ainda está em processamento e foi inaugurada com o advento da chamada Juscibernética citando Mário Losano p 114 32 Falaremos de todos esses autores no tópico dedicado ao Racionalismo 33 Direito constitucional teoria da Constituição As Constituições do Brasil 2 ed Rio de Janeiro Forense 1981 34 Direito constitucional 2 ed Belo Horizonte Mandamentos 2002 35 A expressão democracia social foi usada pela primeira vez por Alexis de Tocqueville no livro De la démocratie en Amérique em dois volumes o primeiro em 1835 e o segundo em 1840 36 REALE Miguel Filosofia do direito São Paulo Saraiva 2002 p 647 37 O termo Rechtsstaat foi criado pelo jurista alemão Robert von Mohl que chegou a ser ministro da justiça No direito anglosaxão a doutrina correspondente é conhecida como rule of the law domínio da lei 38 Conforme pode ser constatado em COMPARATO Fabio Konder Ética direito moral e religião no mundo moderno p 328 39 COMPARATO Fábio Konder Ética direito moral e religião no mundo moderno p 307 40 In Os grandes filósofos do direito São Paulo Martins Fontes 2002 p 423 41 The Path of Law Chicago Chicago University Press 1992 p 161 42 Houve ainda uma outra vertente dessa corrente filosófica chamada materialismo energetista no início do século XX que defendia que espírito e matéria são apenas formas da energia que constituem a realidade Os principais pensadores dessa corrente foram Richard Avenarius Ernst Mach e Wilhelm Ostwald 43 Nova fase do direito moderno São Paulo Saraiva 2010 p 1112 44 MARX Karl ENGELS Friedrich Manifesto do Partido Comunista de 1848 45 In MORRIS Clarence org Os grandes filósofos do direito São Paulo Martins Fontes 2002 p 443 46 Filosofia do direito Rio de Janeiro Forense 2007 p 242 47 Publicado no jornal Folha da Manhã de 8 de agosto de 1942 48 Uma teoria da justiça Trad Almiro Pissetta e Lenita M R Esteves São Paulo Martins Fontes 1997 p 16 49 Filosofia do direito Rio de Janeiro Forense 2007 p 248268 50 Disponível em httpwwwtrt19jusbrmpminicialhtm Acesso em 26 set 2014 Revisão 1 O que é Filosofia 2 Conceito de filosofia 3 Sócrates e o Preneto 4 Sócrates maiêutica 5 Platão ironia DOXA 6 Episteme mundo das ideias 5 Aristóteles 6 Animal Político 7 Felicidade Conciato 8 Contralateralismo Obs Na prova dissertativa o discente deverá 1º Iniciar o texto com argumentos do tema proposto 2º Pode deve utilizar autores e fazer link com os demais 3º Redação a início b Fim c Linguagem técnica clara e sem uso do senso comum Marilena Chaui Convite à Filosofia Ed Ática São Paulo 2000 Convite à Filosofia 2 SUMÁRIO Introdução 01 Para que Filosofia Unidade 1 A Filosofia 02 Capitulo 1 A origem da Filosofia 03 Capítulo 2 O nascimento da Filosofia 04 Capítulo 3 Campos de investigação da Filosofia 05 Capítulo 4 Principais períodos da história da Filosofia 06 Capítulo 5 Aspectos da Filosofia contemporânea Unidade 2 A razão 07 Capítulo 1 A Razão 08 Capítulo 2 A atividade racional 09 Capítulo 3 A Razão inata ou adquirida 10 Capítulo 4 Os problemas do inatismo e do empirismo 11 Capítulo 5 A razão na Filosofia contemporânea Unidade 3 A verdade 12 Capítulo 1 Ignorância e verdade 13 Capítulo 2 Buscando a verdade 14 Capítulo 3 As concepções da verdade Unidade 4 O conhecimento 15 Capítulo 1 A preocupação com o conhecimento 16 Capítulo 2 A percepção Marilena Chauí 3 17 Capítulo 3 A memória 18 Capítulo 4 A imaginação 19 Capítulo 5 A linguagem 20 Capítulo 6 O pensamento 21 Capítulo 7 A consciência pode conhecer tudo Unidade 5 A lógica 22 Capítulo 1 O nascimento da lógica 23 Capítulo 2 Elementos de lógica 24 Capítulo 3 A lógica após Aristóteles 25 Capítulo 4 Lógica e Dialética Unidade 6 A metafísica 26 As indagações metafísicas 27 Capítulo 1 O nascimento da metafísica 28 Capítulo 2 A metafísica de Aristóteles 29 Capítulo 3 As aventuras da metafísica 30 Capítulo 4 A ontologia contemporânea Unidade 7 As ciências 31 Capítulo 1 A atitude científica 32 Capítulo 2 A ciência na História 33 Capítulo 3 As ciências da Natureza 34 Capítulo 4 As ciências humanas Convite à Filosofia 4 35 Capítulo 5 O ideal científico e a razão instrumental Unidade 8 O mundo da prática 36 Capítulo 1 A cultura 37 Capítulo 2 A experiência do sagrado e a instituição da religião 38 Capítulo 3 O universo das artes 39 Capítulo 4 A existência ética 40 Capítulo 5 A filosofia moral 41 Capítulo 6 A liberdade 42 Capítulo 7 A vida política 43 Capítulo 8 As filosofias políticas 1 44 Capítulo 9 As filosofias políticas 2 45 Capítulo 10 A política contra a servidão voluntária 46 Capítulo 11 A questão democrática Marilena Chauí 5 Introdução Para que Filosofia As evidências do cotidiano Em nossa vida cotidiana afirmamos negamos desejamos aceitamos ou recusamos coisas pessoas situações Fazemos perguntas como que horas são ou que dia é hoje Dizemos frases como ele está sonhando ou ela ficou maluca Fazemos afirmações como onde há fumaça há fogo ou não saia na chuva para não se resfriar Avaliamos coisas e pessoas dizendo por exemplo esta casa é mais bonita do que a outra e Maria está mais jovem do que Glorinha Numa disputa quando os ânimos estão exaltados um dos contendores pode gritar ao outro Mentiroso Eu estava lá e não foi isso o que aconteceu e alguém querendo acalmar a briga pode dizer Vamos ser objetivos cada um diga o que viu e vamos nos entender Também é comum ouvirmos os pais e amigos dizerem que somos muito subjetivos quando o assunto é o namorado ou a namorada Freqüentemente quando aprovamos uma pessoa o que ela diz como ela age dizemos que essa pessoa é legal Convite à Filosofia 6 Vejamos um pouco mais de perto o que dizemos em nosso cotidiano Quando pergunto que horas são ou que dia é hoje minha expectativa é a de que alguém tendo um relógio ou um calendário me dê a resposta exata Em que acredito quando faço a pergunta e aceito a resposta Acredito que o tempo existe que ele passa pode ser medido em horas e dias que o que já passou é diferente de agora e o que virá também há de ser diferente deste momento que o passado pode ser lembrado ou esquecido e o futuro desejado ou temido Assim uma simples pergunta contém silenciosamente várias crenças não questionadas por nós Quando digo ele está sonhando referindome a alguém que diz ou pensa alguma coisa que julgo impossível ou improvável tenho igualmente muitas crenças silenciosas acredito que sonhar é diferente de estar acordado que no sonho o impossível e o improvável se apresentam como possível e provável e também que o sonho se relaciona com o irreal enquanto a vigília se relaciona com o que existe realmente Acredito portanto que a realidade existe fora de mim posso percebêla e conhecêla tal como é sei diferenciar realidade de ilusão A frase ela ficou maluca contém essas mesmas crenças e mais uma a de que sabemos diferenciar razão de loucura e maluca é a pessoa que inventa uma realidade existente só para ela Assim ao acreditar que sei distinguir razão de loucura acredito também que a razão se refere a uma realidade que é a mesma para todos ainda que não gostemos das mesmas coisas Quando alguém diz onde há fumaça há fogo ou não saia na chuva para não se resfriar afirma silenciosamente muitas crenças acredita que existem relações de causa e efeito entre as coisas que onde houver uma coisa certamente houve uma causa para ela ou que essa coisa é causa de alguma outra o fogo causa a fumaça como efeito a chuva causa o resfriado como efeito Acreditamos assim que a realidade é feita de causalidades que as coisas os fatos as situações se encadeiam em relações causais que podemos conhecer e até mesmo controlar para o uso de nossa vida Quando avaliamos que uma casa é mais bonita do que a outra ou que Maria está mais jovem do que Glorinha acreditamos que as coisas as pessoas as situações os fatos podem ser comparados e avaliados julgados pela qualidade bonito feio bom ruim ou pela quantidade mais menos maior menor Julgamos assim que a qualidade e a quantidade existem que podemos conhecêlas e usálas em nossa vida Se por exemplo dissermos que o sol é maior do que o vemos também estamos acreditando que nossa percepção alcança as coisas de modos diferentes ora tais como são em si mesmas ora tais como nos aparecem dependendo da Marilena Chauí 7 distância de nossas condições de visibilidade ou da localização e do movimento dos objetos Acreditamos portanto que o espaço existe possui qualidades perto longe alto baixo e quantidades podendo ser medido comprimento largura altura No exemplo do sol também se nota que acreditamos que nossa visão pode ver as coisas diferentemente do que elas são mas nem por isso diremos que estamos sonhando ou que ficamos malucos Na briga quando alguém chama o outro de mentiroso porque não estaria dizendo os fatos exatamente como aconteceram está presente a nossa crença de que há diferença entre verdade e mentira A primeira diz as coisas tais como são enquanto a segunda faz exatamente o contrário distorcendo a realidade No entanto consideramos a mentira diferente do sonho da loucura e do erro porque o sonhador o louco e o que erra se iludem involuntariamente enquanto o mentiroso decide voluntariamente deformar a realidade e os fatos Com isso acreditamos que o erro e a mentira são falsidades mas diferentes porque somente na mentira há a decisão de falsear Ao diferenciarmos erro de mentira considerando o primeiro uma ilusão ou um engano involuntários e a segunda uma decisão voluntária manifestamos silenciosamente a crença de que somos seres dotados de vontade e que dela depende dizer a verdade ou a mentira Ao mesmo tempo porém nem sempre avaliamos a mentira como alguma coisa ruim não gostamos tanto de ler romances ver novelas assistir a filmes E não são mentira É que também acreditamos que quando alguém nos avisa que está mentindo a mentira é aceitável não seria uma mentira no duro pra valer Quando distinguimos entre verdade e mentira e distinguimos mentiras inaceitáveis de mentiras aceitáveis não estamos apenas nos referindo ao conhecimento ou desconhecimento da realidade mas também ao caráter da pessoa à sua moral Acreditamos portanto que as pessoas porque possuem vontade podem ser morais ou imorais pois cremos que a vontade é livre para o bem ou para o mal Na briga quando uma terceira pessoa pede às outras duas para que sejam objetivas ou quando falamos dos namorados como sendo muito subjetivos também estamos cheios de crenças silenciosas Acreditamos que quando alguém quer defender muito intensamente um ponto de vista uma preferência uma opinião até brigando por isso ou quando sente um grande afeto por outra pessoa esse alguém perde a objetividade ficando muito subjetivo Com isso acreditamos que a objetividade é uma atitude imparcial que alcança as coisas tais como são verdadeiramente enquanto a subjetividade é uma atitude parcial pessoal ditada por sentimentos variados amor ódio medo desejo Assim não só acreditamos que a objetividade e a subjetividade existem como Convite à Filosofia 8 ainda acreditamos que são diferentes e que a primeira não deforma a realidade enquanto a segunda voluntária ou involuntariamente a deforma Ao dizermos que alguém é legal porque tem os mesmos gostos as mesmas idéias respeita ou despreza as mesmas coisas que nós e tem atitudes hábitos e costumes muito parecidos com os nossos estamos silenciosamente acreditando que a vida com as outras pessoas família amigos escola trabalho sociedade política nos faz semelhantes ou diferentes em decorrência de normas e valores morais políticos religiosos e artísticos regras de conduta finalidades de vida Achando óbvio que todos os seres humanos seguem regras e normas de conduta possuem valores morais religiosos políticos artísticos vivem na companhia de seus semelhantes e procuram distanciarse dos diferentes dos quais discordam e com os quais entram em conflito acreditamos que somos seres sociais morais e racionais pois regras normas valores finalidades só podem ser estabelecidos por seres conscientes e dotados de raciocínio Como se pode notar nossa vida cotidiana é toda feita de crenças silenciosas da aceitação tácita de evidências que nunca questionamos porque nos parecem naturais óbvias Cremos no espaço no tempo na realidade na qualidade na quantidade na verdade na diferença entre realidade e sonho ou loucura entre verdade e mentira cremos também na objetividade e na diferença entre ela e a subjetividade na existência da vontade da liberdade do bem e do mal da moral da sociedade A atitude filosófica Imaginemos agora alguém que tomasse uma decisão muito estranha e começasse a fazer perguntas inesperadas Em vez de que horas são ou que dia é hoje perguntasse O que é o tempo Em vez de dizer está sonhando ou ficou maluca quisesse saber O que é o sonho A loucura A razão Se essa pessoa fosse substituindo sucessivamente suas perguntas suas afirmações por outras Onde há fumaça há fogo ou não saia na chuva para não ficar resfriado por O que é causa O que é efeito seja objetivo ou eles são muito subjetivos por O que é a objetividade O que é a subjetividade Esta casa é mais bonita do que a outra por O que é mais O que é menos O que é o belo Em vez de gritar mentiroso questionasse O que é a verdade O que é o falso O que é o erro O que é a mentira Quando existe verdade e por quê Quando existe ilusão e por quê Se em vez de falar na subjetividade dos namorados inquirisse O que é o amor O que é o desejo O que são os sentimentos Se em lugar de discorrer tranqüilamente sobre maior e menor ou claro e escuro resolvesse investigar O que é a quantidade O que é a qualidade Marilena Chauí 9 E se em vez de afirmar que gosta de alguém porque possui as mesmas idéias os mesmos gostos as mesmas preferências e os mesmos valores preferisse analisar O que é um valor O que é um valor moral O que é um valor artístico O que é a moral O que é a vontade O que é a liberdade Alguém que tomasse essa decisão estaria tomando distância da vida cotidiana e de si mesmo teria passado a indagar o que são as crenças e os sentimentos que alimentam silenciosamente nossa existência Ao tomar essa distância estaria interrogando a si mesmo desejando conhecer por que cremos no que cremos por que sentimos o que sentimos e o que são nossas crenças e nossos sentimentos Esse alguém estaria começando a adotar o que chamamos de atitude filosófica Assim uma primeira resposta à pergunta O que é Filosofia poderia ser A decisão de não aceitar como óbvias e evidentes as coisas as idéias os fatos as situações os valores os comportamentos de nossa existência cotidiana jamais aceitálos sem antes havêlos investigado e compreendido Perguntaram certa vez a um filósofo Para que Filosofia E ele respondeu Para não darmos nossa aceitação imediata às coisas sem maiores considerações A atitude crítica A primeira característica da atitude filosófica é negativa isto é um dizer não ao senso comum aos préconceitos aos préjuízos aos fatos e às idéias da experiência cotidiana ao que todo mundo diz e pensa ao estabelecido A segunda característica da atitude filosófica é positiva isto é uma interrogação sobre o que são as coisas as idéias os fatos as situações os comportamentos os valores nós mesmos É também uma interrogação sobre o porquê disso tudo e de nós e uma interrogação sobre como tudo isso é assim e não de outra maneira O que é Por que é Como é Essas são as indagações fundamentais da atitude filosófica A face negativa e a face positiva da atitude filosófica constituem o que chamamos de atitude crítica e pensamento crítico A Filosofia começa dizendo não às crenças e aos preconceitos do senso comum e portanto começa dizendo que não sabemos o que imaginávamos saber por isso o patrono da Filosofia o grego Sócrates afirmava que a primeira e fundamental verdade filosófica é dizer Sei que nada sei Para o discípulo de Sócrates o filósofo grego Platão a Filosofia começa com a admiração já o discípulo de Platão o filósofo Aristóteles acreditava que a Filosofia começa com o espanto Admiração e espanto significam tomamos distância do nosso mundo costumeiro através de nosso pensamento olhandoo como se nunca o tivéssemos visto antes Convite à Filosofia 10 como se não tivéssemos tido família amigos professores livros e outros meios de comunicação que nos tivessem dito o que o mundo é como se estivéssemos acabando de nascer para o mundo e para nós mesmos e precisássemos perguntar o que é por que é e como é o mundo e precisássemos perguntar também o que somos por que somos e como somos Para que Filosofia Ora muitos fazem uma outra pergunta afinal para que Filosofia É uma pergunta interessante Não vemos nem ouvimos ninguém perguntar por exemplo para que matemática ou física Para que geografia ou geologia Para que história ou sociologia Para que biologia ou psicologia Para que astronomia ou química Para que pintura literatura música ou dança Mas todo mundo acha muito natural perguntar Para que Filosofia Em geral essa pergunta costuma receber uma resposta irônica conhecida dos estudantes de Filosofia A Filosofia é uma ciência com a qual e sem a qual o mundo permanece tal e qual Ou seja a Filosofia não serve para nada Por isso se costuma chamar de filósofo alguém sempre distraído com a cabeça no mundo da lua pensando e dizendo coisas que ninguém entende e que são perfeitamente inúteis Essa pergunta Para que Filosofia tem a sua razão de ser Em nossa cultura e em nossa sociedade costumamos considerar que alguma coisa só tem o direito de existir se tiver alguma finalidade prática muito visível e de utilidade imediata Por isso ninguém pergunta para que as ciências pois todo mundo imagina ver a utilidade das ciências nos produtos da técnica isto é na aplicação científica à realidade Todo mundo também imagina ver a utilidade das artes tanto por causa da compra e venda das obras de arte quanto porque nossa cultura vê os artistas como gênios que merecem ser valorizados para o elogio da humanidade Ninguém todavia consegue ver para que serviria a Filosofia donde dizerse não serve para coisa alguma Parece porém que o senso comum não enxerga algo que os cientistas sabem muito bem As ciências pretendem ser conhecimentos verdadeiros obtidos graças a procedimentos rigorosos de pensamento pretendem agir sobre a realidade através de instrumentos e objetos técnicos pretendem fazer progressos nos conhecimentos corrigindoos e aumentandoos Ora todas essas pretensões das ciências pressupõem que elas acreditam na existência da verdade de procedimentos corretos para bem usar o pensamento na tecnologia como aplicação prática de teorias na racionalidade dos conhecimentos porque podem ser corrigidos e aperfeiçoados Marilena Chauí 11 Verdade pensamento procedimentos especiais para conhecer fatos relação entre teoria e prática correção e acúmulo de saberes tudo isso não é ciência são questões filosóficas O cientista parte delas como questões já respondidas mas é a Filosofia quem as formula e busca respostas para elas Assim o trabalho das ciências pressupõe como condição o trabalho da Filosofia mesmo que o cientista não seja filósofo No entanto como apenas os cientistas e filósofos sabem disso o senso comum continua afirmando que a Filosofia não serve para nada Para dar alguma utilidade à Filosofia muitos consideram que de fato a Filosofia não serviria para nada se servir fosse entendido como a possibilidade de fazer usos técnicos dos produtos filosóficos ou darlhes utilidade econômica obtendo lucros com eles consideram também que a Filosofia nada teria a ver com a ciência e a técnica Para quem pensa dessa forma o principal para a Filosofia não seriam os conhecimentos que ficam por conta da ciência nem as aplicações de teorias que ficam por conta da tecnologia mas o ensinamento moral ou ético A Filosofia seria a arte do bem viver Estudando as paixões e os vícios humanos a liberdade e a vontade analisando a capacidade de nossa razão para impor limites aos nossos desejos e paixões ensinandonos a viver de modo honesto e justo na companhia dos outros seres humanos a Filosofia teria como finalidade ensinar nos a virtude que é o princípio do bemviver Essa definição da Filosofia porém não nos ajuda muito De fato mesmo para ser uma arte moral ou ética ou uma arte do bemviver a Filosofia continua fazendo suas perguntas desconcertantes e embaraçosas O que é o homem O que é a vontade O que é a paixão O que é a razão O que é o vício O que é a virtude O que é a liberdade Como nos tornamos livres racionais e virtuosos Por que a liberdade e a virtude são valores para os seres humanos O que é um valor Por que avaliamos os sentimentos e as ações humanas Assim mesmo se disséssemos que o objeto da Filosofia não é o conhecimento da realidade nem o conhecimento da nossa capacidade para conhecer mesmo se disséssemos que o objeto da Filosofia é apenas a vida moral ou ética ainda assim o estilo filosófico e a atitude filosófica permaneceriam os mesmos pois as perguntas filosóficas o que por que e como permanecem Atitude filosófica indagar Se portanto deixarmos de lado por enquanto os objetos com os quais a Filosofia se ocupa veremos que a atitude filosófica possui algumas características que são as mesmas independentemente do conteúdo investigado Essas características são perguntar o que a coisa ou o valor ou a idéia é A Filosofia pergunta qual é a realidade ou natureza e qual é a significação de alguma coisa não importa qual Convite à Filosofia 12 perguntar como a coisa a idéia ou o valor é A Filosofia indaga qual é a estrutura e quais são as relações que constituem uma coisa uma idéia ou um valor perguntar por que a coisa a idéia ou o valor existe e é como é A Filosofia pergunta pela origem ou pela causa de uma coisa de uma idéia de um valor A atitude filosófica iniciase dirigindo essas indagações ao mundo que nos rodeia e às relações que mantemos com ele Pouco a pouco porém descobre que essas questões se referem afinal à nossa capacidade de conhecer à nossa capacidade de pensar Por isso pouco a pouco as perguntas da Filosofia se dirigem ao próprio pensamento o que é pensar como é pensar por que há o pensar A Filosofia tornase então o pensamento interrogandose a si mesmo Por ser uma volta que o pensamento realiza sobre si mesmo a Filosofia se realiza como reflexão A reflexão filosófica Reflexão significa movimento de volta sobre si mesmo ou movimento de retorno a si mesmo A reflexão é o movimento pelo qual o pensamento voltase para si mesmo interrogando a si mesmo A reflexão filosófica é radical porque é um movimento de volta do pensamento sobre si mesmo para conhecerse a si mesmo para indagar como é possível o próprio pensamento Não somos porém somente seres pensantes Somos também seres que agem no mundo que se relacionam com os outros seres humanos com os animais as plantas as coisas os fatos e acontecimentos e exprimimos essas relações tanto por meio da linguagem quanto por meio de gestos e ações A reflexão filosófica também se volta para essas relações que mantemos com a realidade circundante para o que dizemos e para as ações que realizamos nessas relações A reflexão filosófica organizase em torno de três grandes conjuntos de perguntas ou questões 1 Por que pensamos o que pensamos dizemos o que dizemos e fazemos o que fazemos Isto é quais os motivos as razões e as causas para pensarmos o que pensamos dizermos o que dizemos fazermos o que fazemos 2 O que queremos pensar quando pensamos o que queremos dizer quando falamos o que queremos fazer quando agimos Isto é qual é o conteúdo ou o sentido do que pensamos dizemos ou fazemos 3 Para que pensamos o que pensamos dizemos o que dizemos fazemos o que fazemos Isto é qual é a intenção ou a finalidade do que pensamos dizemos e fazemos Marilena Chauí 13 Essas três questões podem ser resumidas em O que é pensar falar e agir E elas pressupõem a seguinte pergunta Nossas crenças cotidianas são ou não um saber verdadeiro um conhecimento Como vimos a atitude filosófica iniciase indagando O que é Como é Por que é dirigindose ao mundo que nos rodeia e aos seres humanos que nele vivem e com ele se relacionam São perguntas sobre a essência a significação ou a estrutura e a origem de todas as coisas Já a reflexão filosófica indaga Por quê O quê Para quê dirigindose ao pensamento aos seres humanos no ato da reflexão São perguntas sobre a capacidade e a finalidade humanas para conhecer e agir Filosofia um pensamento sistemático Essas indagações fundamentais não se realizam ao acaso segundo preferências e opiniões de cada um de nós A Filosofia não é um eu acho que ou um eu gosto de Não é pesquisa de opinião à maneira dos meios de comunicação de massa Não é pesquisa de mercado para conhecer preferências dos consumidores e montar uma propaganda As indagações filosóficas se realizam de modo sistemático Que significa isso Significa que a Filosofia trabalha com enunciados precisos e rigorosos busca encadeamentos lógicos entre os enunciados opera com conceitos ou idéias obtidos por procedimentos de demonstração e prova exige a fundamentação racional do que é enunciado e pensado Somente assim a reflexão filosófica pode fazer com que nossa experiência cotidiana nossas crenças e opiniões alcancem uma visão crítica de si mesmas Não se trata de dizer eu acho que mas de poder afirmar eu penso que O conhecimento filosófico é um trabalho intelectual É sistemático porque não se contenta em obter respostas para as questões colocadas mas exige que as próprias questões sejam válidas e em segundo lugar que as respostas sejam verdadeiras estejam relacionadas entre si esclareçam umas às outras formem conjuntos coerentes de idéias e significações sejam provadas e demonstradas racionalmente Quando o senso comum diz esta é minha filosofia ou isso é a filosofia de fulana ou de fulano enganase e não se engana Enganase porque imagina que para ter uma filosofia basta alguém possuir um conjunto de idéias mais ou menos coerentes sobre todas as coisas e pessoas bem como ter um conjunto de princípios mais ou menos coerentes para julgar as coisas e as pessoas Minha filosofia ou a filosofia de fulano ficam no plano de um eu acho coerente Convite à Filosofia 14 Mas o senso comum não se engana ao usar essas expressões porque percebe ainda que muito confusamente que há uma característica nas idéias e nos princípios que nos leva a dizer que são uma filosofia a coerência as relações entre as idéias e entre os princípios Ou seja o senso comum pressente que a Filosofia opera sistematicamente com coerência e lógica que a Filosofia tem uma vocação para formar um todo daquilo que aparece de modo fragmentado em nossa experiência cotidiana Em busca de uma definição da Filosofia Quando começamos a estudar Filosofia somos logo levados a buscar o que ela é Nossa primeira surpresa surge ao descobrirmos que não há apenas uma definição da Filosofia mas várias A segunda surpresa vem ao percebermos que além de várias as definições parecem contradizerse Eis porque muitos cheios de perplexidade indagam afinal o que é a Filosofia que sequer consegue dizer o que ela é Uma primeira aproximação nos mostra pelo menos quatro definições gerais do que seria a Filosofia 1 Visão de mundo de um povo de uma civilização ou de uma cultura Filosofia corresponde de modo vago e geral ao conjunto de idéias valores e práticas pelos quais uma sociedade apreende e compreende o mundo e a si mesma definindo para si o tempo e o espaço o sagrado e o profano o bom e o mau o justo e o injusto o belo e o feio o verdadeiro e o falso o possível e o impossível o contingente e o necessário Qual o problema dessa definição Ela é tão genérica e tão ampla que não permite por exemplo distinguir a Filosofia e religião Filosofia e arte Filosofia e ciência Na verdade essa definição identifica Filosofia e Cultura pois esta é uma visão de mundo coletiva que se exprime em idéias valores e práticas de uma sociedade A definição portanto não consegue acercarse da especificidade do trabalho filosófico e por isso não podemos aceitála 2 Sabedoria de vida Aqui a Filosofia é identificada com a definição e a ação de algumas pessoas que pensam sobre a vida moral dedicandose à contemplação do mundo para aprender com ele a controlar e dirigir suas vidas de modo ético e sábio A Filosofia seria uma contemplação do mundo e dos homens para nos conduzir a uma vida justa sábia e feliz ensinandonos o domínio sobre nós mesmos sobre nossos impulsos desejos e paixões É nesse sentido que se fala por exemplo numa filosofia do budismo Esta definição porém nos diz de modo vago o que se espera da Filosofia a sabedoria interior mas não o que é e o que faz a Filosofia e por isso também não podemos aceitála Marilena Chauí 15 3 Esforço racional para conceber o Universo como uma totalidade ordenada e dotada de sentido Nesse caso começase distinguindo entre Filosofia e religião e até mesmo opondo uma à outra pois ambas possuem o mesmo objeto compreender o Universo mas a primeira o faz através do esforço racional enquanto a segunda por confiança fé numa revelação divina Ou seja a Filosofia procura discutir até o fim o sentido e o fundamento da realidade enquanto a consciência religiosa se baseia num dado primeiro e inquestionável que é a revelação divina indemonstrável Pela fé a religião aceita princípios indemonstráveis e até mesmo aqueles que podem ser considerados irracionais pelo pensamento enquanto a Filosofia não admite indemonstrabilidade e irracionalidade Pelo contrário a consciência filosófica procura explicar e compreender o que parece ser irracional e inquestionável No entanto esta definição também é problemática porque dá à Filosofia a tarefa de oferecer uma explicação e uma compreensão totais sobre o Universo elaborando um sistema universal ou um sistema do mundo mas sabemos hoje que essa tarefa é impossível Há pelo menos duas limitações principais a esta pretensão totalizadora em primeiro lugar porque a explicação sobre a realidade também é oferecida pelas ciências e pelas artes cada uma das quais definindo um aspecto e um campo da realidade para estudo no caso das ciências e para a expressão no caso das artes já não sendo pensável uma única disciplina que pudesse abranger sozinha a totalidade dos conhecimentos em segundo lugar porque a própria Filosofia já não admite que seja possível um sistema de pensamento único que ofereça uma única explicação para o todo da realidade Por isso esta definição também não pode ser aceita 4 Fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e das práticas A Filosofia cada vez mais ocupase com as condições e os princípios do conhecimento que pretenda ser racional e verdadeiro com a origem a forma e o conteúdo dos valores éticos políticos artísticos e culturais com a compreensão das causas e das formas da ilusão e do preconceito no plano individual e coletivo com as transformações históricas dos conceitos das idéias e dos valores A Filosofia voltase também para o estudo da consciência em suas várias modalidades percepção imaginação memória linguagem inteligência experiência reflexão comportamento vontade desejo e paixões procurando descrever as formas e os conteúdos dessas modalidades de relação entre o ser humano e o mundo do ser humano consigo mesmo e com os outros Finalmente a Filosofia visa ao estudo e à interpretação de idéias ou significações gerais como realidade mundo natureza cultura história subjetividade objetividade diferença repetição semelhança conflito contradição mudança etc Convite à Filosofia 16 Sem abandonar as questões sobre a essência da realidade a Filosofia procura diferenciarse das ciências e das artes dirigindo a investigação sobre o mundo natural e o mundo histórico ou humano num momento muito preciso quando perdemos nossas certezas cotidianas e quando as ciências e as artes ainda não ofereceram outras certezas para substituir as que perdemos Em outras palavras a Filosofia se interessa por aquele instante em que a realidade natural o mundo das coisas e a histórica o mundo dos homens tornamse estranhas espantosas incompreensíveis e enigmáticas quando o senso comum já não sabe o que pensar e dizer e as ciências e as artes ainda não sabem o que pensar e dizer Esta última descrição da atividade filosófica capta a Filosofia como análise das condições da ciência da religião da arte da moral como reflexão isto é volta da consciência para si mesma para conhecerse enquanto capacidade para o conhecimento o sentimento e a ação e como crítica das ilusões e dos preconceitos individuais e coletivos das teorias e práticas científicas políticas e artísticas essas três atividades análise reflexão e crítica estando orientadas pela elaboração filosófica de significações gerais sobre a realidade e os seres humanos Além de análise reflexão e crítica a Filosofia é a busca do fundamento e do sentido da realidade em suas múltiplas formas indagando o que são qual sua permanência e qual a necessidade interna que as transforma em outras O que é o ser e o aparecerdesaparecer dos seres A Filosofia não é ciência é uma reflexão crítica sobre os procedimentos e conceitos científicos Não é religião é uma reflexão crítica sobre as origens e formas das crenças religiosas Não é arte é uma interpretação crítica dos conteúdos das formas das significações das obras de arte e do trabalho artístico Não é sociologia nem psicologia mas a interpretação e avaliação crítica dos conceitos e métodos da sociologia e da psicologia Não é política mas interpretação compreensão e reflexão sobre a origem a natureza e as formas do poder Não é história mas interpretação do sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo e compreensão do que seja o próprio tempo Conhecimento do conhecimento e da ação humanos conhecimento da transformação temporal dos princípios do saber e do agir conhecimento da mudança das formas do real ou dos seres a Filosofia sabe que está na História e que possui uma história Inútil Útil O primeiro ensinamento filosófico é perguntar O que é o útil Para que e para quem algo é útil O que é o inútil Por que e para quem algo é inútil O senso comum de nossa sociedade considera útil o que dá prestígio poder fama e riqueza Julga o útil pelos resultados visíveis das coisas e das ações identificando utilidade e a famosa expressão levar vantagem em tudo Desse ponto de vista a Filosofia é inteiramente inútil e defende o direito de ser inútil Marilena Chauí 17 Não poderíamos porém definir o útil de outra maneira Platão definia a Filosofia como um saber verdadeiro que deve ser usado em benefício dos seres humanos Descartes dizia que a Filosofia é o estudo da sabedoria conhecimento perfeito de todas as coisas que os humanos podem alcançar para o uso da vida a conservação da saúde e a invenção das técnicas e das artes Kant afirmou que a Filosofia é o conhecimento que a razão adquire de si mesma para saber o que pode conhecer e o que pode fazer tendo como finalidade a felicidade humana Marx declarou que a Filosofia havia passado muito tempo apenas contemplando o mundo e que se tratava agora de conhecêlo para transformálo transformação que traria justiça abundância e felicidade para todos MerleauPonty escreveu que a Filosofia é um despertar para ver e mudar nosso mundo Espinosa afirmou que a Filosofia é um caminho árduo e difícil mas que pode ser percorrido por todos se desejarem a liberdade e a felicidade Qual seria então a utilidade da Filosofia Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil se não se deixar guiar pela submissão às idéias dominantes e aos poderes estabelecidos for útil se buscar compreender a significação do mundo da cultura da história for útil se conhecer o sentido das criações humanas nas artes nas ciências e na política for útil se dar a cada um de nós e à nossa sociedade os meios para serem conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a liberdade e a felicidade para todos for útil então podemos dizer que a Filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos são capazes Convite à Filosofia 18 Unidade 1 A Filosofia Marilena Chauí 19 Capítulo 1 A origem da Filosofia A palavra filosofia A palavra filosofia é grega É composta por duas outras philo e sophia Philo derivase de philia que significa amizade amor fraterno respeito entre os iguais Sophia quer dizer sabedoria e dela vem a palavra sophos sábio Filosofia significa portanto amizade pela sabedoria amor e respeito pelo saber Filósofo o que ama a sabedoria tem amizade pelo saber deseja saber Assim filosofia indica um estado de espírito o da pessoa que ama isto é deseja o conhecimento o estima o procura e o respeita Atribuise ao filósofo grego Pitágoras de Samos que viveu no século V antes de Cristo a invenção da palavra filosofia Pitágoras teria afirmado que a sabedoria plena e completa pertence aos deuses mas que os homens podem desejála ou amála tornandose filósofos Dizia Pitágoras que três tipos de pessoas compareciam aos jogos olímpicos a festa mais importante da Grécia as que iam para comerciar durante os jogos ali estando apenas para servir aos seus próprios interesses e sem preocupação com as disputas e os torneios as que iam para competir isto é os atletas e artistas pois durante os jogos também havia competições artísticas dança poesia música teatro e as que iam para contemplar os jogos e torneios para avaliar o desempenho e julgar o valor dos que ali se apresentavam Esse terceiro tipo de pessoa dizia Pitágoras é como o filósofo Com isso Pitágoras queria dizer que o filósofo não é movido por interesses comerciais não coloca o saber como propriedade sua como uma coisa para ser comprada e vendida no mercado também não é movido pelo desejo de competir não faz das idéias e dos conhecimentos uma habilidade para vencer competidores ou atletas intelectuais mas é movido pelo desejo de observar contemplar julgar e avaliar as coisas as ações a vida em resumo pelo desejo de Convite à Filosofia 20 saber A verdade não pertence a ninguém ela é o que buscamos e que está diante de nós para ser contemplada e vista se tivermos olhos do espírito para vêla A Filosofia é grega A Filosofia entendida como aspiração ao conhecimento racional lógico e sistemático da realidade natural e humana da origem e causas do mundo e de suas transformações da origem e causas das ações humanas e do próprio pensamento é um fato tipicamente grego Evidentemente isso não quer dizer de modo algum que outros povos tão antigos quanto os gregos como os chineses os hindus os japoneses os árabes os persas os hebreus os africanos ou os índios da América não possuam sabedoria pois possuíam e possuem Também não quer dizer que todos esses povos não tivessem desenvolvido o pensamento e formas de conhecimento da Natureza e dos seres humanos pois desenvolveram e desenvolvem Quando se diz que a Filosofia é um fato grego o que se quer dizer é que ela possui certas características apresenta certas formas de pensar e de exprimir os pensamentos estabelece certas concepções sobre o que sejam a realidade o pensamento a ação as técnicas que são completamente diferentes das características desenvolvidas por outros povos e outras culturas Vejamos um exemplo Os chineses desenvolveram um pensamento muito profundo sobre a existência de coisas seres e ações contrários ou opostos que formam a realidade Deram às oposições o nome de dois princípios Yin e Yang Yin é o princípio feminino passivo na Natureza representado pela escuridão o frio e a umidade Yang é o princípio masculino ativo na Natureza representado pela luz o calor e o seco Os dois princípios se combinam e formam todas as coisas que por isso são feitas de contrários ou de oposições O mundo portanto é feito da atividade masculina e da passividade feminina Tomemos agora um filósofo grego por exemplo o próprio Pitágoras Que diz ele Que a Natureza é feita de um sistema de relações ou de proporções matemáticas produzidas a partir da unidade o número 1 e o ponto da oposição entre os números pares e ímpares e da combinação entre as superfícies e os volumes as figuras geométricas de tal modo que essas proporções e combinações aparecem para nossos órgãos dos sentidos sob a forma de qualidades contrárias quentefrio secoúmido ásperoliso claroescuro grande pequeno doceamargo duromole etc Para Pitágoras o pensamento alcança a realidade em sua estrutura matemática enquanto nossos sentidos ou nossa percepção alcançam o modo como a estrutura matemática da Natureza aparece para nós isto é sob a forma de qualidades opostas Qual a diferença entre o pensamento chinês e o do filósofo grego O pensamento chinês toma duas características masculino e feminino existentes em alguns seres os animais e os humanos e considera que o Universo inteiro é Marilena Chauí 21 feito da oposição entre qualidades atribuídas a dois sexos diferentes de sorte que o mundo é organizado pelo princípio da sexualidade animal ou humana O pensamento de Pitágoras apanha a Natureza numa generalidade muito mais ampla do que a sexualidade própria a alguns seres da Natureza e faz distinção entre as qualidades sensoriais que nos aparecem e a estrutura invisível da Natureza que para ele é de tipo matemático e alcançada apenas pelo intelecto ou inteligência São diferenças desse tipo além de muitas outras que nos levam a dizer que existe uma sabedoria chinesa uma sabedoria hindu uma sabedoria dos índios mas não há filosofia chinesa filosofia hindu ou filosofia indígena Em outras palavras Filosofia é um modo de pensar e exprimir os pensamentos que surgiu especificamente com os gregos e que por razões históricas e políticas tornouse depois o modo de pensar e de se exprimir predominante da chamada cultura européia ocidental da qual em decorrência da colonização portuguesa do Brasil nós também participamos Através da Filosofia os gregos instituíram para o Ocidente europeu as bases e os princípios fundamentais do que chamamos razão racionalidade ciência ética política técnica arte Aliás basta observarmos que palavras como lógica técnica ética política monarquia anarquia democracia física diálogo biologia cronologia gênese genealogia cirurgia ortopedia pedagogia farmácia entre muitas outras são palavras gregas para percebermos a influência decisiva e predominante da Filosofia grega sobre a formação do pensamento e das instituições das sociedades européias ocidentais É por isso que em decorrência do predomínio da economia capitalista criada pelo Ocidente e que impõe um certo tipo de desenvolvimento das ciências e das técnicas falamos por exemplo em ocidentalização dos chineses ocidentalização dos árabes etc Com isso queremos significar que modos de pensar e de agir criados no Ocidente pela Filosofia grega foram incorporados até mesmo por culturas e sociedades muito diferentes daquela onde nasceu a Filosofia É pelo mesmo motivo que falamos em orientalismos e orientalistas para indicar pessoas que buscam no budismo no confucionismo no Yin e no Yang nos mantras nas pirâmides nas auras nas pedras e cristais maneiras de pensar e de explicar a realidade a Natureza a vida e as ações humanas que não são próprias ou específicas do Ocidente isto é são diferentes do padrão de pensamento e de explicação que foram criados pelos gregos a partir do século VII antes de Cristo época em que nasce a Filosofia Convite à Filosofia 22 O legado da Filosofia grega para o Ocidente europeu Por causa da colonização européia das Américas nós também fazemos parte ainda que de modo inferiorizado e colonizado do Ocidente europeu e assim também somos herdeiros do legado que a Filosofia grega deixou para o pensamento ocidental europeu Desse legado podemos destacar como principais contribuições as seguintes A idéia de que a Natureza opera obedecendo a leis e princípios necessários e universais isto é os mesmos em toda a parte e em todos os tempos Assim por exemplo graças aos gregos no século XVII da nossa era o filósofo inglês Isaac Newton estabeleceu a lei da gravitação universal de todos os corpos da Natureza A lei da gravitação afirma que todo corpo quando sofre a ação de um outro produz uma reação igual e contrária que pode ser calculada usando como elementos do cálculo a massa do corpo afetado a velocidade e o tempo com que a ação e a reação se deram Essa lei é necessária isto é nenhum corpo do Universo escapa dela e pode funcionar de outra maneira que não desta e esta lei é universal isto é válida para todos os corpos em todos os tempos e lugares Um outro exemplo as leis geométricas do triângulo ou do círculo conforme demonstraram os filósofos gregos são universais e necessárias isto é seja em Tóquio em 1993 em Copenhague em 1970 em Lisboa em 1810 em São Paulo em 1792 em Moçambique em 1661 ou em Nova York em 1975 as leis do triângulo ou do círculo são necessariamente as mesmas A idéia de que as leis necessárias e universais da Natureza podem ser plenamente conhecidas pelo nosso pensamento isto é não são conhecimentos misteriosos e secretos que precisariam ser revelados por divindades mas são conhecimentos que o pensamento humano por sua própria força e capacidade pode alcançar A idéia de que nosso pensamento também opera obedecendo a leis regras e normas universais e necessárias segundo as quais podemos distinguir o verdadeiro do falso Em outras palavras a idéia de que o nosso pensamento é lógico ou segue leis lógicas de funcionamento Nosso pensamento diferencia uma afirmação de uma negação porque na afirmação atribuímos alguma coisa a outra coisa quando afirmamos que Sócrates é um ser humano atribuímos humanidade a Sócrates e na negação retiramos alguma coisa de outra quando dizemos este caderno não é verde estamos retirando do caderno a cor verde Nosso pensamento distingue quando uma afirmação é verdadeira ou falsa Se alguém apresentar o seguinte raciocínio Todos os homens são mortais Sócrates é homem Logo Sócrates é mortal diremos que a afirmação Sócrates é mortal Marilena Chauí 23 é verdadeira porque foi concluída de outras afirmações que já sabemos serem verdadeiras A idéia de que as práticas humanas isto é a ação moral a política as técnicas e as artes dependem da vontade livre da deliberação e da discussão da nossa escolha passional ou emocional ou racional de nossas preferências segundo certos valores e padrões que foram estabelecidos pelos próprios seres humanos e não por imposições misteriosas e incompreensíveis que lhes teriam sido feitas por forças secretas invisíveis sejam elas divinas ou naturais e impossíveis de serem conhecidas A idéia de que os acontecimentos naturais e humanos são necessários porque obedecem a leis naturais ou da natureza humana mas também podem ser contingentes ou acidentais quando dependem das escolhas e deliberações dos homens em condições determinadas Dessa forma uma pedra cai porque seu peso por uma lei natural exige que ela caia natural e necessariamente um ser humano anda porque as leis anatômicas e fisiológicas que regem o seu corpo fazem com que ele tenha os meios necessários para a locomoção No entanto se uma pedra ao cair atingir a cabeça de um passante esse acontecimento é contingente ou acidental Por quê Porque se o passante não estivesse andando por ali naquela hora a pedra não o atingiria Assim a queda da pedra é necessária e o andar de um ser humano é necessário mas que uma pedra caia sobre minha cabeça quando ando é inteiramente contingente ou acidental Todavia é muito diferente a situação das ações humanas É verdade que é por uma necessidade natural ou por uma lei da Natureza que ando Mas é por deliberação voluntária que ando para ir à escola em vez de andar para ir ao cinema por exemplo É verdade que é por uma lei necessária da Natureza que os corpos pesados caem mas é por uma deliberação humana e por uma escolha voluntária que fabrico uma bomba a coloco num avião e a faço despencar sobre Hiroshima Um dos legados mais importantes da Filosofia grega é portanto essa diferença entre o necessário e o contingente pois ela nos permite evitar o fatalismo tudo é necessário temos que nos conformar e nos resignar mas também evitar a ilusão de que podemos tudo quanto quisermos se alguma força extranatural ou sobrenatural nos ajudar pois a Natureza segue leis necessárias que podemos conhecer e nem tudo é possível por mais que o queiramos A idéia de que os seres humanos por Natureza aspiram ao conhecimento verdadeiro à felicidade à justiça isto é que os seres humanos não vivem nem agem cegamente mas criam valores pelo quais dão sentido às suas vidas e às suas ações Convite à Filosofia 24 A Filosofia surge portanto quando alguns gregos admirados e espantados com a realidade insatisfeitos com as explicações que a tradição lhes dera começaram a fazer perguntas e buscar respostas para elas demonstrando que o mundo e os seres humanos os acontecimentos e as coisas da Natureza os acontecimentos e as ações humanas podem ser conhecidos pela razão humana e que a própria razão é capaz de conhecerse a si mesma Em suma a Filosofia surge quando se descobriu que a verdade do mundo e dos humanos não era algo secreto e misterioso que precisasse ser revelado por divindades a alguns escolhidos mas que ao contrário podia ser conhecida por todos através da razão que é a mesma em todos quando se descobriu que tal conhecimento depende do uso correto da razão ou do pensamento e que além da verdade poder ser conhecida por todos podia pelo mesmo motivo ser ensinada ou transmitida a todos Marilena Chauí 25 Capítulo 2 O nascimento da Filosofia Ouvindo a voz dos poetas Escutemos por um instante a voz dos poetas porque ela costuma exprimir o que chamamos de sentimento do mundo o sentimento da velhice e da juventude perene do mundo da grandeza e da pequeneza dos humanos ou dos mortais Assim o poeta grego Arquíloco escreveu E não te esqueças meu coração que as coisas humanas apenas mudanças incertas são Outro poeta grego Teógnis cantando sobre a brevidade da vida dizia Choremos a juventude e a velhice também pois a primeira foge e a segunda sempre vem Também o poeta grego Píndaro falava do sentimento das coisas humanas como passageiras A glória dos mortais num só dia cresce Mas basta um só dia contrário e funesto para que o destino impiedoso num gesto a lance por terra e ela súbito fenece Mas não só a vida e os feitos dos humanos são breves e frágeis Os poetas também exprimem o sentimento de que o mundo é tecido por mudanças e repetições intermináveis A esse respeito a poetisa brasileira Orides Fontela escreveu O vento a chuva o sol o frio Tudo vai e vem tudo vem e vai E o poeta brasileiro Carlos Drummond por sua vez lamentou Como a vida muda Como a vida é muda Como a vida é nuda Como a vida é nada Como a vida é tudo Como a vida é senha Convite à Filosofia 26 de outra vida nova Como a vida é vida ainda quando morte Como a vida é forte em suas algemas Como a vida é bela Como a vida vale mais que a própria vida sempre renascida O sentimento de renovação e beleza do mundo da vida dos seres humanos é o que transparece nos versos do poeta brasileiro Mário Quintana nos seguintes versos Quando abro a cada manhã a janela do meu quarto É como se abrisse o mesmo livro Numa página nova E por isso em outros versos seus lemos O encanto sobrenatural que há nas coisas da Natureza se nela algo te dá encanto ou medo não me digas que seja feia ou má é acaso singular Numa das obras poéticas mais importantes da cultura do Ocidente europeu as Metamorfoses o poeta romano Ovídio exprimiu todos esses sentimentos que experimentamos diante da mudança da renovação e da repetição do nascimento e da morte das coisas e dos seres humanos Na parte final de sua obra lemos Não há coisa alguma que persista em todo o Universo Tudo flui e tudo só apresenta uma imagem passageira O próprio tempo passa com um movimento contínuo como um rio O que foi antes já não é o que não tinha sido é e todo instante é uma coisa nova Vês a noite próxima do fim caminhar para o dia e à claridade do dia suceder a escuridão da noite Não vês as estações do ano se sucederem imitando as idades de nossa vida Com efeito a primavera quando surge é semelhante à Marilena Chauí 27 criança nova A planta nova pouco vigorosa rebenta em brotos e enche de esperança o agricultor Tudo floresce O fértil campo resplandece com o colorido das flores mas ainda falta vigor às folhas Entra então a quadra mais forte e vigorosa o verão é a robusta mocidade fecunda e ardente Chega por sua vez o outono passou o fervor da mocidade é a quadra da maturidade o meiotermo entre o jovem e o velho as têmporas embranquecem Vem depois o tristonho inverno é o velho trôpego cujos cabelos ou caíram como as folhas das árvores ou os que restaram estão brancos como a neve dos caminhos Também nossos corpos mudam sempre e sem descanso E também a Natureza não descansa e renovadora encontra outras formas nas formas das coisas Nada morre no vasto mundo mas tudo assume aspectos novos e variados Todos os seres têm sua origem noutros seres Existe uma ave a que os fenícios dão o nome de fênix Não se alimenta de grãos ou ervas mas das lágrimas do incenso e do suco da amônia Quando completa cinco séculos de vida constrói um ninho no alto de uma grande palmeira feito de folhas de canela do aromático nardo e da mirra avermelhada Ali se acomoda e termina a vida entre perfumes De suas cinzas renasce uma pequena fênix que viverá outros cinco séculos Assim também é a Natureza e tudo o que nela existe e persiste O que perguntavam os primeiros filósofos Por que os seres nascem e morrem Por que os semelhantes dão origem aos semelhantes de uma árvore nasce outra árvore de um cão nasce outro cão de uma mulher nasce uma criança Por que os diferentes também parecem fazer surgir os diferentes o dia parece fazer nascer a noite o inverno parece fazer surgir a primavera um objeto escuro clareia com o passar do tempo um objeto claro escurece com o passar do tempo Por que tudo muda A criança se torna adulta amadurece envelhece e desaparece A paisagem cheia de flores na primavera vai perdendo o verde e as cores no outono até ressecarse e retorcerse no inverno Por que um dia luminoso e ensolarado de céu azul e brisa suave repentinamente se torna sombrio coberto de nuvens varrido por ventos furiosos tomado pela tempestade pelos raios e trovões Por que a doença invade os corpos roubalhes a cor a força Por que o alimento que antes me agradava agora que estou doente me causa repugnância Por que o som da música que antes me embalava agora que estou doente parece um ruído insuportável Por que o que parecia uno se multiplica em tantos outros De uma só árvore quantas flores e quantos frutos nascem De uma só gata quantos gatinhos nascem Convite à Filosofia 28 Por que as coisas se tornam opostas ao que eram A água do copo tão transparente e de boa temperatura tornase uma barra dura e gelada deixa de ser líquida e transparente para tornarse sólida e acinzentada O dia que começa frio e gelado pouco a pouco se torna quente e cheio de calor Por que nada permanece idêntico a si mesmo De onde vêm os seres Para onde vão quando desaparecem Por que se transformam Por que se diferenciam uns dos outros Mas também por que tudo parece repetirse Depois do dia a noite depois da noite o dia Depois do inverno a primavera depois da primavera o verão depois deste o outono e depois deste novamente o inverno De dia o sol à noite a lua e as estrelas Na primavera o mar é tranqüilo e propício à navegação no inverno tempestuoso e inimigo dos homens O calor leva as águas para o céu e as traz de volta pelas chuvas Ninguém nasce adulto ou velho mas sempre criança que se torna adulto e velho Foram perguntas como essas que os primeiros filósofos fizeram e para elas buscaram respostas Sem dúvida a religião as tradições e os mitos explicavam todas essas coisas mas suas explicações já não satisfaziam aos que interrogavam sobre as causas da mudança da permanência da repetição da desaparição e do ressurgimento de todos os seres Haviam perdido força explicativa não convenciam nem satisfaziam a quem desejava conhecer a verdade sobre o mundo O nascimento da Filosofia Os historiadores da Filosofia dizem que ela possui data e local de nascimento final do século VII e início do século VI antes de Cristo nas colônias gregas da Ásia Menor particularmente as que formavam uma região denominada Jônia na cidade de Mileto E o primeiro filósofo foi Tales de Mileto Além de possuir data e local de nascimento e de possuir seu primeiro autor a Filosofia também possui um conteúdo preciso ao nascer é uma cosmologia A palavra cosmologia é composta de duas outras cosmos que significa mundo ordenado e organizado e logia que vem da palavra logos que significa pensamento racional discurso racional conhecimento Assim a Filosofia nasce como conhecimento racional da ordem do mundo ou da Natureza donde cosmologia Apesar da segurança desses dados existe um problema que durante séculos vem ocupando os historiadores da Filosofia o de saber se a Filosofia que é um fato especificamente grego nasceu por si mesma ou dependeu de contribuições da sabedoria oriental egípcios assírios persas caldeus babilônios e da sabedoria de civilizações que antecederam à grega na região que antes de ser a Grécia ou a Hélade abrigara as civilizações de Creta Minos Tirento e Micenas Durante muito tempo considerouse que a Filosofia nascera por transformações que os gregos operaram na sabedoria oriental egípcia persa caldéia e Marilena Chauí 29 babilônica Assim filósofos como Platão e Aristóteles afirmavam a origem oriental da Filosofia Os gregos diziam eles povo comerciante e navegante descobriram através das viagens a agrimensura dos egípcios usada para medir as terras após as cheias do Nilo a astrologia dos caldeus e dos babilônios usada para prever grandes guerras subida e queda de reis catástrofes como peste fome furacões as genealogias dos persas usadas para dar continuidade às linhagens e dinastias dos governantes os mistérios religiosos orientais referentes aos rituais de purificação da alma para livrála da reencarnação contínua e garantirlhe o descanso eterno etc A Filosofia teria nascido pelas transformações que os gregos impuseram a esses conhecimentos Dessa forma da agrimensura os gregos fizeram nascer duas ciências a aritmética e a geometria da astrologia fizeram surgir também duas ciências a astronomia e a meteorologia das genealogias fizeram surgir mais uma outra ciência a história dos mistérios religiosos de purificação da alma fizeram surgir as teorias filosóficas sobre a natureza e o destino da alma humana Todos esses conhecimentos teriam propiciado o aparecimento da Filosofia isto é da cosmologia de sorte que a Filosofia só teria podido nascer graças as saber oriental Essa idéia de uma filiação oriental da Filosofia foi muito defendida oito séculos depois de seu nascimento durante os séculos II e III depois de Cristo no período do Império Romano Quem a defendia Os pensadores judaicos como Filo de Alexandria e os Padres da Igreja como Eusébio de Cesaréia e Clemente de Alexandria Por que defendiam a origem oriental da Filosofia grega Pelo seguinte motivo a Filosofia grega tornarase em toda a Antigüidade clássica e para os poderosos da época os romanos a forma superior ou mais elevada do pensamento e da moral Os judeus para valorizar seu pensamento desejavam que a Filosofia tivesse uma origem oriental dizendo que o pensamento de filósofos importantes como Platão tinha surgido no Egito onde se originara o pensamento de Moisés de modo que havia uma ligação entre a Filosofia grega e a Bíblia Os Padres da Igreja por sua vez queriam mostrar que os ensinamentos de Jesus eram elevados e perfeitos não eram superstição nem primitivos e incultos e por isso mostravam que os filósofos gregos estavam filiados a correntes de pensamento místico e oriental e dessa maneira estariam próximos do cristianismo que é uma religião oriental No entanto nem todos aceitaram a tese chamada orientalista e muitos sobretudo no século XIX da nossa era passaram a falar na Filosofia como sendo o milagre grego Com a palavra milagre queriam dizer várias coisas Convite à Filosofia 30 que a Filosofia surgiu inesperada e espantosamente na Grécia sem que nada anterior a preparasse que a Filosofia grega foi um acontecimento espontâneo único e sem par como é próprio de um milagre que os gregos foram um povo excepcional sem nenhum outro semelhante a eles nem antes e nem depois deles e por isso somente eles poderiam ter sido capazes de criar a Filosofia como foram os únicos a criar as ciências e a dar às artes uma elevação que nenhum outro povo conseguiu nem antes e nem depois deles Nem oriental nem milagre Desde o final do século XIX da nossa era e durante o século XX estudos históricos arqueológicos lingüísticos literários e artísticos corrigiram os exageros das duas teses isto é tanto a redução da Filosofia à sua origem oriental quanto o milagre grego Retirados os exageros do orientalismo percebese que de fato a Filosofia tem dívidas com a sabedoria dos orientais não só porque as viagens colocaram os gregos em contato com os conhecimentos produzidos por outros povos sobretudo os egípcios persas babilônios assírios e caldeus mas também porque os dois maiores formadores da cultura grega antiga os poetas Homero e Hesíodo encontraram nos mitos e nas religiões dos povos orientais bem como nas culturas que precederam a grega os elementos para elaborar a mitologia grega que depois seria transformada racionalmente pelos filósofos Assim os estudos recentes mostraram que mitos cultos religiosos instrumentos musicais dança música poesia utensílios domésticos e de trabalho formas de habitação formas de parentesco e formas de organização tribal dos gregos foram resultado de contatos profundos com as culturas mais avançadas do Oriente e com a herança deixada pelas culturas que antecederam a grega nas regiões onde ela se implantou Esses mesmos estudos apontaram porém que se nos afastarmos dos exageros da idéia de um milagre grego podemos perceber o que havia de verdadeiro nessa tese De fato os gregos imprimiram mudanças de qualidade tão profundas no que receberam do Oriente e das culturas precedentes que até pareceria terem criado sua própria cultura a partir de si mesmos Dessas mudanças podemos mencionar quatro que nos darão uma idéia da originalidade grega 1 Com relação aos mitos quando comparamos os mitos orientais cretenses micênicos minóicos e os que aparecem nos poetas Homero e Hesíodo vemos que eles retiraram os aspectos apavorantes e monstruosos dos deuses e do início do mundo humanizaram os deuses divinizaram os homens deram racionalidade a narrativas sobre as origens das coisas dos homens das instituições humanas como o trabalho as leis a moral Marilena Chauí 31 2 Com relação aos conhecimentos os gregos transformaram em ciência isto é num conhecimento racional abstrato e universal aquilo que eram elementos de uma sabedoria prática para o uso direto na vida Assim transformaram em matemática aritmética geometria harmonia o que eram expedientes práticos para medir contar e calcular transformaram em astronomia conhecimento racional da natureza e do movimento dos astros aquilo que eram práticas de adivinhação e previsão do futuro transformaram em medicina conhecimento racional sobre o corpo humano a saúde e a doença aquilo que eram práticas de grupos religiosos secretos para a cura misteriosa das doenças E assim por diante 3 Com relação à organização social e política os gregos não inventaram apenas a ciência ou a Filosofia mas inventaram também a política Todas as sociedades anteriores a eles conheciam e praticavam a autoridade e o governo Mas por que não inventaram a política propriamente dita Nas sociedades orientais e nãogregas o poder e o governo eram exercidos como autoridade absoluta da vontade pessoal e arbitrária de um só homem ou de um pequeno grupo de homens que decidiam sobre tudo sem consultar a ninguém e sem justificar suas decisões para ninguém Os gregos inventaram a política palavra que vem de polis que em grego significa cidade organizada por leis e instituições porque instituíram práticas pelas quais as decisões eram tomadas a partir de discussões e debates públicos e eram adotadas ou revogadas por voto em assembléias públicas porque estabeleceram instituições públicas tribunais assembléias separação entre autoridade do chefe da família e autoridade pública entre autoridade político militar e autoridade religiosa e sobretudo porque criaram a idéia da lei e da justiça como expressões da vontade coletiva pública e não como imposição da vontade de um só ou de um grupo em nome de divindades Os gregos criaram a política porque separaram o poder político e duas outras formas tradicionais de autoridade a do chefe de família e a do sacerdote ou mago 4 Com relação ao pensamento diante da herança recebida os gregos inventaram a idéia ocidental da razão como um pensamento sistemático que segue regras normas e leis de valor universal isto é válidas em todos os tempos e lugares Assim por exemplo em qualquer tempo e lugar 2 2 serão sempre 4 o triângulo sempre terá três lados o Sol sempre será maior do que a Terra mesmo que ele pareça menor do que ela etc Mito e Filosofia Resolvido esse problema agora temos um outro que também tem ocupado muito os estudiosos O novo problema pode ser assim formulado a Filosofia nasceu Convite à Filosofia 32 realizando uma transformação gradual sobre os mitos gregos ou nasceu por uma ruptura radical com os mitos O que é um mito Um mito é uma narrativa sobre a origem de alguma coisa origem dos astros da Terra dos homens das plantas dos animais do fogo da água dos ventos do bem e do mal da saúde e da doença da morte dos instrumentos de trabalho das raças das guerras do poder etc A palavra mito vem do grego mythos e deriva de dois verbos do verbo mytheyo contar narrar falar alguma coisa para outros e do verbo mytheo conversar contar anunciar nomear designar Para os gregos mito é um discurso pronunciado ou proferido para ouvintes que recebem como verdadeira a narrativa porque confiam naquele que narra é uma narrativa feita em público baseada portanto na autoridade e confiabilidade da pessoa do narrador E essa autoridade vem do fato de que ele ou testemunhou diretamente o que está narrando ou recebeu a narrativa de quem testemunhou os acontecimentos narrados Quem narra o mito O poetarapsodo Quem é ele Por que tem autoridade Acreditase que o poeta é um escolhido dos deuses que lhe mostram os acontecimentos passados e permitem que ele veja a origem de todos os seres e de todas as coisas para que possa transmitila aos ouvintes Sua palavra o mito é sagrada porque vem de uma revelação divina O mito é pois incontestável e inquestionável Como o mito narra a origem do mundo e de tudo o que nele existe De três maneiras principais 1 Encontrando o pai e a mãe das coisas e dos seres isto é tudo o que existe decorre de relações sexuais entre forças divinas pessoais Essas relações geram os demais deuses os titãs seres semihumanos e semidivinos os heróis filhos de um deus com uma humana ou de uma deusa com um humano os humanos os metais as plantas os animais as qualidades como quentefrio secoúmido claroescuro bommau justoinjusto belofeio certoerrado etc A narração da origem é assim uma genealogia isto é narrativa da geração dos seres das coisas das qualidades por outros seres que são seus pais ou antepassados Tomemos um exemplo da narrativa mítica Observando que as pessoas apaixonadas estão sempre cheias de ansiedade e de plenitude inventam mil expedientes para estar com a pessoa amada ou para seduzila e também serem amadas o mito narra a origem do amor isto é o nascimento do deus Eros que conhecemos mais com o nome de Cupido Marilena Chauí 33 Houve uma grande festa entre os deuses To dos foram convidados menos a deusa Penúria sempre miserável e faminta Quando a festa acabou Penúria veio comeu os restos e dormiu com o deus Poros o astuto engenhoso Dessa relação sexual nasceu Eros ou Cupido que como sua mãe está sempre faminto sedento e miserável mas como seu pai tem mil astúcias para se satisfazer e se fazer amado Por isso quando Eros fere alguém com sua flecha esse alguém se apaixona e logo se sente faminto e sedento de amor inventa astúcias para ser amado e satisfeito ficando ora maltrapilho e semimorto ora rico e cheio de vida 2 Encontrando uma rivalidade ou uma aliança entre os deuses que faz surgir alguma coisa no mundo Nesse caso o mito narra ou uma guerra entre as forças divinas ou uma aliança entre elas para provocar alguma coisa no mundo dos homens O poeta Homero na Ilíada que narra a guerra de Tróia explica por que em certas batalhas os troianos eram vitoriosos e em outras a vitória cabia aos gregos Os deuses estavam divididos alguns a favor de um lado e outros a favor do outro A cada vez o rei dos deuses Zeus ficava com um dos partidos aliava se com um grupo e fazia um dos lados ou os troianos ou os gregos vencer uma batalha A causa da guerra aliás foi uma rivalidade entre as deusas Elas apareceram em sonho para o príncipe troiano Paris oferecendo a ele seus dons e ele escolheu a deusa do amor Afrodite As outras deusas enciumadas o fizeram raptar a grega Helena mulher do general grego Menelau e isso deu início à guerra entre os humanos 3 Encontrando as recompensas ou castigos que os deuses dão a quem os desobedece ou a quem os obedece Como o mito narra por exemplo o uso do fogo pelos homens Para os homens o fogo é essencial pois com ele se diferenciam dos animais porque tanto passam a cozinhar os alimentos a iluminar caminhos na noite a se aquecer no inverno quanto podem fabricar instrumentos de metal para o trabalho e para a guerra Um titã Prometeu mais amigo dos homens do que dos deuses roubou uma centelha de fogo e a trouxe de presente para os humanos Prometeu foi castigado amarrado num rochedo para que as aves de rapina eternamente devorassem seu fígado e os homens também Qual foi o castigo dos homens Os deuses fizeram uma mulher encantadora Pandora a quem foi entregue uma caixa que conteria coisas maravilhosas mas nunca deveria ser aberta Pandora foi enviada aos humanos e cheia de curiosidade e querendo dar a eles as maravilhas abriu a caixa Dela saíram todas as desgraças doenças pestes guerras e sobretudo a morte Explicase assim a origem dos males no mundo Vemos portanto que o mito narra a origem das coisas por meio de lutas alianças e relações sexuais entre forças sobrenaturais que governam o mundo e o destino Convite à Filosofia 34 dos homens Como os mitos sobre a origem do mundo são genealogias dizse que são cosmogonias e teogonias A palavra gonia vem de duas palavras gregas do verbo gennao engendrar gerar fazer nascer e crescer e do substantivo genos nascimento gênese descendência gênero espécie Gonia portanto quer dizer geração nascimento a partir da concepção sexual e do parto Cosmos como já vimos quer dizer mundo ordenado e organizado Assim a cosmogonia é a narrativa sobre o nascimento e a organização do mundo a partir de forças geradoras pai e mãe divinas Teogonia é uma palavra composta de gonia e theós que em grego significa as coisas divinas os seres divinos os deuses A teogonia é portanto a narrativa da origem dos deuses a partir de seus pais e antepassados Qual é a pergunta dos estudiosos É a seguinte A Filosofia ao nascer é como já dissemos uma cosmologia uma explicação racional sobre a origem do mundo e sobre as causas das transformações e repetições das coisas para isso ela nasce de uma transformação gradual dos mitos ou de uma ruptura radical com os mitos Continua ou rompe com a cosmogonia e a teogonia Duas foram as respostas dadas A primeira delas foi dada nos fins do século XIX e começo do século XX quando reinava um grande otimismo sobre os poderes científicos e capacidades técnicas do homem Diziase então que a Filosofia nasceu por uma ruptura radical com os mitos sendo a primeira explicação científica da realidade produzida pelo Ocidente A segunda resposta foi dada a partir de meados do século XX quando os estudos dos antropólogos e dos historiadores mostraram a importância dos mitos na organização social e cultural das sociedades e como os mitos estão profundamente entranhados nos modos de pensar e de sentir de uma sociedade Por isso diziase que os gregos como qualquer outro povo acreditavam em seus mitos e que a Filosofia nasceu vagarosa e gradualmente do interior dos próprios mitos como uma racionalização deles Atualmente consideramse as duas respostas exageradas e afirmase que a Filosofia percebendo as contradições e limitações dos mitos foi reformulando e racionalizando as narrativas míticas transformandoas numa outra coisa numa explicação inteiramente nova e diferente Quais são as diferenças entre Filosofia e mito Podemos apontar três como as mais importantes 1 O mito pretendia narrar como as coisas eram ou tinham sido no passado imemorial longínquo e fabuloso voltandose para o que era antes que tudo existisse tal como existe no presente A Filosofia ao contrário se preocupa em Marilena Chauí 35 explicar como e por que no passado no presente e no futuro isto é na totalidade do tempo as coisas são como são 2 O mito narrava a origem através de genealogias e rivalidades ou alianças entre forças divinas sobrenaturais e personalizadas enquanto a Filosofia ao contrário explica a produção natural das coisas por elementos e causas naturais e impessoais O mito falava em Urano Ponto e Gaia a Filosofia fala em céu mar e terra O mito narra a origem dos seres celestes os astros terrestres plantas animais homens e marinhos pelos casamentos de Gaia com Urano e Ponto A Filosofia explica o surgimento desses seres por composição combinação e separação dos quatro elementos úmido seco quente e frio ou água terra fogo e ar 3 O mito não se importava com contradições com o fabuloso e o incompreensível não só porque esses eram traços próprios da narrativa mítica como também porque a confiança e a crença no mito vinham da autoridade religiosa do narrador A Filosofia ao contrário não admite contradições fabulação e coisas incompreensíveis mas exige que a explicação seja coerente lógica e racional além disso a autoridade da explicação não vem da pessoa do filósofo mas da razão que é a mesma em todos os seres humanos Condições históricas para o surgimento da Filosofia Resolvido esse problema temos ainda um último a solucionar O que tornou possível o surgimento da Filosofia na Grécia no final do século VII e no início do século VI antes de Cristo Quais as condições materiais isto é econômicas sociais políticas e históricas que permitiram o surgimento da Filosofia Podemos apontar como principais condições históricas para o surgimento da Filosofia na Grécia as viagens marítimas que permitiram aos gregos descobrir que os locais que os mitos diziam habitados por deuses titãs e heróis eram na verdade habitados por outros seres humanos e que as regiões dos mares que os mitos diziam habitados por monstros e seres fabulosos não possuíam nem monstros nem seres fabulosos As viagens produziram o desencantamento ou a desmistificação do mundo que passou assim a exigir uma explicação sobre sua origem explicação que o mito já não podia oferecer a invenção do calendário que é uma forma de calcular o tempo segundo as estações do ano as horas do dia os fatos importantes que se repetem revelando com isso uma capacidade de abstração nova ou uma percepção do tempo como algo natural e não como um poder divino incompreensível a invenção da moeda que permitiu uma forma de troca que não se realiza através das coisas concretas ou dos objetos concretos trocados por semelhança mas uma troca abstrata uma troca feita pelo cálculo do valor semelhante das Convite à Filosofia 36 coisas diferentes revelando portanto uma nova capacidade de abstração e de generalização o surgimento da vida urbana com predomínio do comércio e do artesanato dando desenvolvimento a técnicas de fabricação e de troca e diminuindo o prestígio das famílias da aristocracia proprietária de terras por quem e para quem os mitos foram criados além disso o surgimento de uma classe de comerciantes ricos que precisava encontrar pontos de poder e de prestígio para suplantar o velho poderio da aristocracia de terras e de sangue as linhagens constituídas pelas famílias fez com que se procurasse o prestígio pelo patrocínio e estímulo às artes às técnicas e aos conhecimentos favorecendo um ambiente onde a Filosofia poderia surgir a invenção da escrita alfabética que como a do calendário e a da moeda revela o crescimento da capacidade de abstração e de generalização uma vez que a escrita alfabética ou fonética diferentemente de outras escritas como por exemplo os hieróglifos dos egípcios ou os ideogramas dos chineses supõe que não se represente uma imagem da coisa que está sendo dita mas a idéia dela o que dela se pensa e se transcreve a invenção da política que introduz três aspectos novos e decisivos para o nascimento da Filosofia 1 A idéia da lei como expressão da vontade de uma coletividade humana que decide por si mesma o que é melhor para si e como ela definirá suas relações internas O aspecto legislado e regulado da cidade da polis servirá de modelo para a Filosofia propor o aspecto legislado regulado e ordenado do mundo como um mundo racional 2 O surgimento de um espaço público que faz aparecer um novo tipo de palavra ou de discurso diferente daquele que era proferido pelo mito Neste um poeta vidente que recebia das deusas ligadas à memória a deusa Mnemosyne mãe das Musas que guiavam o poeta uma iluminação misteriosa ou uma revelação sobrenatural dizia aos homens quais eram as decisões dos deuses que eles deveriam obedecer Agora com a polis isto é a cidade política surge a palavra como direito de cada cidadão de emitir em público sua opinião discutila com os outros persuadilos a tomar uma decisão proposta por ele de tal modo que surge o discurso político como a palavra humana compartilhada como diálogo discussão e deliberação humana isto é como decisão racional e exposição dos motivos ou das razões para fazer ou não fazer alguma coisa A política valorizando o humano o pensamento a discussão a persuasão e a decisão racional valorizou o pensamento racional e criou condições para que surgisse o discurso ou a palavra filosófica Marilena Chauí 37 3 A política estimula um pensamento e um discurso que não procuram ser formulados por seitas secretas dos iniciados em mistérios sagrados mas que procuram ao contrário ser públicos ensinados transmitidos comunicados e discutidos A idéia de um pensamento que todos podem compreender e discutir que todos podem comunicar e transmitir é fundamental para a Filosofia Principais características da Filosofia nascente O pensamento filosófico em seu nascimento tinha como traços principais tendência à racionalidade isto é a razão e somente a razão com seus princípios e regras é o critério da explicação de alguma coisa tendência a oferecer respostas conclusivas para os problemas isto é colocado um problema sua solução é submetida à análise à crítica à discussão e à demonstração nunca sendo aceita como uma verdade se não for provado racionalmente que é verdadeira exigência de que o pensamento apresente suas regras de funcionamento isto é o filósofo é aquele que justifica suas idéias provando que segue regras universais do pensamento Para os gregos é uma lei universal do pensamento que a contradição indica erro ou falsidade Uma contradição acontece quando afirmo e nego a mesma coisa sobre uma mesma coisa por exemplo Pedro é um menino e não um menino A noite é escura e clara O infinito não tem limites e é limitado Assim quando uma contradição aparecer numa exposição filosófica ela deve ser considerada falsa recusa de explicações preestabelecidas e portanto exigência de que para cada problema seja investigada e encontrada a solução própria exigida por ele tendência à generalização isto é mostrar que uma explicação tem validade para muitas coisas diferentes porque sob a variação percebida pelos órgãos de nossos sentidos o pensamento descobre semelhanças e identidades Por exemplo para meus olhos meu tato e meu olfato o gelo é diferente da neblina que é diferente do vapor de uma chaleira que é diferente da chuva que é diferente da correnteza de um rio No entanto o pensamento mostra que se trata sempre de um mesmo elemento a água passando por diferentes estados e formas líquido sólido gasoso por causas naturais diferentes condensação liquefação evaporação Reunindo semelhanças o pensamento conclui que se trata de uma mesma coisa que aparece para nossos sentidos de maneiras diferentes e como se fossem coisas diferentes O pensamento generaliza porque abstrai isto é separa e reúne os traços semelhantes ou seja realiza uma síntese E o contrário também ocorre Muitas vezes nossos órgãos dos sentidos nos fazem perceber coisas diferentes como se fossem a mesma coisa e o pensamento demonstrará que se trata de uma coisa diferente sob a aparência da semelhança Convite à Filosofia 38 No ano de 1992 no Brasil os jovens estudantes pintaram a cara com as cores da bandeira nacional e saíram às ruas para exigir o impedimento do presidente da República Logo depois os candidatos a prefeituras municipais contrataram jovens para aparecer na televisão com a cara pintada defendendo tais candidaturas A seguir as Forças Armadas brasileiras para persuadir jovens a servilas contrataram jovens caraspintadas para aparecer como soldados marinheiros e aviadores Ao mesmo tempo várias empresas pretendendo vender seus produtos aos jovens contrataram artistas jovens para de cara pintada fazer a propaganda de seus produtos Aparentemente teríamos sempre a mesma coisa os jovens rebeldes e conscientes de cara pintada símbolo da esperança do País No entanto o pensamento pode mostrar que sob a aparência da semelhança percebida estão diferenças pois os primeiros caraspintadas fizeram um movimento político espontâneo os segundos fizeram propaganda política para um candidato e receberam para isso os terceiros tentaram ajudar as Forças Armadas a aparecer como divertidas e juvenis e os últimos mediante remuneração estavam transferindo para produtos industriais roupas calçados vídeos margarinas discos iogurtes um símbolo político inteiramente despolitizado e sem nenhuma relação com sua origem Separando as diferenças o pensamento realiza nesse caso uma análise Marilena Chauí 39 Capítulo 3 Campos de investigação da Filosofia Os períodos da Filosofia grega A Filosofia terá no correr dos séculos um conjunto de preocupações indagações e interesses que lhe vieram de seu nascimento na Grécia Assim antes de vermos que campos são esses examinemos brevemente os conteúdos que a Filosofia possuía na Grécia Para isso devemos primeiro conhecer os períodos principais da Filosofia grega pois tais períodos definiram os campos da investigação filosófica na Antigüidade A história da Grécia costuma ser dividida pelos historiadores em quatro grandes fases ou épocas 1 a da Grécia homérica correspondente aos 400 anos narrados pelo poeta Homero em seus dois grandes poemas Ilíada e Odisséia 2 a da Grécia arcaica ou dos sete sábios do século VII ao século V antes de Cristo quando os gregos criam cidades como Atenas Esparta Tebas Megara Samos etc e predomina a economia urbana baseada no artesanato e no comércio 3 a da Grécia clássica nos séculos V e IV antes de Cristo quando a democracia se desenvolve a vida intelectual e artística entra no apogeu e Atenas domina a Grécia com seu império comercial e militar 4 e finalmente a época helenística a partir do final do século IV antes de Cristo quando a Grécia passa para o poderio do império de Alexandre da Macedônia e depois para as mãos do Império Romano terminando a história de sua existência independente Os períodos da Filosofia não correspondem exatamente a essas épocas já que ela não existe na Grécia homérica e só aparece nos meados da Grécia arcaica Entretanto o apogeu da Filosofia acontece durante o apogeu da cultura e da sociedade gregas portanto durante a Grécia clássica Os quatro grandes períodos da Filosofia grega nos quais seu conteúdo muda e se enriquece são 1 Período présocrático ou cosmológico do final do século VII ao final do século V aC quando a Filosofia se ocupa fundamentalmente com a origem do mundo e as causas das transformações na Natureza Convite à Filosofia 40 2 Período socrático ou antropológico do final do século V e todo o século IV aC quando a Filosofia investiga as questões humanas isto é a ética a política e as técnicas em grego ântropos quer dizer homem por isso o período recebeu o nome de antropológico 3 Período sistemático do final do século IV ao final do século III aC quando a Filosofia busca reunir e sistematizar tudo quanto foi pensado sobre a cosmologia e a antropologia interessandose sobretudo em mostrar que tudo pode ser objeto do conhecimento filosófico desde que as leis do pensamento e de suas demonstrações estejam firmemente estabelecidas para oferecer os critérios da verdade e da ciência 4 Período helenístico ou grecoromano do final do século III aC até o século VI depois de Cristo Nesse longo período que já alcança Roma e o pensamento dos primeiros Padres da Igreja a Filosofia se ocupa sobretudo com as questões da ética do conhecimento humano e das relações entre o homem e a Natureza e de ambos com Deus Filosofia Grega Podese perceber que os dois primeiros períodos da Filosofia grega têm como referência o filósofo Sócrates de Atenas donde a divisão em Filosofia pré socrática e socrática Período présocrático ou cosmológico Os principais filósofos présocráticos foram filósofos da Escola Jônica Tales de Mileto Anaxímenes de Mileto Anaximandro de Mileto e Heráclito de Éfeso filósofos da Escola Itálica Pitágoras de Samos Filolau de Crotona e Árquitas de Tarento filósofos da Escola Eleata Parmênides de Eléia e Zenão de Eléia filósofos da Escola da Pluralidade Empédocles de Agrigento Anaxágoras de Clazômena Leucipo de Abdera e Demócrito de Abdera As principais características da cosmologia são É uma explicação racional e sistemática sobre a origem ordem e transformação da Natureza da qual os seres humanos fazem parte de modo que ao explicar a Natureza a Filosofia também explica a origem e as mudanças dos seres humanos Afirma que não existe criação do mundo isto é nega que o mundo tenha surgido do nada como é o caso por exemplo na religião judaicocristã na qual Deus cria o mundo do nada Por isso diz Nada vem do nada e nada volta ao nada Isto significa a que o mundo ou a Natureza é eterno b que no mundo ou na Natureza tudo se transforma em outra coisa sem jamais desaparecer Marilena Chauí 41 embora a forma particular que uma coisa possua desapareça com ela mas não sua matéria O fundo eterno perene imortal de onde tudo nasce e para onde tudo volta é invisível para os olhos do corpo e visível somente para o olho do espírito isto é para o pensamento O fundo eterno perene imortal e imperecível de onde tudo brota e para onde tudo retorna é o elemento primordial da Natureza e chamase physis em grego physis vem de um verbo que significa fazer surgir fazer brotar fazer nascer produzir A physis é a Natureza eterna e em perene transformação Afirma que embora a physis o elemento primordial eterno seja imperecível ela dá origem a todos os seres infinitamente variados e diferentes do mundo seres que ao contrário do princípio gerador são perecíveis ou mortais Afirma que todos os seres além de serem gerados e de serem mortais são seres em contínua transformação mudando de qualidade por exemplo o branco amarelece acinzenta enegrece o negro acinzenta embranquece o novo envelhece o quente esfria o frio esquenta o seco fica úmido o úmido seca o dia se torna noite a noite se torna dia a primavera cede lugar ao verão que cede lugar ao outono que cede lugar ao inverno o saudável adoece o doente se cura a criança cresce a árvore vem da semente e produz sementes etc e mudando de quantidade o pequeno cresce e fica grande o grande diminui e fica pequeno o longe fica perto se eu for até ele ou se as coisas distantes chegarem até mim um rio aumenta de volume na cheia e diminui na seca etc Portanto o mundo está em mudança contínua sem por isso perder sua forma sua ordem e sua estabilidade A mudança nascer morrer mudar de qualidade ou de quantidade chamase movimento e o mundo está em movimento permanente O movimento do mundo chamase devir e o devir segue leis rigorosas que o pensamento conhece Essas leis são as que mostram que toda mudança é passagem de um estado ao seu contrário dianoite claroescuro quentefrio secoúmido novovelho pequenogrande bommau cheiovazio ummuitos etc e também no sentido inverso noitedia escuroclaro frioquente muitos um etc O devir é portanto a passagem contínua de uma coisa ao seu estado contrário e essa passagem não é caótica mas obedece a leis determinadas pela physis ou pelo princípio fundamental do mundo Os diferentes filósofos escolheram diferentes physis isto é cada filósofo encontrou motivos e razões para dizer qual era o princípio eterno e imutável que está na origem da Natureza e de suas transformações Assim Tales dizia que o princípio era a água ou o úmido Anaximandro considerava que era o ilimitado sem qualidades definidas Anaxímenes que era o ar ou o frio Heráclito afirmou Convite à Filosofia 42 que era o fogo Leucipo e Demócrito disseram que eram os átomos E assim por diante Período socrático ou antropológico Com o desenvolvimento das cidades do comércio do artesanato e das artes militares Atenas tornouse o centro da vida social política e cultural da Grécia vivendo seu período de esplendor conhecido como o Século de Péricles É a época de maior florescimento da democracia A democracia grega possuía entre outras duas características de grande importância para o futuro da Filosofia Em primeiro lugar a democracia afirmava a igualdade de todos os homens adultos perante as leis e o direito de todos de participar diretamente do governo da cidade da polis Em segundo lugar e como conseqüência a democracia sendo direta e não por eleição de representantes garantia a todos a participação no governo e os que dele participavam tinham o direito de exprimir discutir e defender em público suas opiniões sobre as decisões que a cidade deveria tomar Surgia assim a figura política do cidadão Nota Devemos observar que estavam excluídos da cidadania o que os gregos chamavam de dependentes mulheres escravos crianças e velhos Também estavam excluídos os estrangeiros Ora para conseguir que a sua opinião fosse aceita nas assembléias o cidadão precisava saber falar e ser capaz de persuadir Com isso uma mudança profunda vai ocorrer na educação grega Quando não havia democracia mas dominavam as famílias aristocráticas senhoras das terras o poder lhes pertencia Essas famílias valendose dos dois grandes poetas gregos Homero e Hesíodo criaram um padrão de educação próprio dos aristocratas Esse padrão afirmava que o homem ideal ou perfeito era o guerreiro belo e bom Belo seu corpo era formado pela ginástica pela dança e pelos jogos de guerra imitando os heróis da guerra de Tróia Aquiles Heitor Ájax Ulisses Bom seu espírito era formado escutando Homero e Hesíodo aprendendo as virtudes admiradas pelos deuses e praticadas pelos heróis a principal delas sendo a coragem diante da morte na guerra A virtude era a Arete excelência e superioridade própria dos melhores os aristoi Quando porém a democracia se instala e o poder vai sendo retirado dos aristocratas esse ideal educativo ou pedagógico também vai sendo substituído por outro O ideal da educação do Século de Péricles é a formação do cidadão A Arete é a virtude cívica Ora qual é o momento em que o cidadão mais aparece e mais exerce sua cidadania Quando opina discute delibera e vota nas assembléias Assim a nova educação estabelece como padrão ideal a formação do bom orador isto é aquele que saiba falar em público e persuadir os outros na política Marilena Chauí 43 Para dar aos jovens essa educação substituindo a educação antiga dos poetas surgiram na Grécia os sofistas que são os primeiros filósofos do período socrático Os sofistas mais importantes foram Protágoras de Abdera Górgias de Leontini e Isócrates de Atenas Que diziam e faziam os sofistas Diziam que os ensinamentos dos filósofos cosmologistas estavam repletos de erros e contradições e que não tinham utilidade para a vida da polis Apresentavamse como mestres de oratória ou de retórica afirmando ser possível ensinar aos jovens tal arte para que fossem bons cidadãos Que arte era esta A arte da persuasão Os sofistas ensinavam técnicas de persuasão para os jovens que aprendiam a defender a posição ou opinião A depois a posição ou opinião contrária nãoA de modo que numa assembléia soubessem ter fortes argumentos a favor ou contra uma opinião e ganhassem a discussão O filósofo Sócrates considerado o patrono da Filosofia rebelouse contra os sofistas dizendo que não eram filósofos pois não tinham amor pela sabedoria nem respeito pela verdade defendendo qualquer idéia se isso fosse vantajoso Corrompiam o espírito dos jovens pois faziam o erro e a mentira valer tanto quanto a verdade Como homem de seu tempo Sócrates concordava com os sofistas em um ponto por um lado a educação antiga do guerreiro belo e bom já não atendia às exigências da sociedade grega e por outro lado os filósofos cosmologistas defendiam idéias tão contrárias entre si que também não eram uma fonte segura para o conhecimento verdadeiro Nota Historicamente há dificuldade para conhecer o pensamento dos grandes sofistas porque não possuímos seus textos Restaram fragmentos apenas Por isso nós os conhecemos pelo que deles disseram seus adversários Platão Xenofonte Aristóteles e não temos como saber se estes foram justos com aqueles Os historiadores mais recentes consideram os sofistas verdadeiros representantes do espírito democrático isto é da pluralidade conflituosa de opiniões e interesses enquanto seus adversários seriam partidários de uma política aristocrática na qual somente algumas opiniões e interesses teriam o direito para valer para o restante da sociedade Discordando dos antigos poetas dos antigos filósofos e dos sofistas o que propunha Sócrates Propunha que antes de querer conhecer a Natureza e antes de querer persuadir os outros cada um deveria primeiro e antes de tudo conhecerse a si mesmo A expressão conhecete a ti mesmo que estava gravada no pórtico do templo de Apolo patrono grego da sabedoria tornouse a divisa de Sócrates Por fazer do autoconhecimento ou do conhecimento que os homens têm de si mesmos a condição de todos os outros conhecimentos verdadeiros é que se diz Convite à Filosofia 44 que o período socrático é antropológico isto é voltado para o conhecimento do homem particularmente de seu espírito e de sua capacidade para conhecer a verdade O retrato que a história da Filosofia possui de Sócrates foi traçado por seu mais importante aluno e discípulo o filósofo ateniense Platão Que retrato Platão nos deixa de seu mestre Sócrates O de um homem que andava pelas ruas e praças de Atenas pelo mercado e pela assembléia indagando a cada um Você sabe o que é isso que você está dizendo Você sabe o que é isso em que você acredita Você acha que está conhecendo realmente aquilo em que acredita aquilo em que está pensando aquilo que está dizendo Você diz falava Sócrates que a coragem é importante mas o que é a coragem Você acredita que a justiça é importante mas o que é a justiça Você diz que ama as coisas e as pessoas belas mas o que é a beleza Você crê que seus amigos são a melhor coisa que você tem mas o que é a amizade Sócrates fazia perguntas sobre as idéias sobre os valores nos quais os gregos acreditavam e que julgavam conhecer Suas perguntas deixavam os interlocutores embaraçados irritados curiosos pois quando tentavam responder ao célebre o que é descobriam surpresos que não sabiam responder e que nunca tinham pensado em suas crenças seus valores e suas idéias Mas o pior não era isso O pior é que as pessoas esperavam que Sócrates respondesse por elas ou para elas que soubesse as respostas às perguntas como os sofistas pareciam saber mas Sócrates para desconcerto geral dizia Eu também não sei por isso estou perguntando Donde a famosa expressão atribuída a ele Sei que nada sei A consciência da própria ignorância é o começo da Filosofia O que procurava Sócrates Procurava a definição daquilo que uma coisa uma idéia um valor é verdadeiramente Procurava a essência verdadeira da coisa da idéia do valor Procurava o conceito e não a mera opinião que temos de nós mesmos das coisas das idéias e dos valores Qual a diferença entre uma opinião e um conceito A opinião varia de pessoa para pessoa de lugar para lugar de época para época É instável mutável depende de cada um de seus gostos e preferências O conceito ao contrário é uma verdade intemporal universal e necessária que o pensamento descobre mostrando que é a essência universal intemporal e necessária de alguma coisa Por isso Sócrates não perguntava se tal ou qual coisa era bela pois nossa opinião sobre ela pode variar e sim O que é a beleza Qual é a essência ou o conceito do belo Do justo Do amor Da amizade Marilena Chauí 45 Sócrates perguntava Que razões rigorosas você possui para dizer o que diz e para pensar o que pensa Qual é o fundamento racional daquilo que você fala e pensa Ora as perguntas de Sócrates se referiam a idéias valores práticas e comportamentos que os atenienses julgavam certos e verdadeiros em si mesmos e por si mesmos Ao fazer suas perguntas e suscitar dúvidas Sócrates os fazia pensar não só sobre si mesmos mas também sobre a polis Aquilo que parecia evidente acabava sendo percebido como duvidoso e incerto Sabemos que os poderosos têm medo do pensamento pois o poder é mais forte se ninguém pensar se todo mundo aceitar as coisas como elas são ou melhor como nos dizem e nos fazem acreditar que elas são Para os poderosos de Atenas Sócrates tornarase um perigo pois fazia a juventude pensar Por isso eles o acusaram de desrespeitar os deuses corromper os jovens e violar as leis Levado perante a assembléia Sócrates não se defendeu e foi condenado a tomar um veneno a cicuta e obrigado a suicidarse Por que Sócrates não se defendeu Porque dizia ele se eu me defender estarei aceitando as acusações e eu não as aceito Se eu me defender o que os juízes vão exigir de mim Que eu pare de filosofar Mas eu prefiro a morte a ter que renunciar à Filosofia O julgamento e a morte de Sócrates são narrados por Platão numa obra intitulada Apologia de Sócrates isto é a defesa de Sócrates feita por seus discípulos contra Atenas Sócrates nunca escreveu O que sabemos de seus pensamentos encontrase nas obras de seus vários discípulos e Platão foi o mais importante deles Se reunirmos o que esse filósofo escreveu sobre os sofistas e sobre Sócrates além da exposição de suas próprias idéias poderemos apresentar como características gerais do período socrático A Filosofia se volta para as questões humanas no plano da ação dos comportamentos das idéias das crenças dos valores e portanto se preocupa com as questões morais e políticas O ponto de partida da Filosofia é a confiança no pensamento ou no homem como um ser racional capaz de conhecerse a si mesmo e portanto capaz de reflexão Reflexão é a volta que o pensamento faz sobre si mesmo para conhecer se é a consciência conhecendose a si mesma como capacidade para conhecer as coisas alcançando o conceito ou a essência delas Como se trata de conhecer a capacidade de conhecimento do homem a preocupação se volta para estabelecer procedimentos que nos garantam que encontramos a verdade isto é o pensamento deve oferecer a si mesmo caminhos próprios critérios próprios e meios próprios para saber o que é o verdadeiro e como alcançálo em tudo o que investiguemos Convite à Filosofia 46 A Filosofia está voltada para a definição das virtudes morais e das virtudes políticas tendo como objeto central de suas investigações a moral e a política isto é as idéias e práticas que norteiam os comportamentos dos seres humanos tanto como indivíduos quanto como cidadãos Cabe à Filosofia portanto encontrar a definição o conceito ou a essência dessas virtudes para além da variedade das opiniões para além da multiplicidade das opiniões contrárias e diferentes As perguntas filosóficas se referem assim a valores como a justiça a coragem a amizade a piedade o amor a beleza a temperança a prudência etc que constituem os ideais do sábio e do verdadeiro cidadão É feita pela primeira vez uma separação radical entre de um lado a opinião e as imagens das coisas trazidas pelos nossos órgãos dos sentidos nossos hábitos pelas tradições pelos interesses e de outro lado as idéias As idéias se referem à essência íntima invisível verdadeira das coisas e só podem ser alcançadas pelo pensamento puro que afasta os dados sensoriais os hábitos recebidos os preconceitos as opiniões A reflexão e o trabalho do pensamento são tomados como uma purificação intelectual que permite ao espírito humano conhecer a verdade invisível imutável universal e necessária A opinião as percepções e imagens sensoriais são consideradas falsas mentirosas mutáveis inconsistentes contraditórias devendo ser abandonadas para que o pensamento siga seu caminho próprio no conhecimento verdadeiro A diferença entre os sofistas de um lado e Sócrates e Platão de outro é dada pelo fato de que os sofistas aceitam a validade das opiniões e das percepções sensoriais e trabalham com elas para produzir argumentos de persuasão enquanto Sócrates e Platão consideram as opiniões e as percepções sensoriais ou imagens das coisas como fonte de erro mentira e falsidade formas imperfeitas do conhecimento que nunca alcançam a verdade plena da realidade O mito da caverna Imaginemos uma caverna subterrânea onde desde a infância geração após geração seres humanos estão aprisionados Suas pernas e seus pescoços estão algemados de tal modo que são forçados a permanecer sempre no mesmo lugar e a olhar apenas para frente não podendo girar a cabeça nem para trás nem para os lados A entrada da caverna permite que alguma luz exterior ali penetre de modo que se possa na semiobscuridade enxergar o que se passa no interior A luz que ali entra provém de uma imensa e alta fogueira externa Entre ela e os prisioneiros no exterior portanto há um caminho ascendente ao longo do qual foi erguida uma mureta como se fosse a parte fronteira de um palco de marionetes Ao longo dessa muretapalco homens transportam estatuetas de todo tipo com figuras de seres humanos animais e todas as coisas Marilena Chauí 47 Por causa da luz da fogueira e da posição ocupada por ela os prisioneiros enxergam na parede do fundo da caverna as sombras das estatuetas transportadas mas sem poderem ver as próprias estatuetas nem os homens que as transportam Como jamais viram outra coisa os prisioneiros imaginam que as sombras vistas são as próprias coisas Ou seja não podem saber que são sombras nem podem saber que são imagens estatuetas de coisas nem que há outros seres humanos reais fora da caverna Também não podem saber que enxergam porque há a fogueira e a luz no exterior e imaginam que toda luminosidade possível é a que reina na caverna Que aconteceria indaga Platão se alguém libertasse os prisioneiros Que faria um prisioneiro libertado Em primeiro lugar olharia toda a caverna veria os outros seres humanos a mureta as estatuetas e a fogueira Embora dolorido pelos anos de imobilidade começaria a caminhar dirigindose à entrada da caverna e deparando com o caminho ascendente nele adentraria Num primeiro momento ficaria completamente cego pois a fogueira na verdade é a luz do sol e ele ficaria inteiramente ofuscado por ela Depois acostumandose com a claridade veria os homens que transportam as estatuetas e prosseguindo no caminho enxergaria as próprias coisas descobrindo que durante toda sua vida não vira senão sombras de imagens as sombras das estatuetas projetadas no fundo da caverna e que somente agora está contemplando a própria realidade Libertado e conhecedor do mundo o prisioneiro regressaria à caverna ficaria desnorteado pela escuridão contaria aos outros o que viu e tentaria libertálos Que lhe aconteceria nesse retorno Os demais prisioneiros zombariam dele não acreditariam em suas palavras e se não conseguissem silenciálo com suas caçoadas tentariam fazêlo espancandoo e se mesmo assim ele teimasse em afirmar o que viu e os convidasse a sair da caverna certamente acabariam por matálo Mas quem sabe alguns poderiam ouvilo e contra a vontade dos demais também decidissem sair da caverna rumo à realidade O que é a caverna O mundo em que vivemos Que são as sombras das estatuetas As coisas materiais e sensoriais que percebemos Quem é o prisioneiro que se liberta e sai da caverna O filósofo O que é a luz exterior do sol A luz da verdade O que é o mundo exterior O mundo das idéias verdadeiras ou da verdadeira realidade Qual o instrumento que liberta o filósofo e com o qual ele deseja libertar os outros prisioneiros A dialética O que é a visão do mundo real iluminado A Filosofia Por que os prisioneiros zombam espancam e matam o filósofo Platão está se referindo à condenação de Sócrates à morte pela assembléia ateniense Porque imaginam que o mundo sensível é o mundo real e o único verdadeiro Convite à Filosofia 48 Período sistemático Este período tem como principal nome o filósofo Aristóteles de Estagira discípulo de Platão Passados quase quatro séculos de Filosofia Aristóteles apresenta nesse período uma verdadeira enciclopédia de todo o saber que foi produzido e acumulado pelos gregos em todos os ramos do pensamento e da prática considerando essa totalidade de saberes como sendo a Filosofia Esta portanto não é um saber específico sobre algum assunto mas uma forma de conhecer todas as coisas possuindo procedimentos diferentes para cada campo de coisas que conhece Além de a Filosofia ser o conhecimento da totalidade dos conhecimentos e práticas humanas ela também estabelece uma diferença entre esses conhecimentos distribuindoos numa escala que vai dos mais simples e inferiores aos mais complexos e superiores Essa classificação e distribuição dos conhecimentos fixou para o pensamento ocidental os campos de investigação da Filosofia como totalidade do saber humano Cada saber no campo que lhe é próprio possui seu objeto específico procedimentos específicos para sua aquisição e exposição formas próprias de demonstração e prova Cada campo do conhecimento é uma ciência ciência em grego é episteme Aristóteles afirma que antes de um conhecimento constituir seu objeto e seu campo próprios seus procedimentos próprios de aquisição e exposição de demonstração e de prova deve primeiro conhecer as leis gerais que governam o pensamento independentemente do conteúdo que possa vir a ter O estudo das formas gerais do pensamento sem preocupação com seu conteúdo chamase lógica e Aristóteles foi o criador da lógica como instrumento do conhecimento em qualquer campo do saber A lógica não é uma ciência mas o instrumento para a ciência e por isso na classificação das ciências feita por Aristóteles a lógica não aparece embora ela seja indispensável para a Filosofia e mais tarde tenha se tornado um dos ramos específicos dela Os campos do conhecimento filosófico Vejamos pois a classificação aristotélica Ciências produtivas ciências que estudam as práticas produtivas ou as técnicas isto é as ações humanas cuja finalidade está para além da própria ação pois a finalidade é a produção de um objeto de uma obra São elas arquitetura cujo fim é a edificação de alguma coisa economia cujo fim é a produção agrícola o artesanato e o comércio isto é produtos para a sobrevivência e para o acúmulo de riquezas medicina cujo fim é produzir a saúde ou a cura pintura escultura poesia teatro oratória arte da guerra da caça da navegação etc Em Marilena Chauí 49 suma todas as atividades humanas técnicas e artísticas que resultam num produto ou numa obra Ciências práticas ciências que estudam as práticas humanas enquanto ações que têm nelas mesmas seu próprio fim isto é a finalidade da ação se realiza nela mesma é o próprio ato realizado São elas ética em que a ação é realizada pela vontade guiada pela razão para alcançar o bem do indivíduo sendo este bem as virtudes morais coragem generosidade fidelidade lealdade clemência prudência amizade justiça modéstia honradez temperança etc e política em que a ação é realizada pela vontade guiada pela razão para ter como fim o bem da comunidade ou o bem comum Para Aristóteles como para todo grego da época clássica a política é superior à ética pois a verdadeira liberdade sem a qual não pode haver vida virtuosa só é conseguida na polis Por isso a finalidade da política é a vida justa a vida boa e bela a vida livre Ciências teoréticas contemplativas ou teóricas são aquelas que estudam coisas que existem independentemente dos homens e de suas ações e que não tendo sido feitas pelos homens só podem ser contempladas por eles Theoria em grego significa contemplação da verdade O que são as coisas que existem por si mesmas e em si mesmas independentes de nossa ação fabricadora técnica e de nossa ação moral e política São as coisas da Natureza e as coisas divinas Aristóteles aqui classifica também por graus de superioridade as ciências teóricas indo da mais inferior à superior 1 ciência das coisas naturais submetidas à mudança ou ao devir física biologia meteorologia psicologia pois a alma que em grego se diz psychê é um ser natural existindo de formas variadas em todos os seres vivos plantas animais e homens 2 ciência das coisas naturais que não estão submetidas à mudança ou ao devir as matemáticas e a astronomia os gregos julgavam que os astros eram eternos e imutáveis 3 ciência da realidade pura que não é nem natural mutável nem natural imutável nem resultado da ação humana nem resultado da fabricação humana Tratase daquilo que deve haver em toda e qualquer realidade seja ela natural matemática ética política ou técnica para ser realidade É o que Aristóteles chama de ser ou substância de tudo o que existe A ciência teórica que estuda o puro ser chamase metafísica 4 ciência teórica das coisas divinas que são a causa e a finalidade de tudo o que existe na Natureza e no homem Vimos que as coisas divinas são chamadas de theion e por isso esta última ciência chamase teologia A Filosofia para Aristóteles encontra seu ponto mais alto na metafísica e na teologia de onde derivam todos os outros conhecimentos Convite à Filosofia 50 A partir da classificação aristotélica definiuse no correr dos séculos o grande campo da investigação filosófica campo que só seria desfeito no século XIX da nossa era quando as ciências particulares se foram separando do tronco geral da Filosofia Assim podemos dizer que os campos da investigação filosófica são três 1º O do conhecimento da realidade última de todos os seres ou da essência de toda a realidade Como em grego ser se diz on e os seres se diz ta onta este campo é chamado de ontologia que na linguagem de Aristóteles se formava com a metafísica e a teologia 2º O do conhecimento das ações humanas ou dos valores e das finalidades da ação humana das ações que têm em si mesmas sua finalidade a ética e a política ou a vida moral valores morais e a vida política valores políticos e das ações que têm sua finalidade num produto ou numa obra as técnicas e as artes e seus valores utilidade beleza etc 3º O do conhecimento da capacidade humana de conhecer isto é o conhecimento do próprio pensamento em exercício Aqui distinguemse a lógica que oferece as leis gerais do pensamento a teoria do conhecimento que oferece os procedimentos pelos quais conhecemos as ciências propriamente ditas e o conhecimento do conhecimento científico isto é a epistemologia Ser ou realidade prática ou ação segundo valores conhecimento do pensamento em suas leis gerais e em suas leis específicas em cada ciência eis os campos da atividade ou investigação filosófica Período helenístico Tratase do último período da Filosofia antiga quando a polis grega desapareceu como centro político deixando de ser referência principal dos filósofos uma vez que a Grécia encontrase sob o poderio do Império Romano Os filósofos dizem agora que o mundo é sua cidade e que são cidadãos do mundo Em grego mundo se diz cosmos e esse período é chamado o da Filosofia cosmopolita Essa época da Filosofia é constituída por grandes sistemas ou doutrinas isto é explicações totalizantes sobre a Natureza o homem as relações entre ambos e deles com a divindade esta em geral pensada como Providência divina que instaura e conserva a ordem universal Predominam preocupações com a ética pois os filósofos já não podem ocuparse diretamente com a política a física a teologia e a religião Datam desse período quatro grandes sistemas cuja influência será sentida pelo pensamento cristão que começa a formarse nessa época estoicismo epicurismo ceticismo e neoplatonismo A amplidão do Império Romano a presença crescente de religiões orientais no Império os contatos comerciais e culturais entre ocidente e oriente fizeram aumentar os contatos dos filósofos helenistas com a sabedoria oriental Podemos Marilena Chauí 51 falar numa orientalização da Filosofia sobretudo nos aspectos místicos e religiosos Convite à Filosofia 52 Capítulo 4 Principais períodos da história da Filosofia A Filosofia na História Como todas as outras criações e instituições humanas a Filosofia está na História e tem uma história Está na História a Filosofia manifesta e exprime os problemas e as questões que em cada época de uma sociedade os homens colocam para si mesmos diante do que é novo e ainda não foi compreendido A Filosofia procura enfrentar essa novidade oferecendo caminhos respostas e sobretudo propondo novas perguntas num diálogo permanente com a sociedade e a cultura de seu tempo do qual ela faz parte Tem uma história as respostas as soluções e as novas perguntas que os filósofos de uma época oferecem tornamse saberes adquiridos que outros filósofos prosseguem ou freqüentemente tornamse novos problemas que outros filósofos tentam resolver seja aproveitando o passado filosófico seja criticandoo e refutandoo Além disso as transformações nos modos de conhecer podem ampliar os campos de investigação da Filosofia fazendo surgir novas disciplinas filosóficas como também podem diminuir esses campos porque alguns de seus conhecimentos podem desligarse dela e formar disciplinas separadas Assim por exemplo a Filosofia teve seu campo de atividade aumentado quando no século XVIII surge a filosofia da arte ou estética no século XIX a filosofia da história no século XX a filosofia das ciências ou epistemologia e a filosofia da linguagem Por outro lado o campo da Filosofia diminuiu quando as ciências particulares que dela faziam parte foramse desligando para constituir suas próprias esferas de investigação É o que acontece por exemplo no século XVIII quando se desligam da Filosofia a biologia a física e a química e no século XX as chamadas ciências humanas psicologia antropologia história Pelo fato de estar na História e ter uma história a Filosofia costuma ser apresentada em grandes períodos que acompanham às vezes de maneira mais próxima às vezes de maneira mais distante os períodos em que os historiadores dividem a História da sociedade ocidental Marilena Chauí 53 Os principais períodos da Filosofia Filosofia antiga do século VI aC ao século VI dC Compreende os quatro grandes períodos da Filosofia grecoromana indo dos pré socráticos aos grandes sistemas do período helenístico mencionados no capítulo anterior Filosofia patrística do século I ao século VII Iniciase com as Epístolas de São Paulo e o Evangelho de São João e termina no século VIII quando teve início a Filosofia medieval A patrística resultou do esforço feito pelos dois apóstolos intelectuais Paulo e João e pelos primeiros Padres da Igreja para conciliar a nova religião o Cristianismo com o pensamento filosófico dos gregos e romanos pois somente com tal conciliação seria possível convencer os pagãos da nova verdade e convertêlos a ela A Filosofia patrística ligase portanto à tarefa religiosa da evangelização e à defesa da religião cristã contra os ataques teóricos e morais que recebia dos antigos Dividese em patrística grega ligada à Igreja de Bizâncio e patrística latina ligada à Igreja de Roma e seus nomes mais importantes foram Justino Tertuliano Atenágoras Orígenes Clemente Eusébio Santo Ambrósio São Gregório Nazianzo São João Crisóstomo Isidoro de Sevilha Santo Agostinho Beda e Boécio A patrística foi obrigada a introduzir idéias desconhecidas para os filósofos grecoromanos a idéia de criação do mundo de pecado original de Deus como trindade una de encarnação e morte de Deus de juízo final ou de fim dos tempos e ressurreição dos mortos etc Precisou também explicar como o mal pode existir no mundo já que tudo foi criado por Deus que é pura perfeição e bondade Introduziu sobretudo com Santo Agostinho e Boécio a idéia de homem interior isto é da consciência moral e do livrearbítrio pelo qual o homem se torna responsável pela existência do mal no mundo Para impor as idéias cristãs os Padres da Igreja as transformaram em verdades reveladas por Deus através da Bíblia e dos santos que por serem decretos divinos seriam dogmas isto é irrefutáveis e inquestionáveis Com isso surge uma distinção desconhecida pelos antigos entre verdades reveladas ou da fé e verdades da razão ou humanas isto é entre verdades sobrenaturais e verdades naturais as primeiras introduzindo a noção de conhecimento recebido por uma graça divina superior ao simples conhecimento racional Dessa forma o grande tema de toda a Filosofia patrística é o da possibilidade de conciliar razão e fé e a esse respeito havia três posições principais 1 Os que julgavam fé e razão irreconciliáveis e a fé superior à razão diziam eles Creio porque absurdo Convite à Filosofia 54 2 Os que julgavam fé e razão conciliáveis mas subordinavam a razão à fé diziam eles Creio para compreender 3 Os que julgavam razão e fé irreconciliáveis mas afirmavam que cada uma delas tem seu campo próprio de conhecimento e não devem misturarse a razão se refere a tudo o que concerne à vida temporal dos homens no mundo a fé a tudo o que se refere à salvação da alma e à vida eterna futura Filosofia medieval do século VIII ao século XIV Abrange pensadores europeus árabes e judeus É o período em que a Igreja Romana dominava a Europa ungia e coroava reis organizava Cruzadas à Terra Santa e criava à volta das catedrais as primeiras universidades ou escolas E a partir do século XII por ter sido ensinada nas escolas a Filosofia medieval também é conhecida com o nome de Escolástica A Filosofia medieval teve como influências principais Platão e Aristóteles embora o Platão que os medievais conhecessem fosse o neoplatônico vindo da Filosofia de Plotino do século VI dC e o Aristóteles que conhecessem fosse aquele conservado e traduzido pelos árabes particularmente Avicena e Averróis Conservando e discutindo os mesmos problemas que a patrística a Filosofia medieval acrescentou outros particularmente um conhecido com o nome de Problema dos Universais e além de Platão e Aristóteles sofreu uma grande influência das idéias de Santo Agostinho Durante esse período surge propriamente a Filosofia cristã que é na verdade a teologia Um de seus temas mais constantes são as provas da existência de Deus e da alma isto é demonstrações racionais da existência do infinito criador e do espírito humano imortal A diferença e separação entre infinito Deus e finito homem mundo a diferença entre razão e fé a primeira deve subordinarse à segunda a diferença e separação entre corpo matéria e alma espírito O Universo como uma hierarquia de seres onde os superiores dominam e governam os inferiores Deus arcanjos anjos alma corpo animais vegetais minerais a subordinação do poder temporal dos reis e barões ao poder espiritual de papas e bispos eis os grandes temas da Filosofia medieval Outra característica marcante da Escolástica foi o método por ela inventado para expor as idéias filosóficas conhecida como disputa apresentavase uma tese e esta devia ser ou refutada ou defendida por argumentos tirados da Bíblia de Aristóteles de Platão ou de outros Padres da Igreja Assim uma idéia era considerada uma tese verdadeira ou falsa dependendo da força e da qualidade dos argumentos encontrados nos vários autores Por causa desse método de disputa teses refutações defesas respostas conclusões baseadas em escritos de outros autores costumase dizer que na Idade Média o pensamento estava subordinado ao princípio da autoridade isto é uma idéia é Marilena Chauí 55 considerada verdadeira se for baseada nos argumentos de uma autoridade reconhecida Bíblia Platão Aristóteles um papa um santo Os teólogos medievais mais importantes foram Abelardo Duns Scoto Escoto Erígena Santo Anselmo Santo Tomás de Aquino Santo Alberto Magno Guilherme de Ockham Roger Bacon São Boaventura Do lado árabe Avicena Averróis Alfarabi e Algazáli Do lado judaico Maimônides Nahmanides Yeudah bem Levi Filosofia da Renascença do século XIV ao século XVI É marcada pela descoberta de obras de Platão desconhecidas na Idade Média de novas obras de Aristóteles bem como pela recuperação das obras dos grandes autores e artistas gregos e romanos São três as grandes linhas de pensamento que predominavam na Renascença 1 Aquela proveniente de Platão do neoplatonismo e da descoberta dos livros do Hermetismo nela se destacava a idéia da Natureza como um grande ser vivo o homem faz parte da Natureza como um microcosmo como espelho do Universo inteiro e pode agir sobre ela através da magia natural da alquimia e da astrologia pois o mundo é constituído por vínculos e ligações secretas a simpatia entre as coisas o homem pode também conhecer esses vínculos e criar outros como um deus 2 Aquela originária dos pensadores florentinos que valorizava a vida ativa isto é a política e defendia os ideais republicanos das cidades italianas contra o Império RomanoGermânico isto é contra o poderio dos papas e dos imperadores Na defesa do ideal republicano os escritores resgataram autores políticos da Antigüidade historiadores e juristas e propuseram a imitação dos antigos ou o renascimento da liberdade política anterior ao surgimento do império eclesiástico 3 Aquela que propunha o ideal do homem como artífice de seu próprio destino tanto através dos conhecimentos astrologia magia alquimia quanto através da política o ideal republicano das técnicas medicina arquitetura engenharia navegação e das artes pintura escultura literatura teatro A efervescência teórica e prática foi alimentada com as grandes descobertas marítimas que garantiam ao homem o conhecimento de novos mares novos céus novas terras e novas gentes permitindolhe ter uma visão crítica de sua própria sociedade Essa efervescência cultural e política levou a críticas profundas à Igreja Romana culminando na Reforma Protestante baseada na idéia de liberdade de crença e de pensamento À Reforma a Igreja respondeu com a ContraReforma e com o recrudescimento do poder da Inquisição Os nomes mais importantes desse período são Dante Marcílio Ficino Giordano Bruno Campannella Maquiavel Montaigne Erasmo Tomás Morus Jean Bodin Kepler e Nicolau de Cusa Convite à Filosofia 56 Filosofia moderna do século XVII a meados do século XVIII Esse período conhecido como o Grande Racionalismo Clássico é marcado por três grandes mudanças intelectuais 1 Aquela conhecida como o surgimento do sujeito do conhecimento isto é a Filosofia em lugar de começar seu trabalho conhecendo a Natureza e Deus para depois referirse ao homem começa indagando qual é a capacidade do intelecto humano para conhecer e demonstrar a verdade dos conhecimentos Em outras palavras a Filosofia começa pela reflexão isto é pela volta do pensamento sobre si mesmo para conhecer sua capacidade de conhecer O ponto de partida é o sujeito do conhecimento como consciência de si reflexiva isto é como consciência que conhece sua capacidade de conhecer O sujeito do conhecimento é um intelecto no interior de uma alma cuja natureza ou substância é completamente diferente da natureza ou substância de seu corpo e dos demais corpos exteriores Por isso a segunda pergunta da Filosofia depois de respondida a pergunta sobre a capacidade de conhecer é Como o espírito ou intelecto pode conhecer o que é diferente dele Como pode conhecer os corpos da Natureza 2 A resposta à pergunta acima constituiu a segunda grande mudança intelectual dos modernos e essa mudança diz respeito ao objeto do conhecimento Para os modernos as coisas exteriores a Natureza a vida social e política podem ser conhecidas desde que sejam consideradas representações ou seja idéias ou conceitos formulados pelo sujeito do conhecimento Isso significa por um lado que tudo o que pode ser conhecido deve poder ser transformado num conceito ou numa idéia clara e distinta demonstrável e necessária formulada pelo intelecto e por outro lado que a Natureza e a sociedade ou política podem ser inteiramente conhecidas pelo sujeito porque elas são inteligíveis em si mesmas isto é são racionais em si mesmas e propensas a serem representadas pelas idéias do sujeito do conhecimento 3 Essa concepção da realidade como intrinsecamente racional e que pode ser plenamente captada pelas idéias e conceitos preparou a terceira grande mudança intelectual moderna A realidade a partir de Galileu é concebida como um sistema racional de mecanismos físicos cuja estrutura profunda e invisível é matemática O livro do mundo diz Galileu está escrito em caracteres matemáticos A realidade concebida como sistema racional de mecanismos físico matemáticos deu origem à ciência clássica isto é à mecânica por meio da qual são descritos explicados e interpretados todos os fatos da realidade astronomia física química psicologia política artes são disciplinas cujo conhecimento é de tipo mecânico ou seja de relações necessárias de causa e efeito entre um agente e um paciente Marilena Chauí 57 A realidade é um sistema de causalidades racionais rigorosas que podem ser conhecidas e transformadas pelo homem Nasce a idéia de experimentação e de tecnologia conhecimento teórico que orienta as intervenções práticas e o ideal de que o homem poderá dominar tecnicamente a Natureza e a sociedade Predomina assim nesse período a idéia de conquista científica e técnica de toda a realidade a partir da explicação mecânica e matemática do Universo e da invenção das máquinas graças às experiências físicas e químicas Existe também a convicção de que a razão humana é capaz de conhecer a origem as causas e os efeitos das paixões e das emoções e pela vontade orientada pelo intelecto é capaz de governálas e dominálas de sorte que a vida ética pode ser plenamente racional A mesma convicção orienta o racionalismo político isto é a idéia de que a razão é capaz de definir para cada sociedade qual o melhor regime político e como mantêlo racionalmente Nunca mais na história da Filosofia haverá igual confiança nas capacidades e nos poderes da razão humana como houve no Grande Racionalismo Clássico Os principais pensadores desse período foram Francis Bacon Descartes Galileu Pascal Hobbes Espinosa Leibniz Malebranche Locke Berkeley Newton Gassendi Filosofia da Ilustração ou Iluminismo meados do século XVIII ao começo do século XIX Esse período também crê nos poderes da razão chamada de As Luzes por isso o nome Iluminismo O Iluminismo afirma que pela razão o homem pode conquistar a liberdade e a felicidade social e política a Filosofia da Ilustração foi decisiva para as idéias da Revolução Francesa de 1789 a razão é capaz de evolução e progresso e o homem é um ser perfectível A perfectibilidade consiste em liberarse dos preconceitos religiosos sociais e morais em libertarse da superstição e do medo graças as conhecimento às ciências às artes e à moral o aperfeiçoamento da razão se realiza pelo progresso das civilizações que vão das mais atrasadas também chamadas de primitivas ou selvagens às mais adiantadas e perfeitas as da Europa Ocidental há diferença entre Natureza e civilização isto é a Natureza é o reino das relações necessárias de causa e efeito ou das leis naturais universais e imutáveis enquanto a civilização é o reino da liberdade e da finalidade proposta pela vontade livre dos próprios homens em seu aperfeiçoamento moral técnico e político Convite à Filosofia 58 Nesse período há grande interesse pelas ciências que se relacionam com a idéia de evolução e por isso a biologia terá um lugar central no pensamento ilustrado pertencendo ao campo da filosofia da vida Há igualmente grande interesse e preocupação com as artes na medida em que elas são as expressões por excelência do grau de progresso de uma civilização Data também desse período o interesse pela compreensão das bases econômicas da vida social e política surgindo uma reflexão sobre a origem e a forma das riquezas das nações com uma controvérsia sobre a importância maior ou menor da agricultura e do comércio controvérsia que se exprime em duas correntes do pensamento econômico a corrente fisiocrata a agricultura é a fonte principal das riquezas e a mercantilista o comércio é a fonte principal da riqueza das nações Os principais pensadores do período foram Hume Voltaire DAlembert Diderot Rousseau Kant Fichte e Schelling embora este último costume ser colocado como filósofo do Romantismo Filosofia contemporânea Abrange o pensamento filosófico que vai de meados do século XIX e chega aos nossos dias Esse período por ser o mais próximo de nós parece ser o mais complexo e o mais difícil de definir pois as diferenças entre as várias filosofias ou posições filosóficas nos parecem muito grandes porque as estamos vendo surgir diante de nós Para facilitar uma visão mais geral do período faremos no próximo capítulo uma contraposição entre as principais idéias do século XIX e as principais correntes de pensamento do século XX Marilena Chauí 59 Capítulo 5 Aspectos da Filosofia contemporânea As questões discutidas pela Filosofia contemporânea Dissemos no capítulo anterior que a Filosofia contemporânea vai dos meados do século XIX até nossos dias e que por estar próxima de nós é mais difícil de ser vista em sua generalidade pois os problemas e as diferentes respostas dadas a eles parecem impossibilitar uma visão de conjunto Em outras palavras não temos distância suficiente para perceber os traços mais gerais e marcantes deste período da Filosofia Apesar disso é possível assinalar quais têm sido as principais questões e os principais temas que interessaram à Filosofia neste século e meio História e progresso O século XIX é na Filosofia o grande século da descoberta da História ou da historicidade do homem da sociedade das ciências e das artes É particularmente com o filósofo alemão Hegel que se afirma que a História é o modo de ser da razão e da verdade o modo de ser dos seres humanos e que portanto somos seres históricos No século passado essa concepção levou à idéia de progresso isto é de que os seres humanos as sociedades as ciências as artes e as técnicas melhoram com o passar do tempo acumulam conhecimento e práticas aperfeiçoandose cada vez mais de modo que o presente é melhor e superior se comparado ao passado e o futuro será melhor e superior se comparado ao presente Essa visão otimista também foi desenvolvida na França pelo filósofo Augusto Comte que atribuía o progresso ao desenvolvimento das ciências positivas Essas ciências permitiriam aos seres humanos saber para prever prever para prover de modo que o desenvolvimento social se faria por aumento do conhecimento científico e do controle científico da sociedade É de Comte a idéia de Ordem e Progresso que viria a fazer parte da bandeira do Brasil republicano No entanto no século XX a mesma afirmação da historicidade dos seres humanos da razão e da sociedade levou à idéia de que a História é descontínua e não progressiva cada sociedade tendo sua História própria em vez de ser apenas uma etapa numa História universal das civilizações A idéia de progresso passa a ser criticada porque serve como desculpa para legitimar colonialismos e imperialismos os mais adiantados teriam o direito de dominar os mais atrasados Passa a ser criticada também a idéia de progresso Convite à Filosofia 60 das ciências e das técnicas mostrandose que em cada época histórica e para cada sociedade os conhecimentos e as práticas possuem sentido e valor próprios e que tal sentido e tal valor desaparecem numa época seguinte ou são diferentes numa outra sociedade não havendo portanto transformação contínua acumulativa e progressiva O passado foi o passado o presente é o presente e o futuro será o futuro As ciências e as técnicas No século XIX entusiasmada com as ciências e as técnicas bem como com a Segunda Revolução Industrial a Filosofia afirmava a confiança plena e total no saber científico e na tecnologia para dominar e controlar a Natureza a sociedade e os indivíduos Acreditavase que a sociologia por exemplo nos ofereceria um saber seguro e definitivo sobre o modo de funcionamento das sociedades e que os seres humanos poderiam organizar racionalmente o social evitando revoluções revoltas e desigualdades Acreditavase também que a psicologia ensinaria definitivamente como é e como funciona a psique humana quais as causas dos comportamentos e os meios de controlálos quais as causas das emoções e os meios de controlálas de tal modo que seria possível livrarnos das angústias do medo da loucura assim como seria possível uma pedagogia baseada nos conhecimentos científicos e que permitiria não só adaptar perfeitamente as crianças às exigências da sociedade como também educálas segundo suas vocações e potencialidades psicológicas No entanto no século XX a Filosofia passou a desconfiar do otimismo científicotecnológico do século anterior em virtude de vários acontecimentos as duas guerras mundiais o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki os campos de concentração nazistas as guerras da Coréia do Vietnã do Oriente Médio do Afeganistão as invasões comunistas da Hungria e da Tchecoslováquia as ditaduras sangrentas da América Latina a devastação de mares florestas e terras os perigos cancerígenos de alimentos e remédios o aumento de distúrbios e sofrimentos mentais etc Uma escola alemã de Filosofia a Escola de Frankfurt elaborou uma concepção conhecida como Teoria Crítica na qual distingue duas formas da razão a razão instrumental e a razão crítica A razão instrumental é a razão técnicocientífica que faz das ciências e das técnicas não um meio de liberação dos seres humanos mas um meio de intimidação medo terror e desespero Ao contrário a razão crítica é aquela que analisa e interpreta os limites e os perigos do pensamento instrumental e afirma que as mudanças sociais políticas e culturais só se realizarão verdadeiramente se tiverem como finalidade a emancipação do gênero humano e não as idéias de controle e domínio técnicocientífico sobre a Natureza a sociedade e a cultura Marilena Chauí 61 As utopias revolucionárias No século XIX em decorrência do otimismo trazido pelas idéias de progresso desenvolvimento técnicocientífico poderio humano para construir uma vida justa e feliz a Filosofia apostou nas utopias revolucionárias anarquismo socialismo comunismo que criariam graças à ação política consciente dos explorados e oprimidos uma sociedade nova justa e feliz No entanto no século XX com o surgimento das chamadas sociedades totalitárias fascismo nazismo stalinismo e com o aumento do poder das sociedades autoritárias ou ditatoriais a Filosofia também passou a desconfiar do otimismo revolucionário e das utopias e a indagar se os seres humanos os explorados e dominados serão capazes de criar e manter uma sociedade nova justa e feliz O crescimento das chamadas burocracias que dominam as organizações estatais empresariais políticopartidárias escolares hospitalares levou a Filosofia a indagar como os seres humanos poderiam derrubar esse imenso poderio que os governa secretamente que eles desconhecem e que determina suas vidas cotidianas desde o nascimento até a morte A cultura No século XIX a Filosofia descobre a Cultura como o modo próprio e específico da existência dos seres humanos Os animais são seres naturais os humanos seres culturais A Natureza é governada por leis necessárias de causa e efeito a Cultura é o exercício da liberdade A cultura é a criação coletiva de idéias símbolos e valores pelos quais uma sociedade define para si mesma o bom e o mau o belo e o feio o justo e o injusto o verdadeiro e o falso o puro e o impuro o possível e o impossível o inevitável e o casual o sagrado e o profano o espaço e o tempo A Cultura se realiza porque os humanos são capazes de linguagem trabalho e relação com o tempo A Cultura se manifesta como vida social como criação das obras de pensamento e de arte como vida religiosa e vida política Para a Filosofia do século XIX em consonância com sua idéia de uma História universal das civilizações haveria uma única grande Cultura em desenvolvimento da qual as diferentes culturas seriam fases ou etapas Para alguns como os filósofos que seguiam as idéias de Hegel o movimento do desenvolvimento cultural era progressivo Para outros chamados de filósofos românticos ou adeptos da filosofia do Romantismo as culturas não formavam uma seqüência progressiva mas eram culturas nacionais Assim cabia à Filosofia conhecer o espírito de um povo conhecendo as origens e as raízes de cada cultura pois o mais importante de uma cultura não se encontraria em seu futuro mas no seu passado isto é nas tradições no folclore nacional Convite à Filosofia 62 No entanto no século XX a Filosofia afirmando que a História é descontínua também afirma que não há a Cultura mas culturas diferentes e que a pluralidade de culturas e as diferenças entre elas não se devem à nação pois a idéia de nação é uma criação cultural e não a causa das diferenças culturais Cada cultura inventa seu modo de relacionarse com o tempo de criar sua linguagem de elaborar seus mitos e suas crenças de organizar o trabalho e as relações sociais de criar as obras de pensamento e de arte Cada uma em decorrência das condições históricas geográficas e políticas em que se forma tem seu modo próprio de organizar o poder e a autoridade de produzir seus valores Contra a filosofia da cultura universal a Filosofia do século XX nega que haja uma única cultura em progresso e afirma a existência da pluralidade cultural Contra a filosofia romântica das culturas nacionais como expressão do espírito do povo e do conjunto de tradições a Filosofia do século XX nega que a nacionalidade seja causa das culturas as nacionalidades são efeitos culturais temporários e afirma que cada cultura se relaciona com outras e encontra dentro de si seus modos de transformação Dessa maneira o presente está voltado para o futuro e não para o conservadorismo do passado O fim da Filosofia No século XIX o otimismo positivista ou cientificista levou a Filosofia a supor que no futuro só haveria ciências e que todos os conhecimentos e todas as explicações seriam dados por elas Assim a própria Filosofia poderia desaparecer não tendo motivo para existir No entanto no século XX a Filosofia passou a mostrar que as ciências não possuem princípios totalmente certos seguros e rigorosos para as investigações que os resultados podem ser duvidosos e precários e que freqüentemente uma ciência desconhece até onde pode ir e quando está entrando no campo de investigação de uma outra Os princípios os métodos os conceitos e os resultados de uma ciência podem estar totalmente equivocados ou desprovidos de fundamento Com isso a Filosofia voltou a afirmar seu papel de compreensão e interpretação crítica das ciências discutindo a validade de seus princípios procedimentos de pesquisa resultados de suas formas de exposição dos dados e das conclusões etc Foram preocupações com a falta de rigor das ciências que levaram o filósofo alemão Husserl a propor que a Filosofia fosse o estudo e o conhecimento rigoroso da possibilidade do próprio conhecimento científico examinando os fundamentos os métodos e os resultados das ciências Foram também preocupações como essas que levaram filósofos como Bertrand Russel e Quine a estudar a linguagem científica a discutir os problemas lógicos das ciências e a mostrar os paradoxos e os limites do conhecimento científico Marilena Chauí 63 A maioridade da razão No século XIX o otimismo filosófico levava a Filosofia a afirmar que enfim os seres humanos haviam alcançado a maioridade racional e que a razão se desenvolvia plenamente para que o conhecimento completo da realidade e das ações humanas fosse atingido No entanto Marx no final do século XIX e Freud no início do século XX puseram em questão esse otimismo racionalista Marx e Freud cada qual em seu campo de investigação e cada qual voltado para diferentes aspectos da ação humana Marx voltado para a economia e a política Freud voltado para as perturbações e os sofrimentos psíquicos fizeram descobertas que até agora continuam impondo questões filosóficas Que descobriram eles Marx descobriu que temos a ilusão de estarmos pensando e agindo com nossa própria cabeça e por nossa própria vontade racional e livremente de acordo com nosso entendimento e nossa liberdade porque desconhecemos um poder invisível que nos força a pensar como pensamos e agir como agimos A esse poder que é social ele deu o nome de ideologia Freud por sua vez mostrou que os seres humanos têm a ilusão de que tudo quanto pensam fazem sentem e desejam tudo quanto dizem ou calam estaria sob o controle de nossa consciência porque desconhecemos a existência de uma força invisível de um poder que é psíquico e social que atua sobre nossa consciência sem que ela o saiba A esse poder que domina e controla invisível e profundamente nossa vida consciente ele deu o nome de inconsciente Diante dessas duas descobertas a Filosofia se viu forçada a reabrir a discussão sobre o que é e o que pode a razão sobre o que é e o que pode a consciência reflexiva ou o sujeito do conhecimento sobre o que são e o que podem as aparências e as ilusões Ao mesmo tempo a Filosofia teve que reabrir as discussões éticas e morais O homem é realmente livre ou é inteiramente condicionado pela sua situação psíquica e histórica Se for inteiramente condicionado então a História e a cultura são causalidades necessárias como a Natureza Ou seria mais correto indagar Como os seres humanos conquistam a liberdade em meio a todos os condicionamentos psíquicos históricos econômicos culturais em que vivem Infinito e finito O século XIX prosseguiu uma tradição filosófica que veio desde a Antigüidade e que foi muito alimentada pelo pensamento cristão Nessa tradição o mais importante sempre foi a idéia do infinito isto é da Natureza eterna dos gregos do Deus eterno dos cristãos do desenvolvimento pleno e total da História ou do tempo como totalização de todos os seus momentos ou suas etapas Prevalecia a idéia de todo ou de totalidade da qual os humanos fazem parte e na qual os humanos participam Convite à Filosofia 64 No entanto a Filosofia do século XX tendeu a dar maior importância ao finito isto é ao que surge e desaparece ao que tem fronteiras e limites Esse interesse pelo finito aparece por exemplo numa corrente filosófica entre os anos 30 e 50 chamada existencialismo e que definiu o humano ou o homem como um ser para a morte isto é um ser que sabe que termina e que precisa encontrar em si mesmo o sentido de sua existência Para a maioria dos existencialistas dois eram os modos privilegiados de o homem aceitar e enfrentar sua finitude através das artes e através da ação políticorevolucionária Nessas formas excepcionais da atividade os humanos seriam capazes de dar sentido à brevidade e finitude de suas vidas Um outro exemplo do interesse pela finitude aparece no que se costuma chamar de filosofia da diferença isto é naquela filosofia que se interessa menos pelas semelhanças e identidades e muito mais pela singularidade e particularidade É assim por exemplo que tal filosofia inspirandose nos trabalhos dos antropólogos interessase pela diversidade pluralidade singularidade das diferentes culturas em lugar de voltarse para a idéia de uma cultura universal que foi no século XIX uma das imagens do infinito isto é de uma totalidade que conteria dentro de si como suas partes ou seus momentos as diferentes culturas singulares Enfim um outro exemplo de interesse pela finitude aparece quando a Filosofia em vez de buscar uma ciência universal que conteria dentro de si todas as ciências particulares interessase pela multiplicidade e pela diferença entre as ciências pelos limites de cada uma delas e sobretudo por seus impasses e problemas insolúveis Temas disciplinas e campos filosóficos A Filosofia existe há 25 séculos Durante uma história tão longa e de tantos períodos diferentes surgiram temas disciplinas e campos de investigação filosóficos enquanto outros desapareceram Desapareceu também a idéia de Aristóteles de que a Filosofia era a totalidade dos conhecimentos teóricos e práticos da humanidade Também desapareceu uma imagem que durou muitos séculos na qual a Filosofia era representada como uma grande árvore frondosa cujas raízes eram a metafísica e a teologia cujo tronco era a lógica cujos ramos principais eram a filosofia da Natureza a ética e a política e cujos galhos extremos eram as técnicas as artes e as invenções A Filosofia vista como uma totalidade orgânica ou viva era chamada de rainha das ciências Isso desapareceu Pouco a pouco as várias ciências particulares foram definindo seus objetivos seus métodos e seus resultados próprios e se desligaram da grande árvore Cada ciência ao se desligar levou consigo os conhecimentos práticos ou aplicados de seu campo de investigação isto é as artes e as técnicas a ele ligadas As últimas Marilena Chauí 65 ciências a aparecer e a se desligar da árvore da Filosofia foram as ciências humanas psicologia sociologia antropologia história lingüística geografia etc Outros campos de conhecimento e de ação abriramse para a Filosofia mas a idéia de uma totalidade de saberes que conteria em si todos os conhecimentos nunca mais reapareceu No século XX a Filosofia foi submetida a uma grande limitação quanto à esfera de seus conhecimentos Isso pode ser atribuído a dois motivos principais 1 Desde o final do século XVIII com o filósofo alemão Immanuel Kant passou se a considerar que a Filosofia durante todos os séculos anteriores tivera uma pretensão irrealizável Que pretensão fora essa A de que nossa razão pode conhecer as coisas tais como são em si mesmas Esse conhecimento da realidade em si dos primeiros princípios e das primeiras causas de todas as coisas chama se metafísica Kant negou que a razão humana tivesse tal poder de conhecimento e afirmou que só conhecemos as coisas tais como são organizadas pela estrutura interna e universal de nossa razão mas nunca saberemos se tal organização corresponde ou não à organização em si da própria realidade Deixando de ser metafísica a Filosofia se tornou o conhecimento das condições de possibilidade do conhecimento verdadeiro enquanto conhecimento possível para os seres humanos racionais A Filosofia tornouse uma teoria do conhecimento ou uma teoria sobre a capacidade e a possibilidade humana de conhecer e uma ética ou estudo das condições de possibilidade da ação moral enquanto realizada por liberdade e por dever Com isso a Filosofia deixava de ser conhecimento do mundo em si e tornavase apenas conhecimento do homem enquanto ser racional e moral 2 Desde meados do século XIX como conseqüência da filosofia de Augusto Comte chamada de positivismo foi feita uma separação entre Filosofia e ciências positivas matemática física química biologia astronomia sociologia As ciências dizia Comte estudam a realidade natural social psicológica e moral e são propriamente o conhecimento Para ele a Filosofia seria apenas uma reflexão sobre o significado do trabalho científico isto é uma análise e uma interpretação dos procedimentos ou das metodologias usadas pelas ciências e uma avaliação dos resultados científicos A Filosofia tornouse assim uma teoria das ciências ou epistemologia episteme em grego quer dizer ciência A Filosofia reduziuse portanto à teoria do conhecimento à ética e à epistemologia Como conseqüência dessa redução os filósofos passaram a ter um interesse primordial pelo conhecimento das estruturas e formas de nossa consciência e também pelo seu modo de expressão isto é a linguagem O interesse pela consciência reflexiva ou pelo sujeito do conhecimento deu surgimento a uma corrente filosófica conhecida como fenomenologia iniciada Convite à Filosofia 66 pelo filósofo alemão Edmund Husserl Já o interesse pelas formas e pelos modos de funcionamento da linguagem corresponde a uma corrente filosófica conhecida como filosofia analítica cujo início é atribuído ao filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein No entanto a atividade filosófica não se restringiu à teoria do conhecimento à lógica à epistemologia e à ética Desde o início do século XX a História da Filosofia tornouse uma disciplina de grande prestígio e com ela a história das idéias e a história das ciências Desde a Segunda Guerra Mundial com o fenômeno do totalitarismo fascismo nazismo stalinismo com as guerras de libertação nacional contra os impérios coloniais e as revoluções socialistas em vários países desde os anos 60 com as lutas contra ditaduras e com os movimentos por direitos negros índios mulheres idosos homossexuais loucos crianças os excluídos econômica e politicamente e desde os anos 70 com a luta pela democracia em países submetidos a regimes autoritários um grande interesse pela filosofia política ressurgiu e com ele as críticas de ideologias e uma nova discussão sobre as relações entre a ética e a política além das discussões em torno da filosofia da História Atualmente um movimento filosófico conhecido como desconstrutivismo ou pósmodernismo vem ganhando preponderância Seu alvo principal é a crítica de todos os conceitos e valores que até hoje sustentaram a Filosofia e o pensamento dito ocidental razão saber sujeito objeto História espaço tempo liberdade necessidade acaso Natureza homem etc Quais são os campos próprios em que se desenvolve a reflexão filosófica nestes vinte e cinco séculos São eles Ontologia ou metafísica conhecimento dos princípios e fundamentos últimos de toda a realidade de todos os seres Lógica conhecimento das formas gerais e regras gerais do pensamento correto e verdadeiro independentemente dos conteúdos pensados regras para a demonstração científica verdadeira regras para pensamentos nãocientíficos regras sobre o modo de expor os conhecimentos regras para a verificação da verdade ou falsidade de um pensamento etc Epistemologia análise crítica das ciências tanto as ciências exatas ou matemáticas quanto as naturais e as humanas avaliação dos métodos e dos resultados das ciências compatibilidades e incompatibilidades entre as ciências formas de relações entre as ciências etc Teoria do conhecimento ou estudo das diferentes modalidades de conhecimento humano o conhecimento sensorial ou sensação e percepção a memória e a imaginação o conhecimento intelectual a idéia de verdade e falsidade a idéia de ilusão e realidade formas de conhecer o espaço e o tempo formas de conhecer Marilena Chauí 67 relações conhecimento ingênuo e conhecimento científico diferença entre conhecimento científico e filosófico etc Ética estudo dos valores morais as virtudes da relação entre vontade e paixão vontade e razão finalidades e valores da ação moral idéias de liberdade responsabilidade dever obrigação etc Filosofia política estudo sobre a natureza do poder e da autoridade idéia de direito lei justiça dominação violência formas dos regimes políticos e suas fundamentações nascimento e formas do Estado idéias autoritárias conservadoras revolucionárias e libertárias teorias da revolução e da reforma análise e crítica das ideologias Filosofia da História estudo sobre a dimensão temporal da existência humana como existência sociopolítica e cultural teorias do progresso da evolução e teorias da descontinuidade histórica significado das diferenças culturais e históricas suas razões e conseqüências Filosofia da arte ou estética estudo das formas de arte do trabalho artístico idéia de obra de arte e de criação relação entre matéria e forma nas artes relação entre arte e sociedade arte e política arte e ética Filosofia da linguagem a linguagem como manifestação da humanidade do homem signos significações a comunicação passagem da linguagem oral à escrita da linguagem cotidiana à filosófica à literária à científica diferentes modalidades de linguagem como diferentes formas de expressão e de comunicação História da Filosofia estudo dos diferentes períodos da Filosofia de grupos de filósofos segundo os temas e problemas que abordam de relações entre o pensamento filosófico e as condições econômicas políticas sociais e culturais de uma sociedade mudanças ou transformações de conceitos filosóficos em diferentes épocas mudanças na concepção do que seja a Filosofia e de seu papel ou finalidade Convite à Filosofia 68 Unidade 2 A Razão Marilena Chauí 69 Capítulo 1 A Razão Os vários sentidos da palavra razão Nos capítulos precedentes insistimos muito na afirmação de que a Filosofia se realiza como conhecimento racional da realidade natural e cultural das coisas e dos seres humanos Dissemos que ela confia na razão e que hoje ela também desconfia da razão Mas até agora não dissemos o que é a razão apesar de ser ela tão antiga quanto a Filosofia Em nossa vida cotidiana usamos a palavra razão em muitos sentidos Dizemos por exemplo eu estou com a razão ou ele não tem razão para significar que nos sentimos seguros de alguma coisa ou que sabemos com certeza alguma coisa Também dizemos que num momento de fúria ou de desespero alguém perde a razão como se a razão fosse alguma coisa que se pode ter ou não ter possuir e perder ou recuperar como na frase Agora ela está lúcida recuperou a razão Falamos também frases como Se você me disser suas razões sou capaz de fazer o que você me pede querendo dizer com isso que queremos ouvir os motivos que alguém tem para querer ou fazer alguma coisa Fazemos perguntas como Qual a razão disso querendo saber qual a causa de alguma coisa e nesse caso a razão parece ser alguma propriedade que as próprias coisas teriam já que teriam uma causa Assim usamos razão para nos referirmos a motivos de alguém e também para nos referirmos a causas de alguma coisa de modo que tanto nós quanto as coisas parecemos dotados de razão mas em sentido diferente Esses poucos exemplos já nos mostram quantos sentidos diferentes a palavra razão possui certeza lucidez motivo causa E todos esses sentidos encontram se presentes na Filosofia Por identificar razão e certeza a Filosofia afirma que a verdade é racional por identificar razão e lucidez não ficar ou não estar louco a Filosofia chama nossa razão de luz e luz natural por identificar razão e motivo por considerar que Convite à Filosofia 70 sempre agimos e falamos movidos por motivos a Filosofia afirma que somos seres racionais e que nossa vontade é racional por identificar razão e causa e por julgar que a realidade opera de acordo com relações causais a Filosofia afirma que a realidade é racional É muito conhecida a célebre frase de Pascal filósofo francês do século XVII O coração tem razões que a razão desconhece Nessa frase as palavras razões e razão não têm o mesmo significado indicando coisas diversas Razões são os motivos do coração enquanto razão é algo diferente de coração este é o nome que damos para as emoções e paixões enquanto razão é o nome que damos à consciência intelectual e moral Ao dizer que o coração tem suas próprias razões Pascal está afirmando que as emoções os sentimentos ou as paixões são causas de muito do que fazemos dizemos queremos e pensamos Ao dizer que a razão desconhece as razões do coração Pascal está afirmando que a consciência intelectual e moral é diferente das paixões e dos sentimentos e que ela é capaz de uma atividade própria não motivada e causada pelas emoções mas possuindo seus motivos ou suas próprias razões Assim a frase de Pascal pode ser traduzida da seguinte maneira Nossa vida emocional possui causas e motivos as razões do coração que são as paixões ou os sentimentos e é diferente de nossa atividade consciente seja como atividade intelectual seja como atividade moral A consciência é a razão Coração e razão paixão e consciência intelectual ou moral são diferentes Se alguém perde a razão é porque está sendo arrastado pelas razões do coração Se alguém recupera a razão é porque o conhecimento intelectual e a consciência moral se tornaram mais fortes do que as paixões A razão enquanto consciência moral é a vontade racional livre que não se deixa dominar pelos impulsos passionais mas realiza as ações morais como atos de virtude e de dever ditados pela inteligência ou pelo intelecto Além da frase de Pascal também ouvimos outras que elogiam as ciências dizendo que elas manifestam o progresso da razão Aqui a razão é colocada como capacidade puramente intelectual para conseguir o conhecimento verdadeiro da Natureza da sociedade da História e isto é considerado algo bom positivo um progresso Por ser considerado um progresso o conhecimento científico é visto como se realizando no tempo e como dotado de continuidade de tal modo que a razão é concebida como temporal também isto é como capaz de aumentar seus conteúdos e suas capacidades através dos tempos Algumas vezes ouvimos um professor dizer a outro Fulano trouxe um trabalho irracional era um caos uma confusão Incompreensível Já o trabalho de beltrano era uma beleza claro compreensível racional Aqui a razão ou racional Marilena Chauí 71 significa clareza das idéias ordem resultado de esforço intelectual ou da inteligência seguindo normas e regras de pensamento e de linguagem Todos esses sentidos constituem a nossa idéia de razão Nós a consideramos a consciência moral que observa as paixões orienta a vontade e oferece finalidades éticas para a ação Nós a vemos como atividade intelectual de conhecimento da realidade natural social psicológica histórica Nós a concebemos segundo o ideal da clareza da ordenação e do rigor e precisão dos pensamentos e das palavras Para muitos filósofos porém a razão não é apenas a capacidade moral e intelectual dos seres humanos mas também uma propriedade ou qualidade primordial das próprias coisas existindo na própria realidade Para esses filósofos nossa razão pode conhecer a realidade Natureza sociedade História porque ela é racional em si mesma Falase portanto em razão objetiva a realidade é racional em si mesma e em razão subjetiva a razão é uma capacidade intelectual e moral dos seres humanos A razão objetiva é a afirmação de que o objeto do conhecimento ou a realidade é racional a razão subjetiva é a afirmação de que o sujeito do conhecimento e da ação é racional Para muitos filósofos a Filosofia é o momento do encontro do acordo e da harmonia entre as duas razões ou racionalidades Origem da palavra razão Na cultura da chamada sociedade ocidental a palavra razão originase de duas fontes a palavra latina ratio e a palavra grega logos Essas duas palavras são substantivos derivados de dois verbos que têm um sentido muito parecido em latim e em grego Logos vem do verbo legein que quer dizer contar reunir juntar calcular Ratio vem do verbo reor que quer dizer contar reunir medir juntar separar calcular Que fazemos quando medimos juntamos separamos contamos e calculamos Pensamos de modo ordenado E de que meios usamos para essas ações Usamos palavras mesmo quando usamos números estamos usando palavras sobretudo os gregos e os romanos que usavam letras para indicar números Por isso logos ratio ou razão significam pensar e falar ordenadamente com medida e proporção com clareza e de modo compreensível para outros Assim na origem razão é a capacidade intelectual para pensar e exprimirse correta e claramente para pensar e dizer as coisas tais como são A razão é uma maneira de organizar a realidade pela qual esta se torna compreensível É também a confiança de que podemos ordenar e organizar as coisas porque são organizáveis ordenáveis compreensíveis nelas mesmas e por elas mesmas isto é as próprias coisas são racionais Convite à Filosofia 72 Desde o começo da Filosofia a origem da palavra razão fez com que ela fosse considerada oposta a quatro outras atitudes mentais 1 ao conhecimento ilusório isto é ao conhecimento da mera aparência das coisas que não alcança a realidade ou a verdade delas para a razão a ilusão provém de nossos costumes de nossos preconceitos da aceitação imediata das coisas tais como aparecem e tais como parecem ser As ilusões criam as opiniões que variam de pessoa para pessoa e de sociedade para sociedade A razão se opõe à mera opinião 2 às emoções aos sentimentos às paixões que são cegas caóticas desordenadas contrárias umas às outras ora dizendo sim a alguma coisa ora dizendo não a essa mesma coisa como se não soubéssemos o que queremos e o que as coisas são A razão é vista como atividade ou ação intelectual e da vontade oposta à paixão ou à passividade emocional 3 à crença religiosa pois nesta a verdade nos é dada pela fé numa revelação divina não dependendo do trabalho de conhecimento realizado pela nossa inteligência ou pelo nosso intelecto A razão é oposta à revelação e por isso os filósofos cristãos distinguem a luz natural a razão da luz sobrenatural a revelação 4 ao êxtase místico no qual o espírito mergulha nas profundezas do divino e participa dele sem qualquer intervenção do intelecto ou da inteligência nem da vontade Pelo contrário o êxtase místico exige um estado de abandono de rompimento com a atividade intelectual e com a vontade um rompimento com o estado consciente para entregarse à fruição do abismo infinito A razão ou consciência se opõe à inconsciência do êxtase Os princípios racionais Desde seus começos a Filosofia considerou que a razão opera seguindo certos princípios que ela própria estabelece e que estão em concordância com a própria realidade mesmo quando os empregamos sem conhecêlos explicitamente Ou seja o conhecimento racional obedece a certas regras ou leis fundamentais que respeitamos até mesmo quando não conhecemos diretamente quais são e o que são Nós as respeitamos porque somos seres racionais e porque são princípios que garantem que a realidade é racional Que princípios são esses São eles Princípio da identidade cujo enunciado pode parecer surpreendente A é A ou O que é é O princípio da identidade é a condição do pensamento e sem ele não podemos pensar Ele afirma que uma coisa seja ela qual for um ser da Natureza uma figura geométrica um ser humano uma obra de arte uma ação só pode ser conhecida e pensada se for percebida e conservada com sua identidade Marilena Chauí 73 Por exemplo depois que um matemático definir o triângulo como figura de três lados e de três ângulos não só nenhuma outra figura que não tenha esse número de lados e de ângulos poderá ser chamada de triângulo como também todos os teoremas e problemas que o matemático demonstrar sobre o triângulo só poderão ser demonstrados se a cada vez que ele disser triângulo soubermos a qual ser ou a qual coisa ele está se referindo O princípio da identidade é a condição para que definamos as coisas e possamos conhecêlas a partir de suas definições Princípio da nãocontradição também conhecido como princípio da contradição cujo enunciado é A é A e é impossível que seja ao mesmo tempo e na mesma relação nãoA Assim é impossível que a árvore que está diante de mim seja e não seja uma mangueira que o cachorrinho de dona Filomena seja e não seja branco que o triângulo tenha e não tenha três lados e três ângulos que o homem seja e não seja mortal que o vermelho seja e não seja vermelho etc Sem o princípio da nãocontradição o princípio da identidade não poderia funcionar O princípio da nãocontradição afirma que uma coisa ou uma idéia que se negam a si mesmas se autodestroem desaparecem deixam de existir Afirma também que as coisas e as idéias contraditórias são impensáveis e impossíveis Princípio do terceiroexcluído cujo enunciado é Ou A é x ou é y e não há terceira possibilidade Por exemplo Ou este homem é Sócrates ou não é Sócrates Ou faremos a guerra ou faremos a paz Este princípio define a decisão de um dilema ou isto ou aquilo e exige que apenas uma das alternativas seja verdadeira Mesmo quando temos por exemplo um teste de múltipla escolha escolhemos na verdade apenas entre duas opções ou está certo ou está errado e não há terceira possibilidade ou terceira alternativa pois entre várias escolhas possíveis só há realmente duas a certa ou a errada Princípio da razão suficiente que afirma que tudo o que existe e tudo o que acontece tem uma razão causa ou motivo para existir ou para acontecer e que tal razão causa ou motivo pode ser conhecida pela nossa razão O princípio da razão suficiente costuma ser chamado de princípio da causalidade para indicar que a razão afirma a existência de relações ou conexões internas entre as coisas entre fatos ou entre ações e acontecimentosPode ser enunciado da seguinte maneira Dado A necessariamente se dará B E também Dado B necessariamente houve A Isso não significa que a razão não admita o acaso ou ações e fatos acidentais mas sim que ela procura mesmo para o acaso e para o acidente uma causa A diferença entre a causa ou razão suficiente e a causa casual ou acidental está em que a primeira se realiza sempre é universal e necessária enquanto a causa acidental ou casual só vale para aquele caso particular para aquela situação específica não podendo ser generalizada e ser considerada válida para todos os Convite à Filosofia 74 casos ou situações iguais ou semelhantes pois justamente o caso ou a situação são únicos A morte por exemplo é um efeito necessário e universal válido para todos os tempos e lugares da guerra e a guerra é a causa necessária e universal da morte de pessoas Mas é imprevisível ou acidental que esta ou aquela guerra aconteçam Podem ou não podem acontecer Nenhuma causa universal exige que aconteçam Mas se uma guerra acontecer terá necessariamente como efeito mortes Mas as causas dessa guerra são somente as dessa guerra e de nenhuma outra Diferentemente desse caso o princípio da razão suficiente está vigorando plenamente quando por exemplo Galileu demonstrou as leis universais do movimento dos corpos em queda livre isto é no vácuo Pelo que foi exposto podemos observar que os princípios da razão apresentam algumas características importantes não possuem um conteúdo determinado pois são formas indicam como as coisas devem ser e como devemos pensar mas não nos dizem quais coisas são nem quais os conteúdos que devemos ou vamos pensar possuem validade universal isto é onde houver razão nos seres humanos e nas coisas nos fatos e nos acontecimentos em todo o tempo e em todo lugar tais princípios são verdadeiros e empregados por todos os humanos e obedecidos por todos coisas fatos acontecimentos são necessários isto é indispensáveis para o pensamento e para a vontade indispensáveis para as coisas os fatos e os acontecimentos Indicam que algo é assim e não pode ser de outra maneira Necessário significa é impossível que não seja dessa maneira e que pudesse ser de outra Ampliando nossa idéia de razão A idéia de razão que apresentamos até aqui e que constitui o ideal de racionalidade criado pela sociedade européia ocidental sofreu alguns abalos profundos desde o início do século XX Aqui vamos apenas oferecer alguns exemplos dos problemas que a Filosofia precisou enfrentar e que levaram a uma ampliação da idéia da razão Um primeiro abalo veio das ciências da Natureza ou mais precisamente da física e atingiu o princípio do terceiroexcluído A física da luz ou óptica descobriu que a luz tanto pode ser explicada por ondas luminosas quanto por partículas descontínuas Isso significou que já não se podia dizer ou a luz se propaga por ondas contínuas ou se propaga por partículas descontínuas como exigiria o princípio do terceiroexcluído mas sim que a luz pode propagarse tanto de uma maneira como de outra Por sua vez a física atômica ou quântica abalou o princípio da razão suficiente Vimos que esse princípio afirma que conhecido A posso determinar como dele Marilena Chauí 75 necessariamente resultará B ou conhecido B posso determinar necessariamente como era A que o causou Em outras palavras conhecido o estado E de um fenômeno posso deduzir como será o estado E2 ou E3 e viceversa conhecidos E3 e E2 posso dizer como era o estado E Ora a física dos átomos revelou que isso não é possível que não podemos saber as razões pelas quais os átomos se movimentam nem sua velocidade e direção nem os efeitos que produzirão Esses dois problemas levaram a introduzir um novo princípio racional na Natureza o princípio da indeterminação Assim o princípio da razão suficiente é válido para os fenômenos macroscópicos enquanto o princípio da indeterminação é válido para os fenômenos em escala hipermicroscópica Um outro problema veio abalar o princípio da identidade e da nãocontradição A física sempre considerou que a Natureza obedece às leis universais da razão objetiva sem depender da razão subjetiva Em outras palavras as leis da Natureza existem por si mesmas são necessárias e universais por si mesmas e não dependem do sujeito do conhecimento Contudo a teoria da relatividade mostrou que as leis da Natureza dependem da posição ocupada pelo observador isto é pelo sujeito do conhecimento e portanto para um observador situado fora de nosso sistema planetário a Natureza poderá seguir leis completamente diferentes de tal modo que por exemplo o que é o espaço e o tempo para nós poderá não ser para outros seres se existirem da galáxia a geometria que seguimos pode não ser a que tenha sentido noutro sistema planetário o que pode ser contraditório para nós poderá não ser para habitantes de outra galáxia e assim por diante Um outro problema também atingindo os princípios da razão foi trazido pela lógica O lógico alemão Frege apresentou o seguinte problema quando digo a estrela da manhã é a estrela da tarde estou caindo em contradição e perdendo o princípio da identidade No entanto estrela da manhã é o planeta Vênus e estrela da tarde também é o planeta Vênus dessa perspectiva não há contradição alguma no que digo É preciso então distinguir em nosso pensamento e em nossa linguagem três níveis o objeto a que nós nos referimos os enunciados que empregamos e o sentido desses enunciados em sua relação com o objeto referido Somente dessa maneira podemos manter a racionalidade dos princípios da identidade da nãocontradição e do terceiroexcluído Enfim um outro tipo de problema foi trazido com o desenvolvimento dos estudos da antropologia que mostraram como outras culturas podem oferecer uma concepção muito diferente da que estamos acostumados sobre o pensamento e a realidade Isso não significa como imaginaram durante séculos os colonizadores que tais culturas ou sociedades sejam irracionais ou préracionais e sim que possuem uma outra idéia do conhecimento e outros critérios para a explicação da realidade Convite à Filosofia 76 Como a palavra razão é européia e ocidental parece difícil falarmos numa outra razão que seria própria de outros povos e culturas No entanto o que os estudos antropológicos mostraram é que precisamos reconhecer a nossa razão e a razão deles que se trata de uma outra razão e não da mesma razão em diferentes graus de uma única evolução Indeterminação da Natureza pluralidade de enunciados para um mesmo objeto pluralidade e diferenciação das culturas foram alguns dos problemas que abalaram a razão no século XX A esse abalo devemos acrescentar dois outros O primeiro deles foi trazido por um nãofilósofo Marx quando introduziu a noção de ideologia o segundo também foi trazido por um nãofilósofo Freud quando introduziu o conceito de inconsciente A noção de ideologia veio mostrar que as teorias e os sistemas filosóficos ou científicos aparentemente rigorosos e verdadeiros escondiam a realidade social econômica e política e que a razão em lugar de ser a busca e o conhecimento da verdade poderia ser um poderoso instrumento de dissimulação da realidade a serviço da exploração e da dominação dos homens sobre seus semelhantes A razão seria um instrumento da falsificação da realidade e de produção de ilusões pelas quais uma parte do gênero humano se deixa oprimir pela outra A noção de inconsciente por sua vez revelou que a razão é muito menos poderosa do que a Filosofia imaginava pois nossa consciência é em grande parte dirigida e controlada por forças profundas e desconhecidas que permanecem inconscientes e jamais se tornarão plenamente conscientes e racionais A razão e a loucura fazem parte de nossa estrutura mental e de nossas vidas e muitas ve zes como por exemplo no fenômeno do nazismo a razão é louca e destrutiva Fatos como esses as descobertas na física na lógica na antropologia na história na psicanálise levaram o filósofo francês MerleauPonty a dizer que uma das tarefas mais importantes da Filosofia contemporânea deveria ser a de encontrar uma nova idéia da razão uma razão alargada na qual pudessem entrar os princípios da racionalidade definidos por outras culturas e encontrados pelas descobertas científicas Esse alargamento é duplamente necessário e importante Em primeiro lugar porque ele exprime a luta contra o colonialismo e contra o etnocentrismo isto é contra a visão de que a nossa razão e a nossa cultura são superiores e melhores do que as dos outros povos Em segundo lugar porque a razão estaria destinada ao fracasso se não fosse capaz de oferecer para si mesma novos princípios exigidos pelo seu próprio trabalho racional de conhecimento Marilena Chauí 77 Capítulo 2 A atividade racional A atividade racional e suas modalidades A Filosofia distingue duas grandes modalidades da atividade racional realizadas pela razão subjetiva ou pelo sujeito do conhecimento a intuição ou razão intuitiva e o raciocínio ou razão discursiva A atividade racional discursiva como a própria palavra indica discorre percorre uma realidade ou um objeto para chegar a conhecêlo isto é realiza vários atos de conhecimento até conseguir captálo A razão discursiva ou o pensamento discursivo chega ao objeto passando por etapas sucessivas de conhecimento realizando esforços sucessivos de aproximação para chegar ao conceito ou à definição do objeto A razão intuitiva ou intuição ao contrário consiste num único ato do espírito que de uma só vez capta por inteiro e completamente o objeto Em latim intuitos significa ver A intuição é uma visão direta e imediata do objeto do conhecimento um contato direto e imediato com ele sem necessidade de provas ou demonstrações para saber o que conhece A intuição A intuição é uma compreensão global e instantânea de uma verdade de um objeto de um fato Nela de uma só vez a razão capta todas as relações que constituem a realidade e a verdade da coisa intuída É um ato intelectual de discernimento e compreensão como por exemplo tem um médico quando faz um diagnóstico e apreende de uma só vez a doença sua causa e o modo de tratá la Os psicólogos se referem à intuição usando o termo insight para referiremse ao momento em que temos uma compreensão total direta e imediata de alguma coisa ou o momento em que percebemos num só lance um caminho para a solução de um problema científico filosófico ou vital Um exemplo de intuição pode ser encontrado no romance de Guimarães Rosa Grande Sertão Veredas Riobaldo e Diadorim são dois jagunços ligados pela mais profunda amizade e lealdade companheiros de lutas e cumpridores de uma vingança de sangue contra os assassinos da família de Diadorim Riobaldo porém sentese cheio de angústia e atormentado pois seus sentimentos por Diadorim são confusos como se entre eles houvesse muito mais do que a amizade Diadorim é assassinado Quando o corpo é trazido para ser preparado para o funeral Riobaldo descobre que Diadorim era mulher De uma só vez num Convite à Filosofia 78 só lance Riobaldo compreende tudo o que sentia todos os fatos acontecidos entre eles todas as conversas que haviam tido todos os gestos estranhos de Diadorim e compreende instantaneamente a verdade estivera apaixonado por Diadorim A razão intuitiva pode ser de dois tipos intuição sensível ou empírica e intuição intelectual 1 A intuição sensível ou empírica do grego empeiria experiência sensorial é o conhecimento que temos a todo o momento de nossa vida Assim com um só olhar ou num só ato de visão percebemos uma casa um homem uma mulher uma flor uma mesa Num só ato por exemplo capto que isto é uma flor vejo sua cor e suas pétalas sinto a maciez de sua textura aspiro seu perfume tenhoa por inteiro e de uma só vez diante de mim A intuição empírica é o conhecimento direto e imediato das qualidades sensíveis do objeto externo cores sabores odores paladares texturas dimensões distâncias É também o conhecimento direto e imediato de estados internos ou mentais lembranças desejos sentimentos imagens A intuição sensível ou empírica é psicológica isto é referese aos estados do sujeito