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Texto de pré-visualização

Perspectivas Póscoloniais e Decoloniais em Relações Internacionais AUREO TOLEDO Organizador PERSPECTIVAS PÓSCOLONIAIS E DECOLONIAIS EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS O que são perspectivas póscoloniais e decoloniais Quais autores e quais ideias têm ganhando destaque no debate contemporâneo De que forma elas podem contribuir para a área de Relações Internacionais A presente obra dentre outros pontos almeja discutir esses temas mediante dois eixos Na primeira parte a partir de uma revisão das contribuições de autores específi cos pretendemos apontar as potencialidades das perspectivas póscoloniais e decoloniais para temas ligados à área de Relações Internacionais Na segunda parte optamos por discutir criticamente temas centrais das tradições póscoloniais e decoloniais procurando avaliar como tais questões nos possibilitam pensar de maneira original e inovadora não apenas o internacional mas também nosso país e a região onde estamos inseridos Aureo Toledo É professor na graduação e no mestrado acadêmico em Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia É doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo USP com estágios pósdoutorais pela Universidade de Manchester Reino Unido e Universidade George Mason EUA A presente obra é resultado dos trabalhos da rede de pesquisa Colonialidades e Política Internacional criada em 2013 e composta por pesquisadoras e pesquisadores de diversas universidades do país Ao dedicarse exclusivamente a uma discussão contemporânea sobre ideias póscoloniais e decoloniais e suas interfaces com a área de Relações Internacionais Perspectivas Póscoloniais e Decoloniais em Relações Internacionais vem suprir uma lacuna no debate teórico em Relações Internacionais no Brasil somandose a outras obras que vêm procurando adensar a pesquisa e o ensino de Teoria de Relações Internacionais em nosso país Da forma como está organizada será de interesse não apenas daqueles envolvidos na área de Relações Internacionais mas também de interessados em discussões envolvendo as Ciências Humanas de forma geral 9 786556 300924 ISBN 9786556300924 Perspectivas póscoloniais e decoloniais em Relações Internacionaiscapa554x240indd 1 06012021 1919 Perspectivas Póscoloniais e Decoloniais em Relações Internacionais Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 1 14012021 1706 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA Reitor João Carlos Salles Pires da Silva Vicereitor Paulo Cesar Miguez de Oliveira Assessor do Reitor Paulo Costa Lima EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA Diretora Flávia Goulart Mota Garcia Rosa Conselho Editorial Alberto Brum Novaes Angelo Szaniecki Perret Serpa Caiuby Alves da Costa Charbel Niño ElHani Cleise Furtado Mendes Evelina de Carvalho Sá Hoisel Maria do Carmo Soares Freitas Maria Vidal de Negreiros Camargo Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 2 14012021 1706 AUREO TOLEDO Organizador Perspectivas Póscoloniais e Decoloniais em Relações Internacionais Salvador EDUFBA 2021 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 3 14012021 1706 2021 Autores Direitos desta edição cedidos à Edufba Feito o Depósito Legal Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 em vigor no Brasil desde 2009 Capa e Projeto Gráfico Rorigo Oyarzabal Schlabitz Revisão Laina Lisa Normalização Emmanoella Ferreira Sistema de Bibliotecas SIBIUFBA Perspectivas póscoloniais e decoloniais em relações internacionais Aureo Toledo organizador Salvador EDUFBA 2021 288 p 17 cm x 24 cm Contém biografia ISBN 9786556300924 1 Relações internacionais 2 Brasil Relações exteriores 3 Política internacional 4 Póscolonialismo I Toledo Aureo CDD 32781 Elaborada por Jamilli Quaresma CRB5 BA001608O Editora afiliada à Editora da UFBA Rua Barão de Jeremoabo sn Campus de Ondina 40170115 Salvador Bahia Tel 55 71 32836164 wwwedufbaufbabr edufbaufbabr Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 4 14012021 1706 SUMÁRIO PREFÁCIO JOÃO PONTES NOGUEIRA 7 AUTORES PERSPECTIVAS PÓSCOLONIAIS E DECOLONIAIS EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS A PARTE QUE NOS CABE NESSE PERCURSO AUREO TOLEDO 19 AIMÉ CÉSAIRE AS EXCLUSÕES E VIOLÊNCIAS DA MODERNIDADE COLONIAL DENUNCIADAS EM VERSOS MARTA FERNÁNDEZ 35 RESISTÊNCIA POLÍTICA E IMPOSSIBILIDADES DA LIBERDADE ENTRE FRANTZ FANON E ASHIS NANDY LARA MARTIM RODRIGUES SELIS NATÁLIA MARIA FÉLIX DE SOUZA 57 O HUMANISMO CRÍTICO DE EDWARD W SAID MARCOS COSTA LIMA 83 NAEEM INAYATULLAH DAVID BLANEY E A CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA INTERNACIONAL LEONARDO RAMOS RODRIGO CORRÊA TEIXEIRA MARINA SCOTELARO 105 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 5 14012021 1706 DIÁLOGOS E INTERPRETAÇÕES PROBLEMATIZANDO O OUTRO ABSOLUTO DA MODERNIDADE A CRISTALIZAÇÃO DA COLONIALIDADE NA POLÍTICA INTERNACIONAL RAMON BLANCO ANA CAROLINA TEIXEIRA DELGADO 125 PODE O MIGRANTE FALAR UM EXERCÍCIO DE REARRANJAR DESEJOS ESCAVAR O EU E TORNAR DELIRANTE O OUTRO EM NÓS ROBERTO VILCHEZ YAMATO 157 PARA UMA ABORDAGEM FEMINISTA E PÓSCOLONIAL DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO BRASIL LUCIANA MARIA DE ARAGÃO BALLESTRIN 179 INTERPRETAÇÕES DO BRASIL E FORMAÇÃO CONSIDERAÇÕES PARA A EXPOSIÇÃO DE UM LUGAR VICTOR COUTINHO LAGE 205 PENSANDO AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS A PARTIR DA PERIFERIA ANTROPOFAGIA E PERSPECTIVISMO AMERÍNDIO FLAVIA GUERRA CAVALCANTI 239 A SAGA PELO DESENVOLVIMENTO EOU AUTONOMIA NA AMÉRICA LATINA A ASCENSÃO E QUEDA DO BRASIL FRANCINE ROSSONE DE PAULA 259 SOBRE AS AUTORAS E AUTORES 285 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 6 14012021 1706 7 PREFÁCIO JOÃO PONTES NOGUEIRA1 A publicação de Perspectivas Póscoloniais e Decoloniais em Relações Internacionais vem preencher um espaço ainda não suficientemente explora do na literatura teórica em Relações Internacionais no Brasil Composto por contribuições em sua maioria de jovens pesquisadores este volume certa mente entrará para a coleção de títulos indispensáveis para todosas aqueles e aquelas interessadosas em pensar criticamente a política mundial em nos so país Mais ainda o livro é sinal de uma bemvinda e necessária renovação da produção acadêmica em nosso campo e neste caso mais especificamente do vigor de uma geração formada no ambiente intelectual mais inovador e aberto que caracteriza a evolução recente dos estudos internacionais em todo o mundo Como nota Aureo Toledo em sua introdução ao volume os autores procuram interrogar criticamente as bases da disciplina É a partir desta pre missa que inspira a presente obra que aproveito a ocasião do honroso e gentil convite para prefaciála para oferecer algumas observações sobre a importân cia do pensamento póscolonial e decolonial para as Relações Internacionais O lugar que o póscolonialismo ocupa nos estudos internacionais vem crescendo com vigor neste milênio Apoiada na produção de uma geração de intelectuais engajados em repensar as concepções dominantes sobre a gênese a organização e a lógica do sistema internacional moderno uma importante e cada vez mais volumosa produção acadêmica vem transformando nossa 1 Professor de Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais da PUCRio Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 7 14012021 1706 João Pontes Nogueira 8 disciplina Autores como Sanjay Seth Sankaran Krishna Siba Grovogui Achille Mbembe Branwen Gruffydd Jones Geeta Chowdhry Phillip Darby John Hobson Mustapha Pasha Naeem Inayatullah Robbie Shilliam entre outros traduziram para as relações internacionais elementos chave da teoria póscolonial e abriram amplas e novas possibilidades de análise e crítica dos modos e dispositivos de dominação na política mundial O impacto deste movimento intelectual foi tão profundo que hoje pesquisadores de diferen tes orientações e áreas de pesquisa reconhecem o lugar central do encontro colonial na produção do internacional moderno Mesmo em ambientes onde os saberes convencionais da disciplina costumam ser majoritários como a International Studies Association ISA o espaço para painéis e mesas pautadas pela problemática póscolonial cresce em visibilidade e influência Tendência semelhante ainda que variando em grau pode ser encontrada em outras asso ciações científicas como a EISA European International Studies Association e a própria ABRI Associação Brasileira de Relações Internacionais Se por outro lado olharmos para as publicações científicas de ponta na área de RI encontramos uma maior incidência de artigos com referência a teorias pós coloniais e à problemática da colonialidade em periódicos europeus relati vamente aos norteamericanos como por exemplo na revista Millennium Da mesma forma manuais e coletâneas didáticas editados por pesquisadores situados fora dos Estados Unidos frequentemente incluem seções e capítu los dedicados às abordagens póscoloniais e suas agendas de pesquisa2 Este crescimento em particular em publicações de orientação mais crítica publica das na Europa fez com que alguns observadores apontassem para uma certa normalização do marco analítico póscolonial em artigos de pesquisa sobre precariedade migrações movimentos sociais resistências segurança entre outros De certa forma em alguns subcampos bastante dinâmicos da disci plina a mediação de conceitos de dominação discriminação ou exclusão ar ticulados a partir de releituras da experiência colonial parecem ser de rigueur para conferir efetividade e credibilidade a críticas às estruturas de poder da política mundial contemporânea 2 Um bom exemplo é o manual de EDKINS J ZEHFUSS M Global politics a new intro duction London Taylor Francis Group New York Routledge 2019 p xxviii 613 p Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 8 14012021 1706 Prefácio 9 Apesar do panorama favorável descrito acima em termos muito gerais não é ainda possível dizer que o póscolonialismo é uma corrente teórica re conhecida no campo das Relações Internacionais O que se vê por outro lado é um intenso engajamento com a tradição intelectual originada pelo trabalho de Said Bhabha Spivak e pela escola de Estudos Subalternos entre outros cuja influência maior aparece na história na sociologia na teoria social na filosofia política e nos estudos culturais A partir da mobilização deste arca bouço teóricoanalítico e de ideias fundamentais como a de provincializar a Europa formulouse uma crítica a alguns dos pressupostos centrais da disciplina A recepção da escola decolonial latinoamericana difere bastante do ponto de vista da linhagem intelectual e dos lugares de enunciação nas ciências sociais como noto um pouco à frente De forma semelhante à sua trajetória nas humanidades e nas ciências sociais o póscolonialismo nas Relações Internacionais é frequentemente tratado como um discurso ou um conjunto relativamente fluido de saberes influenciados pelo marxismo pelo pósestruturalismo e pelo feminismo e voltado para o estudo de relações de dominação e resistência para questões epistemológicas associadas às condi ções de produção de conhecimento e a formas alternativas de engajamento e ação política Seu escopo é abrangente ecumênico plural indo dos estudos culturais à história da teoria política à psicanálise Neste sentido quando fa lamos em teoria póscolonial não devemos pensar em termos de paradigmas ou de um corpo de conceitos e métodos voltado para a análise de processos e problemas mais ou menos circunscritos a esferas específicas da vida das sociedades modernas Avesso ao conhecimento institucionalizado e sempre problematizando o espaço da teoria o pensamento póscolonial ficaria sufocado por requisitos disciplinares e canônicos Talvez por esta razão não surpreenda sua ausên cia em artigos e pesquisas que buscam mapear a diversidade teórica da dis ciplina Em sua ampla survey sobre a nova dissidência nas RI nos Estados Unidos Inanna HamatiAtaya por exemplo elenca 49 paradigmasteorias abordagens às quais os respondentes da pesquisa se filiavam Teorias pós coloniais e decoloniais não constavam da lista3 Por outro lado em seu ma 3 HAMATIATAYA I Contemporary Dissidence in American IR The New Structure of An tiMainstream Scholarship International Studies Perspectives S l v 12 p 362398 2011 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 9 14012021 1706 João Pontes Nogueira 10 peamento das orientações de pesquisadores na América Latina Rafael Villa e Maria Carolina Pimenta empregam uma classificação baseada em seis pa radigmas sem considerar o póscolonialismo ou decolonialismo entre eles4 Estes dois exemplos ainda que pontuais sugerem que mesmo em um con texto de maior diversidade e pluralidade na disciplina dos Estados Unidos e na América Latina a questão colonial não tem grande penetração conceitual na formulação e análise de problemas de política internacional mesmo entre pesquisadores críticos ao mainstream da disciplina Do mesmo modo esta ob servação nos convida a refletir sobre os caminhos do pensamento crítico em nossa área sua relação com o pensamento póscolonial seus percursos em diferentes partes do mundo e mais particularmente no Brasil A publicação desta coletânea representa uma contribuição fundamental para a promoção deste debate Apesar de sua trajetória às vezes oscilante na disciplina as teorias pós coloniais influenciaram os movimentos de crítica às concepções dominantes do internacional desde pelo menos os anos 1980 Podese afirmar na ver dade que aquela tradição intelectual foi determinante para a articulação de elementos centrais da assim chamada virada crítica Tomemos por exemplo a coletânea Culture Ideology and World Order editada por R B J Walker em 19845 O livro reúne os participantes do projeto World Orders Models Project WOMP um conjunto de intelectuais de ponta de distintas regiões do mundo e de diferentes áreas engajados em debates sobre modos de resis tência e configurações alternativas da ordem mundial durante a década de levou ao fim da Guerra Fria Neste esforço pioneiro de crítica ao cânone do minante da política internacional como tantos que surgiram naquela década que mudou radicalmente nossa disciplina vemos reunidos nomeschave da economia política internacional como Celso Furtado Immanuel Wallerstein e 4 Vide VILLA R D Pimenta M C D S Is International Relations still an American social science discipline in Latin America Opinião Pública S l p 261288 2017 A pesquisa trabalha com o conceito kuhniano de paradigma que tende a limitar a representação da maior diversidade teóricometodológica hoje encontrada na disciplina O percentual sig nificativo de respostas classificadas sob outros e não paradigmáticos no caso do Brasil 34 evidencia tal limite 5 WALKER R B J Culture ideology and world order Boulder Colo Westview Press 1984 p xii 364 p Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 10 14012021 1706 Prefácio 11 Robert Cox junto a pensadores associados à crítica póscolonial como Ashis Nandy Ali Mazrui e Rajni Kothari O foco na cultura e na ideologia como cru ciais em uma análise da ordem mundial baseada em uma mínima sensibili dade crítica p 2 visava evidenciar como os discursos sobre política mundial estavam baseados em experiências particulares de certas formações sociais que se impunham como universais e superiores historicamente Este encontro entre expoentes do pensamento crítico e póscolonial permitiu introduzir de forma incipiente talvez a questão do etnocentrismo como traço constitutivo do internacional moderno É possível dizer que tal projeto tornou possível uma série de contribuições inovadoras para a teoria crítica de RI nos anos e décadas seguintes que de formas distintas exploraram esta interseção entre linhagens intelectuais marxistas pósestruturalistas e póscoloniais que viria a subverter as visões de mundo dominantes na disciplina e transformar suas estruturas profunda e irreversivelmente Para mencionar apenas um punhado das mais importantes vejase por exemplo o clássico de Mike Shapiro Violent Cartographies mapping cultures of war de 1997 cuja influência na formação de toda uma geração de estudiosos críticos de RI inclusive na minha própria foi determinante O livro retoma o lugar de enunciação do volume organizado por Walker e mobiliza a teoria so bre a formação do sistemamundo de Wallerstein a crítica das representações modernas da modernidade firmadas na superioridade do Ocidente e indo além introduz a crítica aos imaginários espaciais e cartográficos que permiti ram apagar a história dos povos e das culturas colonizadas das Américas das narrativas dominantes nas relações internacionais6 Tratase de um momento criativo e inovador do que hoje chamamos da virada espacial ou seja de uma produção transdisciplinar que mobiliza os conceitos da geografia crítica para repensar o lugar das representações espaciais do território através da cartografia nos modos de dominação imperial e colonial Aqui novamen te encontramos uma instância em que a sensibilidade crítica de linhagem pósestruturalista articula uma crítica dos modos de representação que cons tituem o Outro como objeto de violência e conquista a partir de uma refle xão sobre o encontro colonial Um lugar semelhante de inovação conceitual 6 SHAPIRO M J Violent Cartographies Mapping Cultures of War Minneapolis University of Minnesota Press 1997 p 241 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 11 14012021 1706 João Pontes Nogueira 12 pôde até recentemente ser encontrado nas páginas da revista Alternatives Global Local Political editada por Rob Walker por mais de três décadas ao longo das quais inúmeros artigos por intelectuais póscoloniais e decoloniais foram publicados Digno de nota é o artigo também pioneiro de Sankaran Krishna publicado em 1993 explorando a contribuição do póscolonialismo para a teoria crítica de relações internacionais7 Faço esta breve recuperação de registros da relação entre a linhagem críti ca das RI e o pensamento póscolonial para ressaltar como suas trajetórias se entrelaçaram em vários momentos muitos dos quais situados há quase qua renta anos E também para salientar que apesar desta relação estar longe de ser linear é difícil imaginar a crescente penetração das teorias póscoloniais e decoloniais sem considerála Isto porque recentemente em alguns círculos as teorias críticas vêm sofrendo críticas análogas às dirigidas ao mainstream da disciplina quer seja de serem definidas por epistemes eurocêntricas Este é um debate que em parte reflete divergências internas ao pensamento pós colonial que opõem posições mais próximas do pósmarxismo que veem a preocupação com a fragmentação do poder a dispersão de cadeias de signi ficantes as contingencias das práticas de resistência como tendências analí ticas que enfraquecem compromissos políticos com mudanças consideradas como imperativos éticonormativos como a oposição às relações sociais de produção capitalistas e às assimetrias culturais de poder e econômicas do neocolonialismo Para alguns destes críticos como Leila Gandhi por exem plo o póscolonialismo muitas vezes faz parte de um diálogo com a filosofia continental protagonizado por intelectuais diaspóricos vinculados à aca demia europeia e estadunidense8 Não cabe explorar estas clivagens aqui Creio contudo que é relevante observar que em parte a crítica ao suposto intelectualismo da alta cultura póscolonial se relaciona à maior ênfase no contexto dos anos da guerra contra o terror e da alta globalização dada ao engajamento político e à formulação de estratégias de resistência à difusão 7 SANKARAN K The Importance of Being Ironic A Postcolonial View on Critical Interna tional Relations Alternatives Honolulu Hawaii v 18 n 3 p 385417 1993 8 GANDHI L Postcolonial theory a critical introduction New York Columbia University Press 1998 p x Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 12 14012021 1706 Prefácio 13 de novas formas de violência e exploração vividas principalmente entre po pulações no assim chamado Sul Global9 No contexto europeu verificamse dois processos concomitantes Por um lado há um esforço por incorporar a questão colonial em pesquisas sobre migração peacekeeping conflitos civis desenvolvimento práticas de segurança entre outras a partir de uma maior reflexividade acerca do caráter excludente e provinciano das narrativas eurocêntricas sobre a formação do sistema internacional de suas normas e valores Por outro apesar dessa nova geração de intelectuais convertidos à causa anticolonial adotar práticas de pesquisa imersiva e engajada a crescente prevalência de referências a teorias póscoloniais e decoloniais na produção científica na Europa ainda parece refletir dinâmicas e debates situados em campos disciplinares daquela região do mundo Mais ainda a apropriação do lé xico póscolonial por campos mais tradicionais do espectro intelectual nos estudos internacionais europeus pode ser interpretada como indica dor de um processo de normalização o que em si não é necessariamente preocupante mas exige atenção para seus efeitos sobre o potencial crítico daquele corpo teórico Para Phillip Darby por exemplo a incorporação do póscolonialismo como norma em práticas de pesquisa e registros inte lectuais na disciplina pode gerar novas formas de objetivação dos sujei tos e saberes subalternos e consequentemente em novas modalidades muitas vezes não intencionais de romantização exotismo e eurocentris mo10 Contudo para além de questões epistêmicas estas críticas a uma certa trajetória do pensamento póscolonial nas RI querem evidenciar um distanciamento das práticas acadêmicas da experiência de lutas no Sul Global e a relação entre teoria e prática Mais precisamente voltase para o resgate do engajamento da linhagem pós colonial com a política Este não é um debate novo mas reaparece no contexto da emergência de novas dinâmicas e circuitos de circulação de saberes 9 Ver os exemplos ESCOBAR A Beyond the Third World imperial globality global coloniality and antiglobalisation social movements Third World Quarterly S l v 25 n 1 2004 p 207230 E DIRLIK A Spectres of the Third World global modernity and the end of the three worlds Third World Quarterly S l v 25 n 1 2004 p 131148 10 DARBY P ed Postcolonizing the international working to change the way we are Honolulu University of Hawaíi Press 2006 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 13 14012021 1706 João Pontes Nogueira 14 Como mencionamos anteriormente uma das contribuições mais signifi cativas do pensamento póscolonial e decolonial foi a de desvendar a cone xão entre saber e poder que constitui a geopolítica colonial Tanto Edward Said como Anibal Quijano mostram que a dominação global do Ocidente se sustenta na produção de um Outro o Oriente ou o extremo Ocidente su balternizado cuja humanidade é dependente da posição histórica e episte mológica de uma Europa ilustrada que ao expandirse leva a civilização aos povos prémodernos Ao argumentar que a modernidade é constituída pela colonialidade o pensamento decolonial subverte as narrativas dominantes sobre origens e evolução do sistema de estados bem como a ideia de que a nação é expressão da cultura e história comuns de um povo Mais ainda a desconstrução do mito da modernidade permite mostrar como outros mitos como progresso e desenvolvimento fazem parte do mesmo regime de repre sentação que reproduz as relações de poder marcadas pela colonialidade11 Neste sentido a escola Latinoamericana de estudos da colonialidade produ ziu uma crítica do colonialismo centrada no nexo entre violência epistemoló gica pureza racial e produção das estruturas do capitalismo global criando conceitos como a colonialidade do poder e a diferença colonial A noção de colonialidade em particular oferece um marco analítico das formações de poder que já não exercem sua hegemonia por meio do regime colonial ou de formas diretas de dominação política e econômica mas ainda se reproduzem através de dispositivos de saber modos de subjetivação e controle cultural É esta forma geral de dominação em escala global que Quijano denominou colonialidade do poder12 A linhagem intelectual desta variante do pensamento decolonial devedora do pensamento social latinoamericano da escola da dependência das teorias de sistemamundo da filosofia da libertação entre outras estabelece articu lações inovadoras entre o nexo epistemológico da colonialidade e estruturas econômicas e políticas de exploração e dominação Seria talvez lícito dizer 11 ESCOBAR A Encountering development the making and unmaking of the Third World Princeton NJ Princeton University Press 1995 p ix 12 QUIJANO A Coloniality and ModernityRationality In MIGNOLO W ESCOBAR A ed Globalization and the decolonial option Abingdon Oxon New York NY Routledge 2010 p 2232 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 14 14012021 1706 Prefácio 15 que seus lugares de enunciação seus circuitos de produção de saber e suas ligações com as experiências de lutas sociais no continente ofereçam insights com maior potencial para repensar a transformação das relações de poder no capitalismo tardio Neste sentido o desafio de fazer teoria póscolonial de maneira diferente encontraria um terreno fértil na escola decolonial13 Para Quijano a tarefa política necessária para a construção de uma alternativa é a destruição da colonialidade do poder mundial sugerindo que a crítica ao paradigma europeu de racionalidade modernidade não é suficiente para pro mover a libertação dos povos Walter Mignolo por sua vez retoma a noção de delinking desvinculação articulada por Gunder Frank Samir Amin e outros teóricos da dependência14 A ideia de que podemos imaginar e construir uma outra modernidade é cara aos pensadores decoloniais e a movimentos sociais latinoamericanos A questão como sugeriria Rob Walker é que as alterna tivas à modernidade são normalmente respostas a problemas imaginados pela própria razão moderna Os textos reunidos neste volume percorrem estes e muitos outros temas através da exploração da obra de autores fundamentais e de ricas interpre tações da contribuição do pensamento póscolonial e decolonial para a po lítica mundial contemporânea Neste sentido respondem a necessidade de articular os diferentes registros do grande e plural espaço teórico produzido pelo póscolonialismo nas últimas décadas para refletir desde nosso lugar particular na geografia das Relações Internacionais sobre problemas cen trais da contemporaneidade Tratase sem dúvida de uma das iniciativas mais relevantes de fazer teoria a partir de nossa condição periférica uma tarefa já colocada por pesquisadores de nossa geração interessados em pen sar criticamente as relações internacionais como elemento indispensável na formação da área no Brasil A radicalidade desta empresa ganha densidade através da introdução do pensamento decolonial como lugar de crítica do internacional moderno 13 DARBY P Doing the Postcolonial Differently In PERSRAM N ed Postcolonialism and political theory Lanham Md Plymouth Lexington Books 2007 p 249270 14 MIGNOLO W D Delinking The Rethoric of Modernity the Logic of Coloniality and the Grammar of DeColoniality In MIGNOLO V ESCOBAR V ed Globalization and the decolonial option Abingdon Oxon New York NY Routledge 2010 p 303368 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 15 14012021 1706 João Pontes Nogueira 16 Apesar do momento difícil vivido hoje pela academia em nosso país o campo das Relações Internacionais demonstra grande capacidade de inova ção e diversificação Continuo a considerar nossa área como um lugar privi legiado para pensar a política hoje Os organizadores e autores de Perspectivas póscoloniais e decoloniais em Relações Internacionais são expressão brilhante desta promessa Rio de Janeiro agosto de 2020 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 16 14012021 1706 AUTORES Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 17 14012021 1706 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 18 14012021 1706 19 PERSPECTIVAS PÓSCOLONIAIS E DECOLONIAIS EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS A PARTE QUE NOS CABE NESSE PERCURSO AUREO TOLEDO A FORMAÇÃO DA REDE COLONIALIDADES E POLÍTICA INTERNACIONAL A obra aqui apresentada é um esforço coletivo no sentido mais profundo da expressão resultado de trabalho produzido no âmbito da Rede Interinstitucional de Pesquisas e Estudos sobre Colonialidades e Política Internacional Criada formalmente no dia 30 de outubro de 2013 a Rede tem como membros pesqui sadoras e pesquisadores de importantes instituições de ensino superior do país tais como Pontifícia Universidade Católica de Minhas Gerais PUCMinas Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PUCRio Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos Universidade Federal da Grande Dourados UFGD Universidade Federal da Integração LatinoAmericana Unila Universidade Federal de Pelotas UFPel Universidade Federal de Uberlândia UFU Universidade Federal do Tocantins UFT Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ e Universidade Federal Fluminense UFF O grande interesse acadêmico que aproximou todas as pessoas envolvidas não só na confecção da presente obra como também na criação da Rede são Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 19 14012021 1706 Aureo Toledo 20 as tradições póscoloniais e decoloniais e suas potenciais implicações para a disciplina de Relações Internacionais1 O que seria póscolonialismo Responder de forma objetiva tal questão não é tarefa fácil pois tratase de tradição intelectual eminentemente plural que acolhe pensadoras e pensadores dos mais diversos países e continentes sem nos esquecermos também de toda a discussão envolvendo o próprio signifi cado do termo Aqui salvo melhor juízo podemos encontrar ao menos cinco interpretações distintas McEWAN 2009 KRISHNA 2009 Primeiramente teríamos póscolonialismo como o período temporal subsequente ao final do colonialismo Em segundo lugar há aqueles que argumentam que a ex pressão faz referência a uma condição relacionada ao estado de coisas após o colonialismo Temos também as defensoras e defensores da posição de que póscolo nialismo seria propriamente uma tradição teórica que centra suas atenções sobretudo em temas relacionados a raça identidade e gênero assim como em discussões que tocam em questões relativas ao desenvolvimento e às relações entre poder e conhecimento Em quarto lugar não podemos deixar de men cionar a importância do póscolonialismo como crítica literária interessada em interrogar particularmente as representações tradicionais sobre coloniza dos e excolonizados Em quinto lugar póscolonialismo pode ser igualmen te compreendido como anticolonialismo uma crítica a todas as formas de poder colonial seja ele cultural econômico e político passado ou presente Não menos importante cabe aqui nessa pequena introdução uma nota sobre o que contemporaneamente vem sendo denominado perspectiva decolonial Em boa medida podemos afirmar que a perspectiva decolonial sobretudo a contribuição oriunda do grupo ModernidadeColonialidade tem como uma de suas principais metas uma discussão mais refinada da importância de de bates sobre raça gênero e classe e um reposicionamento da importância da América Latina na conformação do sistema internacional Não nos parece exagero afirmar que um dos pontos que une tamanha pluralidade de perspectivas repousa sobre o comprometimento de autoras e autores em questionar as narrativas sobre as origens da hegemonia econômica 1 Quando em caixa alta Relações Internacionais faz referência à área do conhecimento Em minúsculas relações internacionais referese ao objeto de estudo da área Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 20 14012021 1706 Perspectivas póscoloniais e decoloniais em Relações Internacionais 21 política e cultural do Ocidente enquanto oriundas de características inatas dessa entidade que não deve ser meramente compreendida por um regis tro territorial desconexa de relações com o que até outrora era conhecido como Terceiro Mundo e hoje seria designado como Sul Global Em boa me dida muitas das interrogações póscoloniais seriam endereçadas porém não restritas ao que Johannes Fabian 1983 a partir da Antropologia chamou de negação da coetaneidade isto é a persistente e sistemática tendência de loca lizar o objeto de estudo num tempo distinto daquele no qual o produtor do discurso está inserido Trocando em miúdos adjetivos como selvagem tra dicional primitivo devem ser compreendidos não como traços essenciais de colonizadas e colonizados mas sim categorias analíticas criadas mediante uma visão ocidental sobre tempo e história Convém sublinhar contudo que a utilização do póscolonialismo e da perspectiva decolonial nas ciências sociais brasileiras não é privilégio ex clusivo da Rede Colonialidades e Política Internacional Há trabalhos con sistentes e importantes realizados no âmbito da Sociologia Antropologia História e Letras que nos antecederam e que sem sombra de dúvida con tribuíram para nossa formação Todavia nas Relações Internacionais cre mos que o conjunto de pesquisadoras e pesquisadores articulados sob este guardachuva institucional vem contribuindo de maneira pioneira para sedimentar o póscolonialismo e a perspectiva decolonial como correntes intelectuais para análises da política internacional Apetrechadosas pe los instrumentais analíticos desse corpo de ideias ou por vezes dialogan do mesmo contra alguns deles os membros da Rede procuram interrogar criticamente as bases da disciplina produzindo estudos originais sobre temas diversos como os capítulos subsequentes irão evidenciar Cabenos então nesta pequena introdução apontar qual a nossa modesta parcela de contribuição para o adensamento das relações entre póscolonialismo e a perspectiva decolonial e a área de Relações Internacionais Individualmente os trabalhos de uma parcela significativa das pesqui sadoras e pesquisadores da Rede antecedem o ano de 2013 Salvo avaliação mais precisa os trabalhos pioneiros que mobilizam o póscolonialismo e o decolonialismo em Relações Internacionais na academia brasileira são o artigo de Ramon Blanco sobre póscolonizar a paz publicado em 2010 e a tese de doutorado de Marta Fernandéz defendida em fevereiro de 2011 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 21 14012021 1706 Aureo Toledo 22 junto ao Instituto de Relações Internacionais da PUCRio Em seguida tive mos a tese de doutorado de Aureo Toledo defendida em agosto de 2012 na Universidade de São Paulo e a apresentação do conhecido e muito citado trabalho de Luciana Ballestrin sobre o grupo ModernidadeColonialidade no 36º Encontro da Associação Nacional de PósGraduação e Pesquisa em Ciências Sociais Anpocs em outubro de 2012 posteriormente publicado na Revista Brasileira de Ciência Política Contudo tratavamse de trabalhos produzidos de maneira dispersa oriundos dos significativos empenhos indi viduais de cada um Uma concertação interessada em adensar coletivamen te o póscolonialismo e a perspectiva decolonial na academia brasileira de Relações Internacionais surgiu apenas a partir do Seminário Descolonizando as Relações Internacionais as contribuições dos Estudos PósColoniais rea lizado entre os dias 28 29 e 30 de outubro de 2013 O evento organizado na PUCRio e coordenado por Marta Fernandéz sem sobra de dúvidas é o divisor de águas para a formação da Rede Trazendo estudiosas e estudiosos não apenas do Brasil mas também de outros países como Kate Manzo Ilaan Kaapor José Manuel Pureza e Jimmy Casas Klausen o seminário promoveu debates importantes sobre atores subalternos e sobre temas tradicionalmente subestimados nas Relações Internacionais examinandose criticamente as assimetrias e exclusões da política mundial com ênfase específica para as dinâmicas de produção de identidades culturais raciais e de gênero Tais discussões foram realizadas por meio de palestras e mesas redondas no período da manhã dos três dias associadas a um workshop realizado no período da tarde no qual um conjun to de oito trabalhos acadêmicos de participantes do evento foram discutidos por professoras professores alunas e alunos de pósgraduação O último dia foi dedicado à criação da Rede Dentre as propostas discu tidas à época destacamse a elaboração de um livro sobre póscolonialismo e Relações Internacionais a realização de um workshop doutoral no âmbito do 2º Seminário para Graduação e PósGraduação da Associação Brasileira de Relações Internacionais e a proposição de uma edição especial sobre es tudos póscoloniais e decoloniais na área das Relações Internacionais para um periódico nacional Não menos importante tivemos também a criação de plataformas virtuais para a promoção de nossas ações um blog dedicado à Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 22 14012021 1706 Perspectivas póscoloniais e decoloniais em Relações Internacionais 23 divulgação de atividades realizadas e temas de interesse2 assim como uma página da rede social Facebook3 Entre os dias 28 e 29 de agosto de 2014 no âmbito do 2º Seminário de Relações Internacionais Graduação e PósGraduação organizado pela Associação Brasileira de Relações Internacionais ABRI a Rede Colonialidades e Política Internacional foi partícipe na organização dos workshops doutorais contribuindo com o Workshop Doutoral 3 Estudos Críticos e PósColonialismo Na ocasião três trabalhos foram debatidos cada qual apresentando uma dis cussão a partir de ideias de autoras e autores comumente associados à tra dição póscolonial No ano seguinte no âmbito do Seminário para Alunas e Alunos da Graduação em Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais PUCMinas realizado no dia 16 de outubro reali zamos mais um workshop este especialmente dedicado à elaboração do livro Para o evento as autoras e autores enviaram suas propostas de capítulos as quais foram debatidas coletivamente assim como foram discutidas estraté gias para publicação da obra ora em tela Em 2016 a Rede Colonialidades e Política Internacional participou do 3º Seminário de Relações Internacionais Graduação e PósGraduação da ABRI mediante uma mesaredonda em que capítulos do presente livro foram discutidos e apresentados a um público maior Finalmente entre os dias 09 10 e 11 de outubro de 2017 foi realizado mais uma vez na PUCRio a segunda edição do seminário Descolonizando as Relações Internacionais em que pesquisadoras e pesquisadores nacionais e internacionais se encontraram com o objetivo de promover um debate sobre atores subalternos e sobre temas tradicionalmente subestimados no campo de estudo das Relações Internacionais a partir do contributo das abordagens póscoloniais Em suma percebese que de maneira gradativa e orgânica a Rede Colonialidades e Política Internacional vem procurando dar sua parcela de contribuição para o estreitamento das relações entre póscolonialismo pers pectivas decoloniais e a área de Relações Internacionais De suma importância 2 Rede Interinstitucional de Pesquisas e Estudos sobre Colonialidades e Política Internacional S l 2014 Disponível em httpsredecolonialidadeswordpresscom Acesso em 14 jul 2014 3 Colonialidades e Política Internacional S l 2014 Disponível em httpswwwfacebook comredecolonialidades Acesso em 14 jul 2014 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 23 14012021 1706 Aureo Toledo 24 é a editoração da presente obra que muito me honra organizar Nela leitoras e leitores encontrarão textos que procuram analisar a produção intelectual de autores considerados clássicos dentro do cânone póscolonial assim como análises que mediante um diálogo com insights da literatura póscolonial dis cutem temas relativos não apenas à política internacional mas também rela cionados aos fundamentos da disciplina de Relações Internacionais OS CAPÍTULOS Dada a heterogeneidade das autoras e autores assim como as propostas de interpelação de autores e temas comumente associados à tradição póscolo nial dois eixos principais foram escolhidos para estruturar a organização do livro A primeira parte denominada Autores agrupa os trabalhos que de uma forma ou de outra colocam sob escrutínio o pensamento de determinado au tor da tradição póscolonial seja para discutir algum ponto de sua produção seja para interrogálo a partir de determinada questão A segunda parte de signada Diálogos e Interpretações traz contribuições que procuram dialogar com temas comumente associados ao póscolonialismo Convém destacar que a escolha de autores e temas pelas autoras e autores dos capítulos não foi aleatória mas sim resultado de projetos de pesquisa individuais e coletivos em andamento ou que foram já finalizados Assim vejamos O primeiro capítulo é de autoria de Marta Fernández dedicado à obra de Aimé Césaire Mediante à apresentação de duas ideias importantes no pensamento do autor o conceito de negritude e a leitura de Césaire sobre o nazismo Marta introduz a respeitável contribuição de um autor muitas vezes subaproveitado não apenas no Brasil mas também na literatura póscolonial como um todo Em linhas gerais Marta persuasivamente argumenta que é impossível pensar Césaire sem pensar nas influências que recebeu do sur realismo marxismo e da filosofia hegeliana No entanto tais heranças não podem ser dissociadas de seu esforço criativo de releitura de todas essas in fluências por meio do olhar crítico possibilitado pela negritude Com isso o autor contribui ao introduzir de forma aguda a questão racial como um traço constitutivo do sistema capitalista mundial Ademais por meio da leitura do autor sobre o nazismo Césaire defende o argumento de que o nazismo seria um desdobramento lógico da própria Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 24 14012021 1706 Perspectivas póscoloniais e decoloniais em Relações Internacionais 25 civilização ocidental O horror causado se deve ao fato de que o totalita rismo colonial havia sido trazido para o coração da Europa enquanto que anteriormente se encontrava em outros continentes Com isso Marta nos mostra como a obra do autor aponta os limites do pseudohumanismo ra cista europeu além de nos ajudar a entender as origens extraeuropeias da modernidade e como a Europa sempre dependeu daqueles povos até então considerados sem história WOLF 2005 Em síntese a poesia de Césaire nos convida a refletir sobre direitos humanos e sobre universalismos a partir das margens da experiência colonial marcada pela violência e pela injustiça forçandonos a descentrar a Europa de sua posição de zênite de uma dita evolução histórica No segundo capítulo Lara Selis e Natália Félix nos convidam para um interessantíssimo diálogo sobre os limites da liberdade a partir das contri buições de Frantz Fanon e Ashis Nandy Segundo as autoras a despeito de ser uma das mais abrangentes ambições políticas modernas inclusive com a garantia da liberdade individual e coletiva ancorando a legitimidade dos Estados modernos a liberdade ainda é constantemente adiada ou indeferida a um número bastante considerável de indivíduos Logo a proposta do capí tulo é tratar as obras de Fanon e Nandy como aberturas teóricas para projetos de liberdade aberturas estas de forma alguma excludentes Em linhas gerais a extensão da opressão colonizadora fosse ela física ou subjetiva fez da resistência um traço comum entre os trabalhos que pensam o mundo colonial Fanon nascido na Martinica com ascendência africana e francesa e refletindo à luz da experiência argelina defende dentre outros pontos a violência colonial contra o colonizador como sendo a chave para a libertação do sujeito colonizado Por sua vez Nandy tendo como perspectiva a experiência colonial indiana defende uma proposta inspirada pela resistência política de matriz gandhiana a violência acaba sendo uma forma de resistên cia já cooptada pelo colonialismo não rompendo com a díade colonizador colonizando podendo resultar apenas numa inversão de polos As diferenças são mais complexas do que a síntese aqui redigida aparen ta demonstrar Da mesma forma as explicações para projetos tão distintos repousam igualmente de forma geral nos distintos sujeitos históricos com os quais os autores dialogam Fanon com o escravo negro a quem foi nega do qualquer consideração iluminista sobre o humano Nandy com o nativo Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 25 14012021 1706 Aureo Toledo 26 indiano que lhe foi subscrito o atraso porém sem negar sua humanidade Com tal diálogo Lara e Natália proporcionam uma importante contribuição para os estudos acerca da colonialidade por meio da exploração do instru mental analítico e político de autores cujas vidas e obras tinham como intuito denunciar situações de colonialidade O terceiro capítulo de responsabilidade de Marcos Costa Lima analisa de forma rigorosa o pensamento daquele que para muitos seria talvez um dos pais fundadores do póscolonialismo Edward Said O objetivo do capítulo porém não é proporcionar uma síntese de obra tão extensa e diversa como a de Said que inclui textos sobre literatura comparada política e música mas interrogar tal produção a partir do que seriam potenciais pontos de diálogo com a área de Política Internacional Comparada Tendo como fio condutor especialmente os argumentos desenvolvidos nos clássicos Orientalismo e Cultura e Imperialismo publicados no Brasil em 1990 e 1995 respectivamen te Costa Lima pinça cinco grandes temas de destaque na obra de Said que se prestam para tal diálogo Em primeiro lugar teríamos o presente poder hegemônico exercido pelo go verno dos Estados Unidos ao longo do século XX e início do XXI o qual lança a todos questões relativas às pretensões imperiais desse país os desafios à interdependência transnacional até mesmo às ambições de construção de uma ordem mundial efetivamente democrática O segundo tema é a questão nacional discutido em Said para além de movimentos nativistas em respostas ao processo colonial mas vista de forma crítica como processo que inclusive poderia desvirtuar as lutas de independência e libertação O terceiro tema é a discussão sobre a causa palestina4 tensionada sobre tudo pelo fato de Said ser um árabeamericano que vive em dois mundos O tema perpassou diversos textos de Said e sempre nos proporciona argumentos importantes para crítica à forma desumana como Israel lida com a questão O quarto tema seria a visibilidade que Said dá à contribuição intelectual da perife ria iluminando figuras como Eqbal Ahmad paquistanês Ngugi Wa Thongo queniano José Marti cubano dentre tantas outras figuras Por fim temos o tema do exílio que à luz de questões contemporâneas como migrações 4 A título de curiosidade o conhecido livro de Krishna 2009 tem em sua capa uma foto de Said atirando uma pedra em um checkpoint israelense salvo engano Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 26 14012021 1706 Perspectivas póscoloniais e decoloniais em Relações Internacionais 27 internacionais e refugiados se torna uma discussão nada desprezível Dentre outros pontos discutidos ao longo do capítulo Costa Lima apresenta a visão de Said sobre o intelectual cujo papel seria o de desafiar e derrotar tanto os silêncios impostos quanto as quietudes que se transformaram em normas Ao final a despeito das críticas pósestruturalistas Said emerge do texto de Costa Lima como um defensor do humanismo porém um humanismo críti co dos perigos que universalismos podem acarretar sobretudo para aquelas e aqueles que se encontram nas margens O quarto capítulo produto da parceria entre Leonardo Ramos Rodrigo Teixeira e Marina Scotelaro centrase na crítica póscolonial de Naeem Inayatullah e David Blaney à Economia Política Internacional sobretudo a de matriz liberal Recuperando argumentos de autores como Tzvetan Todorov e Karl Polanyi Inayatullah e Blaney constroem uma das mais originais críticas não apenas ao liberalismo mas também à área de Relações Internacionais como um todo a partir da dificuldade de ambos em lidarem com o problema da diferença Essencialmente Relações Internacionais e a Economia Política Internacional liberal dispensam à diferença o que Todorov chama de duplo movimento Primeiramente temos uma separação absoluta entre self e other a qual redunda ora no reconhecimento da diferença porém seguida de assi milação ora na sua própria erradicação Com o intuito de explorar as implicações desse e de outros argumentos Leonardo Rodrigo e Marina refletem sobre como a obra dos autores contribui para a desestabilização de determinados discursos no campo das Relações Internacionais Em linhas gerais duas grandes contribuições emergem da obra de Inayatullah e Blaney a partir da leitura efetuada pelo trio Primeiramente temos uma crítica ao próprio campo da Economia Política Internacional a partir da ideia de uma Economia Política Cultural Em segundo lugar uma potente crítica ao liberalismo particularmente ao caráter éticonormativo da crítica desferida No percurso realizado Leonardo Rodrigo e Marina mostram como Inayatullah e Blaney desenvolvem ideias como a consideração da Economia Política como um encontro cultural grosso modo construir culturalmente a economia ao conferir à racionalidade técnica um lugar político e social assim como a compreensão da Economia Política Internacional como uma cultura de competição que implica reconhecer os propósitos e valores desse campo como socialmente construídos Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 27 14012021 1706 Aureo Toledo 28 A segunda parte do livro começa a partir do quinto capítulo de autoria de Ramon Blanco e Ana Carolina Delgado Tomando de empréstimo de Aníbal Quijano o conceito de colonialidade o qual procura dar sentido à uma estrutu ra de poder hierárquica desenhada e desenvolvida durante o período colonial porém que ainda perdura a meta do capítulo é ambiciosa Combinando uma genealogia teórica e histórica do conceito Ramon e Ana procuram destacar as características da colonialidade e os momentos fundamentais que permiti ram sua inserção estrutural na política internacional A despeito de ser tema importante em Relações Internacionais os autores apontam que colonialida de é ainda uma dimensão pouco explorada e por que não desconhecida dentro da própria disciplina Para alcançar seu objetivo os autores executam três movimentos princi pais O primeiro conforme antecipado é uma discussão sobre o conceito de colonialidade no qual vemos além de uma distinção visàvis colonialismo um diálogo significativo com diversos autores e autoras do que se convencio nou chamar grupo ModernidadeColonialidade5 Em seguida Ramon e Ana apresentam como tal conceito se operacionaliza e em sua avaliação a noção de raça é de fundamental importância pois permite classificação social e hie rarquização Ademais além da instrumentalização da raça temos ainda uma dupla colonização do tempo e do espaço que permitem o estabelecimento da modernidade Por fim dois exemplos empíricos são trazidos para discutir a inserção estrutural da colonialidade o pensamento de Francisco de Vitoria e seu impacto dentro da formação do Direito Internacional e o chamado Debate de Valladolid ocorrido em meados do século XVI e que discutia o que seria entendido como humanidade e se os ameríndios faziam parte dela Professora quem hoje seria o subalterno Refletindo a partir de uma per gunta endereçada diretamente à Gayatri Spivak durante um summer school escola de verão em Londres Roberto Yamato inicia o sexto capítulo Diferentemente dos capítulos anteriores Yamato navega com elegância entre o tom analítico tradicional da academia sobretudo quando introduz ideias do filósofo francomagrebino Jacques Derrida métodos transdisciplinares particularmente insights de Michael Shapiro sobre a utilização do cinema para análises e reminiscências pessoais especialmente quando nos relata o 5 Para detalhes sobre esse grupo ver Ballestrin 2013 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 28 14012021 1706 Perspectivas póscoloniais e decoloniais em Relações Internacionais 29 nascimento de sua filha Luisa Tais são seus artifícios para explorar a resposta de Spivak ao questionamento que abre o capítulo o subalterno contemporâ neo seria hoje o migrante irregular Dentro dos diversos movimentos analíticos estéticos e autobiográficos realizados ao longo do capítulo Beto argumenta que o migrante irregular nos convoca a pensar fronteiras e limites A figura migrante permitiria portanto que rastreássemos o espaçotempo daquele fora constitutivo do sistema inter nacional moderno capitalista e neoliberal Seguir os rastros doa migrante nos provocaria a ao menos começar a entender uma dimensão subterrânea em que o que o autor chama de insignificação política da vida seria a um só tempo gritante e silenciada Outro ponto de destaque em sua argumentação referese ao argumento de que o internacional condiciona a vida social humana relacionalmente diferenciando hierarquizando e organizando por exemplo as condições de ser humano cidadão nacional estrangeiro exilado dentre outros Em suma o ponto seria que a identidade é uma construção política social cultural racial de gênero etc e que a condição internacional é consti tutiva de trama tão complexa que condiciona a vida humana As interfaces entre póscolonialismo e feminismo são discutidas por Luciana Ballestrin no sétimo capítulo Para tanto Luciana por meio de nar rativa segura e conceitualmente rigorosa delineia considerações sobre o tra dição póscolonial como um todo apresentando dentre outros pontos um enquadramento analítico bastante útil para compreendermos as idiossincra sias desse corpo heterogêneo de ideias Teríamos assim o póscolonialismo anticolonial originário a partir de uma conjuntura histórica preenchida pelos processos de libertação e descoloniza ção dos anos 19501960 e cujos principais expoentes seriam figuras como Aimé Césaire Frantz Fanon Almicar Cabral dentre outros influenciados pelo marxismo revolucionário e o panafricanismo por exemplo Em segui da a partir do contexto histórico do final dos anos 1970 no qual discussões sobre globalização começam a se tornar mais cadentes emerge o que Luciana denomina póscolonialismo canônico influenciado pelo Estudos Subalternos Indianos pósestruturalismo e outras correntes intelectuais e cujas figuras de destaque seriam Edward Said Homi Bhabha e Gayatri Spivak Finalmente a partir dos anos 2000 surge o póscolonialismo decolonial sobretudo a partir Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 29 14012021 1706 Aureo Toledo 30 da América Latina e tendo como representantes de renome Walter Mignolo Arturo Escobar e Maria Lugones por exemplo Dentre as principais contribuições que a intersecção entre póscolonialis mo e feminismo produz Luciana aponta como este último permitiu que so bretudo o póscolonialismo canônico revisasse e questionasse suas principais questões Seguindo Deepika Bahri 2013 questões de gênero são insepará veis da crítica póscolonial e o póscolonialismo anticolonial e o canônico produziram reflexões muito embrionárias sobre esta temática Ademais o feminismo póscolonial crava interrogações importantes no próprio feminis mo ao argumentar sobre o caráter colonial do discurso feminista ocidental quando este cria representações estereotipadas da mulher do Terceiro Mundo Após tais apreciações Luciana caminha para discutir como ambas correntes teóricas contribuem para uma avaliação crítica das Relações Internacionais e finaliza o texto com uma apreciação necessária sobre o estado da área no Brasil informada pelo diálogo teórico proposto ao longo do capítulo Os três últimos capítulos do livro apontam cada qual a seu modo suas atenções para o Brasil No oitavo capítulo Victor Coutinho Lage produz uma análise original sobre o campo comumente designado como Interpretações do Brasil em cujo panteão repousam figuras do calibre de Sérgio Buarque de Hollanda Caio Padro Júnior Celso Furtado Gilberto Freyre dentre tantos outros Num primeiro momento pode parecer contraintuitivo a associação entre figuras que conforme as interpretações canônicas da área pensaram a formação do Brasil com uma discussão envolvendo relações internacionais e póscolonialismo Contudo é justamente aqui onde jaz a inovadora proposta de leitura do autor Num texto em que de saída nos alerta de que não é o certificado de nas cimento da teoria que importa e sim a forma como ela é mobilizada Victor defende o argumento de que as chamadas interpretações do Brasil podem ser compreendidas de duas formas De um lado as interpretações endossam di ferentes variações de uma perspectiva modernizante sobre o processo forma tivo brasileiro De outro estas mesmas interpretações podem ser exploradas pelo o que o autor chama de frestas que abrem para uma problematização da própria ideia de modernização Apropriandome das palavras de Victor e da leitura que ele faz de Roberto Schwarz o processo formativo brasileiro pode ser compreendido como um ponto nevrálgico por onde passa e se revela parte Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 30 14012021 1706 Perspectivas póscoloniais e decoloniais em Relações Internacionais 31 importante da história mundial Logo a interpretação do Brasil tem embutida em si uma interpretação da modernidade Ao final do texto Victor ilustra a potência de seu esquema interpretativo ao interpelar tanto A Revolução Burguesa no Brasil de Florestan Fernandes quanto Raízes do Brasil de Sérgio Buarque obras que dispensam apresenta ções O resultado é uma leitura instigante que aponta como obras aparente mente interessadas apenas na realidade sociopolítica brasileira podem conter interpretações originais e que nada ficam a dever visàvis o mainstream da área sobre o que designamos internacional Na mesma toada Flávia Guerra Cavalcanti discute no nono capítulo relações internacionais a partir da periferia A originalidade da contribui ção de Flávia reside em mobilizar conceitos desenvolvidos por duas impor tantes figuras brasileiras para interrogar pressupostos da área de Relações Internacionais assim como apontar os paralelos possíveis com temas caros ao póscolonialismo a antropofagia de Oswald de Andrade figura basilar do movimento modernista no Brasil e o perspectivismo ameríndio do renomado antropólogo Eduardo Viveiros de Castro Tal exercício criaria condições para contestar a epistemologia moderna ocidental que ancora o nosso pensar sobre o mundo em geral e sobre as relações internacionais em particular Sobre Oswald de Andrade Flávia argumenta dentre outros pontos que a antropofagia realiza uma releitura da história oficial brasileira particular mente quando mostra que a história que emerge do manifesto é uma polifonia de vozes oprimidas e subalternizadas que até então haviam sido abafadas Ademais outra importante contribuição oriunda do manifesto seria um poten cial tratamento alternativo à questão de como se lidar com a diferença Aqui há uma absorção do outro que não necessariamente leva a uma subalterniza ção mas sim a um enaltecimento Em linhas bastante gerais a antropofagia se caracterizaria por ser um processo de assimilação crítica no qual teríamos uma apropriação da identidade do outro pelo eu porém o eu se transformaria no outro o dentro se transforma no fora e viceversa Trocando em miúdos fronteiras são diluídas e identidades não são préfixadas Para além de outros temas tão bem discutidos por Flávia a autora destaca como o texto de Oswald de Andrade antecipa preocupações apontadas pelo póscolonialismo desde o questionamento da razão moderna europeia até discussões sobre alteridade Em suma de uma obra aparentemente interessada somente em discussões Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 31 14012021 1706 Aureo Toledo 32 relativas à cultura brasileira é possível depreender insights que justamente in terrogam a própria possibilidade de identidades naturais e tradicionalmente vistas de formas não relacionais A partir do perspectivismo ameríndio de Viveiros de Castro Flávia traz para a discussão o canibal e como a partir dessa figura é possível repensar as relações euoutro dentrofora Segundo a autora podemos traçar alguns pa ralelos entre o perspectivismo ameríndio e críticas pósestruturalistas porém por estas últimas não levarem em consideração a diferença colonial encon traríamos limitações Para chamar a atenção dessa especificidade Viveiros de Castro brincando com o conceito de différance de Derrida cunha o termo diferonça uma relação de incorporação canibal dado que o modo básico de relacionamento ameríndio seria a caça a predação do outro Contudo o mito canibal não deve ser entendido como oposto da razão mas sim um pensamento rigoroso sobre incorporação predação e transformação a partir da periferia Não à toa Viveiros de Castro afirma existir um cogito canibal A antropofagia canibal introduz uma concepção de tempo e história dia lógica em que a voz da vítima é escutada ao mesmo tempo em que se ouve a voz do predador Logo o ato canibal não é resultado de uma relação assi métrica mas sim entre culturas que coexistem num mesmo tempo e uma depende da outra para a preservação de sua memória Antropofagia canibal e diferonça seriam então conceitos que trazem embutidos em si o potencial para nos deixar mais atentos para a diferença colonial inerente a um pensa mento produzido a partir da periferia Por fim mas não menos importante o décimo capítulo é de autoria de Francine Rossone de Paula cujo subtítulo é bastante provocador a ascensão e queda do Brasil Segundo a autora sobretudo após a chegada ao poder do expresidente Luís Inácio Lula da Silva muitas foram as análises que propa garam mudanças qualitativas na política global com destaque para o acesso de países como o próprio Brasil a um patamar mais elevado Como a própria epígrafe do texto deixa claro estaríamos deixando de ser um país de segun da classe e adentrando o estágio de país de primeira classe com indicadores socioeconômicos comprobatórios que autorizariam tamanha transformação Tendo a discussão sobre o caso brasileiro como pano de fundo e municia da por ideias e conceitos oriundos da tradição da teoria da dependência e do pensamento decolonial Francine constrói uma poderosa crítica às narrativas Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 32 14012021 1706 Perspectivas póscoloniais e decoloniais em Relações Internacionais 33 sobre desenvolvimento e autonomia Conforme a autora muitas das interpre tações sobre transformações na política internacional enfatizam a reconfigu ração de vencedores e vencidos no globo porém ignoram a forma como este próprio discurso de emergência reproduz as regras que definem vencedores e perdedores Em outras palavras a condição para a vitória continua sendo a participação na competição econômica liberal que certamente prosseguirá produzindo desigualdades Ato contínuo categorias como mundo em de senvolvimento terceiro mundo ou sociedades modernas não podem ser eliminadas de dentro de uma estrutura dicotômica e hierárquica sem que a própria estrutura que as contém não imploda Subjugação e dominação nos diz Francine são dois lados da mesma moeda No entanto a crítica não se restringe a uma visão macro e dependentista sobre economia e política Desafiar desenvolvimento e autonomia requer interrogar os fundamentos de ambas ideias os quais são embasados na individualidade moderna ocidental e jazem sobre concepções particulares de boa vida e boa sociedade Há portanto a necessidade de se descoloni zar não apenas as próprias bases do conhecimento mas também a própria geopolítica desse conhecimento Questões como quem quando por que e onde o conhecimento é produzido seriam tão importantes senão mais quanto seu o conteúdo Temos assim um imperativo para procurarmos novas cosmologias e modos alternativos de organização social Não à toa tal conjunto de ideias contribuem para o tom crítico de Francine sobre nar rativa da ascensão e queda brasileira as mesmas condições que levaram o Brasil a galgar posições de atuação global seriam aquelas que continuam a produzir disparidades e quando não mais sustentadas justificariam e ex plicariam o fracasso do país Feitas as contas as contribuições aqui reunidas apontam para o fato de que a chegada das tradições póscolonial e decolonial nas Relações Internacionais brasileiras a despeito de toda a sua heterogeneidade não é casuísmo Pelo contrário tratase de esforço planejado de pesquisadoras e pesquisadores que há algum tempo vêm refletindo sobre como tal corpo de ideias pode não só produzir ganhos analíticos aos mais diversos objetos mas também contribuir para uma forma alternativa e menos dicotômica e hierarquizada de se pen sar Relações Internacionais A obra coletiva ora apresentada é portanto mais uma tentativa da Rede Colonialidades e Política Internacional de unir tais Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 33 14012021 1706 Aureo Toledo 34 esforços que até então estavam dispersos e reforçar junto às leitoras e leito res as potencialidades do pensamento póscolonial agora a partir do Brasil No entanto antes de encerrar esta introdução há uma série de agradecimen tos que preciso fazer Em primeiro lugar agradeço aos colegas que me confiaram seus capítulos para que pudesse organizar o presente livro A jornada foi longa e muitas vezes tortuosa mas chegamos enfim ao nosso ponto de chegada Amigas e amigos muito obrigado Em segundo lugar no nome da Profa Flávia Goulart Rosa agradeço a todas as pessoas à frente da Editora da Universidade Federal da Bahia que aceitou o desafio de editorar a primeira obra sobre perspectivas póscoloniais e decoloniais inteiramente feita no Brasil Em terceiro lugar agra deço muitíssimo o Prof Carlos Henrique de Carvalho próreitor de pesquisa e pósgraduação da Universidade Federal Uberlândia UFU por acreditar em nosso trabalho e nos ajudar na viabilização do presente livro É certamente um privilégio contar com o auxílio da UFU nessa empreitada e a isso devo muito à confiança que o Prof Carlos Henrique teve em nosso trabalho Por fim po rém não menos importante agradeço a todos os cidadãos e cidadãs de nosso país que mediante seus impostos financiam a pesquisa em nosso país Mesmo em tempos de dificuldades como os atuais em que o obscurantismo ameaça a universidade seguimos firme acreditando piamente que o futuro de qualquer país passa inescapavelmente pela educação e pesquisa REFERÊNCIAS BAHRI D Feminismo eno póscolonialismo Estudos Feministas Florianópolis ano 21 n 2 v 336 p 659688 2013 BALLESTRIN L América Latina e o giro decolonial Revista Brasileira de Ciência Política Brasília DF n 11 p 89117 2013 FABIAN J Time and the Other how Anthropology makes its Subject New York Columbia University Press 1983 KRISHNA S Globalization and Postcolonialism Hegemony and Resistance in the TwentyFirst Century New York Rowan Littlefield Publishers 2009 McEWAN C Postcolonialism and Development London Routledge 2009 WOLF E A Europa e os povos sem história São Paulo EDUSP 2005 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 34 14012021 1706 35 AIMÉ CÉSAIRE AS EXCLUSÕES E VIOLÊNCIAS DA MODERNIDADE COLONIAL DENUNCIADAS EM VERSOS MARTA FERNANDÉZ A Europa é indefensável O grave é que a Europa é moral e espiritualmente indefensável Aimé Césaire 2000 p 1516 A Europa vive desde 2015 a sua maior crise migratória desde a Segunda Guerra com a chegada no Velho Continente de um grande número de refu giados provenientes sobretudo da Síria devastada por uma guerra civil que se arrasta desde 2011 Considerada lócus por excelência do humanismo da racionalidade da democracia e dos direitos humanos a Europa vem agindo de forma desconcertada e alguns dos seus países vêm adotando políticas pouco afeitas ao respeito à diferença e que sinalizam xenofobia e racismo Esse foi o caso por exemplo das políticas violentas de exclusão da diferença adotadas pelo primeiro ministro húngaro Viktor Orbán que incluíram desde o uso de gás lacrimogêneo até a construção de uma cerca de arame ao longo da fronteira com a Sérvia para impedir a entrada de refugiados representados pejorativamente pelo premiê como rebeldes ou como uma ameaça à estabi lidade e segurança da Europa cristã Contudo a securitização do refugiado e a generalização do mesmo como uma ameaça visível em outros espaços eu ropeus para além do caso extremo da Hungria são colocadas em xeque por Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 35 14012021 1706 Marta Fernandéz 36 incidentes que vez ou outra conferem visibilidade e identidade aos refugia dos entendidos em geral como uma massa amorfa e indefinida Esse foi o caso de Aylan Kurdi que revelou ao mundo uma faceta do refugiado frágil e desamparada que divergia daquela propagada por alguns representantes europeus O drama de Aylan de apenas três anos que junto com a sua família havia abandonado a cidade síria de Kobane na fronteira com a Turquia para escapar do avanço do Estado Islâmico EI comoveu as audiências ocidentais ao virilizar nas redes sociais urgindo por políticas mais solidárias por parte dos países da União Europeia O corpo de Aylan foi encontrado em posição fetal nas areias do balneário turco de Ali Hoca depois que o bote onde es tava e que transportava outras 16 pessoas anônimas naufragar na travessia rumo à ilha grega de Kos provocando o seu afogamento do seu irmão mais velho e da sua mãe As práticas de violência física e interpretativa mobilizadas para lidar com os refugiados vindos das antigas colônias europeias da Ásia e da África ex põem o falso universalismo europeu denunciado em versos por Aimé Césaire na década de 1950 mas que se mantêm atuais no contexto póscolonial já que tais práticas revelam a persistência dos limites e das ambiguidades do aclamado universalismo europeu Desestabilizando o pretenso universalis mo europeu Césaire nos mostra que uma civilização que trai seus próprios princípios é uma civilização moribunda que uma civilização que se mostra incapaz de resolver os problemas por ela suscitados a exemplo do dura douro problema colonial é uma civilização decadente CÉSAIRE 2000 A velada hipocrisia europeia repudiada por Césaire se faz explícita toda vez que os princípios igualitários alardeados pela Europa não se estendem para os sujeitos que atravessam suas fronteiras vindos de espaços póscoloniais A Europa berço do Iluminismo e da democracia continua moral e espiritual mente indefensável ao atualizar em pleno século XXI os traços excludentes e racistas do seus desencontros com o mundo póscolonial Este capítulo dividese em duas partes A primeira delas visa introduzir a trajetória acadêmica e política de Césaire bem como apresentar um dos seus conceitos centrais o de negritude Pretendese nesta parte contribuir para os esforços recentes voltados para conferir visibilidade ao pensamento de Césaire que foi de um modo geral pouco analisado pelos estudos pós coloniais ainda que muitas das suas reflexões se mantenham extremamente Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 36 14012021 1706 Aimé Césaire as exclusões e violências da modernidade colonial denunciadas em versos 37 atuais Na segunda parte do capitulo a partir da leitura crítica de Césaire so bre o nazismo buscase chamar a atenção para os efeitos contraditórios da colonização e das suas fronteiras raciais para a própria civilização ocidental NEGRITUDE EM FÚRIA CONTRA A VERDADE BRANCA Poeta ensaísta dramaturgo e político antilhano Aimé Césaire nasceu em 1913 na Martinica à época departamento ultramarino francês no Caribe Após ter concluído com êxito seus estudos secundários no Liceu Schoelcher em FortdeFrance capital da Martinica Césaire conseguiu em 1931 uma bolsa de estudos para ingressar no Liceu LouisleGrand em Paris onde conheceu Léopold Senghor quem quase três décadas depois se tornaria presidente do Senegal De 1935 até 1939 Césaire deu continuidade aos seus estudos na renomada École Normale Supérieure conhecida por formar a elite acadêmi ca e administrativa da França após ter sido aprovado num processo seletivo altamente competitivo e desgastante Ironicamente no momento em que Césaire estava estudando com afinco os cânones da intelectualidade europeia e sobretudo francesa para ingressar nesta instituição ele também se dedica va junto com Senghor e outros intelectuais da diáspora negra em Paris como é o caso do escritor e político guianense León Damas à concepção do jornal LEtudiant Noir O Estudante Negro onde em 1935 é cunhado o termo negritude por meio do qual rejeitase a internalização do saber eurocêntrico ou a assimilação cultural por parte da comunidade negra da França e do resto do mundo KELLEY 2000 Embora o termo negritude tenha sido empregado pela primeira vez por Césaire ele próprio reconhece tratarse de um conceito coletivamente gesta do por intelectuais negros CÉSAIRE 2006 Ao evocar a valorização da cul tura negra e o repúdio ao racismo francês a negritude no entendimento de Césaire expressava uma revolta contra os discursos de verdade veiculados pelo mundo capitalista de supremacia branca CESAIRE 2006 RABAKA 2015 Tais discursos propagavam a ideia do negro bárbaro primitivo promíscuo incapaz de construir uma civilização RABAKA 2015 WILDER 2005 sem passado deslocado da história e da vida política Césaire chama a atenção para o estabelecimento de uma série de relações discursivas hierárquicas entre colonizador e colonizado construídas durante séculos de hegemonia cultural Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 37 14012021 1706 Marta Fernandéz 38 ocidental que naturalizavam uma série de preconceitos que inferiorizavam o negro visàvis o branco CÉSAIRE 2006 Para Césaire contudo as ditas civilização e racionalidade ocidentais dependiam da invenção do Outro como bárbaro para se afirmarem enquanto tais CÉSAIRE 2000 Antes de ser um termo descritivo e passivo a negritude era um termo nor mativo e ativo O termo pretendia ser um grito de resistência à opressão colo nial Concebida por Césaire como uma atitude ativa e ofensiva do espírito uma revolta de fato a negritude desempenhou um papel fundamental de catalisador dos movimentos de independência africanos na década de 1960 CÉSAIRE 2006 p 87 De acordo com Rabaka 2015 p 184 a negritude em Césaire utilizava palavras como armas fighting words voltadas para a práxis política para a revolução social e para a renovação cultural Influenciado por Marx e Hegel Césaire acreditava que o passo prévio à ação à movimentação anticolonial era a desalienação e o reconhecimento da diferença Para tanto faziase necessário desensinar a linguagem do coloniza dor que havia instilado sobre milhares de colonizados o medo o complexo de inferioridade o desespero e a bajulação visàvis seus pretensos superiores A condição prévia para todo despertar políticocultural deveria começar por tanto com a explosão de uma identidade largo tempo contrariada por vezes negada e finalmente liberada CÉSAIRE 2006 A liberação da identidade correspondia ao momento de desalienação quando seria revelada a farsa o caráter nada objetivo da identidade pejorativa atribuída ao negro pelo branco A emancipação só se tornaria possível uma vez que se desvelasse a natureza artificial e opressora das estruturas epistemológicas do colonizador as quais conforme sabemos por Marx limitam a capacidade do dominado de intervir na realidade a fim de modificála Somente quando o negro deixasse de ser ver como uma coisa e adquirisse consciência dos processos de coisifica ção CÉSAIRE 2000 e de desumanização levados a cabo pelo colonizador é que ele poderia se empoderar como sujeito político deixando de ser um mero instrumento de produção à mercê do capitalismo Esse movimen to de desalienação foi descrito por JeanPaul Sartre como um processo de completo desnudamento ou de destruição da verdade de outros antes que os negros revolucionários fossem capazes de construir suas próprias ver dades SARTRE 1976 Desse modo além de liberada dessa imagem hos til da diferença projetada pelo colonizador a identidade negra deveria ser Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 38 14012021 1706 Aimé Césaire as exclusões e violências da modernidade colonial denunciadas em versos 39 afirmada positivamente por meio de um movimento de resgate do mérito da cultura da civilização do estilo e da singularidade das sociedades colo nizadas CÉSAIRE 2006 A busca do reconhecimento e da individualidade por parte do negro co lonizado envolve um processo dialético à la Hegel Tal processo é evidencia do por exemplo na releitura feita por Césaire da peça teatral A Tempestade 1611 de Shakespeare para o teatro negro onde se promove o encontro entre Próspero imaginado como o colonizador e Caliban representado como o negro escravizado que deseja liberdade e resiste ao seu mestre CÉSAIRE 2002 Na posição do colonizador Próspero é representado como um lócus de poder devido sobretudo à sua habilidade de produzir um discurso que assume status de verdade KHOURY 2006 Por meio do monopólio de tal discurso Próspero oblitera a subjetividade de Caliban de dois modos prin cipais i Caliban é um nome imposto e ii a história de Caliban é negada KHOURY 2006 A fim de ter sua identidade reconhecida Caliban resiste ao discurso imposto pelo colonizador que ele reconhece lhe foi ensinado com o mero intuito de permitilo entender as ordens do seu mestre E assim o mesmo discurso que permite a Próspero explorar Caliban se volta contra ele uma vez que seu escravo se vale desse mesmo discurso para resistir seja maldizendo seu senhor na sua mesma língua seja recusandose a compare cer diante dele quando convocado pelo nome que lhe foi imposto KHOURY 2006 Por outro lado Caliban produz uma contranarrativa que desautoriza a história oficial monopolizada por Próspero na medida em que o apresen ta como um usurpador da ilha um traidor da hospitalidade e sobretudo como um mentiroso KHOURY 2006 Outro movimento feito por Caliban no sentido de afirmar sua história em contraposição à História de Próspero é lutar pela dignidade dos seus ancestrais do seu passado da sua história representados metaforicamente na peça pela figura da sua mãe Sycorax degradada por Próspero KHOURY 2006 Ao negar a verdade do discurso de Próspero Caliban resiste ainda que no marco do contexto discursivo do seu opressor A resistência de Caliban desse modo opera nos interstícios do contexto discursivo do colonizador nas frestas e oportunidades apresentadas pela sujeição discursiva BHABHA 1997 KAPOOR 2003 Por meio do seu gesto Caliban desautoriza o saber colonial o torna ambivalente obstruindo sua plena presença BHABHA 1997 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 39 14012021 1706 Marta Fernandéz 40 No curso da peça Caliban resiste ao status de não identidade que lhe foi imposto por Próspero não apenas por meio das estratégias acima menciona das mas também resgatando traços de uma cultura alternativa africana para afirmar sua subjetividade diante do seu senhor a exemplo das canções dedi cadas à Shango deus do trovão e dos raios ou de termos africanos como é o caso de Uhuru que significa liberdade KHOURY 2006 Esses momentos revelam a dimensão cultural conferida à ideia de negritude por Césaire já que por meio de Caliban resgatamse experiências acumuladas presentes na memória coletiva dos povos negros colonizados e inclusive no inconsciente coletivo CÉSAIRE 2006 Nesse sentido a batalha de Caliban por reconhe cimento é travada antes de tudo no terreno cultural já que se volta contra o discurso de verdade do colonizador contra a universalidade do seu saber e contra a exclusividade da sua narrativa Por isso na peça o alvo inicial de Caliban é a destruição dos livros de Próspero KHOURY 2006 Todavia Césaire vai além do embate no campo discursivo ao apresentar no final da peça numa clara mostra de sua influência hegeliana uma batalha física entre os dois antagonistas os quais revelam a necessidade de lutar a fim de obterem reconhecimento e individualidade HEGEL 2003 Embora Caliban tenha dito que prefere a morte à humilhação Césaire não pode permitir que isso ocorra tendo em vista que sua morte simbolizaria a vitória da perpetuação da opressão e a morte de todos os povos colonizados KHOURY 2006 A bata lha final por sua vez deixa claro a interdependência entre os personagens já que ao não matar Caliban Próspero admite que a sua própria identidade é definida pelo Outro escravizado KHOURY 2006 Desse modo a despeito da aparência de força absoluta do opressor ele precisa do reconhecimento por parte do subalterno BHABHA 1997 A colonização para o teórico pósco lonial indiano Homi Bhabha é uma empresa profundamente contraditória já que a confiança do colonizador na sua superioridade racial e civilizacio nal é constantemente enfraquecida pela ambivalência expressa na busca do reconhecimento de tal superioridade aos olhos do colonizado alguém tido pelo colonizador como dissimulado não confiável e como um mentiroso con gênito KRISHNA 2009 A releitura de Césaire nos ajuda a entender esse processo por meio do qual o colonizador teme e daí se diferencia do Outro colonizado mas ao mesmo tempo precisa e deseja o Outro para ser reco nhecido como superior Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 40 14012021 1706 Aimé Césaire as exclusões e violências da modernidade colonial denunciadas em versos 41 A reivindicação do reconhecimento e do direito à diferença negra em Césaire vem acompanhada por um humanismo radical RABAKA 2015 Logo ao mesmo tempo em que Césaire clama pelo reconhecimento da irre dutível singularidade da identidade negra ele também defende a igualdade entre todos os seres humanos sob a forma de um universalismo ressignifi cado que não subsuma a diferença mas que inclua os direitos das múltiplas realidades culturais CÉSAIRE 2006 WALLERSTEIN 2006 Esse novo universalismo revelase crítico em relação ao pretenso universalismo do Iluminismo que arroga para o si o monopólio sobre o significado de humano e cujas bandeiras de liberdade igualdade e fraternidade não são extensivas à toda humanidade RABAKA 2015 Nesse sentido os teóricos da negritu de em geral e Césaire em particular denunciavam as inconsistências entre a política colonial francesa e os valores universais da república francesa ex pondo o provincianismo e seletividade do universalismo francês RABAKA 2015 Em contraposição a esse falso universalismo da Revolução Francesa Césaire urge pelo reconhecimento da especificidade da comunidade negra não como uma antítese ou como uma negação da universalidade mas antes como um passo em sua direção CÉSAIRE 2011 Para Césaire acessar o uni versal envolve necessariamente radicalizar o particular aprofundar a especi ficidade da comunidade negra CÉSAIRE 2006 WILDER 2005 Nas suas palavras1 O Ocidente nos disse que a fim de sermos universais temos que começar negando que somos negros eu ao contrário disse para mim mesmo que quanto mais negros nós formos mais universais seremos CÉSAIRE 2011 tradução nossa Todavia o esforço de Césaire no sentido de combinar seu humanismo universal com o seu particularismo não foi suficientemente desenvolvido WILDER 2005 p 290 revelando segundo Rabaka uma série de contradições teóricas ao oscilar entre de um lado a afirmação violenta de uma identidade negra e africana e de outro lado um desejo de transcender as concepções eurocêntricas sobre o mundo colonial por meio da celebração de um humanismo radical RABAKA 2015 p 2001 Talvez estas contradições apontadas se expliquem pelo fato do seu humanismo crítico ter um propósito 1 The West told us that in order to be universal we had to start by denying that we are black I on the contrary said to myself that the more we were black the more universal we would be CÉSAIRE 2011 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 41 14012021 1706 Marta Fernandéz 42 antes de tudo políticoestratégico de fomento às lutas anticoloniais da sua época do que teóricoanalítico A tentativa de Césaire de conciliar o universal com o particular pode ser investigada por meio das suas desavenças com o Partido Comunista Francês PCF pelo qual ele se elege deputado em 1946 O encantamento de Césaire com o Partido teve vida curta já que decepcionado com a reação tímida dos comunistas franceses face às denúncias dos crimes cometidos por Stálin dez anos depois logo após a revolta húngara de outubro ele escreve uma carta para o então SecretárioGeral do Partido Maurice Thorez declaran do sua intenção de se desvincular do Partido Entre os vícios identificados por Césaire na carta de renúncia está a convicção por parte dos comunistas compartilhada com os burgueses europeus da superioridade unilateral do Ocidente ou seja a crença na ideia de que a evolução tal como ocorreu na Europa é a única possível e desejável CÉSAIRE 2010 Em última instân cia Césaire está por meio da carta criticando a internalização por parte dos comunistas franceses do mesmo universalismo abstrato iluminista que informou a aventura colonial francesa ou seja de um universalismo que com a sua fé no progresso e na civilização acaba por excluir grande parte da humanidade que é entendida como estando situada em estágios atrasados de desenvolvimento e como dependentes do Ocidente para sal válas de tal condição Desse modo Césaire reivindica a descolonização do próprio marxismo não o renega completamente mas prevê um marxismo situado matizado pela negritude colocado à serviço dos povos negros O universalismo teórico metafísico do marxismo que pregava a solidarieda de entre os proletários do mundo inteiro mas que era míope em relação às questões raciais e às opressões específicas das sociedades colonizadas não lhe interessava Césaire não compartilhava do reducionismo economicista do marxista posto que considerava a questão racial central para a perpe tuação da exploração no sistema capitalista e não a vê meramente como um epifenômeno ou como subsidiária à luta de classes GROSFOGUEL 2006 Nesse sentido não bastava que a esquerda chegasse ao poder na França ou que as condições econômicas se modificassem já que para Césaire o negro é duplamente explorado e alienado não apenas como classe desfa vorecida mas sobretudo racialmente por ser negro CÉSAIRE 1972 O desfazimento da hierarquia de classe portanto não é condição suficiente Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 42 14012021 1706 Aimé Césaire as exclusões e violências da modernidade colonial denunciadas em versos 43 para o fim da exploração colonial já que esta hierarquia se sobrepõe a uma outra igualmente estruturante a racial Nesse sentido apesar de ter terminado seu ensaio Discourse on Colonialism 1950 fazendo um apelo à união dos proletários o chamado mais sistemáti co de Césaire é pela solidariedade dos povos negros do mundo inteiro para combater a discriminação Antecipando as objeções que a sua carta à Thorez suscitaria Césaire coloca Provincialismo Absolutamente Não me enterro em um particularismo estreito Mas também não quero me perder num universalismo descarnado Existem duas maneiras de se perder pela segregação amuralhada no particular ou pela diluição no universal Minha concepção do universal é a de um universal depositário de todos os particularismos aprofundamento e coexistência de todos os particulares CÉSAIRE 2010 p 152 tradução nossa Na medida em que a questão racial adquire centralidade Césaire condena o paternalismo europeu que confere aos países ditos avançados uma respon sabilidade revolucionária especial Se a Europa internalizou o racismo e se esse racismo atravessa as diferentes classes sociais ela não tem na visão de Césaire autoridade para liderar a revolução que deve ser obrada pelos próprios negros Com esse objetivo em mente Césaire funda dois anos depois da sua saída do PCF o Partido Progressista da Martinica que herda essencialmente o eleitorado do Partido Comunista WALLERSTEIN 2006 O cetismo em relação à proposta de Césaire em combinar o particular e o universal está relacionado também ao fato de que sua visão sobre o par ticular por vezes ter sido considerada como tão extremada que beirava o essencialismo de tal sorte que seria impossível que o particular coexistisse ou mesmo que fosse transcendido para dar lugar a um outro tipo de lealda de universal centrada numa humanidade cosmopolita Os que contestam o suposto essencialismo de Césaire consideram que o poeta adota uma visão um tanto quanto romantizada do negro e expressa um senso de nostalgia por um passado africano ao qual já não podemos regressar Para Bhabha 1997 por exemplo não existe uma presença ou identidade por detrás da máscara branca utilizada pelo homem negro FANON 1985 e nesse sentido não existe como Césaire parece supor uma essência de presença africana atrás do Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 43 14012021 1706 Marta Fernandéz 44 processo de colonizaçãocoisificação Informado por Derrida para Bhabha o retorno para uma identidade nativa pura ou a busca por uma história na cional autóctone verdadeira conduz a um etnocentrismo sob a forma de um racismo às avessas uma vez que reproduz a própria estrutura binária de significação KAPOOR 2003 Nas palavras de Bhabha 1997 p 24 O extremismo odioso do nacionalismo sérvio prova que a própria idéia de uma identidade nacional pura etnicamente purificada só pode ser atingida por meio da morte literal ou figurativa dos complexos entrelaçamentos da história e por meio das fronteiras culturalmente contingentes da naciona lidade moderna Por meio da citação acima Bhabha expõe não só os perigos mas tam bém a impossibilidade de se acessar uma identidade nacional pura ou ori ginária KAPOOR 2003 Por outro lado Eugenio Matibag 1991 chama a atenção para o fato de que a afirmação de Césaire sobre a existência de uma identidade caribenha singular ou de um Self afroantilhano se dá por meio de exclusões violentas de todos os outros elementos culturais que formaram a cultura do Caribe incluindo as contribuições indígenas asiáticas e até mesmo dos europeus Para Matibag 1991 devese indagar se um verdadeiro discurso caribenho de descolonização deve conduzir à negação ou desvalo rização de tais contribuições reiterando desse modo exclusões inscritas no discurso colonial O autor adverte que o conceito de identidade empregado por Césaire se tornou suspeito no âmbito das teorizações antiessencialistas que problematizam a noção cartesiana de sujeito O ataque pósestruturalis ta à ideia de um Self unificado coloca em xeque por exemplo o clamor por uma identidade especificamente caribenha Todavia fazse importante frisar que para Matibag isso não desqualifica o chamado de Césaire por uma iden tidade original tendo em vista que em um contexto de Terceiro Mundo o anúncio pósmoderno de morte do sujeito soa não apenas como prematuro mas como cúmplice do sistema capitalista mundial que dispersou e anulou a subjetividade individual Compartilhamos do argumento de Matibag de que no contexto caribenho o chamado pelo sujeito pode representar um refúgio ou uma importante fonte de resistência contrahegemônica MATIBAG 1991 Argumentamos aqui que o essencialismo de Césaire não pode ser entendido Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 44 14012021 1706 Aimé Césaire as exclusões e violências da modernidade colonial denunciadas em versos 45 à parte do contexto histórico de lutas anticoloniais no qual está situado ele está voltado para ação para suscitar transformação política A essencialização pela via da afirmação violenta de uma identidade obrada por Césaire fun ciona como uma estratégia de resistência voltada para um contexto histórico específico e sugere o caráter provisório e político da inversão do binarismo colonizador em prol do colonizado A celebração da herança negra por Césaire aparece pela primeira vez no seu poema Diário de um Retorno ao País Natal publicado em Paris em 1939 CÉSAIRE 2012 Embora nesse mesmo ano Césaire tenha de fato retornado à sua terra natal junto com Suzanne Roussi também da Martinica e parte do círculo intelectual do jornal O Estudante Negro com quem o poeta se casa em 1937 o regresso é metafórico pois diz respeito ao processo de redesco brimento do seu país possibilitado pelo contato com o colonizador francês De fato a inspiração ou a mediação metafórica para o seu poema veio bem antes do seu efetivo retorno para Martinica quando durante sua estadia na Iugoslávia a convite do amigo Petar Guberina Césaire avista uma ilha no mar Egeu chamada Martinska que lhe recorda sua terra natal SUK 2001 p 28 Vale lembrar que o poema foi praticamente ignorado no momento da sua publicação até ser endossado pelo famoso escritor surrealista francês André Breton que conhece Césaire agora professor do mesmo Liceu Schoelcher que frequentou quando adolescente quando realiza uma visita à Martinica durante a Segunda Guerra No Diário a capital da Martinica é descrita como uma terra alienada des provida de vida e habitada por zumbis colonizados CÉSAIRE 1972 RABAKA 2015 O remédio para tal inércia prescrito por Césaire no poema é o retorno e a conciliação dos antilhanos com as suas raízes africanas Assim como em outros escritos Césaire enaltece o passado das sociedades africanas cujas essências foram drenadas pelo colonialismo e que são tidas pelo poeta como comunais democráticas cooperativas fraternais e nesse sentido não como précapitalistas mas antes de tudo anticapitalistas CÉSAIRE 2000 Tais sociedades para Césaire poderiam vir a oferecer lições valiosas ao Ocidente sobre a construção de mundos alternativos KELLEY 2000 Nesse ponto é importante salientar em discordância daqueles que chamam a atenção para o essencialismo contido na noção de negritude de Césaire que a sua proposta de investigação do passado africano não é estéril mas dinâmica e orientada Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 45 14012021 1706 Marta Fernandéz 46 para o futuro mas obviamente não o futuro prescrito pela dita civilização europeia O futuro do mundo deveria incluir na sua configuração os saberes e experiências das sociedades ancestrais africanas Todavia isso não signifi ca que para Césaire esse passado particular africano deva ser replicado na sua inteireza e universalizado não apenas porque o poeta tem consciência da inviabilidade prática de se resgatar uma história inviolada por séculos de colonialismo mas também porque ao expor tal visão ele se tornaria alvo da mesma crítica que dirige ao universalismo ocidental Nesse sentido a iden tidade africana a Africanité existe para Césaire enquanto uma experiência histórica particular assim como a história europeia que para usar os termos de Dipesh Chakrabarty é vista de forma provincializada CHAKRABARTY 2000 Nesse sentido o universalismo de Césaire é portador de múltiplas par ticularidades culturais e históricas Por outro lado como Césaire faz questão de esclarecer na Primeira Conferência Hemisférica dos Povos Negros da Diáspora realizada na Universidade Internacional da Flórida em 1987 sua concepção de Negritude não tem uma conotação biológica CÉSAIRE 2006 Na ocasião ele indaga sobre o mínimo denominador comum que reúne os participantes na conferên cia em Miami e no mesmo parágrafo ele mesmo responde que não é a cor da pele senão o fato de se relacionarem de uma forma ou de outra com grupos humanos que experimentaram as piores violências da história seres margi nalizados e oprimidos CÉSAIRE 2006 E mais adiante ele coloca em seu discurso que a negritude constitui uma comunidade particular em primeiro lugar pelo fato de seus membros terem uma experiência compartilhada de opressão exclusão e discriminação mas também de resistência luta pela liberdade e esperança CÉSAIRE 2006 Tais experiências não são transmi tidas via cromossomos como bem destaca Césaire mas sim por meio de uma memória coletiva inclusive inconsciente Para Césaire ninguém chega ao mundo como uma tábula rasa mas todos nós carregamos um patrimônio cultural acumulado que pode nos ser revelado através da poesia do imaginá rio e das obras de arte CÉSAIRE 2006 A poesia nesse sentido cumpriria um papel fundamental para Césaire na reativação dessa memória coletiva Césaire entendia a poesia como uma arma como uma explosão uma forma de romper com as tradições literárias francesas CÉSAIRE 1972 WILDER 2005 Nas palavras de Césaire O conhecimento poético nasce do grande Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 46 14012021 1706 Aimé Césaire as exclusões e violências da modernidade colonial denunciadas em versos 47 silêncio do conhecimento científico CÉSAIRE 1990 p xlii tradução nos sa O conhecimento científico prossegue Césaire enumera mede classifica e mata CÉSAIRE 1990 p xlii tradução nossa A poesia de Césaire é car regada de fúria de revolta de emoções em contraposição ao conhecimento dito científico hegemônico no modo ocidental baseado em evidências em píricas e se quer apolítico e impessoal marcado pelo distanciamento entre o pesquisador e o seu objeto de estudo Para Césaire o conhecimento científico despersonaliza e desindividualiza CÉSAIRE 1990 p xlii tradução nossa A poesia de Césaire diferentemente tem entre os seus principais propósitos promover o autoconhecimento manifestandose como um vulcão que explode a partir do acúmulo de experiências difíceis de serem traduzidas WILDER 2005 p 280 Contudo a poesia de Césaire não é um exercício individualis ta de autoconhecimento mas está voltada para reconectar o indivíduo com a coletividade e com o cosmos CÉSAIRE 1990 p xlix Poeta engajado Césaire deixa clara a vocação política da sua poesia que contribuía para a desalienação dos colonizados e ao fazêlo para religar as pessoas às suas histórias de dor e sofrimento compartilhados Além de en trelaçar as histórias dos povos colonizados a poesia de Césaire conforme argumenta Wilder 2005 também reconfigurava a temporalidade e a espacia lidade do Estadonação imperial Conforme mencionamos anteriormente os teóricos da negritude denunciavam as incoerências entre a França ultramarina e a França continental De acordo com Bruno Charbonneau a República da França sempre foi vista como desconectada do império francês o que dava lugar a uma representação de duas Franças separadas e diferentes Essa fron teira bem demarcada entre essas duas Franças não deixava por exemplo que a França imperial contaminasse a França republicana camuflando dessa for ma as inconsistências da República e preservando o projeto universalista que havia informado a Revolução Francesa CHARBONNEAU 2008 A poesia revolucionária de Césaire contribuía justamente para embaralhar e interpe netrar essas duas Franças desestabilizando essa clara linha de demarcação entre esses dois espaços o espaço continental e o espaço ultramarino Wilder 2005 identifica na poesia de Césaire um processo de condensação similar ao que Freud identificou nos sonhos onde múltiplos espaços e tempos se tornam idênticos deixando de estarem constrangidos pelas coordenadas da realidade empírica Enquanto a plena cidadania e a autonomia nacional são Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 47 14012021 1706 Marta Fernandéz 48 constantemente adiadas para os sujeitos coloniais se tornando uma promes sa para um tempo futuro not yet Césaire através da sua poesia localiza es ses sujeitos no tempo presente movendo a história colonial e africana para o presente always now WILDER 2005 p 268 Desse modo na poesia de Césaire os sujeitos coloniais as histórias précoloniais de dignidade e beleza e as histórias coloniais de opressão e racismo irrompem com fúria na república francesa perturbando a lógica espaçotemporal que tanto havia contribuído para a estabilização do Império francês Césaire não nega suas influências francesas afinal enquanto poeta se ex pressa em francês e foi claramente influenciado pela literatura francesa mas apesar de tomar como ponto de partida elementos da literatura francesa seu objetivo é o de construir uma nova linguagem capaz de comunicar a herança africana CÉSAIRE 1972 Dito de outro modo para ele a língua francesa é vista como um instrumento uma janela de oportunidade voltada para o desenvolvimento de novos modos de expressão especificamente africanos CÉSAIRE 1972 Enfim seu intuito é o de criar um francês negro que ainda que continue sendo francês tenha um caráter negro CÉSAIRE 1972 Nesse sentido Césaire faz coro à proposta de sua esposa Suzanne de canibalizar a literatura caribenha SHARPLEYWHITING 2003 p 117 A ideia de caniba lizar a poesia martinicana diz respeito ao ato de se apropriar deformar recon figurar a cultura ocidental branca seus instrumentos teóricos e a sua língua na exploração e articulação das especificidades da Martinica SHARPLEY WHITING 2003 O movimento defendido por Césaire é o de conquistar dominar o francês para recriálo WILDER 2005 p 280 Podemos pensar na poesia canibal da mesma forma que a figura do Caliban de Shakespeare adaptado por Césaire ou seja como revolucionária uma vez que representa uma provocação à civilização europeia CAVALCANTE 2012 Esse ges to revolucionário era especialmente necessário na Martinica entendida por Césaire conforme vimos como uma terra alienada Césaire conta por exem plo a história de um farmacêutico pobre da Martinica que se sentiu orgulhoso quando um dos seus poemas ganhou um concurso já que de tão impessoal seu poema não foi reconhecido pelo jurado como tendo sido escrito por um negro CÉSAIRE 1972 O objetivo de Césaire diferentemente era conferir cor negritude às suas poesias objetivo esse que parece ter sido alcançado logo na sua primeira experiência poética notória De fato Fanon nos lembra Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 48 14012021 1706 Aimé Césaire as exclusões e violências da modernidade colonial denunciadas em versos 49 que o poema de Césaire causou um escândalo porque Césaire era um negro formalmente educado que havia estudado no legendário Liceu LouisleGrand e na estimada École Normale Supérieure e os negros educados simplesmente não queriam ser negros eles queriam ser brancos e absurdamente pensavam sobre si e seus trabalhos como brancos e como contribuições para civilização europeia WILDER 2005 Esse movimento de canibalizar a literatura francesa fica claro quando pensamos na influência surrealista que incide sobre a poesia de Césaire Na entrevista concedida à Depestre Césaire comenta que para ele o surrealis mo era uma arma que explodia a língua francesa um fator de libertação que ajudava na evocação das poderosas forças do inconsciente rumo à busca de uma identidade negra Nesse sentido o surrealismo era colocado à serviço da negritude já que os surrealistas coloca Césaire eram tão incolores quanto os comunistas franceses CÉSAIRE 1972 Essa atitude canibal é bem sintetizada por Sartre quem nos diz Surrealismo um movimento poético europeu foi roubado dos europeus pelos negros que se valeram do surrealismo contra a Europa SARTRE 1976 p 39 tradução nossa Podemos concluir que é impossível pensar em Césaire sem pensar no surrealismo no marxismo e na filosofia hegeliana por exemplo Todavia também é impossível pensar em Césaire sem levar em conta seu esforço cria tivo de recentramento de todas essas influências a partir do olhar crítico da negritude e desse modo de introduzir a questão racial como um traço cons titutivo do sistema capitalista mundial O HOLOCAUSTO COLONIAL A GENEALOGIA SILENCIADA PELO OCIDENTE No contexto do pósSegunda Guerra de revolta e descolonizações Césaire publica sua prosa poética Discourse on Colonialism 1950 definido por Robin Kelley como uma declaração de guerra KELLEY 2000 p 7 No livro Césaire antecipa as ideias desenvolvidas por Fanon 2004 e mais adiante por Ashis Nandy NANDY 1989 de que a colonização não pode ser entendida como um jogo soma zero ou como uma empreitada onde os efeitos são unilaterais incidindo apenas sobre as sociedades colonizadas É importante salientar contudo que Nandy tem uma dívida com George Orwell que já em 1936 no Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 49 14012021 1706 Marta Fernandéz 50 conto Atirando num Elefante havia chamado a atenção para os efeitos no civos da colonização sobre os colonizadores No conto Orwell nos fala sobre os dilemas de um policial birmanês diante da expectativa dos colonizados de que ele matasse um elefante que no seu ponto de vista parecia inofensivo No final do conto a contragosto mas atendendo às expectativas depositadas pela multidão sobre ele o policial aperta o gatilho diversas vezes contra o elefante Orwell conclui que o ato de dominar por parte do homem branco envolve necessariamente impressionar os nativos Os efeitos da colonização sobre o homem branco ficam muito claros na seguinte passagem de Orwell percebi que quando o homem branco se tiraniza é a sua própria liberda de que ele destrói ORWELL 1936 Césaire insiste nos efeitos da colonização sobre os próprios colonizadores que no processo se embrutecem e se animalizam Enfim um dos principais argumentos de Césaire no seu Discourse on Colonialism é que a colonização descivilizou os civilizados tendo um impacto não apenas sobre os coloniza dores mas também sobre o próprio conceito de civilização CÉSAIRE 2000 Nos encontros diários entre colonizador e colonizado o primeiro se valeu de uma série de instrumentos de poder como a tortura a violência brutal o ódio racial a intimidação e o trabalho forçado que lhe conduziram para o abismo da barbárie CÉSAIRE 2000 Essa visão é compartilhada por Fanon quando relata o caso de um policial que ao torturar na Argélia se torna violen to com a mulher e os filhos FANON 2004 Enfim primeiro Césaire depois Fanon que foi seu aluno na Martinica destacam os efeitos psicológicos da colonização sobre os seus algozes Segundo Césaire o hábito de ver o Outro como um animal e tratálo enquanto tal o transforma no final das contas num animal CÉSAIRE 2000 Para ambos os autores portanto as práticas brutais empregadas pelo colonizador nas colônias contaminam sua identidade públi ca e privada Não há como para o torturador ser um Eichmann nos termos de Hanna Arendt isto é um criminoso que apenas cumpre sua obrigação o seu dever mas que na sua vida privada é um ser humano normal um bom pai de família e que não nutre o ódio pelas vítimas de seus crimes ARENDT 2013 O resultado final desse efeito boomerang destacado por Césaire é a degradação da própria Europa CÉSAIRE 2000 E o melhor exemplo disso para Césaire foi a experiência do nazismo Na sua interpretação sobre o na zismo ele não é como usualmente entendido uma aberração uma anomalia Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 50 14012021 1706 Aimé Césaire as exclusões e violências da modernidade colonial denunciadas em versos 51 da civilização ocidental CÉSAIRE 2000 Longe de estar no contrafluxo da modernidade o nazismo para Césaire é um desenvolvimento lógico da própria civilização ocidental O nazismo é lido como o totalitarismo colonial trazido de volta para a Europa De acordo com tal leitura os europeus tolera ram legitimaram e absolveram o nazismo antes que lhes impactassem por que até então ele era aplicado exclusivamente aos povos não europeus Por conseguinte antes de terem sido vítimas do nazismo eles foram cúmplices O grande crime do nazismo o poeta denuncia teria sido justamente a aplica ção para os povos brancos dos procedimentos coloniais até então reservados para o mundo colonial CÉSAIRE 2000 Nas palavras de Césaire o que o europeu2 não pode perdoar em Hitler não é o crime em si o crime con tra o homemmas o crime contra o homem branco CÉSAIRE 2000 p 36 Enfim para Césaire o nazismo representa uma continuação da expan são modernacolonial europeia e não uma deformação histórica do Ocidente VALENCIA 2007 O conjunto de práticas racistas e genocidas europeias contra o mundo não civilizado termina afetando o espírito e a mentalidade do colonizador suscitando a aplicação de tais práticas no interior da Europa numa espécie de colonialismo interno VALENCIA 2007 Desse modo o que causou estupor no nazismo foi como argumenta Edward Keene 2002 o fato de os europeus terem experimentado pela primeira vez a desconfortável sensação de serem eles mesmos alvos de discriminação ra cial por parte da Alemanha nazista Nesse novo contexto como coloca Keene 2002 o discurso da supremacia biológica da raça branca é desestabilizado já que seria estranho continuar afirmando a supremacia da raça branca sobre as africanas e asiáticas enquanto simultaneamente se negava a validade dos esforços nazistas de demonstrar a supremacia ariana Assim segundo Keene ao projetar a civilização contra o nazismo seus defensores estavam inevita velmente colocando em questão os velhos pressupostos sobre as fronteiras raciais do mundo civilizado Enfim tanto Keene quanto Césaire borram a clara linha de demarcação entre a Europa e o mundo colonizado ou entre progresso europeu e o atraso colonial ao chamarem a atenção para a presença 2 cannot forgive Hitler for is not the crime in itself the crime against man it is the crime against the white man CÉSAIRE 2000 p 36 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 51 14012021 1706 Marta Fernandéz 52 do colonizado e do atraso no Eu europeu Segundo Césaire existe um Hitler que habita em cada humanista cristão e burguês europeu CÉSAIRE 2000 As ambiguidades da modernidade aqui enfatizadas revelam a existência de múltiplas genealogias para além do espaço europeu Como bem destacado por Timothy Mitchell 2000 p 1213 desvelar a genealogia plural do que unificamos sob o rótulo de modernidade coloca em questão sua coerência Césaire introduz na genealogia europeia a dimensão colonial e racial pertur bando as genealogias produzidas por autores europeus que mesmo estando situados num registro crítico como é caso de Foucault minimizaram tais di mensões3 Ao negligenciar as genealogias coloniais da modernidade Foucault não devota atenção suficiente por exemplo para o papel que o Outro colonial ou a alteridade colonial desempenha e continua desempenhando na pro dução da modernidade europeia Uma das grandes contribuições de Césaire nesse sentido portanto é de nos ajudar a entender as origens extraeuropeias da modernidade e a natureza dependente da Europa Antecipando a famosa alegação de Fanon de que a Europa é literalmente uma criação do Terceiro Mundo Césaire argumenta que o senso de superioridade e de missão dos colonizadores dependem em transformar o Outro num bárbaro KELLEY 2000 p 9 Todavia essa construção binária por meio da qual a Europa ci vilizada se constrói por oposição à barbárie projetada no mundo colonial é instável já que no curso do processo de colonização o humanismo do co lonizador que já havia sido desmascarado nas vidas diárias do colonizado com o nazismo revela sua farsa no seio da própria Europa Com o nazismo portanto a violência colonial e racial tal qual nos versos de Césaire irrompe com força nos espaços de conforto da modernidade Longe de ser exceção desvio deformação da modernidade Césaire inova ao conceber o nazismo como uma prática corriqueira da modernidade cotidianamente experimen tado e sentido nos corpos e espaços coloniais Césaire nos mostra portanto os limites do pseudohumanismo europeu a ideia de que os direitos do homem do século XVIII e logo os direitos humanos 3 Essa crítica é desenvolvida com mais detalhes no seguinte artigo Moreno Marta Beyond PostStructuralism Empowering Post colonial Societies FLACSOISA Conference Global and Regional Powers in a Changing World Buenos Aires 2014 Disponível em http webisanetorgWebConferencesFLACSOISA20BuenosAires202014Archive a9fb02ab328d4ce7a27a12a325f4b661pdf Acesso em 14 jan 2019 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 52 14012021 1706 Aimé Césaire as exclusões e violências da modernidade colonial denunciadas em versos 53 da metade do século XX não são extensivos à toda humanidade senão que se reduzem aos direitos do homem europeu GROSFOGUEL 2006 Nesse sentido Césaire nos convida a repensar os direitos humanos desde o ponto de vista das margens da experiência póscolonial marcada pela violência e pela injustiça Enfim Césaire nos intima a descentrar a Europa da sua posição totalizante e a particularizar a sua história e com ela o Holocausto lançan do luz para os inúmeros holocaustos vivenciados pelos povos colonizados invisíveis no marco da modernidade A conclusão de Césaire é aquela que abre esse artigo qual seja a Europa é indefensável e decadente já que incapaz de resolver os problemas que sus cita seu funcionamento sobretudo o colonial CONSIDERAÇÕES FINAIS O principal objetivo deste capítulo foi o de chamar a atenção para os limites e ambiguidades do universalismo europeu denunciados em versos por Césaire O capítulo foi introduzido a partir do atual drama dos migrantes que aden tram a Europa e que vêm sendo alvos de práticas racistas a fim de lançar luz à seletividade que ainda hoje acompanha o universalismo europeu O pensa mento de Césaire nos convida a reorientar nossos olhares em direção aos po vos póscoloniais e ao fazêlo a problematizar a noção de direitos humanos que emerge impulsionada pelo genocídio paradigmático da modernidade o Holocausto que continua privilegiando as violações que incidem sobre o homem branco europeu Muitos das questões suscitadas por Césaire e exploradas neste capítulo permanecem atuais e vêm merecendo a atenção de estudiosos póscoloniais e decoloniais contemporâneos especialmente seu chamado à descolonização das estruturas epistemológicas eurocêntricas que ainda hoje promovem a su perioridade do Ocidente visàvis seus Outros Como observamos ao longo do capítulo nem mesmo as filosofias que lhe influenciam entre elas o marxis mo o surrealismo e o hegelianismo ficam imunes à crítica que Césaire dirige a partir do seu conceito de negritude à natureza racista do saber europeu Pensar a partir de Césaire é pensar a partir desses seres humanos histo ricamente desumanizados a partir de suas dores e sofrimentos compartilha dos mas também a partir de suas potências e sensibilidades estéticas Seu Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 53 14012021 1706 Marta Fernandéz 54 pensamento prenunciou inúmeras ideias desenvolvidas posteriormente por pensadores latinoamericanos associados às perspectivas decoloniais que vêm denunciando o racismo estrutural a natureza excludente da modernidade bem como sua dependência em relação às violentas dinâmicas coloniais Suas contribuições permanecem atuais enquanto importantes contranarrativas à História contadaimposta pela Europa de Próspero que ainda hoje prospe ram pelo mundo afora Por meio de diferentes linguagens estéticas Césaire ativa imaginações referências e mundos outros como no caso daqueles de Caliban Césaire nos convida ontem e hoje a pluriversar o mundo que nos foi apresentado como uno ou a versar sobre mundos outros plurais e dinâmicos REFERÊNCIAS ARENDT H Heichmann em Jerusalém um relato sobre a banalidade do mal Tradução de José Rubens Siqueira São Paulo Companhia das Letras 2013 BHABHA H O local da cultura Belo Horizonte UFMG 1997 CAVALCANTE F G União Europeia e América Latina associação estratégica ou oposição hierárquica uma análise do discurso Tese Doutorado em Relações Internacionais Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Instituto de Relações Internacionais 2012 CÉSAIRE A Discourse on Colonialism Translated by Joan Pinkham New York University Monthly Rewiew 2000 CÉSAIRE A Carta a Maurice Thorez Social Text New York v 28 n 2 2010 CÉSAIRE A Discurso sobre la negritud Negritud etnicidad y culturas afroamericanas Discurso sobre el colonialismo Tradução de Beñat Baltza Álvarez Madrid Akal 2006 p 8591 CÉSAIRE A Diário de um retorno ao país natal São Paulo Edusp 2012 CÉSAIRE A A Tempest Based on Shakespeares The Tempest Adaptation for a Black Theatre Tradução de Richard Miller Nova York Theatre Communications Group 2002 CÉSAIRE A Poetry and Knowledge In CESAIRE A ESHLEMAN C SMITH A Lyric and Dramatic Poetry 19461982 Virginia University of Virginia Press 1990 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 54 14012021 1706 Aimé Césaire as exclusões e violências da modernidade colonial denunciadas em versos 55 CÉSAIRE A Cultural Diversity as a Factor in Development In UNESCO Echoing voices Cultural Diversity as a Path to Sustainable Development Tenth Anniversary of the adoption of the UNESCO Universal Declaration on Cultural Diversity Unesco 2011 Disponível em httpwwwunesco orgcultureaicechoingvoicesdownloadsechoingvoicespdf Acesso em 14 jan 2019 CÉSAIRE A An interview with Aimé Césaire Discourse on Colonialism New York Montly Review Press 1972 CHAKRABARTY D Provincializing Europe postcolonial thought and historical difference Princenton N J Princeton University Press 2000 CHARBONNEAU B Dreams of Empire France Europe and the New Interventionism in Africa Modern Contemporary France French v 16 n 3 2008 FANON F The Wretched of the Earth New York Grove Press 2004 FANON F Black SkinWhite Masks Chapter 5 United Kingdon Pluto Press 1985 GROSFOGUEL R Actualidad del pensamiento de Césaire redefinición del sistemamundo y proucción de utopia desde la diferencia colonial In CÉSAIRE A Discurso sobre el Colonialismo Prefácio de Mário de Andrade Madrid Ediciones Akal 2006 HEGEL G H F Princípios da Filosofia do Direito São Paulo Martins Fontes 2003 KAPOOR I Acting in a tight spot Homi Bhabhas postcolonial politics New Political Science Switzerland v 25 n 4 p 561577 2003 KELLEY R D G A Poetics of Anticolonialism In CÉSAIRE A Discourse on Colonialism New York New York University 2000 KEENE E Beyond the Anarchical Society Grotius Colonialism and Order in World Politics United Kingdom Cambridge University Press 2002 KHOURY J The Tempest Revisited in Martinique Aimé Césaires Shakespeare Journal for Early Modern Cultural Studies Pennsylvania v 6 n 2 p 2237 2006 KRISHNA S Globalization Postcolonialism Hegemony and Resistance in the Twentyfirst Century Maryland EUA Rowman Littlefield 2009 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 55 14012021 1706 Marta Fernandéz 56 MATIBAG E SelfConsuming Fictions The Dialetics of Cannibalism in Modern Caribbean Narratives Postmodern Culture Chicago EUA v 1 n 3 p 119 1991 MITCHELL T The Stage of Modernity Questions of Modernity Minnesota University of Minnesota Press 2000 NANDY A The Intimate Enemy Loss and Recovery of Self under colonialism India S n 1989 ORWELL G Atirando num Elefante Rio de Janeiro PUC 1936 Disponível em httpwwwmaxwellvracpucriobr35913591pdf Acesso em 14 jan 2019 RABAKA R The Negritude Movement WEB Du Bois Leon Damas Aime Césaire Leopold Senghor Frantz Fanon and the Evolution of the Insurgent Idea Maryland EUA Lexington Books 2015 SARTRE JP Black Orpheu French Présence Africaine 1976 SHARPLEYWHITING T Denean Suzanne Césaire Tropiques Surrealism and Negritude In BERNASCONI R ed Race and Racism in Twentieth Century Continental Philosophy Bloomington Indiana University Press 2003 SUK J Postcolonial Paradoxes in French Caribbean Writing Cesaire Glissant Condé Oxford Clarendon Press 2001 VALENCIA O B Cesaire y la formacion de pensamentos 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assiste é a multipli cação da violência e do desrespeito à liberdade a violência travada em nome da liberdade ou ainda a liberdade de alguns constantemente subjugada à liberdade de outros Se por um lado o Estado moderno encontra grande parte de sua legitimidade em nome da garantia das liberdades individual e coletiva por outro tal promessa é constantemente adiada ou indeferida para um número vertiginoso de indivíduos e grupos Muitas vezes as contradições que estão no cerne dessa questão foram associadas à forma como o liberalismo encampou a ideia de liberdade pro movendoa como valor universal na constituição das comunidades políticas ocidentais ao mesmo tempo em que a negava aos sujeitos e povos situados Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 57 14012021 1706 Lara Martim Rodrigues Selis Natália Maria Félix de Souza 58 além do Ocidente Em especial as profundas raízes coloniais do liberalismo foram evidenciadas na vida e obra de John Stuart Mill Cânone máximo do pensamento liberal no século XIX defensor irrefreável da liberdade individual sobre qualquer controle estatal Mill foi um verdadeiro patrono do projeto imperial britânico na Índia não apenas devido aos benefícios que ele traria à Inglaterra mas por acreditar em seu caráter regenerador e promotor da ci vilização Assim estudos críticos de seu legado puderam demonstrar de que maneira valores tidos como universais como o progresso a humanidade a liberdade e a paz e que estão na base do projeto político liberal atuaram como cúmplices do projeto imperial KRISHNA 2001 Críticos do liberalismo sem contudo abandonar a busca pela liberdade grande parte dos movimentos anticoloniais do século XX foram motivados por um desejo profundo de autodeterminação reconhecendo na libertação nacional a única forma de resgatar e promover a possibilidade da liberdade para os indivíduos não Ocidentais É na esteira dessas ideias e movimentos políticos que marcaram a segunda metade do século XX que se torna possí vel compreender a importância do pensamento e ativismo políticos de Frantz Fanon um dos mais influentes psiquiatras póscoloniais que promoveu uma veemente defesa da necessidade de descolonizar não somente os corpos mas também as mentes dos sujeitos coloniais marcados pela violência da colonização Em sua última obra Os condenados da Terra Fanon desfere sua mais feroz crítica ao que entende ser a hipocrisia do humanismo liberal que desumaniza o sujeito colonizado através da violência Nessa obra o autor apresenta a vio lência colonial contra o colonizador como sendo a única chave para a liberta ção do sujeito colonizado sua única possibilidade de ressurreição e recriação da humanidade Por muito tempo esquecido devido a essa polêmica defesa da violência como chave para a resistência política o pensamento de Fanon tem sido resgatado e assume crescente relevância para pensar estratégias de resistência contemporâneas Tais reflexões parecem se fortalecer diante do diagnóstico de que o fim dos processos de colonização formal dos povos não representou o fim da violência colonial sobre corpos e mentes marcados pela colonialidade Se a realidade que Fanon observa na Argélia não admite ambivalências sendo caracterizada por uma cisão absoluta entre colonizadores e colonizados o contexto da colonização indiana analisado por Ashis Nandy nos possibilita Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 58 14012021 1706 Resistência Política e impossibilidades da liberdade entre Fanon e Nandy 59 um outro olhar para compreender o processo colonial e as estratégias de resis tência política Importante psicólogo político e crítico social contemporâneo Nandy apresenta uma estratégia para lidar com as cicatrizes físicas e psíqui cas do colonialismo que pode ser considerada em grande medida como o reverso daquela proposta por Fanon para quem a reconstrução de um novo humanismo passaria pelo exorcismo violento do colonizador Profundamente inspirado pela resistência política representada por Gandhi Nandy entende a violência como uma forma de resistência que já está capturada pelo imagi nário colonial que faz de colonizadores e colonizados duas formas diferentes de vítimas do processo de colonização Assim o autor acaba desferindo uma forte crítica aos movimentos de descolonização e autodeterminação pautados na violência por entender que não é possível escapar do imaginário colonial e portanto fechar as feridas do colonialismo e refundar a possibilidade de liberdade sem reconhecer a importância de uma reconciliação entre coloni zadores e colonizados1 Dada a centralidade desses dois grandes pensadores e ativistas políticos para o pensamento decolonialpóscolonial este capítulo tem o objetivo de explorar suas diferentes contribuições acerca da resistência política e da pos sibilidade de liberdade no projeto póscolonial tendo em vista seus distintos entendimentos sobre o papel da violência como catalisadora da liberdade Se por um lado ambos reconhecem os limites da liberdade dentro dos moldes liberais e das ambições universalistasuniversalizantes do projeto colonial por outro seus diagnósticos diferem acerca dos caminhos e significados da reconstituição da liberdade para além do liberalismocolonialismo Assim não está no escopo deste capítulo oferecer uma compreensão profunda das obras desses dois importantes pensadores tarefa demasiado importante e extensa para os limites desta proposta O que se buscará ao longo destas pá ginas é investigar os pensamentos dos autores a partir de suas obras seminais 1 Uma importante reflexão acerca das distintas contribuições de Fanon e Nandy foi traçada por Shilliam 2012 ao analisar de que maneira os autores subvertem as figuras do nativo e do negro na narrativa do contratualismo liberal de Locke Os conceitos de exorcismo e reconciliação são introduzidos por Shilliam para definir as propostas de ação e resistên cia política colocadas em relevo pelos autores Nosso artigo empresta a terminologia por compreender que as reflexões aqui delineadas caminham em paralelo àquelas expostas pelo autor Para uma melhor compreensão dos conceitos ver Shilliam 2012 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 59 14012021 1706 Lara Martim Rodrigues Selis Natália Maria Félix de Souza 60 Os condenados da terra e O inimigo íntimo perda e recuperação do self sob o colonialismo a fim de apontar caminhos para compreender de que manei ra suas reflexões podem ajudar a pensar estratégias de resistência política contemporâneas Apesar da centralidade do conceito de liberdade para esta investigação não se busca aqui adentrar debates da filosofia política que buscam encon trar definições claras para os termos Uma vez que o objetivo destas páginas é oferecer as reflexões de Fanon e Nandy como alternativas para pensar pos sibilidades de ação e resistência políticas para sujeitos coloniais múltiplos diferentemente marcados pela violência acreditamos que a melhor estraté gia é percorrer suas reflexões de maneira a permitir que as ambiguidades e potencialidades aflorem ao invés de pressupor uma filosofia de limites com raízes distintamente ocidentais e portanto vinculadas a uma trajetória po lítica e intelectual que é inequivocamente o alvo de ambos os pensadores Assim por vezes os termos liberdade emancipação e resistência aparecerão em uma relação quase sinônima Longe de estarmos propondo a equivalência destes termos o que se busca ao permitir o livre jogo de suas representações é apresentar distintas possibilidades de se pensar a liberdade como uma experiência prática que marca a existência política dos sujeitos co loniais tanto quanto a dos sujeitos ocidentais Nesse sentido argumentamos que enquanto liberdade e resistência forem compreendidas como categorias filosóficas rígidas elas estarão necessariamente limitadas em sua capacidade de se oferecerem como experiências vividas afinal as experiências jamais se conformam a categorias filosóficas rígidas mas seguem um rastro parale lo no qual ambiguidades e incertezas fazem parte do instrumental político individual e coletivo É importante ressaltar ainda que e este é um dos pressupostos sobre os quais se constrói a nossa argumentação o contexto intelectual e político desses dois pensadores é deveras diverso para acomodar uma definição única para estes conceitos A apreciação de suas propostas e contribuições que à primeira vista podem parecer incompatíveis passa pelo reconhecimento de que as experiências de sujeitos historicamente situados não pode ser previa mente demarcada e contida por categorias filosóficas Assim longe de buscar apresentar Fanon e Nandy como duas alternativas radicalmente opostas ao problema da resistência política este capítulo busca compreender os diferentes Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 60 14012021 1706 Resistência Política e impossibilidades da liberdade entre Fanon e Nandy 61 contextos políticos e intelectuais que motivaram suas reflexões assim como sua continuada relevância para a contemporaneidade A fim de nos manter fiéis ao espírito dos autores que foram cautelosamente suspeitos de soluções absolutas e universalizantes buscaremos apresentar suas propostas em suas potencialidades diferenças e complementaridades considerando igualmen te os possíveis limites de sua aplicabilidade FRANTZ FANON A VIOLÊNCIA COMO CAMINHO PARA LIBERTAÇÃO De pé ó vítimas da fome De pé famélicos da terra Da idéia a chama já consome A crosta bruta que a soterra Cortai o mal bem pelo fundo De pé de pé não mais senhores Se nada somos neste mundo Sejamos tudo oh produtores2 Os condenados da Terra título do último livro escrito por Frantz Fanon em 1961 carrega em suas palavras uma alusão ao hino da Internacional Comunista cujo clamor direcionavase aos condenados pelo sistema às ví timas da fome e às vítimas da terra De forma semelhante aos versos Fanon escreve aquela obra como um chamado político aos oprimidos para que fi quem de pé para que lutem unidos Nesse livro a Europa perde posto de interlocutora para constituirse como objeto é condenada e analisada a fim de descortinar às pessoas subalternizadas seus mecanismos de alienação Fanon quer desmantelar aqueles que os condenam para construir uma terra liberta uma terra sem amos3 Portanto nas páginas de Os condenados da Terra Fanon busca elucidar o jogo brutal entre opressores e oprimidos de cuja oposição constituinte emer ge a morte apresentada como o único futuro à vista Nesses termos a vida do 2 Trecho retirado do Hino da Internacional Comunista Letra original em francês criada por Eugène Pottier 1870 Tradução Neno Vasco 1909 3 Vide nota anterior Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 61 14012021 1706 Lara Martim Rodrigues Selis Natália Maria Félix de Souza 62 novo homem emancipado é posta em função do aniquilamento dos velhos papeis de colonizador e colonizado Para estes o óbito daquela relação viria desfazer a dominação original pela qual os colonizados foram liquidados física psíquica e culturalmente pelos colonos Por isso da morte não os as sombram seus mistérios esta para os oprimidos desponta antes como res surreição do que sepultamento ou seja como oportunidade de reconfigurar o que foi desmantelado pela violência primeira colonial e desumanizadora Nas palavras de Fanon 1968 p 73 o aparecimento do colono signifi cou sincreticamente morte da sociedade autóctone letargia cultural petrifi cação dos indivíduos Para o colonizado a vida só pode surgir do cadáver em decomposição do colono A radicalidade de tal escrita a princípio chocante vai adquirindo sentido à medida que o autor confronta nosso espanto inicial com a igual dramaticidade das contradições promovidas pelo colonialismo Afinal como denunciou Sartre 1968 p13 no prefácio da obra o sistema ma niqueísta de dominação colonial logrou reclamar e renegar a um só tempo a condição humana e tal o caráter explosivo dessa contradição que Fanon não poderia supor uma resistência menos dramática senão a violência irre primível dos colonizados Logo a natureza violenta do processo de colonização é passada para seu reflexo a descolonização Nesse espelho a violência desumanizadora do co lono transformase dialeticamente na violência legítima e formadora do colo nizado Como se vê Fanon responde ao pensamento maniqueísta do mundo colonial através de uma lógica dialética Sob influência hegelianomarxista o autor toma o movimento das contradições para ler sua realidade subs tituindo a centralidade da noção de classe pela categoria de raça Por essa perspectiva a violência sofrida e promovida pelos colonizados possui papel semelhante ao da exploração de classe na luta operária visto que suas con tradições levam à epifania do oprimido que através dela se descobre unido e intimidador Assim para Fanon a força pulsante do negro subalternizado emerge como catalisador revolucionário no nível coletivo unifica a massa dispersa em corpo nacional no nível individual unifica o self corrompido e reconfigura sua humanidade Ao conceber a violência enquanto práxis totalizante Fanon nos move her meneuticamente Afinal a nós leitoras e leitores do Terceiro Mundo o texto desafia igual dialética primeiro chocanos com a defesa não dissimulada da Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 62 14012021 1706 Resistência Política e impossibilidades da liberdade entre Fanon e Nandy 63 violência sanguinária dos colonizados e pela sensação de espanto nos faz colonos Depois ao nos sentar junto aos nativos o autor justifica o ódio por tamanha repressão colonialista e pela dor compartilhada nos vemos colo nizados Ao fim já convencidos da violência vingativa Fanon nos confronta com a prescrição da superação de tal espontaneidade reativa que deve ser canalizada pela violência diretiva política e emancipadora Nessa passagem entre inconsciente e consciência Fanon sugere que nos vejamos então como síntese Obviamente não se trata de um movimento interpretativo homogêneo ou mesmo objetivo Por isso as páginas que seguem buscam apresentar tal leitura em que interpretação e arguição se misturam Nas próximas seções serão debatidas as três concepções centrais que Fanon assume para o desen volvimento da violência como tática de emancipação política primeiramente sua posição como antítese da violência colonial segundo sua função catalisa dora da consciência política e por fim seu papel na construção de um novo humanismo erigido da superação dialética Dos Corpos corrompidos à nação cindida os limites da violência reativa Nascido em Martinica com ascendência africana e francesa Fanon escreve suas obras sob forte influência de sua experiência pessoal como homem negro à qual soma substrato ideológico da resistência coletiva frente à dominação neocolonial no século XX Como nos recorda o autor seu relato é essencial mente histórico pertenço irredutivelmente à minha época FANON 2008 p 10 Sua escrita aborda especificamente um mundo marcado pela guerra de independência da Argélia iniciada em 1954 e finalizada em 1962 um ano após a morte precoce de Fanon vítima de leucemia Durante os primeiros anos daquele conflito Fanon atuou como médico e diretor da ala de psiquiatria no hospital de Blida cuja experiência impreg nada por relatos dramáticos de seus pacientes confere o tom de fúria com que ele descreve a radicalidade desumanizadora da colônia Nesses termos a opressão francesa teria assumido forma tão profunda que cavara um abismo radical entre ambos os mundos dos colonos e dos colonizados Assim ba seado em sua atuação como psiquiatra e militante na Argélia Fanon descreve uma realidade colonial que não admite ambivalência Tratase de um mundo Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 63 14012021 1706 Lara Martim Rodrigues Selis Natália Maria Félix de Souza 64 cindido em absoluto cujas fronteiras são bem delimitadas por uma violência perpetrada sem intermediários Nas palavras do autor A zona habitada pelos colonizados não é complementar da zona habitada pelos colonos Estas duas zonas se opõem mas não em função de uma uni dade superior Regidas por uma lógica puramente aristotélica obedecem ao princípio da exclusão recíproca não há conciliação possível um dos termos é demais FANON 1968 p 28 Ora se de um lado o colono usufruía de asfalto saciação iluminação e limpeza de outro o colonizado experimentava doenças fome e miséria A humanidade de um fora conquistada pela subjugação e desumanização do outro Por isso aos olhos de Fanon a luta pela descolonização não poderia visar uma ponte entre aquelas esferas mas apenas a destruição de ambas pela expulsão do mundo colonial do território colonizado Notase ademais que não se trata de uma separação meramente econômica das partes mas de uma divisão calcada na intersecção entre classe e raça nas colônias a infraestrutura econômica é igualmente uma superestrutura A causa é consequência o indi víduo é rico porque é branco é branco porque é rico FANON 1968 p 29 Assim ao suporte marxista Fanon soma a categoria de raça e instrumen tos da psicanálise freudiana através dos quais analisa a opressão colonial em sua totalidade isto é enquanto força que invade o corpo e a mente dos oprimidos Nesses termos o sujeito político de Fanon perde a configuração abstrata dos modelos subjetivistas para ganhar uma materialidade violenta da da qual nascerá a dor fonte de humilhação mas também de libertação A fórmula abstrata do ator racional é substituída por corpos desnutridos e enfermos que encontram no medo o golpe final da opressão capaz de de sintegrarlhes a personalidade FANON apud SARTRE p 9 Nesse sentido para além da subjugação política econômica e cultural os oprimidos sofrem também de uma repressão corporal Tal contenção muscular e psíquica se transforma em força latente de modo que o corpo do colonizado tornase uma arma explosiva contra o opressor Todavia em seu estado espontâneo essa força não é canalizada contra a dominação sendo periodicamente administrada e liberada através de lutas tribais das danças e dos sonhos dos colonizados A autodestruição coletiva configurase entre as Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 64 14012021 1706 Resistência Política e impossibilidades da liberdade entre Fanon e Nandy 65 principais válvulas de escape daqueles corpos que se destroem em batalhas sanguinárias a fim de dar vazão para tal energia agressiva Em tal contexto a espontaneidade dos atos de violência individualizada e reativa ainda não configura resistência diretiva embora possua potenciali dade revolucionária Afinal embora experimentem a ação comum da violên cia colonial as massas permanecem dispersas pelo caráter inconsciente de suas ações individuais que podem ser compreendidas como uma espécie de resistência prépolítica Nesse ponto chamanos a atenção o pressuposto de alienação que Fanon mobiliza na medida em que caracteriza tal fase como um estado de falsaconsciência em que os agentes encontramse estranhos ao mundo que os oprime No caso dos colonizados da Argélia tal estranhamen to seria fruto da superestrutura mágica que impregna a sociedade indígena É através dos mitos terrificantes tão prolíferos nas sociedades subde senvolvidas que o colonizado vai extrair inibições para sua agressividade gênios malfazejos que intervêm todas as vezes que a gente se move de través homensleopardos homensserpentes cachorros de seis patas zumbis toda uma gama inesgotável de animalejos ou de gigantes dispõe em torno do co lonizado um mundo de proibições de barreiras de interdições muito mais aterrorizantes que o mundo colonialistas O plano do mistério nos países subdesenvolvidos é um plano coletivo que depende exclusivamente da magia Os zumbis acreditaime são mais terrificantes do que os colonos E o problema então não consiste mais em executar as ordens do mundo blindado do colonialismo mas em refletir três vezes antes de urinar de cuspir ou de sair de noite As forças sobrenaturais mágicas revelamse espantosamente entranhadas em meu eu As forças do colono apresentamse infinitamente amesquinhadas marcadas de estraneidade Na realidade não se vai lutar contra elas visto que afinal o que importa é a pavorosa adversidade das estruturas místicas Tudo se reduz está claro ao confronto permanente no plano fantasmagórico FANON 1968 p 4142 Portanto encerrado em uma situação de heteronomia o colonizado de senvolve um estado psicossocial de desconexão com o mundo circundante Com isso o colonialismo levaria não só à perda da identidade individual mas também da identidade coletiva do oprimido A retirada do sujeito des se mundo onírico e sua realocação no mundo das causas e problemas reais Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 65 14012021 1706 Lara Martim Rodrigues Selis Natália Maria Félix de Souza 66 perpassaria portanto a luta armada Esta como veremos no tópico a seguir seria capaz de unir o povo em uma identidade comum de modo a cumprir a normativa teleológica do livro que assume cores nacionalistas e mira uma síntese dialética em prol de uma Argélia emancipada unificada e soberana Como vemos a edificação de um novo homem e de um novo pensamento conforme propõe Fanon resultaria desse processo através do qual a violência opressora desaparece em seus termos mas reaparece sob nova forma Esta nova criação representaria também o progresso isto é uma etapa elevada para a humanidade daqueles que a realizam Dessas linhas inferimos ao menos duas concepções centrais para o desenvolvimento da obra primeiro a noção de consciência política entendida nos termos da luta social e a noção de um novo humanismo erigido de uma história como progresso Tais noções serão melhor trabalhadas na seção a seguir Seres integrais e corpo coletivo sobre a violência diretiva Filho da violência extrai dela a cada instante a sua humanidade fomos homens à custa dele ele se faz homem à nossa custa Um outro homem de melhor qualidade SARTRE 1968 p 16 Como pontuado anteriormente além de psiquiatra e ensaísta Fanon também foi militante da causa argelina chegando a atuar junto à Frente de Libertação Nacional da Argélia FLN pelo fim da dominação colonial Dado seu engajamento revolucionário o tratamento que oferece à violência no pro cesso de descolonização pode ser interpretado a um só tempo como obser vação sociológica e recomendação tática Nesse sentido Fanon não só relata a violência das massas como também a prescreve como instrumento central da desobediência civil no mundo colonial Pela normativa do texto a mobilização da luta armada colocaria os cor pos em uma mesma direção visto que a partir da violência compartilhada eles se reconheceriam como partes de um mesmo processo e de uma causa comum Por esse motivo o autor advoga pelo papel da direção tática no jogo político a fim de obliterar o voluntarismo cego das massas e dar propósito à violência espontânea Uma vez direcionada a violência levaria os sujeitos Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 66 14012021 1706 Resistência Política e impossibilidades da liberdade entre Fanon e Nandy 67 de um estado de agressão inconsciente para outro em que conscientes de sua opressão estariam aptos a atuarem politicamente por sua libertação Nessa síntese dialética promovida pela violência o self corrompido pela colonização é recomposto pela possibilidade de resistência da totalidade Em outras palavras ao catalisar o processo de tomada de consciência a violência se faz ferramenta emancipadora Ao redescobrir sua humanidade pela luta coletiva o colonizado recobra a consciência de que sua própria exis tência implica a negação do colono Se com efeito minha vida tem o mesmo valor que a do colono seu olhar não me fulmina mais sua voz não mais me petrifica Sua presença não me perturba mais Na prática eu o contrario Não somente sua presença deixa de me intimidar como também já estou pronto para lhe preparar tais embos cadas que dentro de pouco tempo não lhe restará outra saída senão a fuga FANON 1968 p 34 Nessa passagem a libertação psíquica é acompanhada da perda do medo e a violência primordial é a um só tempo conservada aniquilada e superada Semelhante à noção hegeliana de Aufhebung tal princípio dialético busca pôr fim às fronteiras estáticas do ser como infinitivo concebendoo como algo que está na passagem entre o ser que deixa de ser e o nãoser que vem a ser Desse processo de viraser nasce não só um novo homem mas também um novo corpo coletivo o nacional Mas como questiona Fanon que força seria capaz de dirigir tal elevação Do ponto de vista tático o autor se opõe à noção de vanguarda política como liderança do processo de viraser da nação isto é opõese à direção de um partido cabeça responsável por guiar a massa corpo Ao longo de seu tex to vemos a ação política sendo derivada do corpo para mente de modo que nesse ponto emerge certa prioridade ontológica à insurreição popular em que cada corpo humilhado transformase pela violência em um elo da gran de cadeia revolucionária A direção militante segue a formação das massas tornandose instrumento a serviço do povo Dessa forma Fanon se diferencia dos autores que elevam a razão à condi ção central do espírito humano capaz de unificar e agregar o fluxo individua lista em organização coletiva nacional Se para pensadores como Hobbes ou Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 67 14012021 1706 Lara Martim Rodrigues Selis Natália Maria Félix de Souza 68 Kant a humanidade se realiza pela mediação da subjetividade para Fanon a mesma é reclamada a partir de uma experiência totalizante dos corpos que vivenciam materialmente as contradições de suas peles negras Por outro lado a lógica do autor não abstraí a subjetividade e em certa medida pare ce partilhar da invenção de um sujeito universal dada a presunção de uma identidade comum aos colonos que experimentariam e reagiriam à violência colonial segundo uma mesma direção atingindo juntos o estado de cons ciência política Ademais a suposição de um desenvolvimento unilinear da consciência popular em direção à emancipação nacional introduz um sujeito indivisível na base do sistema filosófico da obra Em Os Condenados da Terra as diferen ças internas aos povos colonizados recebem pouca atenção de Fanon que de manda a presunção de certa uniformidade do colono para supor sua dialética comum em prol do projeto de libertação nacional Ou seja a premissa de uma consciência popular passível de ser como um todo catalisada pela violência diretiva favorece a segunda etapa voltada à construção e consolidação do Estadonação liberto da condição de colônia Ademais tal noção de comuna lidade interna oposta ao exterior permite ao autor confrontar politicamente qualquer mimese ou interferência da identidade europeia quer seja através dos partidos4 da burguesia local5 ou mesmo do modelo de humanidade 4 A heterogeneidade da colônia apenas será considerada enquanto condição de diferença frente à metrópole Assim o autor pontua as diferenças coloniais ante às sociedades capi talistas especificamente com relação às estruturas de classe e seus impactos sobre as táticas revolucionárias Diferente das sociedades industrializadas o público urbano das colônias como operários professores comerciantes enfermeiras etc comporia parte complementar da máquina colonial uma vez que se beneficiam de mecanismos da colonização Por isso para Fanon 1968 os partidos políticos e as elites intelectuais ou comerciais tenderiam a pautas reformistas pouco preocupadas com a ruptura radical da ordem 5 Para Fanon a burguesia nacional seria um mal congênito das sociedades coloniais o qual deveria ser combatido A elite local seria portanto uma mímese deformada dos europeus por isso a necessidade de construção de um partido autêntico voltado para as massas e partindo delas Na Argélia a construção desta direção autêntica não partiria das cidades mas do campo que configuraria o lócus revolucionário colonial Conforme pontua o autor diferente dos operários os camponeses nada tem a perder e tudo tem a ganhar FANON 1968 p 46 Por isso a politização do campo seria o único caminho para tornar a violência antes canalizada na dança na possessão ou ainda das lutas fratricidas em força diretiva em prol da libertação nacional Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 68 14012021 1706 Resistência Política e impossibilidades da liberdade entre Fanon e Nandy 69 Assim ao reconfigurar o sujeito iluminista através da dialética o autor propõe reconfigurar pelo mesmo movimento o seu par transcendental o internacional Se o homem é aquilo que faz então diremos que a coisa hoje mais urgente para o intelectual africano é a construção da sua nação Se esta construção é verdadeira quer dizer se ela traduz o querer manifesto do povo se ela revela os povos africanos na sua impaciência então a construção nacional é necessariamente acompanhada pela descoberta e a promoção de valores universalizantes Longe portanto de se afastar das outras nações é a liber tação nacional que faz com que a nação esteja presente na cena histórica É no cerne da consciência nacional que a consciência internacional se eleva e se vivifica E este duplo emergir não é em definitivo senão a essência de toda a cultura FANON 1968 p 206207 A passagem entre a particularidade nacional e o universalismo do inter nacional não é percebido por Fanon como contraditório mas sim como um movimento de pares complementares Dessa maneira ao invés de negar o universal implicado no projeto liberal do Ocidente a proposta de Fanon vai disputar o sentido do comum visando superar as bases racistas do universa lismo europeu Ou seja o que está em disputa não é a forma mas o conteúdo que qualifica o ser humano Nesse sentido o autor pede que abandonemos a Europa enquanto modelo civilizatório e que ousemos inventar e descobrir novos pensamentos Se queremos que a humanidade avance um furo se queremos levar a hu manidade a um nível diferente daquele onde a Europa a expôs então temos de inventar temos de descobrir Se queremos corresponder à expectativa de nossos povos temos de procurar noutra parte não na Europa PeIa Europa por nós mesmos e pela humanidade camaradas temos de mudar de procedimento desenvolver um pensamento novo tentar colocar de pé um homem novo FANON 1968 p 275 Nesse trecho Fanon demonstrase global em sua inspiração histórica A temporalidade por sua vez alinhase ao movimento teleológico progressivo Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 69 14012021 1706 Lara Martim Rodrigues Selis Natália Maria Félix de Souza 70 que mira a superação das perversões modernas sem perder a esperança hege liana de reconstrução da história Assim o objetivo da emancipação resultaria de um processo progressivo motivado pelas próprias contradições inerentes ao colonialismo Com a tomada de consciência sobre o jogo dialético entre colono e colonizado a resistência surge como confronto ou ainda nas pala vras de Shilliam 2012 como exorcismo Isto é a emancipação dos coloniza dos adviria de um processo violento de expurgação do homem branco tanto da psique como da materialidade do mundo colonial ASHIS NANDY A LIBERDADE COMO RECONCILIAÇÃO Um dos cientistas políticos e críticos culturais mais reconhecidos da contem poraneidade Ashis Nandy deve grande parte de sua influência às polêmicas reflexões acerca da resistência política póscolonial traçadas em seu livro O inimigo íntimo perda e recuperação do self sob o colonialismo6 A fim de com preender a complexidade de sua proposta política face àquela de Fanon cabe primeiramente ressaltar as significativas diferenças que demarcam seu contexto histórico político e intelectual afinal não apenas sua fala par te de um momento histórico posterior aos movimentos de libertação nacio nal e ao alcance da independência formal das colônias africanas e asiáticas como também suas reflexões se desdobram acerca de um processo colonial bastante díspar em que a figura do indiano nativo desempenha um papel muito mais humanizado do que aquele concedido ao negro africano a quem Fanon se refere7 Assim Nandy oferece uma proposta de releitura da relação colonial e das possibilidades de resistência política que em grande medida contrasta com diagnóstico e prescrição fanonianos Em uma chave distintamente marcada pela psicanálise freudiana mas não menos influenciada pela crítica cultural de modelos universalistas ocidentais o autor cuja importância também passa pela busca do diálogo entre intelec tuais e ativistas políticos discute a possibilidade de libertação da psique e dos corpos colonizados que contrasta com a proposta fanoniana na medida 6 Na ausência de uma tradução oficial desta obra todas as citações referentes a ela foram baseadas na livre tradução pelas autoras 7 Ver Shilliam 2012 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 70 14012021 1706 Resistência Política e impossibilidades da liberdade entre Fanon e Nandy 71 em que proscreve a violência como alternativa política Para Nandy e nesse ponto sua narrativa parece caminhar em paralelo à de Fanon a possibilida de de resistência mediante o uso da violência acaba sendo delimitada pela própria violência desferida pelo colonizador contra o colonizado Contudo Nandy inverte essa equação ao afirmar que tal solução apenas reinscreve a possibilidade de ação do sujeito colonial no contexto daquilo que foi definido pelo colonizador não