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George Canguilhem 19041995 O QUE É A PSICOLOGIA¹ A questão Que é a psicologia parece mais perturbadora para o psicólogo do que é para o filósofo a questão Que é a filosofia Porque para a filosofia a questão de seu sentido e de sua essência a constitui bem mais do que define uma resposta a esta questão O fato de que a questão renasça incessantemente na falta de uma resposta satisfatória é para quem gostaria de poder se chamar filósofo uma razão de humildade e não uma causa de humilhação Mas para a psicologia a questão de sua essência ou mais modestamente de seu conceito coloca em questão também a própria existência do psicólogo na medida em que por não poder responder exatamente sobre o que é tornouse bastante difícil para ele responder sobre o que faz Ele não pode então procurar senão numa eficácia sempre discutível a justificação de sua importância de especialista importância que não desagradaria absolutamente a alguns que ela originasse no filósofo um complexo de inferioridade Ao dizer da eficácia do psicólogo que ela é discutível não se quer dizer que ela é ilusória querse simplesmente observar que esta eficácia está sem dúvida mal fundada enquanto não se fizer prova de que ela é devida à aplicação de uma ciência isto é enquanto o estatuto da psicologia não estiver fixado de tal maneira que se deva considerála como mais e melhor do que um empirismo² composto literariamente codificado para fins de ensinamento De fato de muitos trabalhos de psicologia se tem a impressão de que misturam a uma filosofia sem rigor uma ética sem exigência e uma medicina sem controle Filosofia sem rigor porque eclética sob pretexto de objetividade ética sem exigência porque associando experiências etológicas³ elas próprias sem crítica a do confessor do educador do chefe do juiz etc medicina sem controle visto que das três espécies de doenças as mais ininteligíveis e as menos curáveis doenças da pele doença dos nervos e doenças mentais o estudo e o tratamento das duas últimas forneceram sempre à psicologia observações e hipóteses Portanto pode parecer que perguntando Que é a psicologia se coloca uma pergunta que não é nem impertinente nem fútil Procurouse durante muito tempo a unidade característica do conceito de uma ciência na direção de seu objeto O objeto ditaria o método utilizado para o estudo de suas propriedades Mas era no fundo limitar a ciência à investigação de um dado à exploração de um domínio Quando se tornou claro que toda ciência se dá mais ou menos seu dado e se apropria assim daquilo que se chama seu domínio o conceito de uma ciência progressivamente fez valer mais seu método do que seu objeto Ou mais exatamente a expressão objeto da ciência recebeu um sentido novo O objeto da ciência não é mais somente o domínio específico dos problemas dos obstáculos a resolver é também a intenção e o alvo do sujeito da ciência é o projeto específico que constitui como tal uma consciência teórica ¹ Conferência dada no Collège Philosophique em 18 de dezembro de 1956 e publicada na Revue de Métaphysique et de Morale nº 1 1958 no Cahiers pour lAnalyse nº 2 março 1966 e na coletânea Études dhistoire et de philosophie des sciences Paris Vrin 1979 Tradução de Maria da Glória Ribeiro da Silva editada na revista Tempo Brasileiro n3031 org Carlos Henrique Escobar 1973 pp 104123 Notas críticas de Monah Winograd ² Empirismo concepção segundo a qual o conhecimento está fundado sobre a experiência sensível externa as sensações e interna nossos sentimentos tais quais são vividos John Locke 16321704 é o autor do texto canônico do empirismo A alma ele escreve é uma tábula rasa uma página em branco vazia de caracteres Como ela vem a receber as idéias De onde ela extrai os materiais que são como o fundo de todos os seus raciocínios e de todos os seus conhecimentos A isto eu respondo com uma palavra da experiência Ensaios filosóficos concernindo o entendimento humano I 2 O empirismo clássico afirma que o conhecimento tem uma base sensível as idéias são as cópias das impressões sensíveis ele descreve a produção dos conceitos e das idéias gerais a partir das sensações primitivas por meio dos signos da linguagem uma idéia abstrata e geral não é senão uma palavra que serve para representar idéias particulares e concretas elas mesmas derivadas das sensações enfim ele tende a excluir toda especulação para além dos dados da experiência quer dizer a recusar a metafísica O empirismo de Locke sustentava a existência objetiva dos objetos exteriores dos quais temos a sensação Mas a partir de George Berkeley 16851753 e de David Hume 17111776 o empirismo moderno recusa este postulado e se quer fenomenalista fenômeno do grego phaenomenon ser visível brilhar O fenômeno é aquilo que aparece para a consciência seja diretamente como os fenômenos afetivos e psicológicos seja por intermédio dos sentidos como os fenômenos sensíveis os dados primeiros da consciência são as impressões sensíveis Não é possível inferir com certeza a partir destas percepções a existência dos objetos que elas representam A partir do século XIX com Ernst Mach 18381916 e Ludwig Wittgenstein 18891951 entre outros o empirismo conhece uma renovação Estes filósofos afirmam que as únicas verdades a priori são as puramente formais da lógica Abandonando o problema da origem dos conhecimentos eles querem sobretudo mostrar que somente a experiência pode verificálas Enfim abordando o conhecimento a partir da análise lógica da linguagem o empirismo moderno não formula o problema da idéia em sua relação com a sensação mas da proposição em relação a um fato observável não se trata de saber por exemplo se a idéia de vermelho remete à sensação vermelho mas se o enunciado esta maçã é vermelha exprime um fato ao qual se pode confrontálo Cf verbete Empirismo in CLÉMENT Élisabeth et alii 1994 Pratique de la Philosophie de A à Z Paris Hatier ³ Etologia tratado dos costumes usos e caracteres humanos estudo dos hábitos dos animais e da sua acomodação às condições do ambiente É a esta concepção antiga que remonta sem ruptura um aspecto da psicologia moderna a psicofisiologia9 considerada durante muito tempo como psiconeurologia exclusivamente mas atualmente além disso como psicoendocrinologia e a psicopatologia10 como uma disciplina médica Sob esta relação não parece supérfluo lembrar que antes das duas revoluções que permitiram o avanço da fisiologia moderna a de Harvey e a de Lavoisier 1743179411 uma revolução de não menos importância que a teoria da circulação ou da respiração é devida a Galeno de Pérgamo12 quando ele estabeleceu que é o cérebro e não o coração que é o órgão da sensação e do movimento e a sede da alma Galeno funda verdadeiramente uma filiação ininterrupta de pesquisas pneumatologia13 empírica durando séculos cuja peça fundamental é a teoria dos espíritos animais14 desprestigiada e substituída no fim do século XVIII pela eletroneurologia Ainda que decididamente pluralista na sua concepção das relações entre funções psíquicas e órgãos encefálicos Gall 1758182815 procede diretamente de Galeno e domina apesar de suas extravagâncias todas as pesquisas 9 Psicofisiologia ciência que tem por objeto o estudo das bases fisiológicas do psiquismo Como estas bases estão largamente sob a dependência do sistema nervoso e o psiquismo é compreendido como o conjunto dos mecanismos que sustentam o comportamento a psicofisiologia estuda principalmente as bases nervosas do comportamento Ela se subdivide em duas grandes correntes uma voltada às bases nervosas neurobiologia e neurofisiologia outra voltada para o comportamento psicologia e etologia Cf Encyclopédie Philosophique Universelle Paris PUF 1990 10 Psicopatologia saber sobre as afecções patológicas da psiquê 11 Antoine Laurent de Lavoisier 17431794 revolucionou a química Mas não exatamente pelo uso da balança nem pela célebre fórmula nada se cria nada se perde tudo se transforma A balança já existia nos laboratórios de química mas é por volta de 1770 quando se começa a estudar o gás que ela se torna instrumento essencial em associação com a caixa pneumática um aparelho fechado que serve para concentrar o gás o gásômetro que permite medir seu volume A balança de Lavoisier traz um ganho de precisão nas medidas experimentais transformando o método experimental em prática contábil A cada etapa Lavoisier faz o balanço das reações efetuadas ele pesa antes e depois da experiência o todo e cada elemento do sistema Mas o princípio da conservação não foi inventado por Lavoisier Já se o encontra em termos vizinhos em Lucrécio Nada nasce de nada nada retorna ao nada A revolução de Lavoisier acontece noutro lugar na combustão Para Lavoisier a combustão é uma combinação com o ar a fonte de calor não está no combustível como se acreditava mas no ar Daí seus desdobramentos numa teoria da respiração Cf SERRES Michel org Éléments dHistoires des Sciences Paris Bordas 1989 12 Galeno de Pérgamo foi o responsável por uma transformação na imagem de corpo na medicina da antigüidade Ele será redescoberto no Renascimento A partir do século XIV um professor da universidade de Bolonha Mondino di Luzzi autor do primeiro tratado de anatomia executa dissecações de cadáveres com a única intenção de confirmar as lições de Galeno apoiandose na observação Os ensinamentos de Galeno eram conhecidos e seguidos porque haviam sido transmitidos e conservados não sem grandes dificuldades pelos árabes como Avicena Em 1531 traduzidos em latim por Guenther é publicado o De anatomicis administrationibus A obra médica de Galeno oferecia aos estudantes um extraordinário conjunto de dados uma teoria fisiológica coerente em relação a uma descrição anatômica do esqueleto e das vísceras fruto de numerosas dissecações de animais e talvez de cadáveres uma farmacopéia um método diagnóstico e uma teoria filosófica sobre a vida Misturando pensamento científico racionalidade metafísica e restos de crenças mágicas Galeno nos dá uma imagem do corpo que constitui o resultado destes três fatores O corpo é dominado pela razão mas está em contato imediato com as forças da natureza que não pode deixar de imitar Buscando em Aristóteles a doutrina dos quatro elementos aos quais correspondem no corpo humano as combinações das quatro qualidades quente frio seco úmido ele acaba por aceitar na farmacopéia alguns conceitos mágicos refutados pela sua anatomia Em nome do princípio de que o semelhante atrai o semelhante e afasta o dissemelhante afirma que o caranguejo por ser aquático é eficaz contra a hidrofobia e os caranguejos de água doce o são ainda mais pois absorvem a umidade pela sal que contêm Assim pretendendo fundar uma anatomia científica lançando impropérios contra a feitiçaria que acredita que sangue de crocodilo melhora a vista ainda admite crenças derivadas da mesma forma de pensar mágicoreligiosa Cf GIL José Corpo in Enciclopédia Einaudi vol 32 13 Pneumatologia tratado dos espíritos dos seres intermediários que formam a ligação entre Deus e o homem 14 Espíritos animais apesar do nome os espíritos animais são elementos inteiramente físicos Na fisiologia cartesiana desempenham o papel hoje atribuído aos impulsos neuroelétricos são veículos de transmissão de informação no sistema nervoso Cf Cottingham John Dicionário Descartes Rio de Janeiro Zahar 1993 15 FranzJoseph Gall médico preocupouse com o conhecimento das funções das diferentes partes do cérebro e suas relações com as tendências do homem Assim consagrouse ao estudo da anatomia cerebral e em 1796 começou a difundir as teorias cranioscópicas que o tornariam célebre Partindo da idéia de que a medula espinhal é o elemento primitivo do sistema nervoso e de que a compreensão da organização do cérebro supõe uma dissecção ascendente dilacerando progressivamente os feixes nervosos para chegar até o manto cortical dos hemisférios cerebrais que ele estudava por desdobramento das circunvoluções Gall chamou a atenção para o córtex então negligenciado e mostrou a sua unidade e a sua continuidade enfatizando a sua importância maior nas espécies animais mais evoluídas A partir disso elaborouse uma teoria psicofisiológica segundo a qual o cérebro órgão de todas as inclinações de todos os sentimentos e de todas as faculdades é composto de tantos órgãos particulares quantos são as inclinações sentimentos e faculdades enquanto a forma do crânio estreitamente moldada sobre a forma do seu conteúdo permite detectar essas funções pela palpação e pela mensuração Gall reuniu muitas observações de homens de gênio e de imbecis de alienados e de criminosos visitando escolas asilos e prisões museus e gabinetes de anatomia medindo tanto bustos de personagens ilustres quanto cabeças de supliciados encontrando na teoria então argumentos de peso para defender a hipótese da autonomia funcional dos territórios cerebrais Passando enfim de uma teoria das localizações para um procedimento semiológico estabeleceu um mapa das 27 faculdades fundamentais que acreditou discernir e criou uma ciência nova a cranioscopia que permitia ler o caráter do indivíduo através das saliências e depressões da sua abóbada craniana O ponto forte de sua doutrina é assim a exclusividade dada ao encéfalo e particularmente aos hemisférios cerebrais como a sede de todas as faculdades intelectuais e morais O cérebro entendido como um sistema dos sistemas é apresentado como o único suporte físico das faculdades A frenologia de Gall é uma cranioscopia fundada sobre a correspondência entre o conteúdo e o continente entre a configuração dos hemisférios e a forma do crânio Contra o sensualismo contra o idéia de aquisição da experiência sob a pressão do meio Gall e seus discípulos sustentavam o inatismo das qualidades morais e dos poderes intelectuais Cf MOREL Pierre Dicionário Biográfico Psi Rio de Janeiro Zahar 1997 À questão Que é a psicologia podese responder fazendo aparecer a unidade de seu domínio apesar da multiplicidade dos projetos metodológicos É a este tipo que pertence a resposta brilhantemente dada pelo Professor Daniel Lagache em 1947 a uma questão colocada em 1936 por Edouard Claparède4 A unidade da psicologia é aqui procurada na sua definição possível como teoria geral da conduta síntese da psicologia experimental da psicologia clínica da psicanálise da psicologia social e da etnologia Observando bem no entanto se diz que talvez esta unidade se parece mais com um pacto de coexistência pacífica concluído entre profissionais do que com uma essência lógica obtida pela revelação de uma constância numa variedade de casos Das duas tendências entre as quais o Professor Lagache procura um acordo sólido a naturalista psicologia experimental e a humanista psicologia