do conhecimento enquanto um ser corporal e psíquico individual sensações lembranças imagens sentimentos desejos e percepções são exclusivamente pessoais Assim a marca da intuição empírica é sua singularidade por um lado está ligada à singularidade do objeto intuído ao isto oferecido à sensação e à percepção e por outro está ligada à singularidade do sujeito que intui aos meus estados psíquicos às minhas experiências A intuição empírica não capta o objeto em sua universalidade e a experiência intuitiva não é transferível para um outro objeto Riobaldo teve uma intuição empírica 2 A intuição intelectual difere da sensível justamente por sua universalidade e necessidade Quando penso Uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo sei sem necessidade de provas ou demonstrações que isto é verdade Ou seja tenho conhecimento intuitivo do princípio da contradição Quando digo O amarelo é diferente do azul sei sem necessidade de provas e demonstrações que há diferenças Vejo na intuição sensível a cor amarela e a cor azul mas vejo na intuição intelectual a diferença entre cores Quando afirmo O todo é maior do que as partes sei sem necessidade de provas e demonstrações que isto é verdade porque intuo uma forma necessária de relação entre as coisas A intuição intelectual é o conhecimento direto e imediato dos princípios da razão identidade contradição terceiro excluído razão suficiente das relações necessárias entre os seres ou entre as idéias da verdade de uma idéia ou de um ser Marilena Chauí 79 Na história da Filosofia o exemplo mais célebre de intuição intelectual é conhecido como o cogito cartesiano isto é a afirmação de Descartes Penso cogito logo existo De fato quando penso sei que estou pensando e não é preciso provar ou demonstrar isso mesmo porque provar e demonstrar é pensar e para demonstrar e provar é preciso primeiro pensar e saber que se pensa Quando digo Penso logo existo estou simplesmente afirmando racionalmente que sei que sou um ser pensante ou que existo pensando sem necessidade de provas e demonstrações A intuição capta num único ato intelectual a verdade do pensamento pensando em si mesmo Um outro exemplo de intuição intelectual é oferecido pela fenomenologia criada por Husserl Tratase da intuição intelectual de essências ou significações Toda consciência diz Husserl é sempre consciência de ou consciência de alguma coisa isto é toda consciência é um ato pelo qual visamos um objeto um fato uma idéia A consciência representa os objetos os fatos as pessoas Cada representação pode ser obtida por um passeio ou um percurso que nossa consciência faz à volta de um objeto Essas várias representações são psicológicas e individuais e o objeto delas o representado também é individual ou singular Por exemplo diz Husserl quando quero pensar em alguém como Napoleão posso representálo ganhando a batalha de Waterloo prisioneiro na ilha de Elba e na ilha de Santa Helena montado em seu cavalo branco usando o chapéu de três pontas e com a mão direita enfiada na túnica Cada uma dessas representações é singular por um lado cada uma delas é um ato psicológico singular que eu realizo um ato de lembrar um ato de ver a imagem de Napoleão num quadro um ato de ler sobre ele num livro etc e por outro cada uma delas possui um representante singular Napoleão a cavalo Napoleão na batalha de Waterloo Napoleão fugindo de Elba etc No entanto embora sejam singulares e distintas umas das outras todas possuem o mesmo representado o mesmo significado a mesma significação ou a mesma essência Napoleão Quando colocamos de lado a singularidade psicológica de cada uma de nossas representações e a singularidade de cada um dos representantes ficando apenas com a idéia ou significação Napoleão como uma universalidade ou generalidade temos uma intuição da essência Napoleão A intuição da essência é a apreensão intelectual imediata e direta de uma significação deixando de lado as particularidades dos representantes que indicam empiricamente a significação É assim que tenho intuição intelectual da essência ou significação triângulo imaginação memória natureza cor diferença Europa pintura literatura tempo espaço coisa quantidade qualidade etc Intuímos idéias Convite à Filosofia 80 Falase também de uma intuição emotiva ou valorativa Tratase daquela intuição na qual juntamente com o sentido ou significação de alguma coisa captamos também seu valor isto é com a idéia intuímos também se a coisa ou essência é verdadeira ou falsa bela ou feia boa ou má justa ou injusta possível ou impossível etc Ou seja a intuição intelectual capta a essência do objeto o que ele é e a intuição emotiva ou valorativa capta essa essência pelo que o objeto vale A razão discursiva dedução indução e abdução A intuição pode ser o ponto de chegada a conclusão de um processo de conhecimento e pode também ser o ponto de partida de um processo cognitivo O processo de conhecimento seja o que chega a uma intuição seja o que parte dela constitui a razão discursiva ou o raciocínio Ao contrário da intuição o raciocínio é o conhecimento que exige provas e demonstrações e se realiza igualmente por meio de provas e demonstrações das verdades que estão sendo conhecidas ou investigadas Não é um ato intelectual mas são vários atos intelectuais internamente ligados ou conectados formando um processo de conhecimento Um caçador sai pela manhã em busca da caça Entra no mato e vê rastros choveu na véspera e há pegadas no chão pequenos galhos rasteiros estão quebrados o capim está amassado em vários pontos a carcaça de um bicho está à mostra indicando que foi devorado há poucas horas há um grande silêncio no ar não há canto de pássaros não há ruídos de pequenos animais O caçador supõe que haja uma onça por perto Ele pode então tomar duas atitudes Se por todas as experiências anteriores tiver certeza de que a onça está nas imediações pode prepararse para enfrentála sabe que caminhos evitar se não estiver em condições de caçála sabe que armadilhas armar se estiver pronto para capturála sabe como atraíla se quiser conservála viva e preservar a espécie O caçador pode ainda estar sem muita certeza se há ou não uma onça nos arredores e nesse caso tomará uma série de atitudes para verificar a presença ou ausência do felino pode percorrer trilhas que sabem serem próprias de onças pode examinar melhor as pegadas e o tipo de animal que foi devorado pode comparar em sua memória outras situações nas quais esteve presente uma onça etc Assim partindo de indícios o caçador raciocina para chegar a uma conclusão e tomar uma decisão Temos aí um exercício de raciocínio empírico e prático isto é um pensamento que visa a uma ação e que se assemelha à intuição sensível ou empírica isto é caracterizase pela singularidade ou individualidade do sujeito e do objeto do conhecimento Marilena Chauí 81 Quando porém um raciocínio se realiza em condições tais que a individualidade psicológica do sujeito e a singularidade do objeto são substituídas por critérios de generalidade e universalidade temos a dedução a indução e a abdução A dedução Dedução e indução são procedimentos racionais que nos levam do já conhecido ao ainda não conhecido isto é permitem que adquiramos conhecimentos novos graças a conhecimentos já adquiridos Por isso se costuma dizer que no raciocínio o intelecto opera seguindo cadeias de razões ou os nexos e conexões internos e necessários entre as idéias ou entre os fatos A dedução consiste em partir de uma verdade já conhecida seja por intuição seja por uma demonstração anterior e que funciona como um princípio geral ao qual se subordinam todos os casos que serão demonstrados a partir dela Em outras palavras na dedução partese de uma verdade já conhecida para demonstrar que ela se aplica a todos os casos particulares iguais Por isso também se diz que a dedução vai do geral ao particular ou do universal ao individual O ponto de partida de uma dedução é ou uma idéia verdadeira ou uma teoria verdadeira Por exemplo se definirmos o triângulo como uma figura geométrica cujos lados somados são iguais à soma de dois ângulos retos dela deduziremos todas as propriedades de todos os triângulos possíveis Se tomarmos como ponto de partida as definições geométricas do ponto da linha da superfície e da figura deduziremos todas as figuras geométricas possíveis No caso de uma teoria a dedução permitirá que cada caso particular encontrado seja conhecido demonstrando que a ele se aplicam todas as leis regras e verdades da teoria Por exemplo estabelecida a verdade da teoria física de Newton sabemos que 1 as leis da física são relações dinâmicas de tipo mecânico isto é se referem à relações de força ação e reação entre corpos dotados de figura massa e grandeza 2 os fenômenos físicos ocorrem no espaço e no tempo 3 conhecidas as leis iniciais de um conjunto ou de um sistema de fenômenos poderemos prever os atos que ocorrerão nesse conjunto e nesse sistema Assim se eu quiser conhecer um ato físico particular por exemplo o que acontecerá com o corpo lançado no espaço por uma nave espacial ou qual a velocidade de um projétil lançado de um submarino para atingir um alvo num tempo determinado ou qual é o tempo e a velocidade para um certo astro realizar um movimento de rotação em torno de seu eixo aplicarei a esses casos particulares as leis gerais da física newtoniana e saberei com certeza a resposta verdadeira A dedução é um procedimento pelo qual um fato ou objeto particulares são conhecidos por inclusão numa teoria geral Convite à Filosofia 82 Costumase representar a dedução pela seguinte fórmula Todos os x são y definição ou teoria geral A é x caso particular Portanto A é y dedução Exemplos 1 Todos os homens x são mortais y Sócrates A é homem x Portanto Sócrates A é mortal y 2 Todos os metais x são bons condutores de eletricidade y O mercúrio A é um metal x Portanto o mercúrio A é bom condutor de eletricidade y A razão oferece regras especiais para realizar uma dedução e se tais regras não forem respeitadas a dedução será considerada falsa A indução A indução realiza um caminho exatamente contrário ao da dedução Com a indução partimos de casos particulares iguais ou semelhantes e procuramos a lei geral a definição geral ou a teoria geral que explica e subordina todos esses casos particulares A definição ou a teoria são obtidas no ponto final do percurso E a razão também oferece um conjunto de regras precisas para guiar a indução se tais regras não forem respeitadas a indução será considerada falsa Por exemplo colocamos água no fogo e observamos que ela ferve e se transforma em vapor colocamos leite no fogo e vemos também que ele se transforma em vapor colocamos vários tipos de líquidos no fogo e vemos sempre sua transformação em vapor Induzimos desses casos particulares que o fogo possui uma propriedade que produz a evaporação dos líquidos Essa propriedade é o calor Verificamos porém que os diferentes líquidos não evaporam sempre na mesma velocidade cada um deles portanto deve ter propriedades específicas que os fazem evaporar em velocidades diferentes Descobrimos porém que a velocidade da evaporação não é o fato a ser observado e sim quanto de calor cada líquido precisa para começar a evaporar Se considerarmos a água nosso padrão de medida diremos que ela ferve e começa a evaporar a partir de uma certa quantidade de calor e que é essa quantidade de calor que precisa ser conhecida Podemos a seguir verificar um fenômeno diferente Vemos que água e outros Marilena Chauí 83 líquidos colocados num refrigerador endurecem e se congelam mas que como no caso do vapor cada líquido se congela ou se solidifica em velocidades diferentes Procuramos novamente a causa dessa diferença de velocidade e descobrimos que depende tanto de certas propriedades de cada líquido quanto da quantidade de frio que há no refrigerador Percebemos finalmente que é essa quantidade que devemos procurar Com essas duas séries de fatos vapor e congelamento descobrimos que os estados dos líquidos variam evaporação e solidificação em decorrência da temperatura ambiente calor e frio e que cada líquido atinge o ponto de evaporação ou de solidificação em temperaturas diferentes Com esses dados podemos formular uma teoria da relação entre os estados da matéria sólido líquido e gasoso e as variações de temperatura estabelecendo uma relação necessária entre o estado de um corpo e a temperatura ambiente Chegamos por indução a uma teoria A dedução e a indução são conhecidas com o nome de inferência isto é concluir alguma coisa a partir de outra já conhecida Na dedução dado X infiro concluo a b c d Na indução dados a b c d infiro concluo X A abdução O filósofo inglês Peirce considera que além da dedução e da indução a razão discursiva ou raciocínio também se realiza numa terceira modalidade de inferência embora esta não seja propriamente demonstrativa Essa terceira modalidade é chamada por ele de abdução A abdução é uma espécie de intuição mas que não se dá de uma só vez indo passo a passo para chegar a uma conclusão A abdução é a busca de uma conclusão pela interpretação racional de sinais de indícios de signos O exemplo mais simples oferecido por Peirce para explicar o que seja a abdução são os contos policiais o modo como os detetives vão coletando indícios ou sinais e formando uma teoria para o caso que investigam Segundo Peirce a abdução é a forma que a razão possui quando inicia o estudo de um novo campo científico que ainda não havia sido abordado Ela se aproxima da intuição do artista e da adivinhação do detetive que antes de iniciarem seus trabalhos só contam com alguns sinais que indicam pistas a seguir Os historiadores costumam usar a abdução De modo geral dizse que a indução e a abdução são procedimentos racionais que empregamos para a aquisição de conhecimentos enquanto a dedução é o procedimento racional que empregamos para verificar ou comprovar a verdade de um conhecimento já adquirido Realismo e idealismo Vimos anteriormente que muitos filósofos distinguem razão objetiva e razão subjetiva considerando a Filosofia o encontro e o acordo entre ambas Convite à Filosofia 84 Falar numa razão objetiva significa afirmar que a realidade externa ao nosso pensamento é racional em si e por si mesma e que podemos conhecêla justamente por ser racional Significa dizer por exemplo que o espaço e o tempo existem em si e por si mesmos que as relações matemáticas e de causaefeito existem nas próprias coisas que o acaso existe na própria realidade etc Chamase realismo a posição filosófica que afirma a existência objetiva ou em si da realidade externa como uma realidade racional em si e por si mesma e portanto que afirma a existência da razão objetiva Há filósofos porém que estabelecem uma diferença entre a realidade e o conhecimento racional que dela temos Dizem eles que embora a realidade externa exista em si e por si mesma só podemos conhecêla tal como nossas idéias a formulam e a organizam e não tal como ela seria em si mesma Não podemos saber nem dizer se a realidade exterior é racional em si pois só podemos saber e dizer que ela é racional para nós isto é por meio de nossas idéias Essa posição filosófica é conhecida com o nome de idealismo e afirma apenas a existência da razão subjetiva A razão subjetiva possui princípios e modalidades de conhecimento que são universais e necessários isto é válidos para todos os seres humanos em todos os tempos e lugares O que chamamos realidade portanto é apenas o que podemos conhecer por meio das idéias de nossa razão Marilena Chauí 85 Capítulo 3 A razão inata ou adquirida Inatismo ou empirismo De onde vieram os princípios racionais identidade nãocontradição terceiro excluído e razão suficiente De onde veio a capacidade para a intuição razão intuitiva e para o raciocínio razão discursiva Nascemos com eles Ou nos seriam dados pela educação e pelo costume Seriam algo próprio dos seres humanos constituindo a natureza deles ou seriam adquiridos através da experiência Durante séculos a Filosofia ofereceu duas respostas a essas perguntas A primeira ficou conhecida como inatismo e a segunda como empirismo O inatismo afirma que nascemos trazendo em nossa inteligência não só os princípios racionais mas também algumas idéias verdadeiras que por isso são idéias inatas O empirismo ao contrário afirma que a razão com seus princípios seus procedimentos e suas idéias é adquirida por nós através da experiência Em grego experiência se diz empeiria donde empirismo conhecimento empírico isto é conhecimento adquirido por meio da experiência O inatismo Vamos falar do inatismo tomando dois filósofos como exemplo o filósofo grego Platão século IV aC e o filósofo francês Descartes século XVII Inatismo platônico Platão defende a tese do inatismo da razão ou das idéias verdadeiras em várias de suas obras mas as passagens mais conhecidas se encontram nos diálogos Mênon e A República No Mênon Sócrates dialoga com um jovem escravo analfabeto Fazendolhe perguntas certas na hora certa o filósofo consegue que o jovem escravo demonstre sozinho um difícil teorema de geometria o teorema de Pitágoras As verdades matemáticas vão surgindo no espírito do escravo à medida que Sócrates vailhe fazendo perguntas e vai raciocinando com ele Como isso seria possível indaga Platão se o escravo não houvesse nascido com a razão e com os princípios da racionalidade Como dizer que conseguiu demonstrar o teorema por um aprendizado vindo da experiência se ele jamais ouvira falar de geometria Convite à Filosofia 86 Em A República Platão desenvolve uma teoria que já fora esboçada no Mênon a teoria da reminiscência Nascemos com a razão e as idéias verdadeiras e a Filosofia nada mais faz do que nos relembrar essas idéias Platão é um grande escritor e usa em seus escritos um procedimento literário que o auxilia a expor as teorias muito difíceis Assim para explicar a teoria da reminiscência narra o mito de Er O pastor Er da região da Panfília morreu e foi levado para o Reino dos Mortos Ali chegando encontra as almas dos heróis gregos de governantes de artistas de seus antepassados e amigos Ali as almas contemplam a verdade e possuem o conhecimento verdadeiro Er fica sabendo que todas as almas renascem em outras vidas para se purificarem de seus erros passados até que não precisem mais voltar à Terra permanecendo na eternidade Antes de voltar ao nosso mundo as almas podem escolher a nova vida que terão Algumas escolhem a vida de rei outras de guerreiro outras de comerciante rico outras de artista de sábio No caminho de retorno à Terra as almas atravessam uma grande planície por onde corre um rio o Lethé que em grego quer dizer esquecimento e bebem de suas águas As que bebem muito esquecem toda a verdade que contemplaram as bebem pouco quase não se esquecem do que conheceram As que escolheram vidas de rei de guerreiro ou de comerciante rico são as que mais bebem das águas do esquecimento as que escolheram a sabedoria são as que menos bebem Assim as primeiras dificilmente talvez nunca se lembrarão na nova vida da verdade que conheceram enquanto as outras serão capazes de lembrar e ter sabedoria usando a razão Conhecer diz Platão é recordar a verdade que já existe em nós é despertar a razão para que ela se exerça por si mesma Por isso Sócrates fazia perguntas pois através delas as pessoas poderiam lembrarse da verdade e do uso da razão Se não nascêssemos com a razão e com a verdade indaga Platão como saberíamos que temos uma idéia verdadeira ao encontrála Como poderíamos distinguir o verdadeiro do falso se não nascêssemos conhecendo essa diferença Inatismo cartesiano Descartes discute a teoria das idéias inatas em várias de suas obras mas as exposições mais conhecidas encontramse em duas delas no Discurso do método e nas Meditações metafísicas Nelas Descartes mostra que nosso espírito possui três tipos de idéias que se diferenciam segundo sua origem e qualidade 1 Idéias adventícias isto é vindas de fora são aquelas que se originam de nossas sensações percepções lembranças são as idéias que nos vêm por termos tido a experiência sensorial ou sensível das coisas a que se referem Por exemplo Marilena Chauí 87 a idéia de árvore de pássaro de instrumentos musicais etc São nossas idéias cotidianas e costumeiras geralmente enganosas ou falsas isto é não correspondem à realidade das próprias coisas Assim andando à noite por uma floresta vejo fantasmas Quando raia o dia descubro que eram galhos retorcidos de árvores que se mexiam sob o vento Olho para o céu e vejo pequeno o Sol Acredito então que é menor do que a Terra até que os astrônomos provem racionalmente que ele é muito maior do que ela 2 Idéias fictícias são aquelas que criamos em nossa fantasia e imaginação compondo seres inexistentes com pedaços ou partes de idéias adventícias que estão em nossa memória Por exemplo cavalo alado fadas elfos duendes dragões SuperHomem etc São as fabulações das artes da literatura dos contos infantis dos mitos das superstições Essas idéias nunca são verdadeiras pois não correspondem a nada que exista realmente e sabemos que foram inventadas por nós mesmo quando as recebemos já prontas de outros que as inventaram 3 Idéias inatas são aquelas que não poderiam vir de nossa experiência sensorial porque não há objetos sensoriais ou sensíveis para elas nem poderiam vir de nossa fantasia pois não tivemos experiência sensorial para compôlas a partir de nossa memória As idéias inatas são inteiramente racionais e só podem existir porque já nascemos com elas Por exemplo a idéia do infinito pois não temos qualquer experiência do infinito as idéias matemáticas a matemática pode trabalhar com a idéia de uma figura de mil lados o quiliógono e no entanto jamais tivemos e jamais teremos a percepção de uma figura de mil lados Essas idéias diz Descartes são a assinatura do Criador no espírito das criaturas racionais e a razão é a luz natural inata que nos permite conhecer a verdade Como as idéias inatas são colocadas em nosso espírito por Deus serão sempre verdadeiras isto é sempre corresponderão integralmente às coisas a que se referem e graças a elas podemos julgar quando uma idéia adventícia é verdadeira ou falsa e saber que as idéias fictícias são sempre falsas não correspondem a nada fora de nós Ainda segundo Descartes as idéias inatas são as mais simples que possuímos simples não quer dizer fáceis e sim nãocompostas de outras idéias A mais famosa das idéias inatas cartesianas é o Penso logo existo Por serem simples as idéias inatas são conhecidas por intuição e são elas o ponto de partida da dedução racional e da indução que conhecem as idéias complexas ou compostas A tese central dos inatistas é a seguinte se não possuirmos em nosso espírito a razão e a verdade nunca teremos como saber se um conhecimento é verdadeiro ou falso isto é nunca saberemos se uma idéia corresponde ou não à realidade a Convite à Filosofia 88 que ela se refere Não teremos um critério seguro para avaliar nossos conhecimentos O empirismo Contrariamente aos defensores do inatismo os defensores do empirismo afirmam que a razão a verdade e as idéias racionais são adquiridos por nós através da experiência Antes da experiência dizem eles nossa razão é como uma folha em branco onde nada foi escrito uma tábula rasa onde nada foi gravado Somos como uma cera sem forma e sem nada impresso nela até que a experiência venha escrever na folha gravar na tábula dar forma à cera Os empiristas ingleses No decorrer da história da Filosofia muitos filósofos defenderam a tese empirista mas os mais famosos e conhecidos são os filósofos ingleses dos séculos XVI ao XVIII chamados por isso de empiristas ingleses Francis Bacon John Locke George Berkeley e David Hume Na verdade o empirismo é uma característica muito marcante da filosofia inglesa Na Idade Média por exemplo filósofos importantes como Roger Bacon e Guilherme de Ockham eram empiristas em nossos dias Bertrand Russell foi um empirista Que dizem os empiristas Nossos conhecimentos começam com a experiência dos sentidos isto é com as sensações Os objetos exteriores excitam nossos órgãos dos sentidos e vemos cores sentimos sabores e odores ouvimos sons sentimos a diferença entre o áspero e o liso o quente e o frio etc As sensações se reúnem e formam uma percepção ou seja percebemos uma única coisa ou um único objeto que nos chegou por meio de várias e diferentes sensações Assim vejo uma cor vermelha e uma forma arredondada aspiro um perfume adocicado sinto a maciez e digo Percebo uma rosa A rosa é o resultado da reunião de várias sensações diferentes num único objeto de percepção As percepções por sua vez se combinam ou se associam A associação pode dar se por três motivos por semelhança por proximidade ou contigüidade espacial e por sucessão temporal A causa da associação das percepções é a repetição Ou seja de tanto algumas sensações se repetirem por semelhança ou de tanto se repetirem no mesmo espaço ou próximas umas das outras ou enfim de tanto se repetirem sucessivamente no tempo criamos o hábito de associálas Essas associações são as idéias As idéias trazidas pela experiência isto é pela sensação pela percepção e pelo hábito são levadas à memória e de lá a razão as apanha para formar os pensamentos Marilena Chauí 89 A experiência escreve e grava em nosso espírito as idéias e a razão irá associá las combinálas ou separálas formando todos os nossos pensamentos Por isso David Hume dirá que a razão é o hábito de associar idéias seja por semelhança seja por diferença O exemplo mais importante por causa das conseqüências futuras oferecido por Hume para mostrar como formamos hábitos racionais é o da origem do princípio da causalidade razão suficiente A experiência me mostra todos os dias que se eu puser um líquido num recipiente e levar ao fogo esse líquido ferverá saindo do recipiente sob a forma de vapor Se o recipiente estiver totalmente fechado e eu o destampar receberei um bafo de vapor como se o recipiente tivesse ficado pequeno para conter o líquido A experiência também me mostra todo o tempo que se eu puser um objeto sólido um pedaço de vela um pedaço de ferro no calor do fogo não só ele se derreterá mas também passará a ocupar um espaço muito maior no interior do recipiente A experiência também repete constantemente para mim a possibilidade que tenho de retirar um objeto preso dentro de um outro se eu aquecer este último pois aquecido ele solta o que estava preso no seu interior parecendo alargarse e aumentar de tamanho Experiências desse tipo à medida que vão se repetindo sempre da mesma maneira vão criando em mim o hábito de associar o calor com certos fatos Adquiro o hábito de perceber o calor e em seguida um fato igual ou semelhante a outros que já percebi inúmeras vezes E isso me leva a dizer O calor é a causa desses fatos Como os fatos são de aumento do volume ou da dimensão dos corpos submetidos ao calor acabo concluindo O calor é a causa da dilatação dos corpos e também A dilatação dos corpos é o efeito do calor É assim diz Hume que nascem as ciências São elas portanto hábito de associar idéias em conseqüência das repetições da experiência Ora ao mostrar como se forma o princípio da causalidade Hume não está dizendo apenas que as idéias da razão se originam da experiência mas está afirmando também que os próprios princípios da racionalidade são derivados da experiência Mais do que isso A razão pretende através de seus princípios seus procedimentos e suas idéias alcançar a realidade em seus aspectos universais e necessários Em outras palavras pretende conhecer a realidade tal como é em si mesma considerando que o que conhece vale como verdade para todos os tempos e lugares universalidade e indica como as coisas são e como não poderiam de modo algum ser de outra maneira necessidade Ora Hume torna impossível tanto a universalidade quanto a necessidade pretendidas pela razão O universal é apenas um nome ou uma palavra geral que Convite à Filosofia 90 usamos para nos referirmos à repetição de semelhanças percebidas e associadas O necessário é apenas o nome ou uma palavra geral que usamos para nos referirmos à repetição das percepções sucessivas no tempo O universal o necessário a causalidade são meros hábitos psíquicos Problemas do inatismo Se os princípios e as idéias da razão são inatos e por isso universais e necessários como explicar que possam mudar Por exemplo Platão afirmava que a idéia de justiça era inata vinha da contemplação intelectual do justo em si ou do conhecimento racional das coisas justas em si Sendo inata era universal e necessária Sem dúvida dizia o filósofo grego os seres humanos variam muito nas suas opiniões sobre o justo e a justiça pois essas opiniões se formam por experiência e esta varia de pessoa para pessoa de época para época de lugar para lugar Por isso mesmo são simples opiniões Uma idéia verdadeira ao contrário por ser verdadeira é inata universal e necessária não sofrendo as variações das opiniões que além de serem variáveis são no mais das vezes falsas pois nossa experiência tende a ser enganosa ou enganada Qual era a idéia platônica da justiça Era uma idéia moral ou uma idéia política Moralmente uma pessoa é justa pratica a idéia universal da justiça quando faz com que o intelecto ou a razão domine e controle inteira e completamente seus impulsos passionais seus sentimentos e suas emoções irracionais Por quê Porque o intelecto ou a razão é a parte melhor e superior de nossa alma ou espírito e deve dominar a parte inferior e pior ligada aos desejos irracionais do nosso corpo Politicamente uma sociedade é justa isto é pratica a idéia inata e universal de justiça quando nela as classes sociais se relacionam como na moral Em outras palavras quando as classes inferiores forem dominadas e controladas pelas classes superiores A sociedade justa cria uma hierarquia ou uma escala de classes sociais e de poderes onde a classe econômica mais inferior deve ser dominada e controlada pela classe militar para que as riquezas não provoquem desigualdades egoísmos guerras violências a classe militar por sua vez deve ser dominada e controlada pela classe política para impedir que os militares queiram usar a força e a violência contra a sociedade e fazer guerras absurdas Enfim a classe política deve ser dominada e controlada pelos sábios a razão que não deixarão que os políticos abusem do poder e prejudiquem toda a sociedade Justiça portanto é o domínio da inteligência sobre os instintos interesses e paixões tanto no indivíduo quanto na sociedade Marilena Chauí 91 Ora o que acontece com a justiça moral platônica isto é com a idéia de um poder total da razão sobre as paixões e os sentimentos os desejos e os impulsos com o surgimento da psicanálise Freud seu criador mostrou que não temos esse poder que nossa consciência nossa vontade e nossa razão podem menos que o nosso inconsciente isto é do que o desejo Como uma idéia inata afinal perdeu a verdade O que acontece com a justiça política platônica quando alguns filósofos que estudaram a formação das sociedades e da política mostraram a igualdade de todos os cidadãos e afirmaram que nenhuma classe tem o direito de dominar e controlar outras e que tal domínio e controle é exatamente a injustiça Como uma idéia inata afinal perdeu a verdade Tomemos agora um outro exemplo vindo da filosofia de Descartes Descartes considera que a realidade natural é regida por leis universais e necessárias do movimento isto é que a natureza é uma realidade mecânica Considera também que as leis mecânicas ou leis do movimento elaboradas por sua filosofia ou por sua física são idéias racionais deduzidas de idéias inatas simples e verdadeiras Ora quando comparamos a física de Descartes com a de Galileu elaborada na mesma época verificamos que a física galileana é oposta à cartesiana e é a que será provada e demonstrada verdadeira a de Descartes sendo falsa Como poderia isso acontecer se as idéias da física cartesiana eram idéias inatas Os exemplos que propusemos indicam onde estão os dois grandes problemas do inatismo 1 a própria razão pode mudar o conteúdo de idéias que eram consideradas universais e verdadeiras é o caso da idéia platônica de justiça 2 a própria razão pode provar que idéias racionais também podem ser falsas é o caso da física cartesiana Se as idéias são racionais e verdadeiras é porque correspondem à realidade Ora a realidade permanece a mesma e no entanto as idéias que a explicavam perderam a validade Ou seja o inatismo se depara com o problema da mudança das idéias feita pela própria razão e com o problema da falsidade das idéias demonstrada pela própria razão Problemas do empirismo O empirismo por sua vez se defronta com um problema insolúvel Se as ciências são apenas hábitos psicológicos de associar percepções e idéias por semelhança e diferença bem como por contigüidade espacial ou sucessão temporal então as ciências não possuem verdade alguma não explicam realidade alguma não alcançam os objetos e não possuem nenhuma objetividade Convite à Filosofia 92 Ora o ideal racional da objetividade afirma que uma verdade é uma verdade porque corresponde à realidade das coisas e portanto não depende de nossos gostos nossas opiniões nossas preferências nossos preconceitos nossas fantasias nossos costumes e hábitos Em outras palavras não é subjetiva não depende de nossa vida pessoal e psicológica Essa objetividade porém para o empirista a ciência não pode oferecer nem garantir A ciência mero hábito psicológico ou subjetivo tornase afinal uma ilusão e a realidade tal como é em si mesma isto é a realidade objetiva jamais poderá ser conhecida por nossa razão Basta por exemplo que um belo dia eu ponha um líquido no fogo e em lugar de vêlo ferver e aumentar de volume eu o veja gelar e diminuir de volume para que toda a ciência desapareça já que ela depende da repetição da freqüência do hábito de sempre percebermos uma certa sucessão de fatos à qual também por hábito demos o nome de princípio da causalidade Assim do lado do empirismo o problema colocado é o da impossibilidade do conhecimento objetivo da realidade RESUMINDO Do lado do inatismo o problema pode ser formulado da seguinte maneira como são inatos as idéias e os princípios da razão são verdades intemporais que nenhuma experiência nova poderá modificar Ora a História social política científica e filosófica mostra que idéias tidas como verdadeiras e universais não possuíam essa validade e foram substituídas por outras Mas por definição uma idéia inata é sempre verdadeira e não pode ser substituída por outra Se for substituída então não era uma idéia verdadeira e não sendo uma idéia verdadeira não era inata Do lado do empirismo o problema pode ser formulado da seguinte maneira a racionalidade ocidental só foi possível porque a Filosofia e as ciências demonstraram que a razão é capaz de alcançar a universalidade e a necessidade que governam a própria realidade isto é as leis racionais que governam a Natureza a sociedade a moral a política Ora a marca própria da experiência é a de ser sempre individual particular e subjetiva Se o conhecimento racional for apenas a generalização e a repetição para todos os seres humanos de seus estados psicológicos derivados de suas experiências então o que chamamos de Filosofia de ciência de ética etc são nomes gerais para hábitos psíquicos e não um conhecimento racional verdadeiro de toda a realidade tanto a realidade natural quanto a humana Problemas dessa natureza freqüentes na história da Filosofia suscitam periodicamente o aparecimento de uma corrente filosófica conhecida como ceticismo para o qual a razão humana é incapaz de conhecer a realidade e por isso deve renunciar à verdade O cético sempre manifesta explicitamente dúvidas toda vez que a razão tenha pretensão ao conhecimento verdadeiro do real Marilena Chauí 93 Capítulo 4 Os problemas do inatismo e do empirismo soluções filosóficas Inatismo e empirismo questões e respostas Vimos no capítulo anterior que a razão enfrenta problemas sérios quanto à sua intenção de ser conhecimento universal e necessário da realidade Vimos também que como conseqüência de conflitos e impasses entre o inatismo e o empirismo surgiu na Filosofia a tendência ao ceticismo isto é passouse a duvidar de que o conhecimento racional como conhecimento certo verdadeiro e inquestionável seria possível Neste capítulo vamos examinar algumas soluções propostas pela Filosofia para resolver essa questão Os problemas criados pela divergência entre inatistas e empiristas foram resolvidos em dois momentos o primeiro é anterior à filosofia de David Hume e encontrase na filosofia de Leibniz o segundo é posterior à filosofia de Hume e encontrase na filosofia de Kant A solução de Leibniz no século XVII Leibniz estabeleceu uma distinção entre verdades de razão e verdades de fato As verdades de razão enunciam que uma coisa é necessária e universalmente não podendo de modo algum ser diferente do que é e de como é O exemplo mais evidente das verdades de razão são as idéias matemáticas É impossível que o triângulo não tenha três lados e que a soma de seus ângulos não seja igual a soma de dois ângulos retos é impossível que um círculo não tenha todos os pontos eqüidistantes do centro e que não seja a figura formada pelo movimento de um semieixo ao redor de um centro fixo é impossível que 2 2 não seja igual a 4 é impossível que o todo não seja maior do que as partes As verdades de razão são inatas Isso não significa que uma criança por exemplo nasça conhecendo a matemática e sabendo realizar operações matemáticas demonstrar teoremas ou resolver problemas nessa área do conhecimento Significa que nascemos com a capacidade racional puramente intelectual para conhecer idéias que não dependem da experiência para serem formuladas e para serem verdadeiras As verdades de fato ao contrário são as que dependem da experiência pois enunciam idéias que são obtidas através da sensação da percepção e da memória Convite à Filosofia 94 As verdades de fato são empíricas e se referem a coisas que poderiam ser diferentes do que são mas que são como são porque há uma causa para que sejam assim Quando digo Esta rosa é vermelha nada impede que ela pudesse ser branca ou amarela mas se ela é vermelha é porque alguma causa a fez ser assim e uma outra causa poderia têla feito amarela Mas não é acidental ou contingente que ela tenha cor e é a cor que possui uma causa necessária As verdades de fato são verdades porque para elas funciona o princípio da razão suficiente segundo o qual tudo o que existe tudo o que percebemos e tudo aquilo de que temos experiência possui uma causa determinada e essa causa pode ser conhecida Pelo princípio da razão suficiente isto é pelo conhecimento das causas todas as verdades de fato podem tornarse verdades necessárias e serem consideradas verdades de razão ainda que para conhecêlas dependamos da experiência Observamos assim que para Leibniz o princípio da razão suficiente ou a idéia de causalidade universal e necessária permite manter as idéias inatas e as idéias empíricas É justamente o princípio da causalidade como vimos que será alvo das críticas dos empiristas na filosofia de David Hume Para esse filósofo o princípio da razão suficiente é apenas um hábito adquirido por experiência como resultado da repetição e da freqüência de nossas impressões sensoriais A crítica de Hume à causalidade e ao princípio da razão suficiente leva à resposta de Kant A solução kantiana A resposta aos problemas do inatismo e do empirismo oferecida pelo filósofo alemão do século XVIII Immanuel Kant é conhecida com o nome de revolução copernicana em Filosofia Por quê Qual a relação entre Kant e o que fizera Copérnico quase dois séculos antes do kantismo Vejamos muito brevemente o que foi a revolução copernicana em astronomia para depois vermos o que foi ela em Filosofia A tradição antiga e medieval considerava que o mundo possuía limites ou seja o mundo era finito sendo formado por um conjunto de sete esferas concêntricas em cujo centro estava a Terra imóvel À volta da Terra giravam as esferas nas quais estavam presos os planetas o Sol e a Lua eram considerados planetas Em grego Terra se diz Gaia ou Geia Como ela se encontrava no centro o sistema astronômico era chamado de geocêntrico e o mundo era explicado pelo geocentrismo A revolução copernicana demonstrou que o sistema geocêntrico era falso e que 1 o mundo não é finito mas é um Universo infinito 2 os astros não estão presos em esferas mas fazem um movimento como demonstrará Kepler depois de Copérnico cuja forma é a de uma elipse 3 o centro do Universo não é a Terra Marilena Chauí 95 4 o Sol como já fora demonstrado por outros astrônomos não é um planeta mas uma estrela e a Terra como os outros planetas gira ao redor dele 5 o próprio Sol também se move mas não em volta da Terra Em grego Sol se diz Hélios e por isso o sistema de Copérnico é chamado de heliocêntrico e sua explicação de heliocentrismo pois o Sol está no centro do nosso sistema planetário e tudo se move ao seu redor Voltemos agora a Kant e observemos o que ele diz Inatistas e empiristas isto é todos os filósofos parecem ser como astrônomos geocêntricos buscando um centro que não é verdadeiro Parecem diz Kant como alguém que querendo assar um frango fizesse o forno girar em torno dele e não o frango em torno do fogo Qual o engano dos filósofos Em lugar de primeiro e antes de tudo estudar o que é a própria razão e indagar o que ela pode e o que não pode conhecer o que é a experiência e o que ela pode ou não pode conhecer em vez enfim de procurar saber o que é a verdade os filósofos preferiram começar dizendo o que a realidade é afirmando que ela é racional e que por isso pode ser inteiramente conhecida pelas idéias da razão Colocaram a realidade exterior ou os objetos do conhecimento no centro e fizeram a razão ou o sujeito do conhecimento girar em torno deles Façamos pois uma revolução copernicana em Filosofia em vez de colocar no centro a realidade objetiva ou os objetos do conhecimento dizendo que são racionais e que podem ser conhecidos tais como são em si mesmos comecemos colocando no centro a própria razão Não é a razão a Luz Natural Não é ela o Sol que ilumina todas as coisas e em torno do qual tudo gira Comecemos portanto pela Luz Natural no centro do conhecimento e indaguemos O que é ela O que ela pode conhecer Quais são as condições para que haja conhecimento verdadeiro Quais são os limites que o conhecimento humano não pode transpor Como a razão e a experiência se relacionam Comecemos então pelo sujeito do conhecimento E comecemos mostrando que este sujeito é a razão universal e não uma subjetividade pessoal e psicológica que ele é o sujeito conhecedor e não Pedro Paulo Maria ou Isabel esta ou aquela pessoa este ou aquele indivíduo O que é a razão A razão é uma estrutura vazia uma forma pura sem conteúdos Essa estrutura e não os conteúdos é que é universal a mesma para todos os seres humanos em todos os tempos e lugares Essa estrutura é inata isto é não é adquirida através da experiência Por ser inata e não depender da experiência para existir a razão é do ponto de vista do conhecimento anterior à experiência Ou como escreve Convite à Filosofia 96 Kant a estrutura da razão é a priori vem antes da experiência e não depende dela Porém os conteúdos que a razão conhece e nos quais ela pensa esses sim dependem da experiência Sem ela a razão seria sempre vazia inoperante nada conhecendo Assim a experiência fornece a matéria os conteúdos do conhecimento para a razão e esta por sua vez fornece a forma universal e necessária do conhecimento A matéria do conhecimento por ser fornecida pela experiência vem depois desta e por isso é no dizer de Kant a posteriori Qual o engano dos inatistas Supor que os conteúdos ou a matéria do conhecimento são inatos Não existem idéias inatas Qual o engano dos empiristas Supor que a estrutura da razão é adquirida por experiência ou causada pela experiência Na verdade a experiência não é causa das idéias mas é a ocasião para que a razão recebendo a matéria ou o conteúdo formule as idéias Dessa maneira a estrutura da razão é inata e universal enquanto os conteúdos são empíricos e podem variar no tempo e no espaço podendo transformarse com novas experiências e mesmo revelaremse falsos graças a experiências novas O que é o conhecimento racional sem o qual não há Filosofia nem ciência É a síntese que a razão realiza entre uma forma universal inata e um conteúdo particular oferecido pela experiência Qual é a estrutura da razão A razão é constituída por três estruturas a priori 1 a estrutura ou forma da sensibilidade isto é a estrutura ou forma da percepção sensível ou sensorial 2 a estrutura ou forma do entendimento isto é do intelecto ou inteligência 3 a estrutura ou forma da razão propriamente dita quando esta não se relaciona nem com os conteúdos da sensibilidade nem com os conteúdos do entendimento mas apenas consigo mesma Como para Kant só há conhecimento quando a experiência oferece conteúdos à sensibilidade e ao entendimento a razão separada da sensibilidade e do entendimento não conhece coisa alguma e não é sua função conhecer Sua função é a de regular e controlar a sensibilidade e o entendimento Do ponto de vista do conhecimento portanto a razão é a função reguladora da atividade do sujeito do conhecimento A forma da sensibilidade é o que nos permite ter percepções isto é a forma é aquilo sem o que não pode haver percepção sem o que a percepção seria impossível Percebemos todas as coisas como dotadas de figura dimensões altura largura comprimento grandeza ou seja nós as percebemos como realidades espaciais Marilena Chauí 97 Não interessa se cada um de nós vê cores de uma certa maneira gosta mais de uma cor ou de outra ouve sons de uma certa maneira gosta mais de certos sons do que de outros etc O que importa é que nada pode ser percebido por nós se não possuir propriedades espaciais por isso o espaço não é algo percebido mas é o que permite haver percepção percebemos lugares posições situações mas não percebemos o próprio espaço Assim o espaço é a forma a priori da sensibilidade e existe em nossa razão antes e sem a experiência Também só podemos perceber as coisas como simultâneas ou sucessivas percebemos as coisas como se dando num só instante ou em instantes sucessivos Ou seja percebemos as coisas como realidades temporais Não percebemos o tempo temos a experiência do passado do presente e do futuro porém não temos percepção do próprio tempo mas ele é a condição de possibilidade da percepção das coisas e é a outra forma a priori da sensibilidade que existe em nossa razão antes da experiência e sem a experiência A percepção recebe conteúdos da experiência e a sensibilidade organiza racionalmente segundo a forma do espaço e do tempo Essa organização espaço temporal dos objetos do conhecimento é que é inata universal e necessária O entendimento por sua vez organiza os conteúdos que lhe são enviados pela sensibilidade isto é organiza as percepções Novamente o conteúdo é oferecido pela experiência sob a forma do espaço e do tempo e a razão através do entendimento organiza tais conteúdos empíricos Essa organização transforma as percepções em conhecimentos intelectuais ou em conceitos Para tanto o entendimento possui a priori isto é antes da experiência e independente dela um conjunto de elementos que organizam os conteúdos empíricos Esses elementos são chamados de categorias e sem elas não pode haver conhecimento intelectual pois são as condições para tal conhecimento Com as categorias a priori o sujeito do conhecimento formula os conceitos As categorias organizam os dados da experiência segundo a qualidade a quantidade a causalidade a finalidade a verdade a falsidade a universalidade a particularidade Assim longe de a causalidade a qualidade e a quantidade serem resultados de hábitos psicológicos associativos eles são os instrumentos racionais com os quais o sujeito do conhecimento organiza a realidade e a conhece As categorias estruturas vazias são as mesmas em toda época e em todo lugar para todos os seres racionais Graças à universalidade e à necessidade das categorias as ciências são possíveis e válidas o empirismo portanto está equivocado Em instante algum Kant admite que a realidade em si mesma é espacial temporal qualitativa quantitativa causal etc Isso seria regredir ao forno girando em torno do frango O que Kant afirma é que a razão e o sujeito do conhecimento possuem essas estruturas para poder conhecer e que por serem Convite à Filosofia 98 elas universais e necessárias o conhecimento é racional e verdadeiro para os seres humanos É isso que a razão pode O que ela não pode e nisso inatistas e empiristas se enganaram é supor que com suas estruturas passe a conhecer a realidade tal como esta é em si mesma A razão conhece os objetos do conhecimento O objeto do conhecimento é aquele conteúdo empírico que recebeu as formas e as categorias do sujeito do conhecimento A razão não está nas coisas mas em nós A razão é sempre razão subjetiva e não pode pretender conhecer a realidade tal como ela seria em si mesma nem pode pretender que exista uma razão objetiva governando as próprias coisas O erro dos inatistas e empiristas foi o de supor que nossa razão alcança a realidade em si Para um inatista como Descartes a realidade em si é espacial temporal qualitativa quantitativa causal Para um empirista como Hume a realidade em si pode ou não repetir fatos sucessivos no tempo pode ou não repetir fatos contíguos no espaço pode ou não repetir as mesmas seqüências de acontecimentos Para Kant jamais poderemos saber se a realidade em si é espacial temporal causal qualitativa quantitativa Mas sabemos que nossa razão possui uma estrutura universal necessária e a priori que organiza necessariamente a realidade em termos das formas da sensibilidade e dos conceitos e categorias do entendimento Como razão subjetiva nossa razão pode garantir a verdade da Filosofia e da ciência A resposta de Hegel Um filósofo alemão do século XIX Hegel ofereceu uma solução para o problema do inatismo e do empirismo posterior à de Kant Hegel criticou o inatismo o empirismo e o kantismo A todos endereçou a mesma crítica qual seja a de não haverem compreendido o que há de mais fundamental e de mais essencial à razão a razão é histórica De fato a Filosofia preocupada em garantir a diferença entre a mera opinião eu acho que eu gosto de eu não gosto de e a verdade eu penso que eu sei que isto é assim porque considerou que as idéias só seriam racionais e verdadeiras se fossem intemporais perenes eternas as mesmas em todo tempo e em todo lugar Uma verdade que mudasse com o tempo ou com os lugares seria mera opinião seria enganosa não seria verdade A razão sendo a fonte e a condição da verdade teria também que ser intemporal É essa intemporalidade atribuída à verdade e à razão que Hegel criticou em toda a Filosofia anterior Ao afirmar que a razão é histórica Hegel não está de modo algum dizendo que a razão é algo relativo que vale hoje e não vale amanhã que serve aqui e não serve ali que cada época não alcança verdades universais Não O que Hegel está Marilena Chauí 99 dizendo é que a mudança a transformação da razão e de seus conteúdos é obra racional da própria razão A razão não é uma vítima do tempo que lhe roubaria a verdade a universalidade a necessidade A razão não está na História ela é a História A razão não está no tempo ela é o tempo Ela dá sentido ao tempo Hegel também fez uma crítica aos inatistas e aos empiristas muito semelhante à que Kant fizera Ou seja inatistas e empiristas acreditam que o conhecimento racional vem das próprias coisas para nós que o conhecimento depende exclusivamente da ação das coisas sobre nós e que a verdade é a correspondência entre a coisa e a idéia da coisa Para o empirista a realidade entra em nós pela experiência Para o inatista a verdade entra em nós pelo poder de uma força espiritual que a coloca em nossa alma de modo que as idéias inatas não são produzidas pelo próprio sujeito do conhecimento ou pela própria razão mas são colocadas em nós por uma força sábia e superior a nós como Deus por exemplo Assim o conhecimento parece depender inteiramente de algo que vem de fora para dentro de nós No caso dos inatistas depende da divindade no caso dos empiristas depende da experiência sensível Inatistas e empiristas se enganaram por excesso de objetivismo isto é por julgarem que o conhecimento racional dependeria inteiramente dos objetos do conhecimento Mas Kant também se enganou e pelo motivo oposto isto é por excesso de subjetivismo por acreditar que o conhecimento racional dependeria exclusivamente do sujeito do conhecimento das estruturas da sensibilidade e do entendimento A razão diz Hegel não é nem exclusivamente razão objetiva a verdade está nos objetos nem exclusivamente subjetiva a verdade está no sujeito mas ela é a unidade necessária do objetivo e do subjetivo Ela é o conhecimento da harmonia entre as coisas e as idéias entre o mundo exterior e a consciência entre o objeto e o sujeito entre a verdade objetiva e a verdade subjetiva O que é afinal a razão para Hegel A razão é 1 o conjunto das leis do pensamento isto é os princípios os procedimentos do raciocínio as formas e as estruturas necessárias para pensar as categorias as idéias é razão subjetiva 2 a ordem a organização o encadeamento e as relações das próprias coisas isto é a realidade objetiva e racional é razão objetiva 3 a relação interna e necessária entre as leis do pensamento e as leis do real Ela é a unidade da razão subjetiva e da razão objetiva Por que a razão é histórica Convite à Filosofia 100 A unidade ou harmonia entre o objetivo e o subjetivo entre a realidade das coisas e o sujeito do conhecimento não é um dado eterno algo que existiu desde todo o sempre mas é uma conquista da razão e essa conquista a razão realiza no tempo A razão não tem como ponto de partida essa unidade mas a tem como ponto de chegada como resultado do percurso histórico ou temporal que ela própria realiza Qual o melhor exemplo para compreender o que Hegel quer dizer O melhor exemplo é o que acabamos de ver nos capítulos 2 e 3 desta unidade Vimos que os inatistas começaram combatendo a suposição de que opinião e verdade são a mesma coisa Para livraremse dessa suposição o que fizeram eles Disseram que a opinião pertence ao campo da experiência sensorial pessoal psicológica instável e que as idéias da razão são inatas universais necessárias imutáveis Os empiristas no entanto negaram que os inatistas tivessem acertado negaram que as idéias pudessem ser inatas e fizeram a razão depender da experiência psicológica ou da percepção Ao fazêlo revelaram os pontos fracos dos inatistas mas abriram o flanco para um problema que não podiam resolver isto é a validade das ciências A filosofia kantiana negou então que inatistas e empiristas estivessem certos Negou que pudéssemos conhecer a realidade em si das coisas negou que a razão possuísse conteúdos inatos mostrando que os conteúdos dependem da experiência mas negou também que a experiência fosse a causa da razão ou que esta fosse adquirida pois possui formas e estruturas inatas Kant deu prioridade ao sujeito do conhecimento enquanto empiristas e inatistas davam prioridade ao objeto do conhecimento Que diz Hegel Que esses conflitos filosóficos são a história da razão buscando conhecerse a si mesma e que graças a tais conflitos graças às contradições entre as filosofias a Filosofia pode chegar à descoberta da razão como síntese unidade ou harmonia das teses opostas ou contraditórias Em cada momento de sua história a razão produziu uma tese a respeito de si mesma e logo a seguir uma tese contrária à primeira ou uma antítese Cada tese e cada antítese foram momentos necessários para a razão conhecerse cada vez mais Cada tese e cada antítese foram verdadeiras mas parciais Sem elas a razão nunca teria chegado a conhecerse a si mesma Mas a razão não pode ficar estacionada nessas contradições que ela própria criou por uma necessidade dela mesma precisa ultrapassálas numa síntese que una as teses contrárias mostrando onde está a verdade de cada uma delas e conservando essa verdade Essa é a razão histórica Marilena Chauí 101 Empiristas kantianos e hegelianos Embora Hegel tenha proposto sintetizar a história da razão considerando portanto que inatistas empiristas e kantianos eram parte do passado dessa história isso não significa que todos os filósofos tenham aceitado a solução hegeliana como resposta final Assim os empiristas não desapareceram Reformularam muitas de suas teses e posições mas permaneceram empiristas Em outras palavras persiste na Filosofia uma corrente empirista Foi também o que aconteceu com os filósofos inatistas o mesmo pode ser dito com relação aos que adotaram a filosofia kantiana Reformularam teses acrescentaram novas idéias e perspectivas mas se mantiveram kantianos Há os que aceitaram a solução hegeliana assim como há os que a recusaram e dos quais falaremos no próximo capítulo Convite à Filosofia 102 Capítulo 5 A razão na Filosofia contemporânea A razão histórica Conforme vimos no capítulo anterior nem todos os filósofos aceitaram a solução hegeliana para as dificuldades criadas para a razão com o conflito entre inatismo e empirismo É o caso do filósofo alemão Edmund Husserl criador da fenomenologia que descreve as estruturas da consciência que manteve o inatismo mas com as contribuições trazidas pelo kantismo Em outras palavras a fenomenologia considera a razão uma estrutura da consciência como Kant mas cujos conteúdos são produzidos por ela mesma independentemente da experiência diferentemente do que dissera Kant O que chamamos de mundo ou realidade diz Husserl não é um conjunto ou um sistema de coisas e pessoas animais e vegetais O mundo ou a realidade é um conjunto de significações ou de sentidos que são produzidos pela consciência ou pela razão A razão é doadora do sentido e ela constitui a realidade enquanto sistemas de significações que dependem da estrutura da própria consciência As significações não são pessoais psicológicas sociais mas universais e necessárias Elas são as essências isto é o sentido impessoal intemporal universal e necessário de toda a realidade que só existe para a consciência e pela consciência A razão é razão subjetiva que cria o mundo como racionalidade objetiva Isto é o mundo tem sentido objetivo porque a razão lhe dá sentido Assim por exemplo a razão não estuda os conteúdos psicológicos de minha vida pessoal mas pergunta O que é a vida psíquica O que são e como são a memória a imaginação a sensação a percepção A pergunta O que é não se refere a uma descrição dos processos mentais e físicos que nos fazem lembrar imaginar sentir ou perceber Essa pergunta se refere à descrição do sentido da memória da imaginação da sensação da percepção isto é se refere à essência delas independentemente de nossas experiências psicológicas pessoais A fenomenologia não indaga por exemplo se uma certa idéia ou uma certa opinião são causadas pela vida em sociedade mas pergunta O que é o social O que é a sociedade As respostas a essas perguntas formam as significações ou essências e são elas o conteúdo que a própria razão oferece a si mesma para dar sentido à realidade Marilena Chauí 103 A fenomenologia afastase portanto da solução hegeliana pois não admite que as formas e os conteúdos da razão mudem no tempo e com o tempo Elas se enriquecem e se ampliam no tempo mas não se transformam por causa do tempo Razão e sociedade Diferentemente da fenomenologia outros filósofos como os que criaram a chamada Escola de Frankfurt ou Teoria Crítica adotam a solução hegeliana mas com uma modificação fundamental Os filósofos dessa Escola como Theodor Adorno Herbert Marcuse e Max Horkheimer têm uma formação marxista e por isso recusam a idéia hegeliana de que a História é obra da própria razão ou que as transformações históricas da razão são realizadas pela própria razão sem que esta seja condicionada ou determinada pelas condições sociais econômicas e políticas Para esses filósofos o engano de Hegel está em primeiro lugar na suposição de que a razão seja uma força histórica autônoma isto é não condicionada pela situação material ou econômica social e política de uma época e em segundo lugar na suposição de que a razão é a força histórica que cria a própria sociedade a política a cultura Para esses filósofos Hegel está correto quando afirma que as mudanças históricas ocorrem pelos conflitos e contradições mas está enganado ao supor que tais conflitos se dão entre diferentes formas da razão pois eles se dão como conflitos e contradições sociais e políticas modificando a própria razão Os filósofos da Teoria Crítica consideram que existem na verdade duas modalidades da razão a razão instrumental ou razão técnicocientífica que está a serviço da exploração e da dominação da opressão e da violência e a razão crítica ou filosófica que reflete sobre as contradições e os conflitos sociais e políticos e se apresenta como uma força liberadora A Escola de Frankfurt mantém a idéia hegeliana de que há uma continuidade temporal ou histórica entre a forma anterior da racionalidade e a forma seguinte a razão moderna por exemplo não surge de repente e do nada mas resulta de contradições e conflitos sóciopolíticos do final da Idade Média e da Renascença de modo que ao superar a racionalidade medieval e renascentista nasce como racionalidade moderna Cada nova forma da racionalidade é a vitória sobre os conflitos das formas anteriores sem que haja ruptura histórica entre elas Mudanças sociais políticas e culturais determinam mudanças no pensamento e tais mudanças são a solução realizada pelo tempo presente para os conflitos e as contradições do passado A razão não determina nem condiciona a sociedade como julgara Hegel mas é determinada e condicionada pela sociedade e suas mudanças Assim os inatistas se enganam ao supor a imutabilidade dos conteúdos da razão e os empiristas se Convite à Filosofia 104 enganam ao supor que as mudanças são acarretadas por nossas experiências quando na verdade são produzidas por transformações globais de uma sociedade Razão e descontinuidade temporal Nos anos 60 desenvolveuse sobretudo na França uma corrente científica iniciado na lingüística e na antropologia social chamada estruturalismo Para os estruturalistas o mais importante não é a mudança ou a transformação de uma realidade de uma língua de uma sociedade indígena de uma teoria científica mas a estrutura ou a forma que ela tem no presente A estrutura passada e a estrutura futura são consideradas estruturas diferentes entre si e diferentes da estrutura presente sem que haja interesse em acompanhar temporalmente a passagem de uma estrutura para outra Assim o estruturalismo científico desconsidera a posição filosófica de tipo hegeliano tendo maior afinidade com a kantiana O estruturalismo teve uma grande influência sobre o pensamento filosófico e isso se refletiu na discussão sobre a razão Se observarmos bem notaremos que a solução hegeliana revela uma concepção cumulativa e otimista da razão Cumulativa Hegel considera que a razão na batalha interna entre teses e antíteses vai sendo enriquecida vai acumulando conhecimentos cada vez maiores sobre si mesma tanto como conhecimento da racionalidade do real razão objetiva quanto como conhecimento da capacidade racional para o conhecimento razão subjetiva Otimista para Hegel a razão possui força para não se destruir a si mesma em suas contradições internas ao contrário supera cada uma delas e chega a uma síntese harmoniosa de todos os momentos que constituíram a sua história Influenciados pelo estruturalismo vários filósofos franceses como Michel Foucault Jacques Derrida e Giles Delleuze estudando a história da Filosofia das ciências da sociedade das artes e das técnicas disseram que sem dúvida a razão é histórica isto é muda temporalmente mas essa história não é cumulativa evolutiva progressiva e contínua Pelo contrário é descontínua se realiza por saltos e cada estrutura nova da razão possui um sentido próprio válido apenas para ela Dizem eles que uma teoria filosófica ou científica ou uma prática ética política artística são novas justamente quando rompem as concepções anteriores e as substituem por outras completamente diferentes não sendo possível falar numa continuidade progressiva entre elas pois são tão diferentes que não há como nem por que comparálas e julgar uma delas mais atrasada e a outra mais adiantada Assim por exemplo a teoria da relatividade elaborada por Einstein não é continuação evoluída e melhorada da física clássica formulada por Galileu e Marilena Chauí 105 Newton mas é uma outra física com conceitos princípios e procedimentos completamente novos e diferentes Temos duas físicas diferentes cada qual com seu sentido e valor próprio Não se pode falar num processo numa evolução ou num avanço da razão a cada nova teoria pois a novidade significa justamente que se trata de algo tão novo tão diferente e tão outro que será absurdo falar em continuidade e avanço Não há como dizer que as idéias e as teorias passadas são falsas erradas ou atrasadas elas simplesmente são diferentes das outras porque se baseiam em princípios interpretações e conceitos novos Em cada época de sua história a razão cria modelos ou paradigmas explicativos para os fenômenos ou para os objetos do conhecimento não havendo continuidade nem pontos comuns entre eles que permitam comparálos Agora em lugar de um processo linear e contínuo da razão falase na invenção de formas diferentes de racionalidade de acordo com critérios que a própria razão cria para si mesma A razão grega é diferente da medieval que por sua vez é diferente da renascentista e da moderna A razão moderna e a iluminista também são diferentes assim como a razão hegeliana é diferente da contemporânea Por que ainda falamos em razão Diante das concepções descontinuístas da razão podemos fazer duas perguntas 1ª Se em cada época por motivos históricos e teóricos determinados a razão muda inteiramente o que queremos dizer quando continuamos empregando a palavra razão 2ª Se em cada ciência cada filosofia cada teoria cada expressão do pensamento nada há em comum com as anteriores e as posteriores por que dizemos que algumas são racionais e outras não o são A razão não seria afinal um mito que nossa cultura inventou para si mesma Podemos responder à primeira pergunta dizendo que continuamos a falar em razão apesar de haver muitas e diferentes razões porque mantemos uma idéia que é essencial à noção ocidental de razão Que idéia é essa A de que a realidade o mundo natural e cultural os seres humanos sua ações e obras têm sentido e que esse sentido pode ser conhecido É o ideal do conhecimento objetivo que é conservado quando continuamos a falar em razão Com relação à segunda pergunta podemos dizer que em cada época os membros da sociedade e da cultura ocidentais julgam a validade da própria razão como capaz ou incapaz de realizar o ideal do conhecimento Esse julgamento pode ser realizado de duas maneiras A primeira maneira ou o primeiro critério de avaliação da capacidade racional é o da coerência interna de um pensamento ou de uma teoria Ou seja quando um pensamento ou uma teoria se propõem a oferecer um conhecimento simultaneamente também oferecem os princípios os conceitos e os Convite à Filosofia 106 procedimentos que sustentam a explicação apresentada Quando não há compatibilidade entre a explicação e os princípios os conceitos e os procedimentos oferecidos dizemos que não há coerência e que o pensamento ou a teoria não são racionais A razão é assim o critério de que dispomos para a avaliação o instrumento para julgar a validade de um pensamento ou de uma teoria julgando sua coerência ou incoerência consigo mesmos A segunda maneira é diferente da anterior Agora perguntase se um pensamento ou uma teoria contribuem ou não para que os seres humanos conheçam e compreendam as circunstâncias em que vivem contribuem ou não para alterar situações que os seres humanos julgam inaceitáveis ou intoleráveis contribuem ou não para melhorar as condições em que os seres humanos vivem Assim a razão além de ser o critério para avaliar os conhecimentos é também um instrumento crítico para compreendermos as circunstâncias em que vivemos para mudálas ou melhorálas A razão tem um potencial ativo ou transformador e por isso continuamos a falar nela e a desejála Razão e realidade Os dois critérios vistos acima a coerência interna de um pensamento ou de uma teoria e o potencial críticotransformador dos conhecimentos também nos ajudam a perceber quando a razão vira mito e deixa de ser razão Analisemos como exemplo as teorias que defendem o racismo e que são tidas como científicas ou racionais As teorias racistas se apresentam usando princípios conceitos e procedimentos ou métodos racionais científicos Fazem pesquisas biológicas genéticas químicas sociológicas usam a indução e a dedução definem conceitos inferem conclusões dos dados obtidos por experiência e por cálculos estatísticos Usando tais procedimentos fazem demonstrações e por meio delas pretendem provar 1 que existem raças 2 que as raças são biológica e geneticamente diferentes 3 que há raças atrasadas e adiantadas inferiores e superiores 4 que as raças atrasadas e inferiores não são capazes por exemplo de desenvolvimento intelectual e estão naturalmente destinadas ao trabalho manual pois sua razão é muito pequena e não conseguem compreender as idéias mais complexas e avançadas 5 que as raças adiantadas e superiores estão naturalmente destinadas a dominar o planeta e que se isso for necessário para seu bem têm o direito de exterminar as raças atrasadas e inferiores 6 que para o bem das raças inferiores e das superiores deve haver segregação racial separação dos locais de moradia de trabalho de educação de lazer etc pois a nãosegregação pode fazer as inferiores arrastarem as superiores para seu Marilena Chauí 107 baixo nível assim como pode fazer as superiores tentarem inutilmente melhorar o nível das inferiores Ora a razão pode demonstrar que a racionalidade racista é irracional e que está a serviço da violência da ignorância e da destruição Assim a biologia e a genética demonstram que há diferenças na formação anatômicofisiológica dos seres humanos em decorrência de diferenças internas do organismo e de diferenças ecológicas isto é do meio ambiente e que tais diferenças não produzem raças Raça portanto é uma palavra inventada para avaliar julgar e manipular as diferenças biológicas e genéticas A sociologia a antropologia e a história demonstram que as diferenças que a biologia e a genética apresentam não decorrem somente das diferenças nas condições ambientais mas também são produzidas pelas diferentes maneiras pelas quais os grupos sociais definem as relações de trabalho de parentesco as formas de avaliação de vestuário de habitação etc Essas diferenças não formam raças e portanto raça é uma palavra inventada para avaliar julgar e manipular tais diferenças A ciência política e econômica demonstra que no interior de uma mesma sociedade formamse grupos e classes sociais que se apropriam das riquezas e do poder colocam pela força pelo medo pela superstição pela mentira pela ilusão outros grupos e classes sociais sob sua dominação e justificam tal fato afirmando que tais grupos ou classes são inferiores e que possuem características físicas e mentais que os fazem ser uma raça inferior Raça portanto não existe É uma palavra inventada para legitimar a exploração e a dominação que um grupo social e político exerce sobre os outros grupos A psicologia demonstra que as capacidades mentais de todos os grupos e classes sociais de uma cultura são iguais mas que se manifestam de modos diferenciados dependendo dos modos de vida de trabalho de acesso à escola e à educação formal das crenças religiosas de valores morais e artísticos diferentes etc Essas diferenças não formam raças e portanto raça é uma palavra inventada para transformar as diferenças em justificativas para discriminações e exclusões A Filosofia recolhendo fatos dados resultados e demonstrações feitos pelas várias ciências pode então concluir dizendo que 1 a teoria do racismo é falsa não é científica e é irracional 2 a teoria científica do racismo é na verdade uma prática e não uma teoria econômica social política e cultural para justificar a violência contra seres humanos e portanto é inaceitável para as ciências para a Filosofia e para a razão Uma razão racista não é razão mas ignorância preconceito violência e irrazão Convite à Filosofia 108 RECAPITULANDO No caminho que fizemos até aqui sobretudo no capítulo 4 da unidade 1 e nos capítulos 2 e 3 da unidade 2 notamos que a Filosofia e a razão estão na História e possuem uma história Notamos também que as respostas filosóficas aos dilemas criados pelo inatismo e pelo empirismo se transformaram em novas dificuldades e novos problemas Vimos finalmente que as concepções contemporâneas da razão são tão radicais que chegamos a indagar se ainda poderíamos continuar falando em razão A essa indagação procuramos responder mostrando que a permanência da razão se deve ao fato de considerarmos que a realidade natural social cultural histórica tem sentido e que este pode ser conhecido mesmo quando isso implique modificar a noção de razão e alargála Dissemos também que a razão permanece porque a própria razão exige que seu trabalho de conhecimento seja julgado por ela mesma e que para esse julgamento da racionalidade dos conhecimentos e das ações a razão oferece dois critérios principais 1 o critério lógico da coerência interna de um pensamento ou de uma teoria isto é a avaliação da compatibilidade e da incompatibilidade entre os princípios conceitos definições e procedimentos empregados e as conclusões ou resultados obtidos 2 o critério éticopolítico do papel da razão e do conhecimento para a compreensão das condições em que vivem os seres humanos e para sua manutenção melhoria ou transformação Aprendendo com as dificuldades da razão Vimos também que 1 mesmo quando os filósofos para resolver os impasses do inatismo do empirismo e do kantismo afirmam que a razão é histórica nem por isso entendem a mesma coisa 2 dizer que a razão é histórica pode significar a razão evolui progride continuamente no tempo avança e se torna cada vez melhor mas também pode significar a razão muda radicalmente em cada época sua história é feita de rupturas e descontinuidades e não há como nem por que comparar as diferentes formas da racionalidade cada qual tendo sua necessidade própria e seu valor próprio para o momento em que foi proposta 3 dizer que a história da razão é descontínua poderia levar a pensar que afinal a palavra razão não indica nada de muito preciso nada de muito claro e rigoroso e que talvez seja um mito que a cultura ocidental inventou para si mesma Mas pode também significar uma outra coisa muito mais importante que a razão não é a estrutura universal do espírito humano e sim um meio precioso de que Marilena Chauí 109 dispomos para criar julgar e avaliar conhecimentos para dar sentido às coisas às situações e aos acontecimentos e para transformar nossa existência individual e coletiva Ora o que fizemos até aqui foi um percurso no qual a razão não cessa de indagar a si mesma o que ela é o que ela pode e vale por que ela existe As crises da razão são enfrentadas por ela na medida em que são criadas por ela mesma em sua relação com a produção dos conhecimentos e com as condições históricas nas quais ela se realiza É verdade que tomar a razão pelo prisma de suas dificuldades e de seus impasses pode levar ao risco de cairmos na atitude cética isto é na posição dos que não acreditam que a razão seja capaz de conhecimentos verdadeiros Isso no entanto só aconteceria se imaginássemos que a razão deveria ser imutável intemporal e ahistórica e portanto algo que estaria em nós mas que seria completamente diferente de nós já que somos mutáveis temporais e históricos O cético é afinal aquele que no fundo deseja uma razão absoluta impossível e por isso despreza a razão humana tal como ela existe pois da forma como ela existe ele o cético não pode conhecêla Podemos dizer ainda que tomar a razão pelo prisma de suas dificuldades e de seus impasses de suas conquistas e perdas é a melhor vacina que a Filosofia possui contra uma doença intelectual muito perigosa chamada dogmatismo Dogmatismo vem da palavra grega dogma que significa uma opinião estabelecida por decreto e ensinada como uma doutrina sem contestação Por ser uma opinião decretada ou uma doutrina inquestionada um dogma é tomado como uma verdade que não pode ser contestada nem criticada como acontece por exemplo na nossa vida cotidiana quando diante de uma pergunta ou de uma dúvida que apresentamos nos respondem É assim porque é assim e porque tem que ser assim O dogmatismo é uma atitude autoritária e submissa Autoritária porque não admite dúvida contestação e crítica Submissa porque se curva às opiniões estabelecidas As crises as dificuldades e os impasses da razão mostram assim o oposto do dogmatismo Indicam atitude reflexiva e crítica própria da racionalidade destacando a importância fundamental da liberdade de pensamento para a própria razão e para a Filosofia Convite à Filosofia 110 Unidade 3 A verdade Marilena Chauí 111 Capítulo 1 Ignorância e verdade A verdade como um valor Não se aprende Filosofia mas a filosofar já disse Kant A Filosofia não é um conjunto de idéias e de sistemas que possamos apreender automaticamente não é um passeio turístico pelas paisagens intelectuais mas uma decisão ou deliberação orientada por um valor a verdade É o desejo do verdadeiro que move a Filosofia e suscita filosofias Afirmar que a verdade é um valor significa o verdadeiro confere às coisas aos seres humanos ao mundo um sentido que não teriam se fossem considerados indiferentes à verdade e à falsidade Ignorância incerteza e insegurança Ignorar é não saber alguma coisa A ignorância pode ser tão profunda que sequer a percebemos ou a sentimos isto é não sabemos que não sabemos não sabemos que ignoramos Em geral o estado de ignorância se mantém em nós enquanto as crenças e opiniões que possuímos para viver e agir no mundo se conservam como eficazes e úteis de modo que não temos nenhum motivo para duvidar delas nenhum motivo para desconfiar delas e conseqüentemente achamos que sabemos tudo o que há para saber A incerteza é diferente da ignorância porque na incerteza descobrimos que somos ignorantes que nossas crenças e opiniões parecem não dar conta da realidade que há falhas naquilo em que acreditamos e que durante muito tempo nos serviu como referência para pensar e agir Na incerteza não sabemos o que pensar o que dizer ou o que fazer em certas situações ou diante de certas coisas pessoas fatos etc Temos dúvidas ficamos cheios de perplexidade e somos tomados pela insegurança Outras vezes estamos confiantes e seguros e de repente vemos ou ouvimos alguma coisa que nos enche de espanto e de admiração não sabemos o que pensar ou o que fazer com a novidade do que vimos ou ouvimos porque as crenças opiniões e idéias que possuímos não dão conta do novo O espanto e a admiração assim como antes a dúvida e a perplexidade nos fazem querer saber o que não sabemos nos fazem querer sair do estado de insegurança ou de encantamento nos fazem perceber nossa ignorância e criam o desejo de superar a incerteza Convite à Filosofia 112 Quando isso acontece estamos na disposição de espírito chamada busca da verdade O desejo da verdade aparece muito cedo nos seres humanos como desejo de confiar nas coisas e nas pessoas isto é de acreditar que as coisas são exatamente tais como as percebemos e o que as pessoas nos dizem é digno de confiança e crédito Ao mesmo tempo nossa vida cotidiana é feita de pequenas e grandes decepções e por isso desde cedo vemos as crianças perguntarem aos adultos se tal ou qual coisa é de verdade ou é de mentira Quando uma criança ouve uma história inventa uma brincadeira ou um brinquedo quando joga vê um filme ou uma peça teatral está sempre atenta para saber se é de verdade ou de mentira está sempre atenta para a diferença entre o de mentira e a mentira propriamente dita isto é para a diferença entre brincar jogar fingir e faltar à confiança Quando uma criança brinca joga e finge está criando um outro mundo mais rico e mais belo mais cheio de possibilidades e invenções do que o mundo onde de fato vive Mas sabe mesmo que não formule explicitamente tal saber que há uma diferença entre imaginação e percepção ainda que no caso infantil essa diferença seja muito tênue muito leve quase imperceptível tanto assim que a criança acredita em mundos e seres maravilhosos como parte do mundo real de sua vida Por isso mesmo a criança é muito sensível à mentira dos adultos pois a mentira é diferente do de mentira isto é a mentira é diferente da imaginação e a criança se sente ferida magoada angustiada quando o adulto lhe diz uma mentira porque ao fazêlo quebra a relação de confiança e a segurança infantis Quando crianças estamos sujeitos a duas decepções a de que os seres as coisas os mundos maravilhosos não existem de verdade e a de que os adultos podem dizernos falsidades e nos enganar Essa dupla decepção pode acarretar dois resultados opostos ou a criança se recusa a sair do mundo imaginário e sofre com a realidade como alguma coisa ruim e hostil a ela ou dolorosamente aceita a distinção mas também se torna muito atenta e desconfiada diante da palavra dos adultos Nesse segundo caso a criança também se coloca na disposição da busca da verdade Nessa busca a criança pode desejar um mundo melhor e mais belo que aquele em que vive e encontrar a verdade nas obras de arte desejando ser artista também Ou pode desejar saber como e por que o mundo em que vive é tal como é e se ele poderia ser diferente ou melhor do que é Nesse caso é despertado nela o desejo de conhecimento intelectual e o da ação transformadora A criança não se decepciona nem se desilude com o fazdeconta porque sabe que é um fazdeconta Ela se decepciona ou se desilude quando descobre que querem que acredite como sendo de verdade alguma coisa que ela sabe ou que Marilena Chauí 113 ela supunha que fosse de fazdeconta isto é decepcionase e desiludese quando descobre a mentira Os jovens se decepcionam e se desiludem quando descobrem que o que lhes foi ensinado e lhes foi exigido oculta a realidade reprime sua liberdade diminui sua capacidade de compreensão e de ação Os adultos se desiludem ou se decepcionam quando enfrentam situações para as quais o saber adquirido as opiniões estabelecidas e as crenças enraizadas em suas consciências não são suficientes para que compreendam o que se passa nem para que possam agir ou fazer alguma coisa Assim seja na criança seja nos jovens ou nos adultos a busca da verdade está sempre ligada a uma decepção a uma desilusão a uma dúvida a uma perplexidade a uma insegurança ou então a um espanto e uma admiração diante de algo novo e insólito Dificuldades para a busca da verdade Em nossa sociedade é muito difícil despertar nas pessoas o desejo de buscar a verdade Pode parecer paradoxal que assim seja pois parecemos viver numa sociedade que acredita nas ciências que luta por escolas que recebe durante 24 horas diárias informações vindas de jornais rádios e televisões que possui editoras livrarias bibliotecas museus salas de cinema e de teatro vídeos fotografias e computadores Ora é justamente essa enorme quantidade de veículos e formas de informação que acaba tornando tão difícil a busca da verdade pois todo mundo acredita que está recebendo de modos variados e diferentes informações científicas filosóficas políticas artísticas e que tais informações são verdadeiras sobretudo porque tal quantidade informativa ultrapassa a experiência vivida pelas pessoas que por isso não têm meios para avaliar o que recebem Bastaria no entanto que uma mesma pessoa durante uma semana lesse de manhã quatro jornais diferentes e ouvisse três noticiários de rádio diferentes à tarde freqüentasse duas escolas diferentes onde os mesmos cursos estariam sendo ministrados e à noite visse os noticiários de quatro canais diferentes de televisão para que comparando todas as informações recebidas descobrisse que elas não batem umas com as outras que há vários mundos e várias sociedades diferentes dependendo da fonte de informação Uma experiência como essa criaria perplexidade dúvida e incerteza Mas as pessoas não fazem ou não podem fazer tal experiência e por isso não percebem que em lugar de receber informações estão sendo desinformadas E sobretudo como há outras pessoas o jornalista o radialista o professor o médico o policial o repórter dizendo a elas o que devem saber o que podem saber o que podem e devem fazer ou sentir confiando na palavra desses emissores de mensagens as pessoas se sentem seguras e confiantes e não há incerteza porque há ignorância Convite à Filosofia 114 Uma outra dificuldade para fazer surgir o desejo da busca da verdade em nossa sociedade vem da propaganda A propaganda trata todas as pessoas crianças jovens adultos idosos como crianças extremamente ingênuas e crédulas O mundo é sempre um mundo de fazdeconta nele a margarina fresca faz a família bonita alegre unida e feliz o automóvel faz o homem confiante inteligente belo sedutor bemsucedido nos negócios cheio de namoradas lindas o desodorante faz a moça bonita atraente bem empregada bem vestida com um belo apartamento e lindos namorados o cigarro leva as pessoas para belíssimas paisagens exóticas cheias de aventura e de negócios coroados de sucesso que terminam com lindos jantares à luz de velas A propaganda nunca vende um produto dizendo o que ele é e para que serve Ela vende o produto rodeandoo de magias belezas dandolhe qualidades que são de outras coisas a criança saudável o jovem bonito o adulto inteligente o idoso feliz a casa agradável etc produzindo um eterno fazdeconta Uma outra dificuldade para o desejo da busca da verdade vem da atitude dos políticos nos quais as pessoas confiam ouvindo seus programas suas propostas seus projetos enfim dandolhes o voto e vendose depois ludibriadas não só porque não são cumpridas as promessas mas também porque há corrupção mau uso do dinheiro público crescimento das desigualdades e das injustiças da miséria e da violência Em vista disso a tendência das pessoas é julgar que é impossível a verdade na política passando a desconfiar do valor e da necessidade da democracia e aceitando vender seu voto por alguma vantagem imediata e pessoal ou caem na descrença e no ceticismo No entanto essas dificuldades podem ter o efeito oposto isto é suscitar em muitas pessoas dúvidas incertezas desconfianças e desilusões que as façam desejar conhecer a realidade a sociedade a ciência as artes a política Muitos começam a não aceitar o que lhes é dito Muitos começam a não acreditar no que lhes é mostrado E como Sócrates em Atenas começam a fazer perguntas a indagar sobre fatos e pessoas coisas e situações a exigir explicações a exigir liberdade de pensamento e de conhecimento Para essas pessoas surge o desejo e a necessidade da busca da verdade Essa busca nasce não só da dúvida e da incerteza nasce também da ação deliberada contra os preconceitos contra as idéias e as opiniões estabelecidas contra crenças que paralisam a capacidade de pensar e de agir livremente Podemos dessa maneira distinguir dois tipos de busca da verdade O primeiro é o que nasce da decepção da incerteza e da insegurança e por si mesmo exige que saiamos de tal situação readquirindo certezas O segundo é o que nasce da deliberação ou decisão de não aceitar as certezas e crenças estabelecidas de ir Marilena Chauí 115 além delas e de encontrar explicações interpretações e significados para a realidade que nos cerca Esse segundo tipo é a busca da verdade na atitude filosófica Podemos oferecer dois exemplos célebres dessa busca filosófica Já falamos do primeiro Sócrates andando pelas ruas e praças de Atenas indagando aos atenienses o que eram as coisas e idéias em que acreditavam O segundo exemplo é o do filósofo Descartes Descartes começa sua obra filosófica fazendo um balanço de tudo o que sabia o que lhe fora ensinado pelos preceptores e professores pelos livros pelas viagens pelo convívio com outras pessoas Ao final conclui que tudo quanto aprendera tudo quanto sabia e tudo quanto conhecera pela experiência era duvidoso e incerto Decide então não aceitar nenhum desses conhecimentos a menos que pudesse provar racionalmente que eram certos e dignos de confiança Para isso submete todos os conhecimentos existentes em suas época e os seus próprios a um exame crítico conhecido como dúvida metódica declarando que só aceitará um conhecimento uma idéia um fato ou uma opinião se passados pelo crivo da dúvida revelaremse indubitáveis para o pensamento puro Ele os submete à análise à dedução à indução ao raciocínio e conclui que até o momento há uma única verdade indubitável que poderá ser aceita e que deverá ser o ponto de partida para a reconstrução do edifício do saber Essa única verdade é Penso logo existo pois se eu duvidar de que estou pensando ainda estou pensando visto que duvidar é uma maneira de pensar A consciência do pensamento aparece assim como a primeira verdade indubitável que será o alicerce para todos os conhecimentos futuros Convite à Filosofia 116 Capítulo 2 Buscando a verdade Dogmatismo e busca da verdade Quando prestamos atenção em Sócrates ou Descartes notamos que ambos por motivos diferentes e usando procedimentos diferentes fazem uma mesma coisa isto é desconfiam das opiniões e crenças estabelecidas em suas sociedades mas também desconfiam das suas próprias idéias e opiniões Do que desconfiam eles afinal Desconfiam do dogmatismo O que é dogmatismo Dogmatismo é uma atitude muito natural e muito espontânea que temos desde muito crianças É nossa crença de que o mundo existe e que é exatamente tal como o percebemos Temos essa crença porque somos seres práticos isto é nos relacionamos com a realidade como um conjunto de coisas fatos e pessoas que são úteis ou inúteis para nossa sobrevivência Os seres humanos porque são seres culturais trabalham O trabalho é uma ação pela qual modificamos as coisas e a realidade de modo a conseguir nossa preservação na existência Constroem casas fabricam vestuário e utensílios produzem objetos técnicos e de consumo inventam meios de transporte de comunicação e de informação Através da prática ou do trabalho e da técnica os seres humanos organizamse social e politicamente criam instituições sociais família escola agricultura comércio indústria relações entre grupos e classes etc e instituições políticas o Estado o poder executivo legislativo e judiciário as forças militares profissionais os tribunais e as leis Essas práticas só são possíveis porque acreditamos que o mundo existe que é tal como o percebemos e tal como nos ensinaram que ele é que pode ser modificado ou conservado por nós que é explicado pelas religiões e pelas ciências que é representado pelas artes Acreditamos que os outros seres humanos também são racionais pois graças à linguagem trocamos idéias e opiniões pensamos de modo muito parecido e a escola e os meios de comunicação garantem a manutenção dessas semelhanças Na atitude dogmática tomamos o mundo como já dado já feito já pensado já transformado A realidade natural social política e cultural forma uma espécie de moldura de um quadro em cujo interior nos instalamos e onde existimos Mesmo quando acontece algo excepcional ou extraordinário uma catástrofe o aparecimento de um objeto inteiramente novo e desconhecido nossa tendência natural e dogmática é a de reduzir o excepcional e o extraordinário aos padrões Marilena Chauí 117 do que já conhecemos e já sabemos Mesmo quando descobrimos que alguma coisa é diferente do que havíamos suposto essa descoberta não abala nossa crença e nossa confiança na realidade nem nossa familiaridade com ela O mundo é como a novela de televisão muita coisa acontece mas afinal nada acontece pois quando a novela termina os bons foram recompensados os maus foram punidos os pobres bons ficaram ricos os ricos maus ficaram pobres a mocinha casou com o mocinho certo a família boa se refez e a família má se desfez Em outras palavras os acontecimentos da novela servem apenas para confirmar e reforçar o que já sabíamos e o que já esperávamos Tudo se mantém numa atmosfera ou num clima de familiaridade de segurança e sossego Na atitude dogmática ou natural aceitamos sem nenhum problema que há uma realidade exterior a nós e que embora externa e diferente de nós pode ser conhecida e tecnicamente transformada por nós Achamos que o espaço existe que nele as coisas estão como num receptáculo achamos que o tempo também existe e que nele as coisas e nós próprios estamos submetidos à sucessão dos instantes Dogmatismo e estranhamento Escutemos porém por um momento a indagação de santo Agostinho em suas Confissões O que é o tempo Tentemos fornecer uma explicação fácil e breve O que há de mais familiar e mais conhecido do que o tempo Mas o que é o tempo Quando quero explicálo não encontro explicação Se eu disser que o tempo é a passagem do passado para o presente e do presente para o futuro terei que perguntar Como pode o tempo passar Como sei que ele passa O que é um tempo passado Onde ele está O que é um tempo futuro Onde ele está Se o passado é o que eu do presente recordo e o futuro é o que eu do presente espero então não seria mais correto dizer que o tempo é apenas o presente Mas quanto dura um presente Quando acabo de colocar o r no verbo colocar este r é ainda presente ou já é passado A palavra que estou pensando em escrever a seguir é presente ou é futuro O que é o tempo afinal E a eternidade As coisas são mesmo tais como me aparecem Estão no espaço Mas o que é o espaço Se eu disser que o espaço é feito de comprimento altura e largura onde poderei colocar a profundidade sem a qual não podemos ver não podemos enxergar nada Mas a profundidade que me permite ver as coisas espaciais é justamente aquilo que não vejo e que não posso ver se eu quiser olhar as coisas A profundidade é ou não espacial Se for espacial por que não a vejo no espaço Se não for espacial como pode ser a condição para que eu veja as coisas no espaço Convite à Filosofia 118 Acompanhemos agora os versos do poeta Mário de Andrade escritos no poema Lira Paulistana Garoa do meu São Paulo Um negro vem vindo é branco Só bem perto fica negro Passa e torna a ficar branco Meu São Paulo da garoa Londres das neblinas frias Um pobre vem vindo é rico Só bem perto fica pobre Passa e torna a ficar rico Esses versos nos quais a garoa de São Paulo se parece com a neblina de Londres isto é com um véu denso de ar úmido dizem que não conseguimos ver a realidade o negro de longe é branco o pobre de longe é rico só muito de perto sem o véu da garoa o negro é negro e o pobre é pobre Mas apesar de vê los de perto tais como são de longe voltam a ser o que não são O poeta exprime um dos problemas que mais fascinam a Filosofia Como a ilusão é possível Como podemos ver o que não é Mas conseqüentemente como a verdade é possível Como podemos ver o que é tal como é Qual é a garoa que se interpõe entre o nosso pensamento e a realidade Qual é a garoa que se interpõe entre nosso olhar e as coisas A atitude dogmática ou natural se rompe quando somos capazes de uma atitude de estranhamento diante das coisas que nos pareciam familiares Dois exemplos podem ilustrar essa capacidade de estranhamento ambos da escritora Clarice Lispector em seu livro A descoberta do mundo O primeiro tem como título Mais do que um inseto Custei um pouco a compreender o que estava vendo de tão inesperado e sutil que era estava vendo um inseto pousado verdeclaro de pernas altas Era uma esperança o que sempre me disseram que é de bom augúrio Depois a esperança começou a andar bem de leve sobre o colchão Era verde transparente com pernas que mantinham seu corpo plano alto e por assim dizer solto um plano tão frágil quanto as próprias pernas que eram feitas apenas da cor da casca Dentro do fiapo das pernas não havia nada dentro o lado de dentro de uma superfície tão rasa já é a própria superfície Parecia um raso desenho que tivesse saído do papel verde e andasse E andava com uma determinação de quem copiasse um traço que era invisível para mim Mas onde estariam nele as glândulas de seu destino e as adrenalinas de seu seco verde interior Pois era um ser oco um enxerto de gravetos simples atração eletiva de linhas verdes O outro se intitula Atualidade do ovo e da galinha e nele podemos ler o seguinte trecho Marilena Chauí 119 Olho o ovo com um só olhar Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo apenas ver o ovo é sempre hoje mal vejo o ovo e já se torna ter visto um ovo o mesmo há três milênios No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo Só vê o ovo quem já o tiver visto Ver realmente o ovo é impossível o ovo é supervisível como há sons supersônicos que o ouvido já não ouve Ninguém é capaz de ver o ovo O ovo é uma coisa suspensa Nunca pousou Quando pousa não foi ele quem pousou foi uma superfície que veio ficar embaixo do ovo O ovo é uma exteriorização ter uma casca é darse O ovo expõe tudo À primeira vista que há de mais banal ou familiar do que um inseto ou um ovo No entanto Clarice Lispector nos faz sentir admiração e estranhamento como se jamais tivéssemos visto um inseto ou um ovo Nas duas descrições maravilhadas um ponto é comum o inseto e o ovo têm a peculiaridade de serem superfícies nas quais não conseguimos distinguir ou separar o fora e o dentro o exterior e o interior a esperança verde é como um traçado letra desenho sobre a superfície do papel o ovo é uma casca que expõe tudo No entanto nesses dois seres sem profundidade há um abismo misterioso todo ovo é igual a todo ovo e por isso não temos como ver um ovo embora ele esteja diante de nossos olhos e o inseto esperança é um oco um vazio colorido como um vazio pode ter cor ou uma cor sem corpo como uma cor pode existir sem um corpo colorido O sentido das palavras A mesma estranheza pode ser encontrada num poema de Carlos Drummond mas agora relativa à linguagem Usamos todos os dias as palavras como instrumentos dóceis e disponíveis como se sempre estivessem estado prontas para nós com seu sentido claro e útil O poeta porém aconselha Penetra surdamente no reino das palavras Chega mais perto e contempla as palavras Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta sem interesse pela resposta pobre ou terrível que lhe deres Trouxeste a chave Se as palavras tivessem sempre um sentido óbvio e único não haveria literatura não haveria malentendido e controvérsia Se as palavras tivessem sempre o mesmo sentido e se indicassem diretamente as coisas nomeadas como seria possível a mentira É por isso que o poeta Fernando Pessoa em versos famosos escreveu Convite à Filosofia 120 O poeta é um fingidor Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente O poeta é um fingedor e seu fingimento isto é sua criação artística é tão profundo e tão constitutivo de seu ser de poeta que ele finge isto é transforma em poema em obra de arte a dor que deveras ou de verdade sente A palavra tem esse poder misterioso de transformar o que não existe em realidade o poeta finge e de dar a aparência de irrealidade ao que realmente existe o poeta finge a dor que realmente sente Na tragédia Otelo de Shakespeare o mouro Otelo apaixonado perdidamente por sua jovem esposa Desdêmona acaba por assassinála porque foi convencido por Iago de que ela o traía Iago invejoso dos cargos que Otelo daria a um outro membro de sua corte inventou a traição de Desdêmona mentiu para Otelo e este tomando a mentira pela verdade destruiu a pessoa amada que morreu afirmando sua inocência Para construir a mentira Iago despertou em Otelo o ciúme caluniando Desdêmona Usou vários estratagemas mas sobretudo usou a linguagem isto é palavras falsas que envenenaram o espírito de Otelo Como é possível que as palavras ou que a linguagem tenham o poder para tornar o verdadeiro falso e fazer do falso verdadeiro Como seria uma sociedade na qual a mentira fosse a regra e portanto na qual não conseguíssemos nenhuma informação por menor que fosse que tivesse alguma veracidade Como faríamos para sobreviver se tudo o que nos fosse dito fosse mentira Perguntas e respostas seriam inúteis a desconfiança e a decepção seriam as únicas formas de relação entre as pessoas e tal sociedade seria a imagem do Inferno Essa sociedade infernal é criada pelo escritor George Orwell no romance 1984 Orwell descreve uma sociedade totalitária que controla todos os gestos atos pensamentos e palavras de seus membros Estes todos os dias entram num cubículo onde uma teletela exibe o rosto do grande chefe o Grande Irmão que pela mentira e pelo medo domina o espírito da população falando diariamente com cada um Nessa sociedade é instituído o Ministério da Verdade no qual todos os dias os fatos reais são modificados em narrativas ou relatos falsos são omitidos são apagados da História e da memória como se nunca tivessem existido O Ministério da Verdade cria a mentira como instituição social O poder cria a NoviLíngua isto é inventa palavras e destrói outras as inventadas são as que estão a serviço da mentira institucionalizada e as destruídas são as que poderiam fazer aparecer a mentira A negação da verdade é assim usada para manter uma sociedade inteira enganada e submissa Marilena Chauí 121 Quando vemos o modo como os meios de comunicação funcionam podemos perguntar se 1984 é uma simples ficção ou se realmente existe sem que o saibamos Como é possível que a linguagem tenha tamanho poder mistificador E ao mesmo tempo como é possível que em todas as culturas na relação entre os homens e a divindade entre o profano e o sagrado o papel fundamental de revelação da verdade seja sempre dado à linguagem à palavra sagrada e verdadeira que os deuses dizem aos homens Como uma mesma coisa a palavra o discurso pode ser origem ao mesmo tempo da verdade e da falsidade Como a linguagem pode mostrar e esconder Como essa duplicidade misteriosa da linguagem pode servir para manter o dogmatismo Mas também como pode despertar o desejo de verdade Verdades reveladas e verdades alcançadas A atitude dogmática é conservadora isto é sente receio das novidades do inesperado do desconhecido e de tudo o que possa desequilibrar as crenças e opiniões já constituídas Esse conservadorismo se transforma em preconceito isto é em idéias preconcebidas que impedem até mesmo o contato com tudo quanto possa pôr em perigo o já sabido o já dito e o já feito O conservadorismo pode aumentar ainda mais quando o dogmatismo estiver convencido de que várias de suas opiniões e crenças vieram de uma fonte sagrada de uma revelação divina incontestável e incontestada de tal modo que situações que tornem problemáticas tais crenças são afastadas como inaceitáveis e perigosas aqueles que ousam enfrentar essas crenças e opiniões são tidos como criminosos blasfemadores e heréticos No romance de Umberto Eco O nome da rosa uma série de assassinatos misteriosos acontecem e todos os mortos trazem um mesmo sinal a língua enegrecida e dois dedos da mão direita o polegar e o indicador também enegrecidos O monge Guilherme de Baskerville descobre que todos os assassinados eram frades encarregados de copiar e ilustrar manuscritos de uma biblioteca todos eles haviam manuseado um mesmo livro no qual havia algo que funcionava como veneno ao molhar os dedos com saliva para virar as páginas do livro os copistas eram envenenados Guilherme descobre que o livro era uma obra perdida de Aristóteles sobre a comédia e a importância do riso para a vida humana Descobre também que um dos monges Jorge de Burgos guardião da biblioteca julgara que o riso é contrário à vontade de Deus um pecado que merece a morte pois viemos ao mundo para sofrer a culpa original de Adão Por isso assassinou por envenenamento os copistas que ousaram ler o livro e ao final queima a biblioteca para que o livro seja destruído Convite à Filosofia 122 Nesse romance duas idéias acerca da verdade se enfrentam a verdade humana que estaria contida no livro do filósofo Aristóteles e a verdade divina que o bibliotecário julga estar na proibição do riso e da alegria para os humanos pecadores que vieram à Terra para o sofrimento Em nome dessa segunda verdade Jorge de Burgos matou outros seres humanos e queimou livros escritos por seres humanos pois para ele uma verdade revelada por Deus é a única verdade e tudo quanto querem e pensam os humanos se for contrário à verdade divina é erro e falsidade crime e blasfêmia Esse conflito entre verdades reveladas e verdades alcançadas pelos humanos através do exercício da inteligência e da razão tem sido também uma questão que preocupa a Filosofia desde o surgimento do Cristianismo Podemos conhecer as verdades divinas Se não pudermos conhecêlas seremos culpados Mas como seríamos culpados por não conhecer aquilo que nosso intelecto por ser pequeno e menor do que o de Deus não teria forças para alcançar As três concepções da verdade Os vários exemplos que mencionamos neste capítulo indicam concepções diferentes da verdade No caso de Mário de Andrade e Clarice Lispector o problema da verdade está ligado ao ver ao perceber No caso de Fernando Pessoa Carlos Drummond Shakespeare e Orwell a verdade está ligada ao dizer ao falar às palavras No caso de Umberto Eco a verdade está ligada ao crer ao acreditar Para a atitude natural ou dogmática o verdadeiro é o que funciona e não surpreende É como vimos o já sabido o já dito e o já feito Verdade e realidade parecem ser idênticas e quando essa identidade se desfaz ou se quebra surge a incerteza que busca readquirir certezas Para a atitude crítica ou filosófica a verdade nasce da decisão e da deliberação de encontrála da consciência da ignorância do espanto da admiração e do desejo de saber Nessa busca a Filosofia é herdeira de três grandes concepções da verdade a do verperceber a do falardizer e a do crerconfiar Marilena Chauí 123 Capítulo 3 As concepções da verdade Grego latim e hebraico Nossa idéia da verdade foi construída ao longo dos séculos a partir de três concepções diferentes vindas da língua grega da latina e da hebraica Em grego verdade se diz aletheia significando nãooculto nãoescondido não dissimulado O verdadeiro é o que se manifesta aos olhos do corpo e do espírito a verdade é a manifestação daquilo que é ou existe tal como é O verdadeiro se opõe ao falso pseudos que é o encoberto o escondido o dissimulado o que parece ser e não é como parece O verdadeiro é o evidente ou o plenamente visível para a razão Assim a verdade é uma qualidade das próprias coisas e o verdadeiro está nas próprias coisas Conhecer é ver e dizer a verdade que está na própria realidade e portanto a verdade depende de que a realidade se manifeste enquanto a falsidade depende de que ela se esconda ou se dissimule em aparências Em latim verdade se diz veritas e se refere à precisão ao rigor e à exatidão de um relato no qual se diz com detalhes pormenores e fidelidade o que aconteceu Verdadeiro se refere portanto à linguagem enquanto narrativa de fatos acontecidos referese a enunciados que dizem fielmente as coisas tais como foram ou aconteceram Um relato é veraz ou dotado de veracidade quando a linguagem enuncia os fatos reais A verdade depende de um lado da veracidade da memória e da acuidade mental de quem fala e de outro de que o enunciado corresponda aos fatos acontecidos A verdade não se refere às próprias coisas e aos próprios fatos como acontece com a aletheia mas ao relato e ao enunciado à linguagem Seu oposto portanto é a mentira ou a falsificação As coisas e os fatos não são reais ou imaginários os relatos e enunciados sobre eles é que são verdadeiros ou falsos Em hebraico verdade se diz emunah e significa confiança Agora são as pessoas e é Deus quem são verdadeiros Um Deus verdadeiro ou um amigo verdadeiro são aqueles que cumprem o que prometem são fiéis à palavra dada ou a um pacto feito enfim não traem a confiança A verdade se relaciona com a presença com a espera de que aquilo que foi prometido ou pactuado irá cumprirse ou acontecer Emunah é uma palavra de mesma origem que amém que significa assim seja A verdade é uma crença fundada na esperança e na confiança referidas ao futuro ao que será ou virá Sua Convite à Filosofia 124 forma mais elevada é a revelação divina e sua expressão mais perfeita é a profecia Aletheia se refere ao que as coisas são veritas se refere aos fatos que foram emunah se refere às ações e as coisas que serão A nossa concepção da verdade é uma síntese dessas três fontes e por isso se refere às coisas presentes como na aletheia aos fatos passados como na veritas e às coisas futuras como na emunah Também se refere à própria realidade como na aletheia à linguagem como na veritas e à confiançaesperança como na emunah Palavras como averiguar e verificar indicam buscar a verdade veredicto é pronunciar um julgamento verdadeiro dizer um juízo veraz verossímil e verossimilhante significam ser parecido com a verdade ter traços semelhantes aos de algo verdadeiro Diferentes teorias sobre a verdade Existem diferentes concepções filosóficas sobre a natureza do conhecimento verdadeiro dependendo de qual das três idéias originais da verdade predomine no pensamento de um ou de alguns filósofos Assim quando predomina a aletheia considerase que a verdade está nas próprias coisas ou na própria realidade e o conhecimento verdadeiro é a percepção intelectual e racional dessa verdade A marca do conhecimento verdadeiro é a evidência isto é a visão intelectual e racional da realidade tal como é em si mesma e alcançada pelas operações de nossa razão ou de nosso intelecto Uma idéia é verdadeira quando corresponde à coisa que é seu conteúdo e que existe fora de nosso espírito ou de nosso pensamento A teoria da evidência e da correspondência afirma que o critério da verdade é a adequação do nosso intelecto à coisa ou da coisa ao nosso intelecto Quando predomina a veritas considerase que a verdade depende do rigor e da precisão na criação e no uso de regras de linguagem que devem exprimir ao mesmo tempo nosso pensamento ou nossas idéias e os acontecimentos ou fatos exteriores a nós e que nossas idéias relatam ou narram em nossa mente Agora não se diz que uma coisa é verdadeira porque corresponde a uma realidade externa mas se diz que ela corresponde à realidade externa porque é verdadeira O critério da verdade é dado pela coerência interna ou pela coerência lógica das idéias e das cadeias de idéias que formam um raciocínio coerência que depende da obediência às regras e leis dos enunciados corretos A marca do verdadeiro é a validade lógica de seus argumentos Finalmente quando predomina a emunah considerase que a verdade depende de um acordo ou de um pacto de confiança entre os pesquisadores que definem um conjunto de convenções universais sobre o conhecimento verdadeiro e que devem sempre ser respeitadas por todos A verdade se funda portanto no Marilena Chauí 125 consenso e na confiança recíproca entre os membros de uma comunidade de pesquisadores e estudiosos O consenso se estabelece baseado em três princípios que serão respeitados por todos 1 que somos seres racionais e nosso pensamento obedece aos quatro princípios da razão identidade nãocontradição terceiroexcluído e razão suficiente ou causalidade 2 que somos seres dotados de linguagem e que ela funciona segundo regras lógicas convencionadas e aceitas por uma comunidade 3 que os resultados de uma investigação devem ser submetidos à discussão e avaliação pelos membros da comunidade de investigadores que lhe atribuirão ou não o valor de verdade Existe ainda uma quarta teoria da verdade que se distingue das anteriores porque define o conhecimento verdadeiro por um critério que não é teórico e sim prático Tratase da teoria pragmática para a qual um conhecimento é verdadeiro por seus resultados e suas aplicações práticas sendo verificado pela experimentação e pela experiência A marca do verdadeiro é a verificabilidade dos resultados Essa concepção da verdade está muito próxima da teoria da correspondência entre coisa e idéia aletheia entre realidade e pensamento que julga que o resultado prático na maioria das vezes é conseguido porque o conhecimento alcançou as próprias coisas e pode agir sobre elas Em contrapartida a teoria da convenção ou do consenso emunah está mais próxima da teoria da coerência interna veritas pois as convenções ou consensos verdadeiros costumam ser baseados em princípios e argumentos lingüísticos e lógicos princípios e argumentos da linguagem do discurso e da comunicação Na primeira teoria aletheiacorrespondência as coisas e as idéias são consideradas verdadeiras ou falsas na segunda veritascoerência e na terceira emunahconsenso os enunciados os argumentos e as idéias é que são julgados verdadeiros ou falsos na quarta pragmática são os resultados que recebem a denominação de verdadeiros ou falsos Na primeira e na quarta teoria a verdade é o acordo entre o pensamento e a realidade Na segunda e na terceira teoria a verdade é o acordo do pensamento e da linguagem consigo mesmos a partir de regras e princípios que o pensamento e a linguagem deram a si mesmos em conformidade com sua natureza própria que é a mesma para todos os seres humanos ou definida como a mesma para todos por um consenso A verdade como evidência e correspondência Se observarmos a concepção grega da verdade aletheia notaremos que nela as coisas ou o Ser é o verdadeiro ou a verdade Isto é o que existe e manifesta sua Convite à Filosofia 126 existência para nossa percepção e para nosso pensamento é verdade ou verdadeiro Por esse motivo os filósofos gregos perguntam Como o erro o falso e a mentira são possíveis Em outras palavras como podemos pensar naquilo que não é não existe não tem realidade pois o erro o falso e a mentira só podem referirse ao nãoSer O Ser é o manifesto o visível para os olhos do corpo e do espírito o evidente Errar falsear ou mentir portanto é não ver os seres tais como são é não falar deles tais como são Como é isso possível A resposta dos gregos é dupla 1 o erro o falso e a mentira se referem à aparência superficial e ilusória das coisas ou dos seres e surgem quando não conseguimos alcançar a essência das realidades como no poema de Mário de Andrade em que a garoaneblina cria um véu que encobre oculta e dissimula as coisas e as torna confusas indistintas são um defeito ou uma falha de nossa percepção sensorial ou intelectual 2 o erro o falso e a mentira surgem quando dizemos de algum ser aquilo que ele não é quando lhe atribuímos qualidades ou propriedades que ele não possui ou quando lhe negamos qualidades ou propriedades que ele possui Nesse caso o erro o falso e a mentira se alojam na linguagem e acontecem no momento em que fazemos afirmações ou negações que não correspondem à essência de alguma coisa O erro o falso e a mentira são um acontecimento do juízo ou do enunciado Juízo é uma proposição afirmativa S é P ou negativa S não é P pela qual atribuo ou nego a um sujeito S um predicado P O predicado é um atributo afirmado ou negado do sujeito e faz parte ou não de sua essência Se eu formular o seguinte juízo Sócrates é imortal o erro se encontra na atribuição do predicado imortal a um sujeito Sócrates que não possui a qualidade ou a propriedade da imortalidade O erro é um engano do juízo quando desconhecemos a essência de um ser O falso e a mentira porém são juízos deliberadamente errados isto é conhecemos a essência de alguma coisa mas deliberadamente emitimos um juízo errado sobre ela O que é a verdade É a conformidade entre nosso pensamento e nosso juízo e as coisas pensadas ou formuladas Qual a condição para o conhecimento verdadeiro A evidência isto é a visão intelectual da essência de um ser Para formular um juízo verdadeiro precisamos portanto primeiro conhecer a essência e a conhecemos ou por intuição ou por dedução ou por indução A verdade exige que nos libertemos das aparências das coisas exige portanto que nos libertemos das opiniões estabelecidas e das ilusões de nossos órgãos dos sentidos Em outras palavras a verdade sendo o conhecimento da essência real e profunda dos seres é sempre universal e necessária enquanto as opiniões variam de lugar para lugar de época para época de sociedade para sociedade de pessoa para pessoa Essa variabilidade e inconstância das opiniões provam que a essência dos seres não está conhecida e por isso se nos mantivermos no plano das opiniões nunca alcançaremos a verdade Marilena Chauí 127 O mesmo deve ser dito sobre nossas impressões sensoriais que variam conforme o estado do nosso corpo as disposições de nosso espírito e as condições em que as coisas nos aparecem Pelo mesmo motivo devemos ou abandonar as idéias formadas a partir de nossa percepção ou encontrar os aspectos universais e necessários da experiência sensorial que alcancem parte da essência real das coisas No primeiro caso somente o intelecto espírito vê o Ser verdadeiro No segundo caso o intelecto purifica o testemunho sensorial Por exemplo posso perceber que uma flor é branca mas se eu estiver doente a verei amarela percebo o Sol muito menor do que a Terra embora ele seja maior do que ela Apesar desses enganos perceptivos observo que toda percepção percebe qualidades nas coisas cor tamanho por exemplo e portanto as qualidades pertencem à essência das próprias coisas e fazem parte da verdade delas Quando porém examinamos a idéia latina da verdade como veracidade de um relato observamos que agora o problema da verdade e do erro do falso e da mentira deslocouse diretamente para o campo da linguagem O verdadeiro e o falso estão menos no ato de ver com os olhos do corpo ou com os olhos do espírito e mais no ato de dizer Por isso a pergunta dos filósofos agora é exatamente contrária à anterior ou seja perguntase Como a verdade é possível De fato se a verdade está no discurso ou na linguagem não depende apenas do pensamento e das próprias coisas mas também de nossa vontade para dizêla silenciála ou deformála O verdadeiro continua sendo tomado como conformidade entre a idéia e as coisas no caso entre o discurso ou relato e os fatos acontecidos que estão sendo relatados mas depende também de nosso querer Esse aspecto voluntário da verdade tornase de grande importância com o surgimento da Filosofia cristã porque com ela é introduzida a idéia de vontade livre ou de livrearbítrio de modo que a verdade está na dependência não só da conformidade entre relato e fato mas também da boavontade ou da vontade que deseja o verdadeiro Ora o cristianismo afirma que a vontade livre foi responsável pelo pecado original e que a vontade foi pervertida e tornouse mávontade Assim sendo a mentira o erro e o falso tenderiam a prevalecer contra a verdade Nosso intelecto ou nosso pensamento é mais fraco do que nossa vontade e esta pode forçálo ao erro e ao falso Essas questões foram posteriormente examinadas pelos filósofos modernos os filósofos do Grande Racionalismo Clássico que introduzirão a exigência de começar a Filosofia pelo exame de nossa consciência vontade intelecto imaginação memória para saber o que podemos conhecer realmente e quais os auxílios que devem ser oferecidos ao nosso intelecto para que controle e domine nossa vontade e a submeta ao verdadeiro Convite à Filosofia 128 É preciso começar liberando nossa consciência dos preconceitos dos dogmatismos da opinião e da experiência cotidiana Essa consciência purificada que é o sujeito do conhecimento poderá então alcançar as evidências por intuição dedução ou indução e formular juízos verdadeiros aos quais a vontade deverá submeterse Tanto os antigos quanto os modernos afirmam que 1 a verdade é conhecida por evidência a evidência pode ser obtida por intuição dedução ou indução 2 a verdade se exprime no juízo onde a idéia está em conformidade com o ser das coisas ou com os fatos 3 o erro o falso e a mentira se alojam no juízo quando afirmamos de uma coisa algo que não pertence à sua essência ou natureza ou quando lhe negamos algo que pertence necessariamente à sua essência ou natureza 4 as causas do erro e do falso são as opiniões preconcebidas os hábitos os enganos da percepção e da memória 5 a causa do falso e da mentira para os modernos também se encontra na vontade que é mais poderosa do que o intelecto ou o pensamento e precisa ser controlada por ele 6 uma verdade por referirse à essência das coisas ou dos seres é sempre universal e necessária e distinguese da aparência pois esta é sempre particular individual instável e mutável 7 o pensamento se submete a uma única autoridade a dele própria com capacidade para o verdadeiro Quando os filósofos antigos e modernos afirmam que a verdade é conformidade ou correspondência entre a idéia e a coisa e entre a coisa e a idéia ou entre a idéia e o ideado não estão dizendo que uma idéia verdadeira é uma cópia um papel carbono um xerox da coisa verdadeira Idéia e coisa conceito e ser juízo e fato não são entidades de mesma natureza e não há entre eles uma relação de cópia O que os filósofos afirmam é que a idéia conhece a estrutura da coisa conhece as relações internas necessárias que constituem a essência da coisa e as relações e nexos necessários que ela mantém com outras Como disse um filósofo a idéia de cão não late e a de açúcar não é doce A idéia é um ato intelectual o ideado uma realidade externa conhecida pelo intelecto A idéia verdadeira é o conhecimento das causas qualidades propriedades e relações da coisa conhecida e da essência dela ou de seu ser íntimo e necessário Quando o pensamento conhece por exemplo o fenômeno da queda livre dos corpos formulado pela física de Galileu isto não significa que o pensamento se torne um corpo caindo no vácuo mas sim que conhece as causas desse Marilena Chauí 129 movimento e as formula em conceitos verdadeiros isto é formula as leis do movimento Uma outra teoria da verdade Quando estudamos a razão vimos os problemas criados pelo inatismo e pelo empirismo Vimos também a revolução copernicana de Kant distinguindo as estruturas ou formas e categorias da razão e os conteúdos trazidos a ela pela experiência isto é a distinção entre os elementos a priori e a posteriori no conhecimento Com a revolução copernicana kantiana uma distinção muito importante passou a ser feita na Filosofia a distinção entre juízos analíticos e juízos sintéticos Um juízo é analítico quando o predicado ou os predicados do enunciado nada mais são do que a explicitação do conteúdo do sujeito do enunciado Por exemplo quando digo que o triângulo é uma figura de três lados o predicado três lados nada mais é do que a análise ou a explicitação do sujeito triângulo Quando porém entre o sujeito e o predicado se estabelece uma relação na qual o predicado me dá informações novas sobre o sujeito o juízo é sintético isto é formula uma síntese entre um predicado e um sujeito Assim por exemplo quando digo que o calor é a causa da dilatação dos corpos o predicado causa da dilatação não está analiticamente contido no sujeito calor Se eu dissesse que o calor é uma medida de temperatura dos corpos o juízo seria analítico mas quando estabeleço uma relação causal entre o sujeito e o predicado como no caso da relação entre calor e dilatação dos corpos tenho uma síntese algo novo me é dito sobre o sujeito através do predicado Para Kant os juízos analíticos são as verdades de razão de Leibniz mas os juízos sintéticos teriam que ser considerados verdades de fato No entanto vimos que os fatos estão sob a suspeita de Hume isto é fatos seriam hábitos associativos e repetitivos de nossa mente baseados na experiência sensível e portanto um juízo sintético jamais poderia pretender ser verdadeiro de modo universal e necessário Que faz Kant Introduz a idéia de juízos sintéticos a priori isto é de juízos sintéticos cuja síntese depende da estrutura universal e necessária de nossa razão e não da variabilidade individual de nossas experiências Os juízos sintéticos a priori exprimem o modo como necessariamente nosso pensamento relaciona e conhece a realidade A causalidade por exemplo é uma síntese a priori que nosso entendimento formula para as ligações universais e necessárias entre causas e efeitos independentemente de hábitos psíquicos associativos Todavia vi mos também que Kant afirma que a realidade que conhecemos filosoficamente e cientificamente não é a realidade em si das coisas mas a realidade tal como é estruturada por nossa razão tal como é organizada Convite à Filosofia 130 explicada e interpretada pelas estruturas a priori do sujeito do conhecimento A realidade são nossas idéias verdadeiras e o kantismo é um idealismo Vimos também ao estudar a Filosofia contemporânea que o filósofo Husserl criou uma filosofia chamada fenomenologia Essa palavra vem diretamente da filosofia kantiana Com efeito Kant usa duas palavras gregas para referirse à realidade a palavra noumenon que significa a realidade em si racional em si inteligível em si e a palavra phainomenon fenômeno que significa a realidade tal como se mostra ou se manifesta para nossa razão ou para nossa consciência Kant afirma que só podemos conhecer o fenômeno o que se apresenta para a consciência de acordo com a estrutura a priori da própria consciência e que não podemos conhecer o noumenon a coisa em si Fenomenologia significa conhecimento daquilo que se manifesta para nossa consciência daquilo que está presente para a consciência ou para a razão daquilo que é organizado e explicado a partir da própria estrutura da consciência A verdade se refere aos fenômenos e os fenômenos são o que a consciência conhece Ora pergunta Husserl o que é o fenômeno O que é que se manifesta para a consciência A própria consciência Conhecer os fenômenos e conhecer a estrutura e o funcionamento necessário da consciência são uma só e mesma coisa pois é a própria consciência que constitui os fenômenos Como ela os constitui Dando sentido às coisas Conhecer é conhecer o sentido ou a significação das coisas tal como esse sentido foi produzido ou essa significação foi produzida pela consciência O sentido ou significação quando universal e necessário é a essência das coisas A verdade é o conhecimento das essências universais e necessárias ou o conhecimento das significações constituídas pela consciência reflexiva ou pela razão reflexiva Na perspectiva idealista seja ela kantiana ou husserliana não podemos mais dizer que a verdade é a conformidade do pensamento com as coisas ou a correspondência entre a idéia e o objeto A verdade será o encadeamento interno e rigoroso das idéias ou dos conceitos Kant ou das significações Husserl sua coerência lógica e sua necessidade A verdade é um acontecimento interno ao nosso intelecto ou à nossa consciência Para Kant e para Husserl o erro e a falsidade encontramse no realismo isto é na suposição de que os conceitos ou as significações se refiram a uma realidade em si independente do sujeito do conhecimento Esse erro e essa falsidade Kant chamou de dogmatismo e Husserl de atitude natural ou tese natural do mundo Uma terceira concepção da verdade Quando falamos sobre Filosofia contemporânea fizemos referência a um tipo de filosofia conhecida como filosofia analítica Marilena Chauí 131 A filosofia analítica dedicouse prioritariamente aos estudos da linguagem e da lógica e por isso situou a verdade como um fato ou um acontecimento lingüístico e lógico isto é como um fato da linguagem A teoria da verdade nessa filosofia passou por duas grandes etapas Na primeira os filósofos consideravam que a linguagem produz enunciados sobre as coisas há os enunciados do sensocomum ou da vida cotidiana e os enunciados lógicos formulados pelas ciências A pretensão da linguagem nos dois casos seria a de produzir enunciados em conformidade com a própria realidade de modo que a verdade seria tal conformidade ou correspondência entre os enunciados e os fatos e coisas Essa conformidade ou correspondência seria inadequada e imprecisa na linguagem natural ou comum nossa linguagem cotidiana e seria adequada rigorosa e precisa na linguagem lógica das ciências Por isso a ciência foi definida como linguagem bem feita e concebida como descrição e pintura do mundo No entanto inúmeros problemas tornaram essa concepção insustentável Por exemplo se eu disser estrela da manhã e estrela da tarde terei dois enunciados diferentes e duas pinturas diferentes do mundo Acontece porém que esses dois enunciados se referem ao mesmo objeto o planeta Vênus Como posso ter dois enunciados diferentes para significar o mesmo objeto ou a mesma coisa Um outro exemplo conhecido com o nome de paradoxo do catálogo também pode ilustrar as dificuldades da teoria da verdade como correspondência entre enunciado e coisa em que a correspondência é uma pintura da realidade feita pelas idéias Se eu disser que existe o catálogo de todos os catálogos onde devo colocar o catálogo dos catálogos Isto é o catálogo dos catálogos é um catálogo catalogado por ele mesmo junto com os outros catálogos ou é um catálogo que não faz parte de nenhum catálogo Se estiver catalogado não pode ser catálogo de todos os catálogos pois será necessário um outro catálogo que o contenha mas se não estiver catalogado não é o catálogo de todos os catálogos pois em tal catálogo está faltando ele próprio O que se percebeu nesse paradoxo é que a estrutura e o funcionamento da linguagem não correspondem exatamente à estrutura e ao funcionamento das coisas Essa descoberta conduziu a filosofia analítica à idéia da verdade como algo puramente lingüístico e lógico isto é a verdade é a coerência interna de uma linguagem que oferece axiomas postulados e regras para os enunciados e que é verdadeira ou falsa conforme respeite ou desrespeite as normas de seu próprio funcionamento Cada campo do conhecimento cria sua própria linguagem seus axiomas seus postulados suas regras de demonstração e de verificação de seus resultados e é a Convite à Filosofia 132 coerência interna entre os procedimentos e os resultados com os princípios que fundamentam um certo campo de conhecimento que define o verdadeiro e o falso Verdade e falsidade não estão nas coisas nem nas idéias mas são valores dos enunciados segundo o critério da coerência lógica A concepção pragmática da verdade Os filósofos empiristas tendem a considerar que os critérios anteriores são puramente teóricos e que para decidir sobre a verdade de um fato ou de uma idéia eles não são suficientes e podem gerar ceticismo isto é como há variados critérios e como há mudanças históricas no conceito da verdade acabase julgando que a verdade não existe ou é inalcançável pelos seres humanos Para muitos filósofos empiristas a verdade além de ser sempre verdade de fato e de ser obtida por indução e por experimentação deve ter como critério sua eficácia ou utilidade Um conhecimento é verdadeiro não só quando explica alguma coisa ou algum fato mas sobretudo quando permite retirar conseqüências práticas e aplicáveis Por considerarem como critério da verdade a eficácia e a utilidade essa concepção é chamada de pragmática e a corrente filosófica que a defende de pragmatismo As concepções da verdade e a História As várias concepções da verdade que foram expostas estão articuladas com mudanças históricas tanto no sentido de mudanças na estrutura e organização das sociedades como quanto no sentido de mudanças no interior da própria Filosofia Assim por exemplo nas sociedades antigas baseadas no trabalho escravo a idéia da verdade como utilidade e eficácia prática não poderia aparecer pois a verdade é considerada a forma superior do espírito humano portanto desligada do trabalho e das técnicas e tomada como um valor autônomo do conhecimento enquanto pura contemplação da realidade isto é como theoria Nas sociedades nascidas com o capitalismo em que o trabalho escravo e servil é substituído pelo trabalho livre e em que é elaborada a idéia de indivíduo como um átomo social isto é como um ser que pode ser conhecido e pensado por si mesmo e sem os outros a verdade tenderá a ser concebida como dependendo exclusivamente das operações do sujeito do conhecimento ou da consciência de si reflexiva autônoma Também nas sociedades capitalistas regidas pelo princípio do crescimento ou acumulação do capital por meio do crescimento das forças produtivas trabalho e técnicas e por meio do aumento da capacidade industrial para dominar e controlar as forças da Natureza e a sociedade a verdade tenderá a aparecer como utilidade e eficácia ou seja como algo que tenha uso prático e verificável Assim como o trabalho deve produzir lucro também o conhecimento deve produzir resultados úteis Marilena Chauí 133 Numa sociedade altamente tecnológica como a do século XX ocidental europeu e norteamericano em que as pesquisas científicas tendem a criar nos laboratórios o próprio objeto do conhecimento isto é em que o objeto do conhecimento é uma construção do pensamento científico ou um constructus produzido pelas teorias e pelas experimentações a verdade tende a ser considerada a forma lógica e coerente assumida pela própria teoria bem como a ser considerada como o consenso teórico estabelecido entre os membros das comunidades de pesquisadores A verdade portanto como a razão está na História e é histórica Também as transformações internas à própria Filosofia modificam a concepção da verdade A teoria da verdade como correspondência entre coisa e idéia ou fato e idéia ligase à concepção realista da razão e do conhecimento isto é à prioridade do objeto do conhecimento ou realidade sobre o sujeito do conhecimento Ao contrário a concepção da verdade como coerência interna e lógica das idéias ou dos conceitos ligase à concepção idealista da razão e do conhecimento isto é à prioridade do sujeito do conhecimento ou do pensamento sobre o objeto a ser conhecido As concepções históricas e as transformações internas ao conhecimento mostram que as várias concepções da verdade não são arbitrárias nem casuais ou acidentais mas possuem causas e motivos que as explicam e que a cada formação social e a cada mudança interna do conhecimento surge a exigência de reformular a concepção da verdade para que o saber possa realizarse As verdades os conteúdos conhecidos mudam a idéia da verdade a forma de conhecer muda mas não muda a busca do verdadeiro isto é permanece a exigência de vencer o sensocomum o dogmatismo a atitude natural e seus preconceitos É a procura da verdade e o desejo de estar no verdadeiro que permanecem A verdade se conserva portanto como o valor mais alto a que aspira o pensamento As exigências fundamentais da verdade Se examinarmos as diferentes concepções da verdade notaremos que algumas exigências fundamentais são conservadas em todas elas e constituem o campo da busca do verdadeiro 1 compreender as causas da diferença entre o parecer e o ser das coisas ou dos erros 2 compreender as causas da existência e das formas de existência dos seres 3 compreender os princípios necessários e universais do conhecimento racional 4 compreender as causas e os princípios da transformação dos próprios conhecimentos Convite à Filosofia 134 5 separar preconceitos e hábitos do senso comum e a atitude crítica do conhecimento 6 explicitar com todos os detalhes os procedimentos empregados para o conhecimento e os critérios de sua realização 7 liberdade de pensamento para investigar o sentido ou a significação da realidade que nos circunda e da qual fazemos parte 8 comunicabilidade isto é os critérios os princípios os procedimentos os percursos realizados os resultados obtidos devem poder ser conhecidos e compreendidos por todos os seres racionais Como escreve o filósofo Espinosa o Bem Verdadeiro é aquele capaz de comunicarse a todos e ser compartilhado por todos 9 transmissibilidade isto é os critérios princípios procedimentos percursos e resultados do conhecimento devem poder ser ensinados e discutidos em público Como diz Kant temos o direito ao uso público da razão 10 veracidade isto é o conhecimento não pode ser ideologia ou em outras palavras não pode ser máscara e véu para dissimular e ocultar a realidade servindo aos interesses da exploração e da dominação entre os homens Assim como a verdade exige a liberdade de pensamento para o conhecimento também exige que seus frutos propiciem a liberdade de todos e a emancipação de todos 11 a verdade deve ser objetiva isto é deve ser compreendida e aceita universal e necessariamente sem que isso signifique que ela seja neutra ou imparcial pois o sujeito do conhecimento está vitalmente envolvido na atividade do conhecimento e o conhecimento adquirido pode resultar em mudanças que afetem a realidade natural social e cultural Como disseram os filósofos Sartre e MerleauPonty somos seres em situação e a verdade está sempre situada nas condições objetivas em que foi alcançada e está sempre voltada para compreender e interpretar a situação na qual nasceu e à qual volta para trazer transformações Não escolhemos o país a data a família e a classe social em que nascemos isso é nossa situação mas podemos escolher o que fazer com isso conhecendo nossa situação e indagando se merece ou não ser mantida A verdade é ao mesmo tempo frágil e poderosa Frágil porque os poderes estabelecidos podem destruíla assim como mudanças teóricas podem substituí la por outra Poderosa porque a exigência do verdadeiro é o que dá sentido à existência humana Um texto do filósofo Pascal nos mostra essa fragilidadeforça do desejo do verdadeiro O homem é apenas um caniço o mais fraco da Natureza mas é um caniço pensante Não é preciso que o Universo inteiro se arme para esmagálo um vapor uma gota de água são suficientes para matálo Mas mesmo que o Universo o esmagasse o homem seria ainda mais nobre do que Marilena Chauí 135 aquilo que o mata porque ele sabe que morre e conhece a vantagem do Universo sobre ele mas disso o Universo nada sabe Toda nossa dignidade consiste pois no pensamento É a partir dele que nos devemos elevar e não do espaço e do tempo que não saberíamos ocupar Convite à Filosofia 136 Unidade 4 O conhecimento Marilena Chauí 137 Capítulo 1 A preocupação com o conhecimento O conhecimento e os primeiros filósofos Quando estudamos o nascimento da Filosofia na Grécia vimos que os primeiros filósofos os présocráticos dedicavamse a um conjunto de indagações principais Por que e como as coisas existem O que é o mundo Qual a origem da Natureza e quais as causas de sua transformação Essas indagações colocavam no centro a pergunta o que é o Ser A palavra ser em português traduz a palavra latina esse e a expressão grega ta onta A palavra latina esse é o infinitivo de um verbo o verbo ser A expressão grega ta onta quer dizer as coisas existentes os entes os seres No singular ta onta se diz to on que é traduzida por o ser Os primeiros filósofos ocupavamse com a origem e a ordem do mundo o kosmos e a filosofia nascente era uma cosmologia Pouco a pouco passouse a indagar o que era o próprio kosmos qual era o fundo eterno e imutável que permanecia sob a multiplicidade e transformação das coisas Qual era e o que era o ser subjacente a todos os seres Com isto a filosofia nascente tornouse ontologia isto é conhecimento ou saber sobre o ser Por esse mesmo motivo considerase que os primeiros filósofos não tinham uma preocupação principal com o conhecimento enquanto conhecimento isto é não indagavam se podemos ou não conhecer o Ser mas partiam da pressuposição de que o podemos conhecer pois a verdade sendo aletheia isto é presença e manifestação das coisas para os nossos sentidos e para o nosso pensamento significa que o Ser está manifesto e presente para nós e portanto nós o podemos conhecer Todavia a opinião de que os primeiros filósofos não se preocupavam com nossa capacidade e possibilidade de conhecimento não é exata Para tanto basta levarmos em conta o fato de afirmarem que a realidade o Ser a Natureza é racional e que a podemos conhecer porque também somos racionais nossa razão é parte da racionalidade do mundo dela participando Heráclito Parmênides e Demócrito Alguns exemplos indicam a existência da preocupação dos primeiros filósofos com o conhecimento e aqui tomaremos três Heráclito de Éfeso Parmênides de Eléia e Demócrito de Abdera Convite à Filosofia 138 Heráclito de Éfeso considerava a Natureza o mundo a realidade como um fluxo perpétuo o escoamento contínuo dos seres em mudança perpétua Dizia Não podemos banharnos duas vezes no mesmo rio porque as águas nunca são as mesmas e nós nunca somos os mesmos Comparava o mundo à chama de uma vela que queima sem cessar transformando a cera em fogo o fogo em fumaça e a fumaça em ar O dia se torna noite o verão se torna outono o novo fica velho o quente esfria o úmido seca tudo se transforma no seu contrário A realidade para Heráclito é a harmonia dos contrários que não cessam de se transformar uns nos outros Se tudo não cessa de se transformar perenemente como explicar que nossa percepção nos ofereça as coisas como se fossem estáveis duradouras e permanentes Com essa pergunta o filósofo indicava a diferença entre o conhecimento que nossos sentidos nos oferecem e o conhecimento que nosso pensamento alcança pois nossos sentidos nos oferecem a imagem da estabilidade e nosso pensamento alcança a verdade como mudança contínua Parmênides de Eléia colocavase na posição oposta à de Heráclito Dizia que só podemos pensar sobre aquilo que permanece sempre idêntico a si mesmo isto é que o pensamento não pode pensar sobre as coisas que são e não são que ora são de um modo e ora são de outro que são contrárias a si mesmas e contraditórias Conhecer é alcançar o idêntico imutável Nossos sentidos nos oferecem a imagem de um mundo em incessante mudança num fluxo perpétuo onde nada permanece idêntico a si mesmo o dia vira noite o inverno vira primavera o doce se torna amargo o pequeno vira grande o grande diminui o doce amarga o quente esfria o frio se aquece o líquido vira vapor ou vira sólido Como pensar o que é e o que não é ao mesmo tempo Como pensar o instável Como pensar o que se torna oposto e contrário a si mesmo Não é possível dizia Parmênides Pensar é dizer o que um ser é em sua identidade profunda e permanente Com isso afirmava o mesmo que Heráclito perceber e pensar são diferentes mas o dizia no sentido oposto ao de Heráclito isto é percebemos mudanças impensáveis e devemos pensar identidades imutáveis Demócrito de Abdera desenvolveu uma teoria sobre o Ser ou sobre a Natureza conhecida com o nome de atomismo a realidade é constituída por átomos A palavra átomo tem origem grega e significa o que não pode ser cortado ou dividido isto é a menor partícula indivisível de todas as coisas Os seres surgem por composição dos átomos transformamse por novos arranjos dos átomos e morrem por separação dos átomos Os átomos para Demócrito possuem formas e consistências diferentes redondos triangulares lisos duros moles rugosos pontiagudos etc e essas diferenças e os diferentes modos de combinação entre eles produzem a variedade de seres suas mudanças e desaparições Através de nossos órgãos dos sentidos percebemos o quente e o frio o doce e o amargo o seco e o úmido o grande e o Marilena Chauí 139 pequeno o duro e o mole sabores odores texturas o agradável e o desagradável sentimos prazer e dor porque percebemos os efeitos das combinações dos átomos que em si mesmos não possuem tais qualidades Somente o pensamento pode conhecer os átomos que são invisíveis para nossa percepção sensorial Dessa maneira Demócrito concordava com Heráclito e Parmênides em que há uma diferença entre o que conhecemos através de nossa percepção e o que conhecemos apenas pelo pensamento porém diversamente dos outros dois filósofos não considerava a percepção ilusória mas apenas um efeito da realidade sobre nós O conhecimento sensorial ou sensível é tão verdadeiro quanto aquilo que o pensamento puro alcança embora de uma verdade diferente e menos profunda ou menos relevante do que aquela alcançada pelo puro pensamento Esses três exemplos nos mostram que desde os seus começos a Filosofia preocupouse com o problema do conhecimento pois sempre esteve voltada para a questão do verdadeiro Desde o início os filósofos se deram conta de que nosso pensamento parece seguir certas leis ou regras para conhecer as coisas e que há uma diferença entre perceber e pensar Pensamos a partir do que percebemos ou pensamos negando o que percebemos O pensamento continua nega ou corrige a percepção O modo como os seres nos aparecem é o modo como os seres realmente são Sócrates e os sofistas Preocupações como essas levaram na Grécia clássica a duas atitudes filosóficas a dos sofistas e a de Sócrates com eles os problemas do conhecimento tornaramse centrais Os sofistas diante da pluralidade e do antagonismo das filosofias anteriores ou dos conflitos entre as várias ontologias concluíram que não podemos conhecer o Ser mas só podemos ter opiniões subjetivas sobre a realidade Por isso para se relacionarem com o mundo e com os outros humanos os homens devem valerse de um outro instrumento a linguagem para persuadir os outros de suas próprias idéias e opiniões A verdade é uma questão de opinião e de persuasão e a linguagem é mais importante do que a percepção e o pensamento Em contrapartida Sócrates distanciandose dos primeiros filósofos e opondose aos sofistas afirmava que a verdade pode ser conhecida mas primeiro devemos afastar as ilusões dos sentidos e as das palavras ou das opiniões e alcançar a verdade apenas pelo pensamento Os sentidos nos dão as aparências das coisas e as palavras meras opiniões sobre elas Conhecer é passar da aparência à essência da opinião ao conceito do ponto de vista individual à idéia universal de cada um dos seres e de cada um dos valores da vida moral e política Convite à Filosofia 140 Platão e Aristóteles Sócrates fez a Filosofia preocuparse com nossa possibilidade de conhecer e indagar quais as causas das ilusões dos erros e da mentira No esforço para definir as formas de conhecer e as diferenças entre o conhecimento verdadeiro e a ilusão Platão e Aristóteles introduziram na Filosofia a idéia de que existem diferentes maneiras de conhecer ou graus de conhecimento e que esses graus se distinguem pela ausência ou presença do verdadeiro pela ausência ou presença do falso Platão distingue quatro formas ou graus de conhecimento que vão do grau inferior ao superior crença opinião raciocínio e intuição intelectual Para ele os dois primeiros graus devem ser afastados da Filosofia são conhecimentos ilusórios ou das aparências como os dos prisioneiros da caverna e somente os dois últimos devem ser considerados válidos O raciocínio treina e exercita nosso pensamento preparandoo para uma purificação intelectual que lhe permitirá alcançar uma intuição das idéias ou das essências que formam a realidade ou que constituem o Ser Para Platão o primeiro exemplo do conhecimento puramente intelectual e perfeito encontrase na matemática cujas idéias nada devem aos órgãos dos sentidos e não se reduzem a meras opiniões subjetivas O conhecimento matemático seria a melhor preparação do pensamento para chegar à intuição intelectual das idéias verdadeiras que constituem a verdadeira realidade Platão diferencia e separa radicalmente duas formas de conhecimento o conhecimento sensível crença e opinião e o conhecimento intelectual raciocínio e intuição afirmando que somente o segundo alcança o Ser e a verdade O conhecimento sensível alcança a mera aparência das coisas o conhecimento intelectual alcança a essência das coisas as idéias Aristóteles distingue sete formas ou graus de conhecimento sensação percepção imaginação memória raciocínio e intuição Para ele ao contrário de Platão nosso conhecimento vai sendo formado e enriquecido por acumulação das informações trazidas por todos os graus de modo que em lugar de uma ruptura entre o conhecimento sensível e o intelectual Aristóteles estabelece uma continuidade entre eles A separação se dá entre os seis primeiros graus e o último ou a intuição que é puramente intelectual ou um ato do pensamento puro Essa separação porém não significa que os outros graus ofereçam conhecimentos ilusórios ou falsos e sim que oferecem tipos de conhecimentos diferentes que vão de um grau menor a um grau maior de verdade Em cada um deles temos acesso a um aspecto do Ser ou da realidade e na intuição intelectual temos o conhecimento pleno e total da realidade ou dos Marilena Chauí 141 princípios da realidade plena e total aquilo que Aristóteles chamava de o Ser enquanto Ser A diferença entre os seis primeiros graus e o último decorre da diferença do objeto do conhecimento isto é os seis primeiros graus conhecem objetos que se oferecem a nós na sensação na imaginação no raciocínio enquanto o sétimo lida com um objeto que só pode ser alcançado pelo pensamento puro Princípios gerais Com os filósofos gregos estabeleceramse alguns princípios gerais do conhecimento verdadeiro as fontes e as formas do conhecimento sensação percepção imaginação memória linguagem raciocínio e intuição intelectual a distinção entre o conhecimento sensível e o conhecimento intelectual o papel da linguagem no conhecimento a diferença entre opinião e saber a diferença entre aparência e essência a definição dos princípios do pensamento verdadeiro identidade não contradição terceiro excluído causalidade da forma do conhecimento verdadeiro idéias conceitos e juízos e dos procedimentos para alcançar o conhecimento verdadeiro indução dedução intuição a distinção dos campos do conhecimento verdadeiro sistematizados por Aristóteles em três ramos teorético referente aos seres que apenas podemos contemplar ou observar sem agir sobre eles ou neles interferir prático referente às ações humanas ética política e economia e técnico referente à fabricação e ao trabalho humano que pode interferir no curso da Natureza criar instrumentos ou artefatos medicina artesanato arquitetura poesia retórica etc Para os gregos a realidade é a Natureza e dela fazem parte os humanos e as instituições humanas Por sua participação na Natureza os humanos podem conhecêla pois são feitos dos mesmos elementos que ela e participam da mesma inteligência que a habita e dirige O poeta alemão Goethe criou estes versos que exprimem como os antigos concebiam o conhecimento Se os olhos não fossem solares Jamais o Sol nós veríamos Se em nós não estivesse a própria força divina Como o divino sentiríamos Convite à Filosofia 142 O intelecto humano conhece a inteligibilidade do mundo alcança a racionalidade do real e pode pensar a realidade porque nós e ela somos feitos da mesma maneira com os mesmos elementos e com a mesma inteligência Os filósofos modernos e a teoria do conhecimento Quando se diz que a teoria do conhecimento tornouse uma disciplina específica da Filosofia somente com os filósofos modernos a partir do século XVII não se pretende dizer que antes deles o problema do conhecimento não havia ocupado outros filósofos e sim que para os modernos a questão do conhecimento foi considerada anterior à da ontologia e précondição ou prérequisito para a Filosofia e as ciências Por que essa mudança de perspectiva dos gregos para os modernos Porque entre eles instalase o cristianismo trazendo problemas que os antigos filósofos desconheciam A perspectiva cristã introduziu algumas distinções que romperam com a idéia grega de uma participação direta e harmoniosa entre o nosso intelecto e a verdade nosso ser e o mundo O cristianismo fez distinção entre fé e razão verdades reveladas e verdades racionais matéria e espírito corpo e alma afirmou que o erro e a ilusão são parte da natureza humana em decorrência do caráter pervertido de nossa vontade após o pecado original Em conseqüência a Filosofia precisou enfrentar três problemas novos 1 Como sendo seres decaídos e pervertidos podemos conhecer a verdade 2 Sendo nossa natureza dupla matéria e espírito como nossa inteligência pode conhecer o que é diferente dela Isto é como seres corporais podem conhecer o incorporal Deus e como seres dotados de alma incorpórea podem conhecer o corpóreo mundo 3 Os filósofos antigos consideravam que éramos entes participantes de todas as formas de realidade por nosso corpo participamos da Natureza por nossa alma participamos da Inteligência divina O cristianismo ao introduzir a noção de pecado original introduziu a separação radical entre os humanos pervertidos e finitos e a divindade perfeita e infinita Com isso fez surgir a pergunta como o finito humano pode conhecer a verdade infinita e divina Eis porque durante toda a Idade Média a fé tornouse central para a Filosofia pois era através dela que essas perguntas eram respondidas Auxiliada pela graça divina a fé iluminava nosso intelecto e guiava nossa vontade permitindo à nossa razão o conhecimento do que está ao seu alcance ao mesmo tempo em que nossa alma recebia os mistérios da revelação A fé nos fazia saber mesmo que não pudéssemos compreender como isso era possível que pela vontade soberana de Deus era concedido à nossa alma imaterial conhecer as coisas materiais Marilena Chauí 143 Os filósofos modernos porém não aceitaram essas respostas e por esse motivo a questão do conhecimento tornouse central para eles Os gregos se surpreendiam que pudesse haver erro ilusão e mentira Como a verdade aletheia era concebida como presença e manifestação do verdadeiro aos nossos sentidos ou ao nosso intelecto isto é como presença do Ser à nossa experiência sensível ou ao puro pensamento a pergunta filosófica só podia ser Como é possível o erro ou a ilusão Ou seja como é possível ver o que não é dizer o que não é pensar o que não é Para os modernos a situação é exatamente contrária Se a verdade depende da revelação e da vontade divinas e se nosso intelecto foi pervertido pela nossa vontade pecadora como podemos conhecer a verdade Se a verdade depender da fé e se depender da fraqueza da nossa vontade como nossa razão poderá conhecêla O cristianismo particularmente com santo Agostinho trouxe a idéia de que cada ser humano é uma pessoa Essa idéia vem do Direito Romano que define a pessoa como um sujeito de direitos e de deveres Se somos pessoas somos responsáveis por nossos atos e pensamentos Nossa pessoa é nossa consciência que é nossa alma dotada de vontade imaginação memória e inteligência A vontade é livre e aprisionada num corpo passional e fraco pode mergulhar nossa alma na ilusão e no erro Estar no erro ou na verdade dependerá portanto de nós mesmos e por isso precisamos saber se podemos ou não conhecer a verdade e em que condições tal conhecimento é possível Os primeiros filósofos cristãos e os medievais afirmavam que podemos conhecer a verdade desde que a razão não contradiga a fé e se submeta a ela no tocante às verdades últimas e principais A primeira tarefa que os modernos se deram foi a de separar fé de razão considerando cada uma delas destinada a conhecimentos diferentes e sem qualquer relação entre si A segunda tarefa foi a de explicar como a alma consciência embora diferente dos corpos pode conhecêlos Consideraram que a alma pode conhecer os corpos porque os representa intelectualmente por meio das idéias e estas são imateriais como a própria alma A terceira tarefa foi a de explicar como a razão e o pensamento podem tornarse mais fortes do que a vontade e controlála para que evite o erro O problema do conhecimento tornase portanto crucial e a Filosofia precisa começar pelo exame da capacidade humana de conhecer pelo entendimento ou sujeito do conhecimento A teoria do conhecimento voltase para a relação entre o pensamento e as coisas a consciência interior e a realidade exterior o entendimento e a realidade em suma o sujeito e o objeto do conhecimento Os dois filósofos que iniciam o exame da capacidade humana para o erro e a verdade são o inglês Francis Bacon e o francês René Descartes O filósofo que Convite à Filosofia 144 propõe pela primeira vez uma teoria do conhecimento propriamente dita é o inglês John Locke A partir do século XVII portanto a teoria do conhecimento tornase uma disciplina central da Filosofia Bacon e Descartes Os gregos indagavam como o erro é possível Os modernos perguntaram como a verdade é possível Para os gregos a verdade era aletheia para os modernos veritas Em outras palavras para os modernos tratase de compreender e explicar como os relatos mentais nossas idéias correspondem ao que se passa verdadeiramente na realidade Apesar dessas diferenças os filósofos retomaram o modo de trabalhar filosoficamente proposto por Sócrates Platão e Aristóteles qual seja começar pelo exame das opiniões contrárias e ilusórias para ultrapassá las em direção à verdade Antes de abordar o conhecimento verdadeiro Bacon e Descartes examinaram exaustivamente as causas e as formas do erro inaugurando um estilo filosófico que permanecerá na Filosofia isto é a análise dos preconceitos e do senso comum Bacon elaborou uma teoria conhecida como a crítica dos ídolos a palavra ídolo vem do grego eidolon e significa imagem Descartes como já mencionamos elaborou um método de análise conhecido como dúvida metódica De acordo com Bacon existem quatro tipos de ídolos ou de imagens que formam opiniões cristalizadas e preconceitos que impedem o conhecimento da verdade 1 ídolos da caverna as opiniões que se formam em nós por erros e defeitos de nossos órgãos dos sentidos São os mais fáceis de corrigir por nosso intelecto 2 ídolos do fórum são as opiniões que se formam em nós como conseqüência da linguagem e de nossas relações com os outros São difíceis de vencer mas o intelecto tem poder sobre eles 3 ídolos do teatro são as opiniões formadas em nós em decorrência dos poderes das autoridades que nos impõem seus pontos de vista e os transformam em decretos e leis inquestionáveis Só podem ser refeitos se houver uma mudança social e política 4 ídolos da tribo são as opiniões que se formam em nós em decorrência de nossa natureza humana esses ídolos são próprios da espécie humana e só podem ser vencidos se houver uma reforma da própria natureza humana Bacon acreditava que o avanço dos conhecimentos e das técnicas as mudanças sociais e políticas e o desenvolvimento das ciências e da Filosofia propiciariam uma grande reforma do conhecimento humano que seria também uma grande reforma na vida humana Tanto assim que ao lado de suas obras filosóficas escreveu uma obra filosóficopolítica a Nova Atlântida na qual descreve e narra Marilena Chauí 145 uma sociedade ideal e perfeita nascida do conhecimento verdadeiro e do desenvolvimento das técnicas Descartes localizava a origem do erro em duas atitudes que chamou de atitudes infantis 1 a prevenção que é a facilidade com que nosso espírito se deixa levar pelas opiniões e idéias alheias sem se preocupar em verificar se são ou não verdadeiras São as opiniões que se cristalizam em nós sob a forma de preconceitos colocados em nós por pais professores livros autoridades e que escravizam nosso pensamento impedindonos de pensar e de investigar 2 a precipitação que é a facilidade e a velocidade com que nossa vontade nos faz emitir juízos sobre as coisas antes de verificarmos se nossas idéias são ou não são verdadeiras São opiniões que emitimos em conseqüência de nossa vontade ser mais forte e poderosa do que nosso intelecto Originamse no conhecimento sensível na imaginação na linguagem e na memória Como Bacon Descartes também está convencido de que é possível vencer esses efeitos graças a uma reforma do entendimento e das ciências Descartes não pensa na necessidade de mudanças sociais e políticas diferindo de Bacon nesse aspecto Essa reforma pode ser feita pelo sujeito do conhecimento se este decidir e deliberar pela necessidade de encontrar fundamentos seguros para o saber Para isso Descartes criou um procedimento a dúvida metódica pela qual o sujeito do conhecimento analisando cada um de seus conhecimentos conhece e avalia as fontes e as causas de cada um a forma e o conteúdo de cada um a falsidade e a verdade de cada um e encontra meios para livrarse de tudo quanto seja duvidoso perante o pensamento Ao mesmo tempo o pensamento oferece ao espírito um conjunto de regras que deverão ser obedecidas para que um conhecimento seja considerado verdadeiro Para Descartes o conhecimento sensível isto é sensação percepção imaginação memória e linguagem é a causa do erro e deve ser afastado O conhecimento verdadeiro é puramente intelectual parte das idéias inatas e controla por meio de regras as investigações filosóficas científicas e técnicas Locke Locke é o iniciador da teoria do conhecimento propriamente dita porque se propõe a analisar cada uma das formas de conhecimento que possuímos a origem de nossas idéias e nossos discursos a finalidade das teorias e as capacidades do sujeito cognoscente relacionadas com os objetos que ele pode conhecer Seguindo a trilha que fora aberta por Aristóteles Locke também distingue graus de conhecimento começando pelas sensações até chegar ao pensamento Comparemos o que escreveu Aristóteles no início da Metafísica e o que afirmou Locke no início do Ensaio sobre o entendimento humano Convite à Filosofia 146 Aristóteles escreveu Todos os homens têm por natureza o desejo de conhecer O prazer causado pelas sensações é a prova disso pois mesmo fora de qualquer utilidade as sensações nos agradam por si mesmas e mais do que todas as outras as sensações visuais Locke afirmou Visto que o entendimento situa o homem acima dos outros seres sensíveis e dálhe toda vantagem e todo domínio que tem sobre eles seu estudo consiste certamente num tópico que por sua nobreza é merecedor de nosso trabalho de investigálo O entendimento como o olho que nos faz ver e perceber todas as outras coisas não se observa a si mesmo requer arte e esforço situálo à distância e fazêlo seu próprio objeto Assim como Aristóteles diferia de Platão Locke difere de Descartes Platão e Descartes afastam a experiência sensível ou o conhecimento sensível do conhecimento verdadeiro que é puramente intelectual Aristóteles e Locke consideram que o conhecimento se realiza por graus contínuos partindo da sensação até chegar às idéias Essa diferença de perspectiva estabelece as duas grandes orientações da teoria do conhecimento conhecidas como racionalismo e empirismo Para o racionalismo a fonte do conhecimento verdadeiro é a razão operando por si mesma sem o auxílio da experiência sensível e controlando a própria experiência sensível Para o empirismo a fonte de todo e qualquer conhecimento é a experiência sensível responsável pelas idéias da razão e controlando o trabalho da própria razão Essas diferenças porém não impedem que haja um elemento comum a todos os filósofos a partir da modernidade qual seja tomar o entendimento humano como objeto da investigação filosófica Tornar o entendimento objeto para si próprio tornar o sujeito do conhecimento objeto de conhecimento para si mesmo é a grande tarefa que a modernidade filosófica inaugura ao desenvolver a teoria do conhecimento Como se trata da volta do conhecimento sobre si mesmo para conhecerse ou do sujeito do conhecimento colocandose como objeto para si mesmo a teoria do conhecimento é a reflexão filosófica A consciência o eu a pessoa o cidadão e o sujeito A teoria do conhecimento no seu todo realizase como reflexão do entendimento e baseiase num pressuposto fundamental o de que somos seres racionais conscientes Marilena Chauí 147 O que se entende por consciência A capacidade humana para conhecer para saber que conhece e para saber o que sabe que conhece A consciência é um conhecimento das coisas e de si e um conhecimento desse conhecimento reflexão Do ponto de vista psicológico a consciência é o sentimento de nossa própria identidade é o eu um fluxo temporal de estados corporais e mentais que retém o passado na memória percebe o presente pela atenção e espera o futuro pela imaginação e pelo pensamento O eu é o centro ou a unidade de todos esses estados psíquicos A consciência psicológica ou o eu é formada por nossas vivências isto é pela maneira como sentimos e compreendemos o que se passa em nosso corpo e no mundo que nos rodeia assim como o que se passa em nosso interior É a maneira individual e própria com que cada um de nós percebe imagina lembra opina deseja age ama e odeia sente prazer e dor toma posição diante das coisas e dos outros decide sentese feliz ou infeliz Do ponto de vista ético e moral a consciência é a espontaneidade livre e racional para escolher deliberar e agir conforme à liberdade aos direitos alheios e ao dever É a pessoa dotada de vontade livre e de responsabilidade É a capacidade para compreender e interpretar sua situação e sua condição física mental social cultural histórica viver na companhia dos outros segundo as normas e os valores morais definidos por sua sociedade agir tendo em vista fins escolhidos por deliberação e decisão realizar as virtudes e quando necessário contraporse e oporse aos valores estabelecidos em nome de outros considerados mais adequados à liberdade e à responsabilidade Do ponto de vista político a consciência é o cidadão isto é tanto o indivíduo situado no tecido das relações sociais como portador de direitos e deveres relacionandose com a esfera pública do poder e das leis quanto o membro de uma classe social definido por sua situação e posição nessa classe portador e defensor de interesses específicos de seu grupo ou de sua classe relacionandose com a esfera pública do poder e das leis A consciência moral a pessoa e a consciência política o cidadão formamse pelas relações entre as vivências do eu e os valores e as instituições de sua sociedade ou de sua cultura São as maneiras pelas quais nos relacionamos com os outros por meio de comportamentos e de práticas determinados pelos códigos morais que definem deveres obrigações virtudes e políticos que definem direitos deveres e instituições coletivas públicas a partir do modo como uma cultura e uma sociedade determinadas definem o bem e o mal o justo e o injusto o legítimo e o ilegítimo o legal e o ilegal o privado e o público O eu é uma vivência e uma experiência que se realiza por comportamentos a pessoa e o cidadão são a consciência como agente moral e político como práxis Convite à Filosofia 148 Do ponto de vista da teoria do conhecimento a consciência é uma atividade sensível e intelectual dotada do poder de análise síntese e representação É o sujeito Reconhecese como diferente dos objetos cria e descobre significações institui sentidos elabora conceitos idéias juízos e teorias É dotado de capacidade para conhecerse a si mesmo no ato do conhecimento ou seja é capaz de reflexão É saber de si e saber sobre o mundo manifestandose como sujeito percebedor imaginante memorioso falante e pensante É o entendimento propriamente dito A consciência reflexiva ou o sujeito do conhecimento formase como atividade de análise e síntese de representação e de significação voltadas para a explicação descrição e interpretação da realidade e das outras três esferas da vida consciente vida psíquica moral e política isto é da posição do mundo natural e cultural e de si mesma como objetos de conhecimento Apóiase em métodos de conhecer e busca a verdade ou o verdadeiro É o aspecto intelectual e teórico da consciência Ao contrário do eu o sujeito do conhecimento não é uma vivência individual mas aspira à universalidade ou seja à capacidade de conhecimento que seja idêntica em todos os seres humanos e com validade para todos os seres humanos em todos os tempos e lugares Assim por exemplo João pode gostar de geometria e Paula pode detestar essa matéria mas o que ambos sentem não afetam os conceitos geométricos nem os procedimentos matemáticos cujo sentido e valor independem das vivências de ambos e são o objeto construído ou descoberto pelo sujeito do conhecimento Maria pode não saber que existe a física quântica e pode ao ser informada sobre ela não acreditar nela e não gostar da idéia de que seu corpo seja apenas movimento infinito de partículas invisíveis Isso porém não afeta a validade e o sentido da ciência quântica descoberta e conhecida pelo sujeito Luíza tem lembranças agradáveis quando vê rosas amarelas Antônio porém tem péssimas lembranças quando as vê Porém ver flores e cores perceber qualidades senti las afetivamente não depende de que queiramos ou não vêlas como não depende do nosso eu percebêlas espacialmente ou temporalmente A percepção de cores de seres espaciais e temporais se realiza em mim não apenas segundo minhas vivências psicológicas individuais mas também segundo leis normas princípios de estruturação e organização das coisas que são as mesmas para todos os sujeitos percebedores É com essa estruturação e organização que lida o sujeito A vivência é singular minha O conhecimento é universal nosso de todos os humanos Eu pessoa cidadão e sujeito constituem a consciência como subjetividade ativa sede da razão e do pensamento capaz de identidade consigo mesma virtude direitos e verdade Marilena Chauí 149 Subjetividade e graus de consciência Embora a subjetividade se manifeste plenamente como uma atividade que sabe de si mesma isso não significa que a consciência esteja sempre alerta e atenta Quando por exemplo recebemos uma anestesia geral vamos perdendo gradualmente a consciência deixamos de ter consciência de ver sentir lembrar Dependendo da intensidade da dose aplicada podemos perder todas as formas de consciência menos por exemplo a auditiva No entanto mesmo a consciência auditiva nessa situação é fluida não parece estar referida a um eu Quando despertamos à noite de um sono profundo e num local que não é nosso quarto levamos um certo tempo até sabermos quem somos e onde estamos Quando devaneamos ou divagamos ou sonhamos de olhos abertos perdemos a consciência de tudo quanto está à nossa volta e muitas vezes quando voltamos a nós temos um braço ou uma perna adormecidos uma queimadura na mão o rosto queimado de sol ou o corpo molhado de chuva sem que tivéssemos consciência do que se passava conosco Situações como essas indicam que há graus de consciência De um modo geral distinguemse os seguintes graus de consciência consciência passiva aquela na qual temos uma vaga e uma confusa percepção de nós mesmos e do que se passa à nossa volta como no devaneio no momento que precede o sono ou o despertar na anestesia e sobretudo quando somos muito crianças ou muito idosos consciência vivida mas não reflexiva é nossa consciência efetiva que tem a peculiaridade de ser egocêntrica isto é de perceber os outros e as coisas apenas a partir de nossos sentimentos com relação a eles como por exemplo a criança que bate numa mesa ao tropeçar nela julgando que a mesa fez de propósito para machucála Nesse grau de consciência não conseguimos separar o eu e o outro o eu e as coisas É típico por exemplo das pessoas apaixonadas para as quais o mundo só existe a partir dos seus sentimentos de amor ódio cólera alegria tristeza etc consciência ativa e reflexiva aquela que reconhece a diferença entre o interior e o exterior entre si e os outros entre si e as coisas Esse grau de consciência é o que permite a existência da consciência em suas quatro modalidades isto é eu pessoa cidadão e sujeito Esse último grau de consciência nas suas quatro modalidades é definido pela fenomenologia como consciência intencional ou intencionalidade isto é como consciência de Toda a consciência diz a fenomenologia é sempre consciência de alguma coisa visa sempre a alguma coisa de tal maneira que perceber é sempre perceber alguma coisa imaginar é sempre imaginar alguma coisa lembrar é sempre lembrar alguma coisa dizer é sempre dizer alguma coisa pensar é sempre pensar alguma coisa A consciência realiza atos perceber Convite à Filosofia 150 lembrar imaginar falar refletir pensar e visa a conteúdos ou significações o percebido o lembrado o imaginado o falado o refletido o pensado O sujeito do conhecimento é aquele que reflete sobre as relações entre atos e significações e conhece a estrutura formada por eles a percepção a imaginação a memória a linguagem o pensamento Marilena Chauí 151 Capítulo 2 A percepção Sensação e percepção O conhecimento sensível também é chamado de conhecimento empírico ou experiência sensível e suas formas principais são a sensação e a percepção A tradição filosófica até o século XX distinguia sensação de percepção pelo grau de complexidade A sensação é o que nos dá as qualidades exteriores e interiores isto é as qualidades dos objetos e os efeitos internos dessas qualidades sobre nós Na sensação vemos tocamos sentimos ouvimos qualidades puras e diretas cores odores sabores texturas Sentimos o quente e o frio o doce e o amargo o liso e o rugoso o vermelho e o verde etc Sentir é algo ambíguo pois o sensível é ao mesmo tempo a qualidade que está no objeto e o sentimento interno que nosso corpo possui das qualidades sentidas Por isso a tradição costuma dizer que a sensação é uma reação corporal imediata a um estímulo ou excitação externa sem que seja possível distinguir no ato da sensação o estímulo exterior e o sentimento interior Essa distinção só poderia ser feita num laboratório com análise de nossa anatomia fisiologia e sistema nervoso Quando examinamos a sensação notamos que ninguém diz que sente o quente vê o azul e engole o amargo Pelo contrário dizemos que a água está quente que o céu é azul e que o alimento está amargo Isto é sentimos as qualidades como integrantes de seres mais amplos e complexos do que a sensação isolada de cada qualidade Por isso se diz que na realidade só temos sensações sob a forma de percepções isto é de sínteses de sensações Empirismo e intelectualismo Duas grandes concepções sobre a sensação e a percepção fazem parte da tradição filosófica a empirista e a intelectualista Para os empiristas a sensação e a percepção dependem das coisas exteriores isto é são causadas por estímulos externos que agem sobre nossos sentidos e sobre o nosso sistema nervoso recebendo uma resposta que parte de nosso cérebro volta a percorrer nosso sistema nervoso e chega aos nossos sentidos sob a forma de uma sensação uma cor um sabor um odor ou de uma associação de sensações numa percepção vejo um objeto vermelho sinto o sabor de uma carne sinto o cheiro da rosa etc Convite à Filosofia 152 A sensação seria pontual isto é um ponto do objeto externo toca um de meus órgãos dos sentidos e faz um percurso no interior do meu corpo indo ao cérebro e voltando às extremidades sensoriais Cada sensação é independente das outras e cabe à percepção unificálas e organizálas numa síntese A causa do conhecimento sensível é a coisa externa de modo que a sensação e a percepção são efeitos passivos de uma atividade dos corpos exteriores sobre o nosso corpo O conhecimento é obtido por soma e associação das sensações na percepção e tal soma e associação dependem da freqüência da repetição e da sucessão dos estímulos externos e de nossos hábitos Para os intelectualistas a sensação e a percepção dependem do sujeito do conhecimento e a coisa exterior é apenas a ocasião para que tenhamos a sensação ou a percepção Nesse caso o sujeito é ativo e a coisa externa é passiva ou seja sentir e perceber são fenômenos que dependem da capacidade do sujeito para decompor um objeto em suas qualidades simples a sensação e de recompor o objeto como um todo dandolhe organização e interpretação a percepção A passagem da sensação para a percepção é neste caso um ato realizado pelo intelecto do sujeito do conhecimento que confere organização e sentido às sensações Não haveria algo propriamente chamado percepção mas sensações dispersas ou elementares sua organização ou síntese seria feita pela inteligência e receberia o nome de percepção Assim na sensação sentimos qualidades pontuais dispersas elementares e na percepção sabemos que estamos tendo sensação de um objeto que possui as qualidades sentidas por nós Como disse um filósofo perceber é saber que percebo ver é pensamento de ver ouvir é pensamento de ouvir e assim por diante Para os empiristas a sensação conduz à percepção como uma síntese passiva isto é que depende do objeto exterior Para os intelectualistas a sensação conduz à percepção como síntese ativa isto é que depende da atividade do entendimento Para os empiristas as idéias são provenientes das percepções Para os intelectualistas a sensação e a percepção são sempre confusas e devem ser abandonadas quando o pensamento formula as idéias puras Psicologia da forma e fenomenologia Em nosso século porém a Filosofia alterou bastante essas duas tradições e as superou numa nova concepção do conhecimento sensível As mudanças foram trazidas pelo fenomenologia de Husserl e pela Psicologia da Forma ou teoria da Gestalt Gestalt é uma palavra alemã que significa configuração figura estruturada forma Ambas mostraram contra o empirismo que a sensação não é reflexo pontual ou uma resposta físicofisiológica a um estímulo externo também pontual contra o intelectualismo que a