permitindo aos primeiros quebrarem com um círculo de relações ou um jogo como o autor prefere colocar cujas regras foram previamente delimitadas por aqueles que praticaram a violência primeira Assim ao longo de seu livro Nandy busca em alguma medida compreen der o processo de formação dessas regras do jogo colonial e de que maneira elas inscrevem as possibilidades de relação política entre colonizadores e colo nizados mesmo após os processos de independência formal Ao autor interes sa desvelar as maneiras pelas quais a violência acaba introduzindo o sujeito que busca por liberdade psíquica física em um jogo no qual ele não pode ser nada além de uma vítima já que foi nessa condição que o jogo foi criado Em sua obra Nandy oferece uma interpelação muito poderosa dos movi mentos modernizantes invocados pelos autores contratualistas por justificarem a colonização baseados em sua promessa de realizar a liberdade mediante o progresso cultural e político Tal promessa contudo permanece sempre adia da aos colonizados e atrelada fundamentalmente à reprodução do modelo garantido aos colonizadores ainda que mediante o emprego da violência Ao questionar tal processo Nandy permite levantar um questionamento acerca das possibilidades e também impossibilidades de pensar sobre liberda de e nacionalismo no período póscolonial Contribuindo para uma análise da psicologia do colonialismo iniciada por autores como Fanon Memmi e Mannoni8 Nandy oferece uma crítica que não se limita a uma simples recu sa dos tropos de modernização sustentados pela razão ocidental mostrando uma compreensão bastante complexa dos dilemas modernos De acordo com Nandy o motivo pelo qual o colonialismo se tornou uma realidade tão devastadora é porque ele encontrou abrigo nas mentes das pes soas Colonizadores e colonizados indistintamente tiveram que se identificar 8 Acerca da relevância e pioneirismo atribuídos por Nandy a estes autores NANDY 1983 p 30 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 71 14012021 1706 Lara Martim Rodrigues Selis Natália Maria Félix de Souza 72 com seus papeis para que o padrão específico de relações coloniais pudesse se estabelecer Portanto o autor parte da premissa de que o Ocidente se tor nou ele mesmo parte onipresente do não Ocidente uma vez que ambas as categorias adquiriram seu significado através da experiência colonial para então tentar articular a possibilidade de pensar formas de resistência que não estejam previamente capturadas por modos de dissidência oficiais Segundo Nandy é possível hoje ser anticolonial de uma forma que já é especificada e promovida pela visão de mundo moderna como adequada sã e racional Mesmo ao se opor essa forma de dissidência continua sendo previsível e con trolada NANDY 1983 p xii A possibilidade delineada por Nandy para romper com esse padrão o mesmo que ele identifica na maioria das lutas por descolonização e autode terminação do século XX é uma estratégia psicológica que influenciada pela psicanálise freudiana tenta descentralizar o sujeito colonial levando a uma desestabilização do entendimento convencional acerca das relações coloniais baseadas em um conjunto de dualidades como amigoinimigo opressoroprimido euoutro agressorvítima Através dessa estratégia Nandy acredita ser possível rearticular a resistência para além de um quadro exclu sivamente confrontacional que segundo ele é a base de sustentação de todo o imaginário colonial Sua estratégia psicopolítica assume um duplo aspecto Por um lado busca demonstrar como o colonialismo se torna um estado psicológico a partir da afirmação de códigos compartilhados que aproximam duas culturas tidas previamente como incomensuráveis e da instituição de categorias e sistemas de recompensa que criam as condições de possibilidade para o pensamen to e a ação o que acaba por instituir uma espécie de mecanismo de gestão da dissidência Isto lhe permite interrogar duas das categorias centrais que organizaram as relações coloniais entre a GrãBretanha e a Índia sexo e idade e sugerir que tais categorias contribuíram para a produção de colo nizadores e colonizados não tanto como opressores e oprimidos mas como dois conjuntos diferentes de vítimas Essa tentativa de capturar o outro eu do Ocidente a partir das experiências de sofrimento não ocidentais permi te a Nandy investigar por outro lado algumas categorias conceitos e defe sas mentais que podem ajudar a transformar o Ocidente em uma categoria passível de ser compreendida manejada e negociada Assim Nandy busca Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 72 14012021 1706 Resistência Política e impossibilidades da liberdade entre Fanon e Nandy 73 sugerir formas de resistência não ocidentais que se recusam a entrar em uma relação oposicional com o Ocidente e portanto a aceitar as regras de um jogo préestabelecido Tal recusa lhes permite abandonar sua autoidentificação como vítimas de um processo que lhes seria exterior para se tornarem parti cipantes conscientes ou não em um movimento político contra a opressão sendo capazes de construir uma imagem não dominante do Ocidente com o qual seria possível conviver Em última análise a opressão moderna em oposição à opressão tradicional não é um encontro entre o eu e o inimigo os governantes e os governados ou os deuses e os demônios É uma batalha entre o eu desumanizado e o inimigo objetificado o burocrata tecnologizado e sua vítima reificada pseudogovernantes e seus temíveis outros eus projetados nos seus súditos NANDY 1983 p xvi tradução nossa Nesse sentido Nandy defende a necessidade de a Índia póscolonial en tender seu legado colonial através de uma linguagem que ao mesmo tempo em que incorpora a linguagem do mundo moderno tenta se manter fora dela O caminho para que a Índia seja compreendida como Índia e não como o não Ocidente não pode portanto ser encontrado através da desvalorização das características recessivas do Ocidente ou inversamente apelando para alguma essência indiana romantizada Este tipo de política oposicional so mente contribui para que a Índia continue sendo parametrizada em relação ao Ocidente É necessário compreender que O colonialismo criou um domínio discursivo em que o modo padrão de transgredir esses estereótipos foi invertêlos Nenhuma forma de colo nialismo poderia ser completa a menos que universalizasse e enriquecesse seus estereótipos étnicos apropriandose da linguagem desafiante de suas vítimas Foi por isso que o grito das vítimas do colonialismo acabou por ser um grito a ser ouvido em outro idioma desconhecido ao colonizador e aos movimentos anticoloniais que ele tinha criado e em seguida domesticado NANDY 1983 p 7273 tradução nossa Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 73 14012021 1706 Lara Martim Rodrigues Selis Natália Maria Félix de Souza 74 No caso da Índia Nandy entende que o colonialismo começou quando se estabeleceu uma homologia entre dominação política e sexual momento em que as relações políticas angloindianas começaram a atribuir significa dos culturais à dominação britânica Isso foi feito através da categorização da relação entre os sexos e a atribuição do sexo mais depreciado feminilida denamasculinidade para o colonizado esta foi uma forma de tornar a do minação colonial legítima e até mesmo naturalizada O que por sua vez só pôde ser alcançado através da produção de um consenso cultural através de certa identificação com o agressor e com o seu papel não só pelo colonizador mas também e de forma decisiva pelo colonizado Se por um lado o gover nante era delimitado pelo imaginário que via a exploração colonial como um passo necessário de uma filosofia de vida que estaria em harmonia com for mas superiores de organização política e econômica NANDY 1983 p 10 os governados justificavam o colonialismo ao aceitar a ideologia do sistema e buscar sua participação como jogadores ou contrajogadores players and counterplayers de um jogo preestabelecido Ou seja a decisão do indiano de lutar contra os britânicos através das mesmas categorias que caracterizavam a superioridade da masculinidade sobre outras formas de identidade sexual acabava legitimando ainda mais os valores do agressor Na cultura colonial a identificação com o agressor unia governantes e go vernados em um relacionamento diádico inquebrável O Raj via os indianos como criptobárbaros que precisavam se civilizar mais Ele via a dominação britânica como um agente do progresso e como uma missão Muitos india nos por sua vez viram sua salvação na possibilidade de se tornarem mais parecidos com os britânicos na amizade ou na inimizade NANDY 1983 p 7 tradução nossa Uma relação semelhante se deu pelo estabelecimento de uma homologia entre a infância e o estado de ser colonizado A legitimidade nesse caso foi alcançada através da desvalorização dos aspectos da cultura indiana diante da supervalorização dos aspectos da cultura britânica a educação passou a ser vista como necessária ao desenvolvimento e progresso daqueles que como crianças ainda não os tinham alcançado Através dessa narrativa a história se torna uma forma de moralidade capaz de resgatar a imoralidade Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 74 14012021 1706 Resistência Política e impossibilidades da liberdade entre Fanon e Nandy 75 do colonialismo através do progresso isso indica como a história moderna se torna profundamente cúmplice do imaginário colonial precisamente ao aceitar a superioridade cultural de valores modernos que deveriam ser dis seminados através da modernização para a qual o colonialismo seria um passo inevitável O acoplamento da história da racionalidade e da liberdade ofereceu a cha ve para legitimar a equação entre colonialismo e modernização colocando aos povos colonizados uma única visão teleológica do futuro É precisamente por esta razão que Nandy insiste na necessidade de abandonar a visão maniqueís ta do colonialismo pois esta visão é cúmplice da ideologia do colonialismo É fundamental compreender que a experiência de colonização foi ao menos tão significativa para a cultura do colonizador como foi para a colonizado No mínimo porque ela ajudou a promover precisamente as características menos gentis e humanas da cultura política do colonizador Isto criou de acordo com Nandy uma associação patológica entre suas ideias e seus sentimentos que foi subsequentemente integrada em suas teorias religiosas e éticas em uma tentativa de autoconvencimento acerca do dever ou causa maior que está na base de suas ações Esta análise nos permite compreender como valores universais como a liberdade o progresso e a civilização se tornaram profundamente cúmplices das atrocidades coloniais em todas as suas vítimas Nandy contudo defen de uma forma de resistência psicológica capaz de romper com essas grandes narrativas não ao se opor a elas o que seria uma outra maneira de endossar seus pressupostos mas reconhecendo sua instabilidade a fim de recuperar a multiplicidade de eus ocidentais e não ocidentais que de outra forma permanecem perdidos e inacessíveis Para o autor a resposta mais criativa para as patologias da cultura ociden tal está na figura de Gandhi Ele o fez precisamente ao tentar ser um símbolo vivo do outro do Ocidente que nada mais é do que uma outra parcela do eu do Ocidente o inimigo íntimo do Ocidente dominante moderno racional livre mas também chauvinista violento racista Nesse sentido ele não estava interessado na libertação da Índia mais do que na libertação da GrãBretanha diante do colonialismo Sua estratégia se pautou assim na recusa de jogar o jogo nos termos desse Ocidente dominante Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 75 14012021 1706 Lara Martim Rodrigues Selis Natália Maria Félix de Souza 76 No que diz respeito à homologia sexual sua ideia de não violência re presentou uma forma de conhecer o eu não masculino do homem que tinha sido obliterado pela autoimagem ocidental Além disso sua ideologia da não violência não afirmava uma moralidade unilateral a favor do hinduísmo não Ocidental Ao não buscar rejeitar o Ocidente como um todo mas encontrar o outro eu ocidental perdido na narrativa dominante da política como vio lência Gandhi conseguiu performar uma forma de dissidência alternativa No que diz respeito à homologia colonial entre a infância e a subjuga ção política Gandhi afirmava a primazia dos mitos sobre a história dessa maneira ele contornou o caminho unilinear que leva do primitivismo à mo dernidade e da imaturidade política à política madura que a ideologia do colonialismo gostaria que as sociedades dominadas e as raças infantis cami nhassem NANDY 1983 p 55 Isto permitiu transformar a história em um presente permanente pois mesmo se o passado pode ser uma autoridade a natureza da sua autoridade é cambiante amorfa e passível de intervenção NANDY 1983 p 57 A ênfase que Nandy coloca na alternativa apresentada pelo ativismo po lítico de Gandhi funciona como uma crítica pujante de diferentes versões do nacionalismo indiano que se apoiavam na acentuaçãoreificação das diferen ças entre o Oriente e o Ocidente tornandoos antípodas culturais naturais Ao fazêlo segundo Nandy tais perspectivas reforçam a arrogância cultural do Europa pósiluminista que havia definido o verdadeiro Ocidente e o verdadeiro Oriente NANDY 1983 p 74 acentuando as suas diferenças de maneira a legitimar a ideologia do colonialismo Neste sentido o convite de Nandy para recuperar os eus perdidos tanto da Índia quanto do Ocidente aparece como uma negação da possibilidade de estabilizar essas identidades em uma cultura homogênea o que pode oferecer uma crítica poderosa e pro gressiva dos tropos modernizadores que carregam as formas mais pungentes de legitimação do colonialismo Isso permite recuperar uma Índia que não é nem prémoderna nem antimoderna mas apenas não moderna Este século mostrou que em todas as situações de opressão organizada os verdadeiros antônimos são sempre a parte exclusiva versus o todo inclusivo não a masculinidade contra a feminilidade mas qualquer um deles contra a androginia não o passado contra o presente mas qualquer um deles contra a Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 76 14012021 1706 Resistência Política e impossibilidades da liberdade entre Fanon e Nandy 77 intemporalidade timelessness na qual o passado é o presente e o presente é o passado não o opressor contra o oprimido mas ambos contra a racionalidade que os transforma em covítimas NANDY 1983 p 99 tradução nossa Portanto é notável que o projeto de Nandy de recuperar o eu que se perdeu sob o colonialismo não equivale a um restabelecimento de um eu que é completosoberano mas e isso vem de suas raízes freudianas implica precisamente no oposto a recuperação do eu é um reconhecimento da im possibilidade de um eu centralizado sendo portanto uma perda do eu como aparece na maioria das narrativas póscoloniais que enfatizam a relação entre o eu e o outro É somente quando confrontado com o seu inimigo íntimo com o que foi posto de lado a fim de garantir uma identidade es tabilizada que o eu deixa de ser o outro de um outro eu para se tornar apenas uma performatividade de si CONSIDERAÇÕES FINAIS A extensão da opressão colonizadora quer seja física quer seja subjetiva fez da resistência um traço comum entre os escritos do mundo colonial Ou seja como legado intelectual da colonização destacamse trabalhos com base epistemológica orientada para a transformação social os quais em maior ou menor grau estabelecem a liberdade como necessidade histórica central Como vimos Frantz Fanon e Ashis Nandy exemplificam ontologias políticas relacionadas ao telos libertário muito embora representem sensibilidades de resistência distintas Em grande medida os diferentes recursos de subversão mobilizados por cada um dos autores se relaciona ao próprio sujeito histórico com quem dialogam Assim sob diferentes formas de dominação os nativos da Índia e os negros do continente africano abarcam distintas possibilidades de desobediência bem como diferentes projetos de libertação Nesse contexto como explica Shilliam 2012 Nandy analisa o relacio namento entre o homem livre e o nativo em que a subversão é praticada en quanto reconciliação Por outro lado Fanon aborda o relacionamento entre o homem livre e o escravo dando origem à subversão enquanto exorcismo As especificidades do sujeito colonizado afetam diretamente o instrumental analítico que assume as cores da localidade Ou seja dado seu horizonte Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 77 14012021 1706 Lara Martim Rodrigues Selis Natália Maria Félix de Souza 78 histórico Nandy dialoga com a missão civilizadora do Ocidente na Índia cuja prerrogativa subscreve o atraso do nativo mas sem negar sua humanidade Uma vez considerados humanos o sistema de dominação sobre os indianos absorve a linguagem da tolerância permitindo por sua vez uma subversão libertadora pela chave da consonância Sob outro horizonte ao escravo negro fora negada qualquer consideração iluminista sobre o humano Sem o vidro humanista os negros foram expostos à dominação total inviabilizando os espaços de reconciliação imanente Por isso para Fanon exorcizar o homem branco da psique do homem negro cons titui o único caminho para a reconstrução da vida dos colonizados na Argélia Nesse sentido a crônica de libertação de Fanon assume o ritmo da violência que avança pelas interposições entre o colono e o colonizado Da tensão irre conciliável entre os polos emerge a esperança de reconstrução histórica um processo de expurgação pelo qual o fantasma exterior deve ser finalmente confrontado na violência pois ele carrega em si o fardo do fantasma interior NANDY 2007 apud SHILLIAM 2012 p 13 Assim ao olhar para o abismo colonial escavado por processos de aliena ção e desumanização do colonizado Fanon declara a tragédia da concepção iluminista do Homem e de sua liberdade Nesse descortinamento vemos seu argumento equilibrarse entre uma dialética HegelianaMarxista e a psicanáli se Freudiana ou seja uma combinação entre a afirmação fenomenológica do Eu e do Outro e a ambivalência psicoanalítica do Inconsciente BHABHA 2008 p xxiii tradução nossa Com isso o texto de Fanon transita do amor ao ódio do mestre à escravidão buscando restaurar a presença do Outro mar ginalizado Otherness na concepção do desejo No entanto a passagem do particular para o universal presente na re configuração dos pares HomemHumanidade pode sugerir alguns limites teóricos da obra de Fanon Afinal nessa ponte evidenciase o uso de uma ló gica dual e em certa medida aporética através da qual Fanon nega e conser va a razão eurocêntrica Tal contradição revelase na distopia entre o projeto de emancipação nacional dos argelinos e a prescrição de uma solidariedade universal em torno da figura de um novo homem Isso porque a emancipa ção pela via dialética mantém a necessidade do sujeito colonial como figu ra antitética de modo que o nascimento de uma nova forma de identidade Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 78 14012021 1706 Resistência Política e impossibilidades da liberdade entre Fanon e Nandy 79 nacional demanda a presença instrumental do Outro que é negado e excluído na concepção de alteridade Nesse sentido mesmo que essa nova concepção reclame uma posição mais ética dadas as bases antirracistas o processo de apagamento da hetero geneidade parece latente Ademais filosoficamente insolúveis as antípodas nacionaluniversal só poderiam ser resolvidas politicamente ou seja pela dominação de uma sobre a outra Dessa forma a lógica dialética quando impregnada pelo sujeito universal parece ser incapaz de efetuar a dupla ne gação e romper com as díades sem contudo recriálas em um novo plano Com substratos históricos e intelectuais distintos Ashis Nandy propôs um ataque mais profundo à própria estrutura binária a fim de desestabilizála A crítica à noção de fronteiras estáveis e coerentes entre os polos coloniais o le vou a problematizar a resistência política como atributo do oprimido visàvis o opressor Nessa perspectiva a estratégia emancipadora assume um viés mais reconciliador em que os indivíduos resistem ao próprio abismo produzido pela díade Ou seja dada a circularidade hermenêutica entre colonizador e colonizado o desafio da resistência estaria na negociação e politização dos próprios limites que demarcam a oposição entre euoutro em vista de uma reconfiguração da noção de sujeito e seus desejos Embora com recursos teóricos complexos e capazes de evitar algumas das contradições apontadas em Fanon a proposta de Nandy sugere dificul dades centrais no seu tratamento enquanto ferramenta política Ou seja ao contrário da proposta de Fanon originada da e para a militância social a abstração do pensamento de Nandy impõe desafios à sua tradução para a luta coletiva cotidiana Portanto antes de representarem uma progressão linear do pensamento anti e póscolonial Fanon e Nandy apresentam dois corpos teóricos com valor analítico particulares mas que se cruzam e se distanciam Sem dúvidas tal rede de possíveis diálogos e distensões oferece um rico campo de reflexões sobre as políticas de resistência na contemporaneidade O entrelaçamento de normatividades que demarcam o sujeito político con temporâneo lança desafios às teorias políticas que visam interpretálo Afinal raça gênero classe dentre outras categorias agora cruzamse em um mosai co de identidades cuja diversidade projetase sobre o campo de possibilida des políticas de libertação Assim ao tratar as obras de Fanon a Nandy como aberturas teóricas não excludentes para projetos da liberdade este capítulo Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 79 14012021 1706 Lara Martim Rodrigues Selis Natália Maria Félix de Souza 80 buscou retratar a potencialidade de ambas como instrumentos interpretativos para a realidade mutante em que vivemos Talvez essa demanda contemporânea por redefinição de possibilidades abertura de alternativas e portanto promoção da liberdade o que quer que ela enquanto experiência possa representar passe justamente por esse exercício de não afirmar o que poderia ou o que não poderia configurar uma alternativa plausível Talvez mesmo essa abertura do nosso imaginário político um que resista a modelos universalizantes passe primeiramente pela incorporação epistemológica de autores com experiências e recursos que não suponham a superioridade ocidental tornando suas reflexões disponíveis como instru mental político e analítico para um número cada vez maior de sujeitos em especial aqueles marcados pela experiência da colonialidade Oferecer tais recursos sem prescrever de antemão aquele que lógica ou politicamente nos parece o mais adequado e que portanto poderia ser replicado nas múltiplas trajetórias de resistência pode ser a melhor forma de praticarmos ao longo destas páginas uma forma de resistência política que carrega em si o ethos libertário que evoca Afinal o objetivo mais modesto deste capítulo nos parece ser o de contri buir para a ampliação dos estudos acerca da colonialidade presente passa da futura a partir da disseminação do instrumental intelectual e político de autores cujas vidas e obras se destinaram justamente a visibilizar e resistir a colonialidade Tal objetivo não vislumbra a substituição de antigos por novos cânones intelectuais mas nos desafia a tornálos importantes recursos para a ação política póscolonial em sociedades e subjetividades nas quais as marcas da colonialidade ainda se fazem presentes seja em modelos importados de desenvolvimento e modernidade seja em compreensões intersubjetivas mar cadas por padrões de dominação que transitam sobre as esferas normativas de gênero raça sexo classe dentre tantos outros REFERÊNCIAS BHABHA H O local da cultura Belo Horizonte Editora UFMG 2007 BHABHA H Foreword to the 1986 edition In FANON F Black Skin White Masks London Pluto Press 2008 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 80 14012021 1706 Resistência Política e impossibilidades da liberdade entre Fanon e Nandy 81 FANON F Os condenados da Terra Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1968 FANON F Pele negra máscaras brancas Salvador EDUFBA 2008 KRISHNA S Race Amnesia and the Education of International Relations Alternatives India v 26 n 4 p 401424 2001 NANDY A The intimate enemy Loss and Recovery of Self under Colonialism Delhi Oxford University Press 1983 SHILLIAM R The hinterlands of natives and slaves different subversions of Lockes freeman by Nandy and Fanon ISA Paper Archives S l 2012 Disponível em httpfilesisanetorgConferenceArchive23560c308d2a4 d73b3817067cd4f7e38pdf Acesso em 2 fev 2016 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 81 14012021 1706 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 82 14012021 1706 83 O HUMANISMO CRÍTICO DE EDWARD W SAID1 MARCOS COSTA LIMA Todo documento de civilização é também um documento de barbárie Walter Benjamin 2003 apud SAID 2007a p 69 INTRODUÇÃO A recepção no Brasil da obra de Edward W Said 19352003 professor de literatura na Universidade de Columbia é salvo melhor aviso recente Em 1990 a editora Companhia das Letras publicou Orientalismo2 seu livro mais polêmico e em 1995 Cultura e Imperialismo Em seguida vieram seus ensaios Reflexões sobre o Exílio em 2003 Paralelos e Paradoxos 2003 conversas com o músico Daniel Barenboim Representações do Intelectual 2005 e em 2007 Humanismo e crítica democrática Também recente é minha aproximação com sua obra Em 2003 realizan do meu pósdoutorado em Paris tive contato com um artigo seu publicado 1 O presente capítulo foi previamente publicado na revista Lua Nova São Paulo n 73 2008 p 7194 2 O livro publicado em 1978 tornouse um clássico dos estudos culturais pela arrojada tese que defende ou seja a de que o Oriente é uma invenção ocidental que inferioriza as civi lizações a leste da Europa atribuindolhes características exóticas estranhas mitológicas Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 83 14012021 1706 Marcos Costa Lima 84 na Revista Carré Rouge3 uma homenagem quando de seu falecimento A curiosidade aumentou após a leitura desse artigo que tratava do conflito IsraelPalestina e em particular do assassinato de Raquel Corrie jovem norteamericana que prestava serviços voluntários no International Solidarity Movement uma ONG que organiza missões civis nos territórios ocupados que perdeu a vida ao ajudar seres humanos sofridos em Gaza Nesse texto encontrei a defesa convicta da Palestina a denúncia dos terrores praticados contra esse povo mas sobretudo uma busca pela justiça o rechaço firme terrorismo o repúdio a uma solução militar Dizia ele então que nenhuma cultura ou civilização existe isolada das outras nenhuma entende estes conceitos de individualidade e de iluminis mo como sendo completamente exclusiva E nenhuma existe sem os atribu tos humanos fundamentais que são a comunidade o amor a valorização da vida e de todo o resto Em um mundo tão fragmentado como o nosso tão dilacerado tão expos to à intransigência e à violência as palavras de Said beiravam a ingenuidade Mas a força de seu pensamento está justamente numa reflexão que é a uma só vez densa erudita e analítica mas também corajosa Coragem de expor suas ideias de optar pelo lado mais frágil e pelos que sofrem privação de afrontar a sociedade norteamericana que é também a sua e mais do que chamarlhe à razão apontar suas iniquidades A partir daí passei a ler os seus ensaios so bre literatura pois alguns dos seus autores prediletos eram também os meus a exemplo de Joseph Conrad Flaubert Dickens Sartre entre tantos outros tudo isso associado a uma larga bagagem analítica de teóricos da filologia como Eric Auerbach e Leo Spitzer mas também de Gramsci Adorno e Walter Benjamin Luckács Foucault Raymond Williams e Bourdieu uma formidável galeria Para fechar o repertório em si muito atrativo uma prosa agradável e uma erudição aguçada aliadas a uma capacidade crítica inovadora À medi da que fazia as leituras digamos marginais ou complementares o interesse 3 O texto intitulado Dignidade e Solidariedade foi um dos últimos artigos publicados em língua inglesa no AlAhram Weekly Foi traduzido para o português por Maria de Jesus de Britto Leite arquiteta e profª da Universidade Federal de Pernambuco UFPE CarréRouge Canadá n 26 out 2003 Disponível em htttpcarrerougeorg Acesso em 14 jan 2019 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 84 14012021 1706 O Humanismo Crítico de Edward W Said 85 aumentou e cheguei portanto ao núcleo do seu pensamento expostos em Orientalismo e Cultura e Imperialismo Esta breve introdução portanto é mais para dizer que este é um trabalho preliminar uma primeira aproximação analítica da obra de Edward W Said e que mesmo assim superou os efeitos da corrosão da crítica4 Mas ainda tem a intenção de trazer para o contexto da política internacional comparada a contribuição teórica de uma análise da literatura europeia e norteamericana comparada eminentemente política e ao mesmo tempo fortemente literária Said queria destacar o papel central do pensamento imperialista na cul tura ocidental moderna e se perguntava por que a centralidade dessa visão imperial que foi registrada e apoiada pela cultura que a produziu em certa medida a ocultou Ele considerava que para entender as preocupações im periais que foram constitutivas do Ocidente moderno devese avaliar essa cultura tanto do ponto de vista da apologia quanto do ponto de vista da re sistência antiimperialista em geral silenciada na obra dos grandes autores ocidentais A este instrumento analítico Said 1995 denomina de leitura em contraponto E como ele mesmo afirmou no encerramento do século XIX com a disputa pela África a consolidação da União imperial francesa a ane xação americana das Filipinas e o domínio inglês no subcontinente indiano em seu auge o império era uma preocupação universal Ao mesmo tempo asseverava Os grandes praticantes da crítica literária simplesmente igno ram o imperialismo SAID 1995 p 102 Autores como Jane Austen Camus Kipling escreveram para um público ocidental mesmo quando tratavam e narravam personagens lugares situa ções que se referiam ou utilizavam territórios ultramarinos dominados por europeus Mas ao mesmo tempo Said nos dizia que esses povos coloniza dos não europeus não aceitavam indiferentes a autoridade projetada sobre eles nem o silêncio geral que cercava sua presença sob formas mais ou me nos atenuadas Said 1995 conclui afirmativamente como se definisse seu método e suas intenções Devemos pois ler os grandes textos canônicos e talvez também todo arquivo da cultura européia e americana prémoderna esforçandonos por extrair entender enfatizar e dar voz ao que está calado 4 Refirome ao desconhecimento do trabalho da crítica sobre a obra de Said à exceção daquela proferida por Aijaz Ahmad 2002 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 85 14012021 1706 Marcos Costa Lima 86 ou marginalmente presente ou ideologicamente representado em tais obras SAID 1995 p 104 Said tem muito de Bourdieu 1989 na forma de pensar na forma de es truturar a análise sobretudo na compreensão de que há uma economia do simbólico que é irredutível à economia em sentido restrito e que as lutas simbólicas têm fundamentos e efeitos econômicos Para além de uma reatualização do conceito de imperialismo central na obra de Said cinco outros temas tratados ao longo da sua obra interessam diretamente ao campo da Política Internacional Comparada alguns dos quais serão desenvolvidos no desenrolar deste trabalho o primeiro é o presente poder hegemônico exercido pelo governo dos Estados Unidos5 ao longo do século XX e início do XXI que nos interpela para além da pretensão imperial exercida por aquele país sobre as possibilidades de uma multipolaridade entre nações dos desafios de uma interdependência transnacional enfim da construção de uma ordem mundial efetivamente democrática A questão central aqui é portanto a democracia O segundo tema é a questão nacional que embora entendida como momento nativista e necessário em resposta ao processo colonial passa pelo crivo da crítica onde autores como CLR James Frantz Fanon Noam Chomsky entre outros são invocados no sentido de apontar os riscos de uma consciência nacional despreparada ou ainda desvirtuada após as lutas de independência e libertação Mas também as relações NorteSul reapresentações das velhas desigualdades imperiais e persistência do antigo regime Neste contexto Said introduz um argumento de Noam Chomsky de 1982 que ainda hoje traduz uma inquietante realidade mundial O conflito NorteSul não se aplacará e novas formas de dominação terão de ser triadas para assegurar aos segmentos privilegiados da sociedade industrial a preservação de um controle substancial dos recursos mundiais humanos e materiais e dos lucros desproporcionais derivados desse con trole Assim não surpreende que a reconstituição da ideologia nos Estados Unidos encontre eco em todo mundo industrial Mas é absolutamente 5 Em particular tratar da força das ideias emitidas a partir dos Estados Unidos do culto da especialidade e do profissionalismo hegemônico no discurso cultural desse país e que ter mina por contaminar a produção das ciências humanas na vida americana estabelecendo cânones de validade universal ou paradigmas impositivos Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 86 14012021 1706 O Humanismo Crítico de Edward W Said 87 indispensável que para o sistema ideológico ocidental que se estabeleça um enorme fosso entre o Ocidente civilizado com seu tradicional compromisso com a dignidade humana a liberdade e a autodeterminação e a brutalidade bárbara daqueles que por alguma razão talvez genes defeituosos não conseguem apreciar a profundidade desse compromisso histórico tão bem revelado pelas guerras americanas na Ásia por exemplo CHOMSKY 1982 Apud SAID 1995 p 351 O terceiro tema mas não menos importante diz respeito a toda a sua luta pela causa palestina tensionada pelo fato de ser um americanoárabe vivendo nos dois mundos revoltado contra os estereótipos relacionados à cultura árabe nos Estados Unidos durante e após a Guerra do Golfo de que os árabes só entendem a força de que a brutalidade e a violência lhes são inerentes e fazem parte da cultura árabe de que o islamismo é uma religião intolerante segregacionista e medieval fanática cruel contra as mulheres A força da análise de Said está justamente na busca de um paradigma outro inovador para a pesquisa humanista capaz de desmistificar as construções culturais Ao entender e criticar o hegemon não poupa os descaminhos polí ticos no mundo árabe sobretudo de suas elites a atmosfera generalizada de mediocridade e corrupção que paira sobre essa região desmedidadamente rica magnificamente dotada em termos históricos e culturais e amplamen te abençoada com talentos individuais constitui um enorme enigma uma imensa decepção E conclui A democracia em qualquer sentido real do termo não se encontra em parte alguma do Oriente Médio ainda nacionalista que são as oligarquias privile giadas ou grupos étnicos privilegiados A grande massa do povo permanece esmagada sob ditaduras ou governos inflexíveis impopulares Mas a idéia de que os Estados Unidos sejam um virtuoso inocente nesse terrível estado de coisas é inaceitável SAID 1995 p 370 O repertório de incongruências e preconceitos a respeito da civilização árabemuçulmana está também vinculado à ignorância ocidental sobre esta cultura sobre suas contribuições bem como por um trabalho de negação fei to sistematicamente no século XIX por pensadores europeus a exemplo de Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 87 14012021 1706 Marcos Costa Lima 88 Ernest Renan que faziam com que a contribuição destes povos só apareces se furtivamente nas histórias gerais das civilizações e no melhor dos casos como uma simples transmissão entre a Grécia e a Europa do Renascimento6 Em quarto lugar a importância de Said em trazer e dar visibilidade à ines timável contribuição intelectual periférica de autores como Eqbal Ahmad pa quistanês Ngugi Wa Thongo queniano Ali Shariat iraniano Wole Soyinka nigeriano Tayeb Salih sudanês CLR James TrinidadTobago George Antonius libanês Faiz Ahmada Faiz paquistanês José Marti cubano Partha Chaterjee indiano Ranajit Guha indiano Aimé Césaire martini cano Dereck Walcott caribenho muito embora a literatura sulamericana e brasileira em particular estejam ausentes deste universo do qual sem dúvi da poderiam fazer parte Machado de Assis Lima Barreto Joaquim Nabuco Antonio Candido entre tantos outros Finalmente a figura do exílio tanto intelectual quanto aquela que tem sua encarnação atual no migrante nas migrações internacionais que têm sido um tema que cresce em importância em razão de tantas diásporas produzidas na contemporaneidade frutos da violência das guerras da incompetência e intransigência de elites nacionais IMPERIALISMO E CULTURA Cultura e Imperialismo é uma ampliação da argumentação desenvolvida em Orientalismo tentando aprofundar o modelo mais geral de relações entre o Ocidente metropolitano moderno e seus territórios de ultramar pela via dos estudos e discursos europeus sobre a Índia a África Extremo Oriente e Caribe na tentativa geral de dominar povos e terras distantes e portanto relacio nados com as descrições orientalistas do mundo islâmico SAID 2005 p 11 Said quer aprofundar a relação geral entre cultura e império As figuras retóricas que desvela são muitas os estereótipos construídos do espírito do colonizado os transformando em bárbaros primitivos irresponsáveis selva gens necessitando portanto de disciplina quando não de açoite justificam assim a tarefa europeia de levar a civilização até lá pois do contrário só a entenderiam através da força ou a da violência LÉVISTRAUSS 1951 6 Cf Ahmed Djebar 2001 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 88 14012021 1706 O Humanismo Crítico de Edward W Said 89 Said parte de um conceito de cultura abrangente aquele que designa as artes da descrição comunicação e representação com relativa autonomia dos campos econômico político e social e que não raro existe sob a forma estéti ca Isto inclui tanto o saber popular quanto o conhecimento especializado de disciplinas como Etnografia Historiografia Filologia Sociologia e História Literária Para ele a narrativa é crucial tendo como tese básica a ideia de que as histórias estão no cerne daquilo que dizem os exploradores e os romancis tas acerca de regiões estranhas do mundo mas que ao mesmo tempo elas se tornam um método utilizado pelos povos colonizados para afirmar sua iden tidade e a existência de uma história própria SAID 2005 p 13 Assim tanto o poder de narrar quanto o de bloquear ou de impedir a for mação de novas narrativas é relevante para o estudo da cultura e do imperia lismo Por outro lado Said afirma a partir de Matthew Arnold que a cultura é um conceito que inclui um elemento de elevação e refinamento o que de melhor produz uma sociedade no saber e no pensamento e de forma deriva da entendida como um elemento mitigador excluindo os efeitos danosos ou perversos da vida moderna e agressiva A Cultura acaba associada à nação ou ao Estado a um nós gerando identidade aos clássicos nacionais o problema com essa idéia de cultura diz Said é que ela faz com que a pessoa não só venere sua cultura mas também a veja como divorciada pois transcendente do mundo cotidiano Uma das difíceis verdades que descobri trabalhando neste livro é que pouquíssimos dentre os artistas ingleses ou franceses que admiro questionaram a noção de raça submissa ou inferior tão evidente entre funcionários que colocavam essas idéias em prática ao governarem a Índia ou a Argélia SAID 2005 p 14 Ao analisar Nostromo de Joseph Conrad um dos autores mais admirados por Said que se passa numa república da América Central dominada por interesses externos mas ao mesmo tempo diferente de suas usuais obras na Índia e na África coloniais o autor antevê a incontrolável insatisfação e os desmandos das repúblicas latinoamericanas Cita Bolívar que entendia que governálas era igual a arar no oceano e ao mesmo tempo desvela na conversa entre dois personagens o financista de São Francisco e o proprietário inglês da mina de São Tomé o sentido da empreitada imperial Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 89 14012021 1706 Marcos Costa Lima 90 Podemos sentar e olhar Claro algum dia interviremos Estamos fadados a isso Mas não há pressa estaremos ditando as regras para tudo indústria comércio leis jornalismo arte política e religião do Cabo Horn até Suriths Sound e também mais adiante se algo que valer a pena surgir no pólo Norte Conduziremos os negócios do mundo quer ele goste ou não O mundo não pode evitálo e nem nós imagino eu Seja em Nostromo ou em Heart of darkness para Conrad a própria imagem das trevas está associada à imagem revertida do eurocentrismo como luz a um projeto civilizador Ele não podia admitir que os nativos pudessem ser livres da dominação europeia e esta compreensão está associada ao personagem Kurz quando em momento de fúria e loucura ordena exterminem todos os bárbaros É o próprio Said quem conclui Portanto não é paradoxal que Conrad fosse imperialista e antiimperialista progressista quando se tratava de apresentar com destemor e pessimismo a corrupção autoconfirmadora e autoenganosa do domínio ultramarino profundamente reacionário quando se tratava de conceder que a África ou a América do Sul pudessem algum dia ter uma história ou uma cultura independentes que os imperialistas abalaram violentamente mas pela qual foram afinal derrotados SAID 2005 p 9 A atualização desta interpretação com o atual modus operandi dos Estados Unidos é imediato sobretudo ao manter o refrão de reivindicar e tornarse o guardião da democracia no mundo e a todo custo A destruição que se per petuou no Vietnã no passado e hoje no Iraque são exemplares A densa reflexão de Said sobre o imperialismo atualiza o termo Para ele o século XIX foi o apogeu da ascensão do Ocidente estabelecendo esta geografia em 1800 as potências ocidentais detinham 35 da superfície do globo e em 1878 essa proporção chegou a 67 Em 1914 a Europa detinha 85 do mundo sob a forma de colônias protetorados etc Depois de 1945 com o desmantelamento das estruturas coloniais essa Era do Império che ga ao fim mas ao mesmo tempo como Said afirma a luta pela geografia não se restringe a soldados e canhões SAID 2005 p 38 Ela abrange também Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 90 14012021 1706 O Humanismo Crítico de Edward W Said 91 ideias formas imagens e representações e continua a exercer uma influência considerável no presente A definição de Imperialismo dada por Said é aquela que designa a práti ca a teoria e as atitudes de um centro metropolitano dominante governando um território distante o colonialismo quase sempre uma conseqüência do imperialismo é a implantação de colônias em territórios distantes Nenhum deles é simples ato de acumulação e aquisição ambos são sustentados e talvez impelidos por potentes formações ideológicas que incluem a noção de que certos territórios e povos precisam e imploram pela dominação SAID 2005 p 40 Esta presença visceral do Imperialismo se faz manifesta em Said quando está a comentar a obra de seu colega indiano Salman Rushdie Posso en tender muito bem a raiva que alimentou o raciocínio de Rushdie pois como ele sintome excluído por um consenso ocidental predominante que veio a encarar o Terceiro Mundo como um território estorvo um lugar inferior em termos políticos e culturais SAID 2005 p 61 Ao tratar especificamente do seu campo de estudo a literatura comparada Said admite que ela surgiu no auge do Imperialismo europeu e portanto estaria inegavelmente ligada a ele O principal traço desse estilo literário é a própria erudição a começar por Erich Auerbach e Leo Spitzer grandes comparatistas alemães que fugiram para os Estados Unidos por conta do nazismo Partindo da tradição europeia e norteamericana nesse campo essa tradição europeia e norteamericana carregava consigo a crença de que a humanidade se constituía em uma tota lidade maravilhosa cujo progresso podia ser estudado como um todo mas também como uma experiência secular e não como algo transcendente O homem fazia a história e o iluminismo era a manifestação dessa história Por maior que tenha sido a admiração que Said cultivou sobretudo por Auerbach o fato não o impediu de entender que essa concepção da cultura humana se tornou corrente na Europa e nos Estados Unidos de 1745 e 1945 e esteve relacionada à ascensão do nacionalismo no mesmo período Ao mesmo tempo entendeu que ao celebrarem a humanidade e a cultura estavam cele brando ideias e valores de suas próprias culturas distintas portanto daque las do Oriente da África ou da América Latina SAID 2005 p 79 Portanto um universalismo muito restrito e particular Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 91 14012021 1706 Marcos Costa Lima 92 Tratando da criação do primeiro departamento americano de literatura comparada que data de 1891 na Universidade de Columbia Said nos diz que o trabalho oriundo deste centro acadêmico trazia consigo a idéia de que a Europa e os Estados Unidos juntos constituíam o centro do mundo não meramente devido às suas posições políticas mas também porque suas lite raturas eram as mais dignas de estudo SAID 2005 p 82 Em 1950 com os progressos realizados pela Revolução Russa na disputa espacial nos fala Said sobre a criação do National Defense Educational Act que transformou o estudo das línguas estrangeiras e da literatura comparada em campos diretamente relacionados à Segurança Nacional Em plena Guerra Fria o etnocentrismo ganha terreno Said estabelece inclusive uma interessante ilação entre a relação geografialiteratura cuja visão de uma literatura mundial passa a coincidir com o que tinha sido enunciado pelos teóricos da geografia colonial a exemplo de Mackinder Lucien Fevre entre outros Aparece entre aqueles teóricos uma avaliação do sistema mundial metropolicêntrico e imperial no qual para além da história o espaço geográfico colabora para produzir um império mundial coman dado pela Europa O mapa imperial autorizava de fato a visão cultural Por isso Said 2005 p 86 sintetizava que Os discursos universalizantes da Europa e Estados Unidos modernos sem nenhuma exceção significativa pressupõem o silêncio voluntário ou não do mundo não europeu Há incorporação há inclusão há domínio direto há coerção Mas muito raramente admitese que o povo colonizado deve ser ouvido e suas ideias conhecidas Said chama a atenção para o fato de que os Estados Unidos substituíram os grandes impérios anteriores são a força econômica e militar no mundo contemporâneo e dominam a América latina boa parte do Oriente Médio África e Ásia mas também assinala o fato de que se vivemos em um mundo para além do mercado mas de representações a cultura não pode estar dis sociada desta realidade Desvincular a esfera cultural do contexto político é um falseamento é querer entender a cultura como impermeável ao poder como se as representações pudessem ser tratadas como imagens apolíticas o que é nonsense Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 92 14012021 1706 O Humanismo Crítico de Edward W Said 93 Finalmente no último capítulo de Cultura e Imperialismo ele trata da as cendência americana após a Segunda Guerra Mundial HUMANISMO E CRÍTICA DEMOCRÁTICA O livro Humanismo e crítica democrática que se compõe de cinco capítulos foi apresentado a princípio como um conjunto de conferências na Universidade de Colúmbia em janeiro de 2000 e ampliado em 2002 A data é significati va pois no intervalo aconteceu a tragédia do Onze de setembro de 2001 que alterou substantivamente a esfera política nos EUA e no restante do globo Seu ponto de partida é o Curso de Humanidades em sua universidade que se inicia em 1937 um programa de quatro horas semanais e duração de um ano que introduz e familiariza os estudantes em Homero Heródoto Ésquilo Eurípedes Platão e Aristóteles a Bíblia Virgílio Dante Santo Agostinho Shakespeare Cervantes e Dostoievski O objetivo central de Said era reexami nar a relevância do Humanismo ao se entrar em um novo milênio Era buscar compreender o alcance viável do Humanismo como prática persistente e não como patrimônio mais sobre o que tem sido e é do que uma mera lista de atributos desejáveis que definam um humanista Essa necessidade de discutir o significado atual do Humanismo interes sa quando sabemos que o termo perdeu substantividade ganhou foros de tradição e de conservadorismo de elitismo quando tantas palavras no dis curso corrente têm o termo humano sugerindo humanitário e humanista nos seus núcleos O bombardeio da Iugoslávia pela OTAN em 1999 foi descrito como uma intervenção humanitária SAID 2007a p 25 Como diz Said desde o dia Onze de setembro o terror e o terrorista têm sido introduzidos na consciência pública norteamericana com uma insis tência espantosa A ênfase tem sido reforçar a distinção entre o nosso bem e o deles na qual os cidadãos estadunidenses representariam a cultura humanitária e eles a violência e o ódio Uns civilizados eles a barbárie Aí também está presente a crítica a Samuel Huntington como também em outras obras suas SAID 2003b sobretudo pela abordagem redutora vaga e reducionista presente em o Choque de Civilizações HUNTINGTON 1997 Said não ignora o advento e a influência nos anos 1960 e 1970 da teo ria francesa sobre os departamentos de humanidades das universidades Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 93 14012021 1706 Marcos Costa Lima 94 norteamericanas que sobretudo após a Guerra do Vietnã e o Maio de 1968 praticamente destrói criticamente o humanismo tradicional através dos pensa mentos estruturalista e pósestruturalista que professavam a morte do homem e a preeminência dos sistemas antihumanistas presentes nas obras de Lévi Strauss Pensamento Selvagem e de Michel Foucault Arqueologia das ciências humanas7 e onde as vozes de Rousseau e de Nietzsche ecoam forte onde o bom selvagem e o louco são as figuras que refratam as fragilidades da razão Foucault em entrevista que deu em 1966 falava da ruptura com Sartre e sua escola que se situa no momento em que LéviStrauss e Lacan mostraram que o sentido não era mais que um efeito de superfície uma reverberação e aquilo que nos atravessava profundamente o que estava antes de nós o que nos sustentava no tempo e no espaço era o sistema Antes de toda a existência humana antes de todo o pensamento humano haveria já um sa ber um sistema que nós redescobrimos FOUCAULT 1974 p 2936 Para Foucault a herança mais pesada que tínhamos recebido do século XIX fora o Humanismo e para ele era tempo de nos desembaraçarmos O humanismo foi uma maneira de resolvermos em termos de moral de valo res de reconciliação problemas que não se podiam resolver de modo algum Conhece a frase de Marx A humanidade só formula problemas que pode resolver Eu creio que se pode dizer o humanismo finge resolver problemas que não pode formular FOUCAULT 1974 p 2936 A posição adotada por Edward Said não é portanto ingênua e ainda mais quando utiliza o trabalho de Foucault para reforçar a sua elaboração teórica Michel Foucault e Thomas Kuhn prestaram um serviço considerável lem brandonos nas suas obras que de forma consciente ou não os paradigmas e epistemes têm um domínio perfeito sobre as áreas do pensamento e expressão um domínio que inflecte se não modela a natureza do pronunciamento individual Os mecanismos implicados na preservação do conhecimento em arquivos as regras que regem a formação dos conceitos o vocabulário das linguagens expressivas os vários sistemas de disseminação tudo isso 7 Arqueologia que Sartre generalizando a crítica ao estruturalismo afirmou ser irracional por propor a eliminação da História e optar pela pura descontinuidade Nessa disputa Foucault argumentava contra o existencialismo sartriano que não é o sujeito que pensa mas sim o Sistema por ele Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 94 14012021 1706 O Humanismo Crítico de Edward W Said 95 entra em alguma medida na mente humana e a influencia de modo que já não podemos dizer com absoluta confiança onde termina a individualidade e onde começa o domínio público SAID 2007a p 6465 Ao aceitar a contribuição de Foucault não deixa de acreditar que seja pos sível ser crítico ao Humanismo em nome do Humanismo e que por exemplo escolado nos seus abusos pela experiência do eurocentrismo e do império se poderia dar forma a um tipo diferente de Humanismo que fosse cosmo polita capaz de apreender as grandes lições do passado Na medida em que esse Humanismo seja uma prática contra as ideias prontas e os clichês que seja um meio de resistência à linguagem sem reflexão Tomando o exemplo recente da luta sulafricana contra o apartheid nos diz que as pessoas em todo o mundo podem ser e o são movidas por ideais de justiça e igualdade SAID 2007a p 29 Said quer garantir o sentido a afirmação do sujeito a sua opção e possibi lidade de compreensão quando entende Humanismo enquanto noção secular de que o mundo histórico é feito por homens e mulheres e não por Deus e que pode ser compreendido racionalmente segundo o princípio estabeleci do pelo filósofo Vico que em sua Ciência Nova dizia podermos conhecer as coisas segundo o modo como foram feitas Nos Estados Unidos sobretudo após a Guerra do Vietnã as humanidades caíram em descrédito mas o Humanismo tornarase conservador e elitista e abandonara o processo de criação da história de mudála A expressão lite rária e acadêmica desse conservantismo e arrogância foi Allan Bloom que ganhou projeção ao se tornar um bestseller a partir do seu O Declínio da Cultura Ocidental Justamente na contracorrente de Said que compreendia Humanismo como democrático como aberto a todas as classes e formações e como um processo de incessante descoberta autocrítica e liberação Um tema que esteve sempre presente nas reflexões de Said foi o naciona lismo8 Para o autor de Beginnings SAID 1975 a história de todas as culturas 8 Aijaz Ahmad 2002 p 109165 numa chave marxista ortodoxa embora qualificada acusa Said de transformar a controvérsia a respeito da descolonização em um mero assunto literário e pior de estabelecer uma crítica cultural em convergência com o mercado mundial por entender que Said pretende se livrar e aos seus leitores de identidades de classe nação e gênero Sem dúvida uma leitura que faz tábula rasa do essencial da obra de Edward Said Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 95 14012021 1706 Marcos Costa Lima 96 é a história dos empréstimos culturais As culturas são portanto permeáveis O assunto é tratado de forma contundente em Resistência e Oposição e de forma dialética em Cultura e Imperialismo Mas também em Humanismo e crítica democrática SAID 2007a p 73 o intelectual palestino aponta para os danos e exemplos históricos negativos devastação e sofrimento humano provocados pelo nacionalismo pelo entusiasmo religioso e pelo pensamento identitário este último trabalhado sobretudo na obra de Adorno Pois os três elementos se opõem ao pluralismo cultural Em relação exclu siva aos Estados Unidos o nacionalismo dá origem ao excepcionalismo e à paranoia do antiamericanismo presentes na cultura desse país que segundo ele desfigura a sua história reforçando narrativas belicosas e criando cons tantemente inimigos poderosos e ameaçadores ao mesmo tempo em que cristalizam uma concepção de superioridade natural estimulando políticas de intervencionismo arrogante em todo o mundo Essa expressão do nacional leva a uma compreensão mais abrangente do que talvez Bourdieu intitulasse de economia simbólica nacional ou de representação coletiva do nacional Somos ainda herdeiros desse estilo segundo o qual o indivíduo é definido pela nação a qual por sua vez extrai sua autoridade de uma tradição supos tamente contínua SAID 2005 p 27 Said é de fato um internacionalista Esse imprint é herança forte de Eric Auerbach a quem atribui ter produzido em Mimesis a maior e mais influen te obra humanistaliterária do último meioséculo SAID 2007a p 119 E o nosso autor aprecia citar reiterada vezes a frase do filólogo alemão onde este afirma que o nosso lar filológico é o mundo não a nação ou até mesmo o escritor individualmente AHMAD 2002 p 162 Mas ao mesmo tempo o professor de Columbia não quer ser identificado ou mal interpretado como defensor de uma posição antinacionalista Para ele é fato histórico que a restauração da comunidade a afirmação da identidade e o surgimento de novas práticas culturais tenham consolidado nas regiões oprimidas movimentos de superação da alienação e assim pudesse avançar 9 Cf Ainda a crítica próxima à antipatia de Ahmad 2002 p 113 quando estabelece uma quase transferência freudiana entre Said e Auerbach na medida em que Auerbach é o em blema da retidão erudita uma figura solitária defendendo o valor humanista em meio ao holocausto um estudioso no melhor dos sentidos enquanto Said seria o palestino sem Estado vivendo em um quase exílio a sua ambiciosa obra o Orientalismo Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 96 14012021 1706 O Humanismo Crítico de Edward W Said 97 a luta contra a dominação e a exploração Ocidental em todos os quadrantes do planeta oporse a isto tem tanto resultado quanto oporse à descoberta da gravidade por Newton SAID 2005 p 276 Mas ao mesmo tempo esse nacionalismo não pode ser acrítico não pode ser ufanista não pode ser ca racterizado como uma etapa final que substitui um déspota ocidental por um local Não se deve esquecer a crítica firme do nacionalismo derivada dos vários teóricos da libertação que abordei pois não podemos nos condenar a repetir a experiência imperial SAID 2005 p 405 Essa interpretação o conduz a estabelecer uma grande pergunta qual seja como a manter vivas as energias libertárias desencadeadas pelos grandes movimentos de resistência e colonização e pelas revoltas populares desde 1980 Será que estas energias conseguirão escapar aos processos homogeneizadores da vida moderna con seguirão suspender as intervenções da nova centralidade imperial São necessárias cautela e prudência para tratar da difícil relação entre na cionalismo e processos de libertação que segundo ele são dois ideais ou ob jetivos de pessoas empenhadas contra o imperialismo Mas se é verdade que a criação de inúmeras naçõesestado independentes recentes no mundo pós colonial restaurou o primado das ditas comunidades imaginadas ao mesmo tempo muitas delas foram destruídas e saqueadas por ditadores e tiranetes que acabaram por desvirtuar todo processo de libertação e de liberdades civis E então surpreendentemente o mundo inteiro se descolonizou depois da Segunda Guerra Mundial SAID 2005 p 253 A Inglaterra detinha po der imperial sobre Austrália Nova Zelândia Hong Kong Nova Guiné Ceilão Malaia todo o subcontinente asiático a maior parte do Oriente Médio toda a África Oriental do Egito à África do Sul parte da África CentroOriental a Guiana certas ilhas do Caribe a Irlanda e o Canadá O império francês era menor mas ainda assim detinha o poder de parte das ilhas do Caribe no Pacífico e no Índico Madagascar Nova Caledônia Taiti da Guiana e toda a Indochina boa parte da África do Mediterrâneo a Síria e o Líbano A luta an tiimperialista tomou conta do mundo nos anos 1950 e 1960 com os Estados Unidos já surgindo como substituto em muitas dessas regiões como aconteceu na Coreia e depois na Indochina Essas mudanças só ocorreram pela vontade de pessoas de resistirem às pressões do domínio colonial de tomarem armas conceber ideias de libertação e imaginar como em Benedict Anderson uma nova comunidade nacional E também não podem ocorrer a menos que se Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 97 14012021 1706 Marcos Costa Lima 98 instale internamente uma exaustão política ou econômica que se questione em público o custo do domínio colonial SAID 2005 p 255 Muito dessa reflexão sobre a complexidade inerente ao projeto naciona lista Edward Said toma de empréstimo da obra de Frantz Fanon O psiquiatra e ensaísta martinicano que escreveu obras10 de grande repercussão mundial sobre colonialismo racismo nacionalismo chama a atenção para o fato de que a consciência nacionalista pode com facilidade levar a uma rigidez estática apenas substituir as autoridades e os burocratas brancos por equivalentes de cor o que não é nenhuma garantia de que os funcionários nacionalistas não reproduzirão os velhos padrões e arranjos É densa a reflexão nas Ciências Humanas sobre o nacionalismo11 e não há aqui a intenção nem tampouco possibilidade de esgotála O que interessa aqui particularmente é apresentar a compreensão de Edward Said sobre a questão Neste sentido ele introduz dois importantes autores ocidentais que trataram do assunto por pontos de vista bastante diferenciados Hobsbawn e Ernst Geller Ambos entenderam o nacionalismo como uma forma de compor tamento político que foi sendo gradualmente superado pelas novas realidades transnacionais das economias modernas12 das comunicações eletrônicas e da projeção militar das superpotências e são criticados por Said 2005 p 274 que descobre em suas opiniões um acentuado desconforto e segundo esse autor uma compreensão ahistórica em relação às sociedades não ocidentais que adquirem independência nacional e portanto insistem na proveniência ocidental das filosofias nacionalistas que assim seriam mal adaptadas aos 10 Os Condenados da terra 1961 Peau Noire Masques Blancs 1952 11 O excelente livro organizado por Gopal Balakaishnan 2000 ou ainda Benedict Anderson 1991 12 Gellner 2000 p 135 diz por exemplo que embora a cultura superior compartilhada baseada na educação continue a ser a precondição da cidadania moral da participação econômica e política efetiva no industrialismo avançado ela já não precisa gerar um nacionalismo intenso O nacionalismo pode então ser domesticado como foi a religião É possível deslocar a etnia pessoal da esfera pública para a particular e fingir que isso é apenas assunto desta como a vida sexual algo que não tem por que interferir em sua vida pública e que é impróprio mencionar Mas na verdade isto é um fingimento que pode ser admitido quando uma cultura dominante é apropriada por todos e utilizável como uma espécie de moeda corrente Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 98 14012021 1706 O Humanismo Crítico de Edward W Said 99 árabes zulus indochineses latinoamericanos que provavelmente fariam mau uso das mesmas Em contraponto aos dois autores ocidentais Said introduz a contribuição contemporânea de Partha Chaterjee sociólogo indiano e um dos fundadores do Subaltern studies Chaterjee entende que parte do nacionalismo indiano respondeu ao domínio colonial para afirmar uma consciência patriótica A figura de Gandhi se inspira em pensadores ocidentais não modernos como Ruskin e Tolstói e tenta uma regeneração radical da cultura nacional e de seus padrões de costume no uso do algodão e da roupa produzida no território nacional numa alimentação parca e não processada natural enfim em pa drões de diferenciação O ideal romântico é o de restauração da nação Para Chaterjee a figura de Nehru ao contrário de Gandhi e mesmo o respeitan do é pela modernidade pela criação do estado nacional O autor de Indian and its Fragments CHATERJEE 1997 p 3 à maneira de Said se acautela do nacionalismo que embora bemsucedido no país pode tornarse uma pana ceia e não enfrentar os problemas das desigualdades disparidades de renda e região as injustiças sociais Pode ser capturado por uma elite nacionalista antipopular Esta não é uma questão de fácil solução sobretudo em um mundo onde as estruturas militares de poder de algumas potências estão diretamente articuladas com o novo paradigma tecnológico com uma imensa estrutura de corporações atuando em escala global e apoiadas a partir de um sistema financeiro que tem suas raízes em Wall Street na City londrina em Paris ou Frankfurt Tudo isso involucrado numa convergência de ideias e de visões de mundo prómainstream que infantilizam o público com alternativas sim plórias do bom e do ruim do bem e do mal como se a complexidade da história das sociedades humanas estivesse determinada por tamanho prima rismo E aqui a compreensão de Noam Chomsky nos alerta para o fenômeno do controle midiático quando informa que em 1983 50 megacompanhias dominavam a paisagem sete anos mais tarde restavam 23 terminando pelo controle da indústria midiática centralizadas em nove companhias13 13 Segundo Noam Chomsky e Edward S Herman 2003 p XIII são elas 1 Disney 2 AOL Time Warner 3 Viacom proprietária da CBS 4 News Corporation 5 Bertsman 6 General Eletric proprietária da NBC 7 Sony 8 ATTLiberty Media e 9 Vivendi Universa O mais Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 99 14012021 1706 Marcos Costa Lima 100 Caminhando para a conclusão esta primeira recepção à obra Edward W Said quis revelar a riqueza e densidade deste autor mas também a comple xidade crítica de sua abordagem que não conduz a respostas simples muito ao contrário Mas a um quase estado de crítica permanente muito à maneira de Adorno um autor reverenciado pelo palestino Não vamos fingir que existam modelos prontos para uma ordem mun dial harmoniosa diz Said e seria igualmente tolo supor que as ideias de paz e de comunidade têm grande chance quando o poder é levado a agir movido pelos conceitos agressivos dos interesses nacionais vitais ou da soberania irrestrita SAID 2005 p 52 Esta chave aparentemente pessimista ou realista não impele o teórico da literatura à resignação Para ele o intelectual tem um papel que é aque le de elucidar e revelar de desafiar e derrotar tanto os silêncios impostos quanto as quietudes que se transformam em normas Carrega consigo a premissa da desmistificação capaz de gerar instrumentos analíticos de de fesa contra a dominação simbólica que se baseia muitas vezes na autorida de da ciência Aqui ele se aproxima de Gramsci outro autor que faz parte de seu universo filosófico e como em Gramsci é absurdo pensar apenas em previsões puramente objetivas Quem faz previsões carrega consigo um programa o que reduz a compreensão de que a previsão é sempre arbitrária ou tendenciosa Às vezes esta adquire objetividade e como diz Gramsci somente a paixão aguça o intelecto e ajuda a tornar mais clara a intenção Somente quem deseja fortemente identifica os elementos necessários para a realização de sua vontade GRAMSCI 2005 p 35 Mas Gramsci diz também que a crença de que uma determinada concepção de mundo e da vida tem em si própria uma capacidade de previsão superior é um erro grosseiro exercício de fatuidade Tratase de ver se o dever ser é um ato arbitrário ou necessário é vontade ou veleidade desejo ou sonho com a cabeça nas nuvens GRAMSCI 2005 p 37 Passa portanto por todo um exercício e mediação da crítica e da história grave é que essas gigantes têm o controle dos grandes estúdios de cinema as cadeias de televisão e sociedades de produção musical bem como de boa parte dos principais canais pagos das revistas e editoras Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 100 14012021 1706 O Humanismo Crítico de Edward W Said 101 Em Humanismo e Crítica democrática SAID 2007a p 173 tratando do papel público de intelectuais e escritores na sociedade contemporânea Said apresenta dois de seus maiores embates que segundo ele estão diretamente vinculados à intervenção e elaboração do intelectual o primeiro diz respei to a impedir o desaparecimento do passado muito ao gosto de certas esco las pósmodernas e a certos estruturalismos sincrônicos o segundo trata da construção de campos de coexistência em lugar de campos de batalha como resultado do trabalho intelectual e onde ganha magnitude a sua luta pela li bertação da Palestina sua posição antibeligerante e pacifista Finalmente espero ter evidenciado não apenas as diversas interfaces da obra de Edward W Said com o campo da política internacional comparada suas aproximações temáticas mas também as possibilidades que suas refle xões podem aportar à teoria da globalização desigual numa epistemologia e metodologia que se querem abertas dinâmicas capazes de incorporar apro ximar e frutificar a produção científica e a teoria da literatura Tratando de suas várias disputas a respeito da justiça e dos direitos hu manos Said enfatizou a necessidade da redistribuição dos recursos capaz de defender o imperativo teórico contra as imensas acumulações de poder e capital que tanto desfiguram a vida humana SAID 2007a p 171 REFERÊNCIAS AHMAD A Orientalismo e depois ambivalência e posição metropolitana na obra de Edward Said In AHMAD A Linhagens do presente São Paulo Boitempo 2002 p 109165 ANDERSON B Imagined Communities reflections on the Origin and Spread of Nationalism Londres Verso Books 1991 ANTONIUS G The Arab Awekening The story of the national mouvement Beirute Librairie du Liban 1968 BALAKAISHNAN G Um mapa da questão nacional Rio de Janeiro Contraponto 2000 BOURDIEU P O poder simbólico São Paulo Bertrand Brasil 1989 capítulo v p 107132 CHATERJEE P Nationalist Thought and the colonial world a derivative discourse Londres Zed Books 1999 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 101 14012021 1706 Marcos Costa Lima 102 CHATERJEE P The Partha Chaterjje Omnibus Oxford Oxford University Press 1997 CHOMSKY N HERMAN S E La Fabrique de Lopinion publique Paris Le Serpent à Plumes 2003 DJEBAR A Une histore de la science arabe Paris Éditions du Seuil 2001 EQBAL A The neofascist State notes on the pathology of power in the Third World Arab Studies Quarterly 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Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 103 14012021 1706 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 104 14012021 1706 105 NAEEM INAYATULLAH DAVID BLANEY E A CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA INTERNACIONAL LEONARDO RAMOS RODRIGO CORRÊA TEIXEIRA MARINA SCOTELARO INTRODUÇÃO Diante de fortes tradições eurocêntricas estadocêntricas e colonialistas a perspectiva de se produzir um saber antihegemônico e sobretudo eman cipatório no campo das Relações Internacionais perpassa a contribuição de David Blaney e Naeem Inayatullah Neste sentido o presente capítulo bus cará apresentar algumas das principais contribuições destes autores para o entendimento das dinâmicas de reprodução das Rrelações Iinternacio nais em especial no que concerne ao tratamento dado ao outro e à questão da diferença e seus desdobramentos éticos No processo de construção deste argumento o capítulo busca refletir sobre a contribuição dos autores para a desestabilização de determinados discursos disciplinares no campo das Relações Internacionais em especial no que concerne ao campo da eco nomia política e seu papel central para determinados processos de exclusão no âmbito das Rrelações Iinternacionais Neste contexto buscarseá estabelecer um diálogo entre a obra de Blaney e Inayatullah e alguns dos autores por eles trabalhados com destaque para as releituras que os autores propõem da Economia Política clássica e do liberalismo Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 105 14012021 1706 Leonardo Ramos Rodrigo Corrêa Teixeira Marina Scotelaro 106 bem como das contribuições de Karl Polanyi para uma nova visão acerca da Economia Política Internacional EPI Neste sentido notarseá que uma das principais contribuições de tal reflexão para os debates contemporâneos da Economia Política Internacional diz respeito a dois pontos i crítica ao pró prio campo da Economia Política Internacional a partir da ideia proposta de Economia Política Cultural ii crítica ao liberalismo com destaque para o caráter éticonormativo da crítica A DIFERENÇA NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS UM PROBLEMA DE PARTIDA Os trabalhos de Naeem Inayatullah e David L Blaney problematizam alguns aspectos relacionados à construção do conhecimento a partir das Relações Internacionais RI e da Economia Política Internacional EPI sobretudo no que tange à forma de como lidar com a noção de diferença Ambas abor dagens são entendidas como integradas aos estudos de desenvolvimento parte indissociável do projeto civilizatório moderno ocidental e dessa forma igualmente partes de um projeto cultural temporal e espacialmente especí fico A Teoria da Modernização provê uma contribuição essencial aos atos que evitam que as RI lidem com o problema da diferença ao tomar como dada as demarcações espaciais da geopolítica pelas quais as diferenças são contidas e domesticadas Tal abordagem se projeta como uma sequência de desenvolvimento natural e universal pela qual todas as culturas e socieda des caminharão As RI e as abordagens do desenvolvimentomodernização se relacionam como nexos teóricos para separar os de dentro e os de fora como visões alternativas dos processos sociais manifestados no tempoes paço Em um o tempo internacional ou global é congelado em um Estado primitivo não permitindo o desenvolvimento do sistema de Estados No outro o espaço é congelado enquanto o tempo é desenrolado de uma ma neira particular dentro de cada EstadoNação mas sempre teleologicamen te canalizado rumo a uma sociedade liberal moderna ou seja civilizada1 BLANEY INAYATULLAH 2004 1 Para uma primeira aproximação dos debates acerca da relação entre internalidade e exter nalidade na literatura de RI ver Walker 2013 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 106 14012021 1706 Naeem Inayatullah David Blaney e a crítica da Economia Política Internacional 107 A separação espaçotemporal se tornaria um padrão comum de significa dos e de identidades um duplo movimento que emerge em situações de contato inicial influência de Tzvetan Todorov 2010 na obra dos autores Ao se apropriarem dessa ideia desenvolvem o argumento de que 1 a diferença se transforma em inferioridade e assim surge a 2 possibilidade de uma hu manidade comum a partir de uma assimilação As respostas do duplo movi mento acompanham uma forma de separação splitting há uma quebra na mutualidade de interação entre o self e o outro O padrão para todas as for mas de dominação é a tendência de separar o self e o outro para congelar as diferenças imputadas e então permitir a exclusão O problema da diferença emerge e se intensifica sob condições modernas de relativa igualdade sempre tendendo para formas agressivas de hierarquias sociais a marca dos outros como inferiores é uma ameaça O método comparado neste caso é estruturado de acordo com um ordenamento espaçotemporal que reproduz a lógica do duplo movimento do Todorov na qual a alteridade humana é até hoje revelada e rejeitada neste caso a comparação não coloca o outro no mesmo nível em que se encontra o self excluindo as possibilidades de diálogo entre suas cate gorias A cultura do ocidente moderno desde século XVI se apresenta como a estrutura a ferramenta ou a teoria para o entendimento do outro Portanto essa visão hegemônica e paroquial opera paradoxalmente rejeitando a alteri dade dos não ocidentais aceitandoos como estágios primitivos da evolução do self O discurso colonial se desloca a partir de duas respostas polarizadas a diferença é tratada como inferioridade ou um tipo de igualdade é reconhe cida mas com o custo da assimilação do outro pelo self Essas repostas levam a cabo o ato de separação no qual o self e o outro se apresentam como opções mutuamente excludentes2 BLANEY INAYATULLAH 2004 Com a emergência do sistema de Estados as diferenças constituindo e distanciando cada Estado como uma comunidade política particular perma necem separadas e administradas dentro das fronteiras territoriais de cada 2 Tais processos de hierarquização e exclusão se expressam por exemplo em contextos de formação dos Estados processos estes que apresentam neste sentido uma clara dimensão cultural Vide por exemplo o interessante argumento de Heather Rae a respeito das distin tas estratégias empregadas nos processos de formação dos Estados na busca pela unidade estatal e unificação da população estratégias estas chamadas por Rae de homogeneização patológica RAE 2002 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 107 14012021 1706 Leonardo Ramos Rodrigo Corrêa Teixeira Marina Scotelaro 108 Estado Essa demarcação e policiamento de limites entre os de fora e os de dentro da comunidade política define o problema da diferença principalmente como entre e em comum aos Estados ou seja a diferença é marcada e contida como diferença internacional A construção da diferença nesses termos faz com que o problema da diferença seja tratado mediante a negociação de um modus vivendi entre comunidades políticas mutualmente construídas Nas Relações Internacionais os autores apontam para a persistente incapacidade do campo em lidar com as várias respostas criativas frente à diferença que surgiram ao longo do século a partir de povos não europeus O modo engen drado nos discursos intelectuais sobre a noção de tempo mais reforçados do que desafiados levou à interpretação da diferença como uma perigosa aberração frente às normas de estabilidade segurança e ordem Um proble ma central para a constituição primária das Relações Internacionais é o fato de o Estado ser o domínio onde diferença é traduzida em uniformidade tornandoa em um lugar de perigo potencial perene mas que pode admitir um manuseio uma confrontação entre as partes Essa separação entre insi deoutside assinala menos uma solução para o problema da diferença e mais uma negação da necessidade em se encarar o problema de frente3 BLANEY INAYATULLAH 2004 Os autores sugerem a partir dessa perspectiva uma interpretação diferente da sociedade internacional na qual o problema da diferença é generalizado A comunidade política delimitada constrói e é construída por outros tanto dentro como além de suas fronteiras Aqueles que estão dentro da fronteira são administrados e governados por uma combinação de hierarquia erradi cação pela assimilação expulsão e tolerância Os outros externos à fronteira são deixados a sofrer e a prosperar de acordo com seus meios interditados nas fronteiras balanceados ou detidos ou em casos apropriados sujeitados à coerção ou conquista Tais respostas aos outros parecem perpetuar a equa ção de Todorov a diferença é traduzida como inferioridade e então sujeitada à erradicação Ademais a lógica insideoutside realiza o ato de separação ao excluir por sobreposição do self sobre o outro que funciona para desviar as 3 Neste caso a ideia de que a sociedade internacional representa uma solução para o problema da diferença é algo que sempre remete à leitura convencional acerca do legado de Vestfália Vide por exemplo Gross 1948 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 108 14012021 1706 Naeem Inayatullah David Blaney e a crítica da Economia Política Internacional 109 respostas para a diferença na direção de purificação Situar a diferença segu ramente fora das fronteiras do self nos impede de reconhecer que os outros sempre se mantiveram dentro de nós mesmos ou apreciar e evocar selves que existem como parte do outro além das fronteiras A separação do insideout side não é só constitutiva do campo mas também é uma precondição para o retardo do problema da diferença associado à sociedade de Estados Tal discussão a respeito do problema da diferença é um passo funda mental para que se perceba como as RI negam seu caráter colonial frente ao problema da diferença A linguagem da cultura BLANEY INAYATULLAH 2004 2012 é essencial para o tratamento da questão uma vez que explora a parcialidade e a diversidade ao invés de traduzir a diferença como alteridade a ser excluída do próprio self Compreendemna como uma confluência en tre o inside e o outside a necessidade de contenção pela homogeneização que emergiu a partir do contato com novos continentes nos períodos expansio nistas se justifica pela ameaça a cosmologia europeia e seus mitos criacionais Neste sentido as RI não consideram o encontro com a diferença as zonas de contato de encontros coloniais como uma possiblidade de atração de troca ou de aprendizado mas como uma necessidade de repressão para fora das fronteiras políticas estabelecidas nos marcos políticos ocidentais O adia mento do problema da diferença é contido nas unidades políticas do mundo moderno a partir da naturalização do estado de natureza do indivíduo O retardo ou atraso temporal construído dos novos selvagens do mundo foi equiparado às origens temporais imaginadas do self europeu na antiguidade Europeus e ameríndios tem a mesma origem surgiram da mesma família Os europeus contudo mantiveram suas origens cristãs e sua civilização avançada Enquanto isso os ameríndios se perderam no caminho e foram jogados em um passado degenerado Os europeus imaginavam os ameríndios como temporalmente anteriores ao self que deveriam ser reintroduzidos na civilização cristã via educação Neste sentido a conquista europeia serviu a um propósito explicitamente pedagógico BLANEY INAYATULLAH 2015b p 6 As RI devem ser ressignificadas como o estudo das muitas modalida des da diferença o que os autores chamam de heterologia e que será parte Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 109 14012021 1706 Leonardo Ramos Rodrigo Corrêa Teixeira Marina Scotelaro 110 indissociável de suas análises BLANEY INAYATULLAH 2004 2015b a necessidade de se assumir o caráter mutualmente constitutivo da política mundial cujas conexões se sobrepõem entre o self e o outro e abrem oportu nidades para aprendizados e recursos políticos e éticos Para edificar a crítica sobre os cânones das Relações Internacionais e so bre como incorporar os elementos recessivos silenciados na construção do campo Blaney e Inayatullah partem da ideia de que a suposta objetividade científica buscada e traduzida em enunciados racistas imperialistas e eurocen tristas no campo se realiza a partir de um entendimento das Ciências Sociais como um ambiente disciplinar direcionado ao nível de análise unitário ou do ator O individualismo metodológico nega os processos que produzem as relações de dominação e desigualdade no âmbito sistêmico Este tratamento que privilegia as partes em detrimento do todo determina a priori a menta lidade causalexplicativa que orienta o entendimento do ordenamento mun dial Nas Relações Internacionais os Estados representam essas unidades a partir da delimitação territorial da soberania uma configuração formalmente independente e particular igualmente concedida a estes atores Na Economia Política Internacional esse imperativo individualista reforça e reproduz tais questões ao focar no comportamento dos atores e como administram a inter dependência gerada por suas interações BLANEY INAYATULLAH 2015a Neste sentido os autores identificam dois possíveis pontos de partida para se entender o internacional a partir de cima e a partir de baixo ambos com implicações políticas e metodológicas claras Olhando a partir de cima contudo vemos como o domínio colonial e a dominação imperial produzem um nivelamento desigual entre povos ocidentais e não ocidentais como se fosse algo natural Nossa socialização acadêmica desfavorece hoje a visão a partir de cima a partir do ponto de vista da desigualdade padronizada A observação a partir de cima tem sido estigmatizada nas RI convencionais porque sugere a primazia da desigualdade padronizada do todo violando o imperativo de condenar ou atribuir a responsabilidade ao indivíduo ou ao grupo Quando vista a partir de baixo do nível das unidades é idealizado e a desigualdade pa dronizada é tratada como secundária como um efeito e não como uma causa BLANEY INAYATULLAH 2015a p 903 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 110 14012021 1706 Naeem Inayatullah David Blaney e a crítica da Economia Política Internacional 111 Tal classificação além de pertinente é também elucidativa na medida em que abre possibilidades analíticas no que concerne às Relações Internacionais tanto como ciência quanto como prática e como a dimensão cultural se ar ticula neste processo embora longa vale a pena reproduzir a seguinte cita ção dos autores As RI a partir de baixo nos lembram que as RI convencionais seja realista estrutural institucionalista liberal ou construtivista trata os Estados ou os grupos como partes que são logicamente independentes de sistemas mais amplos como o capitalismo ou a modernidade e que este aparato metodológico serve a propósitos políticos Sob o pretexto de ser ciência o individualismo ontológico desvia nossa atenção da coconstituição entre tempos e lugares Enquanto por um lado rompe com tópicos holísticos a fim de apresentar os Estados como entidades monádicas por outro lado afirma pedagogica mente que a situação atual dos Estados avançados é o modelo para aqueles que ficaram para trás Na medida em que revela esse truque as RI a partir de baixo sugerem que as RI contemporâneas são uma expressão da teoria ocidental do progresso Ela chama nossa atenção para a relação entre todos e partes se o desenvolvimento ocorre dentro das fronteiras dos Estados ou no sistema como um todo e para a separação improdutiva entre economia e análise do capitalismo por um lado e as estratégias representacionais e análise cultural por outro Neste processo ela tira proveito de seu status de outro constitutivo para trazer ao primeiro plano o potencial das RI como o aspecto da teoria social que se dedica ao estudo das relações entre o self e o outro E isso nos oferece recursos para imaginar o futuro para além daquele oferecido pelas RI a partir de cima tanto a convencional quanto a crítica BLANEY INAYATULLAH 2008 p 1415 O que os autores entendem como uma prática de Relações Internacionais a partir de baixo se constitui portanto como um espaço geopolítico do sul global e do terceiro mundo e como um princípio avaliativo que se baseia em uma visão de mundo material e civilizacional específica A multiplicida de epistemológica e ontológica da crítica desafia o atomismo ontológico das teorias modernas e das sociedades ao ressaltar a coconstrução histórica de instituições e processos na contemporaneidade É a partir deste ponto que os autores reforçam a necessidade de um engajamento mais adequado às Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 111 14012021 1706 Leonardo Ramos Rodrigo Corrêa Teixeira Marina Scotelaro 112 discussões de economia política a partir de culturas alternativas vindas de baixo BLANEY INAYATULLAH 2008 O propósito aqui é explorar a falência das Relações Internacionais em con frontar o problema das diferenças culturais e a partir daí pensar as Relações Internacionais como um lugar singularmente situado para explorar a rela ção do todo e das partes das semelhanças e das diferenças bem como pro ver exemplos preliminares do que seria uma nova visão acerca das Relações Internacionais e seus impactos para o entendimento de um mundo póscolo nial Relações Internacionais e Economia Política Internacional não podem ser tratadas como campos amorais e neste sentido autores como Todorov Nandy e Polanyi são apontados por Blaney e Inayatullah como alternativas a uma a restauração a um diálogo imperativamente ético nestes campos TODOROV 2010 NANDY 1983 POLANYI 2012 Todorov e Nandy cons troem a possibilidade do diálogo contra o antidialogismo do colonialismo e de suas ressonâncias contemporâneas variadas Igualmente compartilham um diálogo comprometido com um imperativo ético Ambos veem que o diálo go requer um lugar no self e no outro em condições de iguais dentro da con versação Essa é a capacidade de simultaneamente achar o outro de dentro e engajar o outro de fora em um processo de autorreflexão eou transformação cultural Ainda que Todorov enfatize o primeiro e Nandy o segundo ambos o conhecimento e a transformação cultural são centrais para uma Economia Política Internacional crítica do tipo que o trabalho de Polanyi aponta Para os autores a crítica de Polanyi ao economicismo e sua dupla crítica ao capitalis mo seriam um anúncio do tipo de diálogo de culturas que Todorov e Nandy recomendam o que nos leva a pensar a Economia Política Internacional a partir de tais considerações A Economia Política Internacional e o problema da diferença Para compreender o projeto de construção da identidade ocidental Blaney e Inayatullah consideram que é especificamente a partir da disciplina de Economia Política por meio da idealização de opulência modernidade e civilidade frente ao outro pobre atrasado e selvagem que o Ocidente con segue operacionalizar sua superioridade Ao manter separados os domínios culturais e econômicos é possível conferir à economia um caráter atemporal e Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 112 14012021 1706 Naeem Inayatullah David Blaney e a crítica da Economia Política Internacional 113 aespacial sem a particularidade de ser em si um projeto cultural Neste ponto do argumento passam a ser extremamente relevantes as teorias da moderni zação uma vez que a Economia Política se torna capaz de preencher a lacuna utópica aberta a partir da projeção do self enquanto uma cultura ocidental universal como contraponto ao outro selvagem temporalmente distinto e in ferior BLANEY INAYATULLAH 2010a 2010b A Economia Política preenche essa lacuna ao manifestar a autoideali zação dos símbolos ocidentais modernidade civilidade riqueza e por tal razão deve ser compreendida como ponto determinante no surgimen to do projeto cultural que passa a ser viabilizado a partir dessa separação Uma contribuição importante de Blaney e Inayatullah em determinado ponto de sua obra diz respeito à sua tentativa de compreender os efeitos problemáticos destes símbolos modernidade civilidade riqueza a partir dos autores clássicos desse campo que tratam da forma como a produção de riqueza inflige danos sobre o Ocidente e o mundo em nome de valores como liberdade igualdade e individualidade BLANEY INAYATULLAH 2010a 2010b 2012 2015b A economia política emerge de uma separação cultural na qual os ou tros servem como uma referência ou parâmetro negativo a partir do qual a Europa é vista como rica civilizada e racional Os outros os anacrônicos em termos de desenvolvimento não modernos são apropriadamente pobres bárbaros e irracionais O selvagem é precisamente aquilo que o self europeu moderno não é O nãoocidental ou nãomoderno surge não apenas como alguém fora da economia política mas também como o outro excluído contra o qual o ocidente e o moderno são definidos BLANEY INAYATULLAH 2010a p 16 17 Ao se colocar em oposição à cultura a economia busca se estabelecer cien tificamente passível de uma racionalização sem conteúdo social ou político O caráter cultural da economia é assim mascarado pelos discursos cientificistas da disciplina que passa a ser eximida de supostas responsabilidades associadas às deformações sociais geradas pela busca da riqueza O aprofundamento deste aspecto é essencial uma vez que nem a tradição clássica da Economia Política se exime de discutir os aspectos morais relacionados à forma de organização Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 113 14012021 1706 Leonardo Ramos Rodrigo Corrêa Teixeira Marina Scotelaro 114 social capitalista ou seja sobre as implicações morais das ações individuais e os impactos gerados por elas BLANEY INAYATULLAH 2010a 2010b Os autores chamam a atenção para a necessidade de considerar a Economia Política como um encontro cultural Tanto o conhecimento econômico quanto o conhecimento cultural se distanciam mutuamente a partir de visões espe cíficas sobre o status científico na produção do conhecimento Enquanto a cultura supostamente residiria em um terreno puramente ideográfico com uma multiplicidade de significados na análise de interações sociais com pou ca objetividade e poucas leis de regularidade igualmente a economia pecaria por uma naturalização da organização social pela busca de uma ciência ava lorativa aespacial e dissimuladamente nomotética4 Ao promover o diálogo entre essas áreas do conhecimento seria possível construir culturalmente a economia ao conferir à racionalidade técnica um lugar político e social sig nificados e objetivos éticos que são espacial e temporalmente específicos das sociedades capitalistas BLANEY INAYATULLAH 2010a Dentre os autores recuperados nessa leitura historiográfica compreensiva que ajuda a elucidar o potencial heurístico da releitura proposta por Blaney e Inayatullah notase que tanto Friedrich Hayek quanto Adam Smith com preendem que o mercado não é um assunto técnico mas é intrínseco a uma concepção de sociedade na qual a competição tem o papel de promover os valores de liberdade e igualdade individuais Isso não faz com que tais auto res neguem a existência de efeitos degenerativos para parte da população que não tem seus desejos atendidos neste âmbito entretanto tais efeitos perversos são necessários para promover o progresso que livra a sociedade da escassez selvagem Neste ponto a temporalidade se materializa entre diferentes está gios evolutivos das sociedades avançadas e primitivas e a diferença se apropria culturalmente dos princípios econômicos para legitimar a sociedade de mercado Hegel e Marx aprofundam a crítica aos efeitos nocivos da prati ca econômica de mercado na sociedade capitalista uma vez que o entendem 4 Uma ciência nomotética pode ser caracterizada por formulações hipotéticodedutivas de proposições que se organizam por leis gerais e universais aplicáveis a um número expressivo de casos categorizados a partir de atributos comuns a uma mesma classe interpretativa As ciências ideográficas por sua vez atribuem à compreensão de fatos isolados e independentes a legitimidade na produção de conhecimento conferindo à indução e à fenomenologia um peso cientifico paradigmático Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 114 14012021 1706 Naeem Inayatullah David Blaney e a crítica da Economia Política Internacional 115 como uma instituição social de uma ordem ética especifica Enquanto Hegel acredita que a economia capitalista promove a individualidade a igualdade e a liberdade Marx entende que a mesma é capaz de promover interesses plura lizados e encorajar inciativas individuais O custo social dessas práticas para Hegel é a alienação de parte da sociedade civil em prol da individualização da modernidade chega ao ponto de reconhecer a centralidade do Estado para controlar os limites da privação e da deformidade social Para Marx o custo da realização do princípio de liberdade depende da pobreza da alienação e da dominação de grande parcela dos indivíduos expostos a essa ordem Em suma uma leitura crítica de tais autores clássicos apontaria para uma questão que em maior ou menor grau preocupava a todos eles a saber a relação entre pobreza e a criação de riqueza ou em outros termos será que a geração de riqueza ao invés de entregar a redenção prometida não deixaria na verdade uma ferida na sociedade moderna Não seria a pobreza intrínseca à geração de riqueza BLANEY INAYATULLAH 2010a 2010b Tais questões fundamentais concernentes à constituição da moderni dade e particularmente intrínsecas ao próprio capitalismo levam Blaney e Inayatullah a se voltarem para os escritos de Karl Polanyi em especial sua crítica ao economicismo e sua postura etnológica perspectivista O erro lógi co da falácia economicista envolve uma confusão sobre um amplo e genérico fenômeno com uma variedade de manifestações econômicas que estamos fa miliarizados especificamente de equacionar a economia humana em geral com sua forma de mercado Polanyi resiste à ideia de separação entre a polí tica e a economia entre as motivações humanas reais e ideais e a polaridade de sociedade de mercado e alternativas romantizadas O desenvolvimento de Polanyi da dupla crítica ao capitalismo abrange a coexistência de modos distintos e sobrepostos de vida social e aponta para um diálogo possível entre eles5 Para Polanyi a coexistência da diferença e do diálogo não é sobre retor nar ao passado mas a constituição de uma base para uma nova civilização POLANYI 2012 BLANEY INAYATULLAH 1999 2004 2015b 5 A dupla crítica ao capitalismo diz respeito ao fato de Polanyi encontrar fontes tanto inter nas quanto externas ao projeto cultural europeu de desenvolvimento e economia política BLANEY INAYATULLAH 1999 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 115 14012021 1706 Leonardo Ramos Rodrigo Corrêa Teixeira Marina Scotelaro 116 Ou seja diferentemente do que afirma Hayek e a tradição neoliberal a implementação do capitalismo não é um todo espontâneo mas função de uma ação concertada especialmente pelo Estado liberal Polanyi assim como Hayek e Smith está preocupado com o tema da integração social entretan to onde Smith e Hayek cometem a falácia economicista argumentando que a divisão do trabalho e do conhecimento requer apenas trocas competitivas no livre mercado Polanyi pontua que o processo de provisão material tem sido instituído na sociedade humana de várias formas e de acordo com vá rios princípios ao longo da história Ou seja a economia tem sido imbuída de práticas sociais que envolvem reciprocidade e redistribuição assim como a troca de mercado Neste sentido Polanyi expõe com clareza que a tentativa de integrar a sociedade exclusivamente a partir de princípios e práticas de troca de merca do produz consequências devastadoras para o sustento humano e bemestar comprometendo a prometida liberdade e igualdade da sociedade moderna As consequências do projeto econômico liberal do século XIX são vistas as sim como primariamente culturais Ora a Economia Política Internacional contemporânea parece ter abandonado ou se tornado desconectada da ideia de que a Economia Política nesse sentido tem conteúdo e propósito ético e tal abandono significa que o termo operativo dos economistas políticos posi tivistas especialmente teóricos da Escolha Racional transforma a economia e a racionalidade em um instrumento sem fim BLANEY INAYATULLAH 1999 2004 2010a 2015a 2015b Ora a partir de tais questões o liberalismo clássico deve ser compreen dido como parte constitutiva e indissociável do capitalismo e da moderni dade sendo sempre de alcance internacional Os princípios liberais não só fizeram do homem um indivíduo supostamente livre racional em suas escolhas e que agindo em busca de seus interesses traz o bem para a so ciedade mas também se projetam para o espaço global a partir da ideia de livre mercado em uma escala mundial segundo a qual o mercado é visto como uma parte da economia mundial que define as relações entre as uni dades Estado firma e indivíduos cosmopolitas Neste processo notase a existência de uma gama de tensões que especificam o liberalismo como campo social moderno distinto basicamente tensões associadas às fre quentes contestações de forças sociais não liberais frente às desigualdades Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 116 14012021 1706 Naeem Inayatullah David Blaney e a crítica da Economia Política Internacional 117 geradas por este modelo de organização social da economia A recorrente imposição do modelo liberal como forma supostamente eticamente mais justa de organização social sobre dogmas religiosos e práticas tradicionais nega diretamente e no limite paradoxalmente o direito à liberdade e à igualdade Quanto mais a liberdade é enfatizada mais as desigualdades geradas na competição são legitimadas em uma crescente estruturação da sociedade em classes possuidoras ou não da riqueza efeito totalmente indesejado do liberalismo INAYATULLAH 2012 Na sociedade internacional o mundo está por extensão diferenciado ainda que composto por unidades juridicamente soberanas ou iguais Como membros de uma sociedade internacional os Estados são constituídos como atores independentes que devem se basear em seus próprios recursos e esfor ços para alcançar seus objetivos e seus propósitos É interessante perceber que essa caracterização só ganha seu significado contemporâneo quando consi deramos que tais Estados se encontram integrados a uma divisão global do trabalho em um sistema capitalista global Os Estados competem por divisão de mercado para suas firmas e regiões no mercado mundial e a competição deve ser vista como parte de um esquema de significados como uma prática social que justapõe certos valores e princípios enquanto estabelece certo tipo de self e constrói suas relações com outros É uma forma cultural particular caracterizada por uma tentativa em andamento de mediar a oposição entre os princípios de igualdade e hierarquia social e entre identidade e diferen ça por meio de estágios de competições BLANEY INAYATULLAH 2004 As hierarquias que se revelam nas práticas competitivas modernas apon tam para a difícil tensão existente entre a igualdade formal entre os sujeitos e a negação substantiva dessa igualdade Adam Smith e Friedrich Hayek tratam a diferença entre os sujeitos como uma oportunidade assim como um pro blema a ser resolvido pela sociedade moderna Entretanto a possibilidade de que a diferença possa oferecer alternativas para uma cultura de competição é barrada por tais autores ao limitarem a sociedade moderna a uma ordem ontologicamente separada formada por sujeitos individualizados Os proces sos de troca e de competição se tornam as únicas possibilidades de resolução apropriada de tal problema Em suma Hayek e Smith construíram a diferen ça como um problema moderno mas um problema resolvido somente pela competição de mercado BLANEY INAYATULLAH 2004 2012 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 117 14012021 1706 Leonardo Ramos Rodrigo Corrêa Teixeira Marina Scotelaro 118 Na sociedade internacional o nacionalismo permanece como o valor mais universalmente legítimo Na verdade a força da lógica de soberania faz com que as formas de vida sejam imaginadas primariamente como comunidades políticas como Estados nascentes ou como atores relativamente autônomos dentro de Estados plurinacionais Pelo fato de que cada Estado deve prover e desenvolver sua própria capacidade em realizar seus propósitos o Estado é obrigado a competir com outros Estados Não é de se surpreender então que os Estados batalhem numa competição global intensa para criar condições dentro de suas fronteiras e se possível para suas corporações no âmbito glo bal a fim de assegurar parcelas do mercado mundial e promover a capacidade de produção e venda para suas corporações dentro e fora de suas fronteiras Por outro lado a hierarquia revelada pela competição estratégica é entendida como algo que cumpre um propósito social importante suportar a ordem as normas e os princípios da sociedade de Estados identificando aqueles que são capazes de exercer um papel chave na manutenção daquela ordem O pa pel dos Estados mais fortes das potências em administrar é possível somente onde os Estados são parte de uma sociedade de normas valores e objetivos comuns Neste sentido os competidores são naturalmente classificados se gundo seu desempenho econômico e social na ordem internacional Ora como visto tal hierarquização gera necessariamente dilemas para a ideia de liberdade no âmbito internacional e como resposta a essa perda de liberdade relativa os programas de ajuda internacional a defesa de ampliação dos me canismos de participação política a defesa por direitos do homem de caráter universal emergem como tentativas de compensar os efeitos desagregadores do modelo capitalista que também se reproduz para além das fronteiras que deveriam conter as diferenças6 BLANEY INAYATULLAH 2004 Um dos efeitos desagregadores mais representativos do modelo de pro dução capitalista é a relação espúria entre a promessa da abundância a partir da acumulação como solução para a escassez de necessidades humanas e a permanente pobreza da maioria dos indivíduos que se encontram alijados dos ganhos destes processos de acumulação Neste contexto como colocado 6 Para uma interessante leitura acerca do perigo que o subdesenvolvimento apresenta para esse liberalismo que se expande em escala global e as recentes conexões entre desenvolvimento e segurança ver Duffield 2001 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 118 14012021 1706 Naeem Inayatullah David Blaney e a crítica da Economia Política Internacional 119 anteriormente ao se tornarem portadores de um projeto cultural os pensa dores da economia política clássica compreendem a pobreza como intrínseca à produção de riqueza ao produzir uma ferida na sociedade moderna que exacerba os nexos entre a criação de riquezas adicionais e deformidades so ciais ao invés de sanálas A ideia de que a opulência funcionaria como an tídoto à pobreza se esvai com a persistência da miséria frente à acumulação exponencial de capital A afirmação de que a riqueza e a pobreza se encontram fundidas de maneira indissolúvel abre o capitalismo para o debate Não estamos falando com isso acerca da polêmica entre capitalistas do livre mercado e anticapitalistas na qual não é dado aos oponentes nenhum espaço ou voz Imaginamos algo mais calmo e profundo um debate interno à sociedade capitalista moderna na qual tanto as vantagens quanto as desvantagens do capitalismo como uma forma de vida ética sejam confrontadas diretamente Tal abertura tem um benefício adicional Se a pobreza é um componente necessário da modernidade capitalista então não pode ser meramente atribuída a uma era prémoderna ou nãomoderna inalterada pela abundância moderna BLANEY INAYATULLAH 2010a p 3 Estas reflexões trazem à tona a discussão sobre o progresso humano e os estágios de desenvolvimento naturalmente associados aos pensadores clássi cos considerados fundadores do liberalismo e das teorias de modernização A separação entre o passado e o presente organiza a diferença a partir de estágios temporalmente determinados encadeados linearmente e progressivamente a partir de uma etapa primitivista de escassez para uma posterior de abundância O retorno aos clássicos empreendido pelos autores tem como objetivo trazer novas interpretações acerca dos mitos de origem do pensa mento econômico clássico à luz de sua influência sobre a mútua construção da modernidade e do colonialismo A partir dessa releitura são recuperados e expostos os temas recessivos e os outros internos localizados nas tensões do espaçotempo da economia política clássica questões referentes à pobreza à violência e à desordem Isso implica o reconhecimento de que tais contri buições apontam para um discurso de historia universal justificada pela im posição violenta do capitalismo BLANEY INAYATULLAH 2010a Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 119 14012021 1706 Leonardo Ramos Rodrigo Corrêa Teixeira Marina Scotelaro 120 Ora a Economia Política Internacional convencionalmente vê o processo competitivo como independente e portanto não responsável pelas desigual dades no caráter e tratamento dos atores individuais a desigualdade social é tratada como um dado e o indivíduo ontologicamente primitivo é amplamente separado de seu processo social Nesta perspectiva o self é construído como logicamente anterior e separado do social e a desigualdade social é naturaliza da A Economia Política Internacional expressa essa tensão na oposição entre a construção do significado e do propósito social dos resultados estruturas instituições e regimes produzidos pelas interações de atores individuais e a qualidade présocial desses atores e suas motivações e necessidades Então a cultura de competição é entendida paradoxalmente e problematicamente como sempre requerendo a construção do mundo social por indivíduos on tologicamente separados Daí a relevância da crítica aqui apresentada com preender a EPI como uma cultura da competição é reconhecer seus propósitos e valores como socialmente constituídos Uma investigação da economia política como um projeto cultural envolve assim não apenas o entendimento da formação identitária que separa self e outro mas também a necessária sobreposição entre self e outro uma sobre posição que oferece uma visão transgressora A economia política revela os ideais sociais e políticos mais sagrados e duradouros do ocidente moderno seus maiores medos e ansiedades e visões alternativas potencialmente poderosas da vida social e política Explorar esse terreno também significa reconhecer que a economia política se encontra nos domínios do cultural BLANEY INAYATULLAH 2010b p 31 CONSIDERAÇÕES FINAIS Como dito anteriormente ver a diferença como algo que se encontra fora das fronteiras do self nos impede de reconhecer que os outros sempre se manti veram dentro de nós mesmos bem como de perceber selves que porventura existam como parte do outro que se encontra para além das fronteiras Tal questão é importante não apenas para o estudo das Relações Internacionais mas também para o estudo da Economia Política Internacional Perceber Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 120 14012021 1706 Naeem Inayatullah David Blaney e a crítica da Economia Política Internacional 121 como as discussões sobre riqueza e pobreza desenvolvimento e subdesen volvimento são eivadas pelo eurocentrismo é algo fundamental para um en tendimento dos processos de constituição tanto do internacional quanto das Relações Internacionais MCCARTHY 2009 HOBSON 2012 Neste sentido reflexões como as feitas por Blaney e Inayatullah ajudam a entender o cará ter historicamente contingente do internacional e assim a importância dos diálogos e da dialética intercivilizacional neste contexto HOBSON 2013 Além disso cumpre necessário um segundo passo a saber como lidar com essa contingência Como pensar formas alternativas e sobrepostas de desenvolvimento e organização da vida material Neste ponto as releituras dos clássicos da Economia Política associados às contribuições de Polanyi por exemplo podem ser extremamente elucidativas Obviamente Blaney e Inayatullah não trazem todas as respostas para os problemas que levantam não obstante ambos apresentam importantes pistas acerca de possíveis rotas de pesquisa futuras na interface EPIRI REFERÊNCIAS BLANEY D INAYATULLAH N Towards an ethnological IPE Karl Polanyis double critique of capitalism Millennium journal of international studies London v 28 n 2 p 311340 1999 BLANEY D INAYATULLAH N International Relations and the Problem of Difference London Routledge 2004 BLANEY D INAYATULLAH N International Relations from Below In REUSSMIT C SNIDAL D ed Oxford Handbook of International Relations Oxford New York p 663674 2008 BLANEY D INAYATULLAH N Savage economics wealth poverty and the temporal walls of capitalism London Routledge 2010a BLANEY D INAYATULLAH N Undressing the Wound of Wealth Political Economy as a Cultural Project In BEST J PATTERSON M ed Cultural Political Economy London Routledge p 2947 2010b BLANEY D INAYATULLAH N Liberal Fundamentals Invisible Invasive Artful and Bloody Hands Journal of International Relations and Development United Kingdom v 15 n 2 p 290315 2012 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 121 14012021 1706 Leonardo Ramos Rodrigo Corrêa Teixeira Marina Scotelaro 122 BLANEY D INAYATULLAH N A problem with levels how to engage a diverse EPI Contexto Internacional Rio de Janeiro v 37 n 3 septdec p 889911 2015a BLANEY D INAYATULLAH N Difference Returning International Relations Theory to Heterology In MHURCHÚ 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Intimate enemy loss and recovery of self under colonialism Delhi Oxford University Press 1983 POLANYI K A grande transformação as origens da nossa época Rio de Janeiro Elsevier 2012 RAE H States identities and the homogeneisation of peoples Cambridge Cambridge University Press 2002 TODOROV T A conquista da América a questão do outro 4 ed São Paulo Martins Fontes 2010 WALKER R B J InsideOutside relações Internacionais como teoria política Rio de Janeiro Ed PUCRioApicuri 2013 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 122 14012021 1706 DIÁLOGOS E INTERPRETAÇÕES Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 123 14012021 1707 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 124 14012021 1707 125 PROBLEMATIZANDO O OUTRO ABSOLUTO DA MODERNIDADE A CRISTALIZAÇÃO DA COLONIALIDADE NA POLÍTICA INTERNACIONAL 1 RAMON BLANCO2 ANA CAROLINA TEIXEIRA DELGADO INTRODUÇÃO 3 Nas décadas recentes a disciplina das Relações Internacionais RI passou por um largo processo de diversificação Enquanto no passado uma quantidade conside rável de análises desenvolvidas era sustentada por diferentes eixos do Liberalismo ou Realismo e em menor grau pelo Marxismo do final dos anos 1980 em dian te a disciplina abriuse para problematizações ancoradas em diferentes tipos de 1 A tradução deste texto foi realizada por Rafael Nascimento a quem se agradece imensamente Agradecese também aos comentários feitos pelos membros da rede Colonialidade e Polí tica Internacional à uma versão preliminar deste capítulo Qualquer erro ou inconsistência contudo são de responsabilidade inteiramente dos autores 2 O autor agradece o auxílio financeiro proporcionado às suas pesquisas pela PróReitoria de Pesquisa e PósGraduação da UNILA sob os seguintes instrumentos financeiros PRPPG no 1092017 PRPPG no 582018 PRPPG no 1102018 PRPPG no 1492018 PRPPG no 1542018 PRPPG no 252019 PRPPG no 802019 PRPPG no 662020 PRPPG no 1042020 e PRPPG no 1052020 3 Este capítulo é uma versão modificada de um artigo previamente publicado como BLANCO DELGADO 2019 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 125 14012021 1707 Ramon Blanco Ana Carolina Teixeira Delgado 126 abordagens tais como o Construtivismo o Feminismo o PósEstruturalismo Pós Colonialismo para citar algumas Como resultado a disciplina se tornou muito mais plural não somente considerando as questões epistemológicas e ontológi cas avançadas por essas abordagens mas também no que toca às realidades que emergem a partir das críticas direcionadas ao caráter excludente da disciplina No entanto uma parte significativa desta literatura ainda permanece limi tada com respeito à análise das profundas e hierárquicas relações de poder que estão presentes e operacionais no cenário internacional Esta limitação devese ao fato de que mesmo as leituras críticas apesar de denunciarem diversas relações e estruturas de poder ou até mesmo criticarem o Eurocentrismo da disciplina ainda privilegiarem pensadores eurocêntricos como Michel Foucault Antonio Gramsci ou Jacques Derrida para citar apenas alguns Neste sentido tais leitu ras desenvolvem o que Ramón Grosfoguel 2007 p 211 chama de uma crítica eurocêntrica do eurocentrismo e marginalizam um aspecto fundamental da realidade internacional a enraizada colonialidade da política internacional Certamente não resta dúvida de que há pouca novidade em meramente se conectar colonialidade e política internacional Outros pesquisadores já explo raram esta conexão de maneira exitosa CORNWAY SING 2011 BLANEY TICKNER 2017 JACKSON 2017 PASHA 2011 PERSAUD 2015 ROJAS 2007 ROJAS 2016 SAJED 2013 TICKNER BLANEY 2013 SHILLIAM 2015 Entretanto existem ainda alguns aspectos desta relação que precisam ser mais clarificados Consequentemente o objetivo deste capítulo é não ape nas atentar para o conceito de colonialidade e delinear suas características Tratase sobretudo de elucidar um aspecto fundamental da cristalização da colonialidade na política internacional Ao reenquadrar o ponto de partida através do qual o internacional é usualmente discutido este capítulo traz os povos indígenas das Américas para o centro do debate sobre a política internacional Mais precisamente o trabalho evidencia duas problematiza ções fundamentais as quais através de seus questionamentos direcionados à relação entre o Eu Europeu e o Outro Ameríndio cristalizaram a colonia lidade na política internacional Tais problematizações são os pensamentos de Francisco de Vitoria e o Debate de Valladolid entre Bartolomeu de Las Casas e Juan Gines de Sepúlveda Elas constituem os primeiros anos da mo dernidade ocidental DUSSEL 1993 2013 e devido ao seu caráter profun do questionando delineando e estabelecendo os próprios limites do que Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 126 14012021 1707 Problematizando o Outro Absoluto da Modernidade 127 pode ser entendido como humano e da humanidade mesma fazse difícil não entender que ambas problematizações posicionam os ameríndios como o Outro Absoluto da modernidade O ponto aqui não consiste em estabelecer uma hierarquia entre subalternos O propósito é simplesmente demonstrar que as problematizações em si por meio dos questionamentos realizados por Vitoria Las Casas e Sepúlveda acerca da relação entre o Eu Europeu e os Ameríndios posicionaram o último como o Outro Absoluto da modernidade E embora ambas problematizações não sejam completamente estranhas à dis ciplina de Relações Internacionais JAHN 2000 INAYATULLAH BLANEY 2004 INAYATULLAH 2008 BOUCHER 2009 HUDSON 2009 ORTEGA 2016 um delineamento mais completo sobre como as mesmas são essenciais para a cristalização da colonialidade internacionalmente ainda não foi desen volvido o bastante pela literatura Este é o principal propósito deste capítulo A fim de desenvolver a sua análise este capítulo está estruturado em três seções Primeiro o trabalho discute o que a noção de colonialidade significa enfatizando sua diferença em relação ao colonialismo e ressaltando suas prin cipais características e dimensões Em segundo lugar o capítulo delineia um elemento operativo crucial da colonialidade e o duplo movimento pelo qual a colonialidade é operacionalizada Portanto a seção se inicia evidenciando que a noção de raça é essencial enquanto um elementochave de classifica ção social e hierárquica essenciais para a operacionalização da colonialidade Posteriormente a seção lança luz sobre o fato de a modernidade se estabelecer como uma dupla colonização a colonização do tempo e do espaço Por fim este capítulo conclui com a análise das duas problematizações estruturantes que foram fundamentais à cristalização da colonialidade na política interna cional Logo o trabalho delineia os pensamentos de Francisco de Vitoria e o Debate de Valladolid salientando como a forma pela qual estes pensadores problematizaram a relação entre o Eu Europeu e o Outro Absoluto da moder nidade os povos indígenas das Américas é essencial para a cristalização da colonialidade internacionalmente O QUE É COLONIALIDADE Devido ao seu caráter marginal na disciplina o conceito de colonialidade ainda é considerado por muitos como mero sinônimo de colonialismo ou Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 127 14012021 1707 Ramon Blanco Ana Carolina Teixeira Delgado 128 em menor medida a neocolonialismo De fato ambos os termos têm uma relação de poder subjacente à sua operacionalização o que os torna muito relacionados É possível ainda ir mais além e inclusive dizer que a colonia lidade tem suas origens na própria operacionalização das relações coloniais do passado Contudo ambos os termos têm origens e preocupações teóricas distintas Portanto antes de avançar no delineamento da ligação entre a co lonialidade e a política internacional é talvez prudente diferenciar um con ceito dos demais4 Por um lado colonialismo se destaca como um fenômeno crucial relaciona do ao exercício de poder no mundo colonial5 Para Nelson MaldonadoTorres 2007 p 243 por exemplo colonialismo denota uma relação política e econômica na qual a soberania de uma nação ou população baseiase no po der de outra nação o que faz de tal nação um império Neste tipo de relação é claramente perceptível que as partes formam uma conectada entidade geo gráfica BUSH 2006 p 2 Em termos políticos esta é uma relação de domi nação e subordinação entre uma entidade política chamada de metrópole e um ou mais territórios chamados colônias que estão fora das fronteiras da metrópole mas que ainda assim são reivindicados como suas posses legais ABERNETHY 2000 p 19 É bem verdade que o colonialismo é um tipo de relação de poder que implica não somente um componente material Para Albert Memmi 1991 e Ashis Nandy 1983 por exemplo colonialismo também implica um compo nente subjetivo representado pela formação de identidades que reproduzem uma divisão inferiorsuperior que é intrínseca às lógicas coloniais Contudo não se pode esquecer que o colonialismo é um tipo de relacionamento que necessariamente baseiase na posse do território alheio Analisando atenta mente o desenvolvimento desse processo ao longo do tempo fica evidente que esta necessidade de posse do território alheio tornouse relativamente mais flexível ou mesmo desnecessária com por exemplo o neocolonialismo Esta compreensão reside no fato de que paradoxalmente o Estado que é sujeito a este é em teoria independente e tem todos os ordenamentos da soberania 4 Ver por exemplo Young 2001 especificamente capítulos 2 e 4 5 Ver por exemplo Césaire 2000 Chakbrabarty 2008 Chaterjee 1993 Fanon 2004 Young 2001 para mencionar apenas alguns exemplos Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 128 14012021 1707 Problematizando o Outro Absoluto da Modernidade 129 internacional Na realidade seu sistema econômico e consequentemente sua diretriz política é direcionada a partir do exterior NKRUMAH 1965 p ix Portanto o avanço de interesses internacionais dominantes era operaciona lizado por meios informais se possível ou por anexações formais somente quando necessárias GALLAGHER ROBINSON 1953 p 3 Por outro lado colonialidade é um conceito avançado pelo sociólogo pe ruano Anibal Quijano 1992a 2007 e busca dar sentido à uma estrutura de poder hierárquica uma matriz colonial de poder e colonialidade do poder nas palavras de Quijano desenhada e desenvolvida durante o período colo nial e que ainda permanece ativa internacionalmente Ademais fica claro que a colonialidade emerge de um enquadramento sóciohistórico particular da descoberta e conquista das Américas MALDONADOTORRES 2007 p 243 Quijano 2007 é categórico ao observar o ponto de origem da colonia lidade e sua extensão até os dias de hoje quando diz que com a conquis ta das sociedades e culturas que habitam o que hoje é chamada de América Latina teve início a constituição de uma nova ordem mundial culminando quinhentos anos depois em um poder global cobrindo o planeta inteiro MALDONADOTORRES 2007 p 168 Consequentemente ao invés de ser exclusivamente relacionada à domi nação de um determinado território a colonialidade referese a duradouros padrões de poder que emergiu como resultado do colonialismo mas que defi ne a cultura o trabalho relações intersubjetivas e produção de conhecimento bem além dos estritos limites de administrações coloniais MALDONADO TORRES 2007 p 243 Logo a colonialidade não cessou com o fim do co lonialismo Ao contrário ela ainda está operante embora as administrações coloniais tenham sido quase totalmente erradicadas globalmente Portanto a colonialidade nos permite entender a continuidade das formas coloniais de dominação após o fim das administrações coloniais GROSFOGUEL 2007 p 219 Nas palavras de Luciana Ballestrin 2013 o conceito exprime uma constatação simples isto é de que as relações de colonialidade nas es feras econômica e política não findaram com a destruição do colonialismo GROSFOGUEL 2007 p 99 Mais importante a característica duradoura da colonialidade do poder nas esferas política e econômica está intimamente relacionada a outras esfe ras Portanto é importante ter em mente que o aspecto fundamental da noção Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 129 14012021 1707 Ramon Blanco Ana Carolina Teixeira Delgado 130 de colonialidade é que ela busca capturar e descobrir diferentes dimensões e camadas onde o poder é operacionalizado Coletivamente essas diferentes dimensões e camadas onde o poder é operacionalizado formam uma matriz colonial do poder QUIJANO 1992a 2000a Como Mignolo 2010 p 12 chama a atenção esta matriz colonial de poder é uma complexa estrutura de níveis interligados tais como 1 o controle da economia 2 o controle da autoridade 3 o controle do ambiente e dos recursos naturais 4 o controle de gênero e da sexualidade e 5 o controle da subjetividade e do conheci mento QUIJANO 1992a 2000a Como é perceptível esta matriz colonial do poder compreende múltiplas dimensões da vida e todas as dimensões da própria existência Esta matriz colonial do poder como acima mencionado emergiu com a conquista das Américas QUIJANO 2000a Para se ter uma visão mais clara da sua formação é necessário modificar o ponto de vista de onde se percebe a expansão colonial europeia Ramón Grosfoguel 2007 busca precisamente realizar essa empreitada e delinear este entendimento Para ele porque a ex pansão colonial europeia é normalmente problematizada a partir de um ponto de vista Eurocêntrico a imagem que normalmente emerge é a de que a origem desta reside na competição interimperial entre os impérios europeus com o centro nas lógicas econômicas de tal processo GROSFOGUEL 2007 p 215 Grosfoguel obviamente não negligencia a importância fundamental dessa perspectiva No entanto ele argumenta que esse é um entendimento estreito de todo o processo GROSFOGUEL 2007 p 215 De fato essa compreensão é muito centrada no aspecto econômico do processo e pode dar um privilégio desequilibrado a esse aspecto em relação às outras dimensões do mesmo Na verdade pode até silenciar e mesmo encobrir outras dimensões fundamentais do processo como um todo Buscando esclarecer esses outros aspectos da ex pansão colonial europeia Grosfoguel realiza uma mudança epistêmica e põese no lugar de uma mulher indígena vivendo nas Américas Consequentemente a imagem de todo o processo muda dramaticamente Realizando esta mu dança Grosfoguel evidencia que o que chegou nas Américas não era me ramente um sistema econômico Em sua visão o que chegou nas Américas foi uma alargada e mais vasta estrutura interrelacionada de poder que uma perspectiva econômica reducionista do sistemamundo é incapaz de dar con ta GROSFOGUEL 2007 p 216 Observando esse processo a partir de uma Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 130 14012021 1707 Problematizando o Outro Absoluto da Modernidade 131 distinta posição epistêmica como Grosfoguel 2007 p 216 o faz é possível perceber que o que chegou nas Américas foi um homem europeu capita lista militar cristão patriarca branco heterossexual e estabeleceu várias hierarquias globais interligadas GROSFOGUEL 2007 p 216 Logo ao invés de compreender a expansão colonial europeia a partir de uma perspectiva unidimensional partindo de uma perspectiva eurocêntrica e fundamentalmente centrada na economia este tipo de mudança permite pre cisamente o alargamento do entendimento acerca desse processo O mesmo evidencia que a matriz colonial do poder na verdade possui várias dimensões De fato o que fora desenhado foram múltiplas e heterogêneas hierarquias globais heterarquias de formas de dominação e exploração sexual políti ca epistêmica econômica espiritual linguística e racial GROSFOGUEL 2007 p 217 Nesta matriz colonial do poder é a hierarquia racialétnica da divisão europeunãoeuropeu que transversalmente reconfigura todas as outras estruturas de poder globais GROSFOGUEL 2007 p 217 Com essa ampliação de perspectiva em mente que somente é possível ao se posicionar a noção de colonialidade no cerne do pensamento é importante dar luz aos seus elementos operacionais e características RAÇA ENQUANTO ELEMENTO OPERACIONAL E O MOVIMENTO DUPLO DA COLONIALIDADE De modo a manter esta matriz do poder colonial ativa e operante Walter Mignolo 2000 lembra que vários elementos são necessários Consequentemente a matriz colonial do poder envolve 1 a reclassificação da população de todo o planeta 2 uma estrutura institucional funcional para articular e geren ciar tais classificações aparatos estatais universidades igrejas etc 3 a definição dos espaços apropriados para tais objetivos 4 uma perspectiva epistemológica a partir da qual podese articular o significado e o perfil da nova matriz de poder e da qual a nova produção de conhecimento poderia ser canalizada MIGNOLO 2000 p 17 Nesse sentido Quijano argumenta que os europeus enquanto estabeleciam suas relações coloniais produziram as discriminações sociais específicas as quais posteriormente foram codificadas como raciais étnicas antropológi cas ou nacionais de acordo com o tempo agentes e populações envolvidas Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 131 14012021 1707 Ramon Blanco Ana Carolina Teixeira Delgado 132 QUIJANO 2007 p 168 Mais do que isso estas construções intersubjetivas produto da dominação colonial eurocentrada foram assumidas como sendo categorias objetivas e científicas QUIJANO 2007 p 168 Estas discrimi nações sociais foram e são essenciais à manutenção e operacionalização de tal enquadramento de poder Um pilar fundamental da operacionalização da colonialidade do poder como Quijano 2000b argumenta reside nas noções de raça e racismo6 Para ele7 a colonialidade do poder foi concebida com a categoria social de raça como o elemento chave da classificação social de colonizados e colonizado res QUIJANO 2007 p 171 Como esperado um aspecto característico deste tipo de classificação social é que a relação entre os sujeitos não é de ca ráter horizontal mas sim vertical MALDONADOTORRES 2007 p 244 Quijano argumenta que a ideia de raça originase em referência às diferenças fenotípicas entre conquistadores e conquistados QUIJANO 2000b p 534 Não obstante muito rapidamente este traço fenotípico acabou sendo opera cionalizado e foi construído para referirse às supostas estruturas biológicas diferenciadas entre aqueles grupos QUIJANO 2000b p 534 Portanto de acordo com Quijano 2000b a colonialidade reside na codificação das dife renças entre conquistadores e conquistados na ideia de raça uma estrutura biológica supostamente diferente que posicionou alguns em uma natural si tuação de inferioridade aos outros QUIJANO 2000b p 533 Para ele os conquistadores assumiram esta ideia como o elemento constitutivo e fundador das relações de dominação que a conquista impôs QUIJANO 2000b p 533 Consequentemente a raça tornouse o eixo fundamental das relações sociais coloniais constitutivas das hierarquias e funções sociais que estavam sendo impostas Como Quijano 2007 p 534 destaca com o passar do tempo os colonizadores codificaram o aspecto fenotípico do colonizado como cor e a assumiram como a característica emblemática da categoria racial Entretanto é importante mencionar que esta noção biológica de raça não exclui de modo algum os seus componentes cultural e simbólico como um instrumento fundamental para se operacionalizar a colonialidade De fato 6 Para uma discussão sobre a ausência de raça nas discussões em Relações Internacionais ver ANIEVAS MANCHANDA SHILLIAM 2015 7 Ver Quijano 1992b Marks 1994 e especificamente Capítulos 3 4 e 6 Quijano 2000b Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 132 14012021 1707 Problematizando o Outro Absoluto da Modernidade 133 análises sobre diferentes sociedades latinoamericanas mostraram que a raça tem sido há bastante tempo operacionalizada também em termos de suas carac terísticas culturais algo frequentemente invisibilizado pelo enfoque biológico dos acadêmicos8 Na verdade a divisão social no cenário hispanoamericano foi largamente forjada por meio da transposição e releitura dos códigos que existiam na sociedade espanhola Isto explica por exemplo que a Limpieza de Sangre limpeza do sangue aplicável a não cristãos e direcionada à con versão e purificação tivesse o seu equivalente na América Latina à busca pelo Gracias al Sacar Esta era uma certificação real que ao menos em teoria permitia a possibilidade de a população mestiça descendente de espanhóis ou criollos tornarse branca Segundo CastroGómez em uma sociedade co lonial ser branco possuía significados distintos daqueles que enfatizavam a questão do fenótipo Ser branco estava relacionado acima de tudo à en cenação de um dispositivo entrelaçado por crenças religiosas tipos de vesti menta certificados de nobreza comportamentos e modos de produção do conhecimento CASTROGÓMEZ 2010 p 18 No entendimento de Castro Gómez tratavase de um estilo de vida que primordialmente associado às figuras do espanhol e do criollo servia por um lado como parâmetro para a classificação social e por outro para distinguir quem ocupava posições na administração colonial quem disfrutava de privilégios quem gozava de saú de etc CASTROGÓMEZ 2010 p 18 Logo ser branco denotava mais que prestígio naquele mundo Mais importante denotava um sinal de poder que assegurava a consolidação da estratificação e uma série de prerrogativas ne gadas ao mestiço mesmo que elaele possuísse riqueza Portanto o processo de branqueamento um fenômeno observado a partir da segunda metade do século XVIII e em certos locais da América Hispânica como Nova Granada embora não exclusivamente neste país representava uma estratégia colonial de poder pela população mesclada racialmente mestiça em um processo que foi fundamentalmente baseado no fator biológico Consequentemente a so breposição de por um lado elementos diários e bastante práticos e por outro lado símbolos fenotípicos e culturais resultaram em uma situação na qual a raça era o elemento operativo crucial para se constituir e reforçar a diferença colonial CASTROGÓMEZ 2010 Capítulo 2 8 Ver por exemplo De La Cadena 2000 Twinam 2009 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 133 14012021 1707 Ramon Blanco Ana Carolina Teixeira Delgado 134 Com a expansão do colonialismo europeu como argumenta Quijano 2000b p 535 a ideia de raça se tornou naturalizada no que toca às relações coloniais entre europeus e nãoeuropeus Contudo esses tipos de relação e classificação social não são restritas ao aspecto racial do relacionamento co lonial Quijano 2007 p 171 argumenta que a colonialidade do poder não se esgota no problema de relações sociais racistas Na realidade a ideia de raça e racismo tornase o princípio organizador que estrutura todas as múltiplas hierarquias do sistemamundo que organiza a população mundial em uma ordem hierárquica de pessoas inferiores e superiores GROSFOGUEL 2007 p 217 inclusive em termos culturais Consequentemente raça enquan to um aspecto essencial e elemento operacional da colonialidade QUIJANO 2007 p 171 tornouse o critério fundamental para a distribuição da popu lação mundial em posições locais e funções na estrutura internacional de poder QUIJANO 2000b p 535 Tendo este tipo de entendimento em mente é possível moverse em direção à função fundamental da noção de colonialidade a analítica MIGNOLO 2010 p 1314 Colocar a colonialidade do poder enquanto um eixo funda mental de uma problematização tem a consequência substancial de mudar o modo pelo qual as questões são problematizadas e enquadradas Para Mignolo 2010 p 14 o conceito de colonialidade abriu a reconstrução e a restituição de histórias silenciadas subjetividades reprimidas e conhecimen tos subalternizados De fato o mesmo permite por exemplo uma reproble matização do próprio sistema internacional Isto obviamente pode ter um impacto significativo na maneira que as relações internacionais podem ser problematizadas Mignolo 2000 por exemplo argumenta a favor de um deslocamento analítico de uma perspectiva de mundo moderno para uma de mundo modernocolonial MIGNOLO 2000 p 37 Para ele uma vez que a colonialidade do poder é introduzida na análise a diferença colonial se torna visível e as fraturas epistemológicas entre a crítica eurocêntrica do eurocentrismo é distinguida da crítica do eurocentrismo ancorada na expe riência colonial MIGNOLO 2000 p 37 Consequentemente a maneira pela qual a própria modernidade é pro blematizada modificase Não surpreendentemente isto é certamente fun damental na medida em que abre os olhos para as dinâmicas que ainda estão operantes na política internacional atual No seu entendimento mais Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 134 14012021 1707 Problematizando o Outro Absoluto da Modernidade 135 difundido a modernidade tem pouco ou até mesmo nada a ver com a expe riência colonial nas Américas Como MaldonadoTorres 2007 p 244 argu menta a modernidade é normalmente considerada como sendo um produto do Renascimento Europeu ou do Iluminismo Europeu No entanto tendo a noção de colonialidade em mente entendese que ao contrário a colonia lidade e a modernidade estão extremamente interligadas Mignolo 2009 argumenta por exemplo que a colonialidade é o lado mais sombrio da mo dernidade Na verdade não somente a modernidade carrega em seus om bros o enorme peso e responsabilidade da colonialidade MIGNOLO 2000 p 37 como também este modelo de poder está no coração da experiência moderna MALDONADOTORRES 2007 p 244 De fato a modernida de como um discurso e como prática não seria possível sem a colonialidade e a colonialidade continua sendo um resultado inevitável dos discursos mo dernos MALDONADOTORRES 2007 p 244 Para perceber isso é preciso dar um pequeno passo atrás e seguindo Naeem Inayatullah e David Blaney 2004 p 9 trazer a ideia de Mary Pratt 1992 sobre a zona de contato enquanto se reflete acerca da conquista das Américas Para Pratt 1992 p 67 a zona de contato implica a copresen ça espacial e temporal de sujeitos anteriormente separados por disjunções geográficas e históricas cujas trajetórias agora interceptamse Além disso Inayatullah e Blaney 2004 justamente lembram que a experiência histórica é que estas trajetórias que interseccionamse foram incutidas de inequidades de poder isto é a zona de contato tornouse geralmente um espaço de en contros coloniais INAYATULLAH BLANEY 2004 p 9 Ao se problema tizar a modernidade a partir do ponto de vista da colonialidade começase a perceber ambas como lados diferentes da mesma moeda MIGNOLO 2009 p 42 Consequentemente tornase claro que o lado sombrio da modernida de é que ela se estabelece como e a colonialidade é tornada operacional por uma dupla colonização do tempo9 e do espaço10 MIGNOLO 2009 p 42 9 For a discussion about Time and international relations see for instance Hutchings Kimberly 2008 Solomon Ty 2014 Agathangelou And Killian 2016 Hom Mcintosh Mckay And Stockdale 2016 10 For a problematization about space and international processes such as postconflict reconstruction efforts see for instance Björkdahl Annika BuckleyZistel And Susanne 2016 Björkdahl Annika Kappler And Stefanie 2017 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 135 14012021 1707 Ramon Blanco Ana Carolina Teixeira Delgado 136 É somente ao se colocar a colonialidade no centro de uma determinada problematização que tais elementos centrais tornamse visíveis Na visão de Mignolo 2009 enquanto a colonização do tempo é melhor representada pela invenção da Idade Média no processo de conceitualização do Renascimento a colonização do espaço é operacionalizada pela colonização e conquista do Novo Mundo MIGNOLO 2009 p 4142 Um aspecto fundamental da ope racionalização da colonização do tempo tornase evidente na temporalização da diferença11 HELIWELL HINDESS 2005 Isto significa que a relação entre Eu e Outro é permanentemente problematizada através do marco temporal construído pelo Eu para o Outro Consequentemente a relação entre estes ocorre mediante os termos temporais definidos pelo Eu os quais ou permi tem ou negam a coetaneidade do Outro Enquanto o primeiro caso significa que o Outro é posicionado no mesmo tempo do Eu o segundo a negação da coetaneidade seguindo Fabian 1983 significa a persistente e sistemática tendência de colocar os referentes de um determinado discurso em um Tempo diferente do presente do produtor deste discurso FABIAN 1983 p 31 Usualmente o tempo no qual estes referentes são colocados é o passado Como resultado o Outro é colocado em uma linha do tempo linear e teleoló gica e é prontamente retratado por exemplo como antes passado menos avançado retrógrado e assim por diante o que consequentemente leva a uma posição de inferioridade dentro de uma hierárquica estrutura de poder Com respeito à colonização do espaço talvez a primeira imagem que vem à cabeça muito corretamente é a brutalidade e a violência do processo o que é a sua mais óbvia dimensão Contudo além desta dimensão que cer tamente é fundamental existem também outros elementos neste processo que não são tão evidentes É Tzvetan Todorov 1984 quem os percebe em sua reflexão acerca da conquista da América Ao problematizar a postura de Cristóvão Colombo em relação aos ameríndios ele percebe dois elementos estruturantes dessa postura Na perspectiva de Todorov Colombo 1 ou concebe a população americana como seres humanos em conjunto tendo o 11 Para uma genealogia de como a diferença e a alteridade são problematizadas no pensa mento ocidental ver por exemplo Behr 2014 mais especificamente o capítulo 2 Para uma reflexão a respeito diferença nas relações internacionais ver Inayatullah And Blaney 2004 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 136 14012021 1707 Problematizando o Outro Absoluto da Modernidade 137 mesmo direito como ele próprio mas depois os vê não somente como iguais mas idênticos e este comportamento leva à assimilação à projeção de seus próprios valores nos outros TODOROV 1984 p 42 ou 2 ele começa a partir da diferença mas a última é imediatamente traduzida em termos de superioridade e inferioridade no seu caso obviamente são os Índios que são inferiores TODOROV 1984 p 42 Portanto a zona de contato colonial na visão de Inayatullah e Blaney 2004 resulta em um movimento duplo que é o cerne da operacionalização da matriz do poder colonial anteriormente mencionada Neste movimento duplo por um lado a diferença é reconhecida mas constituída como dege nerada inferior ou absolutamente outra INAYATULLAH BLANEY 2004 p 106 Neste primeiro movimento a diferença é racionalizada em termos de superioridadeinferioridade Consequentemente essa racionalização é o que ancora a justificação da sujeição do outro à exploração erradicação física exclusão social eou esforços sistemáticos para reforma INAYATULLAH BLANEY 2004 p 106 Por outro lado o segundo movimento é baseado no fracasso em reconhecer a diferença INAYATULLAH BLANEY 2004 p 106 Neste caso o outro é interpretado como um eu anterior que depois de tutela pode tornarse inteiramente Cristão civilizado ou desenvolvido INAYATULLAH BLANEY 2004 p 106 Logo neste movimento duplo a diferença se torna inferioridade e a possibilidade de uma humanidade comum requer assimilação INAYATULLAH BLANEY 2004 p 10 Estes dois elementos na visão de Todorov 1984 são ambos fundados no egocen trismo na identificação de nossos próprios valores de Colombo neste caso com valores em geral de nosso eu com o universo na convicção de que o mundo é um TODOROV 1984 p 4243 Em vez de estar confinada ao passado Todorov argumenta que esse tipo de postura em relação à diferença nós devemos encontrar novamente no século seguinte e na prática até aos nossos próprios dias em todo colonizador na sua relação com o colonizado TODOROV 1984 p 42 É apoiada precisamente na dupla colonização anteriormente mencionada e por meio desse movimento duplo relativamente à diferença que a coloniali dade é operacionalizada na política internacional Uma vez que colonialidade tem a sua emergência ligada à conquista das Américas não é surpreenden te observar que a dupla colonização e o movimento duplo direcionados à Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 137 14012021 1707 Ramon Blanco Ana Carolina Teixeira Delgado 138 diferença cerne da colonialidade são também materializados tendo a con quista das Américas como seu eixo fundamental Consequentemente é pre cisamente através do modo pelo qual duas problematizações estruturais que têm como ponto fundamental a relação entre o Eu europeu e o Outro absoluto da modernidade os ameríndios questionam essa mesma relação que a colonialidade se torna cristalizada na política internacional É o delineamen to dessas duas problematizações estruturais que será o objeto deste capítulo a partir de agora A CRISTALIZAÇÃO DA COLONIALIDADE NA POLÍTICA INTERNACIONAL Como já mencionado uma consequência fundamental de se trazer a colonia lidade ao centro da análise é problematizar questõeschave de modo diferente e entender um outro lado muito frequentemente marginalizado e silenciado de alguns elementos e processos basilares da realidade internacional Isto é especialmente importante em processos que ao invés de serem entendidos como fornecedores de um enquadramento para uma relação de poder à pri meira vista indicam precisamente o oposto Consequentemente além da colonização das Américas percebese duas problematizações estruturais as quais precisamente por terem como centro a relação entre o Eu Europeu e o Outro Ameríndio e devido ao modo como avançam em tais problematiza ções são símbolos emblemáticos do funcionamento do movimento duplo mencionado anteriormente na política internacional Consequentemente são elementos essenciais de cristalização da colonialidade na política inter nacional Essas duas problematizações estruturais são 1 o pensamento de Francisco de Vitoria nas fases iniciais do direito internacional e 2 o conhe cido Debate de Valladolid 15501551 A respeito do primeiro momento um eixo basilar da realidade interna cional em que o momento duplo é evidente é por exemplo o direito inter nacional De fato tendo a noção de colonialidade em mente são claramente perceptíveis as origens coloniais no direito internacional ANGHIE 1996 2004 Como Anthony Anghie argumenta o direito internacional não precedeu e deste modo resolveu sem esforços o problema das relações hispanoindí genas em vez disso o direito internacional foi criado a partir dos problemas Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 138 14012021 1707 Problematizando o Outro Absoluto da Modernidade 139 únicos gerados pelo encontro entre os espanhóis e os indígenas ANGHIE 1996 p 322 grifo original Para perceber isto devese analisar atentamente os estágios iniciais da disciplina do direito internacional Não é incomum observar argumentos colocando o trabalho de Hugo Grotius como o próprio início do direito inter nacional Entretanto escrutinando mais profundamente é possível traçar as fases primitivas do mesmo voltando às suas origens espanholas e ao traba lho de Francisco de Vitoria 1991 em particular KENNEDY 1986 SCOTT 2013 que é essencial às origens da disciplina ANGHIE 1996 p 321 SCOTT 2013 Na visão de Mignolo 2009 p 46 o tratado de Vitoria On the American Indians é considerado fundacional na disciplina Geralmente o pensamento de Vitoria é entendido como um esforço para estender e aplicar doutrinas ju rídicas existentes desenvolvidas na Europa para determinar o status legal dos indígenas ANGHIE 1996 p 322 No entanto na visão de Anghie Vitoria reconceitualiza estas doutrinas ou mesmo inventa novas para lidar com o problema novo dos indígenas ANGHIE 1996 p 322 Para ele a questão que estava diante de Francisco de Vitoria era a questão de criar um sistema de direito que poderia ser usado para explicar as relações entre sociedades que ele entendia pertencer a duas distintas ordens culturais cada um com suas próprias ideias de propriedade e de governo ANGHIE 1996 p 322 Para avançar sua problematização Vitoria primeiramente criticou o en quadramento dentro do qual a relação hispanoameríndia era geralmente problematizada Como esperado este era um enquadramento desenvolvido pela Igreja Católica para lidar com o que eram denominados por ela como Sarracenos Tal enquadramento baseouse essencialmente em duas premis sas 1 que as relações humanas eram governadas pela lei divina e 2 que o Papa devido a sua missão divina de difundir a cristandade ao redor do glo bo possuía jurisdição universal ANGHIE 1996 p 323 Francisco de Vitoria criticou ambas as asserções e neste processo delineou a base para um novo enquadramento relativamente ao direito internacional deslocando a discus são da esfera do direito divino para uma diferente esfera a do direito natural ANGHIE 1996 p 323 Como Anthony Anghie 1996 p 324 elucida Francisco de Vitoria 1991 começa o delineamento do seu trabalho questionando se os ameríndios aos quais Vitoria referencia como bárbaros antes da chegada dos espanhóis Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 139 14012021 1707 Ramon Blanco Ana Carolina Teixeira Delgado 140 possuíam verdadeiro domínio público ou privado Vitoria 1991 p 239 Em essência Vitoria estava colocando uma pergunta embora bastante ultrajante fundamental para o seu tempo se ontologicamente os ameríndios poderiam ser proprietários de sua própria terra e posses No entendimento de Vitoria havia quatro possíveis fundamentos sob os quais os argumentos avançados questionando os ameríndios como verdadeiros mestres antes da chegada dos espanhóis baseavamse Os fundamentos eram que os ameríndios eram ditos ser 1 pecadores 2 incrédulos 3 loucos ou 4 insensatos VITORIA 1991 p 240 Vitoria 1991 p 240251 respondeu a cada um destes funda mentos12 Após escrutinar cada um deles Vitoria conclui que antes da chegada dos espanhóis estes bárbaros possuíam verdadeiro domínio em ambos assun tos públicos e privados VITORIA 1991 p 251 Em sua visão os bárbaros indubitavelmente possuíam verdadeiro domínio ambos público e privado como qualquer cristão VITORIA 1991 p 250 Consequentemente eles não poderiam ser roubados de sua propriedade seja como cidadãos privados ou como príncipes sob o fundamento de que não eram verdadeiros mestres ueri domini VITORIA 1991 p 250251 grifo no original Além disso houve um elemento fundamental no raciocínio de Vitoria que o separa da maioria de seus contemporâneos ele entendeu os ameríndios como seres humanos racionais Para ele a prova disso era que os ameríndios em sua visão organizaram adequadamente cidades casamentos magistrados e suseranos domini leis indústrias e comércio todos os quais requerem o uso da razão Eles igualmente possuem uma forma de religião e corretamente apreendem coisas que são evidentes a outros homens o que indica o uso da razão VITORIA 1991 p 250 A posse e uso da razão é fundamental a um elemento central no pensamento de Vitoria ius gentium direitos dos povos É precisamente o ius gentium que permitiu de modo aparente Vitoria pôr ao mesmo nível de humanidade ambos espanhóis e indígenas MIGNOLO 2009 p 46 Francisco de Vitoria entendeu o ius gentium como um sistema de leis universal cujas regras podem ser apuradas pelo uso da razão ANGHIE 1996 p 325 Logo ius gentium foi o que a razão natural estabeleceu entre todas as nações ANGHIE 1996 p 325 Para Vitoria o direito dos povos ius gentium não possui a força meramente dos pactos e acordos entre os 12 Para uma descrição detalhada de cada contraargumento ver VITORIA 1991 p 240251 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 140 14012021 1707 Problematizando o Outro Absoluto da Modernidade 141 homens VITORIA 1991 p 40 Mais importante para ele o mundo todo que em certo sentido é uma comunidade tem o poder de decretar leis que são justas e convenientes a todos os homens e aqueles que as quebram estão cometendo crimes mortais VITORIA 1991 p 40 Portanto ius gentium de veria ser vinculativo independentemente das convicções legislativas locais crenças e costumes de comunidades individuais ou do lugar dos mesmos no tempo VITORIA 1991 p xv À primeira vista a problematização de Vitoria pode parecer como inclu siva com respeito aos ameríndios e como se ele estivesse os protegendo das invasões espanholas De fato Francicso de Vitoria 1991 p 251277 promoveu vários contraargumentos aos argumentos mais comuns a favor da invasão espanhola13 Vitoria criticou vários fundamentos nos quais os argumentos favorecendo a invasão espanhola se baseavam Estes variavam do direito da descoberta ao bárbaros são pecadores Ao fazêlo Vitoria na verdade evidenciou que tais argumentos não eram base para a invasão espanhola ser considerada legítima De fato ele proporcionou um enquadramento que em essência retratou as várias situações nas quais a invasão e dominação espa nhola eram na verdade ilegítimas VITORIA 1991 p 251277 Apesar de tudo isso um analista mais crítico percebe que a mente de Vitoria não escapa do duplo movimento evidenciado por Inayatullah e Blaney e an teriormente