clínica temse a impressão que a segunda lhe parece pesar mais É o que explica sem dúvida a ausência da psicologia animal nesta revisão das partes em litígio Certamente vêse bem que ela é compreendida na psicologia experimental que é em grande parte uma psicologia dos animais mas ela é aí enfeixada como material ao qual aplicar o método E na verdade uma psicologia não pode ser chamada experimental senão em razão de seu método e não em razão de seu objeto Enquanto que apesar das aparências é pelo objeto mais do que pelo método que uma psicologia é chamada clínica psicanalítica social etnológica Todos estes adjetivos são indicativos de um só e mesmo objeto de estudo o homem ser loquaz ou taciturno ser sociável ou insociável A partir disso podese rigorosamente falar de uma teoria geral da conduta enquanto não se tiver resolvido a questão de saber se há continuidade ou ruptura entre linguagem humana e linguagem animal sociedade humana e sociedade animal É possível que neste ponto caiba não à filosofia decidir mas à ciência de fato a várias ciências inclusive à psicologia Mas então a psicologia não pode para se definir prejulgar aquilo a que ela é chamada a julgar Sem o que é inevitável que se propondo ela própria como teoria geral da conduta a psicologia faça sua alguma idéia do homem É preciso então permitir à filosofia perguntar à psicologia de onde ela tira esta idéia e se não seria no fundo de alguma filosofia Nós gostaríamos de tentar porque não somos um psicólogo abordar a questão fundamental colocada por um caminho oposto isto é pesquisar se é ou não a unidade de um projeto que poderia conferir sua unidade eventual às diferentes espécies de disciplinas ditas psicológicas Mas nosso processo de investigação exige um recuo Pesquisar em que os domínios se recobrem podese fazer pela sua exploração separada e sua comparação na atualidade uma dezena de anos no caso do Professor Lagache Pesquisar se os projetos se encontram pede que se destaque o sentido de cada um deles não quando ele se perdeu no automatismo da execução mas quando ele surge da situação que o suscita Procurar uma resposta para a questão Que é a psicologia se torna para nós a obrigação de esboçar uma história da psicologia mas bem entendido considerada somente nas suas orientações em relação com a história da filosofia e das ciências uma história necessariamente teológica5 visto que destinada a veicular até a questão colocada o sentido originário suposto das diversas disciplinas métodos ou empreendimentos cujo disparate atual legitima esta questão I A psicologia como ciência natural Uma vez que a psicologia significa etimologicamente ciência da alma é notável que uma psicologia independente esteja ausente em idéia e de fato dos sistemas filosóficos da antigüidade onde no entanto a psiquê a alma é tida como um ser natural Os estudos relativos à alma se encontram divididos entre a metafísica6 a lógica e a física O tratado aristotélico Da alma é na realidade um tratado de biologia geral um dos escritos consagrados à física Segundo Aristóteles 384322 A C7 os Cursos de filosofia do começo no século XVII tratam ainda da alma num capítulo da Física8 O objeto da física é o corpo natural e organizado tendo a vida em potência portanto a física trata da alma como forma do corpo vivo e não como uma substância separada da matéria Deste ponto de vista um estudo dos órgãos do conhecimento isto é dos sentidos exteriores os cinco sentidos usuais e dos sentidos interiores senso comum fantasia memória não difere em nada do estudo dos órgãos da respiração ou da digestão A alma é um objeto natural de estudo uma forma da hierarquia das formas mesmo se sua função essencial é o conhecimento das formas A ciência da alma é uma província da filosofia no seu sentido originário e universal de teoria da natureza 4 LUnité de la Psychologie PUF Paris 1949 5 Teleologia do grego télos fim e logos discurso ciência Discurso sobre a finalidade das coisas e dos seres 6 Metafísica do grego méta além ou depois et phusiké física natureza 7 Aristóteles distingue em toda coisa dois aspectos uma forma que faz com que a coisa seja o que ela é e uma matéria que é o suporte da forma Por exemplo a matéria de uma estátua de Zeus é o bloco de mármore no qual ela foi esculpida sua forma o conjunto das determinações que lhe permitem representar o deus grego A matéria é portanto essencialmente indeterminação um bloco de mármore pode se tornar estátua ou outra coisa A matéria é portanto potência virtualidade Existir em potência se opõe a existir em ato ou seja segundo uma forma realizada O bloco de mármore é a estátua de Zeus em potência mas a obra terminada é a estátua de Zeus em ato Cf CLÉMENT Élisabeth et alii 1994 Pratique de la Philosophie de A à Z Paris Hatier 8 cf Scipion Du Pleix Corps de Philosophie contenant la Logique la Physique la Métaphysique et lEthique Genebra 1986 1ª ed Paris 1607 sobre as localizações cerebrais durante os sessenta primeiros anos do século XIX até Broca 1824188016 inclusive Em suma como psicofisiologia e psicopatologia a psicologia remonta ainda atualmente ao século II II A psicologia como ciência da subjetividade O declínio da física aristotélica no século XVII marca o fim da psicologia como parafísica como ciência de um objeto natural e correlativamente o nascimento da psicologia como ciência da subjetividade Os verdadeiros responsáveis pelo advento da psicologia moderna como ciência do sujeito pensante são os físicos mecanicistas17 do século XVII18 Se a realidade do mundo não é mais confundida com o conteúdo da percepção se a realidade é obtida e colocada pela redução das ilusões da experiência sensível usual a depreciação qualitativa desta experiência engaja pelo fato de que ela é possível como falsificação do real a responsabilidade própria do espírito isto é do sujeito da experiência enquanto ele não se identifica com a razão matemática e mecânica instrumento da verdade e medida da realidade Mas esta responsabilidade é aos olhos do físico uma culpabilidade A psicologia se constitui pois como um empreendimento de desculpa do espírito Seu projeto é o de uma ciência que face à física explica porque o espírito é por natureza obrigado a enganar inicialmente a razão relativamente à realidade A psicologia se faz física do sentido externo para dar conta dos contrasentidos de que a física mecanicista acusa o exercício dos sentidos na função de conhecimento A A FÍSICA DO SENTIDO EXTERNO A psicologia ciência da subjetividade começa pois como psicofísica19 por dois motivos Primeiramente porque ela não pode ser menos que uma física para ser levada a sério pelos físicos Em segundo lugar porque ela deve procurar numa natureza isto é na estrutura do corpo humano a razão de existência dos resíduos irreais da experiência humana Mas não se trata aí portanto de um retorno à concepção antiga de uma ciência da alma ramo da física A nova física é um cálculo A psicologia tende a imitála Ela procurará determinar constantes quantitativas da sensação e das relações entre estas constantes 16 Paul Broca seguindo Gall foi um dos grandes mestres da craniometria Sua crença mais preciosa era a de que o tamanho do cérebro revelava o grau de inteligência Mas outras crenças inundavam suas idéias e conclusões científicas O rosto prognático projetado para frente a cor de pele mais ou menos negra o cabelo crespo e a inferioridade intelectual o social estão freqüentemente associados enquanto a pele mais ou menos branca o cabelo liso e o rosto ortognático reto constituem os atributos normais dos grupos mais elevados na escala humana Para determinar o que chamava de capacidade craniana Broca desenvolveu um método objetivo mas ajustado a uma fórmula definida as raças humanas podiam ser hierarquizadas numa escala linear de valor intelectual Cf JAYGOULD Stephen A Falsa Medida do Homem São Paulo Martins Fontes 199117 Mecanicismo do grego mechane máquina Em sentido estrito designa a teoria que se desenvolveu ao longo do século XVII segundo a qual devese considerar os seres vivos como máquinas para explicálos cientificamente Em sentido lato referese à explicação do vivo por sua redução às propriedades físicoquímicas da matéria18 cf Aron Gurwitsch Developpement historique de la GestaltPsychologie in Thales Ano 2 1935 págs 16717519 Psicofísica estudo das relações funcionais entre a mente e os fenômenos físicos René Descartes 1591165020 e Nicolas Malebranche 1638171521 são aqui os chefes Em Regras para a direção do espírito XII Descartes propõe a redução das diferenças qualitativas entre dados sensoriais a uma diferença de figuras geométricas Tratase aqui dos dados sensoriais enquanto são no sentido próprio do termo as informações de um corpo por outros corpos o que é informado pelos sentidos externos é um sentido interno a fantasia que não é senão um corpo real e figurado Na Regra XIV Descartes trata expressamente do que Emmanuel Kant 1724180422 chamará de a grandeza intensiva das sensações Crítica da Razão Pura Analítica transcendental antecipação da percepção as comparações entre luzes entre sons etc não podem ser convertidas em relações exatas senão por analogia com a extensão do corpo figurado Se se acrescenta que Descartes embora ele não seja propriamente o inventor do termo e do conceito de reflexo pelo menos afirmou a constância da ligação entre a excitação e a reação vêse que uma psicologia compreendida como física matemática do sentido externo começa com ele para chegar a Fechner23 graças à ajuda de fisiologistas como Hermann Helmholtz 18211894 24 Esta variedade de psicologia é ampliada por Wilhem Wundt 1832192025 para as dimensões de uma psicologia experimental sustentada nos seus trabalhos pela esperança de fazer aparecer nas leis dos fatos de consciência um determinismo analítico do mesmo tipo que aquele do qual a mecânica e a física deixam esperar de toda ciência a universal validade 20 Descartes pretendia unificar os conhecimentos segundo o princípio de uma ordem matemática universal Esta unidade do saber se funda não sobre a unidade da natureza mas sobre a unidade do espírito que se aplica do mesmo modo à diversidade de seus objetos Para Descartes o importante é primeiramente o método que permita submeter o conjunto dos conhecimentos a uma ordem única da razão No Discurso do Método o filósofo enuncia as quatro regras ou preceitos do método A evidência é o princípio deste método ela consiste em só admitir como verdade aquilo que se imponha a um espírito atento de tal modo que seja impossível duvidar As outras três regras concernem à aplicação do método 1 a análise permite dividir as dificuldades em parcelas para melhor resolvêlas 2 a síntese consiste em progredir do simples do mais facilmente conhecido ao complexo ou mais composto e 3 a recapitulação pela qual devese recorrer toda a cadeia de razões para permitir ao espírito representála de um só lance A evidência permanece o modelo de toda verdade ou bem ela é evidente podendo ser apreendida por intuição ou bem ela é deduzida a partir das evidências conforme à terceira regra do método O melhor modo de por o indubitável em evidência é submeter as pretensas verdade a uma dúvida sistemática recusando toda herança toda verdade preestabelecida a fim de assegurar definitivamente sobre bases inabaláveis toda ciência futura A primeira certeza que a dúvida vai revelar é o pensamento cogito eu penso Inicialmente a dúvida não pode abalar a certeza de que eu existo eu sou pois ela a supõe se duvido é porque existo Depois sendo a dúvida uma modalidade de pensamento só posso estar certo de minha existência por que penso penso logo sou E finalmente concluo que sou uma alma definida não como um obscuro princípio de vida mas como uma coisa ou substância pensante a res cogitans A presença imediata a si do sujeito pensante ou seja a consciência tornase o fundamento de toda verdade possível Cf CLÉMENT Élisabeth et alii 1994 Pratique de la Philosophie de A à Z Paris Hatier21 Para Malebranche a verdadeira filosofia é a religião pois a verdade é Deus A razão universal e infinita é a marca de Deus no homem A afirmação do caráter divino da razão não é nova mas com Malebranche ela se torna o ponto de partida de uma doutrina de um conhecimento racional e sensível em Deus Deus tem em si as idéias os arquétipos de todas as coisas criadas É em Deus que nós conhecemos e sentimos As sensações são o resultado ou o efeito das idéias que Deus imprime em nossa alma Em conseqüência a origem de nossas idéias é inteira e imediatamente divina Daí resulta que a existência do mundo material não afeta em nada nosso conhecimento sendo a rigor indemonstrável Pois a percepção que temos da matéria e dos corpos começando pelo nosso é o resultado da ação de Deus em nós que imprime diretamente sobre nossa alma as sensações ligadas ao corpo segundo a lei geral da união entre alma e corpo Cf CLÉMENT Élisabeth et alii 1994 Pratique de la Philosophie de A à Z Paris Hatier22 O projeto da filosofia kantiana é ser uma crítica ou seja ser o exame dos poderes da razão e a definição do domínio no interior do qual estes poderes podem ser legitimamente exercidos Sua filosofia pode igualmente ser classificada de transcendental ou seja interroga as condições de possibilidade do conhecimento razão teórica e da ação razão prática Kant distingue duas grandes faculdades do espírito humano a sensibilidade e o entendimento Pela primeira os objetos nos são dados nas intuições sensíveis pela segunda eles são pensados postos em relação de modo que exista para nós uma natureza submetida a leis e a uma ordem O conhecimento tem portanto condições subjetivas ligadas ao sujeito cognoscente Kant faz do sujeito o centro do conhecimento o conhecimento dos objetos depende das estruturas a priori da sensibilidade e do entendimento A alma o mundo como totalidade Deus não são para Kant objetos de conhecimento mas idéias da razão Transformar estas idéias em objeto é uma ilusão Cf CLÉMENT Élisabeth et alii 1994 Pratique de la Philosophie de A à Z Paris Hatier23 Fechner físico de formação adotava um ponto de vista monista segundo o qual matéria e espírito são uma mesma realidade A Lei de Fechner uma lei de probabilidade tinha por objetivo definir cientificamente as relações entre as energias físicas e as energias psíquicas Fechner supunha a existência contínua de sensações definíveis indiretamente a partir da sensibilidade diferencial dos sujeitos Cf Encyclopédie Philosophique Universelle Paris PUF 199024 Hermann Ludwig Ferdinand von Helmholtz soube aliar a exigência de medida e de quantificação ao sentido filosófico da unidade da natureza Interessavase particularmente pelos fenômenos de percepção Em 1845 num espírito de