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Direito ·
Direitos Humanos
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Revista Crítica de Ciências Sociais Nº 48 Junho 1997 BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Centro de Estudos Sociais Por uma concepção multicultural de direitos humanos Poderão os direitos humanos pretender a uma devida pelo socialmente desfeito? O objectivo do presente trabalho é identificar condições em que os direitos humanos possam ser colocados ao serviço de uma política progressista e emancipatória. Tal objectivo requer por parte do autor, uma análise entre regulação social e emancipação social que caracterizam a modernização ocidental — uma tensão bem presente nas filosofias e nas práticas dos direitos humanos. Defender nesta tensão que os direitos humanos podem converter-se a seu potencial emancipatório se se libertarem do seu fácil universalismo para que venham verdadeiramente multicultural. NOs últimos tempos, tenho observado com alguma perplexidade a forma como os direitos humanos se transformaram na linguagem da política progressista. De facto, durante muitos anos, após a Segunda Guerra Mundial, os direitos humanos foram parte integrante da política da Guerra Fria, e como tal foram considerados pela esquerda. Duplos critérios na avaliação das violações dos direitos humanos, complacência para com ditadores amigos, defesa do sacrifício dos direitos humanos em nome dos objectivos do desenvolvimento — tudo isto tornou os direitos humanos suspeitos enquanto guião emancipatório. Quer nos países centrais, quer em todo o mundo em desenvolvimento, as forças progressistas preferiram a linguagem da revolução e do socialismo para formular uma política emancipatória. E, no entanto, perante a crise aparentemente irreversível destes projectos de emancipação, até mesmo as forças progressistas voltam hoje aos direitos humanos para reinventar a linguagem de emancipação, como se os direitos humanos fossem invocados para preencher o vazio deixado pelo socialismo. Poderão realmente os direitos humanos preencher tal vazio? Boaventura de Sousa Santos 12 vazio? A minha resposta é um sim muito condicional. O meu objectivo neste trabalho é identificar as condições em que os direitos humanos podem ser colocados ao serviço de uma política progressista e emancipatória. Tal tarefa exige que sejam claramente entendidas as tensões dialécticas que informam a modernidade ocidental1. A crise que hoje afecta estas tensões assinala, melhor que qualquer outra coisa, os problemas que a modernidade ocidental actualmente confronta. Em minha opinião, a política de direitos humanos deste final de século é um factor-chave para compreender tal crise. Identifico três tensões dialécticas. A primeira ocorre entre regulação social e emancipação social. Tenho vindo a argumentar que o paradigma da modernidade se baseia numa tensão dialéctica entre regulação social e emancipação social. Ela está presente, mesmo que de modo diluído, não obstante o seu carácter progressista. Nesta final da década, aquilo que parecia ser uma tensão cativada, fez-se sentir. A crise em que se instalou é o símbolo de uma forte crise normativa e política. Enquanto, até finais dos anos sessenta, as crises de regulação social suscitavam a colocação em causa das políticas emancipatórias, hoje a crise da regulação social — simbolizada pela crise do Estado-Providência — é a crise de emancipação social — simbolizada pela crise da revolução social e do socialismo enquanto paradigma de transformação social radical — são simultâneos e alimentam-se uma da outra. A política dos direitos humanos deve ser simultaneamente uma política reguladora e uma política emancipatória; está armadilhada nesta dupla crise, ao mesmo tempo que é sinal do desejo de a ultrapassar. A segunda tensão dialéctica ocorre entre o Estado e a sociedade civil. O Estado moderno, não obstante apresentar-se como um Estado minimalista, é, potencialmente, um Estado maximalista, pois, a sociedade civil, enquanto parte do Estado, auto-reproduz-se através de leis e regulações que emanam do Estado e para as quais não parece existir limites, desde que as regras democráticas na produção de leis sejam respeitadas. Os direitos humanos estão no meio desta tensão: enquanto a primeira geração de direitos humanos (os direitos cívicos e políticos) foi concebida como a luta da sociedade civil contra o Estado, considerado como o principal 1 Noutro trabalho, analiso com mais detalhe as tensões dialécticas da modernidade ocidental (Santos, 1995) Por uma concepção multicultural de direitos humanos 13 violador potencial dos direitos humanos, a segunda e terceira gerações (direitos económicos e sociais e direitos culturais, da qualidade de vida, etc.) pressupõem que o Estado é o principal garante dos direitos humanos. Por fim, a terceira tensão ocorre entre o Estado-nação e o que designamos por globalização. O modelo político da modernidade ocidental é um modelo de Estados-nação soberanos, coexigindo num sistema internacional de Estados igualmente soberanos — o sistema interestatal. A unidade, a escala privilegiadas, quer da regulação social quer da emancipação social, é o Estado-nação. O sistema interestatal foi sempre concebido como uma sociedade mais ou menos anárquica, regida por uma legalidade muito ténue, e menos o internacionalismo da classe operária sempre foi mais uma aspiração do que uma realidade. Hoje, apesar da crise do Estado-nação, imputável à intensificação da globalização, caiu, em desuso saber se sobreviverá. A emancipação social, quer da regulação social, deverá ser despertada para o nível global através deste sentido, se quisermos sair da crise em que nos encontramos. Na minha opinião, a política dos direitos humanos deve ser simultaneamente local e global, governo global e cidade global. Na primeira instância, será de destacar o facto de, nos finais deste século, as lutas em defesa dos direitos humanos e as lutas em defesa deles continuarem a ter uma decisiva dimensão nacional, e, por outro lado, no facto de, em aspectos cruciais, se atitudes perante os direitos humanos assentarem em pressupostos culturais específicos. A política dos direitos humanos é, basicamente, uma política cultural. Tanto assim é que poderemos mesmo pensar os direitos humanos como sinal do regresso do cultural, e até mesmo do religioso, em finais de século. Ora, falar de cultura e de religião é falar de diferença, de fronteiras, de particularismos. Como poderão os direitos humanos ser uma política simultaneamente cultural e global? Nesta ordem de ideias, o meu objectivo é desenvolver um quadro analítico capaz de reforçar o potencial emancipatório da política dos direitos humanos no duplo contexto da globalização, por um lado, e da fragmentação cultural e da política de identidades, por outro. A minha intenção é justificar uma política progressista de direitos humanos com âmbito global e com legitimidade local. Boaventura de Sousa Santos Acerca das globalizações Começarei por especificar o que entendo por globalização. A globalização é muito difícil de definir. Muitas definições centram-se na economia, ou seja, na nova economia mundial que emergiu nas últimas duas décadas como consequência da intensificação vertiginosa da transnacionalização da produção de bens e serviços e dos mercados financeiros — um processo através do qual as empresas multinacionais ascenderam a uma preeminência sem precedentes como actores internacionais. Para os meus objectivos analíticos, privilegio, no entanto, uma definição de globalização mais sensível às dimensões sociais, políticas e culturais. Aquilo que habitualmente designamos por globalização são, de facto, conjuntos diferenciados de relações sociais; diferentes conjuntos de relações sociais dão origem a diferentes fenómenos de globalização. Nesta medida, melhor será falar de globalizações do que de uma única chamada globalização; existem, em vez disso, globalizações que morrem, que também nascem e se tornam plural. Qualquer conceito mais abrangente deve ser tão exacto quanto vago as condições de especificação. Mais do que relações sociais, as globalizações envolvem conflitos, nomeadamente vencedores e vencidos. Frequentemente, discute-se sobre globalização e a vitória dos vencedores tomando-a como um propósito. Na verdade, a vitória é aparentemente tão absoluta que os derrotados acabam por desaparecer totalmente da cena. Proponho, pois, a seguinte definição: a globalização é o processo pelo qual determinada condição ou entidade local estende a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outra condição social ou entidade rival. As implicações mais importantes desta definição são as seguintes. Em primeiro lugar, perante as condições do sistema-mundo ocidental não existe globalização genuína: aquilo a que chamamos globalização é sempre a globalização bem sucedida de determinado localismo. Por outras palavras, não existe condição global para a qual não se consiga encontrar uma raiz local, uma imersão cultural específica. Na realidade, não consigo pensar uma entidade sem tal enraizamento local; o único candidato possível, mas improvável, seria a arquitectura interior dos aeroportos. A segunda implicação é que a globalização pressupõe a localização. De facto, vivemos tanto num mundo de localização como num mundo de