mencionado onde a diferença se torna inferioridade e a possi bilidade de uma humanidade comum requer assimilação INAYATULLAH BLANEY 2004 p 10 Isto é evidente quando se observa atentamente o pensamento de Francisco de Vitoria Por exemplo como já mencionado é verdade que Vitoria reconhece que os ameríndios são possuidores de razão VITORIA 1991 p 250 Na verdade Anthony Anghie 1996 lembra que é precisamente porque os indígenas possuem razão que são vinculados por ius gentium ANGHIE 1996 p 325 grifo no original Logo em sua visão tanto os espanhóis quanto os ameríndios são parte do ius gentium e portanto am bos devem obedecêlo Isto pode aparentar que Vitoria está colocando tanto espanhóis quanto ameríndios enquanto iguais em sua problematização No entanto sabendo por um lado que Vitoria compreende o ius gentium enquan to um sistema de leis universal cujas regras podem ser apuradas pelo uso da 13 Para uma análise abrangente destes contraargumentos ver VITORIA 1991 p 251277 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 141 14012021 1707 Ramon Blanco Ana Carolina Teixeira Delgado 142 razão e estabelecido entre todos os povos e por outro lado que os ameríndios não têm palavra na elaboração dessas regras não é difícil perceber esse tipo de sistema como um sistema hierárquico colocando os ameríndios na base do mesmo uma vez que estes deveriam obedecer a um sistema de regras no qual não possuíam qualquer participação em sua elaboração Mesmo quando Francisco de Vitória reconhece que os ameríndios são possuidores de razão ele não escapa de entender esta posse de razão de modo hierárquico e até de forma condescendente Para Vitoria não poderia ser culpa deles dos ameríndios se eles estavam por tantas centenas de anos fora do estado de salvação visto que nasceram em pecado mas não possuíam o uso da razão para incitálos a buscar o batismo ou as coisas necessárias à salvação VITORIA 1991 p 250 Portanto para ele se eles nos parecem insensatos e nãoperspicazes o atribuo principalmente à sua má e bárbara educação Mesmo entre nós mesmos vemos muitos camponeses que são pou co diferentes de animais brutos VITORIA 1991 p 250 Outro aspecto do pensamento de Vitoria no qual o movimento duplo anteriormente mencionado está presente e que é digno de nota é a sua ar gumentação em relação à invasão espanhola Isto é evidente observando o fato de que quando Francisco de Vitoria refutou vários argumentos a favor da invasão espanhola que eram geralmente baseados no fundamento dos ameríndios serem pecadores descrentes e assim por diante ele não con traargumentou em essência o cerne fundamental desses argumentos A essência desses argumentos estava relacionada à ontologia dos ameríndios enquanto pecadores descrentes loucos insensatos ou infantis o que é rara mente contestado por Francisco de Vitoria Na realidade o que Vitoria fez foi argumentar que esses fundamentos em particular não eram fundamentos legais válidos para a dominação espanhola ser considerada legítima Logo ele não questionou a conquista espanhola em si Ao contrário ele questio nou os fundamentos legais nos quais baseavamse os argumentos em favor da mesma Na verdade podese até argumentar que Vitória na realidade forneceu os fundamentos legais para a devida legitimação do sistema espa nhol de comércio ANGHIE 1996 p 326 Portanto Francisco de Vitoria teve uma preocupação meramente legal em relação à conquista espanhola De fato não por coincidência ele promove vários fundamentos possíveis Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 142 14012021 1707 Problematizando o Outro Absoluto da Modernidade 143 onde em sua visão os bárbaros do Novo Mundo passavam ao regime dos espanhóis14 VITORIA 1991 p 277 Entre os fundamentos que Vitoria delineia é suficiente mencionar ape nas dois 1 a disseminação da religião Cristã VITORIA 1991 p 284 e 2 a incapacidade mental dos bárbaros VITORIA 1991 p 290 Em relação ao primeiro para Vitoria é razão de guerra se os bárbaros obstruírem os espanhóis em sua livre propagação do Evangelho VITORIA 1991 p 285 Na sua visão os espanhóis depois de primeiro raciocinar com eles para re mover qualquer causa de provocação podem pregar e trabalhar para a conver são daquelas pessoas até contra a sua vontade e podem se necessário pegar em armas e declarar guerra a eles na medida que isto forneça a segurança e a oportunidade necessárias para pregar o Evangelho VITORIA 1991 p 285 grifo original Vitoria vai mais longe ao argumentar que se o Cristianismo não puder ser promovido os espanhóis podem legalmente conquistar os ter ritórios destas pessoas depondo seus antigos mestres e instalando novos VITORIA 1991 p 285286 Em relação à capacidade mental percebida por Francisco de Vitoria na verdade ele entende que há uma diferença pequena entre os bárbaros e os loucos eles são um pouco ou não mais capazes de se autogovernarem do que os loucos ou de fato do que bestas selvagens Nestes fundamentos eles podem ser entregues a homens mais sábios para governar VITORIA 1991 p 290291 Ele argumenta que isto é admitido dada a suposta estupidez dos ameríndios que aqueles que viveram entre eles reportam e a qual dizem ser maior do que a de crianças e loucos entre outras nações VITORIA 1991 p 291 Em sua visão este tipo de relação é até mesmo caridosa já que tal argumento poderia ser suportado pelos requisitos de caridade uma vez que os bárbaros são nossos vizinhos e somos obrigados a tomar conta de seus bens VITORIA 1991 p 291 Para Vitoria os espanhóis poderiam tomar conta dos ameríndios ou mesmo governálos já que tudo é feito pelo bene fício e bem dos bárbaros e não meramente pelo lucro dos espanhóis VITORIA 1991 p 291 grifo original Consequentemente a problematização de Francisco de Vitoria é um ele mento fundamental da cristalização da colonialidade na política internacional 14 Para uma observação abrangente destes fundamentos ver VITORIA 1991 p 277292 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 143 14012021 1707 Ramon Blanco Ana Carolina Teixeira Delgado 144 uma vez que está imbricada na formação do direito internacional tornando ambos elementos direito internacional e colonialidade entrelaçados e inse paráveis um do outro Além das problematizações de Francisco de Vitoria nos primórdios do direito internacional como mencionado existe uma segunda problematização estrutural que é crucial para a cristalização da colonialida de e o duplo movimento já citado na política internacional Este momento estrutural é precisamente o debate conhecido como Debate de Valladolid 15501551 Este debate pode certamente ser entendido como o epicentro da cristalização da colonialidade e consequentemente a postura do duplo movimento mencionado no cenário internacional a partir do século XVI O debate que ficou conhecido como o Debate de Valladolid 15501551 foi instituído pelo rei espanhol Carlos V ocorreu no Colégio de San Gregorio na cidade espanhola de Valladolid e desenvolveuse em duas sessões a pri meira delas ocorreu da metade de agosto à metade de setembro de 1550 e a segunda ocorreu da metade de abril à metade de maio de 1551 HANKE 1996 p 6768 DUSSEL 2014 Enrique Dussel 2013 1993 reconhecendo a relevância crucial desse debate argumenta que é no Debate de Valladolid onde a história da razão moderna havia começado DUSSEL 2013 p 579 nota de rodapé 278 Na verdade para Dussel 2014 p 32 grifo original o Debate de Valladolid foi o primeiro debate filosófico público e central da Modernidade O debate desenvolveuse em torno do que foi de uma só vez uma funda mental questão teológica legal e filosófica é legal ao Rei da Espanha tra var uma guerra com os indígenas antes de pregar a fé a eles para sujeitalos a seu domínio para que depois eles possam ser mais facilmente instruídos à fé HANKE 1996 p 67 Na visão de Dussel esta é uma questão perene à Modernidade Que direito possui a Europa de colonialmente dominar os indígenas HANKE 1996 p 32 Em resposta à esta pergunta é claramente perceptível dois argumentos rivais melhor vocalizados por Bartolomeu de Las Casas por um lado e Juan Gines de Sepúlveda por outro Ambos juntamente com outros tais como Francisco de Vitoria foram parte de problematizaçõeschave no século XVI que em essência buscavam lidar e delinear as fronteiras e os limites do que seria entendido enquanto humanidade MIGNOLO 2000 p 283 Mais im portante o debate era se os ameríndios seu Outro absoluto eram considera dos humanos e se sim qual era a posição deste Outro na estrutura de poder Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 144 14012021 1707 Problematizando o Outro Absoluto da Modernidade 145 vigente É bem verdade como MaldonadoTorres 2007 esclarece que em 1537 o Papa declarou os ameríndios humanos MIGNOLO 2000 p 244 Isto foi operacionalizado pelo Papa Paulo III quando em sua Bula papal Sublimis Deus ele confirmou a capacidade dos indígenas de entender e rece ber a fé Cristã HERNANDEZ 2001 p 98 Isto foi feito em um ambiente constituído por vários argumentos acerca da irracionalidade incapacidade dos ameríndios e de questionamentos se os mesmos deveriam ou não ser edu cados HANKE 1996 p 1727 No entanto com esta Bula o Papa estava na verdade legitimando a dominação espanhola das Américas e incentivando seus esforços de disseminar a religião Cristã por lá Consequentemente as problematizações sobre a relação entre o Eu Europeu e o Outro Ameríndio emergiram colocando em debate duas visões opostas representadas por Gines de Sepúlveda e Bartolomeu de Las Casas Sepúlveda em essência apresentou quatro proposições a favor da guerra justa contra os americanos nativos primeiro os indígenas eram bárbaros segundo eles cometeram crimes contra o direito natural terceiro os indígenas oprimiram e mataram os inocentes entre eles mesmos e quarto eles eram infiéis que pre cisavam ser instruídos na fé Cristã HERNANDEZ 2001 p 100 Ao avançar a sua argumentação para uma guerra justa contra os ameríndios Gines de Sepúlveda 1941 argumentou que seria sempre justo e em conformidade com o direito natural que tais pessoas sejam subjugadas ao império de príncipes e nações que são mais cultas e huma nas para que por suas virtudes e a prudência de suas leis eles abandonem a barbárie e sejam subjugados por uma vida mais humana e pelo culto da virtude Ibidem 85 Aqui Sepúlveda traz uma problematização aristotélica de mestre e escravo com seu legado de diferenciar povos em bárbaros e civilizados e aplicou esta diferenciação dualística aos espanhóis como civilizados e aos indígenas como bárbaros BEHR 2014 p 59 Ademais Sepúlveda entendeu que se eles rejeitarem tal império o mesmo pode ser imposto a eles recorrendose às armas e tal guerra seria justa de acordo com as declarações do direito natural SEPÚLVEDA 1941 p 85 Resumindo sua visão Sepúlveda argumenta que em suma é justo conveniente e em conformidade com o direito natural Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 145 14012021 1707 Ramon Blanco Ana Carolina Teixeira Delgado 146 que aqueles homens honoráveis inteligentes virtuosos e humanos dominem todos aqueles a quem lhes faltem estas qualidades SEPÚLVEDA 1941 p 87 Bartolomeu de Las Casas15 em contrapartida representa o primeiro crí tico da Modernidade na visão de Enrique Dussel 2014 p 27 grifo original Na visão de Dussel Las Casas argumenta uma série de pontos tais como 1 refuta a afirmação da superioridade da cultura Ocidental da qual a bar bárie das culturas indígenas foi deduzida 2 diferencia entre A conceder ao Outro o indígena a afirmação universal de sua verdade B sem cessar de honestamente afirmar a possibilidade de uma validade universal em sua proposta a favor do evangelho e 3 afirma a falsidade da última causa pos sível justificar a violência da conquista a de salvar as vítimas de sacrifício humano como sendo contra o direito natural e injusto sob todos os pontos de vista DUSSEL 2014 p 28 Las Casas respondeu a cada um dos argu mentos de Sepúlveda Em relação ao argumento de Sepúlveda relativamente ao fato dos ameríndios serem bárbaros Las Casas não atacou a racionaliza ção de Aristóteles Ele questionou a operacionalização feita por Sepúlveda do conceito de Aristóteles argumentando que esta lógica não poderia ser aplica da aos ameríndios uma vez que eles possuíam sistemas de governo corpos jurídicos que legislavam sua vida política e social e realizações culturais BEHR 2014 p 59 Respondendo ao argumento de Sepúlveda relativamen te aos crimes indígenas contra o direito natural Las Casas argumentou que punição requeria jurisdição Especificamente nem Carlos V ou mesmo o Papa Paulo III possuíam jurisdição sobre os infiéis HERNANDEZ 2001 p 101 Em essência o argumento de Las Casas era o de que os indígenas embora em um estágio diferente e atrasado de desenvolvimento humano em relação aos europeus não eram menos racionais e adeptos a pacificamente receber a fé Cristã do que as pessoas do Velho Mundo HERNANDEZ 2001 p 100 Portanto ele entendia os ameríndios como pagãos um grupo que tinha que ser não violentamente punido mas pacificamente convertido ao Cristianismo HERNANDEZ 2001 p 103 No entendimento de Las Casas os indígenas uma raça humana em evolução precisavam ser persuasivamente convertidos 15 Para uma compreensão abrangente do pensamento de Las Casas ver por exemplo Wagner Parish 1967 Las Casas 1992 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 146 14012021 1707 Problematizando o Outro Absoluto da Modernidade 147 não assassinados em guerras de conquista ao Cristianismo HERNANDEZ 2001 p 102 Analisando o Debate de Valladolid a primeira imagem que talvez pos sa emergir é a de que o debate possui dois lados completamente opostos 1 um verdadeiramente defendendo os ameríndios da brutalidade espanhola e vocalizando sua violência representado por Las Casas e 2 o outro argu mentando a favor da guerra contra os ameríndios representado por Gines de Sepúlveda Esta imagem retrata por exemplo Las Casas como um defensor dos ameríndios e Sepúlveda argumentando pela opressão dos mesmos Na verdade esta imagem está longe de ser completamente imprecisa Entretanto um entendimento mais crítico sobre o processo constata que esta percepção acerca do Debate de Valladolid embora seja parcialmente precisa é funda mentalmente uma imagem superficial e mais importante ilusória do mesmo Tendo a noção da colonialidade em mente um lado diferente e essencial do debate tornase visível Ao examinar o Debate de Valladolid tornase evidente que os argumen tos que por um lado Las Casas e por outro lado Sepúlveda desenvolveram representam respectivamente ambos os movimentos de assimilação e domi nação anteriormente mencionados Problematizando ainda mais o debate podese claramente perceber que na verdade essas duas visões aparentemen te opostas concordam em um aspecto fundamental O aspecto que eles em essência concordam está relacionado com a questão da diferença Ambos os argumentos coincidem em algo que à primeira vista pode parecer paradoxal a diferença dos ameríndios como tal estava de uma só vez completamente negada e reconhecida hierarquicamente como inferior Este é o aspecto central do movimento duplo anteriormente mencionado Escrutinando de modo mais crítico ambos os argumentos o que emerge é que o real ponto de discordância entre os mesmos relacionavase somente com o como lidar com a diferença ameríndia pacifica ou violentamente e não com o como eles entendiam a própria essência daquela diferença DUSSEL 1993 p 7778 Por meio da violência ou não a essência é que os ameríndios deviam ser transformados Como mencionado anteriormente é precisamente através da operacio nalização destes dois movimentos que a colonialidade funciona na política internacional A mesma funciona reconhecendo a diferença mas colocan doa em uma estrutura hierárquica de superioridadeinferioridade ou não a Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 147 14012021 1707 Ramon Blanco Ana Carolina Teixeira Delgado 148 percebendo de todo o que consequentemente leva à assimilação O delinea mento dessas duas problematizações estruturantes mencionadas ao longo do capítulo busca evidenciar que devido precisamente ao modo pelo qual esses pensadores problematizaram a relação entre o Eu Europeu e o Outro Ameríndio elas foram fundamentais para a cristalização da colonialidade na política internacional É verdade que estas podem parecer problematizações estruturantes do passado Contudo tais problematizações ainda são relevantes ao nosso sistema internacional contemporâneo O movimento duplo mencionado anteriormente permanece como um eixo fundamental dos processos que desenrolamse no cenário internacional Enquanto no passado a colonialidade juntamente com seu movimento duplo foi operacionalizada através da retórica da conversão ao Cristianismo e por meio do argumento da missão civilizatória atualmen te estes são tornados operacionais por meio das noções de desenvolvimento modernização e democratização direcionadas à periferia do cenário interna cional Ao invés de ser um processo que cessou com o fim do colonialismo formal observando atentamente a estrutura do cenário internacional con temporâneo fica evidente que as zonas periféricas do sistema internacional ainda vivem sob um regime de colonialidade global GROSFOGUEL 2007 p 220 Logo a matriz colonial de poder abordada neste capítulo com o seu movimento duplo de perceber a diferença hierarquicamente eou não con siderar a diferença de todo e buscar assimilála ainda é o enquadramento dentro do qual opera a política internacional CONCLUSÃO Este capítulo trouxe visibilidade ao conceito de colonialidade Mais im portante ao colocar o Outro absoluto da modernidade ocidental os povos indígenas das Américas no centro da discussão sobre a política internacional o mesmo revela duas problematizações fundamentais as quais pelo modo como questionam a relação entre o Eu Europeu e o Outro Ameríndio da modernidade cristalizaram a colonialidade na política inter nacional Ao discutir o que a noção de colonialidade significa o capítulo a diferenciou de colonialismo e neocolonialismo e esboçou algumas das suas característicaschave Posteriormente o trabalho evidenciou que a raça Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 148 14012021 1707 Problematizando o Outro Absoluto da Modernidade 149 é um elemento fundamental para a operacionalização da colonialidade Em relação à operacionalização da colonialidade discutiuse dois movimentos através dos quais a colonialidade funciona na política internacional por um lado reconhecendo a diferença mas colocandoa em uma estrutura hierár quica de superioridadeinferioridade e por outro lado não percebendoa de todo o que leva à assimilação Finalmente o capítulo delineou problematiza ções estruturais relativas à colonialidade O mesmo discutiu o pensamento de Francisco de Vitoria nos estágios iniciais do direito internacional e o conhecido Debate de Valladolid Estas problematizações são cruciais à compreensão da colonialidade não somente devido ao fato de serem emblemáticas em relação ao movimento duplo por meio do qual a colonialidade é operacionalizada mas também porque são fundamentais para a cristalização da colonialidade na política internacional Consequentemente sendo a colonialidade o lado mais escuro da modernidade uma realidade internacional como a nossa que é ancorada em pilares modernos não escapa ao fato de ter colonialida de como seu elemento fundamental reproduzindo seu movimento duplo e mantendo a matriz colonial de poder direcionada às margens da população global É precisamente por meio do esforço de chamar a atenção à noção de colonialidade e sua cristalização na política internacional que se pode não somente perceber a sua operacionalização e ver que a mesma continua viva e operante na realidade internacional como também se buscar superar esta condição ainda estruturante da política internacional REFERÊNCIAS ABERNETHY D B The Dynamics of Global Dominance New Haven and London Yale University Press 2000 AGATHANGELOU A M KILLIAN K D ed Time Temporality and Violence in International Relations DeFatalizing the Present Forging Radical Alternatives London Routledge 2016 ANGHIE A Francisco de Vitoria and the Colonial Origins of International Law Social Legal Studies S l v 5 n 3 p 321336 1996 ANGHIE A Imperialism Sovereignty and the Making of International Law Cambridge Cambridge University Press 2004 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 149 14012021 1707 Ramon Blanco Ana Carolina Teixeira Delgado 150 ANIEVAS A MANCHANDA N SHILLIAM R ed Race and Racism in International Relations Confronting the Global Colour Line New York Routledge 2015 ASHWORTH L Did the RealistIdealist Great Debate Really Happen A Revisionist History of International Relations International Relations S l v 16 n 1 p 3351 2002 BALLESTRIN L América Latina e o Giro Decolonial Revista Brasileira de Ciência Política Brasília DF 11 maioago p 89117 2013 BEHR H Politics of Difference Epistemologies of Peace London Routledge 2014 BJÖRKDAHL A BUCKLEYZISTEL S ed Spatializing Peace and Conflict Mapping the Production of Places Sites and Scales of Violence London Palgrave 2016 BJÖRKDAHL A KAPPLER S ed Peacebuilding and Spatial Transformation Peace Space and Place London Routledge 2017 BLANCO R DELGADO A C T Problematising the Ultimate Other of Modernity The Crystallisation of Coloniality in International Politics Contexto Internacional Rio de Janeiro v 41 n 3 p 599619 2019 BLANEY D 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perguntas e respostas quando foi colocada diante de um questionamento que pode ria ser recolocado aqui mais ou menos nestes termos A resposta dada por Spivak a tal questionamento me marcaria profundamente ecoando dentro de mim desde então o migrante ou a migrante irregular ela respondera Este trabalho é o primeiro ensaio de uma resposta a esta resposta de Spivak Aqui eu retorno àquele evento ali naquele outro espaçotempo retornando com ele a outro momento e lugar a outro encontro No final de 2004 alguns meses desempregado após ter voltado de Londres onde concluíra um mestrado em direitos humanos eu me vi diante de um Padre e de uma Coordenadora de ONG numa entrevista de emprego para o cargo de advogado de proteção Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 157 14012021 1707 Roberto Vilchez Yamato 158 do projeto de acolhida ao refugiado que a Caritas Arquiodicesana de São Paulo Casp desenvolvia em parceria com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados Acnur Do lado de Cezira a então Coordenadora do Centro de Acolhida para Refugiados da Caritas Pe Ubaldo o então Diretor da Casp tendo acabado de me dar a feliz notícia de que estava contratado acrescentou menino você verá trabalhar com migrantes e refugiados mu dará a sua vida ou algo do tipo E de fato mudou Lembrome do caso de um refugiado que decidiu retornar ao seu país de origem perdendo assim a sua condição de refugiado no Brasil para poder buscar auxilio da curandeira de sua vila na tentativa de afastar os maus espíritos que o perseguiam Tratavase de um caso de esquizofrenia à luz do conhecimento ocidental pósfreudiano que suscitava tratamento com me dicamentos que não raramente tinham efeitos colaterais efeitos estes que pareciame faziam aquele refugiado colocar em questão o próprio status de cura Um diferente entendimento de cura Um diferente entendimento de doença Uma diferente concepção da relação entre conhecimento crença e vida Via ali rastros de alternativas às prevalecentes concepções modernas ocidentais de medicina psiquiatria e psicologia de vida e saúde em geral Lembrome do caso de um solicitante de refúgio que angustiado apresen touse já me perguntando como poderia fazer para encontrar sua filha mais nova De acordo com ele na sua volta do trabalho para casa havia encontra do um vizinho que fugindo dos ataques que sua vizinhança sofrera disse ter testemunhado o assassinato de sua mulher e suas filhas mais velhas ele não sabia dizer se a filha mais nova daquele solicitante de refúgio no Brasil havia sobrevivido ou se ela havia sido morta tal como a mãe e as irmãs A única preocupação real daquele solicitante parecia ser a de saber sobre e en contrar a sua menina mais nova E hoje pai eu me pergunto quem não faria o mesmo Muito honestamente não posso sequer imaginar o que significa ser obrigado a migrar para um outro continente sabendo da morte de esposa e filhas mais velhas e sem saber da vida ou morte e do paradeiro da filha mais nova Muita dor e coragem talvez O que posso dizer é que vi muito amor naquele homem naquele pai Hoje vejo e entendo ainda mais Lembrome também da iniciativa da então Comissão Municipal de Direitos Humanos da Cidade de São Paulo de estabelecer um Grupo de Estudos e Trabalhos sobre Direitos Humanos de Migrantes e Refugiados Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 158 14012021 1707 Pode a migrante falar Um exercício de rearranjar desejos escavar o eu 159 Como representante da Casp participei deste Grupo de Estudos e Trabalhos ao longo do ano de 2006 período em que organizamos um ciclo público de encontros eventos e palestras sobre o tema de migrações forçadas direitos humanos e a proteção da pessoa humana no Brasil Foi neste contexto du rante esse ano que eu realmente comecei a tatear o problema da diferença entre solicitantes de refúgio refugiados migrantes e mais especificamente migrantes indocumentados ou irregulares Quem pode estar ficar e viver normal e regularmente no Brasil Bem normal e regularmente podem estar ficar e viver no Brasil cidadãos brasileiros e os estrangeiros tal como estabelecido pela Constituição de 1988 e pela assim chamada Lei dos Estrangeiros criada no contexto da ditadura Quem mais Bem desde a promulgação da Lei 9474 em 1997 também os solicitantes de refúgio e refugiados Mas e aqueles indivíduos cuja solicitação de refúgio é negada definitivamente Foi este tipo de questionamento que me levou a problematizar as limita ções e de limitações que encontrava depois de um tempo confronta va e por inúmeras vezes reproduzia na prática Quem e como se decidia ou poderseia decidir a diferença entre de um lado solicitantes de refúgio e refugiados e de outro lado migrantes indocumentados ou irregulares E qual a relação de todos eles solicitantes de refúgio refugiados e migrantes irregulares com a condição ou mesmo natureza de ser humano E qual a relação destas questões com a arquitetura políticonormativa do sistema in ternacional Foi este tipo de questionamento que me fez querer voltar à uni versidade e fazer o meu doutorado em Relações Internacionais É a este tipo de questionamento a estas lembranças e questões que eu quero me voltar e repensar à luz daquela resposta de Spivak Nesse sentido inspirome nos comentários de Spivak em seu Pode o Subalterno Falar acerca de alguns aspectos do trabalho de Derrida que guardam uma utilidade a longo prazo para aqueles de fora do Primeiro Mundo SPIVAK 2012 p 101 Aqui seguindo sua leitura de que para a desconstrução o etnocentrismo é o problema de todos os esforços logocên tricos SPIVAK 2012 p 107 e assim de que a crítica ao imperialismo é a desconstrução como tal1 SPIVAK 2012 p 85 eu adoto uma postura que 1 nota de rodapé 54 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 159 14012021 1707 Roberto Vilchez Yamato 160 busca ao mesmo tempo ecoar e responder ao apelo ou chamado para tornar delirante aquela voz interior que é a voz do outro em nós DERRIDA apud SPIVAK 2012 p 1082 DIANTE DE ALAN KURDI Mas por onde quando e como começar Talvez lembrando a antiga pia da recontada por R B J Walker nas primeiras linhas de seu InsideOutside WALKER 1993 p ix cuja moral seria algo como tome cuidado com o seu ponto de partida Talvez lembrando a afirmação de Jacques Derrida 1997 p 162 de que devemos começar onde quer que estejamos Mas se tal como ele mesmo afirmou ali em seu Da Gramatologia não há nada fora do texto DERRIDA 1997 p 158 onde se localiza o ponto espaçotemporal que so mos ou estamos o qual comumente tomamos como dado ao imaginarmos começar ou ter começado Difícil saber onde estamos se não há nada fora do contexto se a presença do contexto sempre nos escapa se nossos pontos de partida são inseguros e se na origem já sempre há prótese DERRIDA 1998 Mas então como começar Minha intuição é a de que a sugestão de Derrida é a de que comecemos onde quer que julguemos estar Noutras palavras há julgamento decisão e responsabilidade no princípio de começar No começo do começo há aquela louca e enlouquecedora experiência que Derrida chamou em Força de Lei de a experiência da aporia DERRIDA 2002 p 244 Aporia sendo um não caminho uma nãopassagem DERRIDA 2002 p 244 suscita um para doxo ou contradição quando imaginada à luz dos modernos pressupostos lógicoracionalistas como algo que se pode experimentar ou experienciar como algo pelo qual se pode passar Afinal logicamente como passar por uma não passagem No entanto para o pensamento desconstrucionista de Derrida passar pela experiência da aporia significa passar pela experiência do impossí vel DERRIDA 2002 p 244 E de acordo com ele sem tal experiência da 2 Spivak cita aqui o artigo Of an Apocalyptic Tone Recently Adopted in Philosophy de Derrida originalmente publicado em Semia e posteriormente publicado em 1984 em Oxford Literary Review Oxford v 6 n 2 p 337 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 160 14012021 1707 Pode a migrante falar Um exercício de rearranjar desejos escavar o eu 161 aporia e do impossível uma decisão não seria propriamente uma decisão mas um mero cálculo a mecânica execução de um programa lógico Decidir requer calcular o incalculável DERRIDA 2002 p 244 Decidir demanda não apenas certa responsabilidade mas clama por uma responsabilidade ainda maior DERRIDA 2002 p 248 quiçá infinita uma responsabili dade intimamente associada à questão éticopolíticojurídica da justiça DERRIDA 2002 p 247 Naquele mesmo texto Derrida afirma que a desconstrução toma lugar no intervalo que separa a indesconstrutibilidade da justiça da desconstruti bilidade do direito DERRIDA 2002 p 243 De acordo com ele esta é a consequência de duas outras proposições De um lado ele propõe que o di reito é essencialmente desconstruível DERRIDA 2002 p 242 ou seja que o direito é construível e portanto desconstruível o que também significa dizer que o direito torna possível a desconstrução DERRIDA 2002 p 243 De outro lado a justiça em si mesma se tal coisa existe fora ou além do di reito não é desconstruível e tal indesconstrutibilidade da justiça também torna possível a desconstrução DERRIDA 2002 p 243 Daí portanto a conclusão aporética de que a desconstrução é possível como uma experiên cia do impossível DERRIDA 2002 p 243 Desconstrução é justiça 2002 p 243 ele conclui Mas se a justiça é a possibilidade de desconstrução da desconstrução em geral o direito ou a estrutura do direito a fundação ou autoautorização do direito ou da lei é a condição de possibilidade do exercício da desconstru ção DERRIDA 2002 p 243 grifo nosso Neste trabalho eu proponho um exercício da desconstrução posicionandoo de uma maneira propositada Tal como o homem do campo diante da Lei com L maiúsculo na estória kafkiana relida por Derrida em Diante da Lei eu julgo importante e quero po sicionar este exercício diante do que aqui chamaria de a Lei de Alan Kurdi uma Lei com L maiúsculo que deve ser lida como aquela indesconstruível justiça e não como o direito ou uma lei ambos escritos em letras minúscu las e desconstruíveis Quando vi a foto daquele lindo menino sírio de apenas 3 aninhos iner te de barriga para baixo como se dormindo nas areias daquela praia turca e então quase que no mesmo instante tomei conta de que ele estava morto sem vida eu simplesmente não aguentei e comecei a chorar honestamente Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 161 14012021 1707 Roberto Vilchez Yamato 162 não me lembro se o choro veio antes ou depois da revolta e indignação antes ou depois de pensar em minha filha recémnascida antes ou depois de tentar me colocar no lugar do pai daquele menino Confesso que tal tentativa não durou nem ao menos uma pequena fração de segundos aterrorizado com o mero pensamento de que qualquer coisa remotamente próxima àquilo pu desse acontecer com minha filha fui correndo ver minha Luisa Ela dormia Ao ficar observando o ninar de minha pequena senti que algo inominável havia me tocado profundamente algo me havia tocado o coração a alma e por horas não consegui deixar de pensar naquela fotografia naquele pai naquele menino E é algo desta ordem de grandeza tão inominável e indes construível que quero chamar aqui de a Lei de Alan Kurdi uma Lei cujo L maiúsculo denuncia sua proximidade ou mesmo sinonímia com aquela justiça desconstrucionista Mas quantos Alan Kurdi há no mundo Aqui eu gostaria de sugerir que diante desta Lei de Alan Kurdi que é também a Lei que emana de todo mi grante forçado a migrar e exposto a tamanha violência é possível vislumbrar aquele intervalo entre a indesconstrutibilidade da justiça e a desconstrutibi lidade do direito E é em relação a esse intervalo que quero posicionar esta minha intervenção propositada Tratase aqui de uma resposta a infinita res ponsabilidade perante os e as Alan Kurdi deste mundo perante a memória daqueles solicitantes de refúgio refugiados e migrantes indocumentados que mudaram a minha vida e me fizeram migrar até aqui hoje Posicionarse para além da responsabilidade intrínseca à tomada de de cisão diante da indecidibilidade é algo bastante caro a Derrida Tal como ele sugere em seu Posições posicionarse é diferente de tomar partido de levantar e naturalizar uma bandeira noutras palavras tratase de uma táti ca na minha leitura pirata como aquele da experiência da liberdade de JeanLuc Nancy e não partisan como em Carl Schmitt que envolve um gesto duplo a inversão e o deslocamento das oposições binárias da tradição ocidental metafísica DERRIDA 1981 p 4143 Neste trabalho pretendo me posicionar em relação ao que identificaria como uma certa oposição binária entre a cidadã e a migrante irregular Mas ao fazêlo também quero chamar atenção à oposição binária entre o que chamaria aqui de ser humana politi camente significada e ser humana politicamente insignificada Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 162 14012021 1707 Pode a migrante falar Um exercício de rearranjar desejos escavar o eu 163 Luisa e a Significação Política da Vida Poucos dias depois de minha filha nascer no fim de uma longa madrugada torcendo para que minha pequena conseguisse pegar o peito da mãe da ma neira correta e assim pudéssemos ter alta com a certeza de que ela iniciara bem o aleitamento materno recebi um telefonema no quarto que solicitava que comparecesse ao subsolo da maternidade e me dirigisse ao Cartório Minha mulher dormia e por razões óbvias não a quis acordar Troquei de roupa peguei o elevador e desci até o Cartório Lá chegando fui pergunta do se gostaria de registrar minha filha recémnascida ali naquele momento Disse que sim Então fui perguntado acerca do nome completo dela além de outros detalhes e informações Com uma quase obsessão para não errar nenhuma letrinha ou ordem de sobrenomes sobretudo na ausência da ma mãe que dormia eu respondia a todas as perguntas quando na medida em que isso acontecia deime conta de que a vida da minha filha estava sendo significada politicamente ela era agora cidadã brasileira Eu concordo um pensamento um pouco acadêmico demais para a ocasião Mas enfim foi mais forte do que eu E foi ainda mais potencializado quando recebi junto com sua Certidão de Nascimento a sua Declaração de Nascido Vivo Luisa agora era declarada e certificadamente uma recémnascida viva e brasileira Aqui o que quero destacar é precisamente este ato de significação polí tica da vida No intervalo entre o seu nascimento e o seu registro civil deu se um determinado processo políticojurídicoburocrático que atribuíra um determinado significado à vida de minha filha de 44 centímetros e 2 quilos e 875 gramas Antes uma recémnascida viva uma vida Depois uma recém nascida viva e nacional brasileira com filiação data e local de nascimento registrados Nascia mais um serzinho humano e nacional Mas tal como Rob Walker sempre me faz relembrar e repensar quem vem primeiro o ser hu mano ou o ser nacional A maneira como acabei de descrever a minha experiência da significação política da vida de minha filha talvez possa levar ou ter levado à conclusão de que primeiro com a vida nasce o ser humano para que só então com o tal registro civil nasça o ser nacional Mas lembrandome mais uma vez daquela advertência de Walker tome cuidado com o seu ponto de partida deixeme aqui recolocar a dupla questão do nascimento e relação do ser humano e do Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 163 14012021 1707 Roberto Vilchez Yamato 164 ser nacional a partir da releitura de uma passagem do filme Coisas Belas e Sujas de Stephen Frears 2003 Numa cena deste filme de Frears o migrante irregular nigeriano Okwe Chiwetel Ejiofor sem previamente agendar vai ao Baltic hotel em Londres onde trabalha como recepcionista num dos seus incessantes turnos de tra balho para solicitar a seu chefe o aparentemente cidadão europeu Sr Juan Sergi López que pague o valor correspondente aos últimos dias de trabalho como camareira da solicitante de refúgio turca Senay Audrey Tautou com quem Okwe secretamente divide uma quitinete e todo um submundo e com quem ele irá desenvolver uma estória de solidariedade cumplicidade e amor Naquele dia Senay havia deixado de trabalhar no hotel e começara a traba lhar num sweatshop para supostamente ganhar mais dinheiro Okwe estava ali em nome dela para solicitar o restante de sua remuneração Ao chegar Okwe não encontrou ali o dono da sala mas dois senhores cla ramente migrantes que não falavam nem inglês nem francês e que pareciam estar à espera do Sr Juan Um deles passava muito mal aparentando estar se riamente doente e sofrendo profundamente Poucos momentos depois chega o Sr Juan quem surpreso questiona o que Okwe fazia ali Diante da respos ta de Okwe ele imediatamente adentra sua sala para pegar o valor devido a Senay Neste momento então aquele migrante doente começa a ter uma crise bem do lado de Okwe que prontamente age e começa a ajudar tentando diag nosticar a causa daquele sofrimento ao fazêlo ele revela que é um médico Naquele instante então como médico ele se autoriza e é autorizado a observar a causa daquela dor tamanha uma enorme ferida ainda aber ta infeccionada e suficientemente séria para levar aquele homem à morte Extremamente preocupado Okwe é enfático quanto a urgência de levar aque le homem ao hospital mais próximo e o mais rapidamente Ele está certo de que aquele homem morrerá caso não seja operado corretamente e medicado devidamente Mirando o Sr Juan ele é taxativo quanto a urgência de levar o doente ao hospital No entanto Okwe é surpreendido os dois migrantes inclusive o próprio doente veementemente se negam a ir para o hospital Diante disso Okwe se vê obrigado a resolver o problema pessoalmente Com o acesso fácil ao hospital em que seu amigo refugiado Guo Yi Benedict Wong trabalha Okwe consegue se fingir de faxineiro e adentrar a sala em que os medicamentos são estocados Ali ele consegue obter o mínimo necessário Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 164 14012021 1707 Pode a migrante falar Um exercício de rearranjar desejos escavar o eu 165 para garantir a operação e o tratamento daquele doente Okwe vai então à casa do migrante onde conversando com os familiares após a operação descobre não apenas que todos ali eram somalis mas que aquela ferida era fruto de uma operação de remoção de rim que teria sido feita no próprio Baltic hotel Em troca do rim aquele migrante havia recebido em pagamento um passa porte inglês perfeitamente falsificado Okwe descobria ali que o Sr Juan fa zia parte de um esquema de tráfico de órgãos baseado na vulnerabilidade daqueles migrantes irregulares E este é o ponto que eu gostaria de destacar aqui aqueles migrantes veementemente se negaram a ir para o hospital por que eles eram migrantes irregulares e aquela ferida era precisamente o rastro de tal irregularidade Mas e se ao invés de tal ferida ou da própria operação malsucedida de que é efeito estivéssemos falando de uma situação de parto do nascimen to do filho ou da filha de um casal de migrantes irregulares Será que estes também veementemente se negariam a ir ao hospital Qual seria o cálculo o raciocínio feito por eles Qual seria sua decisão A mesma daqueles migran tes irregulares somalis ou seja a de não ir ao hospital Independentemente das respostas o que eu quero pontuar aqui retornando ao que comentava anteriormente acerca da significação política da vida de minha filha é que tais questionamentos jamais passaram ou passariam pela minha cabeça du rante todo o período de gestação da Luisa Claro um professor universitário que pode ter plano de saúde e que mora e trabalha numa das regiões mais nobres da cidade por definição já tem uma condição econômicosocial privilegiada o suficiente para nem sequer imagi nar a impossibilidade de ir ao hospital para fazer uma intervenção cirúrgica de vida ou morte ou para como no nosso caso fazer o parto cesariano da primeira filha Certamente não somos iguais e não nascemos iguais E não é preciso evocar aqui as diferentes tradições críticas marxistas comunitaristas neogramscinianas feministas críticoraciais pósestruturalistas psicanalíti cas póscoloniais ou decoloniais à concepção liberal dos direitos humanos para pontuar que esta questão de diferenças e desigualdades é constitutiva do ser humano Bastamme aqui as palavras de Eduardo Viveiros de Castro em sentido geral a sociedade é uma condição universal da vida humana VIVEIROS DE CASTRO 2011 p 297 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 165 14012021 1707 Roberto Vilchez Yamato 166 Mas aqui eu quero sugerir e comentar uma forma específica de como esta condição social da vida humana é ela própria condicionada E para isso deixeme recolocar a problemática E se eu e minha mulher durante a gestão de Luisa e na hora do parto estivéssemos vivendo a mesma situação de irre gularidade daqueles migrantes somalis em Londres Nós decidiríamos ir ao hospital ou não Iríamos mesmo se achássemos que isso poderia significar sermos identificados como migrantes irregulares ou até mesmo ilegais e então sermos detidos ou mesmo presos e então expulsos deportados re tornados precisamente para o lugar de onde migramos e para o qual não queremos a todo custo voltar Não Luisa não nasceu primeiro ser humana e depois brasileira A condi ção de brasileiros de serem cidadãos do EstadoNação brasileiro de seus pais já colocara Luisa num lugar bastante privilegiado em relação a uma eventual recémnascida cujos pais aqui no Brasil fossem migrantes irregulares Ela nunca correu o risco de nascer num quarto escuro de um sweatshop no cen tro de São Paulo por exemplo E isso pelo menos em parte porque a condi ção social de sua vida humana já havia sido a priori condicionada por uma trama de significação política que relacionalmente diferencia hierarquiza e organiza por exemplo as condições de ser humano cidadão nacional estran geiro exilado asilado político refugiado solicitante de refúgio deslocado interno migrante regular e migrante irregular Pelo solo pelo sangue pela nacionali dade de seus pais ela já nascia condicionada significada Em suma se sua vida humana fora antes condicionada socialmente ela fora também antes condicionada internacionalmente A condição internacional da condição social da vida humana Em grande medida o que está em jogo aqui é aquela relação e diferenciação entre zoe e bios entre o simples fato de viver e a forma ou maneira de viver própria a um indivíduo ou grupo AGAMBEN 1998 p 1 relação e diferença essas que marcam uma certa concepção da política que tal como relida por Giorgio Agamben associa nomes como o de Aristóteles Benjamin Schmitt Arendt e Foucault AGAMBEN 1998 No entanto apesar da releitura agam beniana da biopolítica ser importante e poder nos servir aqui para denunciar mais uma vez a violência soberana que constitui a vida nua do homo sacer Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 166 14012021 1707 Pode a migrante falar Um exercício de rearranjar desejos escavar o eu 167 expondoa à matabilidade e à insacrificabilidade AGAMBEN 1998 p 73 mi nha impressão é a de que ela não dá conta ou pelo menos não de maneira suficientemente direta e expressa do que aqui identificaria como a condição internacional da condição social da vida humana O ponto importante aqui é o de que sem considerar os limites bordas fronteiras PARKER VAUGHANWILLIAMS 2014 e fault lines LINDAHL 2013 do sistema internacional moderno WALKER 2006 2010 tornase difícil pensar criticamente a relação desta forma específica de significação política da vida e aquela construção violenta da vida que é matável e insa crificável Noutras palavras é difícil vislumbrar como a vida é politicamente significada e insignificada internacionalmente E tal como quero propor aqui a partir daquela resposta de Spivak para rastrear e começar a tatear o problema da migrante subalterna no mundo contemporâneo é fundamental confrontar e repensar esta condição internacional da significação política da vida Nesse sentido minha sugestão seria a de que primeiro é importante mar car a diferença entre o internacional e o mundo tal como Walker 2010 e Sergei Prozorov 2014 o fazem Parafraseando Dipesh Chakrabarty 2008 é preciso provincializar o internacional E para fazêlo pareceme crucial acompanhar Prozorov e não deixar de lembrar que o sistema internacional moderno não é idêntico ao Mundo com M maiúsculo pensado por ele como uma forma de universalismo vazio PROZOROV 2014 mas sim um mundo particular e com m minúsculo Na linguagem de Chakrabarty o internacional seria um mundo uma forma ou cultura de vida um lifeworld CHAKRABARTY 2008 p 72 Assim a sinonímia do internacional com o Mundo com M maiúsculo de Prozorov significaria a ocupação imperial daquele universalismo vazio o que noutras palavras implicaria a universalização intrinsicamente colonial de um lifeworld em detrimento de todas as outras incomensuráveis formas de vida E como Derrida sugere em seu Torres de Babel 2002 uma tal uni versalização implicaria como de fato implicou e continua implicando uma inominável violência colonial Nos termos de Boaventura de Souza Santos tal violência implicaria epistemocídio3 SOUSA SANTOS 2016 Afinal tal como Chakrabarty denuncia ela seria intrínseca a uma determinada política 3 Posição 2277 de 8187 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 167 14012021 1707 Roberto Vilchez Yamato 168 de tradução que não é capaz de dar conta das singularidades e heterotempo ralidades dos demais lifeworlds CHAKRABARTY 2008 p 7296 Consequentemente marcar a diferença entre o internacional e o mun do tal como no caso daquele intervalo entre a indesconstrutibilidade da justiça e a desconstrutibilidade do direito significa trazer à memória a vio lência colonial intrínseca à autofundação e autoautorização da sociedade internacional moderna e de seu direito internacional FITZPATRICK 2011 significa não deixar cair em esquecimento as práticas soberanas que autori zam e legitimam os limites discriminatórios ao mesmo tempo inclusivos e excludentes do sistema internacional WALKER 2010 Noutras palavras é importante lembrar que o internacional moderno tem foras constitutivos WALKER 2010 A sugestão que este trabalho faz numa resposta àquela resposta de Spivak é a de que a migrante subalterna nos leva a tais fronteiras ou fault lines LINDAHL 2013 Com ela podemos rastrear o espaçotempo daquele fora constitutivo do sistema internacional moderno capitalista e neoliberal De certo modo a migrante subalterna pode ser lida como a forasteira consti tutiva deste sistema ou forma de vida que é concomitantemente soberano imperial e excepcional WALKER 2006 Seguindo seus rastros podemos ta tear ou pelo menos começar a reconhecer um espaçotempo subterrâneo em que a insignificação política da vida é ao mesmo tempo gritante e silenciada Mas antes de tratar mais especificamente da migrante subalterna deixe me tecer alguns comentários acerca da significação e insignificação da vida a partir da breve análise de um caso de violência que aconteceu aqui no Brasil há alguns anos o caso Galdino Este é o caso do índio pataxó Galdino Jesus dos Santos que foi à Brasília no dia 19 de abril de 1997 para comemorar o Dia do Índio e participar de manifestações pelos direitos das populações in dígenas No dia seguinte quando dormia num dos bancos de um ponto de ônibus de um bairro nobre da Capital do Brasil Galdino foi vítima de um inacreditável ato de violência cinco jovens de classe média jogaram álcool sobre o seu corpo e em seguida atearam fogo Galdino morreu com 95 do seu corpo queimado Aqui eu quero destacar um ponto específico da resposta dada por um dos jovens quando perguntado sobre o crime Como fora amplamente divul gado à época um dos jovens teria comentado algo como nós não sabíamos Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 168 14012021 1707 Pode a migrante falar Um exercício de rearranjar desejos escavar o eu 169 que ele era um índio achávamos que era um mendigo De um lado quero chamar atenção aos significantes índio e mendigo ambos são palavras que fazem parte da língua portuguesa e podem ser encontrados num dicionário de português De outro lado quero chamar atenção tanto aos significados de tais significantes quanto à diferença que eles guardam entre si enquanto o índio parece ser reconhecido como alguém contra o qual tal ação não deveria ser ou ter sido acometida o mendigo parece ser reconhecido como alguém contra o qual uma tal ação poderia ter sido ou mesmo ser considerada razoá vel aceitável ou pelo menos imaginável Esta relação de diferença entre os significados de índio e mendigo neste contexto parece marcar diferentes concepções da condição de ser humano e da relação destas com a autorização e legitimação da violência enquanto o ser humano índio parece suscitar dúvida ou mesmo certeza quanto à proibição daquele tipo inacreditável de violência o ser humano mendigo parece autorizar que tamanha violência seja mais imaginável aceitável defensável Naquele comentário do jovem de classe média de Brasília podemos identificar os rastros de uma política da estética uma política de partilha da ordem da sensibili dade RANCIERE 2011 SHAPIRO 2013 2015 que identifica as diferentes concepções e condições de ser humano com diferentes espaçostempos e suas respectivas e diferentes relações com a autorização e legitimação da violência Assim se os significantes índio e mendigo nos apresentam à diferen ciação de humanos e humanos sim a diferenciação entre seres humanos e seres humanos os diferentes significados de tais significantes e claro suas consequências mortais nos sugerem que a diferenciação da qual todos eles significantes e significados são efeitos não é neutra isonômica ou inofen siva Como o caso do ser humano índio pataxó Galdino Jesus dos Santos nos sugere significante e significado legitimam a violência e matam ter sido identificado com o espaçotempo do mendigo não com o do índio e muito menos com o dos jovens de classe média de Brasília significou a insignifi cação política de Galdino a tal ponto que para aqueles jovens atear fogo em seu corpo pareceu imaginável aceitável razoável Como mendigo Galdino era uma vida matável e insacrificável O que quero destacar com este exemplo mesmo que de maneira bastan te superficial é esta dupla relação da trama da linguagem com a vida de um lado ela estrutura a diferenciação entre seres humanos e seres humanos e Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 169 14012021 1707 Roberto Vilchez Yamato 170 claro também entre estes e os seres inumanos e de outro lado na medi da em que constitui e é constituída por outras tramas sociais econômicas raciais culturais históricas de identidades e gêneros etc participa daquilo que anteriormente havia chamado de significação política da vida esta é sig nificada por meio no meio e no movimento dessas tramas contexturas textualidades Relendo aqueles termos de Viveiros de Castro poderseia sugerir que é essa textualidade contextura ou trama que constitui a condição social da vida humana Mas tal como sugeri há pouco o que quero enfocar e repensar aqui é a condição internacional da condição social da vida humana Noutras palavras quero enfocar e repensar alguns rastros da trama internacional que também constitui a textualidade ou contextura mais geral que articula os diferentes tempos e espaços dos mundos Mais especificamente minha sugestão aqui é a de que a trama internacional condiciona a condição social da vida humana relacionalmente diferenciando hierarquizando e organizando por exemplo as condições de ser humano cidadão nacional estrangeiro exilado asilado político refugiado solicitante de refúgio deslocado interno migrante re gular e migrante irregular Sem dúvida estes rastros da trama internacional que destaco aqui tam bém são entrelaçados por tramas de gênero classe cultura raça dentre outras ENLOE 2000 TICKNER 1996 DOTY 2009 SPIVAK 2012 No entanto tal como sugeri anteriormente posiciono este trabalho em relação ao dua lismo cidadãmigrante irregular chamando atenção também para a oposição binária entre a ser humana politicamente significada e a ser humana politi camente insignificada Daí portanto o privilégio dado àqueles significantes humano cidadão nacional estrangeiro exilado asilado político refugiado solicitante de refúgio deslocado interno migrante regular e migrante irregular que relacionam entrelaçando e entrelaçados à trama internacional a condição de ser humana a diferentes categorias e condições de ser e poder se mover E o que está em jogo aqui nos termos de Butler e Spivak é um certo mecanismo político de privação que funciona primeiro por meio da categorização daqueles que podem ou não podem exercer a li berdade BUTLER SPIVAK 2010 p 21 Nesses termos este estudo afastase de um entendimento essencialista de humanidade DOTY 2009 p 184 concebendo identidade como algo que Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 170 14012021 1707 Pode a migrante falar Um exercício de rearranjar desejos escavar o eu 171 nunca é como tal que nunca é ou está antes de ou imune a práticas polí ticas e sociais DOTY 2009 p 185 O ponto duplo aqui é precisamente o de que a identidade é uma construção política social cultural racial de gênero econômica internacional etc e que esta condição internacional é parte cons tituinte dessa trama mais ampla e complexa que condiciona a vida humana Lembrando daqueles exemplos dos migrantes somalis do filme Coisas Belas e Sujas de Alan Kurdi e de minha filha Luisa eu destacaria como as categorias e condições internacionais de ser cidadã ou migrante irregular significam e condicionam a vida humana em termos bastantes distintos Por um lado tal como Roxanne Lynn Doty nos lembra a condição de cidadania sempre conteve em si um elemento de exclusão na medida em que a noção de um sujeito incluído e que pertence à uma comunidade política um insider é inerente a tal categoria o que significa que esta pressupõe ou mesmo requer um outsider DOTY 2009 p 183 um foras teiro ou fora constitutivo WALKER 2010 Em jogo aqui está a constru ção de fronteiras e a discriminação de diferentes formas e em diferentes termos entre seres humanos incluídos e seres humanos excluídos Nesse sentido Doty destaca o ponto que queremos fazer quando afirma que existem muitas fronteiras no mundo que criam um Eu e um Outro um sujeito que pertence e um que não pertence um que pode ser chamado de cidadão e aquele cuja própria existência em dado lugar é considerada illegal DOTY 2009 p 183 O que venho sugerindo aqui é que a migrante irregular ou migrante subalterna é este outro este outro que não pertence que é considerado ilegal que é identificado com o fora constitutivo do sistema internacional moderno e assim nos apresenta a um mundo subterrâneo de seres huma nos que vivem entre nós mas que não gozam dos mesmos privilégios como cidadãos DOTY 2009 p 183 Assim deixeme seguir os rastros de alguns migrantes subalternos até tal mundo subterrâneo retornando ao filme Coisas Belas e Sujas A MIGRANTE SUBALTERNA E O NÃO PODER FALAR Estamos de volta ao Baltic hotel em Londres Okwe Chiwetel Ejiofor o mé dico recepcionista motorista de taxi e migrante irregular nigeriano desce Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 171 14012021 1707 Roberto Vilchez Yamato 172 apressado as escadas que o levam até o estacionamento no subsolo do hotel Ele vem acompanhado de Senay Audrey Tautou a agora excamareira do hotel exfuncionária explorada laboral e sexualmente de sweatshop e ainda solicitante de refúgio turca e de Juliette Sophie Okonedo a prostituta que informal mas regularmente trabalha com hóspedes do hotel durante as ma drugadas Okwe carrega uma caixa de isopor branca nas mãos Dentro dela há um órgão um rim devidamente protegido e guardado sobre uma cama de gelo Com a ajuda de Senay e Juliette suas agora enfermeiras assistentes Okwe havia acabado de extrair aquele órgão e estava correndo apressado para entregálo ao comprador que o encontraria no estacionamento no sub solo do hotel Lá chegando Okwe Senay e Juliette deparamse com um tipo muito bem vestido que saindo de um carro de luxo vem em direção a eles Com o an dar confiante aparentando ser um cidadão europeu bastante privilegiado e certamente não aparentando ser um migrante irregular solicitante de refúgio ou qualquer outra categoria de não cidadão vulnerável ou vulnerabilizado o comprador do órgão se aproxima de Okwe Senay e Juliette e questiona Onde está o Sr Juan Provavelmente acostumado a lidar diretamente com o chefe daquele esquema de tráfico de órgãos ele esperava tratar pessoalmente com o Sr Juan Sergi López o aparentemente cidadão europeu gerente chefe do hotel e cabeça daquele negócio ilegal Mas quem estava ali naquele momento subterrâneo era o migrante irre gular motorista de táxi a solicitante de refúgio excamareira e a prostituta E o Sr Juan estava bêbado ou pelo menos esta é a resposta dada por Okwe ao questionamento feito Sem dizer mais nada Okwe entrega a caixa de isopor branca para o comprador que verificando a compra retorna a seu carro de luxo para guardar o rim e buscar um envelope com o dinheiro do pagamen to Ele então retorna e ao entregar o envelope a Okwe questiona Por que eu nunca os vi antes A resposta de Okwe ao comprador de órgão é direta Porque somos as pessoas que você não vê Somos nós que dirigimos seus táxis limpamos seus quartos e chupamos seus paus Aqui somos reapresentados ao mundo subterrâneo de Londres e do sis tema internacional moderno capitalista e neoliberal e àqueles seres hu manos que não são vistos enxergados ou reconhecidos que o habitam Nós já havíamos sido apresentados aos migrantes irregulares somalis e a seu mundo Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 172 14012021 1707 Pode a migrante falar Um exercício de rearranjar desejos escavar o eu 173 subterrâneo sem acesso a hospital Nós também já havíamos sido reapre sentados ao índio mendigo Galdino e ao mundo subterrâneo de Brasília em que ele fora queimado vivo E com eles eu tenho tentado sugerir aqui temos acesso ao mundo subterrâneo de Doty 2009 e ao fora constitutivo do sistema internacional moderno de Walker 2010 ou pelo menos somos provocados ou mesmo convocados por eles a pensar criticamente sobre tais espaçostempos de insignificação política da vida humana As categorias e condições de cidadão e migrantes irregular são parte constitutiva da trama internacional que também condiciona e significa a vida humana Enquanto a primeira normalmente está associada à inclusão e ao pertencimento servindo de fundação para a arquitetura de um sistema de estadosnações de indivíduoscidadãos a segunda é arquitetonicamente associada à exclusão ao não pertencimento e à exceção em relação à regra internacional que prescreve que a vida política moderna deve se dar dentro do estadonação WALKER 1993 ASHLEY 1995 Neste espaçotempo excepcional a migrante irregular ou tal como sugeri aqui a migrante subalterna não é vista não é enxergada ou reco nhecida e não pode falar O migrante irregular subalterno não pode falar Não há valor algum atribuído à mulher migrante subalterna como um item respeitoso nas listas de prioridades globais SPIVAK 2012 p 165 E é assim inspirado naquela resposta dada por Spivak acerca da figura do subalterno no mundo contemporâneo que eu retornaria ao contexto de onde retirei a epígrafe O subalterno não pode falar deste trabalho agora inscrevendo ali a categoria e condição de migrante irregular ou migrante subalterna Aqui então o não poder falar poderia ser lido como o ser identifica do com ou exposto a um espaçotempo que implicaria o não poder ir ao hospital daqueles migrantes irregulares somalis o ser aqueles que você não vê de Okwe Senay e Juliette o morrer afogado buscando refúgio de Alan Kurdi ou mesmo o poder ser queimado vivo como o índio men digo vítima daqueles jovens de classe média de Brasília Noutras palavras este não poder falar seria efeito da insignificação política da vida humana que implica a exposição desta à matabilidade e à insacrificabilidade e que é condicionada também pela trama internacional moderna capitalista e neoliberal Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 173 14012021 1707 Roberto Vilchez Yamato 174 Rearranjar desejos escavar o eu e tornar delirante o outro em nós Em seu An Aesthetic Education in the Era of Globalization Spivak afirma que o mundo precisa de uma mudança epistemológica que rearranje desejos SPIVAK 2013 p 2 Sua resposta a tal necessidade é uma educação estética SPIVAK 2013 Inspirado por esta sugestão bem como pelos trabalhos de Michael J Shapiro sobre método transdisciplinar SHAPIRO 2013 eu bus quei responder àquela resposta de Spivak acerca da figura do subalterno no mundo contemporâneo adotando uma postura quase epistemometodológica que aceite aquele convite de Derrida que também ecoa na autora de Pode o Subalterno Falar de tornar delirante aquela voz interior que é a voz do outro em nós DERRIDA 1982 apud SPIVAK 2012 p 108 Em sua releitura de Derrida Spivak denuncia o que chamou de violência epistêmica e com esta o perigo do intelectual do Primeiro Mundo que se mascara como um não representante ausente que deixa os oprimidos fala rem por si mesmos SPIVAK 2012 p 102 É diante de tal violência e de tal perigo que ela então comenta a importância de longo prazo de Derrida para o pensamento póscolonial Derrida não invoca que se deixe os outros falar por si mesmos mas ao invés faz um apelo ou chamado ao quaseoutro toutautre em oposição a um outro autoconsolidado para tornar delirante aquela voz interior que é a voz do outro em nós SPIVAK 2012 p 1084 Ela explica que a questão envolvida aqui é como impedir que o Sujeito et nocêntrico estabeleça a si mesmo ao definir seletivamente um Outro SPIVAK 2012 p 102 tornar delirante o outro em nós também significa impedir que o nosso ser etnocêntrico estabeleça a si próprio como um Daí portanto a im portância de tornar delirante a voz daqueles migrantes irregulares somalis daquele índio mendigo assassinado em Brasília daquele migrante irregular nigeriano em Londres daquele menino Alan Kurdi morto na praia turca e de minha própria filha sendo significada politicamente alguns pouquíssimos dias após seu nascimento 4 Spivak cita aqui o artigo Of an Apocalyptic Tone Recently Adopted in Philosophy de Derrida Ver nota 1 supra Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 174 14012021 1707 Pode a migrante falar Um exercício de rearranjar desejos escavar o eu 175 Daí também o tom mais autobiográfico INAYATULLAH 2011 do texto numa tentativa de fazer tremer o eu do autor por meio de encontros e reencontros que provoquem pensamento Por meio desses encontros e reen contros eu busquei fazer delirar todos aqueles que são apenas alguns dos outros que ecoam dentro de mim e dos meus mundos não apenas cons tituindome mas também não me deixando esquecer de que nunca fui ou sou um E neste exercício de escavação do meu eu busquei fazer ecoar as palavras de Naeem Inayatullah 2011 p 8 Escave o eu e o que nós encontra mos Não uma indulgência ontologizada e essencializada mas o dinamismo diferenciado de mundos inteiros Ao mesmo tempo busquei adotar uma postura quase epistemome todológica transdisciplinar que ecoasse também os ensinamentos de Mike Shapiro 2013 e 2015 Assim tentando fazer delirar a voz de Shapiro em meu texto busquei reler seus ensinamentos sobre a importância daquilo que chamou com Cesare Casarino de philopoesis ou filopoética a in terferência refratária e descontínua entre filosofia e literatura SHAPIRO 2013 p 26 Ao fazêlo também busquei imprimir aqui a inspiração provo cada por sua releitura da política cinemática e de sua importância para o pensamento crítico e póscolonial Nesse sentido Shapiro nos chama atenção para o poder do cinema de provocar o pensamento certos cortes por exemplo têm o efeito de provocar uma multiplicidade temporal crítica que desafia ambos os modelos huma nista e sagrado de tempo unitário SHAPIRO 2013 p 25 Em jogo está a política da estética ou seja a repartilha do sensível SHAPIRO 2013 p 27 por meio de intervenções ou performances estéticas ou filopoéticas Aqui inspirandome no ensinamento de que os sujeitos estéticos são aqueles quem por meio de gêneros artísticos articulam e mobilizam o pensamento SHAPIRO 2013 p 11 busquei acompanhar os sujeitos estéticos do filme dirigido por Stephen Frears 2003 com o intuito de provocar tal repartilha do sensível E as referências a Alan Kurdi ao ín dio Galdino e a minha filha Luisa igualmente tiveram e têm este mesmo intuito aqui neste exercício de rearranjar desejos escavar o eu e tornar delirante o outro em nós Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 175 14012021 1707 Roberto Vilchez Yamato 176 REFERÊNCIAS AGAMBEN G Homo Sacer Sovereign Power and Bare Life Stanford Stanford University Press 1998 ASHLEY R K The Powers of Anarchy Theory Sovereignty and the Domestication of Global Life In DERIAN J D ed International Theory Critical Investigations London Palgrave 1995 p 94128 BUTLER J SPIVAK G C Who Sings the NationState Language politics belonging London New York and Calcutta Seagull Books 2010 CHAKRABARTY D Provincializing Europe Postcolonial Thought and Historical Difference Princeton and Oxford Princeton University Press 2008 DERRIDA J Positions Chicago University of Chicago Press 1981 DERRIDA J Acts of Literature New York Routledge 1992 DERRIDA J Of Grammatology Baltimore Johns Hopkins University Press 1997 DERRIDA J Monolingualism of the Other or The Prosthesis of Origin Stanford Stanford University Press 1998 DERRIDA J Acts of Religion New 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teóricos e preocupações metodológicas que seriam de seu interesse e preocupação específicos O poder internacional arquitetado em um sistema de anarquia e sobrevivência a rivalidade cúmplice entre realistas e liberais assim como a fixação de uma linha imaginária entre a política interna e ex terna são elementos que constituem a justificativa da identidade e vocação disciplinares das RI No mito de origem de seu surgimento os estudantes são levados a crer que a área surgiu de forma quase missionária e voluntarista buscando exclusivamente a paz das nações no contexto após a Primeira Guerra Mundial Ainda a hegemonia epistêmica do positivismo na primeira metade do século XX no âmbito das Ciências Humanas e Sociais em geral procurou 1 Este capítulo foi escrito no início do ano de 2016 Agradeço aos colegas da rede Coloniali dades e Política Internacional pelos momentos de convívio diálogo e trocas responsáveis por constante inspiração e estímulo para essa discussão no Brasil Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 179 14012021 1707 Luciana Maria de Aragão Ballestrin 180 constituir a disciplina das RI em termos reais ou ideais afinandoa com o dis curso científico pretensamente imbuído de objetividade e da neutralidade Sabese porém que a história da institucionalização do conhecimento científico ocidental apartado em um campo próprio de racionalidade privi legiada com disciplinas e subdisciplinas departamentos e institutos estru turam a dinâmica global da geopolítica do conhecimento e da dependência acadêmica Particularmente nas Humanidades a vontade de saber sempre envolve uma vontade de poder definitivo diagnóstico foucaultiano e quan do se trata de saber a respeito do Outro essa mesma vontade esteve em alguns casos a serviço direto ou indireto da empresa colonial SAID 2007 CONNELL 2007 Ainda a própria ciência foi capaz de estabelecer relações coloniais e imperiais próprias no interior do seu desenvolvimento ainda que associadas a processos correlatos maiores colonialismo intelectual imperia lismo acadêmico e colonialidade do saber LANDER 2000 ALATAS 2003 O entendimento de que nenhuma construção de discursos e práticas cien tíficas é isenta de ideologias interesses políticos eou econômicos conflitos e disputas por poder não escapa às RI Mesmo séculos antes de sua transfor mação em disciplina o conhecimento produzido sobre relações internacio nais é particularmente associado à ação política concreta dos governos e à tradição filosófica da modernidade europeia Assim as RI compartilham com a Ciência Política o interesse pelo poder pela política e pelo Estado diferen ciando seu olhar sobre o comportamento estatal para fora de suas próprias fronteiras territoriais É justamente por essa aproximação que a história da institucionalização de ambas disciplinas é entrelaçada como no caso dos Estados Unidos Alemanha e em alguma medida do Brasil HERZ 2002 e que a prática a teoria e a pesquisa em RI são necessariamente epistemo logicamente comprometidas Nos últimos anos a expansão profissionalização e autonomia da RI ocorridas a partir da segunda metade do século XX projetaramse como um relevante objeto de investigação em si mesmas Ainda que esteja cada vez mais presente em diversos países constituindo diferentes trajetórias de de senvolvimento institucional a hegemonia anglófona na área a torna pouco representativa em termos globais TICKNER CEPEDA BERNAL 2013 A abertura disciplinar ocorrida nos anos 1980 para os debates chamados póspositivistas propiciou contudo as condições atuais para um profundo Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 180 14012021 1707 Para uma abordagem Feminista e Póscolonial das Relações Internacionais no Brasil 181 questionamento do provincianismo da RI em um contexto cada vez mais assimetricamente globalizado Afinal não parece razoável que justamente a disciplina que reivindica um caráter internacional distintivo tenha sua pro dução divulgação e literatura científicasacadêmicas concentradas e reveren ciadas em pouquíssimos países universidades e associações profissionais Nesse contexto a estruturação das RI no Brasil ganhou crescente atenção de pesquisadores e profissionais da área desde os anos 1990 Um acúmulo significativo de artigos pesquisas e trabalhos nacionais oferece um panora ma histórico e institucional bastante rico em termos quantitativos e qualita tivos No país a década de 1970 simbolizou o início da institucionalização da formação acadêmica da área com seu primeiro curso de graduação na Universidade de Brasília UnB sendo que somente a partir dos anos 1990 e principalmente dos anos 2000 houve uma proliferação de cursos de RI com uma adesão crescente das universidades públicas novas e semiperiféricas Encontramse em funcionamento no Brasil aproximadamente 143 cursos de RI entre instituições públicas e privadas registradas MEC 2016 O fato de a Minuta das Diretrizes Curriculares da Associação Brasileira de Relações Internacionais recomendarem o ensino que busque superar o eurocentris mo da historiografia tradicional ABRI 2016 p 3 é expressivo de uma vi são posicionada importante ainda que seja notável a realidade de um espaço mínimo ocupado pelas teorias póspositivistas nas grades curriculares e nas disciplinas teóricas obrigatórias em grande parte dos cursos Essas observações introdutórias provocam a reflexão de como estudamos lecionamos aprendemos e pesquisamos as RI no Brasil hoje A partir de quais teorias e epistemologias somos informados Quais são os níveis de inde pendência e autonomia acadêmica em relação aos grandes centros do Norte Global Qual a posição na geopolítica do conhecimento da RI que ocupam o Brasil em particular e a América Latina em geral Em que medida os novos cursos com seus também novos corpos docentes e discentes têm contribuí do para a democratização do acesso e uma visível abertura e oxigenação da disciplina em âmbito nacional De que forma isso impacta na formação de uma nova geração de internacionalistas no país As respostas a estes questionamentos escapam ao propósito deste capí tulo mas tangenciam o entendimento normativo do qual ele parte isto é da necessidade de desprovincializar descolonizar e desmasculinizar as RI Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 181 14012021 1707 Luciana Maria de Aragão Ballestrin 182 O caráter inter trans e multidisciplinar que as RI possuem dada a natureza dos seus objetos de estudo e investigação e logo intervenção é em especial convidativo a esta inflexão epistemológica que a torna mais comprometida com a diminuição das desigualdades entre países e mais representativa de sua diversidade cultural O presente capítulo assim traz algumas contribuições que o póscolo nialismo e o feminismo oferecem em termos epistemológicos e teóricos ex plorando seus encontros diálogos e colaborações ocorridos a partir dos anos 1980 Essa incursão permite vislumbrar e projetar três diferentes agendas de pesquisa em RI póscolonial feminista e feminista póscolonial Quando aplicado às RI o póscolonialismo e o feminismo já possuem um acúmulo significativo e crescente de trabalhos desde 1990 sendo comum uma abor dagem interrelacional Se as duas primeiras abordagens ainda são bastante incipientes no país a proposição de uma terceira agenda integrada sugere um tratamento necessariamente dialógico entre ambas O presente capítulo pretende oferecer assim algumas considerações contributivas para o movi mento de descolonizar o ensino e a pesquisa em RI no Brasil PÓSCOLONIALISMO OBSERVAÇÕES TEÓRICAS E CONCEITUAIS O termo póscolonialismo possui diferentes entendimentos temporais teó ricos e políticos tendo sido objeto de diversas disputas debates e críticas acadêmicas em torno de sua definição especialmente após os anos 1980 Foi neste período que a expressão começou a ser disseminada em importantes universidades anglófonas do Norte Global sobretudo nos Estados Unidos e Inglaterra As críticas geradas em torno do prefixo pós apontavam que o termo sugeria a superação do colonialismo somandose às outras correntes acadêmicas em voga embaladas pelo pós pósestruturalismo pósmarxis mo pósmodernismo Assim o póscolonialismo foi considerado por alguns críticos mais uma corrente da moda incapaz de problematizar o sistema ma terial e econômico do capitalismo e logo do colonialismo e do imperialismo projetando inclusive uma elite intelectual do Terceiro Mundo no Primeiro Mundo No contexto da globalização ascendente neoliberal e multicultu ral o póscolonialismo acabava por se tornar conivente com a narrativa da Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 182 14012021 1707 Para uma abordagem Feminista e Póscolonial das Relações Internacionais no Brasil 183 pósmodernidade despolitizando o debate e reforçando a celebração do cultu ralismo AHMAD 2002 DIRLIK 1994 MCCLINTOCK 1992 SHOAT 1992 Essa versão mais canônica do póscolonialismo foi inaugurada em 1978 com a obra definitiva de Edward Said Orientalismo cujo objetivo consistiu em demonstrar através da análise discursiva de textos literários e culturais euro peus a invenção do Oriente pelo Ocidente como um estereótipo estratégico para a manutenção do poder colonial e imperial Nessa versão mainstream do póscolonialismo o argumento póscolonial de fato foi fortemente influencia do pelos estudos pósestruturais pósmodernos desconstrutivistas culturais e subalternos indianos Gayatri Spivak Paul Gilroy Stuart Hall Homi Bhabha Dipesh Chakrabarty são alguns de seus autores mais representativos Muitos deles foram filhos e filhas da diáspora de diferentes dinâmicas coloniais do século XX condição esta que permitiu a inscrição de suas experiências e sub jetividades na produção de muitos textos e argumentos póscoloniais Não por acaso a preocupação com a identidade e a subjetividade perpassou todas as gerações do póscolonialismo o sujeito colonizado orientalizado e subalterno como o Outro do sujeito imperial europeu Sob a perspectiva póscolonial o colonialismo e a descolonização são fenômenos estruturantes tanto para a vida das colônias quanto das metrópoles De forma geral o póscolonialismo analisa os impactos do colonialismo nos âmbitos político cultural intelectual e psíquico observando as tensões entre subjetividade identidade poder representação e conhecimento Como pilares de sustentação da hegemonia da modernidade ocidental europeia o colonialismo desenvolveu e estimulou ideologias a seu serviço racismo eu rocentrismo e orientalismo impactaram violenta e mais dramaticamente a vida das sociedades e sujeitos colonizadas CÉSAIRE 1978 FANON 2010 Contudo a forte crítica pósestrutural ao essencialismo identitário não per mitiu que o póscolonialismo canônico reproduzisse binarismos antagônicos irreconciliáveis tal como em sua versão anticolonial afinal o encontro colo nial produziu resistência mas também convivência variada entre colonizado e colonizador A releitura da colonização e do colonialismo como parte de um processo global transnacional e transcultural instiga o estudo das continuidades e descontinuidades do poder colonial SHOAT 1992 Esta construção é fun damental para o entendimento das metamorfoses do colonialismo através da Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 183 14012021 1707 Luciana Maria de Aragão Ballestrin 184 reprodução da colonialidade QUIJANO 2000 Em uma chave histórica de enfrentamento o póscolonialismo pode ser definido de forma mais flexível como a contestação da dominação colonial e dos legados do colonialismo LOOMBA 2005 p 16 ou ainda como uma contrahistória do colonialis mo GILROY 2006 p 657 Ele tornou mais visível a história e o legado do imperialismo europeu em particular reescrevendo descentrada e diasporica mente as grandes narrativas imperiais do passado HALL 2009 No entanto ao privilegiar analiticamente representações culturais identi tárias psicanalíticas linguísticas discursivas e literárias o póscolonialismo encontrou nos autores marxistas alguns de seus maiores críticos Desde aí a relação entre póscolonialismo e marxismo tem sido uma relação de amor e ódio proporcionando até hoje acalorados debates2 Entre os anos 1950 e 1970 o contexto histórico da Guerra Fria estimulou diferentes movimentos pela descolonização diante o declínio da hegemonia do imperialismo europeu clássico O empenho direto das Nações Unidas ONU neste processo deuse no estabelecimento do Comitê Especial para a Descolonização em 1962 cuja missão era supervisionar a Declaração sobre a Concessão da Independência dos Países e Povos Coloniais de 19603 O Movimento dos Nãoalinhados composto pelos países do então cunhado Terceiro Mundo sinalizava uma tentativa de desvio uma terceira rota para a modernidade que não o capita lismo nem o comunismo DIRLIK 2007 O anticolonialismo revolucionário as lutas de libertação nacional e os movimentos de independência sobretudo na África e na Ásia forneceram o contexto histórico para autores póscoloniais precursores reunindo intelec tuais ativistas artistas políticos e lideranças que deixaram uma produção 2 Benita Parry Aijaz Ahmad Arif Dirlik e mais atualmente Vivek Chibber produziram contundentes críticas materialistas ao póscolonialismo 3 Com metas a cada década para eliminação do colonialismo o período entre 20112020 constitui seu terceiro decênio internacional Na atualidade ele reconhece a existência de 16 territórios não autônomos e coloniais Os territórios não autônomos são Polinésia Francesa Gibraltar Nova Caledônia Saara Ocidental Samoa Americana Anguilha Bermuda Ilhas Virgens Britânicas Ilhas Caimã Guam Montserrat Ilhas Picárnia Santa Helena Ilhas Turks e Caicos Ilhas Virgens Americanas Toquelau e Malvinas A grande maioria desses territórios são de caráter insular sendo que dez territórios estão sob a administração do Reino Unido e três dos Estados Unidos Recentemente o Comitê reiterou o pedido de independência de Porto Rico UNITED NATIONS 2014 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 184 14012021 1707 Para uma abordagem Feminista e Póscolonial das Relações Internacionais no Brasil 185 dispersa não necessariamente acadêmica institucionalizada e disciplinada Contudo em um sentido temporal estrito essa nova condição póscolonial não garantiu um processo completo de descolonização Em 1965 o panafri canista Kwame Nkrumah 1965 anunciava na introdução de seu livro Neo Colonialism Last Stage of Imperialism o neocolonialismo de hoje representa o final do imperialismo e talvez seu estágio mais perigoso4 Amílcar Cabral Che Guevara Frantz Fanon Ho Chi Minh Aimé Césaire e Albert Memmi fo ram alguns nomes desta geração fortemente marcada pelo marxismo revo lucionário o panafricanismo e o pensamento afrodiaspórico A partir dos anos 1990 a inclusão tardia da América Latina no debate pós colonial acentuou a crítica à modernidade realizando o giro epistemológico decolonial A inflexão decolonial do póscolonialismo construído em gran de parte por autores latinoamericanos que vivem dentro e fora dos Estados Unidos foi desenvolvida a partir da dissolução da versão latinoamericana do Grupo de Estudos Subalternos 19921998 e a formação do programa de investigação ModernidadeColonialidade em 1998 BALLESTRIN 2013 Influenciadas pelas contribuições latinoamericanas críticas ao colonialis mo ao mesmo tempo em que pretendia se afastar do cânone póscolonial a versão póscolonial latinoamericana construiu seus argumentos com as bases do pensamento latinoamericano filosofia da libertação teoria da de pendência teoria do sistemamundo grupos indiano e latinoamericano de estudos subalternos filosofia afrocaribenha e feminismo latinoamericano RESTREPO ROJAS 2010 Walter Mignolo Ramón Grosfoguel Nelson MaldonadoTorres Catherine Walsh Santiago CastroGoméz Arthuro Escobar são alguns expoentes desta renovação do póscolonialismo no contexto pós neoliberal da América Latina estimulada pelos processos de refundação de Estado e do novo constitucionalismo latinoamericano especialmente na Bolívia e no Equador Aníbal Quijano Enrique Dussel Immanuel Wallerstein e Boaventura de Sousa Santos são interlocutores fundamentais do projeto que por seu turno também é alvo de uma série de críticas Estes três enquadramentos fases ou versões do póscolonialismo toma do em um sentido temporal anticolonial póscolonial e decolonial sugerem a diversidade de contextos geográficos influências autores e preocupações 4 Todas as traduções deste capítulo são livres da autora Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 185 14012021 1707 Luciana Maria de Aragão Ballestrin 186 assim como a possibilidade de diferentes genealogias e associações junto ao termo desde os anos 1960 por exemplo o entendimento do póscolonialismo como marxismo terceiromundista ou como tricontinentalismo KRISHNA 2009 De certa forma o póscolonialismo dos anos 1980 reorganizou o debate terceiromundista apropriandose posteriormente dos conceitos de Sul e Sul Global Tanto a categoria Terceiro Mundo anos 1950 quanto a categoria Sul Global anos 1990 são classificações baseadas em uma concepção muito particular da ideia de desenvolvimento ESCOBAR 2007 hierarquização operante da colonialidade do poder Para Nandy 2015 p 90 O conceito de Terceiro Mundo não é uma categoria cultural é uma categoria política e econômica nascida da pobreza exploração indignidade e falta de autoestima O conceito está inextrincavelmente ligado aos esforços de um grande número de pessoas tentando sobreviver por gerações a situações quase extremas Uma utopia terceiromundista deve reconhecer esta realidade básica Como resistência o conceito de Terceiro Mundo também foi significado como solidariedade entre os povos que compartilhavam o passado e o presen te colonial à época Mas as identidades que essa categoria mobilizou para a formação de diferentes movimentos ainda estavam alocadas principalmente no âmbito territorial e geopolítico país nação sociedade etc O feminismo terceiromundista por sua vez pode ser entendido como um dos resultados visíveis dos encontros e desencontros entre póscolonialismo e feminismo nos anos 1980 A vida das mulheres deve ser classificada e condicionada de acordo com seu pertencimento em um Primeiro Segundo e Terceiro Mundo BULBECK 1998 Para o feminismo póscolonial sim Em outras palavras essa fictícia divisão geopolítica impactou na teorização feminista a partir dos anos 1980 em uma direção própria e diferente do feminismo marxista radical e liberal De que maneira o póscolonialismo criou estimulou ou reforçou as hierar quias desigualdades e violências de gênero A necessidade de um tratamento interseccional entre gênero etnia classe e nacionalidade foi assim uma con tribuição fundamental do cruzamento das agendas póscolonial e feminista Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 186 14012021 1707 Para uma abordagem Feminista e Póscolonial das Relações Internacionais no Brasil 187 para a análise dos diferentes e complexos níveis de subalternidade e subal ternização nas e das sociedades póscoloniais PÓSCOLONIALISMO E FEMINISMO INTERSECÇÕES A década de 1980 promoveu o encontro dos estudos póscoloniais e feminis tas no contexto da nova divisão entre o Norte e o Sul DIRLIK 2007 Ainda que seja inadequado realizar uma separação rígida entre as fronteiras teóricas acadêmicas das ativistaspolíticas já que uma das características peculiares do movimento feminista em relação aos outros movimentos sociais reside na sua capacidade de teorizar criticamente sobre si próprio PINTO 2010 destacase para o momento estes dois eixos principais de articulação como frutos produtivos deste encontro Apesar de ambas correntes de pensamento possuírem uma trajetória au tônoma e uma vocação transdisciplinar as críticas feminista e póscolonial compartilham de características e preocupações constitutivas dos movimentos históricos que as estruturam Ania Loomba 2005 p 39 observou que tanto os movimentos feministas quanto os anticoloniais precisaram questionar as ideias dominantes de história e representação uma vez que a cultura é vista como um campo de conflito entre opressores e oprimidos no qual a lingua gem pode ser uma ferramenta de dominação Para ambos a problematização do sujeito ocidental homem e branco nos discursos imperialistas europeus é um ponto de partida fundamental Ainda intelectuais e ativistas feministas e anticoloniais possuem a perspectiva da transformação social LOOMBA 2005 p 39 No plano analítico ambas epistemologias abalaram os pilares das Humanidades e seu próprio pensamento crítico Os campos da ciência li teratura e crítica literária foram terrenos iniciais férteis paras as análises fe ministas e póscoloniais preocupadas com a invisibilidade o apagamento e a subalternidade dos sujeitos e sujeitas produzidos pelo patriarcado e pelo colonialismo Não por acaso é a mulher colonizada o sujeito subalterno por excelência que marcou o paradigmático encontro entre feminismo e póscolo nialismo no influente texto de Gayatri Spivak a ser comentado mais adiante Em um artigo muito elucidativo intitulado Feminismo eno Póscolonialismo Deepika Bahri 2013 p 660 afirma que as contribuições feministas presentes Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 187 14012021 1707 Luciana Maria de Aragão Ballestrin 188 desde o início do póscolonialismo canônico o ajudaram a revisar questionar e complementar suas próprias preocupações Para ela as questões de gênero são inseparáveis da crítica póscolonial Com efeito o póscolonialismo anti colonial de Frantz Fanon e a análise do discurso colonial inaugurada por Said em Orientalismo realizaram reflexões embrionárias sobre a mulher na condi ção colonial A reflexão sobre a mulher no póscolonialismo foi assim intro duzida desde uma perspectiva não feminista Para o crítico literário palestino O próprio Orientalismo além do mais era uma província exclusivamente masculina como tantas associações profissionais durante o período moderno ele via a si e a seu tema com vendas sexistas sobre os olhos Isso é evidente de maneira particular nos escritos de viajantes e romancistas as mulheres são em geral criaturas de uma fantasia de poder masculina Manifestam uma sexualidade ilimitada são mais ou menos estúpidas e acima de tudo insaciáveis SAID 2007 p 281282 O psicanalista martinicano Frantz Fanon por sua vez havia dedicado dois capítulos sobre sexualidade em torno da relação entre a mulher de cor e o branco e o homem de cor e a branca em Peles Negras Máscaras Brancas 1952 Ainda que o autor tenha sido fundamental para vincular definitiva mente racismo e colonialismo introduzindo questões de gênero e raça o su jeito colonizado de Fanon foi sobretudo o homem negro Para Loomba 2005 p 137 a subjetividade feminina não foi adequadamente desenvolvida nas meditações fanonianas tanto para Freud quanto para Fanon a mulher ainda representava o mistério do continente negro Para a teoria feminista a problematização sobre corpo sexualidade e gênero são fundamentais Em diálogo com o póscolonialismo esta problematização é em geral inserida nos contextos do encontro e da violência colonial É como se o poder colonial fosse somado ao poder patriarcal a violência sexual em particular aparece como fundamental para entendermos a violência colonial em geral O corpo feminino pode ser pensado como o primeiro território a ser conquistado e ocupado pelo colonizador homem branco cristão europeu e heterossexual Nas mais diversas situações de conflitualidades violentas a vulnerabilidade do corpo feminino é acentuada desde as conquistas colo niais às guerras civis e interestatais às ocupações e intervenções militares Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 188 14012021 1707 Para uma abordagem Feminista e Póscolonial das Relações Internacionais no Brasil 189 Imperialismo colonialismo e guerras foram em geral empreitadas masculinas e masculinizadas Nesses contextos a violação do corpo feminino por homens colonizadores militarizados ou armados do lado amigo ao inimigo se re pete histórica e violentamente Quando o corpo e o sexo são unidos nas representações colonialistas orientalistas e etnocêntricas de uma forma geral o gênero feminino pode ser fantasiado como a cultura europeia LOOMBA 2005 e como os nomes continentais colonizados pela Europa África Ásia e América MIGNOLO 2005 O imaginário erótico e sensual do colonialismo envolvendo sedução e desejo na dimensão sexual da empresa colonial pela posse e pela conquista criou as representações da ameríndia despudorada da oriental exótica da africana fogosa Contudo nem todas as mulheres não europeias foram retra tadas como desejáveis e passivas em algum lugar do mundo no imaginário desbravador colonial as Amazonas são o exemplo de brutalidade femini lidade desviante e sexualidade insaciável LOOMBA 2005 p 131 Ainda a relação entre nacionalismo e gênero é bastante discutida por pesquisadoras feministas a mulher como símbolo da nação e da pátria BAHRI 2013 p 661 O machismo sabese coexistiu com muitos movimentos nacionalistas LOOMBA 2005 p 139 De acordo com Bahri 2013 p 663 o feminismo póscolonial é um cam po discursivo dinâmico capaz de questionar as premissas do póscolonialis mo e do feminismo sendo caracterizado pelo debate diálogo e diversidade Analiticamente a observação sobre o conluio entre o patriarcado e o colo nialismo BAHRI 2013 p 663 e a ofensiva combinada contra o mito agres sivo tanto da masculinidade nacionalista como imperial GANDHI 2008 p 98 são caminhos interessantes para pensar o colonialismo e a guerra como masculinidades em disputa No aspecto ativista e acadêmico o póscolonialismo foi fundamental para estimular uma crítica interna no interior do próprio movimento feminista A configuração de um profundo antagonismo no interior do movimento feminis ta vinha já sendo construído paralelamente à sua própria internacionalização no decorrer dos anos 1970 expressandose com mais evidência na década de 1980 O processo de transnacionalização do feminismo observado nas três últimas décadas e seu estímulo por vários fóruns internacionais oficiais e informais e pela estrutura de oportunidades oferecidas pela globalização Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 189 14012021 1707 Luciana Maria de Aragão Ballestrin 190 projetou desafios em relação à articulação de uma desejada global sisterhood entre as mulheres MENDOZA 2002 O desafio póscolonial foi posto as sim na prática no interior do movimento feminista A crítica ao feminismo ocidental e à construção de uma mulher tercei romundista foi realizada em 1984 por Chandra Mohanty 2008 Em seu influente e impactante ensaio Under western eyes um dos precursores do feminismo póscolonial ela introduz que Qualquer discussão sobre a construção intelectual e política dos feminismos de terceiro mundo deve tratar dois projetos simultâneos a crítica interna dos feminismos hegemônicos do Ocidente e a formulação de interesses e estratégias feministas baseadas na autonomia geografia história e cultura O primeiro é um projeto de desconstrução e desmantelamento o segundo de construção e criação Estes projetos o primeiro funcionando de forma negativa e o segundo de forma positiva parecem contraditórios mas a menos que seus trabalhos respectivos sejam abordados de forma simultânea os feminismos de terceiro mundo correm o risco de se ver marginalizados e guetizados tanto nas tendências principais de direita e esquerda do discurso feminista como no discurso feminista do ocidente MOHANTY 2008 p 112 O feminismo terceiromundista ou póscolonial questionou o caráter co lonial do discurso feminista ocidental ao criar representações estereotipadas da mulher do terceiromundo muito distantes das ideias de agência libe ração emancipação e autonomia feminina Mohanty chamou atenção para a colonização discursiva acadêmica e de produção intelectual de mulheres do Primeiro Mundo sobre mulheres de Terceiro Mundo Além de essas próprias categorias serem coloniais a transformação das mulheres de Terceiro Mundo em objeto de pesquisa interesse e intervenção sugeriu certo imperialismo do feminismo ocidental GANDHI 1998 Acrescentou ainda que tais estratégias analíticas também podem ser observadas nas acadêmicas de classe média urbana na África ou Ásia que produzem estudos acadêmicos sobre suas irmãs rurais ou sobre a classe trabalhadora em que assumem suas culturas de classe média como a norma e codificam as histórias e culturas da classe trabalhadora como o Outro MOHANTY 2008 p 113 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 190 14012021 1707 Para uma abordagem Feminista e Póscolonial das Relações Internacionais no Brasil 191 Assumindo que as categorias de Primeiro e de Terceiro Mundos são problemáticas a autora expôs seu desenho e recorte de pesquisa que permitiu a aferição da representação de uma mulher média de Terceiro Mundo a qual geralmente é retratada como pobre ignorante limitada pela tradição e pela família em contraparte às mulheres emancipadas modernas e conscientes de seu corpo e sexualidade Essas deduções só são possíveis mediante à aceita ção de certas premissas etnocêntricas e homogeneizadoras Sua metodologia permitiu concluir que textos analisados com diferentes graus de sensibilida de e complexidade apontam para representações similares das mulheres do Terceiro Mundo como vítimas da violência masculina do processo colonial do sistema familiar árabe do desenvolvimento e do código islâmico Mohanty procura chamar atenção para certo paternalismo das feministas ocidentais de diferentes matizes liberais radicais marxistas em relação às suas outras mais abaixo supostamente em uma escala de opressão masculina Esta discussão considerada por suas críticas geralmente feministas oci dentais problemas internos ao próprio movimento feminista foi uma tônica fundamental do feminismo internacional dos anos 1980 Neste sentido lem brase da contribuição igualmente influente e impactante de Spivak quando da publicação em 1988 do texto Pode o subalterno falar 2010 Spivak ao reconhecer um importante limite do projeto dos estudos subal ternos indianos utilizou de sua particular heterodoxia teórica marxismo feminismo pósestruturalismo e desconstrutivismo para investigar as reais possiblidades de autorrepresentação e voz do sujeito subalterno A maior ex pressão da noção de violência epistêmica imperial negligenciada por Michel Foucault teria sido a tentativa de construção do sujeito colonial justamente como Outro SPIVAK 2010 p 60 O papel dos intelectuais na construção dos sujeitos apesar das boas intenções limitou inclusive a noção de sujeito subalterno insistindo que o sujeito subalterno e colonizado é irremediavel mente heterogêneo SPIVAK 2010 p 73 Spivak chegou a uma conclusão polêmica por seu determinismo o subalterno afinal não pode falar Ainda que o descentramento do Sujeito da Europa e do Ocidente pelo póscolonia lismo tenha possibilitado o pensamento de outros sujeitos que não europeus brancos ocidentais homens heterossexuais e proletários a ideia de sujeito subalterno para a autora permanecia como uma ideia do discurso dominante Ela elaborou de modo crítico a cumplicidade dos intelectuais em transformar Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 191 14012021 1707 Luciana Maria de Aragão Ballestrin 192 o Outro subalterno como mais um objeto de conhecimento pelo qual se pre tende interceder e falar e que ao final das contas não possui a oportunidade de romper com seu próprio silenciamento Avançando na sua proposta que traz uma noção de medir silêncios a autora coloca provocativamente Se no contexto da produção colonial o su jeito subalterno não tem história e não pode falar o sujeito subalterno femi nino está mais profundamente na obscuridade SPIVAK 2010 p 85 Para Spivak a condição de ser mulher é a mais representativa do sujeito subalter no especialmente no contexto terceiromundista O feminismo póscolonial explorou de maneira original as diferentes formas de violência contra a mulher Ele foi fundamental na construção da agenda internacional no âmbito das Nações Unidas que elevou a violência contra a mulher ao patamar de um problema mundial comum às mulheres de Norte a Sul KECK SIKKINK 1998 Não por acaso a emergência da pers pectiva feminista e em certa medida póscolonial nas RI foi responsável por colocar os diferentes tipos de violência contra a mulher na ordem do dia PÓSCOLONIALISMO E FEMINISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Sob a ótica disciplinar das RI desde o final da década de 1980 os estudos internacionais têm recebido um conjunto de contribuições feministas e pós coloniais no âmbito dos debates póspositivistas ainda que não de manei ra necessariamente relacionadas Pelo contrário ambas perspectivas abriram agendas de investigação paralelas com pontos de contatos a priori como se viu na seção anterior As abordagens feministas e póscoloniais nas RI recolocam e redimen sionam problemas fundamentais para a compreensão das desigualdades glo bais tanto em um nível micro quanto macroestrutural sobretudo a partir da década de 1990 É importante notar que as intervenções internacionalistas feministas eou póscoloniais também possuem uma forte inclinação transdis ciplinar ainda que o objetivo de aplicar ambas correntes à disciplina das RI seja francamente anunciado por suas autoras e autores O póscolonialismo e o feminismo lembrase possuem uma longa história e trajetória antes mes mo do encontro com as Relações Internacionais como disciplina acadêmica Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 192 14012021 1707 Para uma abordagem Feminista e Póscolonial das Relações Internacionais no Brasil 193 Contudo o caráter transnacional do movimento anticolonial e feminista desde seus primórdios garante o compartilhamento da característica internacional com os objetos de estudo típicos das RI Se por um lado o estudo do interna cional e do transnacional tem escapado ao seu monopólio disciplinar por outro seu universo empírico tem sido constantemente ampliado No contexto intensificado de práticas dinâmicas e interações intertrans nacionais as intervenções feministas eou póscoloniais identificam novos problemas questões e objetos apontam aqueles encobridos esquecidos ou silenciados questionam as RI teórica metodológica e epistemologicamente A masculinidade da empresa colonial a reprodução da guerra e o discipli namento militar masculino passaram a ser problematizados a partir dos as pectos de gênero os diferentes tipos de violência aos quais as mulheres são submetidas quando de ocupações intervenções militares e novas guerras co meçaram a ser tratadas pela comunidade e agenda internacional as precárias formas de trabalho estimuladas pela globalização das migrações forçadas as rotas globais de turismo sexual e a maior vulnerabilidade de exploração das mulheres também ganharam atenção inédita Muitas dessas questões apesar de algumas não serem propriamente no vas começaram a se tornar objeto de preocupação recentemente sobretudo a partir da internacionalização do movimento feminista nas instituições in ternacionais e na academia A própria participação e presença das mulheres na vida da política internacional também se tornou um importante objeto de investigação e intervenção Assim de uma maneira geral o encontro inter nacional do póscolonialismo e do feminismo permitiu a ascensão de uma agenda de pesquisa multidisciplinar sobre migrações trabalho violência sexualidade representação política e identidades no contexto das diásporas globais contemporâneas O livro paradigmático de Cynthia Enloe Bananas beaches publicado originalmente em 1993 constitui a primeira grande contribuição feminista para a área particular das RI Ela convidou a disciplina a pensar sobre onde estão e quem são as mulheres que movimentam a vida diária da política in ternacional Partindo da ideia básica de que o poder opera para além das fronteiras ENLOE 2014 p 9 Enloe realizou um exercício metodológico definitivo para a agenda de pesquisa feminista internacionalista contempo rânea ao elevar a nebulosidade das fronteiras do público e do privado para Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 193 14012021 1707 Luciana Maria de Aragão Ballestrin 194 a arena internacional a autora deslocou e ampliou as possibilidades da pre sença e da ausência das mulheres nas relações internacionais Se o privado é político então ele também é internacional das esposas dos diplomatas às trabalhadoras do sexo as hierarquias de gênero e sua resistência atravessam as relações de poder nos mais diferentes espaços públicos e privados no casamento em uma discoteca escritório indústria A agenda feminista em RI foi reforçada com a publicação do artigoresposta de Cynthia Weber em 1994 ao texto de Robert Keohane publicado em 1989 ambos no periódico internacional Millennium No artigo Keohane parte da classificação de tipos de feminismo proposta por Sandra Harding e utilizada por Christine Sylvester justificando sua simpatia pelo feminist standpoint pelo seu potencial analítico KEOHANE 1989 Esse movimento contudo teria distorcido o objetivo de Sylvester ao trazer diferentes perspectivas feminis tas para o debate uma vez que ele estimulou a escolha de uma única opção WEBER 1994 Para a autora apesar das boas intenções Keohane ao utilizar sua autoridade disciplinar reconhecida acabou por legitimar somente as boas meninas good girls do ponto de vista feminista feminism standpoint propon dolhe uma aliança junto ao institucionalismo neoliberal para complementar as críticas ao neorrealismo KEOHANE 1989 WEBER 1994 Desde aí tem sido muito significativo o acúmulo e o volume de trabalhos que abordam a questão do gênero nas RIs Nos manuais contemporâneos da área a corrente feminista já possui um espaço garantido no terceiro deba te e em alguma medida também a póscolonial Como teorias normativas ambas assumem a impossibilidade de neutralidade epistemológica e teóri ca distanciada e imparcial das análises que pretendem efetuar Possuem portanto influências claras do pósestruturalismo e do desconstrutivismo também dialogam com a teoria social e política somandose ao núcleo da teoria crítica A normatividade é um rótulo bastante utilizando pelas teorias que se pretendem exclusivamente analíticas e objetivas como a neorealis ta Este próprio discurso joga a favor da manutenção do status quo discipli nar e portanto político como bem observou Robert Cox em sua conhecida sentença teoria é sempre para alguém e para algum propósito COX apud BURTHCHILL et al 2005 p 21 Acrescentase que o recurso à noção das lentes tão difundido e aceito pela disciplina também acaba por esterilizar e neutralizar potenciais teóricos ao aludir que as teorias alternativas são uma Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 194 14012021 1707 Para uma abordagem Feminista e Póscolonial das Relações Internacionais no Brasil 195 questão de ângulo incapazes de antemão em alcançar o mainstream como a visão privilegiada A realização da incursão das RI no terreno feminista e póscolonial fez com que a disciplina entrasse no terreno pós das discussões sobre identida de representação e diferença que marcaram a década de 1980 nas Ciências Humanas e Sociais A noção de que o gênero e de uma perspectiva queer também o sexo BUTLER 2014 é algo culturalmente construído não é portanto uma contribuição original das feministas internacionalistas mas das feministas pósestruturalistas como um todo Mas essa percepção é par ticularmente fundamental para o questionamento realizado sobre as mascu linidades e o sistema internacional a guerra e o militarismo Ou seja de uma perspectiva feminista das RI também precisamos entender como as masculini dades são mobilizadas de forma a reproduzir comportamentos que reforçam o sistema da guerra e outras múltiplas formas de violência inclusive contra os próprios homens A violência ou a possibilidade constante de recurso a ela é um fenôme no central recorrente e estruturante do mundo das Relações Internacionais E ao privilegiar os homens como os grandes protagonistas da política e do sistema internacional a correlação entre violência e masculinidades seria as sim uma consequência lógica Parte da literatura feminista de RI aposta em exemplos empíricos para demonstrar afinidades entre mulheres e esforços pela paz Esta perspectiva no entanto é controversa uma vez que reforça o estereótipo feminino da mulher maternal cuidadora e sentimental Ainda que mulheres possam ser fundamentais para a construção de movimentos ou processos pacíficos a dicotomia essencialista que associa mulher e paz homem e guerra trata de maneira superficial as múltiplas possibilidades de masculinidades e feminilidades diante cenários conflituosos Como dito a ascensão do problema da violência sexual contra a mulher na agenda internacional constitui uma das grandes conquistas do movimen to feminista global nas últimas décadas A violação dos corpos femininos ocorre nos mais diversos tipos de cenários bélicos ou pacíficos públicos ou privados A construção da ideia do estupro como arma de guerra ao longo dos anos 1990 a revelação e visibilidade do problema das mulheres de conforto exploradas pelo exército imperial japonês nos anos 1930 ou ainda mais recen temente a indústria do turismo e exploração sexual na qual as mulheres são Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 195 14012021 1707 Luciana Maria de Aragão Ballestrin 196 traficadas como mercadorias são três exemplos da diversidade de situações nas quais a violência sexual é considerada um grave problema internacional de violação aos Direitos Humanos No contexto colonial masculino e militar a violência contra a mulher sob todas as suas formas simbólica física sexual invadiu as esferas priva das e públicas inclusive com a própria convivência do Estado conquistador colonizador e invasor Particularmente na situação da violência colonial as mulheres foram expostas como vítimas a situações não vividas pelo homem colonizado Ainda mais particularmente para a mulher negra o colonialismo e o imperialismo se utilizaram do racismo na perpetração das violências in clusive no âmbito do trabalho forçado e escravo As feministas negras lem bram que este tipo de situação afetou diretamente a própria noção privada e doméstica da família negra na qual a mulher possui um protagonismo tal ao ponto de relativizar sobre ela a aplicação da estrutura de dominação patriar cal Não que desejemos negar que a família possa ser uma fonte de opressão para nós senão que necessitamos reconhecer que durante a escravidão nos períodos coloniais a família negra tem sido terreno de resistência política e cultural contra o racismo CARBY 2012 p 213 É possível afirmar que muitas preocupações feministas que adentraram no campo das RI dos anos 1990 em diante exigem um tratamento contíguo ao póscolonialismo sobretudo quando da necessariedade de observar a interseccionalidade entre raça gênero e classe É precisamente essa a contri buição distintiva do póscolonialismo em relação às outras tradições críticas da disciplina CHOWDHRY NAIR 2002 As opressões de gênero fraturam em diferentes níveis as desigualdades póscoloniais e as identidades que dela resultam Evidentemente se você é pobre negra e mulher está envolvida de três ma neiras Se no entanto essa formulação é deslocada do contexto do Primeiro Mundo para o contexto póscolonial que não é idêntico ao Terceiro Mundo a condição de ser negra ou de cor perde o significado persuasivo SPIVAK 2010 p 110 A conivência entre colonialismo patriarcado racismo e eurocentrismo inclinam muitas autoras feministas internacionalistas a dialogarem com Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 196 14012021 1707 Para uma abordagem Feminista e Póscolonial das Relações Internacionais no Brasil 197 autoras feministas póscoloniais As contribuições de Chowdhry e Nair 2002 Petmann 1996 Enloe 2004 Riley e Inayatullah 2006 e Riley e demais autores 2008 evidenciam que o póscolonialismo e o feminismo são necessariamente complementares para a consolidação de uma agenda em RI preocupada com a contestação analítica das hierarquias e das relações de poder globais Nesse sentido a dimensão global do fenômeno colonial e imperial o protagonismo de agentes sociais que não podem ser reduzidos ao Estadonação e as metamorfoses do colonialismo e do imperialismo no contexto internacional desde a década de 1960 são notas importantes para pensarmos os diferentes impactos contemporâneos de ambos processos na vida das mulheres Sob a lógica do neoliberalismo triunfante que desregula e transnacionaliza a exploração econômica a divisão sexual internacional e informal do trabalho é acentuada BULBECK 1998 As desigualdades póscoloniais ou seja aquelas produzidas pelo colonia lismo e continuadas após seu término formal envolvem portanto um entre laçamento complexo de escalas atores níveis campos processos agências intenções e resistências Ainda que nem todas as desigualdades possam ser explicadas pelo colonialismo é impossível pensálo sem a produção de desi gualdades econômicas políticas culturais O colonialismo assim estabele ceu ou reforçou desigualdades globais entre Estados povos e pessoas Assim se tomarmos o colonialismo e o imperialismo como processos estruturantes da modernidade capitalista desde o século XVI como estabelecer quando e o que é póscolonial À esta pergunta já exaustivamente debatida por vários autores pósco loniais foi oferecida uma resposta por Sanjay Seth 2013 o pós na teoria póscolonial não significa o período ou era depois que o colonialismo chegou ao fim mas ao contrário significa o período histórico inteiro depois do início do colonialismo SETH 2013 p 1 O termo reivindica que a conquista o colonialismo e o império não são uma nota de rodapé ou episódio em uma história maior como aquela do capitalismo modernidade ou expansão da sociedade internacional mas são ao contrário uma parte central e constitu tiva dessa história SETH 2013 p 20 Chama a atenção para o período temporal estendido proposto por Seth em relação ao póscolonialismo Ainda que não seja uma definição compartilhada pelos autores póscoloniais afinal o póscolonialismo seria toda a história do Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 197 14012021 1707 Luciana Maria de Aragão Ballestrin 198 mundo moderno o autor procura evidenciar os impactos que o encontro e a violência coloniais geraram para a própria formação do sistema internacio nal e para a atualidade de seus aproximadamente 200 países A intervenção póscolonial nas RI parte em primeiro lugar de uma profunda desconfiança e questionamento da narrativa westfaliana da formação do sistema interna cional que obscureceu o colonialismo o imperialismo e a escravidão que o constituiu HOBSON 2013 O eurocentrismo e o ocidentalismo do sistema internacional reflete in clusive na teorização da disciplina e na história que a disciplina conta sobre si O póscolonialismo em RI assim como em outras áreas convida a uma análise mais arguta da geopolítica do conhecimento que a própria área re produz Diferentes autores sustentam a existência de uma divisão global do trabalho que reproduz a lógica da geopolítica colonial e neoliberal é do Norte global onde a criação de teorias com pretensões universais e explicativas são exportadas ainda que muitas vezes alimentadas pelas dramáticas experiên cias do Sul O póscolonialismo assim como as Teorias e Epistemologias do Sul rejeita a ideia de que a produção teórica válida e aceitável no mundo é somente aquela realizada e autorizada pelas metrópoles ao mesmo tempo orientamse pela democratização radical da construção coletiva e realmente global das Ciências Sociais CONNELL 2015 A entrada das RI nesta discussão é particularmente provocante por ser justamente ela a disciplina que teria a responsabilidade de amostras mais representativas do que vem a ser o global Um pouco tardiamente os au tores póscoloniais das RI descobriram que grande parte dos seus edifícios teóricos e empíricos eram representativos do Ocidente Compreendendo o lugar da Europa e dos Estados Unidos agora como paroquialismo todo um mundo não ocidental abriuse aos pés da disciplina sendo neste sentido que a necessidade e a urgência de descolonizála aparece com mais frequência Para promover uma agenda de pesquisa póscolonial e feminista no Brasil qual tipo de descolonização seria necessário Não deixa de ser paradoxal que mais uma vez os principais autores do póscolonialismo precisem lançar seus livros por editoras acadêmicas de prestígio lecionar nas principais universida des do Norte publicar nos principais periódicos internacionais da área expor suas ideais em inglês para autorizar o debate póscolonial nas RI Contudo tal dinâmica longe de ser exclusiva da área é reproduzida em toda a história Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 198 14012021 1707 Para uma abordagem Feminista e Póscolonial das Relações Internacionais no Brasil 199 do póscolonialismo desde os anos 1980 Diálogos póscoloniais sulsul em geral foram e são intermediados e promovidos pelo Norte No Brasil ainda são poucos os autores e autoras empenhados nas dis cussões feministas e póscoloniais no âmbito disciplinar das RI A criação da Área Temática de Teorias das Relações Internacionais no âmbito da ABRI Associação Brasileira de Relações Internacionais a abertura de revistas acadêmicas influentes como a Contexto Internacional e a criação da Rede Colonialidades e Política Internacional em 2013 na PUCRio servem de es tímulo para o fortalecimento desta agenda de investigação CONSIDERAÇÕES FINAIS PARA UMA ABORDAGEM FEMINISTA E PÓSCOLONIAL DAS RI NO BRASIL Um retrato histórico e descritivo do desenvolvimento da área das RI no Brasil indica que sua agenda de pesquisa em RI é parcialmente colonizada e depen dente dos grandes centros de produção do conhecimento do Norte Global Essa parcialidade devese sobretudo à existência de uma trajetória prévia a respeito do estudo e da pesquisa em RI no país refletindo ao mesmo tempo reprodução e autonomia quanto à originalidade das agendas de pesquisa Ainda que seja orientada e informada pelos debates interparadigmáticos hegemônicos da área a disciplina no Brasil tem comportado brechas e esti mulado aberturas A própria diáspora nacional contemporânea dos cursos de graduação e pósgraduação tem tornado a disciplina mais plural e hete rogênea em relação à lógica centrada no eixo SudesteBrasília Observase contudo que a utilização das teorias contrahegemônicas no Brasil incluindo a própria teoria crítica neomarxista ainda é francamente tímida A expansão brasileira da área coincide com a consolidação do debate póspositivista em âmbito internacional estadunidense e angloeuropeu Não é preciso portanto que para descolonizar as RI no Brasil se atravesse algum tipo de etapa ou se contente com os BRICS como representantes do Sul Global ou ainda se utilize o póscolonialismo canônico dos anos 1980 como uma grande novidade a ser explorada Para aqueles que entendem ser preciso descolonizar as RI no Brasil em primeiro lugar devese de reconhecer as características que lhe permitem atribuir o estatuto de ciência colonizada Pelo o quê Por quem Por quê Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 199 14012021 1707 Luciana Maria de Aragão Ballestrin 200 Estes questionamentos incitam a um exercício autorreflexivo da área so bre um leque ampliado em termos de ensino aprendizagem pesquisa exten são mas sobretudo sobre os horizontes normativos da disciplina situada no Brasil e na América Latina O desinteresse sobre justiça desigualdade sub representação não é algo raro dentre os corpos docente e discente Da mes ma forma o afastamento naturalizado da aplicação da teoria democrática na prática da política internacional A subrepresentação política das mulheres seja na vida interna dos Estados ou na sua diplomacia por exemplo é uma discussão praticamente ausente das discussões nacionais A construção de uma agenda feminista e póscolonial de pesquisa em RI no Brasil não está livre do enfrentamento de resistências principalmente de vido à sobrerrepresentação masculina de docentes pesquisadores e autores É possível ainda que estas perspectivas sejam tratadas como soft ou de nula importância para a formação de futuros profissionais Ainda assim a insistên cia nessas abordagens revela a possibilidade de tratamento de novos temas questões e objetos não alheios e caros às realidades póscoloniais brasileira e latinoamericana A inserção do debate póscolonial na América Latina e a inserção da América Latina no debate póscolonial ocorreram especialmente a partir dos anos 1990 sendo a segunda uma consequência da primeira Esta diferencia ção é necessária quando se observa que a discussão acadêmica do pósco lonialismo canônico não contemplou a América Latina Foi justamente esta percepção que estimulou a incorporação do continente em uma releitura muito própria do póscolonialismo cuja devolução e absorção pelo debate global têm ocorrido de maneira paulatina O subcontinente tem sido prota gonista na renovação do interesse teórico político e normativo sobre a ideia de descolonização atualizandoa e vinculandoa com um sentido de justiça mais amplo no século XXI Viuse que nem todos os autores póscoloniais compartem de perspecti vas feministas e viceversa Por outro lado elas são mais complementares do que excludentes entre si sendo capazes de agregar e somar esforços teóricos para análise de determinados fenômenos processos e objetos Os desafios de uma abordagem feminista e póscolonial das RI no Brasil passam pela cons trução autônoma e original de uma agenda de investigação atenta ao seu pa pel e lugar assim como o da própria da América Latina no sistemamundo Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 200 14012021 1707 Para uma abordagem Feminista e Póscolonial das Relações Internacionais no Brasil 201 moderno colonial Lembrase de Mariátegui 1928 p 163 para quem el descubrimiento de América es el principio de la modernidad la más grande y fructuosa de las cruzadas Todo el pensamiento de la modernidad está in fluido por este acontecimiento E se adotarmos a definição de póscolonia lismo proposta por Seth estaremos em um lugar privilegiado do mundo para reescrever uma contrahistória do sistema internacional buscando construir um senso de justiça situado entre o póscolonialismo e o cosmopolitismo no que há de melhor em sua tradição REFERÊNCIAS ABRI Associação Brasileira de Relações Internacionais Minuta das Diretrizes Curriculares Nacionais Belo Horizonte MG 2016 Disponível em httpwwwabriorgbrinformativoviewTIPO13ID INFORMATIVO139 Acesso em 20 fev 2016 AHMAD A Linhagens do Presente São Paulo Boitempo 2002 ALATAS S F Academic dependency and the global division of labour in the social sciences Current Sociology United Kingdom v 51 n 6 2003 ASHCROFT B GRIFFITHS G TIFFIN H The empire writes back theory and practice in postcolonial literature New York Routledge 2002 BAHRI D Feminismo eno póscolonialismo Estudos Feministas Florianópolis ano 21 v 2 n 336 p 659688 2013 BALLESTRIN L América Latina e o giro decolonial Revista Brasileira de Ciência Política Brasília n 11 p 89117 2013 BULBECK C Reorienting western feminisms womens diversity in a postcolonial world Cambridge Cambridge University Press 1998 BURCHILL S LINKLATER A DEVETAK R DONNELLY J PATERSON M REUSSMIT C TRUE J Theories of International Relations Palgrave Macmillan United Kingdom 2005 BUTLER J Problemas de gênero feminismo e subversão 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apresentada no workshop doutoral da International Political Sociology realizado na PUCRio no Rio de Janeiro nos dias 2 e 3 de julho de 2015 agradeço a João Urt pelos comentários na ocasião Este texto é um extrato traduzido e adaptado da minha tese de doutorado LAGE 2016 dedicada ao estudo dos usos do conceito de formação em algumas interpretações do Brasil do século XX Dedico o texto aos moradores da Vila Autódromo Rio de Janeiro um dos lugares em que os nexos globais da política contemporânea mostravam suas implicações mais perversas no momento em que escrevi essa versão do texto também foi na Vila onde conheci algumas das modalidades de resistência também globalmente articuladas mais fascinantes até hoje Pósescrito hoje 03 abr 2020 mais de quatro anos depois de ter finalizado a versão que ora vem a público eu mudaria muita coisa nesse texto mas isso talvez me levasse a transformálo substancialmente o que optei por não fazer 2 Ver por exemplo Silviano Santiago v 3 2000 Gildo Marçal Brandão 2007 Bernardo Ricupero 2008b André Botelho e Lilia Moritz Schwarcz 2009 Gabriela Nunes Ferreira e André Botelho 2010 Fernando Henrique Cardoso 2013 Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco 2014 Outros esforços de interpretação do Brasil se mostram mais centrados em certas temáticas amplas Nessa linha ver por exemplo Lourenço Dantas Mota 2v 1999 Carlos Guilherme Mota 2v 1999 João Cezar de Castro Rocha 2003 e a coletânea His tória do Brasil Nação 18082010 organizada por Lilia Moritz Schwarcz COSTA E SILVA 2011 CARVALHO 2012 GOMES 2013 REIS 2014 e SCHWARCZ 2012 Não discu Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 205 14012021 1707 Victor Coutinho Lage 206 postas diferentes categorizações internas ao mesmo baseadas por exemplo em matrizes SANTOS 1978 tendências IANNI 2000 teses IANNI 2004 linhagens BRANDÃO 2005 ou abordagens TAVOLARO 2005 2008 As múltiplas áreas do conhecimento às quais o campo se conecta e a variedade de temáticas por ele avançadas ou com potencial para tanto ligadas a classe raça região gênero entre outras são traços constantemente destaca dos como uma vantagem em meio ao labirinto da especialização acadêmica contemporânea SCHWARCZ BOTELHO 2011 p 11 Um dos conceitos mais recorrentes nas interpretações do Brasil é o de formação Tanto na avaliação de como tem se dado o processo de moder nização no Brasil quanto na identificação das desigualdades e disparidades internas no país a comparação entre o processo formativo brasileiro e proces sos formativos de outras partes do mundo em especial Europa Inglaterra e França com mais frequência Estados Unidos e América Latina ocupa uma posição central nessas interpretações A comparação com a Europa e com os Estados Unidos conduz amiúde a representações da modernidade brasileira ou a narrativas do processo de modernização do país sob o signo da incompletude da inautenticidade e de seu caráter periférico o Brasil seria nem tradicional nem completamente moderno TAVOLARO 2008 No que diz respeito à comparação com países da América Latina é constante a referência à hegemonia da religião católica e à unidade da língua portugue sa como sendo duas razões fundamentais pelas quais a colônia portuguesa na América gerou apenas um país formalmente independente ao passo que a colônia espanhola gerou uma multiplicidade de países3 tirei aqui as especificidades e controvérsias suscitadas pelas expressões interpretações do Brasil pensamento social brasileiro pensamento social no Brasil e suas variações para efeito do texto basta dizer que interpretações do Brasil engloba as mais diversas áreas do conhecimento atravessando Sociologia Estudos Literários Ciência Política e mesmo em certa medida áreas do conhecimento geralmente situadas fora das ditas ciências sociais ou humanidades Por fim noto que a expressão interpretações do Brasil também pode e eu sugeriria deve ser pensada como referência a esforços de interpretação do Brasil para além do ambiente acadêmico ou artístico abrirseia nesse caso a necessidade de se pensar de maneira mais detida a noção de interpretação o que não farei nesse texto 3 Desnecessário dizer essas representações cada vez mais questionadas não exaurem os padrões comparativos identificáveis nas interpretações do Brasil Sugiro apenas que elas sejam as mais recorrentes Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 206 14012021 1707 Interpretações do Brasil e formação 207 A mobilização de parâmetros externos nas interpretações do Brasil co necta intimamente de um lado como a formação do Brasil contemporâneo é interpretada e de outro como a produção de conhecimento é concebida Neste texto meu foco será na segunda levantando algumas reflexões sobre como as interpretações do Brasil podem ajudar na problematização da produção de conhecimento e como isso traz à tona potenciais caminhos para se teorizar a modernização Das múltiplas maneiras de se explorar o ponto proponho que se pense a teorização pela via da relação entre lugar e a mobilização de fontes por parte de quem teorizainterpreta No que se segue meu propósito é levantar considerações gerais sobre um possível caminho entre outros para se ler as interpretações do Brasil Duas maneiras de mobilizálas me parecem particularmente problemáticas em primeiro lugar quando são vistas como exemplos ou casos particulares de uma teoria geral a ser importada e aplicada e em segundo lugar quando são tomadas como estudos que evidenciam um caso o caso brasileiro de uma modernização supostamente fracassada as comparações com mo dernizações supostamente bem sucedidas se mostram aqui quase sempre marcantes implícita ou explicitamente4 A meu ver as interpretações do Brasil podem ser pensadas não apenas como textos que expõem diferentes visões modernizantes do país e com isso apontam falhas incompletudes eou inautenticidades no processo formativo brasileiro mas ao mesmo tempo como textos que expõem diferentes críticas à própria noção de modernização em seu caráter universalizante 4 Uma terceira mobilização bem menos comum hoje em dia e em geral associada a Gilberto Freyre tende a ver o caso brasileiro como exemplo de um processo formativo marcado pela coexistência mais ou menos harmônica e pacífica entre as raças Esse tipo de mobilização não foi raro nos Estados Unidos por exemplo como forma de contrastar a violência das relações raciais no país com a suposta democracia racial brasileira Ainda o caso brasileiro foi relevante para uma iniciativa da Unesco nos anos 1950 voltada ao estudo das relações raciais Ver por exemplo MAIO 1999 Tão problemático quanto os dois primeiros esse terceiro tipo conserva ainda certa ressonância nas representações que muitos estrangeiros possuem do Brasil assim como nas interpretações que muitos brasileiros têm do país como um lugar de democracia racial Não seria possível neste texto tratar de toda a complexidade decorrente desse tipo de mobilização Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 207 14012021 1707 Victor Coutinho Lage 208 O que se verá adiante vale reiterar é a proposta de linhas gerais para uma abordagem das interpretações do Brasil ou notas para uma agenda de pesquisaproblematização Tendo em vista que ao longo do texto recorrerei a pensadores nascidos e ou formados em países ditos centrais muitas vezes associados a correntes de pensamento consideradas eurocêntricas tornase importante explicitar minha posição acerca de algumas controvérsias que tais opções podem engendrar Não recorro a textos de europeus ou estadunidenses por eles supostamente proverem reflexões ou teses de aplicabilidade universal e não vejo qualquer incompatibilidade apriorística entre a mobilização de tais textos e a reflexão sobre a condição periférica Além disso como mobilizo pensadores como Gayatri Chakravorty Spivak Homi Bhabha e Dipesh Chakrabarty com frequência identificados como póscoloniais outra consideração preliminar se mostra necessária Alguns pensadores latinoamericanos brasileiros inclusive têm demonstrado re sistência ao rótulo póscolonialismo Sem entrar em detalhes da controvérsia tomo a posição de Walter Mignolo como expressão de algo que pretendo não replicar Em suas palavras a analítica da colonialidade e a programática da descolonialidade se distancia e vai além do póscolonial introduzindo uma fratura tanto no projeto eurocentrado da pósmodernidade quanto em um projeto de póscolonialidade fortemente dependente do pósestruturalismo na medida em que Michel Foucault Jacques Lacan e Jacques Derrida têm sido reconhecidos como o fundamento do cânone póscolonial Edward Said Gayatri Spivak e Hommi sic Bhabha MIGNOLO 2007 p 4525 Walter Mignolo reivindica outras fontes tais como Frantz Fanon Aimé Césaire Mahatma Gandhi e almeja com isso operar a desconexão delinking ou descoloni zalização decolonization De acordo com sua proposição essa desconexão não busca modernidades alternativas e sim alternativas à modernidade e à civilização neoliberal MIGNOLO 2007 p 465 p 492 grifo do autor6 A despeito das cruciais diferenças entre os textos associados a um rótulo ou a outro como póscolonialismo marxismo desconstrução penso 5 Todas as traduções são minhas exceto quando especificado o contrário 6 O quadro das controvérsias se torna ainda mais complexo se às posições acima somase o debate em torno do chamado póscolonialismo lusófono Ver Santos 2003 e Madureira 2008 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 208 14012021 1707 Interpretações do Brasil e formação 209 que o problema reside em primeiro lugar nos próprios usos de tais rótulos à medida que recaírem em rejeições ou aceitações apressadas e por vezes irrefletidas de um texto com base na sua suposta filiação a certa corrente A mobilização dos textos que proponho não somente resiste a esse tipo de implicação da rotulação como também não pressupõe qualquer compro misso fiel à obra de qualquer pensador citado Esta não é uma maneira de negligenciar possíveis e importantes diferenças e sim uma forma de evitar que as mesmas se tornem impedimentos a encontros entre textos voltados a diferentes problematizações Em adição a isso não é incomum a posição segundo a qual desconstrução pósestruturalismo ou teoria crítica se mostrariam incapazes de apreender plenamente a chamada condição póscolonial por serem no limite eurocêntri cos ou mesmo a posição segundo a qual póscolonialismo e estudos subal ternos não se adequam à América Latina ou aos países de língua portuguesa tendo em vista que eles se ocupariam da modernidade tal como concebida no século XVIII ao passo que a colonização da América Latina por exemplo se deu em um momento histórico anterior que alguns como Mignolo 2003 vão definir como primeira fase da modernidade Sugiro que tais posições não raro correm o risco de essencializar determinada condição póscolonial que aparece quase que definida por uma marca histórica de origem No limite podese acabar reproduzindo ainda que pelo polo invertido a dicotomia en tre modernidade e não modernidade7 Nesse sentido concordo com Breno Bringel e José Maurício Domingues estendendo o ponto para os demais campos do conhecimento não só para a sociologia quando dizem que a a sociologia periférica não deveria se basear em certidões de nascimento mas sim no compromisso com a elaboração de determinados debates e agendas intelectuais BRINGEL DOMINGUES 2015 p 638 Dito isso o texto prossegue em quatro partes A próxima seção coloca o problema da relação entre lugar e política do conhecimento Em seguida 7 O que por vezes ocorre nos próprios textos de Walter Mignolo Para uma leitura crítica ver Domingues 2009 8 Minha divergência com os mesmos pensadores se dá no que considero ser uma subapreciação do potencial do que chamam de pensamento póscolonial para problematização em tela no próprio texto deles e de maneira geral nas reflexões de foco teórico de José Maurício Domingues Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 209 14012021 1707 Victor Coutinho Lage 210 sugerese um ponto de entrada para se explorar as interpretações do Brasil com foco no conceito de formação A terceira parte busca mostrar muito brevemente como esse caminho pode ser efetivamente traçado com base em menções panorâmicas a certas interpretações do Brasil A última parte se dedica a notas finais com breve recapitulação dos pontos principais do texto LUGARES E POLÍTICA DO CONHECIMENTO Luiz Costa Lima publicou em 1991 uma coletânea de textos próprios inti tulada Pensando nos Trópicos onde ele diz exercer o gosto de pensar como habitante dos trópicos fazendoos presentes no trato com qualquer objeto seja ele ou não tropical LIMA 1991 p 12 O pensador também diz que quando escrevo sobre Cervantes Diderot ou Mallarmé não me finjo de ana lista europeu Não o faço mesmo porque sei que se houver alguma novidade no que disser ela se entrosa com a ótica que me concedem as dificuldades quase desesperadoras do terceiro mundo LIMA 1991b p 21 Anos mais tarde Luiz Costa Lima diz que a diferença alcançada por obras que temati zam a experiência vivida em continentes marginalizados e metropolitanos internaliza lugares distintos tendencialmente provocadores de configurações diferenciadas LIMA 2003 p 23 grifo do autor Lugar é visto e sentido é experienciadovivenciado não como uma delimitação geográfica mas como um condensador temporal de expectativas possibilidades e vivências LIMA 2003 p 25 n 6 Está em jogo aqui a relação entre configurações diferenciadas e o lugar em que se processa a diferença ou em que ela é re cebida LIMA 2003 p 25 Retornarei adiante a essa concepção de lugar Em um texto escrito para um periódico australiano que dedicou um nú mero especial a sua obra Luiz Costa Lima expressa certo desabafo deixeme dizer o que significa viver intelectualmente lá isto é no nosso desprezado hemisfério significa saber de antemão que seu trabalho não terá difusão em particular se sua língua materna não for uma língua cosmopolita é o caso do português E o que lhe parece ainda pior significa que até mesmo nos círculos da intelligentsia local sua reflexão será recebida com alguma des confiança já que não é reconhecida como algo que descende de uma fonte legítima isto é de um pensador ou movimento cuja matriz esteja localizada no primeiro mundo LIMA 2009 p 122 Essa observação me é crucial em Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 210 14012021 1707 Interpretações do Brasil e formação 211 um aspecto específico ela chama atenção para a reprodução interna de uma relação hierárquica entre o conhecimento produzido no centro e o que se produz na periferia Nesse sentido reforçase o ponto de que a relação en tre lugar e a política de produção de conhecimento pode ser entendida para além de um pressuposto fronteiriço geográfico Esta é a problematização que busco continuar traçando no que se segue Referindose ao intelectual latinoamericano Luiz Costa Lima diz que ao se deparar com os modelos de pensamento mais frequentemente disponí veis esse intelectual se acostumou a se ver e a ser visto como um adaptador e um difusor de correntes de pensamento previamente legitimadas nos paí ses metropolitanos LIMA 1991c p 134 Isso pode ser percebido eu diria na prática de se buscar a aplicação de uma teoria atualizada em geral formulada nos Estados Unidos ou na Europa por estadunidenses ou euro peus a um estudo caso ligado à suposta realidade brasileira periférica ou algo do gênero Essa prática corriqueira se mostra em diferentes campos do conhecimento com uma aplicabilidade flexível o suficiente para abarcar os mais distintos casos Diante disso não defendo uma rejeição de fontes externas em benefício de alguma pureza nacional ou interna de alguma autenticidade do co nhecimento Como dito acima o certificado de nascimento da teoria não é a única coisa que importa e sim como ela pode ser colocada em movimento Um momento ainda com Luiz Costa Lima me ajuda a sumarizar o ponto o isolamento nacional das literaturas só ajuda a preservação do status colonial LIMA 1991 p 39 Em linha similar Silviano Santiago faz um alerta por um lado os intérpretes do Brasil não podem buscar a emulação apenas do que é ditado pelo pelo progresso evolutivo oferecido pelas nações do Primeiro mundo e pela modernização ocidental por outro lado abrasileirarse não significa tornarse xenófobo ter aversão às culturas estrangeiras SANTIAGO 2005 p 99 Fascínio e rejeição pelo modelo externo muitas vezes podem ser lados de um mesmo problema afinal 9 Para Silviano Santiago em outro texto há certo método que precisa ser rejeitado segundo o qual a fonte ou a influência exercida por algum modelo metropolitano é o que confere legitimidade ao conhecimento produzido na América Latina tal discurso crítico isto é tal método reduz a criação dos artistas latinoamericanos à condição de obra parasita uma obra que se nutre de uma outra sem nunca lhe acrescentar algo de próprio uma obra cuja Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 211 14012021 1707 Victor Coutinho Lage 212 Em outra ocasião Silviano Santiago propiciou novo ângulo para a proble matização em tela ao destacar que os intelectuais brasileiros com frequência são questionados em países metropolitanos sobre a contribuição que a produ ção cultural no Brasil traz para a teoria crítica SANTIAGO 2004 p 194 Continuarei com Silviano por mais um instante porém proponho ampliar sua consideração sobre a teoria crítica para a produção de conhecimento de for ma geral Para ele a questão precedente assume certa fratura de um lado do mundo intelectual estaria o lócus de enunciação metropolitano ou central por isso superior e universal do outro lado estaria o lócus periférico subalterno e particular10 Em suma está em jogo a distinção entre receptores e produ tores de conhecimento e de modelos de pensamento distinção que faz dos primeiros o destino de referências cognitivas éticomorais estéticoexpressi vas e institucionais fabricadas pelos segundos TAVOLARO 2014 p 638 Como sugeri acima essa distinção atravessa as áreas do conhecimen to mais variadas Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto destacaram nos anos 1970 as limitações de se utilizar para a compreensão de países da América Latina arcabouços conceituais pensados para a formação da socieda de capitalista e para o desenvolvimento econômico de países desenvolvidos CARDOSO FALETTO 1977 p 139 J Leite Lopes por sua vez destacou que a utilização da ciência e da tecnologia para um mais rápido desenvolvi mento dos países do Terceiro Mundo não pode limitarse a uma importação passiva de conhecimentos e técnicas elaboradas e patenteadas no exterior LOPES 1977 p 154 Wanderley Guilherme dos Santos observou um padrão similar de importação de modelos externos pelas Ciência Sociais no Brasil a seu ver essas ciências tiveram sua evolução condicionada por dois proces sos o da forma de absorção e difusão interna dos avanços metodológicos e substantivos gerados em centros culturais no exterior e o dos estímulos vida é limitada e precária aprisionada que se encontra pelo brilho e pelo prestígio da fonte do chefe de escola SANTIAGO 2000 p 18 10 Talvez fosse mais produtivo pensar esses lados em termos de uma dupla indecibilidade e não uma causalidade unilinear A primeira relação indecidível é a que se estabelece entre o lócus central ou o lócus periférico e seu atributo superior e universal ou subalterno e particular Haveria um lócus central que não fosse já por isso considerado universal e superior E ainda haveria um lócus universal e superior que não fosse já por isso central O mesmo valendo para o lócus periférico subalterno particular A segunda relação inde cidível se configura entre as próprias noções de centro e periferia Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 212 14012021 1707 Interpretações do Brasil e formação 213 produzidos pelo desenrolar da história econômica social e política do país SANTOS 1978 p 17 Mais recentemente Gildo Marçal Brandão apontou certa divisão mun dial do trabalho intelectual a ser resistida de acordo com ela alguns estão a cargo da teoria ao passo que outros da sua aplicação eou da produção de matéria empírica para consumo e industrialização pelos intelectuais dos países centrais BRANDÃO 2007 p 180 Um raciocínio similar foi condu zido por Christian Lynch ao discutir a história da história do pensamento políticosocial brasileiro de 1880 a 1970 sua hipótese é a de que no Brasil suas elites sempre consideraram seus produtos intelectuais mais ou menos inferiores àqueles desenvolvidos na Europa e nos Estados Unidos em con sequência de uma percepção mais ampla do caráter periférico do seu país LYNCH 2013 p 7301 Tal condição se liga a uma dimensão que é tanto temporal atraso quanto espacial periferia e que está inscrita em uma divisão internacional do trabalho intelectual na geografia do mundo o cen tro produzia o universal filosofia teoria ciência ao passo que cabia à pe riferia aplicálo às suas circunstâncias particulares LYNCH 2013 p 734511 Dito isso considero suficientemente delineados os contornos da proble matização que pretendo explorar adiante12 Em poucas palavras tratase de discutir uma questão que perpassa os mais diversos campos de conhecimento sociologia estudos literários economia ciência política e até mesmo ciên cia e tecnologia concernente à relação entre teorização e lugares concebidos como não centrais 11 Direta ou indiretamente todos os textos citados acima se referem a um ambiente intelectual brasileiro composto por instituições universitárias e preocupações disciplinares em graus variados Alguns se lembrarão imediatamente da controvérsia nos anos 1950 e 1960 entre Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos acerca da tarefa da sociologia no Brasil Ou ainda das divergências em torno da forma ensaística de escrita supostamente précientífica em oposição ao trabalho científico universitário exemplos disso são as revisões que Sérgio Buarque de Holanda fez de sua própria trajetória de ensaísta a historiador e as divergên cias entre Florestan Fernandes e Wanderley Guilherme dos Santos acerca da investigação científica no Brasil Para mais sobre isso ver Gildo Marçal Brandão 2005 2007 André Botelho 2008 2010 2012 Bernardo Ricupero 2007 2011 Fábio Cardoso Keinert e Dimitri Pinheiro Silva 2010 e Renato Lessa 2011 12 Retomei mais recentemente esse ponto por outra via em Lage 2019 Ver ainda Selis Urt e Lage 2019 texto de apresentação do Dossiê Teoria das Relações Internacionais no Brasil publicado pela revista Monções Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 213 14012021 1707 Victor Coutinho Lage 214 Sendo um condensador temporal de expectativas possibilidades e vi vências como disse Luiz Costa Lima a noção de lugar não deriva de uma condição previamente estabelecida no caso em tela uma condição anterior atrelada a concepções como periferia terceiro mundo ou como vem sendo mais comum sul global Essa noção tem ao contrário o potencial de ques tionar tais concepções e suas implicações Há um forte elo entre de um lado como a produção de conhecimento acadêmico é entendida e de outro como o processo formativo brasileiro é interpretado Diante disso não surpreende que i a disparidade regional interna ao Brasil ii a comparação constante com Estados Unidos e Europa e iii a identificação de deficiências internas inautenticidade incompletude fracasso sejam traços recorrentemente ins critos tanto nas discussões sobre o ambiente acadêmico brasileiro quanto nas próprias interpretações do processo formativo do país A academia não é uma torre de marfim desconectada da sociedade ou da política De acordo com Homi K Bhabha 1994 p 1 o que se mostra teorica mente inovador e politicamente crucialéa necessidade de se pensar para além de narrativas de subjetividades originárias e iniciais e se focar naqueles momentos ou processos produzidos na articulação de diferenças culturais Nesse sentido os limites epistemológicos daquelas ideais etnocêntricas também podem ser explorados como fronteiras enunciativas de uma gama de outras vozes e histórias dissonantes e mesmo dissidentes das mulheres dos colonizados de grupos minoritários de portadores de sexualidades po liciadas BHABHA 1994 p 45 Meu esforço aqui se conecta ao de Homi K Bhabha na medida em que almeja se distanciar em certa medida das tradições da sociologia do subdesenvolvimento ou da teoria da dependên cia e resistir à busca de formas holísticas de explicação social com isso forçase um reconhecimento das fronteiras culturais e políticas mais com plexas situadas no extremo dessas esferas políticas frequentemente opos tas BHABHA 1994 p 173 Forçar esse reconhecimento e provincializar a Europa como proposto por Dipesh Chakrabarty 2000 são dimensões fundamentais na problematização dos lugares de enunciação constituídos nas interpretações do Brasil Sugiro que esses lugares reproduzem certa articulação espaçotemporal ligada a uma noção universalizante de modernização ao mesmo tempo em Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 214 14012021 1707 Interpretações do Brasil e formação 215 que proveem frestas para potenciais críticas a essa própria noção13 Em ou tros termos de um lado elas reproduzem e endossam diferentes variações de uma perspectiva modernizante sobre o processo formativo brasileiro de outro lado podem ser exploradas pelas frestas que abrem para uma proble matização da modernização14 O desejo por modernização na política do conhecimento e na prática po lítica tem sido um sonho intenso15 no Brasil mas não só convertido por vezes em pesadelo especialmente para as subjetividades subalternizadas no processo Aqui em vez de repudiar ou endossar tal sonho busco propor uma forma de interpretálo situando minha posição no que Gayatri Chakravorty Spivak chamou de dupla vinculação double bind De acordo com ela a ar rogância da consciência humanista europeia radical que oblitera os limites históricos linguísticos e culturais da figura do Homem não pode ser resol vida pela simples inversão de perspectiva segundo a qual apenas o marginal pode falar pela margem a despeito da relevância dessa outra perspectiva SPIVAK 1999 p 171 A arrogância eurocêntrica e o nativismo irrefletido compartilham a premissa de que a alteridade pode ser plenamente conhecida seja através de um padrão supostamente universal seja pela multiplicidade de subjetividades particulares 13 Embora eu não vá desenvolver o conceito frestas faz alusão ao título do livro recente de Luiz Costa Lima Frestas a teorização em país periférico LIMA 2013 14 O campo das interpretações do Brasil na direção que venho sugerindo que seja mobilizado não tem por finalidade ser um lócus das possibilidades e impossibilidades de se encontrar o outro o subalterno o nativo informante no sentido que Gayatri Chakravorty Spivak atribui aos termos SPIVAK 1999 2003 Também não é uma maneira de se trazer à tona alguma variante de uma contribuição do terceiro mundo para a política ou o conhecimento ocidentais como Robert J C Young formula seu próprio propósito YOUNG 2004 p 15 Ambas as finalidades são crucias sem dúvida e espero que ressoem de alguma maneira neste texto afinal é de suma importância que se questione como a concepção de ociden te tem silenciado o subalterno ou a heterogeneidade do outro Além disso também se mostra crucial entender como contribuições do chamado terceiro mundo ou sul global têm sido desconsideradas ou cooptadas pelo mesmo ocidente tanto na política ampla mente entendida quanto na política do conhecimento Tudo isso permeia minha discussão Contudo meu foco neste texto vem por outro ângulo talvez complementar como se tem proposto 15 Título de um documentário recente de José Mariani lançado em 2014 focado no processo socioeconômico do século XX brasileiro Ficha técnica disponível em httpwwwumso nhointensocombrsinofichahtml Acesso em 20 jan 2016 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 215 14012021 1707 Victor Coutinho Lage 216 Tratase portanto de um trabalho incessante nas fronteiras e a partir delas algo próximo ao que Walter Mignolo chama em certas instâncias de pensamento fronteiriço MIGNOLO 2003 Um pensamento que não se separa de suas implicações políticas tendo em vista que como R B J Walker afirma as fronteiras que dividem nossos espaços no terreno on the ground também permitem enable nossa imaginação política no tempo e de manei ra recíproca nossa capacidade de entendermos a nós mesmos como sujeitos modernos agindo na trajetória temporal que viemos a tratar como o terreno inevitável das liberdades modernas também mapeia nossa imaginação po lítica no espaço WALKER 2010 p 3132 Esse pensamento fronteiriço segundo proponho pode ser desdobrado nas frestas potencialmente abertas pelas interpretações do Brasil Como textos que endossam diferentes perspectivas modernizantes as interpretações do Brasil internalizam e reproduzem variações dessa arro gância europeia expressa pelo padrão de importação de modelos de pen samento para a realidade brasileira e por vezes tomando certo modelo de formação nacional europeu ou estadunidense como parâmetro a partir do qual a modernidade brasileira é interpretada quase invariavelmente como deficiente incompleta eou inautêntica Como potenciais críticas à mo dernização esses textos podem auxiliar na problematização dessa arrogância sem recair na oposição nativista Nesse sentido concordo com João Marcelo Maia as interpretações do Brasil podem falar não apenas do Brasil mas também sobre dilemas modernos globais a partir de um ponto de vista dis tinto daquele formulado no mundo europeu e anglosaxão MAIA 2009 p 156 E concordo com Sergio Tavolaro 2014 p 635 Talvez com alguma dose de ironia é possível identificar