cruzada Helmholtz e alguns colegas formam um pequeno grupo cujo objetivo era impor a idéia de que somente as forças físicoquímicas com exclusão de todas as outras agem no organismo Em trinta anos tornamse chefes incontestáveis da medicina e da fisiologia de língua alemã e impõem uma corrente mecanicista e organicista à neurologia e à psicologia a fim de destacálas de qualquer modelo filosófico Realizam assim a união da neurologia e da psicologia Cf ROUDINESCO Elisabeth PLON Michel Dictionnaire de la Psychanalyse Paris Fayard 199725 Em 1879 Wundt criou o primeiro Instituto de Psicologia Experimental cuja finalidade era introduzir a medida objetiva no estudo dos fenômenos psicológicos Segundo seu ponto de vista o objeto de estudo da psicologia é a experiência imediata em contraste com a experiência mediata Wundt entendia por experiência imediata aquela que é usada como meio para conhecer algo distinto da própria experiência O estudo da experiência tinha de ser realizado por introspecção autoobservação controlada do conteúdo da consciência em condições experimentais A psicologia experimental tinha assim três aspectos 1 analisar os processos conscientes em seus elementos 2 descobrir como esses elementos se correlacionavam entre si e 3 determinar as leis de correlação Cf ROUDINESCO Elisabeth PLON Michel Dictionnaire de la Psychanalyse Paris Fayard 1997 e MARX Melvin H HILLIX William a Sistemas e teorias em Psicologia São Paulo Cultrix 1997 B A CIÊNCIA DO SENTIDO INTERNO Mas a ciência da subjetividade não se reduz à elaboração de uma física do sentido externo ela se propõe e se apresenta como a ciência da consciência de si ou a ciência do sentido interno É do século XVIII que data o termo Psicologia tendo o sentido de ciência do eu Toda a história desta psicologia pode se escrever como a dos contrasentidos dos quais as Meditações foram a ocasião sem ter sua responsabilidade Quando Descartes no início da Meditação III considera seu interior para tentar se tornar mais conhecido e mais familiar a si mesmo esta consideração visa ao Pensamento O interior cartesiano consciência do Ego cogito é o conhecimento direto que a alma tem dela mesma enquanto entendimento puro As Meditações são chamadas por Descartes metafísicas porque elas pretendem atingir diretamente a natureza e a essência do Eu penso na apreensão imediata de sua existência A meditação cartesiana não é uma confidência pessoal A reflexão que dá ao conhecimento do Eu o rigor e a impessoalidade das matemáticas não é esta observação de si que os espiritualistas no começo do século XIX não temerão fazer patrocinar por Sócrates 470399 AC26 a fim de que M PierrePaul RoyerCollard 1763184527 possa dar a Napoleão I a certeza de que o Conheçate o Cogito e a Introspecção fornecem ao trono e ao altar seu fundamento inexupgnável O interior cartesiano não tem nada de comum com o sentido interno dos aristotélicos que concebe seus objetos interiormente e dentro da cabeça28 e do qual se viu que Descartes o considera como um aspecto do corpo Regra XIII Eis porque Descartes diz que a alma se conhece diretamente e mais facilmente que o corpo Eis aí uma afirmação da qual se ignora freqüentemente a intenção polêmica explícita porque segundo os aristotélicos a alma não se conhece diretamente O conhecimento da alma não é direto mas somente por reflexão Porque a alma é semelhante ao olho que vê tudo e não pode se ver senão pela reflexão como num espelho e a alma de maneira semelhante não se vê e não se conhece senão pela reflexão e por reconhecimento de seus efeitos29 Tese que suscita a indignação de Descartes quando Gassendi 1592165530 a retoma nas suas objeções contra a Meditação III e a qual ele responde Não é o olho que se vê nem o espelho mas o espírito o qual só ele conhece o espelho e o olho e a si mesmo Ora esta réplica não liquida este argumento escolástico31 Maine de Biran 1766182432 o volta uma vez mais contra Descartes no seu Memória sobre a decomposição do pensamento A Comte 1798185733 o invoca contra a possibilidade de 26 O que se conhece da filosofia de Sócrates já que ele não escreveu nada Platão o fez o personagem principal da maioria de suas Diálogos mas não é fácil discernir o que pertence ao Sócrates verdadeiro e o que é o pensamento próprio de Platão Nós só conhecemos a filosofia de Sócrates indiretamente através de tradições múltiplas e contraditórias De qualquer modo Sócrates parece Terse preocupado principalmente com as questões morais contrariamente aos físicos présocráticos tendo sido o instigador de um empreendimento essencialmente crítico Ele não propõe nenhuma doutrina pessoal e proclama que sua sabedoria é negativa ele sabe que nada sabe mas este saber é superior aos falsos saberes Seu objetivo parece ter sido ao longo de todas as suas conversações com os cidadãos interrogálos sobre o que eles acreditavam saber e colocandoos em contradição com eles mesmos estilhaçava suas convicções tal é sabedoria socrática que consiste em suma em provocar em outrem esta sabedoria negativa É assim que é preciso compreender o conhecete a ti mesmo que foi a máxima socrática Não é um convite à introspecção psicológica mas a tradução da preocupação em fazer cada um o juiz pessoal de seus pensamentos Terá sido este o motivo de sua condenação à morte Em todo caso é esta crítica das opiniões que faz dele o verdadeiro iniciador do procedimento filosófico Cf CLÉMENT Élisabeth et alii 1994 Pratique de la Philosophie de A à Z Paris Hatier27 Homem político e filósofo francês Advogado exercerá um papel político importante na Revolução Cf Encyclopédie Philosophique Universelle Paris PUF 199028 Scipion Du Pleix op cit Physique pág 43929 Ibid pág 35330 Pierre Gassendi escreve uma de suas obras para objetar Descartes a Pesquisa Metafísica Nela o filósofo postula que é impossível e inútil fundar as evidências intuitivas sejam elas instantâneas como o penso logo sou ou discursivas como no encadeamento das razão O Cogito é criticado de um ponto de vista lógico em nome do princípio segundo o qual não sabemos o que não sabemos nada permite afirmar que uma coisa seja tal qual ela nos aparece na evidência racional Que nós pensemos que o eu que pensa seja somente uma substância pensante não se segue necessariamente que ele o seja Cf Encyclopédie Philosophique Universelle Paris PUF 199031 Escolástica doutrinas teológicofilosóficas dominantes na Idade Média dos séc IX ao XVII caracterizadas sobretudo pelo problema da relação entre a fé e a razão problema que se resolve pela dependência do pensamento filosófico representado pela filosofia grecoromana da teologia cristã32 FrançoisPierre Gonthier de Biran publicou muito pouco ao longo de sua vida Numa de suas obras Decomposição do Pensamento Biran começa perguntandose qual é o fundamento de todo conhecimento de toda existência percebida ou noutras palavras qual o fato primitivo do sentido íntimo Para ser verdadeiramente primitivo ele deve ser condicionante e não condicionado Para ser um fato deve envolver uma relação entre dois termos um sujeito que conhece e um objeto que é conhecido A sensação cara a Condillac pode representar este papel Não porque ainda não haveria um eu que pudesse dizer eu sinto Seria então necessário começar com o eu sou de Descartes Com certeza mas com a condição de que o eu sou não seja identificado ao eu penso ao eu sou uma substância pensante Ter consciência de existir é existir para si mas ser uma substância é ser em si A dualidade envolvida na noção de fato é absorvida aqui na unidade Cf Encyclopédie Philosophique Universelle Paris PUF 1990 introspecção isto é contra este método de conhecimento de si que faz da psicologia a propedêutica científica da metafísica justificando pela via experimental as teses tradicionais do substancialismo espiritualista É que se desconheceu o ensinamento de Descartes ao mesmo tempo constituindo contra ele uma psicologia empírica como história natural do eu de Locke a Ribot 18391916 através de Étienne Bonnot de Condillac 17151780 e constituindo segundo ele acreditavase uma psicologia racional fundada na intuição de um Eu substancial Kant guarda ainda hoje a glória de ter estabelecido que se Wolff 16791754 pôde batizar estes recémnascidos póscartesianos Psychologia empirica 1732 Psychologia rationalis 1734 ele nem por isso conseguiu fundar suas pretensões à legitimidade Kant mostra que de um lado o sentido interno fenomenal não é senão uma forma da intuição empírica que ele tende a se confundir com o tempo que por outro lado o eu sujeito de todo julgamento de apercepção é uma função de organização da experiência mas do qual não poderia haver ciência uma vez que ele é a condição transcendental de toda ciência Os Primeiros princípios metafísicos da Ciência da Natureza 1786 contestam à psicologia o alcance de uma ciência seja à imagem das matemáticas seja à imagem da física Não há psicologia matemática possível no sentido em que existe uma física matemática Mesmo se se aplicasse às modificações do sentido interno em virtude da antecipação da percepção relativa às grandezas intensivas as matemáticas do continuo não se obteria nada de mais importante do que seria uma geometria limitada ao estudo das propriedades da linha reta Também não há psicologia experimental no sentido em que a química se constitui pelo uso da análise e da síntese Nós não podemos nem sobre nós mesmos nem sobre o outro fazer experiências E a observação interna altera seu objeto Querer se surpreender a si mesmo na observação de si conduziria à alienação A psicologia não pode pois ser senão descritiva Seu lugar verdadeiro é numa Antropologia como propedêutica de uma teoria da habilidade e da prudência coroada por uma teoria da sabedoria C A CIÊNCIA DO SENTIDO ÍNTIMO Se chama psicologia clássica àquela que se pretende refutar é preciso dizer que em psicologia há sempre clássicos para alguém Os Ideólogos herdeiros dos sensualistas podiam ter como clássica a psicologia escocesa que não propugnava como eles um método indutivo senão para melhor afirmar contra eles a substancialidade do espírito Mas a psicologia atomística e analítica dos sensualistas e dos Ideólogos antes de ser rejeitada como psicologia clássica pelos teóricos da Gestalt era já tida como tal por um psicólogo romântico como Maine de Biran Para ele a psicologia se torna a técnica do Diário íntimo e a ciência do sentido íntimo A solidão de Descartes era a ascese de um matemático A solidão de Maine de Biran a ociosidade de um subprefeito O Eu penso cartesiano funda o pensamento em si O Eu quero biraniano funda a consciência para si contra a exterioridade No seu escritório calefetado Maine de Biran descobre que a análise psicológica não consiste em simplificar mas em complicar que o fato psíquico primitivo não é um elemento mas já uma relação que esta relação é vivida no esforço Ele chega a duas conclusões inesperadas para um homem cujas funções são as de autoridade isto é comando a consciência requer o conflito de um poder e de uma resistência o homem não é como pensou de Bonald 17541840 uma inteligência servida por órgãos mas uma organização viva servida por uma inteligência É necessário à alma ser encarnada e portanto não há psicologia sem biologia A observação de si não dispensa o recurso à fisiologia do movimento voluntário nem à patologia da afetividade A situação de Maine de Biran é única entre os dois RoyerCollard Ele dialogou com o doutrinário e foi julgado pelo psiquiatra Nós temos de Maine de Biran um Passeio com M RoyerCollard nos jardins do Luxemburgo e nós temos de AntoineAthanase RoyerCollard irmão do precedente um Exame da Doutrina de Maine de Biran Se Maine de Biran não tivesse lido e discutido Cabanis 17571808 Relações do físico e do moral do homem 1798 se ele não tivesse lido e discutido Bichat 17711802 Pesquisas sobre a vida e a morte 1800 a história da psicologia patológica o ignoraria o que ela não pode O segundo RoyerCollard é depois de Pinel 17451826 e com Esquirol 17721840 um dos fundadores da Escola francesa de psiquiatria Pinel se bateu pela idéia de que os alienados são ao mesmo tempo doentes como os outros nem possessos nem criminosos e diferentes dos outros portanto devendo ser cuidados separadamente dos outros e separadamente segundo os casos em serviços hospitalares especializados Pinel fundou a medicina mental como disciplina independente a partir do isolamento terapêutico dos alienados em Bicêtre e na Salpêtrière RoyerCollard imita Pinel na Maison Nationale de Charenton da qual ele se tornou o médicochefe em 1805 o mesmo ano em que Esquirol sustentou a tese de medicina sobre as Paixões consideradas como causas sintomas e meios curativos da alienação mental Em 1816 RoyerCollard se tornou professor de medicina legal na Faculdade de Medicina de Paris e depois em 1821 primeiro titular da cátedra de medicina mental RoyerCollard e Esquirol tiveram como aluno Calmeil que estudou a paralisia nos alienados Bayle que reconheceu e isolou a paralisia geral Félix Voisin que criou o estudo do retardamento mental nas crianças E foi na Salpêtrière que depois de Pinel Esquirol Lelut Baillarger e Falret entre outros Charcot se tornou em 1862 chefe de um serviço cujos trabalhos serão seguidos por Théodule Ribot Pierre Janet o Cardeal Mercier e Sigmund Freud Nós vimos a psicopatologia começar positivamente com Galeno nós a vimos chegar a Freud criador em 1896 do termo psicanálise A psicopatologia não se desenvolveu sem relação com as outras disciplinas psicológicas A partir das pesquisas de Biran ela obriga a filosofia a se perguntar depois de mais de um século a qual dos RoyerCollard ela deve tomar emprestada a idéia que é preciso ter da psicologia Assim a psicopatologia é ao mesmo tempo juiz e parte no debate ininterrupto do qual a metafísica legou a direção à psicologia sem no entanto renunciar a dizer sua palavra sobre as relações do físico e do psíquico Esta relação foi durante muito tempo formulada como somatopsíquica antes de se tornar psicossomática Esta inversão é a mesma aliás que aquela que se operou na significação dada ao inconsciente Se se identifica psiquismo e consciência autorizandose com Descartes certo ou errado o inconsciente é de ordem física Se se pensa que algo do psíquico pode ser inconsciente a psicologia não se reduz à ciência da consciência O psíquico não é mais somente o que está escondido mas o que se esconde aquilo que se esconde ele não é mais somente o íntimo mas também segundo um termo retomado por Bossuet 16271704 aos místicos o abissal A psicologia não é mais somente a ciência da intimidade mas a ciência das profundezas da alma III A psicologia como ciência das reações e do comportamento Propondo definir o homem