percepção não é uma atividade sintética feita pelo pensamento sobre as sensações Marilena Chauí 153 contra o empirismo e o intelectualismo que não há diferença entre sensação e percepção Empiristas e intelectualistas apesar de suas diferenças concordavam num aspecto julgavam que a sensação era uma relação de causa e efeito entre pontos das coisas e pontos de nosso corpo As coisas seriam como mosaicos de qualidades isoladas justapostas e nosso aparelho sensorial órgãos dos sentidos sistema nervoso e cérebro também seria um mosaico de receptores isolados e justapostos Por isso a percepção era considerada a atividade que somava ou juntava as partes numa síntese que seria o objeto percebido Fenomenologia e Gestalt porém mostram que não há diferença entre sensação e percepção porque nunca temos sensações parciais pontuais ou elementares isto é sensações separadas de cada qualidade que depois o espírito juntaria e organizaria como percepção de um único objeto Sentimos e percebemos formas isto é totalidades estruturadas dotadas de sentido ou de significação Assim por exemplo ter a sensação e a percepção de um cavalo é sentirperceber de uma só vez sua cor ou cores suas partes sua cara seu lombo e seu rabo seu porte seu tamanho seu cheiro seus ruídos seus movimentos O cavalo percebido não é um feixe de qualidades isoladas que enviam estímulos aos meus órgãos dos sentidos como suporia o empirista nem um objeto indeterminado esperando que meu pensamento diga às minhas sensações Este objeto é um cavalo como suporia o intelectualista O cavalopercebido não é um mosaico de estímulos exteriores empirismo nem uma idéia intelectualismo mas é exatamente um cavalopercebido As experiências conhecidas como figuraefundo mostram que não temos sensações parciais mas percepções globais de uma forma ou de uma estrutura As experiências com formas incompletas mostram que a percepção sempre percebe uma totalidade completa o que seria impossível se tivéssemos sensações elementares que o pensamento unificaria numa percepção Se a percepção fosse uma soma de sensações parciais e se cada sensação dependesse dos estímulos diretos que as coisas produzissem em nossos órgãos dos sentidos então teríamos que ver como sendo de mesmo tamanho duas linhas que são objetivamente de mesmo tamanho Mas a experiência mostra que nós as percebemos como formas ou totalidades diferentes O que é a percepção A percepção possui as seguintes características é o conhecimento sensorial de configurações ou de totalidades organizadas e dotadas de sentido e não uma soma de sensações elementares sensação e percepção são a mesma coisa Convite à Filosofia 154 é o conhecimento de um sujeito corporal isto é uma vivência corporal de modo que a situação de nosso corpo e as condições de nosso corpo são tão importantes quanto a situação e as condições dos objetos percebidos é sempre uma experiência dotada de significação isto é o percebido é dotado de sentido e tem sentido em nossa história de vida fazendo parte de nosso mundo e de nossas vivências o próprio mundo exterior não é uma coleção ou uma soma de coisas isoladas mas está organizado em formas e estruturas complexas dotadas de sentido Uma paisagem por exemplo não é uma soma de coisas que estão apenas próximas umas das outras mas é a percepção de coisas que formam um todo complexo e com sentido o vale só é vale por causa da montanha cuja altura e distância só podem ser avaliadas porque há o céu as árvores um rio e um caminho o verde do vale só pode ser percebido por contraste com o cinza ou o dourado da montanha o azul do céu só pode ser percebido por causa do verde da vegetação e o marrom da terra essa paisagem será um espetáculo de contemplação se o sujeito da percepção estiver repousado mas será um objeto digno de ser visto por outros se o sujeito da percepção for um pintor ou será um obstáculo se o sujeito da percepção for um viajante que descobre que precisa ultrapassar a montanha Em resumo na percepção o mundo possui forma e sentido e ambos são inseparáveis do sujeito da percepção a percepção é assim uma relação do sujeito com o mundo exterior e não uma reação físicofisiológica de um sujeito físicofisiológico a um conjunto de estímulos externos como suporia o empirista nem uma idéia formulada pelo sujeito como suporia o intelectualista A relação dá sentido ao percebido e ao percebedor e um não existe sem o outro O mundo percebido é qualitativo significativo estruturado e estamos nele como sujeitos ativos isto é damos às coisas percebidas novos sentidos e novos valores pois as coisas fazem parte de nossas vidas e interagimos com o mundo o mundo percebido é um mundo intercorporal isto é as relações se estabelecem entre nosso corpo os corpos dos outros sujeitos e os corpos das coisas de modo que a percepção é uma forma de comunicação que estabelecemos com os outros e com as coisas a percepção depende das coisas e de nosso corpo depende do mundo e de nossos sentidos depende do exterior e do interior e por isso é mais adequado falar em campo perceptivo para indicar que se trata de uma relação complexa entre o corposujeito e os corposobjetos num campo de significações visuais tácteis olfativas gustativas sonoras motrizes espaciais temporais e lingüísticas A percepção é uma conduta vital uma comunicação uma interpretação e uma valoração do mundo a partir da estrutura de relações entre nosso corpo e o mundo Marilena Chauí 155 a percepção envolve toda nossa personalidade nossa história pessoal nossa afetividade nossos desejos e paixões isto é a percepção é uma maneira fundamental de os seres humanos estarem no mundo Percebemos as coisas e os outros de modo positivo ou negativo percebemos as coisas como instrumentos ou como valores reagimos positiva ou negativamente a cores odores sabores texturas distâncias tamanhos O mundo é percebido qualitativamente efetivamente e valorativamente Quando percebemos uma outra pessoa por exemplo não temos uma coleção de sensações que nos dariam as partes isoladas de seu corpo mas a percebemos como tendo uma fisionomia agradável ou desagradável bela ou feia serena ou agitada sadia ou doentia sedutora ou repelente e por essa percepção definimos nosso modo de relação com ela a percepção envolve nossa vida social isto é os significados e os valores das coisas percebidas decorrem de nossa sociedade e do modo como nela as coisas e as pessoas recebem sentido valor ou função Assim objetos que para nossa sociedade não causam temor podem causar numa outra sociedade Por exemplo em nossa sociedade um espelho ou uma fotografia são objetos funcionais ou artísticos meios de nos vermos em imagem no entanto para muitas sociedades indígenas ver a imagem de alguém ou a sua própria é ver a alma desse alguém e fazêlo perder a identidade e a vida de modo que a percepção de um espelho ou de uma fotografia pode ser uma percepção apavorante a percepção nos oferece um acesso ao mundo dos objetos práticos e instrumentais isto é nos orienta para a ação cotidiana e para as ações técnicas mais simples a percepção é uma forma de conhecimento e de ação fundamental para as artes que são capazes de criar um outro mundo pela simples alteração que provoca em nossa percepção cotidiana e costumeira Basta lembrar aqui o texto de Clarice Lispector sobre o inseto e sobre o ovo unidade 3 capítulo 8 a percepção não é uma idéia confusa ou inferior como julgava a tradição mas uma maneira de ter idéias sensíveis ou significações perceptivas a percepção está sujeita a uma forma especial de erro a ilusão como vimos no exemplo dos versos de Mário de Andrade sobre a garoa de São Paulo a confusão do branco e do negro do pobre e do rico Percepção e teoria do conhecimento Do ponto de vista das teorias do conhecimento há três concepções principais sobre o papel da percepção 1 nas teorias empiristas a percepção é a única fonte de conhecimento estando na origem das idéias abstratas formuladas pelo pensamento Hume por exemplo afirma que todo conhecimento é percepção e que existem dois tipos de percepção as impressões sensações emoções e paixões e as idéias imagens das impressões Convite à Filosofia 156 2 nas teorias racionalistas intelectualistas a percepção é considerada não muito confiável para o conhecimento porque depende das condições particulares de quem percebe e está propensa a ilusões pois freqüentemente a imagem percebida não corresponde à realidade do objeto Vemos o Sol menor do que a Terra mas ele realmente é maior do que ela Descartes menciona o modo como percebemos um bastão mergulhado na água embora o bastão seja reto e contínuo percebemos a parte mergulhada como se o bastão estivesse entortado e como se houvesse descontinuidade entre a parte que está fora da água e a parte mergulhada O bastão é percebido como distorcido embora na realidade não esteja deformado Para a concepção racionalista intelectualista o pensamento filosófico e científico deve abandonar os dados da percepção e formular as idéias em relação com o percebido tratase de explicar e corrigir a percepção 3 na teoria fenomenológica do conhecimento a percepção é considerada originária e parte principal do conhecimento humano mas com uma estrutura diferente do pensamento abstrato que opera com idéias Qual a diferença A percepção sempre se realiza por perfis ou perspectivas isto é nunca podemos perceber de uma só vez um objeto pois somente percebemos algumas de suas faces de cada vez no pensamento nosso intelecto compreende uma idéia de uma só vez e por inteiro isto é captamos a totalidade do sentido de uma idéia de uma só vez sem precisar examinar cada uma de suas faces Na percepção nunca poderemos ver de uma só vez as seis faces de um cubo pois perceber um cubo significa justamente nunca vêlo de uma só vez por inteiro Ao contrário quando o geômetra pensa o cubo ele o pensa como figura de seis lados e para seu pensamento as seis faces estão todas presentes simultaneamente Quanto ao problema da ilusão a fenomenologia considera que ela não existe Se tomarmos por exemplo o verso de Mário de Andrade diremos que perceber uma pessoa sob a garoa ou a neblina de São Paulo é percebêla como negra de longe e branca de perto ou como branca de longe e negra de perto são quatro percepções diferentes e que são como são porque perceber é sempre perceber um campo de objetos que permite corrigir uma percepção por meio de outra Podemos compreender mais claramente a diferença entre as três concepções através de um exemplo oferecido pelo filósofo MerleauPonty Olhemos para uma piscina ladrilhada de verdeclaro e rodeada por um jardim O que percebemos O empirista dirá que recebemos estímulos de todos os elementos que estão em nosso campo visual cores sons reflexos que esses estímulos isolados são levados a nosso cérebro onde causam uma impressão e que a consciência dessa impressão é a percepção como soma dos estímulos Marilena Chauí 157 O intelectualista nos dirá que vemos qualidades sensíveis líquido cor reflexos de uma realidade distorcida vemos árvores sobre a superfície das águas embora as árvores não estejam ali vemos os ladrilhos do fundo como se fossem curvos côncavos convexos embora sejam quadrados e lisos vemos a água colorida quando na realidade ela não tem cor Vemos portanto algo que nosso intelecto ou nosso pensamento nos avisa que não corresponde à realidade O fenomenólogo porém mostrará que perceberumapiscinaladrilhada comáguaerodeadadeárvores é perceber exatamente isso os reflexos das árvores na água as nuances de cor no líquido a movimentação dos ladrilhos Não estamos recebendo estímulos que formarão impressões no cérebro estamos percebendo uma forma organizada ou uma estrutura Não estamos tendo ilusões visuais vendo ladrilhos apesar da água que os deformaria nem estamos vendo a água apesar dos reflexos das árvores que a deformariam Estamos vendo e percebendo ladrilhosdeumapiscinacomágua portanto formas móveis no chão e nas paredes da piscina estamos vendo ou percebendo asárvoresàvoltadeumapiscinacomágua portanto refletindose nas águas e agitandose aos ventos estamos vendo ou percebendo a águade umapiscina portanto agitando os ladrilhos recebendo reflexos mudando de cor e de tonalidade Isso é perceber A percepção se realiza num campo perceptivo e o percebido não está deformado por nada pois ver não é fazer geometria nem física Não há ilusões na percepção perceber é diferente de pensar e não uma forma inferior e deformada do pensamento A percepção não é causada pelos objetos sobre nós nem é causada pelo nosso corpo sobre as coisas é a relação entre elas e nós e nós e elas uma relação possível porque elas são corpos e nós também somos corporais Convite à Filosofia 158 Capítulo 3 A memória Lembrança e identidade do Eu Todos conhecem os belos versos do poeta Casimiro de Abreu em Meus oito anos Oh que saudades que tenho Da aurora da minha vida Da minha infância querida Que os anos não trazem mais Que amor que sonhos que flores Naquelas tardes fagueiras À sombra das bananeiras Debaixo dos laranjais Ou estes outros Casimiro de Abreu em Deus e o mar Eu me lembro Eu me lembro Era pequeno e brincava na praia O mar bramia E erguendo o dorso altivo sacudia A branca espuma para o céu sereno A memória é uma evocação do passado É a capacidade humana para reter e guardar o tempo que se foi salvandoo da perda total A lembrança conserva aquilo que se foi e não retornará jamais É nossa primeira e mais fundamental experiência do tempo e uma das obras mais significativas da literatura universal contemporânea é dedicada a ela Em busca do tempo perdido do escritor francês Marcel Proust Para Proust como para alguns filósofos a memória é a garantia de nossa própria identidade o podermos dizer eu reunindo tudo o que fomos e fizemos a tudo que somos e fazemos Em sua obra Confissões santo Agostinho escreve Chego aos campos e vastos palácios da memória onde estão tesouros de inumeráveis imagens trazidas por percepções de toda espécie Ali repousa tudo o que a ela foi entregue que o esquecimento ainda não absorveu nem sepultou Aí estão presentes o céu a terra e o mar com todos os pormenores que neles pude perceber pelos sentidos exceto os que esqueci É lá que me encontro a mim mesmo e recordo das ações que fiz o seu tempo lugar e até os sentimentos que me dominavam ao Marilena Chauí 159 praticálas É lá que estão também todos os conhecimentos que recordo aprendidos pela experiência própria ou pela crença no testemunho de outrem Como consciência da diferença temporal passado presente e futuro a memória é uma forma de percepção interna chamada introspecção cujo objeto é interior ao sujeito do conhecimento as coisas passadas lembradas o próprio passado do sujeito e o passado relatado ou registrado por outros em narrativas orais e escritas Além dessa dimensão pessoal e introspectiva interior da memória é preciso mencionar sua dimensão coletiva ou social isto é a memória objetiva gravada nos monumentos documentos e relatos da História de uma sociedade Os antigos e a memória Os antigos gregos consideravam a memória uma identidade sobrenatural ou divina era a deusa Mnemosyne mãe das Musas que protegem as Artes e a História A deusa Memória dava aos poetas e adivinhos o poder de voltar ao passado e de lembrálo para a coletividade Tinha poder de conferir imortalidade aos mortais pois quando o artista ou o historiador registram em suas obras a fisionomia os gestos os atos os feitos e as palavras de um humano este nunca será esquecido e por isso tornandose memorável não morrerá jamais Os historiadores antigos colocavam suas obras sob a proteção das Musas escreviam para que não fossem perdidos os feitos memoráveis dos humanos e para que servissem de exemplo às gerações futuras Dizia Cícero A História é mestra da vida A memória é pois inseparável do sentimento do tempo ou da percepçãoexperiência do tempo como algo que escoa ou passa A importância da memória não se limitava à poesia e à História mas também aparecia com muita força e clareza na medicina dos antigos Um aforismo atribuído a Hipócrates o pai da medicina dizia A vida é breve a arte é longa a ocasião escapa o empirismo é perigoso e o raciocínio é difícil É preciso não só fazer o que convém mas também ser ajudado pelo paciente Qual a ajuda trazida pelo paciente para a arte médica Sua memória O médico antigo praticava com o paciente a anamnese isto é a reminiscência Por meio de perguntas o médico fazia o paciente lembrarse de todas as circunstâncias que antecederam o momento em que ficara doente e as circunstâncias em que adoecera pois essas lembranças auxiliavam o médico a fazer o diagnóstico e a receitar remédios cirurgias e dietas que correspondiam à necessidade específica da cura do paciente Convite à Filosofia 160 Além de imortalizar os mortais e de auxiliar a arte médica para os antigos a memória ainda possuía outra função Os antigos sobretudo os romanos desenvolveram uma arte chamada eloqüência ou retórica destinada a persuadir e a criar emoções nos ouvintes através do uso belo e eficaz da linguagem No aprendizado dessa arte consideravam a memória indispensável não só porque o bom orador poeta político advogado era aquele que falava ou pronunciava longos discursos sem ler e sem se apoiar em anotações como também porque o bom orador era aquele que aprendia de cor as regras fundamentais da eloqüência ou oratória Assim a memória era considerada essencial para o aprendizado e os mestres de retórica criaram métodos de memorização ou memória artificial que constituíam a Arte da Memória Esta era parte central do ensino e do aprendizado de oratória tornandose depois uma arte usada por outras disciplinas de ensino e aprendizagem Os romanos julgavam portanto que além da memória natural os seres humanos são capazes de desenvolver uma outra memória que amplia e auxilia a memória espontânea e justificavam a Arte da Memória narrando uma lenda sobre o criador da retórica o poeta grego Simônides de Céos Conta a lenda que Simônides foi convidado pelo rei de Céos a fazer um poema em sua homenagem O poeta dividiu o poema em duas partes na primeira louvava o rei e na segunda os deuses Castor e Polux O rei ofereceu um banquete no qual Simônides leu o poema e pediu o pagamento Como resposta o rei lhe disse que como o poema também estava dedicado aos deuses ele pagaria metade e que Simônides fosse pedir a outra metade a Castor e Polux Pouco depois um mensageiro aproximouse de Simônides dizendolhe que dois jovens o procuravam do lado de fora do palácio Simônides saiu para encontrá los mas não encontrou ninguém Enquanto estava no jardim o palácio desabou e todos morreram Castor e Polux os dois jovens que fizeram Simônides sair do palácio salvando o poeta pagaram o poema As famílias dos demais convidados desesperaramse porque não conseguiam reconhecer seus mortos Simônides porém lembrava dos lugares e das roupas de cada um e pôde ajudar na identificação dos mortos A lembrança do palácio e dos lugares dos convidados levou à criação da Arte da Memória como um palácio com lugares nos quais colocamos imagens e palavras e passeando por ele ordenadamente recordamos as coisas as pessoas os fatos e as palavras necessárias para escrever e dizer discursos poesias peças teatrais É por isso que todo o texto de santo Agostinho que citamos se refere aos palácios da memória A idéia de memória artificial existe até hoje quando nos referimos aos computadores e falamos de sua memória A diferença entre a memória artificial dos antigos e a atual consiste no fato de que a deles era desenvolvida Marilena Chauí 161 como uma capacidade do sujeito do conhecimento humano enquanto a atual deposita a memória nas máquinas e quase nos despoja da necessidade de termos memória Em nossa sociedade a memória é valorizada e desvalorizada É valorizada com a multiplicação dos meios de registro e gravação dos fatos acontecimentos e pessoas computadores filmes vídeos fitas cassetes livros e das instituições que os preservam bibliotecas museus arquivos É desvalorizada porque não é considerada uma atividade essencial para o conhecimento podemos usar máquinas no lugar de nossa própria memória e porque a publicidade e a propaganda nos fazem preferir o novo o moderno a última moda pois a indústria e o comércio só terão lucros se não conservarmos as coisas e quisermos sempre o novo A desvalorização da memória também aparece na proliferação de objetos descartáveis na maneira como a indústria da construção civil destrói cidades inteiras para tornálas modernas destruindo a memória e a História dessas cidades A desvalorização da memória aparece por fim no descaso pelos idosos considerados inúteis e inservíveis em nossa sociedade ao contrário de outras em que os idosos são portadores de todo o saber da coletividade respeitados e admirados por todos O que é a memória A memória é uma atualização do passado ou a presentificação do passado e é também registro do presente para que permaneça como lembrança Alguns estudiosos julgaram que a memória seria um fato puramente biológico isto é um modo de funcionamento das células do cérebro que registram e gravam percepções e idéias gestos e palavras Para esses estudiosos a memória se reduziria portanto ao registro cerebral ou à gravação automática pelo cérebro de fatos acontecimentos coisas pessoas e relatos Essa teoria porém não se sustenta Em primeiro lugar porque se a memória fosse mero registro cerebral de fatos e coisas passados não se poderia explicar o fenômeno da lembrança isto é que selecionamos e escolhemos o que lembramos e que a lembrança tem como a percepção aspectos afetivos sentimentais valorativos há lembranças alegres e tristes há saudade há arrependimento e remorso Em segundo lugar também não se poderia explicar o esquecimento pois se tudo está espontânea e automaticamente registrado e gravado em nosso cérebro não poderíamos esquecer coisa alguma nem poderíamos ter dificuldade para lembrar certas coisas e facilidade para recordar outras tantas Isso não significa que não haja um componente biológico fisiológico ou cerebral na memória pois os estudos científicos mostram não só as zonas do cérebro responsáveis pela memória como também os estudos bioquímicos mostram o papel de algumas substâncias químicas na produção e conservação da memória O que estamos dizendo é que os aspectos biológicos e químicos da memória não Convite à Filosofia 162 explicam o fenômeno no seu todo isto é como forma de conhecimento e de componente afetivo de nossas vidas Podemos dizer que em nosso processo de memorização entram componentes objetivos e componentes subjetivos para formar as lembranças São componentes objetivos as atividades físicofisiológicas e químicas de gravação e registro cerebral das lembranças bem como a estrutura do objeto que será lembrado Assim por exemplo a psicologia da Gestalt mostra que temos maior facilidade para memorizar uma melodia do que sons isolados ou dispersos que memorizamos mais facilmente figuras regulares círculo quadrado triângulo etc do que um conjunto disperso de linhas São componentes subjetivos a importância do fato e da coisa para nós o significado emocional ou afetivo do fato ou da coisa para nós o modo como alguma coisa nos impressionou e ficou gravada em nós a necessidade para nossa vida prática ou para o desenvolvimento de nossos conhecimentos o prazer ou dor que um fato ou alguma coisa produziram em nós etc Em outras palavras mesmo que nosso cérebro grave e registre tudo não é isso a memória e sim o que foi gravado com um sentido ou com um significado para nós e para os outros Os filósofos e a memória O filósofo francês Bergson distingue dois tipos de memória 1 a memóriahábito e 2 a memória pura ou memória propriamente dita A memóriahábito é um automatismo psíquico que adquirimos pela repetição contínua de alguma coisa como por exemplo quando aprendemos alguma coisa de cor A memória é uma simples fixação mental conseguida à força de repetir a mesma coisa Aqui basta iniciar um gesto ou pronunciar uma palavra para que tudo seja lembrado automaticamente recito uma lição repito movimentos de dança freio o carro ao sinal vermelho piso na embreagem para mudar a marcha do carro risco uma palavra errada que escrevi giro a chave para a direita ou para a esquerda para abrir uma porta etc Todos esses gestos e essas palavras são realizados por nós quase sem pensarmos neles ou até mesmo sem pensarmos neles O automatismo psíquico se torna um automatismo corporal A memória pura ou a memória propriamente dita é aquela que não precisa da repetição para conservar uma lembrança Pelo contrário é aquela que guarda alguma coisa fato ou palavra únicos irrepetíveis e mantidos por nós por seu significado especial afetivo valorativo ou de conhecimento É por isso que guardamos na memória aquilo que possui maior significação ou maior impacto em nossas vidas mesmo que seja um momento fugaz curtíssimo e que jamais se repetiu ou se repetirá É por isso também que muitas vezes não guardamos na memória um fato inteiro ou uma coisa inteira mas um pequeno Marilena Chauí 163 detalhe que quando lembrado nos traz de volta o todo acontecido A memória pura é um fluxo temporal interior Podemos então distinguir duas formas principais de memorização aquela que se dá por repetição e por atenção deliberada para fixar alguma coisa e aquela que se dá espontaneamente pela força ou pelo impacto de alguma coisa ou de algum acontecimento dotados de significado importante em nossa existência Aqui o interesse por alguma coisa ou algum fato é mais decisivo do que a atenção voluntária que lhe damos Existem seis grandes tipos de memória 1 a memória perceptiva ou reconhecimento que nos permite reconhecer coisas pessoas lugares etc e que é indispensável para nossa vida cotidiana 2 a memóriahábito que adquirimos por atenção deliberada ou voluntária e pela repetição de gestos ou palavras até graválos e poderem ser repetidos sem que neles tenhamos que pensar 3 a memóriafluxodeduraçãopessoal que nos faz guardar a lembrança de coisas fatos pessoas lugares cujo significado é importante para nós seja do ponto de vista afetivo seja do ponto de vista de nossos conhecimentos 4 a memória social ou histórica que é fixada por uma sociedade através de mitos fundadores e de relatos registros documentos monumentos datas e nomes de pessoas fatos e lugares que possuem significado para a vida coletiva Excetuandose os mitos que são fabulações essa memória é objetiva pois existe em objetos textos monumentos instrumentos ornamentos etc e fora de nós 5 a memória biológica da espécie gravada no código genético das diferentes espécies de vida e que permitem a repetição da espécie 6 a memória artificial das máquinas baseada na estrutura simplificada do cérebro humano As quatro primeiras fazem parte da vida de nossa consciência individual e coletiva a quinta é inconsciente e puramente física a última é uma técnica Memória e teoria do conhecimento Do ponto de vista da teoria do conhecimento a memória possui as seguintes funções retenção de um dado da percepção da experiência ou de um conhecimento adquirido reconhecimento e produção do dado percebido experimentado ou conhecido numa imagem que ao ser lembrada permite estabelecer uma relação ou um nexo entre o já conhecido e novos conhecimentos recordação ou reminiscência de alguma coisa como pertencente ao tempo passado e enquanto tal diferente ou semelhante a alguma coisa presente Convite à Filosofia 164 capacidade para evocar o passado a partir do tempo presente ou de lembrar o que já não é através do que é atualmente Por essas funções a memória é considerada essencial para a elaboração da experiência e do conhecimento científico filosófico e técnico Por esse motivo Aristóteles escreveu na Metafísica É da memória que os homens derivam a experiência pois as recordações repetidas da mesma coisa produzem o efeito duma única experiência A memória é retenção Graças à lembrança e à prospecção o conhecimento filosófico técnico e científico podem elaborar a experiência e alcançar novos saberes e práticas Graças à memória somos capazes de lembrar e recordar As lembranças podem ser trazidas ao presente tanto espontaneamente quanto por um trabalho deliberado de nossa consciência Lembramos espontaneamente quando por exemplo diante de uma situação presente nos vem à lembrança alguma situação passada Recordamos quando fazemos o esforço para lembrar Assim como há perturbações e problemas perceptivos cegueira surdez perda de tato e imaginativos loucura ideologia também existem problemas e perturbações da memória indo desde uma dificuldade momentânea para recordar alguma coisa até a amnésia perda total ou parcial da memória Quando perdemos a capacidade para lembrar palavras ou construir frases sofremos a afasia Quando perdemos a capacidade para lembrar e realizar gestos e ações sofremos de apraxia Essas perturbações podem ser causadas por lesões físicas no cérebro ou no sistema nervoso ou traumas psicológicos isto é por situações de grande sofrimento psíquico que nos forçam a esquecer alguma coisa algum fato alguma situação Seja por lesão física seja por sofrimento psíquico seja por uma perturbação momentânea e passageira o esquecimento é a perda de nossa relação com o passado e portanto com uma dimensão do tempo e com uma dimensão de nossa vida Na amnésia perdemos relação com o todo de nossa existência Na afasia perdemos a relação com os outros através da linguagem ou da comunicação Na apraxia perdemos a relação com o nosso corpo e com o mundo das coisas Esquecer é ficar privado de memória e perder alguma coisa Algumas vezes porém essa perda é um bem esquecer alguma coisa terrível é ultrapassála para poder viver bem novamente A memória não é um simples lembrar ou recordar mas revela uma das formas fundamentais de nossa existência que é a relação com o tempo e no tempo com aquilo que está invisível ausente e distante isto é o passado A memória é o que confere sentido ao passado como diferente do presente mas fazendo ou podendo fazer parte dele e do futuro mas podendo permitir esperálo e compreendêlo Marilena Chauí 165 Capítulo 4 A imaginação Cotidiano e imaginação Com freqüência ouvimos frases como Que falta de imaginação Por favor use a sua imaginação Cuidado Ela tem muita imaginação Que nada Você andou imaginando tudo isso Não comece a imaginar coisas Imagine se tivesse sido assim Essas frases são curiosas porque indicam maneiras bastante diferentes de concebermos o que seja a imaginação Na frase Que falta de imaginação a imaginação é tomada como algo positivo cuja falta ou ausência é criticada Imaginar aqui aparece como capacidade mais alargada para pensar para encontrar soluções inteligentes para algum problema para adivinhar o sentido de alguma coisa que não está muito evidente Ela aparece também como algo que nós temos e que podemos ou não usar Já nas frases Cuidado Ela tem muita imaginação Que nada Você andou imaginando tudo isso ou Não comece a imaginar coisas a imaginação é tomada como risco de irrealidade invencionice mentira exagero excesso Agora imaginar é inventar ou exagerar perder o pé da realidade assumindo portanto um sentido bastante diverso do anterior Na frase Imagine se tivesse sido assim ou em outra como Imagine o que ele vai dizer a imaginação é tomada como uma espécie de suposição sobre as coisas futuras uma espécie de previsão ou de alerta sobre o que poderá ou poderia acontecer como conseqüência de outros acontecimentos Apesar de diferentes essas frases possuem alguns elementos comuns Em todas elas positiva ou negativamente a imaginação está referida ao inexistente Dizer Use sua imaginação significa faça de outro modo ou invente alguma coisa Exclamar Que falta de imaginação significa poderia ter feito muito melhor poderia ter dito uma coisa muito mais interessante Alertar com a frase Cuidado Ela tem muita imaginação significa ela inventa e exagera Supor Imagine o que nos teria acontecido significa criar a imagem de uma situação que não aconteceu a imaginação aparece como algo que possui graus isto é pode haver falta ou excesso Convite à Filosofia 166 a imaginação se apresenta como capacidade para elaborar mentalmente alguma coisa possível algo que não existiu mas poderia ter existido ou que não existe mas poderá vir a existir A imaginação surge assim como algo impreciso situada entre dois tipos de invenção criação inteligente e inovadora de um lado exagero invencionice mentira de outro No primeiro caso ela faz aparecer o que não existia ou mostra ser possível algo que não existe No segundo caso ela é incapaz de reproduzir o existente ou o acontecido Com isso nossas frases cotidianas apontam os dois principais sentidos da imaginação criadora e reprodutora A imaginação na tradição filosófica A tradição filosófica sempre deu prioridade à imaginação reprodutora considerada como um resíduo do objeto percebido que permanece retido em nossa consciência A imagem seria um rastro ou um vestígio deixado pela percepção Os empiristas por exemplo falam das imagens como reflexos mentais das percepções ou das impressões cujos traços foram gravados no cérebro Desse ponto de vista a imagem e a lembrança difeririam apenas porque a primeira é atual enquanto a segunda é passada A imagem seria portanto a reprodução presente que faço de coisas ou situações presentes Por exemplo se neste momento eu fechar os olhos posso imaginar o computador a mesa de trabalho os livros nas estantes o quebraluz a porta a janela A imagem seria a coisa atual percebida quando ausente Seria uma percepção enfraquecida que associada a outras formaria as idéias no pensamento Os filósofos intelectualistas também consideravam a imaginação uma forma enfraquecida da percepção e por considerarem a percepção a principal causa de nossos erros as ilusões e deformações da realidade também julgavam a imaginação fonte de enganos e erros Tomandoa como meramente reprodutora diziam por exemplo que a imaginação dos artistas nada mais faz do que juntar de maneira nova imagens de coisas percebidas um cavalo alado é a junção da imagem de um cavalo percebido com a imagem de asas percebidas uma sereia a junção de uma imagem de mulher percebida com a imagem de um peixe percebido A imaginação seria pois diretamente reprodutora da percepção no campo do conhecimento e indiretamente reprodutora da percepção no campo da fantasia Por isso na tradição filosófica costumavase usar a palavra imaginação como sinônimo de percepção ou como um aspecto da percepção Percebemos imagens das coisas dizia a tradição A tradição porém enfrentava alguns problemas que não podia resolver Marilena Chauí 167 em nossa vida não confundimos percepção e imagem Assim por exemplo distinguimos perfeitamente a percepção direta de um bombardeio da imagem do que seria uma explosão atômica em nossa vida não confundimos perceber e imaginar Assim por exemplo distinguimos o sonho da vigília distinguimos um fato que vemos na rua da cena de um filme em nossa vida somos capazes de distinguir nossa percepção e a imaginação de uma outra pessoa Assim por exemplo percebemos o sofrimento psíquico de alguém que está tendo alucinações mas não somos capazes de alucinar junto com ela Dessa maneira a suposição de que entre a percepção e a imaginação entre o percebido e a imagem haveria apenas uma diferença de grau ou de intensidade a imagem seria uma percepção fraca e a percepção seria a imagem forte não se mantém pois há uma diferença de natureza ou uma diferença de essência entre ambas A fenomenologia e a imaginação Quando falamos em imagens referimonos a coisas bastante diversas quadros esculturas fotografias filmes reflexos num espelho ou nas águas ficções literárias contos lendas e mitos figuras de linguagem como a metáfora e a metonímia sonhos devaneios alucinações imitações pela mímica e pela dança sons musicais poesia Uma primeira diferença entre essas imagens pode ser logo notada algumas se referem a imagens exteriores à nossa consciência pinturas esculturas fotos filmes mímica etc outras podem ser consideradas internas ou mentais sonhos devaneios alucinações etc enquanto algumas são externas e internas ao mesmo tempo no caso da ficção literária por exemplo a imagem é externa pois está no livro e é interna pois leio palavras e com elas imagino No entanto algo é comum a todas elas oferecemnos um análogo das próprias coisas seja porque estão no lugar das próprias coisas seja porque nos fazem imaginar coisas através de outras A segunda diferença entre as imagens decorre do tipo de análogo que cada uma delas propõe Um análogo pode ser um símbolo a bandeira é um símbolo da nação uma metáfora dizer a primavera da vida para referirse à juventude uma ilustração a foto de alguém junto a uma notícia de jornal ou uma paisagem num livro de contos um esquema a planta de uma casa ou de uma máquina um signo vejo a luz vermelha do semáforo e ela é o signo de uma ordem Pare um sentimento a emoção que sinto ao ouvir uma sinfonia um substituto um armário transformado em navio pela criança que brinca Embora sejam diferentes pela natureza da analogia as imagens novamente possuem algo em comum raramente ou quase nunca a imagem corresponde Convite à Filosofia 168 materialmente à coisa imaginada Por exemplo a bandeira e a nação são materialmente diferentes os sons da sinfonia e meus sentimentos são diferentes a fotografia e a pessoa fotografada são materialmente diferentes um mímico que imita uma janela ou uma locomotiva não é nem uma coisa nem outra etc Notamos assim que é próprio das imagens algo que suporíamos próprio apenas da ficção isto é as imagens são irreais quando comparadas ao que é imaginado através delas Um quadro é real enquanto quadro percebido mas é irreal se comparado à paisagem da qual é imagem Apesar de irreal e justamente por ser irreal a imagem é dotada de um poder especial torna presente ou presentifica algo ausente seja porque esse algo existe e não se encontra onde estamos seja porque é inexistente No primeiro caso a imagem ou o análogo é testemunha irreal de alguma coisa existente no segundo é a criação de uma realidade imaginária ou seja de algo que existe apenas em imagem ou como imagem Nos dois casos porém o objetoem imagem é imaginário Consciência imaginativa Distanciandose da tradição a fenomenologia fala na consciência imaginativa como uma forma de consciência diferente da percepção e da memória tendo como ato o imaginar e como conteúdo ou correlato o imaginário ou o objeto emimagem A imaginação é a capacidade da consciência para fazer surgir os objetos imaginários ou objetosemimagem Pela imaginação relacionamonos com o ausente e com o inexistente Perceber este livro é relacionarse com sua presença e existência Imaginar um livro é relacionarse ou com a imagem do livro percebido ou com um livro ausente e inexistente que ainda não foi escrito e é apenas olivropossível Graças à imaginação abrese para nós o tempo futuro e o campo dos possíveis A percepção observa as coisas as pessoas as situações Observar é jamais ter uma coisa pessoa ou situação de uma só vez e por inteiro A percepção observa porque alcança as coisas as pessoas as situações por perfis perspectivas faces diferentes que vão sendo articuladas umas às outras num processo sem fim podendo sempre enriquecer nosso conhecimento perceber aspectos novos ir completando o percebido com novos dados ou aspectos A imaginação ao contrário não observa o objeto cada imagem põe o objeto por inteiro O filósofo francês Sartre dá um exemplo quando imagino uma rua ou um edifício tenho de uma só vez a ruaemimagem ou o edifícioemimagem cada um deles possui uma única face e é essa que existe em imagem Podemos ter muitas imagens da mesma rua ou do mesmo edifício mas cada uma delas é uma imagem distinta das outras Uma imagem diz Sartre é inobservável Se uma pessoa apaixonada tem diante de si a pintura ou a fotografia da pessoa amada tem a imagem dela Ao olhála não olha para as manchas coloridas para Marilena Chauí 169 os traços reproduzidos no papel não presta atenção no trabalho do pintor nem do fotógrafo mas torna presente a pessoa amada ausente A imagem é diferente do percebido porque ela é um análogo do ausente sua presentificação Em outras palavras percebemos e imaginamos ao mesmo tempo embora perceber e imaginar sejam diferentes Percebo a fotografia e imagino a pessoa amada Percebo a fisionomia da pessoa fotografada o olhar o sorriso as mãos a roupa e imagino a sedução do olhar a doçura do sorriso a sutileza dos gestos a preferência por certas roupas São dois estados de consciência simultâneos e diferentes Quando Clarice Lispector descreve o inseto e o ovo percepção e imaginação são simultâneos e diferentes Diante do verdecorposuperfícietraçoquecaminha percepção do inseto Clarice imagina como seriam o desejo e o amor das esperanças pergunta sobre as glândulas do inseto cujo corpo percebido parece impossível de conter algo em seu interior porque não tem interior O inseto percebido e o inseto imaginado são duas consciências diferentes do mesmo inseto Quando a criança brinca sua imaginação desfaz a percepção todos os objetos todas as pessoas e todos os lugares nada têm a ver com seu sentido percebido mas remetem a outros sentidos criam sentidos inexistentes ou presentificam o ausente Um armário é um navioemimagem um tapete é um maremimagem um cabo de vassoura é uma espadaemimagem uma folha de jornal é um mapa emimagem um avental preso às costas é uma capaemimagem A imaginação é assim uma capacidade irrealizadora A força irrealizadora da imaginação significa por um lado que ela é capaz de tornar ausente o que está presente o armário deixa de estar presente de tornar presente o ausente o navio tornase presente e criar inteiramente o inexistente a aventura nos mares É por isso que a imaginação tem também uma força prospectiva isto é consegue inventar o futuro como na canção de John Lennon Imagine ou como na invenção de uma teoria científica ou de um objeto técnico Pelo mesmo motivo a imaginação pode criar um mundo irreal que julgamos melhor do que o nosso a ponto de recusarmos viver neste para viver imaginariamente naquele perdendo todo o contato com o real É o que acontece por exemplo na loucura quando passamos definitivamente para o outro lado Mas é também o que acontece todos os dias quando sonhamos ou entramos em devaneio Embora vigília e sonho sejam diferentes a vigília pode ser sentida como intolerável e insuportável e somos arrastados pelo desejo de ficar no sonho e de embora acordados viver como se o sonho fosse real porque nossa imaginação o faz real para nós Irrealizando o mundo percebido e realizando o sonho a imaginação pode ocupar o lugar da percepção e passamos a perceber imaginariamente Convite à Filosofia 170 Quando o fazemos para criar um outro mundo ao qual os outros seres humanos também podem ter acesso a imaginação passa do sonho à obra de arte Quando o fazemos para criar um outro mundo só nosso e ao qual ninguém mais pode ter acesso a imaginação passa do sonho à loucura Assim a diferença entre sonho arte e loucura é muito pequena e frágil a imaginação aberta aos outros arte ou fechada aos outros loucura As modalidades de imaginação Partindo da diferença entre imaginação reprodutora e imaginação criadora podemos distinguir várias modalidades de imaginação 1 imaginação reprodutora propriamente dita isto é a imaginação que toma suas imagens da percepção e da memória 2 imaginação evocadora que presentifica o ausente por meio de imagens com forte tonalidade afetiva 3 imaginação irrealizadora que torna ausente o presente e nos coloca vivendo numa outra realidade que é só nossa como no sonho no devaneio e no brinquedo Esta imaginação tem forte tonalidade mágica 4 imaginação fabulosa de caráter social ou coletivo que cria os mitos e as lendas pelos quais uma sociedade um grupo social ou uma comunidade imaginam sua própria origem e a origem de todas as coisas oferecendo uma explicação para seu presente e sobretudo para a morte Aqui a imaginação cria imagens simbólicas para o bem e o mal o justo e o injusto o puro e o impuro o belo e o feio o mortal e o imortal o tempo e a Natureza pela referência às divindades e aos heróis criadores explica os males desta vida por faltas originárias cometidas pelos humanos o pecado original por exemplo e promete uma vida futura feliz após a morte É a imaginação religiosa 5 imaginação criadora que inventa ou cria o novo nas artes nas ciências nas técnicas e na Filosofia Aqui combinamse elementos afetivos intelectuais e culturais que preparam as condições para que algo novo seja criado e que só existia primeiro como imagem prospectiva ou como possibilidade aberta A imaginação criadora pede auxílio à percepção à memória às idéias existentes à imaginação reprodutora e evocadora para cumprirse como criação ou invenção Imaginação e teoria do conhecimento Do ponto de vista da teoria do conhecimento a imaginação possui duas faces a de auxiliar precioso para o conhecimento da verdade e a de perigo imenso para o conhecimento verdadeiro Quando lemos relatos dos cientistas sobre suas pesquisas e investigações com freqüência eles se referem aos momentos em que tiveram que imaginar isto é criar pelo pensamento a imagem total ou completa do fenômeno pesquisado para Marilena Chauí 171 graças a ela orientar os detalhes e pormenores da pesquisa concreta que realizavam Essa imagem é negadora e antecipadora Negadora graças a ela o cientista pode negar ou recusar as teorias já existentes Antecipadora graças a ela o cientista pode antever o significado completo de sua própria pesquisa mesmo que esta ainda esteja em andamento a imaginação orienta o pensamento O filósofo Gaston Bachelard atribui à imaginação a capacidade para encorajar o pensamento a dizer não a teorias existentes e propor novas Muitas vezes lendo um romance ou vendo um filme compreendemos e conhecemos muito melhor uma realidade do que se lêssemos livros científicos ou jornais Por quê Porque o artista através da imaginação capta o essencial e reúne o que estava disperso na realidade fazendonos compreender o sentido profundo e invisível de alguma coisa ou de alguma situação O artista nos mostra o inusitado o excepcional o exemplar ou o impossível por meio dos quais nossa realidade ganha sentido e pode ser mais bem conhecida Outras vezes porém sobretudo quando se trata da imaginação reprodutora somos lançados no mundo dos ídolos de que fala Francis Bacon ou no mundo da prevenção e dos preconceitos de que fala Descartes Agora surge um tecido de imagens ou um imaginário que desvia nossa atenção da realidade ou que serve para nos dar compensações ilusórias para as desgraças de nossas vidas ou de nossa sociedade ou que é usado como máscara para ocultar a verdade O imaginário reprodutor nas ciências na Filosofia no cinema na televisão na literatura etc bloqueia nosso conhecimento porque apenas reproduz nossa realidade mas dando a ela aspectos sedutores mágicos embelezados cheios de sonhos que já parecem realizados e que reforçam nosso presente como algo inquestionável e inelutável É um imaginário de explicações feitas e acabadas justificador do mundo tal como ele parece ser Quando esse imaginário é social chamase ideologia Sob esse aspecto a imaginação reprodutora se opõe à imaginação utópica Utopia é uma palavra grega que significa em lugar nenhum e em tempo nenhum A imaginação utópica cria uma outra realidade para mostrar erros desgraças infâmias angústias opressões e violências da realidade presente e para despertar em nossa imaginação o desejo de mudança Assim enquanto o imaginário reprodutor procura abafar o desejo de transformação o imaginário utópico procura criar esse desejo em nós Pela invenção de uma outra sociedade que não existe em lugar nenhum e em tempo nenhum a utopia nos ajuda a conhecer a realidade presente e buscar sua transformação Em outras palavras o imaginário reprodutor opera com ilusões enquanto a imaginação criadora e a imaginação utópica operam com a invenção do novo e da mudança graças ao conhecimento crítico do presente Convite à Filosofia 172 Capítulo 5 A linguagem A importância da linguagem Na abertura da sua obra Política Aristóteles afirma que somente o homem é um animal político isto é social e cívico porque somente ele é dotado de linguagem Os outros animais escreve Aristóteles possuem voz phone e com ela exprimem dor e prazer mas o homem possui a palavra logos e com ela exprime o bom e o mau o justo e o injusto Exprimir e possuir em comum esses valores é o que torna possível a vida social e política e dela somente os homens são capazes Segue a mesma linha o raciocínio de Rousseau no primeiro capítulo do Ensaio sobre a origem das línguas A palavra distingue os homens dos animais a linguagem distingue as nações entre si Não se sabe de onde é um homem antes que ele tenha falado Escrevendo sobre a teoria da linguagem o lingüista Hjelmslev afirma que a linguagem é inseparável do homem segueo em todos os seus atos sendo o instrumento graças ao qual o homem modela seu pensamento seus sentimentos suas emoções seus esforços sua vontade e seus atos o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado a base mais profunda da sociedade humana Prosseguindo em sua apreciação sobre a importância da linguagem Rousseau considera que a linguagem nasce de uma profunda necessidade de comunicação Desde que um homem foi reconhecido por outro como um ser sensível pensante e semelhante a si próprio o desejo e a necessidade de comunicar lhe seus sentimentos e pensamentos fizeramno buscar meios para isso Gestos e vozes na busca da expressão e da comunicação fizeram surgir a linguagem Por seu turno Hjelmslev afirma que a linguagem é o recurso último e indispensável do homem seu refúgio nas horas solitárias em que o espírito luta contra a existência e quando o conflito se resolve no monólogo do poeta e na meditação do pensador A linguagem diz ele está sempre à nossa volta sempre pronta a envolver nossos pensamentos e sentimentos acompanhandonos em toda a nossa vida Ela não é um simples acompanhamento do pensamento mas sim um fio profundamente Marilena Chauí 173 tecido na trama do pensamento é o tesouro da memória e a consciência vigilante transmitida de geração a geração A linguagem é assim a forma propriamente humana da comunicação da relação com o mundo e com os outros da vida social e política do pensamento e das artes No entanto no diálogo Fedro Platão dizia que a linguagem é um pharmakon Esta palavra grega que em português se traduz por poção possui três sentidos principais remédio veneno e cosmético Ou seja Platão considerava que a linguagem pode ser um medicamento ou um remédio para o conhecimento pois pelo diálogo e pela comunicação conseguimos descobrir nossa ignorância e aprender com os outros Pode porém ser um veneno quando pela sedução das palavras nos faz aceitar fascinados o que vimos ou lemos sem que indaguemos se tais palavras são verdadeiras ou falsas Enfim a linguagem pode ser cosmético maquiagem ou máscara para dissimular ou ocultar a verdade sob as palavras A linguagem pode ser conhecimentocomunicação mas também pode ser encantamentosedução Essa mesma idéia da linguagem como possibilidade de comunicação conhecimento e de dissimulaçãodesconhecimento aparece na Bíblia judaico cristã no mito da Torre de Babel Gn 1119 quando Deus lançou a confusão entre os homens fazendo com que perdessem a língua comum e passassem a falar línguas diferentes que impediam uma obra em comum abrindo as portas para todos os desentendimentos e guerras A pluralidade das línguas é explicada na Escritura Sagrada como punição porque os homens ousaram imaginar que poderiam construir uma torre que alcançasse o céu isto é ousaram imaginar que teriam um poder e um lugar semelhante ao da divindade Que sejam confundidos disse Deus A força da linguagem Podemos avaliar a força da linguagem tomando como exemplo os mitos e as religiões A palavra grega mythos como já vimos significa narrativa e portanto linguagem Tratase da palavra que narra a origem dos deuses do mundo dos homens das técnicas o fogo a agricultura a caça a pesca o artesanato a guerra e da vida do grupo social ou da comunidade Pronunciados em momentos especiais os momentos sagrados ou de relação com o sagrado os mitos são mais do que uma simples narrativa são a maneira pela qual através das palavras os seres humanos organizam a realidade e a interpretam O mito tem o poder de fazer com que as coisas sejam tais como são ditas ou pronunciadas O melhor exemplo dessa força criadora da palavra mítica encontrase na abertura da Gênese na Bíblia judaicocristã em que Deus cria o Convite à Filosofia 174 mundo do nada apenas usando a linguagem E Deus disse façase e foi feito Porque Ele disse foi feito A palavra divina é criadora Também vemos a força realizadora ou concretizadora da linguagem nas liturgias religiosas Por exemplo na missa cristã o celebrante pronunciando as palavras Este é o meu corpo e Este é o meu sangue realiza o mistério da Eucaristia isto é a encarnação de Deus no pão e no vinho Também nos rituais indígenas e africanos os deuses e heróis comparecem e se reúnem aos mortais quando invocados pelas palavras corretas pronunciadas pelo celebrante A linguagem tem assim um poder encantatório isto é uma capacidade para reunir o sagrado e o profano trazer os deuses e as forças cósmicas para o meio do mundo ou como acontece com os místicos em oração tem o poder de levar os humanos até o interior do sagrado Eis por que em quase todas as religiões existem profetas e oráculos isto é pessoas escolhidas pela divindade para transmitir mensagens divi nas aos humanos Esse poder encantatório da linguagem aparece por exemplo quando vemos ou lemos sobre rituais de feitiçaria a feiticeira ou o feiticeiro tem a força para fazer coisas acontecerem pelo simples fato de em circunstâncias certas pronunciarem determinadas palavras É assim que nas lendas sobre o rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda os feiticeiros Merlin e Morgana decidem o destino das guerras pronunciando palavras especiais dotadas de poder Também nos contos infantis há palavras poderosas Abrete Sésamo Shazam e encantatórias Abracadabra Essa dimensão maravilhosa da linguagem da infância é explorada de maneira belíssima pelo cineasta Federico Fellini no filme Oito e Meio quando a personagem adulta pronuncia as palavras Asa Nisa Nasa trazendo de volta o passado As palavras assumem o poder contrário também isto é criam tabus Ou seja há coisas que não podem ser ditas porque se forem não só trazem desgraças como ainda desgraçam quem as pronunciar As palavrastabus existem nos contextos religiosos de várias sociedades por exemplo em muitas sociedades não se deve pronunciar a palavra demônio ou diabo porque este aparece em vez disso se diz o cão o demo o tinhoso As palavrastabus não existem apenas na esfera religiosa mas também nos brinquedos infantis quando certas palavras são proibidas a todos os membros do grupo sob pena de punição para quem as pronunciar Existem ainda palavrastabus na vida social sob os efeitos da repressão dos costumes sobretudo os que se referem a práticas sexuais Assim para certos grupos sociais de nossa sociedade e mesmo para nossa sociedade inteira até os anos 60 do século passado eram proibidas palavras como puta homossexual aborto amante masturbação sexo oral sexo anal etc Tais palavras eram pronunciadas em meios masculinos e em locais privados ou íntimos Também Marilena Chauí 175 palavras de cunho político tendem a tornarse quase tabus revolucionário terrorista guerrilheiro socialista comunista etc O poder mágicoreligioso da palavra aparece ainda num outro contexto o do direito Na origem o direito não era um código de leis referentes à propriedade de coisas ou bens do corpo e da consciência nem referentes à vida política impostos constituições direitos sociais civis políticos mas era um ato solene no qual o juiz pronunciava uma fórmula pela qual duas partes em conflito fariam a paz O direito era uma linguagem solene de fórmulas conhecidas pelo árbitro e reconhecidas pelas partes em litígio Era o juramento pronunciado pelo juiz e acatado pelas partes Donde as expressões Dou minha palavra ou Ele deu sua palavra para indicar o juramento feito e a palavra empenhada ou palavra de honra É por isso também que até hoje nos tribunais se faz oa acusadoa e as testemunhas responderem à pergunta Jura dizer a verdade somente a verdade nada além da verdade dizendo Juro Razão pela qual o perjúrio dizer o falso sob juramento de dizer o verdadeiro é considerado crime gravíssimo Nas sociedades menos complexas do que a nossa isto é nas sociedades que são comunidades onde todos se conhecem pelo primeiro nome e se encontram todos os dias ou com freqüência a palavra dada e empenhada é suficiente pois quando alguém dá sua palavra dá sua vida sua consciência sua honra e assume um compromisso que só poderá ser desfeito com a morte ou com o acordo da outra parte É por isso que nos casamentos religiosos em que os noivos fazem parte da comunidade basta que digam solenemente ao celebrante Aceito para que o casamento esteja concretizado Independentemente de acreditarmos ou não em palavras místicas mágicas encantatórias ou tabus o importante é que existam pois sua existência revela o poder que atribuímos à linguagem Esse poder decorre do fato de que as palavras são núcleos sínteses ou feixes de significações símbolos e valores que determinam o modo como interpretamos as forças divinas naturais sociais e políticas e suas relações conosco A outra dimensão da linguagem Para referirse à palavra e à linguagem os gregos possuíam duas palavras mythos e logos Diferentemente do mythos logos é uma síntese de três palavras ou idéias falapalavra pensamentoidéia e realidadeser Logos é a palavra racional do conhecimento do real É discurso ou seja argumento e prova pensamento ou seja raciocínio e demonstração e realidade ou seja os nexos e ligações universais e necessários entre os seres É a palavrapensamento compartilhada diálogo é a palavrapensamento verdadeira lógica é a palavrapensamento de alguma coisa o logia que colocamos no final de palavras como cosmologia mitologia teologia ontologia Convite à Filosofia 176 biologia psicologia sociologia antropologia tecnologia filologia farmacologia etc Do lado do logos desenvolvese a linguagem como poder de conhecimento racional e as palavras agora são conceitos ou idéias estando referidas ao pensamento à razão e à verdade Essa dupla dimensão da linguagem como mythos e logos explica por que na sociedade ocidental podemos comunicarnos e interpretar o mundo sempre em dois registros contrários e opostos o da palavra solene mágica religiosa artística e o da palavra leiga científica técnica puramente racional e conceitual Não por acaso muitos filósofos das ciências afirmam que uma ciência nasce ou um objeto se torna científico quando uma explicação que era religiosa mágica artística mítica cede lugar a uma explicação conceitual causal metódica demonstrativa racional A origem da linguagem Durante muito tempo a Filosofia preocupouse em definir a origem e as causas da linguagem Uma primeira divergência sobre o assunto surgiu na Grécia a linguagem é natural aos homens existe por natureza ou é uma convenção social Se a linguagem for natural as palavras possuem um sentido próprio e necessário se for convencional são decisões consensuais da sociedade e nesse caso são arbitrárias isto é a sociedade poderia ter escolhido outras palavras para designar as coisas Essa discussão levou séculos mais tarde à seguinte conclusão a linguagem como capacidade de expressão dos seres humanos é natural isto é os humanos nascem com uma aparelhagem física anatômica nervosa e cerebral que lhes permite expressaremse pela palavra mas as línguas são convencionais isto é surgem de condições históricas geográficas econômicas e políticas determinadas ou em outros termos são fatos culturais Uma vez constituída uma língua ela se torna uma estrutura ou um sistema dotado de necessidade interna passando a funcionar como se fosse algo natural isto é como algo que possui suas leis e princípios próprios independentes dos sujeitos falantes que a empregam Perguntar pela origem da linguagem levou a quatro tipos de respostas 1 a linguagem nasce por imitação isto é os humanos imitam pela voz os sons da Natureza dos animais dos rios das cascatas e dos mares do trovão e do vulcão dos ventos etc A origem da linguagem seria portanto a onomatopéia ou imitação dos sons animais e naturais 2 a linguagem nasce por imitação dos gestos isto é nasce como uma espécie de pantomima ou encenação na qual o gesto indica um sentido Pouco a pouco o gesto passou a ser acompanhado de sons e estes se tornaram gradualmente palavras substituindo os gestos Marilena Chauí 177 3 a linguagem nasce da necessidade a fome a sede a necessidade de abrigarse e protegerse a necessidade de reunirse em grupo para defenderse das intempéries dos animais e de outros homens mais fortes levaram à criação de palavras formando um vocabulário elementar e rudimentar que gradativamente tornouse mais complexo e transformouse numa língua 4 a linguagem nasce das emoções particularmente do grito medo surpresa ou alegria do choro dor medo compaixão e do riso prazer bemestar felicidade Citando novamente Rousseau em seu Ensaio sobre a origem das línguas Não é a fome ou a sede mas o amor ou o ódio a piedade a cólera que aos primeiros homens lhes arrancaram as primeiras vozes Eis por que as primeiras línguas foram cantantes e apaixonadas antes de serem simples e metódicas Assim a linguagem nascendo das paixões foi primeiro linguagem figurada e por isso surgiu como poesia e canto tornandose prosa muito depois e as vogais nasceram antes das consoantes Assim como a pintura nasceu antes da escrita assim também os homens primeiro cantaram seus sentimentos e só muito depois exprimiram seus pensamentos Essas teorias não são excludentes É muito possível que a linguagem tenha nascido de todas essas fontes ou modos de expressão e os estudos de Psicologia Genética isto é da gênese da percepção imaginação memória linguagem e inteligência nas crianças mostra que uma criança se vale de todos esses meios para começar a exprimirse Uma linguagem se constitui quando passa dos meios de expressão aos de significação ou quando passa do expressivo ao significativo Um gesto ou um grito exprimem por exemplo medo palavras frases e enunciados significam o que é sentir medo dão conteúdo ao medo O que é a linguagem A linguagem é um sistema de signos ou sinais usados para indicar coisas para a comunicação entre pessoas e para a expressão de idéias valores e sentimentos Embora tão simples essa definição da linguagem esconde problemas complicados com os quais os filósofos têmse ocupado desde há muito tempo Essa definição afirma que 1 a linguagem é um sistema isto é uma totalidade estruturada com princípios e leis próprios sistema esse que pode ser conhecido 2 a linguagem é um sistema de sinais ou de signos isto é os elementos que formam a totalidade lingüística são um tipo especial de objetos os signos ou objetos que indicam outros designam outros ou representam outros Por exemplo a fumaça é um signo ou sinal de fogo a cicatriz é signo ou sinal de uma ferida manchas na pele de um determinado formato tamanho e cor são signos de Convite à Filosofia 178 sarampo ou de catapora etc No caso da linguagem os signos são palavras e os componentes das palavras sons ou letras 3 a linguagem indica coisas isto é os signos lingüísticos as palavras possuem uma função indicativa ou denotativa pois como que apontam para as coisas que significam 4 a linguagem tem uma função comunicativa isto é por meio das palavras entramos em relação com os outros dialogamos argumentamos persuadimos relatamos discutimos amamos e odiamos ensinamos e aprendemos etc 5 a linguagem exprime pensamentos sentimentos e valores isto é possui uma função de conhecimento e de expressão sendo neste caso conotativa ou seja uma mesma palavra pode exprimir sentidos ou significados diferentes dependendo do sujeito que a emprega do sujeito que a ouve e lê das condições ou circunstâncias em que foi empregada ou do contexto em que é usada Assim por exemplo a palavra água se for usada por um professor numa aula de química conotará o elemento químico que corresponde à fórmula H2O se for empregada por um poeta pode conotar rios chuvas lágrimas mar líquido pureza etc se for empregada por uma criança que chora pode estar indicando uma carência ou necessidade como a sede A definição nos diz portanto que a linguagem é um sistema de sinais com função indicativa comunicativa expressiva e conotativa No entanto essa definição não nos diz várias coisas Por exemplo como a fala se forma em nós Por que a linguagem pode indicar coisas externas e também exprimir idéias internas ao pensamento Por que a linguagem pode ser diferente quando falada pelo cientista pelo filósofo pelo poeta ou pelo político Como a linguagem pode ser fonte de engano de malentendido de controvérsia ou de mentira O que se passa exatamente quando dialogamos com alguém O que é escrever E ler Como podemos aprender uma outra língua Na resposta a várias dessas perguntas vamos encontrar uma divergência que já encontramos quando estudamos a razão a verdade a percepção ou a imaginação qual seja a diferença entre empiristas e intelectualistas Empiristas e intelectualistas diante da linguagem Para os empiristas a linguagem é um conjunto de imagens corporais e mentais formadas por associação e repetição e que constituem imagens verbais as palavras As imagens corporais são de dois tipos motoras e sensoriais As imagens motoras são as que adquirimos quando aprendemos a articular sons falar e letras escrever graças a mecanismos anatômicos e fisiológicos As imagens sensoriais são as que adquirimos quando graças aos nossos sentidos à fisiologia de nosso sistema nervoso sobretudo a de nosso cérebro aprendemos a ouvir compreender sons e vozes e a reconhecer a grafia dos sons ler As imagens Marilena Chauí 179 verbais são aprendidas por associação em função da freqüência e repetição dos sinais externos que estimulam nossa capacidade motriz e sensorial A palavra ou imagem verbal é uma síntese de imagens motoras e sensoriais armazenadas em nosso cérebro O que levou a essa concepção empirista da linguagem foi o estudo médico de perturbações da linguagem a afasia incapacidade para usar e compreender todas as palavras disponíveis na língua a agrafia incapacidade para escrever ou para escrever determinadas palavras a surdez verbal ouvir as palavras sem conseguir compreendêlas e a cegueira verbal ler sem conseguir entender Os médicos que estudaram essas perturbações concluíram que estavam relacionadas com lesões no cérebro e que portanto a linguagem era um fenômeno físico anatômico e fisiológico do qual não temos consciência desconhecemos suas causas mas de cujos efeitos temos consciência isto é falamos ouvimos escrevemos lemos e compreendemos o sentido das palavras A linguagem seria uma soma de causas físicas e de efeitos psíquicos cujos átomos ou elementos seriam as imagens verbais associadas Os intelectualistas porém apresentam uma concepção muito diferente desta Embora aceitem que a possibilidade para falar ouvir escrever e ler esteja em nosso corpo anatomia e fisiologia afirmam que a capacidade para a linguagem é um fato do pensamento ou de nossa consciência A linguagem dizem eles é apenas a tradução auditiva oral gráfica ou visível de nosso pensamento e de nossos sentimentos A linguagem é um instrumento do pensamento para exprimir conceitos e símbolos para transmitir e comunicar idéias abstratas e valores A palavra dizem eles é uma representação de um pensamento de uma idéia ou de valores sendo produzida pelo sujeito pensante que usa os sons e as letras com essa finalidade O pensamento puro seria silencioso ou mudo e formaria para manifestarse as palavras Duas provas poderiam confirmar essa concepção da linguagem o fato de que o pensamento procura e inventa palavras e o fato de que podemos aprender outras línguas porque o sentido de duas palavras diferentes em duas línguas diferentes é o mesmo e tal sentido é a idéia formada pelo pensamento para representar ou indicar as coisas A grande prova dos intelectualistas contra os empiristas foi a história de Helen Keller Nascida cega surda e muda Helen Keller aprendeu a usar a linguagem sem nunca ter visto as coisas e as palavras sem nunca ter escutado ou emitido um som Se a linguagem dependesse exclusivamente de mecanismos e disposições corporais Helen Keller jamais teria chegado à linguagem Mas chegou E chegou quando compreendeu a relação simbólica entre duas expressões diferentes numa das mãos sentia correr a água de uma torneira enquanto a outra mão na qual segurava uma agulha guiada por sua professora ia traçando a palavra água quando se tornou capaz de compreender que uma mão Convite à Filosofia 180 traduzia o que a outra sentia tornouse capaz de usar a linguagem Assim a linguagem longe de ser um mecanismo instintivo e biológico seria um fato puro da inteligência uma atividade intelectual simbólica e de compreensão uma pura tradução de pensamentos As concepções empirista e intelectualista apesar de suas divergências possuem dois pontos em comum 1 ambas consideram a linguagem como sendo fundamentalmente indicativa ou denotativa isto é os signos lingüísticos ou as palavras servem apenas para indicar coisas 2 ambas consideram a linguagem como um instrumento de representação das coisas e das idéias ou seja as palavras têm apenas uma função ou um uso instrumental representativo Esses dois pontos de concordância fazem com que para as duas correntes filosóficas os aspectos conotativos ou a função conotativa da linguagem seja considerada algo perturbador e negativo Em outros termos o fato de que a comunicação verbal se realize com as palavras assumindo sentidos diferentes dependendo de quem fala e ouve escreve e lê do contexto e das circunstâncias em que as enunciamos é considerado perturbador porque afinal as coisas são sempre o que elas são e as idéias são sempre o que elas são de modo que as palavras deveriam ter sempre um só e mesmo sentido para indicar claramente as coisas e representar claramente as idéias Por esse motivo periodicamente aparecem na Filosofia correntes filosóficas que se preocupam em purificar a linguagem para que ela sirva docilmente às representações conceituais Tais correntes julgam que a linguagem perfeita para o pensamento é a das ciências e particularmente a da matemática e a da física Purificar a linguagem Uma dessas correntes filosóficas desenvolveuse no século passado com o nome de positivismo lógico Os positivistas lógicos distinguiram duas linguagens 1 a linguagem natural isto é aquela que usamos todos os dias e que é imprecisa confusa mescla de elementos afetivos volitivos perceptivos e imaginativos 2 a linguagem lógica isto é uma linguagem purificada formalizada ou seja com enunciados sem conteúdo e avaliadores do conteúdo das linguagens científicas e filosóficas inspirada na matemática e sobretudo na física Essa linguagem obedecia a princípios e regras lógicas precisas e funcionava por meio de operações chamadas cálculos simbólicos semelhantes às operações da matemática que permitiam avaliar com exatidão se um enunciado era verdadeiro ou falso Davase ênfase à sintaxe lógica dos enunciados que asseguraria a verdade representativa e indicativa da linguagem A conotação foi afastada Marilena Chauí 181 A linguagem lógica era uma metalinguagem isto é uma segunda linguagem que falava sobre língua natural e sobre linguagem científica para saber se os enunciados delas eram verdadeiros ou falsos Assim por exemplo na linguagem comum e diária dizemos O livro é de autoria de José Antônio Silva e na metalinguagem lógica diremos A proposição O livro é de autoria de José Antônio Silva é uma proposição verdadeira se e somente se forem preenchidas as condições x y z No entanto descobriuse pouco a pouco que havia expressões lingüísticas que não possuíam caráter denotativo nem representativo e apesar disto eram verdadeiras Descobriuse também que havia inúmeras formas de linguagem que não podiam ser reduzidas aos enunciados lógicos e tipo matemático e físico Descobriuse ainda que a linguagem usa certas expressões para as quais não existe denotação Por exemplo as preposições e as conjunções só têm existência na linguagem e não na realidade Além disso descobriuse que a redução da linguagem ao cálculo simbólico ou lógico despojava de qualquer verdade e de qualquer pretensão ao conhecimento a ontologia a literatura a história bem como várias ciências humanas isto é todas as linguagens que são profundamente conotativas para as quais a multiplicidade de sentido das palavras e das coisas é sua própria razão de ser Crítica ao empirismo e ao intelectualismo As concepções empiristas e intelectualistas também sofreram sérias críticas dos estudiosos da linguagem no campo da psicologia Os psicólogos Goldstein e Gelb fizeram estudos aprofundados da afasia e descobriram situações curiosas Por exemplo ordenase a um afásico Coloque nesta pilha todas as fitas azuis que você encontrar nesta caixa O afásico inicia a separação Ao encontrar uma fita azulclaro ele a coloca na pilha das fitas azuis conforme lhe foi dito mas também passa a colocar ali fitas verdeclaro rosa claro e lilásclaro Os dois psicólogos observaram assim que a palavra azul não formava uma categoria ou uma idéia geral para o afásico e que portanto seu problema de linguagem era também um problema de pensamento No entanto do ponto de vista cerebral ou anatômico a parte do cérebro destinada à inteligência estava perfeita sem nenhuma lesão Com isso compreendeuse que os empiristas estavam enganados e que a linguagem não é um mero conjunto de imagens verbais mas é inseparável de uma visão mais global da realidade e inseparável do pensamento Esses estudos porém não reforçaram a concepção intelectualista como poderíamos supor De fato basta tentarmos imaginar o que seria um pensamento puro mudo silencioso para compreendermos que não seria nada não pensaria nada Não pensamos sem palavras não há pensamento antes e fora da linguagem Convite à Filosofia 182 as palavras não traduzem pensamentos mas os envolvem e os englobam É justamente por isso que a criança aprende a falar e a pensar ao mesmo tempo pois para ela uma coisa se torna conhecida e pensável ao receber um nome Como escreveu MerleauPonty a linguagem é o corpo do pensamento A lingüística e a linguagem Durante o século XIX o estudo da linguagem ou lingüística tinha como preocupação encontrar a origem da linguagem e das línguas considerando o estado presente ou atual de uma língua como resultado ou efeito de causas situadas no passado A linguagem era estudada sob duas perspectivas a da filologia que buscava a história das palavras pelo estudo das raízes com o propósito de chegar a uma única língua original mãe ou matriz de todas as outras e a da gramática comparada que estudava comparativamente as línguas existentes com o propósito de encontrar famílias lingüísticas e chegar à línguamãe original Nesses estudos retomavase a discussão sobre o caráter natural ou convencional da linguagem Também era comum aos filólogos e gramáticos a idéia de que as línguas se transformam no tempo e que as transformações eram causadas por fatores extralingüísticos migrações guerras invasões mudanças sociais e econômicas etc Tais estudos porém viramse diante de problemas que não conseguiam resolver Um desses problemas foi o aparecimento do estudo das flexões tempos verbais maneira de indicar o plural e o singular aumentativos e diminutivos declinações revelando que as línguas mudavam por razões internas e não por fatores externos Essa descoberta teve resultados curiosos Um deles aparecido na Alemanha tomava as flexões como prova de que cada povo tem uma língua diferente porque esta exprimiria o caráter ou o espírito do povo Haveria línguas doces e propícias aos sentimentos profundos como a alemã línguas rudes e mais voltadas para a prosa e a guerra como o latim etc Em suma cada estudioso inventava o caráter da língua segundo as fantasias e ideologias de sua nação e dos nacionalismos da época A partir do século XX uma nova concepção da linguagem foi elaborada pela lingüística e seus pontos principais são a linguagem é constituída pela distinção entre língua e fala ou palavra a língua é uma instituição social e um sistema ou uma estrutura objetiva que existe com suas regras e princípios próprios enquanto a fala ou palavra é o ato individual de uso da língua tendo existência subjetiva por ser o modo como os sujeitos falantes se apropriam da língua e a empregam Assim por exemplo temos a língua portuguesa e a palavra ou fala de Camões Machado de Assis Fernando Pessoa Guimarães Rosa a sua e a minha Marilena Chauí 183 a língua é uma totalidade dotada de sentido no qual o todo confere sentido às partes isto é as partes não existem isoladas nem somadas mas apenas pela posição e função que o todo da língua lhes dá e seu sentido vem dessa posição e dessa função Assim por exemplo os signos r e l só existem nas línguas onde a diferença desses sons tem uma função importante para diferenciar sentidos motivo pelo qual não operam significativamente em chinês e em japonês ou seja os chineses usam l indiferentemente para todas as palavras sejam elas em l ou r os japoneses usam r indiferentemente para todas as palavras sejam elas em l ou r Os signos são os elementos da língua são valores e não coisas ou entidades isto é são o que valem por sua posição e por sua diferença com relação aos demais signos numa língua distinguemse signo e significado ou significante e significado o signo é o elemento verbal material da língua r l p b q g por exemplo enquanto o significado são os conteúdos ou sentidos imateriais afetivos volitivos perceptivos imaginativos evocativos literários científicos retóricos filosóficos políticos religiosos etc veiculados pelos signos o significante é uma cadeia ou um grupo organizado de signos palavras frases orações proposições enunciados que permitem a expressão dos significados e garantem a comunicação a relação dos signos ou significantes com as coisas é convencional e arbitrária mas uma vez constituída a língua como sistema de relações entre signossignificantes e significados a relação com as coisas indicadas nomeadas expressadas ou comunicadas tornase uma relação necessária para todos os falantes da língua Assim por exemplo a distinção entre pa e ba pata e bata é convencional mas uma vez fixada pela língua tornase necessária e inquestionável como as partes signos ou significantes de uma língua recebem seu sentido e sua função pelo lugar que o todo da língua lhes confere essas partes distinguem se umas das outras apenas por suas diferenças e a língua é uma estrutura constituída por diferenças internas ou por oposições pertinentes entre os signos Por exemplo em português existem os signos p e b d e t porque suas diferenças são pertinentes para o sentido das palavras dizer pata e bata dente e tente é dizer sentidos diferentes também existe a oposição pertinente entre o r e o l mas tal oposição ou diferença não existe em japonês e em chinês e por isso como vimos tais signos não existem nessas línguas Por relação com sua própria língua quando um japonês fala o português é levado a usar sempre o r que corresponde a um som ou signo diferencial existente em japonês isto é faz sentido em japonês e a substituir o l por r Quando um chinês fala o português ocorre exatamente o contrário prevalece o l porque este som e signo tem relação com o todo da língua chinesa e o r não Em inglês não existe o signosom ão e assim quando um inglês fala o português tende a usar an e am porque são signossons que fazem sentido em inglês A Convite à Filosofia 184 língua portanto é feita dessas diferenças internas e por isso se diz que os signos são diacríticos e que a língua é uma estrutura diacrítica a língua é um código conjunto de regras que permitem produzir informação e comunicação e se realiza através de mensagens isto é pela falapalavra dos sujeitos que veiculam informações e se comunicam de modo específico e particular a mensagem possui um emissor aquele que emite ou envia a mensagem e um receptor aquele que recebe e decodifica a mensagem isto é entende o que foi emitido o sujeito falante possui duas capacidades a competência isto é sabe usar a língua e a performance isto é tem seu jeito pessoal e individual de usar a língua a competência é a participação do sujeito em uma comunidade lingüística e a performance são os atos de linguagem que realiza a língua se realiza em duas dimensões a sincronia ou seja o todo da língua tomado na simultaneidade ou no seu estado atual ou presente e a diacronia ou seja a língua vista sucessivamente através de suas mudanças no tempo ou de sua história a língua é inconsciente isto é nós a falamos sem ter consciência de sua estrutura de suas regras e seus princípios de suas funções e diferenças internas vivemos nela e com ela e a empregamos sem necessidade de conhecêla cientificamente Alguns exemplos poderão ajudarnos a compreender todos esses pontos Uma língua é como um jogo de xadrez é um todo no qual cada peça tem seu sentido seu lugar e sua função por diferença ou por oposição às demais peças O jogo é uma convenção ou um código com suas regras próprias princípios e leis e cada partida é a maneira como jogadores individuais usam e interpretam as regras leis e princípios gerais do jogo a diferença entre os jogadores e os sujeitos falantes é que estes falam a língua respeitando o código mas sem conhecêlo conscientemente enquanto os jogadores precisam conhecer o código para poder jogar O jogo existe antes e depois de cada partida Cada partida rearranja o tabuleiro e chega a resultados diferentes mas as regras do jogo são sempre as mesmas Em cada partida os jogadores podem jogar porque conhecem o código e porque sabem interpretar os lances um do outro respondendo a cada um deles A lingüística veio mostrar algo muito interessante e que explica por que falar uma língua estrangeira ou traduzir um texto estrangeiro não são coisas simples como julgavam os intelectualistas Por exemplo em inglês é possível dizer The man I love Quando traduzimos para o português temos O homem que amo Observamos que em inglês parece faltar uma palavra o que Notamos também que em inglês parece Marilena Chauí 185 sobrar uma palavra o I o eu que não usamos na frase em português Para um inglês evidentemente não falta e nem sobra nada Este sentimento de falta ou sobra mostra que a diferença entre o inglês e o português não é de vocabulário mas de estrutura lingüística No caso da tradução da palavra inglesa cheese e da palavra francesa fromage para o português queijo temos a impressão de que passamos sem problema de uma língua para outra Mas não é o caso Quando um inglês usa cheese ele está se referindo ou a algo leitoso e cremoso quase sem gosto ou a algo mais duro e forte que se pode comer sem outra coisa O francês por seu turno ao dizer fromage estará pensando em queijos muito diferentes dependendo da região onde mora da hora e do dia em que vai comer o queijo sempre acompanhado de pão e vinho Para um inglês e para um francês queijo jamais poderia ser imaginado junto com um doce enquanto para nós brasileiros queijo de Minas prato requeijão baiano vai bem com goiabada ou com doce de leite com o pão com manteiga e o café com leite Assim dizer cheese não é dizer fromage nem queijo dizer fromage não é dizer cheese nem queijo dizer queijo não é dizer cheese nem fromage Esse segundo exemplo explica o que os lingüistas querem dizer quando afirmam que o momento da criação de um signo cheese fromage queijo é arbitrário ou convencional mas uma vez criado passa a ter um sentido necessário naquela língua cheese é cheese e não é fromage nem queijo Esse exemplo nos mostra também que uma língua é algo social histórico determinado por condições específicas de uma sociedade e de uma cultura A experiência da linguagem Dizer que somos seres falantes significa dizer que temos e somos linguagem que ela é uma criação humana uma instituição sociocultural ao mesmo tempo em que nos cria como humanos seres sociais e culturais A linguagem é nossa via de acesso ao mundo e ao pensamento ela nos envolve e nos habita assim como a envolvemos e a habitamos Ter experiência da linguagem é ter uma experiência espantosa emitimos e ouvimos sons escrevemos e lemos letras mas sem que saibamos como experimentamos sentidos significados significações emoções desejos idéias Após o caminho feito até aqui podemos voltar à definição inicial que demos da linguagem e nela fazer alguns acréscimos Em primeiro lugar teremos que especificar melhor que tipo de signo é o signo lingüístico Por que uma palavra é diferente por exemplo da fumaça que indica fogo Ou se se preferir qual é a diferença entre a fumaçasignodefogo que vejo e a palavra fumaça que pronuncio ou escuto A fumaça é uma coisa que Convite à Filosofia 186 indica outra coisa fogo A palavra fumaça porém é um símbolo isto é algo que indica representa exprime alguma coisa que é de natureza diferente dela O símbolo é um análogo a bandeira simboliza a nação por exemplo e não um efeito da coisa indicada representada ou exprimida O símbolo verbal ou palavra me reenvia a coisas que não são palavras coisas materiais idéias pessoas valores seres inexistentes etc A linguagem é simbólica e pelas palavras nos coloca em relação com o ausente A linguagem é pois inseparável da imaginação Em segundo lugar temos que especificar melhor as várias funções que atribuímos à linguagem indicativa ou denotativa comunicativa expressiva conotativa e para isso precisamos indagar com o que a linguagem se relaciona e nos relaciona Evidentemente diremos que a linguagem nos relaciona com o mundo e com os outros seres humanos Mas como se dá essa relação Essa pergunta como vimos era central para o Positivismo Lógico Por seus erros e acertos ele foi responsável pelo surgimento de uma nova disciplina filosófica a Filosofia da Linguagem intimamente ligada às investigações lógicas transformandose com elas e graças a elas A grande preocupação da Filosofia da Linguagem resumese numa pergunta As palavras realmente dizem as coisas tais como são Descrevem e explicam verdadeiramente a realidade Tradicionalmente diziase que a linguagem possuía a forma de uma relação binária isto é entre dois termos signo verbal coisa indicada realidade signo verbal idéia conceito valor pensamento No entanto é possível perceber que essa relação binária não nos explica por que uma palavra ou um signo verbal indica alguma coisa ou alguma idéia pois se ele fosse simplesmente denotativo ou indicativo e dual não poderia haver o fenômeno da conotação isto é uma mesma palavra indicando coisas e idéias diferentes Tomemos um exemplo a que já nos referimos várias vezes em outros capítulos e que foi muito trabalhado pelo filósofo alemão Frege Estrela da manhã e estrela da tarde indicam Vênus Mas falar na estrela dalva na estrela da tarde na estrela matutina e na estrela vespertina não é a mesma coisa ainda que todas essas expressões se refiram a Vênus Em cada uma dessas expressões o sentido de Vênus muda e esse sentido é expresso pelas palavras que se referem ao mesmo planeta Assim as palavras indicamdenotam alguma coisa mas também a conotam isto é referemse aos sentidos dessa coisa Imaginemos ou recordemos a leitura de um romance Começamos a ler entendendo tudo o que o escritor escreveu porque referimos suas palavras a coisas que já conhecemos a idéias que já possuímos e ao vocabulário comum entre ele e nós Pouco a pouco porém o livro vai ganhando espessura própria Marilena Chauí 187 percebemos as coisas de outra maneira mudamos idéias que já tínhamos vemos surgir pessoas personagens com vida própria e história própria sentimos que as palavras significam de um modo diferente daquele com o qual estamos habituados a usálas todo dia Uma realidade foi criada e penetramos em seu interior exclusivamente pelas mãos do escritor Como isso é possível Como as palavras poderiam criar um mundo se elas apenas fossem sinais para indicar coisas e idéias já existentes Com o romance descobrimos que as palavras se referem a significações inventam significações criam significações Imaginemos ou recordemos um diálogo Quantas vezes conversando com alguém dizemos Puxa Eu nunca tinha pensado nisso ou então Você sabe que agora eu entendo melhor uma idéia que tinha mas que não entendia muito bem ou ainda Você me fez compreender uma coisa que eu sabia e não sabia que sabia Como essas frases são possíveis É que a linguagem tem a capacidade especial de nos fazer pensar enquanto falamos e ouvimos nos faz compreender nossos próprios pensamentos tanto quanto os dos outros que falam conosco Ela nos faz pensar e nos dá o que pensar porque se refere a significados tanto os já conhecidos por outros quanto os já conhecidos por nós bem como os que não conhecíamos por estarmos conversando Esses exemplos nos levam a considerar a linguagem sob uma forma ternária palavra ou signo significante sentido ou significação significado realidade ou mundo coisas pessoas e instituições sociais políticas culturais O mundo suscita sentidos e palavras as significações levam à criação de novas expressões lingüísticas a linguagem cria novos sentidos e interpreta o mundo de maneiras novas Há um vaievem contínuo entre as palavras e as coisas entre elas e as significações de tal modo que a realidade o pensamento e a linguagem são inseparáveis suscitam uns aos outros e interpretamse uns aos outros A linguagem referese ao mundo através das significações e por isso podemos nos relacionar com a realidade através da palavra relacionase com sentidos já existentes e cria sentidos novos e por isso podemos nos relacionar com o pensamento através das palavras exprime e descobre significados e por isso podemos nos comunicar e nos relacionar com os outros tem o poder de suscitar significações de evocar recordações de imaginar o novo ou o inexistente e por isso a literatura é possível Convite à Filosofia 188 A linguagem revela nosso corpo como expressivo e significativo os corpos dos outros como expressivos e significativos as coisas como expressivas e significativas o mundo como dotado de sentido e o pensamento como trabalho de descoberta do sentido As palavras têm sentido e criam sentido Como escreve MerleauPonty A palavra longe de ser um simples signo dos objetos e das significações habita as coisas e veicula significações Naquele que fala a palavra não traduz um pensamento já feito mas o realiza E aquele que escuta recebe pela palavra o próprio pensamento A linguagem não traduz imagens verbais de origem motora e sensorial nem representa idéias feitas por um pensamento silencioso mas encarna as significações Linguagem simbólica e linguagem conceitual A diferença entre linguagem simbólica e linguagem conceitual é o que deve interessarnos agora Fundamentalmente a linguagem simbólica opera por analogias semelhanças entre palavras e sons entre palavras e coisas e por metáforas emprego de uma palavra ou de um conjunto de palavras para substituir outras e criar um sentido poético para a expressão A linguagem simbólica realizase principalmente como imaginação A linguagem conceitual procura evitar a analogia e a metáfora esforçandose para dar às palavras um sentido direto e não figurado ou figurativo Isso não quer dizer que a linguagem conceitual seja puramente denotativa Pelo contrário nela a conotação é essencial mas não possui uma natureza imaginativa ou imagética A linguagem simbólica dos mitos da religião da poesia do romance do teatro e a linguagem conceitual das ciências da filosofia diferem sob os seguintes aspectos a linguagem simbólica é fortemente emotiva e afetiva enquanto a linguagem conceitual procura falar das emoções e dos afetos sem se confundir com eles e sem se realizar por meio deles a linguagem simbólica oferece sínteses imediatas imagens enquanto a linguagem conceitual procede por desconstrução analítica e reconstrução sintética dos objetos fazendo com que acompanhemos cada passo da análise e da síntese a linguagem simbólica nos oferece palavras polissêmicas isto é carregadas de múltiplos sentidos simultâneos e diferentes tanto sentidos semelhantes e em harmonia quanto sentidos opostos e contrários a linguagem conceitual procura diminuir ao máximo a polissemia e a conotação buscando fazer com que cada palavra tenha um sentido próprio e que seus diferentes sentidos dependam do contexto no qual é empregada Marilena Chauí 189 a linguagem simbólica levanos para dentro dela arrastanos para seu interior pela força de seu sentido de suas evocações de sua beleza de seu apelo emotivo e afetivo a linguagem conceitual busca convencernos e persuadirnos por meio de argumentos raciocínios e provas A linguagem simbólica fascina e seduz a linguagem conceitual exige o trabalho lento do pensamento a linguagem simbólica nos dá a conhecer o mundo criando um outro análogo ao nosso porém mais belo ou mais terrível do que o nosso mais justo ou mais violento do que o nosso mais antigo ou mais novo do que o nosso mais visível ou mais oculto do que o nosso a linguagem conceitual busca dizer o nosso mundo decifrando seu sentido ultrapassando suas aparências e seus acidentes a linguagem simbólica privilegiando a memória e a imaginação nos diz como as coisas ou os homens poderiam ter sido ou poderão ser voltandose para um possível passado ou para um possível futuro a linguagem conceitual busca dizer o nosso presente fala do necessário determinando suas causas ou motivos e razões procura também as linhas de força de suas transformações e o campo dos possíveis como possibilidade objetiva e não apenas desejada ou sonhada RESUMINDO A linguagem em sentido amplo isto é englobando língua fala e palavra é constituída por quatro fatores fundamentais 1 fatores físicos anatômicos neurológicos sensoriais que determinam para nós a possibilidade de falar escutar escrever e ler 2 fatores socioculturais que determinam a diferença entre as línguas e entre as línguas dos indivíduos Assim o português e o inglês correspondem a sociedades e culturas diferentes bem como a linguagem de Machado de Assis e de Guimarães Rosa correspondem a momentos diferentes da cultura no Brasil 3 fatores psicológicos emocionais afetivos perceptivos imaginativos lembranças inteligência que criam em nós a necessidade e o desejo da informação e da comunicação bem como criam nossa capacidade para a performance lingüística seja ela cotidiana artística científica ou filosófica 4 fatores lingüísticos propriamente ditos isto é a estrutura e o funcionamento da linguagem que determinam nossa competência e nossa performance enquanto seres capazes de criar e compreender significações Esses fatores nos dizem por que existe linguagem e como ela funciona mas não nos dizem o que é a linguagem É a perspectiva fenomenológica que nos orienta para sabermos não só o que é a linguagem mas também qual é seu papel fundamental no conhecimento a linguagem não é mecanismo psicomotor os fatores 1 e 3 apresentam as condições biológicas e psicológicas para haver linguagem mas não qual é a natureza da experiência da palavra Convite à Filosofia 190 a linguagem não é simples relação binária entre signo e coisa signo e idéia mas é uma relação ternária na qual os signos são símbolos que veiculam significações a linguagem não traduz pensamentos mas participa ativamente da formação e formulação das idéias e dos valores a linguagem é uma forma de nossa experiência total de seres que vivem no mundo e com outros é uma dimensão de nossa existência a linguagem como a percepção e a imaginação pode comprazerse no já dado já dito e já pensado no instituído e estabelecido ficando escrava dos preconceitos e das ideologias pois como disse Platão ela pode ser remédio veneno e máscara Pode bloquear nosso conhecimento e pode produzir desconhecimento mentira desinformação É assim nosso meio de acesso ao mundo aos outros e à verdade mas também o instrumento do engano do falso e da mentira a linguagem cria interpreta e decifra significações podendo fazêlo miticamente ou logicamente magicamente ou racionalmente simbolicamente ou conceitualmente Marilena Chauí 191 Capítulo 6 O pensamento Pensando Certa vez um grego disse O pensamento é o passeio da alma Com isso quis dizer que o pensamento é a maneira como nosso espírito parece sair de dentro de si mesmo e percorrer o mundo para conhecêlo Assim como no passeio levamos nosso corpo a toda parte no pensamento levamos nossa alma a toda parte e mais longe do que o corpo pois a alma não encontra obstáculos físicos para seu caminhar O pensamento é essa curiosa atividade na qual saímos de nós mesmos sem sairmos de nosso interior Por isso outro filósofo escreveu que pensar é a maneira pela qual sair de si e entrar em si são uma só e mesma coisa Como um vôo sem sair do lugar Em nosso cotidiano usamos as palavras pensar e pensamento em sentidos variados e múltiplos Podemos chegar a uma pessoa amiga vêla silenciosa e dizerlhe Por favor digame seu pensamento em que você está pensando Com isso reconhecemos uma atividade solitária invisível para nós e que precisa ser proferida para ser compartilhada Outras vezes porém podemos dizer a essa mesma pessoa Você pensa que não sei o que você está pensando Agora damos a entender que dispomos de sinais alguma coisa que foi dita um gesto um olhar uma expressão fisionômica que nos permitem ver o pensamento de alguém e portanto acreditamos que pensar também se traduz em sinais corporais e visíveis O pensamento é menos solitário e menos secreto do que se poderia supor Algumas vezes chegamos para alguém e indagamos Como é pensou e ouvimos a resposta Sim Vamos fazer o trabalho Ou então Ainda estou pensando no assunto Vamos ver depois Nesses casos pensar é tomado por nós como sinônimo de deliberação e de decisão como algo que resulta numa ação Muitas vezes podem dizernos Você pensa demais não faz bem à saúde Ou ouvimos a frase Ela ficou parada lá na esquina quieta pensando pensando Podemos falar Por mais que pense nisso não consigo acreditar e quanto mais penso menos acredito Agora pensar é visto como preocupação fazendo mal à saúde cisma ficar parada quieta cismando dúvida quanto mais penso menos acredito Convite à Filosofia 192 Alguns jornais costumam publicar algo que alguém disse com o título O pensamento do dia é querendo dizer com isso que uma determinada idéia definindo algum assunto foi publicamente anunciada Essa mesma identificação entre pensamento e idéia pode aparecer quando por exemplo um crítico literário escreve O livro de Fulano tem alguns bons pensamentos mas tem outros banais classificando idéias em boas e banais isto é umas que dizem algo novo e interessante e outras que repetem lugarescomuns ou frivolidades Supomos dessa maneira que há bons e maus pensamentos tanto assim que falamos em pensamento positivo e em afastar os maus pensamentos Um professor pode criticar o trabalho de um aluno dizendolhe Esse trabalho mostra que você não quis pensar Aqui pensar não é só ter idéias mas também algo que se pode querer ou não querer algo voluntário e deliberado uma forma de atenção e concentração Essa imagem de concentração aparece por exemplo quando alguém se zanga e diz Querem por favor fazer silêncio Não estão vendo que estou pensando E já mencionamos o célebre Penso logo existo Cogito ergo sum de Descartes e a definição do homem como caniço pensante feita por Pascal Aqui pensar e pensamento indicam a própria essência da natureza humana O que dizem os dicionários Se procurarmos pensar e pensamento nos dicionários notaremos que os vários sentidos dados a esses termos recobrem os exemplos que demos do uso dessas palavras em nosso cotidiano e ainda acrescentam alguns outros sentidos Pensar dizem os dicionários significa 1 aplicar a atividade do espírito aos elementos fornecidos pelo conhecimento formar e combinar idéias julgar refletir raciocinar especular 2 exercer a inteligência meditar ver 3 exercer o espírito ou a atividade consciente de uma maneira global sentir querer refletir 4 ter uma opinião uma convicção 5 supor presumir crer admitir suspeitar achar 6 esperar tencionar 7 preocuparse 8 avaliar 9 cismar Pensamento de acordo com os dicionários significa 1 o ato de refletir meditar ou pensar ou o processo mental que se concentra em idéias 2 a atividade de conhecimento ou tendo por objeto o conhecimento 3 consciência mente espírito entendimento intelecto razão 4 poder de formular idéias e conceitos 5 faculdade de pensar logicamente raciocínio ponto de vista formulação de um juízo 6 aquilo que é pensado ou o resultado do ato de pensar idéia ponto de vista opinião juízo 7 fantasia sonho devaneio lembrança recordação cuidado preocupação expectativa 8 conjunto das idéias ou doutrina de um pensador de uma sociedade de um grupo de uma coletividade Assim no exemplo Você pensa demais não é bom para a saúde pensar e pensamento significam preocupação no exemplo Por mais que pense nisso não acredito que seja assim pensar e pensamento significam cisma e dúvida no Marilena Chauí 193 exemplo Ainda estou pensando no assunto pensar e pensamento significam formar uma opinião ou um ponto de vista no exemplo Acabem com esse barulho não estão vendo que estou pensando pensar e pensamento significam atividade mental ou intelectual para formular uma idéia ou um conceito Se eu disser Penso que ela virá estou exprimindo uma expectativa se disser Penso que você sabe disso estou exprimindo uma suposição se disser Pensei nele a noite inteira nem pude dormir estou exprimindo preocupação se disser Eu a vi perdida em pensamentos quero dizer que vi alguém cismando fantasiando imaginando Mas se eu disser A teoria da relatividade resulta do trabalho do pensamento de Einstein estou dizendo que o pensamento é uma atividade intelectual de produção de conhecimentos Quando procuramos a origem das palavras pensamento e pensar descobrimos que procedem de um verbo latino o verbo pendere que significa ficar em suspenso estar ou ficar pendente ou pendurado suspender pesar pagar examinar avaliar ponderar compensar recompensar e equilibrar Pensar portanto é suspender o julgamento até formar uma idéia ou opinião pesar comparar idéias opiniões pontos de vista avaliar julgar o valor de uma idéia ou opinião ou seja se é verdadeira ou falsa justa ou injusta adequada ou inadequada examinar idéias opiniões juízos pontos de vista ponderar isto é pesar idéias e pontos de vista para escolher um deles equilibrar encontrar o meiotermo entre extremos ou entre opostos Pensare derivandose de pendere caracterizase mais como uma atividade sobre idéias opiniões juízos e pontos de vista já existentes do que como criação ou produção de uma idéia ou ponto de vista Por esse motivo quando lemos os textos filosóficos antigos e modernos escritos em latim notamos que não usam pendere e pensare para dizer pensar mas empregam dois outros verbos cogitare e intelligere Cogitare significa considerar atentamente e meditar Esse verbo vem do outro agere que significa empurrar para diante de si e também do verbo agitare que significa empurrar para frente com força agitar Pensar enquanto cogitare é colocar diante de si alguma coisa para considerála com atenção ou forçar alguma coisa a ficar diante de nós para ser examinada O verbo intelligere vem da composição de duas outras palavras inter isto é entre e legere que significa colher reunir recolher escolher e ler isto é reunir as letras com os olhos Por isso intelligere significa escolher entre reunir entre vários apanhar aprender compreender ler entre ler dentro de Donde conhecer e entender Se reunirmos os vários sentidos dos três verbos pensare cogitare e intelligere veremos que pensar e pensamento sempre significam atividades que exigem atenção pesar avaliar equilibrar colocar diante de si para considerar reunir e Convite à Filosofia 194 escolher colher e recolher O pensamento é assim uma atividade pela qual a consciência ou a inteligência coloca algo diante de si para atentamente considerar avaliar pesar equilibrar reunir compreender escolher entender e ler por dentro Isso explica todos os sentidos que vimos surgir nos dicionários da língua portuguesa e nos exemplos que demos meditar concentrarse cismar opinar ter idéias compreender as coisas raciocinar formular conceitos ter um ponto de vista refletir avaliar preocuparse O pensamento é a consciência ou a inteligência saindo de si passeando para ir colhendo reunindo recolhendo os dados oferecidos pela experiência pela percepção pela imaginação pela memória pela linguagem e voltando a si para considerálos atentamente colocálos diante de si observálos intelectualmente pesálos avaliálos retirando deles conclusões formulando com eles idéias conceitos juízos raciocínios valores O pensamento exprime nossa existência como seres racionais e capazes de conhecimento abstrato e intelectual e sobretudo manifesta sua própria capacidade para dar a si mesmo leis normas regras e princípios para alcançar a verdade de alguma coisa Experiências de pensamento Muitas vezes nos acontece de passarmos horas matutando cismando querendo compreender alguma coisa que nos escapa Fazemos nossas atividades de todo dia mas parecemos distraídos porque nossa atenção está concentrada noutra parte naquilo que estamos querendo compreender e não conseguimos Cansados paramos de cismar e de dar atenção ao assunto De repente com susto e alegria quase gritamos Entendi Sentimos o mesmo que quando completamos um quebracabeça todas as peças em seus devidos lugares a figura bem visível diante de nós Tivemos uma experiência de pensamento Outras vezes assistindo a uma aula lendo um livro científico fazendo um trabalho no laboratório resolvendo um problema no computador vamos acompanhando passo a passo as idéias os encadeamentos dos raciocínios as relações de causa e efeito entre certas coisas as conseqüências de uma afirmação e de uma negação e finalmente a conclusão a que chegam a aula o livro o trabalho no laboratório ou no computador Ao término de cada uma dessas atividades temos consciência de que aprendemos alguma coisa que não sabíamos e que fizemos um percurso para conhecêla e compreendêla Tivemos uma experiência de pensamento Em certas ocasiões dialogando com uma outra pessoa a conversa vai fazendo surgir idéias nas quais eu nunca havia pensado ou vai fazendo com que eu perceba que algumas idéias que julgava claras e corretas não são assim são confusas e incorretas Falando com a outra pessoa vou desenvolvendo idéias que Marilena Chauí 195 eu nem sabia que tinha e que foram despertadas em mim por alguma coisa que o outro me disse Clarifico algumas corrijo outras abandono outras tantas descubro novas tiro conclusões ou me encho de perplexidade Tive uma experiência de pensamento Quando pensamos pomos em movimento o que nos vem da percepção da imaginação da memória apreendemos o sentido das palavras encadeamos e articulamos significações algumas vindas de nossa experiência sensível outras de nosso raciocínio outras formadas pelas relações entre imagens palavras lembranças e idéias anteriores O pensamento apreende compara separa analisa reúne ordena sintetiza conclui reflete decifra interpreta interroga A inteligência A psicologia costuma definir a inteligência por sua função considerandoa uma atividade de adaptação ao ambiente através do estabelecimento de relações entre meios e fins para a solução de um problema ou de uma dificuldade Essa definição concebe portanto a inteligência como uma atividade eminentemente prática e a distingue de duas outras que também possuem finalidade adaptativa e relacionam meios e fins o instinto e o hábito Compartilhamos o instinto e o hábito com os animais O instinto por exemplo nos leva automaticamente a contrair a pupila quando nossos olhos estão muito expostos à luz e a dilatála quando estamos na escuridão levanos a afastar rapidamente a mão de uma superfície muito quente que possa queimarnos O instinto é inato Ao contrário o hábito é adquirido mas como o instinto tende a realizarse automaticamente Por exemplo quem adquire o hábito de dirigir um veículo muda as marchas pisa na embreagem no acelerador ou no freio sem precisar pensar nessas operações quem aprende a patinar ou a nadar realiza maquinalmente os gestos necessários depois de adquirilos Instinto e hábito são formas de comportamento cuja principal característica é serem especializados ou específicos a abelha sabe fazer a colméia mas é incapaz de fazer o ninho o joãodebarro constrói uma casa mas é incapaz de fazer uma colméia posso aprender a nadar mas esse hábito não me faz saber andar de bicicleta O instinto e o hábito especializam as funções os meios e os fins e não possuem flexibilidade para mudálos ou para adaptar um novo meio para um novo fim nem para usar meios novos para um fim já existente A tendência do instinto ou do hábito é a repetição e o automatismo das respostas aos problemas A inteligência difere do instinto e do hábito por sua flexibilidade pela capacidade de encontrar novos meios para um novo fim ou de adaptar meios existentes para uma finalidade nova pela possibilidade de enfrentar de maneira diferente situações novas e inventar novas soluções para elas pela capacidade de escolher entre vários meios possíveis e entre vários fins possíveis Nesse nível Convite à Filosofia 196 prático a inteligência é capaz de criar instrumentos isto é de dar uma função nova e um sentido novo a coisas já existentes para que sirvam de meios a novos fins Compartilhamos a inteligência prática com alguns animais especialmente com os chimpanzés O psicólogo Köhler fez experiências com alguns desses animais e demonstrou que eram capazes de comportamentos inteligentes colocado um chimpanzé numa pequena sala põese a seu lado um certo número de caixotes e prendese uma banana no teto Após saltos instintivos infrutíferos para a agarrar a banana o chimpanzé consegue empilhar os caixotes subir neles e agarrar o alimento colocado um chimpanzé numa pequena sala nas mesmas circunstâncias anteriores mas oferecendo bambus em vez de caixotes o chimpanzé termina por encaixar os bambus uns nos outros formando um instrumento para apanhar a banana Os gestaltistas explicam o comportamento do chimpanzé mostrando que ele se comporta percebendo um campo perceptivo no qual a banana os caixotes e os bambus formam uma totalidade e se relacionam enquanto partes de um todo de modo que os caixotes e os bambus são percebidos como parte da paisagem e como meios para um fim agarrar a banana O fato de que o chimpanzé percebe um campo perceptivo e não objetos isolados é demonstrado quando no lugar dos bambus são colocados arames que o animal enganchará uns nos outros para colher a fruta ou quando no lugar dos caixotes são colocadas mesinhas de tamanhos diferentes que podem ser empilhadas pelo animal para agarrar a banana No entanto observase algo interessante Depois de comer a banana o chimpanzé nada faz com os caixotes os bambus os arames ou as mesas Ficam à sua volta como objetos sem sentido Ao contrário uma criança nas mesmas circunstâncias depois de conseguir apanhar um doce por exemplo examinará os objetos Se descobrir que são desmontáveis ela tentará fazer com os caixotes e as mesas uma escada e com os bambus e os arames uma rede Essa diferença nos comportamentos do chimpanzé e da criança revela que esta última ultrapassa a situação imediata de fome e de uso direto dos objetos e prevê uma situação futura para a qual encontra uma solução transformando os objetos em instrumentos propriamente ditos A criança antecipa uma situação e transforma os dados de uma situação presente fabricando meios para certos fins que ainda estão ausentes Ela se lembra da situação passada espera a situação futura organiza a situação presente a partir dos dados lembrados esperados e percebidos imagina uma situação nova e responde a ela mesmo que ainda esteja ausente Marilena Chauí 197 A criança se relaciona com o tempo e transforma seu espaço por essa relação temporal A criança representa seu mundo e atua praticamente sobre ele Sua inteligência difere portanto da do animal Inteligência e linguagem Não somos dotados apenas de inteligência prática ou instrumental mas também de inteligência teórica e abstrata Pensamos O exercício da inteligência como pensamento é inseparável da linguagem como já vimos pois a linguagem é o que nos permite estabelecer relações concebêlas e compreendêlas Graças às significações escada e rede a criança pode pensar nesses objetos e fabricálos A linguagem articula percepções e memórias percepções e imaginações oferecendo ao pensamento um fluxo temporal que conserva e interliga as idéias O psicólogo Piaget estudando a gênese da inteligência nas crianças mostrou como a aquisição da linguagem e a do pensamento caminham juntas Assim por exemplo uma criança de quatro anos ainda não é capaz de pensar relações reversíveis ou recíprocas porque não domina a linguagem desse tipo de relações Se se perguntar a ela Você tem um irmão ela responderá Sim Se continuarmos a perguntar Quem é o seu irmão ela responderá Pedrinho No entanto se lhe perguntarmos Pedrinho tem uma irmã ela dirá Não pois a linguagem que ela possui permitelhe estabelecer relações entre ela e o mundo mas não entre o mundo e ela A inteligência humana enquanto atividade mental e de linguagem pode ser definida como a capacidade para enfrentar ou colocar diante de si problemas práticos e teóricos para os quais encontra elabora ou concebe soluções seja pela criação de instrumentos práticos as técnicas seja pela criação de significações idéias e conceitos Caracterizase pela flexibilidade plasticidade e inovação bem como pela possibilidade de transformar a própria realidade trabalho artes técnicas ações políticas etc A inteligência se realiza portanto como conhecimento e ação O conhecimento inteligente apreende o sentido das palavras interpretao inventa novos sentidos para palavras antigas ou cria novas palavras para novos sentidos O movimento de conhecer é pois um movimento cujo corpo é a linguagem Graças a ela compartilhamos com outros os nossos conhecimentos e recebemos de outros os conhecimentos Comunicação informação memória cultural transmissão inovação e ruptura eis o que a linguagem permite à inteligência Clarificação organização ordenamento análise interpretação compreensão síntese articulação eis o que a inteligência oferece à linguagem Convite à Filosofia 198 Inteligência e pensamento A inteligência colhe recolhe e reúne os dados oferecidos pela percepção pela imaginação pela memória e pela linguagem formando redes de significações com as quais organizamos e ordenamos nosso mundo e nossa vida recebendo e doando sentido a eles O pensamento porém vai além do trabalho da inteligência abstrai ou seja separa os dados das condições imediatas de nossa experiência e os elabora sob a forma de conceitos idéias e juízos estabelecendo articulações internas e necessárias entre eles pelo raciocínio indução e dedução pela análise e pela síntese Formula teorias procura proválas e verificálas pois está voltado para a verdade do conhecimento Um conceito ou uma idéia é uma rede de significações que nos oferece o sentido interno e essencial daquilo a que se refere os nexos causais ou as relações necessárias entre seus elementos de sorte que por eles conhecemos a origem os princípios as conseqüências as causas e os efeitos daquilo a que se refere O conceito ou idéia nos oferece a essênciasignificação necessária de alguma coisa sua origem ou causa suas conseqüências ou seus efeitos seu modo de ser e de agir Assim por exemplo vejo rosas margaridas girassóis Mas concebo pelo pensamento o conceito ou a idéia universal de flor Sinto corpos quentes mornos frios gelados sinto o frio da neve o calor do Sol a tepidez agradável da água do mar ou da piscina Mas concebo pelo pensamento o conceito ou idéia de temperatura Vejo uma bola no conjunto musical toco um triângulo escrevo sobre uma mesa cujo tampo tem quatro lados iguais Mas pelo pensamento concebo o conceito ou a idéia de esfera ou círculo de triângulo de quadrado Vou além pelo puro pensamento formulo o conceito de figura geométrica e das leis que a regem elaborando axiomas postulados e teoremas Os conceitos ou idéias são redes de significações cujos nexos um ligações são expressos pelo pensamento através dos juízosi pelos quais estabelecemos os elos internos e necessários entre um ser e as qualidades as propriedades os atributos que lhe pertencem assim como aqueles predicados que lhe são acidentais e que podem ser retirados sem que isso afete o sentido e a realidade de um ser Um conjunto de juízos constitui uma teoria quando estabelece com clareza um campo de objetos e os procedimentos para conhecê los e enunciálos organizamse e ordenamse os conceitos articulamse e demonstramse os juízos verificando seu acordo com regras e princípios de racionalidade e demonstração Teoria é explicação descrição e interpretação geral das causas formas modalidades e relações de um campo de objetos conhecidos graças a conhecimentos específicos próprios à natureza dos objetos investigados Marilena Chauí 199 O pensamento elabora teorias ou seja uma explicação ou interpretação intelectual de um conjunto de fenômenos e significações objetos fatos situações acontecimentos que estabelece a natureza o valor e a verdade de tais fenômenos Por isso falamos em teoria da relatividade teoria genética teoria aristotélica teoria psicanalítica etc Uma teoria pode ou não nascer diretamente de uma prática e ter ou não uma aplicação prática direta mas não é a prática que permite determinar a verdade ou falsidade teórica e sim critérios internos à própria teoria seja sua correspondência com as coisas teorizadas seja a coerência interna de seus argumentos seus raciocínios suas demonstrações e suas provas seja enfim a consistência lógica de suas significações A prática orienta o trabalho teórico verifica suas conclusões mas não determina sua verdade ou falsidade O pensamento propõe e elabora teorias e cria métodos A necessidade do método A palavra método vem do grego methodos composta de meta através de por meio de e de hodos via caminho Usar um método é seguir regular e ordenadamente um caminho através do qual uma certa finalidade ou um certo objetivo é alcançado No caso do conhecimento é o caminho ordenado que o pensamento segue por meio de um conjunto de regras e procedimentos racionais com três finalidades 1 conduzir à descoberta de uma verdade até então desconhecida 2 permitir a demonstração e a prova de uma verdade já conhecida 3 permitir a verificação de conhecimentos para averiguar se são ou não verdadeiros O método é portanto um instrumento racional para adquirir demonstrar ou verificar conhecimentos Por que se sente a necessidade de um método Porque como vimos o erro a ilusão o falso a mentira rondam o conhecimento interferem na experiência e no pensamento Para dar segurança ao conhecimento o pensamento cria regras e procedimentos que permitam ao sujeito cognoscente aferir e controlar todos os passos que realiza no conhecimento de algum objeto ou conjunto de objetos A Filosofia conheceu diferentes concepções de método Platão por exemplo considerava que o melhor caminho para o conhecimento verdadeiro era o que permitia ao pensamento libertarse do conhecimento sensível crenças opiniões isto é das imagens e aparências das coisas Atribuía esse papel liberador à discussão racional sob a forma do diálogo No diálogo os interlocutores guiados pelas perguntas do filósofo no caso Sócrates examinam e discutem opiniões que cada um deles possui sobre alguma Convite à Filosofia 200 coisa descobrem que suas opiniões são contraditórias e não levam a conhecimento algum Aceitam abandonálas e conseguem pouco a pouco chegar à idéia universal ou à essência da coisa procurada Por se tratar de um confronto entre imagens e opiniões contrárias ou contraditórias esse método ou caminho era chamado por Platão de dialética discussão de teses contrárias e em conflito ou oposição Aristóteles no entanto considerou a dialética inadequada ao pensamento pois dizia ele tal procedimento lida com meras opiniões prováveis não oferecendo qualquer garantia de que tenhamos superado o conflito de opiniões e alcançado a essência verdadeira da coisa investigada Por esse motivo definiu o procedimento filosóficocientífico como um método demonstrativo que se realiza por meio de silogismos O silogismo é um conjunto de três juízos ou proposições que permite obter uma conclusão verdadeira Tratase de um método dedutivo no qual de duas premissas deduzse uma conclusão Por exemplo Todos os homens são mortais Sócrates é homem Logo Sócrates é mortal Aristóteles considerava porém que os objetos que são conhecidos por experiência e não só pelo puro pensamento deveriam seguir um método indutivo no qual o silogismo seria o resultado final conseguido pelo conhecimento Durante a modernidade isto é a partir do século XVII a necessidade de um método tornouse ainda mais imperiosa do que antes pois como vimos o sujeito do conhecimento não sabe se pode alcançar a verdade O sujeito do conhecimento descobrese como uma consciência que parece não poder contar com o auxílio do mundo para guiálo desconfia dos conhecimentos sensíveis e dos conhecimentos herdados Está só Conta apenas com seu próprio pensamento Separado do mundo isolado com suas percepções opiniões idéias sua solidão torna indispensável um método que possa guiar o pensamento em direção aos conhecimentos verdadeiros e distinguilos dos falsos Eis porque Descartes escreve o Discurso do método e as Regras para a direção do espírito Sobre o método diz ele na regra IV das Regras Por método entendo regras certas e fáceis graças às quais todos os que as observem exatamente jamais tomarão como verdadeiro aquilo que é falso e chegarão sem se cansar com esforços inúteis e aumentando progressivamente sua ciência ao conhecimento verdadeiro de tudo o que lhes é possível esperar Descartes enuncia portanto as três principais características das regras do método Marilena Chauí 201 1 certas o método dá segurança ao pensamento 2 fáceis o método economiza esforços inúteis e 3 que permitam alcançar todos os conhecimentos possíveis para o entendimento humano Por sua vez Francis Bacon definiu o método como o modo seguro e certo de aplicar a razão à experiência isto é de aplicar o pensamento lógico aos dados oferecidos pelo conhecimento sensível O método nas várias formulações que recebeu no correr da história da Filosofia e das ciências sempre teve o papel de um regulador do pensamento isto é de aferidor e avaliador das idéias e teorias guia o trabalho intelectual produção das idéias dos experimentos das teorias e avalia os resultados obtidos Desde Aristóteles a Filosofia considera que ao lado de um método geral que todo e qualquer conhecimento deve seguir tanto para a aquisição quanto para a demonstração e verificação de verdades outros métodos particulares são necessários pois os objetos a serem conhecidos também exigem métodos que estejam em conformidade com eles e assim haverá diferentes métodos conforme a especificidade do objeto a ser conhecido Dessa maneira são diferentes entre si os métodos da geometria e da física da biologia e da sociologia da história e da química e assim por diante É interessante notar todavia que em certos períodos da história da Filosofia e das ciências chegouse a pensar num método único que ofereceria os mesmos princípios e as mesmas regras para todos os campos do conhecimento Assim por exemplo Galileu julgou que o método matemático deveria ser usado em todos os conhecimentos da Natureza pois dizia ele A Natureza é um livro escrito em caracteres matemáticos Descartes indo mais longe que Galileu julgou que um só e mesmo método deveria ser empregado pela Filosofia e por todas as ciências uma mathesis universalis ou o conhecimento da ordem necessárias das idéias válida para todos os objetos de conhecimento Conhecer seria ordenar e encadear em nexos contínuos as idéias referentes a um objeto e tal procedimento deveria ser o mesmo em todos os conhecimentos porque esse é o modo próprio do pensamento seja qual for o objeto a ser conhecido Os filósofos e cientistas do final do século XIX também afirmavam que um método único deveria ser seguido Entusiasmados com os desenvolvimentos da física julgaram que todos os campos do saber deveriam empregar o método usado pela ciência da Natureza mesmo quando o objeto fosse o homem Agora não era tanto a idéia de ordenamento interno das idéias que levava à defesa de um único método de conhecimento mas a idéia da causalidade ou de explicação causal de todos os fatos fossem eles naturais ou humanos Convite à Filosofia 202 Hoje porém sobretudo com a fenomenologia de Husserl e com a corrente do pensamento conhecida como estruturalismo considerase que cada campo do conhecimento deva ter seu método próprio determinado pela natureza do objeto pela forma como o sujeito do conhecimento pode aproximarse desse objeto e pelo conceito de verdade que cada esfera do conhecimento define para si própria Assim por exemplo considerase o método matemático isto é dedutivo próprio para objetos que existem apenas idealmente e que são construídos inteiramente pelo nosso pensamento ao contrário o método experimental isto é indutivo é próprio das ciências naturais que observam seus objetos e realizam experimentos Já as ciências humanas têm métodos de compreensão e de interpretação do sentido das ações das práticas dos comportamentos das instituições sociais e políticas dos sentimentos dos desejos das transformações históricas pois o homem objeto dessas ciências é um ser históricocultural que produz as instituições e o sentido delas Tal sentido é o que precisa ser conhecido No caso das ciências exatas as matemáticas o método é chamado axiomático isto é baseia o conhecimento num conjunto de termos primitivos e de axiomas que são o ponto de partida da construção e demonstração dos objetos No caso das ciências naturais física química biologia etc o método é chamado experimental e hipotético Experimental porque se baseia em observações e em experimentos tanto para formular quanto para verificar as teorias Hipotético porque os cientistas partem de hipóteses sobre os objetos que guiam os experimentos e a avaliação dos resultados No caso das ciências humanas psicologia sociologia antropologia história etc o método é chamado compreensivointerpretativo porque seu objeto são as significações ou os sentidos dos comportamentos das práticas e das instituições realizadas ou produzidas pelos seres humanos Quanto à Filosofia embora os filósofos tenham oscilado entre vários métodos possíveis atualmente quatro traços são comuns aos diferentes métodos filosóficos 1 o método é reflexivo parte da autoanálise ou do autoconhecimento do pensamento 2 é crítico investiga os fundamentos e as condições necessárias da possibilidade do conhecimento verdadeiro da ação ética da criação artística e da atividade política 3 é descritivo descreve as estruturas internas ou essências de cada campo de objetos do conhecimento e das formas de ação humana Marilena Chauí 203 4 é interpretativo busca as formas da linguagem e as significações ou os sentidos dos objetos dos fatos das práticas e das instituições suas origens e transformações Pensamento mítico e pensamento lógico No capítulo anterior vimos que a língua grega possuía duas palavras para referir se à linguagem mythos e logos Vimos também tanto no estudo da linguagem quanto no da inteligência que falar e pensar são inseparáveis Por isso mesmo podemos referirnos a duas modalidades do pensamento conforme predomine o mythos ou o logos A tradição filosófica sobretudo a partir do século XVIII com a filosofia da Ilustração e do século XIX com a filosofia da história de Hegel e o positivismo de Comte afirmava que do mito à lógica havia uma evolução do espírito humano isto é o mito era uma fase ou etapa do espírito humano e da civilização que antecedia o advento da lógica ou do pensamento lógico considerado a etapa posterior e evoluída do pensamento e da civilização Essa tradição filosófica fez crer que o mito pertenceria a culturas inferiores primitivas ou atrasadas enquanto o pensamento lógico ou racional pertenceria a culturas superiores civilizadas e adiantadas Essa separação temporal e evolutiva de duas modalidades de pensamento fazia com que se julgasse a presença em nossas sociedades de explicações míticas isto é as religiões a literatura as artes como uma espécie de resíduo ou resto de uma fase passada da evolução da humanidade destinada a desaparecer com a plena evolução da racionalidade científica e filosófica Hoje porém sabese que a concepção evolutiva está equivocada O pensamento mítico pertence ao campo do pensamento simbólico e da linguagem simbólica que coexistem com o campo do pensamento e da linguagem conceituais Duas linhas de estudos mostraram essa coexistência embora essas duas modalidades de pensamento e de linguagem sejam não só diferentes mas também freqüentemente contrárias e opostas A primeira linha vem da antropologia social que estuda os mitos das sociedades ditas selvagens e também as mitologias de nossas sociedades ditas civilizadas Os antropólogos mostraram que no caso de nossas sociedades a presença simultânea do conceitual e do mítico decorre do modo como a imaginação social transforma em mito aquilo que o pensamento conceitual elabora nas ciências e na Filosofia Basta ver o caráter mágicomaravilhoso dado aos satélites e computadores para vermos a passagem da ciência ao mito A segunda linha vem da neurologia e da análise da anatomia e da fisiologia do cérebro humano mostrando que esse órgão possui duas partes ou dois hemisférios num deles localizandose a linguagem e o pensamento simbólicos e noutro a linguagem e o pensamento conceituais Certas pessoas como os Convite à Filosofia 204 artistas desenvolvem mais o hemisfério simbólico enquanto outras como os cientistas desenvolvem mais o hemisfério conceitual e lógico Assim a predominância de uma ou outra forma do pensamento depende por um lado das tendências pessoais e da história da vida dos indivíduos e de outro lado do modo como uma sociedade ou uma cultura recorrem mais a uma do que à outra forma para interpretar a realidade intervir no mundo e explicarse a si mesma Numa passagem célebre de uma de suas obras Marx dizia que o mito de Zeus portador de raios trovões e tempestades não mais poderia funcionar numa sociedade que inventou o páraraios isto é descobriu cientificamente a eletricidade Mas o próprio Marx mostrou como tal sociedade cria novos mitos adaptados à era da máquina e da tecnologia Como o mito funciona O antropólogo Claude LéviStrauss estudou o pensamento selvagem para mostrar que os chamados selvagens não são atrasados nem primitivos mas operam com o pensamento mítico O mito e o rito escreve LéviStrauss não são lendas nem fabulações mas uma organização da realidade a partir da experiência sensível enquanto tal Para explicar a composição de um mito LéviStrauss se refere a uma atividade que existe em nossa sociedade e que em francês se chama bricolage Que faz um bricoleur ou seja quem pratica bricolage Produz um objeto novo a partir de pedaços e fragmentos de outros objetos Vai reunindo sem um plano muito rígido tudo o que encontra e que serve para o objeto que está compondo O pensamento mítico faz exatamente a mesma coisa isto é vai reunindo as experiências as narrativas os relatos até compor um mito geral Com esses materiais heterogêneos produz a explicação sobre a origem e a forma das coisas suas funções e suas finalidades os poderes divinos sobre a Natureza e sobre os humanos O mito possui assim três características principais 1 função explicativa o presente é explicado por alguma ação passada cujos efeitos permaneceram no tempo Por exemplo uma constelação existe porque no passado crianças fugitivas e famintas morreram na floresta e foram levadas ao céu por uma deusa que as transformou em estrelas as chuvas existem porque nos tempos passados uma deusa apaixonouse por um humano e não podendo unirse a ele diretamente uniuse pela tristeza fazendo suas lágrimas caírem sobre o mundo etc 2 função organizativa o mito organiza as relações sociais de parentesco de alianças de trocas de sexo de idade de poder etc de modo a legitimar e garantir a permanência de um sistema complexo de proibições e permissões Por exemplo um mito como o de Édipoii existe com narrativas diferentes em quase todas as sociedades selvagens e tem a função de garantir a proibição do incesto Marilena Chauí 205 sem a qual o sistema sociopolítico baseado nas leis de parentesco e de alianças não pode ser mantido 3 função compensatória o mito narra uma situação passada que é a negação do presente e que serve tanto para compensar os humanos de alguma perda como para garantirlhes que um erro passado foi corrigido no presente de modo a oferecer uma visão estabilizada e regularizada da Natureza e da vida comunitária Por exemplo entre os mitos gregos encontrase o da origem do fogo que Prometeu roubou do Olimpo para entregar aos mortais e permitirlhes o desenvolvimento das técnicas Numa das versões desse mito narrase que Prometeu disse aos homens que se protegessem da cólera de Zeus realizando o sacrifício de um boi mas que se mostrassem mais astutos do que esse deus comendo as carnes e enviandolhe as tripas e gorduras Zeus descobriu a artimanha e os homens seriam punidos com a perda do fogo se Prometeu não lhes ensinasse uma nova artimanha colocar perfumes e incenso nas partes dedicadas ao deus Com esse mito narrase o modo como os humanos se apropriaram de algo divino o fogo e criaram um ritual o sacrifício de um animal com perfumes e incenso para conservar o que haviam roubado dos deuses Como opera o pensamento mítico Antes de tudo pela reunião de heterogêneos O mito reúne junta relaciona e faz elementos diferentes e heterogêneos agirem uns sobre os outros Por exemplo corpos de crianças são estrelas lágrimas de uma deusa são chuva o dia é o carro do deus Apolo a noite é o manto de uma deusa o tempo é um deus na mitologia grega Cronos etc Em segundo lugar o mito organiza a realidade dando às coisas aos fatos às instituições um sentido analógico e metafórico isto é uma coisa vale por outra substitui outra representa outra No mito de Édipo por exemplo os pés e o modo de andar têm um significado analógico metafórico e simbólico muito preciso Labdáco avô de Édipo quer dizer coxo Laio pai de Édipo quer dizer pé torto Édipo quer dizer pé inchado Essa referência aos pés e ao modo de andar é uma referência da relação dos humanos com o solo e portanto com a terra e simboliza ou metaforiza uma questão muito grave os humanos nasceram da terra ou da união de um homem e de uma mulher Se da terra deveriam ser imortais No entanto morrem Para exprimir a angústia de serem mortais e que os humanos portanto nasceram de um homem e de uma mulher e não da terra o mito simboliza a mortalidade através da dificuldade para se relacionar com a terra isto é para andar coxo torto inchado Para exprimir a dificuldade de aceitar uma origem humana mortal o mito simboliza a fragilidade das leis humanas fazendo Laio mandar Convite à Filosofia 206 matar seu filho Édipo Édipo assassinar seu pai Laio e casarse com sua mãe Jocasta Em terceiro lugar o mito estabelece relações entre os seres naturais e humanos seja fazendo humanos nascerem por exemplo de animais seja fazendo os astros decidirem a sorte e o destino dos humanos como na astrologia seja fazendo cores metais e pedras definirem a natureza de um humano como a magia por exemplo Coisas e humanos se relacionam por participação simpatia antipatia por formas secretas de ação à distância O mundo é um tecido de laços e vínculos secretos que precisam ser decifrados e sobre os quais os homens podem adquirir algum poder por meio da imitação vestir peles de animais fabricar talismãs ficar em certas posições plantar fazendo certos gestos pronunciar determinadas palavras O mito decifra o secreto O rito imita o poder Analogias e metáforas formam símbolos isto é imagens carregadas e saturadas de sentidos múltiplos e simultâneos servindo para explicar coisas diferentes ou para substituir uma coisa por outra Assim por exemplo o fogo pode simbolizar um deus uma paixão como o amor e a cólera porque são ardentes o conhecimento porque este é uma iluminação a purificação de alguma coisa como na alquimia o poder sobre a Natureza porque permite o desenvolvimento das técnicas a diferença entre os animais e os homens porque estes cozem os alimentos enquanto aqueles os comem crus etc A peculiaridade do símbolo mítico está no fato de ele encarnar aquilo que ele simboliza Ou seja o fogo não representa alguma coisa mas é a própria coisa simbolizada é deus é amor é guerra é conhecimento é pureza é fabricação e purificação é o humano O fato de o símbolo mítico não representar mas encarnar aquilo que é significado por ele leva a dizer como faz LéviStrauss que o pensamento mítico é um pensamento sensível e concreto um pensamento onde imagens são coisas e onde coisas são idéias onde as palavras dão existência ou morte às coisas como vimos ao estudar a palavra mágica e a palavratabu Como funciona o pensamento conceitual O pensamento conceitual ou lógico opera de maneira diferente e mesmo oposta à do pensamento mítico A primeira e fundamental diferença está no fato de que enquanto o pensamento mítico opera por bricolage associação dos fragmentos heterogêneos o pensamento conceitual opera por método procedimento lógico para a articulação racional entre elementos homogêneos Dessa diferença resultam outras um conceito ou uma idéia não é uma imagem nem um símbolo mas uma descrição e uma explicação da essência ou natureza própria de um ser referindo se a esse ser e somente a ele Marilena Chauí 207 um conceito ou uma idéia não são substitutos para as coisas mas a compreensão intelectual delas um conceito ou uma idéia não são formas de participação ou de relação de nosso espírito em outra realidade mas são resultado de uma análise ou de uma síntese dos dados da realidade ou do próprio pensamento um juízo e um raciocínio não permanecem no nível da experiência nem organizam a experiência nela mesma mas partindo dela a sistematizam em relações racionais que a tornam compreensível do ponto de vista lógico um juízo e um raciocínio buscam as causas universais e necessárias pelas quais uma realidade é tal como é distinguindo o modo como ela nos aparece do modo como é em si mesma as causas e os efeitos são homogêneos isto é são de mesma natureza um juízo e um raciocínio estudam e investigam a diferença entre nossas vivências subjetivas pessoais e coletivas e os conhecimentos gerais e objetivos que são de todos e de ninguém em particular Estabelecem a diferença entre vivências subjetivas e a estrutura objetiva do pensamento em geral o pensamento lógico submete seus procedimentos a métodos isto é a regras de verificação e de generalização dos conhecimentos adquiridos a regras de ordenamento e sistematização dos procedimentos e dos resultados de modo que um conhecimento novo não pode simplesmente acrescentarse aos anteriores como no bricolage mas só se junta a eles se obedecer a certas regras e princípios intelectuais Assim por exemplo a teoria física elaborada por Aristóteles não pode ser acrescida pela de Galileu pois são contrárias do mesmo modo a física de Galileu e de Newton não podem ser acrescentadas à teoria da relatividade mas podem apenas ser consideradas um caso especial da física quando os objetos são macroscópicos e quando a separação entre o observador e o observado são possíveis O pensamento lógico ou racional ou o pensamento objetivo opera de acordo com os princípios de identidade contradição terceiro excluído razão suficiente e causalidade distingue verdades de fato e verdades de razão diferencia intuição dedução indução e abdução distingue análise e síntese diferencia reflexão e verificação teoria e prática ciência e técnica Se compararmos a explicação cosmogônica e a cosmológica da realidade tais como foram elaboradas na Grécia perceberemos melhor a diferença entre as duas modalidades de pensamento O pensamento cosmogônico narrava a origem da Natureza através de genealogias divinas as forças e os seres naturais estavam personalizados e simbolizados pelos deuses titãs e heróis cujas relações sexuais davam origem às coisas aos homens às estações do ano ao dia e à noite às colheitas à sociedade Suas paixões não correspondidas se exprimiam por raios trovões tempestades Convite à Filosofia 208 tufões desertos Seus amores e desejos realizados manifestavamse na abundância da primavera das colheitas da procriação dos animais O pensamento cosmológico explicava a origem da Natureza pela existência de um ou alguns elementos naturais terraseco águaúmido arfrio fogoquente que por sua força interna natural se transformavam dando origem a todas as coisas e aos homens Os primeiros filósofos consideravam os elementos originários como forças divinas mas já não eram personalizadas nem sua ação explicada por desejos paixões e furores Aristóteles sistematizou lógica e racionalmente as cosmologias ou teorias sobre a Natureza numa física isto é numa teoria ou ciência sobre a matéria e a forma dos seres naturais e sobre as causas de seus movimentos Para os gregos como vimos movimento kinesis significa toda mudança qualitativa de um ser qualquer por exemplo uma semente que se torna árvore um objeto branco que amarelece um animal que adoece algo quente que esfria algo frio que esquenta o duro que amolece o mole que endurece etc toda mudança ou alteração quantitativa por exemplo um corpo que aumente e diminua que se divida em outros menores que encompride ou encurte alargue ou estreite etc toda mudança de lugar ou locomoção subir descer cair a trajetória de uma flecha o deslocamento de um barco a queda de uma pedra o levitar de uma pluma etc toda geração ou nascimento e toda corrupção ou morte dos seres Esses movimentos diz Aristóteles possuem causas pois tudo o que existe possui causa e o conhecimento verdadeiro é o conhecimento das causas São quatro as causas dos movimentos 1 causa material isto é a matéria de que alguma coisa é feita madeira pedra metal líquido 2 causa formal isto é a forma que alguma coisa possui e que a individualiza e a diferencia das outras a mesa é causa formal da madeira a estátua é causa formal da pedra a taça é causa formal do metal o vinho é causa formal do líquido 3 causa motriz ou eficiente isto é aquilo que faz uma matéria receber uma forma determinada no caso dos objetos artificiais ou artefatos a causa eficiente é o artesão o carpinteiro que faz a mesa o escultor que faz a estátua o ferreiro que faz a taça o vinicultor que faz o vinho no caso dos seres naturais a causa eficiente também é uma coisa natural por exemplo o calor derrete o metal o Sol esquenta um corpo e lhe dá outra consistência ou forma etc Marilena Chauí 209 4 causa final isto é o motivo ou finalidade para a qual a coisa existe se transforma e se realiza a mesa existe para que possamos usála para refeições escrever depositar objetos etc a estátua para o culto de um deus a taça para colocarmos bebidas o vinho para bebermos Com a física aristotélica vemos a Natureza tornarse inteligível ao pensamento que pode explicála descrevêla compreendêla e interpretála conceitualmente Convite à Filosofia 210 Capítulo 7 A consciência pode conhecer tudo Consciência e conhecimento Vimos que a teoria do conhecimento distinguindo o Eu a pessoa o cidadão e o sujeito assim como distinguindo graus de consciência passiva vivida reflexiva tem como centro a figura do sujeito do conhecimento na qualidade de consciência de si reflexiva ou atividade permanente racional que conhece a si mesma Que acontecerá porém se o sujeito do conhecimento descobrir que a consciência possui mais um grau além dos três que mencionamos e sobretudo quando descobrir que não se trata exatamente de mais um grau da consciência mas de algo que a consciência desconhece e sobre o qual nunca poderá refletir diretamente Que esse algo desconhecido ou só indiretamente conhecido determina tudo quanto a consciência e o sujeito sentem fazem dizem e pensam Em outras palavras que sucederá quando o sujeito do conhecimento descobrir um limite intransponível chamado o inconsciente O inconsciente Freud escreveu que no transcorrer da modernidade os humanos foram feridos três vezes e que as feridas atingiram o nosso narcisismoiii isto é a bela imagem que possuíamos de nós mesmos como seres conscientes racionais e com a qual durante séculos estivemos encantados Que feridas foram essas A primeira foi a que nos infligiu Copérnico ao provar que a Terra não estava no centro do Universo e que os homens não eram o centro do mundo A segunda foi causada por Darwin ao provar que os homens descendem de um primata que são apenas um elo na evolução das espécies e não seres especiais criados por Deus para dominar a Natureza A terceira foi causada por Freud com a psicanálise ao mostrar que a consciência é a menor parte e a mais fraca de nossa vida psíquica Na obra Cinco ensaios sobre a psicanálise Freud escreve A Psicanálise propõe mostrar que o Eu não somente não é senhor na sua própria casa mas também está reduzido a contentarse com informações raras e fragmentadas daquilo que se passa fora da consciência no restante da vida psíquica A divisão do psíquico num psíquico consciente e num psíquico inconsciente constitui a premissa fundamental da psicanálise sem a qual ela seria incapaz de compreender os processos patológicos tão Marilena Chauí 211 freqüentes quanto graves da vida psíquica e fazêlos entrar no quadro da ciência A psicanálise se recusa a considerar a consciência como constituindo a essência da vida psíquica mas nela vê apenas uma qualidade desta podendo coexistir com outras qualidades e até mesmo faltar A psicanálise Freud era médico psiquiatra Seguindo os médicos de sua época usava a hipnose e a sugestão no tratamento dos doentes mentais mas sentiase insatisfeito com os resultados obtidos Certa vez recebeu uma paciente Anna O que apresentava sintomas de histeria isto é apresentava distúrbios físicos paralisias enxaquecas dores de estômago sem que houvesse causas físicas para eles pois eram manifestações corporais de problemas psíquicos Em lugar de usar a hipnose e a sugestão Freud usou um procedimento novo fazia com que Anna relaxasse num divã e falasse Dizia a ela palavras soltas e pedialhe que dissesse a primeira palavra que lhe viesse à cabeça ao ouvir a que ele dissera posteriormente Freud denominaria esse procedimento de técnica de associação livre Freud percebeu que em certos momentos Anna reagia a certas palavras e não pronunciava aquela que lhe viera à cabeça censurandoa por algum motivo ignorado por ela e por ele Notou também que em outras ocasiões depois de fazer a associação livre de palavras Anna ficava muito agitada e falava muito Observou que certas vezes algumas palavras a faziam chorar sem motivo aparente e outras vezes a faziam lembrar de fatos da infância narrar um sonho que tivera na noite anterior Pela conversa pelas reações da paciente pelos sonhos narrados e pelas lembranças infantis Freud descobriu que a vida consciente de Anna era determinada por uma vida inconsciente que tanto ela quanto ele desconheciam Compreendeu também que somente interpretando as palavras os sonhos as lembranças e os gestos de Anna chegaria a essa vida inconsciente Freud descobriu finalmente que os sintomas histéricos tinham três finalidades 1 contar indiretamente aos outros e a si mesma os sentimentos inconscientes 2 punirse por ter tais sentimentos 3 realizar pela doença e pelo sofrimento um desejo inconsciente intolerável Tratando de outros pacientes Freud descobriu que embora conscientemente quisessem a cura algo neles criava uma barreira uma resistência inconsciente à cura Por quê Porque os pacientes sentiamse interiormente ameaçados por alguma coisa dolorosa e temida algo que haviam penosamente esquecido e que não suportavam lembrar Freud descobriu assim que o esquecimento consciente operava simultaneamente de duas maneiras 1 como resistência à terapia 2 sob Convite à Filosofia 212 a forma da doença psíquica pois o inconsciente não esquece e obriga o esquecido a reaparecer sob a forma dos sintomas da neurose e da psicose Desenvolvendo com outros pacientes e consigo mesmo esses procedimentos e novas técnicas de interpretação de sintomas sonhos lembranças esquecimentos Freud foi criando o que chamou de análise da vida psíquica ou psicanálise cujo objeto central era o estudo do inconsciente e cuja finalidade era a cura de neuroses e psicoses tendo como método a interpretação e como instrumento a linguagem tanto a linguagem verbal das palavras quanto a linguagem corporal dos sintomas e dos gestos A vida psíquica Durante toda sua vida Freud não cessou de reformular a teoria psicanalítica abandonando alguns conceitos criando outros abandonando algumas técnicas terapêuticas e criando outras Não vamos aqui acompanhar a história da formação da psicanálise mas apresentar algumas de suas principais idéias e inovações A vida psíquica é constituída por três instâncias duas delas inconscientes e apenas uma consciente o id o superego e o ego ou o isso o supereu e o eu Os dois primeiros são inconscientes o terceiro consciente O id é formado por instintos impulsos orgânicos e desejos inconscientes ou seja pelo que Freud designa como pulsões Estas são regidas pelo princípio do prazer que exige satisfação imediata O id é a energia dos instintos e dos desejos em busca da realização desse princípio do prazer É a libido Instintos impulsos e desejos em suma as pulsões são de natureza sexual e a sexualidade não se reduz ao ato sexual genital mas a todos os desejos que pedem e encontram satisfação na totalidade de nosso corpo Freud descobriu três fases da sexualidade humana que se diferenciam pelos órgãos que sentem prazer e pelos objetos ou seres que dão prazer Essas fases se desenvolvem entre os primeiros meses de vida e os cinco ou seis anos ligadas ao desenvolvimento do id a fase oral quando o desejo e o prazer localizamse primordialmente na boca e na ingestão de alimentos e o seio materno a mamadeira a chupeta os dedos são objetos do prazer a fase anal quando o desejo e o prazer localizamse primordialmente no ânus e as excreções fezes brincar com massas e com tintas amassar barro ou argila comer coisas cremosas e sujarse são os objetos do prazer e a fase genital ou fase fálica quando o desejo e o prazer localizamse primordialmente nos órgãos genitais e nas partes do corpo que excitam tais órgãos Nessa fase para os meninos a mãe é o objeto do desejo e do prazer para as meninas o pai No centro do id determinando toda a vida psíquica encontrase o que Freud denominou de complexo de Édipo isto é o desejo incestuoso pelo pai ou pela Marilena Chauí 213 mãe É esse o desejo fundamental que organiza a totalidade da vida psíquica e determina o sentido de nossas vidas O superego também inconsciente é a censura das pulsões que a sociedade e a cultura impõem ao id impedindoo de satisfazer plenamente seus instintos e desejos É a repressão particularmente a repressão sexual Manifestase à consciência indiretamente sob a forma da moral como um conjunto de interdições e de deveres e por meio da educação pela produção da imagem do eu ideal isto é da pessoa moral boa e virtuosa O superego ou censura desenvolvese num período que Freud designa como período de latência situado entre os seis ou sete anos e o início da puberdade ou adolescência Nesse período formase nossa personalidade moral e social de maneira que quando a sexualidade genital ressurgir estará obrigada a seguir o caminho traçado pelo superego O ego ou o eu é a consciência pequena parte da vida psíquica submetida aos desejos do id e à repressão do superego Obedece ao princípio da realidade ou seja à necessidade de encontrar objetos que possam satisfazer ao id sem transgredir as exigências do superego O ego diz Freud é um pobre coitado espremido entre três escravidões os desejos insaciáveis do id a severidade repressiva do superego e os perigos do mundo exterior Por esse motivo a forma fundamental da existência para o ego é a angústia Se se submeter ao id tornase imoral e destrutivo se se submeter ao superego enlouquece de desespero pois viverá numa insatisfação insuportável se não se submeter à realidade do mundo será destruído por ele Cabe ao ego encontrar caminhos para a angústia existencial Estamos divididos entre o princípio do prazer que não conhece limites e o princípio da realidade que nos impõe limites externos e internos Ao egoeu ou seja à consciência é dada uma função dupla ao mesmo tempo recalcar o id satisfazendo o superego e satisfazer o id limitando o poderio do superego A vida consciente normal é o equilíbrio encontrado pela consciência para realizar sua dupla função A loucura neuroses e psicoses é a incapacidade do ego para realizar sua dupla função seja porque o id ou o superego são excessivamente fortes seja porque o ego é excessivamente fraco O inconsciente em suas duas formas está impedido de manifestarse diretamente à consciência mas consegue fazêlo indiretamente A maneira mais eficaz para a manifestação é a substituição isto é o inconsciente oferece à consciência um substituto aceitável por ela e por meio do qual ela pode satisfazer o id ou o superego Os substitutos são imagens isto é representações analógicas dos objetos do desejo e formam o imaginário psíquico que ao ocultar e dissimular o verdadeiro desejo o satisfaz indiretamente por meio de objetos substitutos a chupeta e o dedo para o seio materno tintas e pintura ou argila e escultura para as fezes uma pessoa amada no lugar do pai ou da mãe Além dos substitutos Convite à Filosofia 214 reais chupeta argila pessoa amada o imaginário inconsciente também oferece outros substitutos os mais freqüentes sendo os sonhos os lapsos e os atos falhos Neles realizamos desejos inconscientes de natureza sexual São a satisfação imaginária do desejo Alguém sonha por exemplo que sobe uma escada está num naufrágio ou num incêndio Na realidade sonhou com uma relação sexual proibida Alguém quer dizer uma palavra esquecea ou se engana comete um lapso e diz uma outra que nos surpreende pois nada tem a ver com aquela que se queria dizer Realizou um desejo proibido Alguém vai andando por uma rua e sem querer torce o pé e quebra o objeto que estava carregando Realizou um desejo proibido A vida psíquica dá sentido e coloração afetivosexual a todos os objetos e todas as pessoas que nos rodeiam e entre os quais vivemos Por isso sem que saibamos por que desejamos e amamos certas coisas e pessoas odiamos e tememos outras As coisas e os outros são investidos por nosso inconsciente com cargas afetivas de libido É por esse motivo que certas coisas certos sons certas cores certos animais certas situações nos enchem de pavor enquanto outras nos enchem de bemestar sem que o possamos explicar A origem das simpatias e antipatias amores e ódios medos e prazeres está em nossa mais tenra infância em geral nos primeiros meses e anos de nossa vida quando se formam as relações afetivas fundamentais e o complexo de Édipo Essa dimensão imaginária de nossa vida psíquica substituições sonhos lapsos atos falhos prazer e desprazer com objetos e pessoas indica que os recursos inconscientes para surgir indiretamente à consciência possuem dois níveis o nível do conteúdo manifesto escada mar e incêndio no sonho a palavra esquecida e a pronunciada no lapso pé torcido ou objeto partido no ato falho afetos contrários por coisas e pessoas e o nível do conteúdo latente que é o conteúdo inconsciente real e oculto os desejos sexuais Nossa vida normal se passa no plano dos conteúdos manifestos e portanto no imaginário Somente uma análise psíquica e psicológica desses conteúdos por meio de técnicas especiais trazidas pela psicanálise nos permite decifrar o conteúdo latente que se dissimula sob o conteúdo manifesto Além dos recursos individuais cotidianos que nosso inconsciente usa para manifestarse e além dos recursos extremos e dolorosos usados na loucura nela os recursos são os sintomas existe um outro recurso de enorme importância para a vida cultural e social isto é para a existência coletiva Tratase do que Freud designa com o nome de sublimação Na sublimação os desejos inconscientes são transformados em uma outra coisa exprimemse pela criação de uma outra coisa as obras de arte as ciências a religião a Filosofia as técnicas as instituições sociais e as ações políticas Marilena Chauí 215 Artistas místicos pensadores escritores cientistas líderes políticos satisfazem seus desejos pela sublimação e portanto pela realização de obras e pela criação de instituições religiosas sociais políticas etc Porém assim como a loucura é a impossibilidade do ego para realizar sua própria função também a sublimação pode não ser alcançada e em seu lugar surgir uma perversão social ou coletiva uma loucura social ou coletiva O nazismo é um exemplo de perversão em vez de sublimação A propaganda que induz em nós falsos desejos sexuais pela multiplicação das imagens de prazer é um outro exemplo de perversão ou de incapacidade para a sublimação O inconsciente diz Freud não é o subconsciente Este é aquele grau de consciência como consciência passiva e consciência vivida nãoreflexiva podendo tornarse plenamente consciente O inconsciente ao contrário jamais será consciente diretamente podendo ser captado apenas indiretamente e por meio de técnicas especiais de interpretação desenvolvidas pela psicanálise A psicanálise descobriu assim uma poderosa limitação às pretensões da consciência para dominar e controlar a realidade e o conhecimento Paradoxalmente porém nos revelou a capacidade fantástica da razão e do pensamento para ousar atravessar proibições e repressões e buscar a verdade mesmo que para isso seja preciso desmontar a bela imagem que os seres humanos têm de si mesmos Longe de desvalorizar a teoria do conhecimento a psicanálise exige do pensamento que não faça concessões às idéias estabelecidas à moral vigente aos preconceitos e às opiniões de nossa sociedade mas que as enfrente em nome da própria razão e do pensamento A consciência é frágil mas é ela que decide e aceita correr o risco da angústia e o risco de desvendar e decifrar o inconsciente Aceita e decide enfrentar a angústia para chegar ao conhecimento somos um caniço pensante A alienação social Às três feridas narcísicas mencionadas por Freud precisamos acrescentar mais uma a que nos foi infligida por Marx com a noção de ideologia Para compreendêla precisamos primeiro compreender o fenômeno da alienação social Marx era filósofo advogado e historiador e interessouse por um estudo feito por um outro filósofo Feuerbach Este investigara o modo como se formam as religiões isto é o modo como os seres humanos sentem necessidade de oferecer uma explicação para a origem e a finalidade do mundo Ao buscar essa explicação os humanos projetam fora de si um ser superior dotado das qualidades que julgam as melhores inteligência vontade livre bondade justiça beleza mas as fazem existir nesse ser superior como superlativas isto é ele é onisciente e onipotente sabe tudo faz tudo pode tudo Convite à Filosofia 216 Pouco a pouco os humanos se esquecem de que foram os criadores desse ser e passam a acreditar no inverso ou seja que esse ser foi quem os criou e os governa Passam a adorálo prestarlhe culto temêlo Não se reconhecem nesse Outro que criaram Em latim outro se diz alienus Os homens se alienam e Feuerbach designou esse fato com o nome de alienação A alienação é o fenômeno pelo qual os homens criam ou produzem alguma coisa dão independência a essa criatura como se ela existisse por si mesma e em si mesma deixamse governar por ela como se ela tivesse poder em si e por si mesma não se reconhecem na obra que criaram fazendoa um seroutro separado dos homens superior a eles e com poder sobre eles Marx não se interessou apenas pela alienação religiosa mas investigou sobretudo a alienação social Interessouse em compreender as causas pelas quais os homens ignoram que são os criadores da sociedade da política da cultura e agentes da História Interessouse em compreender por que os humanos acreditam que a sociedade não foi instituída por eles mas por vontade e obra dos deuses da Natureza da Razão em vez de perceberem que são eles próprios que em condições históricas determinadas criam as instituições sociais família relações de produção e de trabalho relações de troca linguagem oral linguagem escrita escola religião artes ciências filosofia e as instituições políticas leis direitos deveres tribunais Estado exército impostos prisões A ação sociopolítica e histórica chamase práxis e o desconhecimento de suas origens e de suas causas alienação Por que os seres humanos não se reconhecem como sujeitos sociais políticos históricos como agentes e criadores da realidade na qual vivem Por que além de não se perceberem como sujeitos e agentes os humanos se submetem às condições sociais políticas culturais como se elas tivessem vida própria poder próprio vontade própria e os governassem em lugar de serem controladas e governadas por eles Por que existe a alienação social Por que os homens se deixam dominar pela sua própria obra ou criação histórica Por que filósofos teólogos cientistas portanto o sujeito do conhecimento elaboram teorias que reforçam a alienação Por que filósofos dizem que a sociedade é produzida pela Natureza Por que teólogos dizem que a família e o Estado existem por vontade de Deus Por que os cientistas afirmam que a sociedade é racional e criada pela Razão Universal Para compreender o fenômeno da alienação Marx estudou o modo como as sociedades são produzidas historicamente pela práxis dos seres humanos Verificou que historicamente uma sociedade pequena grande tribal imperial não importa sempre começa por uma divisão e que essa divisão organiza todas as relações sociais que serão instituídas a seguir Tratase da divisão social do trabalho Na luta pela sobrevivência os seres humanos se agrupam para explorar os recursos da Natureza e dividem as tarefas tarefas dos homens adultos tarefas Marilena Chauí 217 das mulheres adultas tarefas dos homens jovens tarefas das mulheres jovens tarefas das crianças e dos idosos A partir dessa divisão organizam a primeira instituição social a família na qual o homem adulto na qualidade de pai torna se chefe e domina a mulher adulta sua esposa e mãe de seus filhos os quais também são dominados pelo pai As famílias trabalham e trocam entre si os produtos do trabalho Surge uma segunda instituição social a troca isto é o comércio Algumas famílias conquistam terras melhores do que outras e conseguem colheitas ou gado em maior quantidade que outras trocando seus produtos por uma quantidade maior que a de outras Ficam mais ricas As muito pobres não tendo conseguido produzir nada ou muito pouco vêemse obrigadas a trabalhar para as mais ricas em troca de produtos para a sobrevivência Começa a surgir uma terceira instituição social o trabalho servil que desembocará na escravidão Os mais ricos e poderosos reúnemse e decidem controlar o conjunto de famílias distribuindo entre si os poderes e excluindo algumas famílias de todo poder Começa a surgir uma quarta instituição social o poder político de onde virá o Estado Nessa altura os seres humanos já começaram a explicar a origem e a finalidade do mundo já elaboraram mitos e ritos As famílias ricas e poderosas dão a alguns de seus membros autoridade exclusiva para narrar mitos e celebrar ritos Criam uma outra instituição social a religião dominada por sacerdotes saídos das famílias poderosas e que por terem a autoridade para se relacionar com o sagrado tornamse temidos e venerados pelo restante da sociedade São um novo poder social Os vários grupos de famílias dirigentes disputam entre si terras animais e servos e dão início a uma nova instituição social a guerra com a qual os vencidos se tornam escravos dos vencedores e o poder econômico social militar religioso e político se concentra ainda mais em poucas mãos Como escreveu Maquiavel toda sociedade é constituída pela divisão entre o desejo dos grandes de oprimir e comandar e o desejo do povo de não ser oprimido nem comandado Com essa descrição Marx observou que a sociedade nasce pela estruturação de um conjunto de divisões divisão sexual do trabalho divisão social do trabalho divisão social das trocas divisão social das riquezas divisão social do poder econômico divisão social do poder militar divisão social do poder religioso e divisão social do poder político Por que divisão Porque em todas as instituições sociais família trabalho comércio guerra religião política uma parte detém poder riqueza bens armas idéias e saberes terras trabalhadores poder político enquanto outra parte não possui nada disso estando subjugada à outra rica poderosa e instruída Esse conjunto estruturado de divisões tornase cada vez mais complexo intrincado numeroso multiplicandose em muitas outras divisões sob a forma Convite à Filosofia 218 de numerosas instituições sociais e acabam por revelar a estrutura fundamental das sociedades como divisão social das classes sociais A esse conjunto tanto simples quanto complexo de instituições nascidas da divisão social Marx deu o nome de condições materiais da vida social e política Por que materiais Porque se referem ao conjunto de práticas sociais pelas quais os homens garantem sua sobrevivência por meio do trabalho e da troca dos produtos do trabalho e que constituem a economia A variação das condições materiais de uma sociedade constitui a História dessa sociedade e Marx as designou como modos de produção A História é a mudança passagem ou transformação de um modo de produção para outro Tal mudança não se realiza por acaso nem por vontade livre dos seres humanos mas acontece de acordo com condições econômicas sociais e culturais já estabelecidas que podem ser alteradas de uma maneira também determinada graças à práxis humana diante de tais condições dadas O fato de que a mudança de uma sociedade ou a mudança histórica se faça em condições determinadas levou Marx a afirmar que Os homens fazem a História mas o fazem em condições determinadas isto é que não foram escolhidas por eles Por isso também ele disse Os homens fazem a História mas não sabem que a fazem Estamos aqui diante de uma situação coletiva muito parecida com a que encontramos no caso de nossa vida psíquica individual Assim como julgamos que nossa consciência sabe tudo pode tudo faz o que pensa e quer mas na realidade está determinada pelo inconsciente e ignora tal determinação assim também na existência social os seres humanos julgam que sabem o que é a sociedade dizendo que Deus ou a Natureza ou a Razão a criaram instituíram a política e a História e que os homens são seus instrumentos ou então acreditam que fazem o que fazem e pensam o que pensam porque são indivíduos livres autônomos e com poder para mudar o curso das coisas como e quando quiserem Por exemplo quando alguém diz que uma pessoa é pobre porque quer porque é preguiçosa ou perdulária ou ignorante está imaginando que somos o que somos somente por nossa vontade como se a organização e a estrutura da sociedade da economia da política não tivesse qualquer peso sobre nossas vidas A mesma coisa acontece quando alguém diz ser pobre pela vontade de Deus e não por causa das condições concretas em que vive Ou quando faz uma afirmação racista segundo a qual a Natureza fez alguns superiores e outros inferiores A alienação social é o desconhecimento das condições históricosociais concretas em que vivemos produzidas pela ação humana também sob o peso de outras condições históricas anteriores e determinadas Há uma dupla alienação por um lado os homens não se reconhecem como agentes e autores da vida social com suas instituições mas por outro lado e ao mesmo tempo julgamse indivíduos plenamente livres capazes de mudar suas vidas individuais como e quando Marilena Chauí 219 quiserem apesar das instituições sociais e das condições históricas No primeiro caso não percebem que instituem a sociedade no segundo caso ignoram que a sociedade instituída determina seus pensamentos e ações As três formas da alienação social Podemos falar em três grandes formas de alienação existentes nas sociedades modernas ou capitalistas 1 A alienação social na qual os humanos não se reconhecem como produtores das instituições sociopolíticas e oscilam entre duas atitudes ou aceitam passivamente tudo o que existe por ser tido como natural divino ou racional ou se rebelam individualmente julgando que por sua própria vontade e inteligência podem mais do que a realidade que os condiciona Nos dois casos a sociedade é o outro alienus algo externo a nós separado de nós diferente de nós e com poder total ou nenhum poder sobre nós 2 A alienação econômica na qual os produtores não se reconhecem como produtores nem se reconhecem nos objetos produzidos por seu trabalho Em nossas sociedades modernas a alienação econômica é dupla Em primeiro lugar os trabalhadores como classe social vendem sua força de trabalho aos proprietários do capital donos das terras das indústrias do comércio dos bancos das escolas dos hospitais das frotas de automóveis de ônibus ou de aviões etc Vendendo sua força de trabalho no mercado da compra e venda de trabalho os trabalhadores são mercadorias e como toda mercadoria recebem um preço isto é o salário Entretanto os trabalhadores não percebem que foram reduzidos à condição de coisas que produzem coisas não percebem que foram desumanizados e coisificados Em segundo lugar os trabalhos produzem alimentos pelo cultivo da terra e dos animais objetos de consumo pela indústria instrumentos para a produção de outros trabalhos máquinas condições para a realização de outros trabalhos transporte de matériasprimas de produtos e de trabalhadores A mercadoria trabalhador produz mercadorias Estas ao deixarem as fazendas as usinas as fábricas os escritórios e entrarem nas lojas nas feiras nos supermercados nos shoppings centers parecem ali estar porque lá foram colocadas não pensamos no trabalho humano que nelas está cristalizado e não pensamos no trabalho humano realizado para que chegassem até nós e como o trabalhador elas também recebem um preço O trabalhador olha os preços e sabe que não poderá adquirir quase nada do que está exposto no comércio mas não lhe passa pela cabeça que foi ele não enquanto indivíduo e sim como classe social quem produziu tudo aquilo com seu trabalho e que não pode ter os produtos porque o preço deles é muito mais alto do que o preço dele trabalhador isto é o seu salário Convite à Filosofia 220 Apesar disso o trabalhador pode cheio de orgulho mostrar aos outros as coisas que ele fabrica ou se comerciário que ele vende aceitando não possuílas como se isso fosse muito justo e natural As mercadorias deixam de ser percebidas como produtos do trabalho e passam a ser vistas como bens em si e por si mesmas como a propaganda as mostra e oferece Na primeira forma de alienação econômica o trabalhador está separado de seu trabalho este é alguma coisa que tem um preço é um outro alienus que não o trabalhador Na segunda forma da alienação econômica as mercadorias não permitem que o trabalhador se reconheça nelas Estão separadas dele são exteriores a ele e podem mais do que ele As mercadorias são igualmente um outro que não o trabalhador 3 A alienação intelectual resultante da separação social entre trabalho material que produz mercadorias e trabalho intelectual que produz idéias A divisão social entre as duas modalidades de trabalho leva a crer que o trabalho material é uma tarefa que não exige conhecimentos mas apenas habilidades manuais enquanto o trabalho intelectual é responsável exclusivo pelos conhecimentos Vivendo numa sociedade alienada os intelectuais também se alienam Sua alienação é tripla Primeiro esquecem ou ignoram que suas idéias estão ligadas às opiniões e pontos de vista da classe a que pertencem isto é a classe dominante e imaginam ao contrário que são idéias universais válidas para todos em todos os tempos e lugares Segundo esquecem ou ignoram que as idéias são produzidas por eles para explicar a realidade e passam a crer que elas se encontram gravadas na própria realidade e que eles apenas as descobrem e descrevem sob a forma de teorias gerais Terceiro esquecem ou ignoram a origem social das idéias e seu próprio trabalho para criálas acreditam que as idéias existem em si e por si mesmas criam a realidade e a controlam dirigem ou dominam Pouco a pouco passam a acreditar que as idéias se produzem umas às outras são causas e efeitos umas das outras e que somos apenas receptáculos delas ou instrumentos delas As idéias se tornam separadas de seus autores externas a eles transcendentes a eles tornamse um outro As três grandes formas da alienação social econômica e intelectual são a causa do surgimento da implantação e do fortalecimento da ideologia A ideologia A alienação se exprime numa teoria do conhecimento espontânea formando o senso comum da sociedade Por seu intermédio são imaginadas explicações e justificativas para a realidade tal como é diretamente percebida e vivida Marilena Chauí 221 Um exemplo desse senso comum aparece no caso da explicação da pobreza em que o pobre é pobre por sua própria culpa preguiça ignorância ou por vontade divina ou por inferioridade natural Esse senso comum social na verdade é o resultado de uma elaboração intelectual sobre a realidade feita pelos pensadores ou intelectuais da sociedade sacerdotes filósofos cientistas professores escritores jornalistas artistas que descrevem e explicam o mundo a partir do ponto de vista da classe a que pertencem e que é a classe dominante de uma sociedade Essa elaboração intelectual incorporada pelo senso comum social é a ideologia Por meio dela o ponto de vista as opiniões e as idéias de uma das classes sociais a dominante e dirigente tornamse o ponto de vista e a opinião de todas as classes e de toda a sociedade A função principal da ideologia é ocultar e dissimular as divisões sociais e políticas darlhes a aparência de indivisão e de diferenças naturais entre os seres humanos Indivisão apesar da divisão social das classes somos levados a crer que somos todos iguais porque participamos da idéia de humanidade ou da idéia de nação e pátria ou da idéia de raça etc Diferenças naturais somos levados a crer que as desigualdades sociais econômicas e políticas não são produzidas pela divisão social das classes mas por diferenças individuais dos talentos e das capacidades da inteligência da força de vontade maior ou menor etc A produção ideológica da ilusão social tem como finalidade fazer com que todas as classes sociais aceitem as condições em que vivem julgandoas naturais normais corretas justas sem pretender transformálas ou conhecêlas realmente sem levar em conta que há uma contradição profunda entre as condições reais em que vivemos e as idéias Por exemplo a ideologia afirma que somos todos cidadãos e portanto temos todos os mesmos direitos sociais econômicos políticos e culturais No entanto sabemos que isso não acontece de fato as crianças de rua não têm direitos os idosos não têm direitos os direitos culturais das crianças nas escolas públicas são inferiores aos das crianças que estão em escolas particulares pois o ensino não é de mesma qualidade em ambas os negros e índios são discriminados como inferiores os homossexuais são perseguidos como pervertidos etc A maioria porém acredita que o fato de ser eleitor pagar as dívidas e contribuir com os impostos já nos faz cidadãos sem considerar as condições concretas que fazem alguns serem mais cidadãos do que outros A função da ideologia é impedirnos de pensar nessas coisas Os procedimentos da ideologia Como procede a ideologia para obter esse fantástico resultado Em primeiro lugar opera por inversão isto é coloca os efeitos no lugar das causas e transforma estas últimas em efeitos Ela opera como o inconsciente este fabrica imagens e sintomas aquela fabrica idéias e falsas causalidades Convite à Filosofia 222 Por exemplo o senso comum social afirma que a mulher é um ser frágil sensitivo intuitivo feito para as doçuras do lar e da maternidade e que por isso foi destinada por natureza para a vida doméstica o cuidado do marido e da família Assim o ser feminino é colocado como causa da função social feminina Ora historicamente o que ocorreu foi exatamente o contrário na divisão sexual social do trabalho e na divisão dos poderes no interior da família atribuiuse à mulher um lugar levandose em conta o lugar masculino como este era o lugar do domínio da autoridade e do poder deuse à mulher o lugar subordinado e auxiliar a função complementar e visto que o número de braços para o trabalho