nas mais célebres obras interpretativas da peculiaridade brasileira antecipações a críticas contemporâneas ao discurso da modernidade As possibilidades dessas ante cipações encontramse associadas à posição não hegemônica de enunciação de tais intérpretes que lhes permitiu vislumbrar a experiência moderna de ângulos incomuns às posições hegemônicas Nessa orientação as interpretações do Brasil tornamse um campo profí cuo para se repensar o que significa entendermos a nós mesmos como sujeitos Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 216 14012021 1707 Interpretações do Brasil e formação 217 modernos e para se teorizar sobre a modernidade a partir disso No limite esse esforço implica no questionamento de distinções tais como primeiro mundo e terceiro mundo centro e periferia Norte e Sul Global Ocidente e seus outros Em suma as interpretações do Brasil podem expor um lugar a partir do qual a modernidade precisa ser repensada16 Na próxima seção es pecifico uma das frestas a serem exploradas os usos do conceito de formação DEFORMAÇÃO DO BRASIL PELAS FRESTAS DA MODERNIDADE Tem sido apontada há bastante tempo a recorrência e a centralidade do conceito de formação nas interpretações do Brasil especialmente desde a primeira metade do século XX17 Gabriela Nunes Ferreira e André Botelho destacam a importância do conceito para muitas interpretações do Brasil dos anos 1920 aos anos 1940 focadas na questão da formação nacional aliada à da moder nização FERREIRA 1996 p 229 grifo nosso e no estudo da formação da sociedade brasileira BOTELHO 2010 p 47 grifo nosso Simone Meucci afirma que nos anos 1930 surgiram interpretações do Brasil que têm em comum uma obsessão a ideia de decifrar a formação as origens as raízes do Brasil MEUCCI 2010 p 311 grifo original Bernardo Ricupero por sua vez diz não ser mero acaso que num país com passado colonial como o Brasil a formação seja um tema recorrente para seus intelectuais RICUPERO 2008a 16 Mantenho deliberadamente a ambiguidade em expor um lugar Seria este lugar o conjunto de textos ou o contexto supostamente externo a ele Qual seria relação entre texto e contexto Expor seria desvelar descobrir ou seria produzir construir um lugar Vale lembrar expor se liga ao mesmo tempo a apresentar algoalguém e a colocar algoalguém em risco ou a nu 17 Uma breve e não exaustiva lista de textos em que o conceito adquire centralidade por vezes já em seu título ou subtítulo inclui Populações Meridionais do Brasil 1920 volume 1 1952 volume 2 e Instituições Políticas Brasileiras 1949 de Oliveira Vianna Evolução Política do Brasil 1933 e Formação do Brasil Contemporâneo Colônia 1942 de Caio Prado Júnior Casa Grande Senzala 1933 Sobrados e Mucambos 1936 e Ordem e Progresso 1959 de Gilberto Freyre Raízes do Brasil 1936 de Sérgio Buarque de Holanda Os Donos do Poder Formação do Patronato Político Brasileiro 1958 de Raymundo Faoro Formação Econômica do Brasil 1959 de Celso Furtado Formação da Literatura Brasileira 1959 de Antonio Candido Formação Histórica do Brasil 1962 de Nelson Werneck Sodré e A Revolução Burguesa no Brasil 1975 de Florestan Fernandes Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 217 14012021 1707 Victor Coutinho Lage 218 p 66 grifo nosso Já de acordo com Vera Alves Cepêda formação ao lado de interpretação são palavraschave quando falamos de pensamento social brasileiro clássico CEPÊDA 2012 p 105 Marcos Nobre chega mesmo a identificar a existência de um paradigma da formação no pensamento brasileiro caduco mas ainda vivo NOBRE 2012 Silviano Santiago por sua vez diz que formação enquanto episteme ou paradigma funda e estrutura no século XX brasileiro os múltiplos sabe res confessionais artísticos e científicos que compartilham a despeito de suas especificidades e apesar de versar sobre objetos indiferentes deter minadas formas ou características gerais de nosso ser e estar em desenvolvi mento SANTIAGO 2013 p 259 Evando Nascimento referindose mais especificamente às interpretações de literatura e nacionalidade identificou dois modelos de reflexão de destaque no Brasil no século XX O primeiro se liga à ideia de formação é decididamente bemcomportado civilizatório e humanista e implica na necessidade importação de um mito metropoli tano para a construção do mito correlato da jovem e independente nação brasileira o outro modelo se liga ao mito bárbaro e mau da antropofagia que é um mito de deformação associado ao processo colonizador do país NASCIMENTO 2011 p 335 Não tenho por objetivo neste texto discutir a existência ou não de um paradigma ou de uma episteme da formação menos ainda de delimitar um por minha conta e risco Também não defendo que seja necessário dis tanciarse do conceito ou ir além dele em direção a um novo paradigma ou nova episteme Ao invés disso pretendo explorar linhas gerais de como a no ção de formação nas interpretações do Brasil expõe uma problematização potencial da modernidade Antes de prosseguir um alerta se daqui para frente a discussão do conceito de formação se mostrar por vezes ambígua ora dizendo respeito ao modo como os textos identificam certo Brasil ora referindose a como os textos discutem a produção de conhecimento tal ambiguidade não deve ne cessariamente ser tomada como erro passível de desambiguação mas sim como um indício da indecibilidade entre texto e contexto no âmbito da po lítica e da política do conhecimento no que concerne à problematização que aqui se propõe Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 218 14012021 1707 Interpretações do Brasil e formação 219 Segundo Paulo Arantes salvo em casos flagrantes de autoengano de liberado todo intelectual brasileiro minimamente atento às singularidades de um quadro social que lhe rouba o fôlego especulativo sabe o quanto pesa a ausência de linhas evolutivas mais ou menos contínuas a que se costuma dar o nome de formação ARANTES 1997 p 11 grifo do autor Para Paulo tratase de uma obsessão nacional Vale seguir o texto por mais um instante Tamanha proliferação de expressões títulos e subtítulos aparentados não se pode deixar de encarar como a cifra de uma experiência intelectual básica em linhas gerais mais ou menos a seguinte na forma de grandes esquemas interpretativos em que se registram tendências reais na sociedade tendências às voltas não obstante com uma espécie de atrofia congênita que teima em abortálas apanhavase naquele corpus de ensaios sobretudo o propósito coletivo de dotar o meio gelatinoso de uma ossatura moderna que lhe susten tasse a evolução Noção a um tempo descritiva e normativa compreendese além do mais que o horizonte descortinado pela ideia de formação corresse na direção do ideal europeu de civilização relativamente integrada ponto de fuga de todo espírito brasileiro bem formado ARANTES 1997 p 112 grifo nosso18 A iteração do conceito de formação expõe a experiência intelectual de serestar situado eou se situar entre duas realidades ARANTES 1992 p 16 A formação do Brasil contemporâneo é portanto entendida através de sua inserção no processo global do capitalismo Em outras palavras o processo formativo brasileiro é inseparável do movimento internacional do capital que produz elementos diferentes e assimétricos ARANTES 1992 p 38 Assim nosso modo de ser dual não é produto de alguma idiossincra sia e sim uma condição produzida historicamente no seio do capitalismo ARANTES 1992 p 89 A meu ver o foco atribuído ao capitalismo global pode ser estendido sem perda de força interpretativa muito pelo contrário ao processo global da modernidade Sendo assim a experiência intelectual mencionada se inscreve em certo movimento de oscilação que caracteriza a 18 Em uma nota que suprimi da citação Paulo Arantes dá crédito a Roberto Schwarz por ter reconhecido o ar de família que reúne as nossas diversas formações em torno de um mesmo foco ARANTES 1997 p 63 n 2 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 219 14012021 1707 Victor Coutinho Lage 220 condição intelectual da periferia da ordem capitalista da ordem moderna VLC internacional por vezes estabelecendose alguma empatia em relação àqueles que a modernização deixou para trás por vezes sonhando com uma ocidentalização acelerada do país de outro modo condenado à insignificân cia ARANTES 1997 p 51 Tratase de uma oscilação pendular que para ser problematizada não basta que se coloque em questão os lados extremos atingidos pelo pêndulo é preciso desnaturalizar o próprio ponto em que se prende sua haste Em termos ainda menos acadêmicos eu diria se minha proposta inter pretativa fizer sentido as peculiaridades do processo formativo brasileiro não jogam água no moinho da teoria da jabuticaba brasileira embora a au toimagem de singularidade da formação do país persista na universidade e para além de seus muros Afunilando um pouco mais a questão vale a pena retomar o texto de Roberto Schwarz Ideias Fora do Lugar Seu principal ponto é costurado a partir da relação entre o liberalismo europeu e a sociedade brasileira No século XIX diz Roberto os princípios teóricos da burguesia europeia contra a arbitrariedade e a escravidão eram fervorosamente defendidos no Brasil enquanto concomitante a isso as práticas ligadas às relações de favor persistiam poderosas na sociedade adotadas as ideias e razões europeias elas podiam servir e muitas vezes serviram de justificativa no minalmente objetiva para o momento de arbítrio que é da natureza do fa vor SCHWARZ 2000 p 18 Seguindo o texto temse que o Capital não atingiu no Brasil uma forma clássica como se atesta pela relação mútua entre liberalismo e sua cadeia conceitual composta por mérito igualdade razão trabalho e favor Isso é com frequência entendido continua o texto como a confirmação da má formação brasileira já que tendemos ver esta combinação como inteiramente desvantajosa para nós composta só de de feitos SCHWARZ 2000 p 20 A fim de evitar tal tendência Roberto faz um movimento ulterior no seu estudo da relação entre liberalismo e favor no Brasil nem sempre percebi do por seus leitores ou pelos que se apropriam da expressão ideias fora do lugar para conferir um certificado de má formação ao país confirmando aliás a tendência mencionada pelo próprio Roberto Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 220 14012021 1707 Interpretações do Brasil e formação 221 Contudo vejase também outro lado SCHWARZ 2000 p 20 grifo nosso Na Europa as ideias da burguesia a princípio voltadas contra o privilégio a partir de 1848 se haviam tornado apologéticas a vaga das lutas sociais na Europa mostrara que a universalidade disfarça antagonismos de classe SCHWARZ 2000 p 2021 Sendo assim se é verdade que para Roberto as ideias estão fora do lugar no Brasil onde o liberalismo é inapropriada mente evocado é preciso considerar que o nosso discurso impróprio era oco também quando usado propriamente SCHWARZ 2000 p 21 Trocando as palavras nossas esquisitices nacionais possuem um alcance mundial expondo uma problematização do processo modernizante que acompanha o capitalismo e de maneira mais ampla como venho sugerindo a moder nidade Em síntese o processo formativo brasileiro se torna nessa interpre tação um ponto nevrálgico por onde passa e se revela a história mundial SCHWARZ 2000 p 29 Não entrarei no mérito do tipo específico de marxismo em jogo no texto de Roberto Schwarz o que me interessa aqui é o movimento que ele permite a fresta que ele abre Ao invés de olhar para a má formação do Brasil e con trastála com o que seria uma perfeita formação da Europa burguesa liberal o texto expõe uma história conectada do capitalismo um desenvolvimento desigual e combinado de sua formação isso é possível pelo passo globali zante da sua perspectiva ARANTES 1992 p 97 Segundo Roberto a relação entre liberalismo e escravidão no Brasil co locou de pé uma comédia ideológica diferente da europeia SCHWARZ 2000 p 12 grifo nosso O liberalismo portanto lhe parece uma ideologia em ambos os lugares na Europa encobrindo a exploração do trabalho no Brasil convivendo com escravidão e favor sendo que aqui as mesmas ideias liberais eram falsas num sentido diverso por assim dizer original SCHWARZ 2000 p 12 Essa comédia ideológica cá e lá não é tratada por Roberto Schwarz como simples expressão nacional de um movimento geral como se o ponto crucial fosse entender algo como o desdobramento de um problema global em unidades particulares Em um texto posterior ele reforça o ponto ao discutir a noção de filtro nacional Para Roberto ela reproduz um esquema simples polarizado en tre unidades e o que não são elas nesse esquema os contextos específi cos através dos quais a filtragem opera funcionam como instâncias finais Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 221 14012021 1707 Victor Coutinho Lage 222 SCHWARZ 1999 p 8319 A multiplicação de unidades exteriores umas às outras deixaria de contemplar os modos pelos quais o sentido europeu de li beralismo impacta nosso sentido É preciso estar atento portanto ao seguinte aspecto diferenças locais ou nacionais não são desconectadas de condições e antagonismos globais o malestar brasileiro em relação às ideias modernas pertence a essa esfera dos efeitos globais SCHWARZ 1999 p 84 algo que não pode ser apreendido por um nacionalismo metodológico tal como o que se expressa na ideia de filtro nacional A discrepância entre relações sociais locais e ideias modernas pertence à dialética global do sistema SCHWARZ 1999 p 84 Assim a discrepância e o desconforto brasileiros constituem um lugar a partir do qual certo processo global pode ser interpretado Resumindo faço duas considerações Primeira como nota Alfredo Bosi 2013 liberalismo e escravidão coexistiram no Brasil e na Europa o que o texto de 1973 de Roberto não destaca ainda que de formas diferentes devido aos processos distintos de formação nacional No entanto e esta é a segunda consideração dizer que isso ocorreu em ambos os lugares não basta Esta é a principal contribuição do texto de Roberto Schwarz como visto anterior mente Dito isso podese afirmar que as ideias fora do lugar cá lançam luz sobre as ideias fora do lugar lá a discrepância brasileira lança luz tanto sobre outras discrepâncias quanto sobre um processo global E sob esse prisma a interpretação do Brasil carrega uma interpretação da modernidade O problema tratado por Roberto Schwarz foi retomado recentemente por Bernardo Ricupero e João Marcelo Maia por linhas complementares às que traço nesse texto De acordo com Bernardo a posição de Roberto não deve ser tomada como a asserção de uma mera inadequação de ideias externas a certa realidade social e sim como expressão de certa tensão na relação entre forma e ambiente RICUPERO 2008a p 68 Uma tensão que é ao mesmo tempo intelectual e política inseparável de uma dimensão comparativa que traz a difícil conexão entre referências intelectuais externas e a realidade social em que elas agem Essa tensão não é vista como uma evidência de incompletude eou inautenticidade mas como um lugar em que uma dinâmica global do 19 O argumento de Roberto Schwarz nesse texto se dá no âmbito de um debate com Alfredo Bosi BOSI 2005 que retoma o ponto em Bosi 2013 Por falta de espaço não reconstruirei os argumentos em disputa concentrandome em expor a posição do primeiro Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 222 14012021 1707 Interpretações do Brasil e formação 223 capitalismo é exposta RICUPERO 2008a p 65 ou como formulado em outro texto da periferia se pode questionar o que é tomada como pressu posto no centro RICUPERO 2013 p 530 Nesse sentido ideias fora do lugar não é simplesmente a tese de Roberto e sim o problema abordado ver RICUPERO 2013 p 528 Para João Marcelo Maia o texto de Roberto Schwarz não é uma afirmação nativista em busca de um lugar supostamente autêntico É uma expressão de um desconforto peculiar a intelectuais de países como o Brasil onde moder nidade veio acompanhada de dependência A incorporação dialética desse desconforto o transforma em uma vantagem relativa do mundo periférico que poderia vislumbrar melhor contradições do liberalismo e do capitalismo existentes no coração do mundo europeu MAIA 2009 p 16320 Para que isso seja levado a cabo João Marcelo alerta para a necessidade de se evitar duas armadilhas Em primeiro lugar as interpretações do Brasil não podem se tornar o pano de fundo para algum tipo de naturalização do que Brasil ou brasileiro significam como se fosse possível transformar a identidade brasi leira em uma entidade concreta disponível para ser interpretada em segun do lugar mobilizar esse campo de textos não deve ser uma via para que se identifique alguns deles como tão modernos quanto os que são produzidos na Europa o que faria com que o certo padrão europeu fosse aplicado para se julgar a qualidade do pensamento brasileiro MAIA 2010 p 9 Além des sas duas armadilhas sugiro adicionar uma terceira a vantagem relativa do mundo periférico não deve ser convertida em uma nova variação da noção de vantagens do atraso como se a condição periférica provesse o privilé gio de um olhar alternativo sobre a modernidade que não estaria disponível no centro o que abriria a possibilidade de um processo modernizador que pulasse etapas21 Uma possibilidade de se evitar tais armadilhas está na própria problema tização da noção de lugar Para João Marcelo Maia lugar se liga a diferentes modos de cognição do mundo social numa situação de fronteira MAIA 2010 p 10 Embora Luiz Costa Lima não seja mencionado no texto creio ser plausível associar ambas as proposições vale lembrar lugar para Luiz é um 20 Ver também Maia 2010 p 11 21 A noção de vantagens do atraso foi trabalhada em Vianna 1993 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 223 14012021 1707 Victor Coutinho Lage 224 condensador temporal de expectativas possibilidades e vivências Trazendo tais proposições para mais perto do problema em tela aqui temse um lugar discursivo que pensa o moderno de forma global e descentrada sem reduzir a periferia a simples receptáculo do centro MAIA 2009 p 163 e sem se restringir aos limites do estadonação MAIA 2011b p 8189 Os usos do conceito de formação nas interpretações do Brasil proveem frestas valorosas para que se avance essa proposição de lugar problematizando o nacionalismo metodológico e a própria concepção de modernidade Dito de outra forma um processo global pode ser problematizado exatamente a partir de certos lugares que poderiam ser vistos sob outra perspectiva como nada mais do que uma cópia periférica inautenticidade e incompletude assim reiteradas de uma modernidade central ou originária Luiz Felipe de Alencastro 2000 p 9 grifo nosso contribui para esse esforço quando diz que o Brasil se formou fora do Brasil Isto é a formação do Brasil contemporâneo é um processo que não se confina ao território da colônia e que também ocorre no triângulo do Atlântico Sul ligando África Europa e Brasil através da escravidão do comércio e da colonização essas duas partes unidas pelo oceano isto é as colônias portuguesas no continente africano e na América do Sul se completam num só sistema de exploração colonial cuja singularidade ainda marca profundamente o Brasil contempo râneo ALENCASTRO 2000 p 9 De maneira crua são pessoas raciali zadas como negras incorporadas à força a uma rota gigantesca de tráfico de viventes são pessoas escravizadas gerando produtos agrícolas ou explorando recursos naturais em grandes propriedades de terra e são produtos e recur sos suprindo o comércio e a vida europeus A um só tempo e em um grande espaço temse uma dinâmica que engloba os processos formativos de Brasil de vários países da África e de parte da Europa Tratase de um processo for mativo global da modernidade À formulação de Luiz Felipe Alencastro eu proporia um ajuste Não se trata de um elo entre interno e externo que teria se estabelecido no passado e marcado desde então o que seria o Brasil contemporâneo mas sim de pro por que as reconfigurações do interno e do externo são constantes e consti tutivas da formação do país o Brasil tem sido formado também fora do Brasil O externo por vezes é o que é mais desejado econômica moral política e culturalmente em outras ocasiões o que é mais repelido ainda em outras Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 224 14012021 1707 Interpretações do Brasil e formação 225 instâncias o que se defende dever ser internamente ajustado ou deglutido de alguma forma Como dito por João Cezar de Castro Rocha seguindo o texto de Luiz Felipe o país se constituiu através de uma exterioridade que se transformou na estrutura mesma da nação tudo se passa como se o des centramento constituísse por assim dizer o eixo mesmo a partir do qual o país pôde e ainda hoje pode pensarse ROCHA 2011 p 11 Notese não há reivindicação de qualquer exclusividade brasileira para essa lógica formativa tampouco temse uma determinação de um imperativo intelectual e político para que essa lógica seja desfeita rompida superada em nome de alguma outra lógica genuinamente universal ou autenticamen te nacional CERTAS FRESTAS Como foi dito logo no início do texto não é meu propósito propor uma leitura detida de interpretações do Brasil específicas de uma ou mais de uma delas a partir das linhas interpretativas propostas anteriormente Ainda assim esta seção busca ao menos avançar breves indicações de como essas linhas podem ser mobilizadas Para tanto farei uma apropriação livre de uma distinção fei ta por Sergio Tavolaro Para ele seria possível categorizar dois tipos de abor dagens nas interpretações do Brasil Sergio usa a expressão pensamento social brasileiro a sociologia da dependência cujos expoentes seriam por exemplo Caio Prado Júnior Florestan Fernandes Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni e a sociologia da herança patriarcalpatrimonial cujos expoentes seriam por exemplo Gilberto Freyre Sérgio Buarque de Holanda Raymundo Faoro e Roberto DaMatta22 Segue o argumento principal de Sergio Tavolaro 2005 p 6 Em ambos os casos é patente a resistência de ver a sociedade brasileira con temporânea e as ditas sociedades modernas centrais em pé de igualdade Por um lado afirmase que nosso passado diverge de maneira por demais 22 Tomarei por valor de face a categorização e os nomes elencados por Sergio Tavolaro em cada categoria sem que isso signifique minha plena concordância com seu esforço e os resultados a que chega Entretanto a distinção me é útil aqui como forma de apresentar uma possível mobilização das linhas interpretativas traçadas neste texto Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 225 14012021 1707 Victor Coutinho Lage 226 substantiva do contexto cultural normativo e simbólico em que emergiu e se consolidou o padrão de sociabilidade hoje predominante naquelas so ciedades centrais por outro postulase que nossa inalterada condição de dependência econômica estrutural jamais deixou de ser um obstáculo à total integração do Brasil no seleto clube dos países modernos centrais A meu ver essas duas abordagens são entrecortadas por uma tonalidade essencialista aspectos num primeiro momento vistos como historicamente constituídos são sutilmente deslocados dos contextos dinâmicos e multidimensionais em que se originaram e transformados em variáveis independentes pretensamente capazes de explicar em qualquer momento da história brasileira o tipo de sociabilidade que aqui se consolidou Duas implicações do esquema interpretativo proposto no trecho citado falam diretamente ao que tracei neste texto até o momento Em primeiro lu gar temse a separação entre sociedades centrais e sociedades que se po deria chamar de periféricas E em segundo lugar atribuise uma dimensão modernizante às duas abordagens das interpretações do Brasil em uma a modernização passaria pela superação da condição de dependência perifé rica enquanto na outra pela superação da herança patriarcalpatrimonial Deixando de lado uma análise mais detida sobre as possibilidades e impossi bilidades da modernização brasileira identificadas pelos intérpretes de cada uma das abordagens é plausível dizer que em ambas o processo formativo brasileiro é interpretado à luz de certa concepção do que seria um processo formativo desejável verificável via de regra em sociedades ditas centrais como França Inglaterra eou Estados Unidos Portanto levando em conta as duas implicações que demarquei é possí vel dizer que as interpretações do Brasil mencionadas por Sérgio Tavolaro operam dois movimentos a um só tempo a categorização das sociedades con temporâneas em centrais ou periféricas e o endosso de uma perspectiva modernizante para o processo formativo das últimas isto é a reprodução do desejo de que as sociedades periféricas se modernizem23 23 Os processos de modernização defendidos as formas modernas desejadas e o grau de re signação diante da realidade brasileira grau que se liga a posições mais ou menos céticas quanto à efetiva possibilidade de se atingir a forma moderna desejada são obviamente assaz diversos entre as interpretações do Brasil Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 226 14012021 1707 Interpretações do Brasil e formação 227 Contudo também é possível identificar uma dimensão de crítica à moder nização a partir dos nexos globais que se expõem por fretas locais O próprio Sergio Tavolaro em textos posteriores notou algo nesse sentido em trecho já citado por mim antes é possível identificar nas mais célebres obras interpre tativas da peculiaridade brasileira antecipações a críticas contemporâneas ao discurso da modernidade TAVOLARO 2014 p 635 Nos termos que propus aqui temse a proposição de que as interpretações do Brasil são a um só tempo modernizantes e críticas da modernização expondo frestas para formas alternativas de teorização dos lugares da modernidade Vejamos brevemente como isso se dá a partir de um exemplo de cada uma das duas abordagens demarcas por Sergio Em A Revolução Burguesa no Brasil Florestan Fernandes diz que o libe ralismo ao chegar ao Brasil não representou nem uma continuidade com os velhos padrões de formação nem uma ruptura completa com os mes mos O processo formativo brasileiro é analisado ao longo do texto sem que se perca de vista sua ligação com a civilização ocidental contemporânea FERNANDES 2005 p 88 A incorporação do modelo europeu no Brasil é vista pela ótica da sua assimilação interna desigual de forma que a produ ção da desigualdade global entre centro e periferia acaba inseparável da produção da desigualdade interna entre setores da sociedade Em uma das frases de maior poder interpretativo do texto Florestan diz que a economia periférica brasileira expõe uma descolonização mínima com uma moderniza ção máxima FERNANDES 2005 p 209 grifo original Ao menos cinco traços gerais podem ser identificados no texto de Florestan 1 a preocupação com as possibilidades e impossibilidades da formação plena da nação brasileira 2 a identificação de uma transição incompleta do passado colonial para o presente formalmente independen te do país 3 a articulação entre a desigualdade interna brasileira e a de sigualdade global capitalista 4 a comparação da modernidade brasileira com o modelo de economias centrais e 5 a verificação de peculiaridades no processo formativo brasileiro em especial pela coexistência no país de elementos arcaicos e modernos24 24 Retomei mais cuidadosamente o texto de Florestan em Lage 2019 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 227 14012021 1707 Victor Coutinho Lage 228 Sugiro diante disso que a interpretação do Brasil em A Revolução Burguesa no Brasil de um lado reproduz o desejo de modernização e supe ração da condição dependente constituída através do processo formativo do país e de outro lado associa a incompletude de sua formação nacional e a produção de desigualdade que a acompanha a um processo global da modernidade capitalista articulando forças internas a forças externas for ças da periferia a forças do centro Em outras palavras temse um texto que ao interpretar a modernidade brasileira também provê uma interpretação da modernidade em seus nexos globais Ainda a perspectiva modernizan te que perpassa o texto em especial no seu desejo de modernização e na comparação com sociedades que conseguiram supostamente romper com o passado na formação de sua condição moderna coexiste com uma crí tica ao processo global de modernização produtor de desigualdades entre sociedades e no interior de sociedades periféricas Seguindo o mesmo caráter sintético passo a um exemplo de abordagem da sociologia da herança patriarcalpatrimonial Sérgio Buarque de Holanda abre Raízes do Brasil falando sobre as fronteiras europeias na construção do Brasil25 Lêse na edição definitiva do livro que a tentativa de implanta ção da cultura europeia em extenso território é nas origens da sociedade brasileira o fato dominante e mais rico em consequências HOLANDA 1995 p 31 O tão citado homem cordial foco do quinto capítulo do texto não pode ser entendido sem que se leve em conta o processo colonizador de Portugal na América e as peculiaridades dele resultantes sendo esse próprio homem cordial a mais expressiva delas Mantendo a analogia com os cinco traços que isolei no texto de Florestan proponho outros cinco para o texto de Sérgio 1 a centralidade da preocupa ção com a formação da nação no Brasil 2 o destaque às reminiscências do passado no presente do país condicionando o processo da nossa revolução 25 Sabese e já há consideráveis estudos detidos nisso que as modificações feitas por Sérgio na primeira edição de Raízes do Brasil publicada em 1936 foram profundas e significativas tanto para o entendimento do texto quanto para se discutir o modo como o mesmo vem sendo apropriado desde então Em minha tese de doutorado desenvolvo uma interpretação dessas alterações Para este texto é suficiente lidar com a edição definitiva basicamente o texto estabelecido para a terceira edição de 1956 visto que meu objetivo é apenas indicar rapidamente como as linhas interpretativas propostas por mim antes podem ser mobilizadas Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 228 14012021 1707 Interpretações do Brasil e formação 229 título e assunto do último capítulo 3 a atenção às desigualdades internas no país em especial entre regiões agrárias e regiões urbanas 4 as múltiplas comparações com processos formativos de outras sociedades em especial dos países protestantes e dos países colonizados pela Espanha e 5 a ênfase nas peculiaridades do processo formativo brasileiro tal como as que se expressam na figura do homem cordial Com isso é plausível dizer que Raízes do Brasil desdobra uma posição modernizante para o futuro da formação brasileira na medida em que busca identificar obstáculos que precisariam ser removidos e em menor medida traços que deveriam ser preservados a fim de que o país opere sua revolu ção e dissolva o malentendido da democracia que o atravessa Ao mesmo tempo é importante não desacoplar as considerações de Sérgio sobre as ca racterísticas do país de suas extensas considerações sobre a colonização ibé rica e sobre a importação de modelos políticos por parte de elites nacionais Sendo assim a formação brasileira também é vista como um processo global da modernidade De forma similar ainda que com diferenças consideráveis em relação ao texto de Florestan o texto de Sérgio também expõe a coexis tência de uma perspectiva modernizante do país com uma crítica que traz à tona a dimensão global em que a formação nacional se insere Sendo impossível desenvolver uma leitura minimamente cuidadosa dos textos citados espero ao menos ter indicado alguns aspectos gerais que pode riam ser explorados no sentido que propus aqui Isto é meu objetivo foi tão somente isolar alguns traços de A Revolução Burguesa no Brasil e de Raízes do Brasil a fim de sugerir que eles são vias profícuas para se identificar lugares em que coexistem perspectivas modernizantes com críticas à modernização por uma perspectiva global Em suma abordandoos a partir do esquema interpretativo proposto ao longo deste texto essas interpretações do Brasil expõem lugares assimétricos constituídos e atravessados por nexos globais da modernidade NOTAS FINAIS Começo as notas finais com duas observações Para a primeira recorro a Gildo Marçal Brandão para a segunda retorno a Bernardo Ricupero e João Marcelo Maia Gildo disse certa vez que o interesse por intérpretes do Brasil Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 229 14012021 1707 Victor Coutinho Lage 230 parece ter íntima relação com a dinâmica da política brasileira Há em suas palavras alguma conexão de sentido entre essa explosão intelectual e a conjunção crítica que estamos vivendo uma transformação que é global e de alguma forma concentrada no tempo está forçando a reorganização das esferas da nossa existência e a reformulação dos quadros mentais que até agora esquematizavam nosso saber BRANDÃO 2005 p 235 É como se o ato e o esforço de pensar o pensamento viesse à tona com mais força nos momentos em que nossa má formação fica mais clara BRANDÃO 2005 p 235 grifo nosso Bernardo Ricupero 2008a p 68 grifo nosso por sua vez estabelece outra conexão Segundo ele Se a possibilidade de não realização da formação sempre esteve implícita na literatura sobre o tema isso parece ser particularmente o caso no Brasil de hoje Além de tudo essa situação se torna também cada vez mais realidade nos países que sempre nos serviram de modelo que antes nos pareciam tão bem formados Por outro lado por paradoxal que possa parecer nossa máformação talvez ganhe especial interesse já que se generaliza ganha caráter mundial Mais tarde em outro texto Bernardo se posiciona contra qualquer pers pectiva que partindo do pressuposto de uma suposta homogeneização do mundo trazida pela globalização para melhor ou para pior dissolva a dife rença entre centro e periferia RICUPERO 2013 Estou de pleno acordo com essa resistência26 A meu ver é crucial repensar essa diferença sem negligenciála Em jogo está a necessidade de problematizar a produção da desigualdade como um pro cesso global ligado à modernidade As interpretações do Brasil abrem frestas para esse esforço caso sejam abordadas sem as restrições de um nacionalismo 26 Eu também resistiria a qualquer esforço intelectual e político que buscasse tornar a ideia de que nossa má formação tem se generalizado em mais uma justificativa para uma perspectiva ou um projeto político modernizante universalizante ou que a transformasse em algum pilar conservador não raro associado a perspectivas xenófobas e à intensificação de leis de controle à imigração por exemplo Para uma discussão da chamada brasilianização de mundo ver Paulo Arantes 2004 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 230 14012021 1707 Interpretações do Brasil e formação 231 metodológico e sem a reprodução da ideia de que elas dizem respeito a um ambiente intelectual brasileiro autônomo centrado no entendimento do pro cesso formativo brasileiro como algo isolado do mundo MAIA 2009 2010 2011a 2011b Não se trata de fazer deles textos ou teorias universais mas de interpretálos como textos a um só tempo modernizantes e críticos da mo dernização interpretações que ensejam formas alternativas de teorização dos lugares da modernidade Neste texto meu objetivo primordial foi estabelecer linhas gerais pelas quais as interpretações do Brasil possam ser abordadas não como prove dores de conhecimento sobre um caso a ser analisado por teorias da mo dernidade e da modernização produzidas no centro e sim como textos que expõem lugares a partir dos quais nexos globais podem ser problematizados considerando as relações mútuas entre desigualdades internas e externas As interpretações do Brasil ajudam a questionar a divisão internacional da produção de conhecimento que separa países receptores de países produ tores de teorias Seria obviamente uma grosseira generalização dizer que os textos desse campo avançam ou ensejam problematizações similares acerca da modernidade e da sua política de conhecimento afinal seus aparatos con ceituais e suas implicações políticas são heterogêneos No entanto é plausível sugerir que eles sejam lidos não como simplesmente nativistas ou simples mente reprodutores de algum eurocentrismo e sim como textos que colocam em xeque a própria divisão entre centro e periferia Como adiantei logo no início este texto se restringiu a propor notas para uma agenda de pesquisaproblematização As interpretações do Brasil expõem lugares a partir dos quais a modernidade pode ser problematizada assim como certa relação entre teorização e lugar pode ser repensada Cabe explorar as fretas que se abrem 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Interpretações do Brasil e formação 235 LYNCH C Por que pensamento e não teoria A imaginação político social brasileira e o fantasma da condição periférica 18801970 DADOS Revista de Ciências Sociais Rio de Janeiro v 56 n 4 p 727767 2013 MADUREIRA L Is the Difference in Portuguese Colonialism the Difference in Lusophone Postcolonialism Elipsis Journal of the American Portuguese Studies Association Madison 6 2008 MAIA J M Pensamento social brasileiro e teoria social Notas para uma agenda de pesquisa Revista Brasileira de Ciências Sociais Brasília v 24 n 71 p 155168 2009 MAIA J M Space Social Theory and Peripheral Imagination Brazilian Intellectual History and DeColonial Debates International Sociology S l v 26 n 3 p 392407 2011a MAIA J M O pensamento social brasileiro e a imaginação póscolonial Revista Estudos Políticos Minas Gerais v 1 p 6478 2010 MAIA J M Ao sul da teoria a atualidade teórica do pensamento social brasileiro Revista Estado e Sociedade Brasília DF v 26 n 2 p 7194 2011b 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14012021 1707 Victor Coutinho Lage 236 NASCIMENTO E A antropofagia em questão In RUFFINELLI J ROCHA J C de C Antropofagia hoje Oswald de Andrade em cena São Paulo Realizações 2011 NOBRE M Depois da Formação cultura e política da nova modernização Piauí Teresina n 74 nov p 19 2012 Disponível em httprevistapiauiestadaocombredicao74tribunalivredalutade classesdepoisdaformacao Acesso em 29 ago 2014 PERICÁS L B SECCO L org Intérpretes do Brasil clássicos rebeldes e renegados São Paulo Boitempo 2014 REIS D A coord Modernização ditadura e democracia 19642010 Lilia Moritz Schwarcz dir Madri Mapfre Rio de Janeiro Objetiva 2014 História do Brasil Nação 18082010 v 5 ROCHA J Cde C Oswald em cena o PauBrasil o brasileiro e o antropófago In RUFFINELLI J ROCHA J C de C Antropofagia hoje Oswald de Andrade em cena São Paulo Realizações 2011 ROCHA J C de C org Nenhum Brasil existe pequena enciclopédia Rio de Janeiro Topbooks 2003 RICUPERO B A reconciliação com a tradição Revista Brasileira de Ciências 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SANTIAGO S O homossexual astucioso Primeiras e necessariamente apressadas anotações In SANTIAGO S O cosmopolitismo do pobre crítica literária e crítica cultural Belo Horizonte Editora UFMG 2004 SANTIAGO S org Intérpretes do Brasil 3v Rio de Janeiro Nova Aguilar 2000 SANTOS B de S Entre Próspero e Caliban colonialismo póscolonialismo e interidentidade Novos Estudos São Paulo v 66 p 2351 2003 SANTOS W G dos Paradigma e história a ordem burguesa na imaginação social brasileira In SANTOS W G dos Ordem burguesa e liberalismo político São Paulo Duas Cidades 1978 SCHWARCZ L M A abertura para o mundo 18891930 Lilia Moritz Schwarcz dir Madri Mapfre Rio de Janeiro Objetiva 2012 História do Brasil Nação 18082010 v 3 SCHWARCZ L M BOTELHO A Pensamento social brasileiro um campo ganhando forma Lua Nova São Paulo n 82 p 116 2011 SCHWARZ R Discutindo com Alfredo Bosi In SCHWARZ R Sequências brasileiras ensaios São Paulo Companhia das Letras 1999 SCHWARZ R Idéias fora do lugar In SCHWARZ R Ao vencedor 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Neither Traditional nor Fully Modern Two Classic Sociological Approaches on Contemporary Brazil International Journal of Politics Culture and Society S l n 19 p 109128 2008 VIANNA L W Ventajas de lo Moderno Ventajas del Atraso In AROCENA F DE LEÓN E El Complejo de Prospero ensaios sobre cultura modernidad y modernización en América Latina Montevidéu Vintén Editor 1993 WALKER R B J After the Globe Before the World London Routledge 2010 YOUNG R White Mythologies Revisited In YOUNG R White Mythologies Writing History and the West 2 ed London Routledge 2004 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 238 14012021 1707 239 PENSANDO AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS A PARTIR DA PERIFERIA ANTROPOFAGIA E PERSPECTIVISMO AMERÍNDIO FLAVIA GUERRA CAVALCANTI INTRODUÇÃO Os estudos póscoloniais nas relações internacionais apontam para as ori gens eurocêntricas da disciplina e seu estabelecimento formal no século XX nos Estados Unidos Porém qual a importância das relações internacionais para aqueles que estão na periferia do sistema internacional De que rela ções internacionais estamos falando quando nos pronunciamos a partir da periferia Nossa proposta neste capítulo é discutir de que forma o Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade e o perspectivismo ameríndio estuda do por Eduardo Viveiros de Castro podem nos apontar caminhos para pen sarmos uma descolonização das relações internacionais a partir da América Latina Tanto o manifesto quanto o perspectivismo nos possibilitam conceber projetos que contestam a epistemologia ocidental moderna que está na base de nosso pensar sobre o mundo em geral e sobre as relações internacionais em particular O Manifesto Antropófago antecipa no Brasil discussões que aparece riam no meio acadêmico brasileiro décadas mais tarde De acordo com Luís Madureira ocorre já uma emergência da póscolonialidade nos movimentos de vanguarda do Novo Mundo ou seja justamente nos modernismos que foram Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 239 14012021 1707 Flavia Guerra Cavalcanti 240 tradicionalmente definidos como periféricos e imitadores MADUREIRA 2011 p 300 Em Cannibal Modernities 2005 Madureira já se perguntava se a antropofagia prefigura o projeto póscolonial de provincializar o Ocidente MADUREIRA 2011 p 300 O Manifesto Antropófago como veremos na próxima seção não deve ser lido como defesa de uma identidade brasileira diametralmente oposta à europeia Ele se insurge contra uma imitação acríti ca mas defende a imitação parcial criativa produtora do novo A experiência antropofágica reconfigura a divisão entre o eu e o outro entre sujeito e objeto desestabilizando a dicotomia InsideOutside que está na base da constituição da disciplina de relações internacionais O perspectivismo ameríndio também realiza esse deslocamento epistemo lógico da disciplina de relações internacionais Na Metafísica Canibal anali sada por Viveiros de Castro a incorporação canibal do outro obriga o homem a sair de si o exterior estava em processo incessante de interiorização e o interior não era mais que movimento para fora VIVEIROS DE CASTRO 2011 p 220 A fronteira presente nesta Metafísica Canibal é portanto bem diferente daquela que supostamente separa o sujeito moderno de seu exterior ou o Estado moderno do ambiente internacional anárquico ANTROPOFAGIA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS Relendo o Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade A atualidade do Manifesto Antropófago vem sendo discutida e reafirmada por vários teóricos que veem o manifesto como o texto fundador da cultura brasileira Poderíamos dizer que o poema mais do que a carta de Pero Vaz de Caminha é a certidão de nascimento do Brasil Se na narrativa oficial nossa história começa com o Descobrimento em 1500 no Manifesto a data é a de 1554 quando o Bispo Sardinha foi devorado pelos índios caetés Nosso mo mento fundacional é portanto marcado pelo canibalismo O manifesto expressa a forma como o brasileiro vê o colonizador e vê a si próprio e quais elementos constituem sua identidade eternamente em formação Este último ponto é importante Ao contrário de algumas inter pretações que veem o Manifesto como a defesa de uma identidade brasileira em oposição à europeia esses teóricos entendem que a antropofagia propõe Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 240 14012021 1707 Pensando as relações internacionais a partir da periferia 241 exatamente uma abertura da identidade concebida como essencialista É justamente na interface no hibridismo cultural que nos constituímos e não por oposição ao outro A Antropofagia vai nos falar da devoração do outro e não do afastamento e oposição ao outro essa devoração também não é uma aniquilação mas uma exaltação e valorização do outro Em Antropofagia hoje Jorge Ruffinelli e João Cezar de Castro Rocha 2011c reúnem textos que vão repensar o Manifesto de Oswald mostrando seu potencial para desestabilizar as epistemologias hegemônicas Em um texto sobre o Manifesto Sergio Paulo Rouanet 2011 faz uma diferenciação entre a antropofagia caeté e a antropofagia tupinambá que estariam em disputa no texto A primeira seria uma antropofagia voltada para o próprio umbigo provinciana que exalta o ser brasileiro Seria uma antropofagia chauvinista e preocupada com a defesa das raízes da comunidade e de uma identidade brasileira Em nossa interpretação os caetés são aqueles que se limitaram à negação da imitação devorando o outro num canibalismo chauvinista Em contraste os tupinambás realizam um deslocamento que leva a uma identi dade aberta nômade híbrida cosmopolita provisória em constante fluxo São cidadãos do mundo prontos para realizar uma antropofagia desconstru tivista de identidades fixas No texto Rouanet psicografa Oswald e mostra que o modernista teria deixado de ser um antropófago caeté para se tornar um antropófago tupi nambá Em suma Oswald mandaria um recado por meio de Rouanet de que mudou de opinião sobre a antropofagia A nosso ver a carta psicografada de Oswald escrita por Rouanet é desnecessária haja vista que desde o início já é possível ler o Manifesto numa chave tupinambá Ao absorver o outro o caeté o faz em seus próprios termos mantendo o predomínio de sua voz ou seja realizando um processo de assimilação cultu ral do outro este tem de se tornar um caeté a qualquer custo Ao contrário o tupinambá introduz o hibridismo realizando uma antropofagia da indecidibi lidade em que a identidade oscila entre uma raiz tupinambá e uma identidade estrangeira Os caetés querem ter raízes e os tupinambás querem ter asas ROUANET 2011a p 49 O autor lembra que atualmente encontramse cae tés por toda parte em todo lugar onde se tenta defender as raízes Há muito sérviocaeté querendo matar bósnio muito irlandêscaeté explodindo inglês Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 241 14012021 1707 Flavia Guerra Cavalcanti 242 muito iranianocaeté declarando guerra santa Caeté tem raízes As minorias étnicas também querem ter Raiz é um perigo ROUANET 2011a p 54 A interpretação de Rouanet sobre o Manifesto é compartilhada pelo escri tor e diplomata João Almino a cultura brasileira não é insular e voltada unicamente para suas raízes para o solo nacional nem por outro lado se insere de forma secundária ou subordinada numa civilização universal cen trada na Europa ALMINO 2011 p 55 Não podemos negar que o Manifesto Antropófago faz uma crítica ao cosmopolitismo eurocêntrico predominante na cultura brasileira do final do século XIX e início do XX Mas o Manifesto não para por aí Não há diz Almino uma opção pelo primitivo em prejuízo do civilizadocosmopolitaeurocêntrico porque a própria dicotomia civiliza doprimitivo é desfeita no deslocamento O primitivo de Oswald é ao mesmo tempo moderno civilizado tecnologizado daí a imagem do híbrido bár barotecnizado presente no Manifesto A semelhança da antropofagia com a desconstrução de Jacques Derrida tornase clara nesta diluição da dicoto mia Não há superioridade do civilizado sobre o primitivo nem deste sobre aquele O que ocorre é uma troca mútua de propriedades entre os supostos primitivos e civilizados A cultura brasileira deixa de ser pensada como oposta à europeia e se torna muito mais multifacetada Nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós Nunca fomos catequizados Fizemos Cristo nascer na Bahia Ou em Belém do Pará Nunca fomos catequizados Fizemos foi Carnaval ANDRADE 1928 p 1 Talvez o carnaval não o das máscaras venezianas mas o brasileiro seja o mais bem acabado exemplo de antropofagia De certa forma o Cristo que brota na favela carioca no desfile da Mangueira atualiza o Manifesto Antropófago O carnaval como dizia Bakhtin1 subverte a lógica das oposições hierárquicas e produz hibridismo Porém Almino chama a atenção para um excesso de otimismo em relação à capacidade do estômago nacional de digerir todas as influências No mundo globalizado o verdadeiro antropófago será sempre aquele com mais poder por sua maior capacidade econômica e técnica de absorção e sobretudo de exportação cultural ALMINO 2011 p 60 Sempre teremos de levar em con ta que as assimilações culturais são recíprocas e também assimétricas pois a 1 Bakhtin utiliza o termo carnavalização Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 242 14012021 1707 Pensando as relações internacionais a partir da periferia 243 desigualdade de poder é real ALMINO 2011 p 60 O que a antropofagia oswaldiana tem a nos ensinar é que não precisamos nem nos fechar numa cultura de museu uma cultura protegida de influências nem nos abrir ao universal a ponto de abdicarmos do nacional Mais do que isso na formulação de José Celso Martinez Corrêa não fa zemos questão de ter uma personalidade própria um caráter uma imagem única ao contrário o que interessa é o movimento de devoração permanente CORRÊA 2011 p 80 Para Suely Rolnik só uma leitura desatenta da antro pofagia oswaldiana poderia nos levar a associála a uma identidade brasileira Ela é um movimento que se desloca dessa busca de uma representação da cultura brasileira ROLNIK 2000 p 10 A antropofagia é assim o contrário de uma imagem identitária ou o oposto de um pensamento fundacionalista A proposta de Oswald era justamente o contrário de uma essencializa ção da identidade do brasileiro Nesse sentido a antropofagia de Oswald se aproximaria da estratégia da desconstrução Tanto a antropofagia quanto a desconstrução desestabilizam constantemente a antítese dentrofora pois o canibal ou o antropófago não respeita as marcas que estabilizam a diferença No século XVI Michel de Montaigne já havia afirmado que não há nada de bárbaro ou de selvagem nesses indígenas da América do Sul a não ser o fato de que chamamos barbárie tudo o que não faz parte dos nossos cos tumes 1580 1967 De acordo com Maria Helena Rouanet a produção romântica minimizava as referências aos costumes bárbaros dos selvagens ROUANET 2011b p 173 enquanto se destacavam suas qualidades posi tivamente conotadas aos olhos da sociedade branca civilizada ROUANET 2011b p 173 O movimento anticolonialista fazia o mesmo representando o canibal como bom resistente um herói que lutava contra a colonização A novidade do Manifesto Antropófago é justamente dizer que o Bárbaro é nos so sem qualquer subterfúgio ou tentativa de enobrecêlo Wagner submerge ante os cordões de Botafogo Bárbaro e nosso ANDRADE 1924 p 1 O conceito do Manifesto não se contenta com a inversão da oposição hie rárquica cultura europeiacultura brasileira mas produz um deslocamento do significado de cultura brasileira Em diversos trechos do Manifesto Oswald realiza enxertos em teses tradicionais sobre o que seria o brasileiro tentando justamente desfazer mitos e idealizações Por isso seu discurso é fragmenta do como aponta o crítico Antonio Cândido Múltiplas vozes surgem a partir Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 243 14012021 1707 Flavia Guerra Cavalcanti 244 dos enxertos realizados na história oficial criando uma narrativa polifônica Tal como o pensamento póscolonial a antropofagia se contrapõe à narrativa moderna sobre a centralidade da Europa no mundo A obra de Oswald realiza uma releitura da história oficial brasileira ou seja do discurso que apresenta uma origem e um fundamento para a histó ria da Nação O que se reconstrói na antropofagia é a história dos oprimidos subalternizados das alteridades toda uma polifonia de vozes enxertadas no discurso oficial que haviam sido abafadas pela história linear e iluminista do Descobrimento A antropofagia é portanto uma estratégia que ressignifica a memória dos vencidos para contesta a ofensa O Manifesto também ressigni fica as origens da Nação O Padre Vieira deixa de ser um herói para se tornar o autor do nosso primeiro empréstimo para ganhar comissão ANDRADE 1928 Para piorar Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia ANDRADE 1928 O padre Vieira é aqui ressignificado como um oportunista e sua escrita tida como uma das melhores da língua portuguesa é rebaixada à categoria de lábia Além disso o rei que faz o acordo com Vieira era um reianalfabeto ANDRADE 1928 Assim os supostos fundadores da nação são ressignificados como ignorantes trapaceiros oportunistas Poderíamos dizer que essa resignificação da origem é uma crítica da his tória do Descobrimento Diz Oswald Contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra 1928 O cabo Finisterra localizado na Galiza era considerado o fim da terra Finis Terrae no caso o fim da Europa para além do qual só haveria mar a história que começa no Cabo Finisterra é a do Descobrimento da América Mas é contra esta história que Oswald e o movimento antropofágico se insurgem pois havia uma história anterior à oficial pertencente a um mundo não datado não rubricado Sem Napoleão Sem César 1928 Aqui dois pontos merecem destaque O mundo não da tado e não rubricado nos remete a uma temporalidade distinta da crono lógica linear marcada por etapas sucessivas Por outro lado essa história é uma história sem heróis sendo estes aqui representados metaforicamente por Napoleão e Cesar A genealogia oswaldiana rompe ainda com a ideia de que a História é uma grande totalidade de pontos monumentais Também neste aspecto a crítica de Oswald parece se aproximar de uma genealogia uma vez que uma histó ria sem Napoleão e Cesar significa uma história sem marcos monumentais Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 244 14012021 1707 Pensando as relações internacionais a partir da periferia 245 O tratamento não linear que Oswald confere à temporalidade pode ser notado na organização do material O autor promove uma desordem cronoló gica ao se referir na mesma frase à história que começa no Cabo Finisterra Napoleão e Cesar A história do Descobrimento da América que começa no Cabo Finisterra não guarda relação com Napoleão e Cesar Além disso Cesar é anterior a Napoleão Ao misturar as épocas históricas Oswald pro voca uma desorganização da temporalidade linear Esta leitura paródica da temporalidade é confirmada ao final do Manifesto quando o autor alude ao episódio do naufrágio do navio em que viajava o bis po Sardinha que supostamente teria sido devorado por índios Oswald data o Manifesto no Ano 374 da deglutição do Bispo Sardinha Embora o Manifesto tenha sido escrito em 1928 esta data é a do calendário cristão europeu Para Oswald o nosso calendário e a nossa história começam ironicamente em 1554 quando o Bispo foi devorado Nesta leitura a antropofagia de Oswald se aproxima dos autores pósco lonialistas e de sua crítica sobre a narrativa histórica da modernidade que despreza a colonialidade No entanto também vemos elementos próximos da desconstrução na estratégia de Oswald Para o crítico Antônio Cândido a escrita de Oswald é fragmentária tendendo a certas formas de obra aber ta na medida em que usa a elipse a alusão o corte o espaço branco o cho que do absurdo pressupondo tanto o elemento ausente quanto o presente CANDIDO 1977 p 78 A descrição de Cândido sobre o estilo de Oswald tem vários pontos de contato com a noção de différance da desconstrução Na conferência La dif férance Derrida 1967 p 13 afirma que a différance faz com que O movimento da significação só seja possível se cada elemento dito presente aparecendo no cenário da presença relacionarse com algo que não seja ele próprio guardando em si a marca do elemento passado e já se deixando escavar pela marca de sua relação com o elemento futuro As elipses alusões cortes e espaços brancos do discurso fragmentado do Manifesto Antropofágico revelam justamente o movimento da resignificação proposto pela antropofagia e pela desconstrução É por meio desses recursos linguísticos que um significado fixo presente no discurso monológico será Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 245 14012021 1707 Flavia Guerra Cavalcanti 246 desestabilizado e reintroduzido como significante flutuante na cadeia de sig nificantes ou em outras palavras será lançado novamente no sistemático jogo de diferenças A linguagem de Oswald está ancorada na sátira na paródia na descontextualização criativa na estética da colagem no humor características que também estão presentes na definição de carnavalização de Bakhtin De acordo com Jáuregui 2008 o significante canibal realiza uma fuga vertigi nosa na constelação do que Derrida denomina différance Os canibais evocam inicialmente os ciclopes e os cinocéfalos e depois pare cem ser soldados de Khan rapidamente se convertem em índios bravos e sua localização coincide com a do buscado ouro os canibais são definidos também como escravos ou moradores de certas ilhas Longe de encontrar um momento de sossego semântico o canibal desliza ao longo de um espaço nãolinear o espaço da différance colonial JÁUREGUI 2008 p 14 No entanto a ressignificação na différance colonial apresentada por Jáuregui preserva o significado negativo de canibal Em Oswald num primeiro momento podemos ver uma inversão O canibal que no século XVI aparecia numa cadeia de significantes ao lado de termos como selvagem não cristão primitivo criança não humano surgirá no Manifesto com um significado positivo O canibal que devora o bispo Sardinha é aquele que não se deixou catequizar aquele que resistiu à imposição do cristianismo Esta inversão de Oswald no entanto não nos autoriza a concluir que ele se limita ao movimento de valorização do termo inferiorizado da oposição hierárquica europeucanibal A interpretação do Manifesto não pode ser feita com base num dos recortes de Oswald mas deve levar em conta o conjunto do texto e a interrelação entre os seus fragmentos A inversão de Oswald é provisória porque será complementada pelo movimento de deslocamento que dilui a barreira entre o eu e o outro Oswald referese ao Visconde de Cairu como um antropófago sagaz Contra a verdade dos povos missionários definida pela sagacidade de um antropófago o Visconde de Cairu ANDRADE 1928 Embora haja aqui uma inversão antes o antropófago era criança imaturo primitivo ela é seguida por um deslocamento que anula a divisão entre o representante da história oficial o Visconde e o antropófago As identidades de nobre e Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 246 14012021 1707 Pensando as relações internacionais a partir da periferia 247 antropófago não podem mais ser pensadas separadamente e é este híbrido nobre antropófago que se colocará contra a catequese uma metáfora do saber e da filosofia europeia ANTROPOFAGIA DESCONSTRUINDO PREMISSAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS A nosso ver a antropofagia qualificase como uma epistemologia a partir do local geoistórico da América Latina A Antropofagia afirmará que não somos uma cópia da Europa nem adotamos a epistemologia moderna ocidental como forma de conhecimento Portanto existe um grande potencial para a utilização da Antropofagia para repensar as premissas das correntes mais tradicionais que estruturam a disciplina de Relações Internacionais O Manifesto Antropófago insurgese contra o conhecimento lógico especulativo racionalista europeu mostrando que há uma forma de co nhecimento antropofágico relacionada à concretude da experiência ao Carnaval ao hibridismo à paródia ao humor e à adivinhação Ao contrá rio nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós Nunca fomos catequizados Fizemos foi Carnaval ANDRADE 1928 2 Contra todos os importadores de consciência enlatada A existência palpável da vida E a mentalidade prélógica para o Sr LévyBruhl estudar ANDRADE 1928 p 1 E ainda não tivemos especulação Mas tínhamos adivinhação ANDRADE 1928 p 3 Em suma a antropofagia de Oswald seria uma espécie de pensamento liminar para usarmos o termo de Walter Mignolo de um outro pensamento feito a partir da América Latina O Manifesto Antropófago realiza um pro cesso de descolonização que pode ser transposto para a área internacional A frase Tupi or not tupi that is the question repete a estrutura da frase de Hamlet mas em vez do suposto universalismo do Ser ou não ser Oswald mostra que há uma especificidade cultural em Tupi ou não tupi Esta é a nossa questão a questão do colonizado e não uma especulação metafísica sobre o ser Ao mesmo tempo como vimos na seção anterior a questão do colonizado não é fechada Não se trata de constituir uma identidade bra sileira tupi Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 247 14012021 1707 Flavia Guerra Cavalcanti 248 Ao tratar dos caetés em sua leitura do Manifesto Antropófago Sergio Paulo Rouanet nos remete a uma questão premente no campo das relações interna cionais O caeté é aquele que se fixa numa identidade e opõe a sua identidade à do outro A tese do choque de civilizações pode ser lida como uma expres são dessa mentalidade caeté Cada grupo humano possuiria uma identidade que se enraíza que não apresenta fluidez e que para sobreviver precisa da oposição ao outro O modus operandi de vários conflitos internacionais hoje se dá justamente por conta de fixações de identidade no estilo caeté Como lembrou o próprio Rouanet existe sérviocaeté iranianocaeté No campo internacional as políticas de identidade dão origem a guerras e genocídios A contribuição do Manifesto Antropófago para as Relações Internacionais reside no modo de ser tupinambá contrário às raízes e a favor da abertura para os outros O modus operandi do tupinambá é a absorção do outro mas uma absorção que significa um enaltecimento do outro Nada mais distante das tendências que verificamos no sistema internacional nas primeiras déca das do século XXI Os conflitos retomam a dicotomia civilizadobárbaro em que o bárbaro é sempre o outro o não humano aquele que precisa ser elimi nado em nome da civilização Oswald nos apresenta o bárbaro tecnizado subvertendo a hierarquia civilizadobárbaro tão presente hoje nas relações internacionais No Manifesto o bárbaro é dotado de características que são essenciais para o processo civilizacional Como nos lembra Celso Martinez Correa cida des do primeiro mundo tem um aglomerado de bárbaros hispânicos negros marroquinos que estão devorando aquela cultura e que estão renovando a própria cultura ocidental CORRÊA 2011 p 80 Os estudos migratórios podem vir a ganhar muito a partir de uma reflexão sobre a antropofagia nas relações internacionais Não temos como entender as relações que se estabe lecem hoje entre as sociedades receptoras de imigrações e os grupos de mi grantes sem pensar na questão da antropofagia Quem devora quem Como se dá essa troca cultural e a constituição de uma outra cultura híbrida que não é nem a da sociedade receptora nem a do imigrante A Antropofagia também nos permite como algumas correntes dissi dentes das Relações Internacionais questionar a dicotomia insideoutside a divisão entre o dentro e o fora o eu e o outro A Antropofagia se carac teriza por ser um processo de assimilação crítica do outro ROUANET Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 248 14012021 1707 Pensando as relações internacionais a partir da periferia 249 2011b p 174 O canibal se apropria da identidade do outro transformase em outro o dentro se transforma em fora e o fora no dentro como na fita de Moebius Diluemse assim as fronteiras que constituem a disciplina A narrativa tradicional sobre o surgimento da sociedade internacional também pode ser desconstruída por meio da Antropofagia Nos textos da Escola Inglesa a emergência da sociedade internacional é vista como uma invenção europeia que se expandiu para além de seu espaço original Esta teoria também pressupõe que a soberania moderna surgiu primeiro na Europa e depois foi exportada para o mundo Disto decorre que o modelo de Estado e de organização é aquele dado pela história europeia A sociedade internacio nal e o modelo de Estado moderno europeu são vistos como o fim que todos os demais têm de alcançar Essa temporalidade linear coloca a Europa como o ponto de chegada do progresso Mas a Antropofagia vem revirar essa temporalidade Oswald refe rese a um mundo não datado e não rubricado ANDRADE 1928 p 1 que nos remete a uma temporalidade distinta da cronológica linear marcada por etapas sucessivas O tratamento não linear que Oswald confere à temporalidade pode ser notado na organização do material O autor promove uma desordem cronológica dos fatos históricos a começar pelo início da história brasileira quando o autor a localiza no Ano da deglutição do Bispo Sardinha e não em 1500 Nesta outra temporalidade a Europa não é o futuro da América como está implícito na teoria da sociedade internacional Ao contrário há uma co constituição entre Europa e América Latina O texto de Oswald antecipa questões colocadas pelo póscolonialismo nas relações internacionais De acordo com Vera Follain de Figueiredo o Manifesto promove uma releitura do paradigma da razão moderna europeia A cons trução da ideia de modernidade conectada à expansão europeia passou pela constituição de um lugar geocultural privilegiado hegemônico de produção do conhecimento FIGUEIREDO 2011 p 391 Já Oswald diz Figueiredo vai buscar um outro lugar de enunciação que coloque em xeque a tradição oci dental o que o aproxima da razão póscolonial discutida por Walter Mignolo Tratase de questionar uma ordem mundial na qual o Ocidente e o Oriente o Eu e o outro o civilizado e o bárbaro foram inscritos como entidades natu rais MIGNOLO 1996 p 9 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 249 14012021 1707 Flavia Guerra Cavalcanti 250 Perspectivismo ameríndio e Relações Internacionais a Metafísica Canibal ou o Cogito Canibal Um exemplo de pensamento elaborado a partir da América Latina pode ser ilustrada pelo conceito de perspectivismo ameríndio cunhado por Eduardo Viveiros de Castro O perspectivismo ameríndio seria um outro pensamento capaz de interpelar a filosofia e a modernidade ocidentais O perspectivismo ameríndio não pressupõe categorias como sujeito e substância estes não existem a priori mas são produto de uma relação Esta concepção subverte a tradição filosófica europeia a qual toma a substância como um dado e as relações como uma consequência Poderíamos dizer que o privilégio da relação sobre a substância também é uma característica do pensamento póspositivista desenvolvido por europeus O poder em Foucault não é uma substância mas uma relação E o conceito de différance de Derrida é primordialmente relacional o sentido só se produz a partir de uma relação entre os significantes No entanto não pretendemos equiparar o pensamento ameríndio ao pensamento póspositivista europeu o póspositivismo europeu não leva em conta a diferença colonial Justamente para chamar a atenção para nossa especificidade Viveiros de Castro utiliza o termo diferonça uma mistura da différance de Derrida com a palavra onça que faria referência ao universo ameríndio No perspectivismo a relação ad quire uma característica diferente da que aparece no póspositivismo a incor poração A diferonça é uma relação de incorporação canibal O modo básico de relacionamento ameríndio é a caça a predação do outro Historicamente a incorporação canibal foi associada ao mito pelo pensa mento hegemônico eurocêntrico Como explicar o canibalismo a não ser por meio dos mitos e da desrazão presentes nas culturas ameríndias O perspec tivismo ameríndio resgata o mito do canibalismo de seu lugar de conhecimen to subalterno e destituído de razão O mito canibal não é o oposto da razão mas um pensamento rigoroso sobre incorporação predação transformação a partir da periferia e da diferença colonial Em suma podese falar de um cogito canibal VIVEIROS DE CASTRO 1995 No entanto este cogito se caracteriza por negar qualquer tipo de dogma Viveiros de Castro mostrou que o tema da inconstância da alma selvagem Il selvaggio è mobile era bastante comum nos relatos dos europeus sobre os Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 250 14012021 1707 Pensando as relações internacionais a partir da periferia 251 ameríndios O problema dos índios não estava na falta de inteligência mas na ausência de duas outras potências da alma a memória e a vontade Tudo o que aprendiam rapidamente era esquecido em pouco tempo e substituído por novos conhecimentos Não se fixava em suas mentes comprometendo o trabalho dos missionários Esta interpretação teria em parte algum fundamento Ela de fato corres ponde a algo que se pode experimentar na convivência com muitas sociedades ameríndias VIVEIROS DE CASTRO 2001 p 191 A concepção ocidental de cultura pressupõe uma paisagem povoada por estátuas de mármore ou seja toda sociedade tende a perseverar no seu próprio ser Nossas identidades tradições memórias são constituídas no mármore e custam a ser modificadas Na linguagem do Padre Antonio Vieira citado por Viveiros de Castro estas seriam nações de mármore Ao contrário no cogito canibal o conhecimento é rapidamente aprendido mas também esquecido Teríamos então nações de murta na definição de Vieira A inconstância não ocorre apenas em relação ao cardápio ideológico ocidental mas também e de um modo ainda mais difícil de analisar de sua relação consigo mesmas com suas próprias e autênticas ideias e instituições VIVEIROS DE CASTRO 2001 p 191 Essa inconstância resultaria numa abertura ao outro como já havia assinalado Claude LéviStrauss Em seu estudo sobre a tribo tupiguarani dos Araweté Eduardo Viveiros de Castro havia definido o cogito canibal como a topologia do deviroutro totalmente contrário ao narcisismo A prática colonial era narcísica porque tentava tor nar o outro igual a si próprio como num jogo de espelhos Por isso os con quistadores se arvoravam o direito de levar o cristianismo aos indígenas Em contraste o cogito canibal quer se tornar o outro deviroutro ser absorvido pelo outro Em vez de narcisismo há uma entrega e abnegação absolutas O ato canibal não visa a transformar o outro como o conquistador narcisista mas alterar a si próprio com base no outro quem come é que se altera Ou seja o canibal não pretende preservar a sua identidade pois não é isto o que lhe importa Não há substância identitária em meio à inconstância O que o canibal almeja é o estabelecimento de uma troca uma relação Como já dito o perspectivismo ameríndio não pressupõe um sujeito e uma substância portanto não faz sentido preservar uma identidade substancial como ocorre nas nações de mármore Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 251 14012021 1707 Flavia Guerra Cavalcanti 252 Segundo Viveiros de Castro 2011 p 220 a incorporação canibal do outro obriga o homem a sair de si o exterior estava em processo incessante de interiorização e o interior não era mais que movimento para fora A fron teira presente neste cogito é portanto bem diferente daquela que separa o sujeito moderno de seu exterior ou o Estado moderno do ambiente interna cional anárquico Um outro aspecto do canibalismo apontado pelos antropólogos OBEYESEKERE 2005 VIVEIROS DE CASTRO 2011 diz respeito ao diálo go que precedia o ato canibal A conversa com o Outro não visava a inculcar no outro sua própria cultura num discurso monológico e eventualmente punilo com o canibalismo caso não se adequasse aos preceitos ensinados Não se tratava de convencer o outro a ser igual a si Tanto o matador quanto a vítima conversavam sobre a relação de dependência que se estabeleceria entre seus grupos por meio da vingança canibal O matador proclamava o ato canibal como vingança de uma ação passada enquanto a vítima adver tia que o seu grupo o vingaria no futuro Não havia uma relação de subser viência entre o matador e a vítima pois ambos tinham direito à palavra e à construção de uma narrativa A conversa era dialógica duas vozes trocavam experiências e relacionavamse de forma simétrica A antropofagia canibal era dialógica o Outro tinha a sua alteridade preservada Esta questão terá implicações para a própria concepção de tempo ameríndia Na Filosofia da História kantiana e hegeliana as sociedades se desen volviam rumo ao estágio já alcançado pela Europa O outro é assimilado ao modelo europeu e sua voz é inaudível Poderíamos aqui utilizar a expressão antropofagia monológica para caracterizar o processo pelo qual o europeu engolia o outro para transformálo no seu semelhante A Antropofagia mo nológica revela o modo de ser europeu em processos como o assimilacionis mo a missão civilizatória o desenvolvimentismo e a teoria da modernização Ao contrário a antropofagia canibal nos introduz numa concepção de tempo e história dialógica em que a voz da vítima é escutada no mesmo mo mento em que se ouve a voz do matador O ato canibal não é o resultado de uma assimetria em que uma cultura superior tenta assimilar outra inferior e situada num estágio de desenvolvimento anterior A incorporação canibal se realiza entre duas culturas que estão numa relação simétrica coexistem num Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 252 14012021 1707 Pensando as relações internacionais a partir da periferia 253 mesmo tempo e uma depende da outra para a preservação de sua memória Os inimigos eram os guardiões da memória coletiva A memória do grupo nomes tatuagens discursos cantos era a memória dos inimigos Longe de ser uma afirmação obstinada de autonomia por parte dos parceiros desse jogo como quis Florestan e mais tarde Pierre Clastres a guerra de vingança tupinambá era a manifestação de uma heteronomia primeira o reconhecimento de que a heteronomia era a condição da auto nomia VIVEIROS DE CASTRO 2011 p 241 O perspectivismo ameríndio nas relações internacionais De que forma poderíamos utilizar o perspectivismo ameríndio para repensar o internacional a relação com o outro no sistema internacional Uma das pri meiras dúvidas que podem surgir diz respeito à possibilidade de compreender de fato o pensamento ameríndio Se acessamos o Outro no caso o pensa mento ameríndio a partir dos instrumentos de que dispomos no pensamento ocidental moderno em que medida esse perspectivismo não está perpassado e contaminado por nossa lógica Viveiros de Castro nos explica que as socie dades e as culturas que são o objeto da pesquisa antropológica influenciam ou para dizer de modo mais claro coproduzem as teorias sobre a sociedade e a cultura formuladas a partir dessas pesquisas Negálo significa aceitar um construtivismo de mão única VIVEIROS DE CASTRO 2015 p 22 Portanto não se trata aqui de propor que um pensamento ameríndio puro autêntico intocado pela civilização ocidental possa ser utilizado para contestar e revolucionar as teorias e epistemologias do campo das relações internacionais Optar por este caminho seria não só impossível na prática como contrariaria a própria ideia de que na Metafísica Canibal assim como na Antropofagia o eu se abre para o outro Retomando a frase já citada de Viveiros de Castro o exterior estava em processo incessante de interio rização e o interior não era mais que movimento para fora VIVEIROS DE CASTRO 2011 p 220 Ora este movimento do tornarse outro ir para fora e deixar o de fora vir para dentro é exatamente o oposto de uma cultura pura autêntica preservada num museu Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 253 14012021 1707 Flavia Guerra Cavalcanti 254 Em muitos aspectos a antropofagia literária coincide com a antropofagia dos povos ameríndios Para Carlos Fausto se definirmos o canibalismo como apropriação violenta de capacidades subjetivas de entes dotados de perspectiva própria a antropofagia deve ser tida como uma subespécie de canibalismo FAUSTO 2011 p 161 A coincidência entre a antropofagia de Oswald e o canibalismo tupi ocor re no nível simbólico Para Fausto a metáfora antropofágica modernista era congruente com as representações indígenas FAUSTO 2011 p 169 Os ara wetés um grupo tupiguarani do Pará estudado por Viveiros de Castro não praticam o canibalismo de fato Para os araweté o homicídio é uma forma de devoração digamos ontológica o matador captura o espírito do inimigo e aprende a controlálo ao longo do resguardo FAUSTO 2011 p 166 Assim como vimos no caso da Antropofagia o perspectivismo ameríndio e a Metafísica canibal desestabilizam a epistemologia moderna ocidental a separação estrita sujeito e objeto do conhecimento e entre o inside e o outside no sistema internacional O perspectivismo ameríndio não parte de conceitos como sujeito e substância estes se existem são o produto de uma rela ção No campo das relações internacionais esta proposta de pensar primeiro a relação e depois os entes derivados da relação já está presente em teorias construtivistas sobretudo nas pósestruturalistas No entanto a antropofagia e especialmente o conceito de diferonça cunhado por Viveiros de Castro podem nos tornar mais atentos para a diferença colonial inerente a um pen samento produzido a partir da periferia Os conflitos internacionais desencadeados por instrumentalizações de identidades que são fixadas artificialmente cristalizadas e petrificadas po dem ser analisados a partir da relação com a identidade e a cultura presentes no perspectivismo ameríndio A ideia de uma cultura da murta em contraste com a cultura do mármore das civilizações europeias nos aponta justamente a possibilidade de não fixação da identidade Amartya Sen 2006 aponta o vínculo entre a fixação das identidades com a formação de estereótipos e o potencial de conflitos violentos A violência é promovida pelo cultivo de um senso de inevitabilidade sobre uma alegadamente única e frequentemente beligerante identidade que supostamente temos SEN 2006 p xiii Para o autor a imposição de uma única identidade é um componente da arte marcial Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 254 14012021 1707 Pensando as relações internacionais a partir da periferia 255 SEN 2006 p xiii de fomentar a confrontação sectária Ironicamente o cani balismo tupi e a antropofagia que apareceriam nos discursos do século XVI como as culturas bárbaras e violentas podem hoje nos apontar justamente o caminho para evitar a violência da confrontação entre identidades fixas O encontro entre identidades também é intensificado pelos fluxos mi gratórios e a formação de comunidades com culturas diferentes daquela da sociedade receptora Parte da crise do multiculturalismo se deve ao fecha mento de uns e outros em sua própria cultura o que acaba transformando o multiculturalismo em uma mera coexistência de culturas cada uma fechada em sua identidade O deviroutro do cogito canibal e a assimilação crítica do outro têm muito a oferecer a um mundo que reforça cada vez mais suas fronteiras e cria muros para proteger as identidades de nações de qualquer possibilidade de transformação O deviroutro é ainda um antídoto contra a securitização crescente das migrações pois nos mostra que o deviroutro não é fonte de insegurança Ao contrário é a busca por segurança ontológica e o fechamento ao outro que disto decorre que propicia um terreno fértil para conflitos étnicos e demonstrações de xenofobia CONCLUSÃO Procuramos apontar neste capítulo apenas o potencial que a antropofagia e o perspectivismo ameríndio entendidos como pensamento liminar MIGNOLO 2003 apresentam para se pensar as relações internacionais e os conflitos atuais a partir da periferia Os conceitos que estruturam a disciplina como soberania racionalidade sociedade internacional a divisão entre o dentro e o fora possuem um forte caráter eurocêntrico que é desestabilizado quando recorremos às discussões póscoloniais nas relações internacionais Como discutido ao longo do texto haveria uma relação entre a Antropofagia o pers pectivismo ameríndio e o póscolonialismo O movimento literário de 1922 antecipa discussões que seriam desenvolvidas posteriormente por autores póscolonialistas A Antropofagia e o perspectivismo ameríndio também nos permitem pensar a partir da periferia sem se fechar na periferia Portanto o movimento não é o de uma rejeição absoluta das teorias internacionais mas uma assimilação crítica dos debates contemporâneos da área Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 255 14012021 1707 Flavia Guerra Cavalcanti 256 REFERÊNCIAS ALMINO J Por um universalismo descentrado In ROCHA J C de C RUFFINELI J Antropofagia hoje São Paulo Realizações 2011 ANDRADE O Manifesto da Poesia PauBrasil In ROCHA J C de C RUFFINELI J Antropofagia hoje São Paulo Realizações 1924 ANDRADE O Manifesto Antropófago In ROCHA J C de C RUFFINELI J Antropofagia hoje São Paulo Realizações 1928 BAKHTIN M The dialogic imagination Four essays In HOLQUIST M ed Translated by Caryl Emerson and Michael Holquist Austin University of Texas Press 1981 CANDIDO A Vários escritos São Paulo Livraria Duas Cidades 1977 CASTRO J Cezar Let us Devour Oswald de Andrade Nuevo Texto Crítico Anthropophagy Today S l v 12 n 2324 1999 DERRIDA J Of Grammatology Maryland Johns Hopkins University Press 1976 DERRIDA J La différance In DERRIDA J Marges de la Philosophie Paris Les Editions de Minuit 2003 DERRIDA J Différance In DERRIDA J Margins of Philosophy trans Alan Bass Chicago University of Chicago Press 1982 FIGUEIREDO V F de Antropofagia uma releitura do paradigma da razão moderna In ROCHA J C de C RUFFINELI J Antropofagia hoje São Paulo Realizações 2011 FAUSTO C Cinco séculos de carne de vaca antropofagia literal e antropofagia literária In ROCHA J C de C RUFFINELI J Antropofagia hoje São Paulo Realizações 2011 JAURÉGUI C Canibalia canibalismo calibanismo antropofagia cultural y consumo en América Latina Madrid Iberoamericana 2008 MADUREIRA L Cannibal Modernities Postcoloniality and the Avant garde in Caribbean and Brazilian Literature Charlottesville e Londres University of Virginia Press 2005 MADUREIRA L Intenção Carnavalesca de ser Canibal ou Como não Ler o Manifesto Antropófago In ROCHA J Cde C RUFFINELI J Antropofagia hoje Oswald de Andrade em cena São Paulo Realizações Editora 2011 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 256 14012021 1707 Pensando as relações internacionais a partir da periferia 257 MIGNOLO W Histórias LocaisProjetos Globais Colonialidade saberes subalternos e pensamento liminar Belo Horizonte Editora UFMG 2003 MIGNOLO W La Idea de América Latina La herida colonial y la opción decolonial Barcelona Gedisa 2007 MIGNOLO W La Razón Postcolonial Herencias Coloniales y Teorías Postcoloniales Revista Gragoatá Niterói EDUFF 1996 MONTAIGNE M de Dos canibais In MONTAIGNE M de Ensaios São Paulo Abril Cultural 1978 OBEYESEKERE G Cannibal talk the maneating myth and human sacrifice in the South Seas Berkeley University of California Press 2005 ROCHA J C de C Oswald em Cena o PauBrasil o brasileiro e o antropófago In ROCHA J C de C RUFFINELI J Antropofagia hoje São Paulo Realizações 2011 ROLNIK S Esquizoanálise e antropofagia In DELEUZE G Uma vida filosófica São Paulo Editora 34 2000 ROUANET S P Manifesto Antropófago II In RUFFINELLI J ROCHA J C de C ed Antropofagia hoje São Paulo Realizações Editora 2011a ROUANET M H Quando os bárbaros somos nós In RUFFINELLI J ROCHA J C de C ed Antropofagia hoje São Paulo Realizações 2011b RUFFINELLI J ROCHA J C de C ed Antropofagia hoje São Paulo Realizações 2011c SEN A Identity and Violence The illusion of destiny London Norton Company 2006 VIVEIROS DE CASTRO E O mármore e a murta sobre a inconstância da alma selvagem In VIVEIROS DE CASTRO E A inconstância da alma selvagem São Paulo Cosac Naify 2011 VIVEIROS DE CASTRO E Araweté os deuses canibais Rio de Janeiro Jorge Zahar 1995 VIVEIROS DE CASTRO E Metafísicas canibais Elementos para uma antropologia pósestrutural São Paulo Cosac Naify 2015 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 257 14012021 1707 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 258 14012021 1707 259 A SAGA PELO DESENVOLVIMENTO EOU AUTONOMIA NA AMÉRICA LATINA A ASCENSÃO E QUEDA DO BRASIL FRANCINE ROSSONE DE PAULA O Brasil saiu do patamar de país de segunda classe e entrou no patamar de país de primeira classe Luiz Inácio Lula da Silva 2009 Em 2009 o então presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva celebra va em Copenhague a escolha do Rio de Janeiro como sede das Olimpíadas de 2016 Naquela ocasião Lula declarou emocionado aos repórteres que o Brasil saiu do patamar de país de segunda classe e entrou no patamar de país de primeira classe1 A vitória do Rio de Janeiro na disputa pelas Olimpíadas foi interpretada por Lula e outros analistas como um claro reconhecimen to da nova posição do Brasil no sistema internacional que amparado por forte crescimento econômico estaria emergindo para o papel de ator glo bal Sete anos depois no ano das Olimpíadas o Brasil já não sustentava o mesmo prestígio conquistado ao longo da primeira década do século XXI Dados os pressupostos sobre a mobilidade dos países entre esses diferentes patamares de prestígio e poder elucidados por recentes narrativas sobre a 1 Lula comemora a vitória do Rio 2016 em Copenhagem Disponível em httpswww youtubecomwatchvKr9mogO8h0 Acesso em 14 jan 2019 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 259 14012021 1707 Francine Rossone de Paula 260 emergência do Brasil propomos um questionamento mais profundo a res peito das limitações enfrentadas pelo Brasil e outros países do sul global2 ao tentarem se reinventar e se reposicionar no sistema internacional de maneira mais autônoma Desenvolvimento é um tópico que tem historicamente interessado e in trigado muitos acadêmicos na América Latina Para alguns desenvolvimento está intrinsicamente ligado à esperança de rompimento com formas pósco loniais de exploração o que dá origem a interpretações otimistas que asso ciam desenvolvimento econômico ao empoderamento de regiões produtivas PEREIRA 2009 Para outros desenvolvimento ainda é um discurso por meio do qual a ideia de terceiro mundo e América Latina por exemplo vem sen do produzida e continuamente subordinada a estruturas ontológicas e epis temológicas dominantes ESCOBAR 1992 2012 MIGNOLO 2000 2005 Este capítulo se debruça sobre estudos produzidos por latinoamericanos a respeito das condições e limitações estruturais do sistema político e econô mico internacional explorando a tensão entre desenvolvimento e autonomia especialmente sob a luz de declarações otimistas em relação à emergência do Brasil a uma posição de influência política e econômica na primeira década do século XXI Ao analisar a fragilidade da emergência e reposicionamento do Brasil como membro do sul global a partir dessas perspectivas o objetivo é expor os diferentes níveis de subordinação ignorados por leituras que enfa tizam indicadores de desenvolvimento como condições fundamentais para visibilidade e autodeterminação Enquanto a emergência de países como o Brasil foi celebrada e associada por diversos analistas e políticos com o fim da ideia de dependência e a ruptura final das algemas coloniais que impe diam a ascensão de países em desenvolvimento à classe de países influentes no sistema internacional tanto a teoria da dependência como o pensamento decolonial expõem de diferentes maneiras outros níveis de subordinação que poderiam ter sido melhor explorados nos debates contemporâneos sobre a relação entre desenvolvimento e autonomia 2 Mignolo define o sul global tanto como um setor do planeta onde subdesenvolvimento e nações emergentes existem e que dessa forma seriam provedores de recursos naturais para o Norte Global quanto um espaço onde a sociedade política global está emergindo precisamente para fazer algo que salve a nós todos MIGNOLO 2011b p 165 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 260 14012021 1707 A saga pelo desenvolvimento eou autonomia na América Latina 261 Considerando que os teóricos da dependência explicavam os limites ao crescimento econômico autossustentável e persistente baixo padrão de vida na periferia como um aspecto contínuo do desenvolvimento capitalista glo bal com a expansão global da divisão de trabalho e a acumulação de riqueza no centro BLANEY 1996 p 460 a emergência do Brasil em um contexto em que se observava o desvio do fluxo de riqueza para o sul global passou a ser representada como um possível rompimento dessas correntes estrutu rais e a confirmação da obsolescência de tais perspectivas estruturalistas No entanto muitas dessas interpretações das mudanças recentes na política global enfatizam a reconfiguração de vencedores e perdedores no globo en quanto ignoram a forma como o discurso de emergência reproduz as regras que definem vencedores e perdedores Em outras palavras análises otimistas baseadas no sucesso econômico de países emergentes no início do século XXI enfatizavam o fenômeno de alguns perdedores históricos terem sido capazes de vencer na última década mesmo que temporariamente porém ignoravam o fato de que a condição para a vitória continuava sendo a participação na competição econômica que ainda se sustenta na produção de disparidades entre vencedores e perdedores Rebatendo esses cálculos tradicionais alguns acadêmicos críticos da América Latina apontam que participação na competi ção não traz paz e liberdade duradouras a uma estrutura opressiva imperial Mais do que participação ativa em um sistema desigual precisamos de um entendimento crítico das condições para o posicionamento e categorização no sistema que possibilite a transformação dos termos do diálogo ESCOBAR 2012 MIGNOLO 2005 2007 2011a SANTOS 2011 Para Mignolo 2005 p xv tradução nossa Completar o projeto incompleto da modernidade significa continuar repro duzindo colonialidade que é a nossa realidade atual no começo do século XXI Apesar de não termos mais a dominação colonial aberta nos modelos espanhóis e ingleses a lógica da colonialidade permanece em voga na ideia de mundo que tem sido construída por meio da modernidadecolonialidade A teoria da dependência e o pensamento decolonial são perspectivas que nos permitem analisar mais a fundo as dicotomias e as limitações impostas pelos termos atuais do diálogo sobre desenvolvimento e influência no sistema Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 261 14012021 1707 Francine Rossone de Paula 262 internacional De certa forma ambas as lentes têm como caraterística fun damental uma posição crítica em relação à ontologia moderna ocidental a partir da qual determinouse que estados e sociedades são substancialmente semelhantes e conectados por trajetórias históricas replicáveis o que justifica o fato de movimentaremse progressivamente em direção a um destino com partilhado e em alguma medida uma resistência à epistemologia moderna segundo a qual a ciência possui um papel crucial na legitimação de algumas conceptualizações como universalmente válidas ainda que suas distintas conceptualizações de autonomia levem cada perspectiva a diferentes conclu sões sobre as condições para emancipação daqueles que ainda se encontram em uma posição desprivilegiada O capítulo está dividido em três seções A primeira parte introduz cada uma das correntes teóricas e explora como elas explicam dependência e su bordinação em termos relacionais Para expor a relevância da abordagem relacional como ferramenta de análise no questionamento das interpreta ções predominantes sobre a emergência de países em desenvolvimento na primeira década do século XXI eu examino a posição proeminente do Brasil na tentativa de remapeamento da geografia econômica mundial A segunda seção foca na questão do loco de enunciação e a relevância do sujeito que fala enfatizada no pensamento decolonial como uma leitura alternativa da rela ção entre desenvolvimento e autonomia Finalmente eu analiso o problema da dependência estrutural e a desigualdade global e o processo por meio do qual se torna possível se desassociar das assimetrias de poder a partir de uma abertura para novos saberes e novos modos de ser DOIS LADOS DA MESMA MOEDA Teóricos da dependência e pensadores decoloniais problematizam a dualidade desenvolvimentodependência e modernidadecolonialidade respectivamen te Eles explicam como diferentes formas de subjugação são uma questão de posição dentro de uma determinada estrutura econômica política e social Como posições tais categorias como mundo em desenvolvimento tercei ro mundo ou sociedades modernas não podem ser eliminadas de dentro de uma estrutura dicotômica e hierárquica sem a implosão de tal estrutura Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 262 14012021 1707 A saga pelo desenvolvimento eou autonomia na América Latina 263 porque subjugação e dominação são dois lados da mesma moeda Em outras palavras subjugação é a condição de existência de várias formas de domina ção e viceversa Nesse sentido emancipação e autonomia somente podem ser conquistadas quando a estrutura é questionada desestabilizada e final mente extinguida o que significa necessariamente também a libertação dos sujeitos dominantes de suas posições Teoria da Dependência A teoria da dependência foi uma formulação teórica largamente disseminada ao final dos anos 1960 e início dos anos 1970 por acadêmicos latinoamerica nos como Ruy Mauro Marini André Gunder Frank Theotônio dos Santos Fernando Henrique Cardoso Enzo Falleto dentre outros Eles ofereceram uma análise crítica dos processos por meio dos quais o subdesenvolvimento é reproduzido na periferia do mundo capitalista Apesar da diversidade de análises e interpretações do relacionamento entre desenvolvimento e depen dência CHILCOTE 1974 muitos dependentistas como ficaram conheci dos articularam uma perspectiva teórica que opunha às leituras marxistas convencionais sobre a dependência econômica na América Latina a pers pectiva estabelecida pela Comissão Econômica da América Latina e Caribe Cepal e especialmente ao modelo difusionista segundo o qual a América Latina poderia se desenvolver através de integração e intervenção dos países desenvolvidos na região O grupo difusionista era dividido na América Latina entre aqueles que baseavam suas prerrogativas na premissa que o desenvolvimento na América Latina viria por meio de influência e assistência externa CHILCOTE 1974 p 5 e o grupo da Cepal Este último aceitava a hipótese de que a estrutura dual das sociedades em nações em desenvolvimento uma parte avançada e moderna e outra parte atrasada e feudal limitava as possibilidades de de senvolvimento CHILCOTE 1974 p 10 Segundo essa perspectiva a inde pendência econômica deveria ser conquistada através de um nacionalismo progressivo e da difusão do desenvolvimento capitalista para as áreas rurais e não modernas O modelo da dependência confronta duas premissas básicas do modelo difusionista com o argumento de que a Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 263 14012021 1707 Francine Rossone de Paula 264 Introdução de capital comércio tecnologia e novas formas políticas na América Latina por nações industrializadas altamente desenvolvidas eventualmente não resulta em desenvolvimento e na diminuição da disparidade que separa nações subdesenvolvidas mas aumenta ainda mais o desenvolvimento do subdesenvolvimento GILBERT 1974 p 107 tradução nossa Subdesenvolvimento não é uma condição original no sentido de que não é uma condição inicial natural ou essencial de alguns lugares mas uma posição ou o resultado de relações assimétricas específicas Para os depen dentistas algumas nações podem ter sido pouco ou não desenvolvidas na Europa précapitalista mas não poderiam ter sido categorizadas como sub desenvolvidas Sociedades précapitalistas na Europa não poderiam ser defi nidas dentro de uma dicotomia desenvolvimentosubdesenvolvimento que só se tornou possível por meio da redefinição da história organizada em uma escala temporal linear a partir da exploração do novo mundo JAHN 1999 p 417 O que faz a América Latina única é o fato do subdesenvolvimento de muitas partes do continente ter sido resultado do mesmo processo que trouxe desenvolvimento às economias industrializadas Como Chilcote 1974 p 12 tradução nossa aponta a América Latina é subdesenvolvida porque apoiou o desenvolvimento da Europa ocidental e dos Estados Unidos ao fornecer matériaprima quando o sistema econômico mundial expandiu precisando desses novos espaços e recursos para desenvolver A noção de subdesenvolvimento somente pode ser aplicada quando se tem um comércio mundial e uma política econômica de exploração de alguns Estados e economias por outros Cardoso 1974 p 69 tradução nossa nota que se não se pode entender os princípios do método dialético aplicado à história é melhor desistir e partir para uma análise a la Rostow de sequências lineares de evolução comparando as diferenças entre contínuos históricos homogêneos A definição de Dos Santos 1970 de dependência é frequen temente usada como um conceito básico da teoria Por dependência nós entendemos a situação na qual a economia de certos países está condicionada pelo desenvolvimento e expansão de outra econo mia a qual a primeira está sujeita A relação de interdependência entre duas ou mais economias e entre essas e o comércio mundial assume a forma de Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 264 14012021 1707 A saga pelo desenvolvimento eou autonomia na América Latina 265 dependência quando algumas economias dominantes podem expandir e se tornar autossustentáveis enquanto outras economias dependentes podem fazer isso somente como um reflexo dessa expansão que pode ter tanto um efeito negativo quanto um efeito positivo em seu desenvolvimento imediato SANTOS 1970 p 231 tradução nossa Em relação às condições de dependência na América Latina Sunkel 1973 p 78 argumenta que não só os países do subcontinente foram penetrados pelas forças econômicas externas mas eles foram organizados em uma hie rarquia de poder econômico que criou relações de dominação e dependência Um dos principais argumentos da teoria da dependência contra os discur sos dominantes de desenvolvimento disseminados desde o fim da Segunda Guerra Mundial é que a diferença entre países desenvolvidos e subdesenvol vidos é estabelecida pelo posicionamento de cada um dentro de uma estru tura hierárquica de relações econômicas mundiais e não por uma condição essencial ou um posicionamento distinto de unidades semelhantes em um estágio diferente no tempo A situação de subdesenvolvimento surgiu quando o capitalismo comercial e depois o capitalismo industrial expandiram e conectaram ao comércio mundial as economias não industriais que então passaram a ocupar posições diferenciadas na estrutura do sistema capitalista Dessa forma existe entre os desenvolvidos e subdesenvolvidos uma diferença não apenas de estágio ou estado do sistema de produção mas também de função ou posição dentro de uma estrutura econômica internacional de produção e distribuição alguns produzem bens industriais outros matériaprima CARDOSO FALETTO 1979 p 17 tradução nossa O foco dos dependentistas na imobilidade das economias capitalistas que segundo eles estariam atreladas a uma estrutura rígida que favorece ria sempre as economias centrais somado a conjuntura política na América Latina da década de 1970 acabou fazendo com que a teoria da dependência fosse eventualmente desacreditada No entanto essa perspectiva ainda nos fornece uma base para questionamentos relevantes sobre o mais recente ciclo de otimismo e pessimismo em relação a possibilidade de reestruturação do Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 265 14012021 1707 Francine Rossone de Paula 266 sistema internacional especialmente quando ampliamos as lentes para além das estruturas econômicas Pensamento Decolonial No século XXI um entendimento estrutural de dominação e subordinação semelhante ao discutido anteriormente está expresso nas palavras dos pen sadores decoloniais Uma vez que você sai da crença natural de que a história é uma sucessão cronológica de eventos progredindo em direção à modernidade e traz à tona a espacialidade e violência do colonialismo então modernidade se torna intrincado de forma perene com colonialidade em uma distribuição espacial de nódulos cujo lugar na história é estrutural e não linear Se invés de concebermos a história como um processo cronológico linear nós pensarmos em estrutura histórica heterogênea de processos históricos interagindo nós entenderemos melhor o papel da ideia de América e de Americanidade na modernidade bem como o que significa falar sobre modernidade e colo nialidade como dois lados da mesma moeda MIGNOLO 2005 p 4849 tradução nossa Pensamento decolonial não é uma formulação recente Aníbal Quijano um sociólogo peruano é classificado como dependentista por alguns analistas como Chilcote 1974 mas por ele não ter limitado suas análises às estruturas políticoeconômicas da América Latina a maioria das interpretações da escola da dependência o exclui Nos anos 1980 Quijano introduziu o conceito de colonialidade como um lado invisível e constitutivo da modernidade que se tornou uma palavrachave no vocabulário do projeto de pesquisa decolonial MIGNOLO 2007 p 450 Colonialidade do poder é baseada na Classificação racial e social da população mundial sob o poder eurocêntrico Mas colonialidade do poder não se limita ao problema das relações sociais racistas Permeia e modula as instâncias básicas do poder mundial colonial moderno capitalista eurocêntrico para se tornar a pedra angular dessa colo nialidade do poder QUIJANO 2007 p 171 tradução nossa Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 266 14012021 1707 A saga pelo desenvolvimento eou autonomia na América Latina 267 O pensamento decolonial como uma perspectiva tem evoluído desde a década de 1990 por meio de debates e encontros organizados por acadêmicos latinoamericanos e latinoamericanistas nos Estados Unidos como Arturo Escobar Walter Mignolo Ramón Grosfoguel e Aníbal Quijano Compartilhando das mesmas premissas ontológicas da teoria da dependência o pensamento decolonial nos convida a questionar a modernidade europeia considerando sua antítese colonialismo na América e os efeitos da colonialidade de poder conhecimento e ser no sujeito colonial global FONSECA JERREMS 2012 p 103 tradução nossa O projeto consiste em descolonizar a lógica da co lonialidade que traduz diferenças em valores MIGNOLO 2011a p xxvii e acaba por possibilitar a classificação e hierarquização de espaços culturas e pessoas Enquanto os teóricos da dependência argumentavam que havia uma estrutura políticoeconômica na qual desenvolvidos e subdesenvolvi dos eram simultaneamente criados os pensadores decoloniais argumentam que há uma estrutura sóciohistórica na qual modernidade e colonialidade ou imperialismo e subordinação têm sido simultaneamente criados desde o século XV com a conquista e expansão do capitalismo para os territórios coloniais MIGNOLO 2000 2011a Subordinação não é uma condição essencial em harmonia com as linhas traçadas pelos teóricos da dependência mas uma posição que resultou de coerção e outras expressões de relações assimétricas de poder Diferentemente da teoria da dependência o pensamento decolonial vai além do questiona mento da conexão entre desenvolvimento e autonomia Escobar 1992 p 22 observa que desenvolvimento se tornou o mecanismo primário por meio do qual países em desenvolvimento têm sido produzidos e têm se produzido a partir de e para uma posição desprivilegiada da qual se espera que desenvol vam O discurso de desenvolvimento que se formou nos anos 1940 e 1950 continha um imaginário geopolítico que vinha sendo delineado pelo signi ficado de desenvolvimento desde então ESCOBAR 2012 p 9 De acordo com essa perspectiva desenvolvimento ao invés de ser uma condição para empoderamento e autonomia também pode ser visto como uma razão para perpétua subordinação ao passo que países em desenvolvimento e subdesen volvidos são confrontados com a precariedade de suas posições na hierarquia reproduzidas a partir de configurações de conhecimento e poder e novas práticas institucionais Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 267 14012021 1707 Francine Rossone de Paula 268 Discursos de desenvolvimento que assumem com naturalidade os indica dores para a categorização e classificação de países desenvolvidos países em desenvolvimento e países subdesenvolvidos dificilmente podem ser reconci liados com uma ontologia relacional explorada por essas duas perspectivas analisadas anteriormente que enfatizam relações históricas e imediatas e po sições não baseadas em uma substância identificável dessas condições Ambas formulações de subordinação dependência e colonialidade são baseadas em um entendimento estrutural de realidade em que autonomia implica um triunfo sobre o conceito de desenvolvimento ao invés de adesão aos prin cípios impostos para o que se define como desenvolvimento bem sucedido e autônomo Como então poderiam ser interpretados os casos bem sucedi dos de desenvolvimento que foram recentemente associados à diminuição da disparidade de poder político e econômico entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento Nas próximas sessões eu discuto o que muitos pesquisadores e analistas interpretaram como uma integração bem sucedida do Brasil aos mercados globais na primeira década do século XXI e sua participação na campanha por um sul ou mundo em desenvolvimento mais unido contra os interesses dominantes do norte ou mundo desenvolvido Tal estratégia de aliviar as assimetrias por meio de um equilíbrio de poder deve ser interpretada sob a luz do entendimento da teoria da dependência e do pensamento decolonial de que duas partes de uma dicotomia assim como desenvolvidosubdesen volvido ou nortesul não podem ser analisadas separadamente mas ambas existem e se movem em relação a outra A nova geografia da economia mundial Em 2004 em seu discurso de posse o expresidente Luiz Inácio Lula da Silva reiterou seu compromisso de longo termo com aqueles silenciados pela desigualdade fome e desesperança e citou Frantz Fanon sobre o le gado do passado colonial que determinou o tipo de liberdade que a des colonização ofereceu a essas pessoas Se assim deseja tome a liberdade para morrer de fome SILVA 2004 p 1 BURGES 2013 p 581 tradução nossa Dirigindose a uma audiência de 191 estadosnações Lula os lem brou que 125 países dentre os presentes incluindo o Brasil foram sujeitos Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 268 14012021 1707 A saga pelo desenvolvimento eou autonomia na América Latina 269 a um passado de opressão por uns poucos países poderosos que ocupavam menos do que 2 do globo Ele reconheceu os avanços em direção a uma ordem democrática póscolonial mas expressou sua visão de que a configu ração das instituições internacionais ainda previne uma maior participação do sul na economia global e debates políticos A ideologia do expresidente Luiz Inácio Lula da Silva era apontada como antiimperialista pelo seu tom e sua ênfase no combate à desigualdade Lula enfatizou a necessidade tanto de uma revisão conceitual quanto de uma reforma prática das instituições multilaterais tais como as Nações Unidas a Organização Mundial do Comércio e o Fundo Monetário Internacional LIMA HIRST 2006 p 22 Uma preocupação particular em relação à distri buição desigual de poder e riqueza dentro dessas instituições resultou numa campanha forte pela democratização da ordem mundial através da reforma dessas estruturas políticas O expresidente também enfatizava em seus dis cursos a constituição de uma nova geografia econômica internacional como uma forma de encontrar um equilíbrio contra hierarquias históricas do sis tema internacional É essencial prosseguir construindo uma nova geografia econômica e comercial na qual enquanto se mantêm os laços vitais com os países desenvolvidos permita o estabelecimento de pontes sólidas entre os países do sul que se mantiveram isoladas umas das outras por tanto tempo SILVA 2004 p 3 tradução nossa O slogan uma nova geografia para o comércio mundial não implicava um isolacionismo em relação ao Norte mas clamava por um alinhamento entre países em desenvolvimento que permitisse a eles se apresentarem de forma unida e consistente a favor de seus interesses mesmo que tivessem que ir de encontro aos interesses dos países ricos ALMEIDA 2010 p 172 deixando assim de estarem condicionados pelas visões e demandas predomi nantes das economias mais avançadas Dessa forma Lula tentou mobilizar o mundo desenvolvido por uma agenda que focava no equilíbrio de poder A nova estratégia da política externa brasileira consistia em enfatizar a coo peração sulsul o estabelecimento das novas relações com os parceiros não tradicionais e a formação de coalisões com outros países em desenvolvimento Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 269 14012021 1707 Francine Rossone de Paula 270 O argumento de que alianças brasileiras com o terceiro mundo era uma tentativa de reduzir as assimetrias em relação aos Estados Unidos e a União Europeia ao se tornar parte de um movimento antihegemônico para contraba lançar poder é largamente reconhecido e discutido na literatura sobre a emer gência do país ALMEIDA 2010 CEPALUNI 2007 2009 CERVO 2010 LIMA HIRST 2006 SANTOS 2011 SOTERO ARMIJO 2007 VIGEVANI ROETT 2010 O crescente poder de barganha do Brasil foi associado aos es forços brasileiros de diversificar os parceiros econômicos do país desviando seu foco de atenção para o sul global e advogando por uma melhor integra ção entre os países em desenvolvimento A necessidade de se formar alianças para equilibrar as relações entre nor te e sul também se traduz na necessidade por instituições que possibilitem os encontros e as negociações justas de interesses divergentes Cervo 2010 p 11 destaca a importância do multilateralismo para a elevação do Brasil a um status de ator global mas especialmente para a democratização da ordem mundial Ele argumenta que uma ordem multilateral e reciprocidade em todas as áreas economia comércio segurança meioambiente saúde e direitos humanos assegura que as regras beneficiem a todos Multilateralismo tem existido sem reciprocidade em que as assimetrias têm favorecido os países dominantes Brasil advoga por um multilateralismo recíproco CERVO 2010 p 11 no qual a ordem não é estruturada para o benefício do mais forte Alguns sinais da intenção brasileira de expandir seu papel em instituições multilaterais mas também em política regional e agendas do terceiro mun do se destacam a criação de uma Comunidade Americana do Sul políticas e posições ativistas em negociações de comércio a formação de coalisões sulsul G20 comercial e o Fórum de diálogo IBAS Índia Brasil e África do Sul a promoção de seus próprios candidatos para posições de liderança na Organização Mundial do Comércio OMC e o Banco Interamericano de Desenvolvimento e finalmente a campanha por uma reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas através do qual Brasil buscou se elevar a uma posição de membro permanente LIMA 2006 p 22 Também podemos considerar a formalização do grupo BRICS Brasil Rússia China e África do Sul desde 2010 É perceptível a semelhança entre os discursos e iniciativas da política exter na brasileira no início do século XXI e o discurso dos teóricos da dependência Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 270 14012021 1707 A saga pelo desenvolvimento eou autonomia na América Latina 271 e dos pensadores decoloniais no que consiste a ênfase no elemento relacio nal o que está expresso na necessidade de formação de coalisões integração regional e equilíbrio de poder como condições para maior autonomia O ex presidente Lula define de maneira explícita em suas narrativas uma estru tura desigual que favorece os países desenvolvidos e se propõe a combater tais assimetrias No entanto um contexto políticoeconômico que parecia ser um desafio sem precedentes a uma ordem internacional competitiva injus ta e desigual se analisado cuidadosamente estava ancorado em estruturas discursivas e em práticas que reforçam os alicerces dessa mesma ordem que continua gerando perdedores e vencedores Desenvolvimento econômico foi inadvertidamente estabelecido como uma condição por meio da qual o país se aproximava de uma posição de onde pas saria a ter a chance de falar de uma nova ordem mundial e ser ouvido Alguns indicadores considerados relevantes apontados pelos analistas são o fato das exportações brasileiras terem quase triplicado de 2003 US 66 bilhões para 2010 US 169 bilhões e o débito externo do Brasil ter encolhido de 45 do PIB em 2003 para 15 do PIB em 2010 com as reservas internacionais acu mulando de US 376 bilhões para US 2525 bilhões em 2010 SOTERO 2010 p 72 Também enfatizavam a descoberta de depósitos de Petróleo e gás natural que tornou o pais autossuficiente nesses recursos energéticos ONIS 2008 p 111 Esses indicadores mencionados e a competitividade do Brasil como exportador de produtos agrícolas foram comumente interpretados como condições que justificariam uma posição privilegiada do país nas mesas de negociação LIMA HIRST 2006 p 27 E esses mesmos indicadores se torna ram medidas da fraqueza do país nos anos seguintes Na próxima subseção eu ofereço minha interpretação desse fenômeno considerando as premissas ontológicas a subjugação e dominação como posições e não como condi ções das duas perspectivas analisadas neste capítulo O fim das assimetrias Baseandose nas declarações de Lula e sua tentativa de equilibrar poder contra uma ordem assimétrica podese inferir que a distribuição de recursos impor ta já que se tornou um dos princípios constitutivos de poder De acordo com o expresidente Lula o poder precisa ser redistribuído e a redistribuição de Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 271 14012021 1707 Francine Rossone de Paula 272 poder é interpretada principalmente em relação a decentralização do comér cio mundial e desconcentração de riqueza Nesse sentido poder é relativo e não absoluto ao ponto em que o Brasil liderou uma coalisão de países em desenvolvimento com o intento de equilibrar forças contra o que foi definido como a determinação do mundo desenvolvido em maximizar seus interesses em negociações em instituições multilaterais como a OMC em detrimento de países mais pobres O esforço de equilibrar poder dentro do panorama das instituições multilaterais significa que ganhos absolutos noção liberal institucionalista de que cooperação pode beneficiar a todos não é desejável Considerando a disparidade entre as posições dos países desenvolvidos e em países em desenvolvimento qualquer negociação só seria aceitável na medida em que reduzisse essa disparidade E a redução dessa disparidade de poder dependia de uma distribuição desigual em favor dos países em desenvolvi mento ou menos desenvolvidos De acordo com a teoria da dependência e o pensamento decolonial as unidades não são autocontidas e elas não carregam nenhuma característica essencial que justifique a condição desprivilegiada de alguns dentro da estru tura hierárquica As unidades são simplesmente posicionadas de uma certa maneira em relação a uma outra como resultado de diferenciais de poder Dentro desse panorama teórico a iniciativa do Lula de desviar sua atenção para o mundo em desenvolvimento e liderar uma coalisão contra os inte resses dominantes nas mesas de negociação em instituições multilaterais pa rece fazer perfeito sentido Isso significa que poder nunca é absoluto e para que um ganhe o outro precisa ganhar menos ou perder O crescente poder de barganha do sul depende nesse contexto específico de um decrescente poder de barganha do norte Celebravase a possível nova configuração de posições como um desafio ao status quo e às hierarquias de ordem mundial Porém como apontado ante riormente existem limitações a essa interpretação que não podem ser ignora das Gilbert 1974 p 107 escrevendo sobre as possibilidades de autonomia argumentou que somente um desvio marginal da dependência seria possível por meio da expansão da área de comércio regulação de investimentos es trangeiros e maximização de poder de barganha em comércio internacional por exemplo Esses seriam remédios marginais que colocariam a economia Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 272 14012021 1707 A saga pelo desenvolvimento eou autonomia na América Latina 273 dependente em uma posição de barganha melhor no sistema mas não que brariam o padrão de dependência Para explorar as limitações desse entendimento de autonomia que se limita a equilíbrio de poder precisamos considerar não somente a sustentabilidade da posição melhorada dos países em desenvolvimento mas também os custos domésticos para essa posição e a medida em que a nova posição melhorada abre a possibilidade para uma reconfiguração mais radical da ordem mun dial na qual autonomia não depende de uma alocação eficiente de recursos domesticamente ou internacionalmente para a satisfação de objetivos econô micos que nem sempre estão associados com o melhoramento da qualidade de vida e bem estar daqueles que se tornam alvos de tais medidas ao redor do mundo A próxima seção discute outro nível de dependência que seria a dependência dos modos ocidentais de pensar ser e fazer Se incluirmos esse nível de análise autonomia não é realizável onde as condições são predefini das por vozes dominantes em uma estrutura política e econômica hierárquica COLONIALIDADE DO SABER Nos anos 1960 e 1970 alguns dependentistas reconheceram que o debate en tre dependência e autonomia que se baseava meramente na noção de ameaça externa do imperialismo e do potencial interno para liberação era uma sim plificação improdutiva Para Cardoso e Falleto 1979 o sistema capitalista de dominação aparece como uma força interna por meio de práticas sociais de grupos e classes locais que tentam impor interesses estrangeiros não pre cisamente porque são estrangeiros mas porque eles podem coincidir com va lores e interesses que esses grupos acabam por adotar como deles próprios CARDOSO FALLETO 1979 p xvi tradução nossa Olhando para a forma como os recursos precisam ser alocados eficien temente e as atividades de todos os membros da sociedade gerenciadas e organizadas de uma maneira específica em direção a um mesmo objetivo crescimento econômico a questão passa a ser se crescimento econômico e acumulação ainda são um meio para um fim um futuro melhor para todos ou um fim em si mesmo Que conhecimento está sendo privilegiado e que conhecimento ineficiente está sendo marginalizado Quais sujeitos e ativida des são recompensados e quais sujeitos e atividades precisam ser eliminados Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 273 14012021 1707 Francine Rossone de Paula 274 eou transformados A naturalidade com que sociedades são medidas e en sinadas a se organizar de maneira bem sucedida e eficiente adiciona outro nível à análise da tensão entre desenvolvimento e autonomia Pensadores decoloniais de maneira ainda mais explícita do que os depentistas enfati zam a necessidade de se olhar para esses mecanismos de autocolonização E para além disso considerar os efeitos e as barreiras impostas pela geopolítica do conhecimento São enfáticos em dizer que a distribuição mundial de co nhecimento importa se quisermos pensar mais seriamente em emancipação Há uma crítica implícita e explícita à generalização ou generalidade do conhecimento em ambos os movimentos É mais implícita na teoria da depen dência e parte fundamental da agenda do pensamento decolonial Mignolo 2005 escrevendo a partir da perspectiva decolonial argumenta que a teoria da dependência não só mostrou o diferencial de poder no domínio econômi co mas também provou o diferencial epistêmico e a distribuição de trabalho dentro de uma geopolítica imperial do conhecimento ao apontar em direção à necessidade e a possiblidade de diferentes localizações de entendimentos e de produção de conhecimento MIGNOLO 2005 p 1314 tradução nossa Teóricos da dependência adaptaram a teoria de imperialismo e os estudos marxistas de dependência argumentando que a América Latina é um caso particular geograficamente e historicamente diferente dos casos ilustrados por estudos marxistas tradicionais baseados na experiência europeia A na tureza da dependência na América Latina de acordo com Cardoso 1974 p 69 foi resultado de uma evolução colonizaçãoescravidãodependência e não de uma evolução feudaldependência O caso da América Latina não poderia ser visto como uma replicação dos estágios europeus de capitalismo como analisado por marxistas tradicionais De maneira semelhante pensado res decoloniais têm argumentado que todo conhecimento é geograficamen te localizado O locos de enunciação a localização do sujeito que produz o conhecimento sobre si mesmo e sobre outros é um ponto crucial para se pensar autonomia A teoria da dependência disseminada principalmente na América latina mas também na Europa e nos Estados Unidos se tornou uma das poucas teo rias do mundo em desenvolvimento que foi reconhecida e debatida nos cen tros acadêmicos tradicionais ocidentais FosterCarter 1976 p 173 nota que apesar das divergências internas a teoria da dependência ou o que também Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 274 14012021 1707 A saga pelo desenvolvimento eou autonomia na América Latina 275 foi chamado de escola neomarxista da teoria do desenvolvimento consti tuiu um novo paradigma O problema é que mesmo quando foi reconhecida como uma nova contribuição para o campo da política econômica a teoria da dependência sempre é mencionada como uma escola latinoamericana de pensamento enquanto que o marxismo o liberalismo e o neoliberalismo não são necessariamente anunciados geograficamente como escolas de pen samento alemã inglesa ou americana mas geralmente estudados e ensinados como se fossem lentes teóricas universalmente aplicáveis Alguns conhecimentos são considerados universais e alguns conhecimen tos são associados a regiões específicas que produzem conhecimentos não generalizáveis Somente acadêmicos europeus ou norteamericanos são consi derados capazes de contribuir com a história filosófica mundial FONSECA JERREMS 2012 p 106 Grosfoguel 2007 p 213 nota que a egopolítica de conhecimento da filosofia ocidental tem sempre privilegiado o mito do ego não situado O projeto decolonial então consiste em revelar a localização geopolítica e corpopolítica do sujeito que fala sempre escondida enco berta apagada da análise GROSFOGUEL 2007 p 213 tradução nossa No campo do desenvolvimento devemos considerar por exemplo como o aparato institucional para medir gerenciar e classificar sociedades de acordo com um padrão de performance econômica impacta a configuração de posi ções dentro de uma estrutura global econômica de produção e distribuição Arturo Escobar tem ativamente apoiado o conceito de pósdesenvol vimento ou alternativas ao desenvolvimento ESCOBAR 1992 uma vez entendido que desenvolvimento bem como outros conceitos e tecnologias não podem pretender serem universalmente aplicáveis Ele argumenta que é necessário gerar novas maneiras de ver de renovar descrições e definições sociais e culturais deslocando as categorias com as quais os grupos do tercei ro mundo têm sido construídos por forças dominantes e produzindo visões da realidade que tornem visível os numerosos loci de poder dessas forças ESCOBAR 1992 p 49 tradução nossa Isso significa que a emergência de países do terceiro mundo não pode ser celebrada com base no crescimento econômico e na capacidade desses países de finalmente se tornarem motores na economia global Mignolo 2007 defende que a mudança decolonial deve ser uma mudan ça de perspectiva para uma outra geografia e outras formas de saber e de ser Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 275 14012021 1707 Francine Rossone de Paula 276 Grosfoguel 2007 p 212 tradução nossa adiciona que para que se descolo nize o conhecimento precisamos levar a sério as perspectivas epistêmicas cosmologias insights de pensadores críticos do Sul Global pensando dos e com os espaços e corpos raciaisétnicossexuais Esse processo de desco lonização envolve desafiar os ideais de autonomia baseados na individuali dade moderna ocidental e em entendimentos particulares de boa vida e boa sociedade para incluir diferentes cosmologias e modos alternativos de orga nização da vida social Descolonização requer a descolonização do conhecimento lado a lado com a reconfiguração da geopolítica do conhecimento A questão de quem e quando por que e onde o conhecimento é produzido é mais relevante do que a questão do que é produzido quando e onde segundo a vertente decolonial de pensamento Mignolo 2009 p 160 tradução nossa propõe a inversão do dito de Descartes Ao invés de assumirmos que pensamento vem antes do ser assumamos que é o corpo racialmente marcado em um espaço geohistoricamente marcado que sente a urgência e o chamado para falar articular seja em qualquer sistema semiótico que é a urgência que faz desses organismos vivos seres humanos Quando consideramos a economia do conhecimento interpretar a emer gência do terceiro mundo ou mundo em desenvolvimento requer muito mais do que uma análise de indicadores econômicos Quais são as condições para inclusão Devemos celebrar o fato de algumas economias em desenvol vimento encontrarem o seu caminho para a mesa de negociações em insti tuições multilaterais por meio do crescimento econômico O primeiro passo para responder essa questão é não tomar crescimento econômico como um dado Para politizar o debate precisamos considerar as inclusões e exclusões que são assumidas na retórica sobre o achatamento do mundo sobre a pos sibilidade da redução das assimetrias e a obsolescência de categorias como nortesul por meio da conquista por aqueles pertencentes ao sul global do almejado futuro ou posição de destaque na plataforma política global Na próxima seção eu discuto as possibilidades de autonomia sob a luz do que se tem argumentado neste capítulo Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 276 14012021 1707 A saga pelo desenvolvimento eou autonomia na América Latina 277 AUTONOMIA INDEPENDÊNCIA ECONÔMICA E DELINKING A teoria da dependência foi criticada por não ir muito além de uma análise detalhada das obstruções estruturais para o desenvolvimento na América Latina Assumiam que se a relação com as economias do centro capitalis ta era uma condição inevitável de dependência a solução obvia seria então uma ruptura desses laços uma revolução Porém a maioria dos teóricos da dependência devotou pouco tempo discutindo independência econômica ou considerou muito vagamente as alternativas à dependência capitalista GILBERT 1974 p 107 Cardoso e Faletto 1979 argumentavam que não era realista que desen volvimento capitalista o que inclui o progresso das forças produtivas prin cipalmente por meio da importação de tecnologia acumulação de capital penetração das economias locais por empresas estrangeiras crescimento do número de grupos assalariados e intensificação da divisão social do traba lho pudesse solucionar os problemas da maioria da população Eles não elaboraram muito sobre a alternativa mas sugeriram que o que deveria ser discutido como uma alternativa precisava superar os objetivos baseados na consolidação do Estado e na realização do capitalismo autônomo A opção decolonial tenta se distanciar das noções de autodeterminação De acordo com Grosfoguel 2002 descolonização não pode ser pensada em termos de conquista de poder sobre as fronteiras jurídicopolíticas de um Estado Nem um movimento nacionalista de desenvolvimento nem estraté gias socialistas seriam suficientes uma vez que colonialidade global não se reduz a presença ou ausência de influência externa GROSFOGUEL 2007 p 219 Um método proposto para se ativar a mudança decolonial é o pensa mento crítico de fronteira que funcionaria como um conector entre diferen tes experiências de exploração que pode agora ser pensado e explorado na esfera das diferenças coloniais e imperiais MIGNOLO 2007 p 498 tradu ção nossa A pluriversalidade das diferentes histórias coloniais intrincadas com a modernidade colonial estaria conectada com um projeto universal de desassociação com os parâmetros da racionalidade moderna Dessa forma pensamento crítico de fronteira envolve e implica ambas diferenças imperiais e coloniais MIGNOLO 2007 p 498 tradução nossa Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 277 14012021 1707 Francine Rossone de Paula 278 O projeto decolonial requer uma sensibilidade aguçada em relação a di ferença Quando Lula declarou que em 2009 o Brasil entrou no patamar de país de primeira classe inferese dessa declaração que houve uma superação das hierarquias históricas que relegavam o Brasil a uma posição inferior e ig norase as hierarquias reproduzidas internamente no processo Para Holloway 2002 tal ilusão do Estado pode ser enganosa e se tornou um paradigma dominante de muitos movimentos de esquerda há quase um século o que vem confinando qualquer possibilidade de mudança radical às possibilida des oferecidas pela aparato estatal A universalidade dessa ideia do Estado como meio para autonomia é o que a torna perigosa Se desenvolvimento não pode ser separado de medi das controle e gerenciamento da população a reflexão sobre emancipação requer que se suspenda por um instante o ideal tradicional de controle de poder político e de desenvolvimento nacional como caminho e que se abra para a criatividade e produção não como fim em si mesmos mas como um meio de e para expressão de vida Buen VivirVivir Buen Viver bem Desassociar tem significado rejeitar o que se parece ocidental envolvendo a rejeição de discursos de desenvolvimento e análises sobre a subalternidade que não são escritas por e de posições subalternas Pensadores decoloniais têm privilegiado formas indígenas de pensamento e de ser na América Latina não como a forma certa mas como uma alternativa que tem sido constantemente silenciada e reprimida por meio da padronização do que seria um modo efi ciente e moderno de viver e organizar a vida A noção de Viver Bem tem sido apresentada como uma ilustração da pos sibilidade de se dissolver o dualismo sociedade natureza na qual a natureza se torna parte do mundo social e comunidades políticas podem até mesmo se estender em alguns casos para o não humano GUDYNAS 2011 p 445 Tanto a expressão quechua Sumak Kawsay Buen Vivir quanto a expressão aymara Suma Qamaña Vivir Bien vêm sendo apresentadas como alternati vas ao desenvolvimento ao capitalismo um exemplo de economia solidá ria ou até mesmo como uma solução para as crises da civilização humana DELGADO 2018 p 239 ACOSTA 2009 DUSSEL 2012 ESCOBAR 2012 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 278 14012021 1707 A saga pelo desenvolvimento eou autonomia na América Latina 279 QUIJANO 2010 Essas cosmologias questionam a fundação da modernidade as ontologias ou representações de mundo que determinam o que está den tro e o que está fora desses mundos desafiando o mito do progresso como um caminho linear unidirecional GUDYNAS 2011 p 447 Nesse novo pa radigma decrescimento econômico como Mignolo 2009 explica se torna não o objetivo das opções decoloniais mas possivelmente o resultado de um entendimento que o principio da regeneração da vida deve prevalecer sobre a primazia de produção e reprodução de bens a todo custo em detrimento da vida MIGNOLO 2009 p 161 tradução nossa Contudo o risco de se definir alternativas é a facilidade com que muitas acabam sendo absorvidas por elites políticas e econômicas e incorporadas a estruturas institucionais do status quo O Buen Vivir por exemplo se tornou um conceito orientador da nova Constituição Equatoriana que passou em um referendo popular em Setembro de 2008 O preâmbulo diz Nós decidimos construir uma nova forma de coexistência cidadã em diversidade e harmonia com a natureza para buscar o bem viver o sumak kawsay WALSH 2010 p 18 tradução nossa Sua transformação em um novo modelo de desenvolvi mento ignorou o fato de que sumak kawsay se trata de uma cosmologia de vida totalmente oposta a quaisquer noções de desenvolvimento ou melhoramento DINERSTEIN 2015 p 7 Suma Qamaña por vez foi transformado em um recurso retórico observado na Constituição da Bolívia e no Plano Nacional de Desenvolvimento Bolívia Digna Soberana Produtiva e Democrática para Viver Bem lineamentos estratégicos 20062011 BOLÍVIA 2007 Delgado 2018 p 247 observa que nesse movimento de incorporação do termo pelo Estado qualidades como complementariedade harmonia e equilíbrio aca baram sendo associados a valores morais ou a questões econômicas e políti cas de modo com que fossem necessariamente ajustados aos parâmetros e projetos do Estado Segundo Delgado proponentes aymara também rejeitam amplamente a interpretação de suma Qamaña como uma alternativa ao de senvolvimento ainda que visando a redução da pobreza e a redistribuição de renda DELGADO 2018 p 248 Walsh 2010 p 18 tradução nossa aponta que em seu sentido mais geral buen vivir denota organiza e constrói um sistema de conhecimento e vida baseado em comunhão de humanos e natureza e na harmonia espaço temporal da totalidade da existência Nesse sentido nos induz a refletir na Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 279 14012021 1707 Francine Rossone de Paula 280 possibilidade dessas novas formas de pensar ser e fazer excederem a noção de política como de costume ou seja uma arena ocupada por seres huma nos racionais disputando poder para representar outros visàvis o Estado CADENA 2010 p 363 tradução nossa Pensadores decoloniais engajam a ideia do Buen Vivir e Vivir Bien como opções mas também argumentam que não faz sentido aplicar o conceito para outras regiões Outras culturas teriam que explorar suas próprias opções do bem viver mas o termo poderia ser usado como um guardachuva para um conjunto de posições diferentes GUDYNAS 2011 p 444 tradução nossa É importante ressaltar que essas posições diferentes não seriam necessaria mente definidas em relação a outras mas a partir de princípios que favore cem a vida em detrimento de competições vazias que justificam discursos de ascensão e fracasso dos atores participantes desse tipo de sociedade O convite então é feito a análises não romantizadas que contemplam o outro em sua alteridade sem que a dimensão política seja obliterada DELGADO 2018 p 242 tradução nossa Ainda que as análises do presente capítulo tenham sido desenvolvidas em termos de Norte e Sul vale lembrar que uma geografia crítica do sul global requer uma atenção especial à heteroge neidade das geografias humanas SPARKE 2007 p 119 às contradições e disputas entre filosofias indígenas e estruturas estatais de organização polí ticaeconômicasocial no que diz respeito a autonomia DELGADO 2018 DINERSTEIN 2018 e uma resistência a quaisquer tendências de romanti zação e estigmatização das relações entre as diferenças o que as tornariam tão pouco emancipatórias CONCLUSÃO Muitos livros e artigos foram publicados nos últimos anos sobre a posição brasileira no sistema internacional Ainda que o escopo das análises variem a maior parte dessas análises acabam por reforçar indicadores e condições específicas por meio dos quais um país adquire prestígio e voz nos processos de tomada de decisão em instituições multilaterais Dessa forma as mesmas condições que levaram o Brasil a uma posição de ator global influente nos fóruns multilaterais continuam a produzir disparidade e competição entre as diferentes sociedades do globo e não sustentadas passaram a legitimar mais Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 280 14012021 1707 A saga pelo desenvolvimento eou autonomia na América Latina 281 uma vez na história os discursos e justificativas sobre o fracasso do Brasil e outros países então emergentes Neste capítulo recorri às literaturas da teoria da dependência e do pensamento decolonial como lentes apropriadas para uma análise mais cuidadosa dos discursos otimistas sobre a emergência de países em desen volvimento no sistema internacional Repensar essa ordem implica repensar as ontologias e epistemologias modernas o que possibilitaria o surgimento de diferentes práticas e condições discursivas Assim uma declaração sobre a emergência do Brasil e de outras sociedades do sul global seria seguida não por uma explicação sobre como o mundo em desenvolvimento está alcançando determinado padrão de crescimento econômico mas justificada por novas cosmologias de vida e um senso diferente de coletividade não mais baseado nas ontologias modernas ocidentais que insistem tanto na separação entre indivíduos na diferenciação qualitativa na hierarquiza ção de grupos de pessoas e na naturalidade dos princípios do crescimento acumulação e dominação REFERÊNCIAS ACOSTA A La maldición de la abundancia Quito Ediciones AbyaYala 2009 ALMEIDA P R Never Before Seen in Brazil Luis Inácio Lula da Silvas grand diplomacy Revista Brasileira De Política Internacional v 53 n 2 p 160177 2010 BLANEY D L Reconceptualizing Autonomy The Difference Dependency Theory Makes Review of International Political Economy S l v 3 n 3 p 459497 1996 BOLIVIA Plan Nacional de Desarollo Bolivia Digna Soberana Productiva Y Democrática para Vivir Bien Lineamientos Estratégicos 20062011 La Paz Ministerio de Comunicación Gaceta Oficial de Bolivia 2007 BURGES S Brazil as a bridge between old and new powers International Affairs S l v 89 n 3 p 577594 2013 CADENA M Indigenous Cosmopolitics in the Andes Conceptual Reflections beyond Politics Cultural Anthropology S l v 25 n 2 p 334370 2010 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 281 14012021 1707 Francine Rossone de Paula 282 CARDOSO F H O Inimigo de Papel Latin American Perspectives S l v 1 n 1 p 6674 1974 CARDOSO F H FALETTO E Dependency and Development in Latin America Berkeley CA University of California Press 1979 CERVO A L Brazils rise on the international scene Brazil and the World Revista Brasileira de Política Internacional Brasília n 53 p 732 2010 CHILCOTE R Dependency A Critical Synthesis of the Literature Latin American Perspectives S l v 1 n 1 p 429 1974 DE ONIS J Brazils Big Moment A South American Giant Wakes Up Foreign Affairs S l v 87 n 6 p 110122 2008 DELGADO A C T Suma Qamaña as a strategy of power politicizing the Pluriverse Revista Carta Internacional S l v 13 n 3 p 236261 2018 DINERSTEIN A C The Politics of Autonomy in Latin America The Art of Organizing Hope New York Palgrave Macmillan 2015 DUSSEL E Lecture during Primer Encuentro del Buen Vivir Disponível em httpmemoriasencuentrodelbuenvivirblogspotcom201310blog post3642html Acesso em 12 abr 2012 ESCOBAR A Imagining a PostDevelopment Era Critical Thought Development and Social Movements Social Text S l n 3132 p 2056 1992 ESCOBAR A Encountering Development The Making and Unmaking of the Third World Princeton NJ Princeton University Press 2012 FONSECA M JERREMS A Pensamiento Decolonial Una Nueva Apuesta en Las Relaciones Internacionales Relaciones Internacionales S l v 19 p 103121 2012 FOSTERCARTER A From Rostow to Gunder Frank Conflicting Paradigms in the Analysis of Underdevelopment World Development S l v 4 n 3 p 167180 1976 FRANK A G Dependence is Dead Long Live Dependence and the Class Struggle An Answer to Critics Latin American Perspectives S l v 1 n 1 p 87106 1974 GILBERT G Socialism and Dependency Latin American Perspectives S l v 1 n 1 p 107123 1974 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 282 14012021 1707 A saga pelo desenvolvimento eou autonomia na América Latina 283 GROSFOGUEL R Colonial Difference Geopolitics of Knowledge and Global Coloniality in the ModernColonial Capitalist WorldSystem Utopian Thinking S l v 25 n 3 p 203224 2002 GROSFOGUEL R The Epistemic Decolonial Turn Beyond political economy paradigms Cultural Studies S l v 21 n 23 p 211223 2007 GUDYNAS E Buen Vivir Todays tomorrow Development S l v 54 n 4 p 441447 2011 HOLLOWAY J Change the World without Taking Power The Meaning of Revolution Today London Pluto Press 2002 LIMA M R S A política externa brasileira e os desafios da cooperação SulSul Revista Brasileira de Política Internacional Brasília v 48 n 1 p 2459 2005 LIMA M R S HIRST M Brazil as an Intermediate State and Regional Power Action Choice and Responsibilities International Affairs S l v 82 n 1 p 2140 2006 MIGNOLO W D Delinking The Rhetoric of modernity the logic of coloniality and the grammar of decoloniality Cultural Studies S l v 21 n 23 p 449514 2007 MIGNOLO W D Epistemic Disobedience Independent Thought and Decolonial Freedom Theory Culture Society S l v 26 n 78 p 159181 2009 MIGNOLO W D Local HistoriesGlobal Designs Coloniality Subaltern Knowledges and Border Thinking New Jersey Princeton University Press 2000 MIGNOLO W D The Darker Side of Western Modernity Global Futures Decolonial Options Durham NC Duke University Press 2011a MIGNOLO W D The Global South and World Disorder Journal of Anthropological Research S l n 67 p 165188 2011b MIGNOLO W D The idea of Latin America Malden MA Blackwell Publishing 2005 PEREIRA L C B Developing Brazil overcoming the failure of the Washington consensus Boulder Colorado Lynne Rienner Publishers 2009 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 283 14012021 1707 Francine Rossone de Paula 284 QUIJANO A Coloniality and ModernityRationality Cultural Studies S l v 2 n 1 p 23 p 168178 2007 QUIJANO A Buen Vivir entre el desarollo y la descolonialidade del poder Viento Sur S l v 122 p 4656 2012 ROETT R Brookings Institution The new Brazil Washington DC Brookings Institution Press 2010 SANTOS T dos Globalization Emerging Powers and the Future of Capitalism Latin American Perspectives S l v 38 n 2 p 4557 2011 SANTOS T dos The Structure of dependence American Economic Review 60 p 231236 1970 SILVA L I Statement by H E Luiz Inácio Lula da Silva at the General Debate of the 59th Session of the General Assembly of the United Nations United States 2004 Disponível em httpwwwunorgwebcastga59 statementsbraeng040921pdf Acesso em 10 dez 2015 SOTERO P ARMIJO L E Brazil To be or Not to be a BRIC Asian Perspective Ásia v 31 n 4 p 4370 2007 SPARKE M Everywhere but Always Somewhere Critical Geographies of the Global South The Global South S l v 1 n 1 p 117126 2007 SUNKEL O The pattern of Latin American Dependence In URQUIDI V THORP R ed Latin America and the International Economy New York John Wiley 1973 VIGEVANI T CEPALUNI G A política externa de Lula da Silva a estratégia da autonomia pela diversificação Contexto Internacional Brasília DF v 29 n 2 p 273335 2007 WALSH C Development as Buen Vivir Institutional arrangements and decolonial entanglements Development S l v 53 n 1 p 1521 2010 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 284 14012021 1707 285 SOBRE AS AUTORAS E AUTORES Ana Carolina Teixeira Delgado é doutora em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PUCRio com estágio doutoral no CIDESUMSA Professora do Curso de Relações Internacionais e Integração da Universidade Federal da Integração LatinoAmericana Unila e do Programa de PósGraduação em Relações Internacionais da mesma instituição Aureo Toledo é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo USP com estágios pósdoutorais pelo Humanitarian and Conflict Response Institute Universidade de Manchester Reino Unido e pela Jimmy and Rosalynn Carter School for Peace and Conflict Resolution Universidade George Mason Estados Unidos É professor do curso de graduação em Relações Internacionais e no Programa de PósGraduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia UFU Flavia Guerra Cavalcanti é doutora em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais IRI da PUCRio É professora adjunta de Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais e Defesa e Gestão Estratégica da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ Francine Rossone de Paula é doutora em Pensamento Social Político Ético e Cultural pela Virginia Tech EUA com concentração em pensamento polí tico e cultural É professora de Relações Internacionais na Escola de História Antropologia Filosofia e Política da Queens University Belfast Reino Unido Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 285 14012021 1707 Sobre as autoras e autores 286 Lara Martim Rodrigues Selis é doutora em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da PUCRio É professora do curso de graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia UFU Leonardo Ramos é doutor em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da PUCRio É professor do departamento de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais PUC MG e professor visitante da Universidad Nacional de Rosario UNR É pes quisador associado ao Instituto de Estudos da Ásia da Universidade Federal de Pernambuco UFPE e pesquisador do Instituto Nacional de Estudos sobre os Estados Unidos INCTINEUCNPqFAPESP Lidera junto com o pro fessor Javier Vadell o Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias GPPM Luciana Maria de Aragão Ballestrin é doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais UFMG É Professora Associada de Ciência Política no Programa de Pósgraduação em Ciência Política e no cur so de Relações Internacionais da Universidade Federal de Pelotas UFPel É editora da Revista SulAmericana de Ciência Política Marcos Costa Lima é doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas Unicamp com pósdoutorado pela Université Paris XIII É professor associado 4 do departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco UFPE Coordena o Instituto de estudos da ÁsiaUFPE Marina Scotelaro é doutora em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais PUCMG É professora do Centro Universitário de Belo Horizonte Marta Fernández é doutora em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais IRI da PUCRio É professora adjunta e atualmente diretora do IRIPUCRio Natália Félix é doutora em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da PUCRio com bolsa sanduíche na Universidade de Victoria Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 286 14012021 1707 Sobre os autores 287 Canadá É professora do Curso de Graduação em Relações Internacionais e do Mestrado Profissional em Governança Global e Formulação de Políticas Internacionais da PUCSP coeditora da Seção Conversations do International Feminist Journal of Politics e mãe da Liz Sua pesquisa e atuação centramse principalmente nas abordagens críticas da subjetividade e da formação do sujeito incluindo as teorias feministas pósestruturais póscoloniais e pós humanas e na necessidade de produzir uma descolonização da produção de conhecimento Ramon Blanco é Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Coimbra e Professor Adjunto no curso de Relações Internacionais e Integração da Universidade Federal da Integração LatinoAmericana Unila Na Unila coordena o Núcleo de Estudos para a Paz NEP e a Cátedra de Estudos para a Paz CEPAZ É também Professor Permanente no Programa de Pós Graduação em Relações Internacionais da mesma Universidade PPGRI Unila e no Programa de PósGraduação em Ciência Política da Universidade Federal do Paraná PPGCPUFPR É autor de Peace as Government The Will to Normalize TimorLeste London Lexington Books 2020 Roberto Vilchez Yamato é Professor Adjunto do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro IRIPUC Rio e um dos coordenadores da Cátedra Sérgio Vieira de Mello ACNUR da PUCRio É doutorando em Direito em Birkbeck University of London doutor em Relações Internacionais pelo IRIPUCRio mestre em Ciências Sociais Relações Internacionais pela PUCSP e mestre em Direitos Humanos pela London School of Economics and Political Science LSE University of London Rodrigo Corrêa Teixeira é doutor em Geografia pelo Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais UFMG É professor do departamento de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais PUCMG e do Programa de PósGraduação em Geografia da PUCMinas Victor Coutinho Lage é doutor em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PUCRio É professor do Instituto de Humanidades Artes e Ciências Professor Milton Santos IHAC da Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 287 14012021 1707 Sobre as autoras e autores 288 Universidade Federal da Bahia UFBA e do Programa de PósGraduação em Relações Internacionais da mesma Universidade onde também coorde na a Área de Concentração em Relações Internacionais e o grupo de estudos Interpretações do Brasil Atualmente 20192021 é vicecoordenador da área temática de Teoria das Relações Internacionais da Associação Brasileira de Relações Internacionais ABRI Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 288 14012021 1707 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 289 14012021 1707 Colofão Formato 170 x 240 mm Tipologia Kiro Sina Miolo em papel alcalino 75 gm2 Capa em Cartão Supremo 300gm2 Impressão do miolo EDUFBA Impressão de capa e acabamento Gráfica 3 Tiragem de 400 exemplares Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 290 14012021 1707 Perspectivas Póscoloniais e Decoloniais em Relações Internacionais AUREO TOLEDO Organizador PERSPECTIVAS PÓSCOLONIAIS E DECOLONIAIS EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS O que são perspectivas póscoloniais e decoloniais Quais autores e quais ideias têm ganhando destaque no debate contemporâneo De que forma elas podem contribuir para a área de Relações Internacionais A presente obra dentre outros pontos almeja discutir esses temas mediante dois eixos Na primeira parte a partir de uma revisão das contribuições de autores específi cos pretendemos apontar as potencialidades das perspectivas póscoloniais e decoloniais para temas ligados à área de Relações Internacionais Na segunda parte optamos por discutir criticamente temas centrais das tradições póscoloniais e decoloniais procurando avaliar como tais questões nos possibilitam pensar de maneira original e inovadora não apenas o internacional mas também nosso país e a região onde estamos inseridos Aureo Toledo É professor na graduação e no mestrado acadêmico em Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia É doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo USP com estágios pósdoutorais pela Universidade de Manchester Reino Unido e Universidade George Mason EUA A presente obra é resultado dos trabalhos da rede de pesquisa Colonialidades e Política Internacional criada em 2013 e composta por pesquisadoras e pesquisadores de diversas universidades do país Ao dedicarse exclusivamente a uma discussão contemporânea sobre ideias póscoloniais e decoloniais e suas interfaces com a área de Relações Internacionais Perspectivas Póscoloniais e Decoloniais em Relações Internacionais vem suprir uma lacuna no debate teórico em Relações Internacionais no Brasil somandose a outras obras que vêm procurando adensar a pesquisa e o ensino de Teoria de Relações Internacionais em nosso país Da forma como está organizada será de interesse não apenas daqueles envolvidos na área de Relações Internacionais mas também de interessados em discussões envolvendo as Ciências Humanas de forma geral 9 786556 300924 ISBN 9786556300924 Perspectivas póscoloniais e decoloniais em Relações Internacionaiscapa554x240indd 1 06012021 1919