como organização viva servida por uma inteligência Maine de Biran marcava de saída melhor parece do que Gall para quem segundo Lelut 18041877 o homem não é mais uma inteligência mas uma vontade servida por órgãos o terreno sobre o qual iria se constituir no século XIX uma nova psicologia Mas ao mesmo tempo ele designava seus limites uma vez que no seu Antropologia ele situava a vida humana entre a vida animal e a vida espiritual O século XIX vê se constituir ao lado da psicologia como patologia nervosa e mental como física do sentido externo como ciência do sentido interno e do sentido íntimo uma biologia do comportamento humano Às razões deste advento nos parecem ser as seguintes Inicialmente razões científicas saber a constituição de uma Biologia como teoria geral das relações entre os organismos e os meios e que marca o fim da crença na existência de um reino humano separado em seguida razões técnicas e econômicas saber o desenvolvimento de um regime industrial orientando a atenção para o caráter industrioso da espécie humana e que marca o fim da crença na dignidade do pensamento especulativo finalmente razões políticas que se resumem no fim da crença nos valores do privilégio social e na difusão do igualitarismo a constrição e a instrução pública tornandose negócio de estado a reivindicação de igualdade diante dos cargos militares e funções civis a cada um segundo o seu trabalho ou suas obras ou seus méritos são os fundamentos reais embora freqüentemente despercebidos de um fenómeno próprio das sociedades modernas a prática generalizada especialidade no sentido amplo como determinação da competência e despistamento da simulação Ora o que caracteriza segundo nós esta psicologia dos comportamentos em relação aos outros tipos de estudos psicológicos é sua incapacidade constitucional de aprender e exibir na claridade seu projeto instaurador Se entre os projetos instauradores de certos tipos anteriores de psicologia alguns podem passar por contrasensos filosóficos aqui ao contrário toda relação com uma teoria filosófica sendo recusada se coloca a questão de saber de onde uma tal pesquisa psicológica pode tirar seu sentido Aceitando se tornar no padrão da biologia uma ciência objetiva das atitudes das reações e do comportamento esta psicologia e estes psicólogos esquecem totalmente de situar seu comportamento específico em relação às circunstâncias históricas e aos meios sociais nos quais eles são levados a propor seus métodos ou técnicas e fazer aceitar seus serviços Nietzsche 18441900 esboçando a psicologia do psicólogo no século XIX escreve Nós psicólogos do futuro consideramos quase como um sinal de degenerescência o instrumento que quer se conhecer a si mesmo nós somos os instrumentos do conhecimento e gostaríamos de ter toda a ingenuidade e a precisão de um instrumento portanto nós não devemos nos analisar a nós mesmos nos conhecer Surpreendente malentendido e tão revelador O psicólogo não quer ser senão um instrumento sem procurar saber de quem ou de que ele é instrumento Nietzsche pareceu mais inspirado quando no início da Genealogia da Moral ele se debruçou sobre o enigma que representam os psicólogos ingleses isto é os utilitaristas preocupados com a gênese dos sentimentos morais Ele se perguntava então o que havia conduzido os psicólogos na direção do cinismo na explicação das condutas humanas pelo interesse a utilidade e pelo esquecimento destas motivações fundamentais E eis que diante da conduta dos psicólogos do século XIX Nietzsche renuncia a todo cinismo por provisão isto é a toda lucidez A idéia de utilidade como princípio de uma psicologia dizia respeito à tomada de consciência filosófica da natureza humana como poder de artifício mais prosaicamente a definição do homem como fabricante de ferramentas Mas o princípio da psicologia biológica do comportamento não parece terse destacado da mesma forma de uma tomada de consciência filosófica explícita sem dúvida porque ele não pode ser operado senão com a condição de permanecer nãoformulado Este princípio é a definição do próprio homem como ferramenta Ao utilitarismo que implica a idéia da utilidade para o homem a idéia do homem juiz da utilidade sucedeu o instrumentalismo implicando a idéia de utilidade do homem a idéia do homem como meio de utilidade A inteligência não é o que faz os órgãos e se serve deles mas o que serve aos órgãos E não é impunemente que as origens históricas da psicologia da reação devem ser procuradas nos trabalhos suscitados pela descoberta da equação pessoal própria aos astrônomos que utilizam o telescópio Maskelyne 1796 O homem foi estudado de início como instrumento do instrumento científico antes de ser como instrumento de todo instrumento As pesquisas sobre as leis da adaptação e da aprendizagem sobre a relação da aprendizagem e das atitudes sobre a detecção e a medida das aptidões sobre as condições do rendimento e da produtividade quer se trate de indivíduos ou de grupos pesquisas inseparáveis de suas aplicações na seleção e na orientação admitem todas um postulado implícito comum a natureza do homem é de ser ferramenta sua vocação é ser colocado no seu lugar na sua tarefa Evidentemente Nietzsche tem razão ao dizer que os psicólogos querem ser os instrumentos ingênuos e precisos deste estudo do homem Eles se esforçaram por chegar a um conhecimento objetivo embora o determinismo que eles procuram nos comportamentos não seja mais atualmente o determinismo de tipo newtoniano52 familiar aos primeiros físicos do século XIX mas antes um determinismo estatístico progressivamente baseado nos resultados da biometria Mas finalmente qual é o sentido deste instrumentalismo à segunda potência O que é que empurra ou inclina os psicólogos a se fazerem entre os homens os instrumentos de uma ambição de tratar o homem como um instrumento Nos outros tipos de psicologia a alma ou o sujeito forma natural ou consciência de interioridade é o princípio que se dá para justificar em valor uma certa idéia do homem em relação com a verdade da coisas Mas para uma psicologia onde a palavra alma faz fugir e a palavra consciência rir a verdade do homem é dada no fato de que não há mais idéias do homem enquanto valor diferente do de ferramenta Ora é preciso reconhecer que para que se possa tratar de uma idéia de ferramenta é preciso que toda idéia não seja colocada no nível da ferramenta e que para poder atribuir a uma ferramenta algum valor é necessário precisamente que todo valor não seja o de uma ferramenta cujo valor subordinado consiste em proporcionar algum outro Se pois o psicólogo não toma seu projeto de psicologia numa idéia do homem acredita ele poder legitimálo pelo seu comportamento de utilização do homem Nós dizemos bem pelo seu comportamento de utilização apesar de duas objeções possíveis Podese observar evidentemente que este tipo de psicologia não ignora a distinção entre a teoria e a aplicação de outro lado que a utilização não é parte do psicólogo mas daquele ou daqueles que lhe pedem relatórios ou diagnósticos Nós responderemos que a menos que se confundam o teórico da psicologia e o professor de psicologia devese reconhecer que o psicólogo contemporâneo é na maioria das vezes um prático profissional cuja ciência é totalmente inspirada na pesquisa das leis da adaptação a um meio sóciotécnico e não a um meio natural o que confere sempre a estas operações de medida uma significação de apreciação e um alcance de perícia De sorte que o comportamento do psicólogo do comportamento humano enfeixa quase obrigatoriamente uma convicção de superioridade uma boa consciência dirigista uma mentalidade de empresário das relações do homem com o homem E eis porque é preciso voltar à questão cínica quem designa os psicólogos como instrumentos do instrumentalismo Como se reconhece aqueles entre os homens que são dignos de designar ao homeminstrumento seu papel e sua função Quem orienta os orientadores Nós não nos colocamos isto é claro no terreno das capacidades e da técnica Que haja bons e maus psicólogos isto é técnicos hábeis depois da aprendizagem ou malfazejos por tolice não sancionada pela lei não é a questão A questão é que uma ciência ou uma técnica científica não contêm por elas mesmas nenhuma idéia que lhes confira seu sentido Na sua Introduction à la Psychologie Paul Guillaume fez a psicologia do homem submetido a um teste O testado se defende de uma investigação ele teme que se exerça sobre ele uma ação Guillaume vê neste estado de espírito um reconhecimento implícito da eficácia do teste Mas se poderia ver nisso também um embrião de psicologia do testador A defesa do testado é a repugnância de se ver tratado como um inseto por um homem no qual ele não reconhece nenhuma autoridade para lhe dizer o que ele é e o que ele deve fazer Tratar 52 Determinismo do latim terminus limite borda Relação necessária entre uma causa e seu efeito Sistema de causas e efeitos que mantém entre eles relações necessárias O sentido metafísico doutrina segundo a qual o conjunto do real é um sistema de causas e de efeitos necessários incluindo aquilo que aparenta de modo ilusório derivar da liberdade ou da vontade A noção de determinismo fundamenta a idéia de lei física Ela coloca que é possível formular uma laço tal que uma ou várias causas sendo dadas tais efeitos se seguem necessariamente O determinismo não deve ser confundido coma simples causalidade que estabelece também uma ligação entre dois acontecimentos com o primeiro produzindo o segundo sem que tal relação seja apresentada como necessária pois a mesma causa poderia produzir um outro efeito mesmo um efeito contrário O determinismo se opõe portanto às relações de causalidade devidas ao acaso ou à liberdade como um inseto a palavra é de Stendhal 1783184253 que a toma de Cuvier 1769183254 55 E se nós tratássemos o psicólogo como inseto se nós aplicássemos por exemplo ao morno e insípido Kinsey a recomendação de Stendhal Em outras palavras a psicologia de reação e de comportamento nos séculos XIX e XX acreditou se tornar independente separandose de toda filosofia isto é da especulação que procura uma idéia do homem olhando além dos dados biológicos e sociológicos Mas esta psicologia não pode evitar a recorrência de seus resultados sobre o comportamento daqueles que os obtêm E a questão Que é a psicologia na medida em que se impede a filosofia de procurar sua resposta se torna Onde querem chegar os psicólogos fazendo o que eles fazem Quando Gedeão recruta o comando israelita à frente do qual ele reconduz os medianitas para além do Jordão A Bíblia Juizes Livro VII ele utiliza um teste de dois graus que lhe permite ficar com dez mil homens em trinta e dois mil e depois trezentos em dez mil Mas este teste deve ao Eterno o fim de sua utilização e o processo de seleção utilizado Para selecionar um selecionador é preciso normalmente transcender o plano dos procedimentos técnicos de seleção Na imanência da psicologia científica a questão permanece quem tem não a competência mas a missão de ser psicólogo A psicologia repousa bem sobre um desdobramento mas não é mais o da consciência segundo os fatos e as normas que comportam a idéia do homem é o de uma massa de sujeitos e de uma elite corporativa de especialistas investindose eles próprios de sua própria missão Em Kant e em Maine de Biran a psicologia se situa numa Antropologia isto é apesar da ambigüidade atualmente muito na moda deste termo numa filosofia Em Kant a teoria geral da habilidade humana permanece em relação com uma teoria da sabedoria A psicologia instrumentalista se apresenta como uma teoria geral da habilidade fora de toda referência à sabedoria Se nós não podemos definir esta psicologia por uma idéia do homem isto é situar a psicologia na filosofia nós não temos o poder evidentemente de impedir a quem quer que seja de se chamar psicólogo e chamar psicologia o que ele faz Mas ninguém pode também impedir à filosofia de continuar a se perguntar sobre o estatuto mal definido da psicologia mal definido do lado das ciências como do lado das técnicas A filosofia se conduz assim com a sua ingenuidade constitutiva tão pouco semelhante à tolice que ela não exclui um cinismo provisório e que a leva a se voltar uma vez mais para o lado popular isto é para o lado nativo dos não especialistas É pois muito vulgarmente que a filosofia coloca para a psicologia a questão dizeime em que direção tendes para que eu saiba o que sois Mas o filósofo pode também se dirigir ao psicólogo sob a forma uma vez que não é costume de um conselho de orientação e dizer quando se sai da Sorbonne pela rue SaintJacques podese subir ou descer se se sobe aproximase do Pantheon que é o Conservatório de alguns grandes homens mas se se desce dirigese certamente para a Chefatura de Polícia 53 Henri Beyle estudava matemática na Escola central de Grenoble o que o leva à Escola politécnica logo abandonada para se dedicar ao teatro Dificuldades financeiras o obrigam a exercer a administração Tendo entrado na Itália com o exército napoleônico ele descobre em Milão a arte italiana e a música de ópera Cf Encyclopédie Philosophique Universelle Paris PUF 1990 54 JeanLéopoldNicolasFrédéric dito Georges Cuvier era pesquisador e professor Desenvolveu a arte dos métodos em zoologia Em lugar de trabalhar passo a passo ele destacou um certo número de linhas diretrizes que ele chamava de princípios ou Leis 1 a lei de subordinação dos órgãos e dos caracteres que permite definir com um rigor crescente as relações entre os órgãos sua cooperação natural a influência preponderante de alguns assim nasce um ramo fundamental da zoologia a ciência das leis de organização animal 2 o princípio de correlação entre os órgãos que permite reconhecer um animal a partir de um elemento fragmentar encontrado abrindo a via para uma ciência nova a das espécies perdidas a paleontologia Tudo isto permitiu a ciência da época desenvolverse de modo espetacular Concernindo à evolução Cuvier reconhecia no tempo geológico uma duração muito longa no curso da qual mutações se produziram mutações que ele atribuía a modificações locais importantes como o clima Ele admitia que antes da criação do homem faunas variadas se sucederam mas sem criações novas as formas atuais não constituiriam mais do que apenas uma parte do conjunto das formas antigas Cf Encyclopédie Philosophique Universelle Paris PUF 1990 55 Em lugar de odiar o pequeno livreiro do burgo vizinho que vende o Almanaque popular dizia eu a meu amigo M de Ranville apliquelhe o remédio indicado pelo célebre Cuvier trateo como um inseto Pesquise quais são seus meios de subsistência tente adivinhar suas maneiras de fazer o amor Mémoires dun Touriste ed CalmannLevy tomo II p 23