e para a guerra aumentava o poderio do chefe da família e chefe militar a função reprodutora da mulher tornouse imprescindível trazendo como conseqüência sua designação prioritária para a maternidade Estabelecidas essas condições sociais era preciso persuadir as mulheres de que seu lugar e sua função não provinham do modo de organização social mas da Natureza e eram excelentes e desejáveis Para isso montouse a ideologia do ser feminino e da função feminina como naturais e não como históricos e sociais Como se observa uma vez implantada uma ideologia passamos a tomar os efeitos pelas causas A segunda maneira de operar da ideologia é a produção do imaginário social através da imaginação reprodutora Recolhendo as imagens diretas e imediatas da experiência social isto é do modo como vivemos as relações sociais a ideologia as reproduz mas transformandoas num conjunto coerente lógico e sistemático de idéias que funcionam em dois registros como representações da realidade sistema explicativo ou teórico e como normas e regras de conduta e comportamento sistema prescritivo de normas e valores Representações normas e valores formam um tecido de imagens que explicam toda a realidade e prescrevem para toda a sociedade o que ela deve e como deve pensar falar sentir e agir A ideologia assegura a todos modos de entender a realidade e de se comportar nela ou diante dela eliminando dúvidas ansiedades angústias admirações ocultando as contradições da vida social bem como as contradições entre esta e as idéias que supostamente a explicam e controlam Enfim uma terceira maneira de operação da ideologia é o silêncio Um imaginário social se parece com uma frase onde nem tudo é dito nem pode ser dito porque se tudo fosse dito a frase perderia a coerência tornarseia incoerente e contraditória e ninguém acreditaria nela A coerência e a unidade do imaginário social ou ideologia vêm portanto do que é silenciado e sob esse aspecto a ideologia opera exatamente como o inconsciente descrito pela psicanálise Por exemplo a ideologia afirma que o adultério é crime tanto assim que homens que matam suas esposas e os amantes delas são considerados inocentes porque Marilena Chauí 223 praticaram um ato em nome da honra que a virgindade feminina é preciosa e que o homossexualismo é uma perversão e uma doença grave tão grave que para alguns Deus resolveu punir os homossexuais enviando a peste isto é a AIDS O que está sendo silenciado pela ideologia Por que em nossa sociedade o vínculo entre sexo e procriação é tão importante coisa que não acontece em todas as sociedades mas apenas em algumas como a nossa Nossa sociedade exige a procriação legítima e legal a que se realiza pelos laços do casamento porque ela garante para a classe dominante a transmissão do capital aos herdeiros Assim sendo o adultério e a perda da virgindade são perigosos para o capital e para a transmissão legal da riqueza por isso o adultério se torna crime e a virgindade é valorizada como virtude suprema das mulheres jovens Em nossa sociedade a reprodução da força de trabalho se faz pelo aumento do número de trabalhadores e portanto a procriação é considerada fundamental para o aumento do capital que precisa da mãodeobra Por esse motivo toda sexualidade que não se realizar com finalidade reprodutiva será considerada anormal perversa e doentia donde a condenação do homossexualismo A ideologia porém perderia sua força e coerência se dissesse essas coisas e por isso as silencia Ideologia e inconsciente Dissemos que a ideologia se assemelha ao inconsciente freudiano Há pelo menos três semelhanças principais entre eles 1 o fato de que adotamos crenças opiniões idéias sem saber de onde vieram sem pensar em suas causas e motivos sem avaliar se são ou não coerentes e verdadeiras 2 ideologia e inconsciente operam através do imaginário as representações e regras saídas da experiência imediata e do silêncio realizandose indiretamente perante a consciência Falamos agimos pensamos temos comportamentos e práticas que nos parecem perfeitamente naturais e racionais porque a sociedade os repete os aceita os incute em nós pela família pela escola pelos livros pelos meios de comunicação pelas relações de trabalho pelas práticas políticas Um véu de imagens estabelecidas interpõese entre nossa consciência e a realidade 3 inconsciente e ideologia não são deliberações voluntárias O inconsciente precisa de imagens substitutos sonhos lapsos atos falhos sintomas sublimação para manifestarse e ao mesmo tempo esconderse da consciência A ideologia precisa das idéiasimagens da inversão de causas e efeitos do silêncio para manifestar os interesses da classe dominante e escondêlos como interesse de uma única classe social A ideologia não é o resultado de uma vontade deliberada de uma classe social para enganar a sociedade mas é o efeito Convite à Filosofia 224 necessário da existência social da exploração e dominação é a interpretação imaginária da sociedade do ponto de vista de uma única classe social Erguendo o véu tirando a máscara Diante do poder do inconsciente e da ideologia poderíamos ser levados a entregar os pontos dizendo Para que tanto esforço na teoria do conhecimento se afinal tudo é ilusão véu e máscara Para que compreender a atividade da consciência se ela é a pobre coitada espremida entre o id e o superego esmagada entre a classe dominante e os ideólogos Todavia uma pergunta também é possível Como sendo a consciência tão frágil o inconsciente e a ideologia tão poderosos Freud e Marx chegaram a conhecê los explicar seus modos de funcionamento e suas finalidades No caso de Freud foram a prática médica e a busca de uma técnica terapêutica para indivíduos que permitiram a descoberta do inconsciente e o trabalho teórico de onde nasceu a psicanálise No caso de Marx foi a decisão de compreender a realidade a partir da prática política de uma classe social os trabalhadores que permitiu a percepção dos mecanismos de dominação e exploração sociais de onde surgiu a formulação teórica da ideologia A busca da cura dos sofrimentos psíquicos em Freud e a luta pela emancipação dos explorados em Marx criaram condições para uma tomada de consciência pela qual o sujeito do conhecimento pôde recomeçar a crítica das ilusões e dos preconceitos que iniciara desde a Grécia mas agora como crítica de suas próprias ilusões e preconceitos Em lugar de invalidar a razão a reflexão o pensamento e a busca da verdade as descobertas do inconsciente e da ideologia fizeram o sujeito do conhecimento conhecer as condições psíquicas sociais históricas nas quais o conhecimento e o pensamento se realizam Como disseram os filósofos existencialistas acerca dessas descobertas Encarnaram o sujeito num corpo vivido real e numa história coletiva real situaram o sujeito Desvendando os obstáculos psíquicos e histórico sociais para o conhecimento puseram em primeiro plano as relações entre pensar e agir ou como se costuma dizer entre a teoria e a prática Marilena Chauí 225 Unidade 5 A lógica Convite à Filosofia 226 Capítulo 1 O nascimento da lógica É lógico É lógico que eu vou É lógico que ela disse isso Quando dizemos frases como essas a expressão é lógico que indica para nós e para a pessoa com quem estamos falando que se trata de alguma coisa evidente A expressão aparece como se fosse a conclusão de um raciocínio implícito compartilhado pelos interlocutores do discurso Ao dizer É lógico que eu vou estou supondo que quem me ouve sabe sem que isso seja dito explicitamente que também estou afirmando Você me conhece sabe o que penso gosto ou quero sabe o que vai acontecer no lugar x e na hora y e portanto não há dúvida de que irei até lá Ao dizer É lógico que ela disse isso a situação é semelhante A expressão seria a conclusão de algo que eu e a outra pessoa sabemos como se eu estivesse dizendo Sabendo quem ela é o que pensa gosta quer o que costuma dizer e fazer e vendo o que está acontecendo agora concluo que é evidente que ela disse isso pois era de se esperar que ela o dissesse Nesses casos estamos tirando uma conclusão que nos parece óbvia e dizer é lógico que seria o mesmo que dizer é claro que ou não há dúvida de que Em certas ocasiões ouvimos lemos vemos alguma coisa e nossa reação é dizer Não Não pode ser assim Isso não tem lógica Ou então Isso não é lógico Essas duas expressões indicam uma situação oposta às anteriores ou seja agora uma conclusão foi tirada por alguém mas o que já sabemos de uma pessoa de um fato de uma idéia de um livro nos faz julgar que a conclusão é indevida está errada deveria ser outra É possível também que as duas expressões estejam indicando que o conhecimento que possuímos sobre alguma coisa sobre alguém ou sobre um fato não é suficiente para compreendermos o que estamos ouvindo vendo lendo e por isso nos parece não ter lógica Nesses vários exemplos podemos perceber que as palavras lógica e lógico são usadas por nós para significar 1 ou uma inferência visto que conheço x disso posso concluir y como conseqüência 2 ou a exigência de coerência visto que x é assim então é preciso que y seja assim Marilena Chauí 227 3 ou a exigência de que não haja contradição entre o que sabemos de x e a conclusão y a que chegamos 4 ou a exigência de que para entender a conclusão y precisamos saber o suficiente sobre x para conhecer por que se chegou a y Inferência coerência conclusão sem contradições conclusão a partir de conhecimentos suficientes são algumas noções implicitamente pressupostas por nós toda vez que afirmamos que algo é lógico ou ilógico Ao usarmos as palavras lógica e lógico estamos participando de uma tradição de pensamento que se origina da Filosofia grega quando a palavra logos significando linguagemdiscurso e pensamentoconhecimento conduziu os filósofos a indagar se o logos obedecia ou não a regras possuía ou não normas princípios e critérios para seu uso e funcionamento A disciplina filosófica que se ocupa com essas questões chamase lógica O aparecimento da lógica Heráclito e Parmênides Quando estudamos o nascimento da Filosofia vimos que os primeiros filósofos se preocupavam com a origem a transformação e o desaparecimento de todos os seres Preocupavamse com o devir Duas grandes tendências adotaram posições opostas a esse respeito na época do surgimento da Filosofia a do filósofo Heráclito de Éfeso e a do filósofo Parmênides de Eléia Heráclito afirmava que somente o devir ou a mudança é real O dia se torna noite o inverno se torna primavera esta se torna verão o úmido seca o seco umedece o frio esquenta o quente esfria o grande diminui o pequeno cresce o doente ganha saúde a treva se faz luz esta se transforma naquela a vida cede lugar à morte esta dá origem àquela O mundo dizia Heráclito é um fluxo perpétuo onde nada permanece idêntico a si mesmo mas tudo se transforma no seu contrário A luta é a harmonia dos contrários responsável pela ordem racional do universo Nossa experiência sensorial percebe o mundo como se tudo fosse estável e permanente mas o pensamento sabe que nada permanece tudo se torna contrário de si mesmo O logos é a mudança e a contradição Parmênides porém afirmava que o devir o fluxo dos contrários é uma aparência mera opinião que formamos porque confundimos a realidade com as nossas sensações percepções e lembranças O devir dos contrários é uma linguagem ilusória não existe é irreal não é É o NãoSer o nada impensável e indizível O que existe real e verdadeiramente é o que não muda nunca o que não se torna oposto a si mesmo mas permanece sempre idêntico a si mesmo sem contrariedades internas É o Ser Pensar e dizer só são possíveis se as coisas que pensamos e dizemos guardarem a identidade forem permanentes Só podemos dizer e pensar aquilo que é sempre idêntico a si mesmo Por isso somente o Ser pode ser pensado e dito Nossos Convite à Filosofia 228 sentidos nos dão a aparência mutável e contraditória o NãoSer somente o pensamento puro pode alcançar e conhecer aquilo que é ou existe realmente o Ser e dizêlo em sua verdade O logos é o ser como pensamento e linguagem verdadeiros e portanto a verdade é a afirmação da permanência contra a mudança da identidade contra a contradição dos opostos Assim Heráclito afirmava que a verdade e o logos são a mudança das coisas nos seus contrários enquanto Parmênides afirmava que são a identidade do Ser imutável oposto à aparência sensível da luta dos contrários Parmênides introduz a idéia de que o que é contrário a si mesmo ou se torna o contrário do que era não pode ser existir não pode ser pensado nem dito porque é contraditório e a contradição é o impensável e o indizível uma vez que uma coisa que se torne oposta de si mesma destróise a si mesma tornase nada Para Heráclito a contradição é a lei racional da realidade para Parmênides a identidade é essa lei racional A história da Filosofia grega será a história de um gigantesco esforço para encontrar uma solução para o problema posto por Heráclito e Parmênides pois se o primeiro tiver razão o pensamento deverá ser um fluxo perpétuo e a verdade será a perpétua contradição dos seres em mudança contínua mas se Parmênides tiver razão o mundo em que vivemos não terá sentido não poderá ser conhecido será uma aparência impensável e viveremos na ilusão Será preciso portanto uma solução que prove que a mudança e os contrários existem e podem ser pensados mas ao mesmo tempo que prove que a identidade ou permanência dos seres também existe é verdadeira e pode ser pensada Como encontrar essa solução O aparecimento da lógica Platão e Aristóteles No momento de seu apogeu isto é de Platão e de Aristóteles a Filosofia oferecerá as duas soluções mais importantes para o problema da contradição mudança e identidadepermanência dos seres Não vamos aqui falar dessas duas filosofias mas destacar um aspecto de cada uma delas relacionado com o nosso assunto isto é com o surgimento da lógica Platão considerou que Heráclito tinha razão no que se refere ao mundo material ou físico isto é ao mundo dos seres corporais pois a matéria é o que está sujeito a mudanças contínuas e a oposições internas Heráclito está certo no que diz respeito ao mundo de nossas sensações percepções e opiniões o mundo natural ou material que Platão chama de mundo sensível é o devir permanente No entanto dizia Platão esse mundo é uma aparência é o mundo dos prisioneiros da caverna é uma cópia ou sombra do mundo verdadeiro e real e nesse Parmênides é quem tem razão O mundo verdadeiro é o das essências imutáveis que Platão chama de mundo inteligível sem contradições nem oposições sem transformação onde nenhum ser passa para o seu contraditório Marilena Chauí 229 Mas como conhecer as essências e abandonar as aparências Como sair da caverna Através de um método do pensamento e da linguagem chamado dialética Em grego a palavra dia quer dizer dois duplo o sufixo lética derivase de logos e do verbo legin cujo sentido estudamos nos capítulos dedicados à linguagem e ao pensamento A dialética como já vimos é um diálogo ou uma conversa em que os interlocutores possuem opiniões opostas sobre alguma coisa e devem discutir ou argumentar de modo a passar das opiniões contrárias à mesma idéia ou ao mesmo pensamento sobre aquilo que conversam Devem passar de imagens contraditórias a conceitos idênticos para todos os pensantes A dialética platônica é um procedimento intelectual e lingüístico que parte de alguma coisa que deve ser separada ou dividida em dois ou duas partes contrárias ou opostas de modo que se conheça sua contradição e se possa determinar qual dos contrários é verdadeiro e qual é falso A cada divisão surge um par de contrários que devem ser separados e novamente divididos até que se chegue a um termo indivisível isto é não formado por nenhuma oposição ou contradição e que será a idéia verdadeira ou a essência da coisa investigada Partindo de sensações imagens opiniões contraditórias sobre alguma coisa a dialética vai separando os opostos em pares mostrando que um dos termos é aparência e ilusão e o outro verdadeiro ou essência A dialética é um debate uma discussão um diálogo entre opiniões contrárias e contraditórias para que o pensamento e a linguagem passem da contradição entre as aparências à identidade de uma essência Superar os contraditórios e chegar ao que é sempre idêntico a si mesmo é a tarefa da discussão dialética que revela o mundo sensível como heraclitiano a luta dos contrários a mudança incessante e o mundo inteligível como parmenidiano a identidade perene de cada idéia consigo mesma Aristóteles por sua vez segue uma via diferente da escolhida por Platão Considera desnecessário separar realidade e aparência em dois mundos diferentes há um único mundo no qual existem essências e aparências e não aceita que a mudança ou o devir seja mera aparência ilusória Há seres cuja essência é mudar e há seres cuja essência é imutável O erro de Heráclito foi supor que a mudança se realiza sob a forma da contradição isto é que as coisas se transformam nos seus opostos pois a mudança ou transformação é a maneira pela qual as coisas realizam todas as potencialidades contidas em suas essência e esta não é contraditória mas uma identidade que o pensamento pode conhecer Assim por exemplo quando a criança se torna adulta ou quando a semente se torna árvore nenhuma delas tornouse contrária a si mesma mas desenvolveu uma potencialidade definida pela identidade própria de sua essência Cabe à Filosofia conhecer como e por que as coisas sem mudarem de essência transformamse assim como cabe à Filosofia conhecer como e por que há seres Convite à Filosofia 230 imutáveis como as entidades matemáticas e as divinas Parmênides tem razão o pensamento e a linguagem exigem a identidade Heráclito tem razão as coisas mudam Ambos se enganaram ao supor que identidade e mudança são contraditórias Tal engano levou Platão à desnecessária divisão dos mundos Em segundo lugar Aristóteles considera que a dialética não é um procedimento seguro para o pensamento e a linguagem da Filosofia e da ciência pois tem como ponto de partida simples opiniões contrárias dos debatedores e a escolha de uma opinião contra outra não garante chegar à essência da coisa investigada A dialética diz Aristóteles é boa para as disputas oratórias da política e do teatro para a retórica pois esta tem como finalidade persuadir alguém oferecendo argumentos fortes que convençam o oponente e os ouvintes É adequada para os assuntos sobre os quais só cabe a persuasão mas não para a Filosofia e a ciência porque nestas interessa a demonstração e a prova de uma verdade Substituindo a dialética por um conjunto de procedimentos de demonstração e prova Aristóteles criou a lógica propriamente dita que ele chamava de analítica a palavra lógica será empregada séculos mais tarde pelos estóicos e Alexandre de Afrodísia Qual a diferença entre a dialética platônica e a lógica ou analítica aristotélica Em primeiro lugar a dialética platônica é o exercício direto do pensamento e da linguagem um modo de pensar que opera com os conteúdos do pensamento e do discurso A lógica aristotélica é um instrumento que antecede o exercício do pensamento e da linguagem oferecendolhes meios para realizar o conhecimento e o discurso Para Platão a dialética é um modo de conhecer Para Aristóteles a lógica ou analítica é um instrumento para o conhecer Em segundo lugar a dialética platônica é uma atividade intelectual destinada a trabalhar contrários e contradições para superálos chegando à identidade da essência ou da idéia imutável Depurando e purificando as opiniões contrárias a dialética platônica chega à verdade do que é idêntico e o mesmo para todas as inteligências A lógica aristotélica oferece procedimentos que devem ser empregados naqueles raciocínios que se referem a todas as coisas das quais possamos ter um conhecimento universal e necessário e seu ponto de partida não são opiniões contrárias mas princípios regras e leis necessárias e universais do pensamento Marilena Chauí 231 Capítulo 2 Elementos de lógica Principais características da lógica Aristóteles propôs a primeira classificação geral dos conhecimentos ou das ciências dividindoas em três tipos teoréticas práticas e produtivas Todos os saberes referentes a todos os seres todas as ações e produções humanas encontravamse distribuídos nessa classificação que ia da ciência mais alta a filosofia primeira até o conhecimento das técnicas criadas pelos homens para a fabricação de objetos No entanto nessa classificação não encontramos a lógica Por quê Para Aristóteles a lógica não era uma ciência teorética nem prática ou produtiva mas um instrumento para as ciências Eis por que o conjunto das obras lógicas aristotélicas recebeu o nome de Órganon palavra grega que significa instrumento A lógica caracterizase como instrumental é o instrumento do pensamento para pensar corretamente e verificar a correção do que está sendo pensado formal não se ocupa com os conteúdos pensados ou com os objetos referidos pelo pensamento mas apenas com a forma pura e geral dos pensamentos expressa através da linguagemiv propedêutica é o que devemos conhecer antes de iniciar uma investigação científica ou filosófica pois somente ela pode indicar os procedimentos métodos raciocínios demonstrações que devemos empregar para cada modalidade de conhecimento normativa fornece princípios leis regras e normas que todo pensamento deve seguir se quiser ser verdadeiro doutrina da prova estabelece as condições e os fundamentos necessários de todas as demonstrações Dada uma hipótese permite verificar as conseqüências necessárias que dela decorrem dada uma conclusão permite verificar se é verdadeira ou falsa geral e temporal as formas do pensamento seus princípios e suas leis não dependem do tempo e do lugar nem das pessoas e circunstâncias mas são universais necessárias e imutáveis como a própria razão Convite à Filosofia 232 O objeto da lógica é a proposição que exprime através da linguagem os juízos formulados pelo pensamento A proposição é a atribuição de um predicado a um sujeito S é P O encadeamento dos juízos constitui o raciocínio e este se exprime logicamente através da conexão de proposições essa conexão chamase silogismo A lógica estuda os elementos que constituem uma proposição as categorias os tipos de proposições e de silogismos e os princípios necessários a que toda proposição e todo silogismo devem obedecer para serem verdadeiros princípio da identidade da nãocontradição e do terceiro excluído A proposição Uma proposição é constituída por elementos que são seus termos Aristóteles define os termos ou categorias como aquilo que serve para designar uma coisa São palavras não combinadas com outras e que aparecem em tudo quanto pensamos e dizemos Há dez categorias ou termos 1 substância por exemplo homem Sócrates animal 2 quantidade por exemplo dois metros de comprimento 3 qualidade por exemplo branco grego agradável 4 relação por exemplo o dobro a metade maior do que 5 lugar por exemplo em casa na rua no alto 6 tempo por exemplo ontem hoje agora 7 posição por exemplo sentado deitado de pé 8 posse por exemplo armado isto é tendo armas 9 ação por exemplo corta fere derrama 10 paixão ou passividade por exemplo está cortado está ferido As categorias ou termos indicam o que uma coisa é ou faz ou como está São aquilo que nossa percepção e nosso pensamento captam imediata e diretamente numa coisa não precisando de qualquer demonstração pois nos dão a apreensão direta de uma entidade simples Possuem duas propriedades lógicas a extensão e a compreensão Extensão é o conjunto de objetos designados por um termo ou uma categoria Compreensão é o conjunto de propriedades que esse mesmo termo ou essa categoria designa Por exemplo uso a palavra homem para designar Pedro Paulo Sócrates e uso a palavra metal para designar ouro ferro prata cobre A extensão do termo homem será o conjunto de todos os seres que podem ser designados por ele e que podem ser chamados de homens a extensão do termo metal será o conjunto de todos os seres que podem ser designados como metais Se porém tomarmos o termo homem e dissermos que é um animal vertebrado mamífero bípede mortal e racional essas qualidades formam sua compreensão Marilena Chauí 233 Se tomarmos o termo metal e dissermos que é um bom condutor de calor reflete a luz etc teremos a compreensão desse termo Quanto maior a extensão de um termo menor sua compreensão e quanto maior a compreensão menor a extensão Se por exemplo tomarmos o termo Sócrates veremos que sua extensão é a menor possível pois possui todas as propriedades do termo homem e mais suas próprias propriedades enquanto uma pessoa determinada Essa distinção permite classificar os termos ou categorias em três tipos 1 gênero extensão maior compreensão menor Exemplo animal 2 espécie extensão média e compreensão média Exemplo homem 3 indivíduo extensão menor compreensão maior Exemplo Sócrates Na proposição as categorias ou termos são os predicados atribuídos a um sujeito O sujeito S é uma substância os predicados P são as propriedades atribuídas ao sujeito a atribuição ou predicação se faz por meio do verbo de ligação ser Por exemplo Pedro é alto A proposição é um discurso declarativo apofântico que enuncia ou declara verbalmente o que foi pensado e relacionado pelo juízo A proposição reúne ou separa verbalmente o que o juízo reuniu ou separou mentalmente A reunião ou separação dos termos recebe o valor de verdade ou de falsidade quando o que foi reunido ou separado em pensamento e linguagem está reunido ou separado na realidade verdade ou quando o que foi reunido ou separado em pensamento e linguagem não está reunido ou separado na realidade falsidade A reunião se faz pela afirmação S é P A separação se faz pela negação S não é P A proposição representa o juízo coloca o pensamento na linguagem e a realidade declara o que está unido e o que está separado Do ponto de vista do sujeito existem dois tipos de proposições 1 proposição existencial declara a existência posição ação ou paixão do sujeito Por exemplo Um homem é existe Um homem anda Um homem está ferido E suas negativas Um homem não é não existe Um homem não anda Um homem não está ferido 2 proposição predicativa declara a atribuição de alguma coisa a um sujeito por meio da cópula é Por exemplo Um homem é justo Um homem não é justo As proposições se classificam segundo a qualidade e quantidade Do ponto de vista da qualidade as proposições de dividem em afirmativas as que atribuem alguma coisa a um sujeito S é P negativas as que separam o sujeito de alguma coisa S não é P Convite à Filosofia 234 Do ponto de vista da quantidade as proposições se dividem em universais quando o predicado se refere à extensão total do sujeito afirmativamente Todos os S são P ou negativamente Nenhum S é P particulares quando o predicado é atribuído a uma parte da extensão do sujeito afirmativamente Alguns S são P ou negativamente Alguns S não são P singulares quando o predicado é atribuído a um único indivíduo afirmativamente Este S é P ou negativamente Este S não é P Além da distinção pela qualidade e pela quantidade as proposições se distinguem pela modalidade sendo classificadas como necessárias quando o predicado está incluído necessariamente na essência do sujeito fazendo parte dessa essência Por exemplo Todo triângulo é uma figura de três lados Todo homem é mortal nãonecessárias ou impossíveis quando o predicado não pode de modo algum ser atribuído ao sujeito Por exemplo Nenhum triângulo é figura de quatro lados Nenhum planeta é um astro com luz própria possíveis quando o predicado pode ser ou deixar de ser atribuído ao sujeito Por exemplo Alguns homens são justos Como todo pensamento e todo juízo a proposição está submetida aos três princípios lógicos fundamentais condições de toda verdade 1 princípio da identidade um ser é sempre idêntico a si mesmo A é A 2 princípio da nãocontradição é impossível que um ser seja e não seja idêntico a si mesmo ao mesmo tempo e na mesma relação É impossível que A seja A e nãoA 3 princípio do terceiro excluído dadas duas proposições com o mesmo sujeito e o mesmo predicado uma afirmativa e outra negativa uma delas é necessariamente verdadeira e a outra necessariamente falsa A é x ou nãox não havendo terceira possibilidade Graças a esses princípios obtemos a última maneira pela qual as proposições se distinguem Tratase da classificação das proposições segundo a relação contraditórias quando temos o mesmo sujeito e o mesmo predicado uma das proposições é universal afirmativa Todos os S são P e a outra é particular negativa Alguns S não são P ou quando se tem uma universal negativa Nenhum S é P e uma particular afirmativa Alguns S são P contrárias quando tendo o mesmo sujeito e o mesmo predicado uma das proposições é universal afirmativa Todo S é P e a outra é universal negativa Nenhum S é P ou quando uma das proposições é particular afirmativa Alguns S são P e a outra é particular negativa Alguns S não são P Marilena Chauí 235 subalternas quando uma universal afirmativa subordina uma particular afirmativa de mesmo sujeito e predicado ou quando uma universal negativa subordina uma particular negativa de mesmo sujeito e predicado Quando a proposição é universal e necessária seja afirmativa ou negativa diz se que ela declara um juízo apodítico Quando a proposição é universal ou particular possível afirmativa ou negativa dizse que ela declara um juízo hipotético cuja formulação é Se então Quando a proposição é universal ou particular afirmativa ou negativa e comporta uma alternativa que depende dos acontecimentos ou das circunstâncias dizse que ela declara um juízo disjuntivo cuja formulação é Ou ou Assim a proposição Todos os homens são mortais e a proposição Nenhum triângulo é uma figura de quatro lados são apodíticas A proposição Se a educação for boa ele será virtuoso é hipotética A proposição Ou choverá amanhã ou não choverá amanhã é disjuntiva O silogismo Aristóteles elaborou uma teoria do raciocínio como inferência Inferir é tirar uma proposição como conclusão de uma outra ou de várias outras proposições que a antecedem e são sua explicação ou sua causa O raciocínio é uma operação do pensamento realizada por meio de juízos e enunciada lingüística e logicamente pelas proposições encadeadas formando um silogismo Raciocínio e silogismo são operações mediatas de conhecimento pois a inferência significa que só conhecemos alguma coisa a conclusão por meio ou pela mediação de outras coisas A teoria aristotélica do silogismo é o coração da lógica pois é a teoria das demonstrações ou das provas da qual depende o pensamento científico e filosófico O silogismo possui três características principais 1 é mediato exige um percurso de pensamento e de linguagem para que se possa chegar a uma conclusão 2 é dedutivo é um movimento de pensamento e de linguagem que parte de certas afirmações verdadeiras para chegar a outras também verdadeiras e que dependem necessariamente das primeiras 3 é necessário porque é dedutivo as conseqüências a que se chega na conclusão resultam necessariamente da verdade do ponto de partida Por isso Aristóteles considera o silogismo que parte de proposições apodíticas superior ao que parte de proposições hipotéticas ou possíveis designandoo com o nome de ostensivo pois ostenta ou mostra claramente a relação necessária e verdadeira entre o ponto de partida e a conclusão O exemplo mais famoso do silogismo ostensivo é Todos os homens são mortais Convite à Filosofia 236 Sócrates é homem Logo Sócrates é mortal Um silogismo é constituído por três proposições A primeira é chamada de premissa maior a segunda de premissa menor e a terceira de conclusão inferida das premissas pela mediação de um termo chamado termo médio As premissas possuem termos chamados extremos e a função do termo médio é ligar os extremos Essa ligação é a inferência ou dedução e sem ela não há raciocínio nem demonstração Por isso a arte do silogismo consiste em saber encontrar o termo médio que ligará os extremos e permitirá chegar à conclusão O silogismo para chegar a uma conclusão verdadeira deve obedecer a um conjunto complexo de regras Dessas regras apresentaremos as mais importantes tomando como referência o silogismo clássico que oferecemos acima a premissa maior deve conter o termo extremo maior no caso mortais e o termo médio no caso homens a premissa menor deve conter o termo extremo menor no caso Sócrates e o termo médio no caso homem a conclusão deve conter o maior e o menor e jamais deve conter o termo médio no caso deve conter Sócrates e mortal e jamais deve conter homem Sendo função do médio ligar os extremos deve estar nas premissas mas nunca na conclusão A idéia geral da dedução ou inferência silogística é A é verdade de B B é verdade de C Logo A é verdade de C A inferência silogística também é feita com negativas Nenhum anjo é mortal A é verdade de B Miguel é anjo B é verdade de C Logo Miguel não é mortal A é verdade de C A proposição é uma predicação ou atribuição As premissas fazem a atribuição afirmativa ou negativa do predicado ao sujeito estabelecendo a inclusão ou exclusão do médio no maior e a inclusão ou exclusão do menor no médio Graças a essa dupla inclusão ou exclusão o menor estará incluído ou excluído do maior Por ser um sistema de inclusões ou exclusões entre sujeitos e predicados o silogismo é a declaração da inerência do predicado ao sujeito inerência afirmativa quando o predicado está incluído no sujeito inerência negativa Marilena Chauí 237 quando o predicado está excluído do sujeito A ciência é a investigação dessas inerências por meio das quais se alcança a essência do objeto investigado A inferência silogística deve obedecer a oito regras sem as quais a dedução não terá validade não sendo possível dizer se a conclusão é verdadeira ou falsa 1 um silogismo deve ter um termo maior um menor e um médio e somente três termos nem mais nem menos 2 o termo médio deve aparecer nas duas premissas e jamais aparecer na conclusão deve ser tomado em toda a sua extensão isto é como um universal pelo menos uma vez pois do contrário não se poderá ligar o maior e o menor Por exemplo se eu disser Os nordestinos são brasileiros e Os paulistas são brasileiros não poderei tirar conclusão alguma pois o termo médio brasileiros foi tomado sempre em parte de sua extensão e nenhuma vez no todo de sua extensão 3 nenhum termo pode ser mais extenso na conclusão do que nas premissas pois nesse caso concluiremos mais do que seria permitido Isso significa que uma das premissas sempre deverá ser universal afirmativa ou negativa 4 a conclusão não pode conter o termo médio já que a função deste se esgota na ligação entre o maior e o menor ligação que é a conclusão 5 de duas premissas negativas nada pode ser concluído pois o médio não terá ligado os extremos 6 de duas premissas particulares nada poderá ser concluído pois o médio não terá sido tomado em toda a sua extensão pelo menos uma vez e não poderá ligar o maior e o menor 7 duas premissas afirmativas devem ter a conclusão afirmativa o que é evidente por si mesmo 8 a conclusão sempre acompanha a parte mais fraca isto é se houver uma premissa negativa a conclusão será negativa se houver uma premissa particular a conclusão será particular se houver uma premissa particular negativa a conclusão será particular negativa Essas regras dão origem às figuras e modos do silogismo As figuras são quatro e se referem à posição ocupada pelo termo médio nas premissas sujeito na maior sujeito na menor sujeito em ambas predicado na maior predicado na menor predicado em ambas Os modos se referem aos tipos de proposições que constituem as premissas universais afirmativas em ambas universais negativas em ambas particulares afirmativas em ambas particulares negativas em ambas universal afirmativa na maior e particular afirmativa na menor etc Existem 64 modos possíveis mas desses apenas dez são considerados válidos Combinandose as quatro figuras e os dez modos temse as dezenove formas válidas de silogismo Convite à Filosofia 238 Tomemos um exemplo da chamada primeira figura e os modos em que pode se apresentar Na primeira figura o termo médio é sujeito na maior e predicado na menor 1º modo todas as proposições são universais afirmativas Todos os homens são mortais Todos os atenienses são homens Todos os atenienses são mortais 2º modo a maior é universal negativa a menor é universal afirmativa e a conclusão é universal negativa Nenhum astro é perecível Todas as estrelas são astros Nenhuma estrela é perecível 3º modo a maior é universal afirmativa a menor é particular afirmativa e a conclusão é particular afirmativa Todos os homens são mortais Sócrates é homem Sócrates é mortal 4º modo a maior é universal negativa a menor é particular afirmativa e a conclusão é particular negativa Nenhum tirano é amado Dionísio é tirano Dionísio não é amado Aristóteles considera a primeira figura a mais própria para o silogismo científico porque nela a inerência do predicado no sujeito é a mais perfeita A ciência segundo Aristóteles encontra a essência das coisas demonstrando a ligação necessária entre um indivíduo a espécie e o gênero isto é a inclusão do indivíduo na espécie e desta no gênero A primeira figura é a que melhor evidencia essa inclusão ou a exclusão O silogismo científico Aristóteles distingue dois grandes tipos de silogismos os dialéticos e os científicos Os primeiros são aqueles cujas premissas se referem ao que é apenas possível ou provável ao que pode ser de uma maneira ou de uma maneira contrária e oposta ao que pode acontecer ou deixar de acontecer Suas premissas são hipotéticas e por isso sua conclusão também é hipotética Marilena Chauí 239 O silogismo científico é aquele que se refere ao universal e necessário ao que é de uma maneira e não pode deixar de ser tal como é ao que acontece sempre e sempre da mesma maneira Suas premissas são apodíticas e sua conclusão também é apodítica O silogismo dialético é o que comporta argumentações contrárias porque suas premissas são meras opiniões sobre coisas ou fatos possíveis ou prováveis As opiniões não são objetos de ciência mas de persuasão A dialética é uma discussão entre opiniões contrárias que oferecem argumentos contrários vencendo aquele argumento cuja conclusão for mais persuasiva do que a do adversário O silogismo dialético é próprio da retórica ou arte da persuasão na qual aquele que fala procura tocar as emoções e paixões dos ouvintes e não no raciocínio ou na inteligência deles O silogismo científico não admite premissas contraditórias Suas premissas são universais necessárias e sua conclusão não admite discussão ou refutação mas exige demonstração Por esse motivo o silogismo científico deve obedecer a quatro regras sem as quais sua demonstração não terá valor 1 as premissas devem ser verdadeiras não podem ser possíveis ou prováveis nem falsas 2 as premissas devem ser primárias ou primeiras isto é indemonstráveis pois se tivermos que demonstrar as premissas teremos que ir de regressão em regressão indefinidamente e nada demonstraremos 3 as premissas devem ser mais inteligíveis do que a conclusão pois a verdade desta última depende inteiramente da absoluta clareza e compreensão que tenhamos das suas condições isto é das premissas 4 as premissas devem ser causa da conclusão isto é devem estabelecer as coisas ou os fatos que causam a conclusão e que a explicam de tal maneira que ao conhecêlas estamos obedecendo as causas da conclusão Esta regra é da maior importância porque para Aristóteles conhecer é conhecer as causas ou pelas causas O que são as premissas de um silogismo científico São verdades indemonstráveis evidentes e causais São de três tipos 1 axiomas como por exemplo os três princípios lógicos ou afirmações do tipo O todo é maior do que as partes 2 postulados isto é os pressupostos de que se vale uma ciência para iniciar o estudo de seus objetos Por exemplo o espaço plano na geometria o movimento e o repouso na física 3 definições que para Aristóteles são as premissas mais importantes de uma ciência do gênero que é o objeto da ciência investigada A definição deve dizer o que a coisa estudada é como é por que é sob quais condições é a definição Convite à Filosofia 240 deve dar o que o como o porquê e o se da coisa investigada que é o sujeito da proposição A definição está referida ao termo médio pois é ele que pode preencher as quatro exigências que como por que se e é por seu intermédio que o silogismo alcança o conceito da coisa investigada Através do termo médio a definição oferece o conceito da coisa por meio das categorias substância quantidade qualidade relação lugar tempo posição posse ação paixão e da inclusão necessária do indivíduo na espécie e no gênero O conceito nos oferece a essência da coisa investigada suas propriedades necessárias ou essenciais e o termo médio é o atributo essencial para chegar à definição Por isso a definição consiste em encontrar para um sujeito uma substância seus atributos essenciais seus predicados Um atributo é essencial quando faz uma coisa ser o que ela é ou cuja ausência impediria a coisa de ser tal como é mortal é um atributo essencial de Sócrates Um atributo é acidental quando sua presença ou sua ausência não afetam a essência da coisa gordo é um atributo acidental de Sócrates O silogismo científico não lida com os predicados ou atributos acidentais A ciência é um conhecimento que vai de seu gênero mais alto às suas espécies mais singulares A passagem do gênero à espécie singular se faz por uma cadeia dedutiva ou cadeia silogística na qual cada espécie funciona como gênero para suas subordinadas e cada uma delas se distingue das outras por uma diferença específica Definir é encontrar a diferença específica entre seres do mesmo gênero A tarefa da definição é oferecer a definição do gênero e a diferença específica essencial que distingue uma espécie da outra A demonstração o silogismo partirá do gênero oferecerá a definição da espécie e incluirá o indivíduo na espécie e no gênero de sorte que a essência ou o conceito do indivíduo nada mais é do que sua inclusão ou sua inerência à espécie e ao gênero A demonstração parte da definição do gênero e dos axiomas e postulados referentes a ele deve provar que o gênero possui realmente os atributos ou predicados que a definição os axiomas e postulados afirmam que ele possui O que é essa prova É a prova de que as espécies são os atributos ou predicados do gênero e são elas o objeto da conclusão do silogismo Com isso percebese que uma ciência possui três objetos os axiomas e postulados que fundamentam a demonstração a definição do gênero cuja existência não precisa nem deve ser demonstrada e os atributos essenciais ou predicados essenciais do gênero que são suas espécies às quais chega a conclusão Numa etapa seguinte a espécie a que se chegou na conclusão de um silogismo tornase gênero do qual parte uma nova demonstração e assim sucessivamente Marilena Chauí 241 Para que o silogismo científico cumpra sua função ele deve respeitar além das regras gerais do silogismo quatro exigências relativas às suas premissas 1 devem ser premissas verdadeiras para todos os casos de seu sujeito 2 devem ser premissas essenciais isto é a relação entre o sujeito e o predicado deve ser sempre necessária seja porque o predicado está contido na essência do sujeito por exemplo o predicado linha está contido na essência do sujeito triângulo seja porque o predicado é uma propriedade essencial do sujeito por exemplo o predicado curva tem que estar necessariamente referido ao sujeito linha seja porque existe uma relação causal entre o predicado e o sujeito por exemplo o predicado eqüidistantes do centro é a causa do sujeito círculo uma vez que esta é a figura geométrica cuja circunferência tem todos os pontos eqüidistantes do centro Em resumo as premissas devem estabelecer a inerência do predicado à essência do sujeito 3 devem ser premissas próprias isto é referemse exclusivamente ao sujeito daquela ciência e de nenhuma outra Por isso não posso ir buscar premissas da geometria cujo sujeito são as figuras na aritmética cujo sujeito são os números nem as da biologia cujo sujeito são os seres vivos na astronomia cujo sujeito são os astros etc Em outras palavras o termo médio do silogismo científico se refere aos atributos essenciais dos sujeitos de uma ciência determinada e de nenhuma outra 4 devem ser premissas gerais isto é nunca devem referirse aos indivíduos mas aos gêneros e às espécies pois o indivíduo definese por eles e não eles pelo indivíduo Convite à Filosofia 242 Capítulo 3 A lógica após Aristóteles A lógica estóica Vimos que Aristóteles emprega a palavra analítica para referirse ao estudo das leis ou regras que o pensamento deve seguir para exprimir a verdade Não emprega a palavra lógica Esta foi introduzida por uma corrente filosófica do período final da Filosofia grega o estoicismo Os estóicos afirmavam que só existem corpos mesmo a alma era corporal sendo um sopro sutil e invisível o pneuma Afirmavam também que há certas coisas que não existem propriamente mas subsistem por meio de outras sendo incorporais Entre os incorporais colocavam o exprimível isto é a linguagem ou o discurso e consideravam o estudo dos discursos ou dos logoi uma disciplina filosófica especial a lógica Por afirmarem que somente os corpos existem os estóicos afirmavam como conseqüência que os juízos e as proposições só poderiam referirse ao particular ou ao singular uma ve z que os universais não têm existência ou seja não existem corpos universais mas apenas singulares As coisas singulares se imprimem em nós por meio da percepção ou da representação sobre elas formulamos os juízos e os exprimimos em proposições verdadeiras ou falsas cabendo à lógica duas tarefas 1 determinar os critérios pelos quais uma proposição pode ser considerada verdadeira ou falsa e 2 estabelecer as condições para o encadeamento verdadeiro de proposições isto é o raciocínio como ligação entre proposições singulares Por meio da percepção temos a representação direta de uma realidade Nossa memória guarda a recordação dessa representação e de muitas outras formando a experiência Da experiência nascem noções gerais sobre as coisas noções comuns que são antecipações sobre as coisas singulares de que temos ou teremos percepções A lógica se refere à relação entre as noções comuns gerais e as representações particulares As noções comuns gerais correspondem ao que Aristóteles chamou de categorias mas reduzidas a apenas quatro 1 o sujeito ou substância expresso por um substantivo ou por um pronome 2 a qualidade expressa por adjetivos Marilena Chauí 243 3 a ação e a paixão expressas pelos verbos 4 a relação que se estabelece entre as três primeiras categorias Uma outra inovação importante trazida pelos estóicos referese à proposição Esta não é como era para Aristóteles a atribuição de um predicado ao sujeito S é P mas é um acontecimento expresso por palavras o predicado é um verbo que indica algo que acontece ou aconteceu com o sujeito Pedro morre e não Pedro é mortal É dia está claro e não O dia é claro João adoece e não João é doente Como conseqüência das inovações só há corpos só há coisas singulares só há quatro categorias somente o verbo é predicado os estóicos concebem a lógica como uma disciplina que se ocupa dos significados buscando por meio deles aquilo que significa e aquilo que é Por exemplo se eu disser Sócrates temos nessa palavra aquilo que o significado significa alguém chamado Sócrates e nela temos também o próprio Sócrates que é aquilo que é ou seja a coisa real significada pela palavra Sócrates O significado estabelece a relação entre a palavra Sócrates e o homem real Sócrates O significado é ao mesmo tempo a representação mental ou o conceito ou a noção que formamos de Sócrates e a relação entre essa representação e o ser real de Sócrates Em suma o significado é o que permite estabelecer a relação entre uma palavra e um ser pela mediação da representação mental que possuímos desse ser É o sentido A lógica estóica opera com o sentido ou com o significado Uma proposição para os estóicos é sempre um enunciado simples sobre um acontecimento referente a um significado Sócrates escreve Sócrates anda Sócrates sentase Existem cinco tipos de ligações entre as proposições formando cinco tipos de raciocínios 1 raciocínio hipotético que exprime uma relação entre um antecedente e um conseqüente do tipo Se então Por exemplo Se há fumaça então há fogo há fumaça portanto há fogo Se é noite então há trevas é noite portanto há trevas 2 raciocínio conjuntivo que simplesmente justapõe os acontecimentos Por exemplo É dia está claro ou É dia e está claro 3 raciocínio disjuntivo que separa os enunciados de modo que somente um deles seja verdadeiro Por exemplo Ou é dia ou é noite 4 raciocínio causal que exprime a causa do acontecimento Por exemplo Visto que está claro portanto é dia 5 raciocínio relativo que exprime o mais ou maior e o menos ou menor Por exemplo Está menos escuro quando é mais dia Convite à Filosofia 244 De todos os tipos de raciocínio o mais importante é o hipotético porque os outros são variantes dele como se pode observar no exemplo Este soldado tem sangue no peito se tem sangue no peito feriuse tem sangue no peito portanto feriuse Outro exemplo Será dia ou noite se está claro então é dia portanto não é noite Durante a Idade Média os filósofos se dividiram em duas grandes correntes os aristotélicos como santo Tomás de Aquino e os chamados terministas que adotaram a lógica estóica como foi o caso de Guilherme de Ockham Os primeiros são considerados racionalistas enquanto os segundos são considerados empiristas já que só admitem a existência e a experiência de coisas singulares de que temos sensação ou percepção e porque só aceitam a conexão de proposições cuja conclusão exprima fatos ou acontecimentos presentes A lógica contemporânea irá buscar nos estóicos a idéia de relação contrapondoa à atribuição aristotélica que estabelece a inclusão do predicado no sujeito Os medievais e os clássicos Para Platão a dialética era o instrumento para alcançar a verdade Por meio dela a faculdade de conhecer subia das opiniões contrárias ou opostas até às idéias ou essências universais a realidade verdadeira A dialética era assim um método de diálogo que partia da discussão entre interlocutores que possuindo apenas imagens confusas das coisas defendiam posições contrárias sobre um assunto ou sobre alguma coisa as contradições entre as opiniões iam sendo discutidas depuradas purificadas pelos argumentos racionais da dialética que persuadia os interlocutores a alcançar a identidade da idéia a mesma para todos Para Aristóteles porém a dialética não poderia cumprir o papel de instrumento do pensamento verdadeiro porque este exige procedimentos de prova ou demonstração para além da simples argumentação Por esse motivo Aristóteles reservava a dialética para os campos em que a argumentação e a persuasão eram importantes mas colocava a lógica a analítica como instrumento indispensável do pensamento científico e filosófico isto é do pensamento que demonstra a verdade das suas teses e conclusões A lógica era assim o instrumento demonstrativo do pensamento verdadeiro Os estóicos mantiveram a idéia aristotélica de que a lógica era um instrumento de prova No entanto como sua teoria do conhecimento afirmava que só conhecemos aquilo de que temos experiência direta a prova era considerada a maneira pela qual se podia chegar a uma conclusão partindo de premissas meramente prováveis isto é do raciocínio hipotético Por esse motivo a prova possuía um caráter persuasivo ou argumentativo levando o estoicismo a identificar lógica e dialética Durante a Idade Média embora os filósofos tivessem feito opções diferentes uns optaram pela concepção de Aristóteles e outros pela dos estóicos todos Marilena Chauí 245 tenderam a identificar lógica e dialética isto é a considerar que a lógica é uma arte racional de demonstração mas que essa demonstração tem a força de um argumento persuasivo A lógica oferecia os procedimentos racionais da prova e da dialética os meios de persuadir o ouvinte ou o leitor A principal contribuição dos medievais esteve no esforço para dar um passo além de Aristóteles com a proposta de quantificar também o predicado das proposições Assim além das proposições serem universais ou particulares em função do sujeito todos os S nenhum S alguns S este S deveriam ser também universais ou particulares conforme o predicado todos os P nenhum P alguns P este P Por exemplo Todos os homens são alguns mortais pois os animais e as plantas também são mortais Todos os homens são todos os seres compostos de corpo e espírito pois os anjos só têm espírito enquanto os animais e as plantas só têm corpo Os medievais também contribuíram para a lógica deixando mais clara a relação entre ela e a linguagem isto é mostrando que a lógica é inseparável de um uso ordenado e regulado da linguagem Partindo do latim que era a língua culta usada pela Filosofia pela ciência pelas artes e pelo direito estabeleceram regras para todas as funções sintáticas e semânticas dos signos da língua latina Essa concepção da lógica como relação entre o pensamento e uma linguagem perfeitamente ordenada e regulada capaz de exprimir claramente as idéias foi intensamente desenvolvida no século XVII por Leibniz que propôs uma Arte Combinatória inspirada na álgebra Assim como a álgebra possui símbolos próprios inconfundíveis universais para todos os matemáticos assim também a lógica deveria ser uma linguagem perfeita totalmente purificada das ambigüidades e contrasensos da linguagem cotidiana Leibniz propôs uma linguagem simbólica artificial isto é construída especialmente para garantir ao pensamento plena clareza nas demonstrações e nas provas A relação entre lógica e matemática também foi desenvolvida no século XVII pelo filósofo inglês Hobbes tendo a geometria como modelo Hobbes considerava o raciocínio um cálculo isto é quando raciocinamos simplesmente somamos subtraímos multiplicamos ou dividimos idéias cabendo à lógica estabelecer as regras universais desse cálculo A linguagem dizia Hobbes é uma convenção social É por convenção que fazemos determinados sons e determinadas grafias isto é determinadas palavras corresponderem a certas coisas e não a outras e conseqüentemente o significado lingüístico e mental resulta dessa convenção social À lógica caberia organizar ordenar e sistematizar as formas corretas do uso das convenções garantindo que cada palavra e cada idéia cada proposição e cada conceito pudessem corresponderse livres de toda confusão e ambigüidade Convite à Filosofia 246 Esse ideal de uma lógica simbólica perfeita inspirada na linguagem matemática veio concretizarse apenas nos meados do século XIX com a publicação de duas obras Análise matemática da lógica de Boole em 1847 e Lógica formal de Morgan também em 1847 Caberia mais tarde ao filósofo alemão Frege e aos filósofos ingleses Bertrand Russell e Alfred Whitehead completar e consolidar a grande transformação da lógica abandonando as teorias aristotélicas da inferência por uma nova concepção de proposição lógica A lógica matemática Para os antigos e os medievais aristotélicos os princípios e as leis da lógica correspondiam à estrutura da própria realidade pois o pensamento exprime o real e dele participa Aristóteles dizia que a verdade e a falsidade são propriedades do pensamento e não das coisas que a realidade e a irrealidade aparência ilusória são propriedades das coisas e não do pensamento mas que um pensamento verdadeiro devia exprimir a realidade da coisa pensada enquanto um pensamento falso nada podia exprimir Para os medievais terministas e para os modernos século XVII a lógica era uma arte de pensar para bem conduzir a razão nas ciências Os princípios e as leis da lógica correspondiam à estrutura do próprio pensamento sobretudo à do raciocínio dedutivo para os filósofos franceses de PortRoyal e à do raciocínio indutivo para o filósofo inglês Francis Bacon Como arte de pensar a lógica oferecia ao conhecimento científico e filosófico as leis do pensamento verdadeiro e os procedimentos para a avaliação dos conhecimentos adquiridos Essa lógica antiga e moderna não era plenamente formal pois não era indiferente aos conteúdos das proposições nem às operações intelectuais do sujeito do conhecimento A forma lógica recebia o valor de verdade ou falsidade a partir da verdade ou falsidade dos atos de conhecimento do sujeito e da realidade ou irrealidade dos objetos conhecidos Ao contrário a lógica contemporânea procurando tornarse um puro simbolismo do tipo matemático e um cálculo simbólico preocupase cada vez menos com o conteúdo material das proposições a realidade dos objetos referidos pela proposição e com as operações intelectuais do sujeito do conhecimento a estrutura do pensamento Tornouse plenamente formal Assim como o matemático lida com objetos que foram construídos pelas próprias operações matemáticas de acordo com princípios e regras prefixados e aceitos por todos assim também o lógico elabora os símbolos e as operações que constituem o objeto lógico por excelência a proposição O lógico indaga que forma deve possuir uma proposição para que sejalhe atribuída o valor de verdade ou falsidade represente a forma do pensamento e represente a relação entre pensamento linguagem e realidade Marilena Chauí 247 A lógica descreve as formas as propriedades e as relações das proposições graças à construção de um simbolismo regulado e ordenado que permite diferenciar linguagem cotidiana e linguagem lógica formalizada Boole definiu a lógica como o método que repousa sobre o emprego de símbolos dos quais se conhecem as leis gerais de combinação e cujos resultados admitem interpretação coerente A lógica tornouse cada vez mais uma ciência formal da linguagem mas de uma linguagem muito especial que nada tem a ver com a linguagem cotidiana pois tratase de uma linguagem inteiramente construída por ela mesma partindo do modelo da matemática Dois aspectos devem ser mencionados para melhor compreendermos a relação entre a lógica contemporânea e a matemática 1 A mudança no modo de conceber o que seja a matemática Durante séculos na verdade desde os gregos considerouse a matemática uma ciência baseada na intuição intelectual de verdades absolutas existentes em si e por si mesmas sem depender de qualquer interferência humana Os axiomas as figuras geométricas os números e as operações aritméticas os símbolos e as operações algébricas eram considerados verdades absolutas universais necessárias que existiriam com ou sem os homens e que permaneceriam existindo mesmo se os humanos desaparecessem para muitos filósofos a matemática chegou a ser considerada a ciência divina por excelência No entanto desde o século XIX passouse a considerar a matemática uma ciência que resulta de uma construção intelectual uma invenção do espírito humano sem que suas entidades sejam existentes em si e por si mesmas Os entes matemáticos são puras idealidades construídas pelo intelecto ou pelo pensamento que formula um conjunto rigoroso de princípios regras normas e operações para a criação de figuras números símbolos cálculos etc No final do século XIX o matemático italiano Peano realizou um estudo sobre a aritmética dos números cardinais finitos demonstrando que podia ser derivada de cinco axiomas ou proposições primitivas e de três termos não definíveis zero número e sucessor de Desta maneira a matemática surgia como um ramo da lógica cabendo ao alemão Frege e aos ingleses Bertrand Russell e Alfred Whitehead prosseguir o trabalho de Peano oferecendo as definições lógicas dos três termos que o matemático italiano julgara indefiníveis Frege ofereceu o primeiro conceito de sistema formal e os primeiros exemplos do cálculo de proposições e de predicados A matemática é uma ciência de formas e cálculos puros organizados numa linguagem simbólica perfeita na qual cada signo é um algoritmo isto é um símbolo com um único sentido É elaborada pelo espírito humano e não um Convite à Filosofia 248 pensamento intuitivo que contemplaria entidades perfeitas e eternas existentes em si e por si mesmas 2 Mudança no modo de conceber o pensamento distinguindo psicologia e teoria do conhecimento Durante muitos séculos psicologia e teoria do conhecimento estiveram confundidas constituindo uma só disciplina filosófica encarregada de estudar os modos como conhecemos as coisas distinguindo o que é puramente pessoal e individual a vida psíquica ou mental de cada um de nós do que é universal e necessário válido em todos os tempos e lugares para todos os sujeitos do conhecimento Quando a psicologia se tornou uma ciência descrição dos fatos psíquicos e suas leis independente da Filosofia e a teoria do conhecimento permaneceu filosófica por não ser apenas uma descrição da vida mental mas um estudo das diferenças no conteúdo e na forma dos conhecimentos surgiu a pergunta Onde fica a lógica Alguns responderam Na psicologia Alegavam que os progressos da ciência psicológica iriam definir as regras universais a que todo e qualquer pensamento se submete e a lógica seria apenas um ramo da psicologia aquele que estuda como funciona o pensamento científico Essa corrente lógica recebeu o nome de psicologismo lógico mas foi logo refutada pela maioria dos lógicos e particularmente pelo alemão Edmund Husserl o criador da fenomenologia À pergunta Onde fica a lógica os lógicos responderam Consigo mesma Em outras palavras a lógica não é parte da psicologia nem da teoria do conhecimento mas uma disciplina filosófica independente Essa independência decorre da complexidade do pensamento pois quando pensamos há quatro fatores que nos permitem pensar 1 o sujeito que pensa o sujeito do conhecimento estudado pela teoria do conhecimento 2 o ato de pensar as operações mentais estudadas pela psicologia 3 o objeto pensado estudado pelas ciências e 4 o pensamento decorrente do ato de pensar esse o objeto da lógica A lógica não se confunde com a psicologia nem com a teoria do conhecimento porque seu objeto é o pensamento enquanto operação demonstrativa que segue regras orientadas para determinar se a demonstração é verdadeira ou falsa do ponto de vista do próprio pensamento isto é se a demonstração obedeceu ou não aos princípios lógicos Qual o efeito dessas duas mudanças sobre a lógica contemporânea Em primeiro lugar ao manter a proximidade e a relação com a matemática a lógica passou a ser entendida como avaliadora da verdade ou falsidade do pensamento concebido como uma construção intelectual Ora se o pensamento constrói seus próprios objetos em vez de descobrilos ou contemplálos essa construção segundo os próprios matemáticos faz com que a matemática deva ser Marilena Chauí 249 entendida como um discurso ou como uma linguagem que obedece a certos critérios e padrões de funcionamento Assim sendo a lógica adotou para si o modelo de um discurso ou de uma linguagem que lida com puras formas sem conteúdo e tais formas são símbolos de tipo matemático algoritmos Em segundo lugar distinguindose da psicologia e da teoria do conhecimento a lógica passou a dedicarse menos ao pensamento e muito mais à linguagem seja como tradução representação ou expressão do pensamento seja como discurso independente do pensamento Seu objeto passou a ser o estudo de um tipo determinado de discurso a proposição e as relações entre proposições Sua finalidade tornouse o projeto de oferecer normas e critérios para uma linguagem perfeita capaz de avaliar as demais linguagens científicas filosóficas artísticas cotidianas etc Linguagem e metalinguagem Para conseguir seu propósito a lógica distingue dois níveis de linguagem 1 linguagem natural isto é aquela que usamos em nossa vida cotidiana nas artes na política na filosofia 2 linguagem formal isto é aquela que é construída segundo princípios e regras determinados que descrevem um tipo específico de objeto o objeto das ciências Essa distinção também pode ser apresentada como diferença entre dois tipos de linguagem simbólicas 1 a linguagem simbólica cultural a linguagem natural que usa signos metáforas analogias esquemas para exprimir significações cotidianas religiosas artísticas políticas filosóficas A principal característica desse simbolismo é ser conotativo isto é os símbolos carregam muitos sentidos e referemse a muitas significações A linguagem cultural é polissêmica isto é nela as palavras possuem inúmeros significados 2 a linguagem simbólica lógicocientífica a linguagem construída que usa um sistema fechado de signos ou símbolos o algoritmo em que cada símbolo é símbolo de uma única coisa e corresponde a uma única significação Sua principal característica é ser essencialmente um simbolismo denotativo ou indicativo evitando a polissemia e afirmando a univocidade do sentido simbolizado Por exemplo H2O x etc são símbolos denotativos ou indicativos de um só objeto ou de um só sentido são algoritmos A lógica ocupase com a linguagem formal ou com a linguagem simbólico científica Por ser um discurso ou uma linguagem que fala de outro discurso ou de outra linguagem se diz que ela é uma metalinguagem Na vida cotidiana podemos dizer por exemplo uma frase como O Sol é uma estrela A lógica começará dizendo A frase O Sol é uma estrela é uma proposição afirmativa Prosseguirá dizendo A proposição A frase O Sol é Convite à Filosofia 250 uma estrela é uma proposição afirmativa é uma proposição verdadeira E assim por diante A idéia da lógica como metalinguagem transparece com clareza quando examinamos por exemplo as teses principais do austríaco Ludwig Wittgenstein cuja influência seria sentida por toda a lógica do século passado 1 qualquer proposição que tenha significado é composta por proposições elementares nas quais se encontra a verdade ou falsidade da proposição com significado 2 as proposições elementares adquirem significado porque afiguram retratam o mundo não como fatos e coisas mas como estado de coisas 3 as proposições da lógica são verdadeiras independentemente das noções de significado e de estado de coisas porque rigorosamente não falam de nada pois referemse a qualquer fato significado ou estado de coisas que possam ocorrer ou não no Universo As proposições lógicas são verdades vazias referidas apenas ao próprio uso das convenções lógicas Lógica dos predicados e lógica das relações Vimos que alguns filósofos medievais e clássicos julgaram necessário quantificar além do sujeito da proposição também o predicado No século XIX o lógico inglês Hamilton levou avante a quantificação dos predicados chegando a oito tipos de proposições 1 afirmativas totototais em que sujeito e predicado são tomados em toda sua extensão universais Todo S é todo P Por exemplo Todo triângulo é todo trilateral 2 afirmativas totoparciais em que o sujeito é tomado universalmente e o predicado particularmente Todo S é algum P Por exemplo Todo triângulo é alguma figura 3 afirmativas partitotais em que o sujeito é particular e o predicado é tomado universalmente Alguns S são todo P Por exemplo Alguns sulamericanos são todos os brasileiros 4 afirmativas partiparciais em que o sujeito e o predicado são tomados como particulares Algum S é algum P Por exemplo Algumas figuras eqüilaterais são alguns triângulos 5 negativas totototais em que o sujeito em toda a sua extensão é excluído de toda a extensão do predicado Nenhum S é nenhum P Por exemplo Nenhum triângulo é nenhum quadrado 6 negativas totoparciais em que todo sujeito é excluído de apenas uma parte do predicado Nenhum S é algum P Por exemplo Nenhum triângulo é algum eqüilateral Marilena Chauí 251 7 negativas partitotais em que só uma parte do sujeito é excluída da extensão do predicado Algum S não é nenhum P Por exemplo Alguma figura eqüilateral não é nenhum triângulo 8 negativas partiparciais em que uma parte da extensão do sujeito é excluída de uma parte da extensão do predicado Alguns S não são alguns P Por exemplo Algum triângulo não é alguma figura eqüilateral As proposições poderiam converterse simplesmente umas nas outras e finalmente uma proposição era apenas uma equação entre um sujeito e um predicado Com isso o raciocínio já não consistia em fazer uma noção entrar em outra a antiga inerência aristotélica mas ser capaz de substituir outra equivalente em proposições dadas de sorte que proposições usando palavras como homem animal mortal etc poderiam ser tratadas como os raciocínios matemáticos que usam símbolos como x y e z Estava aberta a porta para que Boole propusesse o cálculo lógico O cálculo lógico realizouse em duas etapas diferentes Na primeira com a introdução das noções de classe e função mantevese a idéia de que a proposição é a inclusão de um sujeito num predicado ou melhor a inclusão de toda ou parte da extensão do sujeito em toda ou parte da extensão do predicado Na segunda etapa com a introdução da idéia de relação passouse da concepção inclusivaexclusiva do sujeito e do predicado à de sua equivalência ou substituição de um por outro À medida que se desenvolveu a formalização e a matematização da lógica a noção de predicado recebeu um novo sentido e um novo tratamento Passou a ser tratado como classe Esta é um conjunto de objetos que possuindo algo em comum vão juntos Um predicado é o que permite reunir determinados objetos em classes a classe dos azuis a classe dos esféricos a classe dos sulamericanos a classe dos felizes a classe dos miseráveis a classe dos sólidos etc Um predicado isolado azul feliz sólido miserável etc não é verdadeiro nem falso Recebe tal valor apenas a partir da inclusão ou exclusão do sujeito numa classe Com a classe o predicado se torna uma relação entre duas variáveis e essa relação chamase função A lógica passa a construir um simbolismo que permite definir as funções do predicado introduzindo novos quantificadores com os quais a função é calculada Esse cálculo constitui a lógica dos predicados Por exemplo a proposição tradicional Sócrates é homem será formalizada como Fa onde F a função significa a quantidade de ser homem e a a variável designa Sócrates Todavia a variável poderá designar um indivíduo qualquer um sujeito indeterminado e a proposição será escrita como Fx Tal proposição pode ser quantificada a universal será escrita como xFx devendo ser lida como para todo x F de x Convite à Filosofia 252 a particular ou existencial será escrita como xFx devendo ser lida como existe um x tal que F de x Se em lugar da inclusão tradicional do predicado no sujeito tivermos classes a relação será estabelecida entre elemento e classe ou entre as próprias classes tornando a proposição muito mais abrangente e complexa Tomemos por exemplo a proposição Os homens são mortais e a proposição Sócrates é mortal Para calculálas devemos começar pela relação entre a classe dos homens e a dos mortais A Classe dos homens B Classe dos mortais A B A classe dos homens está incluída na classe dos mortais x Sócrates A Classe dos homens x A Sócrates pertence à classe dos homens Donde x x A x B onde significa implica Lemos Para todo x x pertence a A implica que x pertence a B Portanto Sócrates é mortal São seis as operações que podem ser realizadas com as classes 1 inclusão de uma classe em outra A B 2 reunião de várias classes D M N 3 intersecção de várias classes com elementos comuns A B C 4 a da classe universal que abrange todos os elementos e cujo símbolo é 5 a da classe vazia isto é que não contém elemento algum e cujo símbolo é 6 a da classe complementar A de A formada por todos os elementos que não pertencem a A Os lógicos que mais desenvolveram a possibilidade de uma lógica das classes das funções proposicionais e do cálculo dos predicados foram Frege Whitehead Bertrand Russell e Wittgenstein A lógica dos predicados foi enriquecida e modificada com a lógica das relações iniciada no século XIX pelos filósofos ingleses Morgan que também era matemático e Peirce A lógica das relações ocupase como o nome indica com relações entre conjuntos de objetos maior do que menor do que perto de longe de mais velho Marilena Chauí 253 que mais novo que pai de mãe de irmão de causa de finalidade de semelhança com diferente de etc As relações podem abranger dois ou mais objetos sendo binárias ternárias quaternárias etc dependendo do número de objetos abrangidos por ela A relação mais conhecida é a binária expressa na fórmula xRy que significa há uma relação entre x e y As relações possuem propriedades calculáveis Tais propriedades permitem diferenciar os vários tipos de relação como por exemplo relação transitiva dados x y e z e dadas xRy e yRz há uma relação xRz Por exemplo x é maior do que y xRy y é maior do que z yRz x é maior do que z xRz Ou xRy yRz xRz relação nãotransitiva dados x y e z e dadas xRy e yRz não se pode ter xRz embora haja uma relação entre x e z Por exemplo Pedro é pai de João xRy João é pai de Antônio yRz mas Pedro não é pai de Antônio pois é seu avô relação intransitiva dados x y e z e dadas xRy e yRz não é possível determinar qual seria a relação entre x e z Por exemplo x é maior do que y xRy y é menor do que z yRz mas não podemos saber se x é maior ou menor do que z relação de simetria xRy é o mesmo que yRx Por exemplo a é igual a b b é igual a a Ou xyxRy yRx relação de assimetria quando se tem xRy não se pode ter yRx Por exemplo a é maior do que b e portanto não se pode ter b é maior do que a Ou xyxRy yRx relação reflexiva estabelecese entre uma relação transitiva e uma relação simétrica Assim por exemplo x pode ver y é reflexiva num mundo onde haja espelhos onde y pode ver x relação irreflexiva estabelecese entre relações intransitivas e assimétricas relação inversa uma relação é inversa S a uma outra relação R quando para todos os objetos x y e z verificase xRy se e somente se houver ySx É o caso por exemplo da relação pai de e filho de Tanto a lógica dos predicados quanto a lógica das relações estão submetidas a uma lógica mais ampla que é a das proposições ou do cálculo proposicional pois a proposição é o campo da lógica propriamente dita O cálculo das proposições consiste em estabelecer os procedimentos pelos quais podemos Convite à Filosofia 254 determinar a verdade ou a falsidade de uma proposição de acordo com sua ligação com outra ou com outras Os casos mais simples de cálculos de proposições referemse à conjunção Pedro canta e Pedro dança negação Pedro canta Pedro não canta disjunção Pedro canta ou Pedro dança e implicação Se Pedro canta então Pedro dança O cálculo consiste em atribuir o valor verdade a uma das proposições o valor falsidade à outra e inferir o valor da ligação entre elas Para que se perceba que o conteúdo das proposições é irrelevante só interessando sua forma vejamos como são simbolizados os vários cálculos das ligações proposicionais cálculo da conjunção e símbolo da conjunção p q pq v v v v f f f v f f f f cálculo da negação não símbolo da negação p p v f f v cálculo da disjunção ou símbolo da disjunção p q p q v v v v f v f v v f f f cálculo da implicação implica que símbolo da implicação p q p q v v v v f f f v v f f v Um exemplo poderá nos ajudar a compreender como funciona o cálculo Se dissermos Se Pedro é cearense p ou catarinense q então é brasileiro r Ora Pedro não é brasileiro Portanto não é cearense nem catarinense teremos p q r r p q cálculo da biimplicação ou equivalência símbolo da equivalência p q p q v v v Marilena Chauí 255 v f f f v f f f v Esses cálculos constituem as matrizes que são como tabelas que apresentam todas as situações possíveis que cada ligação associa a um par de proposições elementares p e q Convite à Filosofia 256 Capítulo 4 Lógica e Dialética Vimos a diferença entre Platão e Aristóteles a respeito do papel da dialética no conhecimento Vimos também a maneira como os estóicos e os medievais articularam lógica e dialética Vimos por fim que a lógica moderna e contemporânea enfatizaram o formalismo lógico e aproximaram ao máximo lógica e matemática Entretanto entre o século XVII e o século XX houve uma outra posição filosófica que procurando superar as diferenças entre Platão e Aristóteles de um lado e recusando a identificação entre lógica e matemática de outro lado reuniu mais uma vez lógica e dialética Tratase da filosofia hegeliana no século XIX Para compreendermos a posição de Hegel precisamos levar em consideração dois acontecimentos filosóficos alemães muito importantes o idealismo crítico de Kant e o romantismo filosófico Como já analisamos anteriormente Kant ao escrever a Crítica da razão pura e a Crítica da razão prática havia estabelecido uma distinção profunda entre a realidade em si e o conhecimento da realidade A primeira dizia ele é inalcançável por nosso entendimento embora nossa razão aspire por ela tendo criado a metafísica como conhecimento racional das coisas em si Mas a metafísica não é possível é uma ilusão inevitável de nossa razão Conhecemos apenas o modo como a realidade se apresenta a nós os fenômenos organizada pela estrutura de nossa própria capacidade de conhecer isto é segundo as formas do espaço e do tempo e segundo os conceitos ou categorias de nosso entendimento substância qualidade quantidade causalidade atividade passividade Embora a realidade em si isto é a essência em si de Deus da alma e do mundo não possa ser racionalmente conhecida por nós permanece porém como um ideal de nossa razão que fazendo dessas essências idéias puras as coloca como fundamentos de nossa vida ética ou moral A separação kantiana entre entendimento e razão conceitos e idéias fenômenos e realidades em si foi interpretada como separação entre sujeito e mundo seres humanos e Natureza espírito e Natureza Como o sujeito e sua atividade de conhecimento assim como sua atividade ética e política criam o mundo humano da Cultura a separação kantiana foi interpretada como separação entre Cultura e Natureza Os filósofos e artistas românticos alemães não aceitavam tal separação e buscaram caminhos pelos quais humanos e Natureza pudessem reunirse Marilena Chauí 257 novamente ou como diziam pudessem reconciliarse Julgavam haver encontrado o caminho para isso nas Artes Elas seriam o reencontro dos humanos e da Natureza através da beleza e do sentimento estético ou da imaginação e da sensibilidade Hegel porém recusou a solução romântica Dizia ele que no fundo não tinha havido reconciliação alguma Enquanto Kant coloca tudo no sujeito os românticos haviam colocado tudo na Natureza desejando fundirse com ela por meio da imaginação e da sensibilidade Os dois termos Cultura e Natureza sujeito e mundo espírito e realidade continuavam separados Como reunilos verdadeiramente Como alcançar a verdadeira reconciliação Respondeu Hegel compreendendo que só existe o Espírito que a Natureza é uma manifestação do próprio Espírito uma exteriorização do Espírito que a Cultura também é uma exteriorização do Espírito manifestação espiritual e que ambos serão reunidos e reconciliados na interiorização do próprio Espírito quando este se reconhecer como a interioridade que se manifestou externamente como Natureza e Cultura O movimento pelo qual o Espírito se exterioriza como Natureza e Cultura e pelo qual retorna a si mesmo como interioridade de ambas é a História não como seqüência temporal de acontecimentos e de causas e de efeitos mas como vida do Espírito O que é o Espírito É o verbo divino Em grego o logos O que é a vida do logos a História É a lógica Que é a lógica como vida do Espírito É o movimento pelo qual o Espírito produz o mundo Natureza e Cultura conhece sua produção e se reconhece como produtor é portanto o movimento da atividade de criação e de autoconhecimento do Espírito É a ciência da lógica entendendose por ciência não a descrição e explicação dos fatos e de seus encadeamentos causais mas a atividade pela qual o Espírito se conhece a si mesmo ao criarse a si mesmo manifestandose ou exteriorizandose como Natureza e Cultura Essa ciência da lógica é a dialética O que é a dialética Platão e Aristóteles divergindo quanto ao papel da dialética no conhecimento concordavam porém num ponto a dialética é o logos dividido internamente em predicados opostos ou contrários dividido internamente por predicados contraditórios Ora que fizeram Platão e Aristóteles Consideraram que a realidade e a verdade obedecem ao princípio de identidade e expulsam a contradição Esta é considerada irreal do ponto de vista da realidade e impossível do ponto de vista da verdade pois é irreal e impossível que uma coisa seja e não seja ela mesma ao mesmo tempo e na mesma relação Em outras palavras algo é real e verdadeiro quando podemos conhecer o conjunto de seus predicados positivos e Convite à Filosofia 258 afastar os predicados negativos contrários e contraditórios Em Platão a função da dialética era expulsar a contradição Em Aristóteles a função da lógica era garantir o uso correto do princípio de identidade Ambos se enganaram julga Hegel A dialética é a única maneira pela qual podemos alcançar a realidade e a verdade como movimento interno da contradição pois Heráclito tinha razão ao considerar que a realidade é o fluxo eterno dos contraditórios No entanto ele também se enganou ao julgar que os termos contraditórios eram pares de termos positivos opostos A verdadeira contradição dialética possui duas características principais 1 nela os termos contraditórios não são dois positivos contrários ou opostos mas dois predicados contraditórios do mesmo sujeito que só existem negando um ao outro Em vez de dizer quentefrio doceamargo materialespiritual naturalcultural devemos compreender que é preciso dizer quentenão quente frionão frio docenão doce amargonão amargo materialnão material espiritualnão espiritual naturalnão natural culturalnão cultural 2 o negativo o não x não quente nãodoce não material não natural etc não é um positivo contrário a outro positivo mas é verdadeiramente negativo Se eu disser por exemplo o caderno não é a árvore esse não não é um negativo verdadeiro pois o caderno e a árvore continuam como dois termos positivos Esse não escreve Hegel é mera negação externa Nesta qualquer termo pode ser negação de qualquer outro Assim por exemplo posso dizer o caderno não é a árvore não é a porta não é João não é a mesa etc O verdadeiro negativo é uma negação interna como aquela que surge se eu disser por exemplo o caderno é a nãoárvore pois aqui o ser do caderno a sua realidade é a negação da realidade da árvore o caderno é a árvore negada como árvore Não tenho uma árvore que virou um caderno mas uma árvore que deixou de ser árvore porque foi transformada em caderno A negação interna é aquela na qual um ser é a supressão de seu outro de seu negativo A contradição dialética nos revela um sujeito que surge se manifesta e se transforma graças à contradição de seus predicados Em lugar de a contradição ser o que destrói o sujeito como julgavam todos os filósofos ela é o que movimenta e transforma o sujeito fazendoo síntese ativa de todos os predicados postos e negados por ele Que é a lógica vida do Espírito É o movimento dialético pelo qual o Espírito como sujeito vivo põe ou cria seus predicados manifestase através deles nega os e os suprime como termos separados dele e diferentes dele para fazêlos coincidirem com ele Os predicados não são como na lógica formal e matemática termos positivos inertes que atribuímos ou recusamos a um sujeito mas são realidades criadas negadas suprimidas e reincorporadas pelo próprio sujeito isto é pelo Espírito Marilena Chauí 259 Se retornarmos agora ao nosso ponto de partida a separação sujeitomundo CulturaNatureza poderemos compreender por que a ciência da lógica tal como Hegel a concebe é a reconciliação racional dos termos O Espírito começa como um sujeito que se exterioriza no predicado Natureza isto é manifestandose como coisa substância qualidade quantidade relações de causa e efeito etc Ele é terra água ar fogo céu astros mares minerais vegetais animais Para conservarse vivo o ser natural a coisa precisa consumir os seres que o rodeiam o Espírito como Natureza negase a si mesmo consumindose a si mesmo os animais consomem água plantas outros animais ar calor luz as plantas consomem calor água luz os astros consomem energia e matéria etc Essa negação pelo consumo não é transformadora pois ela se realiza para conservar as coisas Entretanto o Espírito se manifesta num outro predicado a Consciência Esta também busca conservarse mas agora o faz não pelo simples consumo das coisas naturais mas pela negação da mera naturalidade delas O que é essa negação Quando digo Isto é uma montanha tenho a impressão de que me refiro a uma coisa natural diferente de mim existente em si mesma e com características positivas próprias Entretanto o simples fato de que chame uma coisa de montanha indica que ela não existe em si mas existe para mim isto é possui um sentido em minha experiência Suponhamos agora que eu pertença a uma comunidade politeísta que acredita que os deuses superiores aos homens mas dotados de forma humana habitem os lugares altos Para mim agora a montanha não é mais uma simples coisa mas a morada sagrada dos deuses Imaginemos em seguida que somos uma empresa capitalista exploradora de minérios e que haja uma jazida de ferro na montanha Como empresários compramos a montanha para explorála Novamente ela deixou de ser uma simples coisa natural para tornarse propriedade privada local de trabalho e capital Consideremos por fim que somos pintores Nesse caso a montanha não é nem morada dos deuses nem propriedade privada capitalista nem local de trabalho mas forma cor volume linhas profundidade um campo de visibilidade Sob essas quatro formas isto é uma montanha morada dos deuses jazida de minério de ferropropriedade privadacapital e campo de visibilidade a montanha como coisa natural desapareceu foi negada como mera coisa pela consciência e pela ação humanas Tornouse nãocoisa porque tornouse montanhaparanós significação ente cultural Foi consumidadestruída suprimidanegada pela Cultura Em termos hegelianos o Espírito negouse como Natureza e afirmouse como Cultura Negouse como seremsi tornandose ser parasi Devese compreender que a negação dialética não significa a destruição empírica ou material de coisas empíricas ou materiais e sim a destruição de seu Convite à Filosofia 260 sentido imediato que é superado por um sentido novo posto pelo próprio espírito Ao reconhecerse como movimento interno de posição negação e supressão de seus predicados S é Natureza S é nãoNatureza porque é Cultura o Espírito reconhecese como sujeito que se produz a si mesmo e que é o movimento de autoprodução de si mesmo S é Natureza e Cultura porque é o Espírito Nesse reconhecimento reconciliase consigo mesmo é ao mesmo tempo em si e para si Como se observa em Hegel a lógica não é um instrumento formal para o bom uso do pensamento mas é ontologia Marilena Chauí 261 Unidade 6 A metafísica Convite à Filosofia 262 Introdução As indagações metafísicas Por que há seres em vez do nada Por que uma coisa pode mudar e no entanto conservar sua identidade individual de tal maneira que podemos dizer que é a mesma coisa ainda que a vejamos diferente do que fora antes Como sabemos que uma determinada roseira é a mesma que no ano passado não passava de um ramo com poucas folhas e sem flor Como sabemos que Paulo hoje adulto é o mesmo Paulo que conhecemos criança Por que sinto que sei que sou diferente das coisas Porém por que também sinto que sei que um outro corpo diferente e semelhante do meu não é uma coisa mas um alguém Por que eu e o outro podemos ver de modo diferente sentir e gostar de modo diferente discordar sobre tantas coisas fazer coisas diferentes e no entanto ambos admitimos sem sombra de dúvida que um triângulo o número 5 o círculo os arcos do palácio da Alvorada ou as pirâmides do Egito são exatamente as mesmas coisas para ele e para mim O que é uma coisa E um objeto O que é a subjetividade O que é o corpo humano E uma consciência Perguntas como essas constituem o campo da metafísica ainda que nem sempre as mesmas palavras tenham sido usadas para formulálas Por exemplo um filósofo grego não falaria em nada mas em nãoser Não falaria em objeto mas em ente pois a palavra objeto só foi usada a partir da Idade Média e no sentido em que a empregamos hoje só foi usada a partir do século XVII Também não falaria em consciência mas em psyche isto é alma Jamais falaria em subjetividade pois essa palavra com o sentido que lhe damos hoje só foi usada a partir do século XVIII A mudança do vocabulário da Filosofia no curso desses 25 séculos indica que mudaram os modos de formular as questões e respondêlas pois a Filosofia está na História e possui uma história No entanto sob essas mudanças profundas permaneceu a questão metafísica fundamental O que é Marilena Chauí 263 A pergunta pelo que é A metafísica é a investigação filosófica que gira em torno da pergunta O que é Este é possui dois sentidos 1 significa existe de modo que a pergunta se refere à existência da realidade e pode ser transcrita como O que existe 2 significa natureza própria de alguma coisa de modo que a pergunta se refere à essência da realidade podendo ser transcrita como Qual é a essência daquilo que existe Existência e essência da realidade em seus múltiplos aspectos são assim os temas principais da metafísica que investiga os fundamentos as causas e o ser íntimo de todas as coisas indagando por que existem e por que são o que são A história da metafísica pode ser dividida em três grandes períodos o primeiro deles separado dos outros dois pela filosofia de David Hume 1 período que vai de Platão e Aristóteles séculos IV e III aC até David Hume século XVIII dC 2 período que vai de Kant século XVIII até a fenomenologia de Husserl século XX 3 metafísica ou ontologia contemporânea dos anos 20 aos anos 70 do século passado XX Características da metafísica em seus períodos No primeiro período a metafísica possui as seguintes características investiga aquilo que é ou existe a realidade em si é um conhecimento racional apriorístico isto é não se baseia nos dados conhecidos diretamente pela experiência sensível ou sensorial nos dados empíricos mas nos puros conceitos formulados pelo pensamento puro ou pelo intelecto é um conhecimento sistemático isto é cada conceito depende de outros e se relaciona com outros formando um sistema coerente de idéias ligadas entre si exige a distinção entre ser e parecer ou entre realidade e aparência seja porque para alguns filósofos a aparência é irreal e falsa seja porque para certos filósofos a aparência só pode ser compreendida e explicada pelo conhecimento da realidade que subjaz a ela Esse primeiro período da metafísica termina quando Hume demonstra que os conceitos metafísicos não correspondem a nenhuma realidade externa existente em si mesma e independente de nós mas são meros nomes gerais para as coisas nomes que nos vêm pelo hábito mental ou psíquico de associar em idéias as Convite à Filosofia 264 sensações as percepções e as impressões dos sentidos quando são constantes freqüentes e regulares O segundo período tem seu centro na filosofia de Kant que demonstra a impossibilidade dos conceitos tradicionais da metafísica para alcançar e conhecer a realidade em si das coisas Em seu lugar Kant propõe que a metafísica seja o conhecimento de nossa própria capacidade de conhecer seja uma críticav da razão pura teórica tomando a realidade como aquilo que existe para nós enquanto somos o sujeito do conhecimento A metafísica poderá continuar usando o mesmo vocabulário que usava tradicionalmente mas o sentido conceitual das palavras mudará totalmente pois não se referem ao que existe em si e por si mas ao que existe para nós e é organizado por nossa razão Embora com muitas diferenças que veremos mais tarde Husserl trilhará um caminho próximo ao de Kant A metafísica contemporânea é chamada de ontologia veremos posteriormente o sentido dessa palavra e procura superar tanto a antiga metafísica conhecimento da realidade em si independente de nós quanto a concepção kantiana conhecimento da realidade como aquilo que é para nós porque posto por nossa razão Considera o objeto da metafísica a relação originária mundohomem Suas principais características são investiga os diferentes modos como os entes ou os seres existem investiga a essência ou o sentido a significação e a estrutura desses entes ou seres investiga a relação necessária entre a existência e a essência dos entes e o modo como aparecem para nossa consciência manifestação que se dá nas várias formas em que a consciência se realiza percepção imaginação memória linguagem intersubjetividade reflexão ação moral e política prática artística técnicas alguns consideram que a metafísica ou ontologia contemporânea deveria ser chamada de descritiva porque em vez de oferecer uma explicação apriorística da realidade é uma interpretação racional da lógica da realidade descrevendo as estruturas do mundo e as do nosso pensamento Marilena Chauí 265 Capítulo 1 O nascimento da metafísica O realismo da Filosofia nascente Estudamos até aqui a figura do sujeito do conhecimento Passaremos agora ao objeto do conhecimento Convém no entanto fazer uma observação preliminar pois essa seqüência indo do sujeito ao objeto não foi sempre aquela seguida pela Filosofia A maneira como tratamos o conhecimento até este momento poderia sugerir que a Filosofia teria começado indagando como nossa razão pode conhecer a realidade Mas não foi assim que tudo começou Iniciar pelo sujeito do conhecimento é algo novo na Filosofia algo que aconteceu a partir do século XVII com o que chamamos de racionalismo clássico cujo ponto de partida era a indagação Pode nosso pensamento alcançar a realidade Até o século XVII porém não era essa a indagação filosófica principal Desde os gregos partiase da afirmação da existência da realidade e de que ela poderia ser conhecida verdadeiramente pela razão ou pelo pensamento A pergunta filosófica era O que é a realidade Por isso costumase dizer que a Filosofia nasceu como um realismo e desse realismo surgiu a metafísica Veremos mais adiante como os problemas metafísicos acabaram fazendo a Filosofia mudar sua pergunta passando a indagar Como podemos conhecer a realidade e dar à teoria do conhecimento ou ao estudo do sujeito do conhecimento o lugar predominante que já examinamos Da cosmologia à metafísica A Filosofia nasce da admiração e do espanto dizem Platão e Aristóteles Admiração Por que o mundo existe Espanto Por que o mundo é tal como é Desde seu nascimento a Filosofia perguntou O que existe Por que existe O que é isso que existe Como é isso que existe Por que e como surge muda e desaparece Por que a Natureza ou o mundo se mantêm ordenados e constantes apesar da mudança contínua de todas as coisas Essas perguntas ou esse espanto ou admiração diante do mundo levaram os primeiros filósofos a buscar uma explicação racional para a origem de um mundo ordenado o cosmos Por esse motivo a Filosofia nasce como cosmologia A busca do princípio que causa e ordena tudo quanto existe na Natureza minerais vegetais animais humanos astros qualidades como úmido seco quente frio e Convite à Filosofia 266 tudo quanto nela acontece dia e noite estações do ano nascimento transformação e morte crescimento e diminuição saúde e doença bem e mal belo e feio etc foi a busca de uma força natural perene e imortal subjacente às mudanças denominada pelos primeiros filósofos com o nome de physis A cosmologia era uma explicação racional sobre a physis do Universo e portanto uma física Como então surgiu a metafísica Como surgiu um saber que suplantou a cosmologia ou física dos primeiros filósofos Como e por que a metafísica acabou se tornando o centro e a disciplina mais importante da Filosofia Metafísica ou ontologia A palavra metafísica foi empregada pela primeira vez por Andrônico de Rodes por volta do ano 50 aC quando recolheu e classificou as obras de Aristóteles que durante muitos séculos haviam ficado dispersas e perdidas Com essa palavra ta meta ta physika o organizador dos textos aristotélicos indicava um conjunto de escritos que em sua classificação localizavamse após os tratados sobre a física ou sobre a Natureza pois a palavra grega meta quer dizer depois de após acima de Ta aqueles meta após depois ta physika aqueles da física Assim a expressão ta meta ta physika significa literalmente aqueles escritos que estão catalogados após os escritos da física Ora tais escritos haviam recebido uma designação por parte do próprio Aristóteles quando este definira o assunto de que tratavam são os escritos da Filosofia Primeira cujo tema é o estudo do ser enquanto ser Desse modo o que Aristóteles chamou de Filosofia Primeira passou a ser designado como metafísica No século XVII o filósofo alemão Jacobus Thomasius considerou que a palavra correta para designar os estudos da metafísica ou Filosofia Primeira seria a palavra ontologia A palavra ontologia é composta de duas outras onto e logia Onto derivase de dois substantivos gregos ta onta os bens e as coisas realmente possuídas por alguém e ta eonta as coisas realmente existentes Essas duas palavras por sua vez derivamse do verbo ser que em grego se diz einai O particípio presente desse verbo se diz on sendo ente e ontos sendo entes Dessa maneira as palavras onta e eonta as coisas e on ente levaram a um substantivo to on que significa o Ser O Ser é o que é realmente e se opõe ao que parece ser à aparência Assim ontologia significa estudo ou conhecimento do Ser dos entes ou das coisas tais como são em si mesmas real e verdadeiramente Por que Thomasius julgou a palavra ontologia mais adequada do que a palavra metafísica Para responder a essa pergunta devemos retornar ao que escreveu Aristóteles quando propôs a Filosofia Primeira Marilena Chauí 267 Ao definir a Filosofia Primeira Aristóteles afirmou que ela estuda o ser das coisas a ousia A palavra ousia é o feminino do particípio presente do verbo ser isto é do verbo einai Em português ousia é traduzido por essência porque é traduzida da palavra latina essentia Em latim o verbo ser se diz esse e a palavra essentia foi inventada pelos filósofos para traduzir ousia Assim a Filosofia Primeira é o estudo ou o conhecimento da essência das coisas ou do ser real e verdadeiro das coisas daquilo que elas são em si mesmas apesar das aparências que possam ter e das mudanças que possam sofrer Thomasius considerou que Aristóteles definira a Filosofia Primeira como o estudo do ser das coisas como o que há de íntimo perene e verdadeiro nos entes Não estuda esta ou aquela coisa este ou aquele ente mas busca aquilo que faz de um ente ou de uma coisa um ser Busca a essência de um ente ou de uma coisa Por isso por ser o estudo da ousia e porque a ousia oferece o ser real e verdadeiro de um ente oferece o on íntimo e perene a Filosofia Primeira deveria ser designada com a palavra ontologia Nesse caso a palavra metafísica seria apenas a indicação do lugar ocupado nas estantes pelos livros aristotélicos de Filosofia Primeira localizados depois dos tratados sobre a física ou a Natureza A palavra ontologia diria qual é o assunto da Filosofia Primeira enquanto a palavra metafísica diria apenas qual é o lugar dos livros da Filosofia Primeira no catálogo das obras de Aristóteles Por que então a tradição filosófica consagrou a palavra metafísica em lugar de ontologia Porque Aristóteles ao definir a Filosofia Primeira também afirmou que ela estuda os primeiros princípios e as causas primeiras de todos os seres ou de todas as essências estudo que deve vir antes de todos os outros porque é a condição de todos eles Que quer dizer vir antes Para Aristóteles significa estar acima dos demais estar além do que vem depois ser superior ao que vem depois ser a condição da existência e do conhecimento do que vem depois Ora a palavra meta quer dizer isso mesmo o que está além de o que está acima de o que vem depois mas no sentido de ser superior ou de ser a condição de alguma coisa Se assim é então a palavra metafísica não quer dizer apenas o lugar onde se encontram os escritos posteriores aos tratados de física não indica um mero lugar num catálogo de obras mas significa o estudo de alguma coisa que está acima e além das coisas físicas ou naturais e que é a condição da existência e do conhecimento delas Por isso a tradição consagrou a palavra metafísica mais do que a palavra ontologia Metafísica nesse caso quer dizer aquilo que é condição e fundamento de tudo o que existe e de tudo o que puder ser conhecido Convite à Filosofia 268 Até aqui respondemos à pergunta Por que metafísica em lugar de ontologia Mas ainda não respondemos à pergunta principal Por que a metafísica ou ontologia ocupou o lugar que no início da Filosofia era ocupado pela cosmologia ou física Para isso precisamos acompanhar os motivos que levaram a uma crise da cosmologia e ao surgimento da ontologia que receberia o nome de metafísica O surgimento da ontologia Parmênides de Eléia Quando estudamos o surgimento da lógica vimos a importância do pensamento de Parmênides Foi ele o primeiro filósofo a afirmar que o mundo percebido por nossos sentidos o cosmos estudado pela cosmologia é um mundo ilusório feito de aparências sobre as quais formulamos nossas opiniões Foi ele também o primeiro a contrapor a esse mundo mutável feito de mudança perene dos contrários que se transformam uns nos outros a idéia de um pensamento e de um discurso verdadeiros referidos àquilo que é realmente ao Ser to on On O Ser é diz Parmênides Com isso pretendeu dizer que o Ser é sempre idêntico a si mesmo imutável eterno imperecível invisível aos nossos sentidos e visível apenas para o pensamento Foi Parmênides o primeiro a dizer que a aparência sensível das coisas da Natureza não possui realidade não existe real e verdadeiramente não é Contrapôs assim o Ser On ao NãoSer me On declarando o NãoSer não é A Filosofia é chamada por Parmênides de a Via da Verdade aletheia que nega realidade e conhecimento à Via da Opinião doxa pois esta se ocupa com as aparências com o NãoSer Ora a cosmologia ou física ocupavase justamente com o mundo que percebemos e no qual vivemos com as demais coisas naturais Ocupavase com a Natureza enquanto um cosmos ou ordem regular e constante de surgimento transformação e desaparecimento das coisas A cosmologia buscava a explicação para o devir isto é para a mudança das coisas para a passagem de uma coisa a um outro modo de existir contrário ao que possuía O dia vira noite a saúde vira doença o frio esquenta o quente esfria o úmido seca o seco umedece o novo envelhece o vivo morre o pequeno aumenta o grande diminui etc A cosmologia dedicavase à multiplicidade dos seres à mutabilidade deles e às oposições entre eles Parmênides tornou a cosmologia impossível ao afirmar que o pensamento verdadeiro exige a identidade e a nãocontradição do Ser Considerando a mudança de uma coisa em outra contrária como o NãoSer Parmênides também afirmava que o Ser não muda porque não tem como e nem por que mudar e não tem no que mudar pois se mudasse deixaria de ser o Ser tornandose contrário a si mesmo o NãoSer Como conseqüência mostrou que o pensamento verdadeiro não admite a multiplicidade ou pluralidade de seres e que o Ser é uno e único Os argumentos da Escola Eleata eram rigorosos Diziam Marilena Chauí 269 admitamos que o Ser não seja uno mas múltiplo Nesse caso cada ser é ele mesmo e não é os outros seres portanto cada ser é e não é ao mesmo tempo o que é impensável ou absurdo O Ser é uno e não pode ser múltiplo admitamos que o Ser não seja eterno mas teve um começo e terá um fim Antes dele o que havia Outro Ser Não pois o Ser é uno O NãoSer Não pois o NãoSer é o nada Portanto o Ser não pode ter tido um começo Terá um fim Se tiver que virá depois dele Outro Ser Não pois o Ser é uno O NãoSer Não pois o NãoSer é o nada Portanto o Ser não pode acabar Sem começo e sem fim o Ser é eterno admitamos que o Ser não seja imutável mas mutável No que o Ser mudaria Noutro Ser Não pois o Ser é uno No NãoSer Não pois o NãoSer é o nada Portanto se o Ser mudasse tornarseia NãoSer e desapareceria O Ser é imutável e o devir é uma ilusão de nossos sentidos O que Parmênides afirmava era a diferença entre pensar e perceber Percebemos a Natureza na multiplicidade e na mutabilidade das coisas que se transformam umas nas outras e se tornam contrárias a si mesmas Mas pensamos o Ser isto é a imutabilidade e a eternidade daquilo que é em si mesmo Perceber é ver aparências Pensar é contemplar a realidade como idêntica a si mesma Pensar é contemplar o to on o Ser Multiplicidade mudança nascimento e perecimento são aparências ilusões dos sentidos Ao abandonálas a Filosofia passou da cosmologia à ontologia Platão e o mundo das essências Também ao estudarmos a lógica vimos que Platão dedicou a sua obra à resolução do impasse filosófico criado pelo antagonismo entre o pensamento de Heráclito de Éfeso e o de Parmênides de Eléia Platão considerou que Heráclito tinha razão no que se refere ao mundo material e sensível mundo das imagens e das opiniões A matéria diz Platão é por essência e por natureza algo imperfeito que não consegue manter a identidade das coisas mudando sem cessar passando de um estado a outro contrário ou oposto O mundo material ou de nossa experiência sensível é mutável e contraditório e por isso dele só nos chegam as aparências das coisas e sobre ele só podemos ter opiniões contrárias e contraditórias Por esse motivo diz Platão Parmênides está certo ao exigir que a Filosofia deva abandonar esse mundo sensível e ocuparse com o mundo verdadeiro invisível aos sentidos e visível apenas ao puro pensamento O verdadeiro é o Ser uno imutável idêntico a si mesmo eterno imperecível puramente inteligível Eis por que a ontologia platônica introduz uma divisão no mundo afirmando a existência de dois mundos inteiramente diferentes e separados o mundo sensível da mudança da aparência do devir dos contrários e o mundo inteligível da identidade da permanência da verdade conhecido pelo intelecto puro sem Convite à Filosofia 270 qualquer interferência dos sentidos e das opiniões O primeiro é o mundo das coisas O segundo o mundo das idéias ou das essências verdadeiras O mundo das idéias ou das essências é o mundo do Ser o mundo sensível das coisas ou aparências é o mundo do NãoSer O mundo sensível é uma sombra uma cópia deformada ou imperfeita do mundo inteligível das idéias ou essências Notamos aqui uma diferença entre a ontologia de Parmênides e a de Platão Para o primeiro o mundo sensível das aparências é o NãoSer em sentido forte isto é não existe não é não tem realidade nenhuma é o nada Para Platão porém o NãoSer não é o puro nada Ele é alguma coisa O que ele é Ele é o outro alienus do Ser o que é diferente do Ser o que é inferior ao Ser o que nos engana e nos ilude a causa dos erros Em lugar de ser um puro nada o NãoSer é um falso ser uma sombra do Ser verdadeiro aquilo que Platão chama de pseudoSer O NãoSer é sensível Há ainda uma outra diferença importante entre a ontologia de Parmênides e a de Platão O primeiro afirmava que o Ser além de imutável eterno e idêntico a si mesmo era único ou uno Havia o Ser Qual o problema dessa afirmação parmenideana Se do lado do devir heraclitiano havia uma multiplicidade infinita de seres contrários uns aos outros e contrários a si mesmos pois cada um se tornava contrário a si próprio o dia tornandose noite o seco tornandose úmido etc multiplicidade contraditória que não poderia ser pensada nem dita visto que o pensamento exige a identidade do pensado no entanto do lado da identidade unaúnica de Parmênides que restava para a Filosofia Só lhe restava pensar e dizer três frases O Ser é O NãoSer não é O Ser é uno idêntico eterno e imutável Em suma a Filosofia começava e terminava nessas três frases nada mais podendo pensar ou dizer Parmênides paralisava a Filosofia Se esta quisesse prosseguir como investigação da verdade e se tivesse mais objetos a conhecer era preciso quebrar a unidadeunicidade do Ser de Parmênides Foi o que fez Platão Que disse ele Em primeiro lugar seguindo Sócrates e os sofistas Platão distinguiu dois sentidos para a palavra Ser o sentido forte em que Ser significa realidade ou existência o Ser é e o sentido mais fraco em que Ser é o verbo ser como verbo de ligação isto é o verbo que permite ligar um sujeito a um predicado por exemplo O homem é mortal Distinguiu assim dois sentidos para o verbo ser o sentido existencial e o sentido predicativo Por exemplo O homem é existe e O homem é mortal Em segundo lugar afirmou que no sentido forte de Ser existem múltiplos seres e não um só mas cada um deles possui os atributos do Ser de Parmênides identidade unidade eternidade imutabilidade Esses seres são as idéias ou formas imateriais que constituem o mundo verdadeiro o mundo inteligível Marilena Chauí 271 São seres reais as idéias do bem do belo do justo do homem dos astros do amor do animal do vegetal etc Em terceiro lugar afirmou que no sentido mais fraco do verbo de ligação ou da predicação cada idéia é um sujeito real que possui um conjunto de predicados reais ou de propriedades essenciais e que a fazem ser o que ela é em si mesma Uma idéia é existe e uma idéia é uma essência ou conjunto de qualidades essenciais que a fazem ser o que ela é necessariamente possui predicados verdadeiros Por exemplo a justiça é há a idéia de justiça e há seres humanos que são justos possuem o predicado da justiça como parte de sua essência Dessa maneira cada idéia em si mesma é una idêntica a si mesma eterna e imutável uma idéia é Ao mesmo tempo cada idéia difere de todas as outras pelo conjunto de qualidades ou propriedades internas e necessárias pelas quais ela é uma essência determinada diferente das demais a idéia de homem é diferente da idéia de planeta que é diferente da idéia de beleza que é diferente da idéia de coragem etc A tarefa da Filosofia é dupla 1 deve conhecer que idéias existem isto é que idéias são 2 deve conhecer quais são as qualidades ou propriedades essenciais de uma idéia isto é o que uma idéia é sua essência As idéias ou formas imateriais ou essências inteligíveis diz Platão são seres perfeitos e por sua perfeição tornamse modelos inteligíveis ou paradigmas inteligíveis perfeitos que as coisas sensíveis materiais tentam imitar imperfeitamente O sensível é pois uma imitação imperfeita do inteligível as coisas sensíveis são imagens das idéias são nãoseres tentando inutilmente imitar a perfeição dos seres inteligíveis Cabe à Filosofia passar das cópias imperfeitas aos modelos perfeitos abandonando as imagens ou aparências pelas essências e as opiniões pelas idéias O pensamento deve passar da instabilidade contraditória das coisas sensíveis à identidade racional das coisas inteligíveis à identidade das idéias que são a realidade o ser o to on Como passamos das coisas sensíveis das cópias imagens ou opiniões às idéias ou essências Pela dialética que estudamos na unidade dedicada à lógica Tomemos alguns exemplos para melhor compreendermos o que é a ontologia platônica Numa obra o diálogo Laques Platão coloca seu mestre Sócrates conversando com alguns atenienses São pais de família preocupados com a educação de seus filhos Os gregos como sabemos valorizavam muito o jovem de corpo belo educado pela ginástica e pela dança para tornarse um guerreiro corajoso A coragem era assim extremamente valorizada Convite à Filosofia 272 Os pais com quem conversa Sócrates estão a caminho de uma aula de esgrima num curso dado por um professor muito famoso Indagam então se o aprendizado da esgrima será benéfico para seus filhos quando forem à guerra Uns acham que sim outros dizem que não Há pois duas opiniões contrárias ou contraditórias na conversa Apelam para Sócrates dizendolhe Como você é um sábio venha ajudarnos em nossa polêmica e diganos se a esgrima é ou não benéfica para formar a coragem de nossos filhos Sócrates intervém afirmando Só poderei ajudálos a decidir sobre esse assunto se primeiro discutirmos uma outra coisa e não a esgrima O que devemos discutir primeiro indagam os pais Responde Sócrates O que é a coragem uma vez que vocês desejam filhos corajosos Enquanto não soubermos o que é a essência da coragem não saberemos qual educação é benéfica para ela Precisamos conhecer a idéia da coragem para saber em nosso mundo quando e como existem pessoas corajosas e atos corajosos Para saber o que são as coisas que percebemos precisamos primeiro saber o que são as coisas em si mesmas isto é precisamos pensar suas idéias ou essências Os pais se põem novamente a discutir Cada um dá exemplos de atos que julga corajosos E novamente suas opiniões são contrárias Diz Sócrates Vocês não me entenderam Não pedi para darem exemplos de coragem nem opiniões sobre atos corajosos Eu lhes pedi que me dissessem o que é em si mesma a coragem Qual é a essência da coragem que nos permite dizer diante de uma ação particular que tal ação é ou não corajosa Qual é o ser da coragem A discussão recomeça e agora cada um dos participantes da conversa oferece uma definição da coragem Diz um A coragem é não fugir na guerra Retruca Sócrates Mas e os espartanos tidos como dos mais corajosos e que inventaram uma tática de recuar fugir levando o inimigo para seu campo e ali podendo derrotálo Fogem Não são corajosos Diz outro A coragem é não temer o perigo Ora contrapõe Sócrates e as histórias maravilhosas que conhecemos de capitães de navio que salvaram os passageiros de grandes tempestades justamente escolhendo não zarpar quando os ventos eram desfavoráveis e portanto fugindo do perigo Não são corajosos E finalmente outro pai dá a sua definição A coragem é saber o que se deve e o que não se deve temer Será indaga Sócrates Se assim for teremos que dizer que os comerciantes espertos que sabem quando um negócio é temerário e não o fazem são corajosos Creio diz Sócrates que ainda não me fiz entender Vocês estão oferecendo opiniões sobre a coragem e imagens da coragem mas não estão buscando a essência da coragem Não conseguiram ainda chegar pelo pensamento à idéia da coragem estão falando da aparência da coragem Estão falando da coragem sensível e não estão pensando a coragem inteligível Marilena Chauí 273 O diálogo é interrompido nesse ponto quando Sócrates sugere aos interlocutores que talvez ainda não tenham conseguido chegar à idéia da coragem porque não procuraram uma outra idéia que deve vir antes da coragem Que idéia Todos aqui diz Sócrates julgam a coragem um valor positivo e portanto uma virtude Nesse caso antes de saber o que é a coragem temos que conhecer uma outra idéia da qual a idéia de coragem depende a idéia de virtude Sem conhecer a essência da virtude sem conhecer o ser da virtude não sabemos qual é a essência da coragem Ao se despedir Sócrates promete voltar a conversar com os pais para com eles buscar a essência ou a idéia da virtude Em todos os seus diálogos Platão procede da mesma maneira O diálogo começa com os interlocutores julgando que sabem do que falam Sócrates que nos diálogos representa Platão levaos a descobrir que não sabem o que imaginavam saber mostrandolhes que possuem imagens e opiniões contraditórias sobre aquilo de que falam Possuem a aparência do que discutem mas não a essência e por isso se enganam o tempo todo contradizendose uns aos outros O diálogo isto é a dialética ou filosofia é o caminho que nos conduz das sensações das percepções das imagens e das opiniões à contemplação intelectual do ser real das coisas à idéia verdadeira que existe em si mesma no mundo das puras idéias ou no mundo inteligível Num outro diálogo o Banquete será buscada a idéia ou a essência do amor Numa festa oferecida por um poeta que ganhou um prêmio por sua poesia conversam cinco amigos e Sócrates Um deles afirma que todos os deuses recebem hinos e poemas de louvor mas nenhum foi feito ao melhor dos deuses Eros o amor Propõese então que cada um faça uma homenagem a Eros dizendo o que é o amor Para um deles o amor é o mais bondoso dos deuses porque nos leva ao sacrifício pelo ser amado inspiranos devotamento e o desejo de fazer o bem Para o seguinte é preciso distinguir dois tipos de amor o amor sexual e grosseiro e o amor espiritual entre as almas pois o primeiro é breve e logo acaba enquanto o segundo é eterno Já o terceiro afirma que os que o antecederam limitaram muito o amor tomandoo apenas como uma relação entre duas pessoas O amor diz ele é o que ordena organiza e orienta o mundo pois é ele que faz os semelhantes se aproximarem e os diferentes se afastarem O amor é uma força cósmica de ordem e harmonia do universo O quarto prefere retornar ao amor entre as pessoas e narra um mito No princípio os humanos eram de três tipos havia o homem duplo a mulher dupla e o homemmulher isto é o andrógino Tinham um só corpo com duas cabeças quatro braços e quatro pernas Como se julgavam seres completos decidiram habitar no céu Zeus rei dos deuses enfureceuse tomou de uma espada e os cortou pela metade Convite à Filosofia 274 Decaídos separados e desesperados os humanos teriam desaparecido se Eros não lhes tivesse dado órgãos sexuais e os ajudasse a procurar a metade perdida Os que eram homens duplos e mulheres duplas amam os de mesmo sexo enquanto os que eram andróginos amam a pessoa do sexo oposto Amar é encontrar a nossa metade e o amor é esse encontro Finalmente o poeta anfitrião da festa toma a palavra dizendo Todos os que me precederam louvaram o amor pelo bem que faz aos humanos mas nenhum louvou o amor por ele mesmo É o que farei O amor Eros é o mais belo o melhor dos deuses O mais belo porque sempre jovem e sutil porque penetra imperceptivelmente nas almas o melhor porque odeia a violência e a desfaz onde existir inspira os artistas e poetas trazendo a beleza ao mundo Resta Sócrates Não poderei falar diz ele Não tenho talento para fazer discursos tão belos Os outros porém não se conformam e o obrigam a falar Está bem retruca ele Mas falarei do meu jeito Com essa pequena frase Platão mudará todo o tom do diálogo pois falar do meu jeito significa Não vou fazer elogios e louvores às imagens e aparências do amor não vou emitir mais uma opinião sobre o amor mas vou buscar a essência do amor o ser do amor vou investigar a idéia do amor Sócrates também começa com um mito Quando a deusa Afrodite nasceu houve uma grande festa para os deuses mas esqueceramse de convidar a deusa Penúria Pênia Miserável e faminta Penúria esperou o final da festa esgueirouse pelos jardins e comeu os restos enquanto os demais deuses dormiam Num canto do jardim viu Engenho Astuto Poros e desejou conceber um filho dele deitando se ao seu lado Desse ato sexual nasceu Eros o amor Como sua mãe Eros está sempre carente faminto miserável como seu pai Eros é astuto sabe criar expedientes engenhosos para conseguir o que quer Qual o sentido do mito Nele descobrimos que o amor é carência e astúcia desejo de saciar a fome e a sede desejo de preenchimento desejo de completar se e de encontrar a plenitude Amar é desejar o amado como o que nos completa nos sacia e satisfaz nos dá plenitude Amar é desejar fundirse na plenitude do amado e ser um só com ele O que pode completar e dar plenitude a um ser carente O que é em si mesmo completo e pleno isto é o que é perfeito O amor é desejo de perfeição O que é a perfeição A harmonia a proporção a integridade ou inteireza da forma Desejamos as formas perfeitas O que é uma forma perfeita A forma perfeita é a forma acabada plena inteiramente realizada sem falhas sem faltas sem defeitos sem necessidade de transformarse isto é sem necessidade de mudar de forma A forma perfeita é o que chamamos de beleza O amor é desejo de beleza Marilena Chauí 275 Onde está a beleza nas coisas corporais Nos corpos belos cuja união engendra uma beleza a imortalidade dos pais através dos filhos Onde está a beleza nas coisas incorporais Nas almas belas cuja beleza está na perfeição de seus pensamentos e ações isto é na inteligência Que amamos quando amamos corpos belos O que há de imperecível naquilo que por natureza é perecível isto é amamos a posteridade ou a descendência Que amamos quando amamos almas belas O que há de imperecível na inteligência isto é as idéias O amor pelos corpos belos é uma imagem ou uma sombra do amor pelo imperecível mas o amor pelas almas belas é o amor por algo que é em si mesmo e por si mesmo imperecível e absolutamente perfeito Se o amor é desejo de identificarse com o amado de fundirse nele tornandose como ele então a qualidade ou a natureza do ser amado determina se um amor é plenamente verdadeiro ou uma aparência de amor Amar o perecível é tornarse perecível também Amar o mutável é tornarse mutável também O perecível e o mutável são sombras cópias imperfeitas do ser verdadeiro imperecível e imutável As formas corporais belas são sombras ou imagens da verdadeira beleza imperecível Abandonandoas pela verdadeira beleza amamos não esta ou aquela coisa bela mas a idéia ou a essência da beleza o belo em si mesmo único real As almas belas são belas porque nelas há a presença ainda que invisível à primeira vista de algo imperecível o intelecto parte imortal de nossa alma Que ama o intelecto Um outro intelecto que seja mais belo e mais perfeito do que ele e que ao ser amado torna perfeito e belo quem o ama O que é um intelecto verdadeiramente belo e perfeito O que ama a beleza perfeita Onde se encontra a tal beleza Nas idéias O que é a essência ou a idéia do amor O amor é o desejo da perfeição imperecível das formas belas daquilo que permanece sempre idêntico a si mesmo daquilo que pode ser contemplado plenamente pelo intelecto e conhecido plenamente pela inteligência Sendo amor intelectual pelo inteligível ou pelas idéias o amor é o desejo de saber philo sophia amor da sabedoria Pelo amor o intelecto humano participa do inteligível toma parte no mundo das idéias ou das essências conhecendo o ser verdadeiro A ontologia é assim a própria Filosofia e o conhecimento do Ser isto é das idéias é a passagem das opiniões sobre as coisas sensíveis mutáveis rumo ao pensamento sobre as essências imutáveis Passar do sensível ao inteligível tarefa da Filosofia é passar da aparência ao real do NãoSer ao Ser Convite à Filosofia 276 Capítulo 2 A metafísica de Aristóteles Diferença entre Aristóteles e seus predecessores Embora a ontologia ou metafísica tenha começado com Parmênides e Platão costumase atribuir seu nascimento a Aristóteles por três motivos principais 1 diferentemente de seus dois predecessores Aristóteles não julga o mundo das coisas sensíveis ou a Natureza um mundo aparente e ilusório Pelo contrário é um mundo real e verdadeiro cuja essência é justamente a multiplicidade de seres e a mudança incessante Em lugar de afastar a multiplicidade e o devir como ilusões ou sombras do verdadeiro Ser Aristóteles afirma que o ser da Natureza existe é real que seu modo próprio de existir é a mudança e que esta não é uma contradição impensável É possível uma ciência teorética verdadeira sobre a Natureza e a mudança a física Mas é preciso primeiro demonstrar que o objeto da física é um ser real e verdadeiro e isso é tarefa da Filosofia Primeira ou da metafísica 2 diferentemente de seus dois predecessores Aristóteles considera que a essência verdadeira das coisas naturais e dos seres humanos e de suas ações não está no mundo inteligível separado do mundo sensível onde as coisas físicas ou naturais existem e onde vivemos As essências diz Aristóteles estão nas próprias coisas nos próprios homens nas próprias ações e é tarefa da Filosofia conhecê las ali mesmo onde existem e acontecem Como conhecêlas Partindo da sensação até alcançar a intelecção A essência de um ser ou de uma ação é conhecida pelo pensamento que capta as propriedades internas desse ser ou dessa ação sem as quais ele ou ela não seriam o que são A metafísica não precisa abandonar este mundo mas ao contrário é o conhecimento da essência do que existe em nosso mundo O que distingue a ontologia ou metafísica dos outros saberes isto é das ciências e das técnicas é o fato de que nela as verdades primeiras ou os princípios universais e toda e qualquer realidade são conhecidos direta ou indiretamente pelo pensamento ou por intuição intelectual sem passar pela sensação pela imaginação e pela memória 3 ao se dedicar à Filosofia Primeira ou metafísica a Filosofia descobre que há diferentes tipos ou modalidades de essências ou de ousiai Marilena Chauí 277 Existe a essência dos seres físicos ou naturais minerais vegetais animais humanos cujo modo de ser se caracteriza por nascer viver mudar reproduzir se e desaparecer são seres em devir e que existem no devir Existe a essência dos seres matemáticos que não existem em si mesmos mas existem como formas das coisas naturais podendo porém ser separados delas pelo pensamento e ter suas essências conhecidas são seres que por essência não nascem não mudam não se transformam nem perecem não estando em devir nem no devir Existe a essência dos seres humanos que compartilham com as coisas físicas o surgir o mudar e o desaparecer compartilhando com as plantas e os animais a capacidade para se reproduzir mas distinguindose de todos os outros seres por serem essencialmente racionais dotados de vontade e de linguagem Pela razão conhecem pela vontade agem pela experiência criam técnicas e artes E finalmente existe a essência de um ser eterno imutável imperecível sempre idêntico a si mesmo perfeito imaterial conhecido apenas pelo intelecto que o conhece como separado de nosso mundo superior a tudo que existe e que é o ser por excelência o ser divino Se há tão diferentes tipos de essências se para cada uma delas há uma ciência física biologia meteorologia astronomia psicologia matemática ética política etc deve haver uma ciência geral mais ampla mais universal anterior a todas essas cujo objeto não seja essa ou aquela modalidade de essência mas a essência em geral Tratase de uma ciência teorética que investiga o que é a essência e aquilo que faz com que haja essências particulares e diferenciadas Essa ciência mais alta mais ampla mais universal que se ocupa com a essência que estuda por que há essências e como são as essências investigadas pelas demais ciências é a Filosofia Primeira escreve Aristóteles no primeiro livro da Metafísica A metafísica aristotélica Na Metafísica Aristóteles afirma que a Filosofia Primeira estuda os primeiros princípios e as causas primeiras de todas as coisas e investiga o Ser enquanto Ser Ao definir a ontologia ou metafísica como estudo do Ser enquanto Ser Aristóteles está dizendo que a Filosofia Primeira estuda as essências sem diferenciar essências físicas matemáticas astronômicas humanas técnicas etc pois cabe às diferentes ciências estudálas enquanto diferentes entre si À metafísica cabem três estudos 1 o do ser divino a realidade primeira e suprema da qual todo o restante procura aproximarse imitando sua perfeição imutável As coisas se transformam diz Aristóteles porque desejam encontrar sua essência total e perfeita imutável como a essência divina É pela mudança incessante que buscam imitar o que não Convite à Filosofia 278 muda nunca Por isso o ser divino é o Primeiro Motor Imóvel do mundo isto é aquilo que sem agir diretamente sobre as coisas ficando à distância delas as atrai é desejado por elas Tal desejo as faz mudar para um dia não mais mudar esse desejo diz Aristóteles explica por que há o devir e por que o devir é eterno pois as coisas naturais nunca poderão alcançar o que desejam isto é a perfeição imutável Observamos assim que Aristóteles como Platão também afirma que a Natureza ou o mundo físico ou humano imitam a perfeição do imutável porém diferentemente de Platão para Aristóteles essa imitação não é uma cópia deformada uma imagem ou sombra do Ser verdadeiro mas o modo de existir ou de ser das coisas naturais e humanas A mudança ou o devir são a maneira pela qual a Natureza ao seu modo se aperfeiçoa e busca imitar a perfeição do imutável divino O ser divino chamase Primeiro Motor porque é o princípio que move toda a realidade e chamase Primeiro Motor Imóvel porque não se move e não é movido por nenhum outro ente pois como já vimos movervi significa mudar sofrer alterações qualitativas e quantitativas nascer é perecer e o ser divino perfeito não muda nunca 2 o dos primeiros princípios e causas primeiras de todos os seres ou essências existentes 3 o das propriedades ou atributos gerais de todos os seres sejam eles quais forem graças aos quais podemos determinar a essência particular de um ser particular existente A essência ou ousia é a realidade primeira e última de um ser aquilo sem o qual um ser não poderá existir ou sem o qual deixará de ser o que é À essência entendida sob essa perspectiva universal Aristóteles dá o nome de substância o substrato ou o suporte permanente de qualidades ou atributos necessários de um ser A metafísica estuda a substância em geral Os principais conceitos da metafísica aristotélica De maneira muito breve e simplificada os principais conceitos da metafísica aristotélica e que se tornarão as bases de toda a metafísica ocidental podem ser assim resumidos primeiros princípios são os três princípios que estudamos na lógica isto é identidade nãocontradição e terceiro excluído Os princípios lógicos são ontológicos porque definem as condições sem as quais um ser não pode existir nem ser pensado os primeiros princípios garantem simultaneamente a realidade e a racionalidade das coisas causas primeiras são aquelas que explicam o que a essência é e também a origem e o motivo da existência de uma essência Causa para os gregos significa não só o porquê de alguma coisa mas também o o que e o como uma coisa é o que ela é As causas primeiras nos dizem o que é como é por que é e para que é uma essência São quatro as causas primeiras Marilena Chauí 279 1 causa material isto é aquilo de que uma essência é feita sua matéria por exemplo água fogo ar terra 2 causa formal isto é aquilo que explica a forma que uma essência possui por exemplo o rio ou o mar são formas da água mesa é a forma assumida pela matéria madeira com a ação do carpinteiro margarida é a forma que a matéria vegetal possui na essência de uma flor determinada etc 3 causa eficiente ou motriz isto é aquilo que explica como uma matéria recebeu uma forma para constituir uma essência por exemplo o ato sexual é a causa eficiente que faz a matéria do espermatozóide e do óvulo receber a forma de um novo animal ou de uma criança o carpinteiro é a causa eficiente que faz a madeira receber a forma da mesa o fogo é a causa eficiente que faz os corpos frios tornaremse quentes etc e 4 a causa final isto é a causa que dá o motivo a razão ou finalidade para alguma coisa existir e ser tal como ela é por exemplo o bem comum é a causa final da política a felicidade é a causa final da ação ética a flor é a causa final da semente transformarse em árvore o Primeiro Motor Imóvel é a causa final do movimento dos seres naturais etc matéria é o elemento de que as coisas da Natureza os animais os homens os artefatos são feitos sua principal característica é possuir virtualidades ou conter em si mesma possibilidades de transformação isto é de mudança forma é o que individualiza e determina uma matéria fazendo existir as coisas ou os seres particulares sua principal característica é ser aquilo que uma essência é num determinado momento pois a forma é o que atualiza as virtualidades contidas na matéria potência é o que está contido numa matéria e pode vir a existir se for atualizado por alguma causa por exemplo a criança é um adulto em potência ou um adulto em potencial a semente é a árvore em potência ou em potencial ato é a atualidade de uma matéria isto é sua forma num dado instante do tempo o ato é a forma que atualizou uma potência contida na matéria Por exemplo a árvore é o ato da semente o adulto é o ato da criança a mesa é o ato da madeira etc Potência e matéria são idênticos assim como forma e ato são idênticos A matéria ou potência é uma realidade passiva que precisa do ato e da forma isto é da atividade que cria os seres determinados essência é a unidade interna e indissolúvel entre uma matéria e uma forma unidade que lhe dá um conjunto de propriedades ou atributos que a fazem ser necessariamente aquilo que ela é Assim por exemplo um ser humano é por essência ou essencialmente um animal mortal racional dotado de vontade gerado por outros semelhantes a ele e capaz de gerar outros semelhantes a ele etc acidente é uma propriedade ou atributo que uma essência pode ter ou deixar de ter sem perder seu ser próprio Por exemplo um ser humano é racional ou Convite à Filosofia 280 mortal por essência mas é baixo ou alto gordo ou magro negro ou branco por acidente A humanidade é a essência essencial animal mortal racional voluntário enquanto o acidente é o que existindo ou não existindo nunca afeta o ser da essência magro gordo alto baixo negro branco A essência é o universal o acidente o particular substância ou sujeito é o substrato ou o suporte onde se realizam a matéria potência a formaato onde estão os atributos essenciais e acidentais sobre o qual agem as quatro causas material formal eficiente e final e que obedece aos três princípios lógicoontológicos identidade nãocontradição e terceiro excluído em suma é o Ser Aristóteles usa o conceito de substância em dois sentidos num primeiro sentido substância é o sujeito individual Sócrates esta mesa esta flor Maria Pedro este cão etc num segundo sentido a substância é o gênero ou a espécie a que o sujeito individual pertence homem grego animal bípede vegetal erva mineral ferro etc No primeiro sentido a substância é um ser individual existente no segundo é o conjunto das características gerais que os sujeitos de um gênero e de uma espécie possuem Aristóteles fala em substância primeira para referirse aos seres ou sujeitos individuais realmente existentes com sua essência e seus acidentes por exemplo Sócrates e em substância segunda para referirse aos sujeitos universais isto é gêneros e espécies que não existem em si e por si mesmos mas só existem encarnados nos indivíduos podendo porém ser conhecidos pelo pensamento Assim por exemplo o gênero animal e as espécies vertebrado mamífero e humano não existem em si mesmos mas existem em Sócrates ou através de Sócrates O gênero é um universal formado por um conjunto de propriedades da matéria e da forma que caracterizam o que há de comum nos seres de uma mesma espécie A espécie também é um universal formado por um conjunto de propriedades da matéria e da forma que caracterizam o que há de comum nos indivíduos semelhantes Assim o gênero é formado por um conjunto de espécies semelhantes e as espécies por um conjunto de indivíduos semelhantes Os indivíduos ou substâncias primeiras são seres realmente existentes os gêneros e as espécies ou substâncias segundas são universalidades que o pensamento conhece através dos indivíduos predicados são as oito categorias que vimos no estudo da lógica e que também são ontológicas porque se referem à estrutura e ao modo de ser da substância ou da essência Em outras palavras os predicados atribuídos a uma substância ou essência são constitutivos de seu ser e de seu modo de ser pois toda realidade pode ser conhecida porque possui qualidades mortal imortal finito infinito bom mau etc quantidades um muitos alguns pouco muito grande pequeno relacionase com outros igual diferente semelhante maior menor superior inferior está em algum lugar aqui ali perto longe no alto embaixo em frente atrás etc está no tempo antes depois agora ontem hoje Marilena Chauí 281 amanhã de dia de noite sempre nunca realiza ações ou faz alguma coisa anda pensa dorme corta cai prende cresce nasce morre germina frutifica floresce etc e sofre ações de outros seres é cortado é preso é morto é quebrado é arrancado é puxado é atraído é levado é curado é envenenado etc As categorias ou predicados podem ser essenciais ou acidentais isto é podem ser necessários e indispensáveis à natureza própria de um ser ou podem ser algo que um ser possui por acaso ou que lhe acontece por acaso sem afetar sua natureza Tomemos um exemplo Se eu disser Sócrates é homem necessariamente terei que lhe dar os seguintes predicados mortal racional finito animal pensa sente anda reproduz fala adoece é semelhante a outros atenienses é menor do que uma montanha e maior do que um gato ama odeia Acidentalmente ele poderá ter outros predicados é feio é baixo é diferente da maioria dos atenienses é casado conversou com Laques esteve no banquete de Agáton esculpiu três estátuas foi forçado a envenenarse pelo tribunal de Atenas Se nosso exemplo porém fosse uma substância genérica ou específica todos os predicados teriam de ser essenciais pois o acidente é o que acontece somente para o indivíduo existente e o gênero e a espécie são universais que só existem no pensamento e encarnados nas essências individuais Com esse conjunto de conceitos formase o quadro da ontologia ou metafísica aristotélica como explicação geral universal e necessária do Ser isto é da realidade Esse quadro conceitual será herdado pelos filósofos posteriores que problematizarão alguns de seus aspectos estabelecerão novos conceitos suprimirão alguns outros desenvolvendo o que conhecemos como metafísica ocidental A metafísica aristotélica inaugura portanto o estudo da estrutura geral de todos os seres ou as condições universais e necessárias que fazem com que exista um ser e que possa ser conhecido pelo pensamento Afirma que a realidade no seu todo é inteligível ou conhecível e apresentase como conhecimento teorético da realidade sob todos os seus aspectos gerais ou universais devendo preceder as investigações que cada ciência realiza sobre um tipo determinado de ser A metafísica investiga aquilo sem o que não há seres nem conhecimento dos seres os três princípios lógicoontológicos identidade nãocontradição e terceiro excluído e as quatro causas material formal eficiente e final aquilo que faz um ser ser necessariamente o que ele é matéria potência forma e ato aquilo que faz um ser ser necessariamente como ele é essência e predicados ou categorias Convite à Filosofia 282 aquilo que faz um ser existir como algo determinado a substância individual substância primeira e a substância como gênero ou espécie substância segunda É isto estudar o Ser enquanto Ser Marilena Chauí 283 Capítulo 3 As aventuras da metafísica O cristianismo e a tarefa da evangelização Ao surgir o cristianismo era mais uma entre as várias religiões orientais suas raízes encontravamse na religião judaica isto é numa religião que como todas as religiões antigas era nacional ou de um povo particular No entanto havia nele algo inexistente no judaísmo e nas outras religiões antigas a idéia de evangelização isto é de espalhar a boa nova para o mundo inteiro a fim de converter os nãocristãos e tornarse uma religião universal Ora como converter a essa religião pessoas de outras religiões que possuíam um passado e um sentido próprios para elas Os evangelizadores usaram muitos expedientes para isso levando em conta as condições e a mentalidade dos que deveriam ser convertidos Para o nosso assunto interessa apenas um tipo de evangelização e conversão o dos intelectuais gregos e romanos isto é daqueles que haviam sido formados não só em religiões diferentes da judaica como também haviam sido educados na tradição racionalista da Filosofia Para convertêlos e mostrar a superioridade da verdade cristã sobre a tradição filosófica os primeiros Padres da Igreja ou intelectuais cristãos são Paulo são João santo Ambrósio santo Eusébio santo Agostinho entre outros adaptaram as idéias filosóficas à religião cristã e fizeram surgir uma Filosofia cristã Sob vários aspectos podemos dizer que o cristianismo enquanto tal não precisava de uma filosofia sendo uma religião da salvação seu interesse maior estava na moral na prática dos preceitos virtuosos deixados por Jesus e não em uma teoria sobre a realidade sendo uma religião vinda do judaísmo já possuía uma idéia muito clara do que era o Ser pois Deus disse a Moisés Eu sou aquele que é foi e será Eu sou aquele que sou sendo uma religião seu interesse maior estava na fé e não na razão teórica na crença e não no conhecimento intelectual na Revelação e não na reflexão Foi portanto o desejo de converter os intelectuais gregos e os chefes e imperadores romanos isto é aqueles que estavam acostumados à Filosofia que empurrou os cristãos para a metafísica Convite à Filosofia 284 As tradições metafísicas encontradas pelo cristianismo Evidentemente as duas grandes tradições metafísicas incorporadas pelo cristianismo foram o platonismo e o aristotelismo No entanto como as obras de Platão e Aristóteles haviam ficado perdidas durante vários séculos antes de incorporálas o cristianismo tomou contato com três outras tradições metafísicas que formaram assim o conteúdo das primeiras elaborações metafísicas cristãs o neoplatonismo o estoicismo e o gnosticismo O neoplatonismo como o nome indica foi uma retomada da filosofia de Platão mas com um conteúdo espiritualista e místico Os neoplatônicos afirmavam a existência de três realidades distintas por essência o mundo sensível da matéria ou dos corpos o mundo inteligível das puras formas imateriais e acima desses dois mundos uma realidade suprema separada de todo o resto inalcançável pelo intelecto humano luz pura e esplendor imaterial o Uno ou o Bem Por ser uma luz o Uno se irradia suas irradiações que os neoplatônicos chamavam de emanações formaram o mundo inteligível onde estão o Ser a Inteligência e a Alma do Mundo Dessas primeiras emanações perfeitas seguiram outras mais afastadas do Uno e por isso imperfeitas o mundo sensível da matéria imagem decaída ou cópia imperfeita do mundo inteligível Por seu intelecto o homem participa do mundo inteligível Purificandose da matéria de seu corpo desenvolvendo seu intelecto o homem pode subir além do pensamento e ter o êxtase místico pelo qual se funde com a luz do Uno e retorna ao seio da realidade suprema ou do Bem O estoicismo embora muito diferente do neoplatonismo pois negava a existência de realidades separadas e superiores ao mundo sensível também influenciou o pensamento cristão Os estóicos afirmavam a existência de uma Razão Universal ou Inteligência Universal que produz e governa toda a realidade de acordo com um plano racional necessário a que davam o nome de Providência O homem embora impulsionado por instintos como os animais participa da Razão Universal porque possui razão e vontade A participação na racionalidade universal não se dá pelo simples conhecimento intelectual mas pela ação moral isto é pela renúncia a todos os instintos pelo domínio voluntário racional de todos os desejos e pela aceitação da Providência A Razão Universal é a Natureza a Providência é o conjunto das leis necessárias que regem a Natureza a ação racional humana própria do sábio é a vida em conformidade com a Natureza e com a Providência O gnosticismo era um dualismo metafísico isto é afirmava a existência de dois princípios supremos de onde provinha toda a realidade o Bem ou a luz imaterial e o Mal ou a treva material Para os gnósticos o mundo natural ou o mundo sensível é o resultado da vitória do Mal sobre o Bem e por isso afirmavam que a salvação estava em libertarse da matéria do corpo através do conhecimento intelectual e do êxtase místico Gnosticismo vem da palavra grega Marilena Chauí 285 gnosis que significa conhecimento Para os gnósticos o conhecimento intelectual pode por si mesmo alcançar a verdade plena e total do Bem e afastar os poderes materiais do Mal Que fez o cristianismo nascente Adaptou à nova fé várias concepções da metafísica neoplatônica disso resultando os seguintes pontos doutrinários separação entre materialcorporal e espiritualincorporal separação entre DeusUno e o mundo material transformação da primeira emanação neoplatônica Ser Inteligência Alma do Mundo na idéia da Trindade divina pela afirmação de que o DeusUno se manifesta em três emanações idênticas a ele próprio o Ser que é o Pai a Inteligência que é o Espírito Santo a Alma do Mundo que é o Filho afirmação de que há uma segunda emanação isto é aquela que vem da luz da Trindade e que forma o mundo inteligível das puras formas ou inteligências imateriais perfeitas que são os anjos arcanjos querubins serafins etc modificação da idéia neoplatônica quanto ao mundo sensível pela afirmação de que o mundo sensível ou material não é uma emanação de Deus mas uma criação Deus fez o mundo do nada como diz a Bíblia no livro da Gênese admissão de que a alma humana participa da divindade mas não diretamente e sim pela mediação do Filho e do Espírito Santo e que o conhecimento intelectual não é suficiente para levar ao êxtase místico e ao contato com Deus sendo necessária a graça santificante que o crente recebe por um mistério divino Do estoicismo o cristianismo manteve duas idéias a de que existe uma Providência divina racional que governa todas as coisas e o homem a de que a perfeição humana depende de abandonar todos os apetites impulsos e desejos corporais ou carnais entregandose à Providência Essa entrega porém não é como pensavam os estóicos uma ação deliberada de nossa vontade guiada pela razão mas exige como condição a fé em Cristo e a graça santificante O gnosticismo será considerado uma heresia e por isso rejeitado No entanto o cristianismo conservará do gnosticismo duas idéias que o Mal existe realmente é o demônio que a matéria ou a carne é o centro onde o demônio isto é o Mal age sobre o mundo e sobre o homem Alguns séculos mais tarde o cristianismo tomou conhecimento de algumas das obras de Platão e de algumas das obras de Aristóteles que haviam sido conservadas e traduzidas por filósofos árabes como Averróis Avicena e Alfarabi Convite à Filosofia 286 e comentadas por filósofos judeus como Filon de Alexandria e Maimônides Reunindo essas obras e as elaborações precedentes baseadas nas três tradições mencionadas o cristianismo reorganizou a metafísica grega adaptandoa às necessidades da religião cristã A metafísica cristã Embora a metafísica cristã seja uma reelaboração da metafísica grega muitas das idéias gregas não poderiam ser aceitas pelo cristianismo Vejamos alguns exemplos para os gregos o mundo sensível e inteligível é eterno para os cristãos o mundo foi criado por Deus a partir do nada e terminará no dia do Juízo Final para os gregos a divindade é uma força cósmica racional impessoal para os cristãos Deus é pessoal é a unidade de três pessoas e por isso é dotado de intelecto e de vontade como o homem embora superior a este porque o intelecto divino é onisciente sabe tudo desde toda a eternidade e a vontade divina é onipotente pode tudo desde toda a eternidade para os gregos o homem é um ser natural dotado de corpo e alma esta possuindo uma parte superior e imortal que é o intelecto ou razão para os cristãos o homem é um ser misto natural por seu corpo mas sobrenatural por sua alma imortal para os gregos a liberdade humana é uma forma de ação isto é a capacidade da razão para orientar e governar a vontade a fim de que esta escolha o que é bom justo e virtuoso para os cristãos o homem é livre porque sua vontade é uma capacidade para escolher tanto o bem quanto o mal sendo mais poderosa do que a razão e pelo pecado destinada à perversidade e ao vício de modo que a ação moral só será boa justa e virtuosa se for guiada pela fé e pela Revelação para os gregos o conhecimento é uma atividade do intelecto o êxtase místico de que falavam os neoplatônicos não era algo misterioso ou irracional mas a forma mais alta da intuição intelectual para os cristãos a razão humana é limitada e imperfeita incapaz de por si mesma e sozinha alcançar a verdade precisando ser socorrida e corrigida pela fé e pela Revelação Essas diferenças e muitas outras que não foram mencionadas aqui acarretaram muitas mudanças na metafísica herdada dos gregos O problema principal para os cristãos foi o de encontrar um meio para reunir as verdades da razão Filosofia e as verdades da fé religião isto é para reunir novamente aquilo que ao nascer a Filosofia havia separado pois separara razão e mito De modo bastante resumido podemos dizer que os aspectos que passaram a constituir o centro da nova metafísica foram os seguintes provar a existência de Deus e os atributos ou predicados de sua essência Para a metafísica grega a divindade era uma força imaterial racional e impessoal conhecida por nossa razão Para a metafísica cristã Deus é uma pessoa trina ou Marilena Chauí 287 uma pessoa misteriosa que se revela ao espírito dos que possuem fé Como conciliar a concepção racionalista dos gregos e a concepção religiosa dos cristãos Provando racionalmente que Deus existe mesmo que a causa de sua existência seja um mistério da fé E provando racionalmente que ele possui por essência os seguintes predicados eternidade infinitude onisciência onipotência bondade justiça e misericórdia mesmo que tais atributos sejam um mistério da fé provar que o mundo existe e não é eterno mas foi criado do nada por Deus e retornará ao nada no dia do Juízo Final provar que o mundo resulta da vontade divina e é governado pela Providência divina a qual age tanto por meios naturais as leis da Natureza quanto por meios sobrenaturais os milagres Por que era necessária essa prova Porque do ponto de vista da razão Deus sendo perfeito completo pleno e eterno não carecia de nada não precisava de nada e portanto não tinha por que nem para que criar o mundo provar que embora Deus seja imaterial e infinito são ação pode ter efeitos materiais e finitos como o mundo e o homem portanto provar que Deus é causa eficiente de todas as coisas e que uma causa imaterial e infinita pode produzir um efeito material e finito mesmo que isso seja um mistério da fé que a razão é obrigada a aceitar De fato a Filosofia grega em nome dos princípios da identidade e da não contradição sempre demonstrou que uma causa precisa ser de mesma natureza que seu efeito e por esse motivo as Idéias em Platão e o Primeiro Motor Imóvel em Aristóteles eram causas finais e jamais causas materiais formais ou eficientes Por quê Porque uma causa final age à distância sem se identificar com aquilo que a deseja a procura Ao contrário as outras três causas agem diretamente sobre as coisas semelhantes a elas de mesma natureza que elas Uma planta causa outra planta um animal causa outro animal semelhante um humano causa o nascimento de outro ser humano e assim por diante Ora a criação do mundo por Deus seria para a metafísica grega uma irracionalidade e uma contradição pois se trata de um ser infinito e imaterial cuja ação produz um efeito oposto à natureza da causa isto é finito e material Um mistério da fé dirão os metafísicos cristãos provar que a alma humana existe e que é imortal estando destinada à salvação ou à condenação eternas segundo a vontade da Providência divina provar que não há contradição entre a liberdade humana e a onisciência onipotência de Deus A contradição existe para a razão mas não existe para a fé Qual seria a contradição racional entre a liberdade humana para fazer o bem ou o mal e a onisciênciaonipotência divina A contradição estaria no fato de que se Deus fez cada um dos homens e desde a eternidade sabe o que cada um deles Convite à Filosofia 288 escolherá então o homem não é livre mas já foi predeterminado pela vontade de Deus Para a fé não há contradição alguma nisso embora haja mistério provar que as idéias platônicas ou as emanações neoplatônicas ou os gêneros e espécies aristotélicos existem são substâncias reais criadas pelo intelecto e pela vontade de Deus e existem na mente divina Em outras palavras idéias emanações gêneros e espécies são substâncias universais e os universais existem tanto quanto os indivíduos provar que o Ser se diz ou deve ser entendido de modo diferente conforme se refira a Deus ou às criaturas Para os gregos no entanto o Ser existia de diferentes maneiras mas possuía um único sentido no que se refere à realidade e à essência de todos os entes Essa idéia para os cristãos não poderá ser mantida Platão por exemplo afirmou que o Ser só podia estar referido às idéias do mundo inteligível pois as coisas sensíveis eram o NãoSer cópia imagem sombra do verdadeiro Ser Já Aristóteles considerou o Ser como real para as coisas naturais ou sensíveis para o Primeiro Motor Imóvel para os seres matemáticos pois a diferença entre eles referiase apenas ao fato de poderem estar ou não submetidos à mudança ou ao devir No caso do cristianismo porém não era possível manter a diferença platônica entre o Ser e o NãoSer pois este mundo e tudo o que nele existe é obra de Deus é criatura de Deus e não mera aparência Mas também não era possível manter a idéia aristotélica de que a diferença entre os seres estaria apenas na presença ou ausência do devir ou da mudança pois para os cristãos o ser de Deus é de natureza diferente do ser das coisas uma vez que ele é criador e elas são criaturas e não há nada em comum entre eles O resultado da necessidade de afirmar que o Ser não possui o mesmo sentido quando aplicado a Deus e às criaturas foi a divisão da metafísica em três tipos de conhecimento 1 a teologia que se refere ao Ser como ser divino ou Deus 2 a psicologia racional que se refere ao Ser como essência da alma humana 3 a cosmologia racional que se refere ao Ser como essência das coisas naturais ou do mundo finalmente e como conseqüência de todas essas concepções provar que fé e razão revelação e conhecimento intelectual são não incompatíveis nem contraditórios e quando o forem a fé ou revelação deve ser considerada superior à razão e ao intelecto que devem submeterse a ela Evidentemente os pensadores cristãos nunca se puseram de acordo sobre todos esses aspectos e uma das marcas características da metafísica cristã foi a controvérsia Para alguns por exemplo os chamados universais idéias emanações gêneros espécies eram nomes gerais criados por nossa razão e não seres substâncias ou Marilena Chauí 289 essências reais Para outros o Ser deveria ser afirmado com o mesmo sentido para Deus e para as criaturas a diferença entre eles sendo de grau e não de natureza Para muitos fé e razão eram incompatíveis e deveriam ser inteiramente separadas cada qual com seu campo próprio de conhecimento sem que uma devesse submeterse à outra E assim por diante Independentemente das controvérsias divergências e diferenças entre os pensadores o cristianismo legou para a metafísica a separação entre teologia Deus psicologia racional alma e cosmologia racional mundo bem como a identificação de três conceitos ser essência e substância que se tornaram sinônimos Como conseqüência da identificação entre ser essência e substância de um lado e de outro a afirmação de que existem essências ou substâncias universais tanto quanto individuais a metafísica passou a ter um número ilimitado de seres para investigar as substâncias universais como água ar terra fogo homem anjo animal vegetal o bem o verdadeiro o justo o belo o pesado o leve as substâncias individuais ou os seres particulares as substâncias celestes as terrestres as aquáticas as matemáticas as orgânicas as inorgânicas etc Cada uma delas era investigada segundo os três princípios identidade contradição terceiro excluído as quatro causas material formal eficiente final o ato e a potência a matéria e a forma as categorias qualidade quantidade ação paixão relação tempo lugar etc o simples e o composto etc A metafísica clássica ou moderna A partir do final do século XVI e com maior intensidade no início do século XVII o pensamento ocidental começa a sofrer uma mudança considerável que irá manifestarse na metafísica Os filósofos clássicos século XVII julgavamse modernos por terem rompido com a tradição do pensamento platônico aristotélico e neoplatônico e por conseguinte por não mais aceitarem a tradição que havia sido elaborada pelos medievais Um dos exemplos mais conhecidos da modernidade é a recusa do geocentrismo e a adoção do heliocentrismo em astronomia Um outro exemplo é a nova física ou mecânica elaborada por Galileu contra a herança aristotélica Podemos de modo resumido apontar os seguintes traços característicos da nova metafísica afirmação da incompatibilidade entre fé e razão acarretando a separação de ambas de sorte que a religião e a Filosofia possam seguir caminhos próprios mesmo que a segunda não esteja publicamente autorizada a expor idéias que contradigam as verdades ou dogmas da fé a Inquisição e o Santo Ofício criados pela Igreja Católica para controlar os pensamentos dos cristãos eram atuantes e não foram poucos os pensadores submetidos a tais tribunais como foi o caso de Galileu Convite à Filosofia 290 redefinição do conceito de ser ou substância Em lugar de considerar que existem inumeráveis tipos de seres ou substâncias afirmase que existem três e apenas três seres ou substâncias a substância infinita Deus a substância pensante alma e a substância extensa corpo Uma substância é definida pelo seu atributo principal a substância infinita é definida por sua infinitude a pensante pelo intelecto e pela vontade a extensa pelo movimento e pelo repouso que determinam a massa a figura e o volume isto é por atributos geométricos e físicos Os entes individuais concretos se distribuem como substâncias pensantes ou extensas e o homem é uma substância mista À substância infinita corresponde um único ente Deus Não há seres ou substâncias ou essências universais mas somente individuais Notase portanto uma imensa simplificação do campo de investigação da metafísica graças à redefinição da substância Substância é o ser que existe em si e por si mesmo que subsiste em si e por si mesmo Uma substância não se define pelo conjunto de atributos essenciais e acidentais que possui mas pelo seu modo de existir A essência da substância é a existência em si e por si a autosuficiência Há portanto três e apenas três substâncias a que existe absolutamente em si e por si isto é o infinito ou Deus a que existe em si mas para existir teve que ser criada pelo infinito isto é a criada ou finita que existe sob duas formas como pensamento ou alma e como espaço ou figuravolumemassa ou corpo Os seres individuais nada mais são do que manifestações diversificadas das duas substâncias criadas finitas Mesmo que os consideremos substâncias eles os são simplesmente por serem realizações particulares das substâncias pensante e extensa redefinição do conceito de causa ou causalidade Causa é aquilo que produz um efeito O efeito pode ser produzido por uma ação anterior ou por uma finalidade posterior Por exemplo o fogo realiza uma ação anterior cujo efeito é o aquecimento e a dilatação de um outro corpo uma pessoa pode escolher entre fazer ou não fazer alguma coisa tendo em vista a finalidade que pretende alcançar de sorte que o fim ou o objetivo é algo posterior à ação e causa da decisão tomada Causa eficiente é aquela na qual uma ação anterior determina como conseqüência necessária a produção de um efeito Causa final é aquela que determina para os seres pensantes a realização ou nãorealização de uma ação Há duas e somente duas modalidades de causas a eficiente e a final e a causa final só atua na substância pensante referindose às ações de um sujeito Não há causa final para os corpos ou para a substância extensa mas apenas causa eficiente Desaparecendo as noções de causa material e causa formal desaparecem as de potência e ato matéria e forma como explicações da pluralidade dos seres e de suas transformações Marilena Chauí 291 a metafísica não se divide em teologia psicologia racional e cosmologia racional A teologia é um conhecimento diferente da metafísica embora como esta estude a substância infinita a psicologia racional é um conhecimento diferente da metafísica embora como esta estude a substância pensante a cosmologia é diferente da metafísica embora como esta estude a substância extensa Que estuda a metafísica A essência do infinito a essência do pensamento e a essência da extensão Como as estuda a metafísica Como conceitos ou idéias rigorosamente racionais A substância infinita é a idéia racional de um fundamento ou princípio absoluto que produz a essência e a existência de tudo o que existe A substância pensante é a idéia racional de uma faculdade intelectual e volitiva que produz pensamentos e ações segundo normas regras e métodos estabelecidos por ela mesma enquanto poder de conhecimento é a consciência como faculdade de reflexão e de representação da realidade por meio de idéias verdadeiras A substância extensa é a idéia racional de uma realidade físicogeométrica que produz os corpos como figuras e formas dotadas de massa volume e movimento é a Natureza como sistema de leis necessárias definidas pela mecânica e pela matemática o ponto de partida da metafísica é a teoria do conhecimento isto é a investigação sobre a capacidade humana para conhecer a verdade de modo que uma coisa ou um ente só é considerado real se a razão humana puder conhecêlo isto é se puder ser objeto de uma idéia verdadeira estabelecida rigorosa e metodicamente pelo intelecto humano Assim a metafísica não começa com a pergunta O que é realidade mas com a questão Podemos conhecer a realidade Três idéias e apenas três operam na metafísica a idéia da substância infinita como causa eficiente da Natureza e do homem a idéia da substância pensante como causa eficiente dos pensamentos dos conceitos e das ações humanas a idéia da substância extensa ou Natureza como causa eficiente que pelas relações de movimento e repouso produz todos os corpos A substância infinita ou Deus é a causa da existência e da essência das substâncias pensante e extensa e é causa das relações entre ambas no caso do homem já que este é uma substância mista Deus homem e Natureza são os objetos da metafísica Infinito finito causa eficiente e causa final são os primeiros princípios de que se ocupa a metafísica Idéias verdadeiras produzidas pelo intelecto humano com as quais o sujeito do conhecimento representa e conhece a realidade são os fundamentos da metafísica como ciência verdadeira ou como Primeira Filosofia Se tomarmos a história da metafísica veremos que seu campo de investigação foi gradualmente comportando novos temas e objetos de estudo que exprimem Convite à Filosofia 292 as exigências do pensamento de cada época Resumidamente os temas e objetos da metafísica podem ser assim apresentados O Ser como substância e como essência diferença entre essência e acidente origem e estrutura do mundo ou da realidade o infinito e o finito diferenças e relações o espírito e a matéria diferenças e relações o espaço e o tempo diferenças e relações a vida e a morte a alma e o corpo diferenças e relações a essência da mente humana a consciência e o mundo diferenças e relações essência e existência diferenças e relações a destinação do homem Deus a Natureza e o homem diferenças e relações A grande crise da metafísica David Hume O lugar ocupado pela teoria do conhecimento como condição da metafísica isto é a antecedência da pergunta O que e como podemos conhecer diante da pergunta antiga O que é a realidade forçou a Filosofia a pagar um alto preço Esse preço foi a crise da metafísica Se a realidade investigada pela metafísica é aquela que pode e deve ser racionalmente estabelecida pelas idéias verdadeiras produzidas pelo pensamento ou pela razão humana que acontecerá se se provar que tais idéias são hábitos mentais do sujeito do conhecimento e não correspondem a realidade alguma A metafísica antiga e medieval baseavase na afirmação de que a realidade ou o Ser existe em si mesmo e que ele se oferece tal como é ao pensamento A metafísica clássica ou moderna baseavase na afirmação de que o intelecto humano ou o pensamento possui o poder para conhecer a realidade tal como é em si mesma e que graças às operações intelectuais ou aos conceitos que representam as coisas e as transformam em objetos de conhecimento o sujeito do conhecimento tem acesso ao Ser Tanto num caso como noutro a metafísica baseavase em dois pressupostos 1 a realidade em si existe e pode ser conhecida 2 idéias ou conceitos são um conhecimento verdadeiro da realidade porque a verdade é a correspondência entre as coisas e os pensamentos ou entre o intelecto e a realidade Marilena Chauí 293 Esses dois pressupostos assentavamse num único fundamento a existência de um Ser Infinito Deus que garantia a realidade e a inteligibilidade de todas as coisas dotando os humanos de um intelecto capaz de conhecêlas tais como são em si mesmas David Hume dirá que os dois pressupostos da metafísica não têm fundamento não possuem validade alguma A metafísica antiga medieval e clássica ou moderna era sustentada por três princípios identidade nãocontradição e razão suficiente ou causalidade Os dois primeiros serviam de garantia para a idéia de substância ou essência o terceiro servia de garantia para explicar a origem e a finalidade das coisas bem como as relações entre os seres Hume partindo da teoria do conhecimento mostrou que o sujeito do conhecimento opera associando sensações percepções e impressões recebidas pelos órgãos dos sentidos e retidas na memória As idéias nada mais são do que hábitos mentais de associação de impressões semelhantes ou de impressões sucessivas Que é a idéia de substância ou de essência Nada mais do que um nome geral dado para indicar um conjunto de imagens e de idéias que nossa consciência tem o hábito de associar por causa das semelhanças entre elas O princípio da identidade e o da nãocontradição são simplesmente o resultado de percebermos repetida e regularmente certas coisas semelhantes e sempre da mesma maneira levandonos a supor que porque as percebemos como semelhantes e sempre da mesma maneira isso lhes daria uma identidade própria independente de nós Que é a idéia de causalidade O mero hábito que nossa mente adquire de estabelecer relações de causa e efeito entre percepções e impressões sucessivas chamando as anteriores de causas e as posteriores de efeitos A repetição constante e regular de imagens ou impressões sucessivas nos leva à crença de que há uma causalidade real externa própria das coisas e independente de nós Substância essência causa efeito matéria forma e todos os outros conceitos da metafísica Deus mundo alma infinito finito etc não correspondem a seres a entidades reais e externas independentes do sujeito do conhecimento mas são nomes gerais com que o sujeito nomeia e indica seus próprios hábitos associativos Eis porque a metafísica foi sempre alimentada por controvérsias infindáveis pois não se referia a nenhuma realidade externa existente em si e por si mas a hábitos mentais dos sujeitos hábitos que são muito variáveis e dão origem a inúmeras doutrinas filosóficas sem qualquer fundamento real A partir de Hume a metafísica tal como existira desde o século IV aC tornava se impossível Convite à Filosofia 294 Kant e o fim da metafísica clássica O primeiro a reagir aos problemas postos por Hume foi Kant ao declarar que graças ao filósofo inglês pôde despertar do sono dogmático O que é o sono dogmático É tomar como ponto de partida da metafísica a idéia de que existe uma realidade em si Deus alma mundo infinito finito matéria forma substância causalidade que pode ser conhecida por nossa razão ou o que dá no mesmo tomar como ponto de partida da metafísica a afirmação de que as idéias produzidas por nossa razão correspondem exatamente a uma realidade externa que existe em si e por si mesma Dogmático é aquele que aceita sem exame e sem crítica afirmações sobre as coisas e sobre as idéias Hume despertou a metafísica do sono dogmático porque a forçou a indagar sobre sua própria validade e sua pretensão ao conhecimento verdadeiro O que é despertar do sono dogmático É indagar antes de tudo se a metafísica é possível e se for em que condições é possível Despertar do dogmatismo é elaborar uma crítica da razão teórica isto é um estudo sobre a estrutura e o poder da razão para determinar o que ela pode e o que ela não pode conhecer verdadeiramente Quando examinamos os conceitos de razão e verdadevii vimos que Kant realizou uma revolução copernicana em filosofia isto é exigiu que antes de qualquer afirmação sobre as idéias houvesse o estudo da própria capacidade de conhecer isto é da razão Vimos também que ele distinguira duas grandes modalidades de conhecimento os conhecimentos empíricos isto é baseados nos dados da experiência psicológica de cada um de nós e os conhecimentos apriorísticos isto é baseados exclusivamente na estrutura interna da própria razão independentemente da experiência individual de cada um Vimos além disso que ele distinguira as duas maneiras pelas quais esses dois tipos de conhecimentos se exprimem os juízos sintéticos e os juízos analíticos Finalmente vimos que a questão do conhecimento estava resumida numa pergunta fundamental São possíveis juízos sintéticos apriorísticos Recordemos a distinção entre os tipos de juízos O juízo analítico é aquele em que o predicado não é senão a explicitação do conteúdo do sujeito Por exemplo O triângulo é uma figura de três lados O juízo sintético é aquele no qual o predicado acrescenta novos dados sobre o sujeito Por exemplo Sócrates é filósofo Um juízo para ter valor científico e filosófico ou valor teórico deve preencher duas condições 1 deve ser universal e necessário 2 deve ser verdadeiro isto é corresponder à realidade que enuncia Marilena Chauí 295 Os juízos analíticos diz Kant preenchem as duas condições mas não os juízos sintéticos Por quê Porque um juízo sintético se baseia nos dados da experiência psicológica individual e como bem mostrou Hume tal experiência nos dá sensações e impressões que associamos em idéias mas estas não são universais e necessárias nem correspondem à realidade Ora um juízo analítico não nos traz conhecimentos pois simplesmente repete no predicado o conteúdo do sujeito Somente juízos sintéticos são fonte de conhecimento Portanto se quisermos realizar metafísica e ciência temos primeiro que provar que são possíveis juízos sintéticos universais necessários e verdadeiros e portanto demonstrar que tais juízos não podem ser empíricos Dizer que um juízo sintético é universal necessário e verdadeiro e dizer que não pode ser empírico significa dizer que o juízo sintético filosófico e científico tem que ser um juízo sintético apriorístico ou a priori isto é tem que depender de alguma coisa que não seja a experiência A pergunta É possível a metafísica só poderá ser respondida se primeiro for provado que há ou que não pode haver juízos sintéticos a priori sobre as realidades metafísicas isto é Deus alma mundo substância matéria forma infinito finito causalidade etc Vimos que Kant demonstrou a existência e validade dos juízos sintéticos a priori nas ciências demonstrando que o conhecimento da realidade nada mais é do que a maneira como a razão através de sua estrutura universal organiza de modo universal e necessário os dados da experiência Em outras palavras vimos que graças às formas a priori da sensibilidade espaço e tempo e dos conceitos a priori do entendimento as categorias de substância causalidade relação quantidade qualidade etc possuímos uma capacidade de conhecimento inata universal e necessária que não depende da experiência mas se realiza por ocasião da experiência sobre os objetos que esta nos oferece O que é exatamente um juízo Um juízo é uma afirmação ou uma negação referente a propriedades de um sujeito isto é a maneira como o conhecimento afirma ou nega o que uma coisa é ou não é Como a realidade ou o objeto é aquilo que pode ser conhecido através das formas a priori da sensibilidade e dos conceitos a priori do entendimento um juízo é a afirmação ou a negação da realidade de um objeto pela afirmação ou negação de suas propriedades O que é conhecer Conhecer é formular juízos que nos apresentem todas as propriedades positivas de um objeto e excluam todas as propriedades negativas que o objeto não pode possuir Por exemplo quando digo O número 4 é um inteiro par esse juízo afirma que um certo objeto 4 é alguma coisa é um número que possui determinadas propriedades positivas inteiro par e por conseguinte dele Convite à Filosofia 296 estão excluídas propriedades negativas diferentes das que possui fracionário e ímpar Quando digo Isto é uma mesa é de madeira possui quatro pés está junto à janela é usada para escrever este juízo afirma que um certo objeto isto é alguma coisa mesa que possui certas qualidades madeira quatro pés serve para escrever está junto à janela e por conseguinte dele estão excluídas outras coisas não é uma cadeira não é um livro e a ele são negadas certas propriedades não é de vidro não está junto à porta não serve para deitar etc Um juízo portanto nos dá a conhecer alguma coisa desde que esta possa ser apreendida sob as formas do espaço e do tempo e sob os conceitos do entendimento Uma coisa passa a existir quando se torna objeto de um juízo Isso não significa que o juízo cria a própria coisa mas sim que a faz existir para nós O juízo põe a realidade de alguma coisa ao colocála como sujeito de uma proposição isto é ao colocála como objeto de um conhecimento É portanto o juízo que põe a qualidade a quantidade a causalidade a substância a matéria a forma a essência das coisas na medida em que estas existem apenas enquanto são objetos de conhecimento postos pelas formas do espaço do tempo e pelos conceitos do entendimento Em outras palavras uma coisa existe quando pode ser posta pelo sujeito do conhecimento entendido não como um sujeito individual e psicológico João Pedro Maria Ana mas como o sujeito universal ou estrutura a priori universal da razão humana aquilo que Kant denomina de Sujeito Transcendental viii Quando o juízo for sintético e a priori o conhecimento obtido é universal necessário e verdadeiro No entanto a demonstração de que graças às formas a priori da sensibilidade e graças aos conceitos a priori do entendimento os juízos sintéticos a priori são possíveis é uma demonstração que não ajuda em nada a pergunta sobre a possibilidade da metafísica Por quê Kant distinguiu duas modalidades de realidade A realidade que se oferece a nós na experiência e a realidade que não se oferece à experiência A primeira foi chamada por ele de fenômeno isto é aquilo que se apresenta ao sujeito do conhecimento na experiência é estruturado pelo sujeito com as formas do espaço e do tempo e com os conceitos do entendimento é sujeito de um juízo e objeto de um conhecimento A segunda foi chamada por ele de nôumeno isto é aquilo que não é dado à sensibilidade nem ao entendimento mas é afirmado pela razão sem base na experiência e no entendimento O fenômeno é a coisa para nós ou o objeto do conhecimento propriamente dito é o objeto enquanto sujeito do juízo O nôumeno é a coisa em si ou o objeto da metafísica isto é o que é dado para um pensamento puro sem relação com a experiência Ora só há conhecimento universal e necessário daquilo que é organizado pelo sujeito do conhecimento nas formas do espaço e do tempo e de Marilena Chauí 297 acordo com os conceitos do entendimento Se o nôumeno é aquilo que nunca se apresenta à sensibilidade nem ao entendimento mas é afirmado pelo pensamento puro não pode ser conhecido E se o nôumeno é o objeto da metafísica esta não é um conhecimento possível Tomemos um exemplo que nos ajude a compreender a argumentação kantiana Quando a metafísica se refere a Deus ela o define como imaterial infinito eterno incausado princípio e fundamento das essências e existências de todos os seres Vejamos cada uma das qualidades atribuídas ao sujeito Deus ou à idéia de Deus Imaterial portanto não espacial infinito portanto não espacial eterno portanto não temporal incausado portanto sem causa princípio e fundamento de tudo portanto acima e fora de toda a realidade conhecida ou incondicionado A idéia metafísica de Deus é a idéia de um ser que não pode nos aparecer sob a forma do espaço e tempo de um ser ao qual a categoria de causalidade não se aplica de um ser que nunca tendo sido dado a nós é posto entretanto como fundamento e princípio de toda a realidade e de toda a verdade Assim a idéia metafísica de Deus escapa de todas as condições de possibilidade do conhecimento humano e portanto a metafísica usa ilegitimamente essa idéia para afirmar que Deus existe e para dizer o que ele é Até agora diz Kant a metafísica tem sido uma insensatez dogmática Tem sido a pretensão de conhecer aqueles seres que justamente escapam de toda possibilidade humana de conhecimento pois são seres aos quais não se aplicam as condições universais e necessárias dos juízos isto é espaço tempo causalidade qualidade quantidade substancialidade etc Essa metafísica não é possível Mas isso não significa que toda metafísica seja impossível Qual é a metafísica possível É aquela que tem como objeto a investigação dos conceitos usados pelas ciências espaço tempo quantidade qualidade causalidade substancialidade universalidade necessidade etc isto é que tem como objeto o estudo das condições de possibilidade de todo conhecimento humano