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Perspectivas Póscoloniais e Decoloniais em Relações Internacionais AUREO TOLEDO Organizador PERSPECTIVAS PÓSCOLONIAIS E DECOLONIAIS EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS O que são perspectivas póscoloniais e decoloniais Quais autores e quais ideias têm ganhando destaque no debate contemporâneo De que forma elas podem contribuir para a área de Relações Internacionais A presente obra dentre outros pontos almeja discutir esses temas mediante dois eixos Na primeira parte a partir de uma revisão das contribuições de autores específi cos pretendemos apontar as potencialidades das perspectivas póscoloniais e decoloniais para temas ligados à área de Relações Internacionais Na segunda parte optamos por discutir criticamente temas centrais das tradições póscoloniais e decoloniais procurando avaliar como tais questões nos possibilitam pensar de maneira original e inovadora não apenas o internacional mas também nosso país e a região onde estamos inseridos Aureo Toledo É professor na graduação e no mestrado acadêmico em Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia É doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo USP com estágios pósdoutorais pela Universidade de Manchester Reino Unido e Universidade George Mason EUA A presente obra é resultado dos trabalhos da rede de pesquisa Colonialidades e Política Internacional criada em 2013 e composta por pesquisadoras e pesquisadores de diversas universidades do país Ao dedicarse exclusivamente a uma discussão contemporânea sobre ideias póscoloniais e decoloniais e suas interfaces com a área de Relações Internacionais Perspectivas Póscoloniais e Decoloniais em Relações Internacionais vem suprir uma lacuna no debate teórico em Relações Internacionais no Brasil somandose a outras obras que vêm procurando adensar a pesquisa e o ensino de Teoria de Relações Internacionais em nosso país Da forma como está organizada será de interesse não apenas daqueles envolvidos na área de Relações Internacionais mas também de interessados em discussões envolvendo as Ciências Humanas de forma geral 9 786556 300924 ISBN 9786556300924 Perspectivas póscoloniais e decoloniais em Relações Internacionaiscapa554x240indd 1 06012021 1919 Perspectivas Póscoloniais e Decoloniais em Relações Internacionais Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 1 14012021 1706 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA Reitor João Carlos Salles Pires da Silva Vicereitor Paulo Cesar Miguez de Oliveira Assessor do Reitor Paulo Costa Lima EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA Diretora Flávia Goulart Mota Garcia Rosa Conselho Editorial Alberto Brum Novaes Angelo Szaniecki Perret Serpa Caiuby Alves da Costa Charbel Niño ElHani Cleise Furtado Mendes Evelina de Carvalho Sá Hoisel Maria do Carmo Soares Freitas Maria Vidal de Negreiros Camargo Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 2 14012021 1706 AUREO TOLEDO Organizador Perspectivas Póscoloniais e Decoloniais em Relações Internacionais Salvador EDUFBA 2021 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 3 14012021 1706 2021 Autores Direitos desta edição cedidos à Edufba Feito o Depósito Legal Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 em vigor no Brasil desde 2009 Capa e Projeto Gráfico Rorigo Oyarzabal Schlabitz Revisão Laina Lisa Normalização Emmanoella Ferreira Sistema de Bibliotecas SIBIUFBA Perspectivas póscoloniais e decoloniais em relações internacionais Aureo Toledo organizador Salvador EDUFBA 2021 288 p 17 cm x 24 cm Contém biografia ISBN 9786556300924 1 Relações internacionais 2 Brasil Relações exteriores 3 Política internacional 4 Póscolonialismo I Toledo Aureo CDD 32781 Elaborada por Jamilli Quaresma CRB5 BA001608O Editora afiliada à Editora da UFBA Rua Barão de Jeremoabo sn Campus de Ondina 40170115 Salvador Bahia Tel 55 71 32836164 wwwedufbaufbabr edufbaufbabr Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 4 14012021 1706 SUMÁRIO PREFÁCIO JOÃO PONTES NOGUEIRA 7 AUTORES PERSPECTIVAS PÓSCOLONIAIS E DECOLONIAIS EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS A PARTE QUE NOS CABE NESSE PERCURSO AUREO TOLEDO 19 AIMÉ CÉSAIRE AS EXCLUSÕES E VIOLÊNCIAS DA MODERNIDADE COLONIAL DENUNCIADAS EM VERSOS MARTA FERNÁNDEZ 35 RESISTÊNCIA POLÍTICA E IMPOSSIBILIDADES DA LIBERDADE ENTRE FRANTZ FANON E ASHIS NANDY LARA MARTIM RODRIGUES SELIS NATÁLIA MARIA FÉLIX DE SOUZA 57 O HUMANISMO CRÍTICO DE EDWARD W SAID MARCOS COSTA LIMA 83 NAEEM INAYATULLAH DAVID BLANEY E A CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA INTERNACIONAL LEONARDO RAMOS RODRIGO CORRÊA TEIXEIRA MARINA SCOTELARO 105 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 5 14012021 1706 DIÁLOGOS E INTERPRETAÇÕES PROBLEMATIZANDO O OUTRO ABSOLUTO DA MODERNIDADE A CRISTALIZAÇÃO DA COLONIALIDADE NA POLÍTICA INTERNACIONAL RAMON BLANCO ANA CAROLINA TEIXEIRA DELGADO 125 PODE O MIGRANTE FALAR UM EXERCÍCIO DE REARRANJAR DESEJOS ESCAVAR O EU E TORNAR DELIRANTE O OUTRO EM NÓS ROBERTO VILCHEZ YAMATO 157 PARA UMA ABORDAGEM FEMINISTA E PÓSCOLONIAL DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO BRASIL LUCIANA MARIA DE ARAGÃO BALLESTRIN 179 INTERPRETAÇÕES DO BRASIL E FORMAÇÃO CONSIDERAÇÕES PARA A EXPOSIÇÃO DE UM LUGAR VICTOR COUTINHO LAGE 205 PENSANDO AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS A PARTIR DA PERIFERIA ANTROPOFAGIA E PERSPECTIVISMO AMERÍNDIO FLAVIA GUERRA CAVALCANTI 239 A SAGA PELO DESENVOLVIMENTO EOU AUTONOMIA NA AMÉRICA LATINA A ASCENSÃO E QUEDA DO BRASIL FRANCINE ROSSONE DE PAULA 259 SOBRE AS AUTORAS E AUTORES 285 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 6 14012021 1706 7 PREFÁCIO JOÃO PONTES NOGUEIRA1 A publicação de Perspectivas Póscoloniais e Decoloniais em Relações Internacionais vem preencher um espaço ainda não suficientemente explora do na literatura teórica em Relações Internacionais no Brasil Composto por contribuições em sua maioria de jovens pesquisadores este volume certa mente entrará para a coleção de títulos indispensáveis para todosas aqueles e aquelas interessadosas em pensar criticamente a política mundial em nos so país Mais ainda o livro é sinal de uma bemvinda e necessária renovação da produção acadêmica em nosso campo e neste caso mais especificamente do vigor de uma geração formada no ambiente intelectual mais inovador e aberto que caracteriza a evolução recente dos estudos internacionais em todo o mundo Como nota Aureo Toledo em sua introdução ao volume os autores procuram interrogar criticamente as bases da disciplina É a partir desta pre missa que inspira a presente obra que aproveito a ocasião do honroso e gentil convite para prefaciála para oferecer algumas observações sobre a importân cia do pensamento póscolonial e decolonial para as Relações Internacionais O lugar que o póscolonialismo ocupa nos estudos internacionais vem crescendo com vigor neste milênio Apoiada na produção de uma geração de intelectuais engajados em repensar as concepções dominantes sobre a gênese a organização e a lógica do sistema internacional moderno uma importante e cada vez mais volumosa produção acadêmica vem transformando nossa 1 Professor de Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais da PUCRio Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 7 14012021 1706 João Pontes Nogueira 8 disciplina Autores como Sanjay Seth Sankaran Krishna Siba Grovogui Achille Mbembe Branwen Gruffydd Jones Geeta Chowdhry Phillip Darby John Hobson Mustapha Pasha Naeem Inayatullah Robbie Shilliam entre outros traduziram para as relações internacionais elementos chave da teoria póscolonial e abriram amplas e novas possibilidades de análise e crítica dos modos e dispositivos de dominação na política mundial O impacto deste movimento intelectual foi tão profundo que hoje pesquisadores de diferen tes orientações e áreas de pesquisa reconhecem o lugar central do encontro colonial na produção do internacional moderno Mesmo em ambientes onde os saberes convencionais da disciplina costumam ser majoritários como a International Studies Association ISA o espaço para painéis e mesas pautadas pela problemática póscolonial cresce em visibilidade e influência Tendência semelhante ainda que variando em grau pode ser encontrada em outras asso ciações científicas como a EISA European International Studies Association e a própria ABRI Associação Brasileira de Relações Internacionais Se por outro lado olharmos para as publicações científicas de ponta na área de RI encontramos uma maior incidência de artigos com referência a teorias pós coloniais e à problemática da colonialidade em periódicos europeus relati vamente aos norteamericanos como por exemplo na revista Millennium Da mesma forma manuais e coletâneas didáticas editados por pesquisadores situados fora dos Estados Unidos frequentemente incluem seções e capítu los dedicados às abordagens póscoloniais e suas agendas de pesquisa2 Este crescimento em particular em publicações de orientação mais crítica publica das na Europa fez com que alguns observadores apontassem para uma certa normalização do marco analítico póscolonial em artigos de pesquisa sobre precariedade migrações movimentos sociais resistências segurança entre outros De certa forma em alguns subcampos bastante dinâmicos da disci plina a mediação de conceitos de dominação discriminação ou exclusão ar ticulados a partir de releituras da experiência colonial parecem ser de rigueur para conferir efetividade e credibilidade a críticas às estruturas de poder da política mundial contemporânea 2 Um bom exemplo é o manual de EDKINS J ZEHFUSS M Global politics a new intro duction London Taylor Francis Group New York Routledge 2019 p xxviii 613 p Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 8 14012021 1706 Prefácio 9 Apesar do panorama favorável descrito acima em termos muito gerais não é ainda possível dizer que o póscolonialismo é uma corrente teórica re conhecida no campo das Relações Internacionais O que se vê por outro lado é um intenso engajamento com a tradição intelectual originada pelo trabalho de Said Bhabha Spivak e pela escola de Estudos Subalternos entre outros cuja influência maior aparece na história na sociologia na teoria social na filosofia política e nos estudos culturais A partir da mobilização deste arca bouço teóricoanalítico e de ideias fundamentais como a de provincializar a Europa formulouse uma crítica a alguns dos pressupostos centrais da disciplina A recepção da escola decolonial latinoamericana difere bastante do ponto de vista da linhagem intelectual e dos lugares de enunciação nas ciências sociais como noto um pouco à frente De forma semelhante à sua trajetória nas humanidades e nas ciências sociais o póscolonialismo nas Relações Internacionais é frequentemente tratado como um discurso ou um conjunto relativamente fluido de saberes influenciados pelo marxismo pelo pósestruturalismo e pelo feminismo e voltado para o estudo de relações de dominação e resistência para questões epistemológicas associadas às condi ções de produção de conhecimento e a formas alternativas de engajamento e ação política Seu escopo é abrangente ecumênico plural indo dos estudos culturais à história da teoria política à psicanálise Neste sentido quando fa lamos em teoria póscolonial não devemos pensar em termos de paradigmas ou de um corpo de conceitos e métodos voltado para a análise de processos e problemas mais ou menos circunscritos a esferas específicas da vida das sociedades modernas Avesso ao conhecimento institucionalizado e sempre problematizando o espaço da teoria o pensamento póscolonial ficaria sufocado por requisitos disciplinares e canônicos Talvez por esta razão não surpreenda sua ausên cia em artigos e pesquisas que buscam mapear a diversidade teórica da dis ciplina Em sua ampla survey sobre a nova dissidência nas RI nos Estados Unidos Inanna HamatiAtaya por exemplo elenca 49 paradigmasteorias abordagens às quais os respondentes da pesquisa se filiavam Teorias pós coloniais e decoloniais não constavam da lista3 Por outro lado em seu ma 3 HAMATIATAYA I Contemporary Dissidence in American IR The New Structure of An tiMainstream Scholarship International Studies Perspectives S l v 12 p 362398 2011 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 9 14012021 1706 João Pontes Nogueira 10 peamento das orientações de pesquisadores na América Latina Rafael Villa e Maria Carolina Pimenta empregam uma classificação baseada em seis pa radigmas sem considerar o póscolonialismo ou decolonialismo entre eles4 Estes dois exemplos ainda que pontuais sugerem que mesmo em um con texto de maior diversidade e pluralidade na disciplina dos Estados Unidos e na América Latina a questão colonial não tem grande penetração conceitual na formulação e análise de problemas de política internacional mesmo entre pesquisadores críticos ao mainstream da disciplina Do mesmo modo esta ob servação nos convida a refletir sobre os caminhos do pensamento crítico em nossa área sua relação com o pensamento póscolonial seus percursos em diferentes partes do mundo e mais particularmente no Brasil A publicação desta coletânea representa uma contribuição fundamental para a promoção deste debate Apesar de sua trajetória às vezes oscilante na disciplina as teorias pós coloniais influenciaram os movimentos de crítica às concepções dominantes do internacional desde pelo menos os anos 1980 Podese afirmar na ver dade que aquela tradição intelectual foi determinante para a articulação de elementos centrais da assim chamada virada crítica Tomemos por exemplo a coletânea Culture Ideology and World Order editada por R B J Walker em 19845 O livro reúne os participantes do projeto World Orders Models Project WOMP um conjunto de intelectuais de ponta de distintas regiões do mundo e de diferentes áreas engajados em debates sobre modos de resis tência e configurações alternativas da ordem mundial durante a década de levou ao fim da Guerra Fria Neste esforço pioneiro de crítica ao cânone do minante da política internacional como tantos que surgiram naquela década que mudou radicalmente nossa disciplina vemos reunidos nomeschave da economia política internacional como Celso Furtado Immanuel Wallerstein e 4 Vide VILLA R D Pimenta M C D S Is International Relations still an American social science discipline in Latin America Opinião Pública S l p 261288 2017 A pesquisa trabalha com o conceito kuhniano de paradigma que tende a limitar a representação da maior diversidade teóricometodológica hoje encontrada na disciplina O percentual sig nificativo de respostas classificadas sob outros e não paradigmáticos no caso do Brasil 34 evidencia tal limite 5 WALKER R B J Culture ideology and world order Boulder Colo Westview Press 1984 p xii 364 p Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 10 14012021 1706 Prefácio 11 Robert Cox junto a pensadores associados à crítica póscolonial como Ashis Nandy Ali Mazrui e Rajni Kothari O foco na cultura e na ideologia como cru ciais em uma análise da ordem mundial baseada em uma mínima sensibili dade crítica p 2 visava evidenciar como os discursos sobre política mundial estavam baseados em experiências particulares de certas formações sociais que se impunham como universais e superiores historicamente Este encontro entre expoentes do pensamento crítico e póscolonial permitiu introduzir de forma incipiente talvez a questão do etnocentrismo como traço constitutivo do internacional moderno É possível dizer que tal projeto tornou possível uma série de contribuições inovadoras para a teoria crítica de RI nos anos e décadas seguintes que de formas distintas exploraram esta interseção entre linhagens intelectuais marxistas pósestruturalistas e póscoloniais que viria a subverter as visões de mundo dominantes na disciplina e transformar suas estruturas profunda e irreversivelmente Para mencionar apenas um punhado das mais importantes vejase por exemplo o clássico de Mike Shapiro Violent Cartographies mapping cultures of war de 1997 cuja influência na formação de toda uma geração de estudiosos críticos de RI inclusive na minha própria foi determinante O livro retoma o lugar de enunciação do volume organizado por Walker e mobiliza a teoria so bre a formação do sistemamundo de Wallerstein a crítica das representações modernas da modernidade firmadas na superioridade do Ocidente e indo além introduz a crítica aos imaginários espaciais e cartográficos que permiti ram apagar a história dos povos e das culturas colonizadas das Américas das narrativas dominantes nas relações internacionais6 Tratase de um momento criativo e inovador do que hoje chamamos da virada espacial ou seja de uma produção transdisciplinar que mobiliza os conceitos da geografia crítica para repensar o lugar das representações espaciais do território através da cartografia nos modos de dominação imperial e colonial Aqui novamen te encontramos uma instância em que a sensibilidade crítica de linhagem pósestruturalista articula uma crítica dos modos de representação que cons tituem o Outro como objeto de violência e conquista a partir de uma refle xão sobre o encontro colonial Um lugar semelhante de inovação conceitual 6 SHAPIRO M J Violent Cartographies Mapping Cultures of War Minneapolis University of Minnesota Press 1997 p 241 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 11 14012021 1706 João Pontes Nogueira 12 pôde até recentemente ser encontrado nas páginas da revista Alternatives Global Local Political editada por Rob Walker por mais de três décadas ao longo das quais inúmeros artigos por intelectuais póscoloniais e decoloniais foram publicados Digno de nota é o artigo também pioneiro de Sankaran Krishna publicado em 1993 explorando a contribuição do póscolonialismo para a teoria crítica de relações internacionais7 Faço esta breve recuperação de registros da relação entre a linhagem críti ca das RI e o pensamento póscolonial para ressaltar como suas trajetórias se entrelaçaram em vários momentos muitos dos quais situados há quase qua renta anos E também para salientar que apesar desta relação estar longe de ser linear é difícil imaginar a crescente penetração das teorias póscoloniais e decoloniais sem considerála Isto porque recentemente em alguns círculos as teorias críticas vêm sofrendo críticas análogas às dirigidas ao mainstream da disciplina quer seja de serem definidas por epistemes eurocêntricas Este é um debate que em parte reflete divergências internas ao pensamento pós colonial que opõem posições mais próximas do pósmarxismo que veem a preocupação com a fragmentação do poder a dispersão de cadeias de signi ficantes as contingencias das práticas de resistência como tendências analí ticas que enfraquecem compromissos políticos com mudanças consideradas como imperativos éticonormativos como a oposição às relações sociais de produção capitalistas e às assimetrias culturais de poder e econômicas do neocolonialismo Para alguns destes críticos como Leila Gandhi por exem plo o póscolonialismo muitas vezes faz parte de um diálogo com a filosofia continental protagonizado por intelectuais diaspóricos vinculados à aca demia europeia e estadunidense8 Não cabe explorar estas clivagens aqui Creio contudo que é relevante observar que em parte a crítica ao suposto intelectualismo da alta cultura póscolonial se relaciona à maior ênfase no contexto dos anos da guerra contra o terror e da alta globalização dada ao engajamento político e à formulação de estratégias de resistência à difusão 7 SANKARAN K The Importance of Being Ironic A Postcolonial View on Critical Interna tional Relations Alternatives Honolulu Hawaii v 18 n 3 p 385417 1993 8 GANDHI L Postcolonial theory a critical introduction New York Columbia University Press 1998 p x Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 12 14012021 1706 Prefácio 13 de novas formas de violência e exploração vividas principalmente entre po pulações no assim chamado Sul Global9 No contexto europeu verificamse dois processos concomitantes Por um lado há um esforço por incorporar a questão colonial em pesquisas sobre migração peacekeeping conflitos civis desenvolvimento práticas de segurança entre outras a partir de uma maior reflexividade acerca do caráter excludente e provinciano das narrativas eurocêntricas sobre a formação do sistema internacional de suas normas e valores Por outro apesar dessa nova geração de intelectuais convertidos à causa anticolonial adotar práticas de pesquisa imersiva e engajada a crescente prevalência de referências a teorias póscoloniais e decoloniais na produção científica na Europa ainda parece refletir dinâmicas e debates situados em campos disciplinares daquela região do mundo Mais ainda a apropriação do lé xico póscolonial por campos mais tradicionais do espectro intelectual nos estudos internacionais europeus pode ser interpretada como indica dor de um processo de normalização o que em si não é necessariamente preocupante mas exige atenção para seus efeitos sobre o potencial crítico daquele corpo teórico Para Phillip Darby por exemplo a incorporação do póscolonialismo como norma em práticas de pesquisa e registros inte lectuais na disciplina pode gerar novas formas de objetivação dos sujei tos e saberes subalternos e consequentemente em novas modalidades muitas vezes não intencionais de romantização exotismo e eurocentris mo10 Contudo para além de questões epistêmicas estas críticas a uma certa trajetória do pensamento póscolonial nas RI querem evidenciar um distanciamento das práticas acadêmicas da experiência de lutas no Sul Global e a relação entre teoria e prática Mais precisamente voltase para o resgate do engajamento da linhagem pós colonial com a política Este não é um debate novo mas reaparece no contexto da emergência de novas dinâmicas e circuitos de circulação de saberes 9 Ver os exemplos ESCOBAR A Beyond the Third World imperial globality global coloniality and antiglobalisation social movements Third World Quarterly S l v 25 n 1 2004 p 207230 E DIRLIK A Spectres of the Third World global modernity and the end of the three worlds Third World Quarterly S l v 25 n 1 2004 p 131148 10 DARBY P ed Postcolonizing the international working to change the way we are Honolulu University of Hawaíi Press 2006 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 13 14012021 1706 João Pontes Nogueira 14 Como mencionamos anteriormente uma das contribuições mais signifi cativas do pensamento póscolonial e decolonial foi a de desvendar a cone xão entre saber e poder que constitui a geopolítica colonial Tanto Edward Said como Anibal Quijano mostram que a dominação global do Ocidente se sustenta na produção de um Outro o Oriente ou o extremo Ocidente su balternizado cuja humanidade é dependente da posição histórica e episte mológica de uma Europa ilustrada que ao expandirse leva a civilização aos povos prémodernos Ao argumentar que a modernidade é constituída pela colonialidade o pensamento decolonial subverte as narrativas dominantes sobre origens e evolução do sistema de estados bem como a ideia de que a nação é expressão da cultura e história comuns de um povo Mais ainda a desconstrução do mito da modernidade permite mostrar como outros mitos como progresso e desenvolvimento fazem parte do mesmo regime de repre sentação que reproduz as relações de poder marcadas pela colonialidade11 Neste sentido a escola Latinoamericana de estudos da colonialidade produ ziu uma crítica do colonialismo centrada no nexo entre violência epistemoló gica pureza racial e produção das estruturas do capitalismo global criando conceitos como a colonialidade do poder e a diferença colonial A noção de colonialidade em particular oferece um marco analítico das formações de poder que já não exercem sua hegemonia por meio do regime colonial ou de formas diretas de dominação política e econômica mas ainda se reproduzem através de dispositivos de saber modos de subjetivação e controle cultural É esta forma geral de dominação em escala global que Quijano denominou colonialidade do poder12 A linhagem intelectual desta variante do pensamento decolonial devedora do pensamento social latinoamericano da escola da dependência das teorias de sistemamundo da filosofia da libertação entre outras estabelece articu lações inovadoras entre o nexo epistemológico da colonialidade e estruturas econômicas e políticas de exploração e dominação Seria talvez lícito dizer 11 ESCOBAR A Encountering development the making and unmaking of the Third World Princeton NJ Princeton University Press 1995 p ix 12 QUIJANO A Coloniality and ModernityRationality In MIGNOLO W ESCOBAR A ed Globalization and the decolonial option Abingdon Oxon New York NY Routledge 2010 p 2232 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 14 14012021 1706 Prefácio 15 que seus lugares de enunciação seus circuitos de produção de saber e suas ligações com as experiências de lutas sociais no continente ofereçam insights com maior potencial para repensar a transformação das relações de poder no capitalismo tardio Neste sentido o desafio de fazer teoria póscolonial de maneira diferente encontraria um terreno fértil na escola decolonial13 Para Quijano a tarefa política necessária para a construção de uma alternativa é a destruição da colonialidade do poder mundial sugerindo que a crítica ao paradigma europeu de racionalidade modernidade não é suficiente para pro mover a libertação dos povos Walter Mignolo por sua vez retoma a noção de delinking desvinculação articulada por Gunder Frank Samir Amin e outros teóricos da dependência14 A ideia de que podemos imaginar e construir uma outra modernidade é cara aos pensadores decoloniais e a movimentos sociais latinoamericanos A questão como sugeriria Rob Walker é que as alterna tivas à modernidade são normalmente respostas a problemas imaginados pela própria razão moderna Os textos reunidos neste volume percorrem estes e muitos outros temas através da exploração da obra de autores fundamentais e de ricas interpre tações da contribuição do pensamento póscolonial e decolonial para a po lítica mundial contemporânea Neste sentido respondem a necessidade de articular os diferentes registros do grande e plural espaço teórico produzido pelo póscolonialismo nas últimas décadas para refletir desde nosso lugar particular na geografia das Relações Internacionais sobre problemas cen trais da contemporaneidade Tratase sem dúvida de uma das iniciativas mais relevantes de fazer teoria a partir de nossa condição periférica uma tarefa já colocada por pesquisadores de nossa geração interessados em pen sar criticamente as relações internacionais como elemento indispensável na formação da área no Brasil A radicalidade desta empresa ganha densidade através da introdução do pensamento decolonial como lugar de crítica do internacional moderno 13 DARBY P Doing the Postcolonial Differently In PERSRAM N ed Postcolonialism and political theory Lanham Md Plymouth Lexington Books 2007 p 249270 14 MIGNOLO W D Delinking The Rethoric of Modernity the Logic of Coloniality and the Grammar of DeColoniality In MIGNOLO V ESCOBAR V ed Globalization and the decolonial option Abingdon Oxon New York NY Routledge 2010 p 303368 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 15 14012021 1706 João Pontes Nogueira 16 Apesar do momento difícil vivido hoje pela academia em nosso país o campo das Relações Internacionais demonstra grande capacidade de inova ção e diversificação Continuo a considerar nossa área como um lugar privi legiado para pensar a política hoje Os organizadores e autores de Perspectivas póscoloniais e decoloniais em Relações Internacionais são expressão brilhante desta promessa Rio de Janeiro agosto de 2020 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 16 14012021 1706 AUTORES Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 17 14012021 1706 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 18 14012021 1706 19 PERSPECTIVAS PÓSCOLONIAIS E DECOLONIAIS EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS A PARTE QUE NOS CABE NESSE PERCURSO AUREO TOLEDO A FORMAÇÃO DA REDE COLONIALIDADES E POLÍTICA INTERNACIONAL A obra aqui apresentada é um esforço coletivo no sentido mais profundo da expressão resultado de trabalho produzido no âmbito da Rede Interinstitucional de Pesquisas e Estudos sobre Colonialidades e Política Internacional Criada formalmente no dia 30 de outubro de 2013 a Rede tem como membros pesqui sadoras e pesquisadores de importantes instituições de ensino superior do país tais como Pontifícia Universidade Católica de Minhas Gerais PUCMinas Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PUCRio Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos Universidade Federal da Grande Dourados UFGD Universidade Federal da Integração LatinoAmericana Unila Universidade Federal de Pelotas UFPel Universidade Federal de Uberlândia UFU Universidade Federal do Tocantins UFT Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ e Universidade Federal Fluminense UFF O grande interesse acadêmico que aproximou todas as pessoas envolvidas não só na confecção da presente obra como também na criação da Rede são Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 19 14012021 1706 Aureo Toledo 20 as tradições póscoloniais e decoloniais e suas potenciais implicações para a disciplina de Relações Internacionais1 O que seria póscolonialismo Responder de forma objetiva tal questão não é tarefa fácil pois tratase de tradição intelectual eminentemente plural que acolhe pensadoras e pensadores dos mais diversos países e continentes sem nos esquecermos também de toda a discussão envolvendo o próprio signifi cado do termo Aqui salvo melhor juízo podemos encontrar ao menos cinco interpretações distintas McEWAN 2009 KRISHNA 2009 Primeiramente teríamos póscolonialismo como o período temporal subsequente ao final do colonialismo Em segundo lugar há aqueles que argumentam que a ex pressão faz referência a uma condição relacionada ao estado de coisas após o colonialismo Temos também as defensoras e defensores da posição de que póscolo nialismo seria propriamente uma tradição teórica que centra suas atenções sobretudo em temas relacionados a raça identidade e gênero assim como em discussões que tocam em questões relativas ao desenvolvimento e às relações entre poder e conhecimento Em quarto lugar não podemos deixar de men cionar a importância do póscolonialismo como crítica literária interessada em interrogar particularmente as representações tradicionais sobre coloniza dos e excolonizados Em quinto lugar póscolonialismo pode ser igualmen te compreendido como anticolonialismo uma crítica a todas as formas de poder colonial seja ele cultural econômico e político passado ou presente Não menos importante cabe aqui nessa pequena introdução uma nota sobre o que contemporaneamente vem sendo denominado perspectiva decolonial Em boa medida podemos afirmar que a perspectiva decolonial sobretudo a contribuição oriunda do grupo ModernidadeColonialidade tem como uma de suas principais metas uma discussão mais refinada da importância de de bates sobre raça gênero e classe e um reposicionamento da importância da América Latina na conformação do sistema internacional Não nos parece exagero afirmar que um dos pontos que une tamanha pluralidade de perspectivas repousa sobre o comprometimento de autoras e autores em questionar as narrativas sobre as origens da hegemonia econômica 1 Quando em caixa alta Relações Internacionais faz referência à área do conhecimento Em minúsculas relações internacionais referese ao objeto de estudo da área Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 20 14012021 1706 Perspectivas póscoloniais e decoloniais em Relações Internacionais 21 política e cultural do Ocidente enquanto oriundas de características inatas dessa entidade que não deve ser meramente compreendida por um regis tro territorial desconexa de relações com o que até outrora era conhecido como Terceiro Mundo e hoje seria designado como Sul Global Em boa me dida muitas das interrogações póscoloniais seriam endereçadas porém não restritas ao que Johannes Fabian 1983 a partir da Antropologia chamou de negação da coetaneidade isto é a persistente e sistemática tendência de loca lizar o objeto de estudo num tempo distinto daquele no qual o produtor do discurso está inserido Trocando em miúdos adjetivos como selvagem tra dicional primitivo devem ser compreendidos não como traços essenciais de colonizadas e colonizados mas sim categorias analíticas criadas mediante uma visão ocidental sobre tempo e história Convém sublinhar contudo que a utilização do póscolonialismo e da perspectiva decolonial nas ciências sociais brasileiras não é privilégio ex clusivo da Rede Colonialidades e Política Internacional Há trabalhos con sistentes e importantes realizados no âmbito da Sociologia Antropologia História e Letras que nos antecederam e que sem sombra de dúvida con tribuíram para nossa formação Todavia nas Relações Internacionais cre mos que o conjunto de pesquisadoras e pesquisadores articulados sob este guardachuva institucional vem contribuindo de maneira pioneira para sedimentar o póscolonialismo e a perspectiva decolonial como correntes intelectuais para análises da política internacional Apetrechadosas pe los instrumentais analíticos desse corpo de ideias ou por vezes dialogan do mesmo contra alguns deles os membros da Rede procuram interrogar criticamente as bases da disciplina produzindo estudos originais sobre temas diversos como os capítulos subsequentes irão evidenciar Cabenos então nesta pequena introdução apontar qual a nossa modesta parcela de contribuição para o adensamento das relações entre póscolonialismo e a perspectiva decolonial e a área de Relações Internacionais Individualmente os trabalhos de uma parcela significativa das pesqui sadoras e pesquisadores da Rede antecedem o ano de 2013 Salvo avaliação mais precisa os trabalhos pioneiros que mobilizam o póscolonialismo e o decolonialismo em Relações Internacionais na academia brasileira são o artigo de Ramon Blanco sobre póscolonizar a paz publicado em 2010 e a tese de doutorado de Marta Fernandéz defendida em fevereiro de 2011 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 21 14012021 1706 Aureo Toledo 22 junto ao Instituto de Relações Internacionais da PUCRio Em seguida tive mos a tese de doutorado de Aureo Toledo defendida em agosto de 2012 na Universidade de São Paulo e a apresentação do conhecido e muito citado trabalho de Luciana Ballestrin sobre o grupo ModernidadeColonialidade no 36º Encontro da Associação Nacional de PósGraduação e Pesquisa em Ciências Sociais Anpocs em outubro de 2012 posteriormente publicado na Revista Brasileira de Ciência Política Contudo tratavamse de trabalhos produzidos de maneira dispersa oriundos dos significativos empenhos indi viduais de cada um Uma concertação interessada em adensar coletivamen te o póscolonialismo e a perspectiva decolonial na academia brasileira de Relações Internacionais surgiu apenas a partir do Seminário Descolonizando as Relações Internacionais as contribuições dos Estudos PósColoniais rea lizado entre os dias 28 29 e 30 de outubro de 2013 O evento organizado na PUCRio e coordenado por Marta Fernandéz sem sobra de dúvidas é o divisor de águas para a formação da Rede Trazendo estudiosas e estudiosos não apenas do Brasil mas também de outros países como Kate Manzo Ilaan Kaapor José Manuel Pureza e Jimmy Casas Klausen o seminário promoveu debates importantes sobre atores subalternos e sobre temas tradicionalmente subestimados nas Relações Internacionais examinandose criticamente as assimetrias e exclusões da política mundial com ênfase específica para as dinâmicas de produção de identidades culturais raciais e de gênero Tais discussões foram realizadas por meio de palestras e mesas redondas no período da manhã dos três dias associadas a um workshop realizado no período da tarde no qual um conjun to de oito trabalhos acadêmicos de participantes do evento foram discutidos por professoras professores alunas e alunos de pósgraduação O último dia foi dedicado à criação da Rede Dentre as propostas discu tidas à época destacamse a elaboração de um livro sobre póscolonialismo e Relações Internacionais a realização de um workshop doutoral no âmbito do 2º Seminário para Graduação e PósGraduação da Associação Brasileira de Relações Internacionais e a proposição de uma edição especial sobre es tudos póscoloniais e decoloniais na área das Relações Internacionais para um periódico nacional Não menos importante tivemos também a criação de plataformas virtuais para a promoção de nossas ações um blog dedicado à Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 22 14012021 1706 Perspectivas póscoloniais e decoloniais em Relações Internacionais 23 divulgação de atividades realizadas e temas de interesse2 assim como uma página da rede social Facebook3 Entre os dias 28 e 29 de agosto de 2014 no âmbito do 2º Seminário de Relações Internacionais Graduação e PósGraduação organizado pela Associação Brasileira de Relações Internacionais ABRI a Rede Colonialidades e Política Internacional foi partícipe na organização dos workshops doutorais contribuindo com o Workshop Doutoral 3 Estudos Críticos e PósColonialismo Na ocasião três trabalhos foram debatidos cada qual apresentando uma dis cussão a partir de ideias de autoras e autores comumente associados à tra dição póscolonial No ano seguinte no âmbito do Seminário para Alunas e Alunos da Graduação em Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais PUCMinas realizado no dia 16 de outubro reali zamos mais um workshop este especialmente dedicado à elaboração do livro Para o evento as autoras e autores enviaram suas propostas de capítulos as quais foram debatidas coletivamente assim como foram discutidas estraté gias para publicação da obra ora em tela Em 2016 a Rede Colonialidades e Política Internacional participou do 3º Seminário de Relações Internacionais Graduação e PósGraduação da ABRI mediante uma mesaredonda em que capítulos do presente livro foram discutidos e apresentados a um público maior Finalmente entre os dias 09 10 e 11 de outubro de 2017 foi realizado mais uma vez na PUCRio a segunda edição do seminário Descolonizando as Relações Internacionais em que pesquisadoras e pesquisadores nacionais e internacionais se encontraram com o objetivo de promover um debate sobre atores subalternos e sobre temas tradicionalmente subestimados no campo de estudo das Relações Internacionais a partir do contributo das abordagens póscoloniais Em suma percebese que de maneira gradativa e orgânica a Rede Colonialidades e Política Internacional vem procurando dar sua parcela de contribuição para o estreitamento das relações entre póscolonialismo pers pectivas decoloniais e a área de Relações Internacionais De suma importância 2 Rede Interinstitucional de Pesquisas e Estudos sobre Colonialidades e Política Internacional S l 2014 Disponível em httpsredecolonialidadeswordpresscom Acesso em 14 jul 2014 3 Colonialidades e Política Internacional S l 2014 Disponível em httpswwwfacebook comredecolonialidades Acesso em 14 jul 2014 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 23 14012021 1706 Aureo Toledo 24 é a editoração da presente obra que muito me honra organizar Nela leitoras e leitores encontrarão textos que procuram analisar a produção intelectual de autores considerados clássicos dentro do cânone póscolonial assim como análises que mediante um diálogo com insights da literatura póscolonial dis cutem temas relativos não apenas à política internacional mas também rela cionados aos fundamentos da disciplina de Relações Internacionais OS CAPÍTULOS Dada a heterogeneidade das autoras e autores assim como as propostas de interpelação de autores e temas comumente associados à tradição póscolo nial dois eixos principais foram escolhidos para estruturar a organização do livro A primeira parte denominada Autores agrupa os trabalhos que de uma forma ou de outra colocam sob escrutínio o pensamento de determinado au tor da tradição póscolonial seja para discutir algum ponto de sua produção seja para interrogálo a partir de determinada questão A segunda parte de signada Diálogos e Interpretações traz contribuições que procuram dialogar com temas comumente associados ao póscolonialismo Convém destacar que a escolha de autores e temas pelas autoras e autores dos capítulos não foi aleatória mas sim resultado de projetos de pesquisa individuais e coletivos em andamento ou que foram já finalizados Assim vejamos O primeiro capítulo é de autoria de Marta Fernández dedicado à obra de Aimé Césaire Mediante à apresentação de duas ideias importantes no pensamento do autor o conceito de negritude e a leitura de Césaire sobre o nazismo Marta introduz a respeitável contribuição de um autor muitas vezes subaproveitado não apenas no Brasil mas também na literatura póscolonial como um todo Em linhas gerais Marta persuasivamente argumenta que é impossível pensar Césaire sem pensar nas influências que recebeu do sur realismo marxismo e da filosofia hegeliana No entanto tais heranças não podem ser dissociadas de seu esforço criativo de releitura de todas essas in fluências por meio do olhar crítico possibilitado pela negritude Com isso o autor contribui ao introduzir de forma aguda a questão racial como um traço constitutivo do sistema capitalista mundial Ademais por meio da leitura do autor sobre o nazismo Césaire defende o argumento de que o nazismo seria um desdobramento lógico da própria Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 24 14012021 1706 Perspectivas póscoloniais e decoloniais em Relações Internacionais 25 civilização ocidental O horror causado se deve ao fato de que o totalita rismo colonial havia sido trazido para o coração da Europa enquanto que anteriormente se encontrava em outros continentes Com isso Marta nos mostra como a obra do autor aponta os limites do pseudohumanismo ra cista europeu além de nos ajudar a entender as origens extraeuropeias da modernidade e como a Europa sempre dependeu daqueles povos até então considerados sem história WOLF 2005 Em síntese a poesia de Césaire nos convida a refletir sobre direitos humanos e sobre universalismos a partir das margens da experiência colonial marcada pela violência e pela injustiça forçandonos a descentrar a Europa de sua posição de zênite de uma dita evolução histórica No segundo capítulo Lara Selis e Natália Félix nos convidam para um interessantíssimo diálogo sobre os limites da liberdade a partir das contri buições de Frantz Fanon e Ashis Nandy Segundo as autoras a despeito de ser uma das mais abrangentes ambições políticas modernas inclusive com a garantia da liberdade individual e coletiva ancorando a legitimidade dos Estados modernos a liberdade ainda é constantemente adiada ou indeferida a um número bastante considerável de indivíduos Logo a proposta do capí tulo é tratar as obras de Fanon e Nandy como aberturas teóricas para projetos de liberdade aberturas estas de forma alguma excludentes Em linhas gerais a extensão da opressão colonizadora fosse ela física ou subjetiva fez da resistência um traço comum entre os trabalhos que pensam o mundo colonial Fanon nascido na Martinica com ascendência africana e francesa e refletindo à luz da experiência argelina defende dentre outros pontos a violência colonial contra o colonizador como sendo a chave para a libertação do sujeito colonizado Por sua vez Nandy tendo como perspectiva a experiência colonial indiana defende uma proposta inspirada pela resistência política de matriz gandhiana a violência acaba sendo uma forma de resistên cia já cooptada pelo colonialismo não rompendo com a díade colonizador colonizando podendo resultar apenas numa inversão de polos As diferenças são mais complexas do que a síntese aqui redigida aparen ta demonstrar Da mesma forma as explicações para projetos tão distintos repousam igualmente de forma geral nos distintos sujeitos históricos com os quais os autores dialogam Fanon com o escravo negro a quem foi nega do qualquer consideração iluminista sobre o humano Nandy com o nativo Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 25 14012021 1706 Aureo Toledo 26 indiano que lhe foi subscrito o atraso porém sem negar sua humanidade Com tal diálogo Lara e Natália proporcionam uma importante contribuição para os estudos acerca da colonialidade por meio da exploração do instru mental analítico e político de autores cujas vidas e obras tinham como intuito denunciar situações de colonialidade O terceiro capítulo de responsabilidade de Marcos Costa Lima analisa de forma rigorosa o pensamento daquele que para muitos seria talvez um dos pais fundadores do póscolonialismo Edward Said O objetivo do capítulo porém não é proporcionar uma síntese de obra tão extensa e diversa como a de Said que inclui textos sobre literatura comparada política e música mas interrogar tal produção a partir do que seriam potenciais pontos de diálogo com a área de Política Internacional Comparada Tendo como fio condutor especialmente os argumentos desenvolvidos nos clássicos Orientalismo e Cultura e Imperialismo publicados no Brasil em 1990 e 1995 respectivamen te Costa Lima pinça cinco grandes temas de destaque na obra de Said que se prestam para tal diálogo Em primeiro lugar teríamos o presente poder hegemônico exercido pelo go verno dos Estados Unidos ao longo do século XX e início do XXI o qual lança a todos questões relativas às pretensões imperiais desse país os desafios à interdependência transnacional até mesmo às ambições de construção de uma ordem mundial efetivamente democrática O segundo tema é a questão nacional discutido em Said para além de movimentos nativistas em respostas ao processo colonial mas vista de forma crítica como processo que inclusive poderia desvirtuar as lutas de independência e libertação O terceiro tema é a discussão sobre a causa palestina4 tensionada sobre tudo pelo fato de Said ser um árabeamericano que vive em dois mundos O tema perpassou diversos textos de Said e sempre nos proporciona argumentos importantes para crítica à forma desumana como Israel lida com a questão O quarto tema seria a visibilidade que Said dá à contribuição intelectual da perife ria iluminando figuras como Eqbal Ahmad paquistanês Ngugi Wa Thongo queniano José Marti cubano dentre tantas outras figuras Por fim temos o tema do exílio que à luz de questões contemporâneas como migrações 4 A título de curiosidade o conhecido livro de Krishna 2009 tem em sua capa uma foto de Said atirando uma pedra em um checkpoint israelense salvo engano Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 26 14012021 1706 Perspectivas póscoloniais e decoloniais em Relações Internacionais 27 internacionais e refugiados se torna uma discussão nada desprezível Dentre outros pontos discutidos ao longo do capítulo Costa Lima apresenta a visão de Said sobre o intelectual cujo papel seria o de desafiar e derrotar tanto os silêncios impostos quanto as quietudes que se transformaram em normas Ao final a despeito das críticas pósestruturalistas Said emerge do texto de Costa Lima como um defensor do humanismo porém um humanismo críti co dos perigos que universalismos podem acarretar sobretudo para aquelas e aqueles que se encontram nas margens O quarto capítulo produto da parceria entre Leonardo Ramos Rodrigo Teixeira e Marina Scotelaro centrase na crítica póscolonial de Naeem Inayatullah e David Blaney à Economia Política Internacional sobretudo a de matriz liberal Recuperando argumentos de autores como Tzvetan Todorov e Karl Polanyi Inayatullah e Blaney constroem uma das mais originais críticas não apenas ao liberalismo mas também à área de Relações Internacionais como um todo a partir da dificuldade de ambos em lidarem com o problema da diferença Essencialmente Relações Internacionais e a Economia Política Internacional liberal dispensam à diferença o que Todorov chama de duplo movimento Primeiramente temos uma separação absoluta entre self e other a qual redunda ora no reconhecimento da diferença porém seguida de assi milação ora na sua própria erradicação Com o intuito de explorar as implicações desse e de outros argumentos Leonardo Rodrigo e Marina refletem sobre como a obra dos autores contribui para a desestabilização de determinados discursos no campo das Relações Internacionais Em linhas gerais duas grandes contribuições emergem da obra de Inayatullah e Blaney a partir da leitura efetuada pelo trio Primeiramente temos uma crítica ao próprio campo da Economia Política Internacional a partir da ideia de uma Economia Política Cultural Em segundo lugar uma potente crítica ao liberalismo particularmente ao caráter éticonormativo da crítica desferida No percurso realizado Leonardo Rodrigo e Marina mostram como Inayatullah e Blaney desenvolvem ideias como a consideração da Economia Política como um encontro cultural grosso modo construir culturalmente a economia ao conferir à racionalidade técnica um lugar político e social assim como a compreensão da Economia Política Internacional como uma cultura de competição que implica reconhecer os propósitos e valores desse campo como socialmente construídos Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 27 14012021 1706 Aureo Toledo 28 A segunda parte do livro começa a partir do quinto capítulo de autoria de Ramon Blanco e Ana Carolina Delgado Tomando de empréstimo de Aníbal Quijano o conceito de colonialidade o qual procura dar sentido à uma estrutu ra de poder hierárquica desenhada e desenvolvida durante o período colonial porém que ainda perdura a meta do capítulo é ambiciosa Combinando uma genealogia teórica e histórica do conceito Ramon e Ana procuram destacar as características da colonialidade e os momentos fundamentais que permiti ram sua inserção estrutural na política internacional A despeito de ser tema importante em Relações Internacionais os autores apontam que colonialida de é ainda uma dimensão pouco explorada e por que não desconhecida dentro da própria disciplina Para alcançar seu objetivo os autores executam três movimentos princi pais O primeiro conforme antecipado é uma discussão sobre o conceito de colonialidade no qual vemos além de uma distinção visàvis colonialismo um diálogo significativo com diversos autores e autoras do que se convencio nou chamar grupo ModernidadeColonialidade5 Em seguida Ramon e Ana apresentam como tal conceito se operacionaliza e em sua avaliação a noção de raça é de fundamental importância pois permite classificação social e hie rarquização Ademais além da instrumentalização da raça temos ainda uma dupla colonização do tempo e do espaço que permitem o estabelecimento da modernidade Por fim dois exemplos empíricos são trazidos para discutir a inserção estrutural da colonialidade o pensamento de Francisco de Vitoria e seu impacto dentro da formação do Direito Internacional e o chamado Debate de Valladolid ocorrido em meados do século XVI e que discutia o que seria entendido como humanidade e se os ameríndios faziam parte dela Professora quem hoje seria o subalterno Refletindo a partir de uma per gunta endereçada diretamente à Gayatri Spivak durante um summer school escola de verão em Londres Roberto Yamato inicia o sexto capítulo Diferentemente dos capítulos anteriores Yamato navega com elegância entre o tom analítico tradicional da academia sobretudo quando introduz ideias do filósofo francomagrebino Jacques Derrida métodos transdisciplinares particularmente insights de Michael Shapiro sobre a utilização do cinema para análises e reminiscências pessoais especialmente quando nos relata o 5 Para detalhes sobre esse grupo ver Ballestrin 2013 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 28 14012021 1706 Perspectivas póscoloniais e decoloniais em Relações Internacionais 29 nascimento de sua filha Luisa Tais são seus artifícios para explorar a resposta de Spivak ao questionamento que abre o capítulo o subalterno contemporâ neo seria hoje o migrante irregular Dentro dos diversos movimentos analíticos estéticos e autobiográficos realizados ao longo do capítulo Beto argumenta que o migrante irregular nos convoca a pensar fronteiras e limites A figura migrante permitiria portanto que rastreássemos o espaçotempo daquele fora constitutivo do sistema inter nacional moderno capitalista e neoliberal Seguir os rastros doa migrante nos provocaria a ao menos começar a entender uma dimensão subterrânea em que o que o autor chama de insignificação política da vida seria a um só tempo gritante e silenciada Outro ponto de destaque em sua argumentação referese ao argumento de que o internacional condiciona a vida social humana relacionalmente diferenciando hierarquizando e organizando por exemplo as condições de ser humano cidadão nacional estrangeiro exilado dentre outros Em suma o ponto seria que a identidade é uma construção política social cultural racial de gênero etc e que a condição internacional é consti tutiva de trama tão complexa que condiciona a vida humana As interfaces entre póscolonialismo e feminismo são discutidas por Luciana Ballestrin no sétimo capítulo Para tanto Luciana por meio de nar rativa segura e conceitualmente rigorosa delineia considerações sobre o tra dição póscolonial como um todo apresentando dentre outros pontos um enquadramento analítico bastante útil para compreendermos as idiossincra sias desse corpo heterogêneo de ideias Teríamos assim o póscolonialismo anticolonial originário a partir de uma conjuntura histórica preenchida pelos processos de libertação e descoloniza ção dos anos 19501960 e cujos principais expoentes seriam figuras como Aimé Césaire Frantz Fanon Almicar Cabral dentre outros influenciados pelo marxismo revolucionário e o panafricanismo por exemplo Em segui da a partir do contexto histórico do final dos anos 1970 no qual discussões sobre globalização começam a se tornar mais cadentes emerge o que Luciana denomina póscolonialismo canônico influenciado pelo Estudos Subalternos Indianos pósestruturalismo e outras correntes intelectuais e cujas figuras de destaque seriam Edward Said Homi Bhabha e Gayatri Spivak Finalmente a partir dos anos 2000 surge o póscolonialismo decolonial sobretudo a partir Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 29 14012021 1706 Aureo Toledo 30 da América Latina e tendo como representantes de renome Walter Mignolo Arturo Escobar e Maria Lugones por exemplo Dentre as principais contribuições que a intersecção entre póscolonialis mo e feminismo produz Luciana aponta como este último permitiu que so bretudo o póscolonialismo canônico revisasse e questionasse suas principais questões Seguindo Deepika Bahri 2013 questões de gênero são insepará veis da crítica póscolonial e o póscolonialismo anticolonial e o canônico produziram reflexões muito embrionárias sobre esta temática Ademais o feminismo póscolonial crava interrogações importantes no próprio feminis mo ao argumentar sobre o caráter colonial do discurso feminista ocidental quando este cria representações estereotipadas da mulher do Terceiro Mundo Após tais apreciações Luciana caminha para discutir como ambas correntes teóricas contribuem para uma avaliação crítica das Relações Internacionais e finaliza o texto com uma apreciação necessária sobre o estado da área no Brasil informada pelo diálogo teórico proposto ao longo do capítulo Os três últimos capítulos do livro apontam cada qual a seu modo suas atenções para o Brasil No oitavo capítulo Victor Coutinho Lage produz uma análise original sobre o campo comumente designado como Interpretações do Brasil em cujo panteão repousam figuras do calibre de Sérgio Buarque de Hollanda Caio Padro Júnior Celso Furtado Gilberto Freyre dentre tantos outros Num primeiro momento pode parecer contraintuitivo a associação entre figuras que conforme as interpretações canônicas da área pensaram a formação do Brasil com uma discussão envolvendo relações internacionais e póscolonialismo Contudo é justamente aqui onde jaz a inovadora proposta de leitura do autor Num texto em que de saída nos alerta de que não é o certificado de nas cimento da teoria que importa e sim a forma como ela é mobilizada Victor defende o argumento de que as chamadas interpretações do Brasil podem ser compreendidas de duas formas De um lado as interpretações endossam di ferentes variações de uma perspectiva modernizante sobre o processo forma tivo brasileiro De outro estas mesmas interpretações podem ser exploradas pelo o que o autor chama de frestas que abrem para uma problematização da própria ideia de modernização Apropriandome das palavras de Victor e da leitura que ele faz de Roberto Schwarz o processo formativo brasileiro pode ser compreendido como um ponto nevrálgico por onde passa e se revela parte Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 30 14012021 1706 Perspectivas póscoloniais e decoloniais em Relações Internacionais 31 importante da história mundial Logo a interpretação do Brasil tem embutida em si uma interpretação da modernidade Ao final do texto Victor ilustra a potência de seu esquema interpretativo ao interpelar tanto A Revolução Burguesa no Brasil de Florestan Fernandes quanto Raízes do Brasil de Sérgio Buarque obras que dispensam apresenta ções O resultado é uma leitura instigante que aponta como obras aparente mente interessadas apenas na realidade sociopolítica brasileira podem conter interpretações originais e que nada ficam a dever visàvis o mainstream da área sobre o que designamos internacional Na mesma toada Flávia Guerra Cavalcanti discute no nono capítulo relações internacionais a partir da periferia A originalidade da contribui ção de Flávia reside em mobilizar conceitos desenvolvidos por duas impor tantes figuras brasileiras para interrogar pressupostos da área de Relações Internacionais assim como apontar os paralelos possíveis com temas caros ao póscolonialismo a antropofagia de Oswald de Andrade figura basilar do movimento modernista no Brasil e o perspectivismo ameríndio do renomado antropólogo Eduardo Viveiros de Castro Tal exercício criaria condições para contestar a epistemologia moderna ocidental que ancora o nosso pensar sobre o mundo em geral e sobre as relações internacionais em particular Sobre Oswald de Andrade Flávia argumenta dentre outros pontos que a antropofagia realiza uma releitura da história oficial brasileira particular mente quando mostra que a história que emerge do manifesto é uma polifonia de vozes oprimidas e subalternizadas que até então haviam sido abafadas Ademais outra importante contribuição oriunda do manifesto seria um poten cial tratamento alternativo à questão de como se lidar com a diferença Aqui há uma absorção do outro que não necessariamente leva a uma subalterniza ção mas sim a um enaltecimento Em linhas bastante gerais a antropofagia se caracterizaria por ser um processo de assimilação crítica no qual teríamos uma apropriação da identidade do outro pelo eu porém o eu se transformaria no outro o dentro se transforma no fora e viceversa Trocando em miúdos fronteiras são diluídas e identidades não são préfixadas Para além de outros temas tão bem discutidos por Flávia a autora destaca como o texto de Oswald de Andrade antecipa preocupações apontadas pelo póscolonialismo desde o questionamento da razão moderna europeia até discussões sobre alteridade Em suma de uma obra aparentemente interessada somente em discussões Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 31 14012021 1706 Aureo Toledo 32 relativas à cultura brasileira é possível depreender insights que justamente in terrogam a própria possibilidade de identidades naturais e tradicionalmente vistas de formas não relacionais A partir do perspectivismo ameríndio de Viveiros de Castro Flávia traz para a discussão o canibal e como a partir dessa figura é possível repensar as relações euoutro dentrofora Segundo a autora podemos traçar alguns pa ralelos entre o perspectivismo ameríndio e críticas pósestruturalistas porém por estas últimas não levarem em consideração a diferença colonial encon traríamos limitações Para chamar a atenção dessa especificidade Viveiros de Castro brincando com o conceito de différance de Derrida cunha o termo diferonça uma relação de incorporação canibal dado que o modo básico de relacionamento ameríndio seria a caça a predação do outro Contudo o mito canibal não deve ser entendido como oposto da razão mas sim um pensamento rigoroso sobre incorporação predação e transformação a partir da periferia Não à toa Viveiros de Castro afirma existir um cogito canibal A antropofagia canibal introduz uma concepção de tempo e história dia lógica em que a voz da vítima é escutada ao mesmo tempo em que se ouve a voz do predador Logo o ato canibal não é resultado de uma relação assi métrica mas sim entre culturas que coexistem num mesmo tempo e uma depende da outra para a preservação de sua memória Antropofagia canibal e diferonça seriam então conceitos que trazem embutidos em si o potencial para nos deixar mais atentos para a diferença colonial inerente a um pensa mento produzido a partir da periferia Por fim mas não menos importante o décimo capítulo é de autoria de Francine Rossone de Paula cujo subtítulo é bastante provocador a ascensão e queda do Brasil Segundo a autora sobretudo após a chegada ao poder do expresidente Luís Inácio Lula da Silva muitas foram as análises que propa garam mudanças qualitativas na política global com destaque para o acesso de países como o próprio Brasil a um patamar mais elevado Como a própria epígrafe do texto deixa claro estaríamos deixando de ser um país de segun da classe e adentrando o estágio de país de primeira classe com indicadores socioeconômicos comprobatórios que autorizariam tamanha transformação Tendo a discussão sobre o caso brasileiro como pano de fundo e municia da por ideias e conceitos oriundos da tradição da teoria da dependência e do pensamento decolonial Francine constrói uma poderosa crítica às narrativas Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 32 14012021 1706 Perspectivas póscoloniais e decoloniais em Relações Internacionais 33 sobre desenvolvimento e autonomia Conforme a autora muitas das interpre tações sobre transformações na política internacional enfatizam a reconfigu ração de vencedores e vencidos no globo porém ignoram a forma como este próprio discurso de emergência reproduz as regras que definem vencedores e perdedores Em outras palavras a condição para a vitória continua sendo a participação na competição econômica liberal que certamente prosseguirá produzindo desigualdades Ato contínuo categorias como mundo em de senvolvimento terceiro mundo ou sociedades modernas não podem ser eliminadas de dentro de uma estrutura dicotômica e hierárquica sem que a própria estrutura que as contém não imploda Subjugação e dominação nos diz Francine são dois lados da mesma moeda No entanto a crítica não se restringe a uma visão macro e dependentista sobre economia e política Desafiar desenvolvimento e autonomia requer interrogar os fundamentos de ambas ideias os quais são embasados na individualidade moderna ocidental e jazem sobre concepções particulares de boa vida e boa sociedade Há portanto a necessidade de se descoloni zar não apenas as próprias bases do conhecimento mas também a própria geopolítica desse conhecimento Questões como quem quando por que e onde o conhecimento é produzido seriam tão importantes senão mais quanto seu o conteúdo Temos assim um imperativo para procurarmos novas cosmologias e modos alternativos de organização social Não à toa tal conjunto de ideias contribuem para o tom crítico de Francine sobre nar rativa da ascensão e queda brasileira as mesmas condições que levaram o Brasil a galgar posições de atuação global seriam aquelas que continuam a produzir disparidades e quando não mais sustentadas justificariam e ex plicariam o fracasso do país Feitas as contas as contribuições aqui reunidas apontam para o fato de que a chegada das tradições póscolonial e decolonial nas Relações Internacionais brasileiras a despeito de toda a sua heterogeneidade não é casuísmo Pelo contrário tratase de esforço planejado de pesquisadoras e pesquisadores que há algum tempo vêm refletindo sobre como tal corpo de ideias pode não só produzir ganhos analíticos aos mais diversos objetos mas também contribuir para uma forma alternativa e menos dicotômica e hierarquizada de se pen sar Relações Internacionais A obra coletiva ora apresentada é portanto mais uma tentativa da Rede Colonialidades e Política Internacional de unir tais Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 33 14012021 1706 Aureo Toledo 34 esforços que até então estavam dispersos e reforçar junto às leitoras e leito res as potencialidades do pensamento póscolonial agora a partir do Brasil No entanto antes de encerrar esta introdução há uma série de agradecimen tos que preciso fazer Em primeiro lugar agradeço aos colegas que me confiaram seus capítulos para que pudesse organizar o presente livro A jornada foi longa e muitas vezes tortuosa mas chegamos enfim ao nosso ponto de chegada Amigas e amigos muito obrigado Em segundo lugar no nome da Profa Flávia Goulart Rosa agradeço a todas as pessoas à frente da Editora da Universidade Federal da Bahia que aceitou o desafio de editorar a primeira obra sobre perspectivas póscoloniais e decoloniais inteiramente feita no Brasil Em terceiro lugar agra deço muitíssimo o Prof Carlos Henrique de Carvalho próreitor de pesquisa e pósgraduação da Universidade Federal Uberlândia UFU por acreditar em nosso trabalho e nos ajudar na viabilização do presente livro É certamente um privilégio contar com o auxílio da UFU nessa empreitada e a isso devo muito à confiança que o Prof Carlos Henrique teve em nosso trabalho Por fim po rém não menos importante agradeço a todos os cidadãos e cidadãs de nosso país que mediante seus impostos financiam a pesquisa em nosso país Mesmo em tempos de dificuldades como os atuais em que o obscurantismo ameaça a universidade seguimos firme acreditando piamente que o futuro de qualquer país passa inescapavelmente pela educação e pesquisa REFERÊNCIAS BAHRI D Feminismo eno póscolonialismo Estudos Feministas Florianópolis ano 21 n 2 v 336 p 659688 2013 BALLESTRIN L América Latina e o giro decolonial Revista Brasileira de Ciência Política Brasília DF n 11 p 89117 2013 FABIAN J Time and the Other how Anthropology makes its Subject New York Columbia University Press 1983 KRISHNA S Globalization and Postcolonialism Hegemony and Resistance in the TwentyFirst Century New York Rowan Littlefield Publishers 2009 McEWAN C Postcolonialism and Development London Routledge 2009 WOLF E A Europa e os povos sem história São Paulo EDUSP 2005 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 34 14012021 1706 35 AIMÉ CÉSAIRE AS EXCLUSÕES E VIOLÊNCIAS DA MODERNIDADE COLONIAL DENUNCIADAS EM VERSOS MARTA FERNANDÉZ A Europa é indefensável O grave é que a Europa é moral e espiritualmente indefensável Aimé Césaire 2000 p 1516 A Europa vive desde 2015 a sua maior crise migratória desde a Segunda Guerra com a chegada no Velho Continente de um grande número de refu giados provenientes sobretudo da Síria devastada por uma guerra civil que se arrasta desde 2011 Considerada lócus por excelência do humanismo da racionalidade da democracia e dos direitos humanos a Europa vem agindo de forma desconcertada e alguns dos seus países vêm adotando políticas pouco afeitas ao respeito à diferença e que sinalizam xenofobia e racismo Esse foi o caso por exemplo das políticas violentas de exclusão da diferença adotadas pelo primeiro ministro húngaro Viktor Orbán que incluíram desde o uso de gás lacrimogêneo até a construção de uma cerca de arame ao longo da fronteira com a Sérvia para impedir a entrada de refugiados representados pejorativamente pelo premiê como rebeldes ou como uma ameaça à estabi lidade e segurança da Europa cristã Contudo a securitização do refugiado e a generalização do mesmo como uma ameaça visível em outros espaços eu ropeus para além do caso extremo da Hungria são colocadas em xeque por Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 35 14012021 1706 Marta Fernandéz 36 incidentes que vez ou outra conferem visibilidade e identidade aos refugia dos entendidos em geral como uma massa amorfa e indefinida Esse foi o caso de Aylan Kurdi que revelou ao mundo uma faceta do refugiado frágil e desamparada que divergia daquela propagada por alguns representantes europeus O drama de Aylan de apenas três anos que junto com a sua família havia abandonado a cidade síria de Kobane na fronteira com a Turquia para escapar do avanço do Estado Islâmico EI comoveu as audiências ocidentais ao virilizar nas redes sociais urgindo por políticas mais solidárias por parte dos países da União Europeia O corpo de Aylan foi encontrado em posição fetal nas areias do balneário turco de Ali Hoca depois que o bote onde es tava e que transportava outras 16 pessoas anônimas naufragar na travessia rumo à ilha grega de Kos provocando o seu afogamento do seu irmão mais velho e da sua mãe As práticas de violência física e interpretativa mobilizadas para lidar com os refugiados vindos das antigas colônias europeias da Ásia e da África ex põem o falso universalismo europeu denunciado em versos por Aimé Césaire na década de 1950 mas que se mantêm atuais no contexto póscolonial já que tais práticas revelam a persistência dos limites e das ambiguidades do aclamado universalismo europeu Desestabilizando o pretenso universalis mo europeu Césaire nos mostra que uma civilização que trai seus próprios princípios é uma civilização moribunda que uma civilização que se mostra incapaz de resolver os problemas por ela suscitados a exemplo do dura douro problema colonial é uma civilização decadente CÉSAIRE 2000 A velada hipocrisia europeia repudiada por Césaire se faz explícita toda vez que os princípios igualitários alardeados pela Europa não se estendem para os sujeitos que atravessam suas fronteiras vindos de espaços póscoloniais A Europa berço do Iluminismo e da democracia continua moral e espiritual mente indefensável ao atualizar em pleno século XXI os traços excludentes e racistas do seus desencontros com o mundo póscolonial Este capítulo dividese em duas partes A primeira delas visa introduzir a trajetória acadêmica e política de Césaire bem como apresentar um dos seus conceitos centrais o de negritude Pretendese nesta parte contribuir para os esforços recentes voltados para conferir visibilidade ao pensamento de Césaire que foi de um modo geral pouco analisado pelos estudos pós coloniais ainda que muitas das suas reflexões se mantenham extremamente Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 36 14012021 1706 Aimé Césaire as exclusões e violências da modernidade colonial denunciadas em versos 37 atuais Na segunda parte do capitulo a partir da leitura crítica de Césaire so bre o nazismo buscase chamar a atenção para os efeitos contraditórios da colonização e das suas fronteiras raciais para a própria civilização ocidental NEGRITUDE EM FÚRIA CONTRA A VERDADE BRANCA Poeta ensaísta dramaturgo e político antilhano Aimé Césaire nasceu em 1913 na Martinica à época departamento ultramarino francês no Caribe Após ter concluído com êxito seus estudos secundários no Liceu Schoelcher em FortdeFrance capital da Martinica Césaire conseguiu em 1931 uma bolsa de estudos para ingressar no Liceu LouisleGrand em Paris onde conheceu Léopold Senghor quem quase três décadas depois se tornaria presidente do Senegal De 1935 até 1939 Césaire deu continuidade aos seus estudos na renomada École Normale Supérieure conhecida por formar a elite acadêmi ca e administrativa da França após ter sido aprovado num processo seletivo altamente competitivo e desgastante Ironicamente no momento em que Césaire estava estudando com afinco os cânones da intelectualidade europeia e sobretudo francesa para ingressar nesta instituição ele também se dedica va junto com Senghor e outros intelectuais da diáspora negra em Paris como é o caso do escritor e político guianense León Damas à concepção do jornal LEtudiant Noir O Estudante Negro onde em 1935 é cunhado o termo negritude por meio do qual rejeitase a internalização do saber eurocêntrico ou a assimilação cultural por parte da comunidade negra da França e do resto do mundo KELLEY 2000 Embora o termo negritude tenha sido empregado pela primeira vez por Césaire ele próprio reconhece tratarse de um conceito coletivamente gesta do por intelectuais negros CÉSAIRE 2006 Ao evocar a valorização da cul tura negra e o repúdio ao racismo francês a negritude no entendimento de Césaire expressava uma revolta contra os discursos de verdade veiculados pelo mundo capitalista de supremacia branca CESAIRE 2006 RABAKA 2015 Tais discursos propagavam a ideia do negro bárbaro primitivo promíscuo incapaz de construir uma civilização RABAKA 2015 WILDER 2005 sem passado deslocado da história e da vida política Césaire chama a atenção para o estabelecimento de uma série de relações discursivas hierárquicas entre colonizador e colonizado construídas durante séculos de hegemonia cultural Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 37 14012021 1706 Marta Fernandéz 38 ocidental que naturalizavam uma série de preconceitos que inferiorizavam o negro visàvis o branco CÉSAIRE 2006 Para Césaire contudo as ditas civilização e racionalidade ocidentais dependiam da invenção do Outro como bárbaro para se afirmarem enquanto tais CÉSAIRE 2000 Antes de ser um termo descritivo e passivo a negritude era um termo nor mativo e ativo O termo pretendia ser um grito de resistência à opressão colo nial Concebida por Césaire como uma atitude ativa e ofensiva do espírito uma revolta de fato a negritude desempenhou um papel fundamental de catalisador dos movimentos de independência africanos na década de 1960 CÉSAIRE 2006 p 87 De acordo com Rabaka 2015 p 184 a negritude em Césaire utilizava palavras como armas fighting words voltadas para a práxis política para a revolução social e para a renovação cultural Influenciado por Marx e Hegel Césaire acreditava que o passo prévio à ação à movimentação anticolonial era a desalienação e o reconhecimento da diferença Para tanto faziase necessário desensinar a linguagem do coloniza dor que havia instilado sobre milhares de colonizados o medo o complexo de inferioridade o desespero e a bajulação visàvis seus pretensos superiores A condição prévia para todo despertar políticocultural deveria começar por tanto com a explosão de uma identidade largo tempo contrariada por vezes negada e finalmente liberada CÉSAIRE 2006 A liberação da identidade correspondia ao momento de desalienação quando seria revelada a farsa o caráter nada objetivo da identidade pejorativa atribuída ao negro pelo branco A emancipação só se tornaria possível uma vez que se desvelasse a natureza artificial e opressora das estruturas epistemológicas do colonizador as quais conforme sabemos por Marx limitam a capacidade do dominado de intervir na realidade a fim de modificála Somente quando o negro deixasse de ser ver como uma coisa e adquirisse consciência dos processos de coisifica ção CÉSAIRE 2000 e de desumanização levados a cabo pelo colonizador é que ele poderia se empoderar como sujeito político deixando de ser um mero instrumento de produção à mercê do capitalismo Esse movimen to de desalienação foi descrito por JeanPaul Sartre como um processo de completo desnudamento ou de destruição da verdade de outros antes que os negros revolucionários fossem capazes de construir suas próprias ver dades SARTRE 1976 Desse modo além de liberada dessa imagem hos til da diferença projetada pelo colonizador a identidade negra deveria ser Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 38 14012021 1706 Aimé Césaire as exclusões e violências da modernidade colonial denunciadas em versos 39 afirmada positivamente por meio de um movimento de resgate do mérito da cultura da civilização do estilo e da singularidade das sociedades colo nizadas CÉSAIRE 2006 A busca do reconhecimento e da individualidade por parte do negro co lonizado envolve um processo dialético à la Hegel Tal processo é evidencia do por exemplo na releitura feita por Césaire da peça teatral A Tempestade 1611 de Shakespeare para o teatro negro onde se promove o encontro entre Próspero imaginado como o colonizador e Caliban representado como o negro escravizado que deseja liberdade e resiste ao seu mestre CÉSAIRE 2002 Na posição do colonizador Próspero é representado como um lócus de poder devido sobretudo à sua habilidade de produzir um discurso que assume status de verdade KHOURY 2006 Por meio do monopólio de tal discurso Próspero oblitera a subjetividade de Caliban de dois modos prin cipais i Caliban é um nome imposto e ii a história de Caliban é negada KHOURY 2006 A fim de ter sua identidade reconhecida Caliban resiste ao discurso imposto pelo colonizador que ele reconhece lhe foi ensinado com o mero intuito de permitilo entender as ordens do seu mestre E assim o mesmo discurso que permite a Próspero explorar Caliban se volta contra ele uma vez que seu escravo se vale desse mesmo discurso para resistir seja maldizendo seu senhor na sua mesma língua seja recusandose a compare cer diante dele quando convocado pelo nome que lhe foi imposto KHOURY 2006 Por outro lado Caliban produz uma contranarrativa que desautoriza a história oficial monopolizada por Próspero na medida em que o apresen ta como um usurpador da ilha um traidor da hospitalidade e sobretudo como um mentiroso KHOURY 2006 Outro movimento feito por Caliban no sentido de afirmar sua história em contraposição à História de Próspero é lutar pela dignidade dos seus ancestrais do seu passado da sua história representados metaforicamente na peça pela figura da sua mãe Sycorax degradada por Próspero KHOURY 2006 Ao negar a verdade do discurso de Próspero Caliban resiste ainda que no marco do contexto discursivo do seu opressor A resistência de Caliban desse modo opera nos interstícios do contexto discursivo do colonizador nas frestas e oportunidades apresentadas pela sujeição discursiva BHABHA 1997 KAPOOR 2003 Por meio do seu gesto Caliban desautoriza o saber colonial o torna ambivalente obstruindo sua plena presença BHABHA 1997 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 39 14012021 1706 Marta Fernandéz 40 No curso da peça Caliban resiste ao status de não identidade que lhe foi imposto por Próspero não apenas por meio das estratégias acima menciona das mas também resgatando traços de uma cultura alternativa africana para afirmar sua subjetividade diante do seu senhor a exemplo das canções dedi cadas à Shango deus do trovão e dos raios ou de termos africanos como é o caso de Uhuru que significa liberdade KHOURY 2006 Esses momentos revelam a dimensão cultural conferida à ideia de negritude por Césaire já que por meio de Caliban resgatamse experiências acumuladas presentes na memória coletiva dos povos negros colonizados e inclusive no inconsciente coletivo CÉSAIRE 2006 Nesse sentido a batalha de Caliban por reconhe cimento é travada antes de tudo no terreno cultural já que se volta contra o discurso de verdade do colonizador contra a universalidade do seu saber e contra a exclusividade da sua narrativa Por isso na peça o alvo inicial de Caliban é a destruição dos livros de Próspero KHOURY 2006 Todavia Césaire vai além do embate no campo discursivo ao apresentar no final da peça numa clara mostra de sua influência hegeliana uma batalha física entre os dois antagonistas os quais revelam a necessidade de lutar a fim de obterem reconhecimento e individualidade HEGEL 2003 Embora Caliban tenha dito que prefere a morte à humilhação Césaire não pode permitir que isso ocorra tendo em vista que sua morte simbolizaria a vitória da perpetuação da opressão e a morte de todos os povos colonizados KHOURY 2006 A bata lha final por sua vez deixa claro a interdependência entre os personagens já que ao não matar Caliban Próspero admite que a sua própria identidade é definida pelo Outro escravizado KHOURY 2006 Desse modo a despeito da aparência de força absoluta do opressor ele precisa do reconhecimento por parte do subalterno BHABHA 1997 A colonização para o teórico pósco lonial indiano Homi Bhabha é uma empresa profundamente contraditória já que a confiança do colonizador na sua superioridade racial e civilizacio nal é constantemente enfraquecida pela ambivalência expressa na busca do reconhecimento de tal superioridade aos olhos do colonizado alguém tido pelo colonizador como dissimulado não confiável e como um mentiroso con gênito KRISHNA 2009 A releitura de Césaire nos ajuda a entender esse processo por meio do qual o colonizador teme e daí se diferencia do Outro colonizado mas ao mesmo tempo precisa e deseja o Outro para ser reco nhecido como superior Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 40 14012021 1706 Aimé Césaire as exclusões e violências da modernidade colonial denunciadas em versos 41 A reivindicação do reconhecimento e do direito à diferença negra em Césaire vem acompanhada por um humanismo radical RABAKA 2015 Logo ao mesmo tempo em que Césaire clama pelo reconhecimento da irre dutível singularidade da identidade negra ele também defende a igualdade entre todos os seres humanos sob a forma de um universalismo ressignifi cado que não subsuma a diferença mas que inclua os direitos das múltiplas realidades culturais CÉSAIRE 2006 WALLERSTEIN 2006 Esse novo universalismo revelase crítico em relação ao pretenso universalismo do Iluminismo que arroga para o si o monopólio sobre o significado de humano e cujas bandeiras de liberdade igualdade e fraternidade não são extensivas à toda humanidade RABAKA 2015 Nesse sentido os teóricos da negritu de em geral e Césaire em particular denunciavam as inconsistências entre a política colonial francesa e os valores universais da república francesa ex pondo o provincianismo e seletividade do universalismo francês RABAKA 2015 Em contraposição a esse falso universalismo da Revolução Francesa Césaire urge pelo reconhecimento da especificidade da comunidade negra não como uma antítese ou como uma negação da universalidade mas antes como um passo em sua direção CÉSAIRE 2011 Para Césaire acessar o uni versal envolve necessariamente radicalizar o particular aprofundar a especi ficidade da comunidade negra CÉSAIRE 2006 WILDER 2005 Nas suas palavras1 O Ocidente nos disse que a fim de sermos universais temos que começar negando que somos negros eu ao contrário disse para mim mesmo que quanto mais negros nós formos mais universais seremos CÉSAIRE 2011 tradução nossa Todavia o esforço de Césaire no sentido de combinar seu humanismo universal com o seu particularismo não foi suficientemente desenvolvido WILDER 2005 p 290 revelando segundo Rabaka uma série de contradições teóricas ao oscilar entre de um lado a afirmação violenta de uma identidade negra e africana e de outro lado um desejo de transcender as concepções eurocêntricas sobre o mundo colonial por meio da celebração de um humanismo radical RABAKA 2015 p 2001 Talvez estas contradições apontadas se expliquem pelo fato do seu humanismo crítico ter um propósito 1 The West told us that in order to be universal we had to start by denying that we are black I on the contrary said to myself that the more we were black the more universal we would be CÉSAIRE 2011 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 41 14012021 1706 Marta Fernandéz 42 antes de tudo políticoestratégico de fomento às lutas anticoloniais da sua época do que teóricoanalítico A tentativa de Césaire de conciliar o universal com o particular pode ser investigada por meio das suas desavenças com o Partido Comunista Francês PCF pelo qual ele se elege deputado em 1946 O encantamento de Césaire com o Partido teve vida curta já que decepcionado com a reação tímida dos comunistas franceses face às denúncias dos crimes cometidos por Stálin dez anos depois logo após a revolta húngara de outubro ele escreve uma carta para o então SecretárioGeral do Partido Maurice Thorez declaran do sua intenção de se desvincular do Partido Entre os vícios identificados por Césaire na carta de renúncia está a convicção por parte dos comunistas compartilhada com os burgueses europeus da superioridade unilateral do Ocidente ou seja a crença na ideia de que a evolução tal como ocorreu na Europa é a única possível e desejável CÉSAIRE 2010 Em última instân cia Césaire está por meio da carta criticando a internalização por parte dos comunistas franceses do mesmo universalismo abstrato iluminista que informou a aventura colonial francesa ou seja de um universalismo que com a sua fé no progresso e na civilização acaba por excluir grande parte da humanidade que é entendida como estando situada em estágios atrasados de desenvolvimento e como dependentes do Ocidente para sal válas de tal condição Desse modo Césaire reivindica a descolonização do próprio marxismo não o renega completamente mas prevê um marxismo situado matizado pela negritude colocado à serviço dos povos negros O universalismo teórico metafísico do marxismo que pregava a solidarieda de entre os proletários do mundo inteiro mas que era míope em relação às questões raciais e às opressões específicas das sociedades colonizadas não lhe interessava Césaire não compartilhava do reducionismo economicista do marxista posto que considerava a questão racial central para a perpe tuação da exploração no sistema capitalista e não a vê meramente como um epifenômeno ou como subsidiária à luta de classes GROSFOGUEL 2006 Nesse sentido não bastava que a esquerda chegasse ao poder na França ou que as condições econômicas se modificassem já que para Césaire o negro é duplamente explorado e alienado não apenas como classe desfa vorecida mas sobretudo racialmente por ser negro CÉSAIRE 1972 O desfazimento da hierarquia de classe portanto não é condição suficiente Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 42 14012021 1706 Aimé Césaire as exclusões e violências da modernidade colonial denunciadas em versos 43 para o fim da exploração colonial já que esta hierarquia se sobrepõe a uma outra igualmente estruturante a racial Nesse sentido apesar de ter terminado seu ensaio Discourse on Colonialism 1950 fazendo um apelo à união dos proletários o chamado mais sistemáti co de Césaire é pela solidariedade dos povos negros do mundo inteiro para combater a discriminação Antecipando as objeções que a sua carta à Thorez suscitaria Césaire coloca Provincialismo Absolutamente Não me enterro em um particularismo estreito Mas também não quero me perder num universalismo descarnado Existem duas maneiras de se perder pela segregação amuralhada no particular ou pela diluição no universal Minha concepção do universal é a de um universal depositário de todos os particularismos aprofundamento e coexistência de todos os particulares CÉSAIRE 2010 p 152 tradução nossa Na medida em que a questão racial adquire centralidade Césaire condena o paternalismo europeu que confere aos países ditos avançados uma respon sabilidade revolucionária especial Se a Europa internalizou o racismo e se esse racismo atravessa as diferentes classes sociais ela não tem na visão de Césaire autoridade para liderar a revolução que deve ser obrada pelos próprios negros Com esse objetivo em mente Césaire funda dois anos depois da sua saída do PCF o Partido Progressista da Martinica que herda essencialmente o eleitorado do Partido Comunista WALLERSTEIN 2006 O cetismo em relação à proposta de Césaire em combinar o particular e o universal está relacionado também ao fato de que sua visão sobre o par ticular por vezes ter sido considerada como tão extremada que beirava o essencialismo de tal sorte que seria impossível que o particular coexistisse ou mesmo que fosse transcendido para dar lugar a um outro tipo de lealda de universal centrada numa humanidade cosmopolita Os que contestam o suposto essencialismo de Césaire consideram que o poeta adota uma visão um tanto quanto romantizada do negro e expressa um senso de nostalgia por um passado africano ao qual já não podemos regressar Para Bhabha 1997 por exemplo não existe uma presença ou identidade por detrás da máscara branca utilizada pelo homem negro FANON 1985 e nesse sentido não existe como Césaire parece supor uma essência de presença africana atrás do Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 43 14012021 1706 Marta Fernandéz 44 processo de colonizaçãocoisificação Informado por Derrida para Bhabha o retorno para uma identidade nativa pura ou a busca por uma história na cional autóctone verdadeira conduz a um etnocentrismo sob a forma de um racismo às avessas uma vez que reproduz a própria estrutura binária de significação KAPOOR 2003 Nas palavras de Bhabha 1997 p 24 O extremismo odioso do nacionalismo sérvio prova que a própria idéia de uma identidade nacional pura etnicamente purificada só pode ser atingida por meio da morte literal ou figurativa dos complexos entrelaçamentos da história e por meio das fronteiras culturalmente contingentes da naciona lidade moderna Por meio da citação acima Bhabha expõe não só os perigos mas tam bém a impossibilidade de se acessar uma identidade nacional pura ou ori ginária KAPOOR 2003 Por outro lado Eugenio Matibag 1991 chama a atenção para o fato de que a afirmação de Césaire sobre a existência de uma identidade caribenha singular ou de um Self afroantilhano se dá por meio de exclusões violentas de todos os outros elementos culturais que formaram a cultura do Caribe incluindo as contribuições indígenas asiáticas e até mesmo dos europeus Para Matibag 1991 devese indagar se um verdadeiro discurso caribenho de descolonização deve conduzir à negação ou desvalo rização de tais contribuições reiterando desse modo exclusões inscritas no discurso colonial O autor adverte que o conceito de identidade empregado por Césaire se tornou suspeito no âmbito das teorizações antiessencialistas que problematizam a noção cartesiana de sujeito O ataque pósestruturalis ta à ideia de um Self unificado coloca em xeque por exemplo o clamor por uma identidade especificamente caribenha Todavia fazse importante frisar que para Matibag isso não desqualifica o chamado de Césaire por uma iden tidade original tendo em vista que em um contexto de Terceiro Mundo o anúncio pósmoderno de morte do sujeito soa não apenas como prematuro mas como cúmplice do sistema capitalista mundial que dispersou e anulou a subjetividade individual Compartilhamos do argumento de Matibag de que no contexto caribenho o chamado pelo sujeito pode representar um refúgio ou uma importante fonte de resistência contrahegemônica MATIBAG 1991 Argumentamos aqui que o essencialismo de Césaire não pode ser entendido Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 44 14012021 1706 Aimé Césaire as exclusões e violências da modernidade colonial denunciadas em versos 45 à parte do contexto histórico de lutas anticoloniais no qual está situado ele está voltado para ação para suscitar transformação política A essencialização pela via da afirmação violenta de uma identidade obrada por Césaire fun ciona como uma estratégia de resistência voltada para um contexto histórico específico e sugere o caráter provisório e político da inversão do binarismo colonizador em prol do colonizado A celebração da herança negra por Césaire aparece pela primeira vez no seu poema Diário de um Retorno ao País Natal publicado em Paris em 1939 CÉSAIRE 2012 Embora nesse mesmo ano Césaire tenha de fato retornado à sua terra natal junto com Suzanne Roussi também da Martinica e parte do círculo intelectual do jornal O Estudante Negro com quem o poeta se casa em 1937 o regresso é metafórico pois diz respeito ao processo de redesco brimento do seu país possibilitado pelo contato com o colonizador francês De fato a inspiração ou a mediação metafórica para o seu poema veio bem antes do seu efetivo retorno para Martinica quando durante sua estadia na Iugoslávia a convite do amigo Petar Guberina Césaire avista uma ilha no mar Egeu chamada Martinska que lhe recorda sua terra natal SUK 2001 p 28 Vale lembrar que o poema foi praticamente ignorado no momento da sua publicação até ser endossado pelo famoso escritor surrealista francês André Breton que conhece Césaire agora professor do mesmo Liceu Schoelcher que frequentou quando adolescente quando realiza uma visita à Martinica durante a Segunda Guerra No Diário a capital da Martinica é descrita como uma terra alienada des provida de vida e habitada por zumbis colonizados CÉSAIRE 1972 RABAKA 2015 O remédio para tal inércia prescrito por Césaire no poema é o retorno e a conciliação dos antilhanos com as suas raízes africanas Assim como em outros escritos Césaire enaltece o passado das sociedades africanas cujas essências foram drenadas pelo colonialismo e que são tidas pelo poeta como comunais democráticas cooperativas fraternais e nesse sentido não como précapitalistas mas antes de tudo anticapitalistas CÉSAIRE 2000 Tais sociedades para Césaire poderiam vir a oferecer lições valiosas ao Ocidente sobre a construção de mundos alternativos KELLEY 2000 Nesse ponto é importante salientar em discordância daqueles que chamam a atenção para o essencialismo contido na noção de negritude de Césaire que a sua proposta de investigação do passado africano não é estéril mas dinâmica e orientada Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 45 14012021 1706 Marta Fernandéz 46 para o futuro mas obviamente não o futuro prescrito pela dita civilização europeia O futuro do mundo deveria incluir na sua configuração os saberes e experiências das sociedades ancestrais africanas Todavia isso não signifi ca que para Césaire esse passado particular africano deva ser replicado na sua inteireza e universalizado não apenas porque o poeta tem consciência da inviabilidade prática de se resgatar uma história inviolada por séculos de colonialismo mas também porque ao expor tal visão ele se tornaria alvo da mesma crítica que dirige ao universalismo ocidental Nesse sentido a iden tidade africana a Africanité existe para Césaire enquanto uma experiência histórica particular assim como a história europeia que para usar os termos de Dipesh Chakrabarty é vista de forma provincializada CHAKRABARTY 2000 Nesse sentido o universalismo de Césaire é portador de múltiplas par ticularidades culturais e históricas Por outro lado como Césaire faz questão de esclarecer na Primeira Conferência Hemisférica dos Povos Negros da Diáspora realizada na Universidade Internacional da Flórida em 1987 sua concepção de Negritude não tem uma conotação biológica CÉSAIRE 2006 Na ocasião ele indaga sobre o mínimo denominador comum que reúne os participantes na conferên cia em Miami e no mesmo parágrafo ele mesmo responde que não é a cor da pele senão o fato de se relacionarem de uma forma ou de outra com grupos humanos que experimentaram as piores violências da história seres margi nalizados e oprimidos CÉSAIRE 2006 E mais adiante ele coloca em seu discurso que a negritude constitui uma comunidade particular em primeiro lugar pelo fato de seus membros terem uma experiência compartilhada de opressão exclusão e discriminação mas também de resistência luta pela liberdade e esperança CÉSAIRE 2006 Tais experiências não são transmi tidas via cromossomos como bem destaca Césaire mas sim por meio de uma memória coletiva inclusive inconsciente Para Césaire ninguém chega ao mundo como uma tábula rasa mas todos nós carregamos um patrimônio cultural acumulado que pode nos ser revelado através da poesia do imaginá rio e das obras de arte CÉSAIRE 2006 A poesia nesse sentido cumpriria um papel fundamental para Césaire na reativação dessa memória coletiva Césaire entendia a poesia como uma arma como uma explosão uma forma de romper com as tradições literárias francesas CÉSAIRE 1972 WILDER 2005 Nas palavras de Césaire O conhecimento poético nasce do grande Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 46 14012021 1706 Aimé Césaire as exclusões e violências da modernidade colonial denunciadas em versos 47 silêncio do conhecimento científico CÉSAIRE 1990 p xlii tradução nos sa O conhecimento científico prossegue Césaire enumera mede classifica e mata CÉSAIRE 1990 p xlii tradução nossa A poesia de Césaire é car regada de fúria de revolta de emoções em contraposição ao conhecimento dito científico hegemônico no modo ocidental baseado em evidências em píricas e se quer apolítico e impessoal marcado pelo distanciamento entre o pesquisador e o seu objeto de estudo Para Césaire o conhecimento científico despersonaliza e desindividualiza CÉSAIRE 1990 p xlii tradução nossa A poesia de Césaire diferentemente tem entre os seus principais propósitos promover o autoconhecimento manifestandose como um vulcão que explode a partir do acúmulo de experiências difíceis de serem traduzidas WILDER 2005 p 280 Contudo a poesia de Césaire não é um exercício individualis ta de autoconhecimento mas está voltada para reconectar o indivíduo com a coletividade e com o cosmos CÉSAIRE 1990 p xlix Poeta engajado Césaire deixa clara a vocação política da sua poesia que contribuía para a desalienação dos colonizados e ao fazêlo para religar as pessoas às suas histórias de dor e sofrimento compartilhados Além de en trelaçar as histórias dos povos colonizados a poesia de Césaire conforme argumenta Wilder 2005 também reconfigurava a temporalidade e a espacia lidade do Estadonação imperial Conforme mencionamos anteriormente os teóricos da negritude denunciavam as incoerências entre a França ultramarina e a França continental De acordo com Bruno Charbonneau a República da França sempre foi vista como desconectada do império francês o que dava lugar a uma representação de duas Franças separadas e diferentes Essa fron teira bem demarcada entre essas duas Franças não deixava por exemplo que a França imperial contaminasse a França republicana camuflando dessa for ma as inconsistências da República e preservando o projeto universalista que havia informado a Revolução Francesa CHARBONNEAU 2008 A poesia revolucionária de Césaire contribuía justamente para embaralhar e interpe netrar essas duas Franças desestabilizando essa clara linha de demarcação entre esses dois espaços o espaço continental e o espaço ultramarino Wilder 2005 identifica na poesia de Césaire um processo de condensação similar ao que Freud identificou nos sonhos onde múltiplos espaços e tempos se tornam idênticos deixando de estarem constrangidos pelas coordenadas da realidade empírica Enquanto a plena cidadania e a autonomia nacional são Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 47 14012021 1706 Marta Fernandéz 48 constantemente adiadas para os sujeitos coloniais se tornando uma promes sa para um tempo futuro not yet Césaire através da sua poesia localiza es ses sujeitos no tempo presente movendo a história colonial e africana para o presente always now WILDER 2005 p 268 Desse modo na poesia de Césaire os sujeitos coloniais as histórias précoloniais de dignidade e beleza e as histórias coloniais de opressão e racismo irrompem com fúria na república francesa perturbando a lógica espaçotemporal que tanto havia contribuído para a estabilização do Império francês Césaire não nega suas influências francesas afinal enquanto poeta se ex pressa em francês e foi claramente influenciado pela literatura francesa mas apesar de tomar como ponto de partida elementos da literatura francesa seu objetivo é o de construir uma nova linguagem capaz de comunicar a herança africana CÉSAIRE 1972 Dito de outro modo para ele a língua francesa é vista como um instrumento uma janela de oportunidade voltada para o desenvolvimento de novos modos de expressão especificamente africanos CÉSAIRE 1972 Enfim seu intuito é o de criar um francês negro que ainda que continue sendo francês tenha um caráter negro CÉSAIRE 1972 Nesse sentido Césaire faz coro à proposta de sua esposa Suzanne de canibalizar a literatura caribenha SHARPLEYWHITING 2003 p 117 A ideia de caniba lizar a poesia martinicana diz respeito ao ato de se apropriar deformar recon figurar a cultura ocidental branca seus instrumentos teóricos e a sua língua na exploração e articulação das especificidades da Martinica SHARPLEY WHITING 2003 O movimento defendido por Césaire é o de conquistar dominar o francês para recriálo WILDER 2005 p 280 Podemos pensar na poesia canibal da mesma forma que a figura do Caliban de Shakespeare adaptado por Césaire ou seja como revolucionária uma vez que representa uma provocação à civilização europeia CAVALCANTE 2012 Esse ges to revolucionário era especialmente necessário na Martinica entendida por Césaire conforme vimos como uma terra alienada Césaire conta por exem plo a história de um farmacêutico pobre da Martinica que se sentiu orgulhoso quando um dos seus poemas ganhou um concurso já que de tão impessoal seu poema não foi reconhecido pelo jurado como tendo sido escrito por um negro CÉSAIRE 1972 O objetivo de Césaire diferentemente era conferir cor negritude às suas poesias objetivo esse que parece ter sido alcançado logo na sua primeira experiência poética notória De fato Fanon nos lembra Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 48 14012021 1706 Aimé Césaire as exclusões e violências da modernidade colonial denunciadas em versos 49 que o poema de Césaire causou um escândalo porque Césaire era um negro formalmente educado que havia estudado no legendário Liceu LouisleGrand e na estimada École Normale Supérieure e os negros educados simplesmente não queriam ser negros eles queriam ser brancos e absurdamente pensavam sobre si e seus trabalhos como brancos e como contribuições para civilização europeia WILDER 2005 Esse movimento de canibalizar a literatura francesa fica claro quando pensamos na influência surrealista que incide sobre a poesia de Césaire Na entrevista concedida à Depestre Césaire comenta que para ele o surrealis mo era uma arma que explodia a língua francesa um fator de libertação que ajudava na evocação das poderosas forças do inconsciente rumo à busca de uma identidade negra Nesse sentido o surrealismo era colocado à serviço da negritude já que os surrealistas coloca Césaire eram tão incolores quanto os comunistas franceses CÉSAIRE 1972 Essa atitude canibal é bem sintetizada por Sartre quem nos diz Surrealismo um movimento poético europeu foi roubado dos europeus pelos negros que se valeram do surrealismo contra a Europa SARTRE 1976 p 39 tradução nossa Podemos concluir que é impossível pensar em Césaire sem pensar no surrealismo no marxismo e na filosofia hegeliana por exemplo Todavia também é impossível pensar em Césaire sem levar em conta seu esforço cria tivo de recentramento de todas essas influências a partir do olhar crítico da negritude e desse modo de introduzir a questão racial como um traço cons titutivo do sistema capitalista mundial O HOLOCAUSTO COLONIAL A GENEALOGIA SILENCIADA PELO OCIDENTE No contexto do pósSegunda Guerra de revolta e descolonizações Césaire publica sua prosa poética Discourse on Colonialism 1950 definido por Robin Kelley como uma declaração de guerra KELLEY 2000 p 7 No livro Césaire antecipa as ideias desenvolvidas por Fanon 2004 e mais adiante por Ashis Nandy NANDY 1989 de que a colonização não pode ser entendida como um jogo soma zero ou como uma empreitada onde os efeitos são unilaterais incidindo apenas sobre as sociedades colonizadas É importante salientar contudo que Nandy tem uma dívida com George Orwell que já em 1936 no Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 49 14012021 1706 Marta Fernandéz 50 conto Atirando num Elefante havia chamado a atenção para os efeitos no civos da colonização sobre os colonizadores No conto Orwell nos fala sobre os dilemas de um policial birmanês diante da expectativa dos colonizados de que ele matasse um elefante que no seu ponto de vista parecia inofensivo No final do conto a contragosto mas atendendo às expectativas depositadas pela multidão sobre ele o policial aperta o gatilho diversas vezes contra o elefante Orwell conclui que o ato de dominar por parte do homem branco envolve necessariamente impressionar os nativos Os efeitos da colonização sobre o homem branco ficam muito claros na seguinte passagem de Orwell percebi que quando o homem branco se tiraniza é a sua própria liberda de que ele destrói ORWELL 1936 Césaire insiste nos efeitos da colonização sobre os próprios colonizadores que no processo se embrutecem e se animalizam Enfim um dos principais argumentos de Césaire no seu Discourse on Colonialism é que a colonização descivilizou os civilizados tendo um impacto não apenas sobre os coloniza dores mas também sobre o próprio conceito de civilização CÉSAIRE 2000 Nos encontros diários entre colonizador e colonizado o primeiro se valeu de uma série de instrumentos de poder como a tortura a violência brutal o ódio racial a intimidação e o trabalho forçado que lhe conduziram para o abismo da barbárie CÉSAIRE 2000 Essa visão é compartilhada por Fanon quando relata o caso de um policial que ao torturar na Argélia se torna violen to com a mulher e os filhos FANON 2004 Enfim primeiro Césaire depois Fanon que foi seu aluno na Martinica destacam os efeitos psicológicos da colonização sobre os seus algozes Segundo Césaire o hábito de ver o Outro como um animal e tratálo enquanto tal o transforma no final das contas num animal CÉSAIRE 2000 Para ambos os autores portanto as práticas brutais empregadas pelo colonizador nas colônias contaminam sua identidade públi ca e privada Não há como para o torturador ser um Eichmann nos termos de Hanna Arendt isto é um criminoso que apenas cumpre sua obrigação o seu dever mas que na sua vida privada é um ser humano normal um bom pai de família e que não nutre o ódio pelas vítimas de seus crimes ARENDT 2013 O resultado final desse efeito boomerang destacado por Césaire é a degradação da própria Europa CÉSAIRE 2000 E o melhor exemplo disso para Césaire foi a experiência do nazismo Na sua interpretação sobre o na zismo ele não é como usualmente entendido uma aberração uma anomalia Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 50 14012021 1706 Aimé Césaire as exclusões e violências da modernidade colonial denunciadas em versos 51 da civilização ocidental CÉSAIRE 2000 Longe de estar no contrafluxo da modernidade o nazismo para Césaire é um desenvolvimento lógico da própria civilização ocidental O nazismo é lido como o totalitarismo colonial trazido de volta para a Europa De acordo com tal leitura os europeus tolera ram legitimaram e absolveram o nazismo antes que lhes impactassem por que até então ele era aplicado exclusivamente aos povos não europeus Por conseguinte antes de terem sido vítimas do nazismo eles foram cúmplices O grande crime do nazismo o poeta denuncia teria sido justamente a aplica ção para os povos brancos dos procedimentos coloniais até então reservados para o mundo colonial CÉSAIRE 2000 Nas palavras de Césaire o que o europeu2 não pode perdoar em Hitler não é o crime em si o crime con tra o homemmas o crime contra o homem branco CÉSAIRE 2000 p 36 Enfim para Césaire o nazismo representa uma continuação da expan são modernacolonial europeia e não uma deformação histórica do Ocidente VALENCIA 2007 O conjunto de práticas racistas e genocidas europeias contra o mundo não civilizado termina afetando o espírito e a mentalidade do colonizador suscitando a aplicação de tais práticas no interior da Europa numa espécie de colonialismo interno VALENCIA 2007 Desse modo o que causou estupor no nazismo foi como argumenta Edward Keene 2002 o fato de os europeus terem experimentado pela primeira vez a desconfortável sensação de serem eles mesmos alvos de discriminação ra cial por parte da Alemanha nazista Nesse novo contexto como coloca Keene 2002 o discurso da supremacia biológica da raça branca é desestabilizado já que seria estranho continuar afirmando a supremacia da raça branca sobre as africanas e asiáticas enquanto simultaneamente se negava a validade dos esforços nazistas de demonstrar a supremacia ariana Assim segundo Keene ao projetar a civilização contra o nazismo seus defensores estavam inevita velmente colocando em questão os velhos pressupostos sobre as fronteiras raciais do mundo civilizado Enfim tanto Keene quanto Césaire borram a clara linha de demarcação entre a Europa e o mundo colonizado ou entre progresso europeu e o atraso colonial ao chamarem a atenção para a presença 2 cannot forgive Hitler for is not the crime in itself the crime against man it is the crime against the white man CÉSAIRE 2000 p 36 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 51 14012021 1706 Marta Fernandéz 52 do colonizado e do atraso no Eu europeu Segundo Césaire existe um Hitler que habita em cada humanista cristão e burguês europeu CÉSAIRE 2000 As ambiguidades da modernidade aqui enfatizadas revelam a existência de múltiplas genealogias para além do espaço europeu Como bem destacado por Timothy Mitchell 2000 p 1213 desvelar a genealogia plural do que unificamos sob o rótulo de modernidade coloca em questão sua coerência Césaire introduz na genealogia europeia a dimensão colonial e racial pertur bando as genealogias produzidas por autores europeus que mesmo estando situados num registro crítico como é caso de Foucault minimizaram tais di mensões3 Ao negligenciar as genealogias coloniais da modernidade Foucault não devota atenção suficiente por exemplo para o papel que o Outro colonial ou a alteridade colonial desempenha e continua desempenhando na pro dução da modernidade europeia Uma das grandes contribuições de Césaire nesse sentido portanto é de nos ajudar a entender as origens extraeuropeias da modernidade e a natureza dependente da Europa Antecipando a famosa alegação de Fanon de que a Europa é literalmente uma criação do Terceiro Mundo Césaire argumenta que o senso de superioridade e de missão dos colonizadores dependem em transformar o Outro num bárbaro KELLEY 2000 p 9 Todavia essa construção binária por meio da qual a Europa ci vilizada se constrói por oposição à barbárie projetada no mundo colonial é instável já que no curso do processo de colonização o humanismo do co lonizador que já havia sido desmascarado nas vidas diárias do colonizado com o nazismo revela sua farsa no seio da própria Europa Com o nazismo portanto a violência colonial e racial tal qual nos versos de Césaire irrompe com força nos espaços de conforto da modernidade Longe de ser exceção desvio deformação da modernidade Césaire inova ao conceber o nazismo como uma prática corriqueira da modernidade cotidianamente experimen tado e sentido nos corpos e espaços coloniais Césaire nos mostra portanto os limites do pseudohumanismo europeu a ideia de que os direitos do homem do século XVIII e logo os direitos humanos 3 Essa crítica é desenvolvida com mais detalhes no seguinte artigo Moreno Marta Beyond PostStructuralism Empowering Post colonial Societies FLACSOISA Conference Global and Regional Powers in a Changing World Buenos Aires 2014 Disponível em http webisanetorgWebConferencesFLACSOISA20BuenosAires202014Archive a9fb02ab328d4ce7a27a12a325f4b661pdf Acesso em 14 jan 2019 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 52 14012021 1706 Aimé Césaire as exclusões e violências da modernidade colonial denunciadas em versos 53 da metade do século XX não são extensivos à toda humanidade senão que se reduzem aos direitos do homem europeu GROSFOGUEL 2006 Nesse sentido Césaire nos convida a repensar os direitos humanos desde o ponto de vista das margens da experiência póscolonial marcada pela violência e pela injustiça Enfim Césaire nos intima a descentrar a Europa da sua posição totalizante e a particularizar a sua história e com ela o Holocausto lançan do luz para os inúmeros holocaustos vivenciados pelos povos colonizados invisíveis no marco da modernidade A conclusão de Césaire é aquela que abre esse artigo qual seja a Europa é indefensável e decadente já que incapaz de resolver os problemas que sus cita seu funcionamento sobretudo o colonial CONSIDERAÇÕES FINAIS O principal objetivo deste capítulo foi o de chamar a atenção para os limites e ambiguidades do universalismo europeu denunciados em versos por Césaire O capítulo foi introduzido a partir do atual drama dos migrantes que aden tram a Europa e que vêm sendo alvos de práticas racistas a fim de lançar luz à seletividade que ainda hoje acompanha o universalismo europeu O pensa mento de Césaire nos convida a reorientar nossos olhares em direção aos po vos póscoloniais e ao fazêlo a problematizar a noção de direitos humanos que emerge impulsionada pelo genocídio paradigmático da modernidade o Holocausto que continua privilegiando as violações que incidem sobre o homem branco europeu Muitos das questões suscitadas por Césaire e exploradas neste capítulo permanecem atuais e vêm merecendo a atenção de estudiosos póscoloniais e decoloniais contemporâneos especialmente seu chamado à descolonização das estruturas epistemológicas eurocêntricas que ainda hoje promovem a su perioridade do Ocidente visàvis seus Outros Como observamos ao longo do capítulo nem mesmo as filosofias que lhe influenciam entre elas o marxis mo o surrealismo e o hegelianismo ficam imunes à crítica que Césaire dirige a partir do seu conceito de negritude à natureza racista do saber europeu Pensar a partir de Césaire é pensar a partir desses seres humanos histo ricamente desumanizados a partir de suas dores e sofrimentos compartilha dos mas também a partir de suas potências e sensibilidades estéticas Seu Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 53 14012021 1706 Marta Fernandéz 54 pensamento prenunciou inúmeras ideias desenvolvidas posteriormente por pensadores latinoamericanos associados às perspectivas decoloniais que vêm denunciando o racismo estrutural a natureza excludente da modernidade bem como sua dependência em relação às violentas dinâmicas coloniais Suas contribuições permanecem atuais enquanto importantes contranarrativas à História contadaimposta pela Europa de Próspero que ainda hoje prospe ram pelo mundo afora Por meio de diferentes linguagens estéticas Césaire ativa imaginações referências e mundos outros como no caso daqueles de Caliban Césaire nos convida ontem e hoje a pluriversar o mundo que nos foi apresentado como uno ou a versar sobre mundos outros plurais e dinâmicos REFERÊNCIAS ARENDT H Heichmann em Jerusalém um relato sobre a banalidade do mal Tradução de José Rubens Siqueira São Paulo Companhia das Letras 2013 BHABHA H O local da cultura Belo Horizonte UFMG 1997 CAVALCANTE F G União Europeia e América Latina associação estratégica ou oposição hierárquica uma análise do discurso Tese Doutorado em Relações Internacionais Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Instituto de Relações Internacionais 2012 CÉSAIRE A Discourse on Colonialism Translated by Joan Pinkham New York University Monthly Rewiew 2000 CÉSAIRE A Carta a Maurice Thorez Social Text New York v 28 n 2 2010 CÉSAIRE A Discurso sobre la negritud Negritud etnicidad y culturas afroamericanas Discurso sobre el colonialismo Tradução de Beñat Baltza Álvarez Madrid Akal 2006 p 8591 CÉSAIRE A Diário de um retorno ao país natal São Paulo Edusp 2012 CÉSAIRE A A Tempest Based on Shakespeares The Tempest Adaptation for a Black Theatre Tradução de Richard Miller Nova York Theatre Communications Group 2002 CÉSAIRE A Poetry and Knowledge In CESAIRE A ESHLEMAN C SMITH A Lyric and Dramatic Poetry 19461982 Virginia University of Virginia Press 1990 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 54 14012021 1706 Aimé Césaire as exclusões e violências da modernidade colonial denunciadas em versos 55 CÉSAIRE A Cultural Diversity as a Factor in Development In UNESCO Echoing voices Cultural Diversity as a Path to Sustainable Development Tenth Anniversary of the adoption of the UNESCO Universal Declaration on Cultural Diversity Unesco 2011 Disponível em httpwwwunesco orgcultureaicechoingvoicesdownloadsechoingvoicespdf Acesso em 14 jan 2019 CÉSAIRE A An interview with Aimé Césaire Discourse on Colonialism New York Montly Review Press 1972 CHAKRABARTY D Provincializing Europe postcolonial thought and historical difference Princenton N J Princeton University Press 2000 CHARBONNEAU B Dreams of Empire France Europe and the New Interventionism in Africa Modern Contemporary France French v 16 n 3 2008 FANON F The Wretched of the Earth New York Grove Press 2004 FANON F Black SkinWhite Masks Chapter 5 United Kingdon Pluto Press 1985 GROSFOGUEL R Actualidad del pensamiento de Césaire redefinición del sistemamundo y proucción de utopia desde la diferencia colonial In CÉSAIRE A Discurso sobre el Colonialismo Prefácio de Mário de Andrade Madrid Ediciones Akal 2006 HEGEL G H F Princípios da Filosofia do Direito São Paulo Martins Fontes 2003 KAPOOR I Acting in a tight spot Homi Bhabhas postcolonial politics New Political Science Switzerland v 25 n 4 p 561577 2003 KELLEY R D G A Poetics of Anticolonialism In CÉSAIRE A Discourse on Colonialism New York New York University 2000 KEENE E Beyond the Anarchical Society Grotius Colonialism and Order in World Politics United Kingdom Cambridge University Press 2002 KHOURY J The Tempest Revisited in Martinique Aimé Césaires Shakespeare Journal for Early Modern Cultural Studies Pennsylvania v 6 n 2 p 2237 2006 KRISHNA S Globalization Postcolonialism Hegemony and Resistance in the Twentyfirst Century Maryland EUA Rowman Littlefield 2009 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 55 14012021 1706 Marta Fernandéz 56 MATIBAG E SelfConsuming Fictions The Dialetics of Cannibalism in Modern Caribbean Narratives Postmodern Culture Chicago EUA v 1 n 3 p 119 1991 MITCHELL T The Stage of Modernity Questions of Modernity Minnesota University of Minnesota Press 2000 NANDY A The Intimate Enemy Loss and Recovery of Self under colonialism India S n 1989 ORWELL G Atirando num Elefante Rio de Janeiro PUC 1936 Disponível em httpwwwmaxwellvracpucriobr35913591pdf Acesso em 14 jan 2019 RABAKA R The Negritude Movement WEB Du Bois Leon Damas Aime Césaire Leopold Senghor Frantz Fanon and the Evolution of the Insurgent Idea Maryland EUA Lexington Books 2015 SARTRE JP Black Orpheu French Présence Africaine 1976 SHARPLEYWHITING T Denean Suzanne Césaire Tropiques Surrealism and Negritude In BERNASCONI R ed Race and Racism in Twentieth Century Continental Philosophy Bloomington Indiana University Press 2003 SUK J Postcolonial Paradoxes in French Caribbean Writing Cesaire Glissant Condé Oxford Clarendon Press 2001 VALENCIA O B Cesaire y la formacion de pensamentos decoloniais Convergencia Revista de Ciencias Sociales Uruguay v 14 n 3 2007 WALLERSTEIN I Aimé Césaire colonialism comunismo y negritud In CÉSAIRE A Discurso sobre el Colonialismo Madrid Ediciones Akal 2006 WILDER G The French Imperial NationState Negritude and Colonial Humanism Between the two World Wars Illinois EUA The University of Chicago Press 2005 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 56 14012021 1706 57 RESISTÊNCIA POLÍTICA E IMPOSSIBILIDADES DA LIBERDADE ENTRE FANON E NANDY LARA MARTIM RODRIGUES SELIS NATÁLIA MARIA FÉLIX DE SOUZA INTRODUÇÃO O desejo de liberdade traduz uma das mais abrangentes ambições políticas modernas ao mesmo tempo em que se revela uma das mais esquivas A defesa da liberdade individual eou coletiva não é reduto de um grupo ou posição política específicos estando estampada nos diferentes e muitas vezes contraditórios discursos proferidos por governantes e governados Contudo paralelamente à defesa da liberdade o que se assiste é a multipli cação da violência e do desrespeito à liberdade a violência travada em nome da liberdade ou ainda a liberdade de alguns constantemente subjugada à liberdade de outros Se por um lado o Estado moderno encontra grande parte de sua legitimidade em nome da garantia das liberdades individual e coletiva por outro tal promessa é constantemente adiada ou indeferida para um número vertiginoso de indivíduos e grupos Muitas vezes as contradições que estão no cerne dessa questão foram associadas à forma como o liberalismo encampou a ideia de liberdade pro movendoa como valor universal na constituição das comunidades políticas ocidentais ao mesmo tempo em que a negava aos sujeitos e povos situados Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 57 14012021 1706 Lara Martim Rodrigues Selis Natália Maria Félix de Souza 58 além do Ocidente Em especial as profundas raízes coloniais do liberalismo foram evidenciadas na vida e obra de John Stuart Mill Cânone máximo do pensamento liberal no século XIX defensor irrefreável da liberdade individual sobre qualquer controle estatal Mill foi um verdadeiro patrono do projeto imperial britânico na Índia não apenas devido aos benefícios que ele traria à Inglaterra mas por acreditar em seu caráter regenerador e promotor da ci vilização Assim estudos críticos de seu legado puderam demonstrar de que maneira valores tidos como universais como o progresso a humanidade a liberdade e a paz e que estão na base do projeto político liberal atuaram como cúmplices do projeto imperial KRISHNA 2001 Críticos do liberalismo sem contudo abandonar a busca pela liberdade grande parte dos movimentos anticoloniais do século XX foram motivados por um desejo profundo de autodeterminação reconhecendo na libertação nacional a única forma de resgatar e promover a possibilidade da liberdade para os indivíduos não Ocidentais É na esteira dessas ideias e movimentos políticos que marcaram a segunda metade do século XX que se torna possí vel compreender a importância do pensamento e ativismo políticos de Frantz Fanon um dos mais influentes psiquiatras póscoloniais que promoveu uma veemente defesa da necessidade de descolonizar não somente os corpos mas também as mentes dos sujeitos coloniais marcados pela violência da colonização Em sua última obra Os condenados da Terra Fanon desfere sua mais feroz crítica ao que entende ser a hipocrisia do humanismo liberal que desumaniza o sujeito colonizado através da violência Nessa obra o autor apresenta a vio lência colonial contra o colonizador como sendo a única chave para a liberta ção do sujeito colonizado sua única possibilidade de ressurreição e recriação da humanidade Por muito tempo esquecido devido a essa polêmica defesa da violência como chave para a resistência política o pensamento de Fanon tem sido resgatado e assume crescente relevância para pensar estratégias de resistência contemporâneas Tais reflexões parecem se fortalecer diante do diagnóstico de que o fim dos processos de colonização formal dos povos não representou o fim da violência colonial sobre corpos e mentes marcados pela colonialidade Se a realidade que Fanon observa na Argélia não admite ambivalências sendo caracterizada por uma cisão absoluta entre colonizadores e colonizados o contexto da colonização indiana analisado por Ashis Nandy nos possibilita Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 58 14012021 1706 Resistência Política e impossibilidades da liberdade entre Fanon e Nandy 59 um outro olhar para compreender o processo colonial e as estratégias de resis tência política Importante psicólogo político e crítico social contemporâneo Nandy apresenta uma estratégia para lidar com as cicatrizes físicas e psíqui cas do colonialismo que pode ser considerada em grande medida como o reverso daquela proposta por Fanon para quem a reconstrução de um novo humanismo passaria pelo exorcismo violento do colonizador Profundamente inspirado pela resistência política representada por Gandhi Nandy entende a violência como uma forma de resistência que já está capturada pelo imagi nário colonial que faz de colonizadores e colonizados duas formas diferentes de vítimas do processo de colonização Assim o autor acaba desferindo uma forte crítica aos movimentos de descolonização e autodeterminação pautados na violência por entender que não é possível escapar do imaginário colonial e portanto fechar as feridas do colonialismo e refundar a possibilidade de liberdade sem reconhecer a importância de uma reconciliação entre coloni zadores e colonizados1 Dada a centralidade desses dois grandes pensadores e ativistas políticos para o pensamento decolonialpóscolonial este capítulo tem o objetivo de explorar suas diferentes contribuições acerca da resistência política e da pos sibilidade de liberdade no projeto póscolonial tendo em vista seus distintos entendimentos sobre o papel da violência como catalisadora da liberdade Se por um lado ambos reconhecem os limites da liberdade dentro dos moldes liberais e das ambições universalistasuniversalizantes do projeto colonial por outro seus diagnósticos diferem acerca dos caminhos e significados da reconstituição da liberdade para além do liberalismocolonialismo Assim não está no escopo deste capítulo oferecer uma compreensão profunda das obras desses dois importantes pensadores tarefa demasiado importante e extensa para os limites desta proposta O que se buscará ao longo destas pá ginas é investigar os pensamentos dos autores a partir de suas obras seminais 1 Uma importante reflexão acerca das distintas contribuições de Fanon e Nandy foi traçada por Shilliam 2012 ao analisar de que maneira os autores subvertem as figuras do nativo e do negro na narrativa do contratualismo liberal de Locke Os conceitos de exorcismo e reconciliação são introduzidos por Shilliam para definir as propostas de ação e resistên cia política colocadas em relevo pelos autores Nosso artigo empresta a terminologia por compreender que as reflexões aqui delineadas caminham em paralelo àquelas expostas pelo autor Para uma melhor compreensão dos conceitos ver Shilliam 2012 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 59 14012021 1706 Lara Martim Rodrigues Selis Natália Maria Félix de Souza 60 Os condenados da terra e O inimigo íntimo perda e recuperação do self sob o colonialismo a fim de apontar caminhos para compreender de que manei ra suas reflexões podem ajudar a pensar estratégias de resistência política contemporâneas Apesar da centralidade do conceito de liberdade para esta investigação não se busca aqui adentrar debates da filosofia política que buscam encon trar definições claras para os termos Uma vez que o objetivo destas páginas é oferecer as reflexões de Fanon e Nandy como alternativas para pensar pos sibilidades de ação e resistência políticas para sujeitos coloniais múltiplos diferentemente marcados pela violência acreditamos que a melhor estraté gia é percorrer suas reflexões de maneira a permitir que as ambiguidades e potencialidades aflorem ao invés de pressupor uma filosofia de limites com raízes distintamente ocidentais e portanto vinculadas a uma trajetória po lítica e intelectual que é inequivocamente o alvo de ambos os pensadores Assim por vezes os termos liberdade emancipação e resistência aparecerão em uma relação quase sinônima Longe de estarmos propondo a equivalência destes termos o que se busca ao permitir o livre jogo de suas representações é apresentar distintas possibilidades de se pensar a liberdade como uma experiência prática que marca a existência política dos sujeitos co loniais tanto quanto a dos sujeitos ocidentais Nesse sentido argumentamos que enquanto liberdade e resistência forem compreendidas como categorias filosóficas rígidas elas estarão necessariamente limitadas em sua capacidade de se oferecerem como experiências vividas afinal as experiências jamais se conformam a categorias filosóficas rígidas mas seguem um rastro parale lo no qual ambiguidades e incertezas fazem parte do instrumental político individual e coletivo É importante ressaltar ainda que e este é um dos pressupostos sobre os quais se constrói a nossa argumentação o contexto intelectual e político desses dois pensadores é deveras diverso para acomodar uma definição única para estes conceitos A apreciação de suas propostas e contribuições que à primeira vista podem parecer incompatíveis passa pelo reconhecimento de que as experiências de sujeitos historicamente situados não pode ser previa mente demarcada e contida por categorias filosóficas Assim longe de buscar apresentar Fanon e Nandy como duas alternativas radicalmente opostas ao problema da resistência política este capítulo busca compreender os diferentes Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 60 14012021 1706 Resistência Política e impossibilidades da liberdade entre Fanon e Nandy 61 contextos políticos e intelectuais que motivaram suas reflexões assim como sua continuada relevância para a contemporaneidade A fim de nos manter fiéis ao espírito dos autores que foram cautelosamente suspeitos de soluções absolutas e universalizantes buscaremos apresentar suas propostas em suas potencialidades diferenças e complementaridades considerando igualmen te os possíveis limites de sua aplicabilidade FRANTZ FANON A VIOLÊNCIA COMO CAMINHO PARA LIBERTAÇÃO De pé ó vítimas da fome De pé famélicos da terra Da idéia a chama já consome A crosta bruta que a soterra Cortai o mal bem pelo fundo De pé de pé não mais senhores Se nada somos neste mundo Sejamos tudo oh produtores2 Os condenados da Terra título do último livro escrito por Frantz Fanon em 1961 carrega em suas palavras uma alusão ao hino da Internacional Comunista cujo clamor direcionavase aos condenados pelo sistema às ví timas da fome e às vítimas da terra De forma semelhante aos versos Fanon escreve aquela obra como um chamado político aos oprimidos para que fi quem de pé para que lutem unidos Nesse livro a Europa perde posto de interlocutora para constituirse como objeto é condenada e analisada a fim de descortinar às pessoas subalternizadas seus mecanismos de alienação Fanon quer desmantelar aqueles que os condenam para construir uma terra liberta uma terra sem amos3 Portanto nas páginas de Os condenados da Terra Fanon busca elucidar o jogo brutal entre opressores e oprimidos de cuja oposição constituinte emer ge a morte apresentada como o único futuro à vista Nesses termos a vida do 2 Trecho retirado do Hino da Internacional Comunista Letra original em francês criada por Eugène Pottier 1870 Tradução Neno Vasco 1909 3 Vide nota anterior Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 61 14012021 1706 Lara Martim Rodrigues Selis Natália Maria Félix de Souza 62 novo homem emancipado é posta em função do aniquilamento dos velhos papeis de colonizador e colonizado Para estes o óbito daquela relação viria desfazer a dominação original pela qual os colonizados foram liquidados física psíquica e culturalmente pelos colonos Por isso da morte não os as sombram seus mistérios esta para os oprimidos desponta antes como res surreição do que sepultamento ou seja como oportunidade de reconfigurar o que foi desmantelado pela violência primeira colonial e desumanizadora Nas palavras de Fanon 1968 p 73 o aparecimento do colono signifi cou sincreticamente morte da sociedade autóctone letargia cultural petrifi cação dos indivíduos Para o colonizado a vida só pode surgir do cadáver em decomposição do colono A radicalidade de tal escrita a princípio chocante vai adquirindo sentido à medida que o autor confronta nosso espanto inicial com a igual dramaticidade das contradições promovidas pelo colonialismo Afinal como denunciou Sartre 1968 p13 no prefácio da obra o sistema ma niqueísta de dominação colonial logrou reclamar e renegar a um só tempo a condição humana e tal o caráter explosivo dessa contradição que Fanon não poderia supor uma resistência menos dramática senão a violência irre primível dos colonizados Logo a natureza violenta do processo de colonização é passada para seu reflexo a descolonização Nesse espelho a violência desumanizadora do co lono transformase dialeticamente na violência legítima e formadora do colo nizado Como se vê Fanon responde ao pensamento maniqueísta do mundo colonial através de uma lógica dialética Sob influência hegelianomarxista o autor toma o movimento das contradições para ler sua realidade subs tituindo a centralidade da noção de classe pela categoria de raça Por essa perspectiva a violência sofrida e promovida pelos colonizados possui papel semelhante ao da exploração de classe na luta operária visto que suas con tradições levam à epifania do oprimido que através dela se descobre unido e intimidador Assim para Fanon a força pulsante do negro subalternizado emerge como catalisador revolucionário no nível coletivo unifica a massa dispersa em corpo nacional no nível individual unifica o self corrompido e reconfigura sua humanidade Ao conceber a violência enquanto práxis totalizante Fanon nos move her meneuticamente Afinal a nós leitoras e leitores do Terceiro Mundo o texto desafia igual dialética primeiro chocanos com a defesa não dissimulada da Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 62 14012021 1706 Resistência Política e impossibilidades da liberdade entre Fanon e Nandy 63 violência sanguinária dos colonizados e pela sensação de espanto nos faz colonos Depois ao nos sentar junto aos nativos o autor justifica o ódio por tamanha repressão colonialista e pela dor compartilhada nos vemos colo nizados Ao fim já convencidos da violência vingativa Fanon nos confronta com a prescrição da superação de tal espontaneidade reativa que deve ser canalizada pela violência diretiva política e emancipadora Nessa passagem entre inconsciente e consciência Fanon sugere que nos vejamos então como síntese Obviamente não se trata de um movimento interpretativo homogêneo ou mesmo objetivo Por isso as páginas que seguem buscam apresentar tal leitura em que interpretação e arguição se misturam Nas próximas seções serão debatidas as três concepções centrais que Fanon assume para o desen volvimento da violência como tática de emancipação política primeiramente sua posição como antítese da violência colonial segundo sua função catalisa dora da consciência política e por fim seu papel na construção de um novo humanismo erigido da superação dialética Dos Corpos corrompidos à nação cindida os limites da violência reativa Nascido em Martinica com ascendência africana e francesa Fanon escreve suas obras sob forte influência de sua experiência pessoal como homem negro à qual soma substrato ideológico da resistência coletiva frente à dominação neocolonial no século XX Como nos recorda o autor seu relato é essencial mente histórico pertenço irredutivelmente à minha época FANON 2008 p 10 Sua escrita aborda especificamente um mundo marcado pela guerra de independência da Argélia iniciada em 1954 e finalizada em 1962 um ano após a morte precoce de Fanon vítima de leucemia Durante os primeiros anos daquele conflito Fanon atuou como médico e diretor da ala de psiquiatria no hospital de Blida cuja experiência impreg nada por relatos dramáticos de seus pacientes confere o tom de fúria com que ele descreve a radicalidade desumanizadora da colônia Nesses termos a opressão francesa teria assumido forma tão profunda que cavara um abismo radical entre ambos os mundos dos colonos e dos colonizados Assim ba seado em sua atuação como psiquiatra e militante na Argélia Fanon descreve uma realidade colonial que não admite ambivalência Tratase de um mundo Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 63 14012021 1706 Lara Martim Rodrigues Selis Natália Maria Félix de Souza 64 cindido em absoluto cujas fronteiras são bem delimitadas por uma violência perpetrada sem intermediários Nas palavras do autor A zona habitada pelos colonizados não é complementar da zona habitada pelos colonos Estas duas zonas se opõem mas não em função de uma uni dade superior Regidas por uma lógica puramente aristotélica obedecem ao princípio da exclusão recíproca não há conciliação possível um dos termos é demais FANON 1968 p 28 Ora se de um lado o colono usufruía de asfalto saciação iluminação e limpeza de outro o colonizado experimentava doenças fome e miséria A humanidade de um fora conquistada pela subjugação e desumanização do outro Por isso aos olhos de Fanon a luta pela descolonização não poderia visar uma ponte entre aquelas esferas mas apenas a destruição de ambas pela expulsão do mundo colonial do território colonizado Notase ademais que não se trata de uma separação meramente econômica das partes mas de uma divisão calcada na intersecção entre classe e raça nas colônias a infraestrutura econômica é igualmente uma superestrutura A causa é consequência o indi víduo é rico porque é branco é branco porque é rico FANON 1968 p 29 Assim ao suporte marxista Fanon soma a categoria de raça e instrumen tos da psicanálise freudiana através dos quais analisa a opressão colonial em sua totalidade isto é enquanto força que invade o corpo e a mente dos oprimidos Nesses termos o sujeito político de Fanon perde a configuração abstrata dos modelos subjetivistas para ganhar uma materialidade violenta da da qual nascerá a dor fonte de humilhação mas também de libertação A fórmula abstrata do ator racional é substituída por corpos desnutridos e enfermos que encontram no medo o golpe final da opressão capaz de de sintegrarlhes a personalidade FANON apud SARTRE p 9 Nesse sentido para além da subjugação política econômica e cultural os oprimidos sofrem também de uma repressão corporal Tal contenção muscular e psíquica se transforma em força latente de modo que o corpo do colonizado tornase uma arma explosiva contra o opressor Todavia em seu estado espontâneo essa força não é canalizada contra a dominação sendo periodicamente administrada e liberada através de lutas tribais das danças e dos sonhos dos colonizados A autodestruição coletiva configurase entre as Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 64 14012021 1706 Resistência Política e impossibilidades da liberdade entre Fanon e Nandy 65 principais válvulas de escape daqueles corpos que se destroem em batalhas sanguinárias a fim de dar vazão para tal energia agressiva Em tal contexto a espontaneidade dos atos de violência individualizada e reativa ainda não configura resistência diretiva embora possua potenciali dade revolucionária Afinal embora experimentem a ação comum da violên cia colonial as massas permanecem dispersas pelo caráter inconsciente de suas ações individuais que podem ser compreendidas como uma espécie de resistência prépolítica Nesse ponto chamanos a atenção o pressuposto de alienação que Fanon mobiliza na medida em que caracteriza tal fase como um estado de falsaconsciência em que os agentes encontramse estranhos ao mundo que os oprime No caso dos colonizados da Argélia tal estranhamen to seria fruto da superestrutura mágica que impregna a sociedade indígena É através dos mitos terrificantes tão prolíferos nas sociedades subde senvolvidas que o colonizado vai extrair inibições para sua agressividade gênios malfazejos que intervêm todas as vezes que a gente se move de través homensleopardos homensserpentes cachorros de seis patas zumbis toda uma gama inesgotável de animalejos ou de gigantes dispõe em torno do co lonizado um mundo de proibições de barreiras de interdições muito mais aterrorizantes que o mundo colonialistas O plano do mistério nos países subdesenvolvidos é um plano coletivo que depende exclusivamente da magia Os zumbis acreditaime são mais terrificantes do que os colonos E o problema então não consiste mais em executar as ordens do mundo blindado do colonialismo mas em refletir três vezes antes de urinar de cuspir ou de sair de noite As forças sobrenaturais mágicas revelamse espantosamente entranhadas em meu eu As forças do colono apresentamse infinitamente amesquinhadas marcadas de estraneidade Na realidade não se vai lutar contra elas visto que afinal o que importa é a pavorosa adversidade das estruturas místicas Tudo se reduz está claro ao confronto permanente no plano fantasmagórico FANON 1968 p 4142 Portanto encerrado em uma situação de heteronomia o colonizado de senvolve um estado psicossocial de desconexão com o mundo circundante Com isso o colonialismo levaria não só à perda da identidade individual mas também da identidade coletiva do oprimido A retirada do sujeito des se mundo onírico e sua realocação no mundo das causas e problemas reais Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 65 14012021 1706 Lara Martim Rodrigues Selis Natália Maria Félix de Souza 66 perpassaria portanto a luta armada Esta como veremos no tópico a seguir seria capaz de unir o povo em uma identidade comum de modo a cumprir a normativa teleológica do livro que assume cores nacionalistas e mira uma síntese dialética em prol de uma Argélia emancipada unificada e soberana Como vemos a edificação de um novo homem e de um novo pensamento conforme propõe Fanon resultaria desse processo através do qual a violência opressora desaparece em seus termos mas reaparece sob nova forma Esta nova criação representaria também o progresso isto é uma etapa elevada para a humanidade daqueles que a realizam Dessas linhas inferimos ao menos duas concepções centrais para o desenvolvimento da obra primeiro a noção de consciência política entendida nos termos da luta social e a noção de um novo humanismo erigido de uma história como progresso Tais noções serão melhor trabalhadas na seção a seguir Seres integrais e corpo coletivo sobre a violência diretiva Filho da violência extrai dela a cada instante a sua humanidade fomos homens à custa dele ele se faz homem à nossa custa Um outro homem de melhor qualidade SARTRE 1968 p 16 Como pontuado anteriormente além de psiquiatra e ensaísta Fanon também foi militante da causa argelina chegando a atuar junto à Frente de Libertação Nacional da Argélia FLN pelo fim da dominação colonial Dado seu engajamento revolucionário o tratamento que oferece à violência no pro cesso de descolonização pode ser interpretado a um só tempo como obser vação sociológica e recomendação tática Nesse sentido Fanon não só relata a violência das massas como também a prescreve como instrumento central da desobediência civil no mundo colonial Pela normativa do texto a mobilização da luta armada colocaria os cor pos em uma mesma direção visto que a partir da violência compartilhada eles se reconheceriam como partes de um mesmo processo e de uma causa comum Por esse motivo o autor advoga pelo papel da direção tática no jogo político a fim de obliterar o voluntarismo cego das massas e dar propósito à violência espontânea Uma vez direcionada a violência levaria os sujeitos Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 66 14012021 1706 Resistência Política e impossibilidades da liberdade entre Fanon e Nandy 67 de um estado de agressão inconsciente para outro em que conscientes de sua opressão estariam aptos a atuarem politicamente por sua libertação Nessa síntese dialética promovida pela violência o self corrompido pela colonização é recomposto pela possibilidade de resistência da totalidade Em outras palavras ao catalisar o processo de tomada de consciência a violência se faz ferramenta emancipadora Ao redescobrir sua humanidade pela luta coletiva o colonizado recobra a consciência de que sua própria exis tência implica a negação do colono Se com efeito minha vida tem o mesmo valor que a do colono seu olhar não me fulmina mais sua voz não mais me petrifica Sua presença não me perturba mais Na prática eu o contrario Não somente sua presença deixa de me intimidar como também já estou pronto para lhe preparar tais embos cadas que dentro de pouco tempo não lhe restará outra saída senão a fuga FANON 1968 p 34 Nessa passagem a libertação psíquica é acompanhada da perda do medo e a violência primordial é a um só tempo conservada aniquilada e superada Semelhante à noção hegeliana de Aufhebung tal princípio dialético busca pôr fim às fronteiras estáticas do ser como infinitivo concebendoo como algo que está na passagem entre o ser que deixa de ser e o nãoser que vem a ser Desse processo de viraser nasce não só um novo homem mas também um novo corpo coletivo o nacional Mas como questiona Fanon que força seria capaz de dirigir tal elevação Do ponto de vista tático o autor se opõe à noção de vanguarda política como liderança do processo de viraser da nação isto é opõese à direção de um partido cabeça responsável por guiar a massa corpo Ao longo de seu tex to vemos a ação política sendo derivada do corpo para mente de modo que nesse ponto emerge certa prioridade ontológica à insurreição popular em que cada corpo humilhado transformase pela violência em um elo da gran de cadeia revolucionária A direção militante segue a formação das massas tornandose instrumento a serviço do povo Dessa forma Fanon se diferencia dos autores que elevam a razão à condi ção central do espírito humano capaz de unificar e agregar o fluxo individua lista em organização coletiva nacional Se para pensadores como Hobbes ou Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 67 14012021 1706 Lara Martim Rodrigues Selis Natália Maria Félix de Souza 68 Kant a humanidade se realiza pela mediação da subjetividade para Fanon a mesma é reclamada a partir de uma experiência totalizante dos corpos que vivenciam materialmente as contradições de suas peles negras Por outro lado a lógica do autor não abstraí a subjetividade e em certa medida pare ce partilhar da invenção de um sujeito universal dada a presunção de uma identidade comum aos colonos que experimentariam e reagiriam à violência colonial segundo uma mesma direção atingindo juntos o estado de cons ciência política Ademais a suposição de um desenvolvimento unilinear da consciência popular em direção à emancipação nacional introduz um sujeito indivisível na base do sistema filosófico da obra Em Os Condenados da Terra as diferen ças internas aos povos colonizados recebem pouca atenção de Fanon que de manda a presunção de certa uniformidade do colono para supor sua dialética comum em prol do projeto de libertação nacional Ou seja a premissa de uma consciência popular passível de ser como um todo catalisada pela violência diretiva favorece a segunda etapa voltada à construção e consolidação do Estadonação liberto da condição de colônia Ademais tal noção de comuna lidade interna oposta ao exterior permite ao autor confrontar politicamente qualquer mimese ou interferência da identidade europeia quer seja através dos partidos4 da burguesia local5 ou mesmo do modelo de humanidade 4 A heterogeneidade da colônia apenas será considerada enquanto condição de diferença frente à metrópole Assim o autor pontua as diferenças coloniais ante às sociedades capi talistas especificamente com relação às estruturas de classe e seus impactos sobre as táticas revolucionárias Diferente das sociedades industrializadas o público urbano das colônias como operários professores comerciantes enfermeiras etc comporia parte complementar da máquina colonial uma vez que se beneficiam de mecanismos da colonização Por isso para Fanon 1968 os partidos políticos e as elites intelectuais ou comerciais tenderiam a pautas reformistas pouco preocupadas com a ruptura radical da ordem 5 Para Fanon a burguesia nacional seria um mal congênito das sociedades coloniais o qual deveria ser combatido A elite local seria portanto uma mímese deformada dos europeus por isso a necessidade de construção de um partido autêntico voltado para as massas e partindo delas Na Argélia a construção desta direção autêntica não partiria das cidades mas do campo que configuraria o lócus revolucionário colonial Conforme pontua o autor diferente dos operários os camponeses nada tem a perder e tudo tem a ganhar FANON 1968 p 46 Por isso a politização do campo seria o único caminho para tornar a violência antes canalizada na dança na possessão ou ainda das lutas fratricidas em força diretiva em prol da libertação nacional Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 68 14012021 1706 Resistência Política e impossibilidades da liberdade entre Fanon e Nandy 69 Assim ao reconfigurar o sujeito iluminista através da dialética o autor propõe reconfigurar pelo mesmo movimento o seu par transcendental o internacional Se o homem é aquilo que faz então diremos que a coisa hoje mais urgente para o intelectual africano é a construção da sua nação Se esta construção é verdadeira quer dizer se ela traduz o querer manifesto do povo se ela revela os povos africanos na sua impaciência então a construção nacional é necessariamente acompanhada pela descoberta e a promoção de valores universalizantes Longe portanto de se afastar das outras nações é a liber tação nacional que faz com que a nação esteja presente na cena histórica É no cerne da consciência nacional que a consciência internacional se eleva e se vivifica E este duplo emergir não é em definitivo senão a essência de toda a cultura FANON 1968 p 206207 A passagem entre a particularidade nacional e o universalismo do inter nacional não é percebido por Fanon como contraditório mas sim como um movimento de pares complementares Dessa maneira ao invés de negar o universal implicado no projeto liberal do Ocidente a proposta de Fanon vai disputar o sentido do comum visando superar as bases racistas do universa lismo europeu Ou seja o que está em disputa não é a forma mas o conteúdo que qualifica o ser humano Nesse sentido o autor pede que abandonemos a Europa enquanto modelo civilizatório e que ousemos inventar e descobrir novos pensamentos Se queremos que a humanidade avance um furo se queremos levar a hu manidade a um nível diferente daquele onde a Europa a expôs então temos de inventar temos de descobrir Se queremos corresponder à expectativa de nossos povos temos de procurar noutra parte não na Europa PeIa Europa por nós mesmos e pela humanidade camaradas temos de mudar de procedimento desenvolver um pensamento novo tentar colocar de pé um homem novo FANON 1968 p 275 Nesse trecho Fanon demonstrase global em sua inspiração histórica A temporalidade por sua vez alinhase ao movimento teleológico progressivo Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 69 14012021 1706 Lara Martim Rodrigues Selis Natália Maria Félix de Souza 70 que mira a superação das perversões modernas sem perder a esperança hege liana de reconstrução da história Assim o objetivo da emancipação resultaria de um processo progressivo motivado pelas próprias contradições inerentes ao colonialismo Com a tomada de consciência sobre o jogo dialético entre colono e colonizado a resistência surge como confronto ou ainda nas pala vras de Shilliam 2012 como exorcismo Isto é a emancipação dos coloniza dos adviria de um processo violento de expurgação do homem branco tanto da psique como da materialidade do mundo colonial ASHIS NANDY A LIBERDADE COMO RECONCILIAÇÃO Um dos cientistas políticos e críticos culturais mais reconhecidos da contem poraneidade Ashis Nandy deve grande parte de sua influência às polêmicas reflexões acerca da resistência política póscolonial traçadas em seu livro O inimigo íntimo perda e recuperação do self sob o colonialismo6 A fim de com preender a complexidade de sua proposta política face àquela de Fanon cabe primeiramente ressaltar as significativas diferenças que demarcam seu contexto histórico político e intelectual afinal não apenas sua fala par te de um momento histórico posterior aos movimentos de libertação nacio nal e ao alcance da independência formal das colônias africanas e asiáticas como também suas reflexões se desdobram acerca de um processo colonial bastante díspar em que a figura do indiano nativo desempenha um papel muito mais humanizado do que aquele concedido ao negro africano a quem Fanon se refere7 Assim Nandy oferece uma proposta de releitura da relação colonial e das possibilidades de resistência política que em grande medida contrasta com diagnóstico e prescrição fanonianos Em uma chave distintamente marcada pela psicanálise freudiana mas não menos influenciada pela crítica cultural de modelos universalistas ocidentais o autor cuja importância também passa pela busca do diálogo entre intelec tuais e ativistas políticos discute a possibilidade de libertação da psique e dos corpos colonizados que contrasta com a proposta fanoniana na medida 6 Na ausência de uma tradução oficial desta obra todas as citações referentes a ela foram baseadas na livre tradução pelas autoras 7 Ver Shilliam 2012 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 70 14012021 1706 Resistência Política e impossibilidades da liberdade entre Fanon e Nandy 