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George Canguilhem 19041995 O QUE É A PSICOLOGIA¹ A questão Que é a psicologia parece mais perturbadora para o psicólogo do que é para o filósofo a questão Que é a filosofia Porque para a filosofia a questão de seu sentido e de sua essência a constitui bem mais do que define uma resposta a esta questão O fato de que a questão renasça incessantemente na falta de uma resposta satisfatória é para quem gostaria de poder se chamar filósofo uma razão de humildade e não uma causa de humilhação Mas para a psicologia a questão de sua essência ou mais modestamente de seu conceito coloca em questão também a própria existência do psicólogo na medida em que por não poder responder exatamente sobre o que é tornouse bastante difícil para ele responder sobre o que faz Ele não pode então procurar senão numa eficácia sempre discutível a justificação de sua importância de especialista importância que não desagradaria absolutamente a alguns que ela originasse no filósofo um complexo de inferioridade Ao dizer da eficácia do psicólogo que ela é discutível não se quer dizer que ela é ilusória querse simplesmente observar que esta eficácia está sem dúvida mal fundada enquanto não se fizer prova de que ela é devida à aplicação de uma ciência isto é enquanto o estatuto da psicologia não estiver fixado de tal maneira que se deva considerála como mais e melhor do que um empirismo² composto literariamente codificado para fins de ensinamento De fato de muitos trabalhos de psicologia se tem a impressão de que misturam a uma filosofia sem rigor uma ética sem exigência e uma medicina sem controle Filosofia sem rigor porque eclética sob pretexto de objetividade ética sem exigência porque associando experiências etológicas³ elas próprias sem crítica a do confessor do educador do chefe do juiz etc medicina sem controle visto que das três espécies de doenças as mais ininteligíveis e as menos curáveis doenças da pele doença dos nervos e doenças mentais o estudo e o tratamento das duas últimas forneceram sempre à psicologia observações e hipóteses Portanto pode parecer que perguntando Que é a psicologia se coloca uma pergunta que não é nem impertinente nem fútil Procurouse durante muito tempo a unidade característica do conceito de uma ciência na direção de seu objeto O objeto ditaria o método utilizado para o estudo de suas propriedades Mas era no fundo limitar a ciência à investigação de um dado à exploração de um domínio Quando se tornou claro que toda ciência se dá mais ou menos seu dado e se apropria assim daquilo que se chama seu domínio o conceito de uma ciência progressivamente fez valer mais seu método do que seu objeto Ou mais exatamente a expressão objeto da ciência recebeu um sentido novo O objeto da ciência não é mais somente o domínio específico dos problemas dos obstáculos a resolver é também a intenção e o alvo do sujeito da ciência é o projeto específico que constitui como tal uma consciência teórica ¹ Conferência dada no Collège Philosophique em 18 de dezembro de 1956 e publicada na Revue de Métaphysique et de Morale nº 1 1958 no Cahiers pour lAnalyse nº 2 março 1966 e na coletânea Études dhistoire et de philosophie des sciences Paris Vrin 1979 Tradução de Maria da Glória Ribeiro da Silva editada na revista Tempo Brasileiro n3031 org Carlos Henrique Escobar 1973 pp 104123 Notas críticas de Monah Winograd ² Empirismo concepção segundo a qual o conhecimento está fundado sobre a experiência sensível externa as sensações e interna nossos sentimentos tais quais são vividos John Locke 16321704 é o autor do texto canônico do empirismo A alma ele escreve é uma tábula rasa uma página em branco vazia de caracteres Como ela vem a receber as idéias De onde ela extrai os materiais que são como o fundo de todos os seus raciocínios e de todos os seus conhecimentos A isto eu respondo com uma palavra da experiência Ensaios filosóficos concernindo o entendimento humano I 2 O empirismo clássico afirma que o conhecimento tem uma base sensível as idéias são as cópias das impressões sensíveis ele descreve a produção dos conceitos e das idéias gerais a partir das sensações primitivas por meio dos signos da linguagem uma idéia abstrata e geral não é senão uma palavra que serve para representar idéias particulares e concretas elas mesmas derivadas das sensações enfim ele tende a excluir toda especulação para além dos dados da experiência quer dizer a recusar a metafísica O empirismo de Locke sustentava a existência objetiva dos objetos exteriores dos quais temos a sensação Mas a partir de George Berkeley 16851753 e de David Hume 17111776 o empirismo moderno recusa este postulado e se quer fenomenalista fenômeno do grego phaenomenon ser visível brilhar O fenômeno é aquilo que aparece para a consciência seja diretamente como os fenômenos afetivos e psicológicos seja por intermédio dos sentidos como os fenômenos sensíveis os dados primeiros da consciência são as impressões sensíveis Não é possível inferir com certeza a partir destas percepções a existência dos objetos que elas representam A partir do século XIX com Ernst Mach 18381916 e Ludwig Wittgenstein 18891951 entre outros o empirismo conhece uma renovação Estes filósofos afirmam que as únicas verdades a priori são as puramente formais da lógica Abandonando o problema da origem dos conhecimentos eles querem sobretudo mostrar que somente a experiência pode verificálas Enfim abordando o conhecimento a partir da análise lógica da linguagem o empirismo moderno não formula o problema da idéia em sua relação com a sensação mas da proposição em relação a um fato observável não se trata de saber por exemplo se a idéia de vermelho remete à sensação vermelho mas se o enunciado esta maçã é vermelha exprime um fato ao qual se pode confrontálo Cf verbete Empirismo in CLÉMENT Élisabeth et alii 1994 Pratique de la Philosophie de A à Z Paris Hatier ³ Etologia tratado dos costumes usos e caracteres humanos estudo dos hábitos dos animais e da sua acomodação às condições do ambiente É a esta concepção antiga que remonta sem ruptura um aspecto da psicologia moderna a psicofisiologia9 considerada durante muito tempo como psiconeurologia exclusivamente mas atualmente além disso como psicoendocrinologia e a psicopatologia10 como uma disciplina médica Sob esta relação não parece supérfluo lembrar que antes das duas revoluções que permitiram o avanço da fisiologia moderna a de Harvey e a de Lavoisier 1743179411 uma revolução de não menos importância que a teoria da circulação ou da respiração é devida a Galeno de Pérgamo12 quando ele estabeleceu que é o cérebro e não o coração que é o órgão da sensação e do movimento e a sede da alma Galeno funda verdadeiramente uma filiação ininterrupta de pesquisas pneumatologia13 empírica durando séculos cuja peça fundamental é a teoria dos espíritos animais14 desprestigiada e substituída no fim do século XVIII pela eletroneurologia Ainda que decididamente pluralista na sua concepção das relações entre funções psíquicas e órgãos encefálicos Gall 1758182815 procede diretamente de Galeno e domina apesar de suas extravagâncias todas as pesquisas 9 Psicofisiologia ciência que tem por objeto o estudo das bases fisiológicas do psiquismo Como estas bases estão largamente sob a dependência do sistema nervoso e o psiquismo é compreendido como o conjunto dos mecanismos que sustentam o comportamento a psicofisiologia estuda principalmente as bases nervosas do comportamento Ela se subdivide em duas grandes correntes uma voltada às bases nervosas neurobiologia e neurofisiologia outra voltada para o comportamento psicologia e etologia Cf Encyclopédie Philosophique Universelle Paris PUF 1990 10 Psicopatologia saber sobre as afecções patológicas da psiquê 11 Antoine Laurent de Lavoisier 17431794 revolucionou a química Mas não exatamente pelo uso da balança nem pela célebre fórmula nada se cria nada se perde tudo se transforma A balança já existia nos laboratórios de química mas é por volta de 1770 quando se começa a estudar o gás que ela se torna instrumento essencial em associação com a caixa pneumática um aparelho fechado que serve para concentrar o gás o gásômetro que permite medir seu volume A balança de Lavoisier traz um ganho de precisão nas medidas experimentais transformando o método experimental em prática contábil A cada etapa Lavoisier faz o balanço das reações efetuadas ele pesa antes e depois da experiência o todo e cada elemento do sistema Mas o princípio da conservação não foi inventado por Lavoisier Já se o encontra em termos vizinhos em Lucrécio Nada nasce de nada nada retorna ao nada A revolução de Lavoisier acontece noutro lugar na combustão Para Lavoisier a combustão é uma combinação com o ar a fonte de calor não está no combustível como se acreditava mas no ar Daí seus desdobramentos numa teoria da respiração Cf SERRES Michel org Éléments dHistoires des Sciences Paris Bordas 1989 12 Galeno de Pérgamo foi o responsável por uma transformação na imagem de corpo na medicina da antigüidade Ele será redescoberto no Renascimento A partir do século XIV um professor da universidade de Bolonha Mondino di Luzzi autor do primeiro tratado de anatomia executa dissecações de cadáveres com a única intenção de confirmar as lições de Galeno apoiandose na observação Os ensinamentos de Galeno eram conhecidos e seguidos porque haviam sido transmitidos e conservados não sem grandes dificuldades pelos árabes como Avicena Em 1531 traduzidos em latim por Guenther é publicado o De anatomicis administrationibus A obra médica de Galeno oferecia aos estudantes um extraordinário conjunto de dados uma teoria fisiológica coerente em relação a uma descrição anatômica do esqueleto e das vísceras fruto de numerosas dissecações de animais e talvez de cadáveres uma farmacopéia um método diagnóstico e uma teoria filosófica sobre a vida Misturando pensamento científico racionalidade metafísica e restos de crenças mágicas Galeno nos dá uma imagem do corpo que constitui o resultado destes três fatores O corpo é dominado pela razão mas está em contato imediato com as forças da natureza que não pode deixar de imitar Buscando em Aristóteles a doutrina dos quatro elementos aos quais correspondem no corpo humano as combinações das quatro qualidades quente frio seco úmido ele acaba por aceitar na farmacopéia alguns conceitos mágicos refutados pela sua anatomia Em nome do princípio de que o semelhante atrai o semelhante e afasta o dissemelhante afirma que o caranguejo por ser aquático é eficaz contra a hidrofobia e os caranguejos de água doce o são ainda mais pois absorvem a umidade pela sal que contêm Assim pretendendo fundar uma anatomia científica lançando impropérios contra a feitiçaria que acredita que sangue de crocodilo melhora a vista ainda admite crenças derivadas da mesma forma de pensar mágicoreligiosa Cf GIL José Corpo in Enciclopédia Einaudi vol 32 13 Pneumatologia tratado dos espíritos dos seres intermediários que formam a ligação entre Deus e o homem 14 Espíritos animais apesar do nome os espíritos animais são elementos inteiramente físicos Na fisiologia cartesiana desempenham o papel hoje atribuído aos impulsos neuroelétricos são veículos de transmissão de informação no sistema nervoso Cf Cottingham John Dicionário Descartes Rio de Janeiro Zahar 1993 15 FranzJoseph Gall médico preocupouse com o conhecimento das funções das diferentes partes do cérebro e suas relações com as tendências do homem Assim consagrouse ao estudo da anatomia cerebral e em 1796 começou a difundir as teorias cranioscópicas que o tornariam célebre Partindo da idéia de que a medula espinhal é o elemento primitivo do sistema nervoso e de que a compreensão da organização do cérebro supõe uma dissecção ascendente dilacerando progressivamente os feixes nervosos para chegar até o manto cortical dos hemisférios cerebrais que ele estudava por desdobramento das circunvoluções Gall chamou a atenção para o córtex então negligenciado e mostrou a sua unidade e a sua continuidade enfatizando a sua importância maior nas espécies animais mais evoluídas A partir disso elaborouse uma teoria psicofisiológica segundo a qual o cérebro órgão de todas as inclinações de todos os sentimentos e de todas as faculdades é composto de tantos órgãos particulares quantos são as inclinações sentimentos e faculdades enquanto a forma do crânio estreitamente moldada sobre a forma do seu conteúdo permite detectar essas funções pela palpação e pela mensuração Gall reuniu muitas observações de homens de gênio e de imbecis de alienados e de criminosos visitando escolas asilos e prisões museus e gabinetes de anatomia medindo tanto bustos de personagens ilustres quanto cabeças de supliciados encontrando na teoria então argumentos de peso para defender a hipótese da autonomia funcional dos territórios cerebrais Passando enfim de uma teoria das localizações para um procedimento semiológico estabeleceu um mapa das 27 faculdades fundamentais que acreditou discernir e criou uma ciência nova a cranioscopia que permitia ler o caráter do indivíduo através das saliências e depressões da sua abóbada craniana O ponto forte de sua doutrina é assim a exclusividade dada ao encéfalo e particularmente aos hemisférios cerebrais como a sede de todas as faculdades intelectuais e morais O cérebro entendido como um sistema dos sistemas é apresentado como o único suporte físico das faculdades A frenologia de Gall é uma cranioscopia fundada sobre a correspondência entre o conteúdo e o continente entre a configuração dos hemisférios e a forma do crânio Contra o sensualismo contra o idéia de aquisição da experiência sob a pressão do meio Gall e seus discípulos sustentavam o inatismo das qualidades morais e dos poderes intelectuais Cf MOREL Pierre Dicionário Biográfico Psi Rio de Janeiro Zahar 1997 À questão Que é a psicologia podese responder fazendo aparecer a unidade de seu domínio apesar da multiplicidade dos projetos metodológicos É a este tipo que pertence a resposta brilhantemente dada pelo Professor Daniel Lagache em 1947 a uma questão colocada em 1936 por Edouard Claparède4 A unidade da psicologia é aqui procurada na sua definição possível como teoria geral da conduta síntese da psicologia experimental da psicologia clínica da psicanálise da psicologia social e da etnologia Observando bem no entanto se diz que talvez esta unidade se parece mais com um pacto de coexistência pacífica concluído entre profissionais do que com uma essência lógica obtida pela revelação de uma constância numa variedade de casos Das duas tendências entre as quais o Professor Lagache procura um acordo sólido a naturalista psicologia experimental e a humanista psicologia