globalização. Portanto, em termos analíticos, seria igualmente correcto se a presente situação e os nossos tópicos Por uma concepção multicultural de direitos humanos dos de investigação se definissem em termos de localização, em vez de globalização. O motivo por que é preferido o último termo é, basicamente, o facto de o discurso científico hegemónico tender a privilegiar a história do mundo na versão dos vencedores. Existem muitos exemplos de como a globalização pressupõe a localização. A língua inglesa enquanto lingua franca é um desses exemplos. A sua propagação enquanto língua global implicou a localização de outras línguas potencialmente globais, nomeadamente a língua francesa. Quer isto dizer que, uma vez identificado determinado processo de globalização, o seu sentido e explicação integradas não podem ser obtidos sem ter em conta os processos adjacentes de localização que lhe ocorrem em simultâneo ou sequencialmente. A globalização do século XX no cinema, em especial, contribuiu para a introdução do sistema de estrelato do cinema de Hollywood, em que actores franceses ou italianos dos anos 60 — de Brigitte Bardot a Alain Delon, de Marcello Mastroianni a Gina Lollobrigida — que simbolizavam entenda-se não apenas o mundo de Hollywood em que foram representados, aparentam hoje, quando revisitados em filmes antigos no cinema europeu, representar Hollywood na altura. Para dar um exemplo de uma área totalmente diferente, à medida que se globaliza o hambúrguer ou a pizza, localiza-se o bolo de bacalhau português ou a feijoada brasileira, no sentido em que serão cada vez mais vistos como particularismos típicos da sociedade portuguesa ou brasileira. Uma das transformações mais frequentemente associadas à globalização é a compressão tempo-espaço, ou seja, o processo social pelo qual os fenómenos se aceleram e se difundem pelo globo. Ainda que aparentemente monolítico, este processo combina situações e condições altamente diferenciadas e, por esse motivo, não pode ser analisado independentemente das relações de poder que respondam pelas mudanças constitutivas da dimensão temporal e espacial. Por um lado, existe uma classe social a que assiste transnacional, aquela que realmente controla a compressão tempo-espaço e que é capaz de a transformar a seu favor. Existem, por outro lado, as classes e grupos subordinados, como os trabalhadores migrantes ou refugiados, que nas duas últimas décadas têm efectuado bastante movimentação transfonteiriça, mas que não controlam, de modo algum, a compressão tempo- Boaventura de Sousa Santos -espaço. Entre os executivos das empresas multinacionais e os emigrantes e refugiados, os turistas representam um terceiro modo de produção da compressão tempo-espaço. Existem ainda os que contribuem fortemente para a globalização mas, no obstante, permanecem prisioneiros do seu tempo-espaço local. Os camponeses da Bolívia, do Peru e da Colômbia, ao cultivarem coca, contribuíram decisivamente para uma cultura mundial da droga, mas eles próprios permanecem «localizados» nas suas aldeias e montanhas como desde sempre estiveram. Tal como os moradores das favelas do Rio, que permanecem prisioneiros da vida urbana marginal, enquanto as suas canções e as suas danças, sobretudo o samba, constituem hoje parte de uma cultura musical globalizada. Finalmente, e ainda noutra perspectiva, a competição global requer, por vezes, a acentuar da especificidade local. Muitos dos lugares turísticos de hoje têm de possuir um carácter exótico, vernáculo e tradicional para além de ser suficientemente atractivos para o mercado de turismo global plural. Para dar conta destas assimetrias, a globalização, tal como surgiu, deve ser sempre considerada, também, em quadro alargado, já que considera diferentes modos de produção da globalização. Distingo quatro modos de produção da globalização, os quais, em meu entender, dão origem a quatro formas de globalização. A primeira forma de globalização é o localismo globalizado. Consiste no processo pelo qual determinado fenómeno local é globalizado com sucesso, seja a actividade mundial das multinacionais, a transformação da língua inglesa em lingua franca, a globalização do fast food americano ou da sua música popular, ou a adopção mundial das leis de propriedade intelectual ou de telecomunicações dos EUA. A segunda forma de globalização abrange globalismo localizado. Consiste no impacto específico de práticas e imperativos transnacionais nas condições locais, as quais são, por essa via, desestruturadas e reestruturadas de modo a responder a esses imperativos transnacionais. Tais globalismos localizados incluem: enclaves de comércio livre ou zonas francas; desflorestação