71 em que proscreve a violência como alternativa política Para Nandy e nesse ponto sua narrativa parece caminhar em paralelo à de Fanon a possibilida de de resistência mediante o uso da violência acaba sendo delimitada pela própria violência desferida pelo colonizador contra o colonizado Contudo Nandy inverte essa equação ao afirmar que tal solução apenas reinscreve a possibilidade de ação do sujeito colonial no contexto daquilo que foi definido pelo colonizador não permitindo aos primeiros quebrarem com um círculo de relações ou um jogo como o autor prefere colocar cujas regras foram previamente delimitadas por aqueles que praticaram a violência primeira Assim ao longo de seu livro Nandy busca em alguma medida compreen der o processo de formação dessas regras do jogo colonial e de que maneira elas inscrevem as possibilidades de relação política entre colonizadores e colo nizados mesmo após os processos de independência formal Ao autor interes sa desvelar as maneiras pelas quais a violência acaba introduzindo o sujeito que busca por liberdade psíquica física em um jogo no qual ele não pode ser nada além de uma vítima já que foi nessa condição que o jogo foi criado Em sua obra Nandy oferece uma interpelação muito poderosa dos movi mentos modernizantes invocados pelos autores contratualistas por justificarem a colonização baseados em sua promessa de realizar a liberdade mediante o progresso cultural e político Tal promessa contudo permanece sempre adia da aos colonizados e atrelada fundamentalmente à reprodução do modelo garantido aos colonizadores ainda que mediante o emprego da violência Ao questionar tal processo Nandy permite levantar um questionamento acerca das possibilidades e também impossibilidades de pensar sobre liberda de e nacionalismo no período póscolonial Contribuindo para uma análise da psicologia do colonialismo iniciada por autores como Fanon Memmi e Mannoni8 Nandy oferece uma crítica que não se limita a uma simples recu sa dos tropos de modernização sustentados pela razão ocidental mostrando uma compreensão bastante complexa dos dilemas modernos De acordo com Nandy o motivo pelo qual o colonialismo se tornou uma realidade tão devastadora é porque ele encontrou abrigo nas mentes das pes soas Colonizadores e colonizados indistintamente tiveram que se identificar 8 Acerca da relevância e pioneirismo atribuídos por Nandy a estes autores NANDY 1983 p 30 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 71 14012021 1706 Lara Martim Rodrigues Selis Natália Maria Félix de Souza 72 com seus papeis para que o padrão específico de relações coloniais pudesse se estabelecer Portanto o autor parte da premissa de que o Ocidente se tor nou ele mesmo parte onipresente do não Ocidente uma vez que ambas as categorias adquiriram seu significado através da experiência colonial para então tentar articular a possibilidade de pensar formas de resistência que não estejam previamente capturadas por modos de dissidência oficiais Segundo Nandy é possível hoje ser anticolonial de uma forma que já é especificada e promovida pela visão de mundo moderna como adequada sã e racional Mesmo ao se opor essa forma de dissidência continua sendo previsível e con trolada NANDY 1983 p xii A possibilidade delineada por Nandy para romper com esse padrão o mesmo que ele identifica na maioria das lutas por descolonização e autode terminação do século XX é uma estratégia psicológica que influenciada pela psicanálise freudiana tenta descentralizar o sujeito colonial levando a uma desestabilização do entendimento convencional acerca das relações coloniais baseadas em um conjunto de dualidades como amigoinimigo opressoroprimido euoutro agressorvítima Através dessa estratégia Nandy acredita ser possível rearticular a resistência para além de um quadro exclu sivamente confrontacional que segundo ele é a base de sustentação de todo o imaginário colonial Sua estratégia psicopolítica assume um duplo aspecto Por um lado busca demonstrar como o colonialismo se torna um estado psicológico a partir da afirmação de códigos compartilhados que aproximam duas culturas tidas previamente como incomensuráveis e da instituição de categorias e sistemas de recompensa que criam as condições de possibilidade para o pensamen to e a ação o que acaba por instituir uma espécie de mecanismo de gestão da dissidência Isto lhe permite interrogar duas das categorias centrais que organizaram as relações coloniais entre a GrãBretanha e a Índia sexo e idade e sugerir que tais categorias contribuíram para a produção de colo nizadores e colonizados não tanto como opressores e oprimidos mas como dois conjuntos diferentes de vítimas Essa tentativa de capturar o outro eu do Ocidente a partir das experiências de sofrimento não ocidentais permi te a Nandy investigar por outro lado algumas categorias conceitos e defe sas mentais que podem ajudar a transformar o Ocidente em uma categoria passível de ser compreendida manejada e negociada Assim Nandy busca Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 72 14012021 1706 Resistência Política e impossibilidades da liberdade entre Fanon e Nandy 73 sugerir formas de resistência não ocidentais que se recusam a entrar em uma relação oposicional com o Ocidente e portanto a aceitar as regras de um jogo préestabelecido Tal recusa lhes permite abandonar sua autoidentificação como vítimas de um processo que lhes seria exterior para se tornarem parti cipantes conscientes ou não em um movimento político contra a opressão sendo capazes de construir uma imagem não dominante do Ocidente com o qual seria possível conviver Em última análise a opressão moderna em oposição à opressão tradicional não é um encontro entre o eu e o inimigo os governantes e os governados ou os deuses e os demônios É uma batalha entre o eu desumanizado e o inimigo objetificado o burocrata tecnologizado e sua vítima reificada pseudogovernantes e seus temíveis outros eus projetados nos seus súditos NANDY 1983 p xvi tradução nossa Nesse sentido Nandy defende a necessidade de a Índia póscolonial en tender seu legado colonial através de uma linguagem que ao mesmo tempo em que incorpora a linguagem do mundo moderno tenta se manter fora dela O caminho para que a Índia seja compreendida como Índia e não como o não Ocidente não pode portanto ser encontrado através da desvalorização das características recessivas do Ocidente ou inversamente apelando para alguma essência indiana romantizada Este tipo de política oposicional so mente contribui para que a Índia continue sendo parametrizada em relação ao Ocidente É necessário compreender que O colonialismo criou um domínio discursivo em que o modo padrão de transgredir esses estereótipos foi invertêlos Nenhuma forma de colo nialismo poderia ser completa a menos que universalizasse e enriquecesse seus estereótipos étnicos apropriandose da linguagem desafiante de suas vítimas Foi por isso que o grito das vítimas do colonialismo acabou por ser um grito a ser ouvido em outro idioma desconhecido ao colonizador e aos movimentos anticoloniais que ele tinha criado e em seguida domesticado NANDY 1983 p 7273 tradução nossa Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 73 14012021 1706 Lara Martim Rodrigues Selis Natália Maria Félix de Souza 74 No caso da Índia Nandy entende que o colonialismo começou quando se estabeleceu uma homologia entre dominação política e sexual momento em que as relações políticas angloindianas começaram a atribuir significa dos culturais à dominação britânica Isso foi feito através da categorização da relação entre os sexos e a atribuição do sexo mais depreciado feminilida denamasculinidade para o colonizado esta foi uma forma de tornar a do minação colonial legítima e até mesmo naturalizada O que por sua vez só pôde ser alcançado através da produção de um consenso cultural através de certa identificação com o agressor e com o seu papel não só pelo colonizador mas também e de forma decisiva pelo colonizado Se por um lado o gover nante era delimitado pelo imaginário que via a exploração colonial como um passo necessário de uma filosofia de vida que estaria em harmonia com for mas superiores de organização política e econômica NANDY 1983 p 10 os governados justificavam o colonialismo ao aceitar a ideologia do sistema e buscar sua participação como jogadores ou contrajogadores players and counterplayers de um jogo preestabelecido Ou seja a decisão do indiano de lutar contra os britânicos através das mesmas categorias que caracterizavam a superioridade da masculinidade sobre outras formas de identidade sexual acabava legitimando ainda mais os valores do agressor Na cultura colonial a identificação com o agressor unia governantes e go vernados em um relacionamento diádico inquebrável O Raj via os indianos como criptobárbaros que precisavam se civilizar mais Ele via a dominação britânica como um agente do progresso e como uma missão Muitos india nos por sua vez viram sua salvação na possibilidade de se tornarem mais parecidos com os britânicos na amizade ou na inimizade NANDY 1983 p 7 tradução nossa Uma relação semelhante se deu pelo estabelecimento de uma homologia entre a infância e o estado de ser colonizado A legitimidade nesse caso foi alcançada através da desvalorização dos aspectos da cultura indiana diante da supervalorização dos aspectos da cultura britânica a educação passou a ser vista como necessária ao desenvolvimento e progresso daqueles que como crianças ainda não os tinham alcançado Através dessa narrativa a história se torna uma forma de moralidade capaz de resgatar a imoralidade Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 74 14012021 1706 Resistência Política e impossibilidades da liberdade entre Fanon e Nandy 75 do colonialismo através do progresso isso indica como a história moderna se torna profundamente cúmplice do imaginário colonial precisamente ao aceitar a superioridade cultural de valores modernos que deveriam ser dis seminados através da modernização para a qual o colonialismo seria um passo inevitável O acoplamento da história da racionalidade e da liberdade ofereceu a cha ve para legitimar a equação entre colonialismo e modernização colocando aos povos colonizados uma única visão teleológica do futuro É precisamente por esta razão que Nandy insiste na necessidade de abandonar a visão maniqueís ta do colonialismo pois esta visão é cúmplice da ideologia do colonialismo É fundamental compreender que a experiência de colonização foi ao menos tão significativa para a cultura do colonizador como foi para a colonizado No mínimo porque ela ajudou a promover precisamente as características menos gentis e humanas da cultura política do colonizador Isto criou de acordo com Nandy uma associação patológica entre suas ideias e seus sentimentos que foi subsequentemente integrada em suas teorias religiosas e éticas em uma tentativa de autoconvencimento acerca do dever ou causa maior que está na base de suas ações Esta análise nos permite compreender como valores universais como a liberdade o progresso e a civilização se tornaram profundamente cúmplices das atrocidades coloniais em todas as suas vítimas Nandy contudo defen de uma forma de resistência psicológica capaz de romper com essas grandes narrativas não ao se opor a elas o que seria uma outra maneira de endossar seus pressupostos mas reconhecendo sua instabilidade a fim de recuperar a multiplicidade de eus ocidentais e não ocidentais que de outra forma permanecem perdidos e inacessíveis Para o autor a resposta mais criativa para as patologias da cultura ociden tal está na figura de Gandhi Ele o fez precisamente ao tentar ser um símbolo vivo do outro do Ocidente que nada mais é do que uma outra parcela do eu do Ocidente o inimigo íntimo do Ocidente dominante moderno racional livre mas também chauvinista violento racista Nesse sentido ele não estava interessado na libertação da Índia mais do que na libertação da GrãBretanha diante do colonialismo Sua estratégia se pautou assim na recusa de jogar o jogo nos termos desse Ocidente dominante Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 75 14012021 1706 Lara Martim Rodrigues Selis Natália Maria Félix de Souza 76 No que diz respeito à homologia sexual sua ideia de não violência re presentou uma forma de conhecer o eu não masculino do homem que tinha sido obliterado pela autoimagem ocidental Além disso sua ideologia da não violência não afirmava uma moralidade unilateral a favor do hinduísmo não Ocidental Ao não buscar rejeitar o Ocidente como um todo mas encontrar o outro eu ocidental perdido na narrativa dominante da política como vio lência Gandhi conseguiu performar uma forma de dissidência alternativa No que diz respeito à homologia colonial entre a infância e a subjuga ção política Gandhi afirmava a primazia dos mitos sobre a história dessa maneira ele contornou o caminho unilinear que leva do primitivismo à mo dernidade e da imaturidade política à política madura que a ideologia do colonialismo gostaria que as sociedades dominadas e as raças infantis cami nhassem NANDY 1983 p 55 Isto permitiu transformar a história em um presente permanente pois mesmo se o passado pode ser uma autoridade a natureza da sua autoridade é cambiante amorfa e passível de intervenção NANDY 1983 p 57 A ênfase que Nandy coloca na alternativa apresentada pelo ativismo po lítico de Gandhi funciona como uma crítica pujante de diferentes versões do nacionalismo indiano que se apoiavam na acentuaçãoreificação das diferen ças entre o Oriente e o Ocidente tornandoos antípodas culturais naturais Ao fazêlo segundo Nandy tais perspectivas reforçam a arrogância cultural do Europa pósiluminista que havia definido o verdadeiro Ocidente e o verdadeiro Oriente NANDY 1983 p 74 acentuando as suas diferenças de maneira a legitimar a ideologia do colonialismo Neste sentido o convite de Nandy para recuperar os eus perdidos tanto da Índia quanto do Ocidente aparece como uma negação da possibilidade de estabilizar essas identidades em uma cultura homogênea o que pode oferecer uma crítica poderosa e pro gressiva dos tropos modernizadores que carregam as formas mais pungentes de legitimação do colonialismo Isso permite recuperar uma Índia que não é nem prémoderna nem antimoderna mas apenas não moderna Este século mostrou que em todas as situações de opressão organizada os verdadeiros antônimos são sempre a parte exclusiva versus o todo inclusivo não a masculinidade contra a feminilidade mas qualquer um deles contra a androginia não o passado contra o presente mas qualquer um deles contra a Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 76 14012021 1706 Resistência Política e impossibilidades da liberdade entre Fanon e Nandy 77 intemporalidade timelessness na qual o passado é o presente e o presente é o passado não o opressor contra o oprimido mas ambos contra a racionalidade que os transforma em covítimas NANDY 1983 p 99 tradução nossa Portanto é notável que o projeto de Nandy de recuperar o eu que se perdeu sob o colonialismo não equivale a um restabelecimento de um eu que é completosoberano mas e isso vem de suas raízes freudianas implica precisamente no oposto a recuperação do eu é um reconhecimento da im possibilidade de um eu centralizado sendo portanto uma perda do eu como aparece na maioria das narrativas póscoloniais que enfatizam a relação entre o eu e o outro É somente quando confrontado com o seu inimigo íntimo com o que foi posto de lado a fim de garantir uma identidade es tabilizada que o eu deixa de ser o outro de um outro eu para se tornar apenas uma performatividade de si CONSIDERAÇÕES FINAIS A extensão da opressão colonizadora quer seja física quer seja subjetiva fez da resistência um traço comum entre os escritos do mundo colonial Ou seja como legado intelectual da colonização destacamse trabalhos com base epistemológica orientada para a transformação social os quais em maior ou menor grau estabelecem a liberdade como necessidade histórica central Como vimos Frantz Fanon e Ashis Nandy exemplificam ontologias políticas relacionadas ao telos libertário muito embora representem sensibilidades de resistência distintas Em grande medida os diferentes recursos de subversão mobilizados por cada um dos autores se relaciona ao próprio sujeito histórico com quem dialogam Assim sob diferentes formas de dominação os nativos da Índia e os negros do continente africano abarcam distintas possibilidades de desobediência bem como diferentes projetos de libertação Nesse contexto como explica Shilliam 2012 Nandy analisa o relacio namento entre o homem livre e o nativo em que a subversão é praticada en quanto reconciliação Por outro lado Fanon aborda o relacionamento entre o homem livre e o escravo dando origem à subversão enquanto exorcismo As especificidades do sujeito colonizado afetam diretamente o instrumental analítico que assume as cores da localidade Ou seja dado seu horizonte Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 77 14012021 1706 Lara Martim Rodrigues Selis Natália Maria Félix de Souza 78 histórico Nandy dialoga com a missão civilizadora do Ocidente na Índia cuja prerrogativa subscreve o atraso do nativo mas sem negar sua humanidade Uma vez considerados humanos o sistema de dominação sobre os indianos absorve a linguagem da tolerância permitindo por sua vez uma subversão libertadora pela chave da consonância Sob outro horizonte ao escravo negro fora negada qualquer consideração iluminista sobre o humano Sem o vidro humanista os negros foram expostos à dominação total inviabilizando os espaços de reconciliação imanente Por isso para Fanon exorcizar o homem branco da psique do homem negro cons titui o único caminho para a reconstrução da vida dos colonizados na Argélia Nesse sentido a crônica de libertação de Fanon assume o ritmo da violência que avança pelas interposições entre o colono e o colonizado Da tensão irre conciliável entre os polos emerge a esperança de reconstrução histórica um processo de expurgação pelo qual o fantasma exterior deve ser finalmente confrontado na violência pois ele carrega em si o fardo do fantasma interior NANDY 2007 apud SHILLIAM 2012 p 13 Assim ao olhar para o abismo colonial escavado por processos de aliena ção e desumanização do colonizado Fanon declara a tragédia da concepção iluminista do Homem e de sua liberdade Nesse descortinamento vemos seu argumento equilibrarse entre uma dialética HegelianaMarxista e a psicanáli se Freudiana ou seja uma combinação entre a afirmação fenomenológica do Eu e do Outro e a ambivalência psicoanalítica do Inconsciente BHABHA 2008 p xxiii tradução nossa Com isso o texto de Fanon transita do amor ao ódio do mestre à escravidão buscando restaurar a presença do Outro mar ginalizado Otherness na concepção do desejo No entanto a passagem do particular para o universal presente na re configuração dos pares HomemHumanidade pode sugerir alguns limites teóricos da obra de Fanon Afinal nessa ponte evidenciase o uso de uma ló gica dual e em certa medida aporética através da qual Fanon nega e conser va a razão eurocêntrica Tal contradição revelase na distopia entre o projeto de emancipação nacional dos argelinos e a prescrição de uma solidariedade universal em torno da figura de um novo homem Isso porque a emancipa ção pela via dialética mantém a necessidade do sujeito colonial como figu ra antitética de modo que o nascimento de uma nova forma de identidade Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 78 14012021 1706 Resistência Política e impossibilidades da liberdade entre Fanon e Nandy 79 nacional demanda a presença instrumental do Outro que é negado e excluído na concepção de alteridade Nesse sentido mesmo que essa nova concepção reclame uma posição mais ética dadas as bases antirracistas o processo de apagamento da hetero geneidade parece latente Ademais filosoficamente insolúveis as antípodas nacionaluniversal só poderiam ser resolvidas politicamente ou seja pela dominação de uma sobre a outra Dessa forma a lógica dialética quando impregnada pelo sujeito universal parece ser incapaz de efetuar a dupla ne gação e romper com as díades sem contudo recriálas em um novo plano Com substratos históricos e intelectuais distintos Ashis Nandy propôs um ataque mais profundo à própria estrutura binária a fim de desestabilizála A crítica à noção de fronteiras estáveis e coerentes entre os polos coloniais o le vou a problematizar a resistência política como atributo do oprimido visàvis o opressor Nessa perspectiva a estratégia emancipadora assume um viés mais reconciliador em que os indivíduos resistem ao próprio abismo produzido pela díade Ou seja dada a circularidade hermenêutica entre colonizador e colonizado o desafio da resistência estaria na negociação e politização dos próprios limites que demarcam a oposição entre euoutro em vista de uma reconfiguração da noção de sujeito e seus desejos Embora com recursos teóricos complexos e capazes de evitar algumas das contradições apontadas em Fanon a proposta de Nandy sugere dificul dades centrais no seu tratamento enquanto ferramenta política Ou seja ao contrário da proposta de Fanon originada da e para a militância social a abstração do pensamento de Nandy impõe desafios à sua tradução para a luta coletiva cotidiana Portanto antes de representarem uma progressão linear do pensamento anti e póscolonial Fanon e Nandy apresentam dois corpos teóricos com valor analítico particulares mas que se cruzam e se distanciam Sem dúvidas tal rede de possíveis diálogos e distensões oferece um rico campo de reflexões sobre as políticas de resistência na contemporaneidade O entrelaçamento de normatividades que demarcam o sujeito político con temporâneo lança desafios às teorias políticas que visam interpretálo Afinal raça gênero classe dentre outras categorias agora cruzamse em um mosai co de identidades cuja diversidade projetase sobre o campo de possibilida des políticas de libertação Assim ao tratar as obras de Fanon a Nandy como aberturas teóricas não excludentes para projetos da liberdade este capítulo Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 79 14012021 1706 Lara Martim Rodrigues Selis Natália Maria Félix de Souza 80 buscou retratar a potencialidade de ambas como instrumentos interpretativos para a realidade mutante em que vivemos Talvez essa demanda contemporânea por redefinição de possibilidades abertura de alternativas e portanto promoção da liberdade o que quer que ela enquanto experiência possa representar passe justamente por esse exercício de não afirmar o que poderia ou o que não poderia configurar uma alternativa plausível Talvez mesmo essa abertura do nosso imaginário político um que resista a modelos universalizantes passe primeiramente pela incorporação epistemológica de autores com experiências e recursos que não suponham a superioridade ocidental tornando suas reflexões disponíveis como instru mental político e analítico para um número cada vez maior de sujeitos em especial aqueles marcados pela experiência da colonialidade Oferecer tais recursos sem prescrever de antemão aquele que lógica ou politicamente nos parece o mais adequado e que portanto poderia ser replicado nas múltiplas trajetórias de resistência pode ser a melhor forma de praticarmos ao longo destas páginas uma forma de resistência política que carrega em si o ethos libertário que evoca Afinal o objetivo mais modesto deste capítulo nos parece ser o de contri buir para a ampliação dos estudos acerca da colonialidade presente passa da futura a partir da disseminação do instrumental intelectual e político de autores cujas vidas e obras se destinaram justamente a visibilizar e resistir a colonialidade Tal objetivo não vislumbra a substituição de antigos por novos cânones intelectuais mas nos desafia a tornálos importantes recursos para a ação política póscolonial em sociedades e subjetividades nas quais as marcas da colonialidade ainda se fazem presentes seja em modelos importados de desenvolvimento e modernidade seja em compreensões intersubjetivas mar cadas por padrões de dominação que transitam sobre as esferas normativas de gênero raça sexo classe dentre tantos outros REFERÊNCIAS BHABHA H O local da cultura Belo Horizonte Editora UFMG 2007 BHABHA H Foreword to the 1986 edition In FANON F Black Skin White Masks London Pluto Press 2008 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 80 14012021 1706 Resistência Política e impossibilidades da liberdade entre Fanon e Nandy 81 FANON F Os condenados da Terra Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1968 FANON F Pele negra máscaras brancas Salvador EDUFBA 2008 KRISHNA S Race Amnesia and the Education of International Relations Alternatives India v 26 n 4 p 401424 2001 NANDY A The intimate enemy Loss and Recovery of Self under Colonialism Delhi Oxford University Press 1983 SHILLIAM R The hinterlands of natives and slaves different subversions of Lockes freeman by Nandy and Fanon ISA Paper Archives S l 2012 Disponível em httpfilesisanetorgConferenceArchive23560c308d2a4 d73b3817067cd4f7e38pdf Acesso em 2 fev 2016 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 81 14012021 1706 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 82 14012021 1706 83 O HUMANISMO CRÍTICO DE EDWARD W SAID1 MARCOS COSTA LIMA Todo documento de civilização é também um documento de barbárie Walter Benjamin 2003 apud SAID 2007a p 69 INTRODUÇÃO A recepção no Brasil da obra de Edward W Said 19352003 professor de literatura na Universidade de Columbia é salvo melhor aviso recente Em 1990 a editora Companhia das Letras publicou Orientalismo2 seu livro mais polêmico e em 1995 Cultura e Imperialismo Em seguida vieram seus ensaios Reflexões sobre o Exílio em 2003 Paralelos e Paradoxos 2003 conversas com o músico Daniel Barenboim Representações do Intelectual 2005 e em 2007 Humanismo e crítica democrática Também recente é minha aproximação com sua obra Em 2003 realizan do meu pósdoutorado em Paris tive contato com um artigo seu publicado 1 O presente capítulo foi previamente publicado na revista Lua Nova São Paulo n 73 2008 p 7194 2 O livro publicado em 1978 tornouse um clássico dos estudos culturais pela arrojada tese que defende ou seja a de que o Oriente é uma invenção ocidental que inferioriza as civi lizações a leste da Europa atribuindolhes características exóticas estranhas mitológicas Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 83 14012021 1706 Marcos Costa Lima 84 na Revista Carré Rouge3 uma homenagem quando de seu falecimento A curiosidade aumentou após a leitura desse artigo que tratava do conflito IsraelPalestina e em particular do assassinato de Raquel Corrie jovem norteamericana que prestava serviços voluntários no International Solidarity Movement uma ONG que organiza missões civis nos territórios ocupados que perdeu a vida ao ajudar seres humanos sofridos em Gaza Nesse texto encontrei a defesa convicta da Palestina a denúncia dos terrores praticados contra esse povo mas sobretudo uma busca pela justiça o rechaço firme terrorismo o repúdio a uma solução militar Dizia ele então que nenhuma cultura ou civilização existe isolada das outras nenhuma entende estes conceitos de individualidade e de iluminis mo como sendo completamente exclusiva E nenhuma existe sem os atribu tos humanos fundamentais que são a comunidade o amor a valorização da vida e de todo o resto Em um mundo tão fragmentado como o nosso tão dilacerado tão expos to à intransigência e à violência as palavras de Said beiravam a ingenuidade Mas a força de seu pensamento está justamente numa reflexão que é a uma só vez densa erudita e analítica mas também corajosa Coragem de expor suas ideias de optar pelo lado mais frágil e pelos que sofrem privação de afrontar a sociedade norteamericana que é também a sua e mais do que chamarlhe à razão apontar suas iniquidades A partir daí passei a ler os seus ensaios so bre literatura pois alguns dos seus autores prediletos eram também os meus a exemplo de Joseph Conrad Flaubert Dickens Sartre entre tantos outros tudo isso associado a uma larga bagagem analítica de teóricos da filologia como Eric Auerbach e Leo Spitzer mas também de Gramsci Adorno e Walter Benjamin Luckács Foucault Raymond Williams e Bourdieu uma formidável galeria Para fechar o repertório em si muito atrativo uma prosa agradável e uma erudição aguçada aliadas a uma capacidade crítica inovadora À medi da que fazia as leituras digamos marginais ou complementares o interesse 3 O texto intitulado Dignidade e Solidariedade foi um dos últimos artigos publicados em língua inglesa no AlAhram Weekly Foi traduzido para o português por Maria de Jesus de Britto Leite arquiteta e profª da Universidade Federal de Pernambuco UFPE CarréRouge Canadá n 26 out 2003 Disponível em htttpcarrerougeorg Acesso em 14 jan 2019 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 84 14012021 1706 O Humanismo Crítico de Edward W Said 85 aumentou e cheguei portanto ao núcleo do seu pensamento expostos em Orientalismo e Cultura e Imperialismo Esta breve introdução portanto é mais para dizer que este é um trabalho preliminar uma primeira aproximação analítica da obra de Edward W Said e que mesmo assim superou os efeitos da corrosão da crítica4 Mas ainda tem a intenção de trazer para o contexto da política internacional comparada a contribuição teórica de uma análise da literatura europeia e norteamericana comparada eminentemente política e ao mesmo tempo fortemente literária Said queria destacar o papel central do pensamento imperialista na cul tura ocidental moderna e se perguntava por que a centralidade dessa visão imperial que foi registrada e apoiada pela cultura que a produziu em certa medida a ocultou Ele considerava que para entender as preocupações im periais que foram constitutivas do Ocidente moderno devese avaliar essa cultura tanto do ponto de vista da apologia quanto do ponto de vista da re sistência antiimperialista em geral silenciada na obra dos grandes autores ocidentais A este instrumento analítico Said 1995 denomina de leitura em contraponto E como ele mesmo afirmou no encerramento do século XIX com a disputa pela África a consolidação da União imperial francesa a ane xação americana das Filipinas e o domínio inglês no subcontinente indiano em seu auge o império era uma preocupação universal Ao mesmo tempo asseverava Os grandes praticantes da crítica literária simplesmente igno ram o imperialismo SAID 1995 p 102 Autores como Jane Austen Camus Kipling escreveram para um público ocidental mesmo quando tratavam e narravam personagens lugares situa ções que se referiam ou utilizavam territórios ultramarinos dominados por europeus Mas ao mesmo tempo Said nos dizia que esses povos coloniza dos não europeus não aceitavam indiferentes a autoridade projetada sobre eles nem o silêncio geral que cercava sua presença sob formas mais ou me nos atenuadas Said 1995 conclui afirmativamente como se definisse seu método e suas intenções Devemos pois ler os grandes textos canônicos e talvez também todo arquivo da cultura européia e americana prémoderna esforçandonos por extrair entender enfatizar e dar voz ao que está calado 4 Refirome ao desconhecimento do trabalho da crítica sobre a obra de Said à exceção daquela proferida por Aijaz Ahmad 2002 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 85 14012021 1706 Marcos Costa Lima 86 ou marginalmente presente ou ideologicamente representado em tais obras SAID 1995 p 104 Said tem muito de Bourdieu 1989 na forma de pensar na forma de es truturar a análise sobretudo na compreensão de que há uma economia do simbólico que é irredutível à economia em sentido restrito e que as lutas simbólicas têm fundamentos e efeitos econômicos Para além de uma reatualização do conceito de imperialismo central na obra de Said cinco outros temas tratados ao longo da sua obra interessam diretamente ao campo da Política Internacional Comparada alguns dos quais serão desenvolvidos no desenrolar deste trabalho o primeiro é o presente poder hegemônico exercido pelo governo dos Estados Unidos5 ao longo do século XX e início do XXI que nos interpela para além da pretensão imperial exercida por aquele país sobre as possibilidades de uma multipolaridade entre nações dos desafios de uma interdependência transnacional enfim da construção de uma ordem mundial efetivamente democrática A questão central aqui é portanto a democracia O segundo tema é a questão nacional que embora entendida como momento nativista e necessário em resposta ao processo colonial passa pelo crivo da crítica onde autores como CLR James Frantz Fanon Noam Chomsky entre outros são invocados no sentido de apontar os riscos de uma consciência nacional despreparada ou ainda desvirtuada após as lutas de independência e libertação Mas também as relações NorteSul reapresentações das velhas desigualdades imperiais e persistência do antigo regime Neste contexto Said introduz um argumento de Noam Chomsky de 1982 que ainda hoje traduz uma inquietante realidade mundial O conflito NorteSul não se aplacará e novas formas de dominação terão de ser triadas para assegurar aos segmentos privilegiados da sociedade industrial a preservação de um controle substancial dos recursos mundiais humanos e materiais e dos lucros desproporcionais derivados desse con trole Assim não surpreende que a reconstituição da ideologia nos Estados Unidos encontre eco em todo mundo industrial Mas é absolutamente 5 Em particular tratar da força das ideias emitidas a partir dos Estados Unidos do culto da especialidade e do profissionalismo hegemônico no discurso cultural desse país e que ter mina por contaminar a produção das ciências humanas na vida americana estabelecendo cânones de validade universal ou paradigmas impositivos Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 86 14012021 1706 O Humanismo Crítico de Edward W Said 87 indispensável que para o sistema ideológico ocidental que se estabeleça um enorme fosso entre o Ocidente civilizado com seu tradicional compromisso com a dignidade humana a liberdade e a autodeterminação e a brutalidade bárbara daqueles que por alguma razão talvez genes defeituosos não conseguem apreciar a profundidade desse compromisso histórico tão bem revelado pelas guerras americanas na Ásia por exemplo CHOMSKY 1982 Apud SAID 1995 p 351 O terceiro tema mas não menos importante diz respeito a toda a sua luta pela causa palestina tensionada pelo fato de ser um americanoárabe vivendo nos dois mundos revoltado contra os estereótipos relacionados à cultura árabe nos Estados Unidos durante e após a Guerra do Golfo de que os árabes só entendem a força de que a brutalidade e a violência lhes são inerentes e fazem parte da cultura árabe de que o islamismo é uma religião intolerante segregacionista e medieval fanática cruel contra as mulheres A força da análise de Said está justamente na busca de um paradigma outro inovador para a pesquisa humanista capaz de desmistificar as construções culturais Ao entender e criticar o hegemon não poupa os descaminhos polí ticos no mundo árabe sobretudo de suas elites a atmosfera generalizada de mediocridade e corrupção que paira sobre essa região desmedidadamente rica magnificamente dotada em termos históricos e culturais e amplamen te abençoada com talentos individuais constitui um enorme enigma uma imensa decepção E conclui A democracia em qualquer sentido real do termo não se encontra em parte alguma do Oriente Médio ainda nacionalista que são as oligarquias privile giadas ou grupos étnicos privilegiados A grande massa do povo permanece esmagada sob ditaduras ou governos inflexíveis impopulares Mas a idéia de que os Estados Unidos sejam um virtuoso inocente nesse terrível estado de coisas é inaceitável SAID 1995 p 370 O repertório de incongruências e preconceitos a respeito da civilização árabemuçulmana está também vinculado à ignorância ocidental sobre esta cultura sobre suas contribuições bem como por um trabalho de negação fei to sistematicamente no século XIX por pensadores europeus a exemplo de Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 87 14012021 1706 Marcos Costa Lima 88 Ernest Renan que faziam com que a contribuição destes povos só apareces se furtivamente nas histórias gerais das civilizações e no melhor dos casos como uma simples transmissão entre a Grécia e a Europa do Renascimento6 Em quarto lugar a importância de Said em trazer e dar visibilidade à ines timável contribuição intelectual periférica de autores como Eqbal Ahmad pa quistanês Ngugi Wa Thongo queniano Ali Shariat iraniano Wole Soyinka nigeriano Tayeb Salih sudanês CLR James TrinidadTobago George Antonius libanês Faiz Ahmada Faiz paquistanês José Marti cubano Partha Chaterjee indiano Ranajit Guha indiano Aimé Césaire martini cano Dereck Walcott caribenho muito embora a literatura sulamericana e brasileira em particular estejam ausentes deste universo do qual sem dúvi da poderiam fazer parte Machado de Assis Lima Barreto Joaquim Nabuco Antonio Candido entre tantos outros Finalmente a figura do exílio tanto intelectual quanto aquela que tem sua encarnação atual no migrante nas migrações internacionais que têm sido um tema que cresce em importância em razão de tantas diásporas produzidas na contemporaneidade frutos da violência das guerras da incompetência e intransigência de elites nacionais IMPERIALISMO E CULTURA Cultura e Imperialismo é uma ampliação da argumentação desenvolvida em Orientalismo tentando aprofundar o modelo mais geral de relações entre o Ocidente metropolitano moderno e seus territórios de ultramar pela via dos estudos e discursos europeus sobre a Índia a África Extremo Oriente e Caribe na tentativa geral de dominar povos e terras distantes e portanto relacio nados com as descrições orientalistas do mundo islâmico SAID 2005 p 11 Said quer aprofundar a relação geral entre cultura e império As figuras retóricas que desvela são muitas os estereótipos construídos do espírito do colonizado os transformando em bárbaros primitivos irresponsáveis selva gens necessitando portanto de disciplina quando não de açoite justificam assim a tarefa europeia de levar a civilização até lá pois do contrário só a entenderiam através da força ou a da violência LÉVISTRAUSS 1951 6 Cf Ahmed Djebar 2001 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 88 14012021 1706 O Humanismo Crítico de Edward W Said 89 Said parte de um conceito de cultura abrangente aquele que designa as artes da descrição comunicação e representação com relativa autonomia dos campos econômico político e social e que não raro existe sob a forma estéti ca Isto inclui tanto o saber popular quanto o conhecimento especializado de disciplinas como Etnografia Historiografia Filologia Sociologia e História Literária Para ele a narrativa é crucial tendo como tese básica a ideia de que as histórias estão no cerne daquilo que dizem os exploradores e os romancis tas acerca de regiões estranhas do mundo mas que ao mesmo tempo elas se tornam um método utilizado pelos povos colonizados para afirmar sua iden tidade e a existência de uma história própria SAID 2005 p 13 Assim tanto o poder de narrar quanto o de bloquear ou de impedir a for mação de novas narrativas é relevante para o estudo da cultura e do imperia lismo Por outro lado Said afirma a partir de Matthew Arnold que a cultura é um conceito que inclui um elemento de elevação e refinamento o que de melhor produz uma sociedade no saber e no pensamento e de forma deriva da entendida como um elemento mitigador excluindo os efeitos danosos ou perversos da vida moderna e agressiva A Cultura acaba associada à nação ou ao Estado a um nós gerando identidade aos clássicos nacionais o problema com essa idéia de cultura diz Said é que ela faz com que a pessoa não só venere sua cultura mas também a veja como divorciada pois transcendente do mundo cotidiano Uma das difíceis verdades que descobri trabalhando neste livro é que pouquíssimos dentre os artistas ingleses ou franceses que admiro questionaram a noção de raça submissa ou inferior tão evidente entre funcionários que colocavam essas idéias em prática ao governarem a Índia ou a Argélia SAID 2005 p 14 Ao analisar Nostromo de Joseph Conrad um dos autores mais admirados por Said que se passa numa república da América Central dominada por interesses externos mas ao mesmo tempo diferente de suas usuais obras na Índia e na África coloniais o autor antevê a incontrolável insatisfação e os desmandos das repúblicas latinoamericanas Cita Bolívar que entendia que governálas era igual a arar no oceano e ao mesmo tempo desvela na conversa entre dois personagens o financista de São Francisco e o proprietário inglês da mina de São Tomé o sentido da empreitada imperial Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 89 14012021 1706 Marcos Costa Lima 90 Podemos sentar e olhar Claro algum dia interviremos Estamos fadados a isso Mas não há pressa estaremos ditando as regras para tudo indústria comércio leis jornalismo arte política e religião do Cabo Horn até Suriths Sound e também mais adiante se algo que valer a pena surgir no pólo Norte Conduziremos os negócios do mundo quer ele goste ou não O mundo não pode evitálo e nem nós imagino eu Seja em Nostromo ou em Heart of darkness para Conrad a própria imagem das trevas está associada à imagem revertida do eurocentrismo como luz a um projeto civilizador Ele não podia admitir que os nativos pudessem ser livres da dominação europeia e esta compreensão está associada ao personagem Kurz quando em momento de fúria e loucura ordena exterminem todos os bárbaros É o próprio Said quem conclui Portanto não é paradoxal que Conrad fosse imperialista e antiimperialista progressista quando se tratava de apresentar com destemor e pessimismo a corrupção autoconfirmadora e autoenganosa do domínio ultramarino profundamente reacionário quando se tratava de conceder que a África ou a América do Sul pudessem algum dia ter uma história ou uma cultura independentes que os imperialistas abalaram violentamente mas pela qual foram afinal derrotados SAID 2005 p 9 A atualização desta interpretação com o atual modus operandi dos Estados Unidos é imediato sobretudo ao manter o refrão de reivindicar e tornarse o guardião da democracia no mundo e a todo custo A destruição que se per petuou no Vietnã no passado e hoje no Iraque são exemplares A densa reflexão de Said sobre o imperialismo atualiza o termo Para ele o século XIX foi o apogeu da ascensão do Ocidente estabelecendo esta geografia em 1800 as potências ocidentais detinham 35 da superfície do globo e em 1878 essa proporção chegou a 67 Em 1914 a Europa detinha 85 do mundo sob a forma de colônias protetorados etc Depois de 1945 com o desmantelamento das estruturas coloniais essa Era do Império che ga ao fim mas ao mesmo tempo como Said afirma a luta pela geografia não se restringe a soldados e canhões SAID 2005 p 38 Ela abrange também Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 90 14012021 1706 O Humanismo Crítico de Edward W Said 91 ideias formas imagens e representações e continua a exercer uma influência considerável no presente A definição de Imperialismo dada por Said é aquela que designa a práti ca a teoria e as atitudes de um centro metropolitano dominante governando um território distante o colonialismo quase sempre uma conseqüência do imperialismo é a implantação de colônias em territórios distantes Nenhum deles é simples ato de acumulação e aquisição ambos são sustentados e talvez impelidos por potentes formações ideológicas que incluem a noção de que certos territórios e povos precisam e imploram pela dominação SAID 2005 p 40 Esta presença visceral do Imperialismo se faz manifesta em Said quando está a comentar a obra de seu colega indiano Salman Rushdie Posso en tender muito bem a raiva que alimentou o raciocínio de Rushdie pois como ele sintome excluído por um consenso ocidental predominante que veio a encarar o Terceiro Mundo como um território estorvo um lugar inferior em termos políticos e culturais SAID 2005 p 61 Ao tratar especificamente do seu campo de estudo a literatura comparada Said admite que ela surgiu no auge do Imperialismo europeu e portanto estaria inegavelmente ligada a ele O principal traço desse estilo literário é a própria erudição a começar por Erich Auerbach e Leo Spitzer grandes comparatistas alemães que fugiram para os Estados Unidos por conta do nazismo Partindo da tradição europeia e norteamericana nesse campo essa tradição europeia e norteamericana carregava consigo a crença de que a humanidade se constituía em uma tota lidade maravilhosa cujo progresso podia ser estudado como um todo mas também como uma experiência secular e não como algo transcendente O homem fazia a história e o iluminismo era a manifestação dessa história Por maior que tenha sido a admiração que Said cultivou sobretudo por Auerbach o fato não o impediu de entender que essa concepção da cultura humana se tornou corrente na Europa e nos Estados Unidos de 1745 e 1945 e esteve relacionada à ascensão do nacionalismo no mesmo período Ao mesmo tempo entendeu que ao celebrarem a humanidade e a cultura estavam cele brando ideias e valores de suas próprias culturas distintas portanto daque las do Oriente da África ou da América Latina SAID 2005 p 79 Portanto um universalismo muito restrito e particular Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 91 14012021 1706 Marcos Costa Lima 92 Tratando da criação do primeiro departamento americano de literatura comparada que data de 1891 na Universidade de Columbia Said nos diz que o trabalho oriundo deste centro acadêmico trazia consigo a idéia de que a Europa e os Estados Unidos juntos constituíam o centro do mundo não meramente devido às suas posições políticas mas também porque suas lite raturas eram as mais dignas de estudo SAID 2005 p 82 Em 1950 com os progressos realizados pela Revolução Russa na disputa espacial nos fala Said sobre a criação do National Defense Educational Act que transformou o estudo das línguas estrangeiras e da literatura comparada em campos diretamente relacionados à Segurança Nacional Em plena Guerra Fria o etnocentrismo ganha terreno Said estabelece inclusive uma interessante ilação entre a relação geografialiteratura cuja visão de uma literatura mundial passa a coincidir com o que tinha sido enunciado pelos teóricos da geografia colonial a exemplo de Mackinder Lucien Fevre entre outros Aparece entre aqueles teóricos uma avaliação do sistema mundial metropolicêntrico e imperial no qual para além da história o espaço geográfico colabora para produzir um império mundial coman dado pela Europa O mapa imperial autorizava de fato a visão cultural Por isso Said 2005 p 86 sintetizava que Os discursos universalizantes da Europa e Estados Unidos modernos sem nenhuma exceção significativa pressupõem o silêncio voluntário ou não do mundo não europeu Há incorporação há inclusão há domínio direto há coerção Mas muito raramente admitese que o povo colonizado deve ser ouvido e suas ideias conhecidas Said chama a atenção para o fato de que os Estados Unidos substituíram os grandes impérios anteriores são a força econômica e militar no mundo contemporâneo e dominam a América latina boa parte do Oriente Médio África e Ásia mas também assinala o fato de que se vivemos em um mundo para além do mercado mas de representações a cultura não pode estar dis sociada desta realidade Desvincular a esfera cultural do contexto político é um falseamento é querer entender a cultura como impermeável ao poder como se as representações pudessem ser tratadas como imagens apolíticas o que é nonsense Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 92 14012021 1706 O Humanismo Crítico de Edward W Said 93 Finalmente no último capítulo de Cultura e Imperialismo ele trata da as cendência americana após a Segunda Guerra Mundial HUMANISMO E CRÍTICA DEMOCRÁTICA O livro Humanismo e crítica democrática que se compõe de cinco capítulos foi apresentado a princípio como um conjunto de conferências na Universidade de Colúmbia em janeiro de 2000 e ampliado em 2002 A data é significati va pois no intervalo aconteceu a tragédia do Onze de setembro de 2001 que alterou substantivamente a esfera política nos EUA e no restante do globo Seu ponto de partida é o Curso de Humanidades em sua universidade que se inicia em 1937 um programa de quatro horas semanais e duração de um ano que introduz e familiariza os estudantes em Homero Heródoto Ésquilo Eurípedes Platão e Aristóteles a Bíblia Virgílio Dante Santo Agostinho Shakespeare Cervantes e Dostoievski O objetivo central de Said era reexami nar a relevância do Humanismo ao se entrar em um novo milênio Era buscar compreender o alcance viável do Humanismo como prática persistente e não como patrimônio mais sobre o que tem sido e é do que uma mera lista de atributos desejáveis que definam um humanista Essa necessidade de discutir o significado atual do Humanismo interes sa quando sabemos que o termo perdeu substantividade ganhou foros de tradição e de conservadorismo de elitismo quando tantas palavras no dis curso corrente têm o termo humano sugerindo humanitário e humanista nos seus núcleos O bombardeio da Iugoslávia pela OTAN em 1999 foi descrito como uma intervenção humanitária SAID 2007a p 25 Como diz Said desde o dia Onze de setembro o terror e o terrorista têm sido introduzidos na consciência pública norteamericana com uma insis tência espantosa A ênfase tem sido reforçar a distinção entre o nosso bem e o deles na qual os cidadãos estadunidenses representariam a cultura humanitária e eles a violência e o ódio Uns civilizados eles a barbárie Aí também está presente a crítica a Samuel Huntington como também em outras obras suas SAID 2003b sobretudo pela abordagem redutora vaga e reducionista presente em o Choque de Civilizações HUNTINGTON 1997 Said não ignora o advento e a influência nos anos 1960 e 1970 da teo ria francesa sobre os departamentos de humanidades das universidades Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 93 14012021 1706 Marcos Costa Lima 94 norteamericanas que sobretudo após a Guerra do Vietnã e o Maio de 1968 praticamente destrói criticamente o humanismo tradicional através dos pensa mentos estruturalista e pósestruturalista que professavam a morte do homem e a preeminência dos sistemas antihumanistas presentes nas obras de Lévi Strauss Pensamento Selvagem e de Michel Foucault Arqueologia das ciências humanas7 e onde as vozes de Rousseau e de Nietzsche ecoam forte onde o bom selvagem e o louco são as figuras que refratam as fragilidades da razão Foucault em entrevista que deu em 1966 falava da ruptura com Sartre e sua escola que se situa no momento em que LéviStrauss e Lacan mostraram que o sentido não era mais que um efeito de superfície uma reverberação e aquilo que nos atravessava profundamente o que estava antes de nós o que nos sustentava no tempo e no espaço era o sistema Antes de toda a existência humana antes de todo o pensamento humano haveria já um sa ber um sistema que nós redescobrimos FOUCAULT 1974 p 2936 Para Foucault a herança mais pesada que tínhamos recebido do século XIX fora o Humanismo e para ele era tempo de nos desembaraçarmos O humanismo foi uma maneira de resolvermos em termos de moral de valo res de reconciliação problemas que não se podiam resolver de modo algum Conhece a frase de Marx A humanidade só formula problemas que pode resolver Eu creio que se pode dizer o humanismo finge resolver problemas que não pode formular FOUCAULT 1974 p 2936 A posição adotada por Edward Said não é portanto ingênua e ainda mais quando utiliza o trabalho de Foucault para reforçar a sua elaboração teórica Michel Foucault e Thomas Kuhn prestaram um serviço considerável lem brandonos nas suas obras que de forma consciente ou não os paradigmas e epistemes têm um domínio perfeito sobre as áreas do pensamento e expressão um domínio que inflecte se não modela a natureza do pronunciamento individual Os mecanismos implicados na preservação do conhecimento em arquivos as regras que regem a formação dos conceitos o vocabulário das linguagens expressivas os vários sistemas de disseminação tudo isso 7 Arqueologia que Sartre generalizando a crítica ao estruturalismo afirmou ser irracional por propor a eliminação da História e optar pela pura descontinuidade Nessa disputa Foucault argumentava contra o existencialismo sartriano que não é o sujeito que pensa mas sim o Sistema por ele Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 94 14012021 1706 O Humanismo Crítico de Edward W Said 95 entra em alguma medida na mente humana e a influencia de modo que já não podemos dizer com absoluta confiança onde termina a individualidade e onde começa o domínio público SAID 2007a p 6465 Ao aceitar a contribuição de Foucault não deixa de acreditar que seja pos sível ser crítico ao Humanismo em nome do Humanismo e que por exemplo escolado nos seus abusos pela experiência do eurocentrismo e do império se poderia dar forma a um tipo diferente de Humanismo que fosse cosmo polita capaz de apreender as grandes lições do passado Na medida em que esse Humanismo seja uma prática contra as ideias prontas e os clichês que seja um meio de resistência à linguagem sem reflexão Tomando o exemplo recente da luta sulafricana contra o apartheid nos diz que as pessoas em todo o mundo podem ser e o são movidas por ideais de justiça e igualdade SAID 2007a p 29 Said quer garantir o sentido a afirmação do sujeito a sua opção e possibi lidade de compreensão quando entende Humanismo enquanto noção secular de que o mundo histórico é feito por homens e mulheres e não por Deus e que pode ser compreendido racionalmente segundo o princípio estabeleci do pelo filósofo Vico que em sua Ciência Nova dizia podermos conhecer as coisas segundo o modo como foram feitas Nos Estados Unidos sobretudo após a Guerra do Vietnã as humanidades caíram em descrédito mas o Humanismo tornarase conservador e elitista e abandonara o processo de criação da história de mudála A expressão lite rária e acadêmica desse conservantismo e arrogância foi Allan Bloom que ganhou projeção ao se tornar um bestseller a partir do seu O Declínio da Cultura Ocidental Justamente na contracorrente de Said que compreendia Humanismo como democrático como aberto a todas as classes e formações e como um processo de incessante descoberta autocrítica e liberação Um tema que esteve sempre presente nas reflexões de Said foi o naciona lismo8 Para o autor de Beginnings SAID 1975 a história de todas as culturas 8 Aijaz Ahmad 2002 p 109165 numa chave marxista ortodoxa embora qualificada acusa Said de transformar a controvérsia a respeito da descolonização em um mero assunto literário e pior de estabelecer uma crítica cultural em convergência com o mercado mundial por entender que Said pretende se livrar e aos seus leitores de identidades de classe nação e gênero Sem dúvida uma leitura que faz tábula rasa do essencial da obra de Edward Said Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 95 14012021 1706 Marcos Costa Lima 96 é a história dos empréstimos culturais As culturas são portanto permeáveis O assunto é tratado de forma contundente em Resistência e Oposição e de forma dialética em Cultura e Imperialismo Mas também em Humanismo e crítica democrática SAID 2007a p 73 o intelectual palestino aponta para os danos e exemplos históricos negativos devastação e sofrimento humano provocados pelo nacionalismo pelo entusiasmo religioso e pelo pensamento identitário este último trabalhado sobretudo na obra de Adorno Pois os três elementos se opõem ao pluralismo cultural Em relação exclu siva aos Estados Unidos o nacionalismo dá origem ao excepcionalismo e à paranoia do antiamericanismo presentes na cultura desse país que segundo ele desfigura a sua história reforçando narrativas belicosas e criando cons tantemente inimigos poderosos e ameaçadores ao mesmo tempo em que cristalizam uma concepção de superioridade natural estimulando políticas de intervencionismo arrogante em todo o mundo Essa expressão do nacional leva a uma compreensão mais abrangente do que talvez Bourdieu intitulasse de economia simbólica nacional ou de representação coletiva do nacional Somos ainda herdeiros desse estilo segundo o qual o indivíduo é definido pela nação a qual por sua vez extrai sua autoridade de uma tradição supos tamente contínua SAID 2005 p 27 Said é de fato um internacionalista Esse imprint é herança forte de Eric Auerbach a quem atribui ter produzido em Mimesis a maior e mais influen te obra humanistaliterária do último meioséculo SAID 2007a p 119 E o nosso autor aprecia citar reiterada vezes a frase do filólogo alemão onde este afirma que o nosso lar filológico é o mundo não a nação ou até mesmo o escritor individualmente AHMAD 2002 p 162 Mas ao mesmo tempo o professor de Columbia não quer ser identificado ou mal interpretado como defensor de uma posição antinacionalista Para ele é fato histórico que a restauração da comunidade a afirmação da identidade e o surgimento de novas práticas culturais tenham consolidado nas regiões oprimidas movimentos de superação da alienação e assim pudesse avançar 9 Cf Ainda a crítica próxima à antipatia de Ahmad 2002 p 113 quando estabelece uma quase transferência freudiana entre Said e Auerbach na medida em que Auerbach é o em blema da retidão erudita uma figura solitária defendendo o valor humanista em meio ao holocausto um estudioso no melhor dos sentidos enquanto Said seria o palestino sem Estado vivendo em um quase exílio a sua ambiciosa obra o Orientalismo Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 96 14012021 1706 O Humanismo Crítico de Edward W Said 97 a luta contra a dominação e a exploração Ocidental em todos os quadrantes do planeta oporse a isto tem tanto resultado quanto oporse à descoberta da gravidade por Newton SAID 2005 p 276 Mas ao mesmo tempo esse nacionalismo não pode ser acrítico não pode ser ufanista não pode ser ca racterizado como uma etapa final que substitui um déspota ocidental por um local Não se deve esquecer a crítica firme do nacionalismo derivada dos vários teóricos da libertação que abordei pois não podemos nos condenar a repetir a experiência imperial SAID 2005 p 405 Essa interpretação o conduz a estabelecer uma grande pergunta qual seja como a manter vivas as energias libertárias desencadeadas pelos grandes movimentos de resistência e colonização e pelas revoltas populares desde 1980 Será que estas energias conseguirão escapar aos processos homogeneizadores da vida moderna con seguirão suspender as intervenções da nova centralidade imperial São necessárias cautela e prudência para tratar da difícil relação entre na cionalismo e processos de libertação que segundo ele são dois ideais ou ob jetivos de pessoas empenhadas contra o imperialismo Mas se é verdade que a criação de inúmeras naçõesestado independentes recentes no mundo pós colonial restaurou o primado das ditas comunidades imaginadas ao mesmo tempo muitas delas foram destruídas e saqueadas por ditadores e tiranetes que acabaram por desvirtuar todo processo de libertação e de liberdades civis E então surpreendentemente o mundo inteiro se descolonizou depois da Segunda Guerra Mundial SAID 2005 p 253 A Inglaterra detinha po der imperial sobre Austrália Nova Zelândia Hong Kong Nova Guiné Ceilão Malaia todo o subcontinente asiático a maior parte do Oriente Médio toda a África Oriental do Egito à África do Sul parte da África CentroOriental a Guiana certas ilhas do Caribe a Irlanda e o Canadá O império francês era menor mas ainda assim detinha o poder de parte das ilhas do Caribe no Pacífico e no Índico Madagascar Nova Caledônia Taiti da Guiana e toda a Indochina boa parte da África do Mediterrâneo a Síria e o Líbano A luta an tiimperialista tomou conta do mundo nos anos 1950 e 1960 com os Estados Unidos já surgindo como substituto em muitas dessas regiões como aconteceu na Coreia e depois na Indochina Essas mudanças só ocorreram pela vontade de pessoas de resistirem às pressões do domínio colonial de tomarem armas conceber ideias de libertação e imaginar como em Benedict Anderson uma nova comunidade nacional E também não podem ocorrer a menos que se Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 97 14012021 1706 Marcos Costa Lima 98 instale internamente uma exaustão política ou econômica que se questione em público o custo do domínio colonial SAID 2005 p 255 Muito dessa reflexão sobre a complexidade inerente ao projeto naciona lista Edward Said toma de empréstimo da obra de Frantz Fanon O psiquiatra e ensaísta martinicano que escreveu obras10 de grande repercussão mundial sobre colonialismo racismo nacionalismo chama a atenção para o fato de que a consciência nacionalista pode com facilidade levar a uma rigidez estática apenas substituir as autoridades e os burocratas brancos por equivalentes de cor o que não é nenhuma garantia de que os funcionários nacionalistas não reproduzirão os velhos padrões e arranjos É densa a reflexão nas Ciências Humanas sobre o nacionalismo11 e não há aqui a intenção nem tampouco possibilidade de esgotála O que interessa aqui particularmente é apresentar a compreensão de Edward Said sobre a questão Neste sentido ele introduz dois importantes autores ocidentais que trataram do assunto por pontos de vista bastante diferenciados Hobsbawn e Ernst Geller Ambos entenderam o nacionalismo como uma forma de compor tamento político que foi sendo gradualmente superado pelas novas realidades transnacionais das economias modernas12 das comunicações eletrônicas e da projeção militar das superpotências e são criticados por Said 2005 p 274 que descobre em suas opiniões um acentuado desconforto e segundo esse autor uma compreensão ahistórica em relação às sociedades não ocidentais que adquirem independência nacional e portanto insistem na proveniência ocidental das filosofias nacionalistas que assim seriam mal adaptadas aos 10 Os Condenados da terra 1961 Peau Noire Masques Blancs 1952 11 O excelente livro organizado por Gopal Balakaishnan 2000 ou ainda Benedict Anderson 1991 12 Gellner 2000 p 135 diz por exemplo que embora a cultura superior compartilhada baseada na educação continue a ser a precondição da cidadania moral da participação econômica e política efetiva no industrialismo avançado ela já não precisa gerar um nacionalismo intenso O nacionalismo pode então ser domesticado como foi a religião É possível deslocar a etnia pessoal da esfera pública para a particular e fingir que isso é apenas assunto desta como a vida sexual algo que não tem por que interferir em sua vida pública e que é impróprio mencionar Mas na verdade isto é um fingimento que pode ser admitido quando uma cultura dominante é apropriada por todos e utilizável como uma espécie de moeda corrente Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 98 14012021 1706 O Humanismo Crítico de Edward W Said 99 árabes zulus indochineses latinoamericanos que provavelmente fariam mau uso das mesmas Em contraponto aos dois autores ocidentais Said introduz a contribuição contemporânea de Partha Chaterjee sociólogo indiano e um dos fundadores do Subaltern studies Chaterjee entende que parte do nacionalismo indiano respondeu ao domínio colonial para afirmar uma consciência patriótica A figura de Gandhi se inspira em pensadores ocidentais não modernos como Ruskin e Tolstói e tenta uma regeneração radical da cultura nacional e de seus padrões de costume no uso do algodão e da roupa produzida no território nacional numa alimentação parca e não processada natural enfim em pa drões de diferenciação O ideal romântico é o de restauração da nação Para Chaterjee a figura de Nehru ao contrário de Gandhi e mesmo o respeitan do é pela modernidade pela criação do estado nacional O autor de Indian and its Fragments CHATERJEE 1997 p 3 à maneira de Said se acautela do nacionalismo que embora bemsucedido no país pode tornarse uma pana ceia e não enfrentar os problemas das desigualdades disparidades de renda e região as injustiças sociais Pode ser capturado por uma elite nacionalista antipopular Esta não é uma questão de fácil solução sobretudo em um mundo onde as estruturas militares de poder de algumas potências estão diretamente articuladas com o novo paradigma tecnológico com uma imensa estrutura de corporações atuando em escala global e apoiadas a partir de um sistema financeiro que tem suas raízes em Wall Street na City londrina em Paris ou Frankfurt Tudo isso involucrado numa convergência de ideias e de visões de mundo prómainstream que infantilizam o público com alternativas sim plórias do bom e do ruim do bem e do mal como se a complexidade da história das sociedades humanas estivesse determinada por tamanho prima rismo E aqui a compreensão de Noam Chomsky nos alerta para o fenômeno do controle midiático quando informa que em 1983 50 megacompanhias dominavam a paisagem sete anos mais tarde restavam 23 terminando pelo controle da indústria midiática centralizadas em nove companhias13 13 Segundo Noam Chomsky e Edward S Herman 2003 p XIII são elas 1 Disney 2 AOL Time Warner 3 Viacom proprietária da CBS 4 News Corporation 5 Bertsman 6 General Eletric proprietária da NBC 7 Sony 8 ATTLiberty Media e 9 Vivendi Universa O mais Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 99 14012021 1706 Marcos Costa Lima 100 Caminhando para a conclusão esta primeira recepção à obra Edward W Said quis revelar a riqueza e densidade deste autor mas também a comple xidade crítica de sua abordagem que não conduz a respostas simples muito ao contrário Mas a um quase estado de crítica permanente muito à maneira de Adorno um autor reverenciado pelo palestino Não vamos fingir que existam modelos prontos para uma ordem mun dial harmoniosa diz Said e seria igualmente tolo supor que as ideias de paz e de comunidade têm grande chance quando o poder é levado a agir movido pelos conceitos agressivos dos interesses nacionais vitais ou da soberania irrestrita SAID 2005 p 52 Esta chave aparentemente pessimista ou realista não impele o teórico da literatura à resignação Para ele o intelectual tem um papel que é aque le de elucidar e revelar de desafiar e derrotar tanto os silêncios impostos quanto as quietudes que se transformam em normas Carrega consigo a premissa da desmistificação capaz de gerar instrumentos analíticos de de fesa contra a dominação simbólica que se baseia muitas vezes na autorida de da ciência Aqui ele se aproxima de Gramsci outro autor que faz parte de seu universo filosófico e como em Gramsci é absurdo pensar apenas em previsões puramente objetivas Quem faz previsões carrega consigo um programa o que reduz a compreensão de que a previsão é sempre arbitrária ou tendenciosa Às vezes esta adquire objetividade e como diz Gramsci somente a paixão aguça o intelecto e ajuda a tornar mais clara a intenção Somente quem deseja fortemente identifica os elementos necessários para a realização de sua vontade GRAMSCI 2005 p 35 Mas Gramsci diz também que a crença de que uma determinada concepção de mundo e da vida tem em si própria uma capacidade de previsão superior é um erro grosseiro exercício de fatuidade Tratase de ver se o dever ser é um ato arbitrário ou necessário é vontade ou veleidade desejo ou sonho com a cabeça nas nuvens GRAMSCI 2005 p 37 Passa portanto por todo um exercício e mediação da crítica e da história grave é que essas gigantes têm o controle dos grandes estúdios de cinema as cadeias de televisão e sociedades de produção musical bem como de boa parte dos principais canais pagos das revistas e editoras Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 100 14012021 1706 O Humanismo Crítico de Edward W Said 101 Em Humanismo e Crítica democrática SAID 2007a p 173 tratando do papel público de intelectuais e escritores na sociedade contemporânea Said apresenta dois de seus maiores embates que segundo ele estão diretamente vinculados à intervenção e elaboração do intelectual o primeiro diz respei to a impedir o desaparecimento do passado muito ao gosto de certas esco las pósmodernas e a certos estruturalismos sincrônicos o segundo trata da construção de campos de coexistência em lugar de campos de batalha como resultado do trabalho intelectual e onde ganha magnitude a sua luta pela li bertação da Palestina sua posição antibeligerante e pacifista Finalmente espero ter evidenciado não apenas as diversas interfaces da obra de Edward W Said com o campo da política internacional comparada suas aproximações temáticas mas também as possibilidades que suas refle xões podem aportar à teoria da globalização desigual numa epistemologia e metodologia que se querem abertas dinâmicas capazes de incorporar apro ximar e frutificar a produção científica e a teoria da literatura Tratando de suas várias disputas a respeito da justiça e dos direitos hu manos Said enfatizou a necessidade da redistribuição dos recursos capaz de defender o imperativo teórico contra as imensas acumulações de poder e capital que tanto desfiguram a vida humana SAID 2007a p 171 REFERÊNCIAS AHMAD A Orientalismo e depois ambivalência e posição metropolitana na obra de Edward Said In AHMAD A Linhagens do presente São Paulo Boitempo 2002 p 109165 ANDERSON B Imagined Communities reflections on the Origin and Spread of Nationalism Londres Verso Books 1991 ANTONIUS G The Arab Awekening The story of the national mouvement Beirute Librairie du Liban 1968 BALAKAISHNAN G Um mapa da questão nacional Rio de Janeiro Contraponto 2000 BOURDIEU P O poder simbólico São Paulo Bertrand Brasil 1989 capítulo v p 107132 CHATERJEE P Nationalist Thought and the colonial world a derivative discourse Londres Zed Books 1999 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 101 14012021 1706 Marcos Costa Lima 102 CHATERJEE P The Partha Chaterjje Omnibus Oxford Oxford University Press 1997 CHOMSKY N HERMAN S E La Fabrique de Lopinion publique Paris Le Serpent à Plumes 2003 DJEBAR A Une histore de la science arabe Paris Éditions du Seuil 2001 EQBAL A The neofascist State notes on the pathology of power in the Third World Arab Studies Quarterly 3 S l 2 spring p 170180 1981 FOUCAULT M Estruturalismo antologia de Textos Teóricos Lisboa Portugália 1974 GELLNER E O advento do nacionalismo e sua interpretação os mitos de nação e classe In BALAKAISHNAN G Um mapa da questão nacional Rio de Janeiro Contraponto 2000 p 107154 GRAMSCI A Notas sobre Maquiavel In SADER E Gramsci poder política e partido São Paulo Expressão Popular 2005 GUHA R Chandras Death Nova Delhi Subaltern Studies 1987 HOBSBAWN E J Nações e nacionalismo desde 1780 São Paulo Paz e Terra 1998 HUNTINGTON S Choque de civilizações e a reconstrução da ordem mundial Rio de Janeiro Objetiva 1997 LEVISTRAUSS C Raça e história Lisboa Editorial presença Unesco 1951 SAID E W Beginnings Intentions and Method Nova York Basic Books 1975 SAID E W Cultura e Imperialismo São Paulo Companhia das Letras 1995 SAID E W Humanismo e crítica democrática São Paulo Companhia das Letras 2007a SAID E W Orientalismo São Paulo Companhia das Letras 1978 SAID E W Orientalismo São Paulo Companhia das Letras Edição de Bolso 2007b SAID E W Paralelos e paradoxos São Paulo Companhia das Letras 2003a Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 102 14012021 1706 O Humanismo Crítico de Edward W Said 103 SAID E W Reflexões sobre o exílio São Paulo Companhia das Letras 2003b SAID E W Representações do intelectual São Paulo Companhia das Letras 2005 SAID E W O Iluminismo crítico de Edward W Said Lua Nova São Paulo n 73 p 7194 2008 SAID E W Dignidade e solidariedade Tradução de Maria de Jesus de Britto Leite CarréRouge Canadá n 26 out 2003 Disponível em htttp carrerougeorg Acesso em 14 jan 2019 SOYINKA W Myth literature and the African World Cambridge Cambridge University Press 1975 JAMES C L R Os Jacobinos negros Thoussant LOuverture e a revolução de São Domingos São Paulo Boitempo 2000 SALIH T Season of migration to the North Londres Heinemann 1967 THONGO N W Decolonising the mind the politics of language in African literature Londres James Curry 1986 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 103 14012021 1706 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 104 14012021 1706 105 NAEEM INAYATULLAH DAVID BLANEY E A CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA INTERNACIONAL LEONARDO RAMOS RODRIGO CORRÊA TEIXEIRA MARINA SCOTELARO INTRODUÇÃO Diante de fortes tradições eurocêntricas estadocêntricas e colonialistas a perspectiva de se produzir um saber antihegemônico e sobretudo eman cipatório no campo das Relações Internacionais perpassa a contribuição de David Blaney e Naeem Inayatullah Neste sentido o presente capítulo bus cará apresentar algumas das principais contribuições destes autores para o entendimento das dinâmicas de reprodução das Rrelações Iinternacio nais em especial no que concerne ao tratamento dado ao outro e à questão da diferença e seus desdobramentos éticos No processo de construção deste argumento o capítulo busca refletir sobre a contribuição dos autores para a desestabilização de determinados discursos disciplinares no campo das Relações Internacionais em especial no que concerne ao campo da eco nomia política e seu papel central para determinados processos de exclusão no âmbito das Rrelações Iinternacionais Neste contexto buscarseá estabelecer um diálogo entre a obra de Blaney e Inayatullah e alguns dos autores por eles trabalhados com destaque para as releituras que os autores propõem da Economia Política clássica e do liberalismo Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 105 14012021 1706 Leonardo Ramos Rodrigo Corrêa Teixeira Marina Scotelaro 106 bem como das contribuições de Karl Polanyi para uma nova visão acerca da Economia Política Internacional EPI Neste sentido notarseá que uma das principais contribuições de tal reflexão para os debates contemporâneos da Economia Política Internacional diz respeito a dois pontos i crítica ao pró prio campo da Economia Política Internacional a partir da ideia proposta de Economia Política Cultural ii crítica ao liberalismo com destaque para o caráter éticonormativo da crítica A DIFERENÇA NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS UM PROBLEMA DE PARTIDA Os trabalhos de Naeem Inayatullah e David L Blaney problematizam alguns aspectos relacionados à construção do conhecimento a partir das Relações Internacionais RI e da Economia Política Internacional EPI sobretudo no que tange à forma de como lidar com a noção de diferença Ambas abor dagens são entendidas como integradas aos estudos de desenvolvimento parte indissociável do projeto civilizatório moderno ocidental e dessa forma igualmente partes de um projeto cultural temporal e espacialmente especí fico A Teoria da Modernização provê uma contribuição essencial aos atos que evitam que as RI lidem com o problema da diferença ao tomar como dada as demarcações espaciais da geopolítica pelas quais as diferenças são contidas e domesticadas Tal abordagem se projeta como uma sequência de desenvolvimento natural e universal pela qual todas as culturas e socieda des caminharão As RI e as abordagens do desenvolvimentomodernização se relacionam como nexos teóricos para separar os de dentro e os de fora como visões alternativas dos processos sociais manifestados no tempoes paço Em um o tempo internacional ou global é congelado em um Estado primitivo não permitindo o desenvolvimento do sistema de Estados No outro o espaço é congelado enquanto o tempo é desenrolado de uma ma neira particular dentro de cada EstadoNação mas sempre teleologicamen te canalizado rumo a uma sociedade liberal moderna ou seja civilizada1 BLANEY INAYATULLAH 2004 1 Para uma primeira aproximação dos debates acerca da relação entre internalidade e exter nalidade na literatura de RI ver Walker 2013 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 106 14012021 1706 Naeem Inayatullah David Blaney e a crítica da Economia Política Internacional 107 A separação espaçotemporal se tornaria um padrão comum de significa dos e de identidades um duplo movimento que emerge em situações de contato inicial influência de Tzvetan Todorov 2010 na obra dos autores Ao se apropriarem dessa ideia desenvolvem o argumento de que 1 a diferença se transforma em inferioridade e assim surge a 2 possibilidade de uma hu manidade comum a partir de uma assimilação As respostas do duplo movi mento acompanham uma forma de separação splitting há uma quebra na mutualidade de interação entre o self e o outro O padrão para todas as for mas de dominação é a tendência de separar o self e o outro para congelar as diferenças imputadas e então permitir a exclusão O problema da diferença emerge e se intensifica sob condições modernas de relativa igualdade sempre tendendo para formas agressivas de hierarquias sociais a marca dos outros como inferiores é uma ameaça O método comparado neste caso é estruturado de acordo com um ordenamento espaçotemporal que reproduz a lógica do duplo movimento do Todorov na qual a alteridade humana é até hoje revelada e rejeitada neste caso a comparação não coloca o outro no mesmo nível em que se encontra o self excluindo as possibilidades de diálogo entre suas cate gorias A cultura do ocidente moderno desde século XVI se apresenta como a estrutura a ferramenta ou a teoria para o entendimento do outro Portanto essa visão hegemônica e paroquial opera paradoxalmente rejeitando a alteri dade dos não ocidentais aceitandoos como estágios primitivos da evolução do self O discurso colonial se desloca a partir de duas respostas polarizadas a diferença é tratada como inferioridade ou um tipo de igualdade é reconhe cida mas com o custo da assimilação do outro pelo self Essas repostas levam a cabo o ato de separação no qual o self e o outro se apresentam como opções mutuamente excludentes2 BLANEY INAYATULLAH 2004 Com a emergência do sistema de Estados as diferenças constituindo e distanciando cada Estado como uma comunidade política particular perma necem separadas e administradas dentro das fronteiras territoriais de cada 2 Tais processos de hierarquização e exclusão se expressam por exemplo em contextos de formação dos Estados processos estes que apresentam neste sentido uma clara dimensão cultural Vide por exemplo o interessante argumento de Heather Rae a respeito das distin tas estratégias empregadas nos processos de formação dos Estados na busca pela unidade estatal e unificação da população estratégias estas chamadas por Rae de homogeneização patológica RAE 2002 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 107 14012021 1706 Leonardo Ramos Rodrigo Corrêa Teixeira Marina Scotelaro 108 Estado Essa demarcação e policiamento de limites entre os de fora e os de dentro da comunidade política define o problema da diferença principalmente como entre e em comum aos Estados ou seja a diferença é marcada e contida como diferença internacional A construção da diferença nesses termos faz com que o problema da diferença seja tratado mediante a negociação de um modus vivendi entre comunidades políticas mutualmente construídas Nas Relações Internacionais os autores apontam para a persistente incapacidade do campo em lidar com as várias respostas criativas frente à diferença que surgiram ao longo do século a partir de povos não europeus O modo engen drado nos discursos intelectuais sobre a noção de tempo mais reforçados do que desafiados levou à interpretação da diferença como uma perigosa aberração frente às normas de estabilidade segurança e ordem Um proble ma central para a constituição primária das Relações Internacionais é o fato de o Estado ser o domínio onde diferença é traduzida em uniformidade tornandoa em um lugar de perigo potencial perene mas que pode admitir um manuseio uma confrontação entre as partes Essa separação entre insi deoutside assinala menos uma solução para o problema da diferença e mais uma negação da necessidade em se encarar o problema de frente3 BLANEY INAYATULLAH 2004 Os autores sugerem a partir dessa perspectiva uma interpretação diferente da sociedade internacional na qual o problema da diferença é generalizado A comunidade política delimitada constrói e é construída por outros tanto dentro como além de suas fronteiras Aqueles que estão dentro da fronteira são administrados e governados por uma combinação de hierarquia erradi cação pela assimilação expulsão e tolerância Os outros externos à fronteira são deixados a sofrer e a prosperar de acordo com seus meios interditados nas fronteiras balanceados ou detidos ou em casos apropriados sujeitados à coerção ou conquista Tais respostas aos outros parecem perpetuar a equa ção de Todorov a diferença é traduzida como inferioridade e então sujeitada à erradicação Ademais a lógica insideoutside realiza o ato de separação ao excluir por sobreposição do self sobre o outro que funciona para desviar as 3 Neste caso a ideia de que a sociedade internacional representa uma solução para o problema da diferença é algo que sempre remete à leitura convencional acerca do legado de Vestfália Vide por exemplo Gross 1948 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 108 14012021 1706 Naeem Inayatullah David Blaney e a crítica da Economia Política Internacional 109 respostas para a diferença na direção de purificação Situar a diferença segu ramente fora das fronteiras do self nos impede de reconhecer que os outros sempre se mantiveram dentro de nós mesmos ou apreciar e evocar selves que existem como parte do outro além das fronteiras A separação do insideout side não é só constitutiva do campo mas também é uma precondição para o retardo do problema da diferença associado à sociedade de Estados Tal discussão a respeito do problema da diferença é um passo funda mental para que se perceba como as RI negam seu caráter colonial frente ao problema da diferença A linguagem da cultura BLANEY INAYATULLAH 2004 2012 é essencial para o tratamento da questão uma vez que explora a parcialidade e a diversidade ao invés de traduzir a diferença como alteridade a ser excluída do próprio self Compreendemna como uma confluência en tre o inside e o outside a necessidade de contenção pela homogeneização que emergiu a partir do contato com novos continentes nos períodos expansio nistas se justifica pela ameaça a cosmologia europeia e seus mitos criacionais Neste sentido as RI não consideram o encontro com a diferença as zonas de contato de encontros coloniais como uma possiblidade de atração de troca ou de aprendizado mas como uma necessidade de repressão para fora das fronteiras políticas estabelecidas nos marcos políticos ocidentais O adia mento do problema da diferença é contido nas unidades políticas do mundo moderno a partir da naturalização do estado de natureza do indivíduo O retardo ou atraso temporal construído dos novos selvagens do mundo foi equiparado às origens temporais imaginadas do self europeu na antiguidade Europeus e ameríndios tem a mesma origem surgiram da mesma família Os europeus contudo mantiveram suas origens cristãs e sua civilização avançada Enquanto isso os ameríndios se perderam no caminho e foram jogados em um passado degenerado Os europeus imaginavam os ameríndios como temporalmente anteriores ao self que deveriam ser reintroduzidos na civilização cristã via educação Neste sentido a conquista europeia serviu a um propósito explicitamente pedagógico BLANEY INAYATULLAH 2015b p 6 As RI devem ser ressignificadas como o estudo das muitas modalida des da diferença o que os autores chamam de heterologia e que será parte Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 109 14012021 1706 Leonardo Ramos Rodrigo Corrêa Teixeira Marina Scotelaro 110 indissociável de suas análises BLANEY INAYATULLAH 2004 2015b a necessidade de se assumir o caráter mutualmente constitutivo da política mundial cujas conexões se sobrepõem entre o self e o outro e abrem oportu nidades para aprendizados e recursos políticos e éticos Para edificar a crítica sobre os cânones das Relações Internacionais e so bre como incorporar os elementos recessivos silenciados na construção do campo Blaney e Inayatullah partem da ideia de que a suposta objetividade científica buscada e traduzida em enunciados racistas imperialistas e eurocen tristas no campo se realiza a partir de um entendimento das Ciências Sociais como um ambiente disciplinar direcionado ao nível de análise unitário ou do ator O individualismo metodológico nega os processos que produzem as relações de dominação e desigualdade no âmbito sistêmico Este tratamento que privilegia as partes em detrimento do todo determina a priori a menta lidade causalexplicativa que orienta o entendimento do ordenamento mun dial Nas Relações Internacionais os Estados representam essas unidades a partir da delimitação territorial da soberania uma configuração formalmente independente e particular igualmente concedida a estes atores Na Economia Política Internacional esse imperativo individualista reforça e reproduz tais questões ao focar no comportamento dos atores e como administram a inter dependência gerada por suas interações BLANEY INAYATULLAH 2015a Neste sentido os autores identificam dois possíveis pontos de partida para se entender o internacional a partir de cima e a partir de baixo ambos com implicações políticas e metodológicas claras Olhando a partir de cima contudo vemos como o domínio colonial e a dominação imperial produzem um nivelamento desigual entre povos ocidentais e não ocidentais como se fosse algo natural Nossa socialização acadêmica desfavorece hoje a visão a partir de cima a partir do ponto de vista da desigualdade padronizada A observação a partir de cima tem sido estigmatizada nas RI convencionais porque sugere a primazia da desigualdade padronizada do todo violando o imperativo de condenar ou atribuir a responsabilidade ao indivíduo ou ao grupo Quando vista a partir de baixo do nível das unidades é idealizado e a desigualdade pa dronizada é tratada como secundária como um efeito e não como uma causa BLANEY INAYATULLAH 2015a p 903 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 110 14012021 1706 Naeem Inayatullah David Blaney e a crítica da Economia Política Internacional 111 Tal classificação além de pertinente é também elucidativa na medida em que abre possibilidades analíticas no que concerne às Relações Internacionais tanto como ciência quanto como prática e como a dimensão cultural se ar ticula neste processo embora longa vale a pena reproduzir a seguinte cita ção dos autores As RI a partir de baixo nos lembram que as RI convencionais seja realista estrutural institucionalista liberal ou construtivista trata os Estados ou os grupos como partes que são logicamente independentes de sistemas mais amplos como o capitalismo ou a modernidade e que este aparato metodológico serve a propósitos políticos Sob o pretexto de ser ciência o individualismo ontológico desvia nossa atenção da coconstituição entre tempos e lugares Enquanto por um lado rompe com tópicos holísticos a fim de apresentar os Estados como entidades monádicas por outro lado afirma pedagogica mente que a situação atual dos Estados avançados é o modelo para aqueles que ficaram para trás Na medida em que revela esse truque as RI a partir de baixo sugerem que as RI contemporâneas são uma expressão da teoria ocidental do progresso Ela chama nossa atenção para a relação entre todos e partes se o desenvolvimento ocorre dentro das fronteiras dos Estados ou no sistema como um todo e para a separação improdutiva entre economia e análise do capitalismo por um lado e as estratégias representacionais e análise cultural por outro Neste processo ela tira proveito de seu status de outro constitutivo para trazer ao primeiro plano o potencial das RI como o aspecto da teoria social que se dedica ao estudo das relações entre o self e o outro E isso nos oferece recursos para imaginar o futuro para além daquele oferecido pelas RI a partir de cima tanto a convencional quanto a crítica BLANEY INAYATULLAH 2008 p 1415 O que os autores entendem como uma prática de Relações Internacionais a partir de baixo se constitui portanto como um espaço geopolítico do sul global e do terceiro mundo e como um princípio avaliativo que se baseia em uma visão de mundo material e civilizacional específica A multiplicida de epistemológica e ontológica da crítica desafia o atomismo ontológico das teorias modernas e das sociedades ao ressaltar a coconstrução histórica de instituições e processos na contemporaneidade É a partir deste ponto que os autores reforçam a necessidade de um engajamento mais adequado às Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 111 14012021 1706 Leonardo Ramos Rodrigo Corrêa Teixeira Marina Scotelaro 112 discussões de economia política a partir de culturas alternativas vindas de baixo BLANEY INAYATULLAH 2008 O propósito aqui é explorar a falência das Relações Internacionais em con frontar o problema das diferenças culturais e a partir daí pensar as Relações Internacionais como um lugar singularmente situado para explorar a rela ção do todo e das partes das semelhanças e das diferenças bem como pro ver exemplos preliminares do que seria uma nova visão acerca das Relações Internacionais e seus impactos para o entendimento de um mundo póscolo nial Relações Internacionais e Economia Política Internacional não podem ser tratadas como campos amorais e neste sentido autores como Todorov Nandy e Polanyi são apontados por Blaney e Inayatullah como alternativas a uma a restauração a um diálogo imperativamente ético nestes campos TODOROV 2010 NANDY 1983 POLANYI 2012 Todorov e Nandy cons troem a possibilidade do diálogo contra o antidialogismo do colonialismo e de suas ressonâncias contemporâneas variadas Igualmente compartilham um diálogo comprometido com um imperativo ético Ambos veem que o diálo go requer um lugar no self e no outro em condições de iguais dentro da con versação Essa é a capacidade de simultaneamente achar o outro de dentro e engajar o outro de fora em um processo de autorreflexão eou transformação cultural Ainda que Todorov enfatize o primeiro e Nandy o segundo ambos o conhecimento e a transformação cultural são centrais para uma Economia Política Internacional crítica do tipo que o trabalho de Polanyi aponta Para os autores a crítica de Polanyi ao economicismo e sua dupla crítica ao capitalis mo seriam um anúncio do tipo de diálogo de culturas que Todorov e Nandy recomendam o que nos leva a pensar a Economia Política Internacional a partir de tais considerações A Economia Política Internacional e o problema da diferença Para compreender o projeto de construção da identidade ocidental Blaney e Inayatullah consideram que é especificamente a partir da disciplina de Economia Política por meio da idealização de opulência modernidade e civilidade frente ao outro pobre atrasado e selvagem que o Ocidente con segue operacionalizar sua superioridade Ao manter separados os domínios culturais e econômicos é possível conferir à economia um caráter atemporal e Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 112 14012021 1706 Naeem Inayatullah David Blaney e a crítica da Economia Política Internacional 113 aespacial sem a particularidade de ser em si um projeto cultural Neste ponto do argumento passam a ser extremamente relevantes as teorias da moderni zação uma vez que a Economia Política se torna capaz de preencher a lacuna utópica aberta a partir da projeção do self enquanto uma cultura ocidental universal como contraponto ao outro selvagem temporalmente distinto e in ferior BLANEY INAYATULLAH 2010a 2010b A Economia Política preenche essa lacuna ao manifestar a autoideali zação dos símbolos ocidentais modernidade civilidade riqueza e por tal razão deve ser compreendida como ponto determinante no surgimen to do projeto cultural que passa a ser viabilizado a partir dessa separação Uma contribuição importante de Blaney e Inayatullah em determinado ponto de sua obra diz respeito à sua tentativa de compreender os efeitos problemáticos destes símbolos modernidade civilidade riqueza a partir dos autores clássicos desse campo que tratam da forma como a produção de riqueza inflige danos sobre o Ocidente e o mundo em nome de valores como liberdade igualdade e individualidade BLANEY INAYATULLAH 2010a 2010b 2012 2015b A economia política emerge de uma separação cultural na qual os ou tros servem como uma referência ou parâmetro negativo a partir do qual a Europa é vista como rica civilizada e racional Os outros os anacrônicos em termos de desenvolvimento não modernos são apropriadamente pobres bárbaros e irracionais O selvagem é precisamente aquilo que o self europeu moderno não é O nãoocidental ou nãomoderno surge não apenas como alguém fora da economia política mas também como o outro excluído contra o qual o ocidente e o moderno são definidos BLANEY INAYATULLAH 2010a p 16 17 Ao se colocar em oposição à cultura a economia busca se estabelecer cien tificamente passível de uma racionalização sem conteúdo social ou político O caráter cultural da economia é assim mascarado pelos discursos cientificistas da disciplina que passa a ser eximida de supostas responsabilidades associadas às deformações sociais geradas pela busca da riqueza O aprofundamento deste aspecto é essencial uma vez que nem a tradição clássica da Economia Política se exime de discutir os aspectos morais relacionados à forma de organização Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 113 14012021 1706 Leonardo Ramos Rodrigo Corrêa Teixeira Marina Scotelaro 114 social capitalista ou seja sobre as implicações morais das ações individuais e os impactos gerados por elas BLANEY INAYATULLAH 2010a 2010b Os autores chamam a atenção para a necessidade de considerar a Economia Política como um encontro cultural Tanto o conhecimento econômico quanto o conhecimento cultural se distanciam mutuamente a partir de visões espe cíficas sobre o status científico na produção do conhecimento Enquanto a cultura supostamente residiria em um terreno puramente ideográfico com uma multiplicidade de significados na análise de interações sociais com pou ca objetividade e poucas leis de regularidade igualmente a economia pecaria por uma naturalização da organização social pela busca de uma ciência ava lorativa aespacial e dissimuladamente nomotética4 Ao promover o diálogo entre essas áreas do conhecimento seria possível construir culturalmente a economia ao conferir à racionalidade técnica um lugar político e social sig nificados e objetivos éticos que são espacial e temporalmente específicos das sociedades capitalistas BLANEY INAYATULLAH 2010a Dentre os autores recuperados nessa leitura historiográfica compreensiva que ajuda a elucidar o potencial heurístico da releitura proposta por Blaney e Inayatullah notase que tanto Friedrich Hayek quanto Adam Smith com preendem que o mercado não é um assunto técnico mas é intrínseco a uma concepção de sociedade na qual a competição tem o papel de promover os valores de liberdade e igualdade individuais Isso não faz com que tais auto res neguem a existência de efeitos degenerativos para parte da população que não tem seus desejos atendidos neste âmbito entretanto tais efeitos perversos são necessários para promover o progresso que livra a sociedade da escassez selvagem Neste ponto a temporalidade se materializa entre diferentes está gios evolutivos das sociedades avançadas e primitivas e a diferença se apropria culturalmente dos princípios econômicos para legitimar a sociedade de mercado Hegel e Marx aprofundam a crítica aos efeitos nocivos da prati ca econômica de mercado na sociedade capitalista uma vez que o entendem 4 Uma ciência nomotética pode ser caracterizada por formulações hipotéticodedutivas de proposições que se organizam por leis gerais e universais aplicáveis a um número expressivo de casos categorizados a partir de atributos comuns a uma mesma classe interpretativa As ciências ideográficas por sua vez atribuem à compreensão de fatos isolados e independentes a legitimidade na produção de conhecimento conferindo à indução e à fenomenologia um peso cientifico paradigmático Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 114 14012021 1706 Naeem Inayatullah David Blaney e a crítica da Economia Política Internacional 115 como uma instituição social de uma ordem ética especifica Enquanto Hegel acredita que a economia capitalista promove a individualidade a igualdade e a liberdade Marx entende que a mesma é capaz de promover interesses plura lizados e encorajar inciativas individuais O custo social dessas práticas para Hegel é a alienação de parte da sociedade civil em prol da individualização da modernidade chega ao ponto de reconhecer a centralidade do Estado para controlar os limites da privação e da deformidade social Para Marx o custo da realização do princípio de liberdade depende da pobreza da alienação e da dominação de grande parcela dos indivíduos expostos a essa ordem Em suma uma leitura crítica de tais autores clássicos apontaria para uma questão que em maior ou menor grau preocupava a todos eles a saber a relação entre pobreza e a criação de riqueza ou em outros termos será que a geração de riqueza ao invés de entregar a redenção prometida não deixaria na verdade uma ferida na sociedade moderna Não seria a pobreza intrínseca à geração de riqueza BLANEY INAYATULLAH 2010a 2010b Tais questões fundamentais concernentes à constituição da moderni dade e particularmente intrínsecas ao próprio capitalismo levam Blaney e Inayatullah a se voltarem para os escritos de Karl Polanyi em especial sua crítica ao economicismo e sua postura etnológica perspectivista O erro lógi co da falácia economicista envolve uma confusão sobre um amplo e genérico fenômeno com uma variedade de manifestações econômicas que estamos fa miliarizados especificamente de equacionar a economia humana em geral com sua forma de mercado Polanyi resiste à ideia de separação entre a polí tica e a economia entre as motivações humanas reais e ideais e a polaridade de sociedade de mercado e alternativas romantizadas O desenvolvimento de Polanyi da dupla crítica ao capitalismo abrange a coexistência de modos distintos e sobrepostos de vida social e aponta para um diálogo possível entre eles5 Para Polanyi a coexistência da diferença e do diálogo não é sobre retor nar ao passado mas a constituição de uma base para uma nova civilização POLANYI 2012 BLANEY INAYATULLAH 1999 2004 2015b 5 A dupla crítica ao capitalismo diz respeito ao fato de Polanyi encontrar fontes tanto inter nas quanto externas ao projeto cultural europeu de desenvolvimento e economia política BLANEY INAYATULLAH 1999 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 115 14012021 1706 Leonardo Ramos Rodrigo Corrêa Teixeira Marina Scotelaro 116 Ou seja diferentemente do que afirma Hayek e a tradição neoliberal a implementação do capitalismo não é um todo espontâneo mas função de uma ação concertada especialmente pelo Estado liberal Polanyi assim como Hayek e Smith está preocupado com o tema da integração social entretan to onde Smith e Hayek cometem a falácia economicista argumentando que a divisão do trabalho e do conhecimento requer apenas trocas competitivas no livre mercado Polanyi pontua que o processo de provisão material tem sido instituído na sociedade humana de várias formas e de acordo com vá rios princípios ao longo da história Ou seja a economia tem sido imbuída de práticas sociais que envolvem reciprocidade e redistribuição assim como a troca de mercado Neste sentido Polanyi expõe com clareza que a tentativa de integrar a sociedade exclusivamente a partir de princípios e práticas de troca de merca do produz consequências devastadoras para o sustento humano e bemestar comprometendo a prometida liberdade e igualdade da sociedade moderna As consequências do projeto econômico liberal do século XIX são vistas as sim como primariamente culturais Ora a Economia Política Internacional contemporânea parece ter abandonado ou se tornado desconectada da ideia de que a Economia Política nesse sentido tem conteúdo e propósito ético e tal abandono significa que o termo operativo dos economistas políticos posi tivistas especialmente teóricos da Escolha Racional transforma a economia e a racionalidade em um instrumento sem fim BLANEY INAYATULLAH 1999 2004 2010a 2015a 2015b Ora a partir de tais questões o liberalismo clássico deve ser compreen dido como parte constitutiva e indissociável do capitalismo e da moderni dade sendo sempre de alcance internacional Os princípios liberais não só fizeram do homem um indivíduo supostamente livre racional em suas escolhas e que agindo em busca de seus interesses traz o bem para a so ciedade mas também se projetam para o espaço global a partir da ideia de livre mercado em uma escala mundial segundo a qual o mercado é visto como uma parte da economia mundial que define as relações entre as uni dades Estado firma e indivíduos cosmopolitas Neste processo notase a existência de uma gama de tensões que especificam o liberalismo como campo social moderno distinto basicamente tensões associadas às fre quentes contestações de forças sociais não liberais frente às desigualdades Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 116 14012021 1706 Naeem Inayatullah David Blaney e a crítica da Economia Política Internacional 117 geradas por este modelo de organização social da economia A recorrente imposição do modelo liberal como forma supostamente eticamente mais justa de organização social sobre dogmas religiosos e práticas tradicionais nega diretamente e no limite paradoxalmente o direito à liberdade e à igualdade Quanto mais a liberdade é enfatizada mais as desigualdades geradas na competição são legitimadas em uma crescente estruturação da sociedade em classes possuidoras ou não da riqueza efeito totalmente indesejado do liberalismo INAYATULLAH 2012 Na sociedade internacional o mundo está por extensão diferenciado ainda que composto por unidades juridicamente soberanas ou iguais Como membros de uma sociedade internacional os Estados são constituídos como atores independentes que devem se basear em seus próprios recursos e esfor ços para alcançar seus objetivos e seus propósitos É interessante perceber que essa caracterização só ganha seu significado contemporâneo quando consi deramos que tais Estados se encontram integrados a uma divisão global do trabalho em um sistema capitalista global Os Estados competem por divisão de mercado para suas firmas e regiões no mercado mundial e a competição deve ser vista como parte de um esquema de significados como uma prática social que justapõe certos valores e princípios enquanto estabelece certo tipo de self e constrói suas relações com outros É uma forma cultural particular caracterizada por uma tentativa em andamento de mediar a oposição entre os princípios de igualdade e hierarquia social e entre identidade e diferen ça por meio de estágios de competições BLANEY INAYATULLAH 2004 As hierarquias que se revelam nas práticas competitivas modernas apon tam para a difícil tensão existente entre a igualdade formal entre os sujeitos e a negação substantiva dessa igualdade Adam Smith e Friedrich Hayek tratam a diferença entre os sujeitos como uma oportunidade assim como um pro blema a ser resolvido pela sociedade moderna Entretanto a possibilidade de que a diferença possa oferecer alternativas para uma cultura de competição é barrada por tais autores ao limitarem a sociedade moderna a uma ordem ontologicamente separada formada por sujeitos individualizados Os proces sos de troca e de competição se tornam as únicas possibilidades de resolução apropriada de tal problema Em suma Hayek e Smith construíram a diferen ça como um problema moderno mas um problema resolvido somente pela competição de mercado BLANEY INAYATULLAH 2004 2012 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 117 14012021 1706 Leonardo Ramos Rodrigo Corrêa Teixeira Marina Scotelaro 118 Na sociedade internacional o nacionalismo permanece como o valor mais universalmente legítimo Na verdade a força da lógica de soberania faz com que as formas de vida sejam imaginadas primariamente como comunidades políticas como Estados nascentes ou como atores relativamente autônomos dentro de Estados plurinacionais Pelo fato de que cada Estado deve prover e desenvolver sua própria capacidade em realizar seus propósitos o Estado é obrigado a competir com outros Estados Não é de se surpreender então que os Estados batalhem numa competição global intensa para criar condições dentro de suas fronteiras e se possível para suas corporações no âmbito glo bal a fim de assegurar parcelas do mercado mundial e promover a capacidade de produção e venda para suas corporações dentro e fora de suas fronteiras Por outro lado a hierarquia revelada pela competição estratégica é entendida como algo que cumpre um propósito social importante suportar a ordem as normas e os princípios da sociedade de Estados identificando aqueles que são capazes de exercer um papel chave na manutenção daquela ordem O pa pel dos Estados mais fortes das potências em administrar é possível somente onde os Estados são parte de uma sociedade de normas valores e objetivos comuns Neste sentido os competidores são naturalmente classificados se gundo seu desempenho econômico e social na ordem internacional Ora como visto tal hierarquização gera necessariamente dilemas para a ideia de liberdade no âmbito internacional e como resposta a essa perda de liberdade relativa os programas de ajuda internacional a defesa de ampliação dos me canismos de participação política a defesa por direitos do homem de caráter universal emergem como tentativas de compensar os efeitos desagregadores do modelo capitalista que também se reproduz para além das fronteiras que deveriam conter as diferenças6 BLANEY INAYATULLAH 2004 Um dos efeitos desagregadores mais representativos do modelo de pro dução capitalista é a relação espúria entre a promessa da abundância a partir da acumulação como solução para a escassez de necessidades humanas e a permanente pobreza da maioria dos indivíduos que se encontram alijados dos ganhos destes processos de acumulação Neste contexto como colocado 6 Para uma interessante leitura acerca do perigo que o subdesenvolvimento apresenta para esse liberalismo que se expande em escala global e as recentes conexões entre desenvolvimento e segurança ver Duffield 2001 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 118 14012021 1706 Naeem Inayatullah David Blaney e a crítica da Economia Política Internacional 119 anteriormente ao se tornarem portadores de um projeto cultural os pensa dores da economia política clássica compreendem a pobreza como intrínseca à produção de riqueza ao produzir uma ferida na sociedade moderna que exacerba os nexos entre a criação de riquezas adicionais e deformidades so ciais ao invés de sanálas A ideia de que a opulência funcionaria como an tídoto à pobreza se esvai com a persistência da miséria frente à acumulação exponencial de capital A afirmação de que a riqueza e a pobreza se encontram fundidas de maneira indissolúvel abre o capitalismo para o debate Não estamos falando com isso acerca da polêmica entre capitalistas do livre mercado e anticapitalistas na qual não é dado aos oponentes nenhum espaço ou voz Imaginamos algo mais calmo e profundo um debate interno à sociedade capitalista moderna na qual tanto as vantagens quanto as desvantagens do capitalismo como uma forma de vida ética sejam confrontadas diretamente Tal abertura tem um benefício adicional Se a pobreza é um componente necessário da modernidade capitalista então não pode ser meramente atribuída a uma era prémoderna ou nãomoderna inalterada pela abundância moderna BLANEY INAYATULLAH 2010a p 3 Estas reflexões trazem à tona a discussão sobre o progresso humano e os estágios de desenvolvimento naturalmente associados aos pensadores clássi cos considerados fundadores do liberalismo e das teorias de modernização A separação entre o passado e o presente organiza a diferença a partir de estágios temporalmente determinados encadeados linearmente e progressivamente a partir de uma etapa primitivista de escassez para uma posterior de abundância O retorno aos clássicos empreendido pelos autores tem como objetivo trazer novas interpretações acerca dos mitos de origem do pensa mento econômico clássico à luz de sua influência sobre a mútua construção da modernidade e do colonialismo A partir dessa releitura são recuperados e expostos os temas recessivos e os outros internos localizados nas tensões do espaçotempo da economia política clássica questões referentes à pobreza à violência e à desordem Isso implica o reconhecimento de que tais contri buições apontam para um discurso de historia universal justificada pela im posição violenta do capitalismo BLANEY INAYATULLAH 2010a Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 119 14012021 1706 Leonardo Ramos Rodrigo Corrêa Teixeira Marina Scotelaro 120 Ora a Economia Política Internacional convencionalmente vê o processo competitivo como independente e portanto não responsável pelas desigual dades no caráter e tratamento dos atores individuais a desigualdade social é tratada como um dado e o indivíduo ontologicamente primitivo é amplamente separado de seu processo social Nesta perspectiva o self é construído como logicamente anterior e separado do social e a desigualdade social é naturaliza da A Economia Política Internacional expressa essa tensão na oposição entre a construção do significado e do propósito social dos resultados estruturas instituições e regimes produzidos pelas interações de atores individuais e a qualidade présocial desses atores e suas motivações e necessidades Então a cultura de competição é entendida paradoxalmente e problematicamente como sempre requerendo a construção do mundo social por indivíduos on tologicamente separados Daí a relevância da crítica aqui apresentada com preender a EPI como uma cultura da competição é reconhecer seus propósitos e valores como socialmente constituídos Uma investigação da economia política como um projeto cultural envolve assim não apenas o entendimento da formação identitária que separa self e outro mas também a necessária sobreposição entre self e outro uma sobre posição que oferece uma visão transgressora A economia política revela os ideais sociais e políticos mais sagrados e duradouros do ocidente moderno seus maiores medos e ansiedades e visões alternativas potencialmente poderosas da vida social e política Explorar esse terreno também significa reconhecer que a economia política se encontra nos domínios do cultural BLANEY INAYATULLAH 2010b p 31 CONSIDERAÇÕES FINAIS Como dito anteriormente ver a diferença como algo que se encontra fora das fronteiras do self nos impede de reconhecer que os outros sempre se manti veram dentro de nós mesmos bem como de perceber selves que porventura existam como parte do outro que se encontra para além das fronteiras Tal questão é importante não apenas para o estudo das Relações Internacionais mas também para o estudo da Economia Política Internacional Perceber Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 120 14012021 1706 Naeem Inayatullah David Blaney e a crítica da Economia Política Internacional 121 como as discussões sobre riqueza e pobreza desenvolvimento e subdesen volvimento são eivadas pelo eurocentrismo é algo fundamental para um en tendimento dos processos de constituição tanto do internacional quanto das Relações Internacionais MCCARTHY 2009 HOBSON 2012 Neste sentido reflexões como as feitas por Blaney e Inayatullah ajudam a entender o cará ter historicamente contingente do internacional e assim a importância dos diálogos e da dialética intercivilizacional neste contexto HOBSON 2013 Além disso cumpre necessário um segundo passo a saber como lidar com essa contingência Como pensar formas alternativas e sobrepostas de desenvolvimento e organização da vida material Neste ponto as releituras dos clássicos da Economia Política associados às contribuições de Polanyi por exemplo podem ser extremamente elucidativas Obviamente Blaney e Inayatullah não trazem todas as respostas para os problemas que levantam não obstante ambos apresentam importantes pistas acerca de possíveis rotas de pesquisa futuras na interface EPIRI REFERÊNCIAS BLANEY D INAYATULLAH N Towards an ethnological IPE Karl Polanyis double critique of capitalism Millennium journal of international studies London v 28 n 2 p 311340 1999 BLANEY D INAYATULLAH N International Relations and the Problem of Difference London Routledge 2004 BLANEY D INAYATULLAH 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Relações Internacionais RI passou por um largo processo de diversificação Enquanto no passado uma quantidade conside rável de análises desenvolvidas era sustentada por diferentes eixos do Liberalismo ou Realismo e em menor grau pelo Marxismo do final dos anos 1980 em dian te a disciplina abriuse para problematizações ancoradas em diferentes tipos de 1 A tradução deste texto foi realizada por Rafael Nascimento a quem se agradece imensamente Agradecese também aos comentários feitos pelos membros da rede Colonialidade e Polí tica Internacional à uma versão preliminar deste capítulo Qualquer erro ou inconsistência contudo são de responsabilidade inteiramente dos autores 2 O autor agradece o auxílio financeiro proporcionado às suas pesquisas pela PróReitoria de Pesquisa e PósGraduação da UNILA sob os seguintes instrumentos financeiros PRPPG no 1092017 PRPPG no 582018 PRPPG no 1102018 PRPPG no 1492018 PRPPG no 1542018 PRPPG no 252019 PRPPG no 802019 PRPPG no 662020 PRPPG no 1042020 e PRPPG no 1052020 3 Este capítulo é uma versão modificada de um artigo previamente publicado como BLANCO DELGADO 2019 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 125 14012021 1707 Ramon Blanco Ana Carolina Teixeira Delgado 126 abordagens tais como o Construtivismo o Feminismo o PósEstruturalismo Pós Colonialismo para citar algumas Como resultado a disciplina se tornou muito mais plural não somente considerando as questões epistemológicas e ontológi cas avançadas por essas abordagens mas também no que toca às realidades que emergem a partir das críticas direcionadas ao caráter excludente da disciplina No entanto uma parte significativa desta literatura ainda permanece limi tada com respeito à análise das profundas e hierárquicas relações de poder que estão presentes e operacionais no cenário internacional Esta limitação devese ao fato de que mesmo as leituras críticas apesar de denunciarem diversas relações e estruturas de poder ou até mesmo criticarem o Eurocentrismo da disciplina ainda privilegiarem pensadores eurocêntricos como Michel Foucault Antonio Gramsci ou Jacques Derrida para citar apenas alguns Neste sentido tais leitu ras desenvolvem o que Ramón Grosfoguel 2007 p 211 chama de uma crítica eurocêntrica do eurocentrismo e marginalizam um aspecto fundamental da realidade internacional a enraizada colonialidade da política internacional Certamente não resta dúvida de que há pouca novidade em meramente se conectar colonialidade e política internacional Outros pesquisadores já explo raram esta conexão de maneira exitosa CORNWAY SING 2011 BLANEY TICKNER 2017 JACKSON 2017 PASHA 2011 PERSAUD 2015 ROJAS 2007 ROJAS 2016 SAJED 2013 TICKNER BLANEY 2013 SHILLIAM 2015 Entretanto existem ainda alguns aspectos desta relação que precisam ser mais clarificados Consequentemente o objetivo deste capítulo é não ape nas atentar para o conceito de colonialidade e delinear suas características Tratase sobretudo de elucidar um aspecto fundamental da cristalização da colonialidade na política internacional Ao reenquadrar o ponto de partida através do qual o internacional é usualmente discutido este capítulo traz os povos indígenas das Américas para o centro do debate sobre a política internacional Mais precisamente o trabalho evidencia duas problematiza ções fundamentais as quais através de seus questionamentos direcionados à relação entre o Eu Europeu e o Outro Ameríndio cristalizaram a colonia lidade na política internacional Tais problematizações são os pensamentos de Francisco de Vitoria e o Debate de Valladolid entre Bartolomeu de Las Casas e Juan Gines de Sepúlveda Elas constituem os primeiros anos da mo dernidade ocidental DUSSEL 1993 2013 e devido ao seu caráter profun do questionando delineando e estabelecendo os próprios limites do que Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 126 14012021 1707 Problematizando o Outro Absoluto da Modernidade 127 pode ser entendido como humano e da humanidade mesma fazse difícil não entender que ambas problematizações posicionam os ameríndios como o Outro Absoluto da modernidade O ponto aqui não consiste em estabelecer uma hierarquia entre subalternos O propósito é simplesmente demonstrar que as problematizações em si por meio dos questionamentos realizados por Vitoria Las Casas e Sepúlveda acerca da relação entre o Eu Europeu e os Ameríndios posicionaram o último como o Outro Absoluto da modernidade E embora ambas problematizações não sejam completamente estranhas à dis ciplina de Relações Internacionais JAHN 2000 INAYATULLAH BLANEY 2004 INAYATULLAH 2008 BOUCHER 2009 HUDSON 2009 ORTEGA 2016 um delineamento mais completo sobre como as mesmas são essenciais para a cristalização da colonialidade internacionalmente ainda não foi desen volvido o bastante pela literatura Este é o principal propósito deste capítulo A fim de desenvolver a sua análise este capítulo está estruturado em três seções Primeiro o trabalho discute o que a noção de colonialidade significa enfatizando sua diferença em relação ao colonialismo e ressaltando suas prin cipais características e dimensões Em segundo lugar o capítulo delineia um elemento operativo crucial da colonialidade e o duplo movimento pelo qual a colonialidade é operacionalizada Portanto a seção se inicia evidenciando que a noção de raça é essencial enquanto um elementochave de classifica ção social e hierárquica essenciais para a operacionalização da colonialidade Posteriormente a seção lança luz sobre o fato de a modernidade se estabelecer como uma dupla colonização a colonização do tempo e do espaço Por fim este capítulo conclui com a análise das duas problematizações estruturantes que foram fundamentais à cristalização da colonialidade na política interna cional Logo o trabalho delineia os pensamentos de Francisco de Vitoria e o Debate de Valladolid salientando como a forma pela qual estes pensadores problematizaram a relação entre o Eu Europeu e o Outro Absoluto da moder nidade os povos indígenas das Américas é essencial para a cristalização da colonialidade internacionalmente O QUE É COLONIALIDADE Devido ao seu caráter marginal na disciplina o conceito de colonialidade ainda é considerado por muitos como mero sinônimo de colonialismo ou Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 127 14012021 1707 Ramon Blanco Ana Carolina Teixeira Delgado 128 em menor medida a neocolonialismo De fato ambos os termos têm uma relação de poder subjacente à sua operacionalização o que os torna muito relacionados É possível ainda ir mais além e inclusive dizer que a colonia lidade tem suas origens na própria operacionalização das relações coloniais do passado Contudo ambos os termos têm origens e preocupações teóricas distintas Portanto antes de avançar no delineamento da ligação entre a co lonialidade e a política internacional é talvez prudente diferenciar um con ceito dos demais4 Por um lado colonialismo se destaca como um fenômeno crucial relaciona do ao exercício de poder no mundo colonial5 Para Nelson MaldonadoTorres 2007 p 243 por exemplo colonialismo denota uma relação política e econômica na qual a soberania de uma nação ou população baseiase no po der de outra nação o que faz de tal nação um império Neste tipo de relação é claramente perceptível que as partes formam uma conectada entidade geo gráfica BUSH 2006 p 2 Em termos políticos esta é uma relação de domi nação e subordinação entre uma entidade política chamada de metrópole e um ou mais territórios chamados colônias que estão fora das fronteiras da metrópole mas que ainda assim são reivindicados como suas posses legais ABERNETHY 2000 p 19 É bem verdade que o colonialismo é um tipo de relação de poder que implica não somente um componente material Para Albert Memmi 1991 e Ashis Nandy 1983 por exemplo colonialismo também implica um compo nente subjetivo representado pela formação de identidades que reproduzem uma divisão inferiorsuperior que é intrínseca às lógicas coloniais Contudo não se pode esquecer que o colonialismo é um tipo de relacionamento que necessariamente baseiase na posse do território alheio Analisando atenta mente o desenvolvimento desse processo ao longo do tempo fica evidente que esta necessidade de posse do território alheio tornouse relativamente mais flexível ou mesmo desnecessária com por exemplo o neocolonialismo Esta compreensão reside no fato de que paradoxalmente o Estado que é sujeito a este é em teoria independente e tem todos os ordenamentos da soberania 4 Ver por exemplo Young 2001 especificamente capítulos 2 e 4 5 Ver por exemplo Césaire 2000 Chakbrabarty 2008 Chaterjee 1993 Fanon 2004 Young 2001 para mencionar apenas alguns exemplos Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 128 14012021 1707 Problematizando o Outro Absoluto da Modernidade 129 internacional Na realidade seu sistema econômico e consequentemente sua diretriz política é direcionada a partir do exterior NKRUMAH 1965 p ix Portanto o avanço de interesses internacionais dominantes era operaciona lizado por meios informais se possível ou por anexações formais somente quando necessárias GALLAGHER ROBINSON 1953 p 3 Por outro lado colonialidade é um conceito avançado pelo sociólogo pe ruano Anibal Quijano 1992a 2007 e busca dar sentido à uma estrutura de poder hierárquica uma matriz colonial de poder e colonialidade do poder nas palavras de Quijano desenhada e desenvolvida durante o período colo nial e que ainda permanece ativa internacionalmente Ademais fica claro que a colonialidade emerge de um enquadramento sóciohistórico particular da descoberta e conquista das Américas MALDONADOTORRES 2007 p 243 Quijano 2007 é categórico ao observar o ponto de origem da colonia lidade e sua extensão até os dias de hoje quando diz que com a conquis ta das sociedades e culturas que habitam o que hoje é chamada de América Latina teve início a constituição de uma nova ordem mundial culminando quinhentos anos depois em um poder global cobrindo o planeta inteiro MALDONADOTORRES 2007 p 168 Consequentemente ao invés de ser exclusivamente relacionada à domi nação de um determinado território a colonialidade referese a duradouros padrões de poder que emergiu como resultado do colonialismo mas que defi ne a cultura o trabalho relações intersubjetivas e produção de conhecimento bem além dos estritos limites de administrações coloniais MALDONADO TORRES 2007 p 243 Logo a colonialidade não cessou com o fim do co lonialismo Ao contrário ela ainda está operante embora as administrações coloniais tenham sido quase totalmente erradicadas globalmente Portanto a colonialidade nos permite entender a continuidade das formas coloniais de dominação após o fim das administrações coloniais GROSFOGUEL 2007 p 219 Nas palavras de Luciana Ballestrin 2013 o conceito exprime uma constatação simples isto é de que as relações de colonialidade nas es feras econômica e política não findaram com a destruição do colonialismo GROSFOGUEL 2007 p 99 Mais importante a característica duradoura da colonialidade do poder nas esferas política e econômica está intimamente relacionada a outras esfe ras Portanto é importante ter em mente que o aspecto fundamental da noção Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 129 14012021 1707 Ramon Blanco Ana Carolina Teixeira Delgado 130 de colonialidade é que ela busca capturar e descobrir diferentes dimensões e camadas onde o poder é operacionalizado Coletivamente essas diferentes dimensões e camadas onde o poder é operacionalizado formam uma matriz colonial do poder QUIJANO 1992a 2000a Como Mignolo 2010 p 12 chama a atenção esta matriz colonial de poder é uma complexa estrutura de níveis interligados tais como 1 o controle da economia 2 o controle da autoridade 3 o controle do ambiente e dos recursos naturais 4 o controle de gênero e da sexualidade e 5 o controle da subjetividade e do conheci mento QUIJANO 1992a 2000a Como é perceptível esta matriz colonial do poder compreende múltiplas dimensões da vida e todas as dimensões da própria existência Esta matriz colonial do poder como acima mencionado emergiu com a conquista das Américas QUIJANO 2000a Para se ter uma visão mais clara da sua formação é necessário modificar o ponto de vista de onde se percebe a expansão colonial europeia Ramón Grosfoguel 2007 busca precisamente realizar essa empreitada e delinear este entendimento Para ele porque a ex pansão colonial europeia é normalmente problematizada a partir de um ponto de vista Eurocêntrico a imagem que normalmente emerge é a de que a origem desta reside na competição interimperial entre os impérios europeus com o centro nas lógicas econômicas de tal processo GROSFOGUEL 2007 p 215 Grosfoguel obviamente não negligencia a importância fundamental dessa perspectiva No entanto ele argumenta que esse é um entendimento estreito de todo o processo GROSFOGUEL 2007 p 215 De fato essa compreensão é muito centrada no aspecto econômico do processo e pode dar um privilégio desequilibrado a esse aspecto em relação às outras dimensões do mesmo Na verdade pode até silenciar e mesmo encobrir outras dimensões fundamentais do processo como um todo Buscando esclarecer esses outros aspectos da ex pansão colonial europeia Grosfoguel realiza uma mudança epistêmica e põese no lugar de uma mulher indígena vivendo nas Américas Consequentemente a imagem de todo o processo muda dramaticamente Realizando esta mu dança Grosfoguel evidencia que o que chegou nas Américas não era me ramente um sistema econômico Em sua visão o que chegou nas Américas foi uma alargada e mais vasta estrutura interrelacionada de poder que uma perspectiva econômica reducionista do sistemamundo é incapaz de dar con ta GROSFOGUEL 2007 p 216 Observando esse processo a partir de uma Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 130 14012021 1707 Problematizando o Outro Absoluto da Modernidade 131 distinta posição epistêmica como Grosfoguel 2007 p 216 o faz é possível perceber que o que chegou nas Américas foi um homem europeu capita lista militar cristão patriarca branco heterossexual e estabeleceu várias hierarquias globais interligadas GROSFOGUEL 2007 p 216 Logo ao invés de compreender a expansão colonial europeia a partir de uma perspectiva unidimensional partindo de uma perspectiva eurocêntrica e fundamentalmente centrada na economia este tipo de mudança permite pre cisamente o alargamento do entendimento acerca desse processo O mesmo evidencia que a matriz colonial do poder na verdade possui várias dimensões De fato o que fora desenhado foram múltiplas e heterogêneas hierarquias globais heterarquias de formas de dominação e exploração sexual políti ca epistêmica econômica espiritual linguística e racial GROSFOGUEL 2007 p 217 Nesta matriz colonial do poder é a hierarquia racialétnica da divisão europeunãoeuropeu que transversalmente reconfigura todas as outras estruturas de poder globais GROSFOGUEL 2007 p 217 Com essa ampliação de perspectiva em mente que somente é possível ao se posicionar a noção de colonialidade no cerne do pensamento é importante dar luz aos seus elementos operacionais e características RAÇA ENQUANTO ELEMENTO OPERACIONAL E O MOVIMENTO DUPLO DA COLONIALIDADE De modo a manter esta matriz do poder colonial ativa e operante Walter Mignolo 2000 lembra que vários elementos são necessários Consequentemente a matriz colonial do poder envolve 1 a reclassificação da população de todo o planeta 2 uma estrutura institucional funcional para articular e geren ciar tais classificações aparatos estatais universidades igrejas etc 3 a definição dos espaços apropriados para tais objetivos 4 uma perspectiva epistemológica a partir da qual podese articular o significado e o perfil da nova matriz de poder e da qual a nova produção de conhecimento poderia ser canalizada MIGNOLO 2000 p 17 Nesse sentido Quijano argumenta que os europeus enquanto estabeleciam suas relações coloniais produziram as discriminações sociais específicas as quais posteriormente foram codificadas como raciais étnicas antropológi cas ou nacionais de acordo com o tempo agentes e populações envolvidas Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 131 14012021 1707 Ramon Blanco Ana Carolina Teixeira Delgado 132 QUIJANO 2007 p 168 Mais do que isso estas construções intersubjetivas produto da dominação colonial eurocentrada foram assumidas como sendo categorias objetivas e científicas QUIJANO 2007 p 168 Estas discrimi nações sociais foram e são essenciais à manutenção e operacionalização de tal enquadramento de poder Um pilar fundamental da operacionalização da colonialidade do poder como Quijano 2000b argumenta reside nas noções de raça e racismo6 Para ele7 a colonialidade do poder foi concebida com a categoria social de raça como o elemento chave da classificação social de colonizados e colonizado res QUIJANO 2007 p 171 Como esperado um aspecto característico deste tipo de classificação social é que a relação entre os sujeitos não é de ca ráter horizontal mas sim vertical MALDONADOTORRES 2007 p 244 Quijano argumenta que a ideia de raça originase em referência às diferenças fenotípicas entre conquistadores e conquistados QUIJANO 2000b p 534 Não obstante muito rapidamente este traço fenotípico acabou sendo opera cionalizado e foi construído para referirse às supostas estruturas biológicas diferenciadas entre aqueles grupos QUIJANO 2000b p 534 Portanto de acordo com Quijano 2000b a colonialidade reside na codificação das dife renças entre conquistadores e conquistados na ideia de raça uma estrutura biológica supostamente diferente que posicionou alguns em uma natural si tuação de inferioridade aos outros QUIJANO 2000b p 533 Para ele os conquistadores assumiram esta ideia como o elemento constitutivo e fundador das relações de dominação que a conquista impôs QUIJANO 2000b p 533 Consequentemente a raça tornouse o eixo fundamental das relações sociais coloniais constitutivas das hierarquias e funções sociais que estavam sendo impostas Como Quijano 2007 p 534 destaca com o passar do tempo os colonizadores codificaram o aspecto fenotípico do colonizado como cor e a assumiram como a característica emblemática da categoria racial Entretanto é importante mencionar que esta noção biológica de raça não exclui de modo algum os seus componentes cultural e simbólico como um instrumento fundamental para se operacionalizar a colonialidade De fato 6 Para uma discussão sobre a ausência de raça nas discussões em Relações Internacionais ver ANIEVAS MANCHANDA SHILLIAM 2015 7 Ver Quijano 1992b Marks 1994 e especificamente Capítulos 3 4 e 6 Quijano 2000b Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 132 14012021 1707 Problematizando o Outro Absoluto da Modernidade 133 análises sobre diferentes sociedades latinoamericanas mostraram que a raça tem sido há bastante tempo operacionalizada também em termos de suas carac terísticas culturais algo frequentemente invisibilizado pelo enfoque biológico dos acadêmicos8 Na verdade a divisão social no cenário hispanoamericano foi largamente forjada por meio da transposição e releitura dos códigos que existiam na sociedade espanhola Isto explica por exemplo que a Limpieza de Sangre limpeza do sangue aplicável a não cristãos e direcionada à con versão e purificação tivesse o seu equivalente na América Latina à busca pelo Gracias al Sacar Esta era uma certificação real que ao menos em teoria permitia a possibilidade de a população mestiça descendente de espanhóis ou criollos tornarse branca Segundo CastroGómez em uma sociedade co lonial ser branco possuía significados distintos daqueles que enfatizavam a questão do fenótipo Ser branco estava relacionado acima de tudo à en cenação de um dispositivo entrelaçado por crenças religiosas tipos de vesti menta certificados de nobreza comportamentos e modos de produção do conhecimento CASTROGÓMEZ 2010 p 18 No entendimento de Castro Gómez tratavase de um estilo de vida que primordialmente associado às figuras do espanhol e do criollo servia por um lado como parâmetro para a classificação social e por outro para distinguir quem ocupava posições na administração colonial quem disfrutava de privilégios quem gozava de saú de etc CASTROGÓMEZ 2010 p 18 Logo ser branco denotava mais que prestígio naquele mundo Mais importante denotava um sinal de poder que assegurava a consolidação da estratificação e uma série de prerrogativas ne gadas ao mestiço mesmo que elaele possuísse riqueza Portanto o processo de branqueamento um fenômeno observado a partir da segunda metade do século XVIII e em certos locais da América Hispânica como Nova Granada embora não exclusivamente neste país representava uma estratégia colonial de poder pela população mesclada racialmente mestiça em um processo que foi fundamentalmente baseado no fator biológico Consequentemente a so breposição de por um lado elementos diários e bastante práticos e por outro lado símbolos fenotípicos e culturais resultaram em uma situação na qual a raça era o elemento operativo crucial para se constituir e reforçar a diferença colonial CASTROGÓMEZ 2010 Capítulo 2 8 Ver por exemplo De La Cadena 2000 Twinam 2009 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 133 14012021 1707 Ramon Blanco Ana Carolina Teixeira Delgado 134 Com a expansão do colonialismo europeu como argumenta Quijano 2000b p 535 a ideia de raça se tornou naturalizada no que toca às relações coloniais entre europeus e nãoeuropeus Contudo esses tipos de relação e classificação social não são restritas ao aspecto racial do relacionamento co lonial Quijano 2007 p 171 argumenta que a colonialidade do poder não se esgota no problema de relações sociais racistas Na realidade a ideia de raça e racismo tornase o princípio organizador que estrutura todas as múltiplas hierarquias do sistemamundo que organiza a população mundial em uma ordem hierárquica de pessoas inferiores e superiores GROSFOGUEL 2007 p 217 inclusive em termos culturais Consequentemente raça enquan to um aspecto essencial e elemento operacional da colonialidade QUIJANO 2007 p 171 tornouse o critério fundamental para a distribuição da popu lação mundial em posições locais e funções na estrutura internacional de poder QUIJANO 2000b p 535 Tendo este tipo de entendimento em mente é possível moverse em direção à função fundamental da noção de colonialidade a analítica MIGNOLO 2010 p 1314 Colocar a colonialidade do poder enquanto um eixo funda mental de uma problematização tem a consequência substancial de mudar o modo pelo qual as questões são problematizadas e enquadradas Para Mignolo 2010 p 14 o conceito de colonialidade abriu a reconstrução e a restituição de histórias silenciadas subjetividades reprimidas e conhecimen tos subalternizados De fato o mesmo permite por exemplo uma reproble matização do próprio sistema internacional Isto obviamente pode ter um impacto significativo na maneira que as relações internacionais podem ser problematizadas Mignolo 2000 por exemplo argumenta a favor de um deslocamento analítico de uma perspectiva de mundo moderno para uma de mundo modernocolonial MIGNOLO 2000 p 37 Para ele uma vez que a colonialidade do poder é introduzida na análise a diferença colonial se torna visível e as fraturas epistemológicas entre a crítica eurocêntrica do eurocentrismo é distinguida da crítica do eurocentrismo ancorada na expe riência colonial MIGNOLO 2000 p 37 Consequentemente a maneira pela qual a própria modernidade é pro blematizada modificase Não surpreendentemente isto é certamente fun damental na medida em que abre os olhos para as dinâmicas que ainda estão operantes na política internacional atual No seu entendimento mais Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 134 14012021 1707 Problematizando o Outro Absoluto da Modernidade 135 difundido a modernidade tem pouco ou até mesmo nada a ver com a expe riência colonial nas Américas Como MaldonadoTorres 2007 p 244 argu menta a modernidade é normalmente considerada como sendo um produto do Renascimento Europeu ou do Iluminismo Europeu No entanto tendo a noção de colonialidade em mente entendese que ao contrário a colonia lidade e a modernidade estão extremamente interligadas Mignolo 2009 argumenta por exemplo que a colonialidade é o lado mais sombrio da mo dernidade Na verdade não somente a modernidade carrega em seus om bros o enorme peso e responsabilidade da colonialidade MIGNOLO 2000 p 37 como também este modelo de poder está no coração da experiência moderna MALDONADOTORRES 2007 p 244 De fato a modernida de como um discurso e como prática não seria possível sem a colonialidade e a colonialidade continua sendo um resultado inevitável dos discursos mo dernos MALDONADOTORRES 2007 p 244 Para perceber isso é preciso dar um pequeno passo atrás e seguindo Naeem Inayatullah e David Blaney 2004 p 9 trazer a ideia de Mary Pratt 1992 sobre a zona de contato enquanto se reflete acerca da conquista das Américas Para Pratt 1992 p 67 a zona de contato implica a copresen ça espacial e temporal de sujeitos anteriormente separados por disjunções geográficas e históricas cujas trajetórias agora interceptamse Além disso Inayatullah e Blaney 2004 justamente lembram que a experiência histórica é que estas trajetórias que interseccionamse foram incutidas de inequidades de poder isto é a zona de contato tornouse geralmente um espaço de en contros coloniais INAYATULLAH BLANEY 2004 p 9 Ao se problema tizar a modernidade a partir do ponto de vista da colonialidade começase a perceber ambas como lados diferentes da mesma moeda MIGNOLO 2009 p 42 Consequentemente tornase claro que o lado sombrio da modernida de é que ela se estabelece como e a colonialidade é tornada operacional por uma dupla colonização do tempo9 e do espaço10 MIGNOLO 2009 p 42 9 For a discussion about Time and international relations see for instance Hutchings Kimberly 2008 Solomon Ty 2014 Agathangelou And Killian 2016 Hom Mcintosh Mckay And Stockdale 2016 10 For a problematization about space and international processes such as postconflict reconstruction efforts see for instance Björkdahl Annika BuckleyZistel And Susanne 2016 Björkdahl Annika Kappler And Stefanie 2017 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 135 14012021 1707 Ramon Blanco Ana Carolina Teixeira Delgado 136 É somente ao se colocar a colonialidade no centro de uma determinada problematização que tais elementos centrais tornamse visíveis Na visão de Mignolo 2009 enquanto a colonização do tempo é melhor representada pela invenção da Idade Média no processo de conceitualização do Renascimento a colonização do espaço é operacionalizada pela colonização e conquista do Novo Mundo MIGNOLO 2009 p 4142 Um aspecto fundamental da ope racionalização da colonização do tempo tornase evidente na temporalização da diferença11 HELIWELL HINDESS 2005 Isto significa que a relação entre Eu e Outro é permanentemente problematizada através do marco temporal construído pelo Eu para o Outro Consequentemente a relação entre estes ocorre mediante os termos temporais definidos pelo Eu os quais ou permi tem ou negam a coetaneidade do Outro Enquanto o primeiro caso significa que o Outro é posicionado no mesmo tempo do Eu o segundo a negação da coetaneidade seguindo Fabian 1983 significa a persistente e sistemática tendência de colocar os referentes de um determinado discurso em um Tempo diferente do presente do produtor deste discurso FABIAN 1983 p 31 Usualmente o tempo no qual estes referentes são colocados é o passado Como resultado o Outro é colocado em uma linha do tempo linear e teleoló gica e é prontamente retratado por exemplo como antes passado menos avançado retrógrado e assim por diante o que consequentemente leva a uma posição de inferioridade dentro de uma hierárquica estrutura de poder Com respeito à colonização do espaço talvez a primeira imagem que vem à cabeça muito corretamente é a brutalidade e a violência do processo o que é a sua mais óbvia dimensão Contudo além desta dimensão que cer tamente é fundamental existem também outros elementos neste processo que não são tão evidentes É Tzvetan Todorov 1984 quem os percebe em sua reflexão acerca da conquista da América Ao problematizar a postura de Cristóvão Colombo em relação aos ameríndios ele percebe dois elementos estruturantes dessa postura Na perspectiva de Todorov Colombo 1 ou concebe a população americana como seres humanos em conjunto tendo o 11 Para uma genealogia de como a diferença e a alteridade são problematizadas no pensa mento ocidental ver por exemplo Behr 2014 mais especificamente o capítulo 2 Para uma reflexão a respeito diferença nas relações internacionais ver Inayatullah And Blaney 2004 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 136 14012021 1707 Problematizando o Outro Absoluto da Modernidade 137 mesmo direito como ele próprio mas depois os vê não somente como iguais mas idênticos e este comportamento leva à assimilação à projeção de seus próprios valores nos outros TODOROV 1984 p 42 ou 2 ele começa a partir da diferença mas a última é imediatamente traduzida em termos de superioridade e inferioridade no seu caso obviamente são os Índios que são inferiores TODOROV 1984 p 42 Portanto a zona de contato colonial na visão de Inayatullah e Blaney 2004 resulta em um movimento duplo que é o cerne da operacionalização da matriz do poder colonial anteriormente mencionada Neste movimento duplo por um lado a diferença é reconhecida mas constituída como dege nerada inferior ou absolutamente outra INAYATULLAH BLANEY 2004 p 106 Neste primeiro movimento a diferença é racionalizada em termos de superioridadeinferioridade Consequentemente essa racionalização é o que ancora a justificação da sujeição do outro à exploração erradicação física exclusão social eou esforços sistemáticos para reforma INAYATULLAH BLANEY 2004 p 106 Por outro lado o segundo movimento é baseado no fracasso em reconhecer a diferença INAYATULLAH BLANEY 2004 p 106 Neste caso o outro é interpretado como um eu anterior que depois de tutela pode tornarse inteiramente Cristão civilizado ou desenvolvido INAYATULLAH BLANEY 2004 p 106 Logo neste movimento duplo a diferença se torna inferioridade e a possibilidade de uma humanidade comum requer assimilação INAYATULLAH BLANEY 2004 p 10 Estes dois elementos na visão de Todorov 1984 são ambos fundados no egocen trismo na identificação de nossos próprios valores de Colombo neste caso com valores em geral de nosso eu com o universo na convicção de que o mundo é um TODOROV 1984 p 4243 Em vez de estar confinada ao passado Todorov argumenta que esse tipo de postura em relação à diferença nós devemos encontrar novamente no século seguinte e na prática até aos nossos próprios dias em todo colonizador na sua relação com o colonizado TODOROV 1984 p 42 É apoiada precisamente na dupla colonização anteriormente mencionada e por meio desse movimento duplo relativamente à diferença que a coloniali dade é operacionalizada na política internacional Uma vez que colonialidade tem a sua emergência ligada à conquista das Américas não é surpreenden te observar que a dupla colonização e o movimento duplo direcionados à Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 137 14012021 1707 Ramon Blanco Ana Carolina Teixeira Delgado 138 diferença cerne da colonialidade são também materializados tendo a con quista das Américas como seu eixo fundamental Consequentemente é pre cisamente através do modo pelo qual duas problematizações estruturais que têm como ponto fundamental a relação entre o Eu europeu e o Outro absoluto da modernidade os ameríndios questionam essa mesma relação que a colonialidade se torna cristalizada na política internacional É o delineamen to dessas duas problematizações estruturais que será o objeto deste capítulo a partir de agora A CRISTALIZAÇÃO DA COLONIALIDADE NA POLÍTICA INTERNACIONAL Como já mencionado uma consequência fundamental de se trazer a colonia lidade ao centro da análise é problematizar questõeschave de modo diferente e entender um outro lado muito frequentemente marginalizado e silenciado de alguns elementos e processos basilares da realidade internacional Isto é especialmente importante em processos que ao invés de serem entendidos como fornecedores de um enquadramento para uma relação de poder à pri meira vista indicam precisamente o oposto Consequentemente além da colonização das Américas percebese duas problematizações estruturais as quais precisamente por terem como centro a relação entre o Eu Europeu e o Outro Ameríndio e devido ao modo como avançam em tais problematiza ções são símbolos emblemáticos do funcionamento do movimento duplo mencionado anteriormente na política internacional Consequentemente são elementos essenciais de cristalização da colonialidade na política inter nacional Essas duas problematizações estruturais são 1 o pensamento de Francisco de Vitoria nas fases iniciais do direito internacional e 2 o conhe cido Debate de Valladolid 15501551 A respeito do primeiro momento um eixo basilar da realidade interna cional em que o momento duplo é evidente é por exemplo o direito inter nacional De fato tendo a noção de colonialidade em mente são claramente perceptíveis as origens coloniais no direito internacional ANGHIE 1996 2004 Como Anthony Anghie argumenta o direito internacional não precedeu e deste modo resolveu sem esforços o problema das relações hispanoindí genas em vez disso o direito internacional foi criado a partir dos problemas Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 138 14012021 1707 Problematizando o Outro Absoluto da Modernidade 139 únicos gerados pelo encontro entre os espanhóis e os indígenas ANGHIE 1996 p 322 grifo original Para perceber isto devese analisar atentamente os estágios iniciais da disciplina do direito internacional Não é incomum observar argumentos colocando o trabalho de Hugo Grotius como o próprio início do direito inter nacional Entretanto escrutinando mais profundamente é possível traçar as fases primitivas do mesmo voltando às suas origens espanholas e ao traba lho de Francisco de Vitoria 1991 em particular KENNEDY 1986 SCOTT 2013 que é essencial às origens da disciplina ANGHIE 1996 p 321 SCOTT 2013 Na visão de Mignolo 2009 p 46 o tratado de Vitoria On the American Indians é considerado fundacional na disciplina Geralmente o pensamento de Vitoria é entendido como um esforço para estender e aplicar doutrinas ju rídicas existentes desenvolvidas na Europa para determinar o status legal dos indígenas ANGHIE 1996 p 322 No entanto na visão de Anghie Vitoria reconceitualiza estas doutrinas ou mesmo inventa novas para lidar com o problema novo dos indígenas ANGHIE 1996 p 322 Para ele a questão que estava diante de Francisco de Vitoria era a questão de criar um sistema de direito que poderia ser usado para explicar as relações entre sociedades que ele entendia pertencer a duas distintas ordens culturais cada um com suas próprias ideias de propriedade e de governo ANGHIE 1996 p 322 Para avançar sua problematização Vitoria primeiramente criticou o en quadramento dentro do qual a relação hispanoameríndia era geralmente problematizada Como esperado este era um enquadramento desenvolvido pela Igreja Católica para lidar com o que eram denominados por ela como Sarracenos Tal enquadramento baseouse essencialmente em duas premis sas 1 que as relações humanas eram governadas pela lei divina e 2 que o Papa devido a sua missão divina de difundir a cristandade ao redor do glo bo possuía jurisdição universal ANGHIE 1996 p 323 Francisco de Vitoria criticou ambas as asserções e neste processo delineou a base para um novo enquadramento relativamente ao direito internacional deslocando a discus são da esfera do direito divino para uma diferente esfera a do direito natural ANGHIE 1996 p 323 Como Anthony Anghie 1996 p 324 elucida Francisco de Vitoria 1991 começa o delineamento do seu trabalho questionando se os ameríndios aos quais Vitoria referencia como bárbaros antes da chegada dos espanhóis Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 139 14012021 1707 Ramon Blanco Ana Carolina Teixeira Delgado 140 possuíam verdadeiro domínio público ou privado Vitoria 1991 p 239 Em essência Vitoria estava colocando uma pergunta embora bastante ultrajante fundamental para o seu tempo se ontologicamente os ameríndios poderiam ser proprietários de sua própria terra e posses No entendimento de Vitoria havia quatro possíveis fundamentos sob os quais os argumentos avançados questionando os ameríndios como verdadeiros mestres antes da chegada dos espanhóis baseavamse Os fundamentos eram que os ameríndios eram ditos ser 1 pecadores 2 incrédulos 3 loucos ou 4 insensatos VITORIA 1991 p 240 Vitoria 1991 p 240251 respondeu a cada um destes funda mentos12 Após escrutinar cada um deles Vitoria conclui que antes da chegada dos espanhóis estes bárbaros possuíam verdadeiro domínio em ambos assun tos públicos e privados VITORIA 1991 p 251 Em sua visão os bárbaros indubitavelmente possuíam verdadeiro domínio ambos público e privado como qualquer cristão VITORIA 1991 p 250 Consequentemente eles não poderiam ser roubados de sua propriedade seja como cidadãos privados ou como príncipes sob o fundamento de que não eram verdadeiros mestres ueri domini VITORIA 1991 p 250251 grifo no original Além disso houve um elemento fundamental no raciocínio de Vitoria que o separa da maioria de seus contemporâneos ele entendeu os ameríndios como seres humanos racionais Para ele a prova disso era que os ameríndios em sua visão organizaram adequadamente cidades casamentos magistrados e suseranos domini leis indústrias e comércio todos os quais requerem o uso da razão Eles igualmente possuem uma forma de religião e corretamente apreendem coisas que são evidentes a outros homens o que indica o uso da razão VITORIA 1991 p 250 A posse e uso da razão é fundamental a um elemento central no pensamento de Vitoria ius gentium direitos dos povos É precisamente o ius gentium que permitiu de modo aparente Vitoria pôr ao mesmo nível de humanidade ambos espanhóis e indígenas MIGNOLO 2009 p 46 Francisco de Vitoria entendeu o ius gentium como um sistema de leis universal cujas regras podem ser apuradas pelo uso da razão ANGHIE 1996 p 325 Logo ius gentium foi o que a razão natural estabeleceu entre todas as nações ANGHIE 1996 p 325 Para Vitoria o direito dos povos ius gentium não possui a força meramente dos pactos e acordos entre os 12 Para uma descrição detalhada de cada contraargumento ver VITORIA 1991 p 240251 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 140 14012021 1707 Problematizando o Outro Absoluto da Modernidade 141 homens VITORIA 1991 p 40 Mais importante para ele o mundo todo que em certo sentido é uma comunidade tem o poder de decretar leis que são justas e convenientes a todos os homens e aqueles que as quebram estão cometendo crimes mortais VITORIA 1991 p 40 Portanto ius gentium de veria ser vinculativo independentemente das convicções legislativas locais crenças e costumes de comunidades individuais ou do lugar dos mesmos no tempo VITORIA 1991 p xv À primeira vista a problematização de Vitoria pode parecer como inclu siva com respeito aos ameríndios e como se ele estivesse os protegendo das invasões espanholas De fato Francicso de Vitoria 1991 p 251277 promoveu vários contraargumentos aos argumentos mais comuns a favor da invasão espanhola13 Vitoria criticou vários fundamentos nos quais os argumentos favorecendo a invasão espanhola se baseavam Estes variavam do direito da descoberta ao