clínica temse a impressão que a segunda lhe parece pesar mais É o que explica sem dúvida a ausência da psicologia animal nesta revisão das partes em litígio Certamente vêse bem que ela é compreendida na psicologia experimental que é em grande parte uma psicologia dos animais mas ela é aí enfeixada como material ao qual aplicar o método E na verdade uma psicologia não pode ser chamada experimental senão em razão de seu método e não em razão de seu objeto Enquanto que apesar das aparências é pelo objeto mais do que pelo método que uma psicologia é chamada clínica psicanalítica social etnológica Todos estes adjetivos são indicativos de um só e mesmo objeto de estudo o homem ser loquaz ou taciturno ser sociável ou insociável A partir disso podese rigorosamente falar de uma teoria geral da conduta enquanto não se tiver resolvido a questão de saber se há continuidade ou ruptura entre linguagem humana e linguagem animal sociedade humana e sociedade animal É possível que neste ponto caiba não à filosofia decidir mas à ciência de fato a várias ciências inclusive à psicologia Mas então a psicologia não pode para se definir prejulgar aquilo a que ela é chamada a julgar Sem o que é inevitável que se propondo ela própria como teoria geral da conduta a psicologia faça sua alguma idéia do homem É preciso então permitir à filosofia perguntar à psicologia de onde ela tira esta idéia e se não seria no fundo de alguma filosofia Nós gostaríamos de tentar porque não somos um psicólogo abordar a questão fundamental colocada por um caminho oposto isto é pesquisar se é ou não a unidade de um projeto que poderia conferir sua unidade eventual às diferentes espécies de disciplinas ditas psicológicas Mas nosso processo de investigação exige um recuo Pesquisar em que os domínios se recobrem podese fazer pela sua exploração separada e sua comparação na atualidade uma dezena de anos no caso do Professor Lagache Pesquisar se os projetos se encontram pede que se destaque o sentido de cada um deles não quando ele se perdeu no automatismo da execução mas quando ele surge da situação que o suscita Procurar uma resposta para a questão Que é a psicologia se torna para nós a obrigação de esboçar uma história da psicologia mas bem entendido considerada somente nas suas orientações em relação com a história da filosofia e das ciências uma história necessariamente teológica5 visto que destinada a veicular até a questão colocada o sentido originário suposto das diversas disciplinas métodos ou empreendimentos cujo disparate atual legitima esta questão I A psicologia como ciência natural Uma vez que a psicologia significa etimologicamente ciência da alma é notável que uma psicologia independente esteja ausente em idéia e de fato dos sistemas filosóficos da antigüidade onde no entanto a psiquê a alma é tida como um ser natural Os estudos relativos à alma se encontram divididos entre a metafísica6 a lógica e a física O tratado aristotélico Da alma é na realidade um tratado de biologia geral um dos escritos consagrados à física Segundo Aristóteles 384322 A C7 os Cursos de filosofia do começo no século XVII tratam ainda da alma num capítulo da Física8 O objeto da física é o corpo natural e organizado tendo a vida em potência portanto a física trata da alma como forma do corpo vivo e não como uma substância separada da matéria Deste ponto de vista um estudo dos órgãos do conhecimento isto é dos sentidos exteriores os cinco sentidos usuais e dos sentidos interiores senso comum fantasia memória não difere em nada do estudo dos órgãos da respiração ou da digestão A alma é um objeto natural de estudo uma forma da hierarquia das formas mesmo se sua função essencial é o conhecimento das formas A ciência da alma é uma província da filosofia no seu sentido originário e universal de teoria da natureza 4 LUnité de la Psychologie PUF Paris 1949 5 Teleologia do grego télos fim e logos discurso ciência Discurso sobre a finalidade das coisas e dos seres 6 Metafísica do grego méta além ou depois et phusiké física natureza 7 Aristóteles distingue em toda coisa dois aspectos uma forma que faz com que a coisa seja o que ela é e uma matéria que é o suporte da forma Por exemplo a matéria de uma estátua de Zeus é o bloco de mármore no qual ela foi esculpida sua forma o conjunto das determinações que lhe permitem representar o deus grego A matéria é portanto essencialmente indeterminação um bloco de mármore pode se tornar estátua ou outra coisa A matéria é portanto potência virtualidade Existir em potência se opõe a existir em ato ou seja segundo uma forma realizada O bloco de mármore é a estátua de Zeus em potência mas a obra terminada é a estátua de Zeus em ato Cf CLÉMENT Élisabeth et alii 1994 Pratique de la Philosophie de A à Z Paris Hatier 8 cf Scipion Du Pleix Corps de Philosophie contenant la Logique la Physique la Métaphysique et lEthique Genebra 1986 1ª ed Paris 1607 sobre as localizações cerebrais durante os sessenta primeiros anos do século XIX até Broca 1824188016 inclusive Em suma como psicofisiologia e psicopatologia a psicologia remonta ainda atualmente ao século II II A psicologia como ciência da subjetividade O declínio da física aristotélica no século XVII marca o fim da psicologia como parafísica como ciência de um objeto natural e correlativamente o nascimento da psicologia como ciência da subjetividade Os verdadeiros responsáveis pelo advento da psicologia moderna como ciência do sujeito pensante são os físicos mecanicistas17 do século XVII18 Se a realidade do mundo não é mais confundida com o conteúdo da percepção se a realidade é obtida e colocada pela redução das ilusões da experiência sensível usual a depreciação qualitativa desta experiência engaja pelo fato de que ela é possível como falsificação do real a responsabilidade própria do espírito isto é do sujeito da experiência enquanto ele não se identifica com a razão matemática e mecânica instrumento da verdade e medida da realidade Mas esta responsabilidade é aos olhos do físico uma culpabilidade A psicologia se constitui pois como um empreendimento de desculpa do espírito Seu projeto é o de uma ciência que face à física explica porque o espírito é por natureza obrigado a enganar inicialmente a razão relativamente à realidade A psicologia se faz física do sentido externo para dar conta dos contrasentidos de que a física mecanicista acusa o exercício dos sentidos na função de conhecimento A A FÍSICA DO SENTIDO EXTERNO A psicologia ciência da subjetividade começa pois como psicofísica19 por dois motivos Primeiramente porque ela não pode ser menos que uma física para ser levada a sério pelos físicos Em segundo lugar porque ela deve procurar numa natureza isto é na estrutura do corpo humano a razão de existência dos resíduos irreais da experiência humana Mas não se trata aí portanto de um retorno à concepção antiga de uma ciência da alma ramo da física A nova física é um cálculo A psicologia tende a imitála Ela procurará determinar constantes quantitativas da sensação e das relações entre estas constantes 16 Paul Broca seguindo Gall foi um dos grandes mestres da craniometria Sua crença mais preciosa era a de que o tamanho do cérebro revelava o grau de inteligência Mas outras crenças inundavam suas idéias e conclusões científicas O rosto prognático projetado para frente a cor de pele mais ou menos negra o cabelo crespo e a inferioridade intelectual o social estão freqüentemente associados enquanto a pele mais ou menos branca o cabelo liso e o rosto ortognático reto constituem os atributos normais dos grupos mais elevados na escala humana Para determinar o que chamava de capacidade craniana Broca desenvolveu um método objetivo mas ajustado a uma fórmula definida as raças humanas podiam ser hierarquizadas numa escala linear de valor intelectual Cf JAYGOULD Stephen A Falsa Medida do Homem São Paulo Martins Fontes 199117 Mecanicismo do grego mechane máquina Em sentido estrito designa a teoria que se desenvolveu ao longo do século XVII segundo a qual devese considerar os seres vivos como máquinas para explicálos cientificamente Em sentido lato referese à explicação do vivo por sua redução às propriedades físicoquímicas da matéria18 cf Aron Gurwitsch Developpement historique de la GestaltPsychologie in Thales Ano 2 1935 págs 16717519 Psicofísica estudo das relações funcionais entre a mente e os fenômenos físicos René Descartes 1591165020 e Nicolas Malebranche 1638171521 são aqui os chefes Em Regras para a direção do espírito XII Descartes propõe a redução das diferenças qualitativas entre dados sensoriais a uma diferença de figuras geométricas Tratase aqui dos dados sensoriais enquanto são no sentido próprio do termo as informações de um corpo por outros corpos o que é informado pelos sentidos externos é um sentido interno a fantasia que não é senão um corpo real e figurado Na Regra XIV Descartes trata expressamente do que Emmanuel Kant 1724180422 chamará de a grandeza intensiva das sensações Crítica da Razão Pura Analítica transcendental antecipação da percepção as comparações entre luzes entre sons etc não podem ser convertidas em relações exatas senão por analogia com a extensão do corpo figurado Se se acrescenta que Descartes embora ele não seja propriamente o inventor do termo e do conceito de reflexo pelo menos afirmou a constância da ligação entre a excitação e a reação vêse que uma psicologia compreendida como física matemática do sentido externo começa com ele para chegar a Fechner23 graças à ajuda de fisiologistas como Hermann Helmholtz 18211894 24 Esta variedade de psicologia é ampliada por Wilhem Wundt 1832192025 para as dimensões de uma psicologia experimental sustentada nos seus trabalhos pela esperança de fazer aparecer nas leis dos fatos de consciência um determinismo analítico do mesmo tipo que aquele do qual a mecânica e a física deixam esperar de toda ciência a universal validade 20 Descartes pretendia unificar os conhecimentos segundo o princípio de uma ordem matemática universal Esta unidade do saber se funda não sobre a unidade da natureza mas sobre a unidade do espírito que se aplica do mesmo modo à diversidade de seus objetos Para Descartes o importante é primeiramente o método que permita submeter o conjunto dos conhecimentos a uma ordem única da razão No Discurso do Método o filósofo enuncia as quatro regras ou preceitos do método A evidência é o princípio deste método ela consiste em só admitir como verdade aquilo que se imponha a um espírito atento de tal modo que seja impossível duvidar As outras três regras concernem à aplicação do método 1 a análise permite dividir as dificuldades em parcelas para melhor resolvêlas 2 a síntese consiste em progredir do simples do mais facilmente conhecido ao complexo ou mais composto e 3 a recapitulação pela qual devese recorrer toda a cadeia de razões para permitir ao espírito representála de um só lance A evidência permanece o modelo de toda verdade ou bem ela é evidente podendo ser apreendida por intuição ou bem ela é deduzida a partir das evidências conforme à terceira regra do método O melhor modo de por o indubitável em evidência é submeter as pretensas verdade a uma dúvida sistemática recusando toda herança toda verdade preestabelecida a fim de assegurar definitivamente sobre bases inabaláveis toda ciência futura A primeira certeza que a dúvida vai revelar é o pensamento cogito eu penso Inicialmente a dúvida não pode abalar a certeza de que eu existo eu sou pois ela a supõe se duvido é porque existo Depois sendo a dúvida uma modalidade de pensamento só posso estar certo de minha existência por que penso penso logo sou E finalmente concluo que sou uma alma definida não como um obscuro princípio de vida mas como uma coisa ou substância pensante a res cogitans A presença imediata a si do sujeito pensante ou seja a consciência tornase o fundamento de toda verdade possível Cf CLÉMENT Élisabeth et alii 1994 Pratique de la Philosophie de A à Z Paris Hatier21 Para Malebranche a verdadeira filosofia é a religião pois a verdade é Deus A razão universal e infinita é a marca de Deus no homem A afirmação do caráter divino da razão não é nova mas com Malebranche ela se torna o ponto de partida de uma doutrina de um conhecimento racional e sensível em Deus Deus tem em si as idéias os arquétipos de todas as coisas criadas É em Deus que nós conhecemos e sentimos As sensações são o resultado ou o efeito das idéias que Deus imprime em nossa alma Em conseqüência a origem de nossas idéias é inteira e imediatamente divina Daí resulta que a existência do mundo material não afeta em nada nosso conhecimento sendo a rigor indemonstrável Pois a percepção que temos da matéria e dos corpos começando pelo nosso é o resultado da ação de Deus em nós que imprime diretamente sobre nossa alma as sensações ligadas ao corpo segundo a lei geral da união entre alma e corpo Cf CLÉMENT Élisabeth et alii 1994 Pratique de la Philosophie de A à Z Paris Hatier22 O projeto da filosofia kantiana é ser uma crítica ou seja ser o exame dos poderes da razão e a definição do domínio no interior do qual estes poderes podem ser legitimamente exercidos Sua filosofia pode igualmente ser classificada de transcendental ou seja interroga as condições de possibilidade do conhecimento razão teórica e da ação razão prática Kant distingue duas grandes faculdades do espírito humano a sensibilidade e o entendimento Pela primeira os objetos nos são dados nas intuições sensíveis pela segunda eles são pensados postos em relação de modo que exista para nós uma natureza submetida a leis e a uma ordem O conhecimento tem portanto condições subjetivas ligadas ao sujeito cognoscente Kant faz do sujeito o centro do conhecimento o conhecimento dos objetos depende das estruturas a priori da sensibilidade e do entendimento A alma o mundo como totalidade Deus não são para Kant objetos de conhecimento mas idéias da razão Transformar estas idéias em objeto é uma ilusão Cf CLÉMENT Élisabeth et alii 1994 Pratique de la Philosophie de A à Z Paris Hatier23 Fechner físico de formação adotava um ponto de vista monista segundo o qual matéria e espírito são uma mesma realidade A Lei de Fechner uma lei de probabilidade tinha por objetivo definir cientificamente as relações entre as energias físicas e as energias psíquicas Fechner supunha a existência contínua de sensações definíveis indiretamente a partir da sensibilidade diferencial dos sujeitos Cf Encyclopédie Philosophique Universelle Paris PUF 199024 Hermann Ludwig Ferdinand von Helmholtz soube aliar a exigência de medida e de quantificação ao sentido filosófico da unidade da natureza Interessavase particularmente pelos fenômenos de percepção Em 1845 num espírito de