e de toda a experiência humana possíveis A metafísica estuda portanto as condições universais e necessárias da objetividade em geral e não o Ser enquanto Ser nem Deus alma e mundo nem substância infinita pensante e extensa Estuda as maneiras pelas quais o sujeito do conhecimento ou a razão teórica põe a realidade isto é estabelece os objetos do conhecimento e da experiência A metafísica é o conhecimento do conhecimento humano e da experiência humana ou em outras palavras do modo como os seres humanos enquanto expressões do Sujeito Transcendental definem e estabelecem realidades Convite à Filosofia 298 Há além desse um outro objeto para a metafísica Não se trata porém de um objeto teórico e sim de um objeto prático qual seja a ação humana enquanto ação moral ou o que Kant chama de ação livre por dever Por que a moral ou a ética se torna objeto da metafísica Por causa da liberdade A razão teórica mostra que todos os seres incluindo os homens são seres naturais Isso significa que são seres submetidos a relações necessárias de causa e efeito A Natureza é o reino das leis naturais de causalidade Nela tudo acontece de modo necessário ou causal não havendo lugar para escolhas livres No entanto os seres humanos são capazes de agir por escolha livre por determinação racional de sua vontade e são capazes de agir em nome de fins ou finalidades humanas e não apenas condicionados por causas naturais necessárias A ação livre ou por escolha voluntária ou racional é uma ação por finalidade e não por causalidade Nesse sentido a ação moral mostra que além do reino causal da Natureza existe o reino ético da liberdade e da finalidade Cabe à metafísica o estudo dessa outra modalidade de realidade que não é natural nem teórica mas prática Assim ao lado do conhecimento da razão teórica a metafísica tem como objeto o estudo da razão prática ou da ética Como é possível a liberdade Como é possível a ação livre por finalidade Quais são as finalidades da vida ética O que é o dever O que é e como é possível agir por dever O que é a virtude Eis alguns dos temas da metafísica como estudo da razão prática Marilena Chauí 299 Capítulo 4 A ontologia contemporânea A herança kantiana Após a solução kantiana para o problema da metafísica esta não mais retornou à antiga concepção de conhecimento da realidade em si mas caminhou no sentido inaugurado por Kant conhecido como idealismo Por que idealismo Vimos que a Filosofia na Antiguidade na Idade Média e na Modernidade era realista isto é partia da afirmação de que a realidade ou o Ser existem em si mesmos e que enquanto tais podem ser conhecidos pela razão humana Vimos também que o realismo clássico ou moderno introduzira uma mudança no realismo antigo e medieval pois exigira que antes de iniciar uma investigação metafísica da realidade fosse respondida a questão Podemos conhecer a realidade Em outras palavras exigira que a teoria do conhecimento antecedesse a metafísica Vimos a seguir o resultado dessa exigência David Hume demonstrando que o conteúdo da metafísica são apenas nossas idéias e que estas são nomes gerais atribuídos aos hábitos psicológicos de associar os dados da sensação e da percepção O sentimento subjetivo ou psicológico de regularidade constância e freqüência de nossas impressões são transformados em entidades metafísicas que na verdade não existem Kant completou a trajetória moderna mas com duas inovações fundamentais em primeiro lugar transformou a própria teoria do conhecimento em metafísica ao afirmar que esta investiga as condições gerais da objetividade isto é do conhecimento universal e necessário dos fenômenos e em segundo lugar demonstrou que o sujeito do conhecimento não é como pensara Hume o sujeito psicológico individual mas uma estrutura universal idêntica para todos os seres humanos em todos os tempos e lugares e que é a razão como faculdade a priori de conhecer ou o Sujeito Transcendental Nunca saberemos o que é e como é a realidade em si mesma separada e independente de nós Conhecemos apenas a realidade como fenômeno isto é organizada pelo sujeito do conhecimento segundo as formas do espaço e do tempo e segundo os conceitos do entendimento A realidade conhecível e conhecida é aquela posta pela objetividade estabelecida pela razão ou pelo Sujeito Transcendental Convite à Filosofia 300 O que é a objetividade O que é fenômeno O que é a realidade enquanto objeto ou fenômeno É a realidade estruturada pelas idéias produzidas pelo sujeito Por isso a metafísica se torna idealista ou um idealismo O conhecimento não vem das coisas para a consciência mas vem das idéias da consciência para as coisas A história da metafísica foi sempre o trabalho filosófico para responder a duas perguntas O que é aquilo que existe Como podemos conhecer aquilo que existe Duas foram as respostas a realista cujo exemplo mais acabado foi a metafísica de Aristóteles ou o estudo do Ser enquanto Ser e a idealista cujo exemplo mais acabado foi a críticaix da razão teórica e prática de Kant A contribuição da fenomenologia de Husserl Quando estudamos a teoria do conhecimento vimos que o filósofo alemão Husserl trouxe no início do século passado uma nova abordagem do conhecimento a que deu o nome de fenomenologia Essa abordagem como veremos agora teve conseqüências para a metafísica Segundo Husserl a fenomenologia está encarregada entre outras de três tarefas principais separar psicologia e filosofia manter o privilégio do sujeito do conhecimento ou consciência reflexiva diante dos objetos e ampliarrenovar o conceito de fenômeno Separação entre psicologia e filosofia No final do século XIX e no início do século XX muitos pensadores julgaram que a psicologia tomaria o lugar da teoria do conhecimento e da lógica e portanto da Filosofia Na opinião deles a ciência positiva do psiquismo seria suficiente para explicar as causas das formas de conhecimento e das demonstrações sem necessidade de investigações filosóficas Husserl porém veio demonstrar o equívoco de tal opinião A psicologia diz ele como toda e qualquer ciência estuda e explica fatos observáveis mas não pode oferecer os fundamentos de tais estudos e explicações pois esses cabem à Filosofia A psicologia explica por meio de observações e de relações causais fatos mentais e comportamentais isto é os mecanismos físicos fisiológicos e psíquicos que nos fazem ter sensações percepções lembranças pensamentos ou que nos permitem realizar ações pelas quais nos adaptamos ao meio ambiente A Filosofia porém difere da psicologia porque investiga o que é o físico o fisiológico o psíquico o comportamental Em outras palavras não explica fatos mentais e de comportamento mas descreve as essências da vida física e psíquica Tomemos um exemplo Quando um psicólogo estuda a percepção procura distinguir dois tipos de fatos os fatos externos observáveis a que dá o nome de estímulos luz calor cor forma dos objetos distância etc e os fatos internos indiretamente observáveis Marilena Chauí 301 a que dá o nome de respostas Divide o fato perceptivo em estímulos externos e internos o que acontece no sistema nervoso e no cérebro e em respostas internas e externas as operações do sistema nervoso e o ato sensorial de sentir ou perceber alguma coisa Quando um filósofo estuda a percepção procede de modo muito diferente Começa perguntando O que é a percepção diferentemente do psicólogo que parte da pergunta Como acontece uma percepção O que é a percepção Antes de tudo é um modo de nossa consciência relacionar se com o mundo exterior pela mediação de nosso corpo Em segundo lugar é um certo modo de a consciência relacionarse com as coisas quando as toma como realidades quantitativas cor sabor odor tamanho forma distâncias agradáveis desagradáveis dotadas de fisionomia e de sentido belas feias diferentes umas das outras partes de uma paisagem etc A percepção é uma vivência Em terceiro lugar essa vivência é uma forma de conhecimento dotada de estrutura há o ato de perceber pela consciência e há o correlato percebido a coisa externa a característica principal do percebido é a de oferecerse por faces por perfis ou perspectivas como algo interminável que nossos sentidos nunca podem apanhar de uma só vez e de modo total O que é a percepção Ou em outras palavras qual é a essência da percepção É uma vivência da consciência um ato cujo correlato são qualidades percebidas pela mediação de nosso corpo é um modo de estarmos no mundo e de nos relacionarmos com a presença das coisas diante de nós é um modo diferente por exemplo da vivência imaginativa da vivência reflexiva etc A psicologia nos diz que há percepção e nos oferece uma explicação causal para ela mas não pode nos dizer o que é a percepção pois para isso precisaria conhecer a essência da própria consciência Manutenção do privilégio do sujeito do conhecimento Conservandose fiel à tradição moderna e kantiana Husserl privilegia a consciência reflexiva ou o sujeito do conhecimento isto é afirma que as essências descritas pela Filosofia são produzidas ou constituídas pela consciência enquanto um poder para dar significação à realidade A consciência de que fala o filósofo não é evidentemente aquela de que fala o psicólogo Para este a consciência é o nome dado a um conjunto de fatos externos e internos observáveis e explicados causalmente A consciência a que se refere o filósofo é o sujeito do conhecimento como estrutura e atividade universal e necessária do saber É a Consciência Transcendental ou o Sujeito Transcendental Qual é o poder da consciência reflexiva O de constituir ou criar as essências pois estas nada mais são do que as significações produzidas pela consciência enquanto um poder universal de doação de sentido ao mundo Convite à Filosofia 302 A consciência não é uma coisa entre as coisas não é um fato observável nem é como imaginava a metafísica uma substância pensante ou uma alma entidade espiritual A consciência é uma pura atividade o ato de constituir essências ou significações dando sentido ao mundo das coisas Estas ou o mundo como significação são o correlato da consciência aquilo que é visado por ela e dela recebe sentido Não sendo uma coisa nem uma substância mas puro ato a consciência é uma forma é sempre consciência de O ser ou essência da consciência é o de ser sempre consciência de a que Husserl dá o nome de intencionalidade A consciência é um ato intencional e sua essência é a intencionalidade ou o ato de visar as coisas dandolhes significação O mundo ou a realidade é o correlato intencional da consciência Assim por exemplo perceber é o ato intencional da consciência o percebido é o seu correlato intencional e a percepção é a unidade interna e necessária entre o ato e o correlato entre o perceber e o percebido É por esse motivo que conhecendo a estrutura intencional ou a essência da consciência se pode conhecer a essência da percepção ou da imaginação da memória da reflexão etc Ampliaçãorenovação do conceito de fenômeno Desde Kant fenômeno indicava aquilo que do mundo externo se oferece ao sujeito do conhecimento sob as estruturas cognitivas da consciência isto é sob as formas do espaço e do tempo e sob os conceitos do entendimento No entanto o filósofo Hegel ampliou o conceito de fenômeno afirmando que tudo o que aparece só pode aparecer para uma consciência e que a própria consciência mostrase a si mesma no conhecimento de si sendo ela própria um fenômeno Por isso foi Hegel o primeiro a usar a palavra fenomenologia para com ela indicar o conhecimento que a consciência tem de si mesma através dos demais fenômenos que lhe aparecem Husserl mantém o conceito kantiano e hegeliano mas amplia ainda mais a noção de fenômeno Para compreendermos essa ampliação precisamos considerar a crítica que endereça a Kant e a Hegel Kant equivocouse ao distinguir fenômeno e nôumeno pois com essa distinção manteve a velha idéia metafísica da realidade em si ou do Ser enquanto Ser mesmo que dissesse que não a podíamos conhecer Hegel por sua vez aboliu a diferença entre a consciência e o mundo porque dissera que este nada mais é do que o modo como a consciência se torna as próprias coisas tornase mundo ela mesma tudo sendo fenômeno fenômeno interior a consciência e fenômeno exterior o mundo como manifestação da consciência nas coisas Contra Kant Husserl afirma que não há nôumeno não há a coisa em si incognoscível Tudo o que existe é fenômeno e só existem fenômenos Fenômeno é a presença real de coisas reais diante da consciência é aquilo que se apresenta diretamente em pessoa em carne e osso à consciência Marilena Chauí 303 Contra Hegel Husserl afirma que a consciência possui uma essência diferente das essências dos fenômenos pois ela é doadora de sentido às coisas e estas são receptoras de sentido A consciência não se encarna nas coisas não se torna as próprias coisas mas dá significação a elas permanecendo diferente delas O que é o fenômeno É a essência O que é a essência É a significação ou o sentido de um ser sua idéia seu eidos A Filosofia é a descrição da essência da consciência de seus atos e correlatos e das essências das coisas Por isso a Filosofia é uma eidética descrição do eidos ou das essências Como o eidos ou essência é o fenômeno a Filosofia é uma fenomenologia Os fenômenos ou essências Fenômeno não são apenas as coisas materiais que percebemos imaginamos ou lembramos cotidianamente porque são parte de nossa vida Também não são como supunha Kant apenas as coisas naturais estudadas pelas ciências da Natureza física química biologia astronomia geologia etc Fenômeno são também coisas puramente ideais ou idealidades isto é coisas que existem apenas no pensamento como os entes estudados pela matemática figuras geométricas números operações algébricas conceitos como igualdade diferença identidade etc e pela lógica como os conceitos de universalidade particularidade individualidade necessidade contradição etc Além das coisas materiais naturais e ideais também são fenômenos as coisas criadas pela ação e pela prática humanas técnicas artes instituições sociais e políticas crenças religiosas valores morais etc Em outras palavras os resultados da vida e da ação humanas aquilo que chamamos de Cultura são fenômenos isto é significações ou essências que aparecem à consciência e que são constituídas pela própria consciência A fenomenologia é a descrição de todos os fenômenos ou eidos ou essências ou significação de todas estas realidades materiais naturais ideais culturais Ao ampliar o conceito de fenômeno Husserl propôs que a Filosofia distinguisse diferentes tipos de essências ou fenômenos e que considerasse cada um deles como manifestando um tipo de realidade diferente um tipo de ser diferente Falou assim em regiões do ser a região Consciência a região Natureza a região Matemática a região Arte a região História a região Religião a região Política a região Ética etc Propôs que a Filosofia investigasse as essências próprias desses seres ou desses entes criando ontologias regionais Com essa proposta Husserl fazia com que a metafísica do Ser enquanto Ser e a metafísica das substâncias Deus alma mundo infinito pensante extensa cedessem lugar ao estudo do ser diferenciado em entes dotados de essências próprias e irredutíveis uns aos outros Esse estudo seria a ontologia sob a forma de ontologias regionais Convite à Filosofia 304 Ôntico e ontológico Vimos que a palavra ontologia deriva do particípio presente do verbo einai ser isto é de on ente e onta entes dos quais vêm o substantivo to on o Ser O filósofo alemão Heidegger propõe distinguir duas palavras ôntico e ontológico Ôntico se refere à estrutura e à essência própria de um ente aquilo que ele é em si mesmo sua identidade sua diferença em face de outros entes suas relações com outros entes Ontológico se refere ao estudo filosófico dos entes à investigação dos conceitos que nos permitam conhecer e determinar pelo pensamento em que consistem as modalidades ônticas quais os métodos adequados para o estudo de cada uma delas quais as categorias que se aplicam a cada uma delas Em resumo ôntico diz respeito aos entes em sua existência própria ontológico diz respeito aos entes tomados como objetos de conhecimento Como existem diferentes esferas ou regiões ônticas existirão ontologias regionais que se ocupam com cada uma delas Em nossa experiência cotidiana distinguimos espontaneamente cinco grandes estruturas ônticas 1 os entes materiais naturais que chamamos de coisas reais frutas árvores pedras rios estrelas areia o Sol a Lua metais etc 2 os entes materiais artificiais a que também chamamos de coisas reais nossa casa mesas cadeiras automóveis telefone computador lâmpadas chuveiro roupas calçados pratos talheres etc 3 os entes ideais isto é aqueles que não são coisas materiais mas idéias gerais concebidas pelo pensamento lógico matemático científico filosófico e aos quais damos o nome de idealidades igualdade diferença número raiz quadrada círculo conjunto classe função variável freqüência animal vegetal mineral físico psíquico matéria energia etc 4 os entes que podem ser valorizados positiva ou negativamente e aos quais damos o nome de valores beleza feiúra vício virtude raro comum bom mau justo injusto difícil fácil possível impossível verdadeiro falso desejável indesejável etc 5 os entes que pertencem a uma realidade diferente daquela a que pertencem as coisas as idealidades e os valores e aos quais damos o nome de metafísicos a divindade ou o absoluto a identidade e a alteridade o mundo como unidade a relação e diferenciação de todos os entes ou de todas as estruturas ônticas etc Como passamos da experiência ôntica à investigação ontológica Quando aquilo que faz parte de nossa vida cotidiana se torna problemático estranho confuso quando somos surpreendidos pelas coisas e pelas pessoas porque acontece algo inesperado ou imprevisível quando desejamos usar certas coisas e não sabemos como lidar com elas enfim quando o significado costumeiro das coisas das ações dos valores ou das pessoas perde sentido ou se mostra obscuro e confuso Marilena Chauí 305 ou quando o que nos foi dito ensinado e transmitido sobre eles já não nos satisfaz e queremos saber mais e melhor Podemos então perguntar O que é isso que chamamos de coisa real coisas naturais e coisas artificiais ou culturais Diremos que uma coisa é chamada real porque pertence a um conjunto de entes que possuem em comum a mesma estrutura ontológica são entes que existem fora de nós estão no mundo diante de nós isto é são um ser são entes que existem quer nós os percebamos ou não quer nós os usemos ou não estão presentes no mundo mesmo que não estejam presentes para nós pois podem estar presentes para todos ou ficar presentes para nós em algum momento isto é são uma realidade são entes que começam a existir e podem desaparecer mesmo que seu desaparecimento seja muito mais lento do que o nosso são entes que duram e possuem duração isto é são temporais são entes que se transformam no tempo são produzidos pela ação de outros e produzem outros obedecendo a certos princípios isto é são causas e efeitos são causalidades Ser realidade temporalidade e causalidade são conceitos ontológicos que descrevem a essência dos entes chamados coisas No caso dos entes ideais os conceitos ontológicos são bastante diferentes Em primeiro lugar tais entes não são coisas reais este cavalo é uma coisa real mas a idéia do cavalo não é uma coisa é um conceito e existe apenas como conceito Em segundo lugar não causam uns aos outros mas são entes que possuem uma definição própria podendo relacionarse com outros a idéia de homem não causa a de cavalo mas podem relacionarse quando o historiador por exemplo mostra a diferença entre sociedades cujo exército só possui a infantaria e aquelas que inventaram a cavalaria um círculo não causa um triângulo mas podemos inscrever triângulos num círculo para demonstrar um teorema ou resolver um problema São portanto entes relacionais mas não são regidos pelo conceito de causalidade Em terceiro lugar não existem do mesmo modo que as coisas isto é não começam a existir transformamse e desaparecem um triângulo uma inferência a idéia de vegetal não nascem nem morrem são intemporais Idealidade relação e intemporalidade são os conceitos ontológicos para os entes ideais No caso dos entes que são valores os conceitos ontológicos principais que os descrevem essencialmente são a qualidade um valor pode ser negativo ou afirmativo e a polaridade ou oposição os valores sempre se apresentam como pares de opostos bommau belofeio justoinjusto verdadeirofalso etc Observemos que o sentido das coisas naturais muda com a mudança dos conhecimentos científicos assim como muda o sentido dos entes ideais o que os gregos entendiam por número não é o que a matemática moderna entende por número por exemplo No caso dos entes reais artificiais isto é das coisas produzidas pelo homem com as técnicas e as artes a mudança não é apenas de sentido mas das próprias coisas entes técnicos ficam obsoletos e caem em desuso quando outros mais sofisticados são produzidos O sentido dos valores Convite à Filosofia 306 também muda nas diferentes sociedades e épocas o que era inaceitável numa sociedade ou numa época pode tornarse aceitável e desejável noutra ou vice versa Se considerarmos os entes na perspectiva dos seres humanos diremos que todos os entes naturais artificiais idéias valores metafísicos são entes culturais e históricos submetidos ao tempo à mudança pois seu sentido sua essência muda com a Cultura No entanto podemos observar também que as categorias ontológicas ser realidade causalidade temporalidade idealidade intemporalidade relação diferença qualidade quantidade polaridade oposição etc permanecem ainda que mudem seus objetos Assim por exemplo a ciência física pode oferecer uma explicação inteiramente nova para o fenômeno da percepção das cores Contudo a existência da luz da cor da percepção das coisas coloridas permanece e é a essa permanência que se refere a ontologia Uma sociedade pode considerar o homossexualismo masculino um valor positivo como foi o caso da sociedade grega antiga ou um valor negativo como na sociedade inglesa vitoriana do século XIX mas o ato de valorar positiva ou negativamente alguma ação permanece e é essa permanência que interessa à ontologia A nova ontologia nem realismo nem idealismo Filósofos que vieram após Husserl e adotaram suas idéias desenvolveram a nova ontologia Entre esses filósofos dois merecem especial destaque Martin Heidegger e o francês Maurice MerleauPonty Ambos modificaram várias das idéias de Husserl e esforçaramse para liberar a ontologia do velho problema deixado pela metafísica qual seja o dilema do realismo e do idealismo dilema que Husserl resolvera em favor do idealismo pelo papel preponderante que dera à consciência ou ao sujeito do conhecimento Qual o dilema posto pelo realismo e pelo idealismo O realismo afirma que se eliminarmos o sujeito e a consciência restam as coisas em si mesmas a realidade verdadeira o ser em si O idealismo ao contrário afirma que se eliminarmos as coisas ou o nôumeno resta a consciência ou o sujeito que através das operações do conhecimento põe a realidade o objeto Heidegger e MerleauPonty afirmam que as duas posições estão equivocadas e que são erros gêmeos cabendo à nova ontologia superálos isto é resolver o problema HeráclitoParmênides PlatãoAristóteles medievais e modernos Kant e Husserl Como resolver um problema milenar como esse e que é afinal a própria história da metafísica e da ontologia Dizem os dois filósofos se eliminarmos a consciência não sobra nada pois as coisas existem para nós isto é para uma consciência que as percebe imagina que delas se lembra nelas pensa que as transforma pelo trabalho etc Se Marilena Chauí 307 eliminarmos as coisas também não resta nada pois não podemos viver sem o mundo nem fora dele não somos os criadores do mundo e sim seus habitantes Damos sentido ao mundo transformamos as coisas criamos utensílios obras de arte instituições sociais mas não criamos o próprio mundo Sem a consciência não há mundo para nós Sem o mundo não temos como conhecer nem agir Um mundo sem nós será tudo quanto se queira menos o que entendemos por realidade Uma consciência sem o mundo será tudo quanto se queira menos consciência humana A nova ontologia parte da afirmação de que estamos no mundo e de que o mundo é mais velho do que nós isto é não esperou o sujeito do conhecimento para existir mas simultaneamente de que somos capazes de dar sentido ao mundo conhecêlo e transformálo Não somos uma consciência reflexiva pura mas uma consciência encarnada num corpo Nosso corpo não é apenas uma coisa natural tal como a física a biologia e a psicologia o estudam mas é um corpo humano isto é habitado e animado por uma consciência Não somos pensamento puro pois somos um corpo Não somos uma coisa natural pois somos uma consciência O mundo não é um conjunto de coisas e fatos estudados pelas ciências segundo relações de causa e efeito e leis naturais Além do mundo como conjunto racional de fatos científicos há o mundo como lugar onde vivemos com os outros e rodeados pelas coisas um mundo qualitativo de cores sons odores figuras fisionomias obstáculos um mundo afetivo de pessoas lugares lembranças promessas esperanças conflitos lutas Somos seres temporais nascemos e temos consciência da morte Somos seres intersubjetivos vivemos na companhia dos outros Somos seres culturais criamos a linguagem o trabalho a sociedade a religião a política a ética as artes e as técnicas a filosofia e as ciências O que é pois a realidade É justamente a existência do mundo material natural ideal cultural e a nossa existência nele A realidade é o campo formado por seres ou entes diferenciados e relacionados entre si que possuem sentido em si mesmos e que também recebem de nós outros e novos sentidos A realidade ou o Ser não é o ObjetoCoisa sem a consciência Mas também não é o Sujeito Consciência sem as coisas e os outros A realidade ou o Ser é o cruzamento e a diferenciação entre o sensível e o inteligível entre o materialnatural e o ideal cultural entre o qualitativo e o quantitativo entre o fato e o sentido entre o psíquico e o corporal etc O que estuda a ontologia Os entes ou seres antes que sejam investigados pelas ciências e depois que se tornaram enigmáticos para nossa vida cotidiana Em outras palavras os entes ou os seres antes de serem transformados em conceitos das ciências e depois que nossa experiência cotidiana sofreu o espanto a Convite à Filosofia 308 admiração e o estranhamento de que eles sejam como nos parecem ser ou não sejam o que nos parecem ser A ontologia estuda as essências antes que sejam fatos da ciência explicativa e depois que se tornaram estranhas para nós Digo por exemplo Vejo esta casa vermelha próxima da azul A ontologia indaga O que é ver qual a essência da visão O que é uma casa ou qual a essência da habitação Que é vermelho ou azul ou qual é a essência da cor Que é ver cores O que é a cor Pergunto por exemplo Que horas são A ontologia indaga O que é o tempo Qual a essência da temporalidade Pedro fala A cidade já está perto A ontologia indaga O que é o espaço Qual é a essência da espacialidade Que é perto e longe Que é distância Antônio diz a Paulo Aquelas duas árvores são idênticas mas a terceira é diferente A ontologia indaga O que é identidade E a diferença O que é duas e terceira Ou seja o que é o número Ana me diz Ouvi uma música belíssima não essa coisa feia que você está escutando A ontologia indaga O que é a beleza e a feiúra Existem o belo em si e o feio em si ou beleza e feiúra são avaliações e valores que atribuímos às coisas O que é um valor Cecília conta a Joana Pedro realizou um ato generoso protegendo a criança mas Eugênia foi egoísta ao não ajudálo A ontologia indaga O que é a generosidade ou o egoísmo Existem em si e por si mesmos ou são avaliações que fazemos das ações humanas O que é uma virtude O que é um vício O que é um valor Como se observa a ontologia investiga a essência ou sentido do ente físico ou natural do ente psíquico lógico matemático estético ético temporal espacial etc Investiga as diferenças e as relações entre eles seu modo próprio de existir sua origem sua finalidade O que é o mundo O que é o eu ou a consciência O que é o corpo O que é o outro O que é o espaçotempo O que é a linguagem O que é o trabalho A religião A arte A sociedade A história A morte O infinito Eis as questões da ontologia Recuperase assim a velha questão filosófica O que é isto que é mas acrescida de nova questão Para quem é isto que é Voltase pois a buscar o to on o Ser ou a essência das coisas dos atos dos valores humanos da vida e da morte do infinito e do finito A pergunta O que é isto que é referese ao modo de ser dos entes naturais artificiais ideais e humanos a pergunta Para quem é isto que é referese ao sentido ou à significação desses entes Marilena Chauí 309 Tomemos um exemplo para nos ajudar a compreender o modo de pensar da ontologia Acompanhemos brevemente o estudo de MerleauPonty sobre a essência ou o ser do tempo e a essência ou o ser do nosso corpo O que é o tempo Estamos acostumados a considerar o tempo como uma linha reta feita da sucessão de instantes ou como uma sucessão de agoras um agora que já foi é o passado o agora que está sendo é o presente um agora que virá é o futuro A metafísica realista usa freqüentemente a imagem do rio para representar o tempo como algo que passa sem cessar a nascente é o passado o lugar onde me encontro é o presente a foz é o futuro Há dois enganos nessa imagem Em primeiro lugar tratase de uma imagem espacial para referirse ao que é temporal isto é pretende explicar a essência do tempo o escoamento usando a essência do espaço a sucessão de pontos Em segundo lugar a imagem do rio não corresponde ao escoamento do tempo Para que correspondesse precisaria estar invertida pois a água que está na nascente é aquela que ainda não passou pelo lugar onde estou e portanto ela é para mim o futuro e não o passado a água que está na foz é aquela que já passou pelo lugar onde estou e portanto para mim é o passado e não o futuro Tentando evitar os enganos do realismo a metafísica idealista dirá que o tempo é a forma do sentido interno isto é uma forma criada pelo sujeito do conhecimento ou pela consciência reflexiva para organizar a experiência subjetiva da sucessão O tempo não existe mas é uma identidade produzida pela razão um conceito subjetivo para estruturar o que é experimentado como sucessivo Um novo engano acaba de ser cometido Se o tempo for uma forma ou um conceito produzido pela consciência reflexiva ou pelo sujeito para organizar a sucessão não haverá sucessão a organizar pois a consciência reflexiva ou o sujeito do conhecimento opera sempre e exclusivamente com o que é atual com o que está dado presentemente ao pensamento Para a reflexão só existe a simultaneidade e a sucessão se reduz a uma experiência psicológica ou empírica ao sentimento de que há um antes e um depois tais palavras indicando o modo como nos referimos à lembranças e expectativas pessoais Indaguemos porém o que é vivenciar o próprio tempo Quando vivencio o meu presente ele se apresenta como uma situação na qual sinto faço digo penso coisas atuo de várias maneiras e tenho experiência de uma situação aberta isto é na qual muitas coisas são possíveis para mim muitas coisas podem acontecer Quando rememoro meu passado percebo que entre ele e o meu presente há uma diferença quando ele era o meu presente também estava aberto a muitas possibilidades mas somente algumas se realizaram Por isso o Convite à Filosofia 310 passado lembrado não é uma situação aberta como o presente mas fechada terminada Assim meu passado não é simplesmente o que veio antes do meu presente mas algo qualitativamente diferente do presente este é aberto aquele fechado Quando imagino meu futuro antevejo a partir das possibilidades abertas em meu presente como seria se certas possibilidades se concretizassem e se outras não se realizassem Meu futuro não é simplesmente o que vem depois do meu presente mas algo qualitativamente diferente do presente é o que poderá ser se as aberturas do meu presente se concretizarem e portanto se o que hoje está aberto ou em suspenso estiver amanhã fechado e realizado Meu passado e meu futuro nunca são os mesmos Cada vez que me lembro do meu passado eu o faço a partir do meu presente e cada vez este é diferente fazendome recordar de maneiras diversas o que passou Cada vez que imagino meu futuro eu o faço a partir de meu presente que sendo sempre diferente imagina diferentemente o futuro Não revivo o passado mas o rememoro tal como sou hoje em meu presente Não vivo o meu futuro mas o imagino tal como sou hoje em meu presente O presente é uma contração temporal que arranca o passado do esquecimento e abre o futuro para o possível O passado e o futuro são dilatações temporais distorções do presente Que é lembrar É captar no contínuo temporal uma diferença real entre o que estou vivendo no presente e o que estou vivenciando do passado Que é esquecer É perder a fisionomia ou o relevo de um momento do passado Que é esperar É buscar no contínuo temporal uma diferença possível entre o que estou vivendo e o que estou vivenciando do futuro O que é o tempo Em primeiro lugar é um escoamento interno e externo um fluir contínuo que vai produzindo diferenças dentro de si mesmo Em segundo lugar é uma contração e uma dilatação de si mesmo um juntarse a si mesmo e consigo mesmo na lembrança e um expandirse a si mesmo e consigo mesmo na esperança O tempo é a produção da identidade e da diferença consigo mesmo e nesse sentido é uma dimensão do meu ser não estou no tempo mas sou temporal e uma dimensão de todos os entes não estão no tempo mas são temporais O tempo não é um receptáculo de instantes não é uma linha de momentos sucessivos não é a distância entre um agora um antes e um depois mas é o movimento interno dos entes para reuniremse consigo mesmos o presente como centro que busca o passado e o futuro e para se diferenciarem de si mesmos o presente como diferença qualitativa em face do passado e do futuro O Ser é tempo O que é nosso corpo Qual sua essência Marilena Chauí 311 A física dirá que é um agregado de átomos uma certa massa e energia que funciona de acordo com as leis gerais da Natureza A química dirá que é feito de moléculas de água oxigênio carbono de enzimas e proteínas funcionando como qualquer outro corpo químico A biologia dirá que é um organismo vivo um indivíduo membro de uma espécie animal mamífero vertebrado bípede capaz de adaptarse ao meio ambiente por operações e funções internas dotado de um código genético hereditário que se reproduz sexualmente A psicologia dirá que é um feixe de carne músculos ossos que formam aparelhos receptores de estímulos externos e internos e aparelhos emissores de respostas internas e externas a tais estímulos capaz de ter comportamentos observáveis Todas essas respostas dizem que nosso corpo é uma coisa entre as coisas uma máquina receptiva e ativa que pode ser explicada por relações de causa e efeito suas operações são observáveis direta ou indiretamente podendo ser examinado em seus mínimos detalhes nos laboratórios classificado e conhecido Nosso corpo como qualquer coisa é um objeto de conhecimento Porém será isso o corpo que é nosso Meu corpo é um ser visível no meio dos outros seres visíveis mas que tem a peculiaridade de ser um visível vidente vejo além de ser vista Não só isso Posso me ver sou visível para mim mesma E posso me ver vendo Meu corpo é um ser táctil como os outros corpos podendo ser tocado Mas também tem o poder de tocar é tocante e é capaz de tocarse como quando minha mão direita toca a esquerda e já não sabemos quem toca e quem é tocado Meu corpo é sonoro como outros corpos como os cristais e os metais pode ser ouvido Mas tem o poder de ouvir Mais do que isso pode fazerse ouvir e pode ouvirse quando emite sons Do fundo da garganta passando pela língua e pelos dentes com os movimentos de meus lábios transformo a sonoridade em sentido dizendo palavras Ouçome falando e ouço quem me fala Sou sonora para mim mesma Meu corpo estende a mão e toca outra mão em outro corpo vê um olhar percebe uma fisionomia escuta uma outra voz sei que diante de mim está um corpo que é meu outro um outro humano habitado por consciência e eu o sei porque me fala e como eu seu corpo produz palavras sentido Visívelvidente táctiltocante sonoroouvintefalante meu corpo se vê vendo se toca tocando se escuta escutando e falando Meu corpo não é coisa não é máquina não é feixe de ossos músculos e sangue não é uma rede de causas e efeitos não é um receptáculo para uma alma ou para uma consciência é meu modo fundamental de ser e de estar no mundo de me relacionar com ele e dele se relacionar comigo Meu corpo é um sensível que sente e se sente que se sabe sentir e se sentindo É uma interioridade exteriorizada e uma exterioridade Convite à Filosofia 312 interiorizada É esse o ser ou a essência do meu corpo Meu corpo tem como todos os entes uma dimensão metafísica ou ontológica Marilena Chauí 313 Unidade 7 As ciências Convite à Filosofia 314 Capítulo 1 A atitude científica O senso comum O Sol é menor do que a Terra Quem duvidará disso se diariamente vemos um pequeno círculo avermelhado percorrer o céu indo de leste para oeste O Sol se move em torno da Terra que permanece imóvel Quem duvidará disso se diariamente vemos o Sol nascer percorrer o céu e se pôr A aurora não é o seu começo e o crepúsculo seu fim As cores existem em si mesmas Quem duvidará disso se passamos a vida vendo rosas vermelhas amarelas e brancas o azul do céu o verde das árvores o alaranjado da laranja e da tangerina Cada gênero e espécie de animal já surgiram tais como os conhecemos Alguém poderia imaginar um peixe tornarse réptil ou um pássaro Para os que são religiosos os livros sagrados não ensinam que a divindade criou de uma só vez todos os animais num só dia A família é uma realidade natural criada pela Natureza para garantir a sobrevivência humana e para atender à afetividade natural dos humanos que sentem a necessidade de viver juntos Quem duvidará disso se vemos no mundo inteiro no passado e no presente a família existindo naturalmente e sendo a célula primeira da sociedade A raça é uma realidade natural ou biológica produzida pela diferença dos climas da alimentação da geografia e da reprodução sexual Quem duvidará disso se vemos que os africanos são negros os asiáticos são amarelos de olhos puxados os índios são vermelhos e os europeus brancos Se formos religiosos saberemos que os negros descendem de Caim marcado por Deus e de Cam o filho desobediente de Noé Certezas como essas formam nossa vida e o senso comum de nossa sociedade transmitido de geração em geração e muitas vezes transformandose em crença religiosa em doutrina inquestionável A astronomia porém demonstra que o Sol é muitas vezes maior do que a Terra e desde Copérnico que é a Terra que se move em torno dele A física óptica demonstra que as cores são ondas luminosas de comprimentos diferentes obtidas pela refração e reflexão ou decomposição da luz branca A biologia demonstra que os gêneros e as espécies de animais se formaram lentamente no curso de Marilena Chauí 315 milhões de anos a partir de modificações de microorganismos extremamente simples Historiadores e antropólogos mostram que o que entendemos por família pai mãe filhos esposa marido irmãos é uma instituição social recentíssima data do século XV e própria da Europa ocidental não existindo na Antiguidade nem nas sociedades africanas asiáticas e americanas précolombianas Mostram também que não é um fato natural mas uma criação sociocultural exigida por condições históricas determinadas Sociólogos e antropólogos mostram que a idéia de raça também é recente data do século XVIII sendo usada por pensadores que procuravam uma explicação para as diferenças físicas e culturais entre os europeus e os povos conhecidos a partir do século XIV com as viagens de Marco Pólo e do século XV com as grandes navegações e as descobertas de continentes ultramarinos Ao que parece há uma grande diferença entre nossas certezas cotidianas e o conhecimento científico Como e por que ela existe Características do senso comum Um breve exame de nossos saberes cotidianos e do senso comum de nossa sociedade revela que possuem algumas características que lhes são próprias são subjetivos isto é exprimem sentimentos e opiniões individuais e de grupos variando de uma pessoa para outra ou de um grupo para outro dependendo das condições em que vivemos Assim por exemplo se eu for artista verei a beleza da árvore se eu for marceneira a qualidade da madeira se estiver passeando sob o Sol a sombra para descansar se for bóiafria os frutos que devo colher para ganhar o meu dia Se eu for hindu uma vaca será sagrada para mim se for dona de um frigorífico estarei interessada na qualidade e na quantidade de carne que poderei vender são qualitativos isto é as coisas são julgadas por nós como grandes ou pequenas doces ou azedas pesadas ou leves novas ou velhas belas ou feias quentes ou frias úteis ou inúteis desejáveis ou indesejáveis coloridas ou sem cor com sabor odor próximas ou distantes etc são heterogêneos isto é referemse a fatos que julgamos diferentes porque os percebemos como diversos entre si Por exemplo um corpo que cai e uma pena que flutua no ar são acontecimentos diferentes sonhar com água é diferente de sonhar com uma escada etc são individualizadores por serem qualitativos e heterogêneos isto é cada coisa ou cada fato nos aparece como um indivíduo ou como um ser autônomo a seda é macia a pedra é rugosa o algodão é áspero o mel é doce o fogo é quente o mármore é frio a madeira é dura etc Convite à Filosofia 316 mas também são generalizadores pois tendem a reunir numa só opinião ou numa só idéia coisas e fatos julgados semelhantes falamos dos animais das plantas dos seres humanos dos astros dos gatos das mulheres das crianças das esculturas das pinturas das bebidas dos remédios etc em decorrência das generalizações tendem a estabelecer relações de causa e efeito entre as coisas ou entre os fatos onde há fumaça há fogo quem tudo quer tudo perde dizeme com quem andas e te direi quem és a posição dos astros determina o destino das pessoas mulher menstruada não deve tomar banho frio ingerir sal quando se tem tontura é bom para a pressão mulher assanhada quem ser estuprada menino de rua é delinqüente etc não se surpreendem e nem se admiram com a regularidade constância repetição e diferença das coisas mas ao contrário a admiração e o espanto se dirigem para o que é imaginado como único extraordinário maravilhoso ou miraculoso Justamente por isso em nossa sociedade a propaganda e a moda estão sempre inventando o extraordinário o nunca visto pelo mesmo motivo e não por compreenderem o que seja investigação científica tendem a identificála com a magia considerando que ambas lidam com o misterioso o oculto o incompreensível Essa imagem da ciência como magia aparece por exemplo no cinema quando os filmes mostram os laboratórios científicos repletos de objetos incompreensíveis com luzes que acendem e apagam tubos de onde saem fumaças coloridas exatamente como são mostradas as cavernas ocultas dos magos Essa mesma identificação entre ciência e magia aparece num programa da televisão brasileira o Fantástico que como o nome indica mostra aos telespectadores resultados científicos como se fossem espantosa obra de magia assim como exibem magos ocultistas como se fossem cientistas costumam projetar nas coisas ou no mundo sentimentos de angústia e de medo diante do desconhecido Assim durante a Idade Média as pessoas viam o demônio em toda a parte e hoje enxergam discos voadores no espaço por serem subjetivos generalizadores expressões de sentimentos de medo e angústia e de incompreensão quanto ao trabalho científico nossas certezas cotidianas e o senso comum de nossa sociedade ou de nosso grupo social cristalizamse em preconceitos com os quais passamos a interpretar toda a realidade que nos cerca e todos os acontecimentos A atitude científica O que distingue a atitude científica da atitude costumeira ou do senso comum Antes de qualquer coisa a ciência desconfia da veracidade de nossas certezas de nossa adesão imediata às coisas da ausência de crítica e da falta de curiosidade Por isso ali onde vemos coisas fatos e acontecimentos a atitude científica vê Marilena Chauí 317 problemas e obstáculos aparências que precisam ser explicadas e em certos casos afastadas Sob quase todos os aspectos podemos dizer que o conhecimento científico opõe se ponto por ponto às características do senso comum é objetivo isto é procura as estruturas universais e necessárias das coisas investigadas é quantitativo isto é busca medidas padrões critérios de comparação e avaliação para coisas que parecem ser diferentes Assim por exemplo as diferenças de cor são explicadas por diferenças de um mesmo padrão ou critério de medida o comprimento das ondas luminosas as diferenças de intensidade dos sons pelo comprimento das ondas sonoras as diferenças de tamanho pelas diferenças de perspectiva e de ângulos de visão etc é homogêneo isto é busca as leis gerais de funcionamento dos fenômenos que são as mesmas para fatos que nos parecem diferentes Por exemplo a lei universal da gravitação demonstra que a queda de uma pedra e a flutuação de uma pluma obedecem à mesma lei de atração e repulsão no interior do campo gravitacional a estrela da manhã e a estrela da tarde são o mesmo planeta Vênus visto em posições diferentes com relação ao Sol em decorrência do movimento da Terra sonhar com água e com uma escada é ter o mesmo tipo de sonho qual seja a realização dos desejos sexuais reprimidos etc é generalizador pois reúne individualidades percebidas como diferentes sob as mesmas leis os mesmos padrões ou critérios de medida mostrando que possuem a mesma estrutura Assim por exemplo a química mostra que a enorme variedade de corpos se reduz a um número limitado de corpos simples que se combinam de maneiras variadas de modo que o número de elementos é infinitamente menor do que a variedade empírica dos compostos são diferenciadores pois não reúnem nem generalizam por semelhanças aparentes mas distinguem os que parecem iguais desde que obedeçam a estruturas diferentes Lembremos aqui um exemplo que usamos no capítulo sobre a linguagem quando mostramos que a palavra queijo parece ser a mesma coisa que a palavra inglesa cheese e a palavra francesa fromage quando na realidade são muito diferentes porque se referem a estruturas alimentares diferentes só estabelecem relações causais depois de investigar a natureza ou estrutura do fato estudado e suas relações com outros semelhantes ou diferentes Assim por exemplo um corpo não cai porque é pesado mas o peso de um corpo depende do campo gravitacional onde se encontra é por isso que nas naves espaciais onde a gravidade é igual a zero todos os corpos flutuam independentemente do peso ou do tamanho um corpo tem uma certa cor não porque é colorido mas porque dependendo de sua composição química e física reflete a luz de uma determinada maneira etc Convite à Filosofia 318 surpreendese com a regularidade a constância a freqüência a repetição e a diferença das coisas e procura mostrar que o maravilhoso o extraordinário ou o milagroso é um caso particular do que é regular normal freqüente Um eclipse um terremoto um furacão embora excepcionais obedecem às leis da física Procura assim apresentar explicações racionais claras simples e verdadeiras para os fatos opondose ao espetacular ao mágico e ao fantástico distinguese da magia A magia admite uma participação ou simpatia secreta entre coisas diferentes que agem umas sobre as outras por meio de qualidades ocultas e considera o psiquismo humano uma força capaz de ligarse a psiquismos superiores planetários astrais angélicos demoníacos para provocar efeitos inesperados nas coisas e nas pessoas A atitude científica ao contrário opera um desencantamento ou desenfeitiçamento do mundo mostrando que nele não agem forças secretas mas causas e relações racionais que podem ser conhecidas e que tais conhecimentos podem ser transmitidos a todos afirma que pelo conhecimento o homem pode libertarse do medo e das superstições deixando de projetálos no mundo e nos outros procura renovarse e modificarse continuamente evitando a transformação das teorias em doutrinas e destas em preconceitos sociais O fato científico resulta de um trabalho paciente e lento de investigação e de pesquisa racional aberto a mudanças não sendo nem um mistério incompreensível nem uma doutrina geral sobre o mundo Os fatos ou objetos científicos não são dados empíricos espontâneos de nossa experiência cotidiana mas são construídos pelo trabalho da investigação científica Esta é um conjunto de atividades intelectuais experimentais e técnicas realizadas com base em métodos que permitem e garantem separar os elementos subjetivos e objetivos de um fenômeno construir o fenômeno como um objeto do conhecimento controlável verificável interpretável e capaz de ser retificado e corrigido por novas elaborações demonstrar e provar os resultados obtidos durante a investigação graças ao rigor das relações definidas entre os fatos estudados a demonstração deve ser feita não só para verificar a validade dos resultados obtidos mas também para prever racionalmente novos fatos como efeitos dos já estudados relacionar com outros fatos um fato isolado integrandoo numa explicação racional unificada pois somente essa integração transforma o fenômeno em objeto científico isto é em fato explicado por uma teoria formular uma teoria geral sobre o conjunto dos fenômenos observados e dos fatos investigados isto é formular um conjunto sistemático de conceitos que expliquem e interpretem as causas e os efeitos as relações de dependência Marilena Chauí 319 identidade e diferença entre todos os objetos que constituem o campo investigado Delimitar ou definir os fatos a investigar separandoos de outros semelhantes ou diferentes estabelecer os procedimentos metodológicos para observação experimentação e verificação dos fatos construir instrumentos técnicos e condições de laboratório específicas para a pesquisa elaborar um conjunto sistemático de conceitos que formem a teoria geral dos fenômenos estudados que controlem e guiem o andamento da pesquisa além de ampliála com novas investigações e permitam a previsão de fatos novos a partir dos já conhecidos esses são os prérequisitos para a constituição de uma ciência e as exigências da própria ciência A ciência distinguese do senso comum porque este é uma opinião baseada em hábitos preconceitos tradições cristalizadas enquanto a primeira baseiase em pesquisas investigações metódicas e sistemáticas e na exigência de que as teorias sejam internamente coerentes e digam a verdade sobre a realidade A ciência é conhecimento que resulta de um trabalho racional O que é uma teoria científica É um sistema ordenado e coerente de proposições ou enunciados baseados em um pequeno número de princípios cuja finalidade é descrever explicar e prever do modo mais completo possível um conjunto de fenômenos oferecendo suas leis necessárias A teoria científica permite que uma multiplicidade empírica de fatos aparentemente muito diferentes sejam compreendidos como semelhantes e submetidos às mesmas leis e viceversa permite compreender por que fatos aparentemente semelhantes são diferentes e submetidos a leis diferentes Convite à Filosofia 320 Capítulo 2 A ciência na História As três principais concepções de ciência Historicamente três têm sido as principais concepções de ciência ou de ideais de cientificidade o racionalista cujo modelo de objetividade é a matemática o empirista que toma o modelo de objetividade da medicina grega e da história natural do século XVII e o construtivista cujo modelo de objetividade advém da idéia de razão como conhecimento aproximativo A concepção racionalista que se estende dos gregos até o final do século XVII afirma que a ciência é um conhecimento racional dedutivo e demonstrativo como a matemática portanto capaz de provar a verdade necessária e universal de seus enunciados e resultados sem deixar qualquer dúvida possível Uma ciência é a unidade sistemática de axiomas postulados e definições que determinam a natureza e as propriedades de seu objeto e de demonstrações que provam as relações de causalidade que regem o objeto investigado O objeto científico é uma representação intelectual universal necessária e verdadeira das coisas representadas e corresponde à própria realidade porque esta é racional e inteligível em si mesma As experiências científicas são realizadas apenas para verificar e confirmar as demonstrações teóricas e não para produzir o conhecimento do objeto pois este é conhecido exclusivamente pelo pensamento O objeto científico é matemático porque a realidade possui uma estrutura matemática ou como disse Galileu o grande livro da Natureza está escrito em caracteres matemáticos A concepção empirista que vai da medicina grega e Aristóteles até o final do século XIX afirma que a ciência é uma interpretação dos fatos baseada em observações e experimentos que permitem estabelecer induções e que ao serem completadas oferecem a definição do objeto suas propriedades e suas leis de funcionamento A teoria científica resulta das observações e dos experimentos de modo que a experiência não tem simplesmente o papel de verificar e confirmar conceitos mas tem a função de produzilos Eis por que nesta concepção sempre houve grande cuidado para estabelecer métodos experimentais rigorosos pois deles dependia a formulação da teoria e a definição da objetividade investigada Essas duas concepções de cientificidade possuíam o mesmo pressuposto embora o realizassem de maneiras diferentes Ambas consideravam que a teoria científica Marilena Chauí 321 era uma explicação e uma representação verdadeira da própria realidade tal como esta é em si mesma A ciência era uma espécie de raioX da realidade A concepção racionalista era hipotéticodedutiva isto é definia o objeto e suas leis e disso deduzia propriedades efeitos posteriores previsões A concepção empirista era hipotéticoindutiva isto é apresentava suposições sobre o objeto realizava observações e experimentos e chegava à definição dos fatos às suas leis suas propriedades seus efeitos posteriores e previsões A concepção construtivista iniciada no século passado considera a ciência uma construção de modelos explicativos para a realidade e não uma representação da própria realidade O cientista combina dois procedimentos um vindo do racionalismo e outro vindo do empirismo e a eles acrescenta um terceiro vindo da idéia de conhecimento aproximativo e corrigível Como o racionalista o cientista construtivista exige que o método lhe permita e lhe garanta estabelecer axiomas postulados definições e deduções sobre o objeto científico Como o empirista o construtivista exige que a experimentação guie e modifique axiomas postulados definições e demonstrações No entanto porque considera o objeto uma construção lógicointelectual e uma construção experimental feita em laboratório o cientista não espera que seu trabalho apresente a realidade em si mesma mas ofereça estruturas e modelos de funcionamento da realidade explicando os fenômenos observados Não espera portanto apresentar uma verdade absoluta e sim uma verdade aproximada que pode ser corrigida modificada abandonada por outra mais adequada aos fenômenos São três as exigências de seu ideal de cientificidade 1 que haja coerência isto é que não haja contradições entre os princípios que orientam a teoria 2 que os modelos dos objetos ou estruturas dos fenômenos sejam construídos com base na observação e na experimentação 3 que os resultados obtidos possam não só alterar os modelos construídos mas também alterar os próprios princípios da teoria corrigindoa Diferenças entre a ciência antiga e a moderna Quando apresentamos os ideais de cientificidade dissemos que tanto o ideal racionalista quanto o empirista se iniciaram com os gregos Isso porém não significa que a concepção antiga e a moderna século XVII de ciência sejam idênticas Tomemos um exemplo que nos ajude a perceber algumas das diferenças entre antigos e modernos Aristóteles escreveu uma Física O objeto físico ou natural diz Aristóteles possui duas características principais em primeiro lugar existe e opera independentemente da presença da vontade e da ação humanas em segundo lugar é um ser em movimento isto é em devir sofrendo alterações qualitativas Convite à Filosofia 322 quantitativas e locais nasce vive e morre ou desaparece A Física estuda portanto os seres naturais submetidos à mudança O mundo escreve Aristóteles dividese em duas grandes regiões naturais cuja diferença é dada pelo tipo de substância de matéria e de forma dos seres de cada uma delas A região celeste formada de Sete Céus ou Sete Esferas onde estão os astros tem como substância o éter matéria sutil e diáfana forma universal que não sofre mudanças qualitativas nem quantitativas mas apenas a mudança ou movimento local realizando eternamente o mais perfeito dos movimentos o circular A segunda região é a sublunar ou terrestre nosso mundo constituída por quatro substâncias ou elementos terra água ar e fogo de cujas combinações surgem todos os seres São substâncias fortemente materiais e portanto como vimos no estudo da metafísica aristotélica fortemente potenciais ou virtuais transformandose sem cessar A região sublunar é o mundo das mudanças de forma ou da passagem contínua de uma forma a outra para atualizar o que está em potência na matéria Os seres físicos não se movem da mesma maneira não se transformam nem se deslocam da mesma maneira Seus movimentos e mudanças dependem da qualidade de suas matérias e da quantidade em que cada um dos quatro elementos materiais existe combinado com os outros num corpo Deixemos de lado todas as modalidades de movimentos estudadas por Aristóteles e examinemos apenas uma o movimento local Os corpos diz o filósofo procuram atualizar suas potências materiais atualizandose em formas diferentes Cada modalidade de matéria realiza sua forma perfeita de maneira diferente das outras No caso do movimento local a matéria define lugares naturais isto é locais onde ela se atualiza ou se realiza melhor do que em outros Assim os corpos pesados nos quais predomina o elemento terra têm como lugar natural o centro da Terra e por isso o movimento local natural dos pesados é a queda Os corpos leves nos quais predomina o elemento fogo têm como lugar natural o céu e por isso seu movimento local natural é subir Os corpos não inteiramente leves nos quais predomina o elemento ar buscam seu lugar natural no espaço rarefeito e por isso seu movimento local natural é flutuar Enfim os corpos não totalmente pesados nos quais predomina o elemento água buscam seu lugar natural no líquido e por isso seu movimento local natural é boiar nas águas Além dos movimentos naturais os corpos podem ser submetidos a movimentos violentos isto é àqueles que contrariam sua natureza e os impedem de alcançar seu lugar natural Por exemplo quando o arqueiro lança uma flecha imprime nela um movimento violento pois forçaa a permanecer no ar embora seu lugar natural seja a terra e seu movimento natural seja a queda Este pequeno resumo da Física aristotélica nos mostra algumas características marcantes da ciência antiga Marilena Chauí 323 é uma ciência baseada nas qualidades percebidas nos corpos leve pesado líquido sólido etc é uma ciência baseada em distinções qualitativas do espaço alto baixo longe perto celeste sublunar é uma ciência baseada na metafísica da identidade e da mudança perfeição imóvel imperfeição móvel é uma ciência que estabelece leis diferentes para os corpos segundo sua matéria e sua forma ou segundo sua substância como conseqüência das características anteriores é uma ciência que concebe a realidade natural como um modelo hierárquico no qual os seres possuem um lugar natural de acordo com sua perfeição hierarquizandose em graus que vão dos inferiores aos superiores Quando comparamos a física de Aristóteles com a moderna isto é a que foi elaborada por Galileu e Newton podemos notar as grandes diferenças para a física moderna o espaço é aquele definido pela geometria portanto homogêneo sem distinções qualitativas entre alto baixo frente atrás longe perto É um espaço onde todos os pontos são reversíveis ou equivalentes de modo que não há lugares naturais qualitativamente diferenciados os objetos físicos investigados pelo cientista começam por ser purificados de todas as qualidades sensoriais cor tamanho odor peso matéria forma líquido sólido leve grande pequeno etc isto é de todas as qualidades sensíveis porque estas são meramente subjetivas O objeto é definido por propriedades objetivas gerais válidas para todos os seres físicos massa volume figura Tornase irrelevante o tipo de matéria de forma ou de substância de um corpo pois todos se comportam fisicamente da mesma maneira Tornase inútil a distinção entre um mundo celeste e um mundo sublunar pois astros e corpos terrestres obedecem às mesmas leis universais da física a física estuda o movimento não como alteração qualitativa e quantitativa dos corpos mas como deslocamento espacial que altera a massa o volume e a velocidade dos corpos O movimento e o repouso são as propriedades físicas objetivas de todos os corpos da Natureza e todos eles obedecem às mesmas leis aquelas que Galileu formulou com base no princípio da inércia um corpo se mantém em movimento indefinidamente a menos que encontre um outro que lhe faça obstáculo ou que o desvie de seu trajeto e aquelas formuladas por Newton com base no princípio universal da gravitação a toda ação corresponde uma reação que lhe é igual e contrária Não há diferença entre movimento natural e movimento violento pois todo e qualquer movimento obedece às mesmas leis a Natureza é um complexo de corpos formados por proporções diferentes de movimento e de repouso articulados por relações de causa e efeito sem finalidade pois a idéia de finalidade só existe para os seres humanos dotados de Convite à Filosofia 324 razão e vontade Os corpos não se movem portanto em busca de perfeição mas porque a causa eficiente do movimento os faz moveremse A física é uma mecânica universal A física da Natureza se torna geométrica experimental quantitativa causal ou mecânica relações entre a causa eficiente e seus efeitos e suas leis têm valor universal independentemente das qualidades sensíveis das coisas Terra mar e ar obedecem às mesmas leis naturais A Natureza é a mesma em toda parte e para todos os seres não existindo hierarquias ou graus de imperfeiçãoperfeição inferioridadesuperioridade Há ainda uma outra diferença profunda entre a ciência antiga e a moderna A primeira era uma ciência teorética isto é apenas contemplava os seres naturais sem jamais imaginar intervir neles ou sobre eles A técnica era um saber empírico ligado a práticas necessárias à vida e nada tinha a oferecer à ciência nem a receber dela Numa sociedade escravista que deixava tarefas trabalhos e serviços aos escravos a técnica era vista como uma forma menor de conhecimento Duas afirmações mostram a diferença dos modernos em relação aos antigos a afirmação do filósofo inglês Francis Bacon para quem saber é poder e a afirmação de Descartes para quem a ciência deve tornarnos senhores da Natureza A ciência moderna nasce vinculada à idéia de intervir na Natureza de conhecêla para apropriarse dela para controlála e dominála A ciência não é apenas contemplação da verdade mas é sobretudo o exercício do poderio humano sobre a Natureza Numa sociedade em que o capitalismo está surgindo e para acumular o capital deve ampliar a capacidade do trabalho humano para modificar e explorar a Natureza a nova ciência será inseparável da técnica Na verdade é mais correto falar em tecnologia do que em técnica De fato a técnica é um conhecimento empírico que graças à observação elabora um conjunto de receitas e práticas para agir sobre as coisas A tecnologia porém é um saber teórico que se aplica praticamente Por exemplo um relógio de sol é um objeto técnico que serve para marcar horas seguindo o movimento solar no céu Um cronômetro porém é um objeto tecnológico por um lado sua construção pressupõe conhecimentos teóricos sobre as leis do movimento as leis do pêndulo e por outro lado seu uso altera a percepção empírica e comum dos objetos pois serve para medir aquilo que nossa percepção não consegue perceber Uma lente de aumento é um objeto técnico mas o telescópio e o microscópio são objetos tecnológicos pois sua construção pressupõe o conhecimento das leis científicas definidas pela óptica Em outras palavras um objeto é tecnológico quando sua construção pressupõe um saber científico e quando seu uso interfere nos resultados das pesquisas científicas A ciência moderna tornouse inseparável da tecnologia Marilena Chauí 325 As mudanças científicas Vimos até aqui duas grandes mudanças na ciência A primeira delas se refere à passagem do racionalismo e empirismo ao construtivismo isto é de um ideal de cientificidade baseado na idéia de que a ciência é uma representação da realidade tal como ela é em si mesma a um ideal de cientificidade baseado na idéia de que o objeto científico é um modelo construído e não uma representação do real uma aproximação sobre o modo de funcionamento da realidade mas não o conhecimento absoluto dela A segunda mudança referese à passagem da ciência antiga teorética qualitativa à ciência moderna tecnológica quantitativa Por que houve tais mudanças no pensamento científico Durante certo tempo julgouse que a ciência como a sociedade evolui e progride Evolução e progresso são duas idéias muito recentes datam dos séculos XVIII e XIX mas muito aceitas pelas pessoas Basta ver o lema da bandeira brasileira para perceber como as pessoas acham natural falar em Ordem e Progresso As noções de evolução e de progresso partem da suposição de que o tempo é uma linha reta contínua e homogênea como a imagem do rio que vimos ao estudar a metafísica O tempo seria uma sucessão contínua de instantes momentos fases períodos épocas que iriam se somando uns aos outros acumulandose de tal modo que o que acontece depois é o resultado melhorado do que aconteceu antes Contínuo e cumulativo o tempo seria um aperfeiçoamento de todos os seres naturais e humanos Evolução e progresso são a crença na superioridade do presente em relação ao passado e do futuro em relação ao presente Assim os europeus civilizados seriam superiores aos africanos e aos índios a física galileananewtoniana seria superior à aristotélica a física quântica seria superior à de Galileu e de Newton Evoluir significa tornarse superior e melhor do que se era antes Progredir significa ir num rumo cada vez melhor na direção de uma finalidade superior Evolução e progresso também supõem o tempo como uma série linear de momentos ligados por relações de causa e efeito em que o passado é causa e o presente efeito vindo a tornarse causa do futuro Vemos essa idéia aparecer quando por exemplo os manuais de História apresentam as influências que um acontecimento anterior teria tido sobre um outro posterior Evoluir e progredir pressupõem uma concepção de História semelhante à que a biologia apresenta quando fala em germe semente ou larva O germe a semente ou a larva são entes que contêm neles mesmos tudo o que lhes acontecerá isto é o futuro já está contido no ponto inicial de um ser cuja história ou cujo tempo nada mais é do que o desdobrar ou o desenvolver pleno daquilo que ele já era potencialmente Convite à Filosofia 326 Essa idéia encontrase presente por exemplo na distinção entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos Quando digo que um país é ou está desenvolvido digo que sei que alcançou a finalidade à qual estava destinado desde que surgiu Quando digo que um país é ou está subdesenvolvido estou dizendo que a finalidade que é a mesma para ele e para o desenvolvido ainda não foi mas deverá ser alcançada em algum momento do tempo Não por acaso as expressões desenvolvido e subdesenvolvido foram usadas para substituir duas outras tidas como ofensivas e agressivas países adiantados e países atrasados isto é países evoluídos e não evoluídos países com progresso e sem progresso Em resumo evolução e progresso pressupõem continuidade temporal acumulação causal dos acontecimentos superioridade do futuro e do presente com relação ao passado existência de uma finalidade a ser alcançada Supunhase que as mudanças científicas indicavam evolução ou progresso dos conhecimentos humanos Desmentindo a evolução e o progresso científicos A Filosofia das Ciências estudando as mudanças científicas impôs um desmentido às idéias de evolução e progresso Isso não quer dizer que a Filosofia das Ciências viesse a falar em atraso e regressão científica pois essas duas noções são idênticas às de evolução e progresso apenas com o sinal trocado em vez de caminhar causal e continuamente para frente caminharseia causal e continuamente para trás O que a Filosofia das Ciências compreendeu foi que as elaborações científicas e os ideais de cientificidade são diferentes e descontínuos Quando por exemplo comparamos a geometria clássica ou geometria euclidiana que opera com o espaço plano e a geometria contemporânea ou topológica que opera com o espaço tridimensional vemos que não se trata de duas etapas ou de duas fases sucessivas da mesma ciência geométrica e sim de duas geometrias diferentes com princípios conceitos objetos demonstrações completamente diferentes Não houve evolução e progresso de uma para outra pois são duas geometrias diversas e não geometrias sucessivas Quando comparamos as físicas de Aristóteles GalileuNewton e Einstein não estamos diante de uma mesma física que teria evoluído ou progredido mas diante de três físicas diferentes baseadas em princípios conceitos demonstrações experimentações e tecnologias completamente diferentes Em cada uma delas a idéia de Natureza é diferente em cada uma delas os métodos empregados são diferentes em cada uma delas o que se deseja conhecer é diferente Quando comparamos a biologia genética de Mendel e a genética formulada pela bioquímica baseada na descoberta de enzimas de proteínas do ADN ou código genético também não encontramos evolução e progresso mas diferença e Marilena Chauí 327 descontinuidade Assim por exemplo o modelo explicativo que orientava o trabalho de Mendel era o da relação sexual como um encontro entre duas entidades diferentes o espermatozóide e o óvulo enquanto o modelo que orienta a genética contemporânea é o da cibernética e da teoria da informação Quando comparamos a ciência da linguagem do século XIX que era baseada nos estudos de filologia isto é nos estudos da origem e da história das palavras com a lingüística contemporânea que como vimos no capítulo dedicado à linguagem estuda estruturas vemos duas ciências diferentes E o mesmo pode ser dito de todas as ciências Verificouse portanto uma descontinuidade e uma diferença temporal entre as teorias científicas como conseqüência não de uma forma mais evoluída mais progressiva ou melhor de fazer ciência e sim como resultado de diferentes maneiras de conhecer e construir os objetos científicos de elaborar os métodos e inventar tecnologias O filósofo Gaston Bachelard criou a expressão ruptura epistemológicax para explicar essa descontinuidade no conhecimento científico Rupturas epistemológicas e revoluções científicas Um cientista ou um grupo de cientistas começam a estudar um fenômeno empregando teorias métodos e tecnologias disponíveis em seu campo de trabalho Pouco a pouco descobrem que os conceitos os procedimentos os instrumentos existentes não explicam o que estão observando nem levam aos resultados que estão buscando Encontram diz Bachelard um obstáculo epistemológico Para superar o obstáculo epistemológico o cientista ou grupo de cientistas precisam ter a coragem de dizer Não Precisam dizer não à teoria existente e aos métodos e tecnologias existentes realizando a ruptura epistemológica Esta conduz à elaboração de novas teorias novos métodos e tecnologias que afetam todo o campo de conhecimentos existentes Uma nova concepção científica emerge levando tanto a incorporar nela os conhecimentos anteriores quanto a afastálos inteiramente O filósofo da ciência Khun designa esses momentos de ruptura epistemológica e de criação de novas teorias com a expressão revolução científica como por exemplo a revolução copernicana que substituiu a explicação geocêntrica pela heliocêntrica Segundo Khun um campo científico é criado quando métodos tecnologias formas de observação e experimentação conceitos e demonstrações formam um todo sistemático uma teoria que permite o conhecimento de inúmeros fenômenos A teoria se torna um modelo de conhecimento ou um paradigma científico Em tempos normais um cientista diante de um fato ou de um fenômeno ainda não estudado usa o modelo ou o paradigma científico existente Uma revolução científica acontece quando o cientista descobre que os paradigmas disponíveis não conseguem explicar um fenômeno ou um fato novo Convite à Filosofia 328 sendo necessário produzir um outro paradigma até então inexistente e cuja necessidade não era sentida pelos investigadores A ciência portanto não caminha numa via linear contínua e progressiva mas por saltos ou revoluções Assim quando a idéia de prótonelétronnêutron entra na física a de vírus entra na biologia a de enzima entra na química ou a de fonema entra na lingüística os paradigmas existentes são incapazes de alcançar compreender e explicar esses objetos ou fenômenos exigindo a criação de novos modelos científicos Por que então temos a ilusão de progresso e de evolução Por dois motivos principais 1 do lado do cientista porque este sente que sabe mais e melhor do que antes já que o paradigma anterior não lhe permitia conhecer certos objetos ou fenômenos Como trabalhava com uma tradição científica e a abandonou tem o sentimento de que o passado estava errado era inferior ao presente aberto por seu novo trabalho Não é ele mas o filósofo da ciência que percebe a ruptura e a descontinuidade e portanto a diferença temporal Do lado do cientista o progresso é uma vivência subjetiva 2 do lado dos nãocientistas porque vivemos sob a ideologia do progresso e da evolução do novo e do fantástico Além disso vemos os resultados tecnológicos das ciências naves espaciais computadores satélites fornos de microondas telefones celulares cura de doenças julgadas incuráveis objetos plásticos descartáveis e esses resultados tecnológicos são apresentados pelos governos pelas empresas e pela propaganda como signos do progresso e não da diferença temporal Do lado dos nãocientistas o progresso é uma crença ideológica Há porém uma razão mais profunda para nossa crença no progresso Desde a Antiguidade conhecer sempre foi considerado o meio mais precioso e eficaz para combater o medo a superstição e as crendices Ora no caso da modernidade o vínculo entre ciência e aplicação prática dos conhecimentos tecnologias fez surgirem objetos que não só facilitaram a vida humana meios de transporte de iluminação de comunicação de cultivo do solo etc mas aumentaram a esperança de vida remédios cirurgias etc Do ponto de vista dos resultados práticos sentimos que estamos em melhores condições que os antigos e por isso falamos em evolução e progresso Do ponto de vista das próprias teorias científicas porém a noção de progresso não possui fundamento como explicamos acima Falsificação X revolução Vimos que a ciência contemporânea é construtivista julgando que fatos e fenômenos novos podem exigir a elaboração de novos métodos novas tecnologias e novas teorias Marilena Chauí 329 Alguns filósofos da ciência entre os quais Karl Popper afirmaram que a reelaboração científica decorre do fato de ter havido uma mudança no conceito filosóficocientífico da verdade Esta como já vimos foi considerada durante muitos séculos como a correspondência exata entre uma idéia ou um conceito e a realidade Vimos também que no século passado foi proposta uma teoria da verdade como coerência interna entre conceitos Na concepção anterior o falso acontecia quando uma idéia não correspondia à coisa que deveria representar Na nova concepção o falso é a perda da coerência de uma teoria a existência de contradições entre seus princípios ou entre estes e alguns de seus conceitos Popper afirma que as mudanças científicas são uma conseqüência da concepção da verdade como coerência teórica E propõe que uma teoria científica seja avaliada pela possibilidade de ser falsa ou falsificada Uma teoria científica é boa diz Popper quanto mais estiver aberta a fatos novos que possam tornar falsos os princípios e os conceitos em que se baseava Assim o valor de uma teoria não se mede por sua verdade mas pela possibilidade de ser falsa A falseabilidade seria o critério de avaliação das teorias científicas e garantiria a idéia de progresso científico pois é a mesma teoria que vai sendo corrigida por fatos novos que a falsificam A maioria dos filósofos da ciência entre os quais Khun demonstrou o absurdo da posição de Popper De fato dizem eles jamais houve um único caso em que uma teoria pudesse ser falsificada por fatos científicos Jamais houve um único caso em que um fato novo garantisse a coerência de uma teoria bastando impor a ela mudanças totais Cada vez que fatos provocaram verdadeiras e grandes mudanças teóricas essas mudanças não foram feitas no sentido de melhorar ou aprimorar uma teoria existente mas no sentido de abandonála por uma outra O papel do fato científico não é o de falsear ou falsificar uma teoria mas de provocar o surgimento de uma nova teoria verdadeira É o verdadeiro e não o falso que guia o cientista seja a verdade entendida como correspondência entre idéia e coisa seja entendida como coerência interna das idéias Classificação das ciências Ciência no singular referese a um modo e a um ideal de conhecimento que examinamos até aqui Ciências no plural referese às diferentes maneiras de realização do ideal de cientificidade segundo os diferentes fatos investigados e os diferentes métodos e tecnologias empregados A primeira classificação sistemática das ciências de que temos notícia foi a de Aristóteles à qual já nos referimos no início deste livro O filósofo grego empregou três critérios para classificar os saberes critério da ausência ou presença da ação humana nos seres investigados levando à distinção entre as ciências teoréticas conhecimento dos seres que Convite à Filosofia 330 existem e agem independentemente da ação humana e ciências práticas conhecimento de tudo quanto existe como efeito das ações humanas critério da imutabilidade ou permanência e da mutabilidade ou movimento dos seres investigados levando à distinção entre metafísica estudo do Ser enquanto Ser fora de qualquer mudança física ou ciências da Natureza estudo dos seres constituídos por matéria e forma e submetidos à mudança ou ao movimento e matemática estudo dos seres dotados apenas de forma sem matéria imutáveis mas existindo nos seres naturais e conhecidos por abstração critério da modalidade prática levando à distinção entre ciências que estudam a práxis a ação ética política e econômica que tem o próprio agente como fim e as técnicas a fabricação de objetos artificiais ou a ação que tem como fim a produção de um objeto diferente do agente Com pequenas variações essa classificação foi mantida até o século XVII quando então os conhecimentos se separaram em filosóficos científicos e técnicos A partir dessa época a Filosofia tende a desaparecer nas classificações científicas é um saber diferente do científico assim como delas desaparecem as técnicas Das inúmeras classificações propostas as mais conhecidas e utilizadas foram feitas por filósofos franceses e alemães do século XIX baseandose em três critérios tipo de objeto estudado tipo de método empregado tipo de resultado obtido Desses critérios e da simplificação feita sobre as várias classificações anteriores resultou aquela que se costuma usar até hoje ciências matemáticas ou lógicomatemáticas aritmética geometria álgebra trigonometria lógica física pura astronomia pura etc ciências naturais física química biologia geologia astronomia geografia física paleontologia etc ciências humanas ou sociais psicologia sociologia antropologia geografia humana economia lingüística psicanálise arqueologia história etc ciências aplicadas todas as ciências que conduzem à invenção de tecnologias para intervir na Natureza na vida humana e nas sociedades como por exemplo direito engenharia medicina arquitetura informática etc Cada uma das ciências subdividese em ramos específicos com nova delimitação do objeto e do método de investigação Assim por exemplo a física subdividese em mecânica acústica óptica etc a biologia em botânica zoologia fisiologia genética etc a psicologia subdividese em psicologia do comportamento do desenvolvimento psicologia clínica psicologia social etc E assim sucessivamente para cada uma das ciências Por sua vez os próprios ramos de cada ciência subdividemse em disciplinas cada vez mais específicas à medida que seus objetos conduzem a pesquisas cada vez mais detalhadas e especializadas Marilena Chauí 331 A ciência exemplar a matemática A matemática nasce de necessidades práticas contar coisas e medir terrenos Os primeiros a sistematizar modos de contar foram os orientais e particularmente os fenícios povo comerciante que desenvolveu uma contabilidade que posteriormente iria transformarse em aritmética Os primeiros a sistematizar modos de medir foram os egípcios que precisavam após cada cheia do rio Nilo redistribuir as terras medindo os terrenos Criaram a agrimensura de onde viria a geometria Foram os gregos que transformaram a arte de contar e de medir em ciências a aritmética e a geometria são as duas primeiras ciências matemáticas definindo o campo matemático como ciência da quantidade e do espaço tendo por objetos números figuras relações e proporções Após os gregos foram os pensadores árabes que deram o impulso à matemática descobrindo entre coisas o zero desconhecido dos antigos Embora no início as matemáticas estivessem muito próximas da experiência sensorial os números referiamse às coisas contadas e as figuras representavam objetos existentes pouco a pouco afastaramse do sensorial rumando para a atividade pura do pensamento Por esse motivo Platão exigia que a formação filosófica fosse feita através das matemáticas por serem elas puramente intelectuais seus objetos verdadeiros sendo conhecidos por meio de princípios e demonstrações universais e necessários Também Descartes no século XVII afirmou que podemos duvidar de todos os nossos conhecimentos e idéias menos da verdade dos conceitos e demonstrações matemáticos os únicos que são indubitáveis Platão e Descartes enfatizaram o caráter puramente intelectual e a priori das ciências matemáticas A valorização da matemática decorre de dois aspectos que a caracterizam 1 a idealidade pura de seus objetos que não se confundem com as coisas percebidas subjetivamente por nós os objetos matemáticos são universais e necessários 2 a precisão e o rigor dos princípios e demonstrações matemáticos que seguem regras universais e necessárias de tal modo que a demonstração de um teorema seja a mesma em qualquer época e lugar e a solução de um problema se faça pelos mesmos procedimentos em toda a época e lugar A universalidade e a necessidade dos objetos e instrumentos teóricos matemáticos deram à ciência matemática um valor de conhecimento excepcional fazendo com que se tornasse o modelo principal de todos os conhecimentos científicos no Ocidente enfim a ciência exemplar e perfeita Os objetos matemáticos são números e relações figuras volumes e proporções Quantidade espaço relações e proporções definem o campo da investigação matemática cujos instrumentos são axiomas postulados definições Convite à Filosofia 332 demonstrações e operações Objetos e procedimentos matemáticos foram fixados pela primeira vez pelo grego Euclides numa obra chamada Elementos Um axioma é um princípio cuja verdade é indubitável necessária e evidente por si mesma não precisando de demonstração e servindo de fundamento às demonstrações Por exemplo o todo é maior do que as partes duas grandezas iguais a uma terceira são iguais entre si a menor distância entre dois pontos é uma reta O axioma é um princípio regulador do raciocínio matemático e por ser universal e evidente é a priori Um postulado é um princípio cuja evidência depende de ser aceito por todos os que realizam uma demonstração matemática É uma proposição necessária para o encadeamento de demonstrações embora ela mesma não possa ser demonstrada mas aceita como verdadeira Por exemplo Por um ponto tomado em um plano não se pode traçar senão uma paralela a uma reta dada nesse plano Os postulados são convenções básicas aceitas por todos os matemáticos Uma definição pode ser nominal ou real A definição nominal nos dá o nome do objeto matemático dizendo o que ele é É analítica pois o predicado é a explicação do sujeito Por exemplo o triângulo é uma figura de três lados o círculo é uma figura cujos pontos são eqüidistantes do centro Uma definição real nos diz o que é o objeto designado pelo nome isto é oferece a gênese ou o modo de construção do objeto Por exemplo o triângulo é uma figura cujos ângulos somados são iguais à soma de dois ângulos retos o círculo é uma figura formada pelo movimento de rotação de um semieixo à volta de um centro fixo Demonstrações e operações são procedimentos submetidos a um conjunto de regras que garantem a verdade e a necessidade do que está sendo demonstrado ou do resultado do cálculo realizado A matemática é por excelência a ciência hipotéticodedutiva porque suas demonstrações e cálculos se apóiam sobre um sistema de axiomas e postulados a partir dos quais se constrói a dedução coerente ou o resultado necessário do cálculo Um tema muito discutido na Filosofia das Ciências referese à natureza dos objetos e princípios matemáticos São eles uma abstração e uma purificação dos dados de nossa experiência sensível Originamse da percepção Ou são realidades ideais alcançadas exclusivamente pelas operações do pensamento puro São inteiramente a priori Existem em si e por si mesmos de tal modo que nosso pensamento simplesmente os descobre Ou são construções perfeitas conseguidas pelo pensamento humano Essas perguntas tornaramse necessárias por vários motivos Em primeiro lugar porque uma corrente filosófica iniciada com Pitágoras e Platão mantida por Galileu Descartes Newton e Leibniz afirma que o mundo é Marilena Chauí 333 em si mesmo matemático isto é a estrutura da realidade é de tipo matemático Essa concepção garantiu o surgimento da física matemática moderna Em segundo lugar porque o desenvolvimento da álgebra contemporânea e das chamadas geometrias nãoeuclidianas ou geometrias imaginárias deram à matemática uma liberdade de criação teórica sem precedentes justamente por haver abandonado a idéia de que a estrutura da realidade é matemática Nesse segundo caso como já dizia Kant a matemática é uma pura invenção do espírito humano uma construção imaginária rigorosa e perfeita mas sem objetos correspondentes no mundo Em terceiro lugar porque em nosso século o avanço da criação e da construção matemáticas foi decisivo para o surgimento da teoria da relatividade na física da teoria das valências na química e da teoria sobre o ácido desoxirribonucléico na biologia Em outras palavras quanto mais avançou a invenção e a criação matemática tanto mais ela tornouse útil para as ciências da Natureza fazendo com que agora tenhamos que indagar Os objetos matemáticos existem realmente como queriam Platão Galileu e Descartes formando a estrutura do mundo ou esta é uma pura construção teórica e por isso pode valerse da construção matemática Convite à Filosofia 334 Capítulo 3 As ciências da Natureza O campo das ciências da Natureza As ciências da Natureza estudam duas ordens de fenômenos os físicos e os vitais ou as coisas e os organismos vivos Constituem assim duas grandes ciências a física de que fazem parte a química a mecânica a óptica a acústica a astronomia o estudo dos sólidos líquidos e gasosos etc e a biologia ramificada em fisiologia botânica zoologia paleontologia anatomia genética etc Em qualquer das três concepções de ciência que vimos no capítulo anterior considerase que as ciências da Natureza estudam fatos observáveis que podem ser submetidos aos procedimentos de experimentação estabelecem leis que exprimem relações necessárias e universais entre os fatos investigados e que são de tipo causal concebem a Natureza como um conjunto articulado de seres e acontecimentos interdependentes ligados ou por relações necessárias de causa e efeito subordinação e dependência ou por relações entre funções invariáveis e ações variáveis buscam constâncias regularidades freqüências e invariantes dos fenômenos isto é seus modos de funcionamento e de relacionamento bem como estabelecem os meios teóricos para a previsão de novos fatos Desde Aristóteles as ciências da Natureza desenvolveramse graças ao papel conferido às observações e mais tarde à observação controlada isto é à experimentação o laboratório com seus instrumentos tecnológicos de precisão e medida A experimentação é a decisão do cientista de intervir no curso de um fenômeno modificando as condições de seu aparecimento e desenvolvimento a fim de encontrar invariantes e constantes que definem o objeto como tal A experimentação permite ao cientista formular hipóteses sobre o fenômeno Uma hipótese é uma conjectura racional feita após um grande número de observações e experimentos é uma tese que precisa ser confirmada ou verificada por meio de novas observações e experimentos A intervenção científica sobre os fenômenos se torna cada vez mais acurada graças à invenção dos objetos tecnológicos de pesquisa balanças termômetros termostatos barômetros Marilena Chauí 335 aparelhos para produzir vácuo microscópios e telescópios cronômetros tubos e curvetas câmaras escuras ou iluminadas com raios especiais computadores etc O método experimental é hipotéticoindutivo e hipotéticodedutivo Hipotético indutivo o cientista observa inúmeros fatos variando as condições da observação elabora uma hipótese e realiza novos experimentos ou induções para confirmar ou negar a hipótese se esta for confirmada chegase à lei do fenômeno estudado Hipotéticodedutivo tendo chegado à lei o cientista pode formular novas hipóteses deduzidas do conhecimento já adquirido e com elas prever novos fatos ou formular novas experiências que o levam a conhecimentos novos A lei científica obtida por via indutiva ou dedutiva permite descrever interpretar e compreender um campo de fenômenos semelhantes e prever novos a partir dos primeiros A previsão é uma das maneiras pelas quais o ideal moderno da ciência dominar e controlar a Natureza se manifesta e se realiza Uma teoria científica permite construir objetos tecnológicos para novas pesquisas e a previsão ou previsibilidade dos fenômenos permite empregar as tecnologias com fins práticos criando a ciência natural aplicada Os objetos técnicos que usamos em nossa vida cotidiana ônibus automóvel avião lâmpada liquidificador máquina de escrever de lavar de costurar relógios digitais rádio televisão vídeos aparelhos de som detergente sabonete desodorante cola adesivos objetos plásticos de louça vidro tecidos sintéticos como nylon e poliéster vacinas antibióticos radiografias vitaminas e proteínas em cápsulas etc são ciência aplicada ou resultado prático de ciências naturais teóricas Necessidade e acaso A ciência da Natureza desde seus inícios gregos sempre afirmou que a Natureza segue leis naturais racionais e necessárias isto é sempre negou que houvesse acaso ou contingência no mundo natural O acaso sempre foi colocado sob duas espécies de fatos ou fatos cuja causa ainda permanece desconhecida mas virá a ser conhecida portanto o acaso é apenas uma forma de ignorância ou acontecimentos individuais como por exemplo um vaso que cai sobre a cabeça de um passante portanto o acaso é apenas uma ocorrência singular que não afeta as leis universais da Natureza No século XIX a afirmação da universalidade e da necessidade plena que governam as relações causais da Natureza levaram ao conceito de determinismo O determinismo pode ser resumido da seguinte maneira dado um fenômeno sempre será possível determinar sua causa necessária conhecido o estado atual de um conjunto de fatos sempre será possível conhecer o estado subseqüente que será seu efeito necessário Em outras Convite à Filosofia 336 palavras o determinismo afirma que podemos conhecer as causas de um fenômeno atual isto é o estado anterior de um conjunto de fatos e os efeitos de um fenômeno atual isto é o estado posterior de um conjunto de fatos A formulação do determinismo como princípio universal e como uma doutrina sobre a Natureza foi feita pela primeira vez pelo astrônomo e físico Laplace que escreveu Devemos considerar o estado presente do Universo como efeito de seu estado passado e como causa daquilo que virá a seguir Uma inteligência que num único instante pudesse conhecer todas as forças existentes na Natureza e as posições de todos os seres que nela existem poderia apresentar numa única fórmula uma lei que englobaria todos os movimentos do Universo desde os maiores até os mínimos e invisíveis Para ela nada seria incerto e aos seus olhos o passado o futuro e o presente seriam um único e só tempo O determinismo universal é assim a afirmação do princípio da razão suficiente ou da causalidade e da idéia de previsibilidade absoluta dos fenômenos naturais As leis exprimem essa causalidade e essa previsibilidade e por isso não existe acaso no Universo Evidentemente o cientista admitia que para nós seres humanos que não podemos conhecer de uma só vez a totalidade do real existia o acaso Caminhando por uma rua para ir ao mercado posso passar sob uma janela da qual despenca um vaso que cai sobre minha cabeça e em vez de ir ao mercado vou parar num hospital Foi um acaso No entanto para esse cientista minha ida pela rua é necessária do ponto de vista da anatomia e da fisiologia de meu corpo passar por uma rua determinada é necessário se por exemplo ficar estabelecido geométrica e geograficamente que é o trajeto mais simples e mais rápido para chegar ao mercado pela posição do vaso na janela pelo vento ou pelo toque de alguma coisa nele é necessário segundo a lei universal da gravitação que ele caia O que é o acaso O encontro fortuito de séries de acontecimentos independentes cada uma delas perfeitamente necessária e causal em si mesma Uma outra situação em que se falava de acaso referese aos chamados jogos de azar como caraecoroa roleta certos jogos de cartas o jogo de dados Ora dizia o cientista aqui também não há propriamente acaso Desde o século XVII com pensadores como Pascal Leibniz Newton e posteriormente Fermat conhecemos os estudos matemáticos chamados cálculo de probabilidades Em cada um desses jogos de azar considerando o número de objetos uma moeda dois dados vinte cartas etc o número de jogadores e o número de partidas é possível calcular todos os resultados possíveis e quais são as probabilidades maiores e menores de cada resultado Para um computador por exemplo não haverá acaso algum mas determinismo completo Marilena Chauí 337 A idéia de necessidade probabilística ou estatística tornouse um instrumento teórico de grande importância para aqueles ramos das ciências naturais que lidam com fatos complexos como por exemplo o estudo dos gases pela química pois nesse caso o número de moléculas é quase ilimitado e as relações de causa e efeito só podem ser estabelecidas estatisticamente pelo cálculo de probabilidades As leis assim obtidas são conhecidas com o nome de leis dos grandes números e se exprimem em gráficos curvas relações entre funções e variáveis médias Com essas leis o acaso estava excluído e os dois princípios do determinismo estavam mantidos ainda que no caso dos fenômenos microscópicos altamente complexos a noção de causa tivesse sido substituída pela de freqüência estatística Acaso ou indeterminação A física contemporânea no entanto trouxe de volta o acaso Entre os vários estudos e várias teorias contemporâneas vamos mencionar apenas três aspectos com os quais podemos perceber como e por que o acaso ressurgiu nas ciências naturais O pleno funcionamento do princípio da razão suficiente ou da causalidade e do determinismo universal exige que seja mantida a idéia de substância isto é de uma realidade que permaneça idêntica a si mesma seja causa de alguma coisa e efeito de alguma outra Essa realidade pode ser uma matéria uma energia uma massa um volume mas tem que ser alguma coisa com propriedades determináveis constantes e que possam ser conhecidas Deve ser uma quantidade constante eou uma forma constante Ora a microfísica ou física quântica veio mostrar que não há nem uma coisa nem outra O estudo do átomo de hidrogênio revelou que a quantidade de matéria ou massa não permanece constante mas transformase em energia e esta também não permanece constante mas o que é pior não se transforma em coisa alguma simplesmente se perde desaparece não se sabe para onde foi nem o que lhe aconteceu A quantidade portanto não permanece constante Ao mesmo tempo o estudo dos átomos revelou que dependendo da aparelhagem tecnológica usada um corpúsculo é o que pode ser visto mas com outros aparelhos em lugar de um corpúsculo vêse uma onda Com isso uma mesma realidade ou substância tanto pode ter a forma de algo que se estende no espaço onda quanto a de um ponto que se concentra no espaço corpúsculo não tendo portanto forma constante Se quantidade e forma perdem a constância a regularidade e a freqüência como continuar falando em causas e efeitos Um segundo caso que abalou a física e ficou conhecido com o nome de princípio de incerteza ou de indeterminação foi trazido pelos estudos do físico Heisenberg ao descobrir que no nível atômico como conseqüência dos Convite à Filosofia 338 dois fatos que apontamos acima conhecer o estado ou a situação atual de um fenômeno ou um conjunto de fatos não permite prever a situação ou o estado seguinte nem portanto descobrir qual foi a situação ou o estado anterior O determinismo baseavase no pressuposto de que o conhecimento físico causal exige que um fenômeno físico deva ser conhecido a partir de dois critérios simultâneos suas propriedades geométricas forma figura volume grandeza posição e suas propriedades físicas ou dinâmicas velocidade movimento repouso Heisenberg descobriu que quando conhecemos perfeitamente as propriedades geométricas de um átomo não conseguimos conhecer suas propriedades físicas dinâmicas e viceversa sendo impossível determinar o estado passado e o estado futuro do fenômeno estudado isto é suas causas e seus efeitos Em outras palavras quando se conhece a posição não se consegue conhecer a velocidade e quando esta é conhecida não se consegue conhecer a posição de um corpúsculo Há portanto incerteza indeterminação do fenômeno A microfísica é incapaz de determinar a trajetória de corpúsculos individuais O terceiro acontecimento que abalou o determinismo universal foi a teoria da relatividade elaborada por Einstein O abalo foi duplo Em primeiro lugar como vimos a ciência moderna organizouse graças à separação entre o subjetivo e o objetivo propondo uma idéia de observação experimentação em que o fenômeno observado será sempre o mesmo e obedecerá às mesmas leis seja quem for o sujeito observador Ora Einstein demonstrou que o tempo é a quarta dimensão do espaço e que na velocidade da luz o espaço encurvase dilatase contraise de tal modo que afeta o tempo Assim alguém que estivesse na velocidade da luz atravessaria num tempo mínimo um espaço imenso mas o que ficassem abaixo daquela velocidade sentiriam o tempo escoar lentamente ou normalmente Para a primeira pessoa teriam se passado algumas horas ou dias mas para outros meses anos séculos Dessa maneira Einstein demonstrou que nossa física é tal como é porque depende da observação do observador ou do sujeito do conhecimento isto é um sujeito do conhecimento marciano ou venusiano produzirá uma física completamente diferente da nossa porque o espaço é relativo ao observador Assim sendo nossa ciência da Natureza não é universal e necessária em si mesma mas exprime o ponto de vista do sujeito do conhecimento terrestre O segundo abalo provocado por Einstein referese à própria idéia de teoria científica da Natureza Uma teoria científica como vimos é uma explicação global para um conjunto de fatos naturais aparentemente diferentes mas na realidade submetidos às mesmas leis e aos mesmos princípios É isso que permite por exemplo falar na teoria Marilena Chauí 339 universal da gravitação formulada por Newton válida para os movimentos de todos os corpos do Universo sejam eles grandes ou pequenos leves ou pesados celestes ou terrestres aquáticos ou aéreos coloridos ou sem cor saborosos ou sem sabor etc Também a idéia de teoria nos permite falar na teoria universal da relatividade elaborada por Einstein Que diz ela Que a medida da velocidade do movimento seja este qual for é a velocidade da luz que nesta velocidade toda matéria se transforma em energia deixando portanto de possuir massa e volume Do ponto de vista da velocidade da luz a teoria da gravitação universal baseada na relação entre movimento massa tempo e velocidade não tem valor embora continue verdadeira para os movimentos que não sejam medidos pela velocidade da luz Mas não é só isso Do ponto de vista da velocidade da luz todo movimento é relativo isto é não há como distinguir observador e observado fenômeno que experimentamos em nossa vida cotidiana quando estando numa estação ferroviária num trem imóvel vemos outro paralelo ao nosso moverse e temos a impressão de que é nosso trem que está em movimento ou quando olhando um rio veloz do alto de uma ponte temos a impressão de que é a ponte que se move e não o rio Qual o problema A existência de três teorias físicas simultâneas a quântica para os átomos a newtoniana para os corpos visíveis a da relatividade para o movimento na velocidade da luz regidas por conceitos e métodos diferentes excluindose umas às outras e todas elas verdadeiras para os fenômenos que explicam E mais a física quântica desfaz a idéia de causa como quantidade e forma constantes e a física da relatividade desfaz a idéia clássica da objetividade como separação entre sujeito e objeto do conhecimento base da ciência moderna Em lugar de um único paradigma científico a física nos oferece três As ciências da vida As ciências biológicas bios em grego significa vida ou ciências da vida fazem parte das ciências da Natureza ou ciências experimentais Os primeiros biólogos foram médicos os présocráticos Empédocles ou Anaxágoras e o póssocrático Aristóteles Para todos eles interessava antes de tudo determinar a fonte ou origem da vida e a localizaram no calor dandolhe como sede o fígado Empédocles ou o coração Anaxágoras e Aristóteles Além da busca do princípio vital Aristóteles interessouse pelo fenômeno da reprodução distinguindo os seres vivos em vivíparos e ovíparos E a ele devemos a classificação dos seres vivos em gêneros e espécies Do século XVII até a primeira metade do século XX 19391940 predominou na biologia a investigação fisiológica A fisiologia interessase pelas funções realizadas pelos seres vivos circulação do sangue com Harvey digestão com Réaumur e Spallanzani respiração com Priestley e Lavoisier e locomoção ou neuromusculatura com Haller e Whytt A seguir o interesse fisiológico dirigiu Convite à Filosofia 340 se para o estudo do funcionamento específico dos vários órgãos e seus tecidos e finalmente para a investigação das células Foi no estudo celular que no século XIX Mendel deu início ao que iria tornarse o centro da biologia do nosso século a genética Todo problema epistemológico das ciências biológicas consiste em saber se os procedimentos e os conceitos usados pela física e pela química podem ser empregados para a investigação do fenômeno da vida De fato a biologia partiu da distinção entre seres inorgânicos e seres orgânicos plantas e animais para distinguir os fenômenos vitais dos fatos físicos e químicos Entretanto dois acontecimentos puseram em dúvida a descontinuidade entre a matéria inorgânica e a vida orgânica Em primeiro lugar no século XIX a síntese química da uréia que revelou fenômenos químicos como essenciais ao processo vital dando origem à bioquímica Em segundo lugar no século passado a descoberta das nucleoproteínas revelou que os corpos químicos as moléculas e os corpos vivos as células comportamse da mesma maneira Os estudos de bacteriologia dos corpos cancerígenos assim como os trabalhos de embriologia e a descoberta dos vírus foram na mesma direção revelando profundas semelhanças entre fatos químicos e vitais No entanto apesar das discussões sobre a essência da vida não terem chegado a conclusões definitivas a biologia distingue os seres inorgânicos e os vivos definindo estes últimos pelas idéias de célula e funções realizadas pela célula unidade vital e orgânica básica A vida caracterizase pelas seguintes funções irritabilidade uma célula é uma atividade que reage e responde às excitações ou estímulos do meio ambiente temperatura luz obscuridade pressão alimento etc A vida é uma adaptação ativa e protetora diante das alterações do meio ambiente sendo assim relação do organismo com seu ambiente na qual o ser vivo busca equilíbrio com o meio A ruptura desse equilíbrio é a doença e a morte metabolismo a irritabilidade ou adaptação ao meio é feita por um conjunto de trocas entre o organismo e o meio A célula assimila e transforma aquilo que consome sob a forma de alimentação respiração assimilação ou perda de substância gastos energéticos etc O metabolismo é pois um conjunto de transformações químicas realizadas no interior do organismo numa relação de troca e consumo com o meio ambiente divisão e crescimento uma célula tem o poder de dividirse ou seja de crescer para garantir que o ser vivo atinja seu desenvolvimento próprio e também para reparar danos sofridos pelo organismo como por exemplo a divisão e a multiplicação de células da epiderme para curar um ferimento reprodução a célula tem o poder de reproduzirse e a reprodução de um ser vivo se faz ou pela fusão de certo tipo especial de células os gametas femininos Marilena Chauí 341 e masculinos ou nos chamados organismos unicelulares pela autoreprodução da célula sem a função sexual A reprodução garante a sobrevivência da espécie através dos indivíduos individualidade um ser vivo mesmo unicelular forma um indivíduo isto é um sistema único e fechado cujas partes se correspondem reciprocamente e concorrem para a mesma ação organicidade o ser vivo é constituído por órgãos palavra que vem do grego órganon instrumento que realiza uma função isto é por um conjunto diferenciado de funções que garantem a conservação e a reprodução da vida O ser vivo é pois um organismo e um indivíduo É portador de quatro características principais a interioridade a autoapresentação a autoorganização e a autoreprodução Interioridade realiza comportamentos isto é possui disposições internas que lhe permitem relacionarse ativamente com o meio ambiente Auto apresentação manifestase com uma estrutura ou forma externa completa que pressupõe a existência de estruturas internas parciais com as quais o organismo se apresenta como indivíduo e como espécie diferente de todas as outras Auto organização é o resultado de um longo processo de evolução e adaptação ao meio que permite a um organismo tornarse cada vez mais complexo e ter interna e externamente funções cada vez mais especializadas para seus órgãos Autoreprodução por meio da função sexual o organismo é capaz de reproduzir um outro seu semelhante perpetuando tanto quanto possível a espécie por meio da divisão e da separação no caso dos seres que se reproduzem assexuadamente o organismo é capaz de engendrar um outro semelhante a si perpetuandose Dificuldades metodológicas da biologia As ciências biológicas enfrentam várias dificuldades para a definição de seu objeto e de seus métodos As principais dificuldades são definição e classificação dos objetos biológicos o objeto da biologia não é o indivíduo mas o gênero e a espécie As dificuldades científicas estão na escolha dos critérios de classificação para definir um gênero e uma espécie É a forma dos seres vivos que determina o gênero e a espécie Nesse caso o critério é a morfologia Ou é a ordem temporal de aparição de um gênero e uma espécie que deve ser o critério Nesse caso a paleontologia e a embriologia definiriam gêneros e espécies dificuldades do método experimental a vida é uma relação ativa dinâmica e diferenciada dos organismos com o meio ambiente mas o conhecimento experimental é realizado em laboratórios que definem condições fixas para o relacionamento organismomeio Como confiar inteiramente nos resultados Convite à Filosofia 342 experimentais se as condições de laboratório são abstratas e artificiais não correspondendo à situação vital concreta dos organismos dificuldades de experimentação no organismo humano de modo geral a experimentação biológica trabalha com animais e não com seres humanos e o primeiro problema consiste em saber se as conclusões obtidas com animais teriam validade para o organismo humano Procurase compensar tal dificuldade com o estudo dos organismos humanos doentes tomandose a doença como uma espécie de experimento natural Mas o problema agora é saber se o modo de funcionamento de um organismo doente pode ser generalizado para o sadio O mesmo problema se põe quando a biologia estuda os cadáveres humanos pois cabe perguntar se o morto pode explicar o vivo Finalidade evolução e origem da vida Uma disputa atravessou a história das ciências biológicas e pode ser assim formulada É a vida de mesma natureza que os demais fenômenos físico químicos e está como eles submetida ao determinismo das causas e efeitos ou é um fenômeno totalmente diferente com suas leis próprias A primeira tendência chamase mecanicismo a segunda vitalismo O vitalismo tendeu a ser vitorioso por invocar dois fenômenos que só existem para os seres vivos a relação com o tempo diferença entre vida e morte e a finalidade a vida é um processo ativo de interação com o meio ambiente para a realização de fins como conservação reprodução reparação O vitalismo é filosoficamente problemático De fato durante muitos séculos para explicar a temporalidade e a finalidade dos fenômenos vitais afirmouse a existência nos corpos vivos de almas ou inteligências que dirigiriam racionalmente a vida Mesmo afastando essas idéias a finalidade não se torna um conceito cientificamente claro Por exemplo devemos dizer que é para poder voar finalidade que os pássaros desenvolvem a forma ovóide de tronco a estrutura de ossos leves e ocos a leveza do pescoço e da cabeça a disposição das penas nas asas ou ao contrário que é por haver desenvolvido essas características que com o passar do tempo os pássaros puderam voar Os embaraços para definir com clareza o que seja a finalidade repercute numa outra idéia da biologia a de evolução A vida por ser interação ativa com o meio ambiente leva a mudanças nos organismos para a adaptação dos indivíduos e a manutenção da espécie Como essas transformações ocorrem no tempo e como se considera que os organismos progridem ou melhoram o desempenho graças à invenção de mecanismos novos de adaptação falase em evolução A finalidade da evolução é a preservação da espécie Surge então a pergunta O que leva a vida à finalidade evolutiva Essa pergunta é difícil de ser respondida porque a idéia de evolução se refere às espécies não aos indivíduos e pressupõe a noção de hereditariedade isto é Marilena Chauí 343 transmissão dos caracteres adquiridos por evolução a todos os membros da espécie Com a idéia de evolução das espécies e hereditariedade dos caracteres adquiridos surgem novas indagações se a evolução não é do indivíduo e sim da espécie porém se são os indivíduos que são levados a se transformar para se adaptar o que é uma espécie se a espécie evolui mas se o faz transmitindo as estruturas hereditárias o que podem ser as leis de hereditariedade já que uma espécie pode mudar se há leis de hereditariedade e se há mutação das espécies como se relacionam a finalidade hereditária e a finalidade evolutiva se o organismo vivo é como dizem a bioquímica e a genética contemporâneas uma máquina que se constrói a si mesma e dá a si mesma sua finalidade o que significa a idéia de adaptação ao meio central na teoria da evolução Questões como essas não invalidam a biologia como ciência pelo contrário indicam que esta não é um conjunto de verdades acabadas e absolutas mas um processo de conhecimento Por isso a biologia também possui suas rupturas epistemológicas e suas revoluções científicas A mais recente dessas rupturas e revoluções ligase ao que se convencionou chamar de descoberta do segredo da origem da vida isto é a descoberta das nucleoproteínas ou do ADN ácido desoxirribonucléico definido como código genético Essa descoberta recentíssima data dos fins dos anos 60 resulta do estudo microscópico de açúcares e bases nitrogenadas que são macromoléculas constituídas por micromoléculas chamadas aminoácidos o DNA e o RNA considerados até o momento responsáveis pelo fenômeno da vida Essa descoberta revela algo muito novo por um lado que a vida resulta de um processo químico mas por outro que esse processo é uma ruptura que separa os seres naturais inorgânicos e os seres naturais vivos No entanto os estudiosos do ADN não hesitam em afirmar que embora com esse conceito se possa construir um paradigma biológico que tenha por modelo a cibernética e a informática donde a idéia de código genético a existência e os modos de funcionamento do ADN são enigmas e mistérios e por enquanto a origem da vida parece ter resultado de um puro acaso e não de uma necessidade causal nem de uma finalidade necessária O que é espantoso porém é que mesmo sem conhecer exata e rigorosamente os fenômenos investigados a biologia genética já desenvolveu tecnologias para a invenção de novos alimentos mutações em animais e vegetais a fabricação de vacinas contra vírus etc Os dois grandes campos da biologia A biologia contemporânea trabalha em dois grandes campos de investigação Convite à Filosofia 344 1 o da investigação genética e fisiológica no nível hipermicroscópico dos processos e formas micromoleculares e com ajuda da bioquímica o estudo da célula em seus fenômenos internos e de reprodução isto é investiga o ADN 2 o da investigação das formas das estruturas e dos processos visíveis dos organismos na relação com o meio ambiente isto é o estudo do comportamento dos seres vivos e portanto as relações vitais entre meios e fins Tem em seu centro a idéia de equilíbrio vital entendido como conjunto de processos e funções que permitem ao organismo conservarse e reproduzirse Marilena Chauí 345 Capítulo 4 As ciências humanas São possíveis ciências humanas Embora seja evidente que toda e qualquer ciência é humana porque resulta da atividade humana de conhecimento a expressão ciências humanas referese àquelas ciências que têm o próprio ser humano como objeto A situação de tais ciências é muito especial Em primeiro lugar porque seu objeto é bastante recente o homem como objeto científico é uma idéia surgida apenas no século XIX Até então tudo quanto se referia ao humano era estudado pela Filosofia Em segundo lugar porque surgiram depois que as ciências matemáticas e naturais estavam constituídas e já haviam definido a idéia de cientificidade de métodos e conhecimentos científicos de modo que as ciências humanas foram levadas a imitar e copiar o que aquelas ciências haviam estabelecido tratando o homem como uma coisa natural matematizável e experimentável Em outras palavras para ganhar respeitabilidade científica as disciplinas conhecidas como ciências humanas procuraram estudar seu objeto empregando conceitos métodos e técnicas propostos pelas ciências da Natureza Em terceiro lugar por terem surgido no período em que prevalecia a concepção empirista e determinista da ciência também procuraram tratar o objeto humano usando os modelos hipotéticoindutivos e experimentais de estilo empirista e buscavam leis causais necessárias e universais para os fenômenos humanos Como entretanto não era possível realizar uma transposição integral e perfeita dos métodos das técnicas e das teorias naturais para os estudos dos fatos humanos as ciências humanas acabaram trabalhando por analogia com as ciências naturais e seus resultados tornaramse muito contestáveis e pouco científicos Essa situação levou muitos cientistas e filósofos a duvidar da possibilidade de ciências que tivessem o homem como objeto Quais as principais objeções feitas à possibilidade das ciências humanas A ciência lida com fatos observáveis isto é com seres e acontecimentos que nas condições especiais de laboratório são objetos de experimentação Como observarexperimentar por exemplo a consciência humana individual que seria o objeto da psicologia Ou uma sociedade objeto da sociologia Ou uma época passada objeto da história Convite à Filosofia 346 A ciência busca as leis objetivas gerais universais e necessárias dos fatos Como estabelecer leis objetivas para o que é essencialmente subjetivo como o psiquismo humano Como estabelecer leis universais para algo que é particular como é o caso de uma sociedade humana Como estabelecer leis necessárias para o que acontece uma única vez como é o caso do acontecimento histórico A ciência opera por análise decomposição de um fato complexo em elementos simples e síntese recomposição do fato complexo por seleção dos elementos simples distinguindo os essenciais dos acidentais Como analisar e sintetizar o psiquismo humano uma sociedade um acontecimento histórico A ciência lida com fatos regidos pela necessidade causal ou pelo princípio do determinismo universal O homem é dotado de razão vontade e liberdade é capaz de criar fins e valores de escolher entre várias opções possíveis Como dar uma explicação científica necessária àquilo que por essência é contingente pois é livre e age por liberdade A ciência lida com fatos objetivos isto é com os fenômenos depois que foram purificados de todos os elementos subjetivos de todas as qualidades sensíveis de todas as opiniões e todos os sentimentos de todos os dados afetivos e valorativos Ora o humano é justamente o subjetivo o sensível o afetivo o valorativo o opinativo Como transformálo em objetividade sem destruir sua principal característica a subjetividade O humano como objeto de investigação Embora as ciências humanas sejam recentes a percepção de que os seres humanos são diferentes das coisas naturais é antiga Sob esse ponto de vista podemos dizer que do século XV ao início do século XX a investigação do humano realizouse de três maneiras diferentes 1 Período do humanismo iniciase no século XV com a idéia renascentista da dignidade do homem como centro do Universo prossegue nos séculos XVI e XVII com o estudo do homem como agente moral político e técnicoartístico destinado a dominar e controlar a Natureza e a sociedade chegando ao século XVIII quando surge a idéia de civilização isto é do homem como razão que se aperfeiçoa e progride temporalmente através das instituições sociais e políticas e do desenvolvimento das artes das técnicas e dos ofícios O humanismo não separa homem e Natureza mas considera o homem um ser natural diferente dos demais manifestando essa diferença como ser racional e livre agente ético político técnico e artístico 2 Período do positivismo iniciase no século XIX com Augusto Comte para quem a humanidade atravessa três etapas progressivas indo da superstição religiosa à metafísica e à teologia para chegar finalmente à ciência positiva ponto final do progresso humano Comte enfatiza a idéia do homem como um ser social e propõe o estudo científico da sociedade assim como há uma física da Marilena Chauí 347 Natureza deve haver uma física do social a sociologia que deve estudar os fatos humanos usando procedimentos métodos e técnicas empregados pelas ciências da Natureza A concepção positivista não termina no século XIX com Comte mas será uma das correntes mais poderosas e influentes nas ciências humanas em todo o século XX Assim por exemplo a psicologia positivista afirma que seu objeto não é o psiquismo enquanto consciência mas enquanto comportamento observável que pode ser tratado com o método experimental das ciências naturais A sociologia positivista iniciada por Comte e desenvolvida como ciência pelo francês Emile Durkheim estuda a sociedade como fato afirmando que o fato social deve ser tratado como uma coisa à qual são aplicados os procedimentos de análise e síntese criados pelas ciências naturais Os elementos ou átomos sociais são os indivíduos obtidos por via da análise as relações causais entre os indivíduos recompostas por via da síntese constituem as instituições sociais família trabalho religião Estado etc 3 Período do historicismo desenvolvido no final do século XIX e início do século XX por Dilthey filósofo e historiador alemão Essa concepção herdeira do idealismo alemão Kant Fichte Schelling Hegel insiste na diferença profunda entre homem e Natureza e entre ciências naturais e humanas chamadas por Dilthey de ciências do espírito ou da cultura Os fatos humanos são históricos dotados de valor e de sentido de significação e finalidade e devem ser estudados com essas características que os distinguem dos fatos naturais As ciências do espírito ou da cultura não podem e não devem usar o método da observaçãoexperimentação mas devem criar o método da explicação e compreensão do sentido dos fatos humanos encontrando a causalidade histórica que os governa O fato humano é histórico ou temporal surge no tempo e se transforma no tempo Em cada época histórica os fatos psíquicos sociais políticos religiosos econômicos técnicos e artísticos possuem as mesmas causas gerais o mesmo sentido e seguem os mesmos valores devendo ser compreendidos simultaneamente como particularidades históricas ou visões de mundo específicas ou autônomas e como etapas ou fases do desenvolvimento geral da humanidade isto é de um processo causal universal que é o progresso O historicismo resultou em dois problemas que não puderam ser resolvidos por seus adeptos o relativismo numa época em que as ciências humanas buscavam a universalidade de seus conceitos e métodos e a subordinação a uma filosofia da História numa época em que as ciências humanas pretendiam separarse da Filosofia Relativismo as leis científicas são válidas apenas para uma determinada época e cultura não podendo ser universalizadas Filosofia da História os indivíduos humanos e as instituições socioculturais só são compreensíveis se seu estudo Convite à Filosofia 348 científico subordinarse a uma teoria geral da História que considere cada formação sociocultural seja como visão de mundo particular seja como etapa de um processo histórico universal Para escapar dessas conseqüências o sociólogo alemão Max Weber propôs que as ciências humanas no caso a sociologia e a economia trabalhassem seus objetos como tipos ideais e não como fatos empíricos O tipo ideal como o nome indica oferece construções conceituais puras que permitem compreender e interpretar fatos particulares observáveis Assim por exemplo o Estado se apresenta como uma forma de dominação social e política sob vários tipos ideais dominação carismática dominação pessoal burocrática etc cabendo ao cientista verificar sob qual tipo encontrase o caso particular investigado Fenomenologia estruturalismo e marxismo A constituição das ciências humanas como ciências específicas consolidouse a partir das contribuições de três correntes de pensamento que entre os anos 20 e 50 do século passado provocaram uma ruptura epistemológica e uma revolução científica no campo das humanidades A contribuição da fenomenologia Como vimos em vários momentos deste livro a fenomenologia introduziu a noção de essência ou significação como um conceito que permite diferenciar internamente uma realidade de outras encontrando seu sentido sua forma suas propriedades e sua origem Dessa maneira a fenomenologia começou por permitir que fosse feita a diferença rigorosa entre a esfera ou região da essência Natureza e a esfera ou região da essência homem A seguir permitiu que a esfera ou região homem fosse internamente diferenciada em essências diversas o psíquico o social o histórico o cultural Com essa diferenciação garantia às ciências humanas a validade de seus projetos e campos científicos de investigação psicologia sociologia história antropologia lingüística economia Qual a diferença entre a perspectiva positivista e a fenomenológica Dois exemplos podem ajudarnos a compreendêla Recusando a perspectiva metafísica que se referia ao psíquico em termos de alma e de interioridade a psicologia voltase para o estudo dos fatos psíquicos diretamente observáveis Ao radicalizar essa concepção a psicologia positivista fazia do psiquismo uma soma de elementos físicoquímicos anatômicos e fisiológicos de sorte que não havia propriamente falando um objeto científico denominado o psíquico mas efeitos psíquicos de causas nãopsíquicas físicas químicas fisiológicas anatômicas Por isso a psicologia consideravase uma ciência natural próxima da biologia tendo como objeto o comportamento como um fato externo observável e experimental Marilena Chauí 349 Ao contrário a psicologia como ciência humana do psiquismo tornouse possível a partir do momento em que um conjunto de fatos internos e externos ligados à consciência sensação percepção motricidade linguagem etc puderam ser definidos como dotados de significação objetiva própria Recusando a perspectiva da filosofia da História que considerava as sociedades etapas culturais e civilizatórias de um processo histórico universal a sociologia voltase para o estudo dos fatos sociais observáveis Inspirandose nas ciências naturais a sociologia positivista fazia da sociedade uma soma de ações individuais e tomava o indivíduo como elemento observável e causa do social de sorte que não havia a sociedade como um objeto ou uma realidade propriamente dita mas um efeito de ações psicológicas dos indivíduos Somente a definição do social como algo essencialmente diferente do psíquico e como não sendo a mera soma de ações individuais permitiu o surgimento da sociologia como ciência propriamente dita Em resumo antes da fenomenologia cada uma das ciências humanas desfazia seu objeto num agregado de elementos de natureza diversa do todo estudava as relações causais externas entre esses elementos e as apresentava como explicação e lei de seu objeto de investigação A fenomenologia garantiu às ciências humanas a existência e a especificidade de seus objetos A contribuição do estruturalismo O estruturalismo permitiu que as ciências humanas criassem métodos específicos para o estudo de seus objetos livrandoas das explicações mecânicas de causa e efeito sem que por isso tivessem que abandonar a idéia de lei científica A concepção estruturalista veio mostrar que os fatos humanos assumem a forma de estruturas isto é de sistemas que criam seus próprios elementos dando a estes sentido pela posição e pela função que ocupam no todo As estruturas são totalidades organizadas segundo princípios internos que lhes são próprios e que comandam seus elementos ou partes seu modo de funcionamento e suas possibilidades de transformação temporal ou histórica Nelas o todo não é a soma das partes nem um conjunto de relações causais entre elementos isoláveis mas é um princípio ordenador diferenciador e transformador Uma estrutura é uma totalidade dotada de sentido Já vimos a noção de estrutura quando nos capítulos dedicados à teoria do conhecimento nos referimos à teoria da percepção formulada pela psicologia da Gestalt ou da forma bem como quando nos referimos à teoria da linguagem elaborada pela lingüística contemporânea Após a psicologia e a lingüística a primeira das ciências humanas a se transformar profundamente graças à idéia de estrutura e ao método estrutural foi a antropologia social Esta pôde mostrar que ao contrário do que pensava a antropologia positivista as chamadas sociedades primitivas não são uma etapa Convite à Filosofia 350 atrasada da evolução da história social da humanidade mas uma forma objetiva de organizar as relações sociais de modo diferente do nosso constituindo estruturas culturais O antropólogo Claude LéviStrauss por exemplo mostrou que as estruturas dessas sociedades são baseadas no princípio do valor ou da equivalência que permite a troca e a circulação de certos seres de maneira a constituir o todo da sociedade organizando todas as relações sociais a troca ou circulação das mulheres estrutura do parentesco como sistema social de alianças a troca ou circulação de objetos especiais estrutura do dom como sistema social da guerra e da paz e troca e circulação da palavra estrutura da linguagem como sistema do poder religioso e político O modo como cada um desses sistemas ou estruturas parciais se organiza e se relaciona com os outros define a estrutura geral e específica de uma sociedade primitiva que pode assim ser compreendida e explicada cientificamente A contribuição do marxismo O marxismo permitiu compreender que os fatos humanos são instituições sociais e históricas produzidas não pelo espírito e pela vontade livre dos indivíduos mas pelas condições objetivas nas quais a ação e o pensamento humanos devem realizarse Levou a compreender que os fatos humanos mais originários ou primários são as relações dos homens com a Natureza na luta pela sobrevivência e que tais relações são as de trabalho dando origem às primeiras instituições sociais família divisão sexual do trabalho pastoreio e agricultura divisão social do trabalho troca e comércio distribuição social dos produtos do trabalho Assim as primeiras instituições sociais são econômicas Para mantêlas o grupo social cria idéias e sentimentos valores e símbolos aceitos por todos e que justificam ou legitimam as instituições assim criadas Também para conserválas o grupo social cria instituições de poder que sustentem pela força pelas armas ou pelas leis as relações sociais e as idéiasvaloressímbolos produzidos Dessa maneira o marxismo permitiu às ciências humanas compreender as articulações necessárias entre o plano psicológico e o social da existência humana entre o plano econômico e o das instituições sociais e políticas entre todas elas e o conjunto de idéias e de práticas que uma sociedade produz Graças ao marxismo as ciências humanas puderam compreender que as mudanças históricas não resultam de ações súbitas e espetaculares de alguns indivíduos ou grupos de indivíduos mas de lentos processos sociais econômicos e políticos baseados na forma assumida pela propriedade dos meios de produção e pelas relações de trabalho A materialidade da existência econômica comanda as outras esferas da vida social e da espiritualidade e os processos históricos abrangem todas elas Marilena Chauí 351 Enfim o marxismo trouxe como grande contribuição à sociologia à ciência política e à história a interpretação dos fenômenos humanos como expressão e resultado de contradições sociais de lutas e conflitos sóciopolíticos determinados pelas relações econômicas baseadas na exploração do trabalho da maioria pela minoria de uma sociedade Em resumo a fenomenologia permitiu a definição e a delimitação dos objetos das ciências humanas o estruturalismo permitiu uma metodologia que chega às leis dos fatos humanos sem que seja necessário imitar ou copiar os procedimentos das ciências naturais o marxismo permitiu compreender que os fatos humanos são historicamente determinados e que a historicidade longe de impedir que sejam conhecidos garante a interpretação racional deles e o conhecimento de suas leis Com essas contribuições que foram incorporadas de maneiras muito diferenciadas pelas várias ciências humanas os obstáculos epistemológicos foram ultrapassados e foi possível demonstrar que os fenômenos humanos são dotados de sentido e significação são históricos possuem leis próprias são diferentes dos fenômenos naturais e podem ser tratados cientificamente Os campos de estudo das ciências humanas Se tomarmos as ciências humanas de acordo com seus campos de investigação podemos distribuílas da seguinte maneira Psicologia estudo das estruturas do desenvolvimento das operações da mente humana consciência vontade percepção linguagem memória imaginação emoções estudo das estruturas e do desenvolvimento dos comportamentos humanos e animais estudo das relações intersubjetivas dos indivíduos em grupo e em sociedade estudo das perturbações patologias da mente humana e dos comportamentos humanos e animais Sociologia estudo das estruturas sociais origem e forma das sociedades tipos de organizações sociais econômicas e políticas estudo das relações sociais e de suas transformações estudo das instituições sociais origem forma sentido Economia estudo das condições materiais naturais e sociais de produção e reprodução da riqueza de suas formas de distribuição circulação e consumo Convite à Filosofia 352 estudo das estruturas produtivas relações de produção e forças produtivas segundo o critério da divisão social do trabalho da forma da propriedade das regras do mercado e dos ciclos econômicos estudo da origem do desenvolvimento das crises das transformações e da reprodução das formas econômicas ou modos de produção Antropologia estudo das estruturas ou formas culturais em sua singularidade ou particularidade isto é como diferentes entre si por seus princípios internos de funcionamento e transformação A cultura é entendida como modo de vida global de uma sociedade incluindo religião formas de poder formas de parentesco formas de comunicação organização da vida econômica artes técnicas costumes crenças formas de pensamento e de comportamento etc estudo das comunidades ditas primitivas isto é tanto das que desconhecem a divisão social em classes e recusam organizarse sob a forma do mercado e do poder estatal quanto daquelas que já iniciaram o processo de divisão social e política História estudo da gênese e do desenvolvimento das formações sociais em seus aspectos econômicos sociais políticos e culturais estudo das transformações das sociedades e comunidades como resultado e expressão de conflitos lutas contradições internas às formações sociais estudo das transformações das sociedades e comunidades sob o impacto de acontecimentos políticos revoluções guerras civis conquistas territoriais econômicos crises inovações técnicas descobertas de novas formas de exploração da riqueza ou procedimentos de produção mudanças na divisão social do trabalho sociais movimentos sociais movimentos populares mudanças na estrutura e organização da família da educação da moralidade social etc e culturais mudanças científicas tecnológicas artísticas filosóficas éticas religiosas etc estudo dos acontecimentos que em cada caso determinaram ou determinam a preservação ou a mudança de uma formação social em seus aspectos econômicos políticos sociais e culturais estudo dos diferentes suportes da memória coletiva documentos monumentos pinturas fotografias filmes moedas lápides funerárias testemunhos e relatos orais e escritos etc Lingüística estudo das estruturas da linguagem como sistema dotado de princípios internos de funcionamento e transformação Marilena Chauí 353 estudo das relações entre língua a estrutura e fala ou palavra o uso da língua pelos falantes estudo das relações entre a linguagem e os outros sistemas de signos e símbolos ou outros sistemas de comunicação Psicanálise estudo da estrutura e do funcionamento do inconsciente e de suas relações com o consciente estudo das patologias ou perturbações inconscientes e suas expressões conscientes neuroses e psicoses Devemos observar que cada uma das ciências humanas subdividese em vários ramos definidos pela especificidade crescente de seus objetos e métodos Assim podemos falar em psicologia social clínica do desenvolvimento da aprendizagem da criança do adolescente etc Ou em sociologia política do trabalho rural urbana econômica etc Também podemos falar em história econômica política oral social etc Ou levar em consideração que a antropologia depende de investigações feitas pela etnografia e pela etnologia ou pela arqueologia assim como a lingüística trabalha com a fonologia a fonética a gramática a semântica a sintaxe etc embora com campos e métodos específicos as ciências humanas tendem a apresentar resultados mais completos e satisfatórios quando trabalham interdisciplinarmente de modo a abranger os múltiplos aspectos simultâneos e sucessivos dos fenômenos estudados os desenvolvimentos da lingüística da antropologia e da psicanálise suscitaram o aparecimento de uma nova disciplina ou interdisciplina científica a semiologia que estuda os diferentes sistemas de signos e símbolos que constituem as múltiplas e diferentes formas de comunicação O desenvolvimento da semiologia conduziu à idéia de que signos e símbolos são ações e práticas sóciohistóricas isto é estão referidos às relações sociais e às suas condições históricas cada sociedade e cada cultura constituindose como um sistema que integra e totaliza vários subsistemas de signos e símbolos linguagem arte religião instituições sociais e políticas costumes etc Vários estudiosos propuseram que o método das ciências humanas fosse capaz de descrever e interpretar esses subsistemas e o sistema geral que os unifica Esse método é a semiótica tomada como metodologia própria às ciências humanas e capaz de unificálas Convite à Filosofia 354 Capítulo 5 O ideal científico e a razão instrumental O ideal científico O percurso que fizemos no estudo das ciências evidencia a existência de um ideal científico embora continuidades e rupturas marquem os conhecimentos científicos a ciência é a confiança que a cultura ocidental deposita na razão como capacidade para conhecer a realidade mesmo que esta afinal tenha que ser inteiramente construída pela própria atividade racional A lógica que rege o pensamento científico contemporâneo está centrada na idéia de demonstração e prova a partir da definição ou construção do objeto do conhecimento por suas propriedades e funções e da posição do sujeito do conhecimento através das operações de análise síntese e interpretação A ciência contemporânea fundase na distinção entre sujeito e objeto do conhecimento que permite estabelecer a idéia de objetividade isto é de independência dos fenômenos em relação ao sujeito que conhece e age na idéia de método como um conjunto de regras normas e procedimentos gerais que servem para definir ou construir o objeto e para o autocontrole do pensamento durante a investigação e após esta para a confirmação ou falsificação dos resultados obtidos A idéia de método tem como pressuposto que o pensamento obedece universalmente a certos princípios internos identidade nãocontradição terceiro excluído razão suficiente dos quais dependem o conhecimento da verdade e a exclusão do falso A verdade pode ser compreendida seja como correspondência necessária entre os conceitos e a realidade seja como coerência interna dos próprios conceitos nas operações de análise e síntese isto é de passagem do todo complexo às suas partes constituintes ou de passagem das partes ao todo que as explica e determina O objeto científico é um fenômeno submetido à análise e à síntese que descrevem os fatos observados ou constroem a própria entidade objetiva como um campo de relações internas necessárias isto é uma estrutura que pode ser conhecida em seus elementos suas propriedades suas funções e seus modos de permanência ou de transformação na idéia de lei do fenômeno isto é de regularidades e constâncias universais e necessárias que definem o modo de ser e de comportarse do objeto seja este tomado como um campo separado dos demais seja tomado em suas relações com Marilena Chauí 355 outros objetos ou campos de realidade A lei científica define o que é o fato fenômeno ou o objeto construído pelas operações científicas Em outras palavras a lei científica diz como o objeto se constitui como se comporta por que e como permanece por que e como se transforma sobre quais fenômenos atua e de quais sofre ação A lei define o objeto segundo um sistema complexo de relações necessárias de causalidade complementaridade inclusão e exclusão A idéia de lei visa a marcar o caráter necessário do objeto e a afastar as idéias de acaso contingência indeterminação oferecendo o objeto como completamente determinado pelo pensamento ou completamente conhecido ou cognoscível no uso de instrumentos tecnológicos e não simplesmente técnicos Os instrumentos técnicos são prolongamentos de capacidades do corpo humano e destinamse a aumentálas na relação do nosso corpo com o mundo Os instrumentos tecnológicos são ciência cristalizada em objetos materiais nada possuem em comum com as capacidades e aptidões do corpo humano visam a intervir nos fenômenos estudados e mesmo a construir o próprio objeto científico destinamse a dominar e transformar o mundo e não simplesmente a facilitar a relação do homem com o mundo A tecnologia confere à ciência precisão e controle dos resultados aplicação prática e interdisciplinaridade O caso da biologia genética revela como a tecnologia da física da química e da cibernética determinaram uma atividade interdisciplinar que resultou em descobertas e mudanças na biologia na criação de uma linguagem específica e própria distante da linguagem cotidiana e da linguagem literária A ciência procura afastar os dados qualitativos e perceptivoemotivos dos objetos ou dos fenômenos para guardar ou construir apenas seus aspectos quantitativos e relacionais A linguagem cotidiana e a literária são conotativas e polissêmicas isto é nelas as palavras possuem múltiplos significados simultâneos subentendidos ambigüidades e exprimem tanto o sujeito quanto as coisas ou seja exprimem as relações vividas entre o sujeito e o mundo qualitativo de sons cores formas odores valores sentimentos etc Nas ciências porém sons e cores são explicados como variação no comprimento das ondas sonoras e luminosas observadas e medidas no laboratório Valores e sentimentos são explicados pelas análises do corpo vivido e da consciência feitas pela psicologia pelas análises da estrutura e organização da sociedade feitas pela sociologia e pela antropologia A linguagem científica destaca o objeto das relações com o sujeito separao da experiência vivida cotidiana e constrói uma linguagem puramente denotativa para exprimir sem ambigüidades as leis do objeto O simbolismo científico rompe com o simbolismo da linguagem cotidiana construindo uma linguagem própria com símbolos unívocos e denotativos de significado único e universal Convite à Filosofia 356 A ciência constrói o algoritmo e fala através dos algoritmos ou de uma combinatória de estilo matemático Justamente por serem estes os principais traços do ideal científico podemos compreender por que existem os problemas epistemológicos examinados nos capítulos precedentes Em outras palavras o ideal de cientificidade impõe às idéias critérios e finalidades que quando impedidos de se concretizarem forçam rupturas e mudanças teóricas profundas fazendo desaparecer campos e disciplinas científicos ou levando ao surgimento de objetos métodos disciplinas e campos de investigação novos Ciência desinteressada e utilitarismo Desde a Renascença isto é desde o humanismo que colocava o homem no centro do Universo e afirmava seu poder para conhecer e dominar a realidade duas concepções sobre o valor da ciência estiveram sempre em confronto A primeira delas que chamaremos de ideal do conhecimento desinteressado afirma que o valor de uma ciência encontrase na qualidade no rigor e na exatidão na coerência e na verdade de uma teoria independentemente de sua aplicação prática A teoria científica vale por trazer conhecimentos novos sobre fatos desconhecidos por ampliar o saber humano sobre a realidade e não por ser aplicável praticamente Em outras palavras é por ser verdadeira que a ciência pode ser aplicada na prática mas o uso da ciência é conseqüência e não causa do conhecimento científico A segunda concepção conhecida como utilitarismo ao contrário afirma que o valor de uma ciência encontrase na quantidade de aplicações práticas que possa permitir É o uso ou a utilidade imediata dos conhecimentos que prova a verdade de uma teoria científica e lhe confere valor Os conhecimentos são procurados para resolver problemas práticos e estes determinam não só o aparecimento de uma ciência mas também suas transformações no decorrer do tempo As duas concepções são verdadeiras mas parciais Se uma teoria científica fosse elaborada apenas por suas finalidades práticas imediatas inúmeras pesquisas jamais teriam sido feitas e inúmeros fenômenos jamais teriam sido conhecidos pois com freqüência os conhecimentos teóricos estão mais avançados do que as capacidades técnicas de uma época e em geral sua aplicação só é percebida e só é possível muito tempo depois de haver sido elaborada No entanto se uma teoria científica não for capaz de suscitar aplicações se não for capaz de permitir o surgimento de objetos técnicos e tecnológicos instrumentos utensílios máquinas medicamentos de resolver problemas importantes para os seres humanos então seremos obrigados a dizer que a técnica e a tecnologia são cegas incertas arriscadas e perigosas porque são práticas sem bases teóricas seguras Na realidade teoria e prática científicas estão Marilena Chauí 357 relacionadas na concepção moderna e contemporânea de ciência mesmo que uma possa estar mais avançada do que a outra A distinção e a relação entre ciência pura e ciência aplicada pode solucionar o impasse ou o confronto entre as duas concepções sobre o valor das teorias científicas garantindo por um lado que uma teoria possa e deva ser elaborada sem a preocupação com fins práticos imediatos embora possa mais tarde contribuir para eles e por outro lado garantindo o caráter científico de teorias construídas diretamente com finalidades práticas as quais podem por sua vez suscitar investigações puramente teóricas Podese dizer que são problemas e dificuldades técnicas e práticas que suscitam o desenvolvimento de conhecimentos teóricos Sabemos por exemplo que o químico Lavoisier decidiu estudar o fenômeno da combustão para resolver problemas econômicos da cidade de Paris que Galileu e Torricelli investigaram o movimento dos corpos no vácuo para resolver problemas de carregamento de grandes pesos nos portos e para responder a uma pergunta dos construtores de fontes dos jardins da cidade de Florença No entanto o que sempre se verifica é que a explicação científica e a teoria acabam conhecendo muito mais fatos e relações do que o que era necessário para solucionar o problema prático de tal modo que as pesquisas teóricas vão avançando já sem a preocupação prática embora comecem a surgir e a suscitar tempos depois soluções práticas para problemas novos Assim por exemplo passouse muito tempo até que a teoria eletromagnética de Hertz levasse às técnicas de radiodifusão A ideologia cientificista O senso comum ignorando as complexas relações entre as teorias científicas e as técnicas entre ciência pura e ciência aplicada entre teoria e prática e entre verdade e utilidade tende a identificar as ciências com os resultados de suas aplicações Essa identificação desemboca numa atitude conhecida como cientificismo isto é fusão entre ciência e técnica e a ilusão da neutralidade científica Examinemos brevemente cada um desses aspectos que constituem a ideologia da ciência na sociedade contemporânea O cientificismo O cientificismo é a crença infundada de que a ciência pode e deve conhecer tudo que de fato conhece tudo e é a explicação causal das leis da realidade tal como esta é em si mesma Ao contrário dos cientistas que não cessam de enfrentar obstáculos epistemológicos problemas e enigmas o senso comum cientificista desemboca numa ideologia e numa mitologia da ciência Convite à Filosofia 358 Ideologia da ciência crença no progresso e na evolução dos conhecimentos que um dia explicarão totalmente a realidade e permitirão manipulála tecnicamente sem limites para a ação humana Mitologia da ciência crença na ciência como se fosse magia e poderio ilimitado sobre as coisas e os homens dandolhe o lugar que muitos costumam dar às religiões isto é um conjunto doutrinário de verdades intemporais absolutas e inquestionáveis A ideologia e a mitologia cientificistas encaram a ciência não pelo prisma do trabalho do conhecimento mas pelo prisma dos resultados apresentados como espetaculares e miraculosos e sobretudo como uma forma de poder social e de controle do pensamento humano Por este motivo aceitam a ideologia da competência isto é a idéia de que há na sociedade os que sabem e os que não sabem que os primeiros são competentes e têm o direito de mandar e de exercer poderes enquanto os demais são incompetentes devendo obedecer e ser mandados Em resumo a sociedade deve ser dirigida e comandada pelos que sabem e os demais devem executar as tarefas que lhes são ordenadas A ilusão da neutralidade da ciência Como a ciência se caracteriza pela separação e pela distinção entre o sujeito do conhecimento e o objeto como a ciência se caracteriza por retirar dos objetos do conhecimento os elementos subjetivos como os procedimentos científicos de observação experimentação e interpretação procuram alcançar o objeto real ou o objeto construído como modelo aproximado do real e enfim como os resultados obtidos por uma ciência não dependem da boa ou má vontade do cientista nem de suas paixões estamos convencidos de que a ciência é neutra ou imparcial Diz à razão o que as coisas são em si mesmas Desinteressadamente Essa imagem da neutralidade científica é ilusória Quando o cientista escolhe uma certa definição de seu objeto decide usar um determinado método e espera obter certos resultados sua atividade não é neutra nem imparcial mas feita por escolhas precisas Vamos tomar três exemplos que nos ajudarão a esclarecer este ponto O racismo não é apenas uma ideologia social e política É também uma teoria que se pretende científica apoiada em observações dados e leis conseguidas com a biologia a psicologia a sociologia É uma certa maneira de construir tais dados de sorte a transformar diferenças étnicas e culturais em diferenças biológicas naturais imutáveis e separar os seres humanos em superiores e inferiores dando aos primeiros justificativas para explorar dominar e mesmo exterminar os segundos Por que Copérnico teve que esconder os resultados de suas pesquisas e Galileu foi forçado a comparecer perante a Inquisição e negar que a Terra se movia ao redor do Sol Porque a concepção astronômica geocêntrica elaborada na Marilena Chauí 359 Antiguidade por Ptolomeu e Aristóteles permitia que a Igreja Romana mantivesse a idéia de que a realidade é constituída por uma hierarquia de seres que vão dos mais perfeitos os celestes aos mais imperfeitos os infernais e que essa hierarquia colocava a Igreja acima dos imperadores estes acima dos barões e estes acima dos camponeses e servos Se a astronomia demonstrasse que a Terra não é o centro do Universo e que o Sol não é apenas uma perfeição imóvel e se a mecânica galileana demonstrasse que todos os seres estão submetidos às mesmas leis do movimento então as hierarquias celestes naturais e humanas perderiam legitimidade e fundamento não precisando ser respeitadas A física e a astronomia précopernicanas elaboradas por Ptolomeu e Aristóteles serviam independentemente da vontade de Ptolomeu e de Aristóteles é verdade a uma sociedade e a uma concepção do poder que se viram ameaçadas por uma nova concepção científica Um último exemplo pode ser dado através da antropologia Durante muito tempo os antropólogos afirmaram que havia duas formas de pensamento cientificamente observáveis e com leis diferentes o pensamento lógicoracional dos civilizados europeus brancos adultos e o pensamento prélógico e pré racional dos selvagens ou primitivos africanos índios tribos australianas O primeiro era considerado superior verdadeiro e evoluído o segundo inferior falso supersticioso e atrasado cabendo aos brancos europeus auxiliar os selvagens primitivos a abandonar sua cultura e adquirir a cultura evoluída dos colonizadores O melhor caminho para perceber a impossibilidade de uma ciência neutra é levar em consideração o modo como a pesquisa científica se realiza em nosso tempo Durante séculos os cientistas trabalharam individualmente mesmo que possuíssem auxiliares e discípulos em seus pequenos laboratórios Suas pesquisas eram custeadas ou por eles mesmos ou por reis nobres e burgueses ricos que desejavam a glória de patrocinar descobertas e as vantagens práticas que delas poderiam advir Por sua vez o senso comum social olhava o cientista como inventor e gênio Hoje os cientistas trabalham coletivamente em equipes nos grandes laboratórios universitários nos dos institutos de pesquisa e nos das grandes empresas transnacionais que participam de um sistema conhecido como complexo industrialmilitar As pesquisas são financiadas pelo Estado nas universidades e institutos pelas empresas privadas em seus laboratórios e por ambos nos centros de investigação do complexo industrialmilitar São pesquisas que exigem altos investimentos econômicos e das quais se esperam resultados que a opinião pública nem sempre conhece Além disso os cientistas de uma mesma área de investigação competem por recursos tendem a fazer segredo de suas descobertas pois dependem delas para conseguir fundos e vencer a competição com outros Convite à Filosofia 360 Sabemos hoje que a maioria dos resultados científicos que usamos em nossa vida cotidiana máquinas remédios fertilizantes produtos de limpeza e de higiene materiais sintéticos computadores tiveram como origem investigações militares e estratégicas competições econômicas entre grandes empresas transnacionais e competições políticas entre grandes Estados Muito do que usamos em nosso cotidiano provém de pesquisas nucleares bacteriológicas e espaciais O senso comum social agora vê o cientista como engenheiro e mago em roupas brancas no interior de grandes laboratórios repletos de objetos incompreensíveis rodeado de outros cientistas fazendo cálculos misteriosos diante de dezenas de computadores Tanto na visão anterior o cientista como inventor e gênio solitário quanto na atual o cientista como membro de uma equipe de engenheiros e magos o senso comum vê a ciência desligada do contexto das condições de sua realização e de suas finalidades Eis porque tende a acreditar na neutralidade científica na idéia de que o único compromisso da ciência é o conhecimento verdadeiro e desinteressado e a solução correta de nossos problemas A ideologia cientificista usa essa imagem idealizada para consolidar a da neutralidade científica dissimulando com isso a origem e a finalidade da maioria das pesquisas destinadas a controlar a Natureza e a sociedade segundo os interesses dos grupos que controlam os financiamentos dos laboratórios A razão instrumental Por que há uma ideologia e uma mitologia da ciência Quando estudamos a teoria do conhecimento examinamos a noção de ideologia como lógica social imaginária de ocultamento da realidade histórica Ao estudarmos o nascimento da Filosofia examinamos a diferença entre mythos e logos isto é entre a explicação antropomórfica e mágica do mundo e a explicação racional Quando estudamos a razão vimos que alguns filósofos alemães reunidos na Escola de Frankfurt descreveram a racionalidade ocidental como instrumentalização da razão Se reunirmos esses vários estudos que fizemos até aqui poderemos responder à pergunta sobre a ideologização e a mitologização da ciência A razão instrumental que os frankfurtianos como Adorno Marcuse e Horkheimer também designaram com a expressão razão iluminista nasce quando o sujeito do conhecimento toma a decisão de que conhecer é dominar e controlar a Natureza e os seres humanos Assim por exemplo o filósofo Francis Bacon no início do século XVII criou uma expressão para referirse ao objeto do conhecimento científico a Natureza atormentada Atormentar a Natureza é fazêla reagir a condições artificiais criadas pelo homem O laboratório científico é a maneira paradigmática de efetuar esse Marilena Chauí 361 tormento pois nele plantas animais metais líquidos gases etc são submetidos a condições de investigação totalmente diversas das naturais de maneira a fazer com que a experimentação supere a experiência descobrindo formas causas efeitos que não poderiam ser conhecidos se contássemos apenas com a atividade espontânea da Natureza Atormentar a Natureza é conhecer seus segredos para dominála e transformála O tormento da realidade aumenta com a ciência contemporânea uma vez que esta não se contenta em conhecer as coisas e os seres humanos mas os constrói artificialmente e aplica os resultados dessa construção ao mundo físico biológico e humano psíquico social político histórico Assim por exemplo a organização do processo de trabalho nas indústrias apresentase como científica porque é baseada em conceitos da psicologia da sociologia da economia que permitem dominar e controlar o trabalho humano sob todos os aspectos controle sobre o corpo e o espírito dos trabalhadores a fim de que a produtividade seja a maior possível para render lucros ao capital Na medida em que a razão se torna instrumental a ciência vai deixando de ser uma forma de acesso aos conhecimentos verdadeiros para tornarse um instrumento de dominação poder e exploração Para que não seja percebida como tal passa a ser sustentada pela ideologia cientificista que através da escola e dos meios de comunicação de massa desemboca na mitologia cientificista Todavia devemos distinguir entre o momento da investigação científica propriamente dita e o da ideologizaçãomitologização de uma ciência Um exemplo poderá auxiliarnos a perceber essa diferença Quando Darwin elabora a teoria biológica da evolução das espécies o modelo de explicação usado por ele permitialhe supor que o processo evolutivo ocorria por seleção natural dos mais aptos à sobrevivência Ora na mesma época a sociedade capitalista estava convencida de que o progresso social e histórico provi nha da competição e da concorrência dos indivíduos segundo a lei econômica da oferta e da procura Um filósofo Spencer aplicou então a teoria darwiniana à sociedade nesta os mais aptos isto é os mais capazes de competir e concorrer tornamse naturalmente superiores aos outros vencendoos em riqueza privilégios e poder Ao transpor uma teoria biológica para uma explicação filosófica sobre a essência da sociedade Spencer transformou a teoria científica da evolução em ideologia evolucionista Por quê Em primeiro lugar porque generalizou para toda a realidade resultados obtidos num campo particular de conhecimentos específicos Em segundo lugar porque tomou conceitos referentes a fatos naturais e os converteu em fatos sociais como se não houvesse diferença entre Natureza e sociedade Uma vez criada a ideologia evolucionista o evolucionismo tornouse teoria da História e a seguir mitologia científica do progresso humano A noção de razão instrumental nos permite compreender Convite à Filosofia 362 a transformação de uma ciência em ideologia e mito social isto é em senso comum cientificista que a ideologia da ciência não se reduz à transformação de uma teoria científica em ideologia mas encontrase na própria ciência quando esta é concebida como instrumento de dominação controle e poder sobre a Natureza e a sociedade que as idéias de progresso técnico e neutralidade científica pertencem ao campo da ideologia cientificista Confusão entre ciência e técnica Vimos que a ciência moderna e contemporânea transforma a técnica em tecnologia isto é passa da máquinautensílio à máquina como instrumento de precisão que permite conhecimentos mais exatos e novos conhecimentos Essa transformação traz duas conseqüências principais a primeira se refere ao conhecimento científico e a segunda ao estatuto dos objetos técnicos 1 o conhecimento científico é concebido como lógica da invenção para a solução de problemas teóricos e práticos e como lógica da construção de objetos teóricos graças à possibilidade de estudar os fenômenos sem depender apenas dos recursos de nossa percepção e de nossa inteligência É assim que por exemplo Galileu se refere ao telescópio como um instrumento cuja função não é a de simplesmente aproximar objetos distantes mas de corrigir as distorções de nossos olhos e garantirnos a imagem correta das coisas O mesmo foi dito sobre o microscópio sobre a balança de precisão sobre o cronômetro Em nosso tempo os instrumentos técnicotecnológicos vão além da correção de nossa percepção pois corrigem falhas de nosso pensamento uma vez que são inteligências artificiais o computador foi chamado de cérebro eletrônico mais acuradas do que nossa inteligência individual Evidentemente são conhecimentos científicos que permitem a construção desses instrumentos mas dandolhes capacidades que cada um de nós enquanto indivíduo não possui Ora os objetos técnicotecnológicos ampliam a idéia da ciência como invenção e construção dos próprios fenômenos 2 os objetos técnicos são criados pela ciência como instrumentos de auxílio ao trabalho humano máquinas para dominar a Natureza e a sociedade instrumentos de precisão para o conhecimento científico e sobretudo em sua forma contemporânea como autômatos Estes são o objeto técnicotecnológico por excelência porque possuem as seguintes características marcas do novo estatuto desse objeto são conhecimento científico objetivado isto é depositado e concretizado num objeto São resultado e corporificação de conhecimentos científicos Marilena Chauí 363 são objetos que possuem em si mesmos o princípio de sua regulação manutenção e transformação As máquinas antigas dependiam de forças externas para realizar suas funções alavancas polias manivelas força muscular de seres humanos ou de animais força hidráulica etc As máquinas modernas são autômatos porque dado o impulso eletroeletrônico inicial realizam por si mesmas todas as operações para as quais foram programadas incluindo a correção de sua própria ação a realimentação de energia a transformação São autoreguladas e autoconservadas porque possuem em si mesmas as informações necessárias ao seu funcionamento como conseqüência não são propriamente um objeto singular ou individual mas um sistema de objetos interligados por comandos recíprocos são sistemas que uma vez programados realizam operações teóricas complexas que modificam o conteúdo dos próprios conhecimentos científicos isto é os objetos técnicotecnológicos fazem parte do trabalho teórico Ora o senso comum social ignora essas transformações da ciência e da técnica e conhece apenas seus resultados mais imediatos os objetos que podem ser usados por nós máquina de lavar videogame televisão a cabo máquina de calcular computador robô industrial etc Como para usálos precisamos receber um conjunto de informações detalhadas e sofisticadas tendemos a identificar o conhecimento científico com seus efeitos tecnológicos Com isso deixamos de perceber o essencial isto é que as ciências passaram a fazer parte das forças econômicas produtivas da sociedade e trouxeram mudanças sociais de grande porte na divisão social do trabalho na produção e na distribuição dos objetos na forma de consumilos Não percebemos que as pesquisas científicas são financiadas por empresas e governos demandando grandes somas de recursos que retornam graças aos resultados obtidos na forma de lucro e poder para os agentes financiadores Por não percebermos o poderio econômico das ciências lutamos para ter acesso para possuir e consumir os objetos tecnológicos mas não lutamos pelo direito de acesso tanto aos conhecimentos como às pesquisas científicas nem lutamos pelo direito de decidir seu modo de inserção na vida econômica e política de uma sociedade Eis porque entre outros efeitos de nossa confusão entre ciência e tecnologia aceitamos no Brasil políticas educacionais que profissionalizam os jovens no segundo grau portanto antes que tenham podido ter acesso às ciências propriamente ditas e que destinam poucos recursos públicos às áreas de pesquisa nas universidades portanto mantendo os cientistas na mera condição de reprodutores de ciências produzidas em outros países e sociedades Convite à Filosofia 364 O problema do uso das ciências Além do problema anterior isto é de teorias científicas serem formuladas a partir de certas decisões e escolhas do cientista ou do laboratório onde trabalham os cientistas com conseqüências sérias para os seres humanos um outro problema também é trazido pelas ciências o de seu uso Vimos que uma teoria científica pode nascer para dar resposta a um problema prático ou técnico Vimos também que a investigação científica pode ir avançando para descobertas de fenômenos e relações que já não possuem relação direta com os problemas práticos iniciais e como conseqüência é freqüente uma teoria estar muito mais avançada do que as técnicas e tecnologias que poderão aplicála Muitas vezes aliás o cientista sequer imagina que a teoria terá aplicação prática É exatamente isso que torna o uso da ciência algo delicado que em geral escapa das mãos dos próprios pesquisadores É assim por exemplo que a microfísica ou física quântica desemboca na fabricação das armas nucleares a bioquímica e a genética na de armas bacteriológicas Teorias sobre a luz e o som permitem a construção de satélites artificiais que se são conectáveis instantaneamente em todo o globo terrestre para a comunicação e informação também são responsáveis por espionagem militar e por guerras com armas teleguiadas Uma das características mais novas da ciência está em que as pesquisas científicas passaram a fazer parte das forças produtivas da sociedade isto é da economia A automação a informatização a telecomunicação determinam formas de poder econômico modos de organizar o trabalho industrial e os serviços criam profissões e ocupações novas destroem profissões e ocupações antigas introduzem a velocidade na produção de mercadorias e em sua distribuição e consumo modificando padrões industriais comerciais e estilos de vida A ciência tornouse parte integrante e indispensável da atividade econômica Tornouse agente econômico e político Além de fazer parte essencial da atividade econômica a ciência também passou a fazer parte do poder político Não é por acaso por exemplo que governos criem ministérios e secretarias de ciência e tecnologia e que destinem verbas para financiar pesquisas civis e militares Do mesmo modo que as grandes empresas financiam pesquisas e até criam centros e laboratórios de investigação científica assim também os governos determinam quais as ciências que irão ser desenvolvidas e nelas quais as pesquisas que serão financiadas Essa nova posição das ciências na sociedade contemporânea além de indicar que é mínimo ou quase inexistente o grau de neutralidade e de liberdade dos cientistas indica também que o uso das ciências define os recursos financeiros que nelas serão investidos Marilena Chauí 365 A sociedade porém não luta pelo direito de interferir nas decisões de empresas e governos quando estes decidem financiar um tipo de pesquisa em vez de outra Dessa maneira o campo científico tornase cada vez mais distante da sociedade sem que esta encontre meios para orientar o uso das ciências pois este é definido antes do início das próprias pesquisas e fora do controle que a sociedade poderia exercer sobre ele Um exemplo de luta social para intervir nas decisões sobre as pesquisas e seus usos encontrase nos movimentos ecológicos e em muitos movimentos sociais ligados a reivindicações de direitos De um modo geral porém a ideologia cientificista tende a ser muito mais forte do que eles e a limitar os resultados que desejariam obter Convite à Filosofia 366 Unidade 8 O mundo da prática Marilena Chauí 367 Capítulo 1 A cultura Natureza humana É muito comum ouvirmos e dizermos frases do tipo chorar é próprio da natureza humana e homem não chora Ou então é da natureza humana ter medo do desconhecido e ela é corajosa não tem medo de nada Também é comum a frase as mulheres são naturalmente frágeis e sensíveis porque nasceram para a maternidade bem como esta outra fulana é uma desnaturada pois não tem o menor amor aos filhos Com freqüência ouvimos dizer os homens são fortes e racionais feitos para o comando e a vida pública donde como conseqüência esta outra frase fulana nem parece mulher Veja como se veste Veja o emprego que arranjou Não é raro escutarmos que os negros são indolentes por natureza os pobres são naturalmente violentos os judeus são naturalmente avarentos os árabes são naturalmente comerciantes espertos os franceses são naturalmente interessados em sexo e os ingleses são por natureza fleumáticos Frases como essas e muitas outras pressupõem por um lado que existe uma natureza humana a mesma em todos os tempos e lugares e por outro lado que existe uma diferença de natureza entre homens e mulheres pobres e ricos negros índios judeus árabes franceses ou ingleses Haveria assim uma natureza humana universal e uma natureza humana diferenciada por espécies à maneira da diferença entre várias espécies de plantas ou de animais Em outras palavras a Natureza teria feito o gênero humano universal e as espécies humanas particulares de modo que certos sentimentos comportamentos idéias e valores são os mesmos para todo o gênero humano são naturais para todos os humanos enquanto outros seriam os mesmos apenas para cada espécie ou raça ou tipo ou grupo isto é para uma espécie determinada Dizer que alguma coisa é natural ou por natureza significa dizer que essa coisa existe necessária e universalmente como efeito de uma causa necessária e universal Essa causa é a Natureza Significa dizer portanto que tal coisa não depende da ação e intenção dos seres humanos Assim como é da natureza dos corpos serem governados pela lei natural da gravitação universal como é da natureza da água ser composta por H2O ou como é da natureza da abelha produzir mel e da roseira produzir rosas também seria por natureza que os homens sentem pensam e agem A Natureza teria feito a natureza humana como gênero universal e a teria diversificado por espécies naturais brancos negros Convite à Filosofia 368 índios pobres ricos judeus árabes homens mulheres alemães japoneses chineses etc Que aconteceria com as frases que mencionamos acima se mostrássemos que algumas delas são contraditórias e que outras não correspondem aos fatos da realidade Assim por exemplo dizer que é natural chorar na tristeza entra em contradição com a idéia de que homem não chora pois se isso fosse verdade o homem teria que ser considerado algo que escapa das leis da Natureza já que chorar é considerado natural O mesmo acontece com a frase sobre o medo e a coragem nelas é dito que o medo é natural mas que uma certa pessoa é admirável porque não tem medo Aqui a contradição é ainda maior do que a anterior uma vez que parecemos ter admiração por quem misteriosamente escapa da lei da Natureza isto é do medo Em certas sociedades o sistema de alianças que fundamenta as relações de parentesco sobre as quais a comunidade está organizada exige que a criança seja levada ao nascer à irmã do pai que deverá responsabilizarse pela vida e educação da criança Em outras o sistema de parentesco exige que a criança seja entregue à irmã da mãe Nos dois casos a relação da criança é estabelecida com a tia por aliança e não com a mãe biológica Se assim é como fica a afirmação de que as mulheres amam naturalmente os seus filhos e que é desnaturada a mulher que não demonstrar esse amor Em certas sociedades considerase que a mulher é impura para lidar com a terra e com os alimentos Por esse motivo o cultivo da terra a alimentação e a casa ficam sob os cuidados dos homens cabendo às mulheres a guerra e o comando da comunidade Se assim é como fica a frase que afirma que o homem foi feito pela Natureza para o que exige força e coragem para o comando e a guerra enquanto a mulher foi feita pela Natureza para a maternidade a casa o trabalho doméstico as atividades de um ser frágil e sensível Os historiadores brasileiros mostram que por razões econômicas a elite dominante do século XIX considerou mais lucrativo realizar a abolição da escravatura e substituir os escravos africanos pelos imigrantes europeus Essa decisão fez com que o mercado de trabalho fosse ocupado pelos trabalhadores brancos imigrantes e que a maioria dos escravos libertados ficasse no desemprego sem habitação sem alimentação e sem qualquer direito social econômico e político Em outras palavras foram impedidos de trabalhar e foram mantidos sem direitos tais como viviam quando estavam no cativeiro Além disso sabese que quando os colonizadores instituíram a escravidão e trouxeram os africanos para as terras da América fizeram tal escolha por considerarem que os negros possuíam grande força física grande capacidade de trabalho e muita inteligência para realizar tarefas com objetos técnicos como o engenho de açúcar Se assim é se a Marilena Chauí 369 escravidão foi instituída por causa da grande capacidade e inteligência dos africanos para o trabalho da agricultura se a abolição foi realizada por ser mais lucrativo o uso da mãodeobra imigrante para um certo tipo de agricultura o café e para a indústria como fica a afirmação de que a Natureza fez os africanos indolentes preguiçosos e malandros Poderíamos examinar cada uma das frases que dizemos ou ouvimos em nosso cotidiano e que naturalizam os seres humanos naturalizam comportamentos idéias valores formas de viver e de agir Veríamos como em cada caso os fatos desmentem tal naturalização Veríamos como os seres humanos variam em conseqüência das condições sociais econômicas políticas históricas em que vivem Veríamos que somos seres cuja ação determina o modo de ser agir e pensar e que a idéia de um gênero humano natural e de espécies humanas naturais não possui fundamento na realidade Veríamos graças às ciências humanas e à Filosofia que a idéia de natureza humana como algo universal intemporal e existente em si e por si mesma não se sustenta cientificamente filosoficamente e empiricamente Por quê Porque os seres humanos são culturais ou históricos Culto inculto cultura Pedro é muito culto conhece várias línguas entende de arte e de literatura Imagine É claro que o Luís não pode ocupar o cargo que pleiteia Não tem cultura nenhuma É semianalfabeto Não creio que a cultura francesa ou alemã sejam superiores à brasileira Você acha que há alguma coisa superior a nossa música popular Ouvi uma conferência que criticava a cultura de massa mas me pareceu que a conferencista defendia a cultura de elite Por isso não concordei inteiramente com ela O livro de Silva sobre a cultura dos guaranis é bem interessante Aprendi que o modo como entendem a religião e a guerra é muito diferente do nosso Essas frases e muitas outras que fazem parte do nosso diaadia indicam que empregamos a palavra cultura ou seus derivados como culto inculto em sentidos muito diferentes e por vezes contraditórios Na primeira e na segunda frase que mencionamos acima cultura é identificada com a posse de certos conhecimentos línguas arte literatura ser alfabetizado Nelas falase em ter e não ter cultura ser ou não ser culto A posse de cultura é vista como algo positivo enquanto ser inculto é considerado algo negativo A segunda frase deixa entrever que ter cultura habilita alguém a ocupar algum posto ou cargo pois não ter cultura significa não estar preparado para uma certa posição ou função Nessas duas primeiras frases a palavra cultura sugere também prestígio e respeito como se ter cultura ou ser culto fosse o mesmo que ser importante ser superior Convite à Filosofia 370 Ora quando passamos à terceira frase a cultura já não parece ser uma propriedade de um indivíduo mas uma qualidade de uma coletividade franceses alemães brasileiros Também é interessante observar que a coletividade aparece como um adjetivo qualificativo para distinguir tipos de Cultura a francesa a alemã a brasileira Nessa frase a Cultura surge como algo que existe em si e por si mesma e que pode ser comparada Cultura superior Cultura inferior Além disso a Cultura aparece representada por uma atividade artística a música popular Isso permite estabelecer duas relações diferentes