bárbaros são pecadores Ao fazêlo Vitoria na verdade evidenciou que tais argumentos não eram base para a invasão espanhola ser considerada legítima De fato ele proporcionou um enquadramento que em essência retratou as várias situações nas quais a invasão e dominação espa nhola eram na verdade ilegítimas VITORIA 1991 p 251277 Apesar de tudo isso um analista mais crítico percebe que a mente de Vitoria não escapa do duplo movimento evidenciado por Inayatullah e Blaney e an teriormente mencionado onde a diferença se torna inferioridade e a possi bilidade de uma humanidade comum requer assimilação INAYATULLAH BLANEY 2004 p 10 Isto é evidente quando se observa atentamente o pensamento de Francisco de Vitoria Por exemplo como já mencionado é verdade que Vitoria reconhece que os ameríndios são possuidores de razão VITORIA 1991 p 250 Na verdade Anthony Anghie 1996 lembra que é precisamente porque os indígenas possuem razão que são vinculados por ius gentium ANGHIE 1996 p 325 grifo no original Logo em sua visão tanto os espanhóis quanto os ameríndios são parte do ius gentium e portanto am bos devem obedecêlo Isto pode aparentar que Vitoria está colocando tanto espanhóis quanto ameríndios enquanto iguais em sua problematização No entanto sabendo por um lado que Vitoria compreende o ius gentium enquan to um sistema de leis universal cujas regras podem ser apuradas pelo uso da 13 Para uma análise abrangente destes contraargumentos ver VITORIA 1991 p 251277 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 141 14012021 1707 Ramon Blanco Ana Carolina Teixeira Delgado 142 razão e estabelecido entre todos os povos e por outro lado que os ameríndios não têm palavra na elaboração dessas regras não é difícil perceber esse tipo de sistema como um sistema hierárquico colocando os ameríndios na base do mesmo uma vez que estes deveriam obedecer a um sistema de regras no qual não possuíam qualquer participação em sua elaboração Mesmo quando Francisco de Vitória reconhece que os ameríndios são possuidores de razão ele não escapa de entender esta posse de razão de modo hierárquico e até de forma condescendente Para Vitoria não poderia ser culpa deles dos ameríndios se eles estavam por tantas centenas de anos fora do estado de salvação visto que nasceram em pecado mas não possuíam o uso da razão para incitálos a buscar o batismo ou as coisas necessárias à salvação VITORIA 1991 p 250 Portanto para ele se eles nos parecem insensatos e nãoperspicazes o atribuo principalmente à sua má e bárbara educação Mesmo entre nós mesmos vemos muitos camponeses que são pou co diferentes de animais brutos VITORIA 1991 p 250 Outro aspecto do pensamento de Vitoria no qual o movimento duplo anteriormente mencionado está presente e que é digno de nota é a sua ar gumentação em relação à invasão espanhola Isto é evidente observando o fato de que quando Francisco de Vitoria refutou vários argumentos a favor da invasão espanhola que eram geralmente baseados no fundamento dos ameríndios serem pecadores descrentes e assim por diante ele não con traargumentou em essência o cerne fundamental desses argumentos A essência desses argumentos estava relacionada à ontologia dos ameríndios enquanto pecadores descrentes loucos insensatos ou infantis o que é rara mente contestado por Francisco de Vitoria Na realidade o que Vitoria fez foi argumentar que esses fundamentos em particular não eram fundamentos legais válidos para a dominação espanhola ser considerada legítima Logo ele não questionou a conquista espanhola em si Ao contrário ele questio nou os fundamentos legais nos quais baseavamse os argumentos em favor da mesma Na verdade podese até argumentar que Vitória na realidade forneceu os fundamentos legais para a devida legitimação do sistema espa nhol de comércio ANGHIE 1996 p 326 Portanto Francisco de Vitoria teve uma preocupação meramente legal em relação à conquista espanhola De fato não por coincidência ele promove vários fundamentos possíveis Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 142 14012021 1707 Problematizando o Outro Absoluto da Modernidade 143 onde em sua visão os bárbaros do Novo Mundo passavam ao regime dos espanhóis14 VITORIA 1991 p 277 Entre os fundamentos que Vitoria delineia é suficiente mencionar ape nas dois 1 a disseminação da religião Cristã VITORIA 1991 p 284 e 2 a incapacidade mental dos bárbaros VITORIA 1991 p 290 Em relação ao primeiro para Vitoria é razão de guerra se os bárbaros obstruírem os espanhóis em sua livre propagação do Evangelho VITORIA 1991 p 285 Na sua visão os espanhóis depois de primeiro raciocinar com eles para re mover qualquer causa de provocação podem pregar e trabalhar para a conver são daquelas pessoas até contra a sua vontade e podem se necessário pegar em armas e declarar guerra a eles na medida que isto forneça a segurança e a oportunidade necessárias para pregar o Evangelho VITORIA 1991 p 285 grifo original Vitoria vai mais longe ao argumentar que se o Cristianismo não puder ser promovido os espanhóis podem legalmente conquistar os ter ritórios destas pessoas depondo seus antigos mestres e instalando novos VITORIA 1991 p 285286 Em relação à capacidade mental percebida por Francisco de Vitoria na verdade ele entende que há uma diferença pequena entre os bárbaros e os loucos eles são um pouco ou não mais capazes de se autogovernarem do que os loucos ou de fato do que bestas selvagens Nestes fundamentos eles podem ser entregues a homens mais sábios para governar VITORIA 1991 p 290291 Ele argumenta que isto é admitido dada a suposta estupidez dos ameríndios que aqueles que viveram entre eles reportam e a qual dizem ser maior do que a de crianças e loucos entre outras nações VITORIA 1991 p 291 Em sua visão este tipo de relação é até mesmo caridosa já que tal argumento poderia ser suportado pelos requisitos de caridade uma vez que os bárbaros são nossos vizinhos e somos obrigados a tomar conta de seus bens VITORIA 1991 p 291 Para Vitoria os espanhóis poderiam tomar conta dos ameríndios ou mesmo governálos já que tudo é feito pelo bene fício e bem dos bárbaros e não meramente pelo lucro dos espanhóis VITORIA 1991 p 291 grifo original Consequentemente a problematização de Francisco de Vitoria é um ele mento fundamental da cristalização da colonialidade na política internacional 14 Para uma observação abrangente destes fundamentos ver VITORIA 1991 p 277292 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 143 14012021 1707 Ramon Blanco Ana Carolina Teixeira Delgado 144 uma vez que está imbricada na formação do direito internacional tornando ambos elementos direito internacional e colonialidade entrelaçados e inse paráveis um do outro Além das problematizações de Francisco de Vitoria nos primórdios do direito internacional como mencionado existe uma segunda problematização estrutural que é crucial para a cristalização da colonialida de e o duplo movimento já citado na política internacional Este momento estrutural é precisamente o debate conhecido como Debate de Valladolid 15501551 Este debate pode certamente ser entendido como o epicentro da cristalização da colonialidade e consequentemente a postura do duplo movimento mencionado no cenário internacional a partir do século XVI O debate que ficou conhecido como o Debate de Valladolid 15501551 foi instituído pelo rei espanhol Carlos V ocorreu no Colégio de San Gregorio na cidade espanhola de Valladolid e desenvolveuse em duas sessões a pri meira delas ocorreu da metade de agosto à metade de setembro de 1550 e a segunda ocorreu da metade de abril à metade de maio de 1551 HANKE 1996 p 6768 DUSSEL 2014 Enrique Dussel 2013 1993 reconhecendo a relevância crucial desse debate argumenta que é no Debate de Valladolid onde a história da razão moderna havia começado DUSSEL 2013 p 579 nota de rodapé 278 Na verdade para Dussel 2014 p 32 grifo original o Debate de Valladolid foi o primeiro debate filosófico público e central da Modernidade O debate desenvolveuse em torno do que foi de uma só vez uma funda mental questão teológica legal e filosófica é legal ao Rei da Espanha tra var uma guerra com os indígenas antes de pregar a fé a eles para sujeitalos a seu domínio para que depois eles possam ser mais facilmente instruídos à fé HANKE 1996 p 67 Na visão de Dussel esta é uma questão perene à Modernidade Que direito possui a Europa de colonialmente dominar os indígenas HANKE 1996 p 32 Em resposta à esta pergunta é claramente perceptível dois argumentos rivais melhor vocalizados por Bartolomeu de Las Casas por um lado e Juan Gines de Sepúlveda por outro Ambos juntamente com outros tais como Francisco de Vitoria foram parte de problematizaçõeschave no século XVI que em essência buscavam lidar e delinear as fronteiras e os limites do que seria entendido enquanto humanidade MIGNOLO 2000 p 283 Mais im portante o debate era se os ameríndios seu Outro absoluto eram considera dos humanos e se sim qual era a posição deste Outro na estrutura de poder Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 144 14012021 1707 Problematizando o Outro Absoluto da Modernidade 145 vigente É bem verdade como MaldonadoTorres 2007 esclarece que em 1537 o Papa declarou os ameríndios humanos MIGNOLO 2000 p 244 Isto foi operacionalizado pelo Papa Paulo III quando em sua Bula papal Sublimis Deus ele confirmou a capacidade dos indígenas de entender e rece ber a fé Cristã HERNANDEZ 2001 p 98 Isto foi feito em um ambiente constituído por vários argumentos acerca da irracionalidade incapacidade dos ameríndios e de questionamentos se os mesmos deveriam ou não ser edu cados HANKE 1996 p 1727 No entanto com esta Bula o Papa estava na verdade legitimando a dominação espanhola das Américas e incentivando seus esforços de disseminar a religião Cristã por lá Consequentemente as problematizações sobre a relação entre o Eu Europeu e o Outro Ameríndio emergiram colocando em debate duas visões opostas representadas por Gines de Sepúlveda e Bartolomeu de Las Casas Sepúlveda em essência apresentou quatro proposições a favor da guerra justa contra os americanos nativos primeiro os indígenas eram bárbaros segundo eles cometeram crimes contra o direito natural terceiro os indígenas oprimiram e mataram os inocentes entre eles mesmos e quarto eles eram infiéis que pre cisavam ser instruídos na fé Cristã HERNANDEZ 2001 p 100 Ao avançar a sua argumentação para uma guerra justa contra os ameríndios Gines de Sepúlveda 1941 argumentou que seria sempre justo e em conformidade com o direito natural que tais pessoas sejam subjugadas ao império de príncipes e nações que são mais cultas e huma nas para que por suas virtudes e a prudência de suas leis eles abandonem a barbárie e sejam subjugados por uma vida mais humana e pelo culto da virtude Ibidem 85 Aqui Sepúlveda traz uma problematização aristotélica de mestre e escravo com seu legado de diferenciar povos em bárbaros e civilizados e aplicou esta diferenciação dualística aos espanhóis como civilizados e aos indígenas como bárbaros BEHR 2014 p 59 Ademais Sepúlveda entendeu que se eles rejeitarem tal império o mesmo pode ser imposto a eles recorrendose às armas e tal guerra seria justa de acordo com as declarações do direito natural SEPÚLVEDA 1941 p 85 Resumindo sua visão Sepúlveda argumenta que em suma é justo conveniente e em conformidade com o direito natural Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 145 14012021 1707 Ramon Blanco Ana Carolina Teixeira Delgado 146 que aqueles homens honoráveis inteligentes virtuosos e humanos dominem todos aqueles a quem lhes faltem estas qualidades SEPÚLVEDA 1941 p 87 Bartolomeu de Las Casas15 em contrapartida representa o primeiro crí tico da Modernidade na visão de Enrique Dussel 2014 p 27 grifo original Na visão de Dussel Las Casas argumenta uma série de pontos tais como 1 refuta a afirmação da superioridade da cultura Ocidental da qual a bar bárie das culturas indígenas foi deduzida 2 diferencia entre A conceder ao Outro o indígena a afirmação universal de sua verdade B sem cessar de honestamente afirmar a possibilidade de uma validade universal em sua proposta a favor do evangelho e 3 afirma a falsidade da última causa pos sível justificar a violência da conquista a de salvar as vítimas de sacrifício humano como sendo contra o direito natural e injusto sob todos os pontos de vista DUSSEL 2014 p 28 Las Casas respondeu a cada um dos argu mentos de Sepúlveda Em relação ao argumento de Sepúlveda relativamente ao fato dos ameríndios serem bárbaros Las Casas não atacou a racionaliza ção de Aristóteles Ele questionou a operacionalização feita por Sepúlveda do conceito de Aristóteles argumentando que esta lógica não poderia ser aplica da aos ameríndios uma vez que eles possuíam sistemas de governo corpos jurídicos que legislavam sua vida política e social e realizações culturais BEHR 2014 p 59 Respondendo ao argumento de Sepúlveda relativamen te aos crimes indígenas contra o direito natural Las Casas argumentou que punição requeria jurisdição Especificamente nem Carlos V ou mesmo o Papa Paulo III possuíam jurisdição sobre os infiéis HERNANDEZ 2001 p 101 Em essência o argumento de Las Casas era o de que os indígenas embora em um estágio diferente e atrasado de desenvolvimento humano em relação aos europeus não eram menos racionais e adeptos a pacificamente receber a fé Cristã do que as pessoas do Velho Mundo HERNANDEZ 2001 p 100 Portanto ele entendia os ameríndios como pagãos um grupo que tinha que ser não violentamente punido mas pacificamente convertido ao Cristianismo HERNANDEZ 2001 p 103 No entendimento de Las Casas os indígenas uma raça humana em evolução precisavam ser persuasivamente convertidos 15 Para uma compreensão abrangente do pensamento de Las Casas ver por exemplo Wagner Parish 1967 Las Casas 1992 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 146 14012021 1707 Problematizando o Outro Absoluto da Modernidade 147 não assassinados em guerras de conquista ao Cristianismo HERNANDEZ 2001 p 102 Analisando o Debate de Valladolid a primeira imagem que talvez pos sa emergir é a de que o debate possui dois lados completamente opostos 1 um verdadeiramente defendendo os ameríndios da brutalidade espanhola e vocalizando sua violência representado por Las Casas e 2 o outro argu mentando a favor da guerra contra os ameríndios representado por Gines de Sepúlveda Esta imagem retrata por exemplo Las Casas como um defensor dos ameríndios e Sepúlveda argumentando pela opressão dos mesmos Na verdade esta imagem está longe de ser completamente imprecisa Entretanto um entendimento mais crítico sobre o processo constata que esta percepção acerca do Debate de Valladolid embora seja parcialmente precisa é funda mentalmente uma imagem superficial e mais importante ilusória do mesmo Tendo a noção da colonialidade em mente um lado diferente e essencial do debate tornase visível Ao examinar o Debate de Valladolid tornase evidente que os argumen tos que por um lado Las Casas e por outro lado Sepúlveda desenvolveram representam respectivamente ambos os movimentos de assimilação e domi nação anteriormente mencionados Problematizando ainda mais o debate podese claramente perceber que na verdade essas duas visões aparentemen te opostas concordam em um aspecto fundamental O aspecto que eles em essência concordam está relacionado com a questão da diferença Ambos os argumentos coincidem em algo que à primeira vista pode parecer paradoxal a diferença dos ameríndios como tal estava de uma só vez completamente negada e reconhecida hierarquicamente como inferior Este é o aspecto central do movimento duplo anteriormente mencionado Escrutinando de modo mais crítico ambos os argumentos o que emerge é que o real ponto de discordância entre os mesmos relacionavase somente com o como lidar com a diferença ameríndia pacifica ou violentamente e não com o como eles entendiam a própria essência daquela diferença DUSSEL 1993 p 7778 Por meio da violência ou não a essência é que os ameríndios deviam ser transformados Como mencionado anteriormente é precisamente através da operacio nalização destes dois movimentos que a colonialidade funciona na política internacional A mesma funciona reconhecendo a diferença mas colocan doa em uma estrutura hierárquica de superioridadeinferioridade ou não a Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 147 14012021 1707 Ramon Blanco Ana Carolina Teixeira Delgado 148 percebendo de todo o que consequentemente leva à assimilação O delinea mento dessas duas problematizações estruturantes mencionadas ao longo do capítulo busca evidenciar que devido precisamente ao modo pelo qual esses pensadores problematizaram a relação entre o Eu Europeu e o Outro Ameríndio elas foram fundamentais para a cristalização da colonialidade na política internacional É verdade que estas podem parecer problematizações estruturantes do passado Contudo tais problematizações ainda são relevantes ao nosso sistema internacional contemporâneo O movimento duplo mencionado anteriormente permanece como um eixo fundamental dos processos que desenrolamse no cenário internacional Enquanto no passado a colonialidade juntamente com seu movimento duplo foi operacionalizada através da retórica da conversão ao Cristianismo e por meio do argumento da missão civilizatória atualmen te estes são tornados operacionais por meio das noções de desenvolvimento modernização e democratização direcionadas à periferia do cenário interna cional Ao invés de ser um processo que cessou com o fim do colonialismo formal observando atentamente a estrutura do cenário internacional con temporâneo fica evidente que as zonas periféricas do sistema internacional ainda vivem sob um regime de colonialidade global GROSFOGUEL 2007 p 220 Logo a matriz colonial de poder abordada neste capítulo com o seu movimento duplo de perceber a diferença hierarquicamente eou não con siderar a diferença de todo e buscar assimilála ainda é o enquadramento dentro do qual opera a política internacional CONCLUSÃO Este capítulo trouxe visibilidade ao conceito de colonialidade Mais im portante ao colocar o Outro absoluto da modernidade ocidental os povos indígenas das Américas no centro da discussão sobre a política internacional o mesmo revela duas problematizações fundamentais as quais pelo modo como questionam a relação entre o Eu Europeu e o Outro Ameríndio da modernidade cristalizaram a colonialidade na política inter nacional Ao discutir o que a noção de colonialidade significa o capítulo a diferenciou de colonialismo e neocolonialismo e esboçou algumas das suas característicaschave Posteriormente o trabalho evidenciou que a raça Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 148 14012021 1707 Problematizando o Outro Absoluto da Modernidade 149 é um elemento fundamental para a operacionalização da colonialidade Em relação à operacionalização da colonialidade discutiuse dois movimentos através dos quais a colonialidade funciona na política internacional por um lado reconhecendo a diferença mas colocandoa em uma estrutura hierár quica de superioridadeinferioridade e por outro lado não percebendoa de todo o que leva à assimilação Finalmente o capítulo delineou problematiza ções estruturais relativas à colonialidade O mesmo discutiu o pensamento de Francisco de Vitoria nos estágios iniciais do direito internacional e o conhecido Debate de Valladolid Estas problematizações são cruciais à compreensão da colonialidade não somente devido ao fato de serem emblemáticas em relação ao movimento duplo por meio do qual a colonialidade é operacionalizada mas também porque são fundamentais para a cristalização da colonialidade na política internacional Consequentemente sendo a colonialidade o lado mais escuro da modernidade uma realidade internacional como a nossa que é ancorada em pilares modernos não escapa ao fato de ter colonialida de como seu elemento fundamental reproduzindo seu movimento duplo e mantendo a matriz colonial de poder direcionada às margens da população global É precisamente por meio do esforço de chamar a atenção à noção de colonialidade e sua cristalização na política internacional que se pode não somente perceber a sua operacionalização e ver que a mesma continua viva e operante na realidade internacional como também se buscar superar esta condição ainda estruturante da política internacional REFERÊNCIAS ABERNETHY D B The Dynamics of Global Dominance New Haven and London Yale University Press 2000 AGATHANGELOU A M KILLIAN K D ed Time Temporality and Violence in International Relations DeFatalizing the Present Forging Radical Alternatives London Routledge 2016 ANGHIE A Francisco de Vitoria and the Colonial Origins of International Law Social Legal Studies S l v 5 n 3 p 321336 1996 ANGHIE A Imperialism Sovereignty and the Making of International Law Cambridge Cambridge University Press 2004 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 149 14012021 1707 Ramon 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perguntas e respostas quando foi colocada diante de um questionamento que pode ria ser recolocado aqui mais ou menos nestes termos A resposta dada por Spivak a tal questionamento me marcaria profundamente ecoando dentro de mim desde então o migrante ou a migrante irregular ela respondera Este trabalho é o primeiro ensaio de uma resposta a esta resposta de Spivak Aqui eu retorno àquele evento ali naquele outro espaçotempo retornando com ele a outro momento e lugar a outro encontro No final de 2004 alguns meses desempregado após ter voltado de Londres onde concluíra um mestrado em direitos humanos eu me vi diante de um Padre e de uma Coordenadora de ONG numa entrevista de emprego para o cargo de advogado de proteção Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 157 14012021 1707 Roberto Vilchez Yamato 158 do projeto de acolhida ao refugiado que a Caritas Arquiodicesana de São Paulo Casp desenvolvia em parceria com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados Acnur Do lado de Cezira a então Coordenadora do Centro de Acolhida para Refugiados da Caritas Pe Ubaldo o então Diretor da Casp tendo acabado de me dar a feliz notícia de que estava contratado acrescentou menino você verá trabalhar com migrantes e refugiados mu dará a sua vida ou algo do tipo E de fato mudou Lembrome do caso de um refugiado que decidiu retornar ao seu país de origem perdendo assim a sua condição de refugiado no Brasil para poder buscar auxilio da curandeira de sua vila na tentativa de afastar os maus espíritos que o perseguiam Tratavase de um caso de esquizofrenia à luz do conhecimento ocidental pósfreudiano que suscitava tratamento com me dicamentos que não raramente tinham efeitos colaterais efeitos estes que pareciame faziam aquele refugiado colocar em questão o próprio status de cura Um diferente entendimento de cura Um diferente entendimento de doença Uma diferente concepção da relação entre conhecimento crença e vida Via ali rastros de alternativas às prevalecentes concepções modernas ocidentais de medicina psiquiatria e psicologia de vida e saúde em geral Lembrome do caso de um solicitante de refúgio que angustiado apresen touse já me perguntando como poderia fazer para encontrar sua filha mais nova De acordo com ele na sua volta do trabalho para casa havia encontra do um vizinho que fugindo dos ataques que sua vizinhança sofrera disse ter testemunhado o assassinato de sua mulher e suas filhas mais velhas ele não sabia dizer se a filha mais nova daquele solicitante de refúgio no Brasil havia sobrevivido ou se ela havia sido morta tal como a mãe e as irmãs A única preocupação real daquele solicitante parecia ser a de saber sobre e en contrar a sua menina mais nova E hoje pai eu me pergunto quem não faria o mesmo Muito honestamente não posso sequer imaginar o que significa ser obrigado a migrar para um outro continente sabendo da morte de esposa e filhas mais velhas e sem saber da vida ou morte e do paradeiro da filha mais nova Muita dor e coragem talvez O que posso dizer é que vi muito amor naquele homem naquele pai Hoje vejo e entendo ainda mais Lembrome também da iniciativa da então Comissão Municipal de Direitos Humanos da Cidade de São Paulo de estabelecer um Grupo de Estudos e Trabalhos sobre Direitos Humanos de Migrantes e Refugiados Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 158 14012021 1707 Pode a migrante falar Um exercício de rearranjar desejos escavar o eu 159 Como representante da Casp participei deste Grupo de Estudos e Trabalhos ao longo do ano de 2006 período em que organizamos um ciclo público de encontros eventos e palestras sobre o tema de migrações forçadas direitos humanos e a proteção da pessoa humana no Brasil Foi neste contexto du rante esse ano que eu realmente comecei a tatear o problema da diferença entre solicitantes de refúgio refugiados migrantes e mais especificamente migrantes indocumentados ou irregulares Quem pode estar ficar e viver normal e regularmente no Brasil Bem normal e regularmente podem estar ficar e viver no Brasil cidadãos brasileiros e os estrangeiros tal como estabelecido pela Constituição de 1988 e pela assim chamada Lei dos Estrangeiros criada no contexto da ditadura Quem mais Bem desde a promulgação da Lei 9474 em 1997 também os solicitantes de refúgio e refugiados Mas e aqueles indivíduos cuja solicitação de refúgio é negada definitivamente Foi este tipo de questionamento que me levou a problematizar as limita ções e de limitações que encontrava depois de um tempo confronta va e por inúmeras vezes reproduzia na prática Quem e como se decidia ou poderseia decidir a diferença entre de um lado solicitantes de refúgio e refugiados e de outro lado migrantes indocumentados ou irregulares E qual a relação de todos eles solicitantes de refúgio refugiados e migrantes irregulares com a condição ou mesmo natureza de ser humano E qual a relação destas questões com a arquitetura políticonormativa do sistema in ternacional Foi este tipo de questionamento que me fez querer voltar à uni versidade e fazer o meu doutorado em Relações Internacionais É a este tipo de questionamento a estas lembranças e questões que eu quero me voltar e repensar à luz daquela resposta de Spivak Nesse sentido inspirome nos comentários de Spivak em seu Pode o Subalterno Falar acerca de alguns aspectos do trabalho de Derrida que guardam uma utilidade a longo prazo para aqueles de fora do Primeiro Mundo SPIVAK 2012 p 101 Aqui seguindo sua leitura de que para a desconstrução o etnocentrismo é o problema de todos os esforços logocên tricos SPIVAK 2012 p 107 e assim de que a crítica ao imperialismo é a desconstrução como tal1 SPIVAK 2012 p 85 eu adoto uma postura que 1 nota de rodapé 54 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 159 14012021 1707 Roberto Vilchez Yamato 160 busca ao mesmo tempo ecoar e responder ao apelo ou chamado para tornar delirante aquela voz interior que é a voz do outro em nós DERRIDA apud SPIVAK 2012 p 1082 DIANTE DE ALAN KURDI Mas por onde quando e como começar Talvez lembrando a antiga pia da recontada por R B J Walker nas primeiras linhas de seu InsideOutside WALKER 1993 p ix cuja moral seria algo como tome cuidado com o seu ponto de partida Talvez lembrando a afirmação de Jacques Derrida 1997 p 162 de que devemos começar onde quer que estejamos Mas se tal como ele mesmo afirmou ali em seu Da Gramatologia não há nada fora do texto DERRIDA 1997 p 158 onde se localiza o ponto espaçotemporal que so mos ou estamos o qual comumente tomamos como dado ao imaginarmos começar ou ter começado Difícil saber onde estamos se não há nada fora do contexto se a presença do contexto sempre nos escapa se nossos pontos de partida são inseguros e se na origem já sempre há prótese DERRIDA 1998 Mas então como começar Minha intuição é a de que a sugestão de Derrida é a de que comecemos onde quer que julguemos estar Noutras palavras há julgamento decisão e responsabilidade no princípio de começar No começo do começo há aquela louca e enlouquecedora experiência que Derrida chamou em Força de Lei de a experiência da aporia DERRIDA 2002 p 244 Aporia sendo um não caminho uma nãopassagem DERRIDA 2002 p 244 suscita um para doxo ou contradição quando imaginada à luz dos modernos pressupostos lógicoracionalistas como algo que se pode experimentar ou experienciar como algo pelo qual se pode passar Afinal logicamente como passar por uma não passagem No entanto para o pensamento desconstrucionista de Derrida passar pela experiência da aporia significa passar pela experiência do impossí vel DERRIDA 2002 p 244 E de acordo com ele sem tal experiência da 2 Spivak cita aqui o artigo Of an Apocalyptic Tone Recently Adopted in Philosophy de Derrida originalmente publicado em Semia e posteriormente publicado em 1984 em Oxford Literary Review Oxford v 6 n 2 p 337 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 160 14012021 1707 Pode a migrante falar Um exercício de rearranjar desejos escavar o eu 161 aporia e do impossível uma decisão não seria propriamente uma decisão mas um mero cálculo a mecânica execução de um programa lógico Decidir requer calcular o incalculável DERRIDA 2002 p 244 Decidir demanda não apenas certa responsabilidade mas clama por uma responsabilidade ainda maior DERRIDA 2002 p 248 quiçá infinita uma responsabili dade intimamente associada à questão éticopolíticojurídica da justiça DERRIDA 2002 p 247 Naquele mesmo texto Derrida afirma que a desconstrução toma lugar no intervalo que separa a indesconstrutibilidade da justiça da desconstruti bilidade do direito DERRIDA 2002 p 243 De acordo com ele esta é a consequência de duas outras proposições De um lado ele propõe que o di reito é essencialmente desconstruível DERRIDA 2002 p 242 ou seja que o direito é construível e portanto desconstruível o que também significa dizer que o direito torna possível a desconstrução DERRIDA 2002 p 243 De outro lado a justiça em si mesma se tal coisa existe fora ou além do di reito não é desconstruível e tal indesconstrutibilidade da justiça também torna possível a desconstrução DERRIDA 2002 p 243 Daí portanto a conclusão aporética de que a desconstrução é possível como uma experiên cia do impossível DERRIDA 2002 p 243 Desconstrução é justiça 2002 p 243 ele conclui Mas se a justiça é a possibilidade de desconstrução da desconstrução em geral o direito ou a estrutura do direito a fundação ou autoautorização do direito ou da lei é a condição de possibilidade do exercício da desconstru ção DERRIDA 2002 p 243 grifo nosso Neste trabalho eu proponho um exercício da desconstrução posicionandoo de uma maneira propositada Tal como o homem do campo diante da Lei com L maiúsculo na estória kafkiana relida por Derrida em Diante da Lei eu julgo importante e quero po sicionar este exercício diante do que aqui chamaria de a Lei de Alan Kurdi uma Lei com L maiúsculo que deve ser lida como aquela indesconstruível justiça e não como o direito ou uma lei ambos escritos em letras minúscu las e desconstruíveis Quando vi a foto daquele lindo menino sírio de apenas 3 aninhos iner te de barriga para baixo como se dormindo nas areias daquela praia turca e então quase que no mesmo instante tomei conta de que ele estava morto sem vida eu simplesmente não aguentei e comecei a chorar honestamente Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 161 14012021 1707 Roberto Vilchez Yamato 162 não me lembro se o choro veio antes ou depois da revolta e indignação antes ou depois de pensar em minha filha recémnascida antes ou depois de tentar me colocar no lugar do pai daquele menino Confesso que tal tentativa não durou nem ao menos uma pequena fração de segundos aterrorizado com o mero pensamento de que qualquer coisa remotamente próxima àquilo pu desse acontecer com minha filha fui correndo ver minha Luisa Ela dormia Ao ficar observando o ninar de minha pequena senti que algo inominável havia me tocado profundamente algo me havia tocado o coração a alma e por horas não consegui deixar de pensar naquela fotografia naquele pai naquele menino E é algo desta ordem de grandeza tão inominável e indes construível que quero chamar aqui de a Lei de Alan Kurdi uma Lei cujo L maiúsculo denuncia sua proximidade ou mesmo sinonímia com aquela justiça desconstrucionista Mas quantos Alan Kurdi há no mundo Aqui eu gostaria de sugerir que diante desta Lei de Alan Kurdi que é também a Lei que emana de todo mi grante forçado a migrar e exposto a tamanha violência é possível vislumbrar aquele intervalo entre a indesconstrutibilidade da justiça e a desconstrutibi lidade do direito E é em relação a esse intervalo que quero posicionar esta minha intervenção propositada Tratase aqui de uma resposta a infinita res ponsabilidade perante os e as Alan Kurdi deste mundo perante a memória daqueles solicitantes de refúgio refugiados e migrantes indocumentados que mudaram a minha vida e me fizeram migrar até aqui hoje Posicionarse para além da responsabilidade intrínseca à tomada de de cisão diante da indecidibilidade é algo bastante caro a Derrida Tal como ele sugere em seu Posições posicionarse é diferente de tomar partido de levantar e naturalizar uma bandeira noutras palavras tratase de uma táti ca na minha leitura pirata como aquele da experiência da liberdade de JeanLuc Nancy e não partisan como em Carl Schmitt que envolve um gesto duplo a inversão e o deslocamento das oposições binárias da tradição ocidental metafísica DERRIDA 1981 p 4143 Neste trabalho pretendo me posicionar em relação ao que identificaria como uma certa oposição binária entre a cidadã e a migrante irregular Mas ao fazêlo também quero chamar atenção à oposição binária entre o que chamaria aqui de ser humana politi camente significada e ser humana politicamente insignificada Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 162 14012021 1707 Pode a migrante falar Um exercício de rearranjar desejos escavar o eu 163 Luisa e a Significação Política da Vida Poucos dias depois de minha filha nascer no fim de uma longa madrugada torcendo para que minha pequena conseguisse pegar o peito da mãe da ma neira correta e assim pudéssemos ter alta com a certeza de que ela iniciara bem o aleitamento materno recebi um telefonema no quarto que solicitava que comparecesse ao subsolo da maternidade e me dirigisse ao Cartório Minha mulher dormia e por razões óbvias não a quis acordar Troquei de roupa peguei o elevador e desci até o Cartório Lá chegando fui pergunta do se gostaria de registrar minha filha recémnascida ali naquele momento Disse que sim Então fui perguntado acerca do nome completo dela além de outros detalhes e informações Com uma quase obsessão para não errar nenhuma letrinha ou ordem de sobrenomes sobretudo na ausência da ma mãe que dormia eu respondia a todas as perguntas quando na medida em que isso acontecia deime conta de que a vida da minha filha estava sendo significada politicamente ela era agora cidadã brasileira Eu concordo um pensamento um pouco acadêmico demais para a ocasião Mas enfim foi mais forte do que eu E foi ainda mais potencializado quando recebi junto com sua Certidão de Nascimento a sua Declaração de Nascido Vivo Luisa agora era declarada e certificadamente uma recémnascida viva e brasileira Aqui o que quero destacar é precisamente este ato de significação polí tica da vida No intervalo entre o seu nascimento e o seu registro civil deu se um determinado processo políticojurídicoburocrático que atribuíra um determinado significado à vida de minha filha de 44 centímetros e 2 quilos e 875 gramas Antes uma recémnascida viva uma vida Depois uma recém nascida viva e nacional brasileira com filiação data e local de nascimento registrados Nascia mais um serzinho humano e nacional Mas tal como Rob Walker sempre me faz relembrar e repensar quem vem primeiro o ser hu mano ou o ser nacional A maneira como acabei de descrever a minha experiência da significação política da vida de minha filha talvez possa levar ou ter levado à conclusão de que primeiro com a vida nasce o ser humano para que só então com o tal registro civil nasça o ser nacional Mas lembrandome mais uma vez daquela advertência de Walker tome cuidado com o seu ponto de partida deixeme aqui recolocar a dupla questão do nascimento e relação do ser humano e do Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 163 14012021 1707 Roberto Vilchez Yamato 164 ser nacional a partir da releitura de uma passagem do filme Coisas Belas e Sujas de Stephen Frears 2003 Numa cena deste filme de Frears o migrante irregular nigeriano Okwe Chiwetel Ejiofor sem previamente agendar vai ao Baltic hotel em Londres onde trabalha como recepcionista num dos seus incessantes turnos de tra balho para solicitar a seu chefe o aparentemente cidadão europeu Sr Juan Sergi López que pague o valor correspondente aos últimos dias de trabalho como camareira da solicitante de refúgio turca Senay Audrey Tautou com quem Okwe secretamente divide uma quitinete e todo um submundo e com quem ele irá desenvolver uma estória de solidariedade cumplicidade e amor Naquele dia Senay havia deixado de trabalhar no hotel e começara a traba lhar num sweatshop para supostamente ganhar mais dinheiro Okwe estava ali em nome dela para solicitar o restante de sua remuneração Ao chegar Okwe não encontrou ali o dono da sala mas dois senhores cla ramente migrantes que não falavam nem inglês nem francês e que pareciam estar à espera do Sr Juan Um deles passava muito mal aparentando estar se riamente doente e sofrendo profundamente Poucos momentos depois chega o Sr Juan quem surpreso questiona o que Okwe fazia ali Diante da respos ta de Okwe ele imediatamente adentra sua sala para pegar o valor devido a Senay Neste momento então aquele migrante doente começa a ter uma crise bem do lado de Okwe que prontamente age e começa a ajudar tentando diag nosticar a causa daquele sofrimento ao fazêlo ele revela que é um médico Naquele instante então como médico ele se autoriza e é autorizado a observar a causa daquela dor tamanha uma enorme ferida ainda aber ta infeccionada e suficientemente séria para levar aquele homem à morte Extremamente preocupado Okwe é enfático quanto a urgência de levar aque le homem ao hospital mais próximo e o mais rapidamente Ele está certo de que aquele homem morrerá caso não seja operado corretamente e medicado devidamente Mirando o Sr Juan ele é taxativo quanto a urgência de levar o doente ao hospital No entanto Okwe é surpreendido os dois migrantes inclusive o próprio doente veementemente se negam a ir para o hospital Diante disso Okwe se vê obrigado a resolver o problema pessoalmente Com o acesso fácil ao hospital em que seu amigo refugiado Guo Yi Benedict Wong trabalha Okwe consegue se fingir de faxineiro e adentrar a sala em que os medicamentos são estocados Ali ele consegue obter o mínimo necessário Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 164 14012021 1707 Pode a migrante falar Um exercício de rearranjar desejos escavar o eu 165 para garantir a operação e o tratamento daquele doente Okwe vai então à casa do migrante onde conversando com os familiares após a operação descobre não apenas que todos ali eram somalis mas que aquela ferida era fruto de uma operação de remoção de rim que teria sido feita no próprio Baltic hotel Em troca do rim aquele migrante havia recebido em pagamento um passa porte inglês perfeitamente falsificado Okwe descobria ali que o Sr Juan fa zia parte de um esquema de tráfico de órgãos baseado na vulnerabilidade daqueles migrantes irregulares E este é o ponto que eu gostaria de destacar aqui aqueles migrantes veementemente se negaram a ir para o hospital por que eles eram migrantes irregulares e aquela ferida era precisamente o rastro de tal irregularidade Mas e se ao invés de tal ferida ou da própria operação malsucedida de que é efeito estivéssemos falando de uma situação de parto do nascimen to do filho ou da filha de um casal de migrantes irregulares Será que estes também veementemente se negariam a ir ao hospital Qual seria o cálculo o raciocínio feito por eles Qual seria sua decisão A mesma daqueles migran tes irregulares somalis ou seja a de não ir ao hospital Independentemente das respostas o que eu quero pontuar aqui retornando ao que comentava anteriormente acerca da significação política da vida de minha filha é que tais questionamentos jamais passaram ou passariam pela minha cabeça du rante todo o período de gestação da Luisa Claro um professor universitário que pode ter plano de saúde e que mora e trabalha numa das regiões mais nobres da cidade por definição já tem uma condição econômicosocial privilegiada o suficiente para nem sequer imagi nar a impossibilidade de ir ao hospital para fazer uma intervenção cirúrgica de vida ou morte ou para como no nosso caso fazer o parto cesariano da primeira filha Certamente não somos iguais e não nascemos iguais E não é preciso evocar aqui as diferentes tradições críticas marxistas comunitaristas neogramscinianas feministas críticoraciais pósestruturalistas psicanalíti cas póscoloniais ou decoloniais à concepção liberal dos direitos humanos para pontuar que esta questão de diferenças e desigualdades é constitutiva do ser humano Bastamme aqui as palavras de Eduardo Viveiros de Castro em sentido geral a sociedade é uma condição universal da vida humana VIVEIROS DE CASTRO 2011 p 297 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 165 14012021 1707 Roberto Vilchez Yamato 166 Mas aqui eu quero sugerir e comentar uma forma específica de como esta condição social da vida humana é ela própria condicionada E para isso deixeme recolocar a problemática E se eu e minha mulher durante a gestão de Luisa e na hora do parto estivéssemos vivendo a mesma situação de irre gularidade daqueles migrantes somalis em Londres Nós decidiríamos ir ao hospital ou não Iríamos mesmo se achássemos que isso poderia significar sermos identificados como migrantes irregulares ou até mesmo ilegais e então sermos detidos ou mesmo presos e então expulsos deportados re tornados precisamente para o lugar de onde migramos e para o qual não queremos a todo custo voltar Não Luisa não nasceu primeiro ser humana e depois brasileira A condi ção de brasileiros de serem cidadãos do EstadoNação brasileiro de seus pais já colocara Luisa num lugar bastante privilegiado em relação a uma eventual recémnascida cujos pais aqui no Brasil fossem migrantes irregulares Ela nunca correu o risco de nascer num quarto escuro de um sweatshop no cen tro de São Paulo por exemplo E isso pelo menos em parte porque a condi ção social de sua vida humana já havia sido a priori condicionada por uma trama de significação política que relacionalmente diferencia hierarquiza e organiza por exemplo as condições de ser humano cidadão nacional estran geiro exilado asilado político refugiado solicitante de refúgio deslocado interno migrante regular e migrante irregular Pelo solo pelo sangue pela nacionali dade de seus pais ela já nascia condicionada significada Em suma se sua vida humana fora antes condicionada socialmente ela fora também antes condicionada internacionalmente A condição internacional da condição social da vida humana Em grande medida o que está em jogo aqui é aquela relação e diferenciação entre zoe e bios entre o simples fato de viver e a forma ou maneira de viver própria a um indivíduo ou grupo AGAMBEN 1998 p 1 relação e diferença essas que marcam uma certa concepção da política que tal como relida por Giorgio Agamben associa nomes como o de Aristóteles Benjamin Schmitt Arendt e Foucault AGAMBEN 1998 No entanto apesar da releitura agam beniana da biopolítica ser importante e poder nos servir aqui para denunciar mais uma vez a violência soberana que constitui a vida nua do homo sacer Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 166 14012021 1707 Pode a migrante falar Um exercício de rearranjar desejos escavar o eu 167 expondoa à matabilidade e à insacrificabilidade AGAMBEN 1998 p 73 mi nha impressão é a de que ela não dá conta ou pelo menos não de maneira suficientemente direta e expressa do que aqui identificaria como a condição internacional da condição social da vida humana O ponto importante aqui é o de que sem considerar os limites bordas fronteiras PARKER VAUGHANWILLIAMS 2014 e fault lines LINDAHL 2013 do sistema internacional moderno WALKER 2006 2010 tornase difícil pensar criticamente a relação desta forma específica de significação política da vida e aquela construção violenta da vida que é matável e insa crificável Noutras palavras é difícil vislumbrar como a vida é politicamente significada e insignificada internacionalmente E tal como quero propor aqui a partir daquela resposta de Spivak para rastrear e começar a tatear o problema da migrante subalterna no mundo contemporâneo é fundamental confrontar e repensar esta condição internacional da significação política da vida Nesse sentido minha sugestão seria a de que primeiro é importante mar car a diferença entre o internacional e o mundo tal como Walker 2010 e Sergei Prozorov 2014 o fazem Parafraseando Dipesh Chakrabarty 2008 é preciso provincializar o internacional E para fazêlo pareceme crucial acompanhar Prozorov e não deixar de lembrar que o sistema internacional moderno não é idêntico ao Mundo com M maiúsculo pensado por ele como uma forma de universalismo vazio PROZOROV 2014 mas sim um mundo particular e com m minúsculo Na linguagem de Chakrabarty o internacional seria um mundo uma forma ou cultura de vida um lifeworld CHAKRABARTY 2008 p 72 Assim a sinonímia do internacional com o Mundo com M maiúsculo de Prozorov significaria a ocupação imperial daquele universalismo vazio o que noutras palavras implicaria a universalização intrinsicamente colonial de um lifeworld em detrimento de todas as outras incomensuráveis formas de vida E como Derrida sugere em seu Torres de Babel 2002 uma tal uni versalização implicaria como de fato implicou e continua implicando uma inominável violência colonial Nos termos de Boaventura de Souza Santos tal violência implicaria epistemocídio3 SOUSA SANTOS 2016 Afinal tal como Chakrabarty denuncia ela seria intrínseca a uma determinada política 3 Posição 2277 de 8187 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 167 14012021 1707 Roberto Vilchez Yamato 168 de tradução que não é capaz de dar conta das singularidades e heterotempo ralidades dos demais lifeworlds CHAKRABARTY 2008 p 7296 Consequentemente marcar a diferença entre o internacional e o mun do tal como no caso daquele intervalo entre a indesconstrutibilidade da justiça e a desconstrutibilidade do direito significa trazer à memória a vio lência colonial intrínseca à autofundação e autoautorização da sociedade internacional moderna e de seu direito internacional FITZPATRICK 2011 significa não deixar cair em esquecimento as práticas soberanas que autori zam e legitimam os limites discriminatórios ao mesmo tempo inclusivos e excludentes do sistema internacional WALKER 2010 Noutras palavras é importante lembrar que o internacional moderno tem foras constitutivos WALKER 2010 A sugestão que este trabalho faz numa resposta àquela resposta de Spivak é a de que a migrante subalterna nos leva a tais fronteiras ou fault lines LINDAHL 2013 Com ela podemos rastrear o espaçotempo daquele fora constitutivo do sistema internacional moderno capitalista e neoliberal De certo modo a migrante subalterna pode ser lida como a forasteira consti tutiva deste sistema ou forma de vida que é concomitantemente soberano imperial e excepcional WALKER 2006 Seguindo seus rastros podemos ta tear ou pelo menos começar a reconhecer um espaçotempo subterrâneo em que a insignificação política da vida é ao mesmo tempo gritante e silenciada Mas antes de tratar mais especificamente da migrante subalterna deixe me tecer alguns comentários acerca da significação e insignificação da vida a partir da breve análise de um caso de violência que aconteceu aqui no Brasil há alguns anos o caso Galdino Este é o caso do índio pataxó Galdino Jesus dos Santos que foi à Brasília no dia 19 de abril de 1997 para comemorar o Dia do Índio e participar de manifestações pelos direitos das populações in dígenas No dia seguinte quando dormia num dos bancos de um ponto de ônibus de um bairro nobre da Capital do Brasil Galdino foi vítima de um inacreditável ato de violência cinco jovens de classe média jogaram álcool sobre o seu corpo e em seguida atearam fogo Galdino morreu com 95 do seu corpo queimado Aqui eu quero destacar um ponto específico da resposta dada por um dos jovens quando perguntado sobre o crime Como fora amplamente divul gado à época um dos jovens teria comentado algo como nós não sabíamos Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 168 14012021 1707 Pode a migrante falar Um exercício de rearranjar desejos escavar o eu 169 que ele era um índio achávamos que era um mendigo De um lado quero chamar atenção aos significantes índio e mendigo ambos são palavras que fazem parte da língua portuguesa e podem ser encontrados num dicionário de português De outro lado quero chamar atenção tanto aos significados de tais significantes quanto à diferença que eles guardam entre si enquanto o índio parece ser reconhecido como alguém contra o qual tal ação não deveria ser ou ter sido acometida o mendigo parece ser reconhecido como alguém contra o qual uma tal ação poderia ter sido ou mesmo ser considerada razoá vel aceitável ou pelo menos imaginável Esta relação de diferença entre os significados de índio e mendigo neste contexto parece marcar diferentes concepções da condição de ser humano e da relação destas com a autorização e legitimação da violência enquanto o ser humano índio parece suscitar dúvida ou mesmo certeza quanto à proibição daquele tipo inacreditável de violência o ser humano mendigo parece autorizar que tamanha violência seja mais imaginável aceitável defensável Naquele comentário do jovem de classe média de Brasília podemos identificar os rastros de uma política da estética uma política de partilha da ordem da sensibili dade RANCIERE 2011 SHAPIRO 2013 2015 que identifica as diferentes concepções e condições de ser humano com diferentes espaçostempos e suas respectivas e diferentes relações com a autorização e legitimação da violência Assim se os significantes índio e mendigo nos apresentam à diferen ciação de humanos e humanos sim a diferenciação entre seres humanos e seres humanos os diferentes significados de tais significantes e claro suas consequências mortais nos sugerem que a diferenciação da qual todos eles significantes e significados são efeitos não é neutra isonômica ou inofen siva Como o caso do ser humano índio pataxó Galdino Jesus dos Santos nos sugere significante e significado legitimam a violência e matam ter sido identificado com o espaçotempo do mendigo não com o do índio e muito menos com o dos jovens de classe média de Brasília significou a insignifi cação política de Galdino a tal ponto que para aqueles jovens atear fogo em seu corpo pareceu imaginável aceitável razoável Como mendigo Galdino era uma vida matável e insacrificável O que quero destacar com este exemplo mesmo que de maneira bastan te superficial é esta dupla relação da trama da linguagem com a vida de um lado ela estrutura a diferenciação entre seres humanos e seres humanos e Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 169 14012021 1707 Roberto Vilchez Yamato 170 claro também entre estes e os seres inumanos e de outro lado na medi da em que constitui e é constituída por outras tramas sociais econômicas raciais culturais históricas de identidades e gêneros etc participa daquilo que anteriormente havia chamado de significação política da vida esta é sig nificada por meio no meio e no movimento dessas tramas contexturas textualidades Relendo aqueles termos de Viveiros de Castro poderseia sugerir que é essa textualidade contextura ou trama que constitui a condição social da vida humana Mas tal como sugeri há pouco o que quero enfocar e repensar aqui é a condição internacional da condição social da vida humana Noutras palavras quero enfocar e repensar alguns rastros da trama internacional que também constitui a textualidade ou contextura mais geral que articula os diferentes tempos e espaços dos mundos Mais especificamente minha sugestão aqui é a de que a trama internacional condiciona a condição social da vida humana relacionalmente diferenciando hierarquizando e organizando por exemplo as condições de ser humano cidadão nacional estrangeiro exilado asilado político refugiado solicitante de refúgio deslocado interno migrante re gular e migrante irregular Sem dúvida estes rastros da trama internacional que destaco aqui tam bém são entrelaçados por tramas de gênero classe cultura raça dentre outras ENLOE 2000 TICKNER 1996 DOTY 2009 SPIVAK 2012 No entanto tal como sugeri anteriormente posiciono este trabalho em relação ao dua lismo cidadãmigrante irregular chamando atenção também para a oposição binária entre a ser humana politicamente significada e a ser humana politi camente insignificada Daí portanto o privilégio dado àqueles significantes humano cidadão nacional estrangeiro exilado asilado político refugiado solicitante de refúgio deslocado interno migrante regular e migrante irregular que relacionam entrelaçando e entrelaçados à trama internacional a condição de ser humana a diferentes categorias e condições de ser e poder se mover E o que está em jogo aqui nos termos de Butler e Spivak é um certo mecanismo político de privação que funciona primeiro por meio da categorização daqueles que podem ou não podem exercer a li berdade BUTLER SPIVAK 2010 p 21 Nesses termos este estudo afastase de um entendimento essencialista de humanidade DOTY 2009 p 184 concebendo identidade como algo que Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 170 14012021 1707 Pode a migrante falar Um exercício de rearranjar desejos escavar o eu 171 nunca é como tal que nunca é ou está antes de ou imune a práticas polí ticas e sociais DOTY 2009 p 185 O ponto duplo aqui é precisamente o de que a identidade é uma construção política social cultural racial de gênero econômica internacional etc e que esta condição internacional é parte cons tituinte dessa trama mais ampla e complexa que condiciona a vida humana Lembrando daqueles exemplos dos migrantes somalis do filme Coisas Belas e Sujas de Alan Kurdi e de minha filha Luisa eu destacaria como as categorias e condições internacionais de ser cidadã ou migrante irregular significam e condicionam a vida humana em termos bastantes distintos Por um lado tal como Roxanne Lynn Doty nos lembra a condição de cidadania sempre conteve em si um elemento de exclusão na medida em que a noção de um sujeito incluído e que pertence à uma comunidade política um insider é inerente a tal categoria o que significa que esta pressupõe ou mesmo requer um outsider DOTY 2009 p 183 um foras teiro ou fora constitutivo WALKER 2010 Em jogo aqui está a constru ção de fronteiras e a discriminação de diferentes formas e em diferentes termos entre seres humanos incluídos e seres humanos excluídos Nesse sentido Doty destaca o ponto que queremos fazer quando afirma que existem muitas fronteiras no mundo que criam um Eu e um Outro um sujeito que pertence e um que não pertence um que pode ser chamado de cidadão e aquele cuja própria existência em dado lugar é considerada illegal DOTY 2009 p 183 O que venho sugerindo aqui é que a migrante irregular ou migrante subalterna é este outro este outro que não pertence que é considerado ilegal que é identificado com o fora constitutivo do sistema internacional moderno e assim nos apresenta a um mundo subterrâneo de seres huma nos que vivem entre nós mas que não gozam dos mesmos privilégios como cidadãos DOTY 2009 p 183 Assim deixeme seguir os rastros de alguns migrantes subalternos até tal mundo subterrâneo retornando ao filme Coisas Belas e Sujas A MIGRANTE SUBALTERNA E O NÃO PODER FALAR Estamos de volta ao Baltic hotel em Londres Okwe Chiwetel Ejiofor o mé dico recepcionista motorista de taxi e migrante irregular nigeriano desce Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 171 14012021 1707 Roberto Vilchez Yamato 172 apressado as escadas que o levam até o estacionamento no subsolo do hotel Ele vem acompanhado de Senay Audrey Tautou a agora excamareira do hotel exfuncionária explorada laboral e sexualmente de sweatshop e ainda solicitante de refúgio turca e de Juliette Sophie Okonedo a prostituta que informal mas regularmente trabalha com hóspedes do hotel durante as ma drugadas Okwe carrega uma caixa de isopor branca nas mãos Dentro dela há um órgão um rim devidamente protegido e guardado sobre uma cama de gelo Com a ajuda de Senay e Juliette suas agora enfermeiras assistentes Okwe havia acabado de extrair aquele órgão e estava correndo apressado para entregálo ao comprador que o encontraria no estacionamento no sub solo do hotel Lá chegando Okwe Senay e Juliette deparamse com um tipo muito bem vestido que saindo de um carro de luxo vem em direção a eles Com o an dar confiante aparentando ser um cidadão europeu bastante privilegiado e certamente não aparentando ser um migrante irregular solicitante de refúgio ou qualquer outra categoria de não cidadão vulnerável ou vulnerabilizado o comprador do órgão se aproxima de Okwe Senay e Juliette e questiona Onde está o Sr Juan Provavelmente acostumado a lidar diretamente com o chefe daquele esquema de tráfico de órgãos ele esperava tratar pessoalmente com o Sr Juan Sergi López o aparentemente cidadão europeu gerente chefe do hotel e cabeça daquele negócio ilegal Mas quem estava ali naquele momento subterrâneo era o migrante irre gular motorista de táxi a solicitante de refúgio excamareira e a prostituta E o Sr Juan estava bêbado ou pelo menos esta é a resposta dada por Okwe ao questionamento feito Sem dizer mais nada Okwe entrega a caixa de isopor branca para o comprador que verificando a compra retorna a seu carro de luxo para guardar o rim e buscar um envelope com o dinheiro do pagamen to Ele então retorna e ao entregar o envelope a Okwe questiona Por que eu nunca os vi antes A resposta de Okwe ao comprador de órgão é direta Porque somos as pessoas que você não vê Somos nós que dirigimos seus táxis limpamos seus quartos e chupamos seus paus Aqui somos reapresentados ao mundo subterrâneo de Londres e do sis tema internacional moderno capitalista e neoliberal e àqueles seres hu manos que não são vistos enxergados ou reconhecidos que o habitam Nós já havíamos sido apresentados aos migrantes irregulares somalis e a seu mundo Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 172 14012021 1707 Pode a migrante falar Um exercício de rearranjar desejos escavar o eu 173 subterrâneo sem acesso a hospital Nós também já havíamos sido reapre sentados ao índio mendigo Galdino e ao mundo subterrâneo de Brasília em que ele fora queimado vivo E com eles eu tenho tentado sugerir aqui temos acesso ao mundo subterrâneo de Doty 2009 e ao fora constitutivo do sistema internacional moderno de Walker 2010 ou pelo menos somos provocados ou mesmo convocados por eles a pensar criticamente sobre tais espaçostempos de insignificação política da vida humana As categorias e condições de cidadão e migrantes irregular são parte constitutiva da trama internacional que também condiciona e significa a vida humana Enquanto a primeira normalmente está associada à inclusão e ao pertencimento servindo de fundação para a arquitetura de um sistema de estadosnações de indivíduoscidadãos a segunda é arquitetonicamente associada à exclusão ao não pertencimento e à exceção em relação à regra internacional que prescreve que a vida política moderna deve se dar dentro do estadonação WALKER 1993 ASHLEY 1995 Neste espaçotempo excepcional a migrante irregular ou tal como sugeri aqui a migrante subalterna não é vista não é enxergada ou reco nhecida e não pode falar O migrante irregular subalterno não pode falar Não há valor algum atribuído à mulher migrante subalterna como um item respeitoso nas listas de prioridades globais SPIVAK 2012 p 165 E é assim inspirado naquela resposta dada por Spivak acerca da figura do subalterno no mundo contemporâneo que eu retornaria ao contexto de onde retirei a epígrafe O subalterno não pode falar deste trabalho agora inscrevendo ali a categoria e condição de migrante irregular ou migrante subalterna Aqui então o não poder falar poderia ser lido como o ser identifica do com ou exposto a um espaçotempo que implicaria o não poder ir ao hospital daqueles migrantes irregulares somalis o ser aqueles que você não vê de Okwe Senay e Juliette o morrer afogado buscando refúgio de Alan Kurdi ou mesmo o poder ser queimado vivo como o índio men digo vítima daqueles jovens de classe média de Brasília Noutras palavras este não poder falar seria efeito da insignificação política da vida humana que implica a exposição desta à matabilidade e à insacrificabilidade e que é condicionada também pela trama internacional moderna capitalista e neoliberal Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 173 14012021 1707 Roberto Vilchez Yamato 174 Rearranjar desejos escavar o eu e tornar delirante o outro em nós Em seu An Aesthetic Education in the Era of Globalization Spivak afirma que o mundo precisa de uma mudança epistemológica que rearranje desejos SPIVAK 2013 p 2 Sua resposta a tal necessidade é uma educação estética SPIVAK 2013 Inspirado por esta sugestão bem como pelos trabalhos de Michael J Shapiro sobre método transdisciplinar SHAPIRO 2013 eu bus quei responder àquela resposta de Spivak acerca da figura do subalterno no mundo contemporâneo adotando uma postura quase epistemometodológica que aceite aquele convite de Derrida que também ecoa na autora de Pode o Subalterno Falar de tornar delirante aquela voz interior que é a voz do outro em nós DERRIDA 1982 apud SPIVAK 2012 p 108 Em sua releitura de Derrida Spivak denuncia o que chamou de violência epistêmica e com esta o perigo do intelectual do Primeiro Mundo que se mascara como um não representante ausente que deixa os oprimidos fala rem por si mesmos SPIVAK 2012 p 102 É diante de tal violência e de tal perigo que ela então comenta a importância de longo prazo de Derrida para o pensamento póscolonial Derrida não invoca que se deixe os outros falar por si mesmos mas ao invés faz um apelo ou chamado ao quaseoutro toutautre em oposição a um outro autoconsolidado para tornar delirante aquela voz interior que é a voz do outro em nós SPIVAK 2012 p 1084 Ela explica que a questão envolvida aqui é como impedir que o Sujeito et nocêntrico estabeleça a si mesmo ao definir seletivamente um Outro SPIVAK 2012 p 102 tornar delirante o outro em nós também significa impedir que o nosso ser etnocêntrico estabeleça a si próprio como um Daí portanto a im portância de tornar delirante a voz daqueles migrantes irregulares somalis daquele índio mendigo assassinado em Brasília daquele migrante irregular nigeriano em Londres daquele menino Alan Kurdi morto na praia turca e de minha própria filha sendo significada politicamente alguns pouquíssimos dias após seu nascimento 4 Spivak cita aqui o artigo Of an Apocalyptic Tone Recently Adopted in Philosophy de Derrida Ver nota 1 supra Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 174 14012021 1707 Pode a migrante falar Um exercício de rearranjar desejos escavar o eu 175 Daí também o tom mais autobiográfico INAYATULLAH 2011 do texto numa tentativa de fazer tremer o eu do autor por meio de encontros e reencontros que provoquem pensamento Por meio desses encontros e reen contros eu busquei fazer delirar todos aqueles que são apenas alguns dos outros que ecoam dentro de mim e dos meus mundos não apenas cons tituindome mas também não me deixando esquecer de que nunca fui ou sou um E neste exercício de escavação do meu eu busquei fazer ecoar as palavras de Naeem Inayatullah 2011 p 8 Escave o eu e o que nós encontra mos Não uma indulgência ontologizada e essencializada mas o dinamismo diferenciado de mundos inteiros Ao mesmo tempo busquei adotar uma postura quase epistemome todológica transdisciplinar que ecoasse também os ensinamentos de Mike Shapiro 2013 e 2015 Assim tentando fazer delirar a voz de Shapiro em meu texto busquei reler seus ensinamentos sobre a importância daquilo que chamou com Cesare Casarino de philopoesis ou filopoética a in terferência refratária e descontínua entre filosofia e literatura SHAPIRO 2013 p 26 Ao fazêlo também busquei imprimir aqui a inspiração provo cada por sua releitura da política cinemática e de sua importância para o pensamento crítico e póscolonial Nesse sentido Shapiro nos chama atenção para o poder do cinema de provocar o pensamento certos cortes por exemplo têm o efeito de provocar uma multiplicidade temporal crítica que desafia ambos os modelos huma nista e sagrado de tempo unitário SHAPIRO 2013 p 25 Em jogo está a política da estética ou seja a repartilha do sensível SHAPIRO 2013 p 27 por meio de intervenções ou performances estéticas ou filopoéticas Aqui inspirandome no ensinamento de que os sujeitos estéticos são aqueles quem por meio de gêneros artísticos articulam e mobilizam o pensamento SHAPIRO 2013 p 11 busquei acompanhar os sujeitos estéticos do filme dirigido por Stephen Frears 2003 com o intuito de provocar tal repartilha do sensível E as referências a Alan Kurdi ao ín dio Galdino e a minha filha Luisa igualmente tiveram e têm este mesmo intuito aqui neste exercício de rearranjar desejos escavar o eu e tornar delirante o outro em nós Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 175 14012021 1707 Roberto Vilchez Yamato 176 REFERÊNCIAS AGAMBEN G Homo Sacer Sovereign Power and Bare Life Stanford Stanford University Press 1998 ASHLEY R K The Powers of Anarchy Theory Sovereignty and the Domestication of Global Life In DERIAN J D ed International Theory Critical Investigations London Palgrave 1995 p 94128 BUTLER J SPIVAK G C Who Sings the NationState Language politics belonging London New York and Calcutta Seagull Books 2010 CHAKRABARTY D Provincializing Europe Postcolonial Thought and Historical Difference Princeton and Oxford Princeton University Press 2008 DERRIDA J Positions Chicago University of Chicago Press 1981 DERRIDA J Acts of Literature New York Routledge 1992 DERRIDA J Of Grammatology Baltimore Johns Hopkins University Press 1997 DERRIDA J Monolingualism of the Other or The Prosthesis of Origin Stanford Stanford University Press 1998 DERRIDA J Acts of Religion New 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teóricos e preocupações metodológicas que seriam de seu interesse e preocupação específicos O poder internacional arquitetado em um sistema de anarquia e sobrevivência a rivalidade cúmplice entre realistas e liberais assim como a fixação de uma linha imaginária entre a política interna e ex terna são elementos que constituem a justificativa da identidade e vocação disciplinares das RI No mito de origem de seu surgimento os estudantes são levados a crer que a área surgiu de forma quase missionária e voluntarista buscando exclusivamente a paz das nações no contexto após a Primeira Guerra Mundial Ainda a hegemonia epistêmica do positivismo na primeira metade do século XX no âmbito das Ciências Humanas e Sociais em geral procurou 1 Este capítulo foi escrito no início do ano de 2016 Agradeço aos colegas da rede Coloniali dades e Política Internacional pelos momentos de convívio diálogo e trocas responsáveis por constante inspiração e estímulo para essa discussão no Brasil Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 179 14012021 1707 Luciana Maria de Aragão Ballestrin 180 constituir a disciplina das RI em termos reais ou ideais afinandoa com o dis curso científico pretensamente imbuído de objetividade e da neutralidade Sabese porém que a história da institucionalização do conhecimento científico ocidental apartado em um campo próprio de racionalidade privi legiada com disciplinas e subdisciplinas departamentos e institutos estru turam a dinâmica global da geopolítica do conhecimento e da dependência acadêmica Particularmente nas Humanidades a vontade de saber sempre envolve uma vontade de poder definitivo diagnóstico foucaultiano e quan do se trata de saber a respeito do Outro essa mesma vontade esteve em alguns casos a serviço direto ou indireto da empresa colonial SAID 2007 CONNELL 2007 Ainda a própria ciência foi capaz de estabelecer relações coloniais e imperiais próprias no interior do seu desenvolvimento ainda que associadas a processos correlatos maiores colonialismo intelectual imperia lismo acadêmico e colonialidade do saber LANDER 2000 ALATAS 2003 O entendimento de que nenhuma construção de discursos e práticas cien tíficas é isenta de ideologias interesses políticos eou econômicos conflitos e disputas por poder não escapa às RI Mesmo séculos antes de sua transfor mação em disciplina o conhecimento produzido sobre relações internacio nais é particularmente associado à ação política concreta dos governos e à tradição filosófica da modernidade europeia Assim as RI compartilham com a Ciência Política o interesse pelo poder pela política e pelo Estado diferen ciando seu olhar sobre o comportamento estatal para fora de suas próprias fronteiras territoriais É justamente por essa aproximação que a história da institucionalização de ambas disciplinas é entrelaçada como no caso dos Estados Unidos Alemanha e em alguma medida do Brasil HERZ 2002 e que a prática a teoria e a pesquisa em RI são necessariamente epistemo logicamente comprometidas Nos últimos anos a expansão profissionalização e autonomia da RI ocorridas a partir da segunda metade do século XX projetaramse como um relevante objeto de investigação em si mesmas Ainda que esteja cada vez mais presente em diversos países constituindo diferentes trajetórias de de senvolvimento institucional a hegemonia anglófona na área a torna pouco representativa em termos globais TICKNER CEPEDA BERNAL 2013 A abertura disciplinar ocorrida nos anos 1980 para os debates chamados póspositivistas propiciou contudo as condições atuais para um profundo Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 180 14012021 1707 Para uma abordagem Feminista e Póscolonial das Relações Internacionais no Brasil 181 questionamento do provincianismo da RI em um contexto cada vez mais assimetricamente globalizado Afinal não parece razoável que justamente a disciplina que reivindica um caráter internacional distintivo tenha sua pro dução divulgação e literatura científicasacadêmicas concentradas e reveren ciadas em pouquíssimos países universidades e associações profissionais Nesse contexto a estruturação das RI no Brasil ganhou crescente atenção de pesquisadores e profissionais da área desde os anos 1990 Um acúmulo significativo de artigos pesquisas e trabalhos nacionais oferece um panora ma histórico e institucional bastante rico em termos quantitativos e qualita tivos No país a década de 1970 simbolizou o início da institucionalização da formação acadêmica da área com seu primeiro curso de graduação na Universidade de Brasília UnB sendo que somente a partir dos anos 1990 e principalmente dos anos 2000 houve uma proliferação de cursos de RI com uma adesão crescente das universidades públicas novas e semiperiféricas Encontramse em funcionamento no Brasil aproximadamente 143 cursos de RI entre instituições públicas e privadas registradas MEC 2016 O fato de a Minuta das Diretrizes Curriculares da Associação Brasileira de Relações Internacionais recomendarem o ensino que busque superar o eurocentris mo da historiografia tradicional ABRI 2016 p 3 é expressivo de uma vi são posicionada importante ainda que seja notável a realidade de um espaço mínimo ocupado pelas teorias póspositivistas nas grades curriculares e nas disciplinas teóricas obrigatórias em grande parte dos cursos Essas observações introdutórias provocam a reflexão de como estudamos lecionamos aprendemos e pesquisamos as RI no Brasil hoje A partir de quais teorias e epistemologias somos informados Quais são os níveis de inde pendência e autonomia acadêmica em relação aos grandes centros do Norte Global Qual a posição na geopolítica do conhecimento da RI que ocupam o Brasil em particular e a América Latina em geral Em que medida os novos cursos com seus também novos corpos docentes e discentes têm contribuí do para a democratização do acesso e uma visível abertura e oxigenação da disciplina em âmbito nacional De que forma isso impacta na formação de uma nova geração de internacionalistas no país As respostas a estes questionamentos escapam ao propósito deste capí tulo mas tangenciam o entendimento normativo do qual ele parte isto é da necessidade de desprovincializar descolonizar e desmasculinizar as RI Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 181 14012021 1707 Luciana Maria de Aragão Ballestrin 182 O caráter inter trans e multidisciplinar que as RI possuem dada a natureza dos seus objetos de estudo e investigação e logo intervenção é em especial convidativo a esta inflexão epistemológica que a torna mais comprometida com a diminuição das desigualdades entre países e mais representativa de sua diversidade cultural O presente capítulo assim traz algumas contribuições que o póscolo nialismo e o feminismo oferecem em termos epistemológicos e teóricos ex plorando seus encontros diálogos e colaborações ocorridos a partir dos anos 1980 Essa incursão permite vislumbrar e projetar três diferentes agendas de pesquisa em RI póscolonial feminista e feminista póscolonial Quando aplicado às RI o póscolonialismo e o feminismo já possuem um acúmulo significativo e crescente de trabalhos desde 1990 sendo comum uma abor dagem interrelacional Se as duas primeiras abordagens ainda são bastante incipientes no país a proposição de uma terceira agenda integrada sugere um tratamento necessariamente dialógico entre ambas O presente capítulo pretende oferecer assim algumas considerações contributivas para o movi mento de descolonizar o ensino e a pesquisa em RI no Brasil PÓSCOLONIALISMO OBSERVAÇÕES TEÓRICAS E CONCEITUAIS O termo póscolonialismo possui diferentes entendimentos temporais teó ricos e políticos tendo sido objeto de diversas disputas debates e críticas acadêmicas em torno de sua definição especialmente após os anos 1980 Foi neste período que a expressão começou a ser disseminada em importantes universidades anglófonas do Norte Global sobretudo nos Estados Unidos e Inglaterra As críticas geradas em torno do prefixo pós apontavam que o termo sugeria a superação do colonialismo somandose às outras correntes acadêmicas em voga embaladas pelo pós pósestruturalismo pósmarxis mo pósmodernismo Assim o póscolonialismo foi considerado por alguns críticos mais uma corrente da moda incapaz de problematizar o sistema ma terial e econômico do capitalismo e logo do colonialismo e do imperialismo projetando inclusive uma elite intelectual do Terceiro Mundo no Primeiro Mundo No contexto da globalização ascendente neoliberal e multicultu ral o póscolonialismo acabava por se tornar conivente com a narrativa da Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 182 14012021 1707 Para uma abordagem Feminista e Póscolonial das Relações Internacionais no Brasil 183 pósmodernidade despolitizando o debate e reforçando a celebração do cultu ralismo AHMAD 2002 DIRLIK 1994 MCCLINTOCK 1992 SHOAT 1992 Essa versão mais canônica do póscolonialismo foi inaugurada em 1978 com a obra definitiva de Edward Said Orientalismo cujo objetivo consistiu em demonstrar através da análise discursiva de textos literários e culturais euro peus a invenção do Oriente pelo Ocidente como um estereótipo estratégico para a manutenção do poder colonial e imperial Nessa versão mainstream do póscolonialismo o argumento póscolonial de fato foi fortemente influencia do pelos estudos pósestruturais pósmodernos desconstrutivistas culturais e subalternos indianos Gayatri Spivak Paul Gilroy Stuart Hall Homi Bhabha Dipesh Chakrabarty são alguns de seus autores mais representativos Muitos deles foram filhos e filhas da diáspora de diferentes dinâmicas coloniais do século XX condição esta que permitiu a inscrição de suas experiências e sub jetividades na produção de muitos textos e argumentos póscoloniais Não por acaso a preocupação com a identidade e a subjetividade perpassou todas as gerações do póscolonialismo o sujeito colonizado orientalizado e subalterno como o Outro do sujeito imperial europeu Sob a perspectiva póscolonial o colonialismo e a descolonização são fenômenos estruturantes tanto para a vida das colônias quanto das metrópoles De forma geral o póscolonialismo analisa os impactos do colonialismo nos âmbitos político cultural intelectual e psíquico observando as tensões entre subjetividade identidade poder representação e conhecimento Como pilares de sustentação da hegemonia da modernidade ocidental europeia o colonialismo desenvolveu e estimulou ideologias a seu serviço racismo eu rocentrismo e orientalismo impactaram violenta e mais dramaticamente a vida das sociedades e sujeitos colonizadas CÉSAIRE 1978 FANON 2010 Contudo a forte crítica pósestrutural ao essencialismo identitário não per mitiu que o póscolonialismo canônico reproduzisse binarismos antagônicos irreconciliáveis tal como em sua versão anticolonial afinal o encontro colo nial produziu resistência mas também convivência variada entre colonizado e colonizador A releitura da colonização e do colonialismo como parte de um processo global transnacional e transcultural instiga o estudo das continuidades e descontinuidades do poder colonial SHOAT 1992 Esta construção é fun damental para o entendimento das metamorfoses do colonialismo através da Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 183 14012021 1707 Luciana Maria de Aragão Ballestrin 184 reprodução da colonialidade QUIJANO 2000 Em uma chave histórica de enfrentamento o póscolonialismo pode ser definido de forma mais flexível como a contestação da dominação colonial e dos legados do colonialismo LOOMBA 2005 p 16 ou ainda como uma contrahistória do colonialis mo GILROY 2006 p 657 Ele tornou mais visível a história e o legado do imperialismo europeu em particular reescrevendo descentrada e diasporica mente as grandes narrativas imperiais do passado HALL 2009 No entanto ao privilegiar analiticamente representações culturais identi tárias psicanalíticas linguísticas discursivas e literárias o póscolonialismo encontrou nos autores marxistas alguns de seus maiores críticos Desde aí a relação entre póscolonialismo e marxismo tem sido uma relação de amor e ódio proporcionando até hoje acalorados debates2 Entre os anos 1950 e 1970 o contexto histórico da Guerra Fria estimulou diferentes movimentos pela descolonização diante o declínio da hegemonia do imperialismo europeu clássico O empenho direto das Nações Unidas ONU neste processo deuse no estabelecimento do Comitê Especial para a Descolonização em 1962 cuja missão era supervisionar a Declaração sobre a Concessão da Independência dos Países e Povos Coloniais de 19603 O Movimento dos Nãoalinhados composto pelos países do então cunhado Terceiro Mundo sinalizava uma tentativa de desvio uma terceira rota para a modernidade que não o capita lismo nem o comunismo DIRLIK 2007 O anticolonialismo revolucionário as lutas de libertação nacional e os movimentos de independência sobretudo na África e na Ásia forneceram o contexto histórico para autores póscoloniais precursores reunindo intelec tuais ativistas artistas políticos e lideranças que deixaram uma produção 2 Benita Parry Aijaz Ahmad Arif Dirlik e mais atualmente Vivek Chibber produziram contundentes críticas materialistas ao póscolonialismo 3 Com metas a cada década para eliminação do colonialismo o período entre 20112020 constitui seu terceiro decênio internacional Na atualidade ele reconhece a existência de 16 territórios não autônomos e coloniais Os territórios não autônomos são Polinésia Francesa Gibraltar Nova Caledônia Saara Ocidental Samoa Americana Anguilha Bermuda Ilhas Virgens Britânicas Ilhas Caimã Guam Montserrat Ilhas Picárnia Santa Helena Ilhas Turks e Caicos Ilhas Virgens Americanas Toquelau e Malvinas A grande maioria desses territórios são de caráter insular sendo que dez territórios estão sob a administração do Reino Unido e três dos Estados Unidos Recentemente o Comitê reiterou o pedido de independência de Porto Rico UNITED NATIONS 2014 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 184 14012021 1707 Para uma abordagem Feminista e Póscolonial das Relações Internacionais no Brasil 185 dispersa não necessariamente acadêmica institucionalizada e disciplinada Contudo em um sentido temporal estrito essa nova condição póscolonial não garantiu um processo completo de descolonização Em 1965 o panafri canista Kwame Nkrumah 1965 anunciava na introdução de seu livro Neo Colonialism Last Stage of Imperialism o neocolonialismo de hoje representa o final do imperialismo e talvez seu estágio mais perigoso4 Amílcar Cabral Che Guevara Frantz Fanon Ho Chi Minh Aimé Césaire e Albert Memmi fo ram alguns nomes desta geração fortemente marcada pelo marxismo revo lucionário o panafricanismo e o pensamento afrodiaspórico A partir dos anos 1990 a inclusão tardia da América Latina no debate pós colonial acentuou a crítica à modernidade realizando o giro epistemológico decolonial A inflexão decolonial do póscolonialismo construído em gran de parte por autores latinoamericanos que vivem dentro e fora dos Estados Unidos foi desenvolvida a partir da dissolução da versão latinoamericana do Grupo de Estudos Subalternos 19921998 e a formação do programa de investigação ModernidadeColonialidade em 1998 BALLESTRIN 2013 Influenciadas pelas contribuições latinoamericanas críticas ao colonialis mo ao mesmo tempo em que pretendia se afastar do cânone póscolonial a versão póscolonial latinoamericana construiu seus argumentos com as bases do pensamento latinoamericano filosofia da libertação teoria da de pendência teoria do sistemamundo grupos indiano e latinoamericano de estudos subalternos filosofia afrocaribenha e feminismo latinoamericano RESTREPO ROJAS 2010 Walter Mignolo Ramón Grosfoguel Nelson MaldonadoTorres Catherine Walsh Santiago CastroGoméz Arthuro Escobar são alguns expoentes desta renovação do póscolonialismo no contexto pós neoliberal da América Latina estimulada pelos processos de refundação de Estado e do novo constitucionalismo latinoamericano especialmente na Bolívia e no Equador Aníbal Quijano Enrique Dussel Immanuel Wallerstein e Boaventura de Sousa Santos são interlocutores fundamentais do projeto que por seu turno também é alvo de uma série de críticas Estes três enquadramentos fases ou versões do póscolonialismo toma do em um sentido temporal anticolonial póscolonial e decolonial sugerem a diversidade de contextos geográficos influências autores e preocupações 4 Todas as traduções deste capítulo são livres da autora Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 185 14012021 1707 Luciana Maria de Aragão Ballestrin 186 assim como a possibilidade de diferentes genealogias e associações junto ao termo desde os anos 1960 por exemplo o entendimento do póscolonialismo como marxismo terceiromundista ou como tricontinentalismo KRISHNA 2009 De certa forma o póscolonialismo dos anos 1980 reorganizou o debate terceiromundista apropriandose posteriormente dos conceitos de Sul e Sul Global Tanto a categoria Terceiro Mundo anos 1950 quanto a categoria Sul Global anos 1990 são classificações baseadas em uma concepção muito particular da ideia de desenvolvimento ESCOBAR 2007 hierarquização operante da colonialidade do poder Para Nandy 2015 p 90 O conceito de Terceiro Mundo não é uma categoria cultural é uma categoria política e econômica nascida da pobreza exploração indignidade e falta de autoestima O conceito está inextrincavelmente ligado aos esforços de um grande número de pessoas tentando sobreviver por gerações a situações quase extremas Uma utopia terceiromundista deve reconhecer esta realidade básica Como resistência o conceito de Terceiro Mundo também foi significado como solidariedade entre os povos que compartilhavam o passado e o presen te colonial à época Mas as identidades que essa categoria mobilizou para a formação de diferentes movimentos ainda estavam alocadas principalmente no âmbito territorial e geopolítico país nação sociedade etc O feminismo terceiromundista por sua vez pode ser entendido como um dos resultados visíveis dos encontros e desencontros entre póscolonialismo e feminismo nos anos 1980 A vida das mulheres deve ser classificada e condicionada de acordo com seu pertencimento em um Primeiro Segundo e Terceiro Mundo BULBECK 1998 Para o feminismo póscolonial sim Em outras palavras essa fictícia divisão geopolítica impactou na teorização feminista a partir dos anos 1980 em uma direção própria e diferente do feminismo marxista radical e liberal De que maneira o póscolonialismo criou estimulou ou reforçou as hierar quias desigualdades e violências de gênero A necessidade de um tratamento interseccional entre gênero etnia classe e nacionalidade foi assim uma con tribuição fundamental do cruzamento das agendas póscolonial e feminista Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 186 14012021 1707 Para uma abordagem Feminista e Póscolonial das Relações Internacionais no Brasil 187 para a análise dos diferentes e complexos níveis de subalternidade e subal ternização nas e das sociedades póscoloniais PÓSCOLONIALISMO E FEMINISMO INTERSECÇÕES A década de 1980 promoveu o encontro dos estudos póscoloniais e feminis tas no contexto da nova divisão entre o Norte e o Sul DIRLIK 2007 Ainda que seja inadequado realizar uma separação rígida entre as fronteiras teóricas acadêmicas das ativistaspolíticas já que uma das características peculiares do movimento feminista em relação aos outros movimentos sociais reside na sua capacidade de teorizar criticamente sobre si próprio PINTO 2010 destacase para o momento estes dois eixos principais de articulação como frutos produtivos deste encontro Apesar de ambas correntes de pensamento possuírem uma trajetória au tônoma e uma vocação transdisciplinar as críticas feminista e póscolonial compartilham de características e preocupações constitutivas dos movimentos históricos que as estruturam Ania Loomba 2005 p 39 observou que tanto os movimentos feministas quanto os anticoloniais precisaram questionar as ideias dominantes de história e representação uma vez que a cultura é vista como um campo de conflito entre opressores e oprimidos no qual a lingua gem pode ser uma ferramenta de dominação Para ambos a problematização do sujeito ocidental homem e branco nos discursos imperialistas europeus é um ponto de partida fundamental Ainda intelectuais e ativistas feministas e anticoloniais possuem a perspectiva da transformação social LOOMBA 2005 p 39 No plano analítico ambas epistemologias abalaram os pilares das Humanidades e seu próprio pensamento crítico Os campos da ciência li teratura e crítica literária foram terrenos iniciais férteis paras as análises fe ministas e póscoloniais preocupadas com a invisibilidade o apagamento e a subalternidade dos sujeitos e sujeitas produzidos pelo patriarcado e pelo colonialismo Não por acaso é a mulher colonizada o sujeito subalterno por excelência que marcou o paradigmático encontro entre feminismo e póscolo nialismo no influente texto de Gayatri Spivak a ser comentado mais adiante Em um artigo muito elucidativo intitulado Feminismo eno Póscolonialismo Deepika Bahri 2013 p 660 afirma que as contribuições feministas presentes Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 187 14012021 1707 Luciana Maria de Aragão Ballestrin 188 desde o início do póscolonialismo canônico o ajudaram a revisar questionar e complementar suas próprias preocupações Para ela as questões de gênero são inseparáveis da crítica póscolonial Com efeito o póscolonialismo anti colonial de Frantz Fanon e a análise do discurso colonial inaugurada por Said em Orientalismo realizaram reflexões embrionárias sobre a mulher na condi ção colonial A reflexão sobre a mulher no póscolonialismo foi assim intro duzida desde uma perspectiva não feminista Para o crítico literário palestino O próprio Orientalismo além do mais era uma província exclusivamente masculina como tantas associações profissionais durante o período moderno ele via a si e a seu tema com vendas sexistas sobre os olhos Isso é evidente de maneira particular nos escritos de viajantes e romancistas as mulheres são em geral criaturas de uma fantasia de poder masculina Manifestam uma sexualidade ilimitada são mais ou menos estúpidas e acima de tudo insaciáveis SAID 2007 p 281282 O psicanalista martinicano Frantz Fanon por sua vez havia dedicado dois capítulos sobre sexualidade em torno da relação entre a mulher de cor e o branco e o homem de cor e a branca em Peles Negras Máscaras Brancas 1952 Ainda que o autor tenha sido fundamental para vincular definitiva mente racismo e colonialismo introduzindo questões de gênero e raça o su jeito colonizado de Fanon foi sobretudo o homem negro Para Loomba 2005 p 137 a subjetividade feminina não foi adequadamente desenvolvida nas meditações fanonianas tanto para Freud quanto para Fanon a mulher ainda representava o mistério do continente negro Para a teoria feminista a problematização sobre corpo sexualidade e gênero são fundamentais Em diálogo com o póscolonialismo esta problematização é em geral inserida nos contextos do encontro e da violência colonial É como se o poder colonial fosse somado ao poder patriarcal a violência sexual em particular aparece como fundamental para entendermos a violência colonial em geral O corpo feminino pode ser pensado como o primeiro território a ser conquistado e ocupado pelo colonizador homem branco cristão europeu e heterossexual Nas mais diversas situações de conflitualidades violentas a vulnerabilidade do corpo feminino é acentuada desde as conquistas colo niais às guerras civis e interestatais às ocupações e intervenções militares Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 188 14012021 1707 Para uma abordagem Feminista e Póscolonial das Relações Internacionais no Brasil 189 Imperialismo colonialismo e guerras foram em geral empreitadas masculinas e masculinizadas Nesses contextos a violação do corpo feminino por homens colonizadores militarizados ou armados do lado amigo ao inimigo se re pete histórica e violentamente Quando o corpo e o sexo são unidos nas representações colonialistas orientalistas e etnocêntricas de uma forma geral o gênero feminino pode ser fantasiado como a cultura europeia LOOMBA 2005 e como os nomes continentais colonizados pela Europa África Ásia e América MIGNOLO 2005 O imaginário erótico e sensual do colonialismo envolvendo sedução e desejo na dimensão sexual da empresa colonial pela posse e pela conquista criou as representações da ameríndia despudorada da oriental exótica da africana fogosa Contudo nem todas as mulheres não europeias foram retra tadas como desejáveis e passivas em algum lugar do mundo no imaginário desbravador colonial as Amazonas são o exemplo de brutalidade femini lidade desviante e sexualidade insaciável LOOMBA 2005 p 131 Ainda a relação entre nacionalismo e gênero é bastante discutida por pesquisadoras feministas a mulher como símbolo da nação e da pátria BAHRI 2013 p 661 O machismo sabese coexistiu com muitos movimentos nacionalistas LOOMBA 2005 p 139 De acordo com Bahri 2013 p 663 o feminismo póscolonial é um cam po discursivo dinâmico capaz de questionar as premissas do póscolonialis mo e do feminismo sendo caracterizado pelo debate diálogo e diversidade Analiticamente a observação sobre o conluio entre o patriarcado e o colo nialismo BAHRI 2013 p 663 e a ofensiva combinada contra o mito agres sivo tanto da masculinidade nacionalista como imperial GANDHI 2008 p 98 são caminhos interessantes para pensar o colonialismo e a guerra como masculinidades em disputa No aspecto ativista e acadêmico o póscolonialismo foi fundamental para estimular uma crítica interna no interior do próprio movimento feminista A configuração de um profundo antagonismo no interior do movimento feminis ta vinha já sendo construído paralelamente à sua própria internacionalização no decorrer dos anos 1970 expressandose com mais evidência na década de 1980 O processo de transnacionalização do feminismo observado nas três últimas décadas e seu estímulo por vários fóruns internacionais oficiais e informais e pela estrutura de oportunidades oferecidas pela globalização Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 189 14012021 1707 Luciana Maria de Aragão Ballestrin 190 projetou desafios em relação à articulação de uma desejada global sisterhood entre as mulheres MENDOZA 2002 O desafio póscolonial foi posto as sim na prática no interior do movimento feminista A crítica ao feminismo ocidental e à construção de uma mulher tercei romundista foi realizada em 1984 por Chandra Mohanty 2008 Em seu influente e impactante ensaio Under western eyes um dos precursores do feminismo póscolonial ela introduz que Qualquer discussão sobre a construção intelectual e política dos feminismos de terceiro mundo deve tratar dois projetos simultâneos a crítica interna dos feminismos hegemônicos do Ocidente e a formulação de interesses e estratégias feministas baseadas na autonomia geografia história e cultura O primeiro é um projeto de desconstrução e desmantelamento o segundo de construção e criação Estes projetos o primeiro funcionando de forma negativa e o segundo de forma positiva parecem contraditórios mas a menos que seus trabalhos respectivos sejam abordados de forma simultânea os feminismos de terceiro mundo correm o risco de se ver marginalizados e guetizados tanto nas tendências principais de direita e esquerda do discurso feminista como no discurso feminista do ocidente MOHANTY 2008 p 112 O feminismo terceiromundista ou póscolonial questionou o caráter co lonial do discurso feminista ocidental ao criar representações estereotipadas da mulher do terceiromundo muito distantes das ideias de agência libe ração emancipação e autonomia feminina Mohanty chamou atenção para a colonização discursiva acadêmica e de produção intelectual de mulheres do Primeiro Mundo sobre mulheres de Terceiro Mundo Além de essas próprias categorias serem coloniais a transformação das mulheres de Terceiro Mundo em objeto de pesquisa interesse e intervenção sugeriu certo imperialismo do feminismo ocidental GANDHI 1998 Acrescentou ainda que tais estratégias analíticas também podem ser observadas nas acadêmicas de classe média urbana na África ou Ásia que produzem estudos acadêmicos sobre suas irmãs rurais ou sobre a classe trabalhadora em que assumem suas culturas de classe média como a norma e codificam as histórias e culturas da classe trabalhadora como o Outro MOHANTY 2008 p 113 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 190 14012021 1707 Para uma abordagem Feminista e Póscolonial das Relações Internacionais no Brasil 191 Assumindo que as categorias de Primeiro e de Terceiro Mundos são problemáticas a autora expôs seu desenho e recorte de pesquisa que permitiu a aferição da representação de uma mulher média de Terceiro Mundo a qual geralmente é retratada como pobre ignorante limitada pela tradição e pela família em contraparte às mulheres emancipadas modernas e conscientes de seu corpo e sexualidade Essas deduções só são possíveis mediante à aceita ção de certas premissas etnocêntricas e homogeneizadoras Sua metodologia permitiu concluir que textos analisados com diferentes graus de sensibilida de e complexidade apontam para representações similares das mulheres do Terceiro Mundo como vítimas da violência masculina do processo colonial do sistema familiar árabe do desenvolvimento e do código islâmico Mohanty procura chamar atenção para certo paternalismo das feministas ocidentais de diferentes matizes liberais radicais marxistas em relação às suas outras mais abaixo supostamente em uma escala de opressão masculina Esta discussão considerada por suas críticas geralmente feministas oci dentais problemas internos ao próprio movimento feminista foi uma tônica fundamental do feminismo internacional dos anos 1980 Neste sentido lem brase da contribuição igualmente influente e impactante de Spivak quando da publicação em 1988 do texto Pode o subalterno falar 2010 Spivak ao reconhecer um importante limite do projeto dos estudos subal ternos indianos utilizou de sua particular heterodoxia teórica marxismo feminismo pósestruturalismo e desconstrutivismo para investigar as reais possiblidades de autorrepresentação e voz do sujeito subalterno A maior ex pressão da noção de violência epistêmica imperial negligenciada por Michel Foucault teria sido a tentativa de construção do sujeito colonial justamente como Outro SPIVAK 2010 p 60 O papel dos intelectuais na construção dos sujeitos apesar das boas intenções limitou inclusive a noção de sujeito subalterno insistindo que o sujeito subalterno e colonizado é irremediavel mente heterogêneo SPIVAK 2010 p 73 Spivak chegou a uma conclusão polêmica por seu determinismo o subalterno afinal não pode falar Ainda que o descentramento do Sujeito da Europa e do Ocidente pelo póscolonia lismo tenha possibilitado o pensamento de outros sujeitos que não europeus brancos ocidentais homens heterossexuais e proletários a ideia de sujeito subalterno para a autora permanecia como uma ideia do discurso dominante Ela elaborou de modo crítico a cumplicidade dos intelectuais em transformar Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 191 14012021 1707 Luciana Maria de Aragão Ballestrin 192 o Outro subalterno como mais um objeto de conhecimento pelo qual se pre tende interceder e falar e que ao final das contas não possui a oportunidade de romper com seu próprio silenciamento Avançando na sua proposta que traz uma noção de medir silêncios a autora coloca provocativamente Se no contexto da produção colonial o su jeito subalterno não tem história e não pode falar o sujeito subalterno femi nino está mais profundamente na obscuridade SPIVAK 2010 p 85 Para Spivak a condição de ser mulher é a mais representativa do sujeito subalter no especialmente no contexto terceiromundista O feminismo póscolonial explorou de maneira original as diferentes formas de violência contra a mulher Ele foi fundamental na construção da agenda internacional no âmbito das Nações Unidas que elevou a violência contra a mulher ao patamar de um problema mundial comum às mulheres de Norte a Sul KECK SIKKINK 1998 Não por acaso a emergência da pers pectiva feminista e em certa medida póscolonial nas RI foi responsável por colocar os diferentes tipos de violência contra a mulher na ordem do dia PÓSCOLONIALISMO E FEMINISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Sob a ótica disciplinar das RI desde o final da década de 1980 os estudos internacionais têm recebido um conjunto de contribuições feministas e pós coloniais no âmbito dos debates póspositivistas ainda que não de manei ra necessariamente relacionadas Pelo contrário ambas perspectivas abriram agendas de investigação paralelas com pontos de contatos a priori como se viu na seção anterior As abordagens feministas e póscoloniais nas RI recolocam e redimen sionam problemas fundamentais para a compreensão das desigualdades glo bais tanto em um nível micro quanto macroestrutural sobretudo a partir da década de 1990 É importante notar que as intervenções internacionalistas feministas eou póscoloniais também possuem uma forte inclinação transdis ciplinar ainda que o objetivo de aplicar ambas correntes à disciplina das RI seja francamente anunciado por suas autoras e autores O póscolonialismo e o feminismo lembrase possuem uma longa história e trajetória antes mes mo do encontro com as Relações Internacionais como disciplina acadêmica Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 192 14012021 1707 Para uma abordagem Feminista e Póscolonial das Relações Internacionais no Brasil 193 Contudo o caráter transnacional do movimento anticolonial e feminista desde seus primórdios garante o compartilhamento da característica internacional com os objetos de estudo típicos das RI Se por um lado o estudo do interna cional e do transnacional tem escapado ao seu monopólio disciplinar por outro seu universo empírico tem sido constantemente ampliado No contexto intensificado de práticas dinâmicas e interações intertrans nacionais as intervenções feministas eou póscoloniais identificam novos problemas questões e objetos apontam aqueles encobridos esquecidos ou silenciados questionam as RI teórica metodológica e epistemologicamente A masculinidade da empresa colonial a reprodução da guerra e o discipli namento militar masculino passaram a ser problematizados a partir dos as pectos de gênero os diferentes tipos de violência aos quais as mulheres são submetidas quando de ocupações intervenções militares e novas guerras co meçaram a ser tratadas pela comunidade e agenda internacional as precárias formas de trabalho estimuladas pela globalização das migrações forçadas as rotas globais de turismo sexual e a maior vulnerabilidade de exploração das mulheres também ganharam atenção inédita Muitas dessas questões apesar de algumas não serem propriamente no vas começaram a se tornar objeto de preocupação recentemente sobretudo a partir da internacionalização do movimento feminista nas instituições in ternacionais e na academia A própria participação e presença das mulheres na vida da política internacional também se tornou um importante objeto de investigação e intervenção Assim de uma maneira geral o encontro inter nacional do póscolonialismo e do feminismo permitiu a ascensão de uma agenda de pesquisa multidisciplinar sobre migrações trabalho violência sexualidade representação política e identidades no contexto das diásporas globais contemporâneas O livro paradigmático de Cynthia Enloe Bananas beaches publicado originalmente em 1993 constitui a primeira grande contribuição feminista para a área particular das RI Ela convidou a disciplina a pensar sobre onde estão e quem são as mulheres que movimentam a vida diária da política in ternacional Partindo da ideia básica de que o poder opera para além das fronteiras ENLOE 2014 p 9 Enloe realizou um exercício metodológico definitivo para a agenda de pesquisa feminista internacionalista contempo rânea ao elevar a nebulosidade das fronteiras do público e do privado para Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 193 14012021 1707 Luciana Maria de Aragão Ballestrin 194 a arena internacional a autora deslocou e ampliou as possibilidades da pre sença e da ausência das mulheres nas relações internacionais Se o privado é político então ele também é internacional das esposas dos diplomatas às trabalhadoras do sexo as hierarquias de gênero e sua resistência atravessam as relações de poder nos mais diferentes espaços públicos e privados no casamento em uma discoteca escritório indústria A agenda feminista em RI foi reforçada com a publicação do artigoresposta de Cynthia Weber em 1994 ao texto de Robert Keohane publicado em 1989 ambos no periódico internacional Millennium No artigo Keohane parte da classificação de tipos de feminismo proposta por Sandra Harding e utilizada por Christine Sylvester justificando sua simpatia pelo feminist standpoint pelo seu potencial analítico KEOHANE 1989 Esse movimento contudo teria distorcido o objetivo de Sylvester ao trazer diferentes perspectivas feminis tas para o debate uma vez que ele estimulou a escolha de uma única opção WEBER 1994 Para a autora apesar das boas intenções Keohane ao utilizar sua autoridade disciplinar reconhecida acabou por legitimar somente as boas meninas good girls do ponto de vista feminista feminism standpoint propon dolhe uma aliança junto ao institucionalismo neoliberal para complementar as críticas ao neorrealismo KEOHANE 1989 WEBER 1994 Desde aí tem sido muito significativo o acúmulo e o volume de trabalhos que abordam a questão do gênero nas RIs Nos manuais contemporâneos da área a corrente feminista já possui um espaço garantido no terceiro deba te e em alguma medida também a póscolonial Como teorias normativas ambas assumem a impossibilidade de neutralidade epistemológica e teóri ca distanciada e imparcial das análises que pretendem efetuar Possuem portanto influências claras do pósestruturalismo e do desconstrutivismo também dialogam com a teoria social e política somandose ao núcleo da teoria crítica A normatividade é um rótulo bastante utilizando pelas teorias que se pretendem exclusivamente analíticas e objetivas como a neorealis ta Este próprio discurso joga a favor da manutenção do status quo discipli nar e portanto político como bem observou Robert Cox em sua conhecida sentença teoria é sempre para alguém e para algum propósito COX apud BURTHCHILL et al 2005 p 21 Acrescentase que o recurso à noção das lentes tão difundido e aceito pela disciplina também acaba por esterilizar e neutralizar potenciais teóricos ao aludir que as teorias alternativas são uma Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 194 14012021 1707 Para uma abordagem Feminista e Póscolonial das Relações Internacionais no Brasil 195 questão de ângulo incapazes de antemão em alcançar o mainstream como a visão privilegiada A realização da incursão das RI no terreno feminista e póscolonial fez com que a disciplina entrasse no terreno pós das discussões sobre identida de representação e diferença que marcaram a década de 1980 nas Ciências Humanas e Sociais A noção de que o gênero e de uma perspectiva queer também o sexo BUTLER 2014 é algo culturalmente construído não é portanto uma contribuição original das feministas internacionalistas mas das feministas pósestruturalistas como um todo Mas essa percepção é par ticularmente fundamental para o questionamento realizado sobre as mascu linidades e o sistema internacional a guerra e o militarismo Ou seja de uma perspectiva feminista das RI também precisamos entender como as masculini dades são mobilizadas de forma a reproduzir comportamentos que reforçam o sistema da guerra e outras múltiplas formas de violência inclusive contra os próprios homens A violência ou a possibilidade constante de recurso a ela é um fenôme no central recorrente e estruturante do mundo das Relações Internacionais E ao privilegiar os homens como os grandes protagonistas da política e do sistema internacional a correlação entre violência e masculinidades seria as sim uma consequência lógica Parte da literatura feminista de RI aposta em exemplos empíricos para demonstrar afinidades entre mulheres e esforços pela paz Esta perspectiva no entanto é controversa uma vez que reforça o estereótipo feminino da mulher maternal cuidadora e sentimental Ainda que mulheres possam ser fundamentais para a construção de movimentos ou processos pacíficos a dicotomia essencialista que associa mulher e paz homem e guerra trata de maneira superficial as múltiplas possibilidades de masculinidades e feminilidades diante cenários conflituosos Como dito a ascensão do problema da violência sexual contra a mulher na agenda internacional constitui uma das grandes conquistas do movimen to feminista global nas últimas décadas A violação dos corpos femininos ocorre nos mais diversos tipos de cenários bélicos ou pacíficos públicos ou privados A construção da ideia do estupro como arma de guerra ao longo dos anos 1990 a revelação e visibilidade do problema das mulheres de conforto exploradas pelo exército imperial japonês nos anos 1930 ou ainda mais recen temente a indústria do turismo e exploração sexual na qual as mulheres são Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 195 14012021 1707 Luciana Maria de Aragão Ballestrin 196 traficadas como mercadorias são três exemplos da diversidade de situações nas quais a violência sexual é considerada um grave problema internacional de violação aos Direitos Humanos No contexto colonial masculino e militar a violência contra a mulher sob todas as suas formas simbólica física sexual invadiu as esferas priva das e públicas inclusive com a própria convivência do Estado conquistador colonizador e invasor Particularmente na situação da violência colonial as mulheres foram expostas como vítimas a situações não vividas pelo homem colonizado Ainda mais particularmente para a mulher negra o colonialismo e o imperialismo se utilizaram do racismo na perpetração das violências in clusive no âmbito do trabalho forçado e escravo As feministas negras lem bram que este tipo de situação afetou diretamente a própria noção privada e doméstica da família negra na qual a mulher possui um protagonismo tal ao ponto de relativizar sobre ela a aplicação da estrutura de dominação patriar cal Não que desejemos negar que a família possa ser uma fonte de opressão para nós senão que necessitamos reconhecer que durante a escravidão nos períodos coloniais a família negra tem sido terreno de resistência política e cultural contra o racismo CARBY 2012 p 213 É possível afirmar que muitas preocupações feministas que adentraram no campo das RI dos anos 1990 em diante exigem um tratamento contíguo ao póscolonialismo sobretudo quando da necessariedade de observar a interseccionalidade entre raça gênero e classe É precisamente essa a contri buição distintiva do póscolonialismo em relação às outras tradições críticas da disciplina CHOWDHRY NAIR 2002 As opressões de gênero fraturam em diferentes níveis as desigualdades póscoloniais e as identidades que dela resultam Evidentemente se você é pobre negra e mulher está envolvida de três ma neiras Se no entanto essa formulação é deslocada do contexto do Primeiro Mundo para o contexto póscolonial que não é idêntico ao Terceiro Mundo a condição de ser negra ou de cor perde o significado persuasivo SPIVAK 2010 p 110 A conivência entre colonialismo patriarcado racismo e eurocentrismo inclinam muitas autoras feministas internacionalistas a dialogarem com Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 196 14012021 1707 Para uma abordagem Feminista e Póscolonial das Relações Internacionais no Brasil 197 autoras feministas póscoloniais As contribuições de Chowdhry e Nair 2002 Petmann 1996 Enloe 2004 Riley e Inayatullah 2006 e Riley e demais autores 2008 evidenciam que o póscolonialismo e o feminismo são necessariamente complementares para a consolidação de uma agenda em RI preocupada com a contestação analítica das hierarquias e das relações de poder globais Nesse sentido a dimensão global do fenômeno colonial e imperial o protagonismo de agentes sociais que não podem ser reduzidos ao Estadonação e as metamorfoses do colonialismo e do imperialismo no contexto internacional desde a década de 1960 são notas importantes para pensarmos os diferentes impactos contemporâneos de ambos processos na vida das mulheres Sob a lógica do neoliberalismo triunfante que desregula e transnacionaliza a exploração econômica a divisão sexual internacional e informal do trabalho é acentuada BULBECK 1998 As desigualdades póscoloniais ou seja aquelas produzidas pelo colonia lismo e continuadas após seu término formal envolvem portanto um entre laçamento complexo de escalas atores níveis campos processos agências intenções e resistências Ainda que nem todas as desigualdades possam ser explicadas pelo colonialismo é impossível pensálo sem a produção de desi gualdades econômicas políticas culturais O colonialismo assim estabele ceu ou reforçou desigualdades globais entre Estados povos e pessoas Assim se tomarmos o colonialismo e o imperialismo como processos estruturantes da modernidade capitalista desde o século XVI como estabelecer quando e o que é póscolonial À esta pergunta já exaustivamente debatida por vários autores pósco loniais foi oferecida uma resposta por Sanjay Seth 2013 o pós na teoria póscolonial não significa o período ou era depois que o colonialismo chegou ao fim mas ao contrário significa o período histórico inteiro depois do início do colonialismo SETH 2013 p 1 O termo reivindica que a conquista o colonialismo e o império não são uma nota de rodapé ou episódio em uma história maior como aquela do capitalismo modernidade ou expansão da sociedade internacional mas são ao contrário uma parte central e constitu tiva dessa história SETH 2013 p 20 Chama a atenção para o período temporal estendido proposto por Seth em relação ao póscolonialismo Ainda que não seja uma definição compartilhada pelos autores póscoloniais afinal o póscolonialismo seria toda a história do Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 197 14012021 1707 Luciana Maria de Aragão Ballestrin 198 mundo moderno o autor procura evidenciar os impactos que o encontro e a violência coloniais geraram para a própria formação do sistema internacio nal e para a atualidade de seus aproximadamente 200 países A intervenção póscolonial nas RI parte em primeiro lugar de uma profunda desconfiança e questionamento da narrativa westfaliana da formação do sistema interna cional que obscureceu o colonialismo o imperialismo e a escravidão que o constituiu HOBSON 2013 O eurocentrismo e o ocidentalismo do sistema internacional reflete in clusive na teorização da disciplina e na história que a disciplina conta sobre si O póscolonialismo em RI assim como em outras áreas convida a uma análise mais arguta da geopolítica do conhecimento que a própria área re produz Diferentes autores sustentam a existência de uma divisão global do trabalho que reproduz a lógica da geopolítica colonial e neoliberal é do Norte global onde a criação de teorias com pretensões universais e explicativas são exportadas ainda que muitas vezes alimentadas pelas dramáticas experiên cias do Sul O póscolonialismo assim como as Teorias e Epistemologias do Sul rejeita a ideia de que a produção teórica válida e aceitável no mundo é somente aquela realizada e autorizada pelas metrópoles ao mesmo tempo orientamse pela democratização radical da construção coletiva e realmente global das Ciências Sociais CONNELL 2015 A entrada das RI nesta discussão é particularmente provocante por ser justamente ela a disciplina que teria a responsabilidade de amostras mais representativas do que vem a ser o global Um pouco tardiamente os au tores póscoloniais das RI descobriram que grande parte dos seus edifícios teóricos e empíricos eram representativos do Ocidente Compreendendo o lugar da Europa e dos Estados Unidos agora como paroquialismo todo um mundo não ocidental abriuse aos pés da disciplina sendo neste sentido que a necessidade e a urgência de descolonizála aparece com mais frequência Para promover uma agenda de pesquisa póscolonial e feminista no Brasil qual tipo de descolonização seria necessário Não deixa de ser paradoxal que mais uma vez os principais autores do póscolonialismo precisem lançar seus livros por editoras acadêmicas de prestígio lecionar nas principais universida des do Norte publicar nos principais periódicos internacionais da área expor suas ideais em inglês para autorizar o debate póscolonial nas RI Contudo tal dinâmica longe de ser exclusiva da área é reproduzida em toda a história Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 198 14012021 1707 Para uma abordagem Feminista e Póscolonial das Relações Internacionais no Brasil 199 do póscolonialismo desde os anos 1980 Diálogos póscoloniais sulsul em geral foram e são intermediados e promovidos pelo Norte No Brasil ainda são poucos os autores e autoras empenhados nas dis cussões feministas e póscoloniais no âmbito disciplinar das RI A criação da Área Temática de Teorias das Relações Internacionais no âmbito da ABRI Associação Brasileira de Relações Internacionais a abertura de revistas acadêmicas influentes como a Contexto Internacional e a criação da Rede Colonialidades e Política Internacional em 2013 na PUCRio servem de es tímulo para o fortalecimento desta agenda de investigação CONSIDERAÇÕES FINAIS PARA UMA ABORDAGEM FEMINISTA E PÓSCOLONIAL DAS RI NO BRASIL Um retrato histórico e descritivo do desenvolvimento da área das RI no Brasil indica que sua agenda de pesquisa em RI é parcialmente colonizada e depen dente dos grandes centros de produção do conhecimento do Norte Global Essa parcialidade devese sobretudo à existência de uma trajetória prévia a respeito do estudo e da pesquisa em RI no país refletindo ao mesmo tempo reprodução e autonomia quanto à originalidade das agendas de pesquisa Ainda que seja orientada e informada pelos debates interparadigmáticos hegemônicos da área a disciplina no Brasil tem comportado brechas e esti mulado aberturas A própria diáspora nacional contemporânea dos cursos de graduação e pósgraduação tem tornado a disciplina mais plural e hete rogênea em relação à lógica centrada no eixo SudesteBrasília Observase contudo que a utilização das teorias contrahegemônicas no Brasil incluindo a própria teoria crítica neomarxista ainda é francamente tímida A expansão brasileira da área coincide com a consolidação do debate póspositivista em âmbito internacional estadunidense e angloeuropeu Não é preciso portanto que para descolonizar as RI no Brasil se atravesse algum tipo de etapa ou se contente com os BRICS como representantes do Sul Global ou ainda se utilize o póscolonialismo canônico dos anos 1980 como uma grande novidade a ser explorada Para aqueles que entendem ser preciso descolonizar as RI no Brasil em primeiro lugar devese de reconhecer as características que lhe permitem atribuir o estatuto de ciência colonizada Pelo o quê Por quem Por quê Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 199 14012021 1707 Luciana Maria de Aragão Ballestrin 200 Estes questionamentos incitam a um exercício autorreflexivo da área so bre um leque ampliado em termos de ensino aprendizagem pesquisa exten são mas sobretudo sobre os horizontes normativos da disciplina situada no Brasil e na América Latina O desinteresse sobre justiça desigualdade sub representação não é algo raro dentre os corpos docente e discente Da mes ma forma o afastamento naturalizado da aplicação da teoria democrática na prática da política internacional A subrepresentação política das mulheres seja na vida interna dos Estados ou na sua diplomacia por exemplo é uma discussão praticamente ausente das discussões nacionais A construção de uma agenda feminista e póscolonial de pesquisa em RI no Brasil não está livre do enfrentamento de resistências principalmente de vido à sobrerrepresentação masculina de docentes pesquisadores e autores É possível ainda que estas perspectivas sejam tratadas como soft ou de nula importância para a formação de futuros profissionais Ainda assim a insistên cia nessas abordagens revela a possibilidade de tratamento de novos temas questões e objetos não alheios e caros às realidades póscoloniais brasileira e latinoamericana A inserção do debate póscolonial na América Latina e a inserção da América Latina no debate póscolonial ocorreram especialmente a partir dos anos 1990 sendo a segunda uma consequência da primeira Esta diferencia ção é necessária quando se observa que a discussão acadêmica do pósco lonialismo canônico não contemplou a América Latina Foi justamente esta percepção que estimulou a incorporação do continente em uma releitura muito própria do póscolonialismo cuja devolução e absorção pelo debate global têm ocorrido de maneira paulatina O subcontinente tem sido prota gonista na renovação do interesse teórico político e normativo sobre a ideia de descolonização atualizandoa e vinculandoa com um sentido de justiça mais amplo no século XXI Viuse que nem todos os autores póscoloniais compartem de perspecti vas feministas e viceversa Por outro lado elas são mais complementares do que excludentes entre si sendo capazes de agregar e somar esforços teóricos para análise de determinados fenômenos processos e objetos Os desafios de uma abordagem feminista e póscolonial das RI no Brasil passam pela cons trução autônoma e original de uma agenda de investigação atenta ao seu pa pel e lugar assim como o da própria da América Latina no sistemamundo Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 200 14012021 1707 Para uma abordagem Feminista e Póscolonial das Relações Internacionais no Brasil 201 moderno colonial Lembrase de Mariátegui 1928 p 163 para quem el descubrimiento de América es el principio de la modernidad la más grande y fructuosa de las cruzadas Todo el pensamiento de la modernidad está in fluido por este acontecimiento E se adotarmos a definição de póscolonia lismo proposta por Seth estaremos em um lugar privilegiado do mundo para reescrever uma contrahistória do sistema internacional buscando construir um senso de justiça situado entre o póscolonialismo e o cosmopolitismo no que há de melhor em sua tradição REFERÊNCIAS ABRI Associação Brasileira de Relações Internacionais Minuta das Diretrizes Curriculares Nacionais Belo Horizonte MG 2016 Disponível em httpwwwabriorgbrinformativoviewTIPO13ID INFORMATIVO139 Acesso em 20 fev 2016 AHMAD A Linhagens do Presente São Paulo Boitempo 2002 ALATAS S F Academic dependency and the global division of labour in the social sciences Current Sociology United Kingdom v 51 n 6 2003 ASHCROFT B GRIFFITHS G TIFFIN H The empire writes back theory and practice in postcolonial literature New York Routledge 2002 BAHRI D Feminismo eno póscolonialismo Estudos Feministas Florianópolis ano 21 v 2 n 336 p 659688 2013 BALLESTRIN L América Latina e o giro decolonial Revista Brasileira de Ciência Política Brasília n 11 p 89117 2013 BULBECK C Reorienting western feminisms womens diversity in a postcolonial world Cambridge Cambridge University Press 1998 BURCHILL S LINKLATER A DEVETAK R DONNELLY J PATERSON M REUSSMIT C TRUE J Theories of International Relations Palgrave Macmillan United Kingdom 2005 BUTLER J Problemas de gênero feminismo e subversão 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apresentada no workshop doutoral da International Political Sociology realizado na PUCRio no Rio de Janeiro nos dias 2 e 3 de julho de 2015 agradeço a João Urt pelos comentários na ocasião Este texto é um extrato traduzido e adaptado da minha tese de doutorado LAGE 2016 dedicada ao estudo dos usos do conceito de formação em algumas interpretações do Brasil do século XX Dedico o texto aos moradores da Vila Autódromo Rio de Janeiro um dos lugares em que os nexos globais da política contemporânea mostravam suas implicações mais perversas no momento em que escrevi essa versão do texto também foi na Vila onde conheci algumas das modalidades de resistência também globalmente articuladas mais fascinantes até hoje Pósescrito hoje 03 abr 2020 mais de quatro anos depois de ter finalizado a versão que ora vem a público eu mudaria muita coisa nesse texto mas isso talvez me levasse a transformálo substancialmente o que optei por não fazer 2 Ver por exemplo Silviano Santiago v 3 2000 Gildo Marçal Brandão 2007 Bernardo Ricupero 2008b André Botelho e Lilia Moritz Schwarcz 2009 Gabriela Nunes Ferreira e André Botelho 2010 Fernando Henrique Cardoso 2013 Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco 2014 Outros esforços de interpretação do Brasil se mostram mais centrados em certas temáticas amplas Nessa linha ver por exemplo Lourenço Dantas Mota 2v 1999 Carlos Guilherme Mota 2v 1999 João Cezar de Castro Rocha 2003 e a coletânea His tória do Brasil Nação 18082010 organizada por Lilia Moritz Schwarcz COSTA E SILVA 2011 CARVALHO 2012 GOMES 2013 REIS 2014 e SCHWARCZ 2012 Não discu Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 205 14012021 1707 Victor Coutinho Lage 206 postas diferentes categorizações internas ao mesmo baseadas por exemplo em matrizes SANTOS 1978 tendências IANNI 2000 teses IANNI 2004 linhagens BRANDÃO 2005 ou abordagens TAVOLARO 2005 2008 As múltiplas áreas do conhecimento às quais o campo se conecta e a variedade de temáticas por ele avançadas ou com potencial para tanto ligadas a classe raça região gênero entre outras são traços constantemente destaca dos como uma vantagem em meio ao labirinto da especialização acadêmica contemporânea SCHWARCZ BOTELHO 2011 p 11 Um dos conceitos mais recorrentes nas interpretações do Brasil é o de formação Tanto na avaliação de como tem se dado o processo de moder nização no Brasil quanto na identificação das desigualdades e disparidades internas no país a comparação entre o processo formativo brasileiro e proces sos formativos de outras partes do mundo em especial Europa Inglaterra e França com mais frequência Estados Unidos e América Latina ocupa uma posição central nessas interpretações A comparação com a Europa e com os Estados Unidos conduz amiúde a representações da modernidade brasileira ou a narrativas do processo de modernização do país sob o signo da incompletude da inautenticidade e de seu caráter periférico o Brasil seria nem tradicional nem completamente moderno TAVOLARO 2008 No que diz respeito à comparação com países da América Latina é constante a referência à hegemonia da religião católica e à unidade da língua portugue sa como sendo duas razões fundamentais pelas quais a colônia portuguesa na América gerou apenas um país formalmente independente ao passo que a colônia espanhola gerou uma multiplicidade de países3 tirei aqui as especificidades e controvérsias suscitadas pelas expressões interpretações do Brasil pensamento social brasileiro pensamento social no Brasil e suas variações para efeito do texto basta dizer que interpretações do Brasil engloba as mais diversas áreas do conhecimento atravessando Sociologia Estudos Literários Ciência Política e mesmo em certa medida áreas do conhecimento geralmente situadas fora das ditas ciências sociais ou humanidades Por fim noto que a expressão interpretações do Brasil também pode e eu sugeriria deve ser pensada como referência a esforços de interpretação do Brasil para além do ambiente acadêmico ou artístico abrirseia nesse caso a necessidade de se pensar de maneira mais detida a noção de interpretação o que não farei nesse texto 3 Desnecessário dizer essas representações cada vez mais questionadas não exaurem os padrões comparativos identificáveis nas interpretações do Brasil Sugiro apenas que elas sejam as mais recorrentes Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 206 14012021 1707 Interpretações do Brasil e formação 207 A mobilização de parâmetros externos nas interpretações do Brasil co necta intimamente de um lado como a formação do Brasil contemporâneo é interpretada e de outro como a produção de conhecimento é concebida Neste texto meu foco será na segunda levantando algumas reflexões sobre como as interpretações do Brasil podem ajudar na problematização da produção de conhecimento e como isso traz à tona potenciais caminhos para se teorizar a modernização Das múltiplas maneiras de se explorar o ponto proponho que se pense a teorização pela via da relação entre lugar e a mobilização de fontes por parte de quem teorizainterpreta No que se segue meu propósito é levantar considerações gerais sobre um possível caminho entre outros para se ler as interpretações do Brasil Duas maneiras de mobilizálas me parecem particularmente problemáticas em primeiro lugar quando são vistas como exemplos ou casos particulares de uma teoria geral a ser importada e aplicada e em segundo lugar quando são tomadas como estudos que evidenciam um caso o caso brasileiro de uma modernização supostamente fracassada as comparações com mo dernizações supostamente bem sucedidas se mostram aqui quase sempre marcantes implícita ou explicitamente4 A meu ver as interpretações do Brasil podem ser pensadas não apenas como textos que expõem diferentes visões modernizantes do país e com isso apontam falhas incompletudes eou inautenticidades no processo formativo brasileiro mas ao mesmo tempo como textos que expõem diferentes críticas à própria noção de modernização em seu caráter universalizante 4 Uma terceira mobilização bem menos comum hoje em dia e em geral associada a Gilberto Freyre tende a ver o caso brasileiro como exemplo de um processo formativo marcado pela coexistência mais ou menos harmônica e pacífica entre as raças Esse tipo de mobilização não foi raro nos Estados Unidos por exemplo como forma de contrastar a violência das relações raciais no país com a suposta democracia racial brasileira Ainda o caso brasileiro foi relevante para uma iniciativa da Unesco nos anos 1950 voltada ao estudo das relações raciais Ver por exemplo MAIO 1999 Tão problemático quanto os dois primeiros esse terceiro tipo conserva ainda certa ressonância nas representações que muitos estrangeiros possuem do Brasil assim como nas interpretações que muitos brasileiros têm do país como um lugar de democracia racial Não seria possível neste texto tratar de toda a complexidade decorrente desse tipo de mobilização Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 207 14012021 1707 Victor Coutinho Lage 208 O que se verá adiante vale reiterar é a proposta de linhas gerais para uma abordagem das interpretações do Brasil ou notas para uma agenda de pesquisaproblematização Tendo em vista que ao longo do texto recorrerei a pensadores nascidos e ou formados em países ditos centrais muitas vezes associados a correntes de pensamento consideradas eurocêntricas tornase importante explicitar minha posição acerca de algumas controvérsias que tais opções podem engendrar Não recorro a textos de europeus ou estadunidenses por eles supostamente proverem reflexões ou teses de aplicabilidade universal e não vejo qualquer incompatibilidade apriorística entre a mobilização de tais textos e a reflexão sobre a condição periférica Além disso como mobilizo pensadores como Gayatri Chakravorty Spivak Homi Bhabha e Dipesh Chakrabarty com frequência identificados como póscoloniais outra consideração preliminar se mostra necessária Alguns pensadores latinoamericanos brasileiros inclusive têm demonstrado re sistência ao rótulo póscolonialismo Sem entrar em detalhes da controvérsia tomo a posição de Walter Mignolo como expressão de algo que pretendo não replicar Em suas palavras a analítica da colonialidade e a programática da descolonialidade se distancia e vai além do póscolonial introduzindo uma fratura tanto no projeto eurocentrado da pósmodernidade quanto em um projeto de póscolonialidade fortemente dependente do pósestruturalismo na medida em que Michel Foucault Jacques Lacan e Jacques Derrida têm sido reconhecidos como o fundamento do cânone póscolonial Edward Said Gayatri Spivak e Hommi sic Bhabha MIGNOLO 2007 p 4525 Walter Mignolo reivindica outras fontes tais como Frantz Fanon Aimé Césaire Mahatma Gandhi e almeja com isso operar a desconexão delinking ou descoloni zalização decolonization De acordo com sua proposição essa desconexão não busca modernidades alternativas e sim alternativas à modernidade e à civilização neoliberal MIGNOLO 2007 p 465 p 492 grifo do autor6 A despeito das cruciais diferenças entre os textos associados a um rótulo ou a outro como póscolonialismo marxismo desconstrução penso 5 Todas as traduções são minhas exceto quando especificado o contrário 6 O quadro das controvérsias se torna ainda mais complexo se às posições acima somase o debate em torno do chamado póscolonialismo lusófono Ver Santos 2003 e Madureira 2008 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 208 14012021 1707 Interpretações do Brasil e formação 209 que o problema reside em primeiro lugar nos próprios usos de tais rótulos à medida que recaírem em rejeições ou aceitações apressadas e por vezes irrefletidas de um texto com base na sua suposta filiação a certa corrente A mobilização dos textos que proponho não somente resiste a esse tipo de implicação da rotulação como também não pressupõe qualquer compro misso fiel à obra de qualquer pensador citado Esta não é uma maneira de negligenciar possíveis e importantes diferenças e sim uma forma de evitar que as mesmas se tornem impedimentos a encontros entre textos voltados a diferentes problematizações Em adição a isso não é incomum a posição segundo a qual desconstrução pósestruturalismo ou teoria crítica se mostrariam incapazes de apreender plenamente a chamada condição póscolonial por serem no limite eurocêntri cos ou mesmo a posição segundo a qual póscolonialismo e estudos subal ternos não se adequam à América Latina ou aos países de língua portuguesa tendo em vista que eles se ocupariam da modernidade tal como concebida no século XVIII ao passo que a colonização da América Latina por exemplo se deu em um momento histórico anterior que alguns como Mignolo 2003 vão definir como primeira fase da modernidade Sugiro que tais posições não raro correm o risco de essencializar determinada condição póscolonial que aparece quase que definida por uma marca histórica de origem No limite podese acabar reproduzindo ainda que pelo polo invertido a dicotomia en tre modernidade e não modernidade7 Nesse sentido concordo com Breno Bringel e José Maurício Domingues estendendo o ponto para os demais campos do conhecimento não só para a sociologia quando dizem que a a sociologia periférica não deveria se basear em certidões de nascimento mas sim no compromisso com a elaboração de determinados debates e agendas intelectuais BRINGEL DOMINGUES 2015 p 638 Dito isso o texto prossegue em quatro partes A próxima seção coloca o problema da relação entre lugar e política do conhecimento Em seguida 7 O que por vezes ocorre nos próprios textos de Walter Mignolo Para uma leitura crítica ver Domingues 2009 8 Minha divergência com os mesmos pensadores se dá no que considero ser uma subapreciação do potencial do que chamam de pensamento póscolonial para problematização em tela no próprio texto deles e de maneira geral nas reflexões de foco teórico de José Maurício Domingues Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 209 14012021 1707 Victor Coutinho Lage 210 sugerese um ponto de entrada para se explorar as interpretações do Brasil com foco no conceito de formação A terceira parte busca mostrar muito brevemente como esse caminho pode ser efetivamente traçado com base em menções panorâmicas a certas interpretações do Brasil A última parte se dedica a notas finais com breve recapitulação dos pontos principais do texto LUGARES E POLÍTICA DO CONHECIMENTO Luiz Costa Lima publicou em 1991 uma coletânea de textos próprios inti tulada Pensando nos Trópicos onde ele diz exercer o gosto de pensar como habitante dos trópicos fazendoos presentes no trato com qualquer objeto seja ele ou não tropical LIMA 1991 p 12 O pensador também diz que quando escrevo sobre Cervantes Diderot ou Mallarmé não me finjo de ana lista europeu Não o faço mesmo porque sei que se houver alguma novidade no que disser ela se entrosa com a ótica que me concedem as dificuldades quase desesperadoras do terceiro mundo LIMA 1991b p 21 Anos mais tarde Luiz Costa Lima diz que a diferença alcançada por obras que temati zam a experiência vivida em continentes marginalizados e metropolitanos internaliza lugares distintos tendencialmente provocadores de configurações diferenciadas LIMA 2003 p 23 grifo do autor Lugar é visto e sentido é experienciadovivenciado não como uma delimitação geográfica mas como um condensador temporal de expectativas possibilidades e vivências LIMA 2003 p 25 n 6 Está em jogo aqui a relação entre configurações diferenciadas e o lugar em que se processa a diferença ou em que ela é re cebida LIMA 2003 p 25 Retornarei adiante a essa concepção de lugar Em um texto escrito para um periódico australiano que dedicou um nú mero especial a sua obra Luiz Costa Lima expressa certo desabafo deixeme dizer o que significa viver intelectualmente lá isto é no nosso desprezado hemisfério significa saber de antemão que seu trabalho não terá difusão em particular se sua língua materna não for uma língua cosmopolita é o caso do português E o que lhe parece ainda pior significa que até mesmo nos círculos da intelligentsia local sua reflexão será recebida com alguma des confiança já que não é reconhecida como algo que descende de uma fonte legítima isto é de um pensador ou movimento cuja matriz esteja localizada no primeiro mundo LIMA 2009 p 122 Essa observação me é crucial em Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 210 14012021 1707 Interpretações do Brasil e formação 211 um aspecto específico ela chama atenção para a reprodução interna de uma relação hierárquica entre o conhecimento produzido no centro e o que se produz na periferia Nesse sentido reforçase o ponto de que a relação en tre lugar e a política de produção de conhecimento pode ser entendida para além de um pressuposto fronteiriço geográfico Esta é a problematização que busco continuar traçando no que se segue Referindose ao intelectual latinoamericano Luiz Costa Lima diz que ao se deparar com os modelos de pensamento mais frequentemente disponí veis esse intelectual se acostumou a se ver e a ser visto como um adaptador e um difusor de correntes de pensamento previamente legitimadas nos paí ses metropolitanos LIMA 1991c p 134 Isso pode ser percebido eu diria na prática de se buscar a aplicação de uma teoria atualizada em geral formulada nos Estados Unidos ou na Europa por estadunidenses ou euro peus a um estudo caso ligado à suposta realidade brasileira periférica ou algo do gênero Essa prática corriqueira se mostra em diferentes campos do conhecimento com uma aplicabilidade flexível o suficiente para abarcar os mais distintos casos Diante disso não defendo uma rejeição de fontes externas em benefício de alguma pureza nacional ou interna de alguma autenticidade do co nhecimento Como dito acima o certificado de nascimento da teoria não é a única coisa que importa e sim como ela pode ser colocada em movimento Um momento ainda com Luiz Costa Lima me ajuda a sumarizar o ponto o isolamento nacional das literaturas só ajuda a preservação do status colonial LIMA 1991 p 39 Em linha similar Silviano Santiago faz um alerta por um lado os intérpretes do Brasil não podem buscar a emulação apenas do que é ditado pelo pelo progresso evolutivo oferecido pelas nações do Primeiro mundo e pela modernização ocidental por outro lado abrasileirarse não significa tornarse xenófobo ter aversão às culturas estrangeiras SANTIAGO 2005 p 99 Fascínio e rejeição pelo modelo externo muitas vezes podem ser lados de um mesmo problema afinal 9 Para Silviano Santiago em outro texto há certo método que precisa ser rejeitado segundo o qual a fonte ou a influência exercida por algum modelo metropolitano é o que confere legitimidade ao conhecimento produzido na América Latina tal discurso crítico isto é tal método reduz a criação dos artistas latinoamericanos à condição de obra parasita uma obra que se nutre de uma outra sem nunca lhe acrescentar algo de próprio uma obra cuja Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 211 14012021 1707 Victor Coutinho Lage 212 Em outra ocasião Silviano Santiago propiciou novo ângulo para a proble matização em tela ao destacar que os intelectuais brasileiros com frequência são questionados em países metropolitanos sobre a contribuição que a produ ção cultural no Brasil traz para a teoria crítica SANTIAGO 2004 p 194 Continuarei com Silviano por mais um instante porém proponho ampliar sua consideração sobre a teoria crítica para a produção de conhecimento de for ma geral Para ele a questão precedente assume certa fratura de um lado do mundo intelectual estaria o lócus de enunciação metropolitano ou central por isso superior e universal do outro lado estaria o lócus periférico subalterno e particular10 Em suma está em jogo a distinção entre receptores e produ tores de conhecimento e de modelos de pensamento distinção que faz dos primeiros o destino de referências cognitivas éticomorais estéticoexpressi vas e institucionais fabricadas pelos segundos TAVOLARO 2014 p 638 Como sugeri acima essa distinção atravessa as áreas do conhecimen to mais variadas Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto destacaram nos anos 1970 as limitações de se utilizar para a compreensão de países da América Latina arcabouços conceituais pensados para a formação da socieda de capitalista e para o desenvolvimento econômico de países desenvolvidos CARDOSO FALETTO 1977 p 139 J Leite Lopes por sua vez destacou que a utilização da ciência e da tecnologia para um mais rápido desenvolvi mento dos países do Terceiro Mundo não pode limitarse a uma importação passiva de conhecimentos e técnicas elaboradas e patenteadas no exterior LOPES 1977 p 154 Wanderley Guilherme dos Santos observou um padrão similar de importação de modelos externos pelas Ciência Sociais no Brasil a seu ver essas ciências tiveram sua evolução condicionada por dois proces sos o da forma de absorção e difusão interna dos avanços metodológicos e substantivos gerados em centros culturais no exterior e o dos estímulos vida é limitada e precária aprisionada que se encontra pelo brilho e pelo prestígio da fonte do chefe de escola SANTIAGO 2000 p 18 10 Talvez fosse mais produtivo pensar esses lados em termos de uma dupla indecibilidade e não uma causalidade unilinear A primeira relação indecidível é a que se estabelece entre o lócus central ou o lócus periférico e seu atributo superior e universal ou subalterno e particular Haveria um lócus central que não fosse já por isso considerado universal e superior E ainda haveria um lócus universal e superior que não fosse já por isso central O mesmo valendo para o lócus periférico subalterno particular A segunda relação inde cidível se configura entre as próprias noções de centro e periferia Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 212 14012021 1707 Interpretações do Brasil e formação 213 produzidos pelo desenrolar da história econômica social e política do país SANTOS 1978 p 17 Mais recentemente Gildo Marçal Brandão apontou certa divisão mun dial do trabalho intelectual a ser resistida de acordo com ela alguns estão a cargo da teoria ao passo que outros da sua aplicação eou da produção de matéria empírica para consumo e industrialização pelos intelectuais dos países centrais BRANDÃO 2007 p 180 Um raciocínio similar foi condu zido por Christian Lynch ao discutir a história da história do pensamento políticosocial brasileiro de 1880 a 1970 sua hipótese é a de que no Brasil suas elites sempre consideraram seus produtos intelectuais mais ou menos inferiores àqueles desenvolvidos na Europa e nos Estados Unidos em con sequência de uma percepção mais ampla do caráter periférico do seu país LYNCH 2013 p 7301 Tal condição se liga a uma dimensão que é tanto temporal atraso quanto espacial periferia e que está inscrita em uma divisão internacional do trabalho intelectual na geografia do mundo o cen tro produzia o universal filosofia teoria ciência ao passo que cabia à pe riferia aplicálo às suas circunstâncias particulares LYNCH 2013 p 734511 Dito isso considero suficientemente delineados os contornos da proble matização que pretendo explorar adiante12 Em poucas palavras tratase de discutir uma questão que perpassa os mais diversos campos de conhecimento sociologia estudos literários economia ciência política e até mesmo ciên cia e tecnologia concernente à relação entre teorização e lugares concebidos como não centrais 11 Direta ou indiretamente todos os textos citados acima se referem a um ambiente intelectual brasileiro composto por instituições universitárias e preocupações disciplinares em graus variados Alguns se lembrarão imediatamente da controvérsia nos anos 1950 e 1960 entre Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos acerca da tarefa da sociologia no Brasil Ou ainda das divergências em torno da forma ensaística de escrita supostamente précientífica em oposição ao trabalho científico universitário exemplos disso são as revisões que Sérgio Buarque de Holanda fez de sua própria trajetória de ensaísta a historiador e as divergên cias entre Florestan Fernandes e Wanderley Guilherme dos Santos acerca da investigação científica no Brasil Para mais sobre isso ver Gildo Marçal Brandão 2005 2007 André Botelho 2008 2010 2012 Bernardo Ricupero 2007 2011 Fábio Cardoso Keinert e Dimitri Pinheiro Silva 2010 e Renato Lessa 2011 12 Retomei mais recentemente esse ponto por outra via em Lage 2019 Ver ainda Selis Urt e Lage 2019 texto de apresentação do Dossiê Teoria das Relações Internacionais no Brasil publicado pela revista Monções Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 213 14012021 1707 Victor Coutinho Lage 214 Sendo um condensador temporal de expectativas possibilidades e vi vências como disse Luiz Costa Lima a noção de lugar não deriva de uma condição previamente estabelecida no caso em tela uma condição anterior atrelada a concepções como periferia terceiro mundo ou como vem sendo mais comum sul global Essa noção tem ao contrário o potencial de ques tionar tais concepções e suas implicações Há um forte elo entre de um lado como a produção de conhecimento acadêmico é entendida e de outro como o processo formativo brasileiro é interpretado Diante disso não surpreende que i a disparidade regional interna ao Brasil ii a comparação constante com Estados Unidos e Europa e iii a identificação de deficiências internas inautenticidade incompletude fracasso sejam traços recorrentemente ins critos tanto nas discussões sobre o ambiente acadêmico brasileiro quanto nas próprias interpretações do processo formativo do país A academia não é uma torre de marfim desconectada da sociedade ou da política De acordo com Homi K Bhabha 1994 p 1 o que se mostra teorica mente inovador e politicamente crucialéa necessidade de se pensar para além de narrativas de subjetividades originárias e iniciais e se focar naqueles momentos ou processos produzidos na articulação de diferenças culturais Nesse sentido os limites epistemológicos daquelas ideais etnocêntricas também podem ser explorados como fronteiras enunciativas de uma gama de outras vozes e histórias dissonantes e mesmo dissidentes das mulheres dos colonizados de grupos minoritários de portadores de sexualidades po liciadas BHABHA 1994 p 45 Meu esforço aqui se conecta ao de Homi K Bhabha na medida em que almeja se distanciar em certa medida das tradições da sociologia do subdesenvolvimento ou da teoria da dependên cia e resistir à busca de formas holísticas de explicação social com isso forçase um reconhecimento das fronteiras culturais e políticas mais com plexas situadas no extremo dessas esferas políticas frequentemente opos tas BHABHA 1994 p 173 Forçar esse reconhecimento e provincializar a Europa como proposto por Dipesh Chakrabarty 2000 são dimensões fundamentais na problematização dos lugares de enunciação constituídos nas interpretações do Brasil Sugiro que esses lugares reproduzem certa articulação espaçotemporal ligada a uma noção universalizante de modernização ao mesmo tempo em Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 214 14012021 1707 Interpretações do Brasil e formação 215 que proveem frestas para potenciais críticas a essa própria noção13 Em ou tros termos de um lado elas reproduzem e endossam diferentes variações de uma perspectiva modernizante sobre o processo formativo brasileiro de outro lado podem ser exploradas pelas frestas que abrem para uma proble matização da modernização14 O desejo por modernização na política do conhecimento e na prática po lítica tem sido um sonho intenso15 no Brasil mas não só convertido por vezes em pesadelo especialmente para as subjetividades subalternizadas no processo Aqui em vez de repudiar ou endossar tal sonho busco propor uma forma de interpretálo situando minha posição no que Gayatri Chakravorty Spivak chamou de dupla vinculação double bind De acordo com ela a ar rogância da consciência humanista europeia radical que oblitera os limites históricos linguísticos e culturais da figura do Homem não pode ser resol vida pela simples inversão de perspectiva segundo a qual apenas o marginal pode falar pela margem a despeito da relevância dessa outra perspectiva SPIVAK 1999 p 171 A arrogância eurocêntrica e o nativismo irrefletido compartilham a premissa de que a alteridade pode ser plenamente conhecida seja através de um padrão supostamente universal seja pela multiplicidade de subjetividades particulares 13 Embora eu não vá desenvolver o conceito frestas faz alusão ao título do livro recente de Luiz Costa Lima Frestas a teorização em país periférico LIMA 2013 14 O campo das interpretações do Brasil na direção que venho sugerindo que seja mobilizado não tem por finalidade ser um lócus das possibilidades e impossibilidades de se encontrar o outro o subalterno o nativo informante no sentido que Gayatri Chakravorty Spivak atribui aos termos SPIVAK 1999 2003 Também não é uma maneira de se trazer à tona alguma variante de uma contribuição do terceiro mundo para a política ou o conhecimento ocidentais como Robert J C Young formula seu próprio propósito YOUNG 2004 p 15 Ambas as finalidades são crucias sem dúvida e espero que ressoem de alguma maneira neste texto afinal é de suma importância que se questione como a concepção de ociden te tem silenciado o subalterno ou a heterogeneidade do outro Além disso também se mostra crucial entender como contribuições do chamado terceiro mundo ou sul global têm sido desconsideradas ou cooptadas pelo mesmo ocidente tanto na política ampla mente entendida quanto na política do conhecimento Tudo isso permeia minha discussão Contudo meu foco neste texto vem por outro ângulo talvez complementar como se tem proposto 15 Título de um documentário recente de José Mariani lançado em 2014 focado no processo socioeconômico do século XX brasileiro Ficha técnica disponível em httpwwwumso nhointensocombrsinofichahtml Acesso em 20 jan 2016 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 215 14012021 1707 Victor Coutinho Lage 216 Tratase portanto de um trabalho incessante nas fronteiras e a partir delas algo próximo ao que Walter Mignolo chama em certas instâncias de pensamento fronteiriço MIGNOLO 2003 Um pensamento que não se separa de suas implicações políticas tendo em vista que como R B J Walker afirma as fronteiras que dividem nossos espaços no terreno on the ground também permitem enable nossa imaginação política no tempo e de manei ra recíproca nossa capacidade de entendermos a nós mesmos como sujeitos modernos agindo na trajetória temporal que viemos a tratar como o terreno inevitável das liberdades modernas também mapeia nossa imaginação po lítica no espaço WALKER 2010 p 3132 Esse pensamento fronteiriço segundo proponho pode ser desdobrado nas frestas potencialmente abertas pelas interpretações do Brasil Como textos que endossam diferentes perspectivas modernizantes as interpretações do Brasil internalizam e reproduzem variações dessa arro gância europeia expressa pelo padrão de importação de modelos de pen samento para a realidade brasileira e por vezes tomando certo modelo de formação nacional europeu ou estadunidense como parâmetro a partir do qual a modernidade brasileira é interpretada quase invariavelmente como deficiente incompleta eou inautêntica Como potenciais críticas à mo dernização esses textos podem auxiliar na problematização dessa arrogância sem recair na oposição nativista Nesse sentido concordo com João Marcelo Maia as interpretações do Brasil podem falar não apenas do Brasil mas também sobre dilemas modernos globais a partir de um ponto de vista dis tinto daquele formulado no mundo europeu e anglosaxão MAIA 2009 p 156 E concordo com Sergio Tavolaro 2014 p 635 Talvez com alguma dose de ironia é possível identificar nas mais célebres obras interpretativas da peculiaridade brasileira antecipações a críticas contemporâneas ao discurso da modernidade As possibilidades dessas ante cipações encontramse associadas à posição não hegemônica de enunciação de tais intérpretes que lhes permitiu vislumbrar a experiência moderna de ângulos incomuns às posições hegemônicas Nessa orientação as interpretações do Brasil tornamse um campo profí cuo para se repensar o que significa entendermos a nós mesmos como