cruzada Helmholtz e alguns colegas formam um pequeno grupo cujo objetivo era impor a idéia de que somente as forças físicoquímicas com exclusão de todas as outras agem no organismo Em trinta anos tornamse chefes incontestáveis da medicina e da fisiologia de língua alemã e impõem uma corrente mecanicista e organicista à neurologia e à psicologia a fim de destacálas de qualquer modelo filosófico Realizam assim a união da neurologia e da psicologia Cf ROUDINESCO Elisabeth PLON Michel Dictionnaire de la Psychanalyse Paris Fayard 199725 Em 1879 Wundt criou o primeiro Instituto de Psicologia Experimental cuja finalidade era introduzir a medida objetiva no estudo dos fenômenos psicológicos Segundo seu ponto de vista o objeto de estudo da psicologia é a experiência imediata em contraste com a experiência mediata Wundt entendia por experiência imediata aquela que é usada como meio para conhecer algo distinto da própria experiência O estudo da experiência tinha de ser realizado por introspecção autoobservação controlada do conteúdo da consciência em condições experimentais A psicologia experimental tinha assim três aspectos 1 analisar os processos conscientes em seus elementos 2 descobrir como esses elementos se correlacionavam entre si e 3 determinar as leis de correlação Cf ROUDINESCO Elisabeth PLON Michel Dictionnaire de la Psychanalyse Paris Fayard 1997 e MARX Melvin H HILLIX William a Sistemas e teorias em Psicologia São Paulo Cultrix 1997 B A CIÊNCIA DO SENTIDO INTERNO Mas a ciência da subjetividade não se reduz à elaboração de uma física do sentido externo ela se propõe e se apresenta como a ciência da consciência de si ou a ciência do sentido interno É do século XVIII que data o termo Psicologia tendo o sentido de ciência do eu Toda a história desta psicologia pode se escrever como a dos contrasentidos dos quais as Meditações foram a ocasião sem ter sua responsabilidade Quando Descartes no início da Meditação III considera seu interior para tentar se tornar mais conhecido e mais familiar a si mesmo esta consideração visa ao Pensamento O interior cartesiano consciência do Ego cogito é o conhecimento direto que a alma tem dela mesma enquanto entendimento puro As Meditações são chamadas por Descartes metafísicas porque elas pretendem atingir diretamente a natureza e a essência do Eu penso na apreensão imediata de sua existência A meditação cartesiana não é uma confidência pessoal A reflexão que dá ao conhecimento do Eu o rigor e a impessoalidade das matemáticas não é esta observação de si que os espiritualistas no começo do século XIX não temerão fazer patrocinar por Sócrates 470399 AC26 a fim de que M PierrePaul RoyerCollard 1763184527 possa dar a Napoleão I a certeza de que o Conheçate o Cogito e a Introspecção fornecem ao trono e ao altar seu fundamento inexupgnável O interior cartesiano não tem nada de comum com o sentido interno dos aristotélicos que concebe seus objetos interiormente e dentro da cabeça28 e do qual se viu que Descartes o considera como um aspecto do corpo Regra XIII Eis porque Descartes diz que a alma se conhece diretamente e mais facilmente que o corpo Eis aí uma afirmação da qual se ignora freqüentemente a intenção polêmica explícita porque segundo os aristotélicos a alma não se conhece diretamente O conhecimento da alma não é direto mas somente por reflexão Porque a alma é semelhante ao olho que vê tudo e não pode se ver senão pela reflexão como num espelho e a alma de maneira semelhante não se vê e não se conhece senão pela reflexão e por reconhecimento de seus efeitos29 Tese que suscita a indignação de Descartes quando Gassendi 1592165530 a retoma nas suas objeções contra a Meditação III e a qual ele responde Não é o olho que se vê nem o espelho mas o espírito o qual só ele conhece o espelho e o olho e a si mesmo Ora esta réplica não liquida este argumento escolástico31 Maine de Biran 1766182432 o volta uma vez mais contra Descartes no seu Memória sobre a decomposição do pensamento A Comte 1798185733 o invoca contra a possibilidade de 26 O que se conhece da filosofia de Sócrates já que ele não escreveu nada Platão o fez o personagem principal da maioria de suas Diálogos mas não é fácil discernir o que pertence ao Sócrates verdadeiro e o que é o pensamento próprio de Platão Nós só conhecemos a filosofia de Sócrates indiretamente através de tradições múltiplas e contraditórias De qualquer modo Sócrates parece Terse preocupado principalmente com as questões morais contrariamente aos físicos présocráticos tendo sido o instigador de um empreendimento essencialmente crítico Ele não propõe nenhuma doutrina pessoal e proclama que sua sabedoria é negativa ele sabe que nada sabe mas este saber é superior aos falsos saberes Seu objetivo parece ter sido ao longo de todas as suas conversações com os cidadãos interrogálos sobre o que eles acreditavam saber e colocandoos em contradição com eles mesmos estilhaçava suas convicções tal é sabedoria socrática que consiste em suma em provocar em outrem esta sabedoria negativa É assim que é preciso compreender o conhecete a ti mesmo que foi a máxima socrática Não é um convite à introspecção psicológica mas a tradução da preocupação em fazer cada um o juiz pessoal de seus pensamentos Terá sido este o motivo de sua condenação à morte Em todo caso é esta crítica das opiniões que faz dele o verdadeiro iniciador do procedimento filosófico Cf CLÉMENT Élisabeth et alii 1994 Pratique de la Philosophie de A à Z Paris Hatier27 Homem político e filósofo francês Advogado exercerá um papel político importante na Revolução Cf Encyclopédie Philosophique Universelle Paris PUF 199028 Scipion Du Pleix op cit Physique pág 43929 Ibid pág 35330 Pierre Gassendi escreve uma de suas obras para objetar Descartes a Pesquisa Metafísica Nela o filósofo postula que é impossível e inútil fundar as evidências intuitivas sejam elas instantâneas como o penso logo sou ou discursivas como no encadeamento das razão O Cogito é criticado de um ponto de vista lógico em nome do princípio segundo o qual não sabemos o que não sabemos nada permite afirmar que uma coisa seja tal qual ela nos aparece na evidência racional Que nós pensemos que o eu que pensa seja somente uma substância pensante não se segue necessariamente que ele o seja Cf Encyclopédie Philosophique Universelle Paris PUF 199031 Escolástica doutrinas teológicofilosóficas dominantes na Idade Média dos séc IX ao XVII caracterizadas sobretudo pelo problema da relação entre a fé e a razão problema que se resolve pela dependência do pensamento filosófico representado pela filosofia grecoromana da teologia cristã32 FrançoisPierre Gonthier de Biran publicou muito pouco ao longo de sua vida Numa de suas obras Decomposição do Pensamento Biran começa perguntandose qual é o fundamento de todo conhecimento de toda existência percebida ou noutras palavras qual o fato primitivo do sentido íntimo Para ser verdadeiramente primitivo ele deve ser condicionante e não condicionado Para ser um fato deve envolver uma relação entre dois termos um sujeito que conhece e um objeto que é conhecido A sensação cara a Condillac pode representar este papel Não porque ainda não haveria um eu que pudesse dizer eu sinto Seria então necessário começar com o eu sou de Descartes Com certeza mas com a condição de que o eu sou não seja identificado ao eu penso ao eu sou uma substância pensante Ter consciência de existir é existir para si mas ser uma substância é ser em si A dualidade envolvida na noção de fato é absorvida aqui na unidade Cf Encyclopédie Philosophique Universelle Paris PUF 1990 introspecção isto é contra este método de conhecimento de si que faz da psicologia a propedêutica científica da metafísica justificando pela via experimental as teses tradicionais do substancialismo espiritualista É que se desconheceu o ensinamento de Descartes ao mesmo tempo constituindo contra ele uma psicologia empírica como história natural do eu de Locke a Ribot 18391916 através de Étienne Bonnot de Condillac 17151780 e constituindo segundo ele acreditavase uma psicologia racional fundada na intuição de um Eu substancial Kant guarda ainda hoje a glória de ter estabelecido que se Wolff 16791754 pôde batizar estes recémnascidos póscartesianos Psychologia empirica 1732 Psychologia rationalis 1734 ele nem por isso conseguiu fundar suas pretensões à legitimidade Kant mostra que de um lado o sentido interno fenomenal não é senão uma forma da intuição empírica que ele tende a se confundir com o tempo que por outro lado o eu sujeito de todo julgamento de apercepção é uma função de organização da experiência mas do qual não poderia haver ciência uma vez que ele é a condição transcendental de toda ciência Os Primeiros princípios metafísicos da Ciência da Natureza 1786 contestam à psicologia o alcance de uma ciência seja à imagem das matemáticas seja à imagem da física Não há psicologia matemática possível no sentido em que existe uma física matemática Mesmo se se aplicasse às modificações do sentido interno em virtude da antecipação da percepção relativa às grandezas intensivas as matemáticas do continuo não se obteria nada de mais importante do que seria uma geometria limitada ao estudo das propriedades da linha reta Também não há psicologia experimental no sentido em que a química se constitui pelo uso da análise e da síntese Nós não podemos nem sobre nós mesmos nem sobre o outro fazer experiências E a observação interna altera seu objeto Querer se surpreender a si mesmo na observação de si conduziria à alienação A psicologia não pode pois ser senão descritiva Seu lugar verdadeiro é numa Antropologia como propedêutica de uma teoria da habilidade e da prudência coroada por uma teoria da sabedoria C A CIÊNCIA DO SENTIDO ÍNTIMO Se chama psicologia clássica àquela que se pretende refutar é preciso dizer que em psicologia há sempre clássicos para alguém Os Ideólogos herdeiros dos sensualistas podiam ter como clássica a psicologia escocesa que não propugnava como eles um método indutivo senão para melhor afirmar contra eles a substancialidade do espírito Mas a psicologia atomística e analítica dos sensualistas e dos Ideólogos antes de ser rejeitada como psicologia clássica pelos teóricos da Gestalt era já tida como tal por um psicólogo romântico como Maine de Biran Para ele a psicologia se torna a técnica do Diário íntimo e a ciência do sentido íntimo A solidão de Descartes era a ascese de um matemático A solidão de Maine de Biran a ociosidade de um subprefeito O Eu penso cartesiano funda o pensamento em si O Eu quero biraniano funda a consciência para si contra a exterioridade No seu escritório calefetado Maine de Biran descobre que a análise psicológica não consiste em simplificar mas em complicar que o fato psíquico primitivo não é um elemento mas já uma relação que esta relação é vivida no esforço Ele chega a duas conclusões inesperadas para um homem cujas funções são as de autoridade isto é comando a consciência requer o conflito de um poder e de uma resistência o homem não é como pensou de Bonald 17541840 uma inteligência servida por órgãos mas uma organização viva servida por uma inteligência É necessário à alma ser encarnada e portanto não há psicologia sem biologia A observação de si não dispensa o recurso à fisiologia do movimento voluntário nem à patologia da afetividade A situação de Maine de Biran é única entre os dois RoyerCollard Ele dialogou com o doutrinário e foi julgado pelo psiquiatra Nós temos de Maine de Biran um Passeio com M RoyerCollard nos jardins do Luxemburgo e nós temos de AntoineAthanase RoyerCollard irmão do precedente um Exame da Doutrina de Maine de Biran Se Maine de Biran não tivesse lido e discutido Cabanis 17571808 Relações do físico e do moral do homem 1798 se ele não tivesse lido e discutido Bichat 17711802 Pesquisas sobre a vida e a morte 1800 a história da psicologia patológica o ignoraria o que ela não pode O segundo RoyerCollard é depois de Pinel 17451826 e com Esquirol 17721840 um dos fundadores da Escola francesa de psiquiatria Pinel se bateu pela idéia de que os alienados são ao mesmo tempo doentes como os outros nem possessos nem criminosos e diferentes dos outros portanto devendo ser cuidados separadamente dos outros e separadamente segundo os casos em serviços hospitalares especializados Pinel fundou a medicina mental como disciplina independente a partir do isolamento terapêutico dos alienados em Bicêtre e na Salpêtrière RoyerCollard imita Pinel na Maison Nationale de Charenton da qual ele se tornou o médicochefe em 1805 o mesmo ano em que Esquirol sustentou a tese de medicina sobre as Paixões consideradas como causas sintomas e meios curativos da alienação mental Em 1816 RoyerCollard se tornou professor de medicina legal na Faculdade de Medicina de Paris e depois em 1821 primeiro titular da cátedra de medicina mental RoyerCollard e Esquirol tiveram como aluno Calmeil que estudou a paralisia nos alienados Bayle que reconheceu e isolou a paralisia geral Félix Voisin que criou o estudo do retardamento mental nas crianças E foi na Salpêtrière que depois de Pinel Esquirol Lelut Baillarger e Falret entre outros Charcot se tornou em 1862 chefe de um serviço cujos trabalhos serão seguidos por Théodule Ribot Pierre Janet o Cardeal Mercier e Sigmund Freud Nós vimos a psicopatologia começar positivamente com Galeno nós a vimos chegar a Freud criador em 1896 do termo psicanálise A psicopatologia não se desenvolveu sem relação com as outras disciplinas psicológicas A partir das pesquisas de Biran ela obriga a filosofia a se perguntar depois de mais de um século a qual dos RoyerCollard ela deve tomar emprestada a idéia que é preciso ter da psicologia Assim a psicopatologia é ao mesmo tempo juiz e parte no debate ininterrupto do qual a metafísica legou a direção à psicologia sem no entanto renunciar a dizer sua palavra sobre as relações do físico e do psíquico Esta relação foi durante muito tempo formulada como somatopsíquica antes de se tornar psicossomática Esta inversão é a mesma aliás que aquela que se operou na significação dada ao inconsciente Se se identifica psiquismo e consciência autorizandose com Descartes certo ou errado o inconsciente é de ordem física Se se pensa que algo do psíquico pode ser inconsciente a psicologia não se reduz à ciência da consciência O psíquico não é mais somente o que está escondido mas o que se esconde aquilo que se esconde ele não é mais somente o íntimo mas também segundo um termo retomado por Bossuet 16271704 aos místicos o abissal A psicologia não é mais somente a ciência da intimidade mas a ciência das profundezas da alma III A psicologia como ciência das reações e do comportamento Propondo definir o homem