com as primeiras frases 1 De fato a terceira frase como a primeira identifica Cultura e artes entender de arte e literatura na primeira frase a música popular brasileira na terceira 2 No entanto algo curioso acontece quando passamos das duas primeiras frases à terceira Com efeito nas duas primeiras culto e inculto surgiam como diferenças sociais Num país como o nosso dizer que alguém é inculto porque é semianalfabeto deixa transparecer que Cultura é algo que pertence a certas camadas ou classes sociais socialmente privilegiadas enquanto a incultura está do lado dos nãoprivilegiados socialmente portanto do lado do povo e do popular Entretanto a terceira frase afirma que a cultura brasileira não é inferior à francesa ou à alemã por causa de nossa música popular Não estaríamos diante de uma contradição Como poderia haver cultura popular a música se o popular é inculto Já a quarta frase a que se refere à conferência sobre cultura de massa introduz um novo significado para a palavra cultura Nela não se trata mais de pessoas cultas ou incultas nem de uma coletividade que possui uma atividade cultural que possa ser comparada à de outras Agora estamos diante da idéia de que numa mesma coletividade ou numa mesma sociedade pode haver dois tipos de Cultura a de massa e a de elite A frase não nos diz o que é a Cultura Seria posse de conhecimentos Ou seria atividade artística Entretanto a frase nos informa sobre uma oposição entre formas de cultura dependendo de sua origem e de sua destinação pois cultura de massa tanto pode significar originada na massa quanto destinada à massa e o mesmo pode ser dito da cultura de elite originada na elite ou destinada à elite Finalmente a última frase que mencionamos como exemplo apresenta um sentido totalmente diverso dos anteriores no que toca à palavra cultura Falase agora na cultura dos guaranis e esta aparece em duas manifestações a guerra e a religião que portanto nada tem a ver com a posse de conhecimentos atividade artística massa ou elite Nessa última frase a cultura aparece como algo dos guaranis e como alguma coisa que não se limita ao campo dos conhecimentos e das artes pois se refere à relação dos guaranis com o sagrado a religião e com o conflito e a morte a guerra Vemos assim que passar da naturalização dos seres humanos à Cultura não resolve nossas dificuldades de compreensão dos humanos uma vez que agora Marilena Chauí 371 precisamos perguntar Como é possível a palavra cultura possuir tantos sentidos alguns deles contraditórios com outros Natureza e Cultura No pensamento ocidental Natureza possui vários sentidos princípio de vida ou princípio ativo que anima e movimenta os seres Nesse sentido falase em deixar agir a Natureza ou seguir a Natureza para significar que se trata de uma força espontânea capaz de gerar e de cuidar de todos os seres por ela criados e movidos A Natureza é a substância matéria e forma dos seres essência própria de um ser ou aquilo que um ser é necessária e universalmente Neste sentido a natureza de alguma coisa é o conjunto de qualidades propriedades e atributos que a definem é seu caráter ou sua índole inata espontânea Aqui Natureza se opõe às idéias de acidental o que pode ser ou deixar de ser e de adquirido por costume ou pela relação com as circunstâncias organização universal e necessária dos seres segundo uma ordem regida por leis naturais Neste sentido a Natureza se caracteriza pelo ordenamento dos seres pela regularidade dos fenômenos ou dos fatos pela freqüência constância e repetição de encadeamentos fixos entre as coisas isto é de relações de causalidade entre elas Em outros termos a Natureza é a ordem e a conexão universal e necessária entre as coisas expressas em leis naturais tudo o que existe no Universo sem a intervenção da vontade e da ação humanas Neste sentido Natureza opõese a artificial artefato artifício técnico e tecnológico Natural é tudo quanto se produz e se desenvolve sem qualquer interferência humana conjunto de tudo quanto existe e é percebido pelos humanos como o meio e o ambiente no qual vivem A Natureza aqui tanto significa o conjunto das condições físicas onde vivemos quanto aquelas coisas que contemplamos com emoção a paisagem o mar o céu as estrelas terremotos eclipses tufões erupções vulcânicas etc A Natureza é o mundo visível como meio ambiente e como aquilo que existe fora de nós mesmo que provoque idéias e sentimentos em nós para as ciências contemporâneas a Natureza não é apenas a realidade externa dada e observada percebida diretamente por nós mas é um objeto de conhecimento construído pelas operações científicas um campo objetivo produzido pela atividade do conhecimento com o auxílio de instrumentos tecnológicos Neste sentido a Natureza paradoxalmente tornase algo que passa a depender da interferência ou da intervenção humana pois o objeto natural é construído cientificamente Esse último sentido da idéia de Natureza indica uma diferença entre a concepção comum e a científica pois a primeira considera a Natureza nos cinco primeiros Convite à Filosofia 372 significados que apontamos enquanto a segunda considera a Natureza como uma noção ou um conceito produzido pelos próprios homens e nesse caso como artifício artefato construção humana Em outras palavras a própria idéia de Natureza tornouse um objeto cultural Mas afinal o que é a Cultura Dois são os significados iniciais da noção de Cultura 1 vinda do verbo latino colere que significa cultivar criar tomar conta e cuidar Cultura significava o cuidado do homem com a Natureza Donde agricultura Significava também cuidado dos homens com os deuses Donde culto Significava ainda o cuidado com a alma e o corpo das crianças com sua educação e formação Donde puericultura em latim puer significa menino puera menina A Cultura era o cultivo ou a educação do espírito das crianças para tornaremse membros excelentes ou virtuosos da sociedade pelo aperfeiçoamento e refinamento das qualidades naturais caráter índole temperamento 2 a partir do século XVIII Cultura passa a significar os resultados daquela formação ou educação dos seres humanos resultados expressos em obras feitos ações e instituições as artes as ciências a Filosofia os ofícios a religião e o Estado Tornase sinônimo de civilização pois os pensadores julgavam que os resultados da formaçãoeducação aparecem com maior clareza e nitidez na vida social e política ou na vida civil a palavra civil vem do latim cives cidadão civitas a cidadeEstado No primeiro sentido a Cultura é o aprimoramento da natureza humana pela educação em sentido amplo isto é como formação das crianças não só pela alfabetização mas também pela iniciação à vida da coletividade por meio do aprendizado da música dança ginástica gramática poesia retórica história Filosofia etc A pessoa culta era a pessoa moralmente virtuosa politicamente consciente e participante intelectualmente desenvolvida pelo conhecimento das ciências das artes e da Filosofia É este sentido que leva muitos ainda hoje a falar em cultos e incultos Podemos observar que neste primeiro sentido Cultura e Natureza não se opõem Os humanos são considerados seres naturais embora diferentes dos animais e das plantas Sua natureza porém não pode ser deixada por conta própria porque tenderá a ser agressiva destrutiva ignorante precisando por isso ser educada formada cultivada de acordo com os ideais de sua sociedade A Cultura é uma segunda natureza que a educação e os costumes acrescentam à primeira natureza isto é uma natureza adquirida que melhora aperfeiçoa e desenvolve a natureza inata de cada um No segundo sentido isto é naquele formulado a partir do século XVIII tem início a separação e posteriormente a oposição entre Natureza e Cultura Os Marilena Chauí 373 pensadores consideram sobretudo a partir de Kant que há entre o homem e a Natureza uma diferença essencial esta opera mecanicamente de acordo com leis necessárias de causa e efeito mas aquele é dotado de liberdade e razão agindo por escolha de acordo com valores e fins A Natureza é o reino da necessidade causal do determinismo cego A humanidade ou Cultura é o reino da finalidade livre das escolhas racionais dos valores da distinção entre bem e mal verdadeiro e falso justo e injusto sagrado e profano belo e feio À medida que este segundo sentido foi prevalecendo Cultura passou a significar em primeiro lugar as obras humanas que se exprimem numa civilização mas em segundo lugar passou a significar a relação que os humanos socialmente organizados estabelecem com o tempo e com o espaço com os outros humanos e com a Natureza relações que se transformam e variam Agora Cultura tornase sinônimo de História A Natureza é o reino da repetição a Cultura o da transformação racional portanto é a relação dos humanos com o tempo e no tempo Cultura e História Foi Hegel e depois dele Marx que enfatizaram a Cultura como História Para o primeiro o tempo é o modo como o Espírito Absoluto ou a razão se manifesta e se desenvolve através das obras e instituições religião artes ciências Filosofia instituições sociais instituições políticas A cada período de sua temporalidade o Espírito ou razão engendra uma Cultura determinada que exprime o estágio de desenvolvimento espiritual ou racional da humanidade China Índia Egito Israel Grécia Roma Inglaterra França Alemanha seriam fases da vida do Espírito ou da razão cada qual exprimindose com uma Cultura própria e ultrapassada pelas seguintes num progresso contínuo Para Marx há em Hegel um engano básico qual seja confundir a História Cultura com a manifestação do Espírito A HistóriaCultura é o modo como em condições determinadas e não escolhidas os homens produzem materialmente pelo trabalho pela organização econômica sua existência e dão sentido a essa produção material A HistóriaCultura não narra o movimento temporal do Espírito mas as lutas reais dos seres humanos reais que produzem e reproduzem suas condições materiais de existência isto é produzem e reproduzem as relações sociais pelas quais distinguemse da Natureza e diferenciamse uns dos outros em classes sociais antagônicas O movimento da HistóriaCultura é realizado pela luta das classes sociais para vencer formas de exploração econômica opressão social dominação política Despotismo asiático modo de produção antigo Grécia Roma modo de produção feudal Idade Média capitalismo comercial ou mercantil capitalismo industrial são as maneiras pelas quais surgem e se organizam as formações sociais internamente divididas por lutas cujo fim dependerá da capacidade de organização política e de consciência da última classe social explorada o Convite à Filosofia 374 proletariado produzido pelo capitalismo industrial para eliminar a desigualdade e injustiça históricas Cultura e antropologia Diferentemente de Hegel e Marx que tomam a Cultura pela perspectiva histórica ou pela relação dos humanos com o tempo a antropologia considera a Cultura por um outro prisma O antropólogo procura antes de tudo determinar em que momento e de que maneira os humanos se afirmam como diferentes da Natureza fazendo o mundo cultural surgir Tradicionalmente diziase que os humanos diferem da Natureza graças à linguagem e à ação por liberdade O antropólogo sem negar essa afirmação procura algo mais profundo do que isso como início das culturas Assim para muitos antropólogos a diferença homemNatureza surge quando os humanos decretam uma lei que não poderá ser transgredida sem levar o culpado à morte exigida pela comunidade a lei da proibição do incesto desconhecida pelos animais Para muitos antropólogos a diferença homemNatureza também é estabelecida quando os humanos definem uma lei que se transgredida causa a ruína da comunidade e do indivíduo a lei que separa o cru e o cozido desconhecida dos animais Não vamos aqui entrar nos detalhes das discussões antropológicas O importante para nós é perceber que os antropólogos buscam algo que demarque o momento da separação homemNatureza como instante de surgimento da Cultura Esse algo é uma regra ou norma humana que opera como lei universal isto é válida para todos os homens e para toda a comunidade A lei humana é um imperativo social que organiza toda a vida dos indivíduos e da comunidade determinando o modo como são criados os costumes como são transmitidos de geração em geração como fundam as instituições sociais religião família formas do trabalho guerra e paz distribuição das tarefas formas do poder etc A lei não é uma simples proibição para certas coisas e obrigação para outras mas é a afirmação de que os humanos são capazes de criar uma ordem de existência que não é simplesmente natural física biológica Esta ordem é a ordem simbólica Vimos que um símbolo é alguma coisa que se apresenta no lugar de outra e presentifica algo que está ausente Quando dizemos que a Cultura é a invenção de uma ordem simbólica estamos dizendo que nela e por ela os humanos atribuem à realidade significações novas por meio das quais são capazes de se relacionar com o ausente pela palavra pelo trabalho pela memória pela diferenciação do tempo passado presente futuro pela diferenciação do espaço próximo distante grande pequeno alto baixo pela diferenciação entre o visível e o invisível os deuses o passado o distante no espaço e pela atribuição de valores às coisas e aos homens bom mau justo injusto verdadeiro falso belo feio possível impossível necessário contingente Marilena Chauí 375 Comunicação por palavras gestos sinais escrita monumentos trabalho transformação da Natureza relação com o tempo e o espaço enquanto valores diferenciação entre sagrado e profano determinação de regras e normas para a realização do desejo percepção da morte e doação de sentido a ela percepção da diferença sexual e doação de sentido a ela interdições e punição das transgressões determinação da origem e da forma do poder legítimo e ilegítimo criação de formas expressivas para a relação com o outro com o sagrado e com o tempo dança música rituais guerra paz pintura escultura construção da habitação culinária tecelagem vestuário etc são as principais manifestações do surgimento da Cultura Em termos antropológicos podemos então definir a Cultura como tendo três sentidos principais 1 criação da ordem simbólica da lei isto é de sistemas de interdições e obrigações estabelecidos a partir da atribuição de valores a coisas boas más perigosas sagradas diabólicas a humanos e suas relações diferença sexual e proibição do incesto virgindade fertilidade puroimpuro virilidade diferença etária e forma de tratamento dos mais velhos e mais jovens diferença de autoridade e formas de relação com o poder etc e aos acontecimentos significado da guerra da peste da fome do nascimento e da morte obrigação de enterrar os mortos proibição de ver o parto etc 2 criação de uma ordem simbólica da linguagem do trabalho do espaço do tempo do sagrado e do profano do visível e do invisível Os símbolos surgem tanto para representar quanto para interpretar a realidade dandolhe sentido pela presença do humano no mundo 3 conjunto de práticas comportamentos ações e instituições pelas quais os humanos se relacionam entre si e com a Natureza e dela se distinguem agindo sobre ela ou através dela modificandoa Este conjunto funda a organização social sua transformação e sua transmissão de geração a geração Em sentido antropológico não falamos em Cultura no singular mas em culturas no plural pois a lei os valores as crenças as práticas e instituições variam de formação social para formação social Além disso uma mesma sociedade por ser temporal e histórica passa por transformações culturais amplas e sob esse aspecto antropologia e História se completam ainda que os ritmos temporais das várias sociedades não sejam os mesmos algumas mudando mais lentamente e outras mais rapidamente A esse sentido históricoantropológico amplo podemos acrescentar um outro restrito ligado ao antigo sentido de cultivo do espírito a Cultura como criação de obras da sensibilidade e da imaginação as obras de arte e como criação de obras da inteligência e da reflexão as obras de pensamento É esse segundo sentido que leva o senso comum a identificar Cultura e escola educação formal Convite à Filosofia 376 de um lado e de outro lado a identificar Cultura e belasartes música pintura escultura dança literatura teatro cinema etc Se porém reunirmos o sentido amplo e o sentido restrito compreenderemos que a Cultura é a maneira pela qual os humanos se humanizam por meio de práticas que criam a existência social econômica política religiosa intelectual e artística A religião a culinária o vestuário o mobiliário as formas de habitação os hábitos à mesa as cerimônias o modo de relacionarse com os mais velhos e os mais jovens com os animais e com a terra os utensílios as técnicas as instituições sociais como a família e políticas como o Estado os costumes diante da morte a guerra o trabalho as ciências a Filosofia as artes os jogos as festas os tribunais as relações amorosas as diferenças sexuais e étnicas tudo isso constitui a Cultura como invenção da relação com o Outro Quem é o Outro Antes de tudo é a Natureza A naturalidade é o Outro da humanidade A seguir os deuses maiores do que os humanos superiores e poderosos Depois os outros humanos os diferentes de nós mesmos os estrangeiros os antepassados e os descendentes os inimigos e os amigos os homens para as mulheres as mulheres para os homens os mais velhos para os jovens os mais jovens para os velhos etc Em sociedades como a nossa divididas em classes sociais o Outro é também a outra classe social diferente da nossa de modo que a divisão social coloca o Outro no interior da mesma sociedade e define relações de conflito exploração opressão luta Entre os inúmeros resultados da existência da alteridade o ser um Outro no interior da mesma sociedade encontramos a divisão entre cultura de elite e cultura popular cultura erudita e cultura de massa Estamos agora em condições de perceber por que as frases de nosso cotidiano sobre cultos e incultos indicam preconceitos e não conceitos Que preconceitos Aquele que ignora que em sentido antropológico e histórico todos os humanos são cultos pois são todos seres culturais Aquele que reduz a Cultura à escola e às belasartes sem se dar conta de que aquela e estas são efeito da vida cultural e um dos aspectos da Cultura mas não toda a Cultura Aquele que partindo da Cultura como cultivo do espírito obras de pensamento e obras de arte ignora que a separação entre cultos e incultos em sociedades divididas em classes sociais é resultado de uma organização social que confere a alguns o direito de produção e acesso às obras negandoo a outros de tal maneira que em lugar de um direito temse de um lado privilégio e de outro exclusão Em outras palavras usase a Cultura como instrumento de discriminação social econômica e política Marilena Chauí 377 Novamente a História Os estudiosos partindo da filosofia da história e da antropologia distinguem dois grandes tipos de cultura a das comunidades e a das sociedades Uma comunidade é um grupo ou uma coletivi dade onde as pessoas se conhecem tratamse pelo primeiro nome possuem contatos cotidianos cara a cara compartilham os mesmos sentimentos e idéias e possuem um destino comum Uma sociedade é uma coletividade internamente dividida em grupos e classes sociais e na qual há indivíduos isolados uns dos outros Seus membros não se conhecem pessoalmente nem intimamente Cada classe social é antagônica à outra ou às outras com valores e sentimentos diferentes e mesmo opostos As relações não são pessoais mas sociais isto é os indivíduos grupos e classes se relacionam pela mediação de instituições como a família a escola a fábrica o comércio os partidos políticos e o Estado Os agrupamentos indígenas por exemplo são comunidades portanto internamente unos e indivisos Em contrapartida nós vivemos em sociedade e não em comunidade O tempo nas comunidades possui um ritmo lento as transformações são raras e em geral causadas por um acontecimento externo que as afeta por exemplo a conquista e colonização branca imposta aos índios Por isso se diz que a comunidade está na História ou no tempo mas não é histórica Ao contrário a sociedade é histórica ou seja para ela as transformações são constantes e velozes causadas pelas lutas e pelas divisões internas Dizse então que uma sociedade é histórica quando para ela ter uma história e estar no tempo são um problema uma indagação que ela não cessa de responder Por quê Uma comunidade baseiase em mitos fundadores ou narrativas sobre sua origem e sobre o que nela aconteceu acontece e acontecerá Os mitos capturam o tempo e oferecem explicações satisfatórias para todos sobre o presente o passado e o futuro Numa sociedade porém cada classe social procura explicar a origem da sociedade e de suas mudanças e conseqüentemente há diferentes explicações para o surgimento a forma e a transformação sociais Os grupos dominantes narram a história da sociedade de modo diferente e oposto à narrativa dos grupos dominados A classe que domina e a que é dominada possuem portanto concepções diferentes e contrárias sobre as causas dos acontecimentos não havendo uma explicação única e idêntica para todos sobre a origem da sociedade e suas transformações Eis por que para uma sociedade ser histórica é um problema e não uma solução Em outras palavras enquanto o mito unifica o tempo comunitário as histórias sociais multiplicam as interpretações sobre as causas e os efeitos temporais Convite à Filosofia 378 Finalmente uma comunidade cria a mesma Cultura para todos os seus membros mas numa sociedade isso não é possível e as diferentes classes sociais produzem culturas diferentes e mesmo antagônicas Por esse motivo é que as sociedades conhecem um fenômeno inexistente nas comunidades a ideologia Esta é resultado da imposição da cultura dos dominantes à sociedade inteira como se todas as classes e todos os grupos sociais pudessem e devessem ter a mesma Cultura embora vivendo em condições sociais diferentes A ideologia é uma das maneiras pelas quais as sociedades históricas buscam oferecer a imagem de uma única Cultura e de uma única história ocultando a divisão social interna Marilena Chauí 379 Capítulo 2 A experiência do sagrado e a instituição da religião A Filosofia e as manifestações culturais A Filosofia se interessa por todas as manifestações culturais pois como escreveu o filósofo Montaigne nada do que é humano me é estranho Os principais campos filosóficos relativos às manifestações culturais são a filosofia das ciências que vimos na teoria do conhecimento da religião das artes da existência ética e da vida política Além disso a Filosofia ocupase também com a crítica das ideologias que se originam na vida política mas se estendem para todas as manifestações da Cultura O sagrado O sagrado é uma experiência da presença de uma potência ou de uma força sobrenatural que habita algum ser planta animal humano coisas ventos água fogo Essa potência é tanto um poder que pertence própria e definitivamente a um determinado ser quanto algo que ele pode possuir e perder não ter e adquirir O sagrado é a experiência simbólica da diferença entre os seres da superioridade de alguns sobre outros do poderio de alguns sobre outros superioridade e poder sentidos como espantosos misteriosos desejados e temidos A sacralidade introduz uma ruptura entre natural e sobrenatural mesmo que os seres sagrados sejam naturais como a água o fogo o vulcão é sobrenatural a força ou potência para realizar aquilo que os humanos julgam impossível efetuar contando apenas com as forças e capacidades humanas Assim por exemplo em quase todas as culturas um guerreiro cuja força destreza e invencibilidade são espantosas é considerado habitado por uma potência sagrada Um animal feroz astuto veloz e invencível também é assim considerado Por sua forma e ação misteriosas benévolas e malévolas o fogo é um dos principais entes sagrados Em regiões desérticas a sacralização concentrase nas águas raras e necessárias O sagrado opera o encantamento do mundo habitado por forças maravilhosas e poderes admiráveis que agem magicamente Criam vínculos de simpatiaatração e de antipatiarepulsão entre todos os seres agem à distância enlaçam entes diferentes com laços secretos e eficazes Todas as culturas possuem vocábulos para exprimir o sagrado como força sobrenatural que habita o mundo Assim nas culturas da Polinésia e da Convite à Filosofia 380 Melanésia a palavra que designa o sagrado é mana e suas variantes Nas culturas das tribos norteamericanas falase em orenda e suas variantes referindose ao poder mágico possuído por todas as coisas dandolhes vida vontade e ação força que se pode roubar de outras coisas para si que se pode perder quando roubada por outros seres que se pode impor a outros mais fracos Entre as culturas dos índios sulamericanos o sagrado é designado por palavras como tunpa e aigres Nas africanas há centenas de termos dependendo da língua e da relação mantida com o sobrenatural mas o termo fundamental embora com variantes de pronúncia é ntu força universal em que coincidem aquilo que é e aquilo que existe Na cultura hebraica dois termos designavam o sagrado qados e herem significando aqueles seres ou coisas que são separados por Deus para seu culto serviço sacrifício punição não podendo ser tocados pelo homem Assim a Arca da Aliança onde estavam guardados os textos sagrados era qados e portanto intocável Também os prisioneiros de uma guerra santa pertenciam a Deus sendo declarados herem Na cultura grega agnos puro e agios intocável e na romana sacer dedicado à divindade e sanctus inviolável constituem a esfera do sagrado Sagrado é pois a qualidade excepcional boa ou má benéfica ou maléfica protetora ou ameaçadora que um ser possui e que o separa e distingue de todos os outros embora em muitas culturas todos os seres possuam algo sagrado pelo que se diferenciam uns dos outros O sagrado pode suscitar devoção e amor repulsa e ódio Esses sentimentos suscitam um outro o respeito feito de temor Nasce aqui o sentimento religioso e a experiência da religião A religião pressupõe que além do sentimento da diferença entre natural e sobrenatural haja o sentimento da separação entre os humanos e o sagrado mesmo que este habite os humanos e a Natureza A religião A palavra religião vem do latim religio formada pelo prefixo re outra vez de novo e o verbo ligare ligar unir vincular A religião é um vínculo Quais as partes vinculadas O mundo profano e o mundo sagrado isto é a Natureza água fogo ar animais plantas astros metais terra humanos e as divindades que habitam a Natureza ou um lugar separado da Natureza Nas várias culturas essa ligação é simbolizada no momento de fundação de uma aldeia vila ou cidade o guia religioso traça figuras no chão círculo quadrado triângulo e repete o mesmo gesto no ar na direção do céu ou do mar ou da floresta ou do deserto Esses dois gestos delimitam um espaço novo sagrado no ar e consagrado no solo Nesse novo espaço erguese o santuário em latim templum templo e à sua volta os edifícios da nova comunidade Marilena Chauí 381 Essa mesma cerimônia da ligação fundadora aparece na religião judaica quando Jeová indica ao povo o lugar onde deve habitar a Terra Prometida e o espaço onde o templo deverá ser edificado para nele ser colocada a Arca da Aliança símbolo do vínculo que une o povo e seu Deus recordando a primeira ligação o arcoíris anunciado por Deus a Noé como prova de seu laço com ele e sua descendência Também no cristianismo a religio é explicitada por um gesto de união No Novo Testamento Jesus disse a Pedro Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela Eu te darei as Chaves do Reino o que ligares na Terra será ligado no Céu o que desligares na Terra será desligado no Céu Através da sacralização e consagração a religião cria a idéia de espaço sagrado Os céus o monte Olimpo na Grécia as montanhas do deserto em Israel templos e igrejas são santuários ou moradas dos deuses O espaço da vida comum separase do espaço sagrado neste vivem os deuses são feitas as cerimônias de culto são trazidas oferendas e feitas preces com pedidos às divindades colheita paz vitória na guerra bom parto fim de uma peste no primeiro transcorre a vida profana dos humanos A religião organiza o espaço e lhe dá qualidades culturais diversas das simples qualidades naturais A religião como narrativa da origem A religião não transmuta apenas o espaço Também qualifica o tempo dandolhe a marca do sagrado O tempo sagrado é uma narrativa Narra a origem dos deuses e pela ação das divindades a origem das coisas das plantas dos animais e dos seres humanos Por isso a narrativa religiosa sempre começa com alguma expressão do tipo no princípio no começo quando o deus x estava na Terra quando a deusa y viu pela primeira vez etc A narrativa sagrada é a história sagrada que os gregos chamavam de mito Este não é uma fabulação ilusória uma fantasia sem consciência mas a maneira pela qual uma sociedade narra para si mesma seu começo e o de toda a realidade inclusive o começo ou nascimento dos próprios deuses Só tardiamente quando surgiu a Filosofia e depois dela a teologia a razão exigirá que os deuses não sejam apenas imortais mas também eternos sem começo e sem fim Antes porém da Filosofia e da teologia a religião narrava teogonias do grego theos deus gonia geração isto é a geração ou o nascimento dos deuses semideuses e heróis O contraste entre dia e noite luz e treva entre as estações do ano frio quente ameno com flores com frutos com chuvas com secas entre o nascimento e a desaparição vida e morte entre tipos de animais terrestres aquáticos voadores ferozes e dóceis entre tipos de humanos brancos negros Convite à Filosofia 382 amarelos vermelhos altos baixos peludos glabros as técnicas obtidas pelo controle sobre alguma força natural fogo água ventos pedras areia ervas evidenciam um mundo ordenado e regular no qual os humanos nascem vivem e morrem A história sagrada ou mito narra como e por que a ordem do mundo existe e como e por que foi doada aos humanos pelos deuses Assim além de ser uma teogonia a história sagrada é uma cosmogonia do grego cosmos mundo gonia geração narra o nascimento a finalidade e o perecimento de todos os seres sob a ação dos deuses Assim como há dois espaços há dois tempos o anterior à criação ou gênese dos deuses e das coisas tempo do vazio e do caos e o tempo originário da gênese de tudo quanto existe tempo do pleno e da ordem Nesse tempo sagrado da ordem novamente uma divisão o tempo primitivo inteiramente divino quando tudo foi criado e o tempo do agora profano em que vivem os seres naturais incluindo os homens Embora a narrativa sagrada seja uma explicação para a ordem natural e humana ela não se dirige ao intelecto dos crentes não é Filosofia nem ciência mas se endereça ao coração deles Desperta emoções e sentimentos admiração espanto medo esperança amor ódio Porque se dirige às paixões do crente a religião lhe pede uma só coisa fé ou seja a confiança adesão plena ao que lhe é manifestado como ação da divindade A atitude fundamental da fé é a piedade respeito pelos deuses e pelos antepassados A religião é crença não é saber A tentativa para transformar a religião em saber racional chamase teologia Ritos Porque a religião liga humanos e divindade porque organiza o espaço e o tempo os seres humanos precisam garantir que a ligação e a organização se mantenham e sejam sempre propícias Para isso são criados os ritos O rito é uma cerimônia em que gestos determinados palavras determinadas objetos determinados pessoas determinadas e emoções determinadas adquirem o poder misterioso de presentificar o laço entre os humanos e a divindade Para agradecer dons e benefícios para suplicar novos dons e benefícios para lembrar a bondade dos deuses ou para exorcizar sua cólera caso os humanos tenham transgredido as leis sagradas as cerimônias ritualísticas são de grande variedade No entanto uma vez fixada a simbologia de um ritual sua eficácia dependerá da repetição minuciosa e perfeita do rito tal como foi praticado na primeira vez porque nela os próprios deuses orientaram gestos e palavras dos humanos Um rito religioso é repetitivo em dois sentidos principais a cerimônia deve repetir um acontecimento essencial da história sagrada por exemplo no cristianismo a eucaristia ou a comunhão que repete a Santa Ceia e em segundo lugar atos gestos palavras objetos devem ser sempre os mesmos porque foram na Marilena Chauí 383 primeira vez consagrados pelo próprio deus O rito é a rememoração perene do que aconteceu numa primeira vez e que volta a acontecer graças ao ritual que abole a distância entre o passado e o presente Os objetos simbólicos A religião não sacraliza apenas o espaço e o tempo mas também seres e objetos do mundo que se tornam símbolos de algum fato religioso Os seres e objetos simbólicos são retirados de seu lugar costumeiro assumindo um sentido novo para toda a comunidade protetor perseguidor benfeitor ameaçador Sobre esse ser ou objeto recai a noção de tabu palavra polinésia que significa intocável é um interdito ou seja não pode ser tocado nem manipulado por ninguém que não esteja religiosamente autorizado para isso É assim por exemplo que certos animais se tornam sagrados ou tabus como a vaca na Índia o cordeiro perfeito consagrado para o sacrifício da páscoa judaica o tucano para a nação tucana do Brasil É assim por exemplo que certos objetos se tornam sagrados ou tabus como o pão e o vinho consagrados pelo padre cristão durante o ritual da missa Do mesmo modo em inúmeras religiões as virgens primogênitas das principais famílias se tornam tabus como as vestais na Roma antiga Também objetos se tornam símbolos sagrados intocáveis como os pergaminhos judaicos contendo os textos sagrados antigos certas pedras usadas pelos chefes religiosos africanos etc Os tabus se referem ou a objetos e seres puros ou purificados para os deuses ou a objetos e seres impuros que devem permanecer afastados dos deuses e dos humanos É assim que em inúmeras culturas a mulher menstruada é tabu está impura e no judaísmo e no islamismo a carne de porco é tabu é impura A religião tende a ampliar o campo simbólico mesmo que não transforme todos os seres e objetos em tabus ou intocáveis Ela o faz vinculando seres e qualidades à personalidade de um deus Assim por exemplo em muitas religiões como as africanas cada divindade é protetora de um astro uma cor um animal uma pedra e um metal preciosos um objeto santo A figuração do sagrado se faz por emblemas assim por exemplo o emblema da deusa Fortuna era uma roda uma vela enfunada e uma cornucópia o da deusa Atena o capacete e a espada o de Hermes a serpente e as botas aladas o de Oxossi as sete flechas espalhadas pelo corpo o de Iemanjá o vestido branco as águas do mar e os cabelos ao vento o de Jesus a cruz a coroa de espinhos o corpo glorioso em ascensão Manifestação e revelação Há religiões em que os deuses se manifestam surgem diante dos homens em beleza esplendor perfeição e poder e os levam a ver uma outra realidade escondida sob a realidade cotidiana na qual o espaço o tempo as formas dos seres os sons e as cores os elementos encontramse organizados e dispostos de Convite à Filosofia 384 uma outra maneira secreta e verdadeira A divindade levando um humano ao seu mundo desvendalhe a verdade e o ilumina com sua luz Era isso como vimos o que significava a palavra grega aletheia a verdade como manifestação ou iluminação A iluminação pode ser terrível porque é dado a um humano ver o que os olhos humanos não conseguem ver ouvir o que os ouvidos humanos não podem ouvir conhecer o que a inteligência humana não tem forças para conhecer As religiões indígenas e a grega são desse tipo Há religiões em que o deus revela verdades aos humanos sem fazêlos sair de seu mundo Podem ter sonhos e visões mas o fundamento é ouvir o que a divindade lhes diz porque dela provém o sentido primeiro e último de todas coisas e do destino humano O que se revela não é a verdade do mundo através da viagem visionária a um outro mundo o que se revela é a vontade do deus na qual o crente confia e cujos desígnios ele cumpre Era isso o que significava como vimos a palavra hebraica emunah assim seja Judaísmo cristianismo e islamismo são religiões da revelação Nas duas modalidades de religião porém a manifestação da verdade e a revelação da vontade exprimem o mesmo acontecimento aos humanos é dado conhecer seu destino e o de todas as coisas isto é as leis divinas A lei divina Os deuses são poderes misteriosos São forças personificadas e por isso são vontades Misteriosos porque suas decisões são imprevisíveis e muitas vezes incompreensíveis para os critérios humanos de avaliação Vontades porque o que acontece no mundo manifesta um querer pessoal supremo e inquestionável A religião ao estabelecer o laço entre o humano e o divino procura um caminho pelo qual a vontade dos deuses seja benéfica e propícia aos seus adoradores A vontade divina pode tornarse parcialmente conhecida dos humanos sob a forma de leis isto é decretos mandamentos ordenamentos comandos emanados da divindade Assim como a ordem do mundo decorre dos decretos divinos isto é da lei ordenadora à qual nenhum ser escapa também o mundo humano está submetido a mandamentos divinos dos quais os mais conhecidos na cultura ocidental são os Dez Mandamentos dados por Jeová a Moisés Também são de origem divina as Doze Tábuas da Lei que fundaram a república romana como eram de origem divina as leis gregas explicitadas na Ilíada e na Odisséia de Homero bem como nas tragédias O modo como a vontade divina se manifesta em leis permite distinguir dois grandes tipos de religião Há religiões em que a divindade usa intermediários para revelar a lei É o caso da religião judaica em que Jeová se vale por exemplo de Noé Moisés Samuel para dar a conhecer a lei Também nessa religião a divindade não cessa de lembrar ao povo as leis sobretudo quando estão sendo transgredidas Essa rememoração da lei e das promessas de castigo e Marilena Chauí 385 redenção nelas contidas é a tarefa do profeta arauto de Deus Também na religião grega os deuses se valem de intermediários para manifestar sua vontade Esta por ser misteriosa e incompreensível exige um tipo especial de intermediário o vidente que interpreta os enigmas divinos vê o passado e o futuro e os expõe aos homens Há religiões porém em que os deuses manifestam sua lei diretamente sem recorrer a intermediários isto é sem precisar de intérpretes São religiões da iluminação individual e do êxtase místico como é o caso da maioria das religiões orientais que exigem para a iluminação e o êxtase uma educação especial do intelecto e da vontade dos adeptos Freqüentemente profetas e videntes entram em transe para receber a revelação mas a recebem não porque tenham sido educados para isso e sim porque a divindade os escolheu para manifestarse O transe dos profetas e dos adivinhos difere do êxtase místico dos iluminados porque nos primeiros o indivíduo tem acesso a um conhecimento que pode compreender mesmo com grande dificuldade e por isso pode transmitilo aos outros enquanto nos segundos não há conhecimento não há atividade intelectual que depois seja transmissível a outros mas há mergulho e fusão do indivíduo na divindade numa experiência intraduzível e intransmissível As religiões reveladas diferentes portanto das religiões extáticas realizam a revelação de duas maneiras numa delas como é o caso da judaica e da cristã aquele que recebe a revelação deve escrevêla para que integre os textos da história sagrada e seja transmissível na outra como é o caso da grega da romana das africanas das indígenas o vi dente é levado perante os deuses e vê a totalidade do tempo e dos acontecimentos devendo após a visão dizêla para integrála à memória religiosa oral Nos dois casos porém para que fique indiscutível a origem divina da revelação a exposição escrita ou oral só pode ser feita por parábolas metáforas imagens e histórias cujo sentido precisará ser decifrado pelos leitores ou ouvintes Deus profetas e videntes falam por meio de enigmas Dessa maneira o caráter transcendente e misterioso da lei divina é preservado A vida após a morte Toda religião explica não só a origem da ordem do mundo natural mas também do mundo humano No caso dos humanos a religião precisa explicar por que são mortais O mistério da morte é sempre explicado como expiação de uma culpa original cometida contra os deuses No princípio os homens eram imortais e viviam na companhia dos deuses a seguir uma transgressão imperdoável tem lugar e com ela a grande punição a mortalidade No entanto a imortalidade não está totalmente perdida Algumas religiões afirmam que o corpo humano possui um duplo feito de outra matéria que permanecerá após a morte usando outros seres para relacionarse com os vivos Convite à Filosofia 386 Certas religiões acreditam que o corpo é habitado por uma entidade espírito alma sombra imaterial sopro que será imortal se os decretos divinos e os rituais tiverem sido respeitados pelo fiel Por acreditarem firmemente numa outra vida que pode ser imediata após a morte do corpo ou pode exigir reencarnações purificadoras até alçarse à imortalidade as religiões possuem ritos funerários encarregados de preparar e garantir a entrada do morto na outra vida Em algumas religiões como na egípcia e na grega a perfeita preservação do corpo morto isto é de sua imagem era essencial para que fosse reconhecido pelos deuses no reino dos mortos e recebesse a imortalidade Por isso além dos ritos funerários os cemitérios na maioria das religiões e particularmente nas africanas indígenas e antigas ocidentais eram lugares sagrados campos santos nos quais somente alguns e sob certas condições podiam penetrar Nas religiões do encantamento como a grega as africanas e as indígenas a morte é concebida de diversas maneiras mas em todas elas o morto fica encantado isto é tornase algo mágico Numa delas o morto deixa seu corpo para entrar num outro e permanecer no mundo sob formas variadas ou deixa seu corpo e seu espírito permanecer no mundo agitando os ventos as águas o fogo ensinando canto aos pássaros protegendo as crianças ensinando os mais velhos escondendo e achando coisas Na outra o morto tem sua imagem ou seu espírito levado ao mundo divino ali desfrutando das delícias de uma vida perenemente perfeita e bela se porém suas faltas terrenas forem tantas e tais que não pôde ser perdoado sua imagem ou espírito vagará eternamente pelas trevas sem repouso e sem descanso O mesmo lhe acontecerá se os rituais fúnebres não puderem ser realizados ou se tiverem sido realizados com falhas Esse perambular pelas trevas não existe nas religiões de reencarnação porque em lugar dessa punição o espírito deverá ter tantas vidas e sob tantas formas quantas necessárias à sua purificação até que possa participar da felicidade perene Nas religiões da salvação como é o caso do judaísmo do cristianismo e do islamismo a felicidade perene não é apenas individual mas também coletiva São religiões em que a divindade promete perdoar a falta originária enviando um salvador que sacrificandose pelos humanos garantelhes a imortalidade e a reconciliação com Deus Como a falta ou queda originária atingiu a todos os humanos o perdão divino e a redenção decorrem de uma decisão divina que deverá atingir a todos os humanos se acreditarem e respeitarem a lei divina escrita nos textos sagrados e se guardarem a esperança na promessa de salvação que lhes foi feita por Deus Nesse tipo de religião a obra de salvação é realizada por um enviado de Deus messias em hebraico cristo em grego As religiões da salvação são messiânicas e coletivas Um povo povo de Deus será salvo pela lei e pelo enviado divino Marilena Chauí 387 Milenarismo O milenarismo é próprio das religiões da salvação É a esperança da felicidade perene no mundo quando após sofrimentos profundos os seres forem regenerados purificados e libertados pela divindade O termo milenarismo provém de uma crença popular cristã embora não seja exclusivo da religião cristã Baseados em profecias dos profetas Daniel e Isaías no Apocalipse de são João e nas predições de magos e sibilas grupos populares cristãos durante a Idade Média esperavam que Cristo voltasse pela segunda vez combatesse os males a peste a fome a guerra e a morte vencesse o demônio encarnado num governante perverso o AntiCristo e instituísse o reino de Deus na Terra com a duração de mil anos de abundância justiça e felicidade Ao fim de mil anos haveria a ressurreição dos mortos o Juízo Final e o fim do mundo terreno Outras religiões e outros grupos culturais humanos possuem religiões milenaristas isto é a esperança de um fim dos tempos quando a dor a miséria a injustiça e a maldade terminarão e a plena felicidade existirá para todos É assim que os índios guaranis do Paraguai e do Brasil acreditam na Terra sem Males que surgirá além dos mares depois que a Terra cansada e infeliz for atravessada por eles e o deus benévolo e clemente lhes der a terra nova onde as flechas voarão sozinhas para trazer a caça e a pesca os frutos encherão as cestas não haverá frio nem chuva nem guerra nem morte O milenarismo em outra forma está presente numa concepção religiosa católica do século XX a Teologia da Libertação desenvolvida nos anos 70 na América Latina e que propunha o retorno da Igreja à pureza igualitária livre e justa dos primeiros cristãos criando o reino de Deus na Terra conforme prometido por Jesus Todas as religiões são experiências de fé mas as religiões da salvação messiânicas são religiões da fé e da esperança O milenarismo exprime no grau mais alto a esperança religiosa das religiões da salvação No caso do milenarismo cristão a esperança voltase para a existência futura de uma sociedade não hierarquizada igualitária e justa por esse motivo foi considerado pela ortodoxia cristã uma heresia isto é um pecado contra a fé estabelecida pela doutrina cristã segundo a qual o reino de Deus já existe na Terra desde a ressurreição de Cristo é a Igreja A esperança milenarista é própria das classes populares em sociedades onde prevalecem a desigualdade a injustiça a exclusão e a miséria O bem e o mal As religiões ordenam a realidade segundo dois princípios fundamentais o bem e o mal ou a luz e a treva o puro e o impuro Convite à Filosofia 388 Sob esse aspecto há três tipos de religiões as politeístas em que há inúmeros deuses alguns bons outros maus ou até mesmo cada deus podendo ser ora bom ora mau as dualistas nas quais a dualidade do bem e do mal está encarnada e figurada em duas divindades antagônicas que não cessam de combaterse e as monoteístas em que o mesmo deus é tanto bom quanto mau ou como no caso do judaísmo do cristianismo e do islamismo a divindade é o bem e o mal provém de entidades demoníacas inferiores à divindade e em luta contra ela No caso do politeísmo e do dualismo a divisão bemmal não é problemática assim como não o é nas religiões monoteístas que não exigem da divindade comportamentos sempre bons uniformes e homogêneos pois a ação do deus é insondável e incompreensível O problema porém existe no monoteísmo judaicocristão e islâmico Com efeito a divindade judaicocristã e islâmica é definida teologicamente como um ser positivo ou afirmativo Deus é bom justo misericordioso clemente criador único de todas as coisas onipotente e onisciente mas sobretudo eterno e infinito Deus é o ser perfeito por excelência é o próprio bem e este é eterno como Ele Se o bem é eterno e infinito como surgiu sua negação o mal Que positividade poderia ter o mal se no princípio havia somente Deus eterna e infinitamente bom Admitir um princípio eterno e infinito para o mal seria admitir dois deuses incorrendo no primeiro e mais grave dos pecados pois tanto os Dez Mandamentos quanto o Credo cristão afirmam haver um só e único Deus Além disso Deus criou todas as coisas do nada tudo o que existe é portanto obra de Deus Se o mal existe seria obra de Deus Porém Deus sendo o próprio bem poderia criar o mal Como o perfeito criaria o imperfeito Qual é pois a origem do mal A criatura Deus criou inteligências imateriais perfeitas os anjos Dentre eles surgem alguns que aspiram a ter o mesmo poder e o mesmo saber que a divindade lutando contra ela Menos poderosos e menos sábios são vencidos e expulsos da presença divina Não reconhecem porém a derrota Formam um reino separado de caos e trevas prosseguem na luta contra o Criador Que vitória maior teriam senão corromper a mais alta das criaturas após os anjos isto é o homem Valendose da liberdade dada ao homem os anjos do mal corrompem a criatura humana e com esta o mal entra no mundo O mal é o pecado isto é a transgressão da lei divina que o primeiro homem e a primeira mulher praticaram Sua punição foi o surgimento dos outros males morte doença dor fome sede frio tristeza ódio ambição luxúria gula preguiça avareza Pelo mal a criatura afastase de Deus perde a presença divina e a bondade original que possuía O mal portanto não é uma força positiva de mesma realidade que o bem mas é pura ausência do bem pura privação do bem negatividade fraqueza Assim como a treva não é algo positivo mas simples ausência da luz assim também o Marilena Chauí 389 mal é pura ausência do bem Há um só Deus e o mal é estar longe e privado dele pois Ele é o bem e o único bem A falta Há religiões da exterioridade e da interioridade Nas primeiras a falta ou pecado é uma ação externa visível cometida voluntária ou involuntariamente contra a divindade A falta é irreverência sentida sob a forma de vergonha trazendo como conseqüência uma impureza que contamina o faltoso e o grupo exigindo rituais de purificação Nas religiões da interioridade como é o caso do cristianismo a falta ou pecado é uma ação interna invisível mesmo que resulte num ato externo visível causada por uma vontade má nesse caso a falta é um crime ou por um entendimento equivocado nesse caso a falta é um erro É uma transgressão experimentada na forma de culpa exigindo expiação Nas religiões da exterioridade o perdão depende exclusivamente de uma graça isto é a divindade pode ou não perdoar independentemente dos rituais de purificação realizados pelo indivíduo ou pelo grupo Nas religiões da interioridade o perdão que virá na forma de graça exige uma experiência interior precisa o arrependimento Nas religiões da exterioridade como a grega a romana as africanas e indígenas a falta é causada por uma fatalidade O fatum destino em latim fado em português ou a moira destino fatal em grego determinou desde sempre que ela seria cometida por alguém para desgraça sua e de seu grupo A falta não depende da vontade do agente mas de uma decisão divina É assim por exemplo que Édipo cumprirá seu destino Nas religiões da interioridade como é o caso do judaísmo e do cristianismo a falta nasce da liberdade do agente que conhecendo o bem e o mal a lei divina transgride consciente e voluntariamente o decreto de Deus Sem dúvida para o cristianismo a falta é um problema teológico insolúvel pois o Deus cristão é onipotente e onisciente sabendo tudo desde a eternidade e portanto conhecendo previamente o pecador Se pune o pecado mas sabia que seria cometido não seria injusto por não impedir que seja cometido Se conhece eternamente quem pecará não será Deus como o fatum e a moira E como falar na liberdade e no livrearbítrio do pecador se desde a eternidade Deus sabia que ele cometeria o pecado Imanência e transcendência Quando estudamos o sagrado vimos que em inúmeras culturas os seres e objetos sacros habitam o nosso mundo são imanentes a ele As primeiras experiências religiosas são por isso panteístas theos em grego significa deus pan em grego significa todos tudo ou seja nelas tudo são deuses e estes estão em toda a parte espalhados pela Natureza Os seres tomam parte na divindade Convite à Filosofia 390 motivo pelo qual possuem mana orenda e tunpa O ntu africano exprime a concepção da imanência panteísta Ao contrário das religiões panteístas ou da imanência dos deuses no mundo as religiões teístas são transcendentes isto é os deuses estão separados do mundo natural e humano vivem noutro mundo e agem sobre o nosso É assim por exemplo que os deuses gregos embora tenham forma humana vivem no monte Olimpo e Jeová que possui atributos humanos como a voz vive no monte Sinai Eis por que nas religiões da transcendência falase na visitação dos deuses para referirse aos momentos em que nos rituais comunicamse com os seres humanos Nas várias religiões da transcendência a visitação divina não é problemática porque os deuses possuem formas materiais animais como na religião egípcia humanas como nas religiões grega e romana A visitação é um problema na religião cristã porque o Deus cristão é duas vezes misterioso e totalmente diferente das formas existentes no mundo em primeiro lugar é constituído por três pessoas que são uma só em segundo lugar é eterno incorpóreo infinito pleno e perfeito Donde o caráter totalmente incompreensível e terrível da encarnação de Jesus Cristo pois como explicar que uma das pessoas da Trindade se separe das outras para vir habitar entre os homens e que um ente eterno imaterial e infinito tome a forma material mortal finita carente e imperfeita do humano Para superar as dificuldades o cristianismo fala na visitação de Deus através dos anjos e santos e na inspiração do Espírito Santo enviado pelo Pai Transcendência e hierarquia Vimos que pela lei divina é instituída a ordem do mundo natural e humano Vimos também que o conhecimento dessa lei tende a tornarse um conhecimento especial seja porque somente alguns são escolhidos para conhecêla seja porque o texto da lei é incompreensível e exige pessoas capazes de fazer a interpretação profetas e videntes seja ainda porque a própria interpretação é obscura e exige novos intérpretes Constatamos que o conhecimento da lei e da vontade divinas são essenciais para a narrativa da história sagrada e para a realização correta e eficaz dos ritos Como conseqüência as religiões tendem a instituir um grupo de indivíduos separados do restante da comunidade encarregados de transmitir a história sagrada interpretar a lei e os sinais divinos realizar os ritos e marcar o espaçotempo sagrados Magos astrólogos videntes profetas xamãs sacerdotes e pajés possuem saberes e poderes especiais São capazes de curar de prever o futuro de aplacar a cólera dos deuses de anunciar a vontade divina de destruir a distância por meio de palavras e gestos Inicialmente sua função é trazer o sagrado para o grupo e aí Marilena Chauí 391 conserválo Pouco a pouco porém formam um grupo separado uma classe social com exigências e poderes próprios privam a comunidade da presença direta do sagrado e distorcem a função originária que possuíam transformandoa em domínio e poder sobre a comunidade Tornamse os portadores simbólicos do sagrado e mediadores indispensáveis A religião como já observamos realiza o encantamento do mundo explicandoo pelo maravilhoso e misterioso O grupo que detém o saber misterioso ao tornar se detentor do poder possui o poder mais alto o de encantar desencantar e reencantar o mundo Por isso num primeiro momento o poder religioso concentrase nas mãos de um só que possui também a autoridade militar e o domínio econômico sobre toda a comunidade À medida que as relações sociais se tornam mais complexas com divisões sociais do trabalho e da propriedade o poder passa por uma divisão um grupo detém a autoridade religiosa e outro a militar e econômica Porém todo o saber da comunidade história sagrada interpretação da lei divina rituais encontra se nas mãos da autoridade religiosa que passa dessa maneira a ser o braço intelectual e jurídico indispensável da autoridade econômica e militar Nas religiões da transcendência três são as conseqüências principais desse desenvolvimento histórico 1 a formação de uma autoridade que detém o privilégio do saber porque conhece a vontade divina e suas leis Com ela surge a instituição sacerdotal e eclesiástica Não por acaso Cícero dirá que a palavra religião vem do verbo legere ler Os sacerdotes são intelectuais O grupo sacerdotal detém vários saberes o da história sagrada o dos rituais o das leis divinas pelas quais é imposta a moralidade ao grupo Como esses saberes se referem ao divino constituem a teologia Os sacerdotes ou uma parte deles são teólogos Tais saberes lhes dão os seguintes poderes mágico são os únicos que conhecem e sabem manipular os vínculos secretos entre as coisas divinatório são os únicos capazes de prever os acontecimentos pela interpretação dos astros de sinais e das entranhas dos animais propiciatório são os únicos capazes de realizar os ritos de maneira correta e adequada para obtenção dos favores divinos punitivo são os únicos que conhecem as leis divinas e podem punir os transgressores ou infiéis 2 a formulação de uma doutrina religiosa baseada na idéia de hierarquia isto é de uma realidade organizada sob a forma de graus superiores e inferiores onde se situam todos os seres por vontade divina Os entes se distinguem por sua proximidade ou distância dos deuses segundo o lugar hierárquico fixo e imutável que lhes foi destinado Convite à Filosofia 392 Assim por exemplo certas religiões podem considerar certos animais mais próximos dos deuses sendo por isso mais poderosos mais sábios e melhores do que todos os outros entes Algumas podem considerar as entidades imateriais superiores e as materiais ou corporais inferiores Outras podem considerar os humanos o grau mais alto da hierarquia todos os outros seres estando subordinados a eles e devendolhes obediência Nas religiões politeístas a hierarquia começa pelos próprios deuses havendo deuses superiores e inferiores Nas religiões monoteístas a hierarquia coloca a divindade no topo de uma escala e os demais seres são ordenados segundo sua maior ou menor semelhança com ela Assim por exemplo no cristianismo há uma hierarquia celeste anjos arcanjos querubins serafins tronos potestades e os santos e uma hierarquia terrestre homens animais plantas minerais estando abaixo dela os demônios e as trevas A noção de hierarquia introduz as noções de superior e inferior definindo a relação entre ambos pelo mando e a obediência Dessa maneira a religião organiza o mundo e com isso a sociedade Evidentemente os que se ocupam com as coisas sagradas estão no topo da hierarquia humana e todos os outros lhes devem obediência 3 o privilégio do uso da violência sagrada para punir os faltosos ou pecadores Inicialmente exigiase que todos os membros da comunidade fossem piedosos isto é respeitassem deuses tabus rituais e a memória dos antepassados Com o surgimento da classe sacerdotal passase a exigir que esses membros da comunidade os sacerdotes sejam castos isto é possuam integridade corporal e espiritual para oficiar os ritos e interpretar as leis Na qualidade de castos são os mais puros e por isso investidos após educação e iniciação do poder de purificação Detêm o poder judiciário Nas religiões da interioridade como é o caso do cristianismo o privilégio judiciário e da violência sagrada é exercido não só sobre o corpo e o comportamento dos fiéis mas sobretudo sobre as almas Como isso é possível No caso do catolicismo por exemplo isso é feito por meio de dois procedimentos principais Em primeiro lugar por meio da confissão das faltas ou dos pecados feita perante o sacerdote que tem o poder para perdoar ou absolver mediante o arrependimento do pecador e das penitências que lhe são impostas Há um código éticoreligioso que determina quais são os pecados pecados mortais pecados veniais pecados capitais quais os modos de pecar por ato palavras e intenções qual o dano causado ao pecador e quais as penitências que deve cumprir O pecador faz um exame de consciência confessa ao sacerdote tornando visível por palavras os segredos de sua alma e entregase à misericórdia de Deus representado pelo sacerdote que pune e perdoa O segundo procedimento é o exame sacerdotal das idéias e das opiniões dos fiéis Marilena Chauí 393 De fato o saber religioso cristão está consignado num texto a Escritura Sagrada e num conjunto de textos interpretativos do primeiro a teologia racional formando a doutrina cristã Parte dessa doutrina é constituída por verdades reveladas compreensíveis para a razão humana parte é constituída por verdades reveladas incompreensíveis para a inteligência humana Essas últimas verdades constituem os dogmas da fé e não podem ser questionadas Questionálas ou proporlhes um conteúdo ou significado diferentes do estabelecido pela doutrina é considerado pecado mortal Isso significa que a transgressão religiosa pode ocorrer através do pensamento ou das idéias É a heresia palavra grega que significa opinião discordante A instituição sacerdotal tem o poder para punir heresias e o faz por três caminhos a excomunhão o fiel é banido da comunidade dos crentes e prometido à punição eterna a obtenção da confissão de arrependimento do herege em geral obtida por meio de tortura ou a condenação à morte Assim o sagrado dá origem à religião enquanto a sociedade faz aparecer o poder teológico da autoridade religiosa As finalidades da religião A invenção cultural do sagrado se realiza como processo de simbolização e encantamento do mundo seja na forma da imanência do sobrenatural no natural seja na transcendência do sobrenatural O sagrado dá significação ao espaço ao tempo e aos seres que neles nascem vivem e morrem A passagem do sagrado à religião determina as finalidades principais da experiência religiosa e da instituição social religiosa Dentre essas finalidades destacamos proteger os seres humanos contra o medo da Natureza nela encontrando forças benéficas contrapostas às maléficas e destruidoras dar aos humanos um acesso à verdade do mundo encontrando explicações para a origem a forma a vida e a morte de todos os seres e dos próprios humanos oferecer aos humanos a esperança de vida após a morte seja sob a forma de reencarnação perene seja sob a forma de reencarnação purificadora seja sob a forma de imortalidade individual que permite o retorno do homem ao convívio direto com a divindade seja sob a forma de fusão do espírito do morto no seio da divindade As religiões da salvação tanto as de tipo judaicocristão quanto as de tipo oriental prometem aos seres humanos libertálos da pena e da dor da existência terrena oferecer consolo aos aflitos dandolhes uma explicação para a dor seja ela física ou psíquica garantir o respeito às normas às regras e aos valores da moralidade estabelecida pela sociedade Em geral os valores morais são estabelecidos pela Convite à Filosofia 394 própria religião sob a forma de mandamentos divinos isto é a religião reelabora as relações sociais existentes como regras e normas expressões da vontade dos deuses ou de Deus garantindo a obrigatoriedade da obediência a elas sob a pena de sanções sobrenaturais Críticas à religião As primeiras críticas à religião feitas no pensamento ocidental vieram dos filósofos présocráticos que criticaram o politeísmo e o antropomorfismo Em outras palavras afirmaram que do ponto de vista da razão a pluralidade dos deuses é absurda pois a essência da divindade é a plenitude infinita não podendo haver senão uma potência divina Declararam também absurdo o antropomorfismo uma vez que este reduz os deuses à condição de seres superhumanos isto é as qualidades da essência divina não podem confundirse com as da natureza humana Essas críticas foram retomadas e sistematizadas por Platão Aristóteles e pelos estóicos Uma outra crítica à religião foi feita pelo grego Epicuro e retomada pelo latino Lucrécio A religião dizem eles é fabulação ilusória nascida do medo da morte e da Natureza É superstição No século XVII o filósofo Espinosa retoma essa crítica mas em lugar de começar pela religião começa pela superstição Os homens diz ele têm medo dos males e esperança de bens Movidos pelas paixões medo e esperança não confiam em si mesmos nem nos conhecimentos racionais para evitar males e conseguir bens Passional ou irracionalmente depositam males e bens em forças caprichosas como a sorte e a fortuna e as transformam em poderes que os governam arbitrariamente instaurando a superstição Para alimentála criam a religião e esta para conservar seu domínio sobre eles institui o poder teológicopolítico Nascida do medo supersticioso a religião está a serviço da tirania tanto mais forte quanto mais os homens forem deixados na ignorância da verdadeira natureza de Deus e das causas de todas as coisas Essa diferença entre religião e verdadeiro conhecimento de Deus levou no século XVIII à idéia de religião natural ou deísmo Voltandose contra a religião institucionalizada como poder eclesiástico e poder teológicopolítico os filósofos da Ilustração afirmaram a existência de um Deus que é força e energia inteligente imanente à Natureza conhecido pela razão e contrário à superstição Observamos portanto que as críticas à religião voltamse contra dois de seus aspectos o encantamento do mundo considerado superstição e o poder teológicopolítico institucional considerado tirânico No século XIX o filósofo Feuerbach criticou a religião como alienação Os seres humanos vivem desde sempre numa relação com a Natureza e desde muito cedo sentem necessidade de explicála e o fazem analisando a origem das coisas a regularidade dos acontecimentos naturais a origem da vida a causa da Marilena Chauí 395 dor e da morte a conservação do tempo passado na memória e a esperança de um tempo futuro Para isso criam os deuses Dãolhes forças e poderes que exprimem desejos humanos Fazemnos criadores da realidade Pouco a pouco passam a concebêlos como governantes da realidade dotados de forças e poderes maiores do que os humanos Nesse movimento gradualmente de geração a geração os seres humanos se esquecem de que foram os criadores da divindade invertem as posições e julgamse criaturas dos deuses Estes cada vez mais tornamse seres onipotentes oniscientes e distantes dos humanos exigindo destes culto rito e obediência Tornamse transcendentes e passam a dominar a imaginação e a vida dos seres humanos A alienação religiosa é esse longo processo pelo qual os homens não se reconhecem no produto de sua própria criação transformandoo num outro alienus estranho distante poderoso e dominador O domínio da criatura deuses sobre seus criadores homens é a alienação A análise de Feuerbach foi retomada por Marx de quem conhecemos a célebre expressão A religião é o ópio do povo Com essa afirmação Marx pretende mostrar que a religião referindose ao judaísmo ao cristianismo e ao islamismo isto é às religiões da salvação amortece a combatividade dos oprimidos e explorados porque lhes promete uma vida futura feliz Na esperança de felicidade e justiça no outro mundo os despossuídos explorados e humilhados deixam de combater as causas de suas misérias neste mundo Todavia Marx fez uma outra afirmação que em geral não é lembrada Disse ele que a religião é lógica e enciclopédia popular espírito de um mundo sem espírito Que significam essas palavras Com elas Marx procurou mostrar que a religião é uma forma de conhecimento e de explicação da realidade usadas pelas classes populares lógica e enciclopédia para dar sentido às coisas às relações sociais e políticas encontrando significações o espírito no mundo sem espírito que lhes permitem periodicamente lutar contra os poderes tirânicos Marx tinha na lembrança as revoltas camponesas e populares durante a Reforma Protestante bem como na Revolução Inglesa de 1644 na Revolução Francesa de 1789 e nos movimentos milenaristas que exprimiram na Idade Média e no início dos movimentos socialistas a luta popular contra a injustiça social e política Se por um lado na religião há a face opiácea do conformismo há por outro lado a face combativa dos que usam o saber religioso contra as instituições legitimadas pelo poder teológicopolítico Mythos e logos Na maioria das culturas a religião se apresenta como sistema explicativo geral oferecendo causas e efeitos relações entre seres valores morais e também sustentação ao poder político Nela se efetiva uma visão de mundo única válida Convite à Filosofia 396 para toda a sociedade e fornecendo a seus membros uma comunidade de ação e de destino No caso da cultura ocidental porém a religião tornouse apenas mais um sistema explicativo da realidade entre outros A ruptura com o mythos efetuada pelo surgimento e desenvolvimento do logos isto é do pensamento racional desfez o privilégio da religião como visão de mundo única Filosofia e ciência elaboraram explicações cujos princípios são completamente diferentes dos da religião Vimos as principais características do pensamento filosófico e quando a Filosofia nasce na Grécia Vimos também os traços que constituem o ideal científico Diante dessas duas formas de conhecimento o mito se apresenta como radicalmente distinto Embora isso já tenha sido analisado anteriormente vejase sobretudo a Unidade 4 capítulos 5 e 6 vamos recapitular essa distinção mythos é uma fala um relato ou uma narrativa cujo tema principal é a origem origem do mundo dos homens das técnicas dos deuses das relações entre homens e deuses etc não se define pelo objeto da narrativa ou do relato mas pelo modo como narra ou pelo modo como profere a mensagem de sorte que qualquer tema e qualquer ser podem ser objeto de mito tornamse míticos ao se transformarem em valores e símbolos sagrados tem como função resolver num plano simbólico e imaginário as antinomias as tensões os conflitos e as contradições da realidade social que não podem ser resolvidas ou solucionadas pela própria sociedade criando assim uma segunda realidade que explica a origem do problema e o resolve de modo que a realidade possa continuar com o problema sem ser destruída por ele O mito cria uma compensação simbólica e imaginária para dificuldades tensões e lutas reais tidas como insolúveis consegue essa solução imaginária porque opera com a lógica invisível e subjacente à organização social Ou seja conflitos tensões lutas e antinomias não são visíveis e perceptíveis mas invisíveis e imperceptíveis comandando o funcionamento visível da organização social O mito se refere a esse fundo invisível e tenso e o resolve imaginariamente para garantir a permanência da organização Além de ser uma lógica da compensação é uma lógica da conservação do social instrumento para evitar a mudança e a desagregação do grupo Em outras palavras é elaborado para ocultar a experiência da História ou do tempo não é apenas efeito das causas sociais mas tornase causa também isto é uma vez elaborado passa a produzir efeitos sociais instituições comportamentos sentimentos etc É uma ação social com efeitos sociais Marilena Chauí 397 ultrapassa as fronteiras da sociedade onde foi suscitado pois sua explicação visa a exprimir estruturas universais do espírito humano e do mundo Assim por exemplo os mitos teogônicos e cosmogônicos concernentes à proibição do incesto embora referentes às necessidades internas de uma sociedade para a elaboração das leis de parentesco e do sistema de alianças ressurge em todas as sociedades exprimindo uma estrutura universal da Cultura revela uma estrutura inconsciente da sociedade de tal modo que é possível distinguir a estrutura inconsciente universal e as mensagens particulares que cada sociedade inventa para resolver as tensões e os conflitos ou contradições inconscientes O mito conta uma história dramática na qual a ordem do mundo o reino mineral vegetal animal e humano foi criada e constituída Os acontecimentos narrados exprimem simultaneamente uma estrutura geral do pensamento humano e uma solução parcial que uma sociedade determinada encontrou para o problema Assim a diferença homemvegetal homemanimal homemmulher vidamorte trevaluz é uma diferença que atormenta universalmente todas as culturas mas cada uma delas possui uma narrativa mítica específica para responder a esse tormento comparado ao discurso filosófico e científico o discurso mítico opera segundo LéviStrauss pelo mecanismo do bricolage isto é assim como alguém junta pedaços e partes de objetos antigos para fazer um objeto novo no qual se podem perceber as partes ou pedaços dos objetos anteriores assim também o mythos constrói sua narrativa não como o logos elaborando de ponta a ponta seu objeto como algo específico mas como um arranjo e uma construção com pedaços de narrativas já existentes O logos busca a coerência construindo conceitualmente seu objeto enquanto o mythos fabrica seu objeto pela reunião e composição de restos díspares e disparatados do mundo existente dandolhes unidade num novo sistema explicativo no qual adquirem significado simbólico O logos procura a unidade sob a diversidade e a multiplicidade o mythos faz exatamente o oposto isto é procura a multiplicidade e a diversidade sob a unidade É um pensamento empírico e concreto e não um pensamento conceitual e abstrato comparado ao discurso filosófico e científico o mito se mostra uma operação lingüística oposta ao logos Este purifica a linguagem dos elementos qualitativos e emotivos busca retirar tanto quanto possível a ambigüidade dos termos que emprega utilizando provas demonstrações e argumentos racionais O mito ao contrário opera por metaforização contínua isto é um mesmo significante palavra ou conjunto de palavras tenderá a possuir um número imenso de significações ou de sentidos O mito opera com a saturação do sentido ou seja um mesmo fato pode ser narrado de inúmeras maneiras diferentes dependendo do que se queira enfatizar e as coisas do mundo minerais vegetais animais humanos podem receber Convite à Filosofia 398 inúmeros sentidos conforme o lugar que ocupem na narrativa Assim a oposição vidamorte homemmulher humanoanimal luztreva quentefrio secoúmido bommau justoinjusto certoerrado grandepequeno crucozido paimãe irmãirmão paifilho paifilha mãefilho mãefilha etc serão oposições constantes e regulares em todos os mitos mas os conteúdos que as exprimem são inumeráveis Ao instaurar a ruptura entre mythos e logos a cultura ocidental provocou um acontecimento desconhecido em outras culturas o conflito entre a fé e a razão que se manifestou desde muito cedo Já na Grécia antiga as críticas de Heráclito Pitágoras e Xenófanes à religião assinalavam a ruptura com ela Mais tarde Atenas forçou o filósofo Anaxágoras a fugir para evitar a condenação pública acusado pelo tribunal ateniense de inventar um novo deus Sócrates julgado culpado de impiedade e de corrupção da juventude foi condenado à morte Na Renascença Giordano Bruno que afirmara a imanência da Inteligência infinita ao mundo o Uno é forma e matéria figura da Natureza inteira operando de seu interior dizia ele foi condenado à fogueira Galileu na época moderna foi forçado a abjurar suas teses sobre o movimento solar as manchas lunares e solares e o princípio da inércia fundamento da mecânica clássica Nem sempre a Filosofia abandonou os temas da religião Todavia ocupouse deles do ponto de vista do logos e não do mythos Assim procedendo despojou os de sua condição de mistérios para transformálos em conceitos e teorias Para a alma religiosa há um Deus para a Filosofia é preciso provar a existência da divindade Para a alma piedosa Deus é um ente perfeito bom e misericordioso mas justo punindo os maus e recompensando os bons Para a Filosofia Deus é uma substância infinita mas é preciso demonstrar que sua essência é constituída por um intelecto onisciente e uma vontade onipotente Para o crente a espiritualidade divina não é incompatível com a esperança de poder ver Deus atuar materialmente sobre o mundo realizando milagres para a Filosofia é preciso demonstrar a possibilidade de uma ação do espírito sobre a matéria e por que sendo Deus onisciente suspenderia a ordenação necessária do mundo que Ele próprio estabeleceu fazendo milagres Mais do que isso Sendo Deus perfeito e infinito que necessidade teria de criar um mundo material finito e imperfeito Como uma causa infinita produz um efeito finito Mais ainda Deus é eterno portanto alheio ao tempo mas o mundo não é eterno pois foi criado por Deus e nesse caso como um ser eterno realiza uma ação temporal Como falar em Deus antes do mundo e depois do mundo se antes e depois são qualidades do tempo e não da eternidade Para o fiel a alma é imortal e destinada a uma vida futura para a Filosofia cabe oferecer provas que demonstrem a imortalidade Marilena Chauí 399 Os místicos experimentam a fusão plena no seio de Deus sentem estar nele e nele viver Para a Filosofia não sentimos Deus mas o conhecemos pela razão Essa peculiaridade da cultura ocidental afetou a própria religião De fato para competir com a Filosofia e suplantála a religião precisou oferecerse sob a forma de provas racionais conceitos teses teorias Tornouse teologia ciência sobre Deus Transformou os textos da história sagrada em doutrina Todavia certas crenças religiosas jamais poderão ser transformadas em teses e demonstrações racionais sem serem destruídas Não há como provar racionalmente que Jeová falou a Moisés no monte Sinai Não há como provar racionalmente a virgindade de Maria a encarnação do Filho de Deus a Santíssima Trindade a Eucaristia São verdades da fé e como tais mistérios Estes são verdades inquestionáveis isto é dogmas Eis por que o apóstolo Paulo declarou que a razão é um escândalo para a fé Tomemos um exemplo do Antigo Testamento Ali é narrado que durante uma batalha Josué fez o Sol parar a fim de que com o prolongamento do dia pudesse vencer a guerra Essa história sagrada pressupõe que o Sol se movimenta em torno da Terra e que esta permanece imóvel Estando narrada no texto revelado pelo próprio Deus a história de Josué não pode ser contestada A mesma teoria da mobilidade do Sol e imobilidade da Terra existia como tese filosóficocientífica no pensamento de Aristóteles e como tal foi refutada pela ciência de Copérnico Galileu e Kepler Porém se a estes era permitido refutar uma teoria filosóficocientífica por meio de outra não lhes era permitido negar a história de Josué Eis por que durante séculos a Igreja considerou o heliocentrismo uma heresia condenoua e submeteu sábios como Galileu aos tribunais da Inquisição Um outro exemplo agora vindo da biologia vai na mesma direção a teoria da evolução de Darwin que demonstra a origem do homem a partir de primatas A Bíblia afirma que o homem foi criado diretamente por Deus à sua imagem e semelhança no sexto dia da criação Sob essa perspectiva a teoria darwiniana foi considerada heresia condenada e durante anos não pôde ser ensinada nas escolas cristãs tendo mesmo havido um caso nos Estados Unidos de um professor primário processado por um tribunal por ensinála Um exemplo agora vindo do Novo Testamento apresenta o mesmo problema Historiadores lingüistas e antropólogos fizeram estudos sobre as culturas de toda a região do Oriente Médio e do norte da África nelas encontrando uma referência constante ao pão ao vinho ao cordeiro imolado e ao deus morto e ressuscitado Eram culturas de uma sociedade agrária com ritos de fertilidade da terra e dos animais realizando cerimônias muito semelhantes às que seriam realizadas depois pela missa cristã Desse ponto de vista o ritual da missa pertence a uma tradição religiosa agrária oriental e africana muito anterior ao cristianismo Essa descoberta científica porém contraria as verdades cristãs na Convite à Filosofia 400 medida em que a missa é considerada liturgia que repete e rememora um conjunto único e novo de eventos relativos à vida paixão e morte de Jesus Poderíamos prosseguir com os exemplos mas não é necessário O que queremos destacar aqui é a peculiaridade da relação que na cultura ocidental criadora da Filosofia e da ciência se estabeleceu entre a razão e a fé As dificuldades dessa relação ocuparam os medievais modernos e nossos contemporâneos parecendo insolúveis A religião acusa a Filosofia e a ciência de heresia e ateísmo enquanto ambas acusam a religião de dogmatismo atraso e intolerância Conciliação entre Filosofia e religião Vários filósofos procuraram conciliar Filosofia e religião Das tentativas feitas mencionaremos três cronologicamente mais próximas de nós a de Kant a de Hegel e a da fenomenologia A crítica kantiana à pretensão da metafísica de ser ciência dirigese à Filosofia quando esta assume o conteúdo de uma teologia racional demonstração racional da essência e existência de Deus uma psicologia racional demonstração da imortalidade da alma e uma cosmologia racional demonstração da origem e essência do mundo ou Natureza A distinção entre fenômeno e nôumeno permite ao filósofo limitar o campo do conhecimento teórico ao primeiro e impedir a pretensão de teorizar sobre o segundo A metafísica não é conhecimento da essência em si de Deus alma e mundo estes são nôumenos realidade em si inacessíveis ao nosso entendimento A religião por sua vez não é teologia não é teoria sobre Deus alma e mundo mas resposta a uma pergunta da razão que esta não pode responder teoricamente O que podemos esperar Qual o papel da religião Oferecer conceitos e princípios para a ação moral e fortalecer a esperança num destino superior da alma humana Sem Deus e a alma livre não haveria a humanidade mas apenas a animalidade natural sem a imortalidade o dever tornarseia banal Hegel segue numa direção diversa da de Kant Para ele a realidade não é senão a história do Espírito em busca da identidade consigo mesmo Deus não é uma substância cuja essência foi fixada antes e fora do tempo mas é o sujeito espiritual que se efetua como sujeito temporal cuja ação é ele mesmo manifestandose para si mesmo A mais baixa manifestação do Espírito é a Natureza a mais alta a Cultura Na Cultura o Espírito se realiza como Arte Religião e Filosofia numa seqüência que é o aperfeiçoamento rumo ao término do tempo Isso significa que Deus se manifesta primeiro como Arte nas artes depois como Religião nas religiões depois disso como Estado nos estados e finalmente como Filosofia nas Marilena Chauí 401 filosofias Em lugar de opor religião e Filosofia Hegel faz da primeira uma etapa preparatória da segunda A fenomenologia como vimos descreve essências constituídas pela intencionalidade da consciência que é doadora de sentido à realidade A consciência constitui as significações assumindo atitudes diferentes cada qual com seu campo específico sua estrutura e finalidades próprias Assim como há a atitude natural a crença realista ingênua na existência das coisas e a atitude filosófica a reflexão há também a atitude religiosa como uma das possibilidades da vida da consciência Quando esta se relaciona com o mundo através das categorias e das práticas ligadas ao sagrado constitui a atitude religiosa Assim a consciência pode relacionarse com o mundo de maneiras variadas senso comum ciência filosofia artes religião de sorte que não há oposição nem exclusão entre elas mas diferença Isso significa que a oposição só surgirá quando a consciência estando numa atitude pretender relacionarse com o mundo utilizando significações e práticas de uma outra atitude Foi isso que engendrou a oposição e o conflito entre Filosofia e religião pois sendo atitudes diferentes da consciência cada uma delas não pode usurpar os modos de conhecer e agir nem as significações da outra Convite à Filosofia 402 Capítulo 3 O universo das artes Unidade do eterno e do novo Alberto Caeiro um dos heterônimos do poeta Fernando Pessoa levanos ao âmago da arte quando escreve O meu olhar é nítido como um girassol Tenho o costume de andar pelas estradas Olhando para a direita e para a esquerda E de vez em quando olhando para trás E o que vejo a cada momento É aquilo que nunca antes eu tinha visto E eu sei dar por isso muito bem Sei ter o pasmo essencial Que tem uma criança se ao nascer Reparasse que nascera deveras Sintome nascido a cada momento Para a eterna novidade do Mundo A eterna novidade do mundo Alberto CaeiroFernando Pessoa une duas palavras que normalmente estão separadas e mesmo em oposição eterna e novidade pois o eterno é o que fora do tempo permanece sempre idêntico a si mesmo enquanto o novo é pura temporalidade o tempo como movimento e inquietação que se diferencia de si mesmo No entanto essa unidade do eterno e do novo aparentemente impossível realizase pelos e para os humanos Chama se arte MerleauPonty dizia que a arte é advento um vir a ser do que nunca antes existiu como promessa infinita de acontecimentos as obras dos artistas No ensaio A linguagem indireta e as vozes do silêncio ele escreve O primeiro desenho nas paredes das cavernas fundava uma tradição porque recolhia uma outra a da percepção A quase eternidade da arte confundese com a quase eternidade da existência humana encarnada e por isso temos no exercício de nosso corpo e de nossos sentidos com que compreender nossa gesticulação cultural que nos insere no tempo Que dizem os desenhos nas paredes da caverna Que o mundo é visível e para ser visto e que o artista dá a ver o mundo Que mundo Aquele eternamente novo buscado incessantemente pelos artistas É assim que Monet pinta várias vezes a Marilena Chauí 403 mesma catedral e em cada tela nasce uma nova catedral Referindose a essa busca do eterno novo em Monet o filósofo Gaston Bachelard escreve num ensaio denominado O pintor solicitado pelos elementos Um dia Claude Monet quis que a catedral fosse verdadeiramente aérea aérea em sua substância aérea no próprio coração das pedras E a catedral tomou da bruma azulada toda a matéria azul que a própria bruma tomara do céu azul Num outro dia outro sonho elementar se apodera da vontade de pintar Claude Monet quer que a catedral se torne uma esponja de luz que absorva em todas as suas fileiras de pedras e em todos os seus ornamentos o ocre de um sol poente Então nessa nova tela a catedral é um astro doce um astro ruivo um ser adormecido no calor do dia As torres brincavam mais alto no céu quando recebiam o elemento aéreo Ei las agora mais perto da Terra mais terrestres ardendo apenas um pouco como fogo guardado nas pedras de uma lareira Que procura o artista Responde CaeiroPessoa o pasmo essencial que tem uma criança se ao nascer reparasse que nascera deveras O artista busca o mundo em estado nascente tal como seria não só ao ser visto por nós pela primeira vez mas tal como teria sido no momento originário da criação Mas simultaneamente busca o mundo em sua perenidade e permanência É o que procura o pintor Cézanne cujo trabalho é assim comentado por MerleauPonty no ensaio A dúvida de Cézanne Vivemos em meio aos objetos construídos pelos homens entre utensílios casas ruas cidades e na maior parte do tempo só os vemos através das ações humanas de que podem ser os pontos de aplicação A pintura de Cézanne suspende estes hábitos e revela o fundo de Natureza inumana sobre a qual se instala o homem A paisagem aparece sem vento a água do lago sem movimento os objetos transidos hesitando como na origem da Terra Um mundo sem familiaridade Só um humano contudo é justamente capaz desta visão que vai até as raízes aquém da humanidade constituída O artista é aquele que fixa e torna acessível aos demais humanos o espetáculo de que participam sem perceber A obra de arte dá a ver a ouvir a sentir a pensar a dizer Nela e por ela a realidade se revela como se jamais a tivéssemos visto ouvido sentido pensado ou dito A experiência de nascer todo dia para a eterna novidade do mundo pode ser feita por nós quando lemos o poema de Jorge de Lima Poema do nadador A água é falsa a água é boa Nada nadador A água é mansa a água é doida Aqui é fria ali é morna A água é fêmea Convite à Filosofia 404 Nada nadador A água sobe a água desce A água é mansa a água é doida Nada nadador A água te lambe a água te abraça A água te leva a água te mata Nada nadador Se não que restará de ti nadador Nada nadador Rigorosamente não há nada nesse poema que desconheçamos Nenhuma das palavras empregadas pelo poeta nos é desconhecida E no entanto tudo aí é inteiramente novo O poema diz o que antes dele jamais havia sido dito e que sem ele nunca seria dito O nada é nadar verbo mas é também o nada pronome indefinido negativo e o jogo único e inesperado desse dois sentidos cria um terceiro o nadador que é um nadador que nada no nada e por isso é um nada dor O poeta transfigura a linguagem para fazêla dizer algo mas esse algo não existe antes aquém depois além do poema pois é o próprio poema Um livro diz MerleauPonty é uma máquina infernal de produzir significações Começamos a lêlo preguiçosamente meio distraídos De repente algumas palavras nos despertam como que nos queimam o livro já não nos deixa indiferentes passamos realmente a lêlo Que se passa A passagem da linguagem falada aquela que possuíamos em comum com o escritor à linguagem falante uma certa operação com os signos e a significação uma certa torção nas palavras um ligeiro descentramento do sentido instituído e a explosão de um sentido novo que nos pega A literatura como a pintura a música a escultura e qualquer das artes é a passagem do instituído ao instituinte transfiguração do existente numa outra realidade que o faz renascer sob a forma de uma obra O que é ler A leitura é um afrontamento entre os corpos gloriosos e impalpáveis de minha palavra e a do autor a descoberta do poder da linguagem instituinte que aparece quando a linguagem instituída é privada de seu equilíbrio costumeiro ordenandose novamente para ensinar ao leitor o que este não sabia pensar ou dizer Que é escrever Para o poeta e o romancista diz Sartre é distanciarse da linguageminstrumento e entrar na atitude poética tratando as palavras como entes reais e não como meros signos ou sinais estabelecidos Apanham a linguagem em estado selvagem como o pintor apanha a natureza inumana como se as palavras fossem seres como a Terra a relva a montanha ou a água O prosador faz algo diverso do poeta quer que as palavras além de por si e em si significarem alguma coisa designem o mundo ainda que para isso o escritor tenha que inventar novamente o mundo por meio das palavras O prosador Marilena Chauí 405 escreve Sartre é aquele que escolheu um modo de ação que se poderia chamar de ação por desvendamento O que há de espantoso nas artes é que elas realizam o desvendamento do mundo recriando o mundo noutra dimensão e de tal maneira que a realidade não está aquém e nem na obra mas é a própria obra de arte Talvez a melhor comprovação disso seja a música Feita de sons será destruída se tentarmos ouvir cada um deles ou reproduzilos como no toque de um corpo de cristal ou de metal A música pela harmonia pela proporção pela combinação de sons pelo ritmo e pela percussão cria um mundo sonoro que só existe por ela nela e que é ela própria Recolhe a sonoridade do mundo e de nossa percepção auditiva mas reinventa o som e a audição como se estes jamais houvessem existido tornando o mundo eternamente novo Arte e técnica A palavra arte vem do latim ars e corresponde ao termo grego techne técnica significando o que é ordenado ou toda espécie de atividade humana submetida a regras Em sentido lato significa habilidade destreza agilidade Em sentido estrito instrumento ofício ciência Seu campo semântico se define por oposição ao acaso ao espontâneo e ao natural Por isso em seu sentido mais geral arte é um conjunto de regras para dirigir uma atividade humana qualquer Nessa perspectiva falamos em arte médica arte política arte bélica retórica lógica poética dietética Platão não a distinguia das ciências nem da Filosofia uma vez que estas como a arte são atividades humanas ordenadas e regradas A distinção platônica era feita entre dois tipos de artes ou técnicas as judicativas isto é dedicadas apenas ao conhecimento e as dispositivas ou imperativas voltadas para a direção de uma atividade com base no conhecimento de suas regras Aristóteles porém estabeleceu duas distinções que perduraram por séculos na Cultura ocidental Numa delas distingue ciênciaFilosofia de arte ou técnica a primeira referese ao necessário isto é ao que não pode ser diferente do que é enquanto a segunda se refere ao contingente ou ao possível portanto ao que pode ser diferente do que é Outra distinção é feita no campo do próprio possível pela diferença entre ação e fabricação isto é entre praxis e poiesis A política e a ética são ciências da ação As artes ou técnicas são atividades de fabricação Plotino completa a distinção separando teoria e prática e distinguindo as técnicas ou artes cuja finalidade é auxiliar a Natureza como a medicina a agricultura daquelas cuja finalidade é fabricar um objeto com os materiais oferecidos pela Natureza o artesanato Distingue também um outro conjunto de artes e técnicas que não se relacionam com a Natureza mas apenas com o próprio homem para tornálo melhor ou pior música e retórica por exemplo Convite à Filosofia 406 A classificação das técnicas ou artes seguirá um padrão determinado pela sociedade antiga e portanto pela estrutura social fundada na escravidão isto é uma sociedade que despreza o trabalho manual Uma obra As núpcias de Mercúrio e Filologia escrita pelo historiador romano Varrão oferece a classificação que perdurará do século II dC ao século XV dividindo as artes em liberais os dignas do homem livre e servis ou mecânicas próprias do trabalhador manual São artes liberais gramática retórica lógica aritmética geometria astronomia e música compondo o currículo escolar dos homens livres São artes mecânicas todas as outras atividades técnicas medicina arquitetura agricultura pintura escultura olaria tecelagem etc Essa classificação diferenciada será justificada por santo Tomás de Aquino durante a Idade Média como diferença entre as artes que dirigem o trabalho da razão e as que dirigem o trabalho das mãos Ora somente a alma é livre e o corpo é para ela uma prisão de sorte que as artes liberais são superiores às artes mecânicas As palavras mecânica e máquina vêm do grego e significam estratagema engenhoso para resolver uma dificuldade corporal Assim a alavanca ou a polia são mecânicas ou máquinas Qual é o estratagema astucioso Fazer com que alguém fraco realize uma tarefa acima de suas forças graças a um instrumento engenhoso Uma alavanca permite deslocar um peso que uma pessoa sozinha jamais deslocaria A técnica pertence assim ao campo dos instrumentos engenhosos e astutos para auxiliar o corpo a realizar uma atividade penosa dura difícil A partir da Renascença porém travase uma luta pela valorização das artes mecânicas pois o humanismo renascentista dignifica o corpo humano e essa dignidade se traduz na batalha pela dignidade das artes mecânicas para convertêlas à condição de artes liberais Além disso à medida que o capitalismo se desenvolve o trabalho passa a ser considerado fonte e causa das riquezas sendo por isso valorizado A valorização do trabalho acarreta a valorização das técnicas e artes mecânicas A primeira dignidade obtida pelas artes mecânicas foi sua elevação à condição de conhecimento como as artes liberais A segunda dignidade foi alcançada no final do século XVII e a partir do século XVIII quando distinguiramse as finalidades das várias artes mecânicas isto é as que têm como fim o que é útil aos homens medicina agricultura culinária artesanato e aquelas cujo fim é o belo pintura escultura arquitetura poesia música teatro dança Com a idéia de beleza surgem as sete artesxi ou as belasartes modo pelo qual nos acostumamos a entender a arte A distinção entre artes da utilidade e artes da beleza acarretou uma separação entre técnica o útil e arte o belo levando à imagem da arte como ação individual espontânea vinda da sensibilidade e da fantasia do artista como gênio Marilena Chauí 407 criador Enquanto o técnico é visto como aplicador de regras e receitas vindas da tradição ou da ciência o artista é visto como dotado de inspiração entendida como uma espécie de iluminação interior e espiritual misteriosa que leva o gênio a criar a obra Além disso como a obra de arte é pensada a partir de sua finalidade a criação do belo tornase inseparável da figura do público espectador ouvinte leitor que julga e avalia o objeto artístico conforme tenha ou não realizado a beleza Surge assim o conceito de juízo de gosto que será amplamente estudado por Kant Gênio criador e inspiração do lado do artista falase nele como animal incomparável beleza do lado da obra e juízo de gosto do lado do público constituem os pilares sobre os quais se erguerá como veremos adiante uma disciplina filosófica a estética Todavia desde o final do século XIX e durante o século XX modificouse a relação entre arte e técnica Por um lado como vimos ao estudar as ciências o estatuto da técnica modificou se quando esta se tornou tecnologia portanto uma forma de conhecimento e não simples ação fabricadora de acordo com regras e receitas Por outro lado as artes passaram a ser concebidas menos como criação genial misteriosa e mais como expressão criadora isto é como transfiguração do visível do sonoro do movimento da linguagem dos gestos em obras artísticas As artes tornamse trabalho da expressão e mostram que desde que surgiram pela primeira vez foram inseparáveis da ciência e da técnica Assim por exemplo a pintura e a arquitetura da Renascença são incompreensíveis sem a matemática e a teoria da harmonia e das proporções a pintura impressionista incompreensível sem a física e a óptica isto é sem a teoria das cores etc A novidade está no fato de que agora as artes não ocultam essas relações os artistas se referem explicitamente a elas e buscam nas ciências e nas técnicas respostas e soluções para problemas artísticos A arte não perde seu vínculo com a idéia de beleza mas a subordina a um outro valor a verdade A obra de arte busca caminhos de acesso ao real e de expressão da verdade Em outras palavras as artes não pretendem imitar a realidade nem pretendem ser ilusões sobre a realidade mas exprimir por meios artísticos a própria realidade O pintor deseja revelar o que é o mundo visível o músico o que é o mundo sonoro o dançarino o que é o mundo do movimento o escritor o que é o mundo da linguagem o escultor o que é o mundo da matéria e da forma Para fazêlo recorrem às técnicas e aos instrumentos técnicos como aliás sempre o fizeram apesar da imagem do gênio criador inspirado que tira de dentro de si a obra Convite à Filosofia 408 Três manifestações artísticas contemporâneas podem ilustrar o modo como arte e técnica se encontram e se comunicam a fotografia o cinema e o design Fotografia e cinema surgem inicialmente como técnicas de reprodução da realidade Pouco a pouco porém tornamse interpretações da realidade e artes da expressão O design por sua vez introduz as artes pintura escultura arquitetura no desenho e na produção de objetos técnicos usados na indústria e nos laboratórios científicos e de utensílios cotidianos máquinas domésticas automóveis mobiliário talheres copos pratos xícaras lápis canetas aviões tecidos para móveis e cortinas etc As fronteiras entre arte e técnica tornamse cada vez mais tênues é preciso uma película tecnicamente perfeita para a foto artística e para o cinema de arte é preciso um material tecnicamente perfeito para que um disco possa reproduzir um concerto é preciso equipamentos técnicos de alta qualidade e precisão para produzir fotos filmes discos vídeos cenários e iluminação teatrais A técnica de fabricação dos instrumentos musicais e a invenção de aparelhos eletrônicos para música as possibilidades técnicas de novas tintas e cores graças aos materiais sintéticos modificando a pintura as possibilidades técnicas de novos materiais de construção modificando a arquitetura o surgimento de novos materiais sintéticos modificando a escultura são alguns exemplos da relação interna entre atividade artística e invenção técnicotecnológica Em nossos dias a distinção entre arte erudita e arte popular passa pela presença ou ausência da tecnologia de ponta nas artes A arte popular é artesanal a erudita tecnológica No entanto em nossa sociedade industrial ainda é possível distinguir as obras de arte e os objetos técnicos produzidos a partir do design e com a preocupação de serem belos A diferença está em que a finalidade desses objetos é funcional isto é os materiais e as formas estão subordinados à função que devem preencher uma cadeira deve ser confortável para sentar uma caneta adequada para escrever um automóvel adequado para a locomoção uma geladeira adequada para a conservação dos alimentos etc Da obra de arte porém não se espera nem se exige funcionalidade havendo nela plena liberdade para lidar com formas e materiais Arte e religião As duas primeiras manifestações culturais foram historicamente o trabalho e a religião Ambas instituíram as primeiras formas da sociabilidade a vida comunitária e da autoridade o poder religioso Ambas instituíram os símbolos de organização humana do espaço e do tempo do corpo e do espírito As artes isto é as técnicas ou artes mecânicas foram assim inseparáveis de ambas Mais do que isso Vimos que a relação com o sagrado ao organizar o espaço e o tempo e o sentimento da comunhão ou separação entre os humanos e a Natureza Marilena Chauí 409 e deles com o divino simbolizou o todo da realidade pela sacralização Assim todas as atividades humanas assumiram a forma de rituais a guerra a semeadura e a colheita a culinária as trocas o nascimento e a morte a doença e a cura a mudança das estações a passagem do dia à noite ventos e chuvas o movimento dos astros tudo se realiza ritualisticamente tudo assume a forma de um culto religioso A sacralização e a ritualização da vida fazem com que a medicina agricultura culinária edificações produção de utensílios música instrumentos musicais dança adornos tornemse ritos ou elementos de cultos Semear e colher caçar e pescar cozer alimentos tanto quanto fiar e tecer pintar dançar e cantar são atividades técnicoreligiosas As futuras sete artes as belasartes nascem pois no interior dos cultos e para servilos Serão necessários milhares de anos e profundas transformações históricosociais para que um dia surjam como atividade cultural autônoma dotadas de valor e significação próprias O artista era mago como o médico e o astrólogo artesão como o arquiteto o pintor e o escultor iniciado num ofício sagrado como o músico e o dançarino É na qualidade de mago artífice e detentor de um ofício que realizava sua arte Esta por ser parte inseparável do culto e do ritual não se efetuava segundo a liberdade criadora do técnicoartesão mas exigia a repetição das mesmas regras e normas para a fabricação dos objetos e a realização dos gestos O artífice iniciavase nos segredos das artes ou técnicas recebendo uma educação especial tornandose um iniciado em mistérios Aprendia a conhecer a matéria prima preestabelecida para o exercício de sua arte a usar utensílios e instrumentos preestabelecidos para sua ação a realizar gestos utilizar cores manipular ervas segundo um receituário fixo e secreto conhecido apenas pelos iniciados O artista era oficiante de cultos e fabricador dos objetos e gestos dos cultos Seu trabalho nascia de um dom dos deuses que deram aos humanos o conhecimento do fogo dos metais das sementes dos animais das águas e dos ventos etc e era um dom para os deuses A dimensão religiosa das artes deu aos objetos artísticos ou às obras de arte uma qualidade que foi estudada pelo filósofo alemão Walter Benjamin a aura Que é a aura A aura é a absoluta singularidade de um ser natural ou artístico sua condição de exemplar único que se oferece num aqui e agora irrepetível sua qualidade de eternidade e fugacidade simultâneas seu pertencimento necessário ao contexto onde se encontra e sua participação numa tradição que lhe dá sentido É no caso da obra de arte sua autenticidade o vínculo interno entre unidade e durabilidade Única una irrepetível duradoura e efêmera aquiagora e parte de uma tradição autêntica a obra de arte aurática é aquela que torna distante o que está perto porque transfigura a realidade dandolhe a qualidade da transcendência Convite à Filosofia 410 No ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica Walter Benjamin escreve Em suma o que é a aura É uma figura singular composta de elementos especiais e temporais a aparição única de uma coisa distante por mais perto que ela esteja Observar em repouso numa tarde de verão uma cadeia de montanhas no horizonte ou um galho que projeta sua sombra sobre nós significa respirar a aura dessas montanhas desse galho Porque as artes tinham como finalidade sacralizar e divinizar o mundo tornandoo distante e transcendente e ao mesmo tempo presentificar os deuses aos homens tornando o divino próximo e imanente sua origem religiosa transmitiu às obras de arte a qualidade aurática mesmo quando deixaram de ser parte da religião para se tornarem autônomas e belasartes No mesmo ensaio escreve Benjamin A unicidade da obra de arte é idêntica à sua inserção no contexto da tradição Sem dúvida essa tradição é algo muito vivo extraordinariamente variável Uma antiga estátua de Vênus por exemplo estava inscrita numa certa tradição entre os gregos que faziam dela um objeto de culto e em outra tradição na Idade Média quando os doutores da Igreja viam nela um ídolo malfazejo O que era comum às duas tradições contudo era a unicidade da obra ou em outras palavras sua aura A forma mais primitiva de inserção da obra de arte no contexto da tradição se exprimia no culto As mais antigas obras de arte como sabemos surgiram a serviço de um ritual inicialmente mágico e depois religioso O que é de importância decisiva é que esse modo de ser aurático da obra de arte nunca se destaca completamente de sua função ritual Em outras palavras o valor único da obra de arte autêntica tem sempre um fundamento teológico pois mais remoto que seja ele pode ser reconhecido mesmo nas formas mais profanas do culto do belo Essas formas profanas do culto do belo surgidas na Renascença e vigentes durante três séculos deixaram manifesto esse fundamento Passando do divino ao belo as artes não perderam o que a religião lhes dera a aura Não por acaso o artista foi visto como gênio criador inspirado indivíduo excepcional que cria uma obra excepcional isto é manteve em sua figura o mistério do mágico antigo Arte e Filosofia Do ponto de vista da Filosofia podemos falar em dois grandes momentos de teorização da arte No primeiro inaugurado por Platão e Aristóteles a Filosofia trata as artes sob a forma da poética no segundo a partir do século XVIII sob a forma da estética Marilena Chauí 411 Arte poética é o nome de uma obra aristotélica sobre as artes da fala e da escrita do canto e da dança a poesia e o teatro tragédia e comédia A palavra poética é a tradução para poiesis portanto para fabricação A arte poética estuda as obras de arte como fabricação de seres e gestos artificiais isto é produzidos pelos seres humanos Estética é a tradução da palavra grega aesthesis que significa conhecimento sensorial experiência sensibilidade Foi empregada para referirse às artes pela primeira vez pelo alemão Baumgarten por volta de 1750 Em seu uso inicial referiase ao estudo das obras de arte enquanto criações da sensibilidade tendo como finalidade o belo Pouco a pouco substituiu a noção de arte poética e passou a designar toda investigação filosófica que tenha por objeto as artes ou uma arte Do lado do artista e da obra buscase a realização da beleza do lado do espectador e receptor buscase a reação sob a forma do juízo de gosto do bom gosto A noção de estética quando formulada e desenvolvida nos séculos XVIII e XIX pressupunha 1 que a arte é produto da sensibilidade da imaginação e da inspiração do artista e que sua finalidade é a contemplação 2 que a contemplação do lado do artista é a busca do belo e não do útil nem do agradável ou prazeroso e do lado do público é a avaliação ou o julgamento do valor de beleza atingido pela obra 3 que o belo é diferente do verdadeiro De fato o verdadeiro é o que é conhecido pelo intelecto por meio de demonstrações e provas que permitem deduzir um particular de um universal dedução ou inferir um universal de vários particulares indução por meio de conceitos e leis O belo ao contrário tem a peculiaridade de possuir um valor universal embora a obra de arte seja essencialmente particular Em outras palavras a obra de arte em sua particularidade e singularidade única oferece algo universal a beleza sem necessidade de demonstrações provas inferências e conceitos Quando leio um poema escuto uma sonata ou observo um quadro posso dizer que são belos ou que ali está a beleza embora esteja diante de algo único e incomparável O juízo de gosto teria assim a peculiaridade de emitir um julgamento universal referindose porém a algo singular e particular Desde o início do século passado todavia abandonase a idéia de juízo de gosto como critério de apreciação e avaliação das obras de arte De fato as artes deixaram de ser pensadas exclusivamente do ponto de vista da produção da beleza para serem vistas sob outras perspectivas tais como expressão de emoções e desejos interpretação e crítica da realidade social atividade criadora de procedimentos inéditos para a invenção de objetos artísticos etc Essa mudança Convite à Filosofia 412 fez com que a idéia de gosto e de beleza perdessem o privilégio estético e que a estética se aproximasse cada vez mais da idéia de poética a arte como trabalho e não como contemplação e sensibilidade fantasia e ilusão A estética ou filosofia da arte possui três núcleos principais de investigação a relação entre arte e Natureza arte e humano e finalidadesfunções da arte Relação entre arte e Natureza A primeira e mais antiga relação entre arte e Natureza proposta pela Filosofia foi a da imitação a arte imita a Natureza escreve Aristóteles A obra de arte resulta da atividade do artista para imitar outros seres por meio de sons sentimentos cores formas volumes etc e o valor da obra decorre da habilidade do artista para encontrar materiais e formas adequados para obter o efeito imitativo Evidentemente imitar não significa reproduzir mas representar a realidade através da fantasia e da obediência a regras para que a obra figure algum ser natural ou sobrenatural algum sentimento ou emoção algum fato acontecido ou inventado Harmonia e proporção das formas dos ritmos das cores das palavras ou dos sons oferecem a finalidade a ser alcançada e estabelecem as regras a serem seguidas pelos artistas A partir do Romantismo portanto após quase 23 séculos de definição da arte como imitação a Filosofia passa a definir a obra de arte como criação Enquanto na concepção anterior o valor era buscado na qualidade do objeto imitado imitar um deus é mais valioso do que imitar um humano imitar um humano mais valioso do que imitar um animal planta ou coisa agora o valor é localizado na figura do artista como gênio criador e imaginação criadora Agora a idéia de inspiração tornase explicadora da atividade artística o artista interioridade e subjetividade especial recebe uma espécie de sopro sobrenatural que o impele a criar a obra Esta deve exprimir sentimentos e emoções muito mais do que figurar ou representar a realidade A obra é a exteriorização dos sentimentos interiores do gênio excepcional A arte não imita nem reproduz a Natureza mas libertase dela criando uma realidade puramente humana e espiritual pela atividade livre do artista a fantasia os homens se igualam à ação criadora de Deus Essa concepção é contemporânea na Filosofia à idéia kantiana de diferença entre o reino natural da causalidade necessária e o reino humano da liberdade e dos fins diferença essencial para a ética e à idéia hegeliana do Espírito como Cultura e História oposto e negador da passividade e da causalidade mecânica da Natureza Em suma a estética da criação corresponde ao momento em que a Filosofia separa homem e Natureza A terceira concepção nossa contemporânea concebe a arte como expressão e construção A obra de arte não é pura receptividade imitativa ou reprodutiva Marilena Chauí 413 nem pura criatividade espontânea e livre mas expressão de um sentido novo escondido no mundo e um processo de construção do objeto artístico em que o artista colabora com a Natureza luta com ela ou contra ela separase dela ou volta a ela vence a resistência dela ou dobrase às exigências dela Essa concepção corresponde ao momento da sociedade industrial da técnica transformada em tecnologia e da ciência como construção rigorosa da realidade A arte é trabalho da expressão que constrói um sentido novo a obra e o institui como parte da Cultura O artista é um ser social que busca exprimir seu modo de estar no mundo na companhia dos outros seres humanos reflete sobre a sociedade voltase para ela seja para criticála seja para afirmála seja para superála Essa terceira concepção filosófica da arte coloca o artista num embate contínuo com a Natureza e com a sociedade deixando de vêlo como gênio criador solitário e excepcional Relação entre arte e humano Duas grandes concepções percorrem a história das relações entre arte e humano ambas iniciadas na Grécia com Platão e Aristóteles A concepção platônica que sofrerá alterações no curso da História sociocultural considera a arte uma forma de conhecimento A aristotélica que também sofrerá mudanças no correr da História toma a arte como atividade prática Para Platão a arte se situa no plano mais baixo do conhecimento pois é imitação das coisas sensíveis elas próprias imitações imperfeitas das essências inteligíveis ou idéias Na Renascença porém a concepção platônica é retomada mas com novo sentido afirmase agora que a arte é uma das formas altas de acesso ao conhecimento verdadeiro e ao divino fica abaixo apenas da Filosofia e do êxtase místico Essa mudança se deve ao fato de que a Renascença platônica redescobre os escritos herméticos e de magia natural nos quais se afirma que Deus criou o homem dandolhe a capacidade de criar novos deuses e novos mundos o que ele faz através das artes e estas por sua vez lhe dão o conhecimento das formas secretas e invisíveis das coisas A valorização das artes como expressão do conhecimento encontra seu apogeu durante o Romantismo quando a arte é concebida como o órgão geral da Filosofia sob três aspectos diferentes para alguns a arte é a única via de acesso ao universal e ao absoluto para outros como Hegel as artes são a primeira etapa da vida consciente do Espírito preparando a religião e a Filosofia e outros enfim a concebem como o único caminho para reatar o singular e o universal o particular e o geral pois através da singularidade de uma obra artística temos acesso ao significado universal de alguma realidade Essa última perspectiva é a Convite à Filosofia 414 que encontramos por exemplo no filósofo Martin Heidegger para quem a obra de arte é desvelamento e desvendamento da verdade A concepção aristotélica parte da diferença entre o teórico e o prático decorrente da diferença entre o necessário e o possível tomando a arte como atividade prática fabricadora Essa concepção mantida durante séculos e rivalizando com as variantes platônicas recebe duas grandes contribuições no século XIX a dos que afirmam a utilidade social das artes particularmente a arquitetura e a dos que afirmam o caráter lúdico das artes como Nietzsche para quem a arte é jogo liberdade criadora embriaguez e delírio vontade de potência afirmativa da vida é um estado de vigor animal uma exaltação do sentimento da vida e um estimulante da vida Fantasia jogo sabedoria oculta desejo explosão vital afirmação da vida acesso ao verdadeiro eis algumas maneiras pela quais a estética concebe a atividade artística Finalidadesfunções da arte Duas concepções predominam no correr da História das artes concernentes às finalidades e às funções da atividade artística a concepção pedagógica e a expressiva A concepção pedagógica encontra sua primeira formulação em Platão e Aristóteles Na República expondo a pedagogia para a criação da cidade perfeita Platão exclui poetas pintores e escultores porque imitam as coisas sensíveis e oferecem uma imagem desrespeitosa dos deuses tomados pelas paixões humanas porém coloca a dança e a música como disciplinas fundamentais na formação do corpo e da alma isto é do caráter das crianças e dos adolescentes Como para Platão gramática estratégia aritmética geometria e astronomia são artes seu ensino é considerado indispensável na formação dos guerreiros e acrescentadas da arte dialética na formação dos filósofos Aristóteles na Arte poética desenvolve longamente o papel pedagógico das artes particularmente a tragédia que segundo o filósofo tem a função de produzir a catarse isto é a purificação espiritual dos espectadores comovidos e apavorados com a fúria o horror e as conseqüências das paixões que movem as personagens trágicas Essa função catártica é atribuída sobretudo à música Na Arte poética Aristóteles escreve A música não deve ser praticada por um só tipo de benefício que dela pode derivar mas por usos múltiplos já que pode servir para a educação para proporcionar a catarse e em terceiro lugar para o repouso da alma e a suspensão de suas fadigas Ecoando as palavras de Aristóteles lemos em O mercador de Veneza de Shakespeare Marilena Chauí 415 Todo homem que em si não traga música E a quem não toquem doces sons concordes É de traições pilhagens armadilhas Seu espírito vive em noite obscura Seus afetos são negros como o Érebo Não se confie em homem tal A concepção pedagógica da arte reaparece em Kant quando afirma que a função mais alta da arte é produzir o sentimento do sublime isto é a elevação e o arrebatamento de nosso espírito diante da beleza como algo terrível espantoso aproximação do infinito Também Hegel insiste no papel educativo da arte A pedagogia artística se efetua sob duas modalidades sucessivas na primeira a arte é o meio para a educação moral da sociedade como Aristóteles havia mostrado a respeito da tragédia na segunda pela maneira como destrói a brutalidade da matéria impondolhe a pureza da forma educa a sociedade para passar do artístico à espiritualidade da religião isto é para passar da religião da exterioridade os deuses e espíritos estão visíveis na Natureza à religião da interioridade o Absoluto é a razão e a verdade Por estabelecer uma relação intrínseca entre arte e sociedade o pensamento estético de esquerda também atribui finalidade pedagógica às artes dandolhe a tarefa de crítica social e política interpretação do presente e imaginação da sociedade futura A arte deve ser engajada ou comprometida isto é estar a serviço da emancipação do gênero humano oferecendose como instrumento do esforço de libertação Essa posição foi defendida pelo teatro de Brecht e no Brasil pelo de Augusto Boal pela poesia de Maiakovski e Pablo Neruda e no Brasil pela de Ferreira Gullar e José Paulo Paes pelo romance de Sartre e no Brasil pelo de Graciliano Ramos pelo cinema de Eisenstein e Chaplin e no Brasil pelo Cinema Novo pela pintura de Picasso e no Brasil pela de Portinari na música a música popular dos anos 60 e 70 foi de protesto político com Edu Lobo Chico Buarque Caetano Veloso Gilberto Gil Geraldo Vandré Milton Nascimento entre outros Numa outra perspectiva a arte é concebida como expressão transformando num fim aquilo que para as outras atividades humanas é um meio É assim que se diz que a arte faz ver a visão faz falar a linguagem faz ouvir a audição faz sentir as mãos e o corpo faz emergir o natural da Natureza o cultural da Cultura Aqui a arte é revelação e manifestação da essência da realidade amortecida e esquecida em nossa existência cotidiana reduzida a conceitos nas ciências e na Filosofia transformada em instrumento na técnica e na economia Foi com essa concepção que abrimos este capítulo Como expressão as artes transfiguram a realidade para que tenhamos acesso verdadeiro a ela Desequilibra o instituído e o estabelecido descentra formas e palavras retirandoas do contexto costumeiro para fazernos conhecêlas numa Convite à Filosofia 416 outra dimensão instituinte ou criadora A arte inventa um mundo de cores formas volumes massas sons gestos texturas ritmos palavras para nos dar a conhecer nosso próprio mundo Por ser expressiva é alegórica e simbólica A palavra alegoria vem do grego significando falar de outra coisa ou falar de uma coisa por meio de outra Essa outra coisa é o símbolo Assim a balança e a estátua de olhos vendados são símbolos da justiça a pomba do Espírito Santo a bandeira vermelha da revolução O símbolo em grego é o que une junta sintetiza numa unidade os diferentes dandolhes um sentido único e novo que não possuíam quando separados A obra de arte é essa unidade simbólica e alegórica que nos abre o acesso ao verdadeiro ao sublime ao terrível ao belo à dor e ao prazer Um quadro como a Guernica de Picasso é uma síntese poderosa de todas essas dimensões da expressão A arte como expressão não é apenas alegoria e símbolo É algo mais profundo pois procura exprimir o mundo através do artista Ao fazêlo levanos a descobrir o sentido da Cultura e da História Tomemos a literatura por exemplo embora se pudesse tomar qualquer uma das artes para expor o significado da atividade expressiva Quando um poeta ou um romancista escrevem trabalham à maneira do tecelão Este trabalha com fios e pelo avesso mas produz do outro lado uma tapeçaria isto é desenho cor forma e figura O escritor trabalha apenas com palavras com a materialidade de sinais gráficos mas o livro poema ou romance conto ou novela é imaterial é puro sentido pura significação a tal ponto que quando acabamos de lêlo temos o sentimento de que houve uma comunicação entre nosso espírito e o do escritor sem palavras Assim a primeira revelação que a literatura nos traz é a do mundo da linguagem como materialidade sonora e gráfica que é e faz sentido e este é imaterial mas não pode existir sem a materialidade das palavras Do mesmo modo um quadro não é senão tinta traço cor contornos e no entanto quando o vemos não olhamos essa materialidade e sim o mundo de significações ali expresso e que não poderia exprimirse sem aquela materialidade que o tornou possível O escritor exprime algo novo como vimos na abertura deste capítulo porque descentra desequilibra torce e deforma o sentido das palavras dandolhes um outro inteiramente novo Com isso uma segunda revelação é trazida pela literatura a diferença entre linguagem instituída aquela que usamos todos os dias e que constitui o repertório de sinais sonoros e gráficos com que indicamos e denotamos as coisas e linguagem instituinte ou expressiva isto é a linguagem nova que foi criada pela ação do escritor O mesmo poderia ser mostrado em cada uma das artes pois em todas elas o momento fundamental o instante expressivo é instituinte do novo Marilena Chauí 417 Realizada a obra o instituinte ela passa graças aos leitores espectadores ouvintes a fazer parte da cultura existente tornandose instituída Dessa maneira a obra de arte nos traz uma terceira revelação Mostra que a Cultura é um movimento contínuo em que o instituído é descentrado desequilibrado deformado modificado pelo novo que a seguir graças aos destinatários da obra o seu público é depositado e sedimentado como parte do instituído ficando disponível para todos como algo que é integrante de sua Cultura Esse duplo movimento do instituído ao instituinte e deste para aquele assinala que a obra de arte expressiva é interminável De fato cada artista para exprimir se retoma as obras dos outros e as suas próprias para produzir uma obra nova que por sua vez será retomada por outros para novas expressões Um artista supera e ultrapassa outros porque os retoma e os transforma fazendo vir à expressão aquilo que outros prepararam para ele Cada obra de arte parte de um duplo ponto de partida do desejo do artista de exprimir alguma coisa que ainda não sabe bem o que é e que somente a obra realizada lhe dirá e do excesso de significações que as outras obras possuem e que elas próprias não chegaram a exprimir excesso que só existe porque tais obras existem e o fizeram aparecer Assim a obra de arte nos traz uma última revelação mostra que a História é o movimento incessante no qual o presente o artista trabalhando retoma o passado o trabalho dos outros e abre o futuro a nova obra instituinte Arte e sociedade Se acompanharmos as transformações sofridas pelas artes passando da função religiosa à autonomia da obra de arte como criação e expressão veremos que as mudanças foram de dois tipos De um lado mudanças quanto ao fazer artístico diferenciandose em escolas de arte ou estilos artísticos clássico gótico renascentista barroco rococó romântico impressionista realista expressionista abstrato construtivista surrealista etc Essas mudanças concernem à concepção do objeto artístico às relações entre matéria e forma às técnicas de elaboração dos materiais à relação com o público ao lugar ocupado por uma arte no interior das demais e servindo de padrão a elas às descobertas de procedimentos e materiais novos etc De outro lado porém concernem à determinação social da atividade artística seja do ponto de vista da finalidade social das obras por exemplo o culto religioso ou o mercado de arte do lugar ocupado pelo artista por exemplo iniciado numa seita secreta financiado por um mecenas renascentista profissional liberal ligado ao mercado de arte etc das condições de recepção da obra de arte a comunidade de fiéis a elite cultivada e economicamente poderosa as classes populares a massa etc Convite à Filosofia 418 A discussão sobre a relação artesociedade levou a duas atitudes filosóficas opostas A primeira afirma que a arte só é arte se for pura isto é se não estiver preocupada com as circunstâncias históricas sociais econômicas e políticas Tratase da defesa da arte pela arte A segunda afirma que o valor da obra de arte decorre de seu compromisso crítico diante das circunstâncias presentes Tratase da arte engajada na qual o artista toma posição diante de sua sociedade lutando para transformála e melhorála e para conscientizar as pessoas sobre as injustiças e as opressões do presente As duas concepções são problemáticas A primeira porque imagina o artista e a obra de arte como desprovidos de raízes no mundo e livres das influências da sociedade sobre eles o que é impossível A segunda porque corre o risco de sacrificar o trabalho artístico em nome das mensagens que a obra deve enviar à sociedade para mudála dando ao artista o papel de consciência crítica do povo oprimido A primeira concepção desemboca no chamado formalismo é a perfeição da forma que conta e não o conteúdo da obra A segunda no conteudismo é a mensagem que conta mesmo que a forma da obra seja precária descuidada repetitiva e sem força inovadora Numa perspectiva diferente na qual se deixa de lado a querela do formalismo puro e do conteudismo engajado Walter Benjamin analisou o modo de relação entre arte e sociedade na sociedade capitalista tecnológica contemporânea Benjamin tomou como referencial a destruição da aura pela reprodução técnica das obras de arte No ensaio já mencionado escreve ele é fácil identificar os fatores sociais específicos que condicionam o declínio atual da aura Ele deriva de duas circunstâncias estreitamente ligadas à crescente difusão e intensidade dos movimentos de massas Fazer as coisas ficarem mais próximas é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos através da sua reprodutibilidade Cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o objeto tão perto quanto possível na imagem ou antes na sua cópia na sua reprodução Cada dia fica mais nítida a diferença entre a reprodução como ela nos é oferecida pelas revistas ilustradas e pelas atualidades cinematográficas e a imagem Nesta a unidade e a durabilidade se associam tão intimamente como na reprodução a transitoriedade e a repetitividade Retirar o objeto do seu invólucro destruir sua aura é a característica de uma forma de percepção cuja capacidade de captar o semelhante no mundo é tão aguda que graças à reprodução ela consegue captálo até no fenômeno único Marilena Chauí 419 Assim se manifesta na esfera sensorial a tendência que na esfera teórica explica a importância crescente da estatística Orientar a realidade em função das massas e as massas em função da realidade é um processo de imenso alcance tanto para o pensamento como para a intuição Evidentemente diz Benjamin a arte sempre foi reprodutível bastando ver discípulos imitando os mestres A questão portanto não está no fato da reprodução e sim na nova modalidade de reproduzir a reprodução técnica que permite a existência do objeto artístico em série e em certos casos como na fotografia no disco e no cinema tornando impossível distinguir original e cópia isto é desfazendo as próprias idéias de original e cópia Prossegue o filósofo a reprodução técnica da obra de arte representa um processo novo que se vem desenvolvendo na História intermitentemente através de saltos separados por longos intervalos mas com intensidade crescente Com a xilogravura o desenho tornouse pela primeira vez tecnicamente reprodutível muito antes que a imprensa prestasse o mesmo serviço para a palavra escrita Conhecemos as gigantescas transformações provocadas pela imprensa a reprodução técnica da escrita Mas a imprensa representa apenas um caso especial embora de importância decisiva de um processo histórico mais amplo À xilogravura na Idade Média seguemse a estampa em chapa de cobre e a águaforte assim como a litografia no início do século XIX Com a litografia a técnica de reprodução atinge uma etapa essencialmente nova Esse procedimento muito mais preciso que distingue a transcrição do desenho numa pedra de sua incisão sobre um bloco de madeira ou uma prancha de cobre permitiu às artes gráficas pela primeira vez colocar no mercado suas produções não somente em massa como já acontecia antes mas também sob a forma de criações sempre novas Dessa forma as artes gráficas adquiriram os meios de ilustrar a vida cotidiana Graças à litografia elas começaram a situarse no mesmo nível que a imprensa Mas a litografia ainda estava em seus primórdios quando foi ultrapassada pela fotografia Pela primeira vez no processo de reprodução da imagem a mão foi liberada das responsabilidades artísticas mais importantes que agora cabiam unicamente ao olho Como o olho apreende mais depressa do que a mão desenha o processo de reprodução das imagens experimentou tal aceleração que começou a situarse no mesmo nível que a palavra oral Se o jornal ilustrado estava contido virtualmente na litografia o cinema falado estava virtualmente contido na fotografia A reprodução técnica do Convite à Filosofia 420 som iniciouse no fim do século XIX Com ela a reprodução técnica atingiu tal padrão de qualidade que ela não somente podia transformar em seus objetos a totalidade das obras de arte tradicionais submetendoas a transformações profundas como conquistar para si um lugar próprio entre os procedimentos artísticos A destruição da aura está prefigurada na própria essência da obra de arte como algo possível porque ela possui dois valores o de culto e o de exposição e este último suscita a reprodutibilidade quando as condições sóciohistóricos a exigirem e a possibilitarem Benjamin diz ainda Seria possível reconstituir a História da arte a partir do confronto de dois pólos no interior da própria obra de arte e ver o conteúdo dessa História na variação do peso conferido seja a um pólo seja a outro Os dois pólos são o valor de culto da obra e seu valor de exposição A reprodução artística começa com imagens a serviço da magia O que importa nessas imagens é que existem e não que sejam vistas O alce copiado pelo homem paleolítico nas paredes de sua caverna é um instrumento de magia só ocasionalmente exposto aos olhos dos outros homens no máximo ele deve ser visto pelos espíritos O valor de culto como tal quase obriga a manter secretas as obras de artes certas estátuas divinas somente são acessíveis ao sumo sacerdote na cella certas madonas permanecem cobertas quase o ano inteiro certas esculturas em catedrais da Idade Média são invisíveis do solo para o observador À medida que as obras de arte se emancipam do seu uso ritual aumentam as ocasiões para que sejam expostas A exponibilidade de um busto que pode ser deslocado de um lugar para outro é maior que a de uma estátua divina que tem sua sede fixa no interior de um templo A exponibilidade de um quadro é maior que a de um mosaico ou de um afresco que o precederam E se a exponibilidade de uma missa por sua própria natureza não era talvez menor que a de uma sinfonia esta surgiu num momento em que sua exponibilidade prometia ser maior que a da missa A exponibilidade de uma obra de arte cresceu em tal escala com os vários métodos de sua reprodutibilidade técnica que a mudança de ênfase de um pólo para outro corresponde a uma mudança qualitativa comparável à que ocorreu na préHistória Com efeito assim como na préHistória a preponderância absoluta do valor de culto conferido à obra levoua a ser concebida em primeiro lugar como instrumento mágico e só mais tarde como obra de arte do mesmo modo a preponderância absoluta conferida hoje a seu valor de exposição atribuilhe funções inteiramente novas entre as quais a artística a única de que temos consciência e que talvez se revele mais tarde como secundária Marilena Chauí 421 Uma coisa é certa o cinema nos fornece a base mais útil para examinar essa questão É certo também que o alcance histórico dessa refuncionalização da arte especialmente visível no cinema permite um confronto com a arte da préHistória não só do ponto de vista metodológico como material Essa arte registrava certas imagens a serviço da magia com funções práticas seja como execução de atividades mágicas seja a título de ensinamento dessas práticas mágicas seja como objeto de contemplação à qual se atribuíram efeitos mágicos Os temas eram o homem e seu meio copiados segundo as exigências de uma sociedade cuja técnica se fundia inteiramente com o ritual Essa sociedade é a antítese da nossa cuja técnica é a mais emancipada que jamais existiu Mas essa técnica emancipada se confronta com a sociedade moderna sob a forma de uma segunda natureza não menos elementar que a da sociedade primitiva como provam as guerras e as crises econômicas Diante dessa segunda natureza que o homem inventou mas há muito não controla somos obrigados a aprender como outrora diante da primeira Mais uma vez a arte põese a serviço desse aprendizado Isso se aplica em primeira instância ao cinema O filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada ve z mais em sua vida cotidiana Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo o objeto das inervações humanas é essa tarefa histórica cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro sentido Ao escrever sobre a mudança das artes nos anos 30 Benjamin tinha presente uma realidade e uma esperança A realidade era o nazifascismo e a guerra a esperança a revolução socialista A primeira havia transformado a política e a guerra em espetáculos artísticos Benjamin fala na estetização da política e da guerra transformadas em obras de arte pela propaganda e pelos grandes espetáculos de massa nos quais jogos paradas militares danças ginástica discursos políticos e música formavam um conjunto ou uma totalidade visando a tocar fundo nas emoções e paixões mais primitivas da sociedade Nessa perspectiva a reprodutibilidade técnica das artes estava a serviço da propaganda de mobilização totalitária das classes sociais em torno do grande chefe Ao contrário a esperança na revolução socialista como emancipação do gênero humano levava Benjamin a considerar favoravelmente a perda da aura e a reprodutibilidade da obra de arte como processo de democratização da Cultura como direito de acesso às obras artísticas por toda a sociedade e especialmente pelos trabalhadores Em lugar de a arte ser um privilégio de uma elite seria um direito universal A esperança de Walter Benjamin malogrou Embora o nazifascismo houvesse terminado com o final da Segunda Guerra Mundial a massificação Convite à Filosofia 422 propagandística da arte não terminou com ele foi incorporada pelo stalinismo que desfigurou e destruiu qualquer esperança socialista e pela indústria cultural dos países capitalistas Surgia a cultura de massas Indústria cultural e cultura de massa A modernidade terminou um processo que a Filosofia começara desde a Grécia o desencantamento do mundo isto é a passagem do mito à razão da magia à ciência e à lógica Esse processo liberou as artes da função e finalidade religiosas dandolhes autonomia No entanto a partir da segunda revolução industrial no século XIX e prosseguindo no que se denomina agora sociedade pósindustrial ou pósmoderna iniciada nos anos 70 do século passado as artes foram submetidas a uma nova servidão as regras do mercado capitalista e a ideologia da indústria cultural baseada na idéia e na prática do consumo de produtos culturais fabricados em série As obras de arte são mercadorias como tudo o que existe no capitalismo Perdida a aura a arte não se democratizou massificouse para consumo rápido no mercado da moda e nos meios de comunicação de massa transformandose em propaganda e publicidade sinal de status social prestígio político e controle cultural Sob os efeitos da massificação da indústria e consumo culturais as artes correm o risco de perder três de suas principais características 1 de expressivas tornaremse reprodutivas e repetitivas 2 de trabalho da criação tornaremse eventos para consumo 3 de experimentação do novo tornaremse consagração do consagrado pela moda e pelo consumo A arte possui intrinsecamente valor de exposição ou exponibilidade isto é existe para ser contemplada e fruída É essencialmente espetáculo palavra que vem do latim e significa dado à visibilidade No entanto sob o controle econômico e ideológico das empresas de produção artística a arte se transformou em seu oposto é um evento para tornar invisível a realidade e o próprio trabalho criador das obras É algo para ser consumido e não para ser conhecido fruído e superado por novas obras As obras de arte e de pensamento poderiam democratizarse com os novos meios de comunicação pois todos poderiam em princípio ter acesso a elas conhecê las incorporálas em suas vidas criticálas e os artistas e pensadores poderiam superálas em outras novas A democratização da cultura tem como precondição a idéia de que os bens culturais no sentido restrito de obras de arte e de pensamento e não no sentido antropológico amplo que apresentamos no estudo sobre a idéia de Cultura são direito de todos e não privilégio de alguns Democracia cultural significa direito Marilena Chauí 423 de acesso e de fruição das obras culturais direito à informação e à formação culturais direito à produção cultural Ora a indústria cultural acarreta o resultado oposto ao massificar a Cultura Por quê Em primeiro lugar porque separa os bens culturais pelo seu suposto valor de mercado há obras caras e raras destinadas aos privilegiados que podem pagar por elas formando uma elite cultural e há obras baratas e comuns destinadas à massa Assim em vez de garantir o mesmo direito de todos à totalidade da produção cultural a indústria cultural introduz a divisão social entre elite culta e massa inculta O que é a massa É um agregado sem forma sem rosto sem identidade e sem pleno direito à Cultura Em segundo lugar porque cria a ilusão de que todos têm acesso aos mesmos bens culturais cada um escolhendo livremente o que deseja como o consumidor num supermercado No entanto basta darmos atenção aos horários dos programas de rádio e televisão ou ao que é vendido nas bancas de jornais e revistas para vermos que através dos preços as empresas de divulgação cultural já selecionaram de antemão o que cada grupo social pode e deve ouvir ver ou ler No caso dos jornais e revistas por exemplo a qualidade do papel a qualidade gráfica de letras e imagens o tipo de manchete e de matéria publicada definem o consumidor e determinam o conteúdo daquilo a que terá acesso e tipo de informação que poderá receber Se compararmos numa manhã cinco ou seis jornais perceberemos que o mesmo mundo este no qual todos vivemos transformase em cinco ou seis mundos diferentes ou mesmo opostos pois um mesmo acontecimento recebe cinco ou seis tratamentos diversos em função do leitor que a empresa jornalística pretende atingir Em terceiro lugar porque inventa uma figura chamada espectador médio ouvinte médio e leitor médio aos quais são atribuídas certas capacidades mentais médias certos conhecimentos médios e certos gostos médios oferecendolhes produtos culturais médios Que significa isso A indústria cultural vende Cultura Para vendêla deve seduzir e agradar o consumidor Para seduzilo e agradálo não pode chocálo provocálo fazêlo pensar fazêlo ter informações novas que o perturbem mas deve devolverlhe com nova aparência o que ele já sabe já viu já fez A média é o senso comum cristalizado que a indústria cultural devolve com cara de coisa nova Em quarto lugar porque define a Cultura como lazer e entretenimento diversão e distração de modo que tudo o que nas obras de arte e de pensamento significa trabalho da sensibilidade da imaginação da inteligência da reflexão e da crítica não tem interesse não vende Massificar é assim banalizar a expressão artística e intelectual Em lugar de difundir e divulgar a Cultura despertando Convite à Filosofia 424 interesse por ela a indústria cultural realiza a vulgarização das artes e dos conhecimentos Os meios de comunicação Dos meios de comunicação sem dúvida o rádio e a televisão manifestam mais do que todos os outros esses traços da indústria cultural Começam introduzindo duas divisões a dos públicos as chamadas classes A B C e D e a dos horários a programação se organiza em horários específicos que combinam a classe a ocupação donasdecasa trabalhadores manuais profissionais liberais executivos a idade crianças adolescentes adultos e o sexo Essa divisão é feita para atender às exigências dos patrocinadores que financiam os programas em vista dos consumidores potenciais de seus produtos e portanto criam a especificação do conteúdo e do horário de cada programa Em outras palavras o conteúdo a forma e o horário do programa já trazem em seu próprio interior a marca do patrocinador Muitas vezes o patrocinador financia um programa que nada tem a ver diretamente com o conteúdo e a forma veiculados Ele o faz porque nesse caso não está vendendo um produto mas a imagem de sua empresa É assim por exemplo que uma empresa de cosméticos pode em lugar de patrocinar um programa feminino patrocinar concertos de música clássica uma revendedora de motocicletas em lugar de patrocinar um programa para adolescentes pode patrocinar um programa sobre ecologia A figura do patrocinador determina o conteúdo e a forma de outros programas ainda que não patrocinados por ele Por exemplo um banco de um governo estadual pode patrocinar um programa de auditório pois isto é conveniente para atrair clientes mas pode indiretamente influenciar o conteúdo veiculado pelos noticiários Por quê Porque a quantidade de dinheiro paga pelo banco à rádio ou à televisão para o programa de auditório é muito elevada e interessa aos proprietários daquela rádio ou televisão Se o noticiário apresentar notícias desfavoráveis ao governo do Estado ao qual pertence o banco este pode suspender o patrocínio do programa de auditório Para não perder o cliente a emissora de rádio ou de televisão não veicula notícias desfavoráveis àquele governo e pior veicula apenas as que lhe são favoráveis Dessa maneira o direito à informação desaparece e os ouvintes ou telespectadores são desinformados ou ficam mal informados A desinformação aliás é o principal resultado da maioria dos noticiários de rádio e televisão Com efeito como são apresentadas as notícias De modo geral são apresentadas de maneira a impedir que o ouvinte e o espectador possam localizá la no espaço e no tempo Marilena Chauí 425 Falta de localização espacial o espaço real é o aparelho de rádio e a tela da televisão que tem a peculiaridade de retirar as diferenças e distâncias geográficas de tal modo que algo acontecido na China na Índia nos Estados Unidos ou em Campina Grande pareça igualmente próximo e igualmente distante Falta de localização temporal os acontecimentos são relatados como se não tivessem causas passadas nem efeitos futuros surgem como pontos puramente atuais ou presentes sem continuidade no tempo sem origem e sem conseqüências existem enquanto forem objetos de transmissão e deixam de existir se não forem transmitidos Paradoxalmente rádio e televisão podem oferecernos o mundo inteiro num instante mas o fazem de tal maneira que o mundo real desaparece restando apenas retalhos fragmentados de uma realidade desprovida de raiz no espaço e no tempo Nada sabemos depois de termos tido a ilusão de que fomos informados sobre tudo Também é interessante a inversão entre realidade e ficção produzida pela mídia Acabamos de mencionar o modo como o noticiário nos apresenta um mundo irreal sem História sem causas nem conseqüências descontínuo e fragmentado Em contrapartida as novelas criam o sentimento de realidade Elas o fazem usando três procedimentos principais 1 o tempo dos acontecimentos novelísticos é lento para dar a ilusão de que a cada capítulo passouse apenas um dia de nossa vida ou passaramse algumas horas tais como realmente passariam se fôssemos nós a viver os acontecimentos narrados 2 os personagens seus hábitos sua linguagem suas casas suas roupas seus objetos são apresentados com o máximo de realismo possível de modo a impedir que tenhamos distância diante deles ao contrário do cinema e do teatro que suscitam em nós o sentimento de proximidade justamente porque nos fazem experimentar o da distância 3 como conseqüência a novela nos aparece como relato do real enquanto o noticiário nos aparece como irreal Basta ver por exemplo a reação de cidades inteiras quando uma personagem da novela morre as pessoas choram querem ir ao enterro ficam de luto e a falta de reação das pessoas diante de chacinas reais apresentadas nos noticiários Vale a pena também mencionar dois outros efeitos que a mídia produz em nossas mentes a dispersão da atenção e a infantilização Para atender aos interesses econômicos dos patrocinadores a mídia divide a programação em blocos que duram de sete a dez minutos cada bloco sendo interrompido pelos comerciais Essa divisão do tempo nos leva a concentrar a Convite à Filosofia 426 atenção durante os sete ou dez minutos de programa e a desconcentrála durante as pausas para a publicidade Pouco a pouco isso se torna um hábito Artistas de teatro afirmam que durante um espetáculo sentem o público ficar desatento a cada sete minutos Professores observam que seus alunos perdem a atenção a cada dez minutos e só voltam a se concentrar após uma pausa que dão a si mesmos como se dividissem a aula em programa e comercial Ora um dos resultados dessa mudança mental transparece quando criança e jovem tentam ler um livro não conseguem ler mais do que sete a dez minutos de cada vez não conseguem suportar a ausência de imagens e ilustrações no texto não suportam a idéia de precisar ler um livro inteiro A atenção e a concentração a capacidade de abstração intelectual e de exercício do pensamento foram destruídas Como esperar que possam desejar e interessarse pelas obras de arte e de pensamento Por ser um ramo da indústria cultural e portanto por ser fundamentalmente uma vendedora de Cultura que precisa agradar o consumidor a mídia infantiliza Como isso acontece Uma pessoa criança ou não é infantil quando não consegue suportar a distância temporal entre seu desejo e a satisfação dele A criança é infantil justamente porque para ela o intervalo entre o desejo e a satisfação é intolerável por isso a criança pequenina chora tanto Ora o que faz a mídia Promete e oferece gratificação instantânea Como o consegue Criando em nós os desejos e oferecendo produtos publicidade e programação para satisfazêlos O ouvinte que gira o dial do aparelho de rádio continuamente e o telespectador que muda continuamente de canal o fazem porque sabem que em algum lugar seu desejo será imediatamente satisfeito Além disso como a programação se dirige ao que já sabemos e já gostamos e como toma a cultura sob a forma de lazer e entretenimento a mídia satisfaz imediatamente nossos desejos porque não exige de nós atenção pensamento reflexão crítica perturbação de nossa sensibilidade e de nossa fantasia Em suma não nos pede o que as obras de arte e de pensamento nos pedem trabalho sensorial e mental para compreendêlas amálas criticálas superálas A Cultura nos satisfaz se tivermos paciência para compreendêla e decifrála Exige maturidade A mídia nos satisfaz porque nada nos pede senão que permaneçamos sempre infantis Um último traço da indústria cultural que merece nossa atenção é seu autoritarismo sob a aparência de democracia Um dos melhores exemplos encontrase nos programas de aconselhamento Um especialista é sempre um especialista nos ensina a viver um outro nos ensina a criar os filhos outro nos ensina a fazer sexo e assim vão se sucedendo especialistas que nos ensinam a ter um corpo juvenil e saudável boas maneiras jardinagem meditação espiritual Marilena Chauí 427 enfim não há um único aspecto de nossa existência que deixe de ser ensinado por um especialista competente Em princípio seria absurdo e injusto considerar tais ensinamentos como autoritários Pelo contrário deveríamos considerálos uma forma de democratizar e sociabilizar conhecimentos Onde se encontra o lado autoritário desse tipo de programação no rádio e na televisão e de publicação no caso de jornais revistas e livros No fato de que funcionam como intimidação social De fato como a mídia nos infantiliza diminui nossa atenção e capacidade de pensamento inverte realidade e ficção e promete por meio da publicidade colocar a felicidade imediatamente ao alcance de nossas mãos transformanos num público dócil e passivo Uma vez que nos tornamos dóceis e passivos os programas de aconselhamento longe de divulgar informações como parece ser a intenção generosa dos especialistas tornase um processo de inculcação de valores hábitos comportamentos e idéias pois não estamos preparados para pensar avaliar e julgar o que vemos ouvimos e lemos Por isso ficamos intimidados isto é passamos a considerar que nada sabemos que somos incompetentes para viver e agir se não seguirmos a autoridade competente do especialista Dessa maneira um conjunto de programas e publicações que poderiam ter verdadeiro significado cultural tornamse o contrário da Cultura e de sua democratização pois se dirigem a um público transformado em massa inculta desinformada e passiva Cinema e televisão Como a televisão o cinema é uma indústria Como ela depende de investimentos mercados propaganda Como ela preocupase com o lucro a moda o consumo No entanto independentemente da boa ou má qualidade dos filmes o cinema difere da televisão em um aspecto fundamental A televisão é um meio técnico de comunicação à distância que empresta do jornalismo a idéia de reportagem e notícia da literatura a idéia do folhetim novelesco do teatro a idéia de relação com um público presente e do cinema os procedimentos com imagens Do ponto de vista do receptor o aparelho televisor é um eletrodoméstico como o liquidificador ou a geladeira O cinema é a forma contemporânea da arte a da imagem sonora em movimento Nele a câmera capta uma sociedade complexa múltipla e diferenciada combinando de maneira totalmente nova música dança literatura escultura pintura arquitetura história e pelos efeitos especiais criando realidades novas insólitas numa imaginação plástica infinita que só tem correspondência nos sonhos Convite à Filosofia 428 Como o livro o cinema tem o poder extraordinário próprio da obra de arte de tornar presente o ausente próximo o distante distante o próximo entrecruzando realidade e irrealidade verdade e fantasia reflexão e devaneio Nele a criatividade do diretor e a expressividade dramática ou cômica do intérprete pode manifestarse e oferecerse plenamente ao público sem distinção étnica sexual religiosa ou social Apesar dos pesares Benjamin tinha razão ao considerar o cinema a arte democrática do nosso tempo Marilena Chauí 429 Capítulo 4 A existência ética Senso moral e consciência moral Muitas vezes tomamos conhecimento de movimentos nacionais e internacionais de luta contra a fome Ficamos sabendo que em outros países e no nosso milhares de pessoas sobretudo crianças e velhos morrem de penúria e inanição Sentimos piedade Sentimos indignação diante de tamanha injustiça especialmente quando vemos o desperdício dos que não têm fome e vivem na abundância Sentimos responsabilidade Movidos pela solidariedade participamos de campanhas contra a fome Nossos sentimentos e nossas ações exprimem nosso senso moral Quantas vezes levados por algum impulso incontrolável ou por alguma emoção forte medo orgulho ambição vaidade covardia fazemos alguma coisa de que depois sentimos vergonha remorso culpa Gostaríamos de voltar atrás no tempo e agir de modo diferente Esses sentimentos também exprimem nosso senso moral Em muitas ocasiões ficamos contentes e emocionados diante de uma pessoa cujas palavras e ações manifestam honestidade honradez espírito de justiça altruísmo mesmo quando tudo isso lhe custa sacrifícios Sentimos que há grandeza e dignidade nessa pessoa Temos admiração por ela e desejamos imitá la Tais sentimentos e admiração também exprimem nosso senso moral Não raras vezes somos tomados pelo horror diante da violência chacinas de seres humanos e animais linchamentos assassinatos brutais estupros genocídio torturas e suplícios Com freqüência ficamos indignados ao saber que um inocente foi injustamente acusado e condenado enquanto o verdadeiro culpado permanece impune Sentimos cólera diante do cinismo dos mentirosos dos que usam outras pessoas como instrumento para seus interesses e para conseguir vantagens às custas da boafé de outros Todos esses sentimentos manifestam nosso senso moral Vivemos certas situações ou sabemos que foram vividas por outros como situações de extrema aflição e angústia Assim por exemplo uma pessoa querida com uma doença terminal está viva apenas porque seu corpo está ligado a máquinas que a conservam Suas dores são intoleráveis Inconsciente geme no sofrimento Não seria melhor que descansasse em paz Não seria preferível deixála morrer Podemos desligar os aparelhos Ou não temos o direito de fazê lo Que fazer Qual a ação correta Convite à Filosofia 430 Uma jovem descobre que está grávida Sente que seu corpo e seu espírito ainda não estão preparados para a gravidez Sabe que seu parceiro mesmo que deseje apoiála é tão jovem e despreparado quanto ela e que ambos não terão como se responsabilizar plenamente pela gestação pelo parto e pela criação de um filho Ambos estão desorientados Não sabem se poderão contar com o auxílio de suas famílias se as tiverem Se ela for apenas estudante terá que deixar a escola para trabalhar a fim de pagar o parto e arcar com as despesas da criança Sua vida e seu futuro mudarão para sempre Se trabalha sabe que perderá o emprego porque vive numa sociedade onde os patrões discriminam as mulheres grávidas sobretudo as solteiras Receia não contar com os amigos Ao mesmo tempo porém deseja a criança sonha com ela mas teme darlhe uma vida de miséria e ser injusta com quem não pediu para nascer Pode fazer um aborto Deve fazêlo Um pai de família desempregado com vários filhos pequenos e a esposa doente recebe uma oferta de emprego mas que exige que seja desonesto e cometa irregularidades que beneficiem seu patrão Sabe que o trabalho lhe permitirá sustentar os filhos e pagar o tratamento da esposa Pode aceitar o emprego mesmo sabendo o que será exigido dele Ou deve recusálo e ver os filhos com fome e a mulher morrendo Um rapaz namora há tempos uma moça de quem gosta muito e é por ela correspondido Conhece uma outra Apaixonase perdidamente e é correspondido Ama duas mulheres e ambas o amam Pode ter dois amores simultâneos ou estará traindo a ambos e a si mesmo Deve magoar uma delas e a si mesmo rompendo com uma para ficar com a outra O amor exige uma única pessoa amada ou pode ser múltiplo Que sentirão as duas mulheres se ele lhes contar o que se passa Ou deverá mentir para ambas Que fazer Se enquanto está atormentado pela decisão um conhecido o vê ora com uma das mulheres ora com a outra e conhecendo uma delas deve contar a ela o que viu Em nome da amizade deve falar ou calar Uma mulher vê um roubo Vê uma criança maltrapilha e esfomeada roubar frutas e pães numa mercearia Sabe que o dono da mercearia está passando por muitas dificuldades e que o roubo fará diferença para ele Mas também vê a miséria e a fome da criança Deve denunciála julgando que com isso a criança não se tornará um adulto ladrão e o proprietário da mercearia não terá prejuízo Ou deverá silenciar pois a criança corre o risco de receber punição excessiva ser levada para a polícia ser jogada novamente às ruas e agora revoltada passar do furto ao homicídio Que fazer Situações como essas mais dramáticas ou menos dramáticas surgem sempre em nossas vidas Nossas dúvidas quanto à decisão a tomar não manifestam apenas nosso senso moral mas também põem à prova nossa consciência moral pois exigem que decidamos o que fazer que justifiquemos para nós mesmos e Marilena Chauí 431 para os outros as razões de nossas decisões e que assumamos todas as conseqüências delas porque somos responsáveis por nossas opções Todos os exemplos mencionados indicam que o senso moral e a consciência moral referemse a valores justiça honradez espírito de sacrifício integridade generosidade a sentimentos provocados pelos valores admiração vergonha culpa remorso contentamento cólera amor dúvida medo e a decisões que conduzem a ações com conseqüências para nós e para os outros Embora os conteúdos dos valores variem podemos notar que estão referidos a um valor mais profundo mesmo que apenas subentendido o bom ou o bem Os sentimentos e as ações nascidos de uma opção entre o bom e o mau ou entre o bem e o mal também estão referidos a algo mais profundo e subentendido nosso desejo de afastar a dor e o sofrimento e de alcançar a felicidade seja por ficarmos contentes conosco mesmos seja por recebermos a aprovação dos outros O senso e a consciência moral dizem respeito a valores sentimentos intenções decisões e ações referidos ao bem e ao mal e ao desejo de felicidade Dizem respeito às relações que mantemos com os outros e portanto nascem e existem como parte de nossa vida intersubjetiva Juízo de fato e de valor Se dissermos Está chovendo estaremos enunciando um acontecimento constatado por nós e o juízo proferido é um juízo de fato Se porém falarmos A chuva é boa para as plantas ou A chuva é bela estaremos interpretando e avaliando o acontecimento Nesse caso proferimos um juízo de valor Juízos de fato são aqueles que dizem o que as coisas são como são e por que são Em nossa vida cotidiana mas também na metafísica e nas ciências os juízos de fato estão presentes Diferentemente deles os juízos de valor avaliações sobre coisas pessoas e situações são proferidos na moral nas artes na política na religião Juízos de valor avaliam coisas pessoas ações experiências acontecimentos sentimentos estados de espírito intenções e decisões como bons ou maus desejáveis ou indesejáveis Os juízos éticos de valor são também normativos isto é enunciam normas que determinam o dever ser de nossos sentimentos nossos atos nossos comportamentos São juízos que enunciam obrigações e avaliam intenções e ações segundo o critério do correto e do incorreto Os juízos éticos de valor nos dizem o que são o bem o mal a felicidade Os juízos éticos normativos nos dizem que sentimentos intenções atos e comportamentos devemos ter ou fazer para alcançarmos o bem e a felicidade Enunciam também que atos sentimentos intenções e comportamentos são condenáveis ou incorretos do ponto de vista moral Convite à Filosofia 432 Como se pode observar senso moral e consciência moral são inseparáveis da vida cultural uma vez que esta define para seus membros os valores positivos e negativos que devem respeitar ou detestar Qual a origem da diferença entre os dois tipos de juízos A diferença entre a Natureza e a Cultura A primeira como vimos é constituída por estruturas e processos necessários que existem em si e por si mesmos independentemente de nós a chuva é um fenômeno meteorológico cujas causas e cujos efeitos necessários podemos constatar e explicar Por sua vez a Cultura nasce da maneira como os seres humanos interpretam a si mesmos e suas relações com a Natureza acrescentandolhe sentidos novos intervindo nela alterandoa através do trabalho e da técnica dandolhe valores Dizer que a chuva é boa para as plantas pressupõe a relação cultural dos humanos com a Natureza através da agricultura Considerar a chuva bela pressupõe uma relação valorativa dos humanos com a Natureza percebida como objeto de contemplação Freqüentemente não notamos a origem cultural dos valores éticos do senso moral e da consciência moral porque somos educados cultivados para eles e neles como se fossem naturais ou fáticos existentes em si e por si mesmos Para garantir a manutenção dos padrões morais através do tempo e sua continuidade de geração a geração as sociedades tendem a naturalizálos A naturalização da existência moral esconde portanto o mais importante da ética o fato de ela ser criação históricocultural Ética e violência Quando acompanhamos a história das idéias éticas desde a Antiguidade clássica grecoromana até nossos dias podemos perceber que em seu centro encontra se o problema da violência e dos meios para evitála diminuíla controlála Diferentes formações sociais e culturais instituíram conjuntos de valores éticos como padrões de conduta de relações intersubjetivas e interpessoais de comportamentos sociais que pudessem garantir a integridade física e psíquica de seus membros e a conservação do grupo social Evidentemente as várias culturas e sociedades não definiram e nem definem a violência da mesma maneira mas ao contrário dãolhe conteúdos diferentes segundo os tempos e os lugares No entanto malgrado as diferenças certos aspectos da violência são percebidos da mesma maneira nas várias culturas e sociedades formando o fundo comum contra o qual os valores éticos são erguidos Fundamentalmente a violência é percebida como exercício da força física e da coação psíquica para obrigar alguém a fazer alguma coisa contrária a si contrária aos seus interesses e desejos contrária ao seu corpo e à sua consciência causandolhe danos profundos e irreparáveis como a morte a loucura a autoagressão ou a agressão aos outros Marilena Chauí 433 Quando uma cultura e uma sociedade definem o que entendem por mal crime e vício circunscrevem aquilo que julgam violência contra um indivíduo ou contra o grupo Simultaneamente erguem os valores positivos o bem e a virtude como barreiras éticas contra a violência Em nossa cultura a violência é entendida como o uso da força física e do constrangimento psíquico para obrigar alguém a agir de modo contrário à sua natureza e ao seu ser A violência é a violação da integridade física e psíquica da dignidade humana de alguém Eis por que o assassinato a tortura a injustiça a mentira o estupro a calúnia a máfé o roubo são considerados violência imoralidade e crime Considerando que a humanidade dos humanos reside no fato de serem racionais dotados de vontade livre de capacidade para a comunicação e para a vida em sociedade de capacidade para interagir com a Natureza e com o tempo nossa cultura e sociedade nos definem como sujeitos do conhecimento e da ação localizando a violência em tudo aquilo que reduz um sujeito à condição de objeto Do ponto de vista ético somos pessoas e não podemos ser tratados como coisas Os valores éticos se oferecem portanto como expressão e garantia de nossa condição de sujeitos proibindo moralmente o que nos transforme em coisa usada e manipulada por outros A ética é normativa exatamente por isso suas normas visando impor limites e controles ao risco permanente da violência Os constituintes do campo ético Para que haja conduta ética é preciso que exista o agente consciente isto é aquele que conhece a diferença entre bem e mal certo e errado permitido e proibido virtude e vício A consciência moral não só conhece tais diferenças mas também reconhecese como capaz de julgar o valor dos atos e das condutas e de agir em conformidade com os valores morais sendo por isso responsável por suas ações e seus sentimentos e pelas conseqüências do que faz e sente Consciência e responsabilidade são condições indispensáveis da vida ética A consciência moral manifestase antes de tudo na capacidade para deliberar diante de alternativas possíveis decidindo e escolhendo uma delas antes de lançarse na ação Tem a capacidade para avaliar e pesar as motivações pessoais as exigências feitas pela situação as conseqüências para si e para os outros a conformidade entre meios e fins empregar meios imorais para alcançar fins morais é impossível a obrigação de respeitar o estabelecido ou de transgredilo se o estabelecido for imoral ou injusto A vontade é esse poder deliberativo e decisório do agente moral Para que exerça tal poder sobre o sujeito moral a vontade deve ser livre isto é não pode estar submetida à vontade de um outro nem pode estar submetida aos instintos e às paixões mas ao contrário deve ter poder sobre eles e elas Convite à Filosofia 434 O campo ético é assim constituído pelos valores e pelas obrigações que formam o conteúdo das condutas morais isto é as virtudes Estas são realizadas pelo sujeito moral principal constituinte da existência ética O sujeito ético ou moral isto é a pessoa só pode existir se preencher as seguintes condições ser consciente de si e dos outros isto é ser capaz de reflexão e de reconhecer a existência dos outros como sujeitos éticos iguais a ele ser dotado de vontade isto é de capacidade para controlar e orientar desejos impulsos tendências sentimentos para que estejam em conformidade com a consciência e de capacidade para deliberar e decidir entre várias alternativas possíveis ser responsável isto é reconhecerse como autor da ação avaliar os efeitos e conseqüências dela sobre si e sobre os outros assumila bem como às suas conseqüências respondendo por elas ser livre isto é ser capaz de oferecerse como causa interna de seus sentimentos atitudes e ações por não estar submetido a poderes externos que o forcem e o constranjam a sentir a querer e a fazer alguma coisa A liberdade não é tanto o poder para escolher entre vários possíveis mas o poder para autodeterminarse dando a si mesmo as regras de conduta O campo ético é portanto constituído por dois pólos internamente relacionados o agente ou sujeito moral e os valores morais ou virtudes éticas Do ponto de vista do agente ou sujeito moral a ética faz uma exigência essencial qual seja a diferença entre passividade e atividade Passivo é aquele que se deixa governar e arrastar por seus impulsos inclinações e paixões pelas circunstâncias pela boa ou má sorte pela opinião alheia pelo medo dos outros pela vontade de um outro não exercendo sua própria consciência vontade liberdade e responsabilidade Ao contrário é ativo ou virtuoso aquele que controla interiormente seus impulsos suas inclinações e suas paixões discute consigo mesmo e com os outros o sentido dos valores e dos fins estabelecidos indaga se devem e como devem ser respeitados ou transgredidos por outros valores e fins superiores aos existentes avalia sua capacidade para dar a si mesmo as regras de conduta consulta sua razão e sua vontade antes de agir tem consideração pelos outros sem subordinarse nem submeterse cegamente a eles responde pelo que faz julga suas próprias intenções e recusa a violência contra si e contra os outros Numa palavra é autônomo xii Do ponto de vista dos valores a ética exprime a maneira como a cultura e a sociedade definem para si mesmas o que julgam ser a violência e o crime o mal e o vício e como contrapartida o que consideram ser o bem e a virtude Por Marilena Chauí 435 realizarse como relação intersubjetiva e social a ética não é alheia ou indiferente às condições históricas e políticas econômicas e culturais da ação moral Conseqüentemente embora toda ética seja universal do ponto de vista da sociedade que a institui universal porque seus valores são obrigatórios para todos os seus membros está em relação com o tempo e a História transformandose para responder a exigências novas da sociedade e da Cultura pois somos seres históricos e culturais e nossa ação se desenrola no tempo Além do sujeito ou pessoa moral e dos valores ou fins morais o campo ético é ainda constituído por um outro elemento os meios para que o sujeito realize os fins Costumase dizer que os fins justificam os meios de modo que para alcançar um fim legítimo todos os meios disponíveis são válidos No caso da ética porém essa afirmação deixa de ser óbvia Suponhamos uma sociedade que considere um valor e um fim moral a lealdade entre seus membros baseada na confiança recíproca Isso significa que a mentira a inveja a adulação a máfé a crueldade e o medo deverão estar excluídos da vida moral e ações que os empreguem como meios para alcançar o fim serão imorais No entanto poderia acontecer que para forçar alguém à lealdade seria preciso fazêlo sentir medo da punição pela deslealdade ou seria preciso mentirlhe para que não perdesse a confiança em certas pessoas e continuasse leal a elas Nesses casos o fim a lealdade não justificaria os meios medo e mentira A resposta ética é não Por quê Porque esses meios desrespeitam a consciência e a liberdade da pessoa moral que agiria por coação externa e não por reconhecimento interior e verdadeiro do fim ético No caso da ética portanto nem todos os meios são justificáveis mas apenas aqueles que estão de acordo com os fins da própria ação Em outras palavras fins éticos exigem meios éticos A relação entre meios e fins pressupõe que a pessoa moral não existe como um fato dado mas é instaurada pela vida intersubjetiva e social precisando ser educada para os valores morais e para as virtudes Poderíamos indagar se a educação ética não seria uma violência Em primeiro lugar porque se tal educação visa a transformarnos de passivos em ativos poderíamos perguntar se nossa natureza não seria essencialmente passional e portanto forçarnos à racionalidade ativa não seria um ato de violência contra a nossa natureza espontânea Em segundo lugar porque se a tal educação visa a colocarnos em harmonia e em acordo com os valores de nossa sociedade poderíamos indagar se isso não nos faria submetidos a um poder externo à nossa consciência o poder da moral social Para responder a essas questões precisamos examinar o desenvolvimento das idéias éticas na Filosofia Convite à Filosofia 436 Capítulo 5 A filosofia moral Ética ou filosofia moral Toda cultura e cada sociedade institui uma moral isto é valores concernentes ao bem e ao mal ao permitido e ao proibido e à conduta correta válidos para todos os seus membros Culturas e sociedades fortemente hierarquizadas e com diferenças muito profundas de castas ou de classes podem até mesmo possuir várias morais cada uma delas referida aos valores de uma casta ou de uma classe social No entanto a simples existência da moral não significa a presença explícita de uma ética entendida como filosofia moral isto é uma reflexão que discuta problematize e interprete o significado dos valores morais Podemos dizer a partir dos textos de Platão e de Aristóteles que no Ocidente a ética ou filosofia moral iniciase com Sócrates Percorrendo praças e ruas de Atenas contam Platão e Aristóteles Sócrates perguntava aos atenienses fossem jovens ou velhos o que eram os valores nos quais acreditavam e que respeitavam ao agir Que perguntas Sócrates lhes fazia Indagava O que é a coragem O que é a justiça O que é a piedade O que é a amizade A elas os atenienses respondiam dizendo serem virtudes Sócrates voltava a indagar O que é a virtude Retrucavam os atenienses É agir em conformidade com o bem E Sócrates questionava Que é o bem As perguntas socráticas terminavam sempre por revelar que os atenienses respondiam sem pensar no que diziam Repetiam o que lhes fora ensinado desde a infância Como cada um havia interpretado à sua maneira o que aprendera era comum no diálogo com o filósofo uma pergunta receber respostas diferentes e contraditórias Após um certo tempo de conversa com Sócrates um ateniense viase diante de duas alternativas ou zangarse e ir embora irritado ou reconhecer que não sabia o que imaginava saber dispondose a começar na companhia socrática a busca filosófica da virtude e do bem Por que os atenienses sentiamse embaraçados e mesmo irritados com as perguntas socráticas Por dois motivos principais em primeiro lugar por perceberem que confundiam valores morais com os fatos constatáveis em sua vida cotidiana diziam por exemplo Coragem é o que fez fulano na guerra contra os persas em segundo lugar porque inversamente tomavam os fatos da Marilena Chauí 437 vida cotidiana como se fossem valores morais evidentes diziam por exemplo É certo fazer tal ação porque meus antepassados a fizeram e meus parentes a fazem Em resumo confundiam fatos e valores pois ignoravam as causas ou razões por que valorizavam certas coisas certas pessoas ou certas ações e desprezavam outras embaraçandose ou irritandose quando Sócrates lhes mostrava que estavam confusos Tais confusões porém não eram e não são inexplicáveis Nossos sentimentos nossas condutas nossas ações e nossos comportamentos são modelados pelas condições em que vivemos família classe e grupo social escola religião trabalho circunstâncias políticas etc Somos formados pelos costumes de nossa sociedade que nos educa para respeitarmos e reproduzirmos os valores propostos por ela como bons e portanto como obrigações e deveres Dessa maneira valores e maneiras parecem existir por si e em si mesmos parecem ser naturais e intemporais fatos ou dados com os quais nos relacionamos desde o nosso nascimento somos recompensados quando os seguimos punidos quando os transgredimos Sócrates embaraçava os atenienses porque os forçava a indagar qual a origem e a essência das virtudes valores e obrigações que julgavam praticar ao seguir os costumes de Atenas Como e por que sabiam que uma conduta era boa ou má virtuosa ou viciosa Por que por exemplo a coragem era considerada virtude e a covardia vício Por que valorizavam positivamente a justiça e desvalorizavam a injustiça combatendoa Numa palavra o que eram e o que valiam realmente os costumes que lhes haviam sido ensinados Os costumes porque são anteriores ao nosso nascimento e formam o tecido da sociedade em que vivemos são considerados inquestionáveis e quase sagrados as religiões tendem a mostrálos como tendo sido ordenados pelos deuses na origem dos tempos Ora a palavra costume se diz em grego ethos donde ética e em latim mores donde moral Em outras palavras ética e moral referemse ao conjunto de costumes tradicionais de uma sociedade e que como tais são considerados valores e obrigações para a conduta de seus membros Sócrates indagava o que eram de onde vinham o que valiam tais costumes No entanto a língua grega possui uma outra palavra que infelizmente precisa ser escrita em português com as mesmas letras que a palavra que significa costume ethos Em grego existem duas vogais para pronunciar e grafar nossa vogal e uma vogal breve chamada epsilon e uma vogal longa chamada eta Ethos escrita com a vogal longa ethos com eta significa costume porém escrita com a vogal breve ethos com epsilon significa caráter índole natural temperamento conjunto das disposições físicas e psíquicas de uma pessoa Nesse segundo sentido ethos se refere às características pessoais de cada um que determinam quais virtudes e quais vícios cada um é capaz de praticar Referese portanto ao senso moral e à consciência ética individuais Convite à Filosofia 438 Dirigindose aos atenienses Sócrates lhes perguntava qual o sentido dos costumes estabelecidos ethos com eta os valores éticos ou morais da coletividade transmitidos de geração a geração mas também indagava quais as disposições de caráter ethos com epsilon características pessoais sentimentos atitudes condutas individuais que levavam alguém a respeitar ou a transgredir os valores da cidade e por quê Ao indagar o que são a virtude e o bem Sócrates realiza na verdade duas interrogações Por um lado interroga a sociedade para saber se o que ela costuma ethos com eta considerar virtuoso e bom corresponde efetivamente à virtude e ao bem e por outro lado interroga os indivíduos para saber se ao agir possuem efetivamente consciência do significado e da finalidade de suas ações se seu caráter ou sua índole ethos com epsilon são realmente virtuosos e bons A indagação ética socrática dirigese portanto à sociedade e ao indivíduo As questões socráticas inauguram a ética ou filosofia moral porque definem o campo no qual valores e obrigações morais podem ser estabelecidos ao encontrar seu ponto de partida a consciência do agente moral É sujeito ético moral somente aquele que sabe o que faz conhece as causas e os fins de sua ação o significado de suas intenções e de suas atitudes e a essência dos valores morais Sócrates afirma que apenas o ignorante é vicioso ou incapaz de virtude pois quem sabe o que é o bem não poderá deixar de agir virtuosamente Se devemos a Sócrates o início da filosofia moral devemos a Aristóteles a distinção entre saber teorético e saber prático O saber teorético é o conhecimento de seres e fatos que existem e agem independentemente de nós e sem nossa intervenção ou interferência Temos conhecimento teorético da Natureza O saber prático é o conhecimento daquilo que só existe como conseqüência de nossa ação e portanto depende de nós A ética é um saber prático O saber prático por seu turno distinguese de acordo com a prática considerada como práxis ou como técnica A ética referese à práxis Na práxis o agente a ação e a finalidade do agir são inseparáveis Assim por exemplo dizer a verdade é uma virtude do agente inseparável de sua fala verdadeira e de sua finalidade que é proferir uma verdade Na práxis ética somos aquilo que fazemos e o que fazemos é a finalidade boa ou virtuosa Ao contrário na técnica diz Aristóteles o agente a ação e a finalidade da ação estão separados sendo independentes uns dos outros Um carpinteiro por exemplo ao fazer uma mesa realiza uma ação técnica mas ele próprio não é essa ação nem é a mesa produzida pela ação A técnica tem como finalidade a fabricação de alguma coisa diferente do agente e da ação fabricadora Dessa maneira Aristóteles distingue a ética e a técnica como práticas que diferem pelo modo de relação do agente com a ação e com a finalidade da ação Também devemos a Aristóteles a definição do campo das ações éticas Estas não só são definidas pela virtude pelo bem e pela obrigação mas também pertencem Marilena Chauí 439 àquela esfera da realidade na qual cabem a deliberação e a decisão ou escolha Em outras palavras quando o curso de uma realidade segue leis necessárias e universais não há como nem por que deliberar e escolher pois as coisas acontecerão necessariamente tais como as leis que as regem determinam que devam acontecer Não deliberamos sobre as estações do ano o movimento dos astros a forma dos minerais ou dos vegetais Não deliberamos e nem decidimos sobre aquilo que é regido pela Natureza isto é pela necessidade Mas deliberamos e decidimos sobre tudo aquilo que para ser e acontecer depende de nossa vontade e de nossa ação Não deliberamos e não decidimos sobre o necessário pois o necessário é o que é e o que será sempre independentemente de nós Deliberamos e decidimos sobre o possível isto é sobre aquilo que pode ser ou deixar de ser porque para ser e acontecer depende de nós de nossa vontade e de nossa ação Aristóteles acrescenta à consciência moral trazida por Sócrates a vontade guiada pela razão como o outro elemento fundamental da vida ética A importância dada por Aristóteles à vontade racional à deliberação e à escolha o levou a considerar uma virtude como condição de todas as outras e presente em todas elas a prudência ou sabedoria prática O prudente é aquele que em todas as situações é capaz de julgar e avaliar qual a atitude e qual a ação que melhor realizarão a finalidade ética ou seja entre as várias escolhas possíveis qual a mais adequada para que o agente seja virtuoso e realize o que é bom para si e para os outros Se examinarmos o pensamento filosófico dos antigos veremos que nele a ética afirma três grandes princípios da vida moral 1 por natureza os seres humanos aspiram ao bem e à felicidade que só podem ser alcançados pela conduta virtuosa 2 a virtude é uma força interior do caráter que consiste na consciência do bem e na conduta definida pela vontade guiada pela razão pois cabe a esta última o controle sobre instintos e impulsos irracionais descontrolados que existem na natureza de todo ser humano 3 a conduta ética é aquela na qual o agente sabe o que está e o que não está em seu poder realizar referindose portanto ao que é possível e desejável para um ser humano Saber o que está em nosso poder significa principalmente não se deixar arrastar pelas circunstâncias nem pelos instintos nem por uma vontade alheia mas afirmar nossa independência e nossa capacidade de autodeterminação O sujeito ético ou moral não se submete aos acasos da sorte à vontade e aos desejos de um outro à tirania das paixões mas obedece apenas à sua consciência que conhece o bem e as virtudes e à sua vontade racional que conhece os Convite à Filosofia 440 meios adequados para chegar aos fins morais A busca do bem e da felicidade são a essência da vida ética Os filósofos antigos gregos e romanos consideravam a vida ética transcorrendo como um embate contínuo entre nossos apetites e desejos as paixões e nossa razão Por natureza somos passionais e a tarefa primeira da ética é a educação de nosso caráter ou de nossa natureza para seguirmos a orientação da razão A vontade possuía um lugar fundamental nessa educação pois era ela que deveria ser fortalecida para permitir que a razão controlasse e dominasse as paixões O passional é aquele que se deixa arrastar por tudo quanto satisfaça imediatamente seus apetites e desejos tornandose escravo deles Desconhece a moderação busca tudo imoderadamente acabando vítima de si mesmo Podemos resumir a ética dos antigos em três aspectos principais 1 o racionalismo a vida virtuosa é agir em conformidade com a razão que conhece o bem o deseja e guia nossa vontade até ele 2 o naturalismo a vida virtuosa é agir em conformidade com a Natureza o cosmos e com nossa natureza nosso ethos que é uma parte do todo natural 3 a inseparabilidade entre ética e política isto é entre a conduta do indivíduo e os valores da sociedade pois somente na existência compartilhada com outros encontramos liberdade justiça e felicidade A ética portanto era concebida como educação do caráter do sujeito moral para dominar racionalmente impulsos apetites e desejos para orientar a vontade rumo ao bem e à felicidade e para formálo como membro da coletividade sociopolítica Sua finalidade era a harmonia entre o caráter do sujeito virtuoso e os valores coletivos que também deveriam ser virtuosos O cristianismo interioridade e dever Diferentemente de outras religiões da Antiguidade que eram nacionais e políticas o cristianismo nasce como religião de indivíduos que não se definem por seu pertencimento a uma nação ou a um Estado mas por sua fé num mesmo e único Deus Em outras palavras enquanto nas demais religiões antigas a divindade se relacionava com a comunidade social e politicamente organizada o Deus cristão relacionase diretamente com os indivíduos que nele crêem Isso significa antes de qualquer coisa que a vida ética do cristão não será definida por sua relação com a sociedade mas por sua relação espiritual e interior com Deus Dessa maneira o cristianismo introduz duas diferenças primordiais na antiga concepção ética em primeiro lugar a idéia de que a virtude se define por nossa relação com Deus e não com a cidade a polis nem com os outros Nossa relação com os outros depende da qualidade de nossa relação com Deus único mediador entre cada indivíduo e os demais Por esse motivo as duas virtudes cristãs primeiras e Marilena Chauí 441 condições de todas as outras são a fé qualidade da relação de nossa alma com Deus e a caridade o amor aos outros e a responsabilidade pela salvação dos outros conforme exige a fé As duas virtudes são privadas isto é são relações do indivíduo com Deus e com os outros a partir da intimidade e da interioridade de cada um em segundo lugar a afirmação de que somos dotados de vontade livre ou livrearbítrio e que o primeiro impulso de nossa liberdade dirigese para o mal e para o pecado isto é para a transgressão das leis divinas Somos seres fracos pecadores divididos entre o bem obediência a Deus e o mal submissão à tentação demoníaca Em outras palavras enquanto para os filósofos antigos a vontade era uma faculdade racional capaz de dominar e controlar a desmesura passional de nossos apetites e desejos havendo portanto uma força interior a vontade consciente que nos tornava morais para o cristianismo a própria vontade está pervertida pelo pecado e precisamos do auxílio divino para nos tornarmos morais Qual o auxílio divino sem o qual a vida ética seria impossível A lei divina revelada que devemos obedecer obrigatoriamente e sem exceção O cristianismo portanto passa a considerar que o ser humano é em si mesmo e por si mesmo incapaz de realizar o bem e as virtudes Tal concepção leva a introduzir uma nova idéia na moral a idéia do dever Por meio da revelação aos profetas Antigo Testamento e de Jesus Cristo Novo Testamento Deus tornou sua vontade e sua lei manifestas aos seres humanos definindo eternamente o bem e o mal a virtude e o vício a felicidade e a infelicidade a salvação e o castigo Aos humanos cabe reconhecer a vontade e a lei de Deus cumprindoas obrigatoriamente isto é por atos de dever Estes tornam morais um sentimento uma intenção uma conduta ou uma ação Mesmo quando a partir do Renascimento a filosofia moral distanciase dos princípios teológicos e da fundamentação religiosa da ética a idéia do dever permanecerá como uma das marcas principais da concepção ética ocidental Com isso a filosofia moral passou a distinguir três tipos fundamentais de conduta 1 a conduta moral ou ética que se realiza de acordo com as normas e as regras impostas pelo dever 2 a conduta imoral ou antiética que se realiza contrariando as normas e as regras fixadas pelo dever 3 a conduta indiferente à moral quando agimos em situações que não são definidas pelo bem e pelo mal e nas quais não se impõem as normas e as regras do dever Juntamente com a idéia do dever a moral cristã introduziu uma outra também decisiva na constituição da moralidade ocidental a idéia de intenção Convite à Filosofia 442 Até o cristianismo a filosofia moral localizava a conduta ética nas ações e nas atitudes visíveis do agente moral ainda que tivessem como pressuposto algo que se realizava no interior do agente em sua vontade racional ou consciente Eram as condutas visíveis que eram julgadas virtuosas ou viciosas O cristianismo porém é uma religião da interioridade afirmando que a vontade e a lei divinas não estão escritas nas pedras nem nos pergaminhos mas inscritas no coração dos seres humanos A primeira relação ética portanto se estabelece entre o coração do indivíduo e Deus entre a alma invisível e a divindade Como conseqüência passouse a considerar como submetido ao julgamento ético tudo quanto invisível aos olhos humanos é visível ao espírito de Deus portanto tudo quanto acontece em nosso interior O dever não se refere apenas às ações visíveis mas também às intenções invisíveis que passam a ser julgadas eticamente Eis por que um cristão quando se confessa obrigase a confessar pecados cometidos por atos palavras e intenções Sua alma invisível tem o testemunho do olhar de Deus que a julga Natureza humana e dever O cristianismo introduz a idéia do dever para resolver um problema ético qual seja oferecer um caminho seguro para nossa vontade que sendo livre mas fraca sentese dividida entre o bem e o mal No entanto essa idéia cria um problema novo Se o sujeito moral é aquele que encontra em sua consciência vontade razão coração as normas da conduta virtuosa submetendose apenas ao bem jamais submetendose a poderes externos à consciência como falar em comportamento ético por dever Este não seria o poder externo de uma vontade externa Deus que nos domina e nos impõe suas leis forçandonos a agir em conformidade com regras vindas de fora de nossa consciência Em outras palavras se a ética exige um sujeito autônomo a idéia de dever não introduziria a heteronomia isto é o domínio de nossa vontade e de nossa consciência por um poder estranho a nós Um dos filósofos que procuraram resolver essa dificuldade foi Rousseau no século XVIII Para ele a consciência moral e o sentimento do dever são inatos são a voz da Natureza e o dedo de Deus em nossos corações Nascemos puros e bons dotados de generosidade e de benevolência para com os outros Se o dever parece ser uma imposição e uma obrigação externa imposta por Deus aos humanos é porque nossa bondade natural foi pervertida pela sociedade quando esta criou a propriedade privada e os interesses privados tornandonos egoístas mentirosos e destrutivos O dever simplesmente nos força a recordar nossa natureza originária e portanto só em aparência é imposição exterior Obedecendo ao dever à lei divina inscrita em nosso coração estamos obedecendo a nós mesmos aos nossos sentimentos e às nossas emoções e não à nossa razão pois esta é responsável pela sociedade egoísta e perversa Marilena Chauí 443 Uma outra resposta também no final do século XVIII foi trazida por Kant Opondose à moral do coração de Rousseau Kant volta a afirmar o papel da razão na ética Não existe bondade natural Por natureza diz Kant somos egoístas ambiciosos destrutivos agressivos cruéis ávidos de prazeres que nunca nos saciam e pelos quais matamos mentimos roubamos É justamente por isso que precisamos do dever para nos tornarmos seres morais A exposição kantiana parte de duas distinções 1 a distinção entre razão pura teórica ou especulativa e razão pura prática 2 a distinção entre ação por causalidade ou necessidade e ação por finalidade ou liberdade Razão pura teórica e prática são universais isto é as mesmas para todos os homens em todos os tempos e lugares podem variar no tempo e no espaço os conteúdos dos conhecimentos e das ações mas as formas da atividade racional de conhecimento e da ação são universais Em outras palavras o sujeito em ambas é sujeito transcendental como vimos na teoria do conhecimento A diferença entre razão teórica e prática encontrase em seus objetos A razão teórica ou especulativa tem como matéria ou conteúdo a realidade exterior a nós um sistema de objetos que opera segundo leis necessárias de causa e efeito independentes de nossa intervenção a razão prática não contempla uma causalidade externa necessária mas cria sua própria realidade na qual se exerce Essa diferença decorre da distinção entre necessidade e finalidadeliberdade A Natureza é o reino da necessidade isto é de acontecimentos regidos por seqüências necessárias de causa e efeito é o reino da física da astronomia da química da psicologia Diferentemente do reino da Natureza há o reino humano da práxis no qual as ações são realizadas racionalmente não por necessidade causal mas por finalidade e liberdade A razão prática é a liberdade como instauração de normas e fins éticos Se a razão prática tem o poder para criar normas e fins morais tem também o poder para impôlos a si mesma Essa imposição que a razão prática faz a si mesma daquilo que ela própria criou é o dever Este portanto longe de ser uma imposição externa feita à nossa vontade e à nossa consciência é a expressão da lei moral em nós manifestação mais alta da humanidade em nós Obedecêlo é obedecer a si mesmo Por dever damos a nós mesmos os valores os fins e as leis de nossa ação moral e por isso somos autônomos Resta porém uma questão se somos racionais e livres por que valores fins e leis morais não são espontâneos em nós mas precisam assumir a forma do dever Responde Kant porque não somos seres morais apenas Também somos seres naturais submetidos à causalidade necessária da Natureza Nosso corpo e nossa psique são feitos de apetites impulsos desejos e paixões Nossos sentimentos Convite à Filosofia 444 nossas emoções e nossos comportamentos são a parte da Natureza em nós exercendo domínio sobre nós submetendose à causalidade natural inexorável Quem se submete a eles não pode possuir a autonomia ética A Natureza nos impele a agir por interesse Este é a forma natural do egoísmo que nos leva a usar coisas e pessoas como meios e instrumentos para o que desejamos Além disso o interesse nos faz viver na ilusão de que somos livres e racionais por realizarmos ações que julgamos terem sido decididas livremente por nós quando na verdade são um impulso cego determinado pela causalidade natural Agir por interesse é agir determinado por motivações físicas psíquicas vitais à maneira dos animais Visto que apetites impulsos desejos tendências comportamentos naturais costumam ser muito mais fortes do que a razão a razão prática e a verdadeira liberdade precisam dobrar nossa parte natural e impornos nosso ser moral Elas o fazem obrigandonos a passar das motivações do interesse para o dever Para sermos livres precisamos ser obrigados pelo dever de sermos livres Assim à pergunta que fizemos no capítulo anterior sobre o perigo da educação ética ser violência contra nossa natureza espontaneamente passional Kant responderá que pelo contrário a violência estará em não compreendermos nossa destinação racional e em confundirmos nossa liberdade com a satisfação irracional de todos os nossos apetites e impulsos O dever revela nossa verdadeira natureza O dever afirma Kant não se apresenta através de um conjunto de conteúdos fixos que definiriam a essência de cada virtude e diriam que atos deveriam ser praticados e evitados em cada circunstância de nossas vidas O dever não é um catálogo de virtudes nem uma lista de faça isto e não faça aquilo O dever é uma forma que deve valer para toda e qualquer ação moral Essa forma não é indicativa mas imperativa O imperativo não admite hipóteses se então nem condições que o fariam valer em certas situações e não valer em outras mas vale incondicionalmente e sem exceções para todas as circunstâncias de todas as ações morais Por isso o dever é um imperativo categórico Ordena incondicionalmente Não é uma motivação psicológica mas a lei moral interior O imperativo categórico exprimese numa fórmula geral Age em conformidade apenas com a máxima que possas querer que se torne uma lei universal Em outras palavras o ato moral é aquele que se realiza como acordo entre a vontade e as leis universais que ela dá a si mesma Essa fórmula permite a Kant deduzir as três máximas morais que exprimem a incondicionalidade dos atos realizados por dever São elas 1 Age como se a máxima de tua ação devesse ser erigida por tua vontade em lei universal da Natureza Marilena Chauí 445 2 Age de tal maneira que trates a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem sempre como um fim e nunca como um meio 3 Age como se a máxima de tua ação devesse servir de lei universal para todos os seres racionais A primeira máxima afirma a universalidade da conduta ética isto é aquilo que todo e qualquer ser humano racional deve fazer como se fosse uma lei inquestionável válida para todos e em todo tempo e lugar A ação por dever é uma lei moral para o agente A segunda máxima afirma a dignidade dos seres humanos como pessoas e portanto a exigência de que sejam tratados como fim da ação e jamais como meio ou como instrumento para nossos interesses A terceira máxima afirma que a vontade que age por dever institui um reino humano de seres morais porque racionais e portanto dotados de uma vontade legisladora livre ou autônoma A terceira máxima exprime a diferença ou separação entre o reino natural das causas e o reino humano dos fins O imperativo categórico não enuncia o conteúdo particular de uma ação mas a forma geral das ações morais As máximas deixam clara a interiorização do dever pois este nasce da razão e da vontade legisladora universal do agente moral O acordo entre vontade e dever é o que Kant designa como vontade boa que quer o bem O motivo moral da vontade boa é agir por dever O móvel moral da vontade boa é o respeito pelo dever produzido em nós pela razão Obediência à lei moral respeito pelo dever e pelos outros constituem a bondade da vontade ética O imperativo categórico não nos diz para sermos honestos oferecendonos a essência da honestidade nem para sermos justos verazes generosos ou corajosos a partir da definição da essência da justiça da verdade da generosidade ou da coragem Não nos diz para praticarmos esta ou aquela ação determinada mas nos diz para sermos éticos cumprindo o dever as três máximas morais É este que determina por que uma ação moral deverá ser sempre honesta justa veraz generosa ou corajosa Ao agir devemos indagar se nossa ação está em conformidade com os fins morais isto é com as máximas do dever Por que por exemplo mentir é imoral Porque o mentiroso transgride as três máximas morais Ao mentir não respeita em sua pessoa e na do outro a humanidade consciência racionalidade e liberdade pratica uma violência escondendo de um outro ser humano uma informação verdadeira e por meio do engano usa a boafé do outro Também não respeita a segunda máxima pois se a mentira pudesse universalizarse o gênero humano deveria abdicar da razão e do conhecimento da reflexão e da crítica da capacidade para deliberar e escolher vivendo na mais completa ignorância no erro e na ilusão Convite à Filosofia 446 Por que um político corrupto é imoral Porque transgride as três máximas Por que o homicídio é imoral Porque transgride as três máximas As respostas de Rousseau e Kant embora diferentes procuram resolver a mesma dificuldade qual seja explicar por que o dever e a liberdade da consciência moral são inseparáveis e compatíveis A solução de ambos consiste em colocar o dever em nosso interior desfazendo a impressão de que ele nos seria imposto de fora por uma vontade estranha à nossa Cultura e dever Rousseau e Kant procuraram conciliar o dever e a idéia de uma natureza humana que precisa ser obrigada à moral No entanto ao enfatizarem a questão da natureza Natureza e natureza humana tenderam a perder de vista o problema da relação entre o dever e a Cultura pois poderíamos repetir agora a pergunta que fizemos antes Se a ética exige um sujeito consciente e autônomo como explicar que a moral exija o cumprimento do dever definido como um conjunto de valores normas fins e leis estabelecidos pela Cultura Não estaríamos de volta ao problema da exterioridade entre o sujeito e o dever A resposta a essa questão foi trazida no século XIX por Hegel Hegel critica Rousseau e Kant por dois motivos Em primeiro lugar por terem dado atenção à relação sujeito humanoNatureza a relação entre razão e paixões esquecendo a relação sujeito humanoCultura e História Em segundo lugar por terem admitido a relação entre a ética e a sociabilidade dos seres humanos mas tratandoa a partir de laços muito frágeis isto é como relações pessoais diretas entre indivíduos isolados ou independentes quando deveriam tê la tomado a partir dos laços fortes das relações sociais fixadas pelas instituições sociais família sociedade civil Estado As relações pessoais entre indivíduos são determinadas e mediadas por suas relações sociais São estas últimas que determinam a vida ética ou moral dos indivíduos Somos diz Hegel seres históricos e culturais Isso significa que além de nossa vontade individual subjetiva que Rousseau chamou de coração e Kant de razão prática existe uma outra vontade muito mais poderosa que determina a nossa a vontade objetiva inscrita nas instituições ou na Cultura A vontade objetiva impessoal coletiva social pública cria as instituições e a moralidade como sistema regulador da vida coletiva por meio de mores isto é dos costumes e dos valores de uma sociedade numa época determinada A moralidade é uma totalidade formada pelas instituições família religião artes técnicas ciências relações de trabalho organização política etc que obedecem todas aos mesmos valores e aos mesmos costumes educando os indivíduos para interiorizarem a vontade objetiva de sua sociedade e de sua cultura Marilena Chauí 447 A vida ética é o acordo e a harmonia entre a vontade subjetiva individual e a vontade objetiva cultural Realizase plenamente quando interiorizamos nossa Cultura de tal maneira que praticamos espontânea e livremente seus costumes e valores sem neles pensarmos sem os discutirmos sem deles duvidarmos porque são como nossa própria vontade os deseja O que é então o dever O acordo pleno entre nossa vontade subjetiva individual e a totalidade ética ou moralidade Como conseqüência o imperativo categórico não poderá ser uma forma universal desprovida de conteúdo determinado como afirmara Kant mas terá em cada época em cada sociedade e para cada Cultura conteúdos determinados válidos apenas para aquela formação histórica e cultural Assim cada sociedade em cada época de sua História define os valores positivos e negativos os atos permitidos e os proibidos para seus membros o conteúdo dos deveres e do imperativo moral Ser ético e livre será portanto pôrse de acordo com as regras morais de nossa sociedade interiorizandoas Hegel afirma que podemos perceber ou reconhecer o momento em que uma sociedade e uma Cultura entram em declínio perdem força para conservarse e abremse às crises internas que anunciam seu término e sua passagem a uma outra formação sociocultural Esse momento é aquele no qual os membros daquela sociedade e daquela Cultura contestam os valores vigentes sentemse oprimidos e esmagados por eles agem de modo a transgredilos É o momento no qual o antigo acordo entre as vontades subjetivas e a vontade objetiva rompemse inexoravelmente anunciando um novo período histórico Numa perspectiva algo semelhante à hegeliana encontrase no século XX o filósofo francês Henri Bergson Como Hegel Bergson procura compreender a relação deverCultura ou deverHistória e portanto as mudanças nas formas e no conteúdo da moralidade Distingue ele duas morais a moral fechada e a aberta A moral fechada é o acordo entre os valores e os costumes de uma sociedade e os sentimentos e as ações dos indivíduos que nela vivem É a moral repetitiva habitual respeitada quase automaticamente por nós Em contrapartida a moral aberta é uma criação de novos valores e de novas condutas que rompem a moral fechada instaurando uma ética nova Os criadores éticos são para Bergson indivíduos excepcionais heróis santos profetas artistas que colocam suas vidas a serviço de um tempo novo inaugurado por eles graças a ações exemplares que contrariam a moral fechada vigente Hegel diria que a moral aberta bergsoniana só pode acontecer quando a moralidade vigente está em crise prestes a terminar porque um novo período históricocultural está para começar A moral fechada quando sentida como repressora e opressora e a totalidade ética quando percebida como contrária à subjetividade individual indicam aquele momento em que as normas e os valores morais são experimentados como violência e não mais como realização ética Convite à Filosofia 448 História e virtudes Viemos observando que os valores morais modificamse na História porque seu conteúdo é determinado por condições históricas Podemos comprovar a determinação histórica do conteúdo dos valores examinando as virtudes definidas em diferentes épocas Se tomarmos a Ética a Nicômaco de Aristóteles nela encontraremos a síntese das virtudes que constituíam a arete a virtude ou excelência ética e a moralidade grega durante o tempo em que a polis autônoma foi a referência social da Grécia Aristóteles distingue vícios e virtudes pelo critério do excesso da falta e da moderação um vício é um sentimento ou uma conduta excessivos ou ao contrário deficientes uma virtude um sentimento ou uma conduta moderados Resumidamente eis o quadro aristotélico Virtude Vício por excesso Vício por deficiência Coragem Temeridade Covardia Temperança Libertinagem Insensibilidade Prodigalidade Esbanjamento Avareza Magnificência Vulgaridade Vileza Respeito próprio Vaidade Modéstia Prudência Ambição Moleza Gentileza Irascibilidade Indiferença Veracidade Orgulho Descrédito próprio Agudeza de espírito Zombaria Rusticidade Amizade Condescendência Enfado Justa indignação Inveja Malevolência Quando examinamos as virtudes definidas pelo cristianismo descobrimos que embora as aristotélicas não sejam afastadas deixam de ser as mais relevantes O quadro cristão pode ser assim resumido Virtudes teologais fé esperança caridade Virtudes cardeais coragem justiça temperança prudência Pecados capitais gula avareza preguiça luxúria cólera inveja e orgulho Marilena Chauí 449 Virtudes morais sobriedade prodigalidade trabalho castidade mansidão generosidade modéstia Observamos o aparecimento de virtudes novas concernentes à relação do crente com Deus virtudes teologais e da justiça como virtude particular para Aristóteles a justiça é o resultado da virtude e não uma das virtudes a amizade é substituída pela caridade responsabilidade pela salvação do outro os vícios são transformados em pecados portanto voltados para a relação do crente com a lei divina e nas virtudes morais encontramos um vício aristotélico a modéstia além do aparecimento de virtudes ignoradas ou desconhecidas por Aristóteles humildade castidade mansidão Surge também como virtude algo que para um grego ou um romano jamais poderia fazer parte dos valores do homem livre o trabalho O ócio considerado pela sociedade escravista grecoromana como condição para o exercício da política tornase agora vício da preguiça Lutero dirá Mente desocupada oficina do diabo Se agora tomarmos como referência um filósofo do século XVII Espinosa veremos o quadro alterarse profundamente Para Espinosa somos seres naturalmente passionais porque sofremos a ação de causas exteriores a nós Em outras palavras ser passional é ser passivo deixandose dominar e conduzir por forças exteriores ao nosso corpo e à nossa alma Ora por natureza vivemos rodeados por outros seres mais fortes do que nós que agem sobre nós Por isso as paixões não são boas nem más são naturais Três são as paixões originais alegria tristeza e desejo As demais derivamse destas Assim da alegria nascem o amor a devoção a esperança a segurança o contentamento a misericórdia a glória da tristeza surgem o ódio a inveja o orgulho o arrependimento a modéstia o medo o desespero o pudor do desejo provém a gratidão a cólera a crueldade a ambição o temor a ousadia a luxúria a avareza Uma paixão triste é aquela que diminui a capacidade de ser e agir de nosso corpo e de nossa alma ao contrário uma paixão alegre aumenta a capacidade de existir e agir de nosso corpo e de nossa alma No caso do desejo podemos ter paixões tristes como a crueldade a ambição a avareza ou alegres como a gratidão e a ousadia Que é o vício Submeterse às paixões deixandose governar pelas causas externas Que é a virtude Ser causa interna de nossos sentimentos atos e pensamentos Ou seja passar da passividade submissão a causas externas à atividade ser causa interna A virtude é pois passar da paixão à ação tornarse causa ativa interna de nossa existência atos e pensamentos As paixões e os desejos tristes Convite à Filosofia 450 nos enfraquecem e nos tornam cada vez mais passivos As paixões e os desejos alegres nos fortalecem e nos preparam para passar da passividade à atividade Como sucumbimos ao vício Deixandonos dominar pelas paixões tristes e pelas desejantes nascidas da tristeza O vício não é um mal é fraqueza para existir agir e pensar Como passamos da paixão à ação ou à virtude Transformando as paixões alegres e as desejantes nascidas da alegria em atividades de que somos a causa A virtude não é um bem é a força para ser e agir autonomamente Observamos assim que a ética espinosista evita oferecer um quadro de valores ou de vícios e virtudes distanciandose de Aristóteles e da moral cristã para buscar na idéia moderna de indivíduo livre o núcleo da ação moral Em sua obra Ética Espinosa jamais fala em pecado e em dever fala em fraqueza e em força para ser pensar e agir As virtudes aristotélicas inseremse numa sociedade que valorizava as relações sociopolíticas entre os seres humanos donde a proeminência da amizade e da justiça As virtudes cristãs inseremse numa sociedade voltada para a relação dos humanos com Deus e com a lei divina A virtude espinosista toma a relação do indivíduo com a Natureza e a sociedade centrandose nas idéias de integridade individual e de força interna para relacionarse livremente com ambas Como porém vivemos numa cultura cristã a perspectiva do cristianismo embora historicamente datada tende a ser dominante ainda que se altere periodicamente para adaptarse a novas exigências históricas Assim no século XVII Espinosa abandona as noções cristãs de pecado e dever que no século XVIII reaparecem com Kant Razão desejo e vontade A tradição filosófica que examinamos até aqui constitui o racionalismo ético pois atribui à razão humana o lugar central na vida ética Duas correntes principais formam a tradição racionalista aquela que identifica razão com inteligência ou intelecto corrente intelectualista e aquela que considera que na moral a razão identificase com a vontade corrente voluntarista Para a concepção intelectualista a vida ética ou vida virtuosa depende do conhecimento pois é somente por ignorância que fazemos o mal e nos deixamos arrastar por impulsos e paixões contrários à virtude e ao bem O ser humano sendo essencialmente racional deve fazer com que sua razão ou inteligência o intelecto conheça os fins morais os meios morais e a diferença entre bem e mal de modo a conduzir a vontade no momento da deliberação e da decisão A vida ética depende do desenvolvimento da inteligência ou razão sem a qual a vontade não poderá atuar Para a concepção voluntarista a vida ética ou moral depende essencialmente da nossa vontade porque dela depende nosso agir e porque ela pode querer ou não Marilena Chauí 451 querer o que a inteligência lhe ordena Se a vontade for boa seremos virtuosos se for má seremos viciosos A vontade boa orienta nossa inteligência no momento da escolha de uma ação enquanto a vontade má desvia nossa razão da boa escolha no momento de deliberar e de agir A vida ética depende da qualidade de nossa vontade e da disciplina para forçála rumo ao bem O dever educa a vontade para que se torne reta e boa Nas duas correntes porém há concordância quanto à idéia de que por natureza somos seres passionais cheios de apetites impulsos e desejos cegos desenfreados e desmedidos cabendo à razão seja como inteligência no intelectualismo seja como vontade no voluntarismo estabelecer limites e controles para paixões e desejos Egoísmo agressividade avareza busca ilimitada de prazeres corporais sexualidade sem freios mentira hipocrisia máfé desejo de posse tanto de coisas como de pessoas ambição desmedida crueldade medo covardia preguiça ódio impulsos assassinos desprezo pela vida e pelos sentimentos alheios são algumas das muitas paixões que nos tornam imorais e incapazes de relações decentes e dignas com os outros e conosco mesmos Quando cedemos a elas somos viciosos e culpados A ética apresentase assim como trabalho da inteligência eou da vontade para dominar e controlar essas paixões Uma paixão amor ódio inveja ambição orgulho medo colocanos à mercê de coisas e pessoas que desejamos possuir ou destruir O racionalismo ético define a tarefa da educação moral e da conduta ética como poderio da razão para impedirnos de perder a liberdade sob os efeitos de paixões desmedidas e incontroláveis Para tanto a ética racionalista distingue necessidade desejo e vontade A necessidade diz respeito a tudo quanto necessitamos para conservar nossa existência alimentação bebida habitação agasalho no frio proteção contra as intempéries relações sexuais para a procriação descanso para desfazer o cansaço etc Para os seres humanos satisfazer às necessidades é fonte de satisfação O desejo parte da satisfação de necessidades mas acrescenta a elas o sentimento do prazer dando às coisas às pessoas e às situações novas qualidades e sentidos No desejo nossa imaginação busca o prazer e foge da dor pelo significado atribuído ao que é desejado ou indesejado A maneira como imaginamos a satisfação o prazer o contentamento que alguma coisa ou alguém nos dão transforma esta coisa ou este alguém em objeto de desejo e o procuramos sempre mesmo quando não conseguimos possuílo ou alcançálo O desejo é pois a busca da fruição daquilo que é desejado porque o objeto do desejo dá sentido à nossa vida determina nossos sentimentos e nossas ações Se como os animais temos necessidades somente como humanos temos desejos Por isso muitos filósofos afirmam que a essência dos seres humanos é Convite à Filosofia 452 desejar e que somos seres desejantes não apenas desejamos mas sobretudo desejamos ser desejados por outros A vontade difere do desejo por possuir três características que este não possui 1 o ato voluntário implica um esforço para vencer obstáculos Estes podem ser materiais uma montanha surge no meio do caminho físicos fadiga dor ou psíquicos desgosto fracasso frustração A tenacidade e a perseverança a resistência e a continuação do esforço são marcas da vontade e por isso falamos em força de vontade 2 o ato voluntário exige discernimento e reflexão antes de agir isto é exige deliberação avaliação e tomada de decisão A vontade pesa compara avalia discute julga antes da ação 3 a vontade referese ao possível isto é ao que pode ser ou deixar de ser e que se torna real ou acontece graças ao ato voluntário que atua em vista de fins e da previsão das conseqüências Por isso a vontade é inseparável da responsabilidade O desejo é paixão A vontade decisão O desejo nasce da imaginação A vontade se articula à reflexão O desejo não suporta o tempo ou seja desejar é querer a satisfação imediata e o prazer imediato A vontade ao contrário realizase no tempo o esforço e a ponderação trabalham com a relação entre meios e fins e aceitam a demora da satisfação Mas é o desejo que oferece à vontade os motivos interiores e os fins exteriores da ação À vontade cabe a educação moral do desejo Na concepção intelectualista a inteligência orienta a vontade para que esta eduque o desejo Na concepção voluntarista a vontade boa tem o poder de educar o desejo enquanto a vontade má submetese a ele e pode em muitos casos pervertêlo Consciência desejo e vontade formam o campo da vida ética consciência e desejo referemse às nossas intenções e motivações a vontade às nossas ações e finalidades As primeiras dizem respeito à qualidade da atitude interior ou dos sentimentos internos ao sujeito moral as últimas à qualidade da atitude externa das condutas e dos comportamentos do sujeito moral Para a concepção racionalista a filosofia moral é o conhecimento das motivações e intenções que movem interiormente o sujeito moral e dos meios e fins da ação moral capazes de concretizar aquelas motivações e intenções Convém observar que a posição de Kant embora racionalista difere das demais porque considera irrelevantes as motivações e intenções do sujeito uma vez que a ética diz respeito à forma universal do ato moral como ato livre de uma vontade racional boa que age por dever segundo as leis universais que deu a si mesma O imperativo categórico exclui motivos e intenções que são sempre particulares porque estes o transformariam em algo condicionado por eles e portanto o tornariam um Marilena Chauí 453 imperativo hipotético destruindoo como fundamento universal da ação ética por dever Ética das emoções e do desejo O racionalismo ético não é a única concepção filosófica da moral Uma outra concepção filosófica é conhecida como emotivismo ético Para o emotivismo ético o fundamento da vida moral não é a razão mas a emoção Nossos sentimentos são causas das normas e dos valores éticos Inspirandose em Rousseau alguns emotivistas afirmam a bondade natural de nossos sentimentos e nossas paixões que são por isso a forma e o conteúdo da existência moral como relação intersubjetiva e interpessoal Outros emotivistas salientam a utilidade dos sentimentos ou das emoções para nossa sobrevivência e para nossas relações com os outros cabendo à ética orientar essa utilidade de modo a impedir a violência e garantir relações justas entre os seres humanos Há ainda uma outra concepção ética francamente contrária à racionalista e por isso muitas vezes chamada de irracionalista que contesta à razão o poder e o direito de intervir sobre o desejo e as paixões identificando a liberdade com a plena manifestação do desejante e do passional Essa concepção encontrase em Nietzsche e em vários filósofos contemporâneos Embora com variantes essa concepção filosófica pode ser resumida nos seguintes pontos principais tendo como referência a obra nietzscheana A genealogia da moral a moral racionalista foi erguida com finalidade repressora e não para garantir o exercício da liberdade a moral racionalista transformou tudo o que é natural e espontâneo nos seres humanos em vício falta culpa e impôs a eles com os nomes de virtude e dever tudo o que oprime a natureza humana paixões desejos e vontade referemse à vida e à expansão de nossa força vital portanto não se referem espontaneamente ao bem e ao mal pois estes são uma invenção da moral racionalista a moral racionalista foi inventada pelos fracos para controlar e dominar os fortes cujos desejos paixões e vontade afirmam a vida mesmo na crueldade e na agressividade Por medo da força vital dos fortes os fracos condenaram paixões e desejos submeteram a vontade à razão inventaram o dever e impuseram castigos para os transgressores transgredir normas e regras estabelecidas é a verdadeira expressão da liberdade e somente os fortes são capazes dessa ousadia Para disciplinar e dobrar a vontade dos fortes a moral racionalista inventada pelos fracos transformou a transgressão em falta culpa e castigo Convite à Filosofia 454 a força vital se manifesta como saúde do corpo e da alma como força da imaginação criadora Por isso os fortes desconhecem angústia medo remorso humildade inveja A moral dos fracos porém é atitude preconceituosa e covarde dos que temem a saúde e a vida invejam os fortes e procuram pela mortificação do corpo e pelo sacrifício do espírito vingarse da força vital a moral dos fracos é produto do ressentimento que odeia e teme a vida envenenandoa com a culpa e o pecado voltando contra si mesma o ódio à vida a moral dos ressentidos baseada no medo e no ódio à vida às paixões aos desejos à vontade forte inventa uma outra vida futura eterna incorpórea que será dada como recompensa aos que sacrificarem seus impulsos vitais e aceitarem os valores dos fracos a sociedade governada por fracos hipócritas impõe aos fortes modelos éticos que os enfraqueçam e os tornem prisioneiros dóceis da hipocrisia da moral vigente é preciso manter os fortes dizendolhes que o bem é tudo o que fortalece o desejo da vida e o mal tudo o que é contrário a esse desejo Para esses filósofos que podemos chamar de antiracionalistas a moral racionalista ou dos fracos e ressentidos que temem a vida o corpo o desejo e as paixões é a moral dos escravos dos que renunciam à verdadeira liberdade ética São exemplos dessa moral de escravos a ética socrática a moral kantiana a moral judaicocristã a ética da utopia socialista a ética democrática em suma toda moral que afirme que os humanos são iguais seja por serem racionais Sócrates Kant seja por serem irmãos religião judaicocristã seja por possuírem os mesmos direitos ética socialista e democrática Contra a concepção dos escravos afirmase a moral dos senhores ou a ética dos melhores dos aristoixiii a moral aristocrática fundada nos instintos vitais nos desejos e naquilo que Nietzsche chama de vontade de potência cujo modelo se encontra nos guerreiros belos e bons das sociedades antigas baseadas na guerra nos combates e nos jogos nas disputas pela glória e pela fama na busca da honra e da coragem Essa concepção da ética suscita duas observações Em primeiro lugar lembremos que a ética nasce como trabalho de uma sociedade para delimitar e controlar a violência isto é o uso da força contra outrem Vimos que a filosofia moral se ergue como reflexão contra a violência em nome de um ser humano concebido como racional desejante voluntário e livre que sendo sujeito não pode ser tratado como coisa A violência era localizada tanto nas ações contra outrem assassinato tortura suplício escravidão crueldade mentira etc como nas ações contra nós mesmos passividade covardia ódio medo adulação inveja remorso etc A ética se propunha assim a instituir valores meios e fins que nos libertassem dessa dupla violência Marilena Chauí 455 Os críticos da moral racionalista porém afirmam que a própria ética transformada em costumes preconceitos cristalizados e sobretudo em confiança na capacidade apaziguadora da razão tornouse a forma perfeita da violência Contra ela os antiracionalistas defendem o valor de uma violência nova e purificadora a potência ou a força dos instintos considerada libertadora O problema consiste em saber se tal violência pode ter um papel liberador e suscitar uma nova ética Em segundo lugar é curioso observar que muitos dos chamados irracionalistas contemporâneos baseiamse na psicanálise e na teoria freudiana da repressão do desejo fundamentalmente do desejo sexual Propõem uma ética que libere o desejo da repressão a que a sociedade o submeteu repressão causadora de psicoses neuroses angústias e desesperos O aspecto curioso está no fato de que Freud considerava extremamente perigoso liberar o id as pulsões e o desejo porque a psicanálise havia descoberto uma ligação profunda entre o desejo de prazer e o desejo de morte a violência incontrolável do desejo se não for orientado e controlado pelos valores éticos propostos pela razão e por uma sociedade racional Essas duas observações não devem porém esconder os méritos e as dificuldades da proposta moral antiracionalista É o seu grande mérito desnudar a hipocrisia e a violência da moral vigente trazer de volta o antigo ideal de felicidade que nossa sociedade destruiu por meio da repressão e dos preconceitos Porém a dificuldade como acabamos de assinalar acima está em saber se o que devemos criticar e abandonar é a razão ou a racionalidade repressora e violenta inventada por nossa sociedade que precisa ser destruída por uma nova sociedade e uma nova racionalidade Sob esse aspecto é interessante observar que não só Freud e Nietzsche criticaram a violência escondida sob a moral vigente em nossa Cultura mas a mesma crítica foi feita por Bergson quando descreveu a moral fechada e por Marx quando criticou a ideologia burguesa Marx afirmava que os valores da moral vigente liberdade felicidade racionalidade respeito à subjetividade e à humanidade de cada um etc eram hipócritas não em si mesmos como julgava Nietzsche mas porque eram irrealizáveis e impossíveis numa sociedade violenta como a nossa baseada na exploração do trabalho na desigualdade social e econômica na exclusão de uma parte da sociedade dos direitos políticos e culturais A moral burguesa dizia Marx pretende ser um racionalismo humanista mas as condições materiais concretas em que vive a maioria da sociedade impedem a existência plena de um ser humano que realize os valores éticos Para Marx portanto tratavase de mudar a sociedade para que a ética pudesse concretizarse Críticas semelhantes foram feitas por pensadores socialistas anarquistas utópicos para os quais o problema não se encontrava na razão como poderio dos Convite à Filosofia 456 fracos ressentidos contra os fortes mas no modo como a sociedade está organizada pois nela o imperativo categórico kantiano por exemplo não pode ser respeitado uma vez que a organização social coloca uma parte da sociedade como coisa instrumento ou meio para a outra parte Ética e psicanálise Quando estudamos o sujeito do conhecimento unidade 4 capítulo 7 vimos que a psicanálise introduzia um conceito novo o inconsciente que limitava o poder soberano da razão e da consciência além de descortinar a sexualidade como força determinante de nossa existência nosso pensamento e nossa conduta No caso da ética a descoberta do inconsciente traz conseqüências graves tanto para as idéias de consciência responsável e vontade livre quanto para os valores morais De fato se como revela a psicanálise somos nossos impulsos e desejos inconscientes e se estes desconhecem barreiras e limites para a busca da satisfação e sobretudo se conseguem a satisfação burlando e enganando a consciência como então manter por exemplo a idéia de vontade livre que age por dever Por outro lado se o que se passa em nossa consciência é simples efeito disfarçado de causas inconscientes reais e escondidas como falar em consciência responsável Como a consciência poderia responsabilizarse pelo que desconhece e que jamais se torna consciente Mais grave porém é a conseqüência para os valores morais Em lugar de surgirem como expressão de finalidades propostas por uma vontade boa e virtuosa que deseja o bem os valores e fins éticos surgem como regras e normas repressivas que devem controlar nossos desejos e impulsos inconscientes Isso coloca dois problemas éticos novos Em primeiro lugar como falar em autonomia moral se o dever os valores e os fins são impostos ao sujeito por uma razão oposta ao inconsciente e portanto oposta ao nosso ser real A razão não seria uma ficção e um poder repressivo externo incompatível com a definição da autonomia Em segundo lugar visto que os desejos inconscientes se manifestam por disfarces como a razão poderia pretender controlálos sob o dever e as virtudes se não tem acesso a eles A psicanálise mostra que somos resultado e expressão de nossa história de vida marcada pela sexualidade insatisfeita que busca satisfações imaginárias sem jamais poder satisfazerse plenamente Não somos autores nem senhores de nossa história mas efeitos dela Mostranos também que nossos atos são realizações inconscientes de motivações sexuais que desconhecemos e que repetimos vida afora Do ponto de vista do inconsciente mentir matar roubar seduzir destruir temer ambicionar são simplesmente amorais pois o inconsciente desconhece valores morais Inúmeras vezes comportamentos que a moralidade julga imorais são Marilena Chauí 457 realizados como autodefesa do sujeito que os emprega para defender sua integridade psíquica ameaçada real ou fantasmagoricamente Se são atos moralmente condenáveis podem porém ser psicologicamente necessários Nesse caso como julgálos e condenálos moralmente Faríamos porém uma interpretação parcial da psicanálise se considerássemos apenas esse aspecto de sua grande descoberta ignorando um outro que também lhe é essencial De fato a psicanálise encontra duas instâncias ou duas faces antagônicas no inconsciente o id ou libido sexual em busca da satisfação e o superego ou censura moral interiorizada pelo sujeito que absorve os valores de sua sociedade Nossa psique é um campo de batalha inconsciente entre desejos e censuras O id ama o proibido o superego quer ser amado por reprimir o id imaginandose tanto mais amado quanto mais repressor O id desconhece fronteiras o superego só conhece barreiras Vencedor o id é violência que destrói os outros Vencedor o superego é violência que destrói o sujeito Neuroses e psicoses são causadas tanto por um id extremamente forte e um superego fraco quanto por um superego extremamente forte e um id fraco A batalha interior só pode ser decidida em nosso proveito por uma terceira instância a consciência Descobrir a existência do inconsciente não significa portanto esquecer a consciência e abandonála como algo ilusório ou inútil Pelo contrário a psicanálise não é somente uma teoria sobre o ser humano mas é antes de tudo uma terapia para auxiliar o sujeito no autoconhecimento e para conseguir que não seja um joguete das forças inconscientes do id e do superego No caso específico da ética a psicanálise mostrou que uma das fontes dos sofrimentos psíquicos causa de doenças e de perturbações mentais e físicas é o rigor excessivo do superego ou seja de uma moralidade rígida que produz um ideal do ego valores e fins éticos irrealizável torturando psiquicamente aqueles que não conseguem alcançálo por terem sido educados na crença de que esse ideal seria realizável Quando uma sociedade reprime os desejos inconscientes de tal modo que não possam encontrar meios imaginários e simbólicos de expressão quando os censura e condena de tal forma que nunca possam manifestarse prepara o caminho para duas alternativas igualmente distantes da ética ou a transgressão violenta de seus valores pelos sujeitos reprimidos ou a resignação passiva de uma coletividade neurótica que confunde neurose e moralidade Em outras palavras em lugar de ética há violência por um lado violência da sociedade que exige dos sujeitos padrões de conduta impossíveis de serem realizados e por outro lado violência dos sujeitos contra a sociedade pois somente transgredindo e desprezando os valores estabelecidos poderão sobreviver Convite à Filosofia 458 Em suma sem a repressão da sexualidade não há sociedade nem ética mas a excessiva repressão da sexualidade destruirá primeiro a ética e depois a sociedade O que a psicanálise propõe é uma nova moral social que harmonize tanto quanto for possível os desejos inconscientes as formas de satisfazêlos e a vida social Essa moral evidentemente só pode ser realizada pela consciência e pela vontade livre de sorte que a psicanálise procura fortalecêlas como instâncias moderadoras do id e do superego Somos eticamente livres e responsáveis não porque possamos fazer tudo quanto queiramos nem porque queiramos tudo quanto possamos fazer mas porque aprendemos a discriminar as fronteiras entre o permitido e o proibido tendo como critério ideal a ausência da violência interna e externa Marilena Chauí 459 Capítulo 6 A liberdade A liberdade como problema A torneira seca mas pior a falta de sede A luz apagada mas pior o gosto do escuro A porta fechada mas pior a chave por dentro Este poema de José Paulo Paes nos fala de forma extremamente concentrada e precisa do núcleo da liberdade e de sua ausência O poeta lança um contraponto entre uma situação externa experimentada como um dado ou como um fato a torneira seca a luz apagada a porta fechada e a inércia resignada no interior do sujeito a falta de sede o gosto do escuro a chave por dentro O contraponto é feito pela expressão mas pior Que significa ela Que diante da adversidade renunciamos a enfrentála fazemonos cúmplices dela e é isso o pior Pior é a renúncia à liberdade Secura escuridão e prisão deixam de estar fora de nós para se tornarem nós mesmos com nossa falta de sede nosso gosto do escuro e nossa falta de vontade de girar a chave Um outro poema também oferece o contraponto entre nós e o mundo Mundo mundo vasto mundo Se eu me chamasse Raimundo Seria uma rima não seria uma solução Mundo mundo vasto mundo Mais vasto é meu coração Neste poema Carlos Drummond de Andrade como José Paulo Paes confronta nos com a realidade exterior o vasto mundo do qual somos uma pequena parcela e no qual estamos mergulhados Todavia os dois poemas diferem pois em vez da inércia resignada estamos agora diante da afirmação de que nosso ser é mais vasto do que o mundo pelo nosso coração sentimentos e imaginação Convite à Filosofia 460 somos maiores do que o mundo criamos outros mundos possíveis inventamos outra realidade Abrimos a torneira acendemos a luz e giramos a chave Embora diferentes os dois poemas apontam para o grande tema da ética desde que esta se tornou questão filosófica O que está e o que não está em nosso poder Até onde de estende o poder de nossa vontade de nosso desejo de nossa consciência Em outras palavras Até onde alcança o poder de nossa liberdade Podemos mais do que o mundo ou este pode mais do que nossa liberdade O que está inteiramente em nosso poder e o que depende inteiramente de causas e forças exteriores que agem sobre nós Por que o pior é a falta de sede e não a torneira seca o gosto do escuro e não a luz apagada a chave imobilizada e não a porta fechada O que depende do vasto mundo e o que depende de nosso mais vasto coração Essa mesma interrogação embora não explicitada nesses termos encontrase presente no que escreveu o poeta Vicente de Carvalho em Velho tema Só a leve esperança em toda a vida Disfarça a pena de viver mais nada Nem é mais a existência resumida Que uma grande esperança malograda O eterno sonho da alma desterrada Sonho que a traz ansiosa e embevecida É uma hora feliz sempre adiada E que não chega nunca em toda a vida Essa felicidade que supomos Árvore milagrosa que sonhamos Toda arreada de dourados pomos Existe sim mas nós não a alcançamos Porque está sempre apenas onde a pomos E nunca a pomos onde nós estamos O poeta contrasta a esperança malograda de felicidade e a felicidade que existe sim mas que não alcançamos porque nunca a pomos onde nós estamos embora esteja sempre apenas onde a pomos Nossa alma fica desterrada no sonho exilada do real porque incapaz de reconhecer que a felicidade não é uma árvore distante situada em algum lugar não localizável do vasto mundo mas está em nós em nossa leve esperança em nosso mais vasto coração dependendo apenas de nós mesmos porque está sempre apenas onde a pomos Porta fechada vasto mundo árvore milagrosa a felicidade parece depender inteiramente do que se encontra fora de nós Marilena Chauí 461 Chave por dentro coração mais vasto estar sempre apenas onde a pomos a felicidade parece depender inteiramente de nós Seja de modo pessimista como em José Paulo Paes e Vicente de Carvalho seja de modo otimista como em Carlos Drummond os três poetas nos colocam diante da liberdade como problema Filosoficamente este se apresenta sob a forma de dois pares de opostos 1 o par necessidadeliberdade 2 o par contingêncialiberdade Torneira seca luz apagada porta fechada a realidade é feita de situações adversas e opressoras contra as quais nada podemos pois são necessárias Vasto mundo se a realidade natural e cultural possui leis causais necessárias e normas regras obrigatórias se tanto as leis naturais como as leis culturais não dependem de nós se sermos seres naturais e culturais não depende de nós se somos seres naturais e culturais cuja consciência e vontade são determinadas por aquelas leis da Natureza e normasregras da Cultura como então falar em liberdade humana A necessidade que rege as leis naturais e as normasregras culturais não seria mais vasta maior e mais poderosa do que nossa liberdade O que poderia estar em nosso poder Árvore milagrosa se a felicidade e o bem são milagres então são puro acaso pura contingência e não resta senão o jogo interminável entre a leve esperança e a grande esperança malograda Se o mundo é um tecido de acasos felizes e infelizes como esperar que sejamos sujeitos livres se tudo o que acontece é imprevisível fruto da boa e da má sorte de acontecimentos sem causa e sem explicação Como sermos sujeitos responsáveis num mundo feito de acidentes e de total indeterminação Se tudo é contingência onde colocar a liberdade O par necessidadeliberdade também pode ser formulado em termos religiosos como fatalidadeliberdade e em termos científicos como determinismo liberdade Necessidade é o termo empregado para referirse ao todo da realidade existente em si e por si que age sem nós e nos insere em sua rede de causas e efeitos condições e conseqüências Fatalidade é o termo usado quando pensamos em forças transcendentes às nossas e que nos governam quer o queiramos ou não Determinismo é o termo empregado a partir do século XIX para referirse à realidade conhecida e controlada pela ciência e no caso da ética particularmente ao ser humano como objeto das ciências naturais química e biologia e das ciências humanas sociologia e psicologia portanto como completamente determinado pelas leis e causas que condicionam seus pensamentos sentimentos e ações tornando a liberdade ilusória Convite à Filosofia 462 O par contingêncialiberdade também pode ser formulado pela oposição acaso liberdade Contingência ou acaso significam que a realidade é imprevisível e mutável impossibilitando deliberação e decisão racionais definidoras da liberdade Num mundo onde tudo acontece por acidente somos como um frágil barquinho perdido num mar tempestuoso levado em todas as direções ao sabor das vagas e dos ventos Necessidade fatalidade determinismo significam que não há lugar para a liberdade porque o curso das coisas e de nossas vidas já está fixado sem que nele possamos intervir Contingência e acaso significam que não há lugar para a liberdade porque não há curso algum das coisas e de nossas vidas sobre o qual pudéssemos intervir Tomemos um exemplo da necessidade oposta à liberdade Não escolhi nascer numa determinada época num determinado país numa determinada família com um corpo determinado As condições de meu nascimento e de minha vida fazem de mim aquilo que sou e minhas ações meus desejos meus sentimentos minhas intenções minhas condutas resultam dessas condições nada restando a mim senão obedecêlas Como dizer que sou livre e responsável Se por exemplo nasci negra mulher numa família pobre numa sociedade racista machista e classista que me discrimina racial sexual e socialmente que me impede o acesso à escola e a um trabalho bem remunerado que me proíbe a entrada em certos lugares que me interdita amar quem não for da mesma raça e classe social como dizer que sou livre para viver sentir pensar e agir de uma maneira que não escolhi mas foime imposta Tomemos agora um exemplo da contingência oposta à liberdade Quando minha mãe estava grávida de mim houve um acidente sanitário provocando uma epidemia Minha mãe adoeceu Nasci com problemas de visão Foi por acaso que a gravidez de minha mãe coincidiu com o acaso da epidemia por acaso ela adoeceu por acaso nasci com distúrbios visuais Tendo tais distúrbios preciso de cuidados médicos especiais No entanto na época em que nasci o governo de meu país instituiu um plano econômico de redução de empregos e privatização do serviço público de saúde Meu pai e minha mãe ficaram desempregados e não podiam contar com o serviço de saúde para meu tratamento Tivesse eu nascido em outra ocasião talvez pudesse ter sido curada de meus problemas visuais Quis o acaso que eu nascesse numa época funesta Tal como sou há coisas que não posso fazer Sou porém bem dotada para música e poderia receber uma educação musical Porém houve a decisão do governo municipal de minha cidade de demolir o conservatório musical público Não posso pagar um conservatório particular e ficarei sem a educação musical porque por acaso Marilena Chauí 463 moro numa cidade que deixará de ter um serviço público de educação artística Morasse eu em outra cidade ou fosse outro o governo municipal isso não aconteceria comigo Como então dizer que sou livre para decidir e escolher se vivo num mundo onde tudo acontece por acaso Diante da necessidade e da contingência como afirmar que mais vasto é meu coração ou que a felicidade está sempre onde a pomos Examinemos mais de perto os dois exemplos mencionados No primeiro exemplo negra mulher pobre numa sociedade racista machista classista parece que nada posso fazer A porta está fechada e a luz apagada Porém nada estará no poder de minha liberdade Terei que gostar do escuro e permanecer com a porta fechada Se a ética afirmar que a discriminação étnica sexual e de classe é imoral isto é violenta se eu tiver consciência disso nada farei Serei impotente para lutar livremente contra tal situação Mantendome resignada conformada passiva e omissa não estarei fazendo da necessidade uma desculpa um álibi para não agir No segundo exemplo epidemia desemprego fim dos serviços públicos de saúde e educação artística também parece que nada posso fazer Será verdade Não estarei transformando os acasos de meu nascimento e das condições políticas em desculpa e álibi para minha resignação Falarei em destino e má sorte para explicar o fechamento de todos os possíveis para fim Renunciarei à vastidão do meu coração aceitando que a felicidade sempre será posta onde não estou Nos dois casos podemos indagar se afinal para nós resta somente a pena de viver mais nada ou se como escreveu o filósofo Sartre o que importa não é saber o que fizeram de nós e sim o que fazemos com o que quiseram fazer conosco Três grandes concepções filosóficas da liberdade Na história das idéias ocidentais necessidade e contingência foram representadas por figuras míticas A primeira pelas três Parcas ou Moiras representando a fatalidade isto é o destino inelutável de cada um de nós do nascimento à morte Uma das Parcas ou Moiras era representada fiando o fio de nossa vida enquanto a outra o tecia e a última o cortava simbolizando nossa morte A contingência ou o acaso era representada pela Fortuna mulher volúvel e caprichosa que trazia nas mãos uma roda fazendoa girar de tal modo que quem estivesse no alto a boa fortuna ou boa sorte caísse infortúnio ou má sorte e quem estivesse embaixo fosse elevado Inconstante incerta e cega a roda da Fortuna era a pura sorte boa ou má contra a qual nada se poderia fazer como na música de Chico Buarque Eis que chega a rodaviva levando a saudade pra lá As teorias éticas procuraram sempre enfrentar o duplo problema da necessidade e da contingência definindo o campo da liberdade possível Convite à Filosofia 464 A primeira grande teoria filosófica da liberdade é exposta por Aristóteles em sua obra Ética a Nicômaco e com variantes permanece através dos séculos chegando até o século XX quando foi retomada por Sartre Nessa concepção a liberdade se opõe ao que é condicionado externamente necessidade e ao que acontece sem escolha deliberada contingência Diz Aristóteles que é livre aquele que tem em si mesmo o princípio para agir ou não agir isto é aquele que é causa interna de sua ação ou da decisão de não agir A liberdade é concebida como o poder pleno e incondicional da vontade para determinar a si mesma ou para ser autodeterminada É pensada também como ausência de constrangimentos externos e internos isto é como uma capacidade que não encontra obstáculos para se realizar nem é forçada por coisa alguma para agir Tratase da espontaneidade plena do agente que dá a si mesmo os motivos e os fins de sua ação sem ser constrangido ou forçado por nada e por ninguém Assim na concepção aristotélica a liberdade é o princípio para escolher entre alternativas possíveis realizandose como decisão e ato voluntário Contrariamente ao necessário ou à necessidade sob a qual o agente sofre a ação de uma causa externa que o obriga a agir sempre de uma determinada maneira no ato voluntário livre o agente é causa de si isto é causa integral de sua ação Sem dúvida poderseia dizer que a vontade livre é determinada pela razão ou pela inteligência e nesse caso seria preciso admitir que não é causa de si ou incondicionada mas que é causada pelo raciocínio ou pelo pensamento No entanto como disseram os filósofos posteriores a Aristóteles a inteligência inclina a vontade numa certa direção mas não a obriga nem a constrange tanto assim que podemos agir na direção contrária à indicada pela inteligência ou razão É por ser livre e incondicionada que a vontade pode seguir ou não os conselhos da consciência A liberdade será ética quando o exercício da vontade estiver em harmonia com a direção apontada pela razão Sartre levou essa concepção ao ponto limite Para ele a liberdade é a escolha incondicional que o próprio homem faz de seu ser e de seu mundo Quando julgamos estar sob o poder de forças externas mais poderosas do que nossa vontade esse julgamento é uma decisão livre pois outros homens nas mesmas circunstâncias não se curvaram nem se resignaram Em outras palavras conformarse ou resignarse é uma decisão livre tanto quanto não se resignar nem se conformar lutando contra as circunstâncias Quando dizemos estar fatigados a fadiga é uma decisão nossa Quando dizemos estar enfraquecidos a fraqueza é uma decisão nossa Quando dizemos não ter o que fazer o abandono é uma decisão nossa Ceder tanto quanto não ceder é uma decisão nossa Por isso Sartre afirma que estamos condenados à liberdade É ela que define a humanidade dos humanos sem escapatória É essa idéia que encontramos no Marilena Chauí 465 poema de Carlos Drummond quando afirma que somos maiores do que o vasto mundo É ela também que se encontra no poema de Vicente de Carvalho quando nos diz que a felicidade está sempre apenas onde a pomos e nunca a pomos onde nós estamos Somos agentes livres tanto para ter quanto para perder a felicidade A segunda concepção da liberdade foi inicialmente desenvolvida por uma escola de Filosofia do período helenístico o estoicismo ressurgindo no século XVII com o filósofo Espinosa e no século XIX com Hegel e Marx Eles conservam a idéia aristotélica de que a liberdade é a autodeterminação ou ser causa de si Conservam também a idéia de que é livre aquele que age sem ser forçado nem constrangido por nada ou por ninguém e portanto age movido espontaneamente por uma força interna própria No entanto diferentemente de Aristóteles e de Sartre não colocam a liberdade no ato de escolha realizado pela vontade individual mas na atividade do todo do qual os indivíduos são partes O todo ou a totalidade pode ser a Natureza como para os estóicos e Espinosa ou a Cultura como para Hegel ou enfim uma formação históricosocial como para Marx Em qualquer dos casos é a totalidade que age ou atua segundo seus próprios princípios dando a si mesma suas leis suas regras suas normas Essa totalidade é livre em si mesma porque nada a força ou a obriga do exterior e por sua liberdade instaura leis e normas necessárias para suas partes os indivíduos Em outras palavras a liberdade agora não é um poder individual incondicionado para escolher a Natureza não escolhe a Cultura não escolhe uma formação social não escolhe mas é o poder do todo para agir em conformidade consigo mesmo sendo necessariamente o que é e fazendo necessariamente o que faz Como podemos observar essa concepção não mantém a oposição entre liberdade e necessidade mas afirma que a necessidade as leis da Natureza as normas e regras da Cultura as leis da História é a maneira pela qual a liberdade do todo se manifesta Em outras palavras a totalidade é livre porque se põe a si mesma na existência e define por si mesma as leis e as regras de sua atividade e é necessária porque tais leis e regras exprimem necessariamente o que ela é e faz Liberdade não é escolher e deliberar mas agir ou fazer alguma coisa em conformidade com a natureza do agente que no caso é a totalidade O que é então a liberdade humana São duas as respostas a essa questão 1 a primeira afirma que o todo é racional e que suas partes também o são sendo livres quando agirem em conformidade com as leis do todo para o bem da totalidade 2 a segunda afirma que as partes são de mesma essência que o todo e portanto são racionais e livres como ele dotadas de força interior para agir por si mesmas de sorte que a liberdade é tomar parte ativa na atividade do todo Tomar parte Convite à Filosofia 466 ativa significa por um lado conhecer as condições estabelecidas pelo todo conhecer suas causas e o modo como determinam nossas ações e por outro lado graças a tal conhecimento não ser um joguete das condições e causas que atuam sobre nós mas agir sobre elas também Não somos livres para escolher tudo mas o somos para fazer tudo quanto esteja de acordo com nosso ser e com nossa capacidade de agir graças ao conhecimento que possuímos das circunstâncias em que vamos agir Além da concepção de tipo aristotélicosartreano e da concepção de tipo estóico hegeliano existe ainda uma terceira concepção que procura unir elementos das duas anteriores Afirma como a segunda que não somos um poder incondicional de escolha de quaisquer possíveis mas que nossas escolhas são condicionadas pelas circunstâncias naturais psíquicas culturais e históricas em que vivemos isto é pela totalidade natural e histórica em que estamos situados Afirma como a primeira que a liberdade é um ato de decisão e escolha entre vários possíveis Todavia não se trata da liberdade de querer alguma coisa e sim de fazer alguma coisa distinção feita por Espinosa e Hobbes no século XVII e retomada no século XVIII por Voltaire ao dizerem que somos livres para fazer alguma coisa quando temos o poder para fazêla Essa terceira concepção da liberdade introduz a noção de possibilidade objetiva O possível não é apenas alguma coisa sentida ou percebida subjetivamente por nós mas é também e sobretudo alguma coisa inscrita no coração da necessidade indicando que o curso de uma situação pode ser mudado por nós em certas direções e sob certas condições A liberdade é a capacidade para perceber tais possibilidades e o poder para realizar aquelas ações que mudam o curso das coisas dandolhe outra direção ou outro sentido Na verdade a não ser aqueles filósofos que afirmaram a liberdade como um poder absolutamente incondicional da vontade em quaisquer circunstâncias como o fizeram por razões diferentes Kant e Sartre os demais nas três concepções apresentadas sempre levaram em conta a tensão entre nossa liberdade e as condições naturais culturais psíquicas que nos determinam As discussões sobre as paixões os interesses as circunstâncias históricosociais as condições naturais sempre estiveram presentes na ética e por isso uma idéia como a de possibilidade objetiva sempre esteve pressuposta ou implícita nas teorias sobre a liberdade Liberdade e possibilidade objetiva O possível não é o provável Este é o previsível isto é algo que podemos calcular e antever porque é uma probabilidade contida nos fatos e nos dados que analisamos O possível porém é aquilo criado pela nossa própria ação É o que vem à existência graças ao nosso agir No entanto não surge como árvore milagrosa e sim como aquilo que as circunstâncias abriram para nossa ação A Marilena Chauí 467 liberdade é a consciência simultânea das circunstâncias existentes e das ações que suscitadas por tais circunstâncias nos permitem ultrapassálas Nosso mundo nossa vida e nosso presente formam um campo de condições e circunstâncias que não foram escolhidas e nem determinadas por nós e em cujo interior nos movemos No entanto esse campo é temporal teve um passado tem um presente e terá um futuro cujos vetores ou direções já podem ser percebidos ou mesmo adivinhados como possibilidades objetivas Diante desse campo poderíamos assumir duas atitudes ou a ilusão de que somos livres para mudálo em qualquer direção que desejarmos ou a resignação de que nada podemos fazer Deixado a si mesmo o campo do presente seguirá um curso que não depende de nós e seremos submetidos passivamente a ele a torneira permanecerá seca ou vazará inundando a casa a luz permanecerá apagada ou haverá um curto circuito incendiando a casa a porta permanecerá fechada ou será arrombada deixando a casa ser invadida A liberdade porém não se encontra na ilusão do posso tudo nem no conformismo do nada posso Encontrase na disposição para interpretar e decifrar os vetores do campo presente como possibilidades objetivas isto é como abertura de novas direções e novos sentidos a partir do que está dado Nada melhor do que um outro poema de Carlos Drummond para expressar essa idéia Tratase de um poema no qual o poeta reconhece que seu coração não é mais vasto do que o mundo como ele imaginara MUNDO GRANDE Não meu coração não é maior que o mundo É muito menor Nele não cabem nem as minhas dores Por isso gosto tanto de me contar Por isso me dispo Por isso me grito Por isso freqüento os jornais me exponho cruamente nas livrarias Preciso de todos Sim meu coração é muito pequeno Só agora vejo que nele não cabem os homens Os homens estão cá fora estão na rua A rua é enorme Maior muito maior do que eu esperava Mas também na rua não cabem todos os homens A rua é menor que o mundo O mundo é grande Tu sabes como é grande o mundo Conheces os navios que levam petróleo e livros carne e algodão Viste as diferentes cores dos homens Convite à Filosofia 468 As diferentes dores dos homens Sabes como é difícil sofrer tudo isso amontoar tudo isso Num só peito de homem sem que ele estale Fecha os olhos e esquece Escuta a água nos vidros Tão calma Não anuncia nada Entretanto escorre nas mãos Tão calma Vai inundando tudo Renascerão as cidades submersas Os homens submersos voltarão Meu coração não sabe Estúpido ridículo e frágil é meu coração Só agora descubro Como é triste ignorar certas coisas Na solidão de indivíduo desaprendi a linguagem com que os homens se comunicam Outrora escutei os anjos As sonatas os poemas as confissões patéticas Nunca escutei voz de gente Em verdade sou muito pobre Outrora viajei Países imaginários fáceis de habitar Ilhas sem problemas não obstante exaustivas e convocando ao suicídio Meus amigos foram às ilhas Ilhas perdem o homem Entretanto alguns se salvaram e Trouxeram a notícia De que o mundo o grande mundo está crescendo todos os dias Entre o fogo e o amor Então meu coração também pode crescer Entre o amor e o fogo Entre a vida e o fogo Meu coração cresce dez metros e explode Ó vida futura Nós te criaremos Que nos diz o poeta Que não é na solidão de uma vontade individual mais vasto é meu coração como o poeta escrevera antes que podemos enfrentar livremente o mundo grande mas na companhia dos outros que nos trazem a notícia de que o mundo Marilena Chauí 469 cresce todo dia isto é transformase incessantemente entre fogo e amor entre lutas guerras conflitos e busca de paz entendimento e justiça Somos livres não contra o mundo mas no mundo meu coração cresce meu poder de querer e de fazer aumenta mudandoo na companhia dos outros aprendendo a linguagem com que os homens se comunicam isto é suas dores seus sofrimentos suas batalhas e suas esperanças Somente tendo contato com o mundo conhecendo seus limites e suas aberturas para os possíveis é que nossa liberdade poderá exclamar Ó vida futura nós te criaremos É essa mesma concepção da liberdade como possibilidade objetiva inscrita no mundo que encontramos no filósofo MerleauPonty quando escreve Nascer é simultaneamente nascer do mundo e nascer para o mundo Sob o primeiro aspecto o mundo já está constituído e somos solicitados por ele Sob o segundo aspecto o mundo não está inteiramente constituído e estamos abertos a uma infinidade de possíveis Existimos porém sob os dois aspectos ao mesmo tempo Não há pois necessidade absoluta nem escolha absoluta jamais sou como uma coisa e jamais sou uma pura consciência A situação vem em socorro da decisão e no intercâmbio entre a situação e aquele que a assume é impossível delimitar a parte que cabe à situação e a parte que cabe à liberdade Torturase um homem para fazêlo falar Se ele recusa dar nomes e endereços que lhe querem arrancar não é por sua decisão solitária e sem apoios no mundo É que ele se sente ainda com seus companheiros e ainda engajado numa luta comum ou é porque desde há meses ou anos tem enfrentado essa provocação em pensamento e nela apostara toda sua vida ou enfim é porque ele quer provar ultrapassandoa o que ele sempre pensou e disse sobre a liberdade Tais motivações não anulam a liberdade mas lhe dão ancoradouro no ser Ele não é uma consciência nua que resiste à dor mas o prisioneiro com seus companheiros ou com aqueles que ama e sob cujo olhar ele vive ou enfim a consciência orgulhosamente solitária que é ainda um modo de estar com os outros Escolhemos nosso mundo e nosso mundo nos escolhe Concretamente tomada a liberdade é sempre o encontro de nosso interior com o exterior degradandose sem nunca tornarse nula à medida que diminui a tolerância dos dados corporais e institucionais de nossa vida Há um campo de liberdade e uma liberdade condicionada porque tenho possibilidades próximas e distantes A escolha de vida que fazemos tem sempre lugar sobre a base de situações dadas e possibilidades abertas Minha liberdade pode desviar minha vida do sentido espontâneo que teria mas o faz deslizando sobre este sentido Convite à Filosofia 470 esposandoo inicialmente para depois afastarse dele e não por uma criação absoluta Sou uma estrutura psicológica e histórica Recebi uma maneira de existir um estilo de existência Todas as minhas ações e meus pensamentos estão em relação com essa estrutura No entanto sou livre não apesar disto ou aquém dessas motivações mas por meio delas são elas que me fazem comunicar com minha vida com o mundo e com minha liberdade A liberdade é a capacidade para darmos um sentido novo ao que parecia fatalidade transformando a situação de fato numa realidade nova criada por nossa ação Essa força transformadora que torna real o que era somente possível e que se achava apenas latente como possibilidade é o que faz surgir uma obra de arte uma obra de pensamento uma ação heróica um movimento antiracista uma luta contra a discriminação sexual ou de classe social uma resistência à tirania e a vitória contra ela O possível não é pura contingência ou acaso O necessário não é fatalidade bruta O possível é o que se encontra aberto no coração do necessário e que nossa liberdade agarra para fazerse liberdade Nosso desejo e nossa vontade não são incondicionados mas os condicionamentos não são obstáculos à liberdade e sim o meio pelo qual ela pode exercerse Se nascemos numa sociedade que nos ensina certos valores morais justiça igualdade veracidade generosidade coragem amizade direito à felicidade e no entanto impede a concretização deles porque está organizada e estruturada de modo a impedilos o reconhecimento da contradição entre o ideal e a realidade é o primeiro momento da liberdade e da vida ética como recusa da violência O segundo momento é a busca das brechas pelas quais possa passar o possível isto é uma outra sociedade que concretize no real aquilo que a nossa propõe no ideal Esse segundo momento indaga se um possível existe e se temos o poder para tornálo real isto é se temos como passar da pena de viver e da árvore milagrosa a uma felicidade que enfim esteja onde nós estamos O terceiro momento é o da nossa decisão de agir e da escolha dos meios para a ação O último momento da liberdade é a realização da ação para transformar um possível num real uma possibilidade numa realidade Eis por que o poeta José Paulo Paes introduz o mas o pior em seu poema De fato a torneira está seca mas o pior é não ter sede isto é não agir para que a água possa correr pela torneira De fato a luz está apagada mas o pior é gostar do escuro isto é não agir para que a luz possa acenderse De fato a porta está trancada mas o pior é saber que a chave está do lado de dentro e nada fazer para girála O mundo já está constituído escreve MerleauPonty a torneira está seca a luz apagada e a porta fechada Porém o mundo prossegue o filósofo não está completamente constituído não está pronto e acabado mas como escreve Marilena Chauí 471 Carlos Drummond o grande mundo está crescendo todo dia pelo fogo e amor dos seres humanos e o pior seria renunciar a ele por estarmos nele Vida e morte Vida e morte não são para nós humanos simples acontecimentos biológicos Como disse um filósofo as coisas aparecem e desaparecem os animais começam e acabam somente o ser humano vive e morre isto é existe Vida e morte são acontecimentos simbólicos são significações possuem sentido e fazem sentido Viver e morrer são a descoberta da finitude humana de nossa temporalidade e de nossa identidade uma vida é minha e minha a morte Esta e somente ela completa o que somos dizendo o que fomos Por isso os filósofos estóicos propunham que somente após a morte quando terminam as vicissitudes da vida podemos afirmar que alguém foi feliz ou infeliz Enquanto vivos somos tempo e mudança estamos sendo Os filósofos existencialistas disseram a existência precede a essência significando com isso que nossa essência é a síntese final do todo de nossa existência Quem não souber morrer bem terá vivido mal afirmou Sêneca Num de seus ensaios Que filosofar é aprender a morrer Montaigne escreve Qualquer que seja a duração de nossa vida ela é completa Sua utilidade não reside na quantidade de duração e sim no emprego que lhe dais Há quem viveu muito e não viveu Meditai sobre isso enquanto o podeis fazer pois depende de vós e não do número de anos terdes vivido bastante E conclui Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade quem aprendeu a morrer desaprendeu de servir nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal saber morrer nos exime de toda sujeição e coação Morrer é um ato solitário Morrese só a essência da morte é a solidão O morto parte sozinho os vivos ficam sozinhos ao perdêlo Resta saudade e recordação Viver é estar com os outros Vivese com outrem a essência da vida é a intercorporeidade e a intersubjetividade Os vivos estão entrelaçados estamos com os outros e eles estão conosco somos para os outros e eles são para nós No ensaio O filósofo e sua sombra MerleauPonty nos diz De morrese só para vivese só a conseqüência não é exata pois se apenas a dor e a morte forem invocadas para definir a subjetividade então para ela a vida com outros e no mundo serão impossíveis Estamos verdadeiramente sós apenas quando não o sabemos Essa ignorância é a solidão A solidão de onde emergimos para a vida intersubjetiva é Convite à Filosofia 472 apenas a névoa de uma vida anônima e a barreira que nos separa dos outros é impalpável A ética é o mundo das relações intersubjetivas isto é entre o eu e o outro como sujeitos e pessoas portanto como seres conscientes livres e responsáveis Nenhuma experiência evidencia tanto a dimensão essencialmente intersubjetiva da vida e da vida ética quanto a do diálogo Ouçamos ainda uma vez Merleau Ponty Na experiência do diálogo constituise entre mim e o outro um terreno comum meu pensamento e o dele formam um só tecido minhas falas e as dele são invocadas pela interlocução inseremse numa operação comum da qual nenhum de nós é o criador Há um entredois eu e o outro somos colaboradores numa reciprocidade perfeita coexistimos no mesmo mundo No diálogo fico liberado de mim mesmo os pensamentos de outrem são dele mesmo não sou eu quem os formo embora eu os aprenda tão logo nasçam e mesmo me antecipe a eles assim como as objeções de outrem arrancam de mim pensamentos que eu não sabia possuir de tal modo que se lhe empresto pensamentos em troca ele me faz pensar Somente depois quando fico sozinho e me recordo do diálogo fazendo deste um episódio de minha vida privada solitária quando outrem tornou se apenas uma ausência é que posso talvez sentilo como uma ameaça pois desapareceu a reciprocidade que nos relacionava na concordância e na discordância Porque a vida é intersubjetividade corporal e psíquica e porque a vida ética é reciprocidade entre sujeitos tantos filósofos deram à amizade o lugar de virtude proeminente expressão do mais alto ideal de justiça Num ensaio Discurso da servidão voluntária procurando compreender por que os homens renunciam à liberdade e voluntariamente servem aos tiranos La Boétie contrapôs a amizade à servidão voluntária escrevendo Certamente o tirano nunca ama e nem é amado A amizade é nome sagrado coisa santa só pode existir entre gente de bem nasce da mútua estima e se conserva não tanto por meio de benefícios mas pela vida boa e pelos costumes bons O que torna um amigo seguro de outro é a sua integridade Como garantias tem seu bom natural sua fidelidade sua constância Não pode haver amizade onde há crueldade e injustiça Entre os maus quando se juntam há uma conspiração não sociedade Não se apóiam mutuamente mas tememse mutuamente Não são amigos são cúmplices Assim também Espinosa afirma que o ser humano é mais livre na companhia dos outros do que na solidão e que somente os seres humanos livres são gratos e reconhecidos uns aos outros porque os sujeitos livres são aqueles que nunca agem com fraude mas sempre de boafé Marilena Chauí 473 Se perguntarmos quais são afinal os valores os motivos os fins e os comportamentos éticos responderemos dizendo que são aqueles nos quais buscamos eliminar a violência na relação com o outro ao mesmo tempo em que procuramos manter a fidelidade a nós mesmos Ético é não desaprender a linguagem com que os homens se comunicam e deixar o coração crescer para sermos mais nós mesmos quanto mais formos capazes de reciprocidade e solidariedade A ética se move no campo das paixões dos desejos das ações e dos princípios possuindo uma dimensão valorativa e normativa Por um lado valores e normas são exteriores e anteriores a nós definidos pela Cultura e pela sociedade onde vivemos mas por outro lado somos sujeitos éticos e portanto capazes tanto de interiorizar valores e normas existentes quanto de criar novos valores e normas Minha liberdade escreve um filósofo é o poder fundamental que tenho de ser o sujeito de todas as minhas experiências Por atos de liberdade interpretamos nossa situação valores normas princípios e dessa interpretação nasce em nós a aceitação ou a recusa a interiorização ou a transgressão a continuação ou a criação A ação mais alta da vida livre disse Nietzsche é nosso poder para avaliar os valores O filósofo grego Epicuro escreveu O essencial para nossa felicidade é nossa condição íntima e dela somos senhores Ser senhor de si isto é autônomo e ser capaz de philia isto é de reciprocidade de relação intersubjetiva como coexistência e nãoviolência é o núcleo da vida ética Como disse Epicuro a justiça não existe por si própria mas encontrase sempre nas relações recíprocas em qualquer tempo e lugar em que exista entre os humanos o pacto de não causar nem sofrer dano Convite à Filosofia 474 Capítulo 7 A vida política Paradoxos da política Não é raro ouvirmos dizer que lugar de estudante é na sala de aula e não na rua fazendo passeata ou estudante estuda não faz política Mas também ouvimos o contrário quando alguém diz que os estudantes estão alienados não se interessam por política No primeiro caso considerase a política uma atividade própria de certas pessoas encarregadas de fazêla os políticos profissionais enquanto no segundo caso considerase a política um interesse e mesmo uma obrigação de todos Assim um primeiro paradoxo da política faz aqui sua aparição é ela uma atividade específica de alguns profissionais da sociedade ou concerne a todos nós porque vivemos em sociedade Como se observa usamos a palavra política ora para significar uma atividade específica o governo realizada por um certo tipo de profissional o político ora para significar uma ação coletiva o movimento estudantil nas ruas de reivindicação de alguma coisa feita por membros da sociedade e dirigida aos governos ou ao Estado Afinal a política é uma profissão entre outras ou é uma ação que todos os indivíduos realizam quando se relacionam com o poder A política se refere às atividades de governo ou a toda ação social que tenha como alvo ou como interlocutor o governo ou o Estado No entanto podemos usar a palavra política ainda noutro sentido De fato freqüentemente encontramos expressões como política universitária política da escola política do hospital política da empresa política sindical Nesse conjunto de expressões já não encontramos a referência ao governo nem a profissionais da política Política universitária e política da escola referemse à maneira como uma instituição de ensino pública ou privada define sua direção e o modo de participação ou não de professores e estudantes em sua gestão ao modo como os recursos serão empregados ao currículo às formas de avaliação dos alunos e professores ao tipo de pessoa que será recebida como estudante ou como docente à carreira dos docentes aos salários e se a instituição for privada ao custo das mensalidades e matrículas etc Em sentido próximo a esse falase de política do hospital Já política da empresa referese ao modo de organização e divisão de poderes relativos aos investimentos e aos lucros de uma empresa à distribuição dos serviços à divisão Marilena Chauí 475 do trabalho às decisões sobre a produção e a distribuição dos produtos às relações com as outras empresas etc Política do sindicato referese à maneira de preencher os cargos de direção sindical às formas de representação e participação dos sindicalizados na direção do sindicato aos conteúdos e às formas das reivindicações e lutas dos sindicalizados em face de outros poderes etc Podemos então indagar Afinal o que é a política É a atividade de governo É a administração do que é público É profissão de alguns especialistas É ação coletiva referida aos governos Ou é tudo que se refira à organização e à gestão de uma instituição pública ou privada No primeiro caso governo e administração usamos política para nos referirmos a uma atividade que exige formas organizadas de gestão institucional e no segundo caso gestão e organização de instituições usamos política para nos referirmos ao fato de que organizar e gerir uma instituição envolve questões de poder Em resumo Política diz respeito a tudo quanto envolva relações de poder ou a tudo quanto envolva organização e administração de grupos Como veremos posteriormente o crescimento das atribuições conferidas aos governos sob a forma do Estado levou a uma ampliação do campo das atividades políticas que passaram a abranger questões administrativas e organizacionais decisões econômicas e serviços sociais Essa ampliação acabou levando a um uso generalizado da palavra política para referirse a toda modalidade de direção de grupos sociais que envolva poder administração e organização Podemos assim distinguir entre o uso generalizado e vago da palavra política e um outro mais específico e preciso que fazemos quando damos a ela três significados principais interrelacionados 1 o significado de governo entendido como direção e administração do poder público sob a forma do Estado O senso comum social tende a identificar governo e Estado mas governo e Estado são diferentes pois o primeiro diz respeito a programas e projetos que uma parte da sociedade propõe para o todo que a compõe enquanto o segundo é formado por um conjunto de instituições permanentes que permitem a ação dos governos Ao Estado conferese autoridade para gerir o erário ou fundo público por meio de impostos taxas e tributos para promulgar e aplicar as leis que definem os costumes públicos lícitos os crimes bem como os direitos e as obrigações dos membros da sociedade Também se reconhece como autoridade do governo ou do Estado o poder para usar a força polícia e exército contra aqueles que forem considerados inimigos da sociedade criminosos comuns e criminosos políticos Conferese igualmente ao governo ou ao Estado o poder para decretar a guerra e a paz Exigese dos membros da sociedade obediência ao governo ou ao Estado Convite à Filosofia 476 mas reconhecese o direito de resistência e de desobediência quando a sociedade julga o governo ou mesmo o Estado injusto ilegal ou ilegítimo A política neste primeiro sentido referese portanto à ação dos governantes que detêm a autoridade para dirigir a coletividade organizada em Estado bem como às ações da coletividade em apoio ou contrárias à autoridade governamental e mesmo à forma do Estado 2 o significado de atividade realizada por especialistas os administradores e profissionais os políticos pertencentes a um certo tipo de organização sociopolítica os partidos que disputam o direito de governar ocupando cargos e postos no Estado Neste segundo sentido a política aparece como algo distante da sociedade uma vez que é atividade de especialistas e profissionais que se ocupam exclusivamente com o Estado e o poder A política é feita por eles e não por nós ainda que eles se apresentem como representantes nossos 3 o significado derivado do segundo sentido de conduta duvidosa não muito confiável um tanto secreta cheia de interesses particulares dissimulados e freqüentemente contrários aos interesses gerais da sociedade e obtidos por meios ilícitos ou ilegítimos Este terceiro significado é o mais corrente para o senso comum social e resulta numa visão pejorativa da política Esta aparece como um poder distante de nós passase no governo ou no Estado exercido por pessoas diferentes de nós os administradores e profissionais da política através de práticas secretas que beneficiam quem as exerce e prejudicam o restante da sociedade Falase na política como mal necessário que precisamos tolerar e do qual precisamos desconfiar A desconfiança pode referirse tanto aos atuais ocupantes dos postos e cargos políticos quanto a grupos e organizações que lhes fazem oposição e pretendem derrubálos seja para ocupar os mesmos postos e cargos seja para criar um outro Estado através de uma revolução sócio econômica e política Onde está o paradoxo Na divergência entre o primeiro e o terceiro sentido da palavra política pois o primeiro se refere a algo geral que concerne à sociedade como um todo definindo leis e costumes garantindo direitos e obrigações criando espaço para contestações através da reivindicação da resistência e da desobediência enquanto o terceiro sentido afasta a política de nosso alcance fazendoa surgir como algo perverso e maléfico para a sociedade A divergência entre o primeiro e o terceiro é provocada pelo segundo significado isto é aquele que reduz a política à ação de especialistas e profissionais Essa situação paradoxal da política acaba por fazernos aceitar como óbvias e verdadeiras certas atitudes e afirmações que se examinadas mais a fundo seriam percebidas como absurdas Tomemos um exemplo recente da história da política do País Em 1993 durante o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal STF do pedido do expresidente Marilena Chauí 477 da república Fernando Collor de Mello de nãosuspensão de seus direitos políticos ouvimos em toda a parte a afirmação de que o Poder Judiciário do qual o Supremo Tribunal Federal é o órgão mais alto só teria sua dignidade preservada se o julgamento do pedido não fosse um julgamento político Onde está o paradoxo No fato de que a república brasileira é constituída por três poderes políticos executivo legislativo judiciário e portanto o Supremo Tribunal Federal sendo um poder político da República um poder do Estado não pode ficar fora da política Que sentido portanto poderia ter a idéia de que o órgão mais alto do Poder Judiciário não deve julgar politicamente Como desejar que um poder do Estado portanto um poder político aja fora da política Mais paradoxal ainda foi o modo como os juízes após o julgamento avaliaram seu próprio trabalho dizendo Foi um julgamento legal e não político Ora e nisso reside o paradoxo a lei não é feita pelo Poder Legislativo Não é parte da Constituição da República Não é parte essencial da política Como então separar o legal e o político se a lei é uma das formas fundamentais da ação política Na verdade quando se insistia em que o julgamento não fosse político e se elogiava o julgamento por ter sido apenas legal o que estava sendo pressuposto por todos sociedade e juízes era a identificação costumeira entre política e interesses particulares escusos contrários aos da maioria que por isso deve ser protegida pela lei contra a política O paradoxo está no fato de que uma forma essencial da política a lei aparece como proteção contra a própria política Uma outra afirmação que aceitamos tranqüilamente é aquele que acusa e critica uma greve declarando que se trata de greve política É curioso que usemos sem problema a expressão política sindical e ao mesmo tempo a condenemos criticando uma greve sob a alegação de ser política Em certos casos é compreensível o paradoxo Quando por exemplo se trata de trabalhadores de uma fábrica de automóveis que em nome de melhores salários entram em greve contra a direção da empresa compreendese que a greve seja considerada simplesmente econômica Ao criticála como greve política estáse como sempre querendo dizer que os grevistas sob a aparência de uma reivindicação salarial estariam defendendo interesses particulares escusos e ilegítimos ou buscando dissimuladamente vantagens e poderes para alguns sindicalistas A palavra política é assim empregada para dar um sentido pejorativo à greve Há casos porém em que a expressão greve política usada como crítica ou acusação é surpreendente Suponhamos por exemplo que os trabalhadores de um país façam uma greve geral contra o plano econômico do governo Estão portanto recusando uma política econômica e nesse caso a greve é e só pode ser política Por que então acusar uma greve por ela ser o que ela é O motivo é Convite à Filosofia 478 simples para o senso comum social dizer de alguma coisa que ela é política é fazer uma acusação A crítica só em aparência está dirigida contra a greve pois realmente está voltada contra a política imaginada como algo maléfico Essa visão generalizada da política como algo perverso perigoso distante de nós passase no Estado praticado por eles os políticos profissionais contra nós sob o disfarce de agirem por nós faz com que seja sentida como algo secreto e desconhecido uma conduta calculista e oportunista uma força corrupta e através da polícia uma força repressora usada contra a sociedade Essa imagem da política como um poder do qual somos vítimas tolerantes que consentem a violência é paradoxal pelo menos por dois motivos principais Em primeiro lugar porque a política foi inventada pelos humanos como o modo pelo qual pudessem expressar suas diferenças e conflitos sem transformálos em guerra total em uso da força e extermínio recíproco Numa palavra como o modo pelo qual os humanos regulam e ordenam seus interesses conflitantes seus direitos e obrigações enquanto seres sociais Como explicar então que a política seja percebida como distante maléfica e violenta Em segundo lugar porque a política foi inventada como o modo pelo qual a sociedade internamente dividida discute delibera e decide em comum para aprovar ou rejeitar as ações que dizem respeito a todos os seus membros Como explicar então que seja percebida como algo que não nos concerne mas nos prejudica não nos favorece mas favorece aos interesses escusos e ilícitos de outros Que aconteceu a essa invenção humana para tornarse paradoxalmente um fardo de que gostaríamos de nos livrar Cotidianamente jornais rádios televisões mostram no mundo inteiro fatos políticos que reforçam a visão pejorativa da política corrupção fraudes crimes impunes praticados por políticos mentiras provocando guerras para satisfazer aos interesses econômicos dos fabricantes de armamentos desvios de recursos públicos que deveriam ser usados contra a fome as doenças a pobreza aumento das desigualdades econômicas e sociais uso das leis com finalidades opostas aos objetivos que tiveram ao ser elaboradas etc Ao lado desses fatos não passa um dia sem que saibamos o modo desumano autoritário violento com que funcionários públicos cujo salário é pago por nós através de impostos tratam a população que busca os serviços públicos Também contribui para a visão negativa da política a maneira como as leis estão redigidas tornandose incompreensíveis para a sociedade e exigindo que sejam interpretadas por especialistas sem que tenhamos garantia de que as interpretam corretamente se o fazem em nosso favor ou em favor de privilégios escondidos O que é curioso porém aumentando nossa percepção da política como algo paradoxal é o fato de que só podemos opornos a tais fatos e lutar contra eles Marilena Chauí 479 através da própria política pois mesmo quando se faz uma guerra civil ou se realiza uma revolução os motivos e objetivos são a política isto é mudanças na forma e no conteúdo do poder Mesmo as utopias de emancipação do gênero humano contra todas as modalidades de servidão escravidão autoritarismo violência e injustiça concebem o término de poderes ilegítimos mas não o término da própria política As pessoas que desgostosas e decepcionadas não querem ouvir falar em política recusamse a participar de atividades sociais que possam ter finalidade ou cunho políticos afastamse de tudo quanto lembre atividades políticas mesmo tais pessoas com seu isolamento e sua recusa estão fazendo política pois estão deixando que as coisas fiquem como estão e portanto que a política existente continue tal qual é A apatia social é pois uma forma passiva de fazer política O vocabulário da política O historiador helenista Moses Finley estudando as sociedades grega e romana concluiu que o que chamamos de política foi inventado pelos gregos e romanos Antes de examinarmos o que foi tal invenção já podemos compreender a origem grecoromana do que chamamos de política pelo simples exame do vocabulário usado em política democracia aristocracia oligarquia tirania despotismo anarquia monarquia são palavras gregas que designam regimes políticos república império poder cidade ditadura senado povo sociedade pacto consenso são palavras latinas que designam regimes políticos agentes políticos formas de ação política A palavra política é grega ta politika vinda de polis Polis é a Cidade entendida como a comunidade organizada formada pelos cidadãos politikos isto é pelos homens nascidos no solo da Cidade livres e iguais portadores de dois direitos inquestionáveis a isonomia igualdade perante a lei e a isegoria o direito de expor e discutir em público opiniões sobre ações que a Cidade deve ou não deve realizar Ta politika são os negócios públicos dirigidos pelos cidadãos costumes leis erário público organização da defesa e da guerra administração dos serviços públicos abertura de ruas estradas e portos construção de templos e fortificações obras de irrigação etc e das atividades econômicas da Cidade moeda impostos e tributos tratados comerciais etc Civitas é a tradução latina de polis portanto a Cidade como ente público e coletivo Res publica é a tradução latina para ta politika significando portanto os negócios públicos dirigidos pelo populus romanus isto é os patrícios ou cidadãos livres e iguais nascidos no solo de Roma Convite à Filosofia 480 Polis e civitas correspondem imperfeitamente ao que no vocabulário político moderno chamamos de Estado o conjunto das instituições públicas leis erário público serviços públicos e sua administração pelos membros da Cidade Ta politika e res publica correspondem imperfeitamente ao que designamos modernamente por práticas políticas referindose ao modo de participação no poder aos conflitos e acordos na tomada de decisões e na definição das leis e de sua aplicação no reconhecimento dos direitos e das obrigações dos membros da comunidade política e às decisões concernentes ao erário ou fundo público Dizer que os gregos e romanos inventaram a política não significa dizer que antes deles não existiam o poder e a autoridade mas sim que inventaram o poder e a autoridade políticos propriamente ditos Para compreendermos o que se pretende dizer com isso convém examinarmos como era concebido e praticado o poder nas sociedades não grecoromanas O poder despótico Nas realezas existentes antes dos gregos nos territórios que viriam a formar a Grécia realezas micênicas e cretenses bem como as que existiam nos territórios que viriam a formar Roma realezas etruscas assim como nos grandes impérios orientais Pérsia Egito Babilônia Índia China vigorava o poder despótico ou patriarcal Em grego despotes e em latim paterfamilias o patriarca é o chefe de famíliaxiv cuja vontade absoluta é a lei Aquilo que apraz ao rei tem força de lei O poder era exercido por um chefe de família ou de famílias clã tribo aldeia cuja autoridade era pessoal e arbitrária decidindo sobre a vida e a morte de todos os membros do grupo sobre a posse e a distribuição das riquezas a guerra e a paz as alianças em geral sob a forma de casamentos o proibido e o permitido Embora de fato a origem desse poder estivesse na propriedade da terra e dos rebanhos sendo chefe o detentor da riqueza procuravase garantilo contra revoltas e desobediências afirmandose uma origem sobrenatural e divina para ele Aparecendo como designado pelos deuses e desejado por eles o detentor do poder também era detentor do privilégio de relacionarse diretamente com o divino ou com o sagrado concentrando em suas mãos a autoridade religiosa Por sua riqueza autoridade religiosa e posse de armas o detentor do poder era também chefe militar concentrando em suas mãos a chefia dos exércitos e a decisão sobre a guerra e a paz Era comandante O chefe era um senhor enfeixando em suas mãos a propriedade do solo e tudo quanto nele houvesse portanto a riqueza do grupo a autoridade religiosa e militar sendo por isso rei sacerdote e capitão Com o crescimento demográfico através das alianças pelos casamentos entre famílias régias a expansão territorial através das guerras de conquista a Marilena Chauí 481 divisão social do trabalho através da escravização dos vencidos de guerra e das funções domésticas das mulheres e os acordos militares e navais entre grupos a autoridade embora concentrada nas mãos do rei passa a ser delegada por ele a seus representantes em geral membros de sua família e das famílias aliadas Surge assim uma repartição das funções de direção ou de poder a casta sacerdotal detém a autoridade religiosa e a dos guerreiros a militar Senhores das terras dos escravos das mulheres das armas e dos deuses os grupos detentores da autoridade formavam a classe dominante economicamente e dirigente da comunidade sob o poder do rei ao qual prestavam juramento de lealdade e pagavam tributo pelo usufruto das terras pertencentes a ele e por ele cedidas aos demais A propriedade da terra e de seus produtos existia sob duas formas principais 1 como propriedade privada do rei e portanto como domínio pessoal do chefe ou patriarca Esse patrimônio ou propriedade patrimonial era cedido segundo a vontade arbitrária do rei aos chefes de clãs e tribos aos grupos sacerdotais e militares mediante serviços eou tributos Em geral esse tipo de propriedade prevalecia naquelas regiões em que o cultivo da terra exigia trabalhos imensos de irrigação e de transporte de água que um proprietário isolado não poderia realizar não só por lhe faltarem recursos para isso como também porque teria que atravessar terras de outros proprietários devendo pagarlhes tributos ou fazerlhes guerra A propriedade ficando na posse do rei permitia que este usasse os recursos vindos dos tributos para as grandes obras de irrigação e transporte de águas ao mesmo tempo em que possuía o poder para atravessar toda e qualquer terra para realizar as obras 2 como propriedade coletiva das aldeias ou propriedade comunal do chefe da aldeia que pagava tributos ao rei em troca de proteção submetendose ao poder régio e portanto à autoridade religiosa e militar do senhor Seja num caso como noutro o rei era forçado a exercer um controle cerrado sobre as chefias locais e sobre os que usufruíam as terras pois as rebeliões eram freqüentes e a disputa pelo poder interminável Tal controle era feito por representantes do rei quando percorriam as terras registrando a produção e recolhendo tributos punindo crimes cometidos contra as decisões e decretos régios sufocando revoltas e impedindo o surgimento de federações e confederações de aldeias Com isso o rei passou a ter uma imensa burocracia e imensos exércitos custeados pelos chefes locais e suas aldeias Os funcionários régios precisavam saber ler escrever e contar Nas sociedades de que falamos tais conhecimentos eram privilégio de um grupo os sacerdotes Por esse motivo a ênfase no caráter sagrado ou religioso do poder tendia a aumentar à medida que aumentava o poderio sacerdotal sustentáculo indispensável do poder régio Deuses e armas eram os pilares da autoridade Convite à Filosofia 482 Assim constituído o poder possuía as seguintes características despótico ou patriarcal era exercido pelo chefe de família sobre um conjunto de famílias a ele ligadas por laços de dependência econômica e militar por alianças matrimoniais numa relação pessoal em que o chefe garantia proteção e os súditos ofereciam lealdade e obediência jurando cumprir a vontade do primeiro total o detentor da autoridade possuía poder supremo inquestionável para decidir quanto ao permitido e ao proibido a lei exprime a vontade pessoal do chefe para estabelecer os vínculos com o sagrado isto é com os deuses e antepassados o chefe detém o poder religioso para decidir quanto à guerra e à paz o chefe detém o poder militar A tomada de decisão cabia exclusivamente ao rei Este possuía conselheiros sacerdotes e militares que o informavam e lhe sugeriam condutas e ações mas a decisão cabia apenas a ele O conselho era secreto os motivos de uma decisão eram secretos o que se passava entre o rei e seus conselheiros era secreto Somente a decisão tornavase pública sob a forma de um decreto real incorporado ou corporificado o detentor do poder figurava em seu próprio corpo as características do poder apresentandose como manifestação da própria comunidade Sua cabeça encarnava a autoridade que dirige seu peito encarnava a vontade que ordena seus membros superiores encarnavam os delegados que o representavam sacerdotes e militares seus membros inferiores encarnavam os súditos que o obedeciam Essa figuração do poder no corpo do próprio rei indicava a existência de uma organização social fortemente hierarquizada na qual cada indivíduo possuía um lugar fixo e predeterminado só tendo existência social graças a esse lugar O corpo do rei permitia não só figurar a hierarquia mas também a forte centralização da autoridade concentrada na cabeça e no peito do dirigente mágico por receber a autoridade dos deuses o detentor do poder possuía força sobrenatural ou mágica Sua palavra era um comando misterioso que fazia existir aquilo que era dito o rei dizia façase e as coisas aconteciam simplesmente porque ele as havia dito e desejado seus gestos e desejos tinham força para matar e curar sua maldição destruía tudo quanto fosse amaldiçoado por ele dele dependiam a fertilidade da terra a vitória ou a derrota na guerra o início ou o fim de uma peste fenômenos meteorológicos cataclismos transcendente por ser de origem divina o rei era divinizado e acreditavase em sua imortalidade como condição da preservação da comunidade Essa divinização o colocava acima e fora da comunidade Tal separação levava a considerar que o dirigente ocupava um lugar transcendente graças ao qual via tudo sabia tudo e podia tudo tendo o império total sobre a comunidade hereditário era transmitido ao primogênito do rei ou na falta deste a um membro da família real A família reinante constituía uma linhagem e uma Marilena Chauí 483 dinastia que só findava ou por falta de herdeiros diretos ou por usurpação do poder por uma outra família que dava início a uma nova linhagem ou dinastia A invenção da política Quando se afirma que os gregos e romanos inventaram a política o que se diz é que desfizeram aquelas características da autoridade e do poder Embora nos começos gregos e romanos tivessem conhecido a organização econômicosocial de tipo despótico ou patriarcal um conjunto de medidas foram tomadas pelos primeiros dirigentes os legisladores de modo a impedir a concentração dos poderes e da autoridade nas mãos de um rei senhor da terra da justiça e das armas representante da divindade A propriedade da terra não se tornou propriedade régia ou patrimônio privado do rei nem se tornou propriedade comunal ou da aldeia mas mantevese como propriedade de famílias independentes cuja peculiaridade estava em não formarem uma casta fechada sobre si mesma porém aberta à incorporação de novas famílias e de indivíduos ou nãoproprietários enriquecidos no comércio Apesar das diferenças históricas na formação da Grécia e de Roma há três aspectos comuns a ambas e decisivos para a invenção da política O primeiro como assinalamos há pouco é a forma da propriedade da terra o segundo o fenômeno da urbanização e o terceiro o modo de divisão territorial das cidades Como a propriedade da terra não pertencia à aldeia nem ao rei mas às famílias independentes e como as guerras ampliavam o contingente de escravos formou se na Grécia e em Roma uma camada pobre de camponeses que migraram para as aldeias ali se estabeleceram como artesãos e comerciantes prosperaram fizeram das aldeias cidades passaram a disputar o direito ao poder com as grandes famílias agrárias Uma luta de classes perpassa a história grega e romana exigindo solução A urbanização significou uma complexa rede de relações econômicas e sociais que colocava em confronto não só proprietários agrários de um lado e artesãos e comerciantes de outro mas também a massa de assalariados da população urbana os nãoproprietários genericamente chamados de os pobres A luta de classes incluía assim lutas entre os ricos e lutas entre ricos e pobres Tais lutas eram decorrentes do fato de que todos os indivíduos participavam das guerras externas tanto para a expansão territorial quanto para a defesa de sua cidade formando as milícias dos nativos da cidade Essa participação militar fazia com que todos se julgassem no direito de algum modo de intervir nas decisões econômicas e legais das cidades A luta das classes pedia uma solução Essa solução foi a política Finalmente os primeiros chefes políticos ou legisladores introduziram uma divisão territorial das cidades que visava a diminuir o poderio das famílias ricas agrárias dos artesãos e comerciantes urbanos ricos e à satisfazer a reivindicação Convite à Filosofia 484 dos camponeses pobres e dos artesãos e assalariados urbanos pobres Em Atenas por exemplo a polis foi subdividida em unidades sociopolíticas denominadas demos em Roma em tribus Quem nascesse num demos ou numa tribus independentemente de sua situação econômica tinha assegurado o direito de participar das decisões da cidade No caso de Atenas todos os naturais do demos tinham o direito de participar diretamente do poder donde o regime ser uma democracia Em Roma os não proprietários ou os pobres formavam a plebe que tinha o direito de eleger um representante o tribuno da plebe para defender e garantir os interesses plebeus junto aos interesses e privilégios dos que participavam diretamente do poder os patrícios que constituíam o populus romanus O regime político romano era assim uma oligarquia Diante do poder despótico gregos e romanos inventaram o poder político porque separaram a autoridade pessoal privada do chefe de família senhorio patriarcal e patrimonial e o poder impessoal público pertencente à coletividade separaram privado e público e impediram a identificação do poder político com a pessoa do governante Os postos de governo eram preenchidos por eleições entre os cidadãos de modo que o poder deixou de ser hereditário separaram autoridade militar e poder civil subordinando a primeira ao segundo Isso não significa que em certos casos como em Esparta e Roma o poder político não fosse também um poder militar mas sim que as missões militares deviam ser primeiro discutidas e aprovadas pela autoridade política e só depois realizadas Os chefes militares não eram vitalícios nem seus cargos eram hereditários mas eram eleitos periodicamente pelas assembléias dos cidadãos separaram autoridade mágicoreligiosa e poder temporal laico impedindo a divinização dos governantes Isso não significa que o poder político deixasse de ter laços com a autoridade religiosa os oráculos na Grécia e os augúrios em Roma eram respeitados firmemente pelo poder político Significa porém que os dirigentes desejavam a aprovação e a proteção dos deuses sem que isso implicasse a divinização dos governantes e a submissão da política à autoridade sacerdotal criaram a idéia e a prática da lei como expressão de uma vontade coletiva e pública definidora dos direitos e deveres para todos os cidadãos impedindo que fosse confundida com a vontade pessoal de um governante Ao criarem a lei e o direito afirmaram a diferença entre o poder político e todos os outros poderes e autoridades existentes na sociedade pois conferiram a uma instância impessoal e coletiva o direito exclusivo ao uso da força para punir crimes reprimir revoltas e matar para vingar em nome da coletividade um delito julgado intolerável por ela Em outras palavras retiraram dos indivíduos o direito de fazer justiça com as Marilena Chauí 485 próprias mãos e de vingar por si mesmos uma ofensa ou um crime O monopólio da força da vingança e da violência passou para o Estado sob a lei e o direito criaram instituições públicas para aplicação das leis e garantia dos direitos isto é os tribunais e os magistrados criaram a instituição do erário público ou do fundo público isto é dos bens e recursos que pertencem à sociedade e são por ela administrados por meio de taxas impostos e tributos impedindo a concentração da propriedade e da riqueza nas mãos dos dirigentes criaram o espaço político ou espaço público a assembléia grega e o senado romano no qual os que possuem direitos iguais de cidadania discutem suas opiniões defendem seus interesses deliberam em conjunto e decidem por meio do voto podendo também pelo voto revogar uma decisão tomada É esse o coração da invenção política De fato e como vimos a marca do poder despótico é o segredo a deliberação e a decisão a portas fechadas A política ao contrário introduz a prática da publicidade isto é a exigência de que a sociedade conheça as deliberações e participe da tomada de decisão Além disso a existência do espaço público de discussão deliberação e decisão significa que a sociedade está aberta aos acontecimentos que as ações não foram fixadas de uma vez por todas por alguma vontade transcendente que erros de avaliação e de decisão podem ser corrigidos que uma ação pode gerar problemas novos não previstos nem imaginados que exigirão o aparecimento de novas leis e novas instituições Em outras palavras gregos e romanos tornaram a política inseparável do tempo e como vimos no caso da ética ligada à noção de possível ou de possibilidade isto é a idéia de uma criação contínua da realidade social Para responder às diferentes formas assumidas pelas lutas de classes a política é inventada de tal maneira que a cada solução encontrada um novo conflito ou uma nova luta podem surgir exigindo novas soluções Em lugar de reprimir os conflitos pelo uso da força e da violência das armas a política aparece como trabalho legítimo dos conflitos de tal modo que o fracasso nesse trabalho é a causa do uso da força e da violência A democracia ateniense e as oligarquias de Esparta e da república romana fundaram a idéia e a prática da política na Cultura ocidental Eis por que os historiadores gregos quando a Grécia caiu sob o domínio do império de Alexandre da Macedônia e os historiadores romanos quando Roma sucumbiu ao domínio do império dos césares falaram em corrupção e decadência da política para eles o desaparecimento da polis e da res publica significava o retorno ao despotismo e o fim da vida política propriamente dita Evidentemente não devemos cair em anacronismos supondo que gregos e romanos instituíram uma sociedade e uma política cujos valores e princípios fossem idênticos aos nossos Em primeiro lugar a economia era agrária e Convite à Filosofia 486 escravista de sorte que uma parte da sociedade os escravos estava excluída dos direitos políticos e da vida política Em segundo lugar a sociedade era patriarcal e conseqüentemente as mulheres também estavam excluídas da cidadania e da vida pública A exclusão atingia também os estrangeiros e os miseráveis A cidadania era exclusiva dos homens adultos livres nascidos no território da Cidade Além disso a diferença de classe social nunca era apagada mesmo que os pobres tivessem direitos políticos Assim para muitos cargos o prérequisito da riqueza vigorava e havia mesmo atividades portadoras de prestígio que somente os ricos podiam realizar Era o caso por exemplo da liturgia grega e do evergetismo romano isto é de grandes doações em dinheiro à cidade para festas construção de templos e teatros patrocínio de jogos esportivos de trabalhos artísticos etc O que procuramos apontar não foi a criação de uma sociedade sem classes justa e feliz mas a invenção da política como solução e resposta que uma sociedade oferece para suas diferenças seus conflitos e suas contradições sem escondêlos sob a sacralização do poder e sem fecharse à temporalidade e às mudanças Sociedade contra o Estado Examinamos até aqui duas grandes respostas sociais ao poder a resposta despótica e a política Em ambas a sociedade procura organizarse economicamente a forma da propriedade mantendo e mesmo criando diferenças sociais profundas entre proprietários e nãoproprietários ricos e pobres livres e escravos homens e mulheres Essas diferenças engendram lutas internas que podem levar à destruição de todos os membros do grupo social Para regular os conflitos determinar limites às lutas garantir que os ricos conservem suas riquezas e os pobres aceitem sua pobreza surge uma chefia que como vimos pode tomar duas direções ou o chefe se torna senhor das terras armas e deuses e transforma sua vontade em lei ou o poder é exercido por uma parte da sociedade os cidadãos através de práticas e instituições públicas fundadas na lei e no direito como expressão da vontade coletiva Nos dois casos surge o Estado como poder separado da sociedade e encarregado de dirigila comandála arbitrar os conflitos e usar a força Há porém um terceiro caminho Fomos acostumados pela tradição antropológica européia a considerar as sociedades existentes na América como atrasadas primitivas e inferiores Essa visão nasceu do processo de colonização e conquista iniciado no século XVI Os conquistadores e colonizadores que aportaram na América interpretaram as diferenças entre eles e os nativos americanos como distinção hierárquica entre superiores e inferiores para eles os índios não tinham lei rei fé escrita moeda comércio História eram seres desprovidos dos traços daquilo que para o europeu cristão súdito de monarquias constituiria a civilização Marilena Chauí 487 Sem dúvida os conquistadores encontraram grandes impérios na América incas astecas e maias Por isso os destruíram a ferro e fogo exterminando as gentes pilhando as riquezas e erigindo igrejas sobre seus templos Todavia exceto por esses impérios destruídos os conquistadores encontraram as demais nações americanas organizadas de maneira incompreensível para os padrões europeus Transformaram o que eram incapazes de compreender em inferioridade dos americanos Considerandoos selvagens e bárbaros justificavam a escravidão a evangelização e o extermínio A visão européia depois compartilhada pelos brancos americanos era e é etnocêntrica isto é considera padrões valores e práticas dos brancos adultos proprietários europeus como universais e definidores da Cultura e da civilização Para o etnocentrismo portanto os nativos americanos possuíam e possuem sociedades carentes faltalhes o mercado moeda e comércio a escrita alfabética a História e o Estado Possuem portanto sociedades sem comércio sem escrita sem memória e sem Estado O antropólogo francês Pierre Clastres estudou essas sociedades por um prisma completamente diferente longe do etnocentrismo costumeiro Mostrou que possuem escrita mas que esta não é alfabética nem ideográfica ou hieroglífica isto é não é a escrita conhecida pelos ocidentais e orientais mas é simbólica gravada nos corpos das pessoas por sinais específicos inscrita com sinais específicos em objetos determinados e em espaços determinados Somos nós que não sabemos lêla Mostrou também que possuem memória mitos e narrativas dos povos transmitida oralmente de geração em geração transformandose de geração em geração Mostrou pelas mudanças na escrita e na memória que tais sociedades possuem História mas que esta é inseparável da relação dos povos com a Natureza diferentemente da nossa História que narra como nos separamos da Natureza e como a dominamos Mas sobretudo mostrou por que e como tais sociedades são contra o mercado e contra o Estado Em outras palavras não são sociedades sem comércio e sem Estado mas contrárias a eles As sociedades indígenas estudadas por Clastres são sulamericanas encontrando se num estágio anterior ao das sociedades indígenas da América do Norte e dos três grandes impérios situados no México na América Central e no norte da América do Sul São portanto sociedades que não se organizaram na forma das chefias norteamericanas nem dos grandes impérios mas inventaram uma organização deliberada para evitar aquelas duas formas de poder As sociedades indígenas são tribais ou comunais Nelas não há propriedade privada nem divisão social do trabalho não havendo portanto classes sociais nem luta de classes A propriedade é tribal ou comum e o trabalho se divide por sexo e idade São comunidades no sentido pleno do termo isto é são internamente homogêneas unas e indivisas possuindo uma História e um destino Convite à Filosofia 488 comuns São sociedades do caraacara onde todos se conhecem pelo nome e são vistos uns pelos outros diariamente Por isso mesmo nelas o poder não se destaca nem se separa não forma uma instância acima dela como na política nem fora dela como no despotismo A chefia não é um poder de mando a que a comunidade obedece O chefe não manda a comunidade não obedece A comunidade decide para si mesma de acordo com suas tradições e necessidades A oposição se estabelece não no interior da comunidade mas em seu exterior isto é nas relações com as outras comunidades portanto no que se refere à guerra e às alianças de sangue pelo casamento A função da chefia é representar a comunidade perante outras comunidades O que é e o que faz o chefe uma vez que não tem a função do poder pois este pertence à comunidade e dela não se separa O chefe possui três funções doar presentes fazer a paz e falar Exprimindo a benevolência dos deuses e a prosperidade da comunidade o chefe deve em certos períodos oferecer presentes a todos os membros da tribo isto é devolver a ela o que ela mesma produziu A doação de presentes é a maneira deliberada que a comunidade inventou para impedir que alguém possa concentrar bens e riquezas tornarse proprietário privado criar desigualdade econômica e social de onde surgem a luta de classes e a necessidade do poder do Estado Quando famílias ou indivíduos entram em conflito o chefe deve intervir Não dispõe de códigos legais para arbitrar o conflito em nome da lei Que faz ele A paz Como a obtém Apelando para o bom senso das partes aos bons sentimentos à memória da comunidade à tradição do bom convívio entre as pessoas Em suma através dele a comunidade fala para reafirmarse como comunidade indivisa Excetuandose a doação de presentes a paz entre membros da comunidade a diplomacia para tratar com outras comunidades aliadas e o direito a usar a força liderando os guerreiros durante a guerra a grande função da chefia situase na fala ou na Grande Palavra Todas as tardes o chefe se dirige a um local distante da aldeia mas visível e de onde possa ser ouvido e ali discursa Embora ouvido ninguém deve darlhe atenção e o que ele diz não é ordem ou comando obrigando à obediência Que diz ele Diz a palavra do poder canta sua força e coragem seu prestígio sua relação com os deuses seus grandes feitos Mas ninguém lhe dá atenção Ninguém o escuta A Grande Palavra tem significado simbólico a comunidade lembra a si mesma diariamente o risco e o perigo que correria se possuísse um chefe que lhe desse ordens e ao qual devesse obedecer A Grande Palavra simboliza a maneira pela qual a comunidade impede o advento do poder como algo separado dela e que a Marilena Chauí 489 comandaria pela coerção da lei e das armas Com a cerimônia da Grande Palavra a sociedade se coloca contra o surgimento do Estado Toda vez que o chefe não realiza as três funções internas e a função externa tais como a comunidade as define todas as vezes que pretende usar suas funções para criar o poder separado ele é morto pela comunidade Evidentemente nossa tendência será dizer que tal organização é própria de povos pouco numerosos e de uma vida sócioeconômica muito simples parecendonos a nós membros de sociedades complexas e de classes uma vaga lembrança utópica Pierre Clastres porém indaga Por que outras comunidades mundo afora não foram capazes de impedir o surgimento da propriedade privada das divisões sociais de castas e classes das desigualdades que resultaram na necessidade de criar o poder separado seja como poder despótico seja como poder político Por que afinal os homens sucumbiram à necessidade de criar o Estado como poder de coerção social Convite à Filosofia 490 Capítulo 8 As filosofias políticas 1ª parte A vida boa Quando lemos os filósofos gregos e romanos observamos que tratam a política como um valor e não como um simples fato considerando a existência política como finalidade superior da vida humana como a vida boa entendida como racional feliz e justa própria dos homens livres Embora considerem a forma mais alta de vida a do sábio contemplativo isto é do filósofo afirmam que para os nãofilósofos a vida superior só existe na Cidade justa e por isso mesmo o filósofo deve oferecer os conceitos verdadeiros que auxiliem na formulação da melhor política para a Cidade Política e Filosofia nasceram na mesma época Por serem contemporâneas dizse que a Filosofia é filha da polis e muitos dos primeiros filósofos os chamados présocráticos foram chefes políticos e legisladores de suas cidades Por sua origem a Filosofia não cessou de refletir sobre o fenômeno político elaborando teorias para explicar sua origem sua finalidade e suas formas A esses filósofos devemos a distinção entre poder despótico e poder político Origem da vida política Entre as explicações sobre a origem da vida política três foram as principais e as mais duradouras 1 As inspiradas no mito das Idades do Homem ou da Idade de Ouro Esse mito recebeu inúmeras versões mas em suas linhas gerais narra sempre o mesmo no princípio durante a Idade de Ouro os seres humanos viviam na companhia dos deuses nasciam diretamente da terra e já adultos eram imortais e felizes sua vida transcorria em paz e harmonia sem necessidade de leis e governo Em cada versão a perda da Idade de Ouro é narrada de modo diverso porém em todas a narrativa relata uma queda dos humanos que são afastados dos deuses tornamse mortais vivem isoladamente pelas florestas sem vestuário moradia alimentação segura sempre ameaçados pelas feras e intempéries Pouco a pouco descobrem o fogo passam a cozer os alimentos e a trabalhar os metais constroem cabanas tecem o vestuário fabricam armas para a caça e proteção contra animais ferozes formam famílias A última idade é a Idade do Ferro em geral descrita como a era dos homens organizados em grupos fazendo guerra entre si Para cessar o estado de guerra os deuses fazem nascer um homem eminente que redigirá as primeiras leis e Marilena Chauí 491 criará o governo Nasce a política com a figura do legislador enviado pelos deuses Com variantes esse mito será usado na Grécia por Platão e em Roma por Cícero para simbolizar a origem da política através das leis e da figura do legislador Leis e legislador garantem a origem racional da vida política a obra da razão sendo a ordem a harmonia e a concórdia entre os humanos sob a forma da Cidade A razão funda a política 2 As inspiradas pela obra do poeta grego Hesíodo O trabalho e os dias Agora a origem da vida política vinculase à doação do fogo aos homens feita pelo semideus Prometeu Graças ao fogo os humanos podem trabalhar os metais cozer os alimentos fabricar utensílios e sobretudo descobrirse diferentes dos animais Essa descoberta leva a perceber que viverão melhor se viverem em comunidade dividindo os trabalhos e as tarefas Organizados em comunidades colocamse sob a proteção dos deuses de quem receberam as leis e as orientações para o governo Pouco a pouco porém descobrem que sua vida possui problemas e exige soluções que somente eles podem enfrentar e encontrar Mantendo a piedade pelos deuses entretanto criam leis e instituições propriamente humanas dando origem à comunidade política propriamente dita É a teoria política defendida pelos sofistas Nessa concepção o desenvolvimento das técnicas e dos costumes leva a convenções entre os humanos para a vida em comunidade sob leis A convenção funda a política 3 As teorias que afirmam que a política decorre da Natureza e que a Cidade existe por natureza Os humanos são por natureza diferentes dos animais porque são dotados do logos isto é da palavra como fala e pensamento Por serem dotados da palavra são naturalmente sociais ou como diz Aristóteles são animais políticos Não é preciso buscar nos deuses nas leis ou nas técnicas a origem da Cidade basta conhecer a natureza humana para nela encontrar a causa da política Os humanos falantes e pensantes são seres de comunicação e é essa a causa da vida em comunidade ou da vida política Nessa concepção a Natureza funda a política Na primeira teoria a política é o remédio que a razão encontra para a perda da felicidade da comunidade originária Na segunda a política resulta do desenvolvimento das técnicas e dos costumes sendo uma convenção humana Na terceira enfim a política define a própria essência do homem e a Cidade é considerada uma instituição natural Enquanto as duas primeiras reelaboram racionalmente as explicações míticas a terceira parte diretamente da definição da natureza humana Finalidade da vida política Para os gregos a finalidade da vida política era a justiça na comunidade Convite à Filosofia 492 A noção de justiça fora inicialmente elaborada em termos míticos a partir de três figuras principais themis a lei divina que institui a ordem do Universo cosmos a ordem universal estabelecida pela lei divina e dike a justiça entre as coisas e entre os homens no respeito às leis divinas e à ordem cósmica Pouco a pouco a noção de dike tornase a regra natural para a ação das coisas e dos homens e o critério para julgálas A idéia de justiça se refere portanto a uma ordem divina e natural que regula julga e pune as ações das coisas e dos seres humanos A justiça é a lei e a ordem do mundo isto é da Natureza ou physis Lei nomos Natureza physis e ordem cosmos constituem assim o campo da idéia de justiça A invenção da política exigiu que as explicações míticas fossem afastadas themis e dike deixaram de ser vistas como duas deusas que impunham ordem e leis ao mundo e aos seres humanos passando a significar as causas que fazem haver ordem lei e justiça na Natureza e na polis Justo é o que segue a ordem natural e respeita a lei natural Mas a polis existe por natureza ou por convenção entre os homens A justiça e a lei política são naturais ou convencionais Essas indagações colocam de um lado os sofistas defensores do caráter convencional da justiça e da lei e de outro lado Platão e Aristóteles defensores do caráter natural da justiça e da lei Para os sofistas a polis nasce por convenção entre os seres humanos quando percebem que lhes é mais útil a vida em comum do que em isolamento Convencionam regras de convivência que se tornam leis nomos A justiça é o consenso quanto às leis e a finalidade da política é criar e preservar esse consenso Se a polis e as leis são convenções humanas podem mudar se mudarem as circunstâncias A justiça será permitir a mudança das leis sem que isso destrua a comunidade política e a única maneira de realizar mudanças sem destruição da ordem política é o debate para chegar ao consenso isto é a expressão pública da vontade da maioria obtida pelo voto Por esse motivo os sofistas se apresentavam como professores da arte da discussão e da persuasão pela palavra retórica Mediante remuneração ensinavam os jovens a discutir em público a defender e combater opiniões ensinandolhes argumentos persuasivos para os prós e os contras em todas as questões A finalidade da política era a justiça entendida como concórdia conseguida na discussão pública de opiniões e interesses contrários O debate dos opostos a exposição persuasiva dos argumentos antagônicos deviam levar à vitória do interesse mais bem argumentado aprovado pelo voto da maioria Marilena Chauí 493 Em oposição aos sofistas Platão e Aristóteles afirmam o caráter natural da polis e da justiça Embora concordem sob esse aspecto diferem no modo como concebem a própria justiça Para Platão os seres humanos e a polis possuem a mesma estrutura Os humanos são dotados de três almas ou três princípios de atividade a alma concupiscente ou desejante situada no ventre que busca satisfação dos apetites do corpo tanto os necessários à sobrevivência quanto os que simplesmente causam prazer a alma irascível ou colérica situada no peito que defende o corpo contra as agressões do meio ambiente e de outros humanos reagindo à dor na proteção de nossa vida e a alma racional ou intelectual situada na cabeça que se dedica ao conhecimento tanto sob a forma de percepções e opiniões vindas da experiência quanto sob a forma de idéias verdadeiras contempladas pelo puro pensamento Também a polis possui uma estrutura tripartite formada por três classes sociais a classe econômica dos proprietários de terra artesãos e comerciantes que garante a sobrevivência material da cidade a classe militar dos guerreiros responsável pela defesa da cidade e a classe dos magistrados que garante o governo da cidade sob as leis Um homem diz Platão é injusto quando a alma concupiscente os apetites e prazeres é mais forte do que as outras duas dominandoas Também é injusto quando a alma irascível a agressividade é mais poderosa do que a racional dominandoa O que é pois o homem justo Aquele cuja alma racional pensamento e vontade é mais forte do que as outras duas almas impondo à concupiscente a virtude da temperança ou moderação e à irascível a virtude da coragem que deve controlar a concupiscência O homem justo é o homem virtuoso a virtude domínio racional sobre o desejo e a cólera A justiça ética é a hierarquia das almas a superior dominando as inferiores O que é a justiça política Essa mesma hierarquia mas aplicada à comunidade Como realizar a Cidade justa Pela educação dos cidadãos homens e mulheres Platão não exclui as mulheres da política e critica os gregos por excluílas Desde a primeira infância a polis deve tomar para si o cuidado total das crianças educandoas para as funções necessárias à Cidade A educação dos cidadãos submete as crianças a uma mesma formação inicial em cujo término passam por uma seleção as menos aptas serão destinadas à classe econômica enquanto as mais aptas prosseguirão os estudos Uma nova seleção separa os jovens os menos aptos serão destinados à classe militar enquanto os mais aptos continuarão a ser educados O novo ciclo educacional ensina as ciências aos jovens e os submete a uma última seleção os menos aptos serão os administradores da polis enquanto os mais aptos prosseguirão os estudos Aprendem agora a Filosofia que os transformará em sábios legisladores para que sejam a classe dirigente Convite à Filosofia 494 A Cidade justa é governada pelos filósofos administrada pelos cientistas protegida pelos guerreiros e mantida pelos produtores Cada classe cumprirá sua função para o bem da polis racionalmente dirigida pelos filósofos Em contrapartida a Cidade injusta é aquela onde o governo está nas mãos dos proprietários que não pensam no bem comum da polis e lutarão por interesses econômicos particulares ou na dos militares que mergulharão a Cidade em guerras para satisfazer seus desejos particulares de honra e glória Somente os filósofos têm como interesse o bem geral da polis e somente eles podem governá la com justiça Por seu turno Aristóteles terá uma teoria política diversa da dos sofistas e de Platão Para determinar o que é a justiça diz ele precisamos distinguir dois tipos de bens os partilháveis e os participáveis Um bem é partilhável quando é uma quantidade que pode ser dividida e distribuída a riqueza é um bem partilhável Um bem é participável quando é uma qualidade indivisível que não pode ser dividida nem distribuída podendo apenas ser participada o poder político é um bem participável Existem pois dois tipos de justiça na Cidade a distributiva referente aos bens econômicos e a participativa referente ao poder político A Cidade justa saberá distinguilas e realizar ambas A justiça distributiva consiste em dar a cada um o que é devido e sua função é dar desigualmente aos desiguais para tornálos iguais Suponhamos por exemplo que a polis esteja atravessando um período de fome em decorrência de secas ou enchentes e que adquira alimentos para distribuílos a todos Para ser justa a Cidade não poderá repartilos de modo igual para todos De fato aos que são pobres deve doálos mas aos que são ricos deve vendêlos de modo a conseguir fundos para aquisição de novos alimentos Se doar a todos ou vender a todos será injusta Também será injusta se atribuir a todos as mesmas quantidades de alimentos pois dará quantidades iguais para famílias desiguais umas mais numerosas do que outras A função ou finalidade da justiça distributiva sendo a de igualar os desiguais dandolhes desigualmente os bens implica afirmar que numa cidade onde a diferença entre ricos e pobres é muito grande vigora a injustiça pois não dá a todos o que lhes é devido como seres humanos Na cidade injusta em lugar de permitirem aos pobres o acesso às riquezas por meio de limitações impostas à extensão da propriedade de fixação da boa remuneração do trabalho dos trabalhadores pobres de impostos e tributos que recaiam sobre os ricos apenas etc vedamlhes tal direito Ora somente os que não são forçados às labutas ininterruptas para a sobrevivência são capazes de uma vida plenamente humana e feliz A Cidade injusta portanto impede que uma parte dos cidadãos tenha assegurado o direito à vida boa Marilena Chauí 495 A justiça política consiste em respeitar o modo pelo qual a comunidade definiu a participação no poder Essa definição depende daquilo que a Cidade mais valoriza os regimes políticos variando em função do valor mais respeitado pelos cidadãos Há Cidades que valorizam a honra isto é a hierarquia social baseada no sangue na terra e nas tradições julgando o poder a honra mais alta que cabe a um só temse a monarquia onde é justo que um só participe do poder Há Cidades que valorizam a virtude como excelência de caráter coragem lealdade fidelidade ao grupo e aos antepassados julgando que o poder cabe aos melhores temse a aristocracia onde é justo que somente alguns participem do poder Há Cidades que valorizam a igualdade são iguais os que são livres consideram a diferença entre ricos e pobres econômica e não política julgando que todos possuem o direito de participar do poder temse a democracia onde é justo que todos governem Os regimes políticos Dois vocábulos gregos são empregados para compor as palavras que designam os regimes políticos arche o que está à frente o que tem comando e kratos o poder ou autoridade suprema As palavras compostas com arche arquia designam quantos estão no comando As compostas com kratos cracia designam quem está no poder Assim do ponto de vista da arche os regimes políticos são monarquia ou governo de um só monas oligarquia ou governo de alguns oligos poliarquia ou governo de muitos polos e anarquia ou governo de ninguém ana Do ponto de vista do kratos os regimes políticos são autocracia poder de uma pessoa reconhecida como rei aristocracia poder dos melhores democracia poder do povoxv Na Grécia e na Roma arcaicas predominaram as monarquias No entanto embora os antigos reis afirmassem ter origem divina e vontade absoluta a sociedade estava organizada de tal forma que o governante precisava submeter as decisões a um Conselho de Anciãos e à assembléia dos guerreiros ou chefes militares Isso fez com que pouco a pouco o regime se tornasse oligárquico ficando nas mãos das famílias mais ricas e militarmente mais poderosas cujos membros se consideravam os melhores donde a formação da aristocracia O único regime verdadeiramente democrático foi o de Atenas Nas demais cidades gregas e em Roma o regime político era oligárquicoaristocrático as famílias ricas sendo hereditárias no poder mesmo quando admitiam a entrada de novos membros no governo pois as novas famílias também se tornavam hereditárias Convite à Filosofia 496 Devemos a Platão e a Aristóteles duas idéias políticas elaboradas a partir da experiência política antiga a primeira delas é a distinção entre regimes políticos e nãopolíticos a segunda a da transformação de um regime político em outro Um regime só é político se for instituído por um corpo de leis publicamente reconhecidas e sob as quais todos vivem governantes e súditos governantes e cidadãos Em suma é político o regime no qual os governantes estão submetidos às leis Quando a lei coincide com a vontade pessoal e arbitrária do governante não há política mas despotismo e tirania Quando não há lei de espécie alguma não há política mas anarquia A presença ou ausência da lei conduz à idéia de regimes políticos legítimos e ilegítimos Um regime é legítimo quando além de legal é justo as leis são feitas segundo a justiça um regime é ilegítimo quando a lei é injusta ou quando é contrário à lei isto é ilegal ou enfim quando não possui lei alguma Os regimes políticos se transformam em decorrência de mudanças econômicas aumento do número de ricos e diminuição do número de pobres diminuição do número de ricos e aumento do número de pobres e de resultados de guerras conquistas de novos territórios e populações submissão a vencedores que conquistam a Cidade Presença ou ausência da lei variação econômica e militar determinam segundo Platão e Aristóteles a corrupção ou decadência dos regimes políticos a monarquia degenera em tirania quando um só governa para servir aos seus interesses pessoais a aristocracia degenera em oligarquia dos muito ricos plutocracia ou dos guerreiros timocracia que também governam apenas em seu interesse próprio a democracia degenera em demagogia e esta em anarquia Em geral a anarquia leva à tirania quando a sociedade desgovernada apela para um homem superior aos outros no manejo das armas e dos argumentos nele buscando a salvação A tipologia platônicoaristotélica segundo o valor dos que participam do poder e a teoria da decadência ou corrupção dos regimes políticos serão mantidas até o século XVIII aparecendo com vigor numa das obras políticas mais importantes da Ilustração O espírito das leis de Montesquieu Nessa obra encontramos também uma idéia desenvolvida por Aristóteles para quem a variação dos regimes políticos depende de dois fatores principais a natureza ou índole do povo e a extensão do território Assim por exemplo um povo cuja índole ou natureza tende espontaneamente para a igualdade e a liberdade e cuja Cidade é de pequena extensão territorial naturalmente instituirá uma democracia e será malavisada se a substituir por um outro regime Em contrapartida um povo cuja índole ou natureza tende espontaneamente para a obediência a uma única autoridade e que vive num território extenso naturalmente instituirá a monarquia sendo desavisada se a Marilena Chauí 497 substituir por outro regime político Em outras palavras os filósofos gregos legaram ao Ocidente a idéia de regimes políticos naturais Ética e política Se a política tem como finalidade a vida justa e feliz isto é a vida propriamente humana digna de seres livres então é inseparável da ética De fato para os gregos era inconcebível a ética fora da comunidade política a polis como koinonia ou comunidade dos iguais pois nela a natureza ou essência humana encontrava sua realização mais alta Quando estudamos a ética vimos que Aristóteles distinguira entre teoria e prática e nesta entre fabricação e ação isto é diferenciara poiesis e praxis Vimos também que reservara à praxis um lugar mais alto do que à fabricação definindo a como ação voluntária de um agente racional em vista de um fim considerado bom A praxis por excelência é a política A esse respeito na Ética a Nicômaco escreve Aristóteles Se em nossas ações há algum fim que desejamos por ele mesmo e os outros são desejados só por causa dele e se não escolhemos indefinidamente alguma coisa em vista de uma outra pois nesse caso iríamos ao infinito e nosso desejo seria fútil e vão é evidente que tal fim só pode ser o bem o Sumo Bem Se assim é devemos abarcar pelo menos em linhas gerais a natureza do Sumo Bem e dizer de qual saber ele provém Consideramos que ele depende da ciência suprema e arquitetônica por excelência Ora tal ciência é manifestamente a política pois é ela que determina entre os saberes quais são os necessários para as Cidades e que tipos de saberes cada classe de cidadãos deve possuir A política se serve das outras ciências práticas e legisla sobre o que é preciso fazer e do que é preciso absterse assim sendo o fim buscado por ela deve englobar os fins de todas as outras donde se conclui que o fim da política é o bem propriamente humano Mesmo se houver identidade entre o bem do indivíduo e o da Cidade é manifestamente uma tarefa muito mais importante e mais perfeita conhecer e salvaguardar o bem da Cidade pois o bem não é seguramente amável mesmo para um indivíduo mas é mais belo e mais divino aplicado a uma nação ou à Cidade Platão identificara a justiça no indivíduo e a justiça na polis Aristóteles subordina o bem do indivíduo ao Bem Supremo da polis Esse vínculo interno entre ética e política significava que as qualidades das leis e do poder dependiam das qualidades morais dos cidadãos e viceversa das qualidades da Cidade dependiam as virtudes dos cidadãos Somente na Cidade boa e justa os homens poderiam ser bons e justos e somente homens bons e justos são capazes de instituir uma Cidade boa e justa Convite à Filosofia 498 Romanos a construção do príncipe Após o primeiro período de sua história política a época arcaica e lendária dos reis patriarcais semihumanos e semidivinos Roma tornase uma república aristocrática governada pelos grandes senhores de terras os patrícios e pelos representantes eleitos pela plebe os tribunos da plebe O poder cabe a uma instituição designada como o Senado e o Povo Romano que pode em certas circunstâncias previstas na lei receber os homens novos isto é os plebeus que por suas riquezas casamentos ou feitos militares passam a fazer parte do grupo governante Roma é uma república por três motivos principais 1 o governo está submetido a leis escritas impessoais 2 a res publica coisa pública é o solo público romano distribuído às famílias patrícias mas pertencentes legalmente a Roma 3 o governo administra os fundos públicos recursos econômicos provenientes de impostos taxas e tributos usandoos para a construção de estradas aquedutos templos monumentos e novas cidades e para a manutenção dos exércitos No centro do governo estavam dois cônsules eleitos pelo Senado e pelo Povo Romano aos quais eram entregues dois poderes o administrativo gestão dos fundos e serviços públicos e o imperium isto é o poder judiciário e militar O Senado reservava para si duas autoridades o conselho dos magistrados e a autoridade moral sobre a religião e a política República oligárquica Roma é uma potência com vocação militar Em 50 anos conquista todo o mundo conhecido com exceção da Índia e da China Esse feito é obra militar dos cônsules que como dissemos foram investidos com o imperium poder judiciário e militar São imperadores Pouco a pouco à medida que Roma se torna uma potência mundial alguns dos cônsules Júlio César Numa Pompeu reivindicam mais poder e mais autoridade que lhes vão sendo concedidos pelo Senado e pelo Povo Romano Gradualmente sob a aparência de uma república aristocrática instalase uma república monárquica que se inicia com Júlio César e se consolidará nas mãos de Augusto Com ele a monarquia irá perdendo o caráter republicano até substituir o consulado tornandose senhorial e instituirse como Principado O príncipe é imperador chefe militar detentor do poder judiciário magistrado senhor das terras do império romano autoridade suprema Essa mudança transparece na teoria política Embora esta continue afirmando os valores republicanos importância das leis do direito e das instituições públicas particularmente do Senado e Povo Romano a preocupação dos teóricos estará voltada para a figura do príncipe Inspirandose no governantefilósofo de Platão os pensadores romanos como Cícero e Sêneca produzirão o ideal do príncipe perfeito ou do Bom Governo A nova teoria política mantém a idéia grega de que a comunidade política tem como finalidade a vida boa ou a justiça identificada com a ordem harmonia ou Marilena Chauí 499 concórdia no interior da Cidade No entanto agora a justiça dependerá das qualidades morais do governante O príncipe deve ser o modelo das virtudes para a comunidade pois ela o imitará Na verdade os pensadores romanos viramse entre duas teorias a platônica que pretendia chegar à política legítima e justa educando virtuosamente os governantes e a aristotélica que pretendia chegar à política legítima e justa propondo qualidades positivas para as instituições da Cidade das quais dependiam as virtudes dos cidadãos Entre as duas os romanos escolheram a platônica mas tenderam a dar menor importância à organização política da sociedade as três classes platônicas e maior importância à formação do príncipe virtuoso O príncipe como todo ser humano é passional e racional porém diferentemente dos outros humanos não poderá ceder às paixões mas apenas à razão Por isso deve ser educado para possuir um conjunto de virtudes que são próprias do governante justo ou seja as virtudes principescas O verdadeiro vir varão em latim possui três séries de virtutes ou qualidades morais A primeira delas é comum a todo homem virtuoso sendo constituída pelas quatro virtudes cardeais sabedoria ou prudência justiça ou eqüidade coragem e temperança ou moderação A segunda série constitui o conjunto das virtudes propriamente principescas honradez ou disposição para manter os princípios em todas as circunstâncias magnanimidade ou clemência isto é capacidade para dar punição justa e para perdoar e liberalidade isto é disposição para colocar sua riqueza a serviço do povo Finalmente a terceira série de virtudes referese aos objetivos que devem ser almejados pelo príncipe virtuoso honra glória e fama Cícero insiste em que o verdadeiro príncipe é aquele que nunca se deixa arrastar por paixões que o transformem numa besta Não pode ter a violência do leão nem a astúcia da raposa mas deve em todas as circunstâncias comportarse como homem dotado de vontade racional O príncipe será o Bom Governo se for um Bom Conselho isto é sábio devendo buscar o amor e o respeito dos súditos Em contraponto ao Bom Governo a teoria política ergue o retrato do tirano ou o príncipe vicioso bestial intemperante passional injusto covarde impiedoso avarento e perdulário sem honra fama ou glória odiado por todos e de todos temeroso Inseguro e odiado rodeiase de soldados vivendo isolado em fortalezas temendo a rua e a corte A teoria do Bom Governo deposita na pessoa do governante a qualidade da política e faz de suas virtudes privadas virtudes públicas O príncipe encarna a comunidade e a espelha sendo por ela imitado tanto na virtude quanto no vício Convite à Filosofia 500 O poder teológicopolítico o cristianismo Para compreendermos as teorias políticas cristãs precisamos ter em mente as duas tradições que o cristianismo recebe como herança e sobre as quais elaborará suas próprias idéias a hebraica e a romana Os hebreus embora tenham conhecido várias modalidades de governo patriarcas juízes reis deram ao poder sob qualquer forma em que fosse exercido uma marca fundamental irrevogável o caráter teocrático Em outras palavras consideravam eles que o poder em sua plenitude e verdade pertence exclusivamente a Deus e que este por meio dos anjos e dos profetas elege o dirigente ou os dirigentes O poder kratos pertence a Deus theos donde teocracia Além disso os hebreus se fizeram conhecer não só como Povo de Deus mas também como Povo da Lei a lei divina doada a Moisés e codificada por escrito A legalidade era algo tão profundo que quando o cristianismo se constitui como nova religião falase na Antiga Lei a aliança de Deus com o povo prometida a Noé Abraão e dada a Moisés e na Nova Lei a nova aliança de Deus com o povo através do messias Jesus Do lado romano o processo que viemos descrevendo acima prosseguiu e no período em que o cristianismo se expande e se encontra em vias de tornarse religião oficial do Império Romano o príncipe já se encontra investido de novos poderes Sendo Roma senhora do Universo o imperador romano tenderá a ser visto como senhor do Universo ocupando o topo da hierarquia do mundo em cujo centro está Roma a Cidade Eterna Ao imperador ou ao césar xvi cabe manter a harmonia e a concórdia no mundo a pax romana garantida pela força das armas Com isso o príncipe passou a enfeixar em suas mãos todos os poderes que antes cabiam ao Senado e Povo Romano foi sendo sacralizado à maneira do déspota oriental até ser considerado divino sendolhe atribuídos poderes que pertenciam a Júpiter fundador do povo restaurador da ordem universal e salvador do Universo Para cumprir suas tarefas o poder imperial centralizado e hierarquizado desenvolve um complexo sistema estatal em que prevalece o poderio dos funcionários imperiais civis e militares que se estende como uma rede intrincada de pequenos poderes por todo o território do Império Romano A elaboração da teoria política cristã como teologia política resultará da apropriação dessa dupla herança pelo poder eclesiástico A instituição eclesiástica Quando estudamos a ética vimos que o cristianismo diferentemente da maioria das religiões antigas não surge como religião nacional ou de um povo ou de um Estado determinados No entanto ele deveria ter sido uma religião nacional uma vez que Jesus se apresentava como o messias esperado pelo povo judaico Em outras palavras se Jesus tivesse sido vitorioso teria sido capitão rei e sacerdote Marilena Chauí 501 pois era assim que o messias havia sido imaginado e esperado Derrotado pela monarquia judaica que usara o poder do Império Romano para julgálo e condenálo Jesus ressurge ressuscita como figura puramente espiritual rei de um reino que não é deste mundo O cristianismo se constitui portanto à margem do poder político e contra ele pois os reinos deste mundo serão pouco a pouco vistos como obra de Satanás para a perdição do gênero humano Separado da ordem política estatal o cristianismo será organizado de maneira semelhante a outras crenças religiosas não oficiais tomará a forma de uma seita religiosa Nessa época seitas religiosas e correntes filosóficas que não possuíam a polis como referência pois Roma tudo dominava imperialmente não podiam mais dirigirse a uma comunidade política determinada a um povo determinado e por isso dirigiamse ao ser humano em geral sem distinção de nação ou povo O poder imperial romano criara sem o saber a idéia do homem universal sem pátria e sem comunidade política O cristianismo será uma seita religiosa dirigida aos seres humanos em geral com a promessa de salvação individual eterna À idéia política da lei escrita e codificada em regras objetivas contrapõe a idéia de lei moral invisível o dever à obediência a Deus e o amor ao próximo inscrita pelo Pai no coração de cada um Todavia a seita cristã irá diferenciarse de outras porque a herança judaica dos primeiros apóstolos e romana dos primeiros padres conduzirá à idéia de povo de Deus e de lei de Deus isto é a duas idéias políticas A seita cristã é uma comunidade cujos membros formam o povo de Deus sob a lei de Deus Essa comunidade é feita de iguais os filhos de Deus redimidos pelo Filho que recebem em conjunto a Palavra Sagrada e pelo batismo e eucaristia participam da nova lei a aliança do Pai com seu povo pela mediação do Filho A comunidade é a ekklesia isto é a assembléia dos fiéis a Igreja E esta é designada como reino de Deus Povo lei assembléia e reino essas palavras indicam por si mesmas a vocação política do cristianismo pois escolhe para referirse a si mesmo os vocábulos da tradição política judaica e romana A ekklesia organizase a partir de uma autoridade constituída pelo próprio Cristo quando na última ceia autoriza os apóstolos a celebrar a eucaristia o pão e o vinho como símbolos do corpo e sangue do messias e no dia de Pentecostes ordenalhes que preguem ao mundo inteiro a nova lei e a Boa Nova o Evangelho A autoridade apostólica não se limita a batismo eucaristia e evangelização Jesus deu aos apóstolos o poder para ligar os homens a Deus e dele desligálos quando lhes disse através de Pedro Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela Eu te darei as chaves do reino o que ligares na Terra será ligado no Céu o que desligares na Terra será desligado no Céuxvii Está fundada a Igreja como instituição de poder Esse poder como se observa é teocrático pois sua fonte é o próprio Deus e é Convite à Filosofia 502 superior ao poder político temporal uma vez que este seria puramente humano frágil e perecível criado por sedução demoníaca A ekklesia comunidade de bons e justos separada do Estado e do poder imperial organizase com normas e regras que estabelecem hierarquias de autoridade e de poder formando o que o romano santo Agostinho chamará de Civitas Dei a Cidade de Deus oposta à Cidade dos Homens injusta e satânica isto é Roma Essa instituição eclesiástica conseguirá converter o imperador Constantino transformará o cristianismo em religião oficial do Império Romano e absorverá a estrutura militar e burocrática do Império em sua própria organização O poder teológicopolítico O poderio da Igreja cresce à medida que se esfacela e desmorona o Império Romano Dois motivos levam a esse crescimento em primeiro lugar a expansão do próprio cristianismo pela obra da evangelização dos povos realizada pelos padres nos territórios do Império Romano e para além deles em segundo lugar porque o esfacelamento de Roma do qual resultará nos séculos seguintes a formação sócioeconômica conhecida como feudalismo fragmentou a propriedade da terra anteriormente tida como patrimônio de Roma e do imperador e fez surgirem pequenos poderes locais isolados de sorte que o único poder centralizado e homogeneamente organizado era o da Igreja A Igreja tanto em Roma quanto em Bizâncio tanto no Ocidente quanto no Oriente detém três poderes crescentes à medida que o Império decai 1 o poder religioso de ligar os homens a Deus e dele desligálos 2 o poder econômico decorrente de grandes propriedades fundiárias acumuladas no correr de vários séculos seja porque os nobres do Império ao se converterem doaram suas terras à instituição eclesiástica seja porque esta recebera terras como recompensa por serviços prestados aos imperadores 3 o poder intelectual porque se torna guardiã e intérprete única dos textos sagrados a Bíblia e de todos os textos produzidos pela cultura grecoromana direito filosofia literatura teatro manuais de técnicas etc Saber ler e escrever tornouse privilégio exclusivo da instituição eclesiástica Será a Igreja portanto a formuladora das teorias políticas cristãs para os reinos e impérios cristãos Essas teorias elaborarão a concepção teológicopolítica do poder isto é o vínculo interno entre religião e política As teorias teológicopolíticas Na elaboração da teologia política os teóricos cristãos dispunham de três fontes principais a Bíblia latina os códigos dos imperadores romanos conhecidos como Direito Romano e as idéias retiradas de algumas poucas obras conhecidas de Platão Aristóteles e sobretudo Cícero De Platão vinha a idéia da comunidade justa organizada hierarquicamente e governada por sábios legisladores De Aristóteles vinha a idéia de que a Marilena Chauí 503 finalidade do poder era a justiça como bem supremo da comunidade De Cícero a idéia do Bom Governo do príncipe virtuoso espelho para a comunidade De todos eles a idéia de que a política era resultado da Natureza e da Razão No entanto essas idéias filosóficas precisavam ser conciliadas com a outra fonte do conhecimento político a Bíblia E a conciliação não era fácil uma vez que a Escritura Sagrada não considera o poder como algo natural e originado da razão mas proveniente da vontade de Deus sendo portanto teocrático A Bíblia como se sabe é um conjunto de textos de proveniências épocas e autores muito diferentes escritos em várias línguas hebraico aramaico grego etc e formando dois grupos principais o Antigo e o Novo Testamento Ao ser traduzida para o latim os tradutores só dispunham da língua culta romana e dos textos que formavam o chamado Direito Romano A tradução verteu os diferentes textos para a linguagem latina clássica fazendo prevalecer a língua jurídica e legal romana combinando assim a forte tradição legalista judaica e a latina Essa Bíblia latinizada servirá de base para as teorias políticas e fornecerá os critérios para decidir o que aceitar e o que recusar das idéias de Platão Aristóteles e Cícero combinando de maneira complexa e às vezes pouco aceitável as concepções filosóficas e as teocráticas As teorias do poder teológicopolítico embora tenham recebido diferentes formulações no correr da Idade Média variando conforme as condições históricas exigiam apresentavam os seguintes pontos em comum o poder é teocrático isto é pertence a Deus e dele vem aos homens por ele escolhidos para representálo O fundamento dessa idéia é uma passagem do Antigo Testamento onde se lê Todo poder vem do Alto Por mim reinam os reis e governam os príncipesxviii O poder é um fator divino ou uma graça divina e o governante não representa os governados mas representa Deus perante os governados O regime político é a monarquia teocrática em que o monarca é rei pela graça de Deus A comunidade política se forma pelo pacto de submissão dos súditos ao rei o rei traz a lei em seu peito e o que apraz ao rei tem força de lei O rei é portanto a fonte da lei e da justiça afirmase que é pai da lei e filho da justiça Sendo autor da lei e tendo o poder pela graça de Deus está acima das leis e não pode ser julgado por ninguém tendo poder absoluto O fundamento dessa idéia é retirado de um preceito do Direito Romano que afirma Ninguém pode dar o que não tem e ninguém pode tirar o que não deu Se não foi o povo quem deu o poder ao rei pois o povo não tem o poder uma vez que este a Deus pertence o povo também não pode julgar o rei nem tirarlhe o poder Se um rei for tirânico e injusto nem assim os súditos podem resistirlhe nem depôlo pois ele está no poder pela vontade de Deus que para punir os pecados do povo o faz sofrer sob um tirano Este é um flagelo de Deus Porque o Convite à Filosofia 504 poder vem do alto porque o rei é pai da lei e está acima dela e porque os súditos fizeram o pacto de submissão o rei é intocável o príncipe cristão deve possuir o conjunto das virtudes cristãs fé esperança e caridade e o conjunto das virtudes definidos por Cícero e Sêneca como próprias do Bom Governo Sendo o espelho da comunidade em sua pessoa devem estar encarnadas as qualidades cristãs que a comunidade deve imitar Mesmo que considere a política algo natural como dizia Aristóteles e dirão vários teólogos como são Tomás de Aquino e mesmo que se considere que a comunidade política é obra da razão como diziam Platão e Cícero e afirmarão vários teólogos como Guilherme de Ockham ainda assim a finalidade suprema do poder político isto é o bem e a justiça não são estritamente terrenos ou temporais mas espirituais O príncipe é responsável pela finalidade mais alta da política a salvação eterna de seus súditos a comunidade e o rei formam o corpo político a cabeça é a coroa ou o rei o peito é a legislação sob a guarda dos magistrados e conselheiros do rei os membros superiores são os senhores ou barões que formam os exércitos do rei e a ele estão ligados por juramento de fidelidade ou de vassalagem e os membros inferiores são o povo que trabalha para o sustento do corpo político A polis platônica é assim transformada no corpo político do rei a hierarquia política e social é considerada ordenada por Deus e natural O mundo é um cosmos isto é uma ordem fixa de lugares e funções que cada ser minerais vegetais animais e humanos ocupa necessariamente e nos quais realiza sua natureza própria Os seres do cosmos estão distribuídos em graus e o grau inferior deve obediência ao superior submetendose a ele No caso da comunidade política a hierarquia obedece aos critérios das funções e da riqueza formando ordens sociais e corpos ou corporações que são órgãos do corpo político do rei Não existe a idéia de indivíduo mas de ordem ou corporação a que cada um pertence por vontade divina por natureza e por hereditariedade ninguém podendo subir ou descer na hierarquia a não ser por vontade expressa do rei Cada um nasce vive e morre no mesmo lugar social transmitindoo aos descendentes Esse papel central que as teorias conferem à idéia de cosmos hierárquico responde a três exigências práticas manter a concepção imperial romana e eclesiástica manter a concepção teocrática judaica e sobretudo oferecer uma garantia teóricopolítica a uma sociedade fragmentada em propriedades isoladas e espalhadas pelo antigo território do Império para as quais já não existe a referência urbana de Roma no topo da hierarquia encontramse o papa e o imperador O primeiro exige o poder espiritual o segundo o temporal Dada a ruralização da vida econômico social e sua fragmentação cada região possui um conjunto de senhores que Marilena Chauí 505 escolhe um rei entre seus pares garantindolhe e à sua dinastia a permanência indefinida no poder Este só passa a outro rei se o reinante morrer sem herdeiro do sexo masculino ou se trair seus pares e for por eles deposto ou se houver uma guerra na qual seja derrotado e o vencedor tenha força para reivindicar o poder régio A assembléia dos reis subordinase ao Grande Rei ou imperador da Europa Sacro Império RomanoGermânico que possui o poder teocrático isto é ele é escolhido por Deus e não pelos outros reis a justiça finalidade da comunidade cristã é a hierarquia de submissão e obediência do inferior ao superior pois é essa a ordem natural criada pela lei divina A vida temporal é inferior à vida espiritual e por isso a finalidade maior do governante é a salvação da alma imortal de seus súditos pela qual responderá perante Deus Auctoritas e potestas O vocabulário da política romana distinguia auctoritas e potestas a primeira é o poder no sentido pleno isto é a autoridade para promulgar as leis e fazer a justiça a segunda é o poder de fato para administrar coisas e pessoas A primeira é fundadora da comunidade política a segunda a atividade executiva A vida política cristã durante toda a Idade Média viuse envolvida no conflito entre esses dois poderes pois é evidente que um deles está subordinado ao outro e que a potestas e inferior à auctoritas No início da Idade Média não há conflito O papa possui a autoridade espiritual voltada para a salvação enquanto os reis possuem a autoridade legal e a potência administrativa temporais Pouco a pouco porém o conflito entre as duas autoridades se instala expressandose na chamada querela das investiduras Padres e bispos são administradores da Igreja no interior dos reinos e do conjunto formado por eles o Sacro Império RomanoGermânico Se são administradores devem ser investidos em seus cargos pelo rei e pelo imperador Isso significa porém que reis e imperadores passam a intervir na autoridade da Igreja e do papa o que para ambos é inaceitável Os juristas eclesiásticos elaboram uma legislação o direito canônico para garantir o poder do papa na investidura de padres e bispos Essa elaboração gradualmente leva à teoria do poder papal como autoridade suprema à qual deve submeterse o imperador As teorias teológicopolíticas foram elaboradas para resolver dois conflitos que atravessam toda a Idade Média o conflito entre o papa e o imperador de um lado e entre o imperador e as assembléias dos barões de outro O conflito papaimperador é conseqüência da concepção teocrática do poder Se Deus escolhe quem deverá representálo dando o poder ao escolhido quem é este o papa ou o imperador A primeira solução encontrada após a querela das investiduras foi trazida pelos juristas de Carlos Magno com a teoria da dupla investidura o imperador é Convite à Filosofia 506 investido no poder temporal pelo papa que o unge e o coroa o papa recebe do imperador a investidura da espada isto é o imperador jura defender e proteger a Igreja sob a condição de que esta nunca interfira nos assuntos administrativos e militares do império Assim o imperador depende do papa para receber o poder político mas o papa depende do imperador para manter o poder eclesiástico O conflito entre o imperador e as assembléias dos barões e reis diz respeito à escolha do imperador Este conflito revela o problema de uma política fundada em duas fontes antagônicas De fato barões e reis invocam a chamada Lei Régia Romana segundo a qual o governante recebe do povo o poder sendo portanto ocupante eleito do poder Barões e reis afirmam que são os instituidores do imperador Este porém invoca a Bíblia e a origem teocrática do poder afirmando que seu poder não vem dos barões e reis mas de Deus A solução será trazida pela teoria que distingue entre eleição e unção O imperador de fato é eleito pelos pares para o cargo mas só terá o poder através da unção com óleos santos afirmase