sujeitos Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 216 14012021 1707 Interpretações do Brasil e formação 217 modernos e para se teorizar sobre a modernidade a partir disso No limite esse esforço implica no questionamento de distinções tais como primeiro mundo e terceiro mundo centro e periferia Norte e Sul Global Ocidente e seus outros Em suma as interpretações do Brasil podem expor um lugar a partir do qual a modernidade precisa ser repensada16 Na próxima seção es pecifico uma das frestas a serem exploradas os usos do conceito de formação DEFORMAÇÃO DO BRASIL PELAS FRESTAS DA MODERNIDADE Tem sido apontada há bastante tempo a recorrência e a centralidade do conceito de formação nas interpretações do Brasil especialmente desde a primeira metade do século XX17 Gabriela Nunes Ferreira e André Botelho destacam a importância do conceito para muitas interpretações do Brasil dos anos 1920 aos anos 1940 focadas na questão da formação nacional aliada à da moder nização FERREIRA 1996 p 229 grifo nosso e no estudo da formação da sociedade brasileira BOTELHO 2010 p 47 grifo nosso Simone Meucci afirma que nos anos 1930 surgiram interpretações do Brasil que têm em comum uma obsessão a ideia de decifrar a formação as origens as raízes do Brasil MEUCCI 2010 p 311 grifo original Bernardo Ricupero por sua vez diz não ser mero acaso que num país com passado colonial como o Brasil a formação seja um tema recorrente para seus intelectuais RICUPERO 2008a 16 Mantenho deliberadamente a ambiguidade em expor um lugar Seria este lugar o conjunto de textos ou o contexto supostamente externo a ele Qual seria relação entre texto e contexto Expor seria desvelar descobrir ou seria produzir construir um lugar Vale lembrar expor se liga ao mesmo tempo a apresentar algoalguém e a colocar algoalguém em risco ou a nu 17 Uma breve e não exaustiva lista de textos em que o conceito adquire centralidade por vezes já em seu título ou subtítulo inclui Populações Meridionais do Brasil 1920 volume 1 1952 volume 2 e Instituições Políticas Brasileiras 1949 de Oliveira Vianna Evolução Política do Brasil 1933 e Formação do Brasil Contemporâneo Colônia 1942 de Caio Prado Júnior Casa Grande Senzala 1933 Sobrados e Mucambos 1936 e Ordem e Progresso 1959 de Gilberto Freyre Raízes do Brasil 1936 de Sérgio Buarque de Holanda Os Donos do Poder Formação do Patronato Político Brasileiro 1958 de Raymundo Faoro Formação Econômica do Brasil 1959 de Celso Furtado Formação da Literatura Brasileira 1959 de Antonio Candido Formação Histórica do Brasil 1962 de Nelson Werneck Sodré e A Revolução Burguesa no Brasil 1975 de Florestan Fernandes Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 217 14012021 1707 Victor Coutinho Lage 218 p 66 grifo nosso Já de acordo com Vera Alves Cepêda formação ao lado de interpretação são palavraschave quando falamos de pensamento social brasileiro clássico CEPÊDA 2012 p 105 Marcos Nobre chega mesmo a identificar a existência de um paradigma da formação no pensamento brasileiro caduco mas ainda vivo NOBRE 2012 Silviano Santiago por sua vez diz que formação enquanto episteme ou paradigma funda e estrutura no século XX brasileiro os múltiplos sabe res confessionais artísticos e científicos que compartilham a despeito de suas especificidades e apesar de versar sobre objetos indiferentes deter minadas formas ou características gerais de nosso ser e estar em desenvolvi mento SANTIAGO 2013 p 259 Evando Nascimento referindose mais especificamente às interpretações de literatura e nacionalidade identificou dois modelos de reflexão de destaque no Brasil no século XX O primeiro se liga à ideia de formação é decididamente bemcomportado civilizatório e humanista e implica na necessidade importação de um mito metropoli tano para a construção do mito correlato da jovem e independente nação brasileira o outro modelo se liga ao mito bárbaro e mau da antropofagia que é um mito de deformação associado ao processo colonizador do país NASCIMENTO 2011 p 335 Não tenho por objetivo neste texto discutir a existência ou não de um paradigma ou de uma episteme da formação menos ainda de delimitar um por minha conta e risco Também não defendo que seja necessário dis tanciarse do conceito ou ir além dele em direção a um novo paradigma ou nova episteme Ao invés disso pretendo explorar linhas gerais de como a no ção de formação nas interpretações do Brasil expõe uma problematização potencial da modernidade Antes de prosseguir um alerta se daqui para frente a discussão do conceito de formação se mostrar por vezes ambígua ora dizendo respeito ao modo como os textos identificam certo Brasil ora referindose a como os textos discutem a produção de conhecimento tal ambiguidade não deve ne cessariamente ser tomada como erro passível de desambiguação mas sim como um indício da indecibilidade entre texto e contexto no âmbito da po lítica e da política do conhecimento no que concerne à problematização que aqui se propõe Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 218 14012021 1707 Interpretações do Brasil e formação 219 Segundo Paulo Arantes salvo em casos flagrantes de autoengano de liberado todo intelectual brasileiro minimamente atento às singularidades de um quadro social que lhe rouba o fôlego especulativo sabe o quanto pesa a ausência de linhas evolutivas mais ou menos contínuas a que se costuma dar o nome de formação ARANTES 1997 p 11 grifo do autor Para Paulo tratase de uma obsessão nacional Vale seguir o texto por mais um instante Tamanha proliferação de expressões títulos e subtítulos aparentados não se pode deixar de encarar como a cifra de uma experiência intelectual básica em linhas gerais mais ou menos a seguinte na forma de grandes esquemas interpretativos em que se registram tendências reais na sociedade tendências às voltas não obstante com uma espécie de atrofia congênita que teima em abortálas apanhavase naquele corpus de ensaios sobretudo o propósito coletivo de dotar o meio gelatinoso de uma ossatura moderna que lhe susten tasse a evolução Noção a um tempo descritiva e normativa compreendese além do mais que o horizonte descortinado pela ideia de formação corresse na direção do ideal europeu de civilização relativamente integrada ponto de fuga de todo espírito brasileiro bem formado ARANTES 1997 p 112 grifo nosso18 A iteração do conceito de formação expõe a experiência intelectual de serestar situado eou se situar entre duas realidades ARANTES 1992 p 16 A formação do Brasil contemporâneo é portanto entendida através de sua inserção no processo global do capitalismo Em outras palavras o processo formativo brasileiro é inseparável do movimento internacional do capital que produz elementos diferentes e assimétricos ARANTES 1992 p 38 Assim nosso modo de ser dual não é produto de alguma idiossincra sia e sim uma condição produzida historicamente no seio do capitalismo ARANTES 1992 p 89 A meu ver o foco atribuído ao capitalismo global pode ser estendido sem perda de força interpretativa muito pelo contrário ao processo global da modernidade Sendo assim a experiência intelectual mencionada se inscreve em certo movimento de oscilação que caracteriza a 18 Em uma nota que suprimi da citação Paulo Arantes dá crédito a Roberto Schwarz por ter reconhecido o ar de família que reúne as nossas diversas formações em torno de um mesmo foco ARANTES 1997 p 63 n 2 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 219 14012021 1707 Victor Coutinho Lage 220 condição intelectual da periferia da ordem capitalista da ordem moderna VLC internacional por vezes estabelecendose alguma empatia em relação àqueles que a modernização deixou para trás por vezes sonhando com uma ocidentalização acelerada do país de outro modo condenado à insignificân cia ARANTES 1997 p 51 Tratase de uma oscilação pendular que para ser problematizada não basta que se coloque em questão os lados extremos atingidos pelo pêndulo é preciso desnaturalizar o próprio ponto em que se prende sua haste Em termos ainda menos acadêmicos eu diria se minha proposta inter pretativa fizer sentido as peculiaridades do processo formativo brasileiro não jogam água no moinho da teoria da jabuticaba brasileira embora a au toimagem de singularidade da formação do país persista na universidade e para além de seus muros Afunilando um pouco mais a questão vale a pena retomar o texto de Roberto Schwarz Ideias Fora do Lugar Seu principal ponto é costurado a partir da relação entre o liberalismo europeu e a sociedade brasileira No século XIX diz Roberto os princípios teóricos da burguesia europeia contra a arbitrariedade e a escravidão eram fervorosamente defendidos no Brasil enquanto concomitante a isso as práticas ligadas às relações de favor persistiam poderosas na sociedade adotadas as ideias e razões europeias elas podiam servir e muitas vezes serviram de justificativa no minalmente objetiva para o momento de arbítrio que é da natureza do fa vor SCHWARZ 2000 p 18 Seguindo o texto temse que o Capital não atingiu no Brasil uma forma clássica como se atesta pela relação mútua entre liberalismo e sua cadeia conceitual composta por mérito igualdade razão trabalho e favor Isso é com frequência entendido continua o texto como a confirmação da má formação brasileira já que tendemos ver esta combinação como inteiramente desvantajosa para nós composta só de de feitos SCHWARZ 2000 p 20 A fim de evitar tal tendência Roberto faz um movimento ulterior no seu estudo da relação entre liberalismo e favor no Brasil nem sempre percebi do por seus leitores ou pelos que se apropriam da expressão ideias fora do lugar para conferir um certificado de má formação ao país confirmando aliás a tendência mencionada pelo próprio Roberto Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 220 14012021 1707 Interpretações do Brasil e formação 221 Contudo vejase também outro lado SCHWARZ 2000 p 20 grifo nosso Na Europa as ideias da burguesia a princípio voltadas contra o privilégio a partir de 1848 se haviam tornado apologéticas a vaga das lutas sociais na Europa mostrara que a universalidade disfarça antagonismos de classe SCHWARZ 2000 p 2021 Sendo assim se é verdade que para Roberto as ideias estão fora do lugar no Brasil onde o liberalismo é inapropriada mente evocado é preciso considerar que o nosso discurso impróprio era oco também quando usado propriamente SCHWARZ 2000 p 21 Trocando as palavras nossas esquisitices nacionais possuem um alcance mundial expondo uma problematização do processo modernizante que acompanha o capitalismo e de maneira mais ampla como venho sugerindo a moder nidade Em síntese o processo formativo brasileiro se torna nessa interpre tação um ponto nevrálgico por onde passa e se revela a história mundial SCHWARZ 2000 p 29 Não entrarei no mérito do tipo específico de marxismo em jogo no texto de Roberto Schwarz o que me interessa aqui é o movimento que ele permite a fresta que ele abre Ao invés de olhar para a má formação do Brasil e con trastála com o que seria uma perfeita formação da Europa burguesa liberal o texto expõe uma história conectada do capitalismo um desenvolvimento desigual e combinado de sua formação isso é possível pelo passo globali zante da sua perspectiva ARANTES 1992 p 97 Segundo Roberto a relação entre liberalismo e escravidão no Brasil co locou de pé uma comédia ideológica diferente da europeia SCHWARZ 2000 p 12 grifo nosso O liberalismo portanto lhe parece uma ideologia em ambos os lugares na Europa encobrindo a exploração do trabalho no Brasil convivendo com escravidão e favor sendo que aqui as mesmas ideias liberais eram falsas num sentido diverso por assim dizer original SCHWARZ 2000 p 12 Essa comédia ideológica cá e lá não é tratada por Roberto Schwarz como simples expressão nacional de um movimento geral como se o ponto crucial fosse entender algo como o desdobramento de um problema global em unidades particulares Em um texto posterior ele reforça o ponto ao discutir a noção de filtro nacional Para Roberto ela reproduz um esquema simples polarizado en tre unidades e o que não são elas nesse esquema os contextos específi cos através dos quais a filtragem opera funcionam como instâncias finais Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 221 14012021 1707 Victor Coutinho Lage 222 SCHWARZ 1999 p 8319 A multiplicação de unidades exteriores umas às outras deixaria de contemplar os modos pelos quais o sentido europeu de li beralismo impacta nosso sentido É preciso estar atento portanto ao seguinte aspecto diferenças locais ou nacionais não são desconectadas de condições e antagonismos globais o malestar brasileiro em relação às ideias modernas pertence a essa esfera dos efeitos globais SCHWARZ 1999 p 84 algo que não pode ser apreendido por um nacionalismo metodológico tal como o que se expressa na ideia de filtro nacional A discrepância entre relações sociais locais e ideias modernas pertence à dialética global do sistema SCHWARZ 1999 p 84 Assim a discrepância e o desconforto brasileiros constituem um lugar a partir do qual certo processo global pode ser interpretado Resumindo faço duas considerações Primeira como nota Alfredo Bosi 2013 liberalismo e escravidão coexistiram no Brasil e na Europa o que o texto de 1973 de Roberto não destaca ainda que de formas diferentes devido aos processos distintos de formação nacional No entanto e esta é a segunda consideração dizer que isso ocorreu em ambos os lugares não basta Esta é a principal contribuição do texto de Roberto Schwarz como visto anterior mente Dito isso podese afirmar que as ideias fora do lugar cá lançam luz sobre as ideias fora do lugar lá a discrepância brasileira lança luz tanto sobre outras discrepâncias quanto sobre um processo global E sob esse prisma a interpretação do Brasil carrega uma interpretação da modernidade O problema tratado por Roberto Schwarz foi retomado recentemente por Bernardo Ricupero e João Marcelo Maia por linhas complementares às que traço nesse texto De acordo com Bernardo a posição de Roberto não deve ser tomada como a asserção de uma mera inadequação de ideias externas a certa realidade social e sim como expressão de certa tensão na relação entre forma e ambiente RICUPERO 2008a p 68 Uma tensão que é ao mesmo tempo intelectual e política inseparável de uma dimensão comparativa que traz a difícil conexão entre referências intelectuais externas e a realidade social em que elas agem Essa tensão não é vista como uma evidência de incompletude eou inautenticidade mas como um lugar em que uma dinâmica global do 19 O argumento de Roberto Schwarz nesse texto se dá no âmbito de um debate com Alfredo Bosi BOSI 2005 que retoma o ponto em Bosi 2013 Por falta de espaço não reconstruirei os argumentos em disputa concentrandome em expor a posição do primeiro Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 222 14012021 1707 Interpretações do Brasil e formação 223 capitalismo é exposta RICUPERO 2008a p 65 ou como formulado em outro texto da periferia se pode questionar o que é tomada como pressu posto no centro RICUPERO 2013 p 530 Nesse sentido ideias fora do lugar não é simplesmente a tese de Roberto e sim o problema abordado ver RICUPERO 2013 p 528 Para João Marcelo Maia o texto de Roberto Schwarz não é uma afirmação nativista em busca de um lugar supostamente autêntico É uma expressão de um desconforto peculiar a intelectuais de países como o Brasil onde moder nidade veio acompanhada de dependência A incorporação dialética desse desconforto o transforma em uma vantagem relativa do mundo periférico que poderia vislumbrar melhor contradições do liberalismo e do capitalismo existentes no coração do mundo europeu MAIA 2009 p 16320 Para que isso seja levado a cabo João Marcelo alerta para a necessidade de se evitar duas armadilhas Em primeiro lugar as interpretações do Brasil não podem se tornar o pano de fundo para algum tipo de naturalização do que Brasil ou brasileiro significam como se fosse possível transformar a identidade brasi leira em uma entidade concreta disponível para ser interpretada em segun do lugar mobilizar esse campo de textos não deve ser uma via para que se identifique alguns deles como tão modernos quanto os que são produzidos na Europa o que faria com que o certo padrão europeu fosse aplicado para se julgar a qualidade do pensamento brasileiro MAIA 2010 p 9 Além des sas duas armadilhas sugiro adicionar uma terceira a vantagem relativa do mundo periférico não deve ser convertida em uma nova variação da noção de vantagens do atraso como se a condição periférica provesse o privilé gio de um olhar alternativo sobre a modernidade que não estaria disponível no centro o que abriria a possibilidade de um processo modernizador que pulasse etapas21 Uma possibilidade de se evitar tais armadilhas está na própria problema tização da noção de lugar Para João Marcelo Maia lugar se liga a diferentes modos de cognição do mundo social numa situação de fronteira MAIA 2010 p 10 Embora Luiz Costa Lima não seja mencionado no texto creio ser plausível associar ambas as proposições vale lembrar lugar para Luiz é um 20 Ver também Maia 2010 p 11 21 A noção de vantagens do atraso foi trabalhada em Vianna 1993 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 223 14012021 1707 Victor Coutinho Lage 224 condensador temporal de expectativas possibilidades e vivências Trazendo tais proposições para mais perto do problema em tela aqui temse um lugar discursivo que pensa o moderno de forma global e descentrada sem reduzir a periferia a simples receptáculo do centro MAIA 2009 p 163 e sem se restringir aos limites do estadonação MAIA 2011b p 8189 Os usos do conceito de formação nas interpretações do Brasil proveem frestas valorosas para que se avance essa proposição de lugar problematizando o nacionalismo metodológico e a própria concepção de modernidade Dito de outra forma um processo global pode ser problematizado exatamente a partir de certos lugares que poderiam ser vistos sob outra perspectiva como nada mais do que uma cópia periférica inautenticidade e incompletude assim reiteradas de uma modernidade central ou originária Luiz Felipe de Alencastro 2000 p 9 grifo nosso contribui para esse esforço quando diz que o Brasil se formou fora do Brasil Isto é a formação do Brasil contemporâneo é um processo que não se confina ao território da colônia e que também ocorre no triângulo do Atlântico Sul ligando África Europa e Brasil através da escravidão do comércio e da colonização essas duas partes unidas pelo oceano isto é as colônias portuguesas no continente africano e na América do Sul se completam num só sistema de exploração colonial cuja singularidade ainda marca profundamente o Brasil contempo râneo ALENCASTRO 2000 p 9 De maneira crua são pessoas raciali zadas como negras incorporadas à força a uma rota gigantesca de tráfico de viventes são pessoas escravizadas gerando produtos agrícolas ou explorando recursos naturais em grandes propriedades de terra e são produtos e recur sos suprindo o comércio e a vida europeus A um só tempo e em um grande espaço temse uma dinâmica que engloba os processos formativos de Brasil de vários países da África e de parte da Europa Tratase de um processo for mativo global da modernidade À formulação de Luiz Felipe Alencastro eu proporia um ajuste Não se trata de um elo entre interno e externo que teria se estabelecido no passado e marcado desde então o que seria o Brasil contemporâneo mas sim de pro por que as reconfigurações do interno e do externo são constantes e consti tutivas da formação do país o Brasil tem sido formado também fora do Brasil O externo por vezes é o que é mais desejado econômica moral política e culturalmente em outras ocasiões o que é mais repelido ainda em outras Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 224 14012021 1707 Interpretações do Brasil e formação 225 instâncias o que se defende dever ser internamente ajustado ou deglutido de alguma forma Como dito por João Cezar de Castro Rocha seguindo o texto de Luiz Felipe o país se constituiu através de uma exterioridade que se transformou na estrutura mesma da nação tudo se passa como se o des centramento constituísse por assim dizer o eixo mesmo a partir do qual o país pôde e ainda hoje pode pensarse ROCHA 2011 p 11 Notese não há reivindicação de qualquer exclusividade brasileira para essa lógica formativa tampouco temse uma determinação de um imperativo intelectual e político para que essa lógica seja desfeita rompida superada em nome de alguma outra lógica genuinamente universal ou autenticamen te nacional CERTAS FRESTAS Como foi dito logo no início do texto não é meu propósito propor uma leitura detida de interpretações do Brasil específicas de uma ou mais de uma delas a partir das linhas interpretativas propostas anteriormente Ainda assim esta seção busca ao menos avançar breves indicações de como essas linhas podem ser mobilizadas Para tanto farei uma apropriação livre de uma distinção fei ta por Sergio Tavolaro Para ele seria possível categorizar dois tipos de abor dagens nas interpretações do Brasil Sergio usa a expressão pensamento social brasileiro a sociologia da dependência cujos expoentes seriam por exemplo Caio Prado Júnior Florestan Fernandes Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni e a sociologia da herança patriarcalpatrimonial cujos expoentes seriam por exemplo Gilberto Freyre Sérgio Buarque de Holanda Raymundo Faoro e Roberto DaMatta22 Segue o argumento principal de Sergio Tavolaro 2005 p 6 Em ambos os casos é patente a resistência de ver a sociedade brasileira con temporânea e as ditas sociedades modernas centrais em pé de igualdade Por um lado afirmase que nosso passado diverge de maneira por demais 22 Tomarei por valor de face a categorização e os nomes elencados por Sergio Tavolaro em cada categoria sem que isso signifique minha plena concordância com seu esforço e os resultados a que chega Entretanto a distinção me é útil aqui como forma de apresentar uma possível mobilização das linhas interpretativas traçadas neste texto Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 225 14012021 1707 Victor Coutinho Lage 226 substantiva do contexto cultural normativo e simbólico em que emergiu e se consolidou o padrão de sociabilidade hoje predominante naquelas so ciedades centrais por outro postulase que nossa inalterada condição de dependência econômica estrutural jamais deixou de ser um obstáculo à total integração do Brasil no seleto clube dos países modernos centrais A meu ver essas duas abordagens são entrecortadas por uma tonalidade essencialista aspectos num primeiro momento vistos como historicamente constituídos são sutilmente deslocados dos contextos dinâmicos e multidimensionais em que se originaram e transformados em variáveis independentes pretensamente capazes de explicar em qualquer momento da história brasileira o tipo de sociabilidade que aqui se consolidou Duas implicações do esquema interpretativo proposto no trecho citado falam diretamente ao que tracei neste texto até o momento Em primeiro lu gar temse a separação entre sociedades centrais e sociedades que se po deria chamar de periféricas E em segundo lugar atribuise uma dimensão modernizante às duas abordagens das interpretações do Brasil em uma a modernização passaria pela superação da condição de dependência perifé rica enquanto na outra pela superação da herança patriarcalpatrimonial Deixando de lado uma análise mais detida sobre as possibilidades e impossi bilidades da modernização brasileira identificadas pelos intérpretes de cada uma das abordagens é plausível dizer que em ambas o processo formativo brasileiro é interpretado à luz de certa concepção do que seria um processo formativo desejável verificável via de regra em sociedades ditas centrais como França Inglaterra eou Estados Unidos Portanto levando em conta as duas implicações que demarquei é possí vel dizer que as interpretações do Brasil mencionadas por Sérgio Tavolaro operam dois movimentos a um só tempo a categorização das sociedades con temporâneas em centrais ou periféricas e o endosso de uma perspectiva modernizante para o processo formativo das últimas isto é a reprodução do desejo de que as sociedades periféricas se modernizem23 23 Os processos de modernização defendidos as formas modernas desejadas e o grau de re signação diante da realidade brasileira grau que se liga a posições mais ou menos céticas quanto à efetiva possibilidade de se atingir a forma moderna desejada são obviamente assaz diversos entre as interpretações do Brasil Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 226 14012021 1707 Interpretações do Brasil e formação 227 Contudo também é possível identificar uma dimensão de crítica à moder nização a partir dos nexos globais que se expõem por fretas locais O próprio Sergio Tavolaro em textos posteriores notou algo nesse sentido em trecho já citado por mim antes é possível identificar nas mais célebres obras interpre tativas da peculiaridade brasileira antecipações a críticas contemporâneas ao discurso da modernidade TAVOLARO 2014 p 635 Nos termos que propus aqui temse a proposição de que as interpretações do Brasil são a um só tempo modernizantes e críticas da modernização expondo frestas para formas alternativas de teorização dos lugares da modernidade Vejamos brevemente como isso se dá a partir de um exemplo de cada uma das duas abordagens demarcas por Sergio Em A Revolução Burguesa no Brasil Florestan Fernandes diz que o libe ralismo ao chegar ao Brasil não representou nem uma continuidade com os velhos padrões de formação nem uma ruptura completa com os mes mos O processo formativo brasileiro é analisado ao longo do texto sem que se perca de vista sua ligação com a civilização ocidental contemporânea FERNANDES 2005 p 88 A incorporação do modelo europeu no Brasil é vista pela ótica da sua assimilação interna desigual de forma que a produ ção da desigualdade global entre centro e periferia acaba inseparável da produção da desigualdade interna entre setores da sociedade Em uma das frases de maior poder interpretativo do texto Florestan diz que a economia periférica brasileira expõe uma descolonização mínima com uma moderniza ção máxima FERNANDES 2005 p 209 grifo original Ao menos cinco traços gerais podem ser identificados no texto de Florestan 1 a preocupação com as possibilidades e impossibilidades da formação plena da nação brasileira 2 a identificação de uma transição incompleta do passado colonial para o presente formalmente independen te do país 3 a articulação entre a desigualdade interna brasileira e a de sigualdade global capitalista 4 a comparação da modernidade brasileira com o modelo de economias centrais e 5 a verificação de peculiaridades no processo formativo brasileiro em especial pela coexistência no país de elementos arcaicos e modernos24 24 Retomei mais cuidadosamente o texto de Florestan em Lage 2019 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 227 14012021 1707 Victor Coutinho Lage 228 Sugiro diante disso que a interpretação do Brasil em A Revolução Burguesa no Brasil de um lado reproduz o desejo de modernização e supe ração da condição dependente constituída através do processo formativo do país e de outro lado associa a incompletude de sua formação nacional e a produção de desigualdade que a acompanha a um processo global da modernidade capitalista articulando forças internas a forças externas for ças da periferia a forças do centro Em outras palavras temse um texto que ao interpretar a modernidade brasileira também provê uma interpretação da modernidade em seus nexos globais Ainda a perspectiva modernizan te que perpassa o texto em especial no seu desejo de modernização e na comparação com sociedades que conseguiram supostamente romper com o passado na formação de sua condição moderna coexiste com uma crí tica ao processo global de modernização produtor de desigualdades entre sociedades e no interior de sociedades periféricas Seguindo o mesmo caráter sintético passo a um exemplo de abordagem da sociologia da herança patriarcalpatrimonial Sérgio Buarque de Holanda abre Raízes do Brasil falando sobre as fronteiras europeias na construção do Brasil25 Lêse na edição definitiva do livro que a tentativa de implanta ção da cultura europeia em extenso território é nas origens da sociedade brasileira o fato dominante e mais rico em consequências HOLANDA 1995 p 31 O tão citado homem cordial foco do quinto capítulo do texto não pode ser entendido sem que se leve em conta o processo colonizador de Portugal na América e as peculiaridades dele resultantes sendo esse próprio homem cordial a mais expressiva delas Mantendo a analogia com os cinco traços que isolei no texto de Florestan proponho outros cinco para o texto de Sérgio 1 a centralidade da preocupa ção com a formação da nação no Brasil 2 o destaque às reminiscências do passado no presente do país condicionando o processo da nossa revolução 25 Sabese e já há consideráveis estudos detidos nisso que as modificações feitas por Sérgio na primeira edição de Raízes do Brasil publicada em 1936 foram profundas e significativas tanto para o entendimento do texto quanto para se discutir o modo como o mesmo vem sendo apropriado desde então Em minha tese de doutorado desenvolvo uma interpretação dessas alterações Para este texto é suficiente lidar com a edição definitiva basicamente o texto estabelecido para a terceira edição de 1956 visto que meu objetivo é apenas indicar rapidamente como as linhas interpretativas propostas por mim antes podem ser mobilizadas Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 228 14012021 1707 Interpretações do Brasil e formação 229 título e assunto do último capítulo 3 a atenção às desigualdades internas no país em especial entre regiões agrárias e regiões urbanas 4 as múltiplas comparações com processos formativos de outras sociedades em especial dos países protestantes e dos países colonizados pela Espanha e 5 a ênfase nas peculiaridades do processo formativo brasileiro tal como as que se expressam na figura do homem cordial Com isso é plausível dizer que Raízes do Brasil desdobra uma posição modernizante para o futuro da formação brasileira na medida em que busca identificar obstáculos que precisariam ser removidos e em menor medida traços que deveriam ser preservados a fim de que o país opere sua revolu ção e dissolva o malentendido da democracia que o atravessa Ao mesmo tempo é importante não desacoplar as considerações de Sérgio sobre as ca racterísticas do país de suas extensas considerações sobre a colonização ibé rica e sobre a importação de modelos políticos por parte de elites nacionais Sendo assim a formação brasileira também é vista como um processo global da modernidade De forma similar ainda que com diferenças consideráveis em relação ao texto de Florestan o texto de Sérgio também expõe a coexis tência de uma perspectiva modernizante do país com uma crítica que traz à tona a dimensão global em que a formação nacional se insere Sendo impossível desenvolver uma leitura minimamente cuidadosa dos textos citados espero ao menos ter indicado alguns aspectos gerais que pode riam ser explorados no sentido que propus aqui Isto é meu objetivo foi tão somente isolar alguns traços de A Revolução Burguesa no Brasil e de Raízes do Brasil a fim de sugerir que eles são vias profícuas para se identificar lugares em que coexistem perspectivas modernizantes com críticas à modernização por uma perspectiva global Em suma abordandoos a partir do esquema interpretativo proposto ao longo deste texto essas interpretações do Brasil expõem lugares assimétricos constituídos e atravessados por nexos globais da modernidade NOTAS FINAIS Começo as notas finais com duas observações Para a primeira recorro a Gildo Marçal Brandão para a segunda retorno a Bernardo Ricupero e João Marcelo Maia Gildo disse certa vez que o interesse por intérpretes do Brasil Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 229 14012021 1707 Victor Coutinho Lage 230 parece ter íntima relação com a dinâmica da política brasileira Há em suas palavras alguma conexão de sentido entre essa explosão intelectual e a conjunção crítica que estamos vivendo uma transformação que é global e de alguma forma concentrada no tempo está forçando a reorganização das esferas da nossa existência e a reformulação dos quadros mentais que até agora esquematizavam nosso saber BRANDÃO 2005 p 235 É como se o ato e o esforço de pensar o pensamento viesse à tona com mais força nos momentos em que nossa má formação fica mais clara BRANDÃO 2005 p 235 grifo nosso Bernardo Ricupero 2008a p 68 grifo nosso por sua vez estabelece outra conexão Segundo ele Se a possibilidade de não realização da formação sempre esteve implícita na literatura sobre o tema isso parece ser particularmente o caso no Brasil de hoje Além de tudo essa situação se torna também cada vez mais realidade nos países que sempre nos serviram de modelo que antes nos pareciam tão bem formados Por outro lado por paradoxal que possa parecer nossa máformação talvez ganhe especial interesse já que se generaliza ganha caráter mundial Mais tarde em outro texto Bernardo se posiciona contra qualquer pers pectiva que partindo do pressuposto de uma suposta homogeneização do mundo trazida pela globalização para melhor ou para pior dissolva a dife rença entre centro e periferia RICUPERO 2013 Estou de pleno acordo com essa resistência26 A meu ver é crucial repensar essa diferença sem negligenciála Em jogo está a necessidade de problematizar a produção da desigualdade como um pro cesso global ligado à modernidade As interpretações do Brasil abrem frestas para esse esforço caso sejam abordadas sem as restrições de um nacionalismo 26 Eu também resistiria a qualquer esforço intelectual e político que buscasse tornar a ideia de que nossa má formação tem se generalizado em mais uma justificativa para uma perspectiva ou um projeto político modernizante universalizante ou que a transformasse em algum pilar conservador não raro associado a perspectivas xenófobas e à intensificação de leis de controle à imigração por exemplo Para uma discussão da chamada brasilianização de mundo ver Paulo Arantes 2004 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 230 14012021 1707 Interpretações do Brasil e formação 231 metodológico e sem a reprodução da ideia de que elas dizem respeito a um ambiente intelectual brasileiro autônomo centrado no entendimento do pro cesso formativo brasileiro como algo isolado do mundo MAIA 2009 2010 2011a 2011b Não se trata de fazer deles textos ou teorias universais mas de interpretálos como textos a um só tempo modernizantes e críticos da mo dernização interpretações que ensejam formas alternativas de teorização dos lugares da modernidade Neste texto meu objetivo primordial foi estabelecer linhas gerais pelas quais as interpretações do Brasil possam ser abordadas não como prove dores de conhecimento sobre um caso a ser analisado por teorias da mo dernidade e da modernização produzidas no centro e sim como textos que expõem lugares a partir dos quais nexos globais podem ser problematizados considerando as relações mútuas entre desigualdades internas e externas As interpretações do Brasil ajudam a questionar a divisão internacional da produção de conhecimento que separa países receptores de países produ tores de teorias Seria obviamente uma grosseira generalização dizer que os textos desse campo avançam ou ensejam problematizações similares acerca da modernidade e da sua política de conhecimento afinal seus aparatos con ceituais e suas implicações políticas são heterogêneos No entanto é plausível sugerir que eles sejam lidos não como simplesmente nativistas ou simples mente reprodutores de algum eurocentrismo e sim como textos que colocam em xeque a própria divisão entre centro e periferia Como adiantei logo no início este texto se restringiu a propor notas para uma agenda de pesquisaproblematização As interpretações do Brasil expõem lugares a partir dos quais a modernidade pode ser problematizada assim como certa relação entre teorização e lugar pode ser repensada Cabe explorar as fretas que se abrem REFERÊNCIAS ALENCASTRO L F de O trato dos viventes formação do Brasil no Atlântico Sul São Paulo Companhia das Letras 2000 ARANTES P A fratura brasileira do mundo In ARANTES P Zero à esquerda São Paulo Conrad Editora do Brasil 2004 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 231 14012021 1707 Victor Coutinho Lage 232 ARANTES P Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira Dialética e dualidade em Antônio Cândido e Roberto Schwarz Rio de Janeiro Paz e Terra 1992 ARANTES P Providências de um crítico literário na periferia do capitalismo In ARANTES O B F ARANTES P Sentido da formação três estudos sobre Antônio Cândido Gilda de Mello e Souza e Lúcio Costa São Paulo Paz e Terra 1997 BHABHA H K The Location of Culture Londres Routledge 1994 BOSI A Dialética da colonização São Paulo Companhia das Letras 2005 BOSI A As ideologias e o seu lugar In BOSI A Entre a Literatura e a História São Paulo Editora 34 2013 BOTELHO A Passado e futuro das 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MAIO M C Tempo controverso Gilberto Freyre e o Projeto UNESCO Tempo Social São Paulo v 11 n 1 p 111136 1999 MARIANI J Um sonho intenso S l Andaluz Produções 2014 MEUCCI S O mundo português criado Gilberto Freyre fundamentos efeitos e possibilidades do lusotropicalismo nos anos 1950 In FERREIRA G N BOTELHO A org Revisão do pensamento conservador ideias e política no Brasil São Paulo Hucitec 2010 MIGNOLO W Delinking Cultural Studies London v 21 n 1 p 449514 2007 MIGNOLO W Histórias locaisprojetos globais colonialidade saberes subalternos e pensamento liminar Belo Horizonte Editora UFMG 2003 MOTA C G org Viagem incompleta a experiência brasileira 1500 2000 A grande transação São Paulo Editora SENAC 2000 MOTA C G org Viagem incompleta a experiência brasileira 1500 2000 Formação histórias São Paulo Editora SENAC 1999 2v MOTA L D org Introdução ao Brasil um banquete no trópico 2v São Paulo Editora Senac 1999 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 235 14012021 1707 Victor Coutinho Lage 236 NASCIMENTO E A antropofagia em questão In RUFFINELLI J ROCHA J C de C Antropofagia hoje Oswald de Andrade em cena São Paulo Realizações 2011 NOBRE M Depois da Formação cultura e política da nova modernização Piauí Teresina n 74 nov p 19 2012 Disponível em httprevistapiauiestadaocombredicao74tribunalivredalutade classesdepoisdaformacao Acesso em 29 ago 2014 PERICÁS L B SECCO L org Intérpretes do Brasil clássicos rebeldes e renegados São Paulo Boitempo 2014 REIS D A coord Modernização ditadura e democracia 19642010 Lilia Moritz Schwarcz dir Madri Mapfre Rio de Janeiro Objetiva 2014 História do Brasil Nação 18082010 v 5 ROCHA J Cde C Oswald em cena o PauBrasil o brasileiro e o antropófago In RUFFINELLI J ROCHA J C de C Antropofagia hoje Oswald de Andrade em cena São Paulo Realizações 2011 ROCHA J C de C org Nenhum Brasil existe pequena enciclopédia Rio de Janeiro Topbooks 2003 RICUPERO B A reconciliação com a tradição Revista Brasileira de Ciências Sociais São Paulo v 22 n 63 p 163165 2007 RICUPERO B Florestan Fernandes and Interpretations of Brazil Latin American Perspectives S l v 38 n 3 p 112123 2011 RICUPERO B Da formação à forma ainda as ideias fora do lugar Lua Nova São Paulo n 73 p 5969 2008a RICUPERO B O lugar das ideias Roberto Schwarz e seus críticos Sociologia Antropologia Rio de Janeiro v 3 n 6 p 525556 2013 RICUPERO B Sete lições sobre as interpretações do Brasil São Paulo Alamenda 2008b SANTIAGO S Formação e inserção In SANTIAGO S Aos sábados pela manhã Sobre autores livros Organização e prefácio de Frederico Coelho Rio de Janeiro Rocco 2013 SANTIAGO S Mário Oswald e Carlos intérpretes do Brasil ALCEU Recife v 5 n 10 p 517 2005 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 236 14012021 1707 Interpretações do Brasil e formação 237 SANTIAGO S O entrelugar do discurso latinoamericano In SANTIAGO S Uma literatura nos trópicos Ensaios sobre dependência cultural 2 ed Rio de Janeiro Rocco 2000 SANTIAGO S O homossexual astucioso Primeiras e necessariamente apressadas anotações In SANTIAGO S O cosmopolitismo do pobre crítica literária e crítica cultural Belo Horizonte Editora UFMG 2004 SANTIAGO S org Intérpretes do Brasil 3v Rio de Janeiro Nova Aguilar 2000 SANTOS B de S Entre Próspero e Caliban colonialismo póscolonialismo e interidentidade Novos Estudos São Paulo v 66 p 2351 2003 SANTOS W G dos Paradigma e história a ordem burguesa na imaginação social brasileira In SANTOS W G dos Ordem burguesa e liberalismo político São Paulo Duas Cidades 1978 SCHWARCZ L M A abertura para o mundo 18891930 Lilia Moritz Schwarcz dir Madri Mapfre Rio de Janeiro Objetiva 2012 História do Brasil Nação 18082010 v 3 SCHWARCZ L M BOTELHO A Pensamento social brasileiro um campo ganhando forma Lua Nova São Paulo n 82 p 116 2011 SCHWARZ R Discutindo com Alfredo Bosi In SCHWARZ R Sequências brasileiras ensaios São Paulo Companhia das Letras 1999 SCHWARZ R Idéias fora do lugar In SCHWARZ R Ao vencedor as batatas forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro São Paulo Editora 34 2000 SELIS L M R URT J N LAGE V C org A teorização em relações internacionais no Brasil importa Dossiê Teoria das Relações Internacionais no Brasil Monções Revista de Relações Internacionais da UFGD Mato Grosso do Sul v 8 n 15 2019 SPIVAK G C A Critique of Postcolonial Reason Toward a History of the Vanishing Present Cambridge Harvard University Press 1999 SPIVAK G C Death of a Discipline Nova York Columbia University Press 2003 TAVOLARO S B F A tese da singularidade brasileira revistada desafios teóricos contemporâneos DADOS Revista de Ciências Sociais Rio de Janeiro v 57 n 3 p 633673 2014 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 237 14012021 1707 Victor Coutinho Lage 238 TAVOLARO S B F Existe uma modernidade brasileira Reflexões em torno de um dilema sociológico brasileiro Revista Brasileira de Ciências Sociais S l v 20 n 59 p 521 2005 TAVOLARO S B F Neither Traditional nor Fully Modern Two Classic Sociological Approaches on Contemporary Brazil International Journal of Politics Culture and Society S l n 19 p 109128 2008 VIANNA L W Ventajas de lo Moderno Ventajas del Atraso In AROCENA F DE LEÓN E El Complejo de Prospero ensaios sobre cultura modernidad y modernización en América Latina Montevidéu Vintén Editor 1993 WALKER R B J After the Globe Before the World London Routledge 2010 YOUNG R White Mythologies Revisited In YOUNG R White Mythologies Writing History and the West 2 ed London Routledge 2004 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 238 14012021 1707 239 PENSANDO AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS A PARTIR DA PERIFERIA ANTROPOFAGIA E PERSPECTIVISMO AMERÍNDIO FLAVIA GUERRA CAVALCANTI INTRODUÇÃO Os estudos póscoloniais nas relações internacionais apontam para as ori gens eurocêntricas da disciplina e seu estabelecimento formal no século XX nos Estados Unidos Porém qual a importância das relações internacionais para aqueles que estão na periferia do sistema internacional De que rela ções internacionais estamos falando quando nos pronunciamos a partir da periferia Nossa proposta neste capítulo é discutir de que forma o Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade e o perspectivismo ameríndio estuda do por Eduardo Viveiros de Castro podem nos apontar caminhos para pen sarmos uma descolonização das relações internacionais a partir da América Latina Tanto o manifesto quanto o perspectivismo nos possibilitam conceber projetos que contestam a epistemologia ocidental moderna que está na base de nosso pensar sobre o mundo em geral e sobre as relações internacionais em particular O Manifesto Antropófago antecipa no Brasil discussões que aparece riam no meio acadêmico brasileiro décadas mais tarde De acordo com Luís Madureira ocorre já uma emergência da póscolonialidade nos movimentos de vanguarda do Novo Mundo ou seja justamente nos modernismos que foram Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 239 14012021 1707 Flavia Guerra Cavalcanti 240 tradicionalmente definidos como periféricos e imitadores MADUREIRA 2011 p 300 Em Cannibal Modernities 2005 Madureira já se perguntava se a antropofagia prefigura o projeto póscolonial de provincializar o Ocidente MADUREIRA 2011 p 300 O Manifesto Antropófago como veremos na próxima seção não deve ser lido como defesa de uma identidade brasileira diametralmente oposta à europeia Ele se insurge contra uma imitação acríti ca mas defende a imitação parcial criativa produtora do novo A experiência antropofágica reconfigura a divisão entre o eu e o outro entre sujeito e objeto desestabilizando a dicotomia InsideOutside que está na base da constituição da disciplina de relações internacionais O perspectivismo ameríndio também realiza esse deslocamento epistemo lógico da disciplina de relações internacionais Na Metafísica Canibal anali sada por Viveiros de Castro a incorporação canibal do outro obriga o homem a sair de si o exterior estava em processo incessante de interiorização e o interior não era mais que movimento para fora VIVEIROS DE CASTRO 2011 p 220 A fronteira presente nesta Metafísica Canibal é portanto bem diferente daquela que supostamente separa o sujeito moderno de seu exterior ou o Estado moderno do ambiente internacional anárquico ANTROPOFAGIA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS Relendo o Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade A atualidade do Manifesto Antropófago vem sendo discutida e reafirmada por vários teóricos que veem o manifesto como o texto fundador da cultura brasileira Poderíamos dizer que o poema mais do que a carta de Pero Vaz de Caminha é a certidão de nascimento do Brasil Se na narrativa oficial nossa história começa com o Descobrimento em 1500 no Manifesto a data é a de 1554 quando o Bispo Sardinha foi devorado pelos índios caetés Nosso mo mento fundacional é portanto marcado pelo canibalismo O manifesto expressa a forma como o brasileiro vê o colonizador e vê a si próprio e quais elementos constituem sua identidade eternamente em formação Este último ponto é importante Ao contrário de algumas inter pretações que veem o Manifesto como a defesa de uma identidade brasileira em oposição à europeia esses teóricos entendem que a antropofagia propõe Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 240 14012021 1707 Pensando as relações internacionais a partir da periferia 241 exatamente uma abertura da identidade concebida como essencialista É justamente na interface no hibridismo cultural que nos constituímos e não por oposição ao outro A Antropofagia vai nos falar da devoração do outro e não do afastamento e oposição ao outro essa devoração também não é uma aniquilação mas uma exaltação e valorização do outro Em Antropofagia hoje Jorge Ruffinelli e João Cezar de Castro Rocha 2011c reúnem textos que vão repensar o Manifesto de Oswald mostrando seu potencial para desestabilizar as epistemologias hegemônicas Em um texto sobre o Manifesto Sergio Paulo Rouanet 2011 faz uma diferenciação entre a antropofagia caeté e a antropofagia tupinambá que estariam em disputa no texto A primeira seria uma antropofagia voltada para o próprio umbigo provinciana que exalta o ser brasileiro Seria uma antropofagia chauvinista e preocupada com a defesa das raízes da comunidade e de uma identidade brasileira Em nossa interpretação os caetés são aqueles que se limitaram à negação da imitação devorando o outro num canibalismo chauvinista Em contraste os tupinambás realizam um deslocamento que leva a uma identi dade aberta nômade híbrida cosmopolita provisória em constante fluxo São cidadãos do mundo prontos para realizar uma antropofagia desconstru tivista de identidades fixas No texto Rouanet psicografa Oswald e mostra que o modernista teria deixado de ser um antropófago caeté para se tornar um antropófago tupi nambá Em suma Oswald mandaria um recado por meio de Rouanet de que mudou de opinião sobre a antropofagia A nosso ver a carta psicografada de Oswald escrita por Rouanet é desnecessária haja vista que desde o início já é possível ler o Manifesto numa chave tupinambá Ao absorver o outro o caeté o faz em seus próprios termos mantendo o predomínio de sua voz ou seja realizando um processo de assimilação cultu ral do outro este tem de se tornar um caeté a qualquer custo Ao contrário o tupinambá introduz o hibridismo realizando uma antropofagia da indecidibi lidade em que a identidade oscila entre uma raiz tupinambá e uma identidade estrangeira Os caetés querem ter raízes e os tupinambás querem ter asas ROUANET 2011a p 49 O autor lembra que atualmente encontramse cae tés por toda parte em todo lugar onde se tenta defender as raízes Há muito sérviocaeté querendo matar bósnio muito irlandêscaeté explodindo inglês Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 241 14012021 1707 Flavia Guerra Cavalcanti 242 muito iranianocaeté declarando guerra santa Caeté tem raízes As minorias étnicas também querem ter Raiz é um perigo ROUANET 2011a p 54 A interpretação de Rouanet sobre o Manifesto é compartilhada pelo escri tor e diplomata João Almino a cultura brasileira não é insular e voltada unicamente para suas raízes para o solo nacional nem por outro lado se insere de forma secundária ou subordinada numa civilização universal cen trada na Europa ALMINO 2011 p 55 Não podemos negar que o Manifesto Antropófago faz uma crítica ao cosmopolitismo eurocêntrico predominante na cultura brasileira do final do século XIX e início do XX Mas o Manifesto não para por aí Não há diz Almino uma opção pelo primitivo em prejuízo do civilizadocosmopolitaeurocêntrico porque a própria dicotomia civiliza doprimitivo é desfeita no deslocamento O primitivo de Oswald é ao mesmo tempo moderno civilizado tecnologizado daí a imagem do híbrido bár barotecnizado presente no Manifesto A semelhança da antropofagia com a desconstrução de Jacques Derrida tornase clara nesta diluição da dicoto mia Não há superioridade do civilizado sobre o primitivo nem deste sobre aquele O que ocorre é uma troca mútua de propriedades entre os supostos primitivos e civilizados A cultura brasileira deixa de ser pensada como oposta à europeia e se torna muito mais multifacetada Nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós Nunca fomos catequizados Fizemos Cristo nascer na Bahia Ou em Belém do Pará Nunca fomos catequizados Fizemos foi Carnaval ANDRADE 1928 p 1 Talvez o carnaval não o das máscaras venezianas mas o brasileiro seja o mais bem acabado exemplo de antropofagia De certa forma o Cristo que brota na favela carioca no desfile da Mangueira atualiza o Manifesto Antropófago O carnaval como dizia Bakhtin1 subverte a lógica das oposições hierárquicas e produz hibridismo Porém Almino chama a atenção para um excesso de otimismo em relação à capacidade do estômago nacional de digerir todas as influências No mundo globalizado o verdadeiro antropófago será sempre aquele com mais poder por sua maior capacidade econômica e técnica de absorção e sobretudo de exportação cultural ALMINO 2011 p 60 Sempre teremos de levar em con ta que as assimilações culturais são recíprocas e também assimétricas pois a 1 Bakhtin utiliza o termo carnavalização Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 242 14012021 1707 Pensando as relações internacionais a partir da periferia 243 desigualdade de poder é real ALMINO 2011 p 60 O que a antropofagia oswaldiana tem a nos ensinar é que não precisamos nem nos fechar numa cultura de museu uma cultura protegida de influências nem nos abrir ao universal a ponto de abdicarmos do nacional Mais do que isso na formulação de José Celso Martinez Corrêa não fa zemos questão de ter uma personalidade própria um caráter uma imagem única ao contrário o que interessa é o movimento de devoração permanente CORRÊA 2011 p 80 Para Suely Rolnik só uma leitura desatenta da antro pofagia oswaldiana poderia nos levar a associála a uma identidade brasileira Ela é um movimento que se desloca dessa busca de uma representação da cultura brasileira ROLNIK 2000 p 10 A antropofagia é assim o contrário de uma imagem identitária ou o oposto de um pensamento fundacionalista A proposta de Oswald era justamente o contrário de uma essencializa ção da identidade do brasileiro Nesse sentido a antropofagia de Oswald se aproximaria da estratégia da desconstrução Tanto a antropofagia quanto a desconstrução desestabilizam constantemente a antítese dentrofora pois o canibal ou o antropófago não respeita as marcas que estabilizam a diferença No século XVI Michel de Montaigne já havia afirmado que não há nada de bárbaro ou de selvagem nesses indígenas da América do Sul a não ser o fato de que chamamos barbárie tudo o que não faz parte dos nossos cos tumes 1580 1967 De acordo com Maria Helena Rouanet a produção romântica minimizava as referências aos costumes bárbaros dos selvagens ROUANET 2011b p 173 enquanto se destacavam suas qualidades posi tivamente conotadas aos olhos da sociedade branca civilizada ROUANET 2011b p 173 O movimento anticolonialista fazia o mesmo representando o canibal como bom resistente um herói que lutava contra a colonização A novidade do Manifesto Antropófago é justamente dizer que o Bárbaro é nos so sem qualquer subterfúgio ou tentativa de enobrecêlo Wagner submerge ante os cordões de Botafogo Bárbaro e nosso ANDRADE 1924 p 1 O conceito do Manifesto não se contenta com a inversão da oposição hie rárquica cultura europeiacultura brasileira mas produz um deslocamento do significado de cultura brasileira Em diversos trechos do Manifesto Oswald realiza enxertos em teses tradicionais sobre o que seria o brasileiro tentando justamente desfazer mitos e idealizações Por isso seu discurso é fragmenta do como aponta o crítico Antonio Cândido Múltiplas vozes surgem a partir Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 243 14012021 1707 Flavia Guerra Cavalcanti 244 dos enxertos realizados na história oficial criando uma narrativa polifônica Tal como o pensamento póscolonial a antropofagia se contrapõe à narrativa moderna sobre a centralidade da Europa no mundo A obra de Oswald realiza uma releitura da história oficial brasileira ou seja do discurso que apresenta uma origem e um fundamento para a histó ria da Nação O que se reconstrói na antropofagia é a história dos oprimidos subalternizados das alteridades toda uma polifonia de vozes enxertadas no discurso oficial que haviam sido abafadas pela história linear e iluminista do Descobrimento A antropofagia é portanto uma estratégia que ressignifica a memória dos vencidos para contesta a ofensa O Manifesto também ressigni fica as origens da Nação O Padre Vieira deixa de ser um herói para se tornar o autor do nosso primeiro empréstimo para ganhar comissão ANDRADE 1928 Para piorar Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia ANDRADE 1928 O padre Vieira é aqui ressignificado como um oportunista e sua escrita tida como uma das melhores da língua portuguesa é rebaixada à categoria de lábia Além disso o rei que faz o acordo com Vieira era um reianalfabeto ANDRADE 1928 Assim os supostos fundadores da nação são ressignificados como ignorantes trapaceiros oportunistas Poderíamos dizer que essa resignificação da origem é uma crítica da his tória do Descobrimento Diz Oswald Contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra 1928 O cabo Finisterra localizado na Galiza era considerado o fim da terra Finis Terrae no caso o fim da Europa para além do qual só haveria mar a história que começa no Cabo Finisterra é a do Descobrimento da América Mas é contra esta história que Oswald e o movimento antropofágico se insurgem pois havia uma história anterior à oficial pertencente a um mundo não datado não rubricado Sem Napoleão Sem César 1928 Aqui dois pontos merecem destaque O mundo não da tado e não rubricado nos remete a uma temporalidade distinta da crono lógica linear marcada por etapas sucessivas Por outro lado essa história é uma história sem heróis sendo estes aqui representados metaforicamente por Napoleão e Cesar A genealogia oswaldiana rompe ainda com a ideia de que a História é uma grande totalidade de pontos monumentais Também neste aspecto a crítica de Oswald parece se aproximar de uma genealogia uma vez que uma histó ria sem Napoleão e Cesar significa uma história sem marcos monumentais Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 244 14012021 1707 Pensando as relações internacionais a partir da periferia 245 O tratamento não linear que Oswald confere à temporalidade pode ser notado na organização do material O autor promove uma desordem cronoló gica ao se referir na mesma frase à história que começa no Cabo Finisterra Napoleão e Cesar A história do Descobrimento da América que começa no Cabo Finisterra não guarda relação com Napoleão e Cesar Além disso Cesar é anterior a Napoleão Ao misturar as épocas históricas Oswald pro voca uma desorganização da temporalidade linear Esta leitura paródica da temporalidade é confirmada ao final do Manifesto quando o autor alude ao episódio do naufrágio do navio em que viajava o bis po Sardinha que supostamente teria sido devorado por índios Oswald data o Manifesto no Ano 374 da deglutição do Bispo Sardinha Embora o Manifesto tenha sido escrito em 1928 esta data é a do calendário cristão europeu Para Oswald o nosso calendário e a nossa história começam ironicamente em 1554 quando o Bispo foi devorado Nesta leitura a antropofagia de Oswald se aproxima dos autores pósco lonialistas e de sua crítica sobre a narrativa histórica da modernidade que despreza a colonialidade No entanto também vemos elementos próximos da desconstrução na estratégia de Oswald Para o crítico Antônio Cândido a escrita de Oswald é fragmentária tendendo a certas formas de obra aber ta na medida em que usa a elipse a alusão o corte o espaço branco o cho que do absurdo pressupondo tanto o elemento ausente quanto o presente CANDIDO 1977 p 78 A descrição de Cândido sobre o estilo de Oswald tem vários pontos de contato com a noção de différance da desconstrução Na conferência La dif férance Derrida 1967 p 13 afirma que a différance faz com que O movimento da significação só seja possível se cada elemento dito presente aparecendo no cenário da presença relacionarse com algo que não seja ele próprio guardando em si a marca do elemento passado e já se deixando escavar pela marca de sua relação com o elemento futuro As elipses alusões cortes e espaços brancos do discurso fragmentado do Manifesto Antropofágico revelam justamente o movimento da resignificação proposto pela antropofagia e pela desconstrução É por meio desses recursos linguísticos que um significado fixo presente no discurso monológico será Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 245 14012021 1707 Flavia Guerra Cavalcanti 246 desestabilizado e reintroduzido como significante flutuante na cadeia de sig nificantes ou em outras palavras será lançado novamente no sistemático jogo de diferenças A linguagem de Oswald está ancorada na sátira na paródia na descontextualização criativa na estética da colagem no humor características que também estão presentes na definição de carnavalização de Bakhtin De acordo com Jáuregui 2008 o significante canibal realiza uma fuga vertigi nosa na constelação do que Derrida denomina différance Os canibais evocam inicialmente os ciclopes e os cinocéfalos e depois pare cem ser soldados de Khan rapidamente se convertem em índios bravos e sua localização coincide com a do buscado ouro os canibais são definidos também como escravos ou moradores de certas ilhas Longe de encontrar um momento de sossego semântico o canibal desliza ao longo de um espaço nãolinear o espaço da différance colonial JÁUREGUI 2008 p 14 No entanto a ressignificação na différance colonial apresentada por Jáuregui preserva o significado negativo de canibal Em Oswald num primeiro momento podemos ver uma inversão O canibal que no século XVI aparecia numa cadeia de significantes ao lado de termos como selvagem não cristão primitivo criança não humano surgirá no Manifesto com um significado positivo O canibal que devora o bispo Sardinha é aquele que não se deixou catequizar aquele que resistiu à imposição do cristianismo Esta inversão de Oswald no entanto não nos autoriza a concluir que ele se limita ao movimento de valorização do termo inferiorizado da oposição hierárquica europeucanibal A interpretação do Manifesto não pode ser feita com base num dos recortes de Oswald mas deve levar em conta o conjunto do texto e a interrelação entre os seus fragmentos A inversão de Oswald é provisória porque será complementada pelo movimento de deslocamento que dilui a barreira entre o eu e o outro Oswald referese ao Visconde de Cairu como um antropófago sagaz Contra a verdade dos povos missionários definida pela sagacidade de um antropófago o Visconde de Cairu ANDRADE 1928 Embora haja aqui uma inversão antes o antropófago era criança imaturo primitivo ela é seguida por um deslocamento que anula a divisão entre o representante da história oficial o Visconde e o antropófago As identidades de nobre e Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 246 14012021 1707 Pensando as relações internacionais a partir da periferia 247 antropófago não podem mais ser pensadas separadamente e é este híbrido nobre antropófago que se colocará contra a catequese uma metáfora do saber e da filosofia europeia ANTROPOFAGIA DESCONSTRUINDO PREMISSAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS A nosso ver a antropofagia qualificase como uma epistemologia a partir do local geoistórico da América Latina A Antropofagia afirmará que não somos uma cópia da Europa nem adotamos a epistemologia moderna ocidental como forma de conhecimento Portanto existe um grande potencial para a utilização da Antropofagia para repensar as premissas das correntes mais tradicionais que estruturam a disciplina de Relações Internacionais O Manifesto Antropófago insurgese contra o conhecimento lógico especulativo racionalista europeu mostrando que há uma forma de co nhecimento antropofágico relacionada à concretude da experiência ao Carnaval ao hibridismo à paródia ao humor e à adivinhação Ao contrá rio nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós Nunca fomos catequizados Fizemos foi Carnaval ANDRADE 1928 2 Contra todos os importadores de consciência enlatada A existência palpável da vida E a mentalidade prélógica para o Sr LévyBruhl estudar ANDRADE 1928 p 1 E ainda não tivemos especulação Mas tínhamos adivinhação ANDRADE 1928 p 3 Em suma a antropofagia de Oswald seria uma espécie de pensamento liminar para usarmos o termo de Walter Mignolo de um outro pensamento feito a partir da América Latina O Manifesto Antropófago realiza um pro cesso de descolonização que pode ser transposto para a área internacional A frase Tupi or not tupi that is the question repete a estrutura da frase de Hamlet mas em vez do suposto universalismo do Ser ou não ser Oswald mostra que há uma especificidade cultural em Tupi ou não tupi Esta é a nossa questão a questão do colonizado e não uma especulação metafísica sobre o ser Ao mesmo tempo como vimos na seção anterior a questão do colonizado não é fechada Não se trata de constituir uma identidade bra sileira tupi Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 247 14012021 1707 Flavia Guerra Cavalcanti 248 Ao tratar dos caetés em sua leitura do Manifesto Antropófago Sergio Paulo Rouanet nos remete a uma questão premente no campo das relações interna cionais O caeté é aquele que se fixa numa identidade e opõe a sua identidade à do outro A tese do choque de civilizações pode ser lida como uma expres são dessa mentalidade caeté Cada grupo humano possuiria uma identidade que se enraíza que não apresenta fluidez e que para sobreviver precisa da oposição ao outro O modus operandi de vários conflitos internacionais hoje se dá justamente por conta de fixações de identidade no estilo caeté Como lembrou o próprio Rouanet existe sérviocaeté iranianocaeté No campo internacional as políticas de identidade dão origem a guerras e genocídios A contribuição do Manifesto Antropófago para as Relações Internacionais reside no modo de ser tupinambá contrário às raízes e a favor da abertura para os outros O modus operandi do tupinambá é a absorção do outro mas uma absorção que significa um enaltecimento do outro Nada mais distante das tendências que verificamos no sistema internacional nas primeiras déca das do século XXI Os conflitos retomam a dicotomia civilizadobárbaro em que o bárbaro é sempre o outro o não humano aquele que precisa ser elimi nado em nome da civilização Oswald nos apresenta o bárbaro tecnizado subvertendo a hierarquia civilizadobárbaro tão presente hoje nas relações internacionais No Manifesto o bárbaro é dotado de características que são essenciais para o processo civilizacional Como nos lembra Celso Martinez Correa cida des do primeiro mundo tem um aglomerado de bárbaros hispânicos negros marroquinos que estão devorando aquela cultura e que estão renovando a própria cultura ocidental CORRÊA 2011 p 80 Os estudos migratórios podem vir a ganhar muito a partir de uma reflexão sobre a antropofagia nas relações internacionais Não temos como entender as relações que se estabe lecem hoje entre as sociedades receptoras de imigrações e os grupos de mi grantes sem pensar na questão da antropofagia Quem devora quem Como se dá essa troca cultural e a constituição de uma outra cultura híbrida que não é nem a da sociedade receptora nem a do imigrante A Antropofagia também nos permite como algumas correntes dissi dentes das Relações Internacionais questionar a dicotomia insideoutside a divisão entre o dentro e o fora o eu e o outro A Antropofagia se carac teriza por ser um processo de assimilação crítica do outro ROUANET Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 248 14012021 1707 Pensando as relações internacionais a partir da periferia 249 2011b p 174 O canibal se apropria da identidade do outro transformase em outro o dentro se transforma em fora e o fora no dentro como na fita de Moebius Diluemse assim as fronteiras que constituem a disciplina A narrativa tradicional sobre o surgimento da sociedade internacional também pode ser desconstruída por meio da Antropofagia Nos textos da Escola Inglesa a emergência da sociedade internacional é vista como uma invenção europeia que se expandiu para além de seu espaço original Esta teoria também pressupõe que a soberania moderna surgiu primeiro na Europa e depois foi exportada para o mundo Disto decorre que o modelo de Estado e de organização é aquele dado pela história europeia A sociedade internacio nal e o modelo de Estado moderno europeu são vistos como o fim que todos os demais têm de alcançar Essa temporalidade linear coloca a Europa como o ponto de chegada do progresso Mas a Antropofagia vem revirar essa temporalidade Oswald refe rese a um mundo não datado e não rubricado ANDRADE 1928 p 1 que nos remete a uma temporalidade distinta da cronológica linear marcada por etapas sucessivas O tratamento não linear que Oswald confere à temporalidade pode ser notado na organização do material O autor promove uma desordem cronológica dos fatos históricos a começar pelo início da história brasileira quando o autor a localiza no Ano da deglutição do Bispo Sardinha e não em 1500 Nesta outra temporalidade a Europa não é o futuro da América como está implícito na teoria da sociedade internacional Ao contrário há uma co constituição entre Europa e América Latina O texto de Oswald antecipa questões colocadas pelo póscolonialismo nas relações internacionais De acordo com Vera Follain de Figueiredo o Manifesto promove uma releitura do paradigma da razão moderna europeia A cons trução da ideia de modernidade conectada à expansão europeia passou pela constituição de um lugar geocultural privilegiado hegemônico de produção do conhecimento FIGUEIREDO 2011 p 391 Já Oswald diz Figueiredo vai buscar um outro lugar de enunciação que coloque em xeque a tradição oci dental o que o aproxima da razão póscolonial discutida por Walter Mignolo Tratase de questionar uma ordem mundial na qual o Ocidente e o Oriente o Eu e o outro o civilizado e o bárbaro foram inscritos como entidades natu rais MIGNOLO 1996 p 9 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 249 14012021 1707 Flavia Guerra Cavalcanti 250 Perspectivismo ameríndio e Relações Internacionais a Metafísica Canibal ou o Cogito Canibal Um exemplo de pensamento elaborado a partir da América Latina pode ser ilustrada pelo conceito de perspectivismo ameríndio cunhado por Eduardo Viveiros de Castro O perspectivismo ameríndio seria um outro pensamento capaz de interpelar a filosofia e a modernidade ocidentais O perspectivismo ameríndio não pressupõe categorias como sujeito e substância estes não existem a priori mas são produto de uma relação Esta concepção subverte a tradição filosófica europeia a qual toma a substância como um dado e as relações como uma consequência Poderíamos dizer que o privilégio da relação sobre a substância também é uma característica do pensamento póspositivista desenvolvido por europeus O poder em Foucault não é uma substância mas uma relação E o conceito de différance de Derrida é primordialmente relacional o sentido só se produz a partir de uma relação entre os significantes No entanto não pretendemos equiparar o pensamento ameríndio ao pensamento póspositivista europeu o póspositivismo europeu não leva em conta a diferença colonial Justamente para chamar a atenção para nossa especificidade Viveiros de Castro utiliza o termo diferonça uma mistura da différance de Derrida com a palavra onça que faria referência ao universo ameríndio No perspectivismo a relação ad quire uma característica diferente da que aparece no póspositivismo a incor poração A diferonça é uma relação de incorporação canibal O modo básico de relacionamento ameríndio é a caça a predação do outro Historicamente a incorporação canibal foi associada ao mito pelo pensa mento hegemônico eurocêntrico Como explicar o canibalismo a não ser por meio dos mitos e da desrazão presentes nas culturas ameríndias O perspec tivismo ameríndio resgata o mito do canibalismo de seu lugar de conhecimen to subalterno e destituído de razão O mito canibal não é o oposto da razão mas um pensamento rigoroso sobre incorporação predação transformação a partir da periferia e da diferença colonial Em suma podese falar de um cogito canibal VIVEIROS DE CASTRO 1995 No entanto este cogito se caracteriza por negar qualquer tipo de dogma Viveiros de Castro mostrou que o tema da inconstância da alma selvagem Il selvaggio è mobile era bastante comum nos relatos dos europeus sobre os Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 250 14012021 1707 Pensando as relações internacionais a partir da periferia 251 ameríndios O problema dos índios não estava na falta de inteligência mas na ausência de duas outras potências da alma a memória e a vontade Tudo o que aprendiam rapidamente era esquecido em pouco tempo e substituído por novos conhecimentos Não se fixava em suas mentes comprometendo o trabalho dos missionários Esta interpretação teria em parte algum fundamento Ela de fato corres ponde a algo que se pode experimentar na convivência com muitas sociedades ameríndias VIVEIROS DE CASTRO 2001 p 191 A concepção ocidental de cultura pressupõe uma paisagem povoada por estátuas de mármore ou seja toda sociedade tende a perseverar no seu próprio ser Nossas identidades tradições memórias são constituídas no mármore e custam a ser modificadas Na linguagem do Padre Antonio Vieira citado por Viveiros de Castro estas seriam nações de mármore Ao contrário no cogito canibal o conhecimento é rapidamente aprendido mas também esquecido Teríamos então nações de murta na definição de Vieira A inconstância não ocorre apenas em relação ao cardápio ideológico ocidental mas também e de um modo ainda mais difícil de analisar de sua relação consigo mesmas com suas próprias e autênticas ideias e instituições VIVEIROS DE CASTRO 2001 p 191 Essa inconstância resultaria numa abertura ao outro como já havia assinalado Claude LéviStrauss Em seu estudo sobre a tribo tupiguarani dos Araweté Eduardo Viveiros de Castro havia definido o cogito canibal como a topologia do deviroutro totalmente contrário ao narcisismo A prática colonial era narcísica porque tentava tor nar o outro igual a si próprio como num jogo de espelhos Por isso os con quistadores se arvoravam o direito de levar o cristianismo aos indígenas Em contraste o cogito canibal quer se tornar o outro deviroutro ser absorvido pelo outro Em vez de narcisismo há uma entrega e abnegação absolutas O ato canibal não visa a transformar o outro como o conquistador narcisista mas alterar a si próprio com base no outro quem come é que se altera Ou seja o canibal não pretende preservar a sua identidade pois não é isto o que lhe importa Não há substância identitária em meio à inconstância O que o canibal almeja é o estabelecimento de uma troca uma relação Como já dito o perspectivismo ameríndio não pressupõe um sujeito e uma substância portanto não faz sentido preservar uma identidade substancial como ocorre nas nações de mármore Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 251 14012021 1707 Flavia Guerra Cavalcanti 252 Segundo Viveiros de Castro 2011 p 220 a incorporação canibal do outro obriga o homem a sair de si o exterior estava em processo incessante de interiorização e o interior não era mais que movimento para fora A fron teira presente neste cogito é portanto bem diferente daquela que separa o sujeito moderno de seu exterior ou o Estado moderno do ambiente interna cional anárquico Um outro aspecto do canibalismo apontado pelos antropólogos OBEYESEKERE 2005 VIVEIROS DE CASTRO 2011 diz respeito ao diálo go que precedia o ato canibal A conversa com o Outro não visava a inculcar no outro sua própria cultura num discurso monológico e eventualmente punilo com o canibalismo caso não se adequasse aos preceitos ensinados Não se tratava de convencer o outro a ser igual a si Tanto o matador quanto a vítima conversavam sobre a relação de dependência que se estabeleceria entre seus grupos por meio da vingança canibal O matador proclamava o ato canibal como vingança de uma ação passada enquanto a vítima adver tia que o seu grupo o vingaria no futuro Não havia uma relação de subser viência entre o matador e a vítima pois ambos tinham direito à palavra e à construção de uma narrativa A conversa era dialógica duas vozes trocavam experiências e relacionavamse de forma simétrica A antropofagia canibal era dialógica o Outro tinha a sua alteridade preservada Esta questão terá implicações para a própria concepção de tempo ameríndia Na Filosofia da História kantiana e hegeliana as sociedades se desen volviam rumo ao estágio já alcançado pela Europa O outro é assimilado ao modelo europeu e sua voz é inaudível Poderíamos aqui utilizar a expressão antropofagia monológica para caracterizar o processo pelo qual o europeu engolia o outro para transformálo no seu semelhante A Antropofagia mo nológica revela o modo de ser europeu em processos como o assimilacionis mo a missão civilizatória o desenvolvimentismo e a teoria da modernização Ao contrário a antropofagia canibal nos introduz numa concepção de tempo e história dialógica em que a voz da vítima é escutada no mesmo mo mento em que se ouve a voz do matador O ato canibal não é o resultado de uma assimetria em que uma cultura superior tenta assimilar outra inferior e situada num estágio de desenvolvimento anterior A incorporação canibal se realiza entre duas culturas que estão numa relação simétrica coexistem num Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 252 14012021 1707 Pensando as relações internacionais a partir da periferia 253 mesmo tempo e uma depende da outra para a preservação de sua memória Os inimigos eram os guardiões da memória coletiva A memória do grupo nomes tatuagens discursos cantos era a memória dos inimigos Longe de ser uma afirmação obstinada de autonomia por parte dos parceiros desse jogo como quis Florestan e mais tarde Pierre Clastres a guerra de vingança tupinambá era a manifestação de uma heteronomia primeira o reconhecimento de que a heteronomia era a condição da auto nomia VIVEIROS DE CASTRO 2011 p 241 O perspectivismo ameríndio nas relações internacionais De que forma poderíamos utilizar o perspectivismo ameríndio para repensar o internacional a relação com o outro no sistema internacional Uma das pri meiras dúvidas que podem surgir diz respeito à possibilidade de compreender de fato o pensamento ameríndio Se acessamos o Outro no caso o pensa mento ameríndio a partir dos instrumentos de que dispomos no pensamento ocidental moderno em que medida esse perspectivismo não está perpassado e contaminado por nossa lógica Viveiros de Castro nos explica que as socie dades e as culturas que são o objeto da pesquisa antropológica influenciam ou para dizer de modo mais claro coproduzem as teorias sobre a sociedade e a cultura formuladas a partir dessas pesquisas Negálo significa aceitar um construtivismo de mão única VIVEIROS DE CASTRO 2015 p 22 Portanto não se trata aqui de propor que um pensamento ameríndio puro autêntico intocado pela civilização ocidental possa ser utilizado para contestar e revolucionar as teorias e epistemologias do campo das relações internacionais Optar por este caminho seria não só impossível na prática como contrariaria a própria ideia de que na Metafísica Canibal assim como na Antropofagia o eu se abre para o outro Retomando a frase já citada de Viveiros de Castro o exterior estava em processo incessante de interio rização e o interior não era mais que movimento para fora VIVEIROS DE CASTRO 2011 p 220 Ora este movimento do tornarse outro ir para fora e deixar o de fora vir para dentro é exatamente o oposto de uma cultura pura autêntica preservada num museu Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 253 14012021 1707 Flavia Guerra Cavalcanti 254 Em muitos aspectos a antropofagia literária coincide com a antropofagia dos povos ameríndios Para Carlos Fausto se definirmos o canibalismo como apropriação violenta de capacidades subjetivas de entes dotados de perspectiva própria a antropofagia deve ser tida como uma subespécie de canibalismo FAUSTO 2011 p 161 A coincidência entre a antropofagia de Oswald e o canibalismo tupi ocor re no nível simbólico Para Fausto a metáfora antropofágica modernista era congruente com as representações indígenas FAUSTO 2011 p 169 Os ara wetés um grupo tupiguarani do Pará estudado por Viveiros de Castro não praticam o canibalismo de fato Para os araweté o homicídio é uma forma de devoração digamos ontológica o matador captura o espírito do inimigo e aprende a controlálo ao longo do resguardo FAUSTO 2011 p 166 Assim como vimos no caso da Antropofagia o perspectivismo ameríndio e a Metafísica canibal desestabilizam a epistemologia moderna ocidental a separação estrita sujeito e objeto do conhecimento e entre o inside e o outside no sistema internacional O perspectivismo ameríndio não parte de conceitos como sujeito e substância estes se existem são o produto de uma rela ção No campo das relações internacionais esta proposta de pensar primeiro a relação e depois os entes derivados da relação já está presente em teorias construtivistas sobretudo nas pósestruturalistas No entanto a antropofagia e especialmente o conceito de diferonça cunhado por Viveiros de Castro podem nos tornar mais atentos para a diferença colonial inerente a um pen samento produzido a partir da periferia Os conflitos internacionais desencadeados por instrumentalizações de identidades que são fixadas artificialmente cristalizadas e petrificadas po dem ser analisados a partir da relação com a identidade e a cultura presentes no perspectivismo ameríndio A ideia de uma cultura da murta em contraste com a cultura do mármore das civilizações europeias nos aponta justamente a possibilidade de não fixação da identidade Amartya Sen 2006 aponta o vínculo entre a fixação das identidades com a formação de estereótipos e o potencial de conflitos violentos A violência é promovida pelo cultivo de um senso de inevitabilidade sobre uma alegadamente única e frequentemente beligerante identidade que supostamente temos SEN 2006 p xiii Para o autor a imposição de uma única identidade é um componente da arte marcial Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 254 14012021 1707 Pensando as relações internacionais a partir da periferia 255 SEN 2006 p xiii de fomentar a confrontação sectária Ironicamente o cani balismo tupi e a antropofagia que apareceriam nos discursos do século XVI como as culturas bárbaras e violentas podem hoje nos apontar justamente o caminho para evitar a violência da confrontação entre identidades fixas O encontro entre identidades também é intensificado pelos fluxos mi gratórios e a formação de comunidades com culturas diferentes daquela da sociedade receptora Parte da crise do multiculturalismo se deve ao fecha mento de uns e outros em sua própria cultura o que acaba transformando o multiculturalismo em uma mera coexistência de culturas cada uma fechada em sua identidade O deviroutro do cogito canibal e a assimilação crítica do outro têm muito a oferecer a um mundo que reforça cada vez mais suas fronteiras e cria muros para proteger as identidades de nações de qualquer possibilidade de transformação O deviroutro é ainda um antídoto contra a securitização crescente das migrações pois nos mostra que o deviroutro não é fonte de insegurança Ao contrário é a busca por segurança ontológica e o fechamento ao outro que disto decorre que propicia um terreno fértil para conflitos étnicos e demonstrações de xenofobia CONCLUSÃO Procuramos apontar neste capítulo apenas o potencial que a antropofagia e o perspectivismo ameríndio entendidos como pensamento liminar MIGNOLO 2003 apresentam para se pensar as relações internacionais e os conflitos atuais a partir da periferia Os conceitos que estruturam a disciplina como soberania racionalidade sociedade internacional a divisão entre o dentro e o fora possuem um forte caráter eurocêntrico que é desestabilizado quando recorremos às discussões póscoloniais nas relações internacionais Como discutido ao longo do texto haveria uma relação entre a Antropofagia o pers pectivismo ameríndio e o póscolonialismo O movimento literário de 1922 antecipa discussões que seriam desenvolvidas posteriormente por autores póscolonialistas A Antropofagia e o perspectivismo ameríndio também nos permitem pensar a partir da periferia sem se fechar na periferia Portanto o movimento não é o de uma rejeição absoluta das teorias internacionais mas uma assimilação crítica dos debates contemporâneos da área Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 255 14012021 1707 Flavia Guerra Cavalcanti 256 REFERÊNCIAS ALMINO J Por um universalismo descentrado In ROCHA J C de C RUFFINELI J Antropofagia hoje São Paulo Realizações 2011 ANDRADE O Manifesto da Poesia PauBrasil In ROCHA J C de C RUFFINELI J Antropofagia hoje São Paulo Realizações 1924 ANDRADE O Manifesto Antropófago In ROCHA J C de C RUFFINELI J Antropofagia hoje São Paulo Realizações 1928 BAKHTIN M The dialogic imagination Four essays In HOLQUIST M ed Translated by Caryl Emerson and Michael Holquist Austin University of Texas Press 1981 CANDIDO A Vários escritos São Paulo Livraria Duas Cidades 1977 CASTRO J Cezar Let us Devour Oswald de Andrade Nuevo Texto Crítico Anthropophagy Today S l v 12 n 2324 1999 DERRIDA J Of Grammatology Maryland Johns Hopkins University Press 1976 DERRIDA J La différance In DERRIDA J Marges de la Philosophie Paris Les Editions de Minuit 2003 DERRIDA J Différance In DERRIDA J Margins of Philosophy trans Alan Bass Chicago University of Chicago Press 1982 FIGUEIREDO V F de Antropofagia uma releitura do paradigma da razão moderna In ROCHA J C de C RUFFINELI J Antropofagia hoje São Paulo Realizações 2011 FAUSTO C Cinco séculos de carne de vaca antropofagia literal e antropofagia literária In ROCHA J C de C RUFFINELI J Antropofagia hoje São Paulo Realizações 2011 JAURÉGUI C Canibalia canibalismo calibanismo antropofagia cultural y consumo en América Latina Madrid Iberoamericana 2008 MADUREIRA L Cannibal Modernities Postcoloniality and the Avant garde in Caribbean and Brazilian Literature Charlottesville e Londres University of Virginia Press 2005 MADUREIRA L Intenção Carnavalesca de ser Canibal ou Como não Ler o Manifesto Antropófago In ROCHA J Cde C RUFFINELI J Antropofagia hoje Oswald de Andrade em cena São Paulo Realizações Editora 2011 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 256 14012021 1707 Pensando as relações internacionais a partir da periferia 257 MIGNOLO W Histórias LocaisProjetos Globais Colonialidade saberes subalternos e pensamento liminar Belo Horizonte Editora UFMG 2003 MIGNOLO W La Idea de América Latina La herida colonial y la opción decolonial Barcelona Gedisa 2007 MIGNOLO W La Razón Postcolonial Herencias Coloniales y Teorías Postcoloniales Revista Gragoatá Niterói EDUFF 1996 MONTAIGNE M de Dos canibais In MONTAIGNE M de Ensaios São Paulo Abril Cultural 1978 OBEYESEKERE G Cannibal talk the maneating myth and human sacrifice in the South Seas Berkeley University of California Press 2005 ROCHA J C de C Oswald em Cena o PauBrasil o brasileiro e o antropófago In ROCHA J C de C RUFFINELI J Antropofagia hoje São Paulo Realizações 2011 ROLNIK S Esquizoanálise e antropofagia In DELEUZE G Uma vida filosófica São Paulo Editora 34 2000 ROUANET S P Manifesto Antropófago II In RUFFINELLI J ROCHA J C de C ed Antropofagia hoje São Paulo Realizações Editora 2011a ROUANET M H Quando os bárbaros somos nós In RUFFINELLI J ROCHA J C de C ed Antropofagia hoje São Paulo Realizações 2011b RUFFINELLI J ROCHA J C de C ed Antropofagia hoje São Paulo Realizações 2011c SEN A Identity and Violence The illusion of destiny London Norton Company 2006 VIVEIROS DE CASTRO E O mármore e a murta sobre a inconstância da alma selvagem In VIVEIROS DE CASTRO E A inconstância da alma selvagem São Paulo Cosac Naify 2011 VIVEIROS DE CASTRO E Araweté os deuses canibais Rio de Janeiro Jorge Zahar 1995 VIVEIROS DE CASTRO E Metafísicas canibais Elementos para uma antropologia pósestrutural São Paulo Cosac Naify 2015 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 257 14012021 1707 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 258 14012021 1707 259 A SAGA PELO DESENVOLVIMENTO EOU AUTONOMIA NA AMÉRICA LATINA A ASCENSÃO E QUEDA DO BRASIL FRANCINE ROSSONE DE PAULA O Brasil saiu do patamar de país de segunda classe e entrou no patamar de país de primeira classe Luiz Inácio Lula da Silva 2009 Em 2009 o então presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva celebra va em Copenhague a escolha do Rio de Janeiro como sede das Olimpíadas de 2016 Naquela ocasião Lula declarou emocionado aos repórteres que o Brasil saiu do patamar de país de segunda classe e entrou no patamar de país de primeira classe1 A vitória do Rio de Janeiro na disputa pelas Olimpíadas foi interpretada por Lula e outros analistas como um claro reconhecimen to da nova posição do Brasil no sistema internacional que amparado por forte crescimento econômico estaria emergindo para o papel de ator glo bal Sete anos depois no ano das Olimpíadas o Brasil já não sustentava o mesmo prestígio conquistado ao longo da primeira década do século XXI Dados os pressupostos sobre a mobilidade dos países entre esses diferentes patamares de prestígio e poder elucidados por recentes narrativas sobre a 1 Lula comemora a vitória do Rio 2016 em Copenhagem Disponível em httpswww youtubecomwatchvKr9mogO8h0 Acesso em 14 jan 2019 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 259 14012021 1707 Francine Rossone de Paula 260 emergência do Brasil propomos um questionamento mais profundo a res peito das limitações enfrentadas pelo Brasil e outros países do sul global2 ao tentarem se reinventar e se reposicionar no sistema internacional de maneira mais autônoma Desenvolvimento é um tópico que tem historicamente interessado e in trigado muitos acadêmicos na América Latina Para alguns desenvolvimento está intrinsicamente ligado à esperança de rompimento com formas pósco loniais de exploração o que dá origem a interpretações otimistas que asso ciam desenvolvimento econômico ao empoderamento de regiões produtivas PEREIRA 2009 Para outros desenvolvimento ainda é um discurso por meio do qual a ideia de terceiro mundo e América Latina por exemplo vem sen do produzida e continuamente subordinada a estruturas ontológicas e epis temológicas dominantes ESCOBAR 1992 2012 MIGNOLO 2000 2005 Este capítulo se debruça sobre estudos produzidos por latinoamericanos a respeito das condições e limitações estruturais do sistema político e econô mico internacional explorando a tensão entre desenvolvimento e autonomia especialmente sob a luz de declarações otimistas em relação à emergência do Brasil a uma posição de influência política e econômica na primeira década do século XXI Ao analisar a fragilidade da emergência e reposicionamento do Brasil como membro do sul global a partir dessas perspectivas o objetivo é expor os diferentes níveis de subordinação ignorados por leituras que enfa tizam indicadores de desenvolvimento como condições fundamentais para visibilidade e autodeterminação Enquanto a emergência de países como o Brasil foi celebrada e associada por diversos analistas e políticos com o fim da ideia de dependência e a ruptura final das algemas coloniais que impe diam a ascensão de países em desenvolvimento à classe de países influentes no sistema internacional tanto a teoria da dependência como o pensamento decolonial expõem de diferentes maneiras outros níveis de subordinação que poderiam ter sido melhor explorados nos debates contemporâneos sobre a relação entre desenvolvimento e autonomia 2 Mignolo define o sul global tanto como um setor do planeta onde subdesenvolvimento e nações emergentes existem e que dessa forma seriam provedores de recursos naturais para o Norte Global quanto um espaço onde a sociedade política global está emergindo precisamente para fazer algo que salve a nós todos MIGNOLO 2011b p 165 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 260 14012021 1707 A saga pelo desenvolvimento eou autonomia na América Latina 261 Considerando que os teóricos da dependência explicavam os limites ao crescimento econômico autossustentável e persistente baixo padrão de vida na periferia como um aspecto contínuo do desenvolvimento capitalista glo bal com a expansão global da divisão de trabalho e a acumulação de riqueza no centro BLANEY 1996 p 460 a emergência do Brasil em um contexto em que se observava o desvio do fluxo de riqueza para o sul global passou a ser representada como um possível rompimento dessas correntes estrutu rais e a confirmação da obsolescência de tais perspectivas estruturalistas No entanto muitas dessas interpretações das mudanças recentes na política global enfatizam a reconfiguração de vencedores e perdedores no globo en quanto ignoram a forma como o discurso de emergência reproduz as regras que definem vencedores e perdedores Em outras palavras análises otimistas baseadas no sucesso econômico de países emergentes no início do século XXI enfatizavam o fenômeno de alguns perdedores históricos terem sido capazes de vencer na última década mesmo que temporariamente porém ignoravam o fato de que a condição para a vitória continuava sendo a participação na competição econômica que ainda se sustenta na produção de disparidades entre vencedores e perdedores Rebatendo esses cálculos tradicionais alguns acadêmicos críticos da América Latina apontam que participação na competi ção não traz paz e liberdade duradouras a uma estrutura opressiva imperial Mais do que participação ativa em um sistema desigual precisamos de um entendimento crítico das condições para o posicionamento e categorização no sistema que possibilite a transformação dos termos do diálogo ESCOBAR 2012 MIGNOLO 2005 2007 2011a SANTOS 2011 Para Mignolo 2005 p xv tradução nossa Completar o projeto incompleto da modernidade significa continuar repro duzindo colonialidade que é a nossa realidade atual no começo do século XXI Apesar de não termos mais a dominação colonial aberta nos modelos espanhóis e ingleses a lógica da colonialidade permanece em voga na ideia de mundo que tem sido construída por meio da modernidadecolonialidade A teoria da dependência e o pensamento decolonial são perspectivas que nos permitem analisar mais a fundo as dicotomias e as limitações impostas pelos termos atuais do diálogo sobre desenvolvimento e influência no sistema Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 261 14012021 1707 Francine Rossone de Paula 262 internacional De certa forma ambas as lentes têm como caraterística fun damental uma posição crítica em relação à ontologia moderna ocidental a partir da qual determinouse que estados e sociedades são substancialmente semelhantes e conectados por trajetórias históricas replicáveis o que justifica o fato de movimentaremse progressivamente em direção a um destino com partilhado e em alguma medida uma resistência à epistemologia moderna segundo a qual a ciência possui um papel crucial na legitimação de algumas conceptualizações como universalmente válidas ainda que suas distintas conceptualizações de autonomia levem cada perspectiva a diferentes conclu sões sobre as condições para emancipação daqueles que ainda se encontram em uma posição desprivilegiada O capítulo está dividido em três seções A primeira parte introduz cada uma das correntes teóricas e explora como elas explicam dependência e su bordinação em termos relacionais Para expor a relevância da abordagem relacional como ferramenta de análise no questionamento das interpreta ções predominantes sobre a emergência de países em desenvolvimento na primeira década do século XXI eu examino a posição proeminente do Brasil na tentativa de remapeamento da geografia econômica mundial A segunda seção foca na questão do loco de enunciação e a relevância do sujeito que fala enfatizada no pensamento decolonial como uma leitura alternativa da rela ção entre desenvolvimento e autonomia Finalmente eu analiso o problema da dependência estrutural e a desigualdade global e o processo por meio do qual se torna possível se desassociar das assimetrias de poder a partir de uma abertura para novos saberes e novos modos de ser DOIS LADOS DA MESMA MOEDA Teóricos da dependência e pensadores decoloniais problematizam a dualidade desenvolvimentodependência e modernidadecolonialidade respectivamen te Eles explicam como diferentes formas de subjugação são uma questão de posição dentro de uma determinada estrutura econômica política e social Como posições tais categorias como mundo em desenvolvimento tercei ro mundo ou sociedades modernas não podem ser eliminadas de dentro de uma estrutura dicotômica e hierárquica sem a implosão de tal estrutura Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 262 14012021 1707 A saga pelo desenvolvimento eou autonomia na América Latina 263 porque subjugação e dominação são dois lados da mesma moeda Em outras palavras subjugação é a condição de existência de várias formas de domina ção e viceversa Nesse sentido emancipação e autonomia somente podem ser conquistadas quando a estrutura é questionada desestabilizada e final mente extinguida o que significa necessariamente também a libertação dos sujeitos dominantes de suas posições Teoria da Dependência A teoria da dependência foi uma formulação teórica largamente disseminada ao final dos anos 1960 e início dos anos 1970 por acadêmicos latinoamerica nos como Ruy Mauro Marini André Gunder Frank Theotônio dos Santos Fernando Henrique Cardoso Enzo Falleto dentre outros Eles ofereceram uma análise crítica dos processos por meio dos quais o subdesenvolvimento é reproduzido na periferia do mundo capitalista Apesar da diversidade de análises e interpretações do relacionamento entre desenvolvimento e depen dência CHILCOTE 1974 muitos dependentistas como ficaram conheci dos articularam uma perspectiva teórica que opunha às leituras marxistas convencionais sobre a dependência econômica na América Latina a pers pectiva estabelecida pela Comissão Econômica da América Latina e Caribe Cepal e especialmente ao modelo difusionista segundo o qual a América Latina poderia se desenvolver através de integração e intervenção dos países desenvolvidos na região O grupo difusionista era dividido na América Latina entre aqueles que baseavam suas prerrogativas na premissa que o desenvolvimento na América Latina viria por meio de influência e assistência externa CHILCOTE 1974 p 5 e o grupo da Cepal Este último aceitava a hipótese de que a estrutura dual das sociedades em nações em desenvolvimento uma parte avançada e moderna e outra parte atrasada e feudal limitava as possibilidades de de senvolvimento CHILCOTE 1974 p 10 Segundo essa perspectiva a inde pendência econômica deveria ser conquistada através de um nacionalismo progressivo e da difusão do desenvolvimento capitalista para as áreas rurais e não modernas O modelo da dependência confronta duas premissas básicas do modelo difusionista com o argumento de que a Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 263 14012021 1707 Francine Rossone de Paula 264 Introdução de capital comércio tecnologia e novas formas políticas na América Latina por nações industrializadas altamente desenvolvidas eventualmente não resulta em desenvolvimento e na diminuição da disparidade que separa nações subdesenvolvidas mas aumenta ainda mais o desenvolvimento do subdesenvolvimento GILBERT 1974 p 107 tradução nossa Subdesenvolvimento não é uma condição original no sentido de que não é uma condição inicial natural ou essencial de alguns lugares mas uma posição ou o resultado de relações assimétricas específicas Para os depen dentistas algumas nações podem ter sido pouco ou não desenvolvidas na Europa précapitalista mas não poderiam ter sido categorizadas como sub desenvolvidas Sociedades précapitalistas na Europa não poderiam ser defi nidas dentro de uma dicotomia desenvolvimentosubdesenvolvimento que só se tornou possível por meio da redefinição da história organizada em uma escala temporal linear a partir da exploração do novo mundo JAHN 1999 p 417 O que faz a América Latina única é o fato do subdesenvolvimento de muitas partes do continente ter sido resultado do mesmo processo que trouxe desenvolvimento às economias industrializadas Como Chilcote 1974 p 12 tradução nossa aponta a América Latina é subdesenvolvida porque apoiou o desenvolvimento da Europa ocidental e dos Estados Unidos ao fornecer matériaprima quando o sistema econômico mundial expandiu precisando desses novos espaços e recursos para desenvolver A noção de subdesenvolvimento somente pode ser aplicada quando se tem um comércio mundial e uma política econômica de exploração de alguns Estados e economias por outros Cardoso 1974 p 69 tradução nossa nota que se não se pode entender os princípios do método dialético aplicado à história é melhor desistir e partir para uma análise a la Rostow de sequências lineares de evolução comparando as diferenças entre contínuos históricos homogêneos A definição de Dos Santos 1970 de dependência é frequen temente usada como um conceito básico da teoria Por dependência nós entendemos a situação na qual a economia de certos países está condicionada pelo desenvolvimento e expansão de outra econo mia a qual a primeira está sujeita A relação de interdependência entre duas ou mais economias e entre essas e o comércio mundial assume a forma de Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 264 14012021 1707 A saga pelo desenvolvimento eou autonomia na América Latina 265 dependência quando algumas economias dominantes podem expandir e se tornar autossustentáveis enquanto outras economias dependentes podem fazer isso somente como um reflexo dessa expansão que pode ter tanto um efeito negativo quanto um efeito positivo em seu desenvolvimento imediato SANTOS 1970 p 231 tradução nossa Em relação às condições de dependência na América Latina Sunkel 1973 p 78 argumenta que não só os países do subcontinente foram penetrados pelas forças econômicas externas mas eles foram organizados em uma hie rarquia de poder econômico que criou relações de dominação e dependência Um dos principais argumentos da teoria da dependência contra os discur sos dominantes de desenvolvimento disseminados desde o fim da Segunda Guerra Mundial é que a diferença entre países desenvolvidos e subdesenvol vidos é estabelecida pelo posicionamento de cada um dentro de uma estru tura hierárquica de relações econômicas mundiais e não por uma condição essencial ou um posicionamento distinto de unidades semelhantes em um estágio diferente no tempo A situação de subdesenvolvimento surgiu quando o capitalismo comercial e depois o capitalismo industrial expandiram e conectaram ao comércio mundial as economias não industriais que então passaram a ocupar posições diferenciadas na estrutura do sistema capitalista Dessa forma existe entre os desenvolvidos e subdesenvolvidos uma diferença não apenas de estágio ou estado do sistema de produção mas também de função ou posição dentro de uma estrutura econômica internacional de produção e distribuição alguns produzem bens industriais outros matériaprima CARDOSO FALETTO 1979 p 17 tradução nossa O foco dos dependentistas na imobilidade das economias capitalistas que segundo eles estariam atreladas a uma estrutura rígida que favorece ria sempre as economias centrais somado a conjuntura política na América Latina da década de 1970 acabou fazendo com que a teoria da dependência fosse eventualmente desacreditada No entanto essa perspectiva ainda nos fornece uma base para questionamentos relevantes sobre o mais recente ciclo de otimismo e pessimismo em relação a possibilidade de reestruturação do Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 265 14012021 1707 Francine Rossone de Paula 266 sistema internacional especialmente quando ampliamos as lentes para além das estruturas econômicas Pensamento Decolonial No século XXI um entendimento estrutural de dominação e subordinação semelhante ao discutido anteriormente está expresso nas palavras dos pen sadores decoloniais Uma vez que você sai da crença natural de que a história é uma sucessão cronológica de eventos progredindo em direção à modernidade e traz à tona a espacialidade e violência do colonialismo então modernidade se torna intrincado de forma perene com colonialidade em uma distribuição espacial de nódulos cujo lugar na história é estrutural e não linear Se invés de concebermos a história como um processo cronológico linear nós pensarmos em estrutura histórica heterogênea de processos históricos interagindo nós entenderemos melhor o papel da ideia de América e de Americanidade na modernidade bem como o que significa falar sobre modernidade e colo nialidade como dois lados da mesma moeda MIGNOLO 2005 p 4849 tradução nossa Pensamento decolonial não é uma formulação recente Aníbal Quijano um sociólogo peruano é classificado como dependentista por alguns analistas como Chilcote 1974 mas por ele não ter limitado suas análises às estruturas políticoeconômicas da América Latina a maioria das interpretações da escola da dependência o exclui Nos anos 1980 Quijano introduziu o conceito de colonialidade como um lado invisível e constitutivo da modernidade que se tornou uma palavrachave no vocabulário do projeto de pesquisa decolonial MIGNOLO 2007 p 450 Colonialidade do poder é baseada na Classificação racial e social da população mundial sob o poder eurocêntrico Mas colonialidade do poder não se limita ao problema das relações sociais racistas Permeia e modula as instâncias básicas do poder mundial colonial moderno capitalista eurocêntrico para se tornar a pedra angular dessa colo nialidade do poder QUIJANO 2007 p 171 tradução nossa Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 266 14012021 1707 A saga pelo desenvolvimento eou autonomia na América Latina 267 O pensamento decolonial como uma perspectiva tem evoluído desde a década de 1990 por meio de debates e encontros organizados por acadêmicos latinoamericanos e latinoamericanistas nos Estados Unidos como Arturo Escobar Walter Mignolo Ramón Grosfoguel e Aníbal Quijano Compartilhando das mesmas premissas ontológicas da teoria da dependência o pensamento decolonial nos convida a questionar a modernidade europeia considerando sua antítese colonialismo na América e os efeitos da colonialidade de poder conhecimento e ser no sujeito colonial global FONSECA JERREMS 2012 p 103 tradução nossa O projeto consiste em descolonizar a lógica da co lonialidade que traduz diferenças em valores MIGNOLO 2011a p xxvii e acaba por possibilitar a classificação e hierarquização de espaços culturas e pessoas Enquanto os teóricos da dependência argumentavam que havia uma estrutura políticoeconômica na qual desenvolvidos e subdesenvolvi dos eram simultaneamente criados os pensadores decoloniais argumentam que há uma estrutura sóciohistórica na qual modernidade e colonialidade ou imperialismo e subordinação têm sido simultaneamente criados desde o século XV com a conquista e expansão do capitalismo para os territórios coloniais MIGNOLO 2000 2011a Subordinação não é uma condição essencial em harmonia com as linhas traçadas pelos teóricos da dependência mas uma posição que resultou de coerção e outras expressões de relações assimétricas de poder Diferentemente da teoria da dependência o pensamento decolonial vai além do questiona mento da conexão entre desenvolvimento e autonomia Escobar 1992 p 22 observa que desenvolvimento se tornou o mecanismo primário por meio do qual países em desenvolvimento têm sido produzidos e têm se produzido a partir de e para uma posição desprivilegiada da qual se espera que desenvol vam O discurso de desenvolvimento que se formou nos anos 1940 e 1950 continha um imaginário geopolítico que vinha sendo delineado pelo signi ficado de desenvolvimento desde então ESCOBAR 2012 p 9 De acordo com essa perspectiva desenvolvimento ao invés de ser uma condição para empoderamento e autonomia também pode ser visto como uma razão para perpétua subordinação ao passo que países em desenvolvimento e subdesen volvidos são confrontados com a precariedade de suas posições na hierarquia reproduzidas a partir de configurações de conhecimento e poder e novas práticas institucionais Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 267 14012021 1707 Francine Rossone de Paula 268 Discursos de desenvolvimento que assumem com naturalidade os indica dores para a categorização e classificação de países desenvolvidos países em desenvolvimento e países subdesenvolvidos dificilmente podem ser reconci liados com uma ontologia relacional explorada por essas duas perspectivas analisadas anteriormente que enfatizam relações históricas e imediatas e po sições não baseadas em uma substância identificável dessas condições Ambas formulações de subordinação dependência e colonialidade são baseadas em um entendimento estrutural de realidade em que autonomia implica um triunfo sobre o conceito de desenvolvimento ao invés de adesão aos prin cípios impostos para o que se define como desenvolvimento bem sucedido e autônomo Como então poderiam ser interpretados os casos bem sucedi dos de desenvolvimento que foram recentemente associados à diminuição da disparidade de poder político e econômico entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento Nas próximas sessões eu discuto o que muitos pesquisadores e analistas interpretaram como uma integração bem sucedida do Brasil aos mercados globais na primeira década do século XXI e sua participação na campanha por um sul ou mundo em desenvolvimento mais unido contra os interesses dominantes do norte ou mundo desenvolvido Tal estratégia de aliviar as assimetrias por meio de um equilíbrio de poder deve ser interpretada sob a luz do entendimento da teoria da dependência e do pensamento decolonial de que duas partes de uma dicotomia assim como desenvolvidosubdesen volvido ou nortesul não podem ser analisadas separadamente mas ambas existem e se movem em relação a outra A nova geografia da economia mundial Em 2004 em seu discurso de posse o expresidente Luiz Inácio Lula da Silva reiterou seu compromisso de longo termo com aqueles silenciados pela desigualdade fome e desesperança e citou Frantz Fanon sobre o le gado do passado colonial que determinou o tipo de liberdade que a des colonização ofereceu a essas pessoas Se assim deseja tome a liberdade para morrer de fome SILVA 2004 p 1 BURGES 2013 p 581 tradução nossa Dirigindose a uma audiência de 191 estadosnações Lula os lem brou que 125 países dentre os presentes incluindo o Brasil foram sujeitos Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 268 14012021 1707 A saga pelo desenvolvimento eou autonomia na América Latina 269 a um passado de opressão por uns poucos países poderosos que ocupavam menos do que 2 do globo Ele reconheceu os avanços em direção a uma ordem democrática póscolonial mas expressou sua visão de que a configu ração das instituições internacionais ainda previne uma maior participação do sul na economia global e debates políticos A ideologia do expresidente Luiz Inácio Lula da Silva era apontada como antiimperialista pelo seu tom e sua ênfase no combate à desigualdade Lula enfatizou a necessidade tanto de uma revisão conceitual quanto de uma reforma prática das instituições multilaterais tais como as Nações Unidas a Organização Mundial do Comércio e o Fundo Monetário Internacional LIMA HIRST 2006 p 22 Uma preocupação particular em relação à distri buição desigual de poder e riqueza dentro dessas instituições resultou numa campanha forte pela democratização da ordem mundial através da reforma dessas estruturas políticas O expresidente também enfatizava em seus dis cursos a constituição de uma nova geografia econômica internacional como uma forma de encontrar um equilíbrio contra hierarquias históricas do sis tema internacional É essencial prosseguir construindo uma nova geografia econômica e comercial na qual enquanto se mantêm os laços vitais com os países desenvolvidos permita o estabelecimento de pontes sólidas entre os países do sul que se mantiveram isoladas umas das outras por tanto tempo SILVA 2004 p 3 tradução nossa O slogan uma nova geografia para o comércio mundial não implicava um isolacionismo em relação ao Norte mas clamava por um alinhamento entre países em desenvolvimento que permitisse a eles se apresentarem de forma unida e consistente a favor de seus interesses mesmo que tivessem que ir de encontro aos interesses dos países ricos ALMEIDA 2010 p 172 deixando assim de estarem condicionados pelas visões e demandas predomi nantes das economias mais avançadas Dessa forma Lula tentou mobilizar o mundo desenvolvido por uma agenda que focava no equilíbrio de poder A nova estratégia da política externa brasileira consistia em enfatizar a coo peração sulsul o estabelecimento das novas relações com os parceiros não tradicionais e a formação de coalisões com outros países em desenvolvimento Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 269 14012021 1707 Francine Rossone de Paula 270 O argumento de que alianças brasileiras com o terceiro mundo era uma tentativa de reduzir as assimetrias em relação aos Estados Unidos e a União Europeia ao se tornar parte de um movimento antihegemônico para contraba lançar poder é largamente reconhecido e discutido na literatura sobre a emer gência do país ALMEIDA 2010 CEPALUNI 2007 2009 CERVO 2010 LIMA HIRST 2006 SANTOS 2011 SOTERO ARMIJO 2007 VIGEVANI ROETT 2010 O crescente poder de barganha do Brasil foi associado aos es forços brasileiros de diversificar os parceiros econômicos do país desviando seu foco de atenção para o sul global e advogando por uma melhor integra ção entre os países em desenvolvimento A necessidade de se formar alianças para equilibrar as relações entre nor te e sul também se traduz na necessidade por instituições que possibilitem os encontros e as negociações justas de interesses divergentes Cervo 2010 p 11 destaca a importância do multilateralismo para a elevação do Brasil a um status de ator global mas especialmente para a democratização da ordem mundial Ele argumenta que uma ordem multilateral e reciprocidade em todas as áreas economia comércio segurança meioambiente saúde e direitos humanos assegura que as regras beneficiem a todos Multilateralismo tem existido sem reciprocidade em que as assimetrias têm favorecido os países dominantes Brasil advoga por um multilateralismo recíproco CERVO 2010 p 11 no qual a ordem não é estruturada para o benefício do mais forte Alguns sinais da intenção brasileira de expandir seu papel em instituições multilaterais mas também em política regional e agendas do terceiro mun do se destacam a criação de uma Comunidade Americana do Sul políticas e posições ativistas em negociações de comércio a formação de coalisões sulsul G20 comercial e o Fórum de diálogo IBAS Índia Brasil e África do Sul a promoção de seus próprios candidatos para posições de liderança na Organização Mundial do Comércio OMC e o Banco Interamericano de Desenvolvimento e finalmente a campanha por uma reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas através do qual Brasil buscou se elevar a uma posição de membro permanente LIMA 2006 p 22 Também podemos considerar a formalização do grupo BRICS Brasil Rússia China e África do Sul desde 2010 É perceptível a semelhança entre os discursos e iniciativas da política exter na brasileira no início do século XXI e o discurso dos teóricos da dependência Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 270 14012021 1707 A saga pelo desenvolvimento eou autonomia na América Latina 271 e dos pensadores decoloniais no que consiste a ênfase no elemento relacio nal o que está expresso na necessidade de formação de coalisões integração regional e equilíbrio de poder como condições para maior autonomia O ex presidente Lula define de maneira explícita em suas narrativas uma estru tura desigual que favorece os países desenvolvidos e se propõe a combater tais assimetrias No entanto um contexto políticoeconômico que parecia ser um desafio sem precedentes a uma ordem internacional competitiva injus ta e desigual se analisado cuidadosamente estava ancorado em estruturas discursivas e em práticas que reforçam os alicerces dessa mesma ordem que continua gerando perdedores e vencedores Desenvolvimento econômico foi inadvertidamente estabelecido como uma condição por meio da qual o país se aproximava de uma posição de onde pas saria a ter a chance de falar de uma nova ordem mundial e ser ouvido Alguns indicadores considerados relevantes apontados pelos analistas são o fato das exportações brasileiras terem quase triplicado de 2003 US 66 bilhões para 2010 US 169 bilhões e o débito externo do Brasil ter encolhido de 45 do PIB em 2003 para 15 do PIB em 2010 com as reservas internacionais acu mulando de US 376 bilhões para US 2525 bilhões em 2010 SOTERO 2010 p 72 Também enfatizavam a descoberta de depósitos de Petróleo e gás natural que tornou o pais autossuficiente nesses recursos energéticos ONIS 2008 p 111 Esses indicadores mencionados e a competitividade do Brasil como exportador de produtos agrícolas foram comumente interpretados como condições que justificariam uma posição privilegiada do país nas mesas de negociação LIMA HIRST 2006 p 27 E esses mesmos indicadores se torna ram medidas da fraqueza do país nos anos seguintes Na próxima subseção eu ofereço minha interpretação desse fenômeno considerando as premissas ontológicas a subjugação e dominação como posições e não como condi ções das duas perspectivas analisadas neste capítulo O fim das assimetrias Baseandose nas declarações de Lula e sua tentativa de equilibrar poder contra uma ordem assimétrica podese inferir que a distribuição de recursos impor ta já que se tornou um dos princípios constitutivos de poder De acordo com o expresidente Lula o poder precisa ser redistribuído e a redistribuição de Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 271 14012021 1707 Francine Rossone de Paula 272 poder é interpretada principalmente em relação a decentralização do comér cio mundial e desconcentração de riqueza Nesse sentido poder é relativo e não absoluto ao ponto em que o Brasil liderou uma coalisão de países em desenvolvimento com o intento de equilibrar forças contra o que foi definido como a determinação do mundo desenvolvido em maximizar seus interesses em negociações em instituições multilaterais como a OMC em detrimento de países mais pobres O esforço de equilibrar poder dentro do panorama das instituições multilaterais significa que ganhos absolutos noção liberal institucionalista de que cooperação pode beneficiar a todos não é desejável Considerando a disparidade entre as posições dos países desenvolvidos e em países em desenvolvimento qualquer negociação só seria aceitável na medida em que reduzisse essa disparidade E a redução dessa disparidade de poder dependia de uma distribuição desigual em favor dos países em desenvolvi mento ou menos desenvolvidos De acordo com a teoria da dependência e o pensamento decolonial as unidades não são autocontidas e elas não carregam nenhuma característica essencial que justifique a condição desprivilegiada de alguns dentro da estru tura hierárquica As unidades são simplesmente posicionadas de uma certa maneira em relação a uma outra como resultado de diferenciais de poder Dentro desse panorama teórico a iniciativa do Lula de desviar sua atenção para o mundo em desenvolvimento e liderar uma coalisão contra os inte resses dominantes nas mesas de negociação em instituições multilaterais pa rece fazer perfeito sentido Isso significa que poder nunca é absoluto e para que um ganhe o outro precisa ganhar menos ou perder O crescente poder de barganha do sul depende nesse contexto específico de um decrescente poder de barganha do norte Celebravase a possível nova configuração de posições como um desafio ao status quo e às hierarquias de ordem mundial Porém como apontado ante riormente existem limitações a essa interpretação que não podem ser ignora das Gilbert 1974 p 107 escrevendo sobre as possibilidades de autonomia argumentou que somente um desvio marginal da dependência seria possível por meio da expansão da área de comércio regulação de investimentos es trangeiros e maximização de poder de barganha em comércio internacional por exemplo Esses seriam remédios marginais que colocariam a economia Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 272 14012021 1707 A saga pelo desenvolvimento eou autonomia na América Latina 273 dependente em uma posição de barganha melhor no sistema mas não que brariam o padrão de dependência Para explorar as limitações desse entendimento de autonomia que se limita a equilíbrio de poder precisamos considerar não somente a sustentabilidade da posição melhorada dos países em desenvolvimento mas também os custos domésticos para essa posição e a medida em que a nova posição melhorada abre a possibilidade para uma reconfiguração mais radical da ordem mun dial na qual autonomia não depende de uma alocação eficiente de recursos domesticamente ou internacionalmente para a satisfação de objetivos econô micos que nem sempre estão associados com o melhoramento da qualidade de vida e bem estar daqueles que se tornam alvos de tais medidas ao redor do mundo A próxima seção discute outro nível de dependência que seria a dependência dos modos ocidentais de pensar ser e fazer Se incluirmos esse nível de análise autonomia não é realizável onde as condições são predefini das por vozes dominantes em uma estrutura política e econômica hierárquica COLONIALIDADE DO SABER Nos anos 1960 e 1970 alguns dependentistas reconheceram que o debate en tre dependência e autonomia que se baseava meramente na noção de ameaça externa do imperialismo e do potencial interno para liberação era uma sim plificação improdutiva Para Cardoso e Falleto 1979 o sistema capitalista de dominação aparece como uma força interna por meio de práticas sociais de grupos e classes locais que tentam impor interesses estrangeiros não pre cisamente porque são estrangeiros mas porque eles podem coincidir com va lores e interesses que esses grupos acabam por adotar como deles próprios CARDOSO FALLETO 1979 p xvi tradução nossa Olhando para a forma como os recursos precisam ser alocados eficien temente e as atividades de todos os membros da sociedade gerenciadas e organizadas de uma maneira específica em direção a um mesmo objetivo crescimento econômico a questão passa a ser se crescimento econômico e acumulação ainda são um meio para um fim um futuro melhor para todos ou um fim em si mesmo Que conhecimento está sendo privilegiado e que conhecimento ineficiente está sendo marginalizado Quais sujeitos e ativida des são recompensados e quais sujeitos e atividades precisam ser eliminados Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 273 14012021 1707 Francine Rossone de Paula 274 eou transformados A naturalidade com que sociedades são medidas e en sinadas a se organizar de maneira bem sucedida e eficiente adiciona outro nível à análise da tensão entre desenvolvimento e autonomia Pensadores decoloniais de maneira ainda mais explícita do que os depentistas enfati zam a necessidade de se olhar para esses mecanismos de autocolonização E para além disso considerar os efeitos e as barreiras impostas pela geopolítica do conhecimento São enfáticos em dizer que a distribuição mundial de co nhecimento importa se quisermos pensar mais seriamente em emancipação Há uma crítica implícita e explícita à generalização ou generalidade do conhecimento em ambos os movimentos É mais implícita na teoria da depen dência e parte fundamental da agenda do pensamento decolonial Mignolo 2005 escrevendo a partir da perspectiva decolonial argumenta que a teoria da dependência não só mostrou o diferencial de poder no domínio econômi co mas também provou o diferencial epistêmico e a distribuição de trabalho dentro de uma geopolítica imperial do conhecimento ao apontar em direção à necessidade e a possiblidade de diferentes localizações de entendimentos e de produção de conhecimento MIGNOLO 2005 p 1314 tradução nossa Teóricos da dependência adaptaram a teoria de imperialismo e os estudos marxistas de dependência argumentando que a América Latina é um caso particular geograficamente e historicamente diferente dos casos ilustrados por estudos marxistas tradicionais baseados na experiência europeia A na tureza da dependência na América Latina de acordo com Cardoso 1974 p 69 foi resultado de uma evolução colonizaçãoescravidãodependência e não de uma evolução feudaldependência O caso da América Latina não poderia ser visto como uma replicação dos estágios europeus de capitalismo como analisado por marxistas tradicionais De maneira semelhante pensado res decoloniais têm argumentado que todo conhecimento é geograficamen te localizado O locos de enunciação a localização do sujeito que produz o conhecimento sobre si mesmo e sobre outros é um ponto crucial para se pensar autonomia A teoria da dependência disseminada principalmente na América latina mas também na Europa e nos Estados Unidos se tornou uma das poucas teo rias do mundo em desenvolvimento que foi reconhecida e debatida nos cen tros acadêmicos tradicionais ocidentais FosterCarter 1976 p 173 nota que apesar das divergências internas a teoria da dependência ou o que também Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 274 14012021 1707 A saga pelo desenvolvimento eou autonomia na América Latina 275 foi chamado de escola neomarxista da teoria do desenvolvimento consti tuiu um novo paradigma O problema é que mesmo quando foi reconhecida como uma nova contribuição para o campo da política econômica a teoria da dependência sempre é mencionada como uma escola latinoamericana de pensamento enquanto que o marxismo o liberalismo e o neoliberalismo não são necessariamente anunciados geograficamente como escolas de pen samento alemã inglesa ou americana mas geralmente estudados e ensinados como se fossem lentes teóricas universalmente aplicáveis Alguns conhecimentos são considerados universais e alguns conhecimen tos são associados a regiões específicas que produzem conhecimentos não generalizáveis Somente acadêmicos europeus ou norteamericanos são consi derados capazes de contribuir com a história filosófica mundial FONSECA JERREMS 2012 p 106 Grosfoguel 2007 p 213 nota que a egopolítica de conhecimento da filosofia ocidental tem sempre privilegiado o mito do ego não situado O projeto decolonial então consiste em revelar a localização geopolítica e corpopolítica do sujeito que fala sempre escondida enco berta apagada da análise GROSFOGUEL 2007 p 213 tradução nossa No campo do desenvolvimento devemos considerar por exemplo como o aparato institucional para medir gerenciar e classificar sociedades de acordo com um padrão de performance econômica impacta a configuração de posi ções dentro de uma estrutura global econômica de produção e distribuição Arturo Escobar tem ativamente apoiado o conceito de pósdesenvol vimento ou alternativas ao desenvolvimento ESCOBAR 1992 uma vez entendido que desenvolvimento bem como outros conceitos e tecnologias não podem pretender serem universalmente aplicáveis Ele argumenta que é necessário gerar novas maneiras de ver de renovar descrições e definições sociais e culturais deslocando as categorias com as quais os grupos do tercei ro mundo têm sido construídos por forças dominantes e produzindo visões da realidade que tornem visível os numerosos loci de poder dessas forças ESCOBAR 1992 p 49 tradução nossa Isso significa que a emergência de países do terceiro mundo não pode ser celebrada com base no crescimento econômico e na capacidade desses países de finalmente se tornarem motores na economia global Mignolo 2007 defende que a mudança decolonial deve ser uma mudan ça de perspectiva para uma outra geografia e outras formas de saber e de ser Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 275 14012021 1707 Francine Rossone de Paula 276 Grosfoguel 2007 p 212 tradução nossa adiciona que para que se descolo nize o conhecimento precisamos levar a sério as perspectivas epistêmicas cosmologias insights de pensadores críticos do Sul Global pensando dos e com os espaços e corpos raciaisétnicossexuais Esse processo de desco lonização envolve desafiar os ideais de autonomia baseados na individuali dade moderna ocidental e em entendimentos particulares de boa vida e boa sociedade para incluir diferentes cosmologias e modos alternativos de orga nização da vida social Descolonização requer a descolonização do conhecimento lado a lado com a reconfiguração da geopolítica do conhecimento A questão de quem e quando por que e onde o conhecimento é produzido é mais relevante do que a questão do que é produzido quando e onde segundo a vertente decolonial de pensamento Mignolo 2009 p 160 tradução nossa propõe a inversão do dito de Descartes Ao invés de assumirmos que pensamento vem antes do ser assumamos que é o corpo racialmente marcado em um espaço geohistoricamente marcado que sente a urgência e o chamado para falar articular seja em qualquer sistema semiótico que é a urgência que faz desses organismos vivos seres humanos Quando consideramos a economia do conhecimento interpretar a emer gência do terceiro mundo ou mundo em desenvolvimento requer muito mais do que uma análise de indicadores econômicos Quais são as condições para inclusão Devemos celebrar o fato de algumas economias em desenvol vimento encontrarem o seu caminho para a mesa de negociações em insti tuições multilaterais por meio do crescimento econômico O primeiro passo para responder essa questão é não tomar crescimento econômico como um dado Para politizar o debate precisamos considerar as inclusões e exclusões que são assumidas na retórica sobre o achatamento do mundo sobre a pos sibilidade da redução das assimetrias e a obsolescência de categorias como nortesul por meio da conquista por aqueles pertencentes ao sul global do almejado futuro ou posição de destaque na plataforma política global Na próxima seção eu discuto as possibilidades de autonomia sob a luz do que se tem argumentado neste capítulo Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 276 14012021 1707 A saga pelo desenvolvimento eou autonomia na América Latina 277 AUTONOMIA INDEPENDÊNCIA ECONÔMICA E DELINKING A teoria da dependência foi criticada por não ir muito além de uma análise detalhada das obstruções estruturais para o desenvolvimento na América Latina Assumiam que se a relação com as economias do centro capitalis ta era uma condição inevitável de dependência a solução obvia seria então uma ruptura desses laços uma revolução Porém a maioria dos teóricos da dependência devotou pouco tempo discutindo independência econômica ou considerou muito vagamente as alternativas à dependência capitalista GILBERT 1974 p 107 Cardoso e Faletto 1979 argumentavam que não era realista que desen volvimento capitalista o que inclui o progresso das forças produtivas prin cipalmente por meio da importação de tecnologia acumulação de capital penetração das economias locais por empresas estrangeiras crescimento do número de grupos assalariados e intensificação da divisão social do traba lho pudesse solucionar os problemas da maioria da população Eles não elaboraram muito sobre a alternativa mas sugeriram que o que deveria ser discutido como uma alternativa precisava superar os objetivos baseados na consolidação do Estado e na realização do capitalismo autônomo A opção decolonial tenta se distanciar das noções de autodeterminação De acordo com Grosfoguel 2002 descolonização não pode ser pensada em termos de conquista de poder sobre as fronteiras jurídicopolíticas de um Estado Nem um movimento nacionalista de desenvolvimento nem estraté gias socialistas seriam suficientes uma vez que colonialidade global não se reduz a presença ou ausência de influência externa GROSFOGUEL 2007 p 219 Um método proposto para se ativar a mudança decolonial é o pensa mento crítico de fronteira que funcionaria como um conector entre diferen tes experiências de exploração que pode agora ser pensado e explorado na esfera das diferenças coloniais e imperiais MIGNOLO 2007 p 498 tradu ção nossa A pluriversalidade das diferentes histórias coloniais intrincadas com a modernidade colonial estaria conectada com um projeto universal de desassociação com os parâmetros da racionalidade moderna Dessa forma pensamento crítico de fronteira envolve e implica ambas diferenças imperiais e coloniais MIGNOLO 2007 p 498 tradução nossa Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 277 14012021 1707 Francine Rossone de Paula 278 O projeto decolonial requer uma sensibilidade aguçada em relação a di ferença Quando Lula declarou que em 2009 o Brasil entrou no patamar de país de primeira classe inferese dessa declaração que houve uma superação das hierarquias históricas que relegavam o Brasil a uma posição inferior e ig norase as hierarquias reproduzidas internamente no processo Para Holloway 2002 tal ilusão do Estado pode ser enganosa e se tornou um paradigma dominante de muitos movimentos de esquerda há quase um século o que vem confinando qualquer possibilidade de mudança radical às possibilida des oferecidas pela aparato estatal A universalidade dessa ideia do Estado como meio para autonomia é o que a torna perigosa Se desenvolvimento não pode ser separado de medi das controle e gerenciamento da população a reflexão sobre emancipação requer que se suspenda por um instante o ideal tradicional de controle de poder político e de desenvolvimento nacional como caminho e que se abra para a criatividade e produção não como fim em si mesmos mas como um meio de e para expressão de vida Buen VivirVivir Buen Viver bem Desassociar tem significado rejeitar o que se parece ocidental envolvendo a rejeição de discursos de desenvolvimento e análises sobre a subalternidade que não são escritas por e de posições subalternas Pensadores decoloniais têm privilegiado formas indígenas de pensamento e de ser na América Latina não como a forma certa mas como uma alternativa que tem sido constantemente silenciada e reprimida por meio da padronização do que seria um modo efi ciente e moderno de viver e organizar a vida A noção de Viver Bem tem sido apresentada como uma ilustração da pos sibilidade de se dissolver o dualismo sociedade natureza na qual a natureza se torna parte do mundo social e comunidades políticas podem até mesmo se estender em alguns casos para o não humano GUDYNAS 2011 p 445 Tanto a expressão quechua Sumak Kawsay Buen Vivir quanto a expressão aymara Suma Qamaña Vivir Bien vêm sendo apresentadas como alternati vas ao desenvolvimento ao capitalismo um exemplo de economia solidá ria ou até mesmo como uma solução para as crises da civilização humana DELGADO 2018 p 239 ACOSTA 2009 DUSSEL 2012 ESCOBAR 2012 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 278 14012021 1707 A saga pelo desenvolvimento eou autonomia na América Latina 279 QUIJANO 2010 Essas cosmologias questionam a fundação da modernidade as ontologias ou representações de mundo que determinam o que está den tro e o que está fora desses mundos desafiando o mito do progresso como um caminho linear unidirecional GUDYNAS 2011 p 447 Nesse novo pa radigma decrescimento econômico como Mignolo 2009 explica se torna não o objetivo das opções decoloniais mas possivelmente o resultado de um entendimento que o principio da regeneração da vida deve prevalecer sobre a primazia de produção e reprodução de bens a todo custo em detrimento da vida MIGNOLO 2009 p 161 tradução nossa Contudo o risco de se definir alternativas é a facilidade com que muitas acabam sendo absorvidas por elites políticas e econômicas e incorporadas a estruturas institucionais do status quo O Buen Vivir por exemplo se tornou um conceito orientador da nova Constituição Equatoriana que passou em um referendo popular em Setembro de 2008 O preâmbulo diz Nós decidimos construir uma nova forma de coexistência cidadã em diversidade e harmonia com a natureza para buscar o bem viver o sumak kawsay WALSH 2010 p 18 tradução nossa Sua transformação em um novo modelo de desenvolvi mento ignorou o fato de que sumak kawsay se trata de uma cosmologia de vida totalmente oposta a quaisquer noções de desenvolvimento ou melhoramento DINERSTEIN 2015 p 7 Suma Qamaña por vez foi transformado em um recurso retórico observado na Constituição da Bolívia e no Plano Nacional de Desenvolvimento Bolívia Digna Soberana Produtiva e Democrática para Viver Bem lineamentos estratégicos 20062011 BOLÍVIA 2007 Delgado 2018 p 247 observa que nesse movimento de incorporação do termo pelo Estado qualidades como complementariedade harmonia e equilíbrio aca baram sendo associados a valores morais ou a questões econômicas e políti cas de modo com que fossem necessariamente ajustados aos parâmetros e projetos do Estado Segundo Delgado proponentes aymara também rejeitam amplamente a interpretação de suma Qamaña como uma alternativa ao de senvolvimento ainda que visando a redução da pobreza e a redistribuição de renda DELGADO 2018 p 248 Walsh 2010 p 18 tradução nossa aponta que em seu sentido mais geral buen vivir denota organiza e constrói um sistema de conhecimento e vida baseado em comunhão de humanos e natureza e na harmonia espaço temporal da totalidade da existência Nesse sentido nos induz a refletir na Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 279 14012021 1707 Francine Rossone de Paula 280 possibilidade dessas novas formas de pensar ser e fazer excederem a noção de política como de costume ou seja uma arena ocupada por seres huma nos racionais disputando poder para representar outros visàvis o Estado CADENA 2010 p 363 tradução nossa Pensadores decoloniais engajam a ideia do Buen Vivir e Vivir Bien como opções mas também argumentam que não faz sentido aplicar o conceito para outras regiões Outras culturas teriam que explorar suas próprias opções do bem viver mas o termo poderia ser usado como um guardachuva para um conjunto de posições diferentes GUDYNAS 2011 p 444 tradução nossa É importante ressaltar que essas posições diferentes não seriam necessaria mente definidas em relação a outras mas a partir de princípios que favore cem a vida em detrimento de competições vazias que justificam discursos de ascensão e fracasso dos atores participantes desse tipo de sociedade O convite então é feito a análises não romantizadas que contemplam o outro em sua alteridade sem que a dimensão política seja obliterada DELGADO 2018 p 242 tradução nossa Ainda que as análises do presente capítulo tenham sido desenvolvidas em termos de Norte e Sul vale lembrar que uma geografia crítica do sul global requer uma atenção especial à heteroge neidade das geografias humanas SPARKE 2007 p 119 às contradições e disputas entre filosofias indígenas e estruturas estatais de organização polí ticaeconômicasocial no que diz respeito a autonomia DELGADO 2018 DINERSTEIN 2018 e uma resistência a quaisquer tendências de romanti zação e estigmatização das relações entre as diferenças o que as tornariam tão pouco emancipatórias CONCLUSÃO Muitos livros e artigos foram publicados nos últimos anos sobre a posição brasileira no sistema internacional Ainda que o escopo das análises variem a maior parte dessas análises acabam por reforçar indicadores e condições específicas por meio dos quais um país adquire prestígio e voz nos processos de tomada de decisão em instituições multilaterais Dessa forma as mesmas condições que levaram o Brasil a uma posição de ator global influente nos fóruns multilaterais continuam a produzir disparidade e competição entre as diferentes sociedades do globo e não sustentadas passaram a legitimar mais Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 280 14012021 1707 A saga pelo desenvolvimento eou autonomia na América Latina 281 uma vez na história os discursos e justificativas sobre o fracasso do Brasil e outros países então emergentes Neste capítulo recorri às literaturas da teoria da dependência e do pensamento decolonial como lentes apropriadas para uma análise mais cuidadosa dos discursos otimistas sobre a emergência de países em desen volvimento no sistema internacional Repensar essa ordem implica repensar as ontologias e epistemologias modernas o que possibilitaria o surgimento de diferentes práticas e condições discursivas Assim uma declaração sobre a emergência do Brasil e de outras sociedades do sul global seria seguida não por uma explicação sobre como o mundo em desenvolvimento está alcançando determinado padrão de crescimento econômico mas justificada por novas cosmologias de vida e um senso diferente de coletividade não mais baseado nas ontologias modernas ocidentais que insistem tanto na separação entre indivíduos na diferenciação qualitativa na hierarquiza ção de grupos de pessoas e na naturalidade dos princípios do crescimento acumulação e dominação REFERÊNCIAS ACOSTA A La maldición de la abundancia Quito Ediciones AbyaYala 2009 ALMEIDA P R Never Before Seen in Brazil Luis Inácio Lula da Silvas grand diplomacy Revista Brasileira De Política Internacional v 53 n 2 p 160177 2010 BLANEY D L Reconceptualizing Autonomy The Difference Dependency Theory Makes Review of International Political Economy S l v 3 n 3 p 459497 1996 BOLIVIA Plan Nacional de Desarollo Bolivia Digna Soberana Productiva Y Democrática para Vivir Bien Lineamientos Estratégicos 20062011 La Paz Ministerio de Comunicación Gaceta Oficial de Bolivia 2007 BURGES S Brazil as a bridge between old and new powers International Affairs S l v 89 n 3 p 577594 2013 CADENA M Indigenous Cosmopolitics in the Andes Conceptual Reflections beyond Politics Cultural Anthropology S l v 25 n 2 p 334370 2010 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 281 14012021 1707 Francine Rossone de Paula 282 CARDOSO F H O Inimigo de Papel Latin American Perspectives S l v 1 n 1 p 6674 1974 CARDOSO F H FALETTO E Dependency and Development in Latin America Berkeley CA University of California Press 1979 CERVO A L Brazils rise on the international scene Brazil and the World Revista Brasileira de Política Internacional Brasília n 53 p 732 2010 CHILCOTE R Dependency A Critical Synthesis of the Literature Latin American Perspectives S l v 1 n 1 p 429 1974 DE ONIS J Brazils Big Moment A South American Giant Wakes Up Foreign Affairs S l v 87 n 6 p 110122 2008 DELGADO A C T Suma Qamaña as a strategy of power politicizing the Pluriverse Revista Carta Internacional S l v 13 n 3 p 236261 2018 DINERSTEIN A C The Politics of Autonomy 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107123 1974 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 282 14012021 1707 A saga pelo desenvolvimento eou autonomia na América Latina 283 GROSFOGUEL R Colonial Difference Geopolitics of Knowledge and Global Coloniality in the ModernColonial Capitalist WorldSystem Utopian Thinking S l v 25 n 3 p 203224 2002 GROSFOGUEL R The Epistemic Decolonial Turn Beyond political economy paradigms Cultural Studies S l v 21 n 23 p 211223 2007 GUDYNAS E Buen Vivir Todays tomorrow Development S l v 54 n 4 p 441447 2011 HOLLOWAY J Change the World without Taking Power The Meaning of Revolution Today London Pluto Press 2002 LIMA M R S A política externa brasileira e os desafios da cooperação SulSul Revista Brasileira de Política Internacional Brasília v 48 n 1 p 2459 2005 LIMA M R S HIRST M Brazil as an Intermediate State and Regional Power Action Choice and Responsibilities International Affairs S l v 82 n 1 p 2140 2006 MIGNOLO W D Delinking The Rhetoric of modernity the 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23 p 168178 2007 QUIJANO A Buen Vivir entre el desarollo y la descolonialidade del poder Viento Sur S l v 122 p 4656 2012 ROETT R Brookings Institution The new Brazil Washington DC Brookings Institution Press 2010 SANTOS T dos Globalization Emerging Powers and the Future of Capitalism Latin American Perspectives S l v 38 n 2 p 4557 2011 SANTOS T dos The Structure of dependence American Economic Review 60 p 231236 1970 SILVA L I Statement by H E Luiz Inácio Lula da Silva at the General Debate of the 59th Session of the General Assembly of the United Nations United States 2004 Disponível em httpwwwunorgwebcastga59 statementsbraeng040921pdf Acesso em 10 dez 2015 SOTERO P ARMIJO L E Brazil To be or Not to be a BRIC Asian Perspective Ásia v 31 n 4 p 4370 2007 SPARKE M Everywhere but Always Somewhere Critical Geographies of the Global South The Global South S l v 1 n 1 p 117126 2007 SUNKEL O The pattern of Latin American Dependence In URQUIDI V THORP R ed Latin America and the International Economy New York John Wiley 1973 VIGEVANI T CEPALUNI G A política externa de Lula da Silva a estratégia da autonomia pela diversificação Contexto Internacional Brasília DF v 29 n 2 p 273335 2007 WALSH C Development as Buen Vivir Institutional arrangements and decolonial entanglements Development S l v 53 n 1 p 1521 2010 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 284 14012021 1707 285 SOBRE AS AUTORAS E AUTORES Ana Carolina Teixeira Delgado é doutora em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PUCRio com estágio doutoral no CIDESUMSA Professora do Curso de Relações Internacionais e Integração da Universidade Federal da Integração LatinoAmericana Unila e do Programa de PósGraduação em Relações Internacionais da mesma instituição Aureo Toledo é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo USP com estágios pósdoutorais pelo Humanitarian and Conflict Response Institute Universidade de Manchester Reino Unido e pela Jimmy and Rosalynn Carter School for Peace and Conflict Resolution Universidade George Mason Estados Unidos É professor do curso de graduação em Relações Internacionais e no Programa de PósGraduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia UFU Flavia Guerra Cavalcanti é doutora em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais IRI da PUCRio É professora adjunta de Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais e Defesa e Gestão Estratégica da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ Francine Rossone de Paula é doutora em Pensamento Social Político Ético e Cultural pela Virginia Tech EUA com concentração em pensamento polí tico e cultural É professora de Relações Internacionais na Escola de História Antropologia Filosofia e Política da Queens University Belfast Reino Unido Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 285 14012021 1707 Sobre as autoras e autores 286 Lara Martim Rodrigues Selis é doutora em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da PUCRio É professora do curso de graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia UFU Leonardo Ramos é doutor em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da PUCRio É professor do departamento de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais PUC MG e professor visitante da Universidad Nacional de Rosario UNR É pes quisador associado ao Instituto de Estudos da Ásia da Universidade Federal de Pernambuco UFPE e pesquisador do Instituto Nacional de Estudos sobre os Estados Unidos INCTINEUCNPqFAPESP Lidera junto com o pro fessor Javier Vadell o Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias GPPM Luciana Maria de Aragão Ballestrin é doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais UFMG É Professora Associada de Ciência Política no Programa de Pósgraduação em Ciência Política e no cur so de Relações Internacionais da Universidade Federal de Pelotas UFPel É editora da Revista SulAmericana de Ciência Política Marcos Costa Lima é doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas Unicamp com pósdoutorado pela Université Paris XIII É professor associado 4 do departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco UFPE Coordena o Instituto de estudos da ÁsiaUFPE Marina Scotelaro é doutora em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais PUCMG É professora do Centro Universitário de Belo Horizonte Marta Fernández é doutora em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais IRI da PUCRio É professora adjunta e atualmente diretora do IRIPUCRio Natália Félix é doutora em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da PUCRio com bolsa sanduíche na Universidade de Victoria Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 286 14012021 1707 Sobre os autores 287 Canadá É professora do Curso de Graduação em Relações Internacionais e do Mestrado Profissional em Governança Global e Formulação de Políticas Internacionais da PUCSP coeditora da Seção Conversations do International Feminist Journal of Politics e mãe da Liz Sua pesquisa e atuação centramse principalmente nas abordagens críticas da subjetividade e da formação do sujeito incluindo as teorias feministas pósestruturais póscoloniais e pós humanas e na necessidade de produzir uma descolonização da produção de conhecimento Ramon Blanco é Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Coimbra e Professor Adjunto no curso de Relações Internacionais e Integração da Universidade Federal da Integração LatinoAmericana Unila Na Unila coordena o Núcleo de Estudos para a Paz NEP e a Cátedra de Estudos para a Paz CEPAZ É também Professor Permanente no Programa de Pós Graduação em Relações Internacionais da mesma Universidade PPGRI Unila e no Programa de PósGraduação em Ciência Política da Universidade Federal do Paraná PPGCPUFPR É autor de Peace as Government The Will to Normalize TimorLeste London Lexington Books 2020 Roberto Vilchez Yamato é Professor Adjunto do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro IRIPUC Rio e um dos coordenadores da Cátedra Sérgio Vieira de Mello ACNUR da PUCRio É doutorando em Direito em Birkbeck University of London doutor em Relações Internacionais pelo IRIPUCRio mestre em Ciências Sociais Relações Internacionais pela PUCSP e mestre em Direitos Humanos pela London School of Economics and Political Science LSE University of London Rodrigo Corrêa Teixeira é doutor em Geografia pelo Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais UFMG É professor do departamento de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais PUCMG e do Programa de PósGraduação em Geografia da PUCMinas Victor Coutinho Lage é doutor em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PUCRio É professor do Instituto de Humanidades Artes e Ciências Professor Milton Santos IHAC da Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 287 14012021 1707 Sobre as autoras e autores 288 Universidade Federal da Bahia UFBA e do Programa de PósGraduação em Relações Internacionais da mesma Universidade onde também coorde na a Área de Concentração em Relações Internacionais e o grupo de estudos Interpretações do Brasil Atualmente 20192021 é vicecoordenador da área temática de Teoria das Relações Internacionais da Associação Brasileira de Relações Internacionais ABRI Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 288 14012021 1707 Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 289 14012021 1707 Colofão Formato 170 x 240 mm Tipologia Kiro Sina Miolo em papel alcalino 75 gm2 Capa em Cartão Supremo 300gm2 Impressão do miolo EDUFBA Impressão de capa e acabamento Gráfica 3 Tiragem de 400 exemplares Perspectivas poscoloniais e decoloniais em Relacoes Internacionaismioloindb 290 14012021 1707 Perspectivas Póscoloniais e Decoloniais em Relações Internacionais AUREO TOLEDO Organizador PERSPECTIVAS PÓSCOLONIAIS E DECOLONIAIS EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS O que são perspectivas póscoloniais e decoloniais Quais autores e quais ideias têm ganhando destaque no debate contemporâneo De que forma elas podem contribuir para a área de Relações Internacionais A presente obra dentre outros pontos almeja discutir esses temas mediante dois eixos Na primeira parte a partir de uma revisão das contribuições de autores específi cos pretendemos apontar as potencialidades das perspectivas póscoloniais e decoloniais para temas ligados à área de Relações Internacionais Na segunda parte optamos por discutir criticamente temas centrais das tradições póscoloniais e decoloniais procurando avaliar como tais questões nos possibilitam pensar de maneira original e inovadora não apenas o internacional mas também nosso país e a região onde estamos inseridos Aureo Toledo É professor na graduação e no mestrado acadêmico em Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia É doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo USP com estágios pósdoutorais pela Universidade de Manchester Reino Unido e Universidade George Mason EUA A presente obra é resultado dos trabalhos da rede de pesquisa Colonialidades e Política Internacional criada em 2013 e composta por pesquisadoras e pesquisadores de diversas universidades do país Ao dedicarse exclusivamente a uma discussão contemporânea sobre ideias póscoloniais e decoloniais e suas interfaces com a área de Relações Internacionais Perspectivas Póscoloniais e Decoloniais em Relações Internacionais vem suprir uma lacuna no debate teórico em Relações Internacionais no Brasil somandose a outras obras que vêm procurando adensar a pesquisa e o ensino de Teoria de Relações Internacionais em nosso país Da forma como está organizada será de interesse não apenas daqueles envolvidos na área de Relações Internacionais mas também de interessados em discussões envolvendo as Ciências Humanas de forma geral 9 786556 300924 ISBN 9786556300924 Perspectivas póscoloniais e decoloniais em Relações Internacionaiscapa554x240indd 1 06012021 1919

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