e destruição maciça dos recursos naturais para pagamento da dívida externa; uso turístico de tesouros históricos, lugares ou cerimônias indígenas, artefactos de vida selvagem; dumping ecológico ("comprado" pelos países do Terceiro Mundo de lixos tóxicos produzidos nos países capitalistas centrais para gerar dívidas externas); con- Boaventura de Sousa Santos Se observarmos a história dos direitos humanos no período imediatamente a seguir à Segunda Grande Guerra, não é difícil concluir que as políticas de direitos humanos estiveram em geral ao serviço dos interesses económicos e geo- políticos dos Estados capitalistas hegemónicos. Um discurso generoso e sedutor sobre os direitos humanos permitiu atro- cidades indescritíveis, as quais foram avaliadas de acordo com revoltante duplicidade de critérios. Escrevendo em 1981 sobre a manipulação da temática dos direitos humanos nos Estados Unidos pelos meios de comunicação social, Richard Falk identifica uma «política de invisibilidade» e uma «política de supervisibilidade». Como exemplos da política de invisibili- dade, menciona Falk a ocultação total, pelos media, de notí- cias sobre o trágico genocídio do povo Maubere em Timor Leste (que ceifou mais de 300.000 vidas, ou cerca de um terço dos cerca de um milhão de «indonésicos» na ilha). Como exem- plos da política de supervisibilidade, Falk refere ao tratamento insuflável que os atropelos pós-revolucionários na Nicarágua mereceram no livro e no filme que sobre foram realizados nos EUA. A verdade é que o mesmo pode dizer-se dos países da União Europeia, sendo o exemplo mais sensacional o men- tado e silêncio sucedido sobre o genocídio cometido pelos exércitos dos europeus durante uma década, anos 80, faciimtando o continue e próspero comércio com a Indonésia. A marca ocidental, ou melhor, ocidental-liberal do dis- curso dominante dos direitos humanos pode ser facilmente identificada em muitos outros exemplos: na Declaração Uni- versal de 1948, elaborada sem a participação da maioria dos povos do mundo; no reconhecimento exclusivo de direitos individuais, com a única exceção do direito coletivo à auto- determinação, o qual, no entanto, foi restringido aos povos subjugados pelo colonialismo europeu; na prioridade conce- dada aos direitos cívicos e políticos sobre os direitos económi- cos, sociais e culturais e no reconhecimento do direito de pro- priedade como o primeiro e, durante muitos anos, o único direito económico. Mas há também um outro lado desta questão. Em todo o mundo, milhões de pessoas e milhares de ONG's têm vindo a lutar pelos direitos humanos, muitas vezes correndo grandes riscos, em defesa de classes sociais e grupos oprimidos, em muitos casos vitimizados por Estados capitalistas autoritários. Os objectivos políticos de tais lutas são frequentemente explí- cito ou implicitamente anticapitalistas. Gradualmente, foram-se desenvolvendo discursos e práticas contra-hegemônicos de
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NOs últimos tempos, tenho observado com alguma perplexidade a forma como os direitos humanos se transformaram na linguagem da política progressista. De facto, durante muitos anos, após a Segunda Guerra Mundial, os direitos humanos foram parte integrante da política da Guerra Fria, e como tal foram considerados pela esquerda. Duplos critérios na avaliação das violações dos direitos humanos, complacência para com ditadores amigos, defesa do sacrifício dos direitos humanos em nome dos objectivos do desenvolvimento — tudo isto tornou os direitos humanos suspeitos enquanto guião emancipatório. Quer nos países centrais, quer em todo o mundo em desenvolvimento, as forças progressistas preferiram a linguagem da revolução e do socialismo para formular uma política emancipatória. E, no entanto, perante a crise aparentemente irreversível destes projectos de emancipação, até mesmo as forças progressistas voltam hoje aos direitos humanos para reinventar a linguagem de emancipação, como se os direitos humanos fossem invocados para preencher o vazio deixado pelo socialismo. Poderão realmente os direitos humanos preencher tal vazio? Boaventura de Sousa Santos 12 vazio? A minha resposta é um sim muito condicional. O meu objectivo neste trabalho é identificar as condições em que os direitos humanos podem ser colocados ao serviço de uma política progressista e emancipatória. Tal tarefa exige que sejam claramente entendidas as tensões dialécticas que informam a modernidade ocidental1. A crise que hoje afecta estas tensões assinala, melhor que qualquer outra coisa, os problemas que a modernidade ocidental actualmente confronta. Em minha opinião, a política de direitos humanos