que é ungido com o mesmo óleo que ungiu Davi e Salomão e quem unge o imperador é a Igreja isto é o papa Como se observa a teoria da dupla investidura e da distinção entre eleição e unção deixa o imperador à mercê do papa Para fortalecer o imperador contra o papa os reis e os barões é elaborada uma teoria que mais tarde sustentará as teorias da monarquia absoluta por direito divino Tratase da teologia política dos dois corpos do rei isto é do imperador Um reipelagraçadeDeus é a imitação de Jesus Cristo Jesus possui duas naturezas a humana mortal e a mística ou divina imortal Como Jesus o rei tem dois corpos um corpo humano que nasce vive adoece envelhece e morre e um corpo místico perene e imortal seu corpo político O corpo político do rei não nasce nem adoece envelhece ou morre Por isso ninguém a não ser Deus pode lhe dar esse corpo e ninguém a não ser Deus pode tirarlhe tal corpo Não o recebe nem dos barões e reis nem do papa e não pode serlhe tirado pelos reis pelos barões ou pelo papa O que é o corpo místicopolítico do rei A coroa o cetro o manto a espada o trono as terras as leis os impostos e tributos e seus descendentes ou sua dinastia Filho da justiça pai da lei marido da terra e de tudo o que nela existe o rei é inviolável e eterno porque é imitação do Cristo e imagem de Deus Nem eleito nem deposto por ninguém o poder político do rei o coloca fora e acima da comunidade tornandoo transcendente a ela Em relação ao papa a teoria dos dois corpos do rei dá ao imperador uma força teológica semelhante àquela que a doação das Chaves do Reino dava ao Vigário de Cristo Em relação aos reis e barões a teoria dá ao imperador a inviolabilidade do cargo e mais do que isso faz com que seja ele o doador de poder a seus inferiores Reis e barões terão poder por um favor do imperador assim como este recebe poder por um favor de Deus Marilena Chauí 507 O dualismo do poder No final da Idade Média sobretudo com a retomada das obras de Aristóteles pelos teólogos haverá um esforço para separar a Cidade de Deus a Igreja e a Cidade dos Homens a comunidade política Considerase que a primeira foi instituída e fundada diretamente por Deus com a doação das Chaves do Reino aos apóstolos mas a segunda foi instituída ou fundada pela Natureza que fez o homem um ser racional e um animal político Sem dúvida a boa cidade é a cidade dos homens cristã em harmonia com a Cidade de Deus mas as instituições políticas devem ser consideradas humanas criadas em concordância com a ordem e a lei naturais derivadas da lei divina eterna Um dos teóricos mais importantes da naturalidade da política é o teólogo são Tomás de Aquino para quem sendo o homem um animal social a sociabilidade natural já existia no Paraíso antes da queda e da expulsão dos seres humanos Após o pecado original os seres humanos não perderam sua natureza sociável e por isso naturalmente organizaramse em comunidades deramse leis e instituíram as relações de mando e obediência criando o poder político Diferentemente de santo Agostinho para quem o pecado tornara o homem perverso e violento injusto e fundador da Cidade dos Homens injusta como ele para são Tomás os humanos perderam a inocência original mas não perderam a natureza original que lhes fora dada por Deus Por esse motivo neles permaneceu o senso de justiça entendida como o dever de dar a cada um o que lhe é devido e com ela fundaram a comunidade política A finalidade da comunidade política é a ordem o inferior deve obedecer ao superior e a justiça dar a cada um segundo suas necessidades e méritos Ordem e justiça definem a comunidade política como o único instrumento humano legítimo para assegurar o bem comum Na mesma linha de separação entre poder espiritual da Igreja e poder temporal da comunidade política encontrase o teólogo inglês Guilherme de Ockham que para melhor definir a justiça e o bem comum introduz a idéia de direito subjetivo natural Para que a comunidade política possa realizar a justiça isto é dar a cada um o que lhe é devido segundo suas necessidades e seus méritos é preciso que o legislador e o magistrado possuam um critério ou uma medida que defina o justo Essa medida é o direito subjetivo natural de cada um e de todos os homens como o direito à vida à consciência e aos bens materiais e espirituais necessários à garantia da vida e da consciência Com são Tomás e Ockham novas idéias são trazidas à teoria política ainda que continue teológica isto é referida à vontade suprema de Deus Diante da tradição teocrática medieval são novas as idéias de comunidade política natural lei Convite à Filosofia 508 humana política e direito natural dos indivíduos como sujeitos dotados de consciência e de vontade Os dois teólogos mantêm a idéia de bom governo do príncipe cristão virtuoso e a de que a monarquia é a forma natural e melhor de governo a mais adequada para realizar a justiça como bem comum Conservam também a idéia de hierarquia natural criada pela lei divina eterna e concretizada pela lei natural Finalmente introduzem o primeiro esboço do que viria a ser conhecido com a Reforma Protestante como o direito de resistência dos súditos do tirano Os governados não podem depor nem matar o tirano mas podem resistir a ele buscando instrumentos legais que contestem sua autoridade forçandoo a abdicar do poder Um dos instrumentos legais mais importantes para isso é a idéia de direito subjetivo natural quando este é violado pelo governante o governo se torna ilegítimo o pacto de submissão perde a validade e o governante deve abdicar do poder Marilena Chauí 509 Capítulo 9 As filosofias políticas 2ª parte O ideal republicano À volta dos castelos feudais durante a Idade Média formaramse aldeias ou burgos Enquanto na sociedade como um todo prevalecia a relação de vassalagem juramento de fidelidade prestado por um inferior a um superior que prometia proteger o vassalo nos burgos a divisão social do trabalho fez aparecer uma outra organização social a corporação de ofício Tecelões pedreiros ferreiros médicos arquitetos comerciantes etc organizavamse em confrarias em que os membros estavam ligados por um juramento de confiança recíproca Embora internamente as corporações também fossem hierárquicas era possível a partir de regras convencionadas entre seus membros ascender na hierarquia e externamente nas relações com outras corporações todos eram considerados livres e iguais As corporações fazem surgir uma nova classe social que nos séculos seguintes irá tornarse economicamente dominante e buscará também o domínio político a burguesia nascida nos burgos Desde o início do século XV em certas regiões da Europa as antigas cidades do Império Romano e as novas cidades surgidas dos burgos medievais entram em desenvolvimento econômico e social Grandes rotas comerciais tornam poderosas as corporações e as famílias de comerciantes enquanto o poderio agrário dos barões começa a diminuir As cidades estão iniciando o que viria a ser conhecido como capitalismo comercial ou mercantil Para desenvolvêlo não podem continuar submetidas aos padrões às regras e aos tributos da economia feudal agrária e iniciam lutas por franquias econômicas As lutas econômicas da burguesia nascente contra a nobreza feudal prosseguem sob a forma de reivindicações políticas as cidades desejam independência em face de barões reis papas e imperadores Na Itália a redescoberta das obras de pensadores artistas e técnicos da cultura grecoromana particularmente das antigas teorias políticas suscitam um ideal político novo o da liberdade republicana contra o poder teológicopolítico de papas e imperadores Estamos no período conhecido como Renascimento no qual se espera reencontrar o pensamento as artes a ética as técnicas e a política existentes antes que o saber tivesse sido considerado privilégio da Igreja e os teólogos houvessem adquirido autoridade para decidir o que poderia e o que não poderia Convite à Filosofia 510 ser pensado dito e feito Filósofos historiadores dramaturgos retóricos tratados de medicina biologia arquitetura matemática enfim tudo o que fora criado pela cultura antiga é lido traduzido comentado e aplicado Esparta Atenas e Roma são tomadas como exemplos da liberdade republicana Imitálas e valorizar a prática política a vita activa contra o ideal da vida espiritual contemplativa imposto pela Igreja Falase agora na liberdade republicana e na vida política como as formas mais altas da dignidade humana Nesse ambiente entre 1513 e 1514 em Florença é escrita a obra que inaugura o pensamento político moderno O príncipe de Maquiavel Antes de O príncipe Embora diferentes e muitas vezes contrárias as obras políticas medievais e renascentistas operam num mundo cristão Isso significa que para todas elas a relação entre política e religião é um dado de que não podem escapar É verdade que as teorias medievais são teocráticas enquanto as renascentistas procuram evitar a idéia de que o poder seria uma graça ou um fator divino no entanto embora recusem a teocracia não podem recusar uma outra idéia cristã qual seja a de que o poder político só é legítimo se for justo e só será justo se estiver de acordo com a vontade de Deus e a Providência divina Assim elementos de teologia continuam presentes nas formulações teóricas da política Se deixarmos de lado as diferenças entre medievais e renascentistas e considerarmos suas obras políticas como cristãs poderemos perceber certos traços comuns a todas elas encontram um fundamento para a política anterior e exterior à própria política Em outras palavras para uns o fundamento da política encontrase em Deus seja na vontade divina que doa o poder aos homens seja na Providência divina que favorece o poder de alguns homens para outros encontrase na Natureza isto é na ordem natural que fez o homem um ser naturalmente político e para alguns encontrase na razão isto é na idéia de que existe uma racionalidade que governa o mundo e os homens tornaos racionais e os faz instituir a vida política Há pois algo Deus Natureza ou razão anterior e exterior à política servindo de fundamento a ela afirmam que a política é instituição de uma comunidade una e indivisa cuja finalidade é realizar o bem comum ou justiça A boa política é feita pela boa comunidade harmoniosa pacífica e ordeira Lutas conflitos e divisões são vistos como perigos frutos de homens perversos e sediciosos que devem a qualquer preço ser afastados da comunidade e do poder assentam a boa comunidade e a boa política na figura do bom governo isto é no príncipe virtuoso e racional portador da justiça da harmonia e da indivisão da comunidade Marilena Chauí 511 classificam os regimes políticos em justoslegítimos e injustosilegítimos colocando a monarquia e a aristocracia hereditárias entre os primeiros e identificando com os segundos o poder obtido por conquista e usurpação denominandoo tirânico Este é considerado antinatural irracional contrário à vontade de Deus e à justiça obra de um governante vicioso e perverso Em relação à tradição do pensamento político a obra de Maquiavel é demolidora e revolucionária Maquiavélico maquiavelismo Estamos acostumados a ouvir as expressões maquiavélico e maquiavelismo São usadas quando alguém deseja referirse tanto à política quanto aos políticos quanto a certas atitudes das pessoas mesmo quando não ligadas diretamente a uma ação política falase por exemplo num comerciante maquiavélico numa professora maquiavélica no maquiavelismo de certos jornais etc Quando ouvimos ou empregamos essas expressões Sempre que pretendemos julgar a ação ou a conduta de alguém desleal hipócrita fingidor poderosamente malévolo que brinca com sentimentos e desejos dos outros mentelhes faz a eles promessas que sabe que não cumprirá usa a boafé alheia em seu próprio proveito Falamos num poder maquiavélico para nos referirmos a um poder que age secretamente nos bastidores mantendo suas intenções e finalidades desconhecidas para os cidadãos que afirma que os fins justificam os meios e usa meios imorais violentos e perversos para conseguir o que quer que dá as regras do jogo mas fica às escondidas esperando que os jogadores causem a si mesmos sua própria ruína e destruição Maquiavélico e maquiavelismo fazem pensar em alguém extremamente poderoso e perverso sedutor e enganador que sabe levar as pessoas a fazerem exatamente o que ele deseja mesmo que sejam aniquiladas por isso Como se nota maquiavélico e maquiavelismo correspondem àquilo que em nossa cultura é considerado diabólico Que teria escrito Maquiavel para que gente que nunca leu sua obra e que nem mesmo sabe que existiu um dia em Florença uma pessoa com esse nome fale em maquiavélico e maquiavelismo A revolução maquiavelista Diferentemente dos teólogos que partiam da Bíblia e do Direito Romano para formular teorias políticas e diferentemente dos contemporâneos renascentistas que partiam das obras dos filósofos clássicos para construir suas teorias políticas Maquiavel parte da experiência real de seu tempo Foi diplomata e conselheiro dos governantes de Florença via as lutas européias de centralização monárquica França Inglaterra Espanha Portugal viu a Convite à Filosofia 512 ascensão da burguesia comercial das grandes cidades e sobretudo viu a fragmentação da Itália dividida em reinos ducados repúblicas e Igreja A compreensão dessas experiências históricas e a interpretação do sentido delas o conduziram à idéia de que uma nova concepção da sociedade e da política tornarase necessária sobretudo para a Itália e para Florença Sua obra funda o pensamento político moderno porque busca oferecer respostas novas a uma situação histórica nova que seus contemporâneos tentavam compreender lendo os autores antigos deixando escapar a observação dos acontecimentos que ocorriam diante de seus olhos Se compararmos o pensamento político de Maquiavel com os quatro pontos nos quais resumimos a tradição política observaremos por onde passa a ruptura maquiavelista 1 Maquiavel não admite um fundamento anterior e exterior à política Deus Natureza ou razão Toda Cidade diz ele em O príncipe está originariamente dividida por dois desejos opostos o desejo dos grandes de oprimir e comandar e o desejo do povo de não ser oprimido nem comandado Essa divisão evidencia que a Cidade não é uma comunidade homogênea nascida da vontade divina da ordem natural ou da razão humana Na realidade a Cidade é tecida por lutas internas que a obrigam a instituir um pólo superior que possa unificála e darlhe identidade Esse pólo é o poder político Assim a política nasce das lutas sociais e é obra da própria sociedade para dar a si mesma unidade e identidade A política resulta da ação social a partir das divisões sociais 2 Maquiavel não aceita a idéia da boa comunidade política constituída para o bem comum e a justiça Como vimos o ponto de partida da política para ele é a divisão social entre os grandes e o povo A sociedade é originariamente dividida e jamais pode ser vista como uma comunidade una indivisa homogênea voltada para o bem comum Essa imagem da unidade e da indivisão diz Maquiavel é uma máscara com que os grandes recobrem a realidade social para enganar oprimir e comandar o povo como se os interesses dos grandes e dos populares fossem os mesmos e todos fossem irmãos e iguais numa bela comunidade A finalidade política não é como diziam os pensadores gregos romanos e cristãos a justiça e o bem comum mas como sempre souberam os políticos a tomada e manutenção do poder O verdadeiro príncipe é aquele que sabe tomar e conservar o poder e que para isso jamais deve aliarse aos grandes pois estes são seus rivais e querem o poder para si mas deve aliarse ao povo que espera do governante a imposição de limites ao desejo de opressão e mando dos grandes A política não é a lógica racional da justiça e da ética mas a lógica da força transformada em lógica do poder e da lei 3 Maquiavel recusa a figura do bom governo encarnada no príncipe virtuoso portador das virtudes cristãs das virtudes morais e das virtudes principescas O príncipe precisa ter virtu mas esta é propriamente política referindose às Marilena Chauí 513 qualidades do dirigente para tomar e manter o poder mesmo que para isso deva usar a violência a mentira a astúcia e a força A tradição afirmava que o governante devia ser amado e respeitado pelos governados Maquiavel afirma que o príncipe não pode ser odiado Isso significa em primeiro lugar que deve ser respeitado e temido o que só é possível se não for odiado Significa em segundo lugar que não precisa ser amado pois isto o faria um pai para a sociedade e sabemos um pai conhece apenas um tipo de poder o despótico A virtude política do príncipe aparecerá na qualidade das instituições que soube criar e manter e na capacidade que tiver para enfrentar as ocasiões adversas isto é a fortuna ou sorte 4 Maquiavel não aceita a divisão clássica dos três regimes políticos monarquia aristocracia democracia e suas formas corruptas ou ilegítimas tirania oligarquia demagogiaanarquia como não aceita que o regime legítimo seja o hereditário e o ilegítimo o usurpado por conquista Qualquer regime político tenha a forma que tiver e tenha a origem que tiver poderá ser legítimo ou ilegítimo O critério de avaliação ou o valor que mede a legitimidade e a ilegitimidade é a liberdade Todo regime político em que o poderio de opressão e comando dos grandes é maior do que o poder do príncipe e esmaga o povo é ilegítimo caso contrário é legítimo Assim legitimidade e ilegitimidade dependem do modo como as lutas sociais encontram respostas políticas capazes de garantir o único princípio que rege a política o poder do príncipe deve ser superior ao dos grandes e estar a serviço do povo O príncipe pode ser monarca hereditário ou por conquista pode ser todo um povo que conquista pela força o poder Qualquer desses regimes políticos será legítimo se for uma república e não despotismo ou tirania isto é só é legítimo o regime no qual o poder não está a serviço dos desejos e interesses de um particular ou de um grupo de particulares Dissemos que a tradição grega tornara ética e política inseparáveis que a tradição romana colocara essa identidade da ética e da política na pessoa virtuosa do governante e que a tradição cristã transformara a pessoa política num corpo místico sacralizado que encarnava a vontade de Deus e a comunidade humana Hereditariedade personalidade e virtude formavam o centro da política orientada pela idéia de justiça e bem comum Esse conjunto de idéias e imagens é demolido por Maquiavel Um dos aspectos da concepção maquiavelista que melhor revela essa demolição encontrase na figura do príncipe virtuoso Quando estudamos a ética vimos que a questão central posta pelos filósofos sempre foi O que está e o que não está em nosso poder Vimos também que estar em nosso poder significava a ação voluntária racional livre própria da virtude e não estar em nosso poder significava o conjunto de circunstâncias externas que agem sobre nós e determinam nossa vontade e nossa ação Vimos ainda que esse conjunto de circunstâncias que não dependem de nós nem de Convite à Filosofia 514 nossa vontade foi chamado pela tradição filosófica de fortuna A oposição virtudefortuna jamais abandonou a ética e como esta surgia inseparável da política a mesma oposição se fez presente no pensamento político Neste o governante virtuoso é aquele cujas virtudes não sucumbem ao poderio da caprichosa e inconstante fortuna Maquiavel retoma essa oposição mas lhe imprime um sentido inteiramente novo A virtu do príncipe não consiste num conjunto fixo de qualidades morais que ele oporá à fortuna lutando contra ela A virtu é a capacidade do príncipe para ser flexível às circunstâncias mudando com elas para agarrar e dominar a fortuna Em outras palavras um príncipe que agir sempre da mesma maneira e de acordo com os mesmos princípios em todas as circunstâncias fracassará e não terá virtu alguma Para ser senhor da sorte ou das circunstâncias deve mudar com elas e como elas ser volúvel e inconstante pois somente assim saberá agarrálas e vencêlas Em certas circunstâncias deverá ser cruel em outras generoso em certas ocasiões deverá mentir em outras ser honrado em certos momentos deverá ceder à vontade dos outros em algumas ser inflexível O ethos ou caráter do príncipe deve variar com as circunstâncias para que sempre seja senhor delas A fortuna diz Maquiavel é sempre favorável a quem desejar agarrála Oferece se como um presente a todo aquele que tiver ousadia para dobrála e vencêla Assim em lugar da tradicional oposição entre a constância do caráter virtuoso e a inconstância da fortuna Maquiavel introduz a virtude política como astúcia e capacidade para adaptarse às circunstâncias e aos tempos como ousadia para agarrar a boa ocasião e força para não ser arrastado pelas más A lógica política nada tem a ver com as virtudes éticas dos indivíduos em sua vida privada O que poderia ser imoral do ponto de vista da ética privada pode ser virtu política Em outras palavras Maquiavel inaugura a idéia de valores políticos medidos pela eficácia prática e pela utilidade social afastados dos padrões que regulam a moralidade privada dos indiví duos O ethos político e o ethos moral são diferentes e não há fraqueza política maior do que o moralismo que mascara a lógica real do poder Por ter inaugurado a teoria moderna da lógica do poder como independente da religião da ética e da ordem natural Maquiavel só poderia ter sido visto como maquiavélico As palavras maquiavélico e maquiavelismo criadas no século XVI e conservadas até hoje exprimem o medo que se tem da política quando esta é simplesmente política isto é sem as máscaras da religião da moral da razão e da Natureza Para o Ocidente cristão do século XVI o príncipe maquiavelista não sendo o bom governo sob Deus e a razão só poderia ser diabólico À sacralização do poder feita pela teologia política só poderia oporse a demonização É essa Marilena Chauí 515 imagem satânica da política como ação social puramente humana que os termos maquiavélico e maquiavelismo designam O mundo desordenado A obra de Maquiavel criticada em toda a parte atacada por católicos e protestantes considerada atéia e satânica tornouse porém a referência obrigatória do pensamento político moderno A idéia de que a finalidade da política é a tomada e conservação do poder e que este não provém de Deus nem da razão nem de uma ordem natural feita de hierarquias fixas exigiu que os governantes justificassem a ocupação do poder Em alguns casos como na França e na Prússia surgirá a teoria do direito divino dos reis baseada na reformulação jurídica da teologia política do rei pela graça divina e dos dois corpos do rei Na maioria dos países porém a concepção teocrática não foi mantida e partindo de Maquiavel os teóricos tiveram que elaborar novas teorias políticas Para compreendermos os conceitos que fundarão essas novas teorias precisamos considerar alguns acontecimentos históricos que mudaram a face econômica e social da Europa entre os séculos XV e XVII Já mencionamos ao tratar do ideal republicano o novo papel das cidades e da nova classe social a burguesia no plano econômico social e político Outros fatores além do crescimento das corporações de ofício e do comércio são também importantes para o fortalecimento dessa nova classe a decadência e ruína de inúmeras famílias aristocráticas cujas riquezas foram consumidas nas guerras das Cruzadas contra os árabes e cujas terras ficaram abandonadas porque seus nobres senhores partiram para a guerra e ali morreram sem deixar herdeiros Outros contraíram dívidas com a coroa para compra de armamentos e pagamentos de exércitos para as Cruzadas suas terras sendo confiscadas pelo rei para cobrir as dívidas Os servos da gleba que trabalhavam nessas propriedades bem como os camponeses pobres e livres que as arrendavam em troca de serviços migravam para as cidades tornandose membros das corporações de ofícios ou servos urbanos de famílias nobres que haviam passado a dedicarse ao comércio a decadência agrária foi acelerada também por uma grande peste que assolou a Europa no final da Idade Média a chamada peste negra que dizimou gente gado e colheitas arruinando a nobreza fundiária e causando migrações para as cidades a vida urbana provocou o crescimento de atividades artesanais e com elas o desenvolvimento comercial para compra e venda dos produtos criando especialidades regionais e o intercâmbio comercial em toda a Europa as grandes rotas do comércio com o Oriente dominadas primeiro pelas cidades italianas e depois pelos impérios ultramarinos de Portugal Espanha Convite à Filosofia 516 Inglaterra e França deram origem a um novo tipo de riqueza o capital baseado no lucro advindo da exploração do trabalho dos homens pobres e livres que haviam migrado para as cidades e na exploração do trabalho escravo de nativos e negros nas Américas Nas cidades primeiro e no campo depois a miséria e as péssimas condições de trabalho e de vida levam os pobres a revoltas contra os ricos No campo tais revoltas foram um dos efeitos da Reforma Protestante que acusara a Igreja e a nobreza de cometerem o pecado da ambição explorando e oprimindo os pobres Nas cidades as revoltas populares eram também um efeito da Reforma Protestante que havia declarado a igualdade dos seres humanos afirmando como principal virtude o trabalho e principal vício a preguiça O desenvolvimento econômico das cidades o surgimento da burguesia comerciante ou mercantil o crescimento da classe dos trabalhadores pobres mas livres isto é sem laços de servidão com os senhores feudais a Reforma Protestante que questionara o poder econômico e político da Igreja as revoltas populares a guerra entre potências pelo domínio dos mares e dos novos territórios descobertos a queda de reis e de famílias da nobreza a ascensão de famílias comerciantes e de novos reis que as favoreciam contra os nobres todos esses fatos evidenciavam que a idéia cristã herdada do Império Romano e consolidada pela Igreja Romana de um mundo constituído naturalmente por hierarquias era uma idéia que não correspondia à realidade A nova situação histórica fazia aparecer dois fatos impossíveis de negar 1 a existência de indivíduos um burguês e um trabalhador não podiam invocar sangue família linhagem e dinastia para explicar por que existiam e por que haviam mudado de posição social mas só podiam invocar a si mesmos como indivíduos 2 a existência de conflitos entre indivíduos e grupos de indivíduos pela posse de riquezas cargos postos e poderes anulava a imagem da comunidade cristã una indivisa e fraterna Os teóricos precisavam portanto explicar o que eram os indivíduos e por que lutavam mortalmente uns contra os outros além de precisarem oferecer teorias capazes de solucionar os conflitos e as guerras sociais Em outras palavras foram forçados a indagar qual é a origem da sociedade e da política Por que indivíduos isolados formam uma sociedade Por que indivíduos independentes aceitam submeterse ao poder político e às leis A resposta a essas duas perguntas conduz às idéias de Estado de Natureza e Estado Civil Marilena Chauí 517 Estado de Natureza contrato social Estado Civil O conceito de Estado de Natureza tem a função de explicar a situação présocial na qual os indivíduos existem isoladamente Duas foram as principais concepções do Estado de Natureza 1 a concepção de Hobbes no século XVII segundo a qual em Estado de Natureza os indivíduos vivem isolados e em luta permanente vigorando a guerra de todos contra todos ou o homem lobo do homem Nesse estado reina o medo e principalmente o grande medo o da morte violenta Para se protegerem uns dos outros os humanos inventaram as armas e cercaram as terras que ocupavam Essas duas atitudes são inúteis pois sempre haverá alguém mais forte que vencerá o mais fraco e ocupará as terras cercadas A vida não tem garantias a posse não tem reconhecimento e portanto não existe a única lei é a força do mais forte que pode tudo quanto tenha força para conquistar e conservar 2 a concepção de Rousseau no século XVIII segundo a qual em Estado de Natureza os indivíduos vivem isolados pelas florestas sobrevivendo com o que a Natureza lhes dá desconhecendo lutas e comunicandose pelo gesto o grito e o canto numa língua generosa e benevolente Esse estado de felicidade original no qual os humanos existem sob a forma do bom selvagem inocente termina quando alguém cerca um terreno e diz É meu A divisão entre o meu e o teu isto é a propriedade privada dá origem ao Estado de Sociedade que corresponde agora ao Estado de Natureza hobbesiano da guerra de todos contra todos O Estado de Natureza de Hobbes e o Estado de Sociedade de Rousseau evidenciam uma percepção do social como luta entre fracos e fortes vigorando a lei da selva ou o poder da força Para cessar esse estado de vida ameaçador e ameaçado os humanos decidem passar à sociedade civil isto é ao Estado Civil criando o poder político e as leis A passagem do Estado de Natureza à sociedade civil se dá por meio de um contrato social pelo qual os indivíduos renunciam à liberdade natural e à posse natural de bens riquezas e armas e concordam em transferir a um terceiro o soberano o poder para criar e aplicar as leis tornandose autoridade política O contrato social funda a soberania Como é possível o contrato ou o pacto social Qual sua legitimidade Os teóricos invocarão o Direito Romano Ninguém pode dar o que não tem e ninguém pode tirar o que não deu e a Lei Régia romana O poder é conferido ao soberano pelo povo para legitimar a teoria do contrato ou do pacto social Partese do conceito de direito natural por natureza todo indivíduo tem direito à vida ao que é necessário à sobrevivência de seu corpo e à liberdade Por natureza todos são livres ainda que por natureza uns sejam mais fortes e outros mais fracos Um contrato ou um pacto dizia a teoria jurídica romana só tem Convite à Filosofia 518 validade se as partes contratantes forem livres e iguais e se voluntária e livremente derem seu consentimento ao que está sendo pactuado A teoria do direito natural garante essas duas condições para validar o contrato social ou o pacto político Se as partes contratantes possuem os mesmos direitos naturais e são livres possuem o direito e o poder para transferir a liberdade a um terceiro e se consentem voluntária e livremente nisso então dão ao soberano algo que possuem legitimando o poder da soberania Assim por direito natural os indivíduos formam a vontade livre da sociedade voluntariamente fazem um pacto ou contrato e transferem ao soberano o poder para dirigilos Para Hobbes os homens reunidos numa multidão de indivíduos pelo pacto passam a constituir um corpo político uma pessoa artificial criada pela ação humana e que se chama Estado Para Rousseau os indivíduos naturais são pessoas morais que pelo pacto criam a vontade geral como corpo moral coletivo ou Estado A teoria do direito natural e do contrato evidencia uma inovação de grande importância o pensamento político já não fala em comunidade mas em sociedade A idéia de comunidade pressupõe um grupo humano uno homogêneo indiviso compartilhando os mesmos bens as mesmas crenças e idéias os mesmos costumes e possuindo um destino comum A idéia de sociedade ao contrário pressupõe a existência de indivíduos independentes e isolados dotados de direitos naturais e individuais que decidem por um ato voluntário tornarem se sócios ou associados para vantagem recíproca e por interesses recíprocos A comunidade é a idéia de uma coletividade natural ou divina a sociedade a de uma coletividade voluntária histórica e humana A sociedade civil é o Estado propriamente dito Tratase da sociedade vivendo sob o direito civil isto é sob as leis promulgadas e aplicadas pelo soberano Feito o pacto ou o contrato os contratantes transferiram o direito natural ao soberano e com isso o autorizam a transformálo em direito civil ou direito positivo garantindo a vida a liberdade e a propriedade privada dos governados Estes transferiram ao soberano o direito exclusivo ao uso da força e da violência da vingança contra os crimes da regulamentação dos contratos econômicos isto é a instituição jurídica da propriedade privada e de outros contratos sociais como por exemplo o casamento civil a legislação sobre a herança etc Quem é o soberano Hobbes e Rousseau diferem na resposta a essa pergunta Para Hobbes o soberano pode ser um rei um grupo de aristocratas ou uma assembléia democrática O fundamental não é o número de governantes mas a determinação de quem possui o poder ou a soberania Esta pertence de modo absoluto ao Estado que por meio das instituições públicas tem o poder para promulgar e aplicar as leis definir e garantir a propriedade privada e exigir obediência incondicional dos governados desde que respeite dois direitos naturais intransferíveis o direito à vida e à paz pois foi por eles que o soberano Marilena Chauí 519 foi criado O soberano detém a espada e a lei os governados a vida e a propriedade dos bens Para Rousseau o soberano é o povo entendido como vontade geral pessoa moral coletiva livre e corpo político de cidadãos Os indivíduos pelo contrato criaramse a si mesmos como povo e é a este que transferem os direitos naturais para que sejam transformados em direitos civis Assim sendo o governante não é o soberano mas o representante da soberania popular Os indivíduos aceitam perder a liberdade civil aceitam perder a posse natural para ganhar a individualidade civil isto é a cidadania Enquanto criam a soberania e nela se fazem representar são cidadãos Enquanto se submetem às leis e à autoridade do governante que os representa chamamse súditos São pois cidadãos do Estado e súditos das leis A teoria liberal No pensamento político de Hobbes e Rousseau a propriedade privada não é um direito natural mas civil Em outras palavras mesmo que no Estado de Natureza em Hobbes e no Estado de Sociedade em Rousseau os indivíduos se apossem de terras e bens essa posse é o mesmo que nada pois não existem leis para garantilas A propriedade privada é portanto um efeito do contrato social e um decreto do soberano Essa teoria porém não era suficiente para a burguesia em ascensão De fato embora o capitalismo estivesse em vias de consolidação e o poderio econômico da burguesia fosse inconteste o regime político permanecia monárquico e o poderio político e o prestígio social da nobreza também permaneciam Para enfrentálos em igualdade de condições a burguesia precisava de uma teoria que lhe desse legitimidade tão grande ou maior do que o sangue e a hereditariedade davam à realeza e à nobreza Essa teoria será a da propriedade privada como direito natural e sua primeira formulação coerente será feita pelo filósofo inglês Locke no final do século XVII e início do século XVIII Locke parte da definição do direito natural como direito à vida à liberdade e aos bens necessários para a conservação de ambas Esses bens são conseguidos pelo trabalho Como fazer do trabalho o legitimador da propriedade privada enquanto direito natural Deus escreve Locke é um artífice um obreiro arquiteto e engenheiro que fez uma obra o mundo Este como obra do trabalhador divino a ele pertence É seu domínio e sua propriedade Deus criou o homem à sua imagem e semelhança deulhe o mundo para que nele reinasse e ao expulsálo do Paraíso não lhe retirou o domínio do mundo mas lhe disse que o teria com o suor de seu rosto Por todos esses motivos Deus instituiu no momento da criação do mundo e do Convite à Filosofia 520 homem o direito à propriedade privada como fruto legítimo do trabalho Por isso de origem divina ela é um direito natural O Estado existe a partir do contrato social Tem as funções que Hobbes lhe atribui mas sua principal finalidade é garantir o direito natural de propriedade Dessa maneira a burguesia se vê inteiramente legitimada perante a realeza e a nobreza e mais do que isso surge como superior a elas uma vez que o burguês acredita que é proprietário graças ao seu próprio trabalho enquanto reis e nobres são parasitas da sociedade O burguês não se reconhece apenas como superior social e moralmente aos nobres mas também como superior aos pobres De fato se Deus fez todos os homens iguais se a todos deu a missão de trabalhar e a todos concedeu o direito à propriedade privada então os pobres isto é os trabalhadores que não conseguem tornarse proprietários privados são culpados por sua condição inferior São pobres não são proprietários e são obrigados a trabalhar para outros seja porque são perdulários gastando o salário em vez de acumulálo para adquirir propriedades ou são preguiçosos e não trabalham o suficiente para conseguir uma propriedade Se a função do Estado não é a de criar ou instituir a propriedade privada mas de garantila e defendêla contra a nobreza e os pobres qual é o poder do soberano A teoria liberal primeiro com Locke depois com os realizadores da independência norteamericana e da Revolução Francesa e finalmente no século passado com pensadores como Max Weber dirão que a função do Estado é tríplice 1 por meio das leis e do uso legal da violência exército e polícia garantir o direito natural de propriedade sem interferir na vida econômica pois não tendo instituído a propriedade o Estado não tem poder para nela interferir Donde a idéia de liberalismo isto é o Estado deve respeitar a liberdade econômica dos proprietários privados deixando que façam as regras e as normas das atividades econômicas 2 visto que os proprietários privados são capazes de estabelecer as regras e as normas da vida econômica ou do mercado entre o Estado e o indivíduo intercala se uma esfera social a sociedade civil sobre a qual o Estado não tem poder instituinte mas apenas a função de garantidor e de árbitro dos conflitos nela existentes O Estado tem a função de arbitrar por meio das leis e da força os conflitos da sociedade civil 3 o Estado tem o direito de legislar permitir e proibir tudo quanto pertença à esfera da vida pública mas não tem o direito de intervir sobre a consciência dos governados O Estado deve garantir a liberdade de consciência isto é a liberdade de pensamento de todos os governados e só poderá exercer censura nos casos em que se emitam opiniões sediciosas que ponham em risco o próprio Estado Marilena Chauí 521 Na Inglaterra o liberalismo se consolida em 1688 com a chamada Revolução Gloriosa No restante da Europa será preciso aguardar a Revolução Francesa de 1789 Nos Estados Unidos consolidase em 1776 com a luta pela independência Liberalismo e fim do Antigo Regime As idéias políticas liberais têm como pano de fundo a luta contra as monarquias absolutas por direito divino dos reis derivadas da concepção teocrática do poder O liberalismo consolidase com os acontecimentos de 1789 na França isto é com a Revolução Francesa que derrubou o Antigo Regime Antigo em primeiro lugar porque politicamente teocrático e absolutista Antigo em segundo lugar porque socialmente fundado na idéia de hierarquia divina natural e social e na organização feudal baseada no pacto de submissão dos vassalos ou súditos ao senhor Com as idéias de direito natural dos indivíduos e de sociedade civil relações entre indivíduos livres e iguais por natureza quebrase a idéia de hierarquia Com a idéia de contrato social passagem da idéia de pacto de submissão à de pacto social entre indivíduos livres e iguais quebrase a idéia da origem divina do poder e da justiça fundada nas virtudes do bom governante O término do Antigo Regime se consuma quando a teoria política consagra a propriedade privada como direito natural dos indivíduos desfazendo a imagem do rei como marido da terra senhor dos bens e riquezas do reino decidindo segundo sua vontade e seu capricho quanto a impostos tributos e taxas A propriedade ou é individual e privada ou é estatal e pública jamais patrimônio pessoal do monarca O poder tem a forma de um Estado republicano impessoal porque a decisão sobre impostos tributos e taxas é tomada por um parlamento o poder legislativo constituído pelos representantes dos proprietários privados As teorias políticas liberais afirmam portanto que o indivíduo é a origem e o destinatário do poder político nascido de um contrato social voluntário no qual os contratantes cedem poderes mas não cedem sua individualidade vida liberdade e propriedade O indivíduo é o cidadão Afirmam também a existência de uma esfera de relações sociais separadas da vida privada e da vida política a sociedade civil organizada onde proprietários privados e trabalhadores criam suas organizações de classes realizam contratos disputam interesses e posições sem que o Estado possa aí intervir a não ser que uma das partes lhe peça para arbitrar os conflitos ou que uma das partes aja de modo que pareça perigoso para a manutenção da própria sociedade Afirmam o caráter republicano do poder isto é o Estado é o poder público e nele os interesses dos proprietários devem estar representados por meio do parlamento e do poder judiciário os representantes devendo ser eleitos por seus pares Quanto ao poder executivo em caso de monarquia pode ser hereditário mas o rei está submetido às leis como os demais súditos Em caso de democracia será Convite à Filosofia 522 eleito por voto censitário isto é são eleitores ou cidadãos plenos apenas os que possuírem uma certa renda ou riqueza O Estado através da lei e da força tem o poder para dominar exigir obediência e para reprimir punir o que a lei defina como crime Seu papel é a garantia da ordem pública tal como definida pelos proprietários privados e seus representantes A cidadania liberal O Estado liberal se apresenta como república representativa constituída de três poderes o executivo encarregado da administração dos negócios e serviços públicos o legislativo parlamento encarregado de instituir as leis e o judiciário magistraturas de profissionais do direito encarregados de aplicar as leis Possui um corpo de militares profissionais que formam as forças armadas exército e polícia encarregadas da ordem interna e da defesa ou ataque externo Possui também um corpo de servidores ou funcionários públicos que formam a burocracia encarregada de cumprir as decisões dos três poderes perante os cidadãos O Estado liberal julgava inconcebível que um nãoproprietário pudesse ocupar um cargo de representante num dos três poderes Ao afirmar que os cidadãos eram os homens livres e independentes queriam dizer com isso que eram dependentes e nãolivres os que não possuíssem propriedade privada Estavam excluídos do poder político portanto os trabalhadores e as mulheres isto é a maioria da sociedade Lutas populares intensas desde o século XVIII até nossos dias forçaram o Estado liberal a tornarse uma democracia representativa ampliando a cidadania política Com exceção dos Estados Unidos onde os trabalhadores brancos foram considerados cidadãos desde o século XVIII nos demais países a cidadania plena e o sufrágio universal só vieram a existir completamente no século XX como conclusão de um longo processo em que a cidadania foi sendo concedida por etapas Não menos espantoso é o fato de que em duas das maiores potências mundiais Inglaterra e França as mulheres só alcançaram plena cidadania em 1946 após a Segunda Guerra Mundial Podese avaliar como foi dura penosa e lenta essa conquista popular considerandose que por exemplo os negros do sul dos Estados Unidos só se tornaram cidadãos nos anos 60 do século passado Também é importante lembrar que em países da América Latina sob a democracia liberal os índios ficaram excluídos da cidadania e que os negros da África do Sul votaram pela primeira vez em 1994 As lutas indígenas em nosso continente e as africanas continuam até nossos diasxix Marilena Chauí 523 A idéia de revolução A política liberal foi o resultado de acontecimentos econômicos e sociais que impuseram mudanças na concepção do poder do Estado considerado instituído pelo consentimento dos indivíduos através do contrato social Tais acontecimentos ficaram conhecidos com o nome de revoluções burguesas isto é mudanças na estrutura econômica na sociedade e na política efetuadas por uma nova classe social a burguesia O uso da palavra revolução para designar tais mudanças é curioso De fato essa palavra provém do vocabulário da astronomia significando o movimento circular completo que um astro realiza ao voltar ao seu ponto de partida Uma revolução se efetua quando o movimento total de um astro faz coincidirem seu ponto de partida e seu ponto de chegada Revolução designa movimento circular cíclico isto é repetição contínua de um mesmo percurso Como entender que essa palavra tenha entrado para o vocabulário político significando mudanças e alterações profundas nas relações sociais e no poder Como entender que em vez de significar retorno circular e cíclico ao ponto de partida signifique exatamente o contrário isto é percurso rumo ao tempo novo e à sociedade nova Para responder a essas perguntas precisamos examinar um pouco mais de perto as revoluções burguesas isto é a Revolução Inglesa de 1644 a Revolução Norte Americana de 1776 e a Revolução Francesa de 1789 Embora em todas elas o resultado tenha sido o mesmo qual seja a subida e consolidação política da burguesia como classe dominante nas três houve o que um historiador denominou de revolução na revolução indicando com isso a existência de um movimento popular radical ou a face democrática e igualitária da revolução derrotada pela revolução burguesa Em outras palavras nas três revoluções a burguesia pretendeu e conseguiu derrotar a realeza e a nobreza passou a dominar o Estado e julgou com isso terminada a tarefa das mudanças enquanto as classes populares que participaram daquela vitória desejavam muito mais desejavam instituir uma sociedade inteiramente nova justa livre e feliz Ora as classes populares não possuíam teorias políticas de tipo filosófico e científico Para explicar o mundo em que viviam e o mundo que desejavam dispunham de uma única fonte a Bíblia Através da religião possuíam duas referências de justiça e felicidade a imagem do Paraíso terrestre no Antigo Testamento e o Reino de Deus na Terra ou Nova Jerusalém no Novo Testamento que restauraria o Paraíso depois que Cristo viesse ao mundo pela segunda vez e no fim dos tempos ou tempo do fim derrotasse para sempre o Mal As classes populares revolucionárias dispunham portanto de um imaginário messiânico e milenarista milenarista porque o Reino de Deus na Terra duraria mil anos de felicidade abundância e justiça Convite à Filosofia 524 Ao lutarem politicamente as classes populares olhavam para o passado o ponto de partida dos homens no Paraíso e para o futuro o ponto de chegada dos homens na Nova Jerusalém Olhavam para o tempo futuro e novo a sociedade dos justos na Terra que seria a restituição ou restauração do tempo passado original o Paraíso Porque o ponto de chegada e o ponto de partida do movimento político coincidiam com a existência da justiça e da felicidade o futuro e o passado se encontravam fechando o ciclo e o círculo da existência humana graças à ação do presente Por isso designaram os acontecimentos de que eram os sujeitos e protagonistas com a palavra revolução Se compararmos os movimentos revolucionários dos séculos XVII e XVIII com a teoria política liberal notaremos uma diferença importante entre eles De fato as teorias liberais separam o Estado e a sociedade civil O primeiro aparece como instância impessoal de dominação impõe obediência de estabelecimento e aplicação das leis como garantidor da ordem através do uso legal da violência para punir todo o crime definido pelas leis e como árbitro dos conflitos sociais A sociedade civil por seu turno aparece como um conjunto de relações sociais diversificadas entre classes e grupos sociais cujos interesses e direitos podem coincidir ou oporse Nela existem as relações econômicas de produção distribuição acumulação de riquezas e consumo de produtos que circulam através do mercado O centro da sociedade civil é a propriedade privada que diferencia indivíduos grupos e classes sociais e o centro do Estado é a garantia dessa propriedade sem contudo mesclar política e sociedade O coração do liberalismo é a diferença e a distância entre Estado e sociedade Ora as revoluções e sobretudo a face popular das revoluções operam exatamente com a indistinção entre Estado e sociedade entre ação política e relações sociais As revoluções pretendem derrubar o poder existente ou o Estado porque o percebem como responsável ou cúmplice das desigualdades e injustiças existentes na sociedade Em outras palavras a percepção de injustiças sociais leva às ações políticas Uma revolução pode começar como luta social que desemboca na luta política contra o poder ou pode começar como luta política que desemboca na luta por uma outra sociedade Eis por que em todas as revoluções burguesas vemos sempre acontecer o mesmo processo a burguesia estimula a participação popular porque precisa que a sociedade toda lute contra o poder existente conseguida a mudança política com a passagem do poder da monarquia à república a burguesia considera a revolução terminada as classes populares porém a prosseguem pois aspiram ao poder democrático e desejam mudanças sociais a burguesia vitoriosa passa a reprimir as classes populares revolucionárias desarma o povo que ela própria armara prende tortura e mata os chefes populares e encerra pela força o Marilena Chauí 525 processo revolucionário garantindo com o liberalismo a separação entre Estado e sociedade Significado político das revoluções Uma revolução seja ela burguesa ou popular possui um significado político da mais alta importância porque desvenda a estrutura e a organização da sociedade e do Estado Ela evidencia a divisão social e política sob a forma de uma polarização entre um alto opressor e um baixo oprimido a percepção do alto pelo baixo da sociedade como um poder que não é natural nem necessário mas resultado de uma ação humana e como tal pode ser derrubado e reconstruído de outra maneira a compreensão de que os agentes sociais são sujeitos políticos e como tais dotados de direitos A consciência dos direitos faz com que os sujeitos sóciopolíticos exijam reconhecimento e garantia de seus direitos pela sociedade e pelo poder político Eis por que toda revolução culmina numa declaração pública conhecida como Declaração Universal dos Direitos dos Cidadãos pela via da declaração dos direitos uma revolução repõe a relação entre poder político e justiça social mas com uma novidade própria do mundo moderno pois a justiça não depende mais da figura do bom governo do príncipe virtuoso e sim de instituições públicas que satisfaçam à demanda dos cidadãos ao Estado Cabe ao novo poder político criar instituições que possam satisfazer e garantir a luta revolucionária por direitos As revoluções sociais Acabamos de ver que as revoluções modernas possuem duas faces a face burguesa liberal a revolução é política visando à tomada do poder e à instituição do Estado como república e órgão separado da sociedade civil e a face popular a revolução é política e social visando à criação de direitos e à instituição do poder democrático que garanta uma nova sociedade justa e feliz Vimos também que nas revoluções modernas a face popular é sufocada pela face liberal embora esta última seja obrigada a introduzir e garantir alguns direitos políticos e sociais para o povo de modo a conseguir manter a ordem e evitar a explosão contínua de revoltas populares A face popular vencida não desaparece Ressurge periodicamente em lutas isoladas por melhores condições de vida de trabalho de salários e com reivindicações isoladas de participação política Essa face popular tende a crescer e manifestarse em novas revoluções derrotadas durante todo o século XIX à medida que se desenvolve o capitalismo industrial e as classes populares se tornam uma classe social de perfil muito definido os proletários ou trabalhadores industriais Convite à Filosofia 526 Correspondendo à emergência e à definição da classe trabalhadora proletária e à sua ação política em revoluções populares de caráter políticosocial surgem novas teorias políticas as várias teorias socialistas As teorias socialistas tomam o proletariado como sujeito político e histórico e procuram figurar uma nova sociedade e uma nova política na qual a exploração dos trabalhadores a dominação política a que estão submetidos e as exclusões sociais e culturais a que são forçados deixem de existir Porque seu sujeito político são os trabalhadores essas teorias políticas tendem a figurar a sociedade futura como igualitária feita de abundância justiça e felicidade Como percebem a cumplicidade entre o Estado e a classe economicamente dominante julgam que a existência do primeiro se deve apenas às necessidades econômicas da burguesia e por isso afirmam que na sociedade futura quando não haverá divisão social de classes nem desigualdades a política não dependerá do Estado São portanto teorias antiestatais que apostam na capacidade de autogoverno ou de autogestão da sociedade Marilena Chauí 527 Capítulo 10 A política contra a servidão voluntária A tradição libertária As teorias socialistas modernas são herdeiras da tradição libertária isto é das lutas sociais e políticas populares por liberdade e justiça contra a opressão dos poderosos Nessa tradição encontramse as revoltas camponesas e dos artesãos do final da Idade Média do início da Reforma Protestante e da Revolução Inglesa de 1644 Essas revoltas são conhecidas como milenaristas pois como vimos as classes populares possuem como referencial para compreender e julgar a política as imagens bíblicas do Paraíso da Nova Jerusalém e do tempo do fim quando o Bem vencerá perpetuamente o Mal instaurando o Reino dos Mil Anos de felicidade e justiça Na Revolução Inglesa os pobres tinham certeza de que chegara o tempo do fim e se aproximava o milênio Viam os sinais do fim fome peste guerras eclipses cometas prodígios inexplicáveis que anunciavam a vinda do AntiCristo e exigiam que fosse combatido pelos justos e bons Em geral o AntiCristo era identificado à pessoa de um governante tirânico papas reis imperadores Contra ele os pobres se reuniam em comunidades igualitárias armavamse e partiam para a luta pois deveriam preparar o mundo para a chegada triunfal de Cristo que venceria definitivamente o AntiCristo A esperança milenarista sempre viu a luta política como conflagração cósmica entre a luz e a treva o justo e o injusto o bem e o mal Também na tradição libertária encontrase a obra de um jovem filósofo francês La Boétie escrita no século XVI depois da derrota popular contra os exércitos e fiscais do rei que vinham cobrar um novo imposto sobre o sal La Boétie indaga como é possível que burgos inteiros cidades inteiras nações inteiras se submetam à vontade de um só em geral o mais covarde e temeroso de todos De onde um só tira o poder para esmagar todos os outros Duas são as respostas Na primeira La Boétie mostra que não é por medo que obedecemos à vontade de um só mas porque desejamos a tirania Como explicar que o tirano cujo corpo é igual ao nosso tenha crescido tanto com mil olhos e mil ouvidos para nos espionar mil bocas para nos enganar mil mãos para nos esganar mil pés para nos pisotear Quem lhe deu os olhos e os ouvidos dos espiões as bocas dos magistrados as mãos e os pés dos soldados O próprio povo Convite à Filosofia 528 A sociedade é como uma imensa pirâmide de tiranetes que se esmagam uns aos outros o corpo do tirano é formado pelos seis que o aconselham pelos sessenta que protegem os seis pelos seiscentos que defendem os sessenta pelos seis mil que servem aos seiscentos e pelos seis milhões que obedecem aos seis mil na esperança de conseguir o poder para mandar em outros A primeira resposta nos diz que o poder de um só sobre todos foi dado ao tirano por nosso desejo de sermos tiranos também A segunda resposta porém vai mais fundo La Boétie indaga De onde vem o próprio desejo de tirania Do desejo de ter bens e riquezas do desejo de ser proprietário Mas de onde vem esse desejo de ter de posse Do desprezo pela liberdade Se desejássemos verdadeiramente a liberdade jamais a trocaríamos pela posse de bens que nos escravizam aos outros e nos submetem à vontade dos mais fortes e tiranos Ao trocar o direito à liberdade pelo desejo de posses aceitamos algo terrível a servidão voluntária Não somos obrigados a obedecer ao tirano e aos seus representantes mas desejamos voluntariamente servilos porque deles esperamos bens e a garantia de nossas posses Usamos nossa liberdade para nos tornarmos servos Como derrubar um tirano e reconquistar a liberdade A resposta de La Boétie é espantosa basta não dar ao tirano o que ele pede e exige Não é preciso tomar das armas e fazerlhe a guerra Basta que não seja dado o que este deseja e será derrubado Que quer ele Nossa consciência e nossa liberdade sob o desejo de posses e de mando Se não trocarmos nossa consciência pela posse de bens e se não trocarmos nossa liberdade pelo desejo de mando nada daremos ao tirano e sem poder ele cairá como um ídolo de barro Das lutas populares e das tradições libertárias nascem as teorias socialistas modernas As teorias socialistas São três as principais correntes socialistas modernas Vejamos a seguir o que cada uma defende Socialismo utópico Essa corrente socialista vê a classe trabalhadora como despossuída oprimida e geradora da riqueza social sem dela desfrutar Para ela os teóricos imaginam uma nova sociedade onde não existam a propriedade privada o lucro dos capitalistas a exploração do trabalho e a desigualdade econômica social e política Imaginam novas cidades organizadas em grandes cooperativas geridas pelos trabalhadores e nas quais haja escola para todos liberdade de pensamento e de expressão igualdade de direitos sociais moradia alimentação transporte saúde abundância e felicidade Marilena Chauí 529 As cidades são comunidades de pessoas livres e iguais que se autogovernam Por serem cidades perfeitas que não existem em parte alguma mas que serão criadas pela vontade livre dos despossuídos dizse que são cidades utópicas e as teorias que as criaram são chamadas de utopiasxx Os principais socialistas utópicos foram os franceses SaintSimon Fourier Proudhon Louis Blanc e Banqui e o inglês Owen Anarquismo O principal teórico dessa corrente socialista foi o russo Bakunin inspirado nas idéias socialistas de Proudhon Seu ponto de partida é a crítica do individualismo burguês e do Estado liberal considerado autoritário e antinatural Como Rousseau os anarquistas acreditam na liberdade natural e na bondade natural dos seres humanos e em sua capacidade para viver felizes em comunidades atribuindo a origem da sociedade os indivíduos isolados e em luta à propriedade privada e à exploração do trabalho e a origem do Estado ao poder dos mais fortes os proprietários privados sobre os fracos os trabalhadores Contra o artificialismo da sociedade e do Estado propõem o retorno à vida em comunidades autogovernadas sem a menor hierarquia e sem nenhuma autoridade com poder de mando e direção Afirmam dois grandes valores a liberdade e a responsabilidade em cujo nome propõem a descentralização social e política a participação direta de todos nas decisões da comunidade a formação de organizações de bairro de fábrica de educação moradia saúde transporte etc Propõem também que essas organizações comunitárias participativas formem federações nacionais e internacionais para a tomada de decisões globais evitando porém a forma parlamentar de representação e garantindo a democracia direta As comunidades e as organizações comunitárias enviam delegados às federações Os delegados são eleitos para um mandato referente exclusivamente ao assunto que será tratado pela assembléia da federação terminada a assembléia o mandato também termina de sorte que não há representantes permanentes Visto que o delegado possui um mandato para expor e defender perante a federação as opiniões e decisões de sua comunidade se não cumprir o que lhe foi delegado seu mandato será revogado e um outro delegado eleito Como se observa os anarquistas procuram impedir o surgimento de aparelhos de poder que conduzam à formação do Estado Recusam por isso a existência de exércitos profissionais e defendem a tese do povo armado ou das milícias populares que se formam numa emergência e se dissolvem tão logo o problema tenha sido resolvido Consideram o Estado nacional obra do autoritarismo e da opressão capitalista e por isso contra ele defendem o internacionalismo sem fronteiras pois só o capital tem pátria e os trabalhadores são cidadãos do mundo Convite à Filosofia 530 Os anarquistas são conhecidos como libertários pois lutam contra todas as formas de autoridade e de autoritarismo Além de Bakunin outros importantes anarquistas foram Kropotkin Ema Goldman Tolstoi Malatesta e George Orwell autor do livro 1984xxi Comunismo ou socialismo científico Crítico não só do Estado liberal mas também do socialismo utópico e do anarquismo Encontrase desenvolvido nas obras de Marx e Engels A perspectiva marxista Com a obra de Marx estamos colocados diante de um acontecimento comparável apenas ao de Maquiavel Embora suas teorias sejam completamente diferentes pois respondem a experiências históricas e a problemas diferentes ambos representam uma mudança decisiva no modo de conceber a política e a relação entre sociedade e poder Maquiavel desmistificou a teologia política e o republicanismo italiano que simplesmente pretendia imitar gregos e romanos Marx desmistificou a política liberal Marx parte da crítica da economia política A expressão economia política é curiosa Com efeito a palavra economia vem do grego oikonomia composta de dois vocábulos oikos e nomos Oikos é a casa ou família entendida como unidade de produção agricultura pastoreio edificações artesanato trocas de bens entre famílias ou trocas de bens por moeda etc Nomos significa regra acordo convencionado entre seres humanos e por eles respeitado nas relações sociais Oikonomia é portanto o conjunto de normas de administração da propriedade patrimonial ou privada dirigida pelo chefe da família o despotes Vimos que os gregos inventaram a política porque separaram o espaço privado a oikonomia e o espaço público das leis e do direito a polis Como então falar em economia política Os dois termos não se excluem reciprocamente A crítica da economia política consiste justamente em mostrar que apesar das afirmações grecoromanas e liberais de separação entre a esfera privada da propriedade e a esfera pública do poder a política jamais conseguiu realizar a diferença entre ambas Nem poderia O poder político sempre foi a maneira legal e jurídica pela qual a classe economicamente dominante de uma sociedade manteve seu domínio O aparato legal e jurídico apenas dissimula o essencial que o poder político existe como poderio dos economicamente poderosos para servir seus interesses e privilégios e garantirlhes a dominação social Divididas entre proprietários e nãoproprietários trabalhadores livres escravos servos as sociedades jamais foram comunidades de iguais e jamais permitiram que o poder político fosse compartilhado com os nãoproprietários Por que a expressão economia política tornouse possível na modernidade e doravante visível Porque a idéia moderna liberal de sociedade civil tornou Marilena Chauí 531 explícita a significação da economia política ainda que a ideologia liberal exista para esconder tal fato De fato a economia política surge como ciência no final do século XVIII e início do século XIX na França e na Inglaterra para combater as limitações que o Antigo Regime impunha ao capitalismo As restrições econômicas próprias da sociedade feudal e o controle da atividade mercantil pelo Estado monárquico eram vistos como prejudiciais ao desenvolvimento da riqueza das nações Baseandose nos mesmos princípios que criaram o liberalismo político a economia política é elaborada como liberalismo econômico Diferentemente dos gregos que definiram o homem como animal político e diferentemente dos medievais que definiram o homem como ser sociável a economia política define o homem como indivíduo que busca a satisfação de suas necessidades consumindo o que a Natureza lhe oferece ou trabalhando para obter riquezas e bemestar Por ser mais vantajosa aos indivíduos a vida em comum pactuam para criar a sociedade e o Estado As idéias de Estado de Natureza e de direito natural conduziram a duas noções essenciais à economia política a primeira é a noção de ordem natural racional que garante a todos os indivíduos a satisfação de suas necessidades e seu bem estar a segunda é a noção de que seja por bondade natural seja por egoísmo os homens agem em seu próprio benefício e interesse e assim fazendo contribuem para o bem coletivo ou social A propriedade privada é natural e útil socialmente além de legítima moralmente porque estimula o trabalho e combate o vício da preguiça A economia política buscará as leis dos fenômenos econômicos na natureza humana e os efeitos das causas econômicas sobre a vida social Visto que a ordem natural é racional e que os seres humanos possuem liberdade natural a economia política deverá garantir que a racionalidade natural e a liberdade humana se realizem por si mesmas sem entraves e sem limites Para alguns economistas políticos como Adam Smith a concorrência ou lei econômica da oferta e da procura é responsável pela riqueza social e pela harmonia entre interesse privado e interesse coletivo Para outros como David Ricardo as leis econômicas revelam antagonismos entre os vários interesses dos grupos sociais Assim por exemplo a diferença entre o preço das mercadorias e os salários indica uma oposição de interesses na sociedade de modo que a concorrência exprime esses conflitos sociais Em ambos os casos porém a economia se realiza como sociedade civil capaz de se autoregular sem que o Estado deva interferir na sua liberdade Donde o liberalismo econômico fundando o liberalismo político Marx indaga O que é a sociedade civil E responde Não é a manifestação de uma ordem natural racional nem o aglomerado conflitante de indivíduos famílias grupos e corporações cujos interesses antagônicos serão conciliados Convite à Filosofia 532 pelo contrato social que instituiria a ação reguladora e ordenadora do Estado expressão do interesse e da vontade gerais A sociedade civil é o sistema de relações sociais que organiza a produção econômica agricultura indústria e comércio realizandose através de instituições sociais encarregadas de reproduzilo família igrejas escolas polícia partidos políticos meios de comunicação etc É o espaço onde as relações sociais e suas formas econômicas e institucionais são pensadas interpretadas e representadas por um conjunto de idéias morais religiosas jurídicas pedagógicas artísticas científico filosóficas e políticas A sociedade civil é o processo de constituição e reposição das condições materiais da produção econômica pelas quais são engendradas as classes sociais os proprietários privados dos meios de produção e os trabalhadores ou não proprietários que vendem sua força de trabalho como mercadoria submetida à lei da oferta e da procura no mercado de mãodeobra Essas classes sociais são antagônicas e seus conflitos revelam uma contradição profunda entre os interesses irreconciliáveis de cada uma delas isto é a sociedade civil se realiza como luta de classes Sem dúvida os liberais estão certos quando afirmam que a sociedade civil por ser esfera econômica é a esfera dos interesses privados pois é exatamente isso o que ela é O que é porém o Estado Longe de diferenciarse da sociedade civil e de separarse dela longe de ser a expressão da vontade geral e do interesse geral o Estado é a expressão legal jurídica e policial dos interesses de uma classe social particular a classe dos proprietários privados dos meios de produção ou classe dominante E o Estado não é uma imposição divina aos homens nem é o resultado de um pacto ou contrato social mas é a maneira pela qual a classe dominante de uma época e de uma sociedade determinadas garante seus interesses e sua dominação sobre o todo social O Estado é a expressão política da luta econômicosocial das classes amortecida pelo aparato da ordem jurídica e da força pública policial e militar Não é mas aparece como um poder público distante e separado da sociedade civil Não por acaso o liberalismo define o Estado como garantidor do direito de propriedade privada e não por acaso reduz a cidadania aos direitos dos proprietários privados vimos que a ampliação da cidadania foi fruto de lutas populares contra as idéias e práticas liberais A economia portanto jamais deixou de ser política Simplesmente no capitalismo o vínculo interno e necessário entre economia e política tornouse evidente No entanto se perguntarmos às pessoas que vivem no Estado liberal capitalista se para elas é evidente tal vínculo certamente dirão que não Por que o vínculo Marilena Chauí 533 interno entre o poder econômico e o poder político permanece invisível aos olhos da maioria Marx faz duas indagações 1 Como surgiu o Estado Isto é como os homens passaram da submissão ao poder pessoal visível de um senhor à obediência ao poder impessoal invisível de um Estado 2 Por que o vínculo entre o poder econômico e o poder político não é percebido pela sociedade e sobretudo por que não é percebido pelos que não têm poder econômico nem político Antecedentes da teoria marxista Antes de examinarmos as respostas de Marx a essas indagações devemos lembrar um conjunto de idéias e de fatos existentes quando ele iniciou seu trabalho teórico Do ponto de vista dos fatos estamos na era do desenvolvimento do capitalismo industrial com a ampliação da capacidade tecnológica de domínio da Natureza pelo trabalho e pela técnica Essa ampliação aumenta também o campo de ação do capital que passa a absorver contingentes cada vez maiores de pessoas no mercado da mãodeobra e do consumo rumando para o mercado capitalista mundial A burguesia se organiza através do Estado liberal enquanto os trabalhadores industriais ou proletários se organizam em associações profissionais e sindicatos para as lutas econômicas salários jornada de trabalho sociais condições de vida e políticas reivindicação de cidadania Greves revoltas e revoluções eclodem em toda a parte as mais importantes vindo a ocorrer na França em 1830 1848 e 1871 No Brasil em 1858 eclode a primeira greve dos trabalhadores e em 1878 a primeira greve dos trabalhadores do campo em Amparo Estado de São Paulo Simultaneamente consolidase em alguns países ou iniciase em outros países o Estado nacional unificado e centralizado definido pela unidade territorial e pela identidade de língua religião raça e costumes O capital precisa de suportes territoriais e por isso leva à constituição das nações forçando pelas guerras e pelo direito internacional a delimitação e a garantia de fronteiras e pelo aparato jurídico policial e escolar a unidade de língua religião e costumes Em suma inventase a pátria ou nação sob a forma de Estado nacional Como se observa a nação não é natural nem existe desde sempre mas foi inventada pelo capitalismo no século XIX Do ponto de vista das idéias além das teorias liberais e socialistas e da economia política Hegel propõe uma filosofia política a filosofia do direito Convite à Filosofia 534 Hegel explica a gênese do Estado moderno sem recorrer à teoria do direito natural e do contrato social O Estado surge como superação nacional das limitações que bloqueavam o desenvolvimento do espírito humano o isolamento dos indivíduos na família e as lutas dos interesses privados na sociedade civil O Estado absorve e transforma a família e a sociedade civil numa totalidade racional mais alta e perfeita que exprime o interesse e a vontade gerais Por isso é a realização mais importante e a última da razão na História uma vez que supera os particularismos numa unidade universal que pelo direito garante a ordem a paz a moralidade a liberdade e a perfeição do espírito humano A História é a passagem da família à sociedade civil e desta ao Estado término do processo histórico Esse processo é concebido como realização da Cultura isto é da diferença e da separação entre Natureza e Espírito e como absorção da primeira pelo segundo O processo histórico é desenvolvimento da consciência que se torna cada vez mais consciente de si através das obras espirituais da Cultura isto é das idéias que se materializam em instituições sociais religiosas artísticas científicofilosóficas e políticas O Estado é a síntese final da criação racional ou espiritual expressão mais alta da Idéia ou do Espírito Liberalismo político liberalismo econômico ou economia política e idealismo político hegeliano formam o pano de fundo do pensamento de Marx voltado para a compreensão do capitalismo e das lutas proletárias Contra o liberalismo político Marx mostrará que a propriedade privada não é um direito natural e o Estado não é resultado de um contrato social Contra a economia política mostrará que a economia não é expressão de uma ordem natural racional Contra Hegel mostrará que o Estado não é a Idéia ou o Espírito encarnados no real e que a História não é o movimento da consciência e suas idéias Gênese da sociedade e do Estado Dissemos acima que Marx indaga como os homens passaram da submissão ao poder pessoal de um senhor à obediência ao poder impessoal do Estado Para responder a essa questão é preciso desvendar a gênese do Estado Os seres humanos escrevem Marx e Engels distinguemse dos animais não porque sejam dotados de consciência animais racionais nem porque sejam naturalmente sociáveis e políticos animais políticos mas porque são capazes de produzir as condições de sua existência material e intelectual Os seres humanos são produtores são o que produzem e são como produzem A produção das condições materiais e intelectuais da existência não são escolhidas livremente pelos seres humanos mas estão dadas objetivamente independentemente de nossa vontade Eis porque Marx diz que os homens fazem sua própria História mas não a fazem em condições escolhidas por eles São historicamente determinados pelas condições em que produzem suas vidas Marilena Chauí 535 A produção material e intelectual da existência humana depende de condições naturais as do meio ambiente e as biológicas da espécie humana e da procriação Esta não é apenas um dado biológico a diferença sexual necessária para a reprodução mas já é social pois decorre da maneira como se dá o intercâmbio e a cooperação entre os humanos e do modo como é simbolizada psicológica e culturalmente a diferença dos sexos Por seu turno a maneira como os humanos interpretam e realizam a diferença sexual determina o modo como farão a divisão social do trabalho distinguindo trabalhos masculinos femininos infantis e de velhice A produção e a reprodução das condições de existência se realizam portanto através do trabalho relação com a Natureza da divisão social do trabalho intercâmbio e cooperação da procriação sexualidade e instituição da família e do modo de apropriação da Natureza a propriedade Esse conjunto de condições forma em cada época a sociedade e o sistema das formas produtivas que a regulam segundo a divisão social do trabalho Essa divisão que começa na família com a diferença sexual das tarefas prossegue na distinção entre agricultura e pastoreio entre ambas e o comércio conduzindo à separação entre o campo e a cidade Em cada uma das distinções operam novas divisões sociais do trabalho A divisão social do trabalho não é uma simples divisão de tarefas mas a manifestação da existência da propriedade ou seja a separação entre as condições e os instrumentos do trabalho e o próprio trabalho incidindo a seguir sobre a forma de distribuição dos produtos do trabalho A propriedade introduz a existência dos meios de produção condições e instrumentos de trabalho como algo diferente das forças produtivas trabalho Analisando as diferentes formas de propriedade as diferentes formas de relação entre meios de produção e forças produtivas as diferentes formas de divisão social do trabalho decorrentes das formas de propriedade e das relações entre os meios de produção e as forças produtivas é possível perceber a seqüência do processo histórico e as diferentes modalidades de sociedade A propriedade começa como propriedade tribal e a sociedade tem a forma de uma comunidade baseada na família a comunidade é vista como a família ampliada à qual pertencem todos os membros do grupo Nela prevalece a hierarquia definida por tarefas funções poderes e consumo Essa forma da propriedade se transforma numa outra a propriedade estatal ou seja propriedade do Estado cujo dirigente determina o modo de relações dos sujeitos com ela em certos casos como na Índia na China na Pérsia o Estado é o proprietário único e permite as atividades econômicas mediante pagamento de tributos impostos e taxas em outros casos Grécia Roma o Estado cede mediante certas regras a propriedade às grandes famílias que se tornam proprietárias privadas Convite à Filosofia 536 A sociedade se divide agora entre senhores e escravos Nos grandes impérios orientais os senhores se ocupam da guerra e da religião na Grécia e em Roma tornamse cidadãos e ocupamse da política além de possuírem privilégios militares e religiosos vivem nas cidades e em luta permanente com os que permaneceram no campo bem como com os homens livres que trabalham nas atividades urbanas artesanato e comércio e com os escravos do campo e da cidade A terceira forma de propriedade é a feudal apresentandose como propriedade privada da terra pelos senhores e propriedade dos instrumentos de trabalho pelos artesãos livres membros das corporações dos burgos A terra é trabalhada por servos da gleba e a sociedade se estrutura pela divisão entre nobreza fundiária e servos no campo e artesãos livres e aprendizes na cidade Entre elas surge uma figura intermediária o comerciante As lutas entre comerciantes e nobres o desenvolvimento dos burgos do artesanato e da atividade comercial conduzem à mudança que conhecemos a propriedade privada capitalista Essa nova forma de propriedade possui características inéditas e é uma verdadeira revolução econômica porque realiza a separação integral entre proprietários dos meios de produção e forças produtivas isto é entre as condições e os instrumentos de trabalho e o próprio trabalho Os proprietários privados possuem meios condições e instrumentos do trabalho possuem o controle da distribuição e do consumo dos produtos No outro pólo social encontramse os trabalhadores como massa de assalariados inteiramente expropriada dos meios de produção possuindo apenas a força do trabalho colocada à disposição dos proprietários dos meios de produção no mercado de compra e venda da mãodeobra Essas diferentes formas da propriedade dos meios de produção e das relações com as forças produtivas ou de determinações sociais decorrentes da divisão social do trabalho constituem os modos de produção Marx e Engels observaram que a cada modo de produção a consciência dos seres humanos se transforma Descobriram que essas transformações constituem a maneira como em cada época a consciência interpreta compreende e representa para si mesma o que se passa nas condições materiais de produção e reprodução da existência Por esse motivo afirmaram que ao contrário do que se pensa não são as idéias humanas que movem a História mas são as condições históricas que produzem as idéias Na obra Contribuição à crítica da economia política Marx escreve O conjunto das relações de produção que corresponde ao grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais constitui a estrutura econômica da sociedade a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social O modo de reprodução de vida material Marilena Chauí 537 determina o desenvolvimento da vida social política e intelectual em geral Não é a consciência dos homens que determina o seu ser é o seu ser social que inversamente determina sua consciência É por afirmar que a sociedade se constitui a partir de condições materiais de produção e da divisão social do trabalho que as mudanças históricas são determinadas pelas modificações naquelas condições materiais e naquela divisão do trabalho e que a consciência humana é determinada a pensar as idéias que pensa por causa das condições materiais instituídas pela sociedade que o pensamento de Marx e Engels é chamado de materialismo histórico Materialismo porque somos o que as condições materiais as relações sociais de produção nos determinam a ser e a pensarxxii Histórico porque a sociedade e a política não surgem de decretos divinos nem nascem da ordem natural mas dependem da ação concreta dos seres humanos no tempo A História não é um progresso linear e contínuo uma seqüência de causas e efeitos mas um processo de transformações sociais determinadas pelas contradições entre os meios de produção a forma da propriedade e as forças produtivas o trabalho seus instrumentos as técnicas A luta de classes exprime tais contradições e é o motor da História Por afirmar que o processo histórico é movido por contradições sociais o materialismo histórico é dialéticoxxiii As relações sociais de produção não são responsáveis apenas pela gênese da sociedade mas também pela do Estado que Marx designa como superestrutura jurídica e política correspondente à estrutura econômica da sociedade Qual a gênese do Estado Conflitos entre proprietários privados dos meios de produção e contradições entre eles e os nãoproprietários escravos servos trabalhadores livres Os conflitos entre proprietários e as contradições entre proprietários e nãoproprietários aparecem para a consciência social sob a forma de conflitos e contradições entre interesses particulares e o interesse geral Aparecem dessa maneira mas não são realmente como aparecem Em outras palavras onde há propriedade privada há interesse privado e não pode haver interesse coletivo ou geral Os proprietários dos meios de produção podem ter interesses comuns pois necessitam do intercâmbio e da cooperação para manter e fazer crescer a propriedade de cada um Assim embora estejam em concorrência e competição precisam estabelecer certas regras pelas quais não se destruam reciprocamente nem às suas propriedades Sabem também que não poderão resolver as contradições com os não proprietários e que estes podem por revoltas e revoluções populares destruir a propriedade privada É preciso portanto que os interesses comuns entre os proprietários dos meios de produção e a força para dominar os nãoproprietários sejam estabelecidos de maneira tal que pareçam corretos legítimos e válidos para Convite à Filosofia 538 todos Para isso criam o Estado como poder separado da sociedade portador do direito e das leis dotado de força para usar a violência na repressão de tudo quanto pareça perigoso à estrutura econômica existente No caso do poder despótico a legitimação é feita pela divinização do senhor o detentor do poder um indivíduo uma família ou um grupo de famílias apresentase como filho de um humano e de uma divindade isto é o nascimento justifica o poderio No caso do poder teocrático a legitimação é feita pela sacralização do governante o detentor do poder o recebe diretamente de Deus No caso das repúblicas democracia grega o senado e o povo romano a legitimação é feita pela instituição do direito e das leis que definem quem pode ser cidadão e participar do governo Nos três casos a divisão social aparece como hierarquia divina eou natural que justifica a exclusão dos nãoproprietários do poder e sobretudo estabelece princípios divinos ou naturais para a submissão e a obediência transformadas em obrigações No caso do Estado moderno como vimos as idéias de Estado de Natureza direito natural contrato social e direito civil fundam o poder político na vontade dos proprietários dos meios de produção que se apresentam como indivíduos livres e iguais que transferem seus direitos naturais ao poder político instituindo a autoridade do Estado e das leis Eis por que o Estado precisa aparecer como expressão do interesse geral e não como senhorio particular de alguns poderosos Os nãoproprietários podem recusar como fizeram inúmeras vezes na História o poder pessoal visível de um senhor mas não o fazem quando se trata de um poder distante separado invisível e impessoal como o do Estado Julgando que este se encontra a serviço do bem comum da justiça da ordem da lei da paz e da segurança aceitam a dominação pois não a percebem como tal Resta a segunda indagação de Marx qual seja por que os sujeitos sociais não percebem o vínculo entre o poder econômico e o poder político A ideologia Quando citamos o texto da Contribuição à crítica da economia política vimos que Marx afirma que a consciência humana é sempre social e histórica isto é determinada pelas condições concretas de nossa existência Isso não significa porém que nossas idéias representem a realidade tal como esta é em si mesma Se assim fosse seria incompreensível que os seres humanos conhecendo as causas da exploração da dominação da miséria e da injustiça nada fizessem contra elas Nossas idéias historicamente determinadas têm a peculiaridade de nascer a partir de nossa experiência social direta A marca da experiência social é oferecerse como uma explicação da aparência das coisas como se esta fosse a essência das próprias coisas Marilena Chauí 539 Não só isso As aparências ou o aparecer social à consciência são aparências justamente porque nos oferecem o mundo de cabeça para baixo o que é causa parece ser efeito o que é efeito parece ser causa Isso não se dá apenas no plano da consciência individual mas sobretudo no da consciência social isto é no conjunto de idéias e explicações que uma sociedade oferece sobre si mesma Feuerbach como vimosxxiv estudara esse fenômeno na religião designandoo com o conceito de alienação Marx interessase por esse fenômeno porque o percebeu em outras esferas da vida social por exemplo na política que como analisamos há pouco leva os sujeitos sociais a aceitarem a dominação estatal porque não reconhecem quem são os verdadeiros criadores do Estado Ele o observou também na esfera da economia no capitalismo os trabalhadores produzem todos os objetos existentes no mercado todas as mercadorias após havêlas produzido as entregam aos proprietários dos meios de produção mediante um salário quando vão ao mercado não conseguem comprar essas mercadorias Olham os preços contam o dinheiro e voltam para casa de mãos vazias como se o preço das mercadorias existisse por si mesmo e como se elas estivessem à venda porque surgiram do nada e alguém as decidiu vender Em outras palavras os trabalhadores não só não se reconhecem como autores ou produtores das mercadorias mas ainda acreditam que elas valem o preço que custam e que não podem têlas porque valem mais do que eles Alienaram nos objetos seu próprio trabalho e não se reconhecem como produtores da riqueza e das coisas A inversão entre causa e efeito princípio e conseqüência condição e condicionado leva à produção de imagens e idéias que pretendem representar a realidade As imagens formam um imaginário social invertido um conjunto de representações sobre os seres humanos e suas relações sobre as coisas sobre o bem e o mal o justo e o injusto os bons e os maus costumes etc Tomadas como idéias essas imagens ou esse imaginário social constituem a ideologia A ideologia é um fenômeno históricosocial decorrente do modo de produção econômico À medida que numa formação social uma forma determinada da divisão social se estabiliza se fixa e se repete cada indivíduo passa a ter uma atividade determinada e exclusiva que lhe é atribuída pelo conjunto das relações sociais pelo estágio das forças produtivas e pela forma da propriedade Cada um por causa da fixidez e da repetição de seu lugar e de sua atividade tende a considerá los naturais por exemplo quando alguém julga que faz o que faz porque tem talento ou vocação natural para isso quando alguém julga que por natureza os negros foram feitos para serem escravos quando alguém julga que por natureza as mulheres foram feitas para a maternidade e o trabalho doméstico A naturalização surge sob a forma de idéias que afirmam que as coisas são como são porque é natural que assim sejam As relações sociais passam portanto a Convite à Filosofia 540 serem vistas como naturais existentes em si e por si e não como resultados da ação humana A naturalização é maneira pela qual as idéias produzem alienação social isto é a sociedade surge como uma força natural estranha e poderosa que faz com que tudo seja necessariamente como é Senhores por natureza escravos por natureza cidadãos por natureza proprietários por natureza assalariados por natureza etc A divisão social do trabalho iniciada na família prossegue na sociedade e à medida que esta se torna mais complexa leva a uma divisão entre dois tipos fundamentais de trabalho o trabalho material de produção de coisas e o trabalho intelectual de produção de idéias No início essa segunda forma de trabalho social é privilégio dos sacerdotes depois tornase função de professores e escritores artistas e cientistas pensadores e filósofos Os que produzem idéias separamse dos que produzem coisas formando um grupo à parte Pouco a pouco à medida que vão ficando cada vez mais distantes e separados dos trabalhadores materiais os que pensam começam a acreditar que a consciência e o pensamento estão em si e por si mesmos separados das coisas materiais existindo em si e por si mesmos Passam a acreditar na independência entre a consciência e o mundo material entre o pensamento e as coisas produzidas socialmente Conferem autonomia à consciência e às idéias e finalmente julgam que as idéias não só explicam a realidade mas produzem o real Surge a ideologia como crença na autonomia das idéias e na capacidade de as idéias criarem a realidade Ora o grupo dos que pensam sacerdotes professores artistas filósofos cientistas não nasceu do nada Nasceu não só da divisão social do trabalho mas também de uma divisão no interior da classe dos proprietários ou classe dominante de uma sociedade Como conseqüência o grupo pensante os intelectuais pensa com as idéias dos dominantes julga porém que tais idéias são verdadeiras em si mesmas e transformam idéias de uma classe social determinada em idéias universais e necessárias válidas para a sociedade inteira Como o grupo pensante domina a consciência social tem o poder de transmitir as idéias dominantes para toda a sociedade através da religião das artes da escola da ciência da filosofia dos costumes das leis e do direito moldando a consciência de todas as classes sociais e uniformizando o pensamento de todas as classes Os ideólogos são membros da classe dominante e das classes aliadas a ela que como intelectuais sistematizam as imagens e as idéias sociais da classe dominante em representações coletivas gerais e universais Essas imagens e idéias não exprimem a realidade social mas representam a aparência social do ponto de vista dos dominantes São consideradas realidades autônomas que produzem a realidade material ou social São imagens e idéias postas como universais abstratos uma vez que concretamente não correspondem à Marilena Chauí 541 realidade social dividida em classes sociais antagônicas Assim por exemplo existem na sociedade concretamente capitalistas e trabalhadores mas na ideologia aparece abstratamente o Homem A ideologia tornase propriamente ideologia quando não aparece sob a forma do mito da religião e da teologia Com efeito nestes a explicação sobre a origem dos seres humanos da sociedade e do poder político encontra a causa fora e antes dos próprios humanos e de sua ação localizando a causa originária nas divindades A ideologia propriamente dita surge quando no lugar das divindades encontramos as idéias o Homem a Pátria a Família a Escola o Progresso a Ciência o Estado o Bem o Justo etc Com isso podemos dizer que a ideologia é um fenômeno moderno substituindo o papel que antes dela tinham os mitos e as teologias Com a ideologia a explicação sobre a origem dos homens da sociedade e da política encontrase nas ações humanas entendidas como manifestação da consciência ou das idéias Assim por exemplo julgar que o Estado se origina das idéias de Estado de Natureza direito natural contrato social e direito civil é supor que a consciência humana independentemente das condições históricas materiais pensou nessas idéias julgouas corretas e passou a agir por elas criando a realidade designada e representada por elas Que faz a ideologia Oferece a uma sociedade dividida em classes sociais antagônicas e que vivem na forma da luta de classes uma imagem que permita a unificação e a identificação social uma língua uma religião uma raça uma nação uma pátria um Estado uma humanidade mesmos costumes Assim a função primordial da ideologia é ocultar a origem da sociedade relações de produção como relações entre meios de produção e forças produtivas sob a divisão social do trabalho dissimular a presença da luta de classes domínio e exploração dos nãoproprietários pelos proprietários privados dos meios de produção negar as desigualdades sociais são imaginadas como se fossem conseqüência de talentos diferentes da preguiça ou da disciplina laboriosa e oferecer a imagem ilusória da comunidade o Estado originada do contrato social entre homens livres e iguais A ideologia é a lógica da dominação social e política Porque nascemos e somos criados com essas idéias e nesse imaginário social não percebemos a verdadeira natureza de classe do Estado A resposta à segunda pergunta de Marx qual seja por que a sociedade não percebe o vínculo interno entre poder econômico e poder político pode ser respondida agora por causa da ideologia Práxis e revolução Quando estudamos a ética vimos Aristóteles estabelecer uma distinção que foi mantida no pensamento ocidental a diferença entre poiesis ação fabricadora o trabalho e as técnicas e praxis a ação livre do agente moral e do sujeito Convite à Filosofia 542 político Vimos também que Aristóteles valorizava muito mais a praxis do que a poiesis o que é compreensível De fato a sociedade grega onde vivia Aristóteles era escravista desvalorizando o trabalho como atividade inferior se comparada à ação livre do cidadão isto é dos proprietários de terra do artesanato e do comércio Liberdade diziam gregos e romanos é não precisar ocuparse com as atividades de sobrevivência mas dispor de ócio para cuidar da coisa pública O desprezo pelo trabalho aparece em vários sintomas significativos não há na língua grega uma palavra para significar trabalho usase a palavra ergon obra ou a palavra ponos esforço penoso e doloroso a palavra latina de onde trabalho deriva é tripalium um instrumento de três estacas destinado a prender bois e cavalos difíceis de ferrar portanto um instrumento de tortura A outra palavra latina empregada para designar o trabalho é labor que corresponde ao grego ponos portanto indica pena fadiga cansaço dor e é nesse sentido que se fala em trabalho de parto Os homens livres dispõem de otium lazer e os não livres estão no negotium negação de ócio trabalho O protestantismo o capitalismo e o liberalismo não podem manter essa imagem do homem livre como homem desocupado porque como vimos fazem o direito de propriedade repousar sobre o trabalho trabalho de Deus fazendo o mundo propriedade do artífice divino trabalho do homem instituindo a legitimidade da propriedade privada dos meios de produção isto é das condições materiais do trabalho O negócio negotium é a alma do capitalismo No entanto algo curioso acontece Apesar da valorização do trabalho e apesar da ideologia do direito natural que afirma serem todos os homens livres e iguais no momento de definir quem tem direito ao poder político a classe dominante como vimos esquece a dignidade do trabalho e declara o poder político um direito exclusivo dos homens independentes ou livres isto é dos que não dependem de outros para viver Em outras palavras dos que não precisam trabalhar Do ponto de vista moral valorizase o trabalho é ele que disciplina os apetites e desejos imoderados dos seres humanos mas do ponto de vista político ele não tem valor algum Na política a praxis continua sendo a greco romana Marx critica a ideologia da praxis liberal e a concepção protestante do trabalho como esforço disciplina e controle moral dos indivíduos O ser humano é praxis Esta é social e histórica É o trabalho Que é o trabalho O trabalho como vimos ao estudar o conceito de Cultura é a relação dos seres humanos com a Natureza e entre si na produção das condições de sua existência Pelo trabalho os seres humanos não consomem diretamente a Natureza nem se apropriam diretamente dela mas a transformam em algo humano também Marilena Chauí 543 A subjetividade humana se exprime num objeto produzido por ela e a objetividade do produto é a materialização externa da subjetividade Pelo trabalho os seres humanos estendem sua humanidade à Natureza É nesse sentido que o trabalho é praxis ação em que o agente e o produto de sua ação são idênticos pois o agente se exterioriza na ação produtora e no produto ao mesmo tempo em que este interioriza uma capacidade criadora humana ou a subjetividade Vimos que para Marx nossa consciência é determinada pelas condições históricas em que vivemos Vimos também que para ele os seres humanos fazem a sua própria História são os sujeitos práticos dela mas não a fazem em condições escolhidas voluntariamente por eles Isso significa que a praxis se realiza em condições históricas dadas e como sabemos as condições são postas pela divisão social do trabalho pelas relações de produção relação entre meios de produção e forças produtivas portanto pela forma da propriedade e pela divisão social das classes Vimos enfim que embora a consciência seja determinada pelas condições materiais em que vive as idéias não representam a realidade tal como é e sim tal como aparece dando ensejo ao surgimento do imaginário social e com a divisão entre trabalho material e intelectual ao surgimento da ideologia No caso do modo de produção capitalista a ideologia utiliza a idéia do trabalho de duas maneiras A primeira como vimos é o emprego dessa idéia para legitimar a propriedade privada capitalista A segunda é seu uso para legitimar a idéia de contrato social e de contrato de trabalho Com efeito a idéia de contrato vem do Direito Romano que exige para validar uma relação contratual que as partes contratantes sejam livres e iguais Para afirmar que a sociedade e o Estado nascem de um contrato social a ideologia burguesa precisa afirmar que todos os homens nascem livres e iguais embora a Natureza os faça desiguais em talentos e a sociedade os faça desiguais economicamente A ideologia burguesa precisa portanto da idéia de trabalhador livre Por sua vez o salário só aparecerá como legítimo se resultar de um contrato de trabalho entre os iguais e livres Segundo Marx o capitalismo efetivamente produziu o trabalhador livre está despojado de todos os meios e instrumentos de produção de todas as posses e propriedades restandolhe apenas a liberdade de vender sua força de trabalho O trabalhador que a ideologia designa como trabalhador livre é o trabalhador realmente expropriado o assalariado submetido às regras do modo de produção capitalista convencido de que o contrato de trabalho torna seu salário legal legítimo e justo Assim num primeiro momento o quadro oferecido por Marx é pessimista Embora o ser humano seja praxis e esta seja o trabalho o processo histórico desfigura o trabalho e o trabalhador aliena os trabalhadores que não se Convite à Filosofia 544 reconhecem nos produtos de seus trabalhos A ideologia burguesa por sua vez cria a idéia de Homem Universal livre e igual dálhe o rosto dos proprietários privados dos meios de produção e persuade os trabalhadores de que também são esse Homem Universal embora vivam miseravelmente No entanto se a praxis é socialmente determinada se a consciência é determinada pelas condições sociais do trabalho nem tudo está perdido Pelo contrário Diferentemente de outros modos de produção nos quais os trabalhadores escravos servos e homens livres trabalhavam isoladamente e não podiam perceberse formando uma classe social no capitalismo industrial as condições de trabalho as fábricas as grandes empresas comerciais os grandes bancos etc forçam os trabalhadores a trabalhar juntos e a conviver em seu local de trabalho Podem por isso perceber que há classes sociais cujos interesses não são os mesmos e sim contrários e podem ver diariamente que o que a ideologia lhes ensina como verdade é falso Por exemplo a ideologia lhes diz que são livres mas não têm liberdade para escolher o ofício para definir o salário para fixar a jornada de trabalho A ideologia lhes diz que todos os homens são iguais mas percebem que não podem ter moradia vestuário transporte educação saúde como os seus patrões Assim pelas próprias condições de sua praxis cotidiana têm condições para duvidar do que lhes é dito e ensinado São porém capazes de algo mais O capital é uma propriedade privada diferente de todas as outras que existiram na História De fato as outras formas de propriedade davam riquezas aos seus proprietários mas não davam lucro Com o lucro obtido na venda dos produtos do trabalho o capital se acumula cresce se desenvolve e se amplia Pela primeira vez na História surge uma forma da propriedade privada capaz de aumentar e desenvolverse Os trabalhadores podem afinal perguntar de onde vem a capacidade espantosa de crescimento do capital Dizem os ideólogos que esse aumento vem do comércio cujos lucros são investidos na produção Nesse caso por que os capitalistas não investem tudo no comércio em vez de investir prioritariamente na indústria e na agroindústria É que o lucro não vem da comercialização dos produtos para o consumo mas nasce na própria esfera da produção isto é resulta da divisão social do trabalho e do tempo socialmente necessário para produzir alguma coisa O que é o modo de produção capitalista A produção de mercadorias isto é de produtos cujo valor não é determinado por seu uso mas pelo seu valor de troca Este é determinado pelo custo total para produzir uma mercadoria custo da matériaprima dos instrumentos de trabalho dos conhecimentos técnicos e dos salários custo calculado a partir do tempo socialmente necessário para produzi la horas de trabalho horas de transporte horas de descanso para reposição das Marilena Chauí 545 forças horas necessárias para a extração da matériaprima e seu transporte horas necessárias para a fabricação das máquinas e outros instrumentos de trabalho etc Quem produz as mercadorias Os trabalhadores assalariados que vendem sua força de trabalho aos proprietários privados dos meios de produção Como as vendem Como uma mercadoria entre outras Qual o procedimento que regula a compra e venda da tal força de trabalho O contrato de trabalho que sendo um contrato pressupõe que as partes contratantes são livres e iguais e portanto que é por livre e espontânea vontade que o trabalhador vende sua força de trabalho pelo salário O que é o salário O que é pago ao trabalhador para garantir sua subsistência e a reprodução de sua força de trabalho alimentação moradia vestuário e condições para procriar Quanto vale a mercadoriatrabalhador isto é quanto vale o salário A economia política afirma que o salário corresponde aos custos e ao preço da produção de uma mercadoria Calculase assim o que o trabalhador precisa para manterse e reproduzirse deduzindose esse montante do custo total da produção e determinando o salário Na realidade porém não é o que ocorre Para produzir uma determinada mercadoria um trabalhador precisa de um certo número de horas suponhamos por exemplo quatro horas e seu salário será calculado a partir desse tempo entretanto o trabalhador trabalha durante muito mais tempo suponhamos por exemplo oito horas e conseqüentemente produz muito mais mercadorias estas porém não são computadas para o cálculo do salário de modo que há um trabalho excedente não pago isto é não coberto pelo salário Esse procedimento ocorre em toda a indústria na agricultura e no comércio de maneira que a massa social dos salários de todos os assalariados corresponde apenas a uma parte do tempo socialmente necessário para a produção das mercadorias A outra parte permanece não paga formando uma gigantesca massa social de maisvalia o valor do trabalho excedente não pago É a maisvalia que forma o lucro que será investido para aumentar o capital Assim essa propriedade privada espantosa o capital que parece magia porque parece crescer sozinho aumentando como se possuísse um fermento interno na realidade se acumula e se reproduz se amplia e se estende mundo afora porque se funda na exploração social da massa dos assalariados Se os trabalhadores puderem descobrir pela compreensão do processo de trabalho que formam uma classe social oposta aos senhores do capital que estes retiram o lucro da exploração do trabalho que sem o trabalho não pago não haveria capital e que a ideologia e o Estado capitalistas existem para impedilos de tal percepção se puderem compreender isso sua consciência será conhecimento verdadeiro da praxis social Terão a ciência de sua praxis Convite à Filosofia 546 Se tiverem essa ciência se conseguirem unirse e organizarse para transformar a sociedade e criar outra sem a divisão e a luta de classes passarão à praxis política Visto que a burguesia dispõe de todos os recursos materiais intelectuais jurídicos políticos e militares para conservar o poderio econômico e estatal buscará impedir a praxis política dos trabalhadores e estes não terão outra saída senão aquela que sempre foi usada pelas classes populares insubmissas e radicais a revolução A teoria marxista da revolução não se confunde portanto com as teorias utópicas e libertárias porque não se baseia na miséria na infelicidade e na injustiça a que estão submetidos os trabalhadores mas se fundamenta na análise científica da sociedade capitalista nas leis do capital ou da economia política e nela encontra os modos pelos quais os trabalhadores realizam sua própria emancipação Por isso Marx e Engels disseram que a emancipação dos trabalhadores terá que ser obra histórica dos próprios trabalhadores A sociedade comunista sem propriedade privada dos meios de produção sem classes sociais sem exploração do trabalho sem poder estatal livre e igualitária resulta portanto da praxis revolucionária da classe trabalhadora Num célebre panfleto político o Manifesto comunista que conclamava os proletários do mundo todo a se unir e a se organizar para a longa luta contra o capital Marx e Engels consideravam que a fase final do combate proletário seria a revolução e que esta antes de chegar à sociedade comunista teria que demolir o aparato estatal jurídico burocrático policial e militar burguês Essa demolição foi designada por eles com a expressão ditadura do proletariado tomando a palavra ditadura do vocabulário político dos romanos Estes toda vez que Roma atravessava uma crise que poderia destruíla convocavam um homem ilustre e lhe davam por um período determinado o poder para refazer as leis e punir os inimigos de Roma retirandolhe o poder assim que a crise estivesse superada A ditadura do proletariado seria um breve período de tempo em que não existindo ainda a sociedade sem Estado e já não existindo o Estado burguês os proletários portanto uma classe social governariam no sentido de desfazer todos os mecanismos econômicos e políticos responsáveis pela existência de classes sociais e portanto causadores da exploração social Julgava Marx que essa seria a última revolução popular Por que a última Porque aboliria a causa de todas as revoluções que as anteriores não haviam conseguido abolir a propriedade privada dos meios de produção Só assim o trabalho poderia ser verdadeiramente praxis humana criadora Marilena Chauí 547 Capítulo 11 A questão democrática As experiências totalitárias fascismo e nazismo O século XX durante os decênios de 19201940 viu acontecer uma experiência política sem precedentes o totalitarismo realizado por duas práticas políticas o fascismo originado na Itália e o nazismo ou nacionalsocialismo originado na Alemanha A Alemanha derrotada na Primeira Guerra Mundial perde territórios e é obrigada a pagar somas vultosas aos vencedores para ressarcilos dos prejuízos da guerra A economia está destroçada reinam o desemprego a recessão e a inflação galopante A crise toma proporções excessivas quando em 1929 a Bolsa de Valores de Nova York quebra levando à ruína boa parte do capital mundial Partindo da crítica marxista ao liberalismo mas recusando a idéia de revolução proletária comunista o austríaco Adolf Hitler se oferece à burguesia e à classe média para salválas da revolução operária Propõe o reerguimento da Alemanha através do fortalecimento do Estado do nacionalismo geopolítico a nação é o espaço vital do povo que deve conquistar e manter territórios necessários ao seu desenvolvimento econômico e da aliança com os setores conservadores do capital industrial e sobretudo do capital financeiro Hitler é eleito em eleições livres e diretas para o parlamento e a seguir dá o golpe de Estado nazista A Itália embora estivesse do lado dos vencedores da Primeira Guerra Mundial ficou insatisfeita com as compensações que lhe foram dadas e ao mesmo tempo tentava manterse economicamente pela exploração de colônias na África Benito Mussolini como Hitler partiu da crítica marxista ao liberalismo mas como Hitler recusava a idéia de revolução proletária comunista Em vez dela propôs o fortalecimento do Estado nacional a aliança com setores conservadores do capital industrial e financeiro a guerra de conquista de territórios e o nacionalismo baseado nas glórias do antigo Império Romano Por que nazismo Essa palavra é a abreviação do nome de um partido político ao qual Hitler se filiou Inicialmente o partido denominavase Partido Operário Alemão mas Hitler propôs que fosse denominado Partido Operário Alemão NacionalSocialista Nationalsozialistische Nazi Operário para indicar a oposição aos liberais mas nacionalsocialista para indicar a oposição aos comunistas e socialistas críticos do nacionalismo por ser uma ideologia necessária ao capital Convite à Filosofia 548 A palavra fascismo foi inventada por Mussolini a partir do vocábulo italiano fascio feixe É dupla a significação do fascio por um lado referese ao conjunto de machados reunidos por meio de um feixe de varas carregados por funcionários que precediam a aparição pública dos magistrados na antiga Roma os machados significando o poder do Estado para decapitar criminosos e as varas a unidade do povo romano em torno do Estado por outro lado referese a uma tradição popular do século XIX em que certas comunidades lutando por seus interesses e direitos simbolizavam sua luta e unidade pelos fasci Mussolini se apropria do símbolo romano e popular criando por toda a Itália os fasci de combate Embora de origem e significação diferentes nazismo e fascismo possuem aspectos comuns o antiliberalismo não como afirmação do socialismo e sim como defesa da total intervenção do Estado na economia e na sociedade civil Em sua fase inicial ambos se apresentam contra a ordem burguesa e conseguem a adesão da maioria da classe trabalhadora que sofria as misérias da recessão e do desemprego a colaboração de classe afirmação de que o capital e o trabalho não são contrários nem contraditórios mas podem e devem colaborar em harmonia para o bem da coletividade No lugar das classes sociais propõem e criam as corporações de ofício e de categoria de modo a ocultar a divisão entre o capital e o trabalho A idéia de Estado Corporativo havia sido elaborada pela Igreja Católica e exposta na bula do papa Leão XIII Rerum Novarum escrita contra socialistas e comunistas aliança com o capital industrial monopolista e financeiro isto é com os setores do capital cuja vocação é imperialista exigindo a conquista de novos territórios para a ampliação do mercado e o acúmulo do capital nacionalismo a realidade social é a Nação entendida como unidade territorial e identidade racial lingüística de costumes e tradições A nação é o espírito do povo a pátriamãe dos antepassados de sangue una única e indivisa corporativismo a sociedade como propunha o papa Leão XIII deve ser organizada pelo Estado sob a forma de corporações do trabalho e do capital hierarquizadas por suas funções e harmonizadas pela política econômica do Estado partido único que organiza as massas em lugar de classes sociais a nação é vista como constituída pelo povo e este é a massa organizada pelo partido único que a exprime e representa O partido organiza a sociedade não só em sindicatos corporativos mas também em associações de jovens de mulheres de crianças de artistas de escritores de cientistas de bairro de ginástica e dança de música etc A relação entre a sociedade a nação e o Estado é feita pela mediação do partido Marilena Chauí 549 ideologia de classe média no modo de produção capitalista há uma camada social que não é proletáriacamponesa nem é proprietária privada dos meios de produção não é burguesa tratase da classe média constituída por comerciantes profissionais liberais intelectuais artistas artesãos independentes e funcionários públicos Essa classe valoriza os valores e os costumes da burguesia e teme a proletarização sendo por isso antisocialista e anticomunista Embora admire a burguesia sente rancor por não possuir a riqueza e os privilégios burgueses Com efeito a classe média acredita no individualismo competitivo na idéia do homem que se faz sozinho graças à disciplina à boa família aos bons costumes e ao trabalho Mas ao contrário de suas expectativas não consegue apesar dos esforços subir na vida e responsabiliza a cobiça dos ricos por sua situação inferiorizada atribuindoa à desordem do liberalismo Por essas características a classe média é conservadora e reacionária tendo predileção por propostas políticas que lhe prometam organizar o Estado e a economia de tal modo que desapareçam o liberalismo e o risco do socialismocomunismo É o destinatário privilegiado e preferido do nazismo e do fascismo imperialismo belicista pela aliança com o capital monopolista e financeiro pela ideologia nacionalista expansionista pela ideologia de classe média que espera das conquistas militares melhoria de suas condições sociais nazismo e fascismo são políticas de guerra e de conquista Hitler falará do sangue germânico que corre nas veias dos povos da Europa central e deverá ser reconduzido à mãepátria alemã pela guerra Mussolini falará nas glórias do Império Romano e em sua reconquista pelas guerras italianas educação moral e cívica para garantir a adesão das massas à ideologia nazi fascista o Estado introduz a educação moral e cívica pela qual crianças e adolescentes aprenderão os valores nazifascistas de pátria disciplina força do caráter formação de corpos belos saudáveis poderosos necessários aos guerreiros dos novos impérios propaganda de massa o nazifascismo introduz pela primeira vez na História a prática hoje cotidiana e banal da propaganda dirigida às massas Essa propaganda é política voltada para a manifestação de sentimentos emoções e paixões desvalorizando a razão o pensamento e a consciência crítica Por meio do rádio e da imprensa de cartazes desfiles bandas jogos atléticos filmes o nazifascismo procura incutir na massa a devoção incondicional à pátria e aos chefes o amor à hierarquia à disciplina e à guerra prática da censura e da delação o Estado através do partido das associações e de aparelhos especializados policiais e militares controla o pensamento as ciências e as artes por meio da censura queimando livros e obras de arte contrários à pátria e aos chefes prendendo e torturando os dissidentes perseguindo os inimigos internos Estimula também sobretudo em crianças e Convite à Filosofia 550 jovens a prática da delação contra os dissidentes desviantes e inimigos internos do Estado racismo menos forte no fascismo é um componente essencial do nazismo que inventa a idéia de raça ariana ou raça nórdica superior a todas as outras devendo conquistar algumas para que a sirvam e aniquilar outras porque inservíveis e perigosas A idéia de aniquilação das raças inferiores faz do genocídio uma política do Estado O nazismo considerou os negros africanos poloneses tchecos húngaros romenos croatas sérvios e demais brancos europeus como raças inferiores a serem conquistadas Considerou ciganos e judeus como raças a serem eliminadas exterminou seis milhões de judeus estatismo contra o Estado liberal considerado caótico e contra as revoluções socialistas e comunistas que recusam o Estado o nazifascismo cria o Estado forte centralizado administrativamente militarizado que controla toda a sociedade por meio do partido das milícias de jovens da educação moral e cívica da propaganda da censura e da delação Existe apenas o Estado como totalidade que engloba em seu interior o todo da sociedade Totalitarismo portanto significa Estado total que absorve em seu interior e em sua organização o todo da sociedade e suas instituições controlandoa por inteiro O nazifascismo proliferou por toda a parte Foi vitorioso não apenas na Itália e na Alemanha mas com variações tomou o poder na Espanha de Franco em Portugal com Salazar e em vários países da Europa Oriental Conseguiu ter partidos significativos em países como França Ação Francesa Inglaterra Bélgica Áustria Argentina No Brasil deu origem à Ação Integralista Brasileira criada por Plínio Salgado A Revolução de Outubro Em outubro de 1917 contra toda expectativa marxista tem lugar a Revolução Russa sob a liderança do Partido Bolchevique Por que contra toda expectativa marxista Porque Marx julgara que a revolução proletária só poderia realizarse quando as contradições internas ao capitalismo esgotassem as possibilidades econômicas e políticas da burguesia e o proletariado através da revolução instaurasse a nova sociedade comunista Em termos marxistas a revolução proletária deveria acontecer nos países de capitalismo avançado como a Inglaterra a França a Alemanha Era essencial para a teoria da praxis revolucionária o pleno desenvolvimento do capitalismo pois isso significava que a infraestrutura econômica o avanço tecnológico e o grau de organização da classe trabalhadora preparariam a grande mudança histórica Não era concebível portanto a revolução na Rússia que vivia sob o Antigo Regime a monarquia por direito divino absoluta ou czarista era majoritariamente précapitalista com pequeno desenvolvimento do Marilena Chauí 551 capitalismo em alguns centros urbanos promovido não pela burguesia quase inexistente mas pelo próprio Estado e pelo capital externo inglês francês e alemão sem forte consciência e organização proletárias Foi ali porém que aconteceu a primeira revolução proletária antecedida por duas revoluções menores a de 1905 que instaurou o parlamento com partidos políticos da burguesia liberal e a de fevereiro de 1917 que proclamou a república e convocou uma assembléia constituinte mas cujo governo provisório não realizou as reformas prometidas e prosseguiu na guerra contra a Alemanha provocando reação popular e rebelião das tropas Nas circunstâncias russas o grande sujeito revolucionário não pôde ser a classe proletária organizada mas teve que ser uma vanguarda política liderada por intelectuais acostumados às lutas clandestinas o Partido Bolchevique ou a fração majoritária do Partido SocialDemocrata que iria tornarse o Partido Comunista Russo Que dificuldades enfrentou a Revolução de Outubro as dificuldades previsíveis que toda revolução comunista enfrentaria isto é a reação militar e econômica do capital sob a forma de guerra civil e de boicote econômico internacional a existência da Primeira Guerra Mundial que não só depauperou a precária economia russa mas também permitiu que os poderes capitalistas enviassem tropas para auxiliar a contrarevolução o chamado Exército dos Brancos o fracasso da revolução comunista alemã em 1919 da qual se esperava não só apoio para o desenvolvimento da sociedade socialista russa mas também que fosse o estopim da revolução proletária mundial esta se ocorresse livraria a revolução russa do isolamento do boicote capitalista internacional e da ameaça permanente de invasão militar capitalista a ausência de forte consciência política e organização operárias num país majoritariamente camponês e no qual as atividades políticas tinham sido necessariamente obra de grupos clandestinos formados sobretudo por intelectuais e estudantes O contingente revolucionário mais significativo que os bolcheviques conseguiram não veio do proletariado organizado mas das tropas exército e marinha rebeladas contra a guerra mundial iniciada em 1914 A militarização inevitável em toda revolução no caso da russa institucionalizouse como organização do Partido Bolchevique a ausência de economia capitalista desenvolvida que houvesse preparado a infraestrutura econômica e a organização sociopolítica para a nova sociedade A revolução teve que realizar duas revoluções numa só a burguesa de destruição do Antigo Regime e a comunista contra a burguesia Essa situação mais a ruína econômica causada pela guerra e pela continuação da guerra civil bem como o boicote do capitalismo internacional obrigaram ao chamado comunismo de Convite à Filosofia 552 guerra que transformou a ditadura do proletariado em ditadura do Partido Bolchevique para a instauração de uma nova forma inesperada de capitalismo o capitalismo de Estado considerado etapa socialista para a futura sociedade comunista Em outras palavras a estatização da economia substituiu a abolição do Estado prevista pelo Manifesto comunista Assenhoreandose do Estado o Partido Bolchevique criou um poderoso aparato militar e burocrático que evidentemente entrou em conflito com os conselhos populares de operários camponeses e soldados os sovietes pois estes haviamse organizado para realizar o autogoverno de uma sociedade sem Estado Os sovietes foram sendo dizimados e substituídos por órgãos do Partido Bolchevique deles restando apenas o nome que seria colado ao de república socialista República Socialista Soviética Em 1923 o Partido Bolchevique está profundamente dividido entre a posição de Trotski que critica a burocratização e propõe a tese da revolução permanente e a de Stalin que conseguira galgar o posto de secretáriogeral do partido acumulando enormes poderes em suas mãos Doente Lênin escreve um testamento político no qual sugere o afastamento de Stalin alertando para o perigo de seu autoritarismo Não foi porém atendido Morre em janeiro de 1924 Valendose do cargo e colocando a direção partidária contra Trotski Stalin assume o poder do Estado Sob sua orientação embora ficasse nos bastidores as principais lideranças da revolução foram expulsas do partido Trotski foi banido e em 1940 assassinado por um agente stalinista no México Com a tese socialismo num só país portanto oposta à tese marxista do internacionalismo proletário e da revolução mundial Stalin implanta à força a coletivização da economia sob a direção do Estado e do partido Exerce controle militar policial e ideológico sobre toda a sociedade institui o culto à personalidade e em 1936 começa os grandes expurgos políticos conhecidos como processos de Moscou Sempre nos bastidores conseguiu que seus aliados forjassem todo tipo de acusação contra lideranças políticas de oposição levandoas à condenação à morte ou à prisão perpétua em campos de concentração Fortaleceu a polícia secreta e consolidou o totalitarismo Além da coletivização econômica planejou a economia para investimentos na indústria pesada sacrificando a produção de bens de consumo e os serviços públicos sociais Prevendo a Segunda Guerra Mundial orientou a economia para a indústria bélica química pesada e energia elétrica produzindo às custas de enormes sacrifícios e privações da população o maior crescimento econômico da história da Rússia que se tornou potência econômica e militar mundial O totalitarismo stalinista Embora o totalitarismo russo esteja ligado indissoluvelmente ao nome de Stalin isso não significa que tenha terminado com sua morte Marilena Chauí 553 Até a chamada glasnost transparência proposta nos anos 80 por Gorbatchev existiu o stalinismo sem Stalin ou seja o totalitarismo Muitos traços do stalinismo são semelhantes aos do nazifascismo centralização estatal partido único com controle total sobre a sociedade militarização nacionalismo imperialismo censura do pensamento e da expressão propaganda estatal no lugar da informação campos de concentração invenção contínua dos inimigos internos mas a diferença fundamental e trágica entre eles está no fato de que o stalinismo sufocou a primeira revolução proletária e deformou profundamente o marxismo marcando com o selo totalitário os partidos comunistas do mundo inteiro As grandes teses de Marx foram destruídas pelas teses stalinistas à tese marxista da revolução proletária mundial o stalinismo contrapôs a tese do socialismo num só país transformandoa em diretriz obrigatória para os partidos comunistas do mundo inteiro Isso significou que tais partidos deveriam abandonar práticas revolucionárias em seus países para não prejudicar as relações internacionais da União Soviética Eram estimuladas porém as guerras de libertação nacional contra os países colonialistas sempre que isso fosse do interesse econômico e geopolítico da Rússia à tese marxista da ditadura do proletariado para a derrubada do Estado o stalinismo contrapôs a ditadura do partido único e do Estado forte à tese marxista da abolição do Estado na sociedade comunista sem classes sociais contrapôs o agigantamento do Estado a absorção da sociedade pelo aparelho estatal e pelos órgãos do partido cuja burocracia constituiuse numa nova classe dominante com interesses e privilégios próprios à tese marxista da luta proletária contra a burguesia e a pequena burguesia bem como à afirmação de que em muitos processos revolucionários parte da burguesia e da pequena burguesia se aliam ao proletariado mas o abandonam a partir de certo ponto devendo ele prosseguir sozinho na ação revolucionária o stalinismo contrapôs a tese oportunista da estratégia e da tática segundo a qual em certos casos o proletariado faria alianças e nelas permaneceria e em outros não faria aliança alguma se isso não fosse do interesse da vanguarda partidária à tese marxista do internacionalismo proletário Proletários de todos os países univos dizia o Manifesto comunista contrapôs o nacionalismo e o imperialismo russos primeiro invadindo e dominando a Europa Oriental e depois os países asiáticos não dominados pela China à tese marxista do partido político como instrumento de organização da classe trabalhadora e expressão prática de suas idéias e lutas contrapôs a burocracia partidária como vanguarda política que não só representa os interesses proletários mas os encarna e os dirige pois é detentora do poder e do saber Convite à Filosofia 554 à tese marxista da relação indissolúvel entre as idéias e as condições materiais isto é entre teoria e prática que permitia o desenvolvimento da consciência crítica da classe trabalhadora contrapôs a propaganda estatal a ideologia do chefe como pai dos povos o controle da educação e dos meios de comunicação pelo partido e pelo Estado à tese de Marx de que a teoria e a prática estão numa relação dialética que o conhecimento é histórico e um processo interminável de análise e compreensão das condições concretas postas pela realidade social o stalinismo contrapôs uma invenção o Diamat materialismo dialético isto é o marxismo como doutrina ahistórica fixada em dogmas expostos sob a forma de catecismos de vulgarização da ideologia stalinista Foi tão longe nisso que considerou função do Estado definir o pensamento correto Para tanto os intelectuais do partido foram encarregados de determinar as linhas corretas para a Filosofia as ciências e as artes Instituiuse a psicologia oficial a medicina e a genética oficiais a literatura a pintura a música e o cinema oficiais a filosofia e a ciência oficiais encarregandose a polícia secreta de queimar obras prender torturar assassinar ou enviar para campos de concentração os dissidentes ou desviantes Os herdeiros de Stalin foram mais longe consideravam que como o partido e o Estado dizem a verdade absoluta os desvios intelectuais artísticos e políticos eram sintomas de distúrbios psíquicos e de loucura enviando os dissidentes para hospitais psiquiátricos à tese marxista de que a classe trabalhadora é sujeito de sua própria história quando toma consciência de sua situação e luta contra ela aprendendo com a memória dos combates e a tradição das derrotas o stalinismo contrapôs a idéia de história oficial da classe proletária identificada com a história do partido comunista e com a interpretação dada por este último aos acontecimentos históricos roubando assim dos trabalhadores o direito à memória à tese marxista de que os inimigos da classe trabalhadora não são indivíduos dessa ou daquela classe mas uma outra classe social enquanto classe contrapôs a idéia de inimigos do povo saídos do seio do próprio povo como inimigos de sua própria classe porque são agentes estrangeiros infiltrados no seio do povo uno indiviso bom e homogêneo à tese de Marx da nova sociedade como concretização da liberdade da igualdade da abundância da justiça e da felicidade o stalinismo contrapôs o operáriomodelo e o militante exemplar acostumados à obediência cega aos comandos do Estado e do partido e à hierarquia social imposta por eles Viver pelo e para o Estado e o partido tornaramse sinônimos de felicidade liberdade e justiça A transformação das idéias e práticas stalinistas em instituições sociais fez com que o stalinismo não fosse um acontecimento de superfície que pudesse ser apagado com a morte de Stalin Pelo contrário Foi instituída uma nova Marilena Chauí 555 formação social que modelou corpos corações e mentes e que só desapareceu parcialmente no fim dos anos 80 e inícios dos 90 porque a crise econômica provocada pelo delírio armamentista fez emergirem contradições sufocadas durante 70 anos A democracia como ideologia Dois acontecimentos políticos marcaram o período posterior à Segunda Guerra Mundial a guerra fria e o surgimento do Estado do BemEstar Social Welfare State A guerra fria foi a divisão geopolítica econômica e militar entre dois grandes blocos o bloco capitalista sob a direção dos Estados Unidos e o bloco comunista sob a direção da União Soviética e da China Uma das principais razões para essa divisão foi militar isto é a invenção da bomba atômica que punha fim às guerras convencionais Inicialmente cada bloco julgava que a posse de armamentos nucleares lhe daria mais poder para eliminar o outro Pouco a pouco porém a chamada corrida armamentista deixou de visar diretamente à guerra voltandose para a intimidação recíproca dos adversários limitando suas ações imperialistas Finalmente percebeuse que uma guerra não convencional ou nuclear teria resultado zero ou seja não teria vencedores pois o planeta seria inteiramente destruído Antes porém que se chegasse a essa conclusão a guerra fria definiu o alinhamento político e econômico de todos os países à volta dos dois blocos hegemônicos O Estado do BemEstar Social Welfare State foi implantado nos países capitalistas avançados do hemisfério norte como defesa do capitalismo contra o perigo do retorno do nazifascismo e da revolução comunista A crise econômica gerada pela guerra as críticas nazifascista e socialista ao liberalismo a imagem da sociedade socialista em construção na União Soviética e na China fazendo com que os trabalhadores encontrassem nelas ignorando o que ali realmente se passava um contraponto para as desigualdades e injustiças do capitalismo tudo isso levou a prática política a afirmar a necessidade de alterar a ação do Estado corrigindo os problemas econômicos e sociais O Estado passa a intervir na economia investindo em indústrias estatais subsidiando empresas privadas na indústria na agricultura e no comércio exercendo controle sobre preços salários e taxas de juros Assume para si um conjunto de encargos sociais ou serviços públicos sociais saúde educação moradia transporte previdência social segurodesemprego Atende demandas de cidadania política como o sufrágio universal Sob os efeitos da guerra fria e do Estado do BemEstar Social o bloco capitalista procurou impedir nos países economicamente subdesenvolvidos ou do Terceiro Mundo América Latina África Oriente Médio rebeliões populares que Convite à Filosofia 556 desembocassem em revoluções socialistas O perigo existe por dois motivos principais ou porque os países do Terceiro Mundo são colônias dos países capitalistas ou porque neles a desigualdade econômicosocial a miséria e as injustiças são de tal monta que nas colônias guerras de libertação nacional e nos demais países rebeliões populares podem acontecer a qualquer momento e transformarse em revoluções O caso de Cuba em 1958 evidenciou essa possibilidade Os países mais fortes do bloco capitalista adotaram duas medidas através do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional FMI fizeram empréstimos aos Estados do Terceiro Mundo para investir nos serviços sociais e em empresas estatais e através dos serviços de espionagem e das forças armadas ofereceram ajuda militar para reprimir revoltas e revoluções Com isso estimularam sobretudo a partir dos anos 60 a proliferação de ditaduras militares e regimes autoritários no Terceiro Mundo como foi o caso do Brasil No centro do discurso político capitalista encontrase a defesa da democracia Vimos que as formações sociais totalitárias cresceram à sombra da crítica à democracia liberal considerada responsável pela desordem e caos sócio econômicos porque abandona a sociedade à cobiça ilimitada dos ricos e poderosos A democracia é o mal Por seu turno na luta contra os totalitarismos os Estados capitalistas afirmaram tratarse do combate entre a opressão e a liberdade a ditadura e a democracia A democracia é o bem Nos dois casos a democracia erguida ora como o mal ora como o bem deixava de ser encarada como forma da vida social para tornarse um tipo de governo e um instrumento ideológico para esconder o que ela é em nome do que ela vale Tanto assim que os grandes Estados capitalistas campeões da democracia não tiveram dúvida em auxiliar a implantação de regimes autoritários portanto antidemocráticos toda vez que lhes pareceu conveniente Embora liberalismo e Estado do BemEstar Social ou socialdemocracia sejam diferentes quanto à questão dos direitos o primeiro limita os direitos à cidadania política da classe dominante o segundo amplia a cidadania política e acolhe a idéia de direitos sociais no que tange à democracia são semelhantes Como a definem Como regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais O que isso quer dizer Em primeiro lugar que identificam liberdade e competição tanto a competição econômica da chamada livre iniciativa quanto a competição política entre partidos que disputam eleições Em segundo lugar que identificam a lei com a potência judiciária para limitar o poder político defendendo a sociedade contra a tirania a lei garantindo os governos escolhidos pela vontade da maioria Marilena Chauí 557 Em terceiro lugar que identificam a ordem com a potência do executivo e do judiciário para conter e limitar os conflitos sociais impedindo o desenvolvimento da luta de classes seja pela repressão seja pelo atendimento das demandas por direitos sociais emprego boas condições de trabalho e salário educação moradia saúde transporte lazer Em quarto lugar que embora a democracia apareça justificada como valor ou como bem é encarada de fato pelo critério da eficácia Em outras palavras defendem a democracia porque lhes parece um regime favorável à apatia política a política seria assunto dos representantes que são políticos profissionais que por seu turno favorece a formação de uma elite de técnicos competentes aos quais cabe a direção do Estado evitando dessa maneira uma participação política que traria à cena os extremistas e radicais da sociedade A democracia é assim reduzida a um regime político eficaz baseado na idéia de cidadania organizada em partidos políticos e manifestandose no processo eleitoral de escolha dos representantes na rotatividade dos governantes e nas soluções técnicas e não políticas para os problemas sociais Vista por esse prisma é realmente uma ideologia política e justifica a crítica que lhe dirigiu Marx ao referirse ao formalismo jurídico que preside a idéia de direitos do cidadão Em outras palavras desde a Revolução Francesa de 1789 essa democracia declara os direitos universais do homem e do cidadão mas a sociedade está estruturada de tal maneira que tais direitos não podem existir concretamente para a maioria da população A democracia é formal não é concreta A sociedade democrática Vimos que uma ideologia não nasce do nada nem repousa no vazio mas exprime de maneira invertida dissimulada e imaginária a praxis social e histórica concretas Isso se aplica à ideologia democrática Em outras palavras há na prática democrática e nas idéias democráticas uma profundidade e uma verdade muito maiores e superiores ao que a ideologia democrática percebe e deixa perceber Que significam as eleições Muito mais do que a mera rotatividade de governos ou a alternância no poder Simbolizam o essencial da democracia que o poder não se identifica com os ocupantes do governo não lhes pertence mas é sempre um lugar vazio que os cidadãos periodicamente preenchem com um representante podendo revogar seu mandato se não cumprir o que lhe foi delegado para representar As idéias de situação e oposição maioria e minoria cujas vontades devem ser respeitadas e garantidas pela lei vão muito além dessa aparência Significam que a sociedade não é uma comunidade una e indivisa voltada para o bem comum obtido por consenso mas ao contrário que está internamente dividida e que as Convite à Filosofia 558 divisões são legítimas e devem expressarse publicamente A democracia é a única forma política que considera o conflito legítimo e legal permitindo que seja trabalhado politicamente pela própria sociedade As idéias de igualdade e liberdade como direitos civis dos cidadãos vão muito além de sua regulamentação jurídica formal Significam que os cidadãos são sujeitos de direitos e que onde tais direitos não existam nem estejam garantidos temse o direito de lutar por eles e exigilos É esse o cerne da democracia Um direito difere de uma necessidade ou carência e de um interesse Uma necessidade ou carência é algo particular e específico Alguém pode ter necessidade de água outro de comida Um grupo social pode ter carência de transportes outro de hospitais Há tantas necessidades quanto indivíduos tantas carências quanto grupos sociais Um interesse também é algo particular e específico Os interesses dos estudantes brasileiros podem ser diferentes dos interesses dos estudantes argentinos Os interesses dos agricultores podem ser diferentes dos interesses dos comerciantes Os interesses dos bancários diferentes dos interesses dos banqueiros Os interesses dos índios diferentes dos interesses dos garimpeiros Necessidades ou carências podem ser conflitantes Suponhamos que por exemplo numa região de uma grande cidade as mulheres trabalhadoras tenham necessidade ou carência de creches para seus filhos e que na mesma região um outro grupo social favelado tenha carência de moradia O governo municipal dispõe de recursos para atender a uma das carências mas não a ambas de sorte que resolver uma significará abandonar a outra Interesses também podem ser conflitantes Suponhamos por exemplo que interesse a grandes proprietários de terra deixálas inativas esperando a valorização imobiliária mas que interesse a trabalhadores rurais sem terra o cultivo de alimentos para a sobrevivência temos aí um conflito de interesses Suponhamos que interesse aos proprietários de empresas comerciais estabelecer um horário de trabalho que aumente as vendas mas que interesse aos comerciários um outro horário no qual possam dispor de horas para estudar cuidar da família e descansar Temos aqui um outro conflito de interesses Um direito ao contrário de necessidades carências e interesses não é particular e específico mas geral e universal válido para todos os indivíduos grupos e classes sociais Assim por exemplo a carência de água e de comida manifesta algo mais profundo o direito à vida A carência de moradia ou de transporte também manifesta algo mais profundo o direito a boas condições de vida O interesse dos estudantes o direito à educação e à informação O interesse dos semterra o direito ao trabalho O dos comerciários o direito a boas condições de trabalho Marilena Chauí 559 Dizemos que uma sociedade e não um simples regime de governo é democrática quando além de eleições partidos políticos divisão dos três poderes da república respeito à vontade da maioria e das minorias institui algo mais profundo que é condição do próprio regime político ou seja quando institui direitos A criação de direitos Quando a democracia foi inventada pelos atenienses criouse a tradição democrática como instituição de três direitos fundamentais que definiam o cidadão igualdade liberdade e participação no poder Igualdade significava perante as leis e os costumes da polis todos os cidadãos possuem os mesmos direitos e devem ser tratados da mesma maneira Por esse motivo Aristóteles afirmava que a primeira tarefa da justiça era igualar os desiguais seja pela redistribuição da riqueza social seja pela garantia de participação no governo Também pelo mesmo motivo Marx afirmava que a igualdade só se tornaria um direito concreto quando não houvesse escravos servos e assalariados explorados mas fosse dado a cada um segundo suas necessidades e segundo seu trabalho A observação de Aristóteles e depois a de Marx indicam algo preciso a mera declaração do direito à igualdade não faz existir os iguais mas abre o campo para a criação da igualdade através das exigências e demandas dos sujeitos sociais Em outras palavras declarado o direito à igualdade a sociedade pode instituir formas de reivindicação para criálo como direito real Liberdade significava todo cidadão tem o direito de expor em público seus interesses e suas opiniões vêlos debatidos pelos demais e aprovados ou rejeitados pela maioria devendo acatar a decisão tomada publicamente Na modernidade com a Revolução Inglesa de 1644 e a Revolução Francesa de 1789 o direito à liberdade ampliouse Além da liberdade de pensamento e de expressão passou a significar o direito à independência para escolher o ofício o local de moradia o tipo de educação o cônjuge em suma a recusa das hierarquias fixas supostamente divinas ou naturais Acrescentouse em 1789 um direito de enorme importância qual seja o de que todo indivíduo é inocente até prova em contrário que a prova deve ser estabelecida perante um tribunal e que a liberação ou punição devem ser dadas segundo a lei Com os movimentos socialistas a luta social por liberdade ampliou ainda mais esse direito acrescentandolhe o direito de lutar contra todas as formas de tirania censura e tortura e contra todas as formas de exploração e dominação social econômica cultural e política Observamos aqui o mesmo que na igualdade a simples declaração do direito à liberdade não a institui concretamente mas abre o campo histórico para a criação desse direito pela práxis humana Convite à Filosofia 560 Participação no poder significava todos os cidadãos têm o direito de participar das discussões e deliberações públicas da polis votando ou revogando decisões Esse direito possuía um significado muito preciso Nele afirmavase que do ponto de vista político todos os cidadãos têm competência para opinar e decidir pois a política não é uma questão técnica eficácia administrativa e militar nem científica conhecimentos especializados sobre administração e guerra mas ação coletiva isto é decisão coletiva quanto aos interesses e direitos da própria polis A democracia ateniense como se vê era direta A moderna porém é representativa O direito à participação tornouse portanto indireto através da escolha de representantes Ao contrário dos outros dois direitos este último parece ter sofrido diminuição em lugar de ampliação Essa aparência é falsa e verdadeira Falsa porque a democracia moderna foi instituída na luta contra o Antigo Regime e portanto em relação a esse último ampliou a participação dos cidadãos no poder ainda que sob a forma da representação Verdadeira porque como vimos a república liberal tendeu a limitar os direitos políticos aos proprietários privados dos meios de produção e aos profissionais liberais da classe média aos homens adultos independentes Todavia as lutas socialistas e populares forçaram a ampliação dos direitos políticos com a criação do sufrágio universal todos são cidadãos eleitores homens mulheres jovens negros analfabetos trabalhadores índios e a garantia da elegibilidade de qualquer um que não estando sob suspeita de crime se apresente a um cargo eletivo Vemos aqui portanto o mesmo que nos direitos anteriores lutas sociais que transformam a simples declaração de um direito em direito real ou seja vemos aqui a criação de um direito As lutas por igualdade e liberdade ampliaram os direitos políticos civis e a partir destes criaram os direitos sociais trabalho moradia saúde transporte educação lazer cultura os direitos das chamadas minoriasxxv mulheres idosos negros homossexuais crianças índios e o direito à segurança planetária as lutas ecológicas e contra as armas nucleares As lutas populares por participação política ampliaram os direitos civis direito de oporse à tirania à censura à tortura direito de fiscalizar o Estado por meio de organizações da sociedade associações sindicatos partidos políticos direito à informação pela publicidade das decisões estatais A sociedade democrática institui direitos pela abertura do campo social à criação de direitos reais à ampliação de direitos existentes e à criação de novos direitos Com isso dois traços distinguem a democracia de todas as outras formas sociais e políticas Marilena Chauí 561 1 a democracia é a única sociedade e o único regime político que considera o conflito legítimo Não só trabalha politicamente os conflitos de necessidade e de interesses disputas entre os partidos políticos e eleições de governantes pertencentes a partidos opostos mas procura instituílos como direitos e como tais exige que sejam reconhecidos e respeitados Mais do que isso Na sociedade democrática indivíduos e grupos organizamse em associações movimentos sociais e populares classes se organizam em sindicatos e partidos criando um contrapoder social que direta ou indiretamente limita o poder do Estado 2 a democracia é a sociedade verdadeiramente histórica isto é aberta ao tempo ao possível às transformações e ao novo Com efeito pela criação de novos direitos e pela existência dos contrapoderes sociais a sociedade democrática não está fixada numa forma para sempre determinada ou seja não cessa de trabalhar suas divisões e diferenças internas de orientarse pela possibilidade objetiva a liberdade e de alterarse pela própria praxis Os obstáculos à democracia Liberdade igualdade e participação conduziriam à célebre formulação da política democrática como governo do povo pelo povo e para o povo Entretanto o povo da sociedade democrática está dividido em classes sociais sejam os ricos e os pobres Aristóteles os grandes e o povo Maquiavel as classes sociais antagônicas Marx É verdade que a sociedade democrática é aquela que não esconde suas divisões mas procura trabalhálas pelas instituições e pelas leis Todavia no capitalismo são imensos os obstáculos à democracia pois o conflito dos interesses é posto pela exploração de uma classe social por outra mesmo que a ideologia afirme que todos são livres e iguais É verdade que as lutas populares nos países de capitalismo avançado ampliaram os direitos e que a exploração dos trabalhadores diminuiu muito sobretudo com o Estado do BemEstar Social No entanto houve um preço a pagar a exploração mais violenta do trabalho pelo capital recaiu sobre as costas dos trabalhadores nos países do Terceiro Mundo Houve uma divisão internacional do trabalho e da exploração que ao melhorar a igualdade e a liberdade dos trabalhadores de uma parte do mundo agravou as condições de vida e de trabalho da outra parte E não foi por acaso que enquanto nos países capitalistas avançados cresciam o Estado de BemEstar e a democracia social no Terceiro Mundo eram implantadas ditaduras e regimes autoritários com os quais os capitalistas desses países se aliavam aos das grandes potências econômicas A situação do direito de igualdade e de liberdade é também muito frágil nos dias atuais porque o modo de produção capitalista passa por uma mudança profunda para resolver a recessão mundial Essa mudança conhecida com o nome de Convite à Filosofia 562 neoliberalismo implicou o abandono da política do Estado do BemEstar Social políticas de garantia dos direitos sociais e o retorno à idéia liberal de autocontrole da economia pelo mercado capitalista afastando portanto a interferência do Estado no planejamento econômico O abandono das políticas sociais chamase privatização e o do planejamento econômico resregulação Ambas significam o capital é racional e pode por si mesmo resolver os problemas econômicos e sociais Além disso o desenvolvimento espantoso das novas tecnologias eletrônicas trouxe a velocidade da comunicação e da informação e a automação da produção e distribuição dos produtos Essa mudança nas forças produtivas pois a tecnologia alterou o processo social do trabalho vem causando o desemprego em massa nos países de capitalismo avançado movimentos racistas contra imigrantes e migrantes exclusão social política e cultural de grandes massas da população Esse fenômeno começa também a atingir alguns países do Terceiro Mundo como o Brasil Em outras palavras os direitos econômicos e sociais conquistados pelas lutas populares estão em perigo porque o capitalismo está passando por uma mudança profunda De fato tradicionalmente o capital se acumulava se ampliava e se reproduzia pela absorção crescente de pessoas no mercado de mãodeobra ou mercado de trabalho e no mercado de consumo dos produtos Hoje porém com a presença da tecnologia de ponta como força produtiva o capital pode acumularse e reproduzirse excluindo cada vez mais as pessoas do mercado de trabalho e de consumo Não precisa mais de grandes massas trabalhadoras e consumidoras pode ampliarse graças ao desemprego em massa e não precisa preocuparse em garantir direitos econômicos e sociais aos trabalhadores porque não necessita de seus trabalhos e serviços Por isso o Estado do BemEstar Social tende a ser suprimido pelo Estado neoliberal defensor da privatização das políticas sociais educação saúde transporte moradia alimentação O direito à participação política também encontra obstáculos De fato no capitalismo da segunda metade do século XX a organização industrial do trabalho foi feita a partir de uma divisão social nova a separação entre dirigentes e executantes Os primeiros são os que recebem a educação científica e tecnológica são considerados portadores de saberes que os tornam competentes e por isso com poder de mando Os executantes são aqueles que não possuem conhecimentos tecnológicos e científicos mas sabem apenas executar tarefas sem conhecer as razões e as finalidades de sua ação São por isso considerados incompetentes e destinados a obedecer Essa forma de organização da divisão social do trabalho propagouse para a sociedade inteira No comércio na agricultura nas escolas nos hospitais nas universidades nos serviços públicos nas artes todos estão separados entre competentes que sabem e incompetentes que executam Em outras palavras Marilena Chauí 563 a posse de certos conhecimentos específicos tornouse um poder para mandar e decidir Essa divisão social converteuse numa ideologia a ideologia da competência técnicocientífica isto é na idéia de que quem possui conhecimentos está naturalmente dotado de poder de mando e direção Essa ideologia fortalecida pelos meios de comunicação de massa que a estimula diariamente invadiu a política esta passou a ser considerada uma atividade reservada para administradores políticos competentes e não uma ação coletiva de todos os cidadãos Não só o direito à representação política ser representante diminui porque se restringe aos competentes como ainda a ideologia da competência oculta e dissimula o fato de que para ser competente é preciso ter recursos econômicos para estudar e adquirir conhecimentos Em outras palavras os competentes pertencem à classe economicamente dominante que assim dirige a política segundo seus interesses e não de acordo com a universalidade dos direitos Um outro obstáculo ao direito à participação política é posto pelos meios de comunicação de massa Só podemos participar de discussões e decisões políticas se possuirmos informações corretas sobre aquilo que vamos discutir e decidir Ora como já vimos os meios de comunicação de massa não informam desinformam Ou melhor transmitem as informações de acordo com os interesses de seus proprietários e das alianças econômicas e políticas destes com grupos detentores de poder econômico e político Assim por não haver respeito ao direito de informação não há como respeitar o direito à verdadeira participação política Os obstáculos à democracia não inviabilizam a sociedade democrática Pelo contrário Somente nela somos capazes de perceber tais obstáculos e lutar contra eles Dificuldades para a democracia no Brasil Periodicamente os brasileiros afirmam que vivemos numa democracia depois de concluída uma fase de autoritarismo Por democracia entendem a existência de eleições de partidos políticos e da divisão republicana dos três poderes além da liberdade de pensamento e de expressão Por autoritarismo entendem um regime de governo em que o Estado é ocupado através de um golpe em geral militar ou com apoio militar não há eleições nem partidos políticos o poder executivo domina o legislativo e o judiciário há censura do pensamento e da expressão por vezes com tortura e morte dos inimigos políticos Em suma democracia e autoritarismo são vistos como algo que se realiza na esfera do Estado e este é identificado com o modo de governo Essa visão é cega para algo profundo na sociedade brasileira o autoritarismo social Nossa sociedade é autoritária porque é hierárquica pois divide as pessoas Convite à Filosofia 564 em qualquer circunstância em inferiores que devem obedecer e superiores que devem mandar Não há percepção nem prática da igualdade como um direito Nossa sociedade também é autoritária porque é violenta nos termos em que no estudo da ética definimos a violência nela vigoram racismo machismo discriminação religiosa e de classe social desigualdades econômicas das maiores do mundo exclusões culturais e políticas Não há percepção nem prática do direito à liberdade O autoritarismo social e as desigualdades econômicas fazem com que a sociedade brasileira esteja polarizada entre as carências das camadas populares e os interesses das classes abastadas e dominantes sem conseguir ultrapassar carências e interesses e alcançar a esfera dos direitos Os interesses porque não se transformam em direitos tornamse privilégios de alguns de sorte que a polarização social se efetua entre os despossuídos os carentes e os privilegiados Estes porque são portadores dos conhecimentos técnicos e científicos são os competentes cabendolhes a direção da sociedade Como vimos uma carência é sempre específica sem conseguir generalizarse num interesse comum nem universalizarse num direito Um privilégio por definição é sempre particular não podendo generalizarse num interesse comum nem universalizarse num direito pois se tal ocorresse deixaria de ser privilégio Ora a democracia é criação e garantia de direitos Nossa sociedade polarizada entre a carência e o privilégio não consegue ser democrática pois não encontra meios para isso Esse conjunto de determinações sociais manifestase na esfera política Em lugar de democracia temos instituições vindas dela mas operando de modo autoritário Assim por exemplo os partidos políticos costumam ser de três tipos os clientelistas que mantêm relações de favor com seus eleitores os vanguardistas que substituem seus eleitores pela vontade dos dirigentes partidários e os populistas que tratam seus eleitores como um pai de família o despotes trata seus filhos menores Favor substituição e paternalismo evidenciam que a prática da participação política através de representantes não consegue se realizar no Brasil Os representantes em lugar de cumprir o mandato que lhes foi dado pelos representados surgem como chefes mandantes detentores de favores e poderes submetendo os representados transformandoos em clientes que recebem favores dos mandantes A indústria política isto é a criação da imagem dos políticos pelos meios de comunicação de massa para a venda do político aos eleitoresconsumidores aliada à estrutura social do país alimenta um imaginário político autoritário As lideranças políticas são sempre imaginadas como chefes salvadores da nação verdadeiros messias escolhidos por Deus e referendados pelo voto dos eleitores Marilena Chauí 565 Na verdade não somos realmente eleitores os que escolhem mas meros votantes os que dão o voto para alguém A imagem populista e messiânica dos governantes indica que a concepção teocrática do poder não desapareceu ainda se acredita no governante como enviado das divindades o número de políticos ligados a astrólogos e videntes fala por si mesmo e que sua vontade tem força de lei As leis porque exprimem ou os privilégios dos poderosos ou a vontade pessoal dos governantes não são vistas como expressão de direitos nem de vontades e decisões públicas coletivas O poder judiciário aparece como misterioso envolto num saber incompreensível e numa autoridade quase mística Por isso mesmo aceitase que a legalidade seja por um lado incompreensível e por outro ineficiente a impunidade não reina livre e solta e que a única relação possível com ela seja a da transgressão o famoso jeitinho Como se observa a democracia no Brasil ainda está por ser inventada i Como já vimos o juízo relaciona positiva ou negativamente um sujeito S e um predicado ou conjunto de predicados P S é P S não é P Também relaciona S e P necessariamente Sócrates é mortal acidentalmente Sócrates é pequeno possivelmente Sócrates poderá vir à praça Se não chover Sócrates virá à praça etc ii Quando Édipo nasce um vidente Tirésias prevê que o menino matará o pai e se casará com a mãe Apavorado o rei Laio o pai manda matar Édipo O escravo que deveria matar o menino sente piedade e o lança num precipício sem verificar se está ou não morto e entrega ao rei o coração de uma corça como se fosse o de Édipo A criança não morre e é recolhida por um pastor Este por sua vez a entrega a um outro rei que idoso lamentava não ter filhos Ao crescer Édipo suspeita que não é filho de seus pais adotivos e sai à procura dos pais verdadeiros No caminho vê uma batalha entre um grupo numeroso e um pequeno colocase ao lado deste último e mata o chefe do outro grupo seu pai Laio Chegando à sua cidade natal fica sabendo que um monstro estava devorando as virgens e só interromperá a matança se alguém decifrar um enigma que propõe Édipo decifra o enigma Como recompensa recebe a rainha em casamento Casase com Jocasta sem saber que se tratava de sua verdadeira mãe e com ela tem filhos A profecia se cumpre A cidade será castigada com a peste e ao tentar combatêla pedindo aos deuses que lhe digam o que a causou Édipo fica sabendo por Tirésias que matou o pai e casouse com a mãe Fura os olhos e exila se enquanto Jocasta se suicida iii Conta o mito que o jovem Narciso belíssimo nunca tinha visto sua própria imagem Um dia passeando por um bosque viu um lago Aproximouse e viu nas águas um jovem de extraordinária beleza e pelo qual apaixonouse perdidamente Desejava que o outro saísse das águas e viesse ao seu encontro mas como o outro parecia recusarse a sair do lago Narciso mergulhou nas águas foi às profundezas à procura do outro que fugia morrendo afogado Narciso morreu de amor por si mesmo ou melhor de amor por sua própria imagem ou pela autoimagem O narcisismo é o encantamento e a paixão que sentimos por nossa própria imagem ou por nós mesmos porque não conseguimos diferenciar o eu e o outro iv No século XX os lógicos afirmaram que a lógica aristotélica não deveria ser considerada plenamente formal porque Aristóteles não afastara por inteiro os conteúdos pensados para ficar apenas com a forma vazia de conteúdo No entanto vamos aqui manter essa característica para a lógica aristotélica porque se comparada à dialética platônica nela o papel do conteúdo pensado é menor do que a forma de pensamento estudada pelo filósofo v Kant emprega a palavra crítica no sentido que possuía em grego estudo das condições de possibilidade de alguma coisa No caso estudo das condições de possibilidade do conhecimento verdadeiro É a análise da estrutura da razão humana enquanto atividade teórica de conhecimento Veja se o capítulo 4 da Unidade 2 em que a posição kantiana é examinada Convite à Filosofia 566 vi Lembremos que o movimento kinesis é toda e qualquer alteração ou mudança experimentada por um ser mudança de qualidade e quantidade mudança de lugar nascer e morrer O Primeiro Motor o divino é Imóvel porque perfeito jamais submetido a qualquer tipo de movimento sempre idêntico a si mesmo Os seres mudam movemse para realizar todas as alterações e um dia deixarem de moverse vii Ver Unidade 2 especialmente o capítulo 4 e também a Unidade 3 especialmente o capítulo 3 viii A palavra transcendental vem do vocabulário medieval significando aquilo que torna possível alguma coisa a condição necessária de possibilidade da existência e do sentido de alguma coisa Ao falar em Sujeito Transcendental Kant está afirmando que o sujeito do conhecimento ou a razão pura universal é a condição necessária de possibilidade dos objetos do conhecimento que por isso são postos por ele ix Kant como já vimos emprega a palavra crítica no sentido de condição de possibilidade A crítica da razão é o estudo das condições de possibilidade do conhecimento e da ação moral x Lembremos que a palavra epistemologia é composta de dois termos gregos episteme que significa ciência e logia vinda de logos significando conhecimento Epistemologia é o conhecimento filosófico sobre as ciências xi Arquitetura pintura escultura gravura música dança e cinema xii A palavra autônomo vem do grego autos eu mesmo si mesmo e nomos lei norma regra Aquele que tem o poder para dar a si mesmo a lei a norma a regra é autônomo e goza de autonomia ou liberdade Autonomia significa autodeterminação Quem não tem a capacidade racional para a autonomia é heterônomo Heterônomo vem do grego hetero outro e nomos receber de um outro a lei a norma ou a regra xiii Aristoi do grego os melhores Essa palavra referiase àqueles que realizavam de um modo excelente os valores gregos da coragem na guerra da beleza física e do respeito aos deuses São a elite ou a classe dominante xiv Na Antiguidade família não era o que é hoje para nós pai mãe e filhos mas era uma unidade econômica constituída pelos antepassados e descendentes pai mãe filhos genros noras tios e sobrinhos escravos animais terras edificações plantações bens móveis e imóveis pessoas e coisas eram propriedades do patriarca despotes ou paterfamilias xv Os termos compostos com cracia são autos eu mesmo eu próprio si mesmo aristos o melhor o mais excelente demos o povo xvi Título dos imperadores romanos de Augusto 63 aC14 aC a Adriano 76138 Nota de Pausa para a Filosofia xvii Mt 161819 Também eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja e as portas do inferno não prevalecerão sobre ela Darteei as chaves do reino dos céus o que ligares na terra terá sido ligado nos céus e o que desligares na terra terá sido desligado nos céus Nota de Pausa para a Filosofia xviii Pv 81516 Por meu intermédio reinam os reis e os príncipes decretam justiça Por meu intermédio governam os príncipes os nobres e todos os juízes da terra Nota de Pausa para a Filosofia xix A vitória de Mandela na África do Sul resulta de longa e sangrenta luta contra o apartheid isto é a segregação e exclusão impostas pelos brancos colonizadores aos negros xx A palavra utopia foi empregada pela primeira vez pelo filósofo inglês Thomas Morus no livro Utopia a cidade ideal perfeita A palavra é uma composição de palavras gregas e rigorosamente significa em lugar nenhum lugar inexistente imaginário Por esse motivo estamos acostumados a identificar utopia e utópico com impossível aquilo que só existe em nosso desejo e imaginação e que não encontrará nunca condições objetivas para se realizar xxi Do artigo Big Brother zangou e nós pagamos o pato escrito por Alberto Dines e publicado no Observatório da Imprensa nº 172 de 15052002 Para quem não sabe ou esqueceu antes de ser nome de reality show Big Brother é a alcunha da entidade inventada por George Orwell em 1984 sua fábula sobre o futuro Inspirado na máquina de propaganda nazista posteriormente aperfeiçoada pelo stalinismo o rebelde Orwell concebeu na sua trágica utopia um Grande Irmão protetor e castrador capaz de controlar acontecimentos informações e aniquilar vontades Nota de Pausa para a Filosofia xxii A noção de materialismo surge pela primeira vez na filosofia grega As escolas filosóficas estóica e epicurista afirmaram contra Platão Aristóteles e neoplatônicos que só existem corpos ou a matéria Os epicuristas retomando idéias dos présocráticos atomistas Leucipo e Demócrito afirmaram que o espírito era átomo material sutil e diáfano Nos séculos XVII e XVIII reagindo contra o espiritualismo cristão muitos filósofos se disseram materialistas querendo com isto dizer que só existe a Natureza e que Marilena Chauí 567 esta é matéria átomos movimento massa figura etc Como vivemos em sociedades cristãs mesmo que haja outras religiões minoritárias o materialismo sempre foi considerado blasfêmia e heresia porque nega a existência de puros espíritos a imortalidade da alma e a separação entre Deus e Natureza O senso comum social absorvendo a crítica espiritualista fala em materialismo para referirse a pessoas que só acreditam nesta vista terrena egoístas e ambiciosas sem preocupação com a salvação eterna e com o bem e a salvação do próximo O materialista é o que gosta de prazeres riquezas e luxo rigorosamente portanto deverseia dizer que os burgueses são materialistas embora se digam cristãos espiritualistas Quando Marx fala em materialismo a matéria à qual se refere não são os corpos físicos os átomos os seres naturais e sim as relações sociais de produção econômica Seu materialismo visa oporse ao idealismo espiritualista hegeliano para o qual a força que move a História é a Idéia o Espírito a Consciência xxiii Ver o que foi examinado sobre a dialética no capítulo 4 da unidade 5 xxiv Ver capítulo 4 da unidade 7 xxv Parece estranho falar em minoria para referirse a mulheres negros idosos crianças pois quantitativamente formam a maioria É que a palavra minoria não é usada em sentido quantitativo mas qualitativo Quando o pensamento político liberal definiu os que teriam direito à cidadania usou como critério a idéia de maioridade racional seriam cidadãos aqueles que houvessem alcançado o pleno uso da razão Alcançaram o pleno uso da razão ou a maioridade racional os que são independentes isto é não dependem de outros para viver São independentes os proprietários privados dos meios de produção e os profissionais liberais São dependentes e portanto em estado de minoridade racional as mulheres as crianças os adolescentes os trabalhadores e os selvagens primitivos africanos e índios Formam a minoria Como há outros grupos cujos direitos não são reconhecidos por exemplo os homossexuais falase em minorias A maioridade liberal referese pois ao homem adulto branco proprietário ou profissional liberal ATIVIDADE DE FILOSOFIA 1 O que é Filosofia A filosofia é um campo de estudo e investigação que busca entender e explicar questões fundamentais sobre a realidade a existência a moralidade a política a linguagem a mente e o conhecimento entre outros temas Ela se originou na Grécia Antiga com pensadores como Sócrates Platão e Aristóteles e evoluiu ao longo dos séculos abrangendo várias correntes e tradições filosóficas Russell 1945 2 Conceito de Filosofia A palavra filosofia vem do grego philosophia que significa amor à sabedoria Ferrater Mora 1965 A filosofia pode ser entendida como uma atividade intelectual que busca compreender e analisar os princípios fundamentais e conceitos subjacentes às diversas áreas do conhecimento humano bem como refletir criticamente sobre as nossas crenças e valores 3 Sofistas e o Direito Os sofistas foram um grupo de pensadores gregos que atuavam como professores e retóricos itinerantes no século V aC ensinando habilidades de argumentação e persuasão especialmente em contextos políticos e jurídicos Guthrie 1971 Eles contribuíram para o desenvolvimento do direito já que a habilidade de argumentar e persuadir era crucial nas assembleias e nos tribunais da Grécia Antiga Os sofistas também questionaram as noções tradicionais de justiça e moralidade argumentando que esses conceitos eram relativos e dependentes das convenções sociais Kerferd 1981 4 Sócrates Maiêutica e Ironia Sócrates 469399 aC foi um filósofo grego que ficou conhecido pelo seu método dialético de questionamento e investigação chamado de maiêutica Platão 1997 A maiêutica consiste em fazer perguntas para ajudar o interlocutor a chegar às suas próprias conclusões guiandoo na descoberta de verdades universais e princípios éticos Este método foi fundamental para o desenvolvimento da filosofia ocidental e do pensamento crítico Taylor 2001 Sócrates também era conhecido pelo uso da ironia uma técnica de comunicação em que o falante expressa o oposto do que realmente pensa com o ATIVIDADE DE FILOSOFIA objetivo de desafiar as crenças e opiniões de seus interlocutores e fazêlos questionar as suas próprias suposições Nehamas 1998 A ironia socrática foi uma ferramenta importante na busca pela sabedoria e na construção do pensamento filosófico 5 Platão mundo das Ideias Platão em sua teoria das Ideias ou das Formas propôs que existem duas realidades distintas A primeira é o mundo sensível composto por objetos materiais e perceptíveis que são mutáveis e imperfeitos A segunda é o mundo das Ideias um reino eterno e imutável que contém as formas perfeitas e imutáveis de todas as coisas Platão 2008 Segundo Platão o mundo das Ideias é mais real e verdadeiro do que o mundo sensível No contexto desta teoria Platão distingue dois tipos de conhecimento doxa e episteme A doxa se refere às opiniões e crenças baseadas na percepção sensorial e na experiência cotidiana que são consideradas conhecimentos inferiores e enganosos A episteme por outro lado é o conhecimento verdadeiro e certo que se obtém ao compreender e acessar as Ideias ou Formas que existem no mundo das Ideias Fine 1993 Para Platão a busca pela episteme é o objetivo principal da filosofia e do filósofo 6 Aristóteles Animal Político Aristóteles 384322 aC foi um filósofo grego e aluno de Platão que abordou uma ampla gama de questões incluindo política e ética Em sua obra Política Aristóteles defende a ideia de que o ser humano é um animal político zoon politikon ou seja um ser que se realiza plenamente apenas em uma sociedade organizada e governada por leis Aristóteles 1984 Para Aristóteles a vida em comunidade e a participação política são essenciais para o desenvolvimento moral e intelectual do indivíduo 7 Felicidade Conceito A felicidade também conhecida como eudaimonia em grego é um conceito central na ética e na filosofia moral Embora as definições de felicidade variem entre os filósofos ela é geralmente entendida como um estado de bemestar e satisfação duradouros em que o indivíduo alcança a realização pessoal e o florescimento ATIVIDADE DE FILOSOFIA humano Annas 1993 Filósofos como Aristóteles entendiam a felicidade como a atividade da alma de acordo com a virtude enquanto Epicuro via a felicidade como a ausência de dor e o prazer moderado Epicuro 1994 8 Contratualidade A contratualidade é um princípio filosófico que se refere à ideia de que a sociedade e as relações políticas são baseadas em acordos voluntários e consensuais entre os indivíduos Filósofos contratualistas como Thomas Hobbes John Locke e JeanJacques Rousseau argumentavam que o estado e as leis são justificados na medida em que resultam de um contrato social entre os cidadãos que concordam em submeterse a uma autoridade comum em troca de proteção e segurança Gaus 2018 Esses filósofos diferem em suas concepções sobre a natureza do contrato as condições précontratuais e os direitos e deveres dos cidadãos mas todos compartilham a ideia básica de que a legitimidade do governo deriva do consentimento dos governados Referências Bibliográficas ANNAS J A moralidade da felicidade New York Oxford University Press 1993 ARISTÓTELES Política Tradução de Mário da Gama Kury Brasília Editora UnB 1984 EPICURO Carta sobre a felicidade a Meneceu Tradução de Alvaro Lorencini e Enzo Del Carratore São Paulo UNESP 1994 FINE G On Ideas Aristotles Criticism of Platos Theory of Forms Oxford Clarendon Press 1993 FERRATER MORA J Dicionário de Filosofia Buenos Aires Sudamericana 1965 GAUS G The Idea of a Social Contract In ZALTA E Ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Spring 2018 Edition Disponível em httpsplatostanfordeduarchivesspr2018entriescontractarianism Acesso em 15 abr 2023 GUTHRIE WKC The Sophists Cambridge Cambridge University Press 1971 ATIVIDADE DE FILOSOFIA KERFERD G B The Sophistic Movement Cambridge Cambridge University Press 1981 KENNY A Uma nova história da filosofia ocidental Oxford Oxford University Press 2008 NEHAMAS A A arte de viver reflexões socráticas de Platão a Foucault Berkeley University of California Press 1998 PLATÃO A República Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian 2008 PLATÃO Teeteto Tradução de Carlos Alberto Nunes Belém EDUFPA 1997 RUSSELL B História da Filosofia Ocidental New York Simon Schuster 1945 TAYLOR CCW Sócrates Uma breve introdução Oxford Oxford University Press 2001 A importância da busca pela verdade na filosofia A busca pela verdade é um dos pilares fundamentais da filosofia desde seus primórdios na Grécia Antiga A tentativa de compreender o mundo a realidade e o conhecimento humano tem sido a força motriz por trás dos trabalhos de muitos filósofos ao longo da história Neste contexto a noção de verdade tem sido objeto de diferentes abordagens e interpretações Platão um dos primeiros filósofos a abordar a questão da verdade propôs a teoria das Ideias segundo a qual o mundo sensível é uma cópia imperfeita do mundo das Ideias o qual contém as formas perfeitas e imutáveis de todas as coisas Platão 2008 Para Platão a busca pela verdade consiste em alcançar a episteme ou seja o conhecimento das Ideias em contraste com a doxa a opinião baseada na percepção sensorial e na experiência cotidiana Fine 1993 Aristóteles por sua vez criticou a teoria das Ideias de Platão e propôs uma abordagem empírica e mais centrada na realidade observável Aristóteles 1984 Para Aristóteles a verdade é encontrada na investigação das causas e princípios que governam a realidade e não em um mundo transcendental e separado como propunha seu mestre Os sofistas um grupo de pensadores contemporâneos de Sócrates e Platão tinham uma visão mais relativa da verdade Eles acreditavam que a verdade era algo construído e moldado pelo discurso e pela retórica em vez de ser uma entidade objetiva e imutável Guthrie 1971 Essa abordagem contrastava com a busca pela verdade defendida por Sócrates que valorizava o diálogo e a interrogação crítica como meios de alcançar a sabedoria Taylor 2001 A busca pela verdade na filosofia continua sendo um tema central na filosofia contemporânea como exemplificado pelos debates em torno do realismo e do antirrealismo a natureza da verdade e as teorias do conhecimento A importância dessa busca reside em sua capacidade de estimular o pensamento crítico a investigação rigorosa e a reflexão sobre as crenças e valores humanos Em suma a busca pela verdade na filosofia é um empreendimento que atravessa a história do pensamento humano desde os tempos dos filósofos gregos até os debates contemporâneos Através do diálogo com as tradições passadas e presentes a filosofia promove a compreensão de diferentes perspectivas sobre a verdade e incentiva a investigação e a reflexão crítica em busca de respostas às perguntas fundamentais da existência humana