como organização viva servida por uma inteligência Maine de Biran marcava de saída melhor parece do que Gall para quem segundo Lelut 18041877 o homem não é mais uma inteligência mas uma vontade servida por órgãos o terreno sobre o qual iria se constituir no século XIX uma nova psicologia Mas ao mesmo tempo ele designava seus limites uma vez que no seu Antropologia ele situava a vida humana entre a vida animal e a vida espiritual O século XIX vê se constituir ao lado da psicologia como patologia nervosa e mental como física do sentido externo como ciência do sentido interno e do sentido íntimo uma biologia do comportamento humano Às razões deste advento nos parecem ser as seguintes Inicialmente razões científicas saber a constituição de uma Biologia como teoria geral das relações entre os organismos e os meios e que marca o fim da crença na existência de um reino humano separado em seguida razões técnicas e econômicas saber o desenvolvimento de um regime industrial orientando a atenção para o caráter industrioso da espécie humana e que marca o fim da crença na dignidade do pensamento especulativo finalmente razões políticas que se resumem no fim da crença nos valores do privilégio social e na difusão do igualitarismo a constrição e a instrução pública tornandose negócio de estado a reivindicação de igualdade diante dos cargos militares e funções civis a cada um segundo o seu trabalho ou suas obras ou seus méritos são os fundamentos reais embora freqüentemente despercebidos de um fenómeno próprio das sociedades modernas a prática generalizada especialidade no sentido amplo como determinação da competência e despistamento da simulação Ora o que caracteriza segundo nós esta psicologia dos comportamentos em relação aos outros tipos de estudos psicológicos é sua incapacidade constitucional de aprender e exibir na claridade seu projeto instaurador Se entre os projetos instauradores de certos tipos anteriores de psicologia alguns podem passar por contrasensos filosóficos aqui ao contrário toda relação com uma teoria filosófica sendo recusada se coloca a questão de saber de onde uma tal pesquisa psicológica pode tirar seu sentido Aceitando se tornar no padrão da biologia uma ciência objetiva das atitudes das reações e do comportamento esta psicologia e estes psicólogos esquecem totalmente de situar seu comportamento específico em relação às circunstâncias históricas e aos meios sociais nos quais eles são levados a propor seus métodos ou técnicas e fazer aceitar seus serviços Nietzsche 18441900 esboçando a psicologia do psicólogo no século XIX escreve Nós psicólogos do futuro consideramos quase como um sinal de degenerescência o instrumento que quer se conhecer a si mesmo nós somos os instrumentos do conhecimento e gostaríamos de ter toda a ingenuidade e a precisão de um instrumento portanto nós não devemos nos analisar a nós mesmos nos conhecer Surpreendente malentendido e tão revelador O psicólogo não quer ser senão um instrumento sem procurar saber de quem ou de que ele é instrumento Nietzsche pareceu mais inspirado quando no início da Genealogia da Moral ele se debruçou sobre o enigma que representam os psicólogos ingleses isto é os utilitaristas preocupados com a gênese dos sentimentos morais Ele se perguntava então o que havia conduzido os psicólogos na direção do cinismo na explicação das condutas humanas pelo interesse a utilidade e pelo esquecimento destas motivações fundamentais E eis que diante da conduta dos psicólogos do século XIX Nietzsche renuncia a todo cinismo por provisão isto é a toda lucidez A idéia de utilidade como princípio de uma psicologia dizia respeito à tomada de consciência filosófica da natureza humana como poder de artifício mais prosaicamente a definição do homem como fabricante de ferramentas Mas o princípio da psicologia biológica do comportamento não parece terse destacado da mesma forma de uma tomada de consciência filosófica explícita sem dúvida porque ele não pode ser operado senão com a condição de permanecer nãoformulado Este princípio é a definição do próprio homem como ferramenta Ao utilitarismo que implica a idéia da utilidade para o homem a idéia do homem juiz da utilidade sucedeu o instrumentalismo implicando a idéia de utilidade do homem a idéia do homem como meio de utilidade A inteligência não é o que faz os órgãos e se serve deles mas o que serve aos órgãos E não é impunemente que as origens históricas da psicologia da reação devem ser procuradas nos trabalhos suscitados pela descoberta da equação pessoal própria aos astrônomos que utilizam o telescópio Maskelyne 1796 O homem foi estudado de início como instrumento do instrumento científico antes de ser como instrumento de todo instrumento As pesquisas sobre as leis da adaptação e da aprendizagem sobre a relação da aprendizagem e das atitudes sobre a detecção e a medida das aptidões sobre as condições do rendimento e da produtividade quer se trate de indivíduos ou de grupos pesquisas inseparáveis de suas aplicações na seleção e na orientação admitem todas um postulado implícito comum a natureza do homem é de ser ferramenta sua vocação é ser colocado no seu lugar na sua tarefa Evidentemente Nietzsche tem razão ao dizer que os psicólogos querem ser os instrumentos ingênuos e precisos deste estudo do homem Eles se esforçaram por chegar a um conhecimento objetivo embora o determinismo que eles procuram nos comportamentos não seja mais atualmente o determinismo de tipo newtoniano52 familiar aos primeiros físicos do século XIX mas antes um determinismo estatístico progressivamente baseado nos resultados da biometria Mas finalmente qual é o sentido deste instrumentalismo à segunda potência O que é que empurra ou inclina os psicólogos a se fazerem entre os homens os instrumentos de uma ambição de tratar o homem como um instrumento Nos outros tipos de psicologia a alma ou o sujeito forma natural ou consciência de interioridade é o princípio que se dá para justificar em valor uma certa idéia do homem em relação com a verdade da coisas Mas para uma psicologia onde a palavra alma faz fugir e a palavra consciência rir a verdade do homem é dada no fato de que não há mais idéias do homem enquanto valor diferente do de ferramenta Ora é preciso reconhecer que para que se possa tratar de uma idéia de ferramenta é preciso que toda idéia não seja colocada no nível da ferramenta e que para poder atribuir a uma ferramenta algum valor é necessário precisamente que todo valor não seja o de uma ferramenta cujo valor subordinado consiste em proporcionar algum outro Se pois o psicólogo não toma seu projeto de psicologia numa idéia do homem acredita ele poder legitimálo pelo seu comportamento de utilização do homem Nós dizemos bem pelo seu comportamento de utilização apesar de duas objeções possíveis Podese observar evidentemente que este tipo de psicologia não ignora a distinção entre a teoria e a aplicação de outro lado que a utilização não é parte do psicólogo mas daquele ou daqueles que lhe pedem relatórios ou diagnósticos Nós responderemos que a menos que se confundam o teórico da psicologia e o professor de psicologia devese reconhecer que o psicólogo contemporâneo é na maioria das vezes um prático profissional cuja ciência é totalmente inspirada na pesquisa das leis da adaptação a um meio sóciotécnico e não a um meio natural o que confere sempre a estas operações de medida uma significação de apreciação e um alcance de perícia De sorte que o comportamento do psicólogo do comportamento humano enfeixa quase obrigatoriamente uma convicção de superioridade uma boa consciência dirigista uma mentalidade de empresário das relações do homem com o homem E eis porque é preciso voltar à questão cínica quem designa os psicólogos como instrumentos do instrumentalismo Como se reconhece aqueles entre os homens que são dignos de designar ao homeminstrumento seu papel e sua função Quem orienta os orientadores Nós não nos colocamos isto é claro no terreno das capacidades e da técnica Que haja bons e maus psicólogos isto é técnicos hábeis depois da aprendizagem ou malfazejos por tolice não sancionada pela lei não é a questão A questão é que uma ciência ou uma técnica científica não contêm por elas mesmas nenhuma idéia que lhes confira seu sentido Na sua Introduction à la Psychologie Paul Guillaume fez a psicologia do homem submetido a um teste O testado se defende de uma investigação ele teme que se exerça sobre ele uma ação Guillaume vê neste estado de espírito um reconhecimento implícito da eficácia do teste Mas se poderia ver nisso também um embrião de psicologia do testador A defesa do testado é a repugnância de se ver tratado como um inseto por um homem no qual ele não reconhece nenhuma autoridade para lhe dizer o que ele é e o que ele deve fazer Tratar 52 Determinismo do latim terminus limite borda Relação necessária entre uma causa e seu efeito Sistema de causas e efeitos que mantém entre eles relações necessárias O sentido metafísico doutrina segundo a qual o conjunto do real é um sistema de causas e de efeitos necessários incluindo aquilo que aparenta de modo ilusório derivar da liberdade ou da vontade A noção de determinismo fundamenta a idéia de lei física Ela coloca que é possível formular uma laço tal que uma ou várias causas sendo dadas tais efeitos se seguem necessariamente O determinismo não deve ser confundido coma simples causalidade que estabelece também uma ligação entre dois acontecimentos com o primeiro produzindo o segundo sem que tal relação seja apresentada como necessária pois a mesma causa poderia produzir um outro efeito mesmo um efeito contrário O determinismo se opõe portanto às relações de causalidade devidas ao acaso ou à liberdade como um inseto a palavra é de Stendhal 1783184253 que a toma de Cuvier 1769183254 55 E se nós tratássemos o psicólogo como inseto se nós aplicássemos por exemplo ao morno e insípido Kinsey a recomendação de Stendhal Em outras palavras a psicologia de reação e de comportamento nos séculos XIX e XX acreditou se tornar independente separandose de toda filosofia isto é da especulação que procura uma idéia do homem olhando além dos dados biológicos e sociológicos Mas esta psicologia não pode evitar a recorrência de seus resultados sobre o comportamento daqueles que os obtêm E a questão Que é a psicologia na medida em que se impede a filosofia de procurar sua resposta se torna Onde querem chegar os psicólogos fazendo o que eles fazem Quando Gedeão recruta o comando israelita à frente do qual ele reconduz os medianitas para além do Jordão A Bíblia Juizes Livro VII ele utiliza um teste de dois graus que lhe permite ficar com dez mil homens em trinta e dois mil e depois trezentos em dez mil Mas este teste deve ao Eterno o fim de sua utilização e o processo de seleção utilizado Para selecionar um selecionador é preciso normalmente transcender o plano dos procedimentos técnicos de seleção Na imanência da psicologia científica a questão permanece quem tem não a competência mas a missão de ser psicólogo A psicologia repousa bem sobre um desdobramento mas não é mais o da consciência segundo os fatos e as normas que comportam a idéia do homem é o de uma massa de sujeitos e de uma elite corporativa de especialistas investindose eles próprios de sua própria missão Em Kant e em Maine de Biran a psicologia se situa numa Antropologia isto é apesar da ambigüidade atualmente muito na moda deste termo numa filosofia Em Kant a teoria geral da habilidade humana permanece em relação com uma teoria da sabedoria A psicologia instrumentalista se apresenta como uma teoria geral da habilidade fora de toda referência à sabedoria Se nós não podemos definir esta psicologia por uma idéia do homem isto é situar a psicologia na filosofia nós não temos o poder evidentemente de impedir a quem quer que seja de se chamar psicólogo e chamar psicologia o que ele faz Mas ninguém pode também impedir à filosofia de continuar a se perguntar sobre o estatuto mal definido da psicologia mal definido do lado das ciências como do lado das técnicas A filosofia se conduz assim com a sua ingenuidade constitutiva tão pouco semelhante à tolice que ela não exclui um cinismo provisório e que a leva a se voltar uma vez mais para o lado popular isto é para o lado nativo dos não especialistas É pois muito vulgarmente que a filosofia coloca para a psicologia a questão dizeime em que direção tendes para que eu saiba o que sois Mas o filósofo pode também se dirigir ao psicólogo sob a forma uma vez que não é costume de um conselho de orientação e dizer quando se sai da Sorbonne pela rue SaintJacques podese subir ou descer se se sobe aproximase do Pantheon que é o Conservatório de alguns grandes homens mas se se desce dirigese certamente para a Chefatura de Polícia 53 Henri Beyle estudava matemática na Escola central de Grenoble o que o leva à Escola politécnica logo abandonada para se dedicar ao teatro Dificuldades financeiras o obrigam a exercer a administração Tendo entrado na Itália com o exército napoleônico ele descobre em Milão a arte italiana e a música de ópera Cf Encyclopédie Philosophique Universelle Paris PUF 1990 54 JeanLéopoldNicolasFrédéric dito Georges Cuvier era pesquisador e professor Desenvolveu a arte dos métodos em zoologia Em lugar de trabalhar passo a passo ele destacou um certo número de linhas diretrizes que ele chamava de princípios ou Leis 1 a lei de subordinação dos órgãos e dos caracteres que permite definir com um rigor crescente as relações entre os órgãos sua cooperação natural a influência preponderante de alguns assim nasce um ramo fundamental da zoologia a ciência das leis de organização animal 2 o princípio de correlação entre os órgãos que permite reconhecer um animal a partir de um elemento fragmentar encontrado abrindo a via para uma ciência nova a das espécies perdidas a paleontologia Tudo isto permitiu a ciência da época desenvolverse de modo espetacular Concernindo à evolução Cuvier reconhecia no tempo geológico uma duração muito longa no curso da qual mutações se produziram mutações que ele atribuía a modificações locais importantes como o clima Ele admitia que antes da criação do homem faunas variadas se sucederam mas sem criações novas as formas atuais não constituiriam mais do que apenas uma parte do conjunto das formas antigas Cf Encyclopédie Philosophique Universelle Paris PUF 1990 55 Em lugar de odiar o pequeno livreiro do burgo vizinho que vende o Almanaque popular dizia eu a meu amigo M de Ranville apliquelhe o remédio indicado pelo célebre Cuvier trateo como um inseto Pesquise quais são seus meios de subsistência tente adivinhar suas maneiras de fazer o amor Mémoires dun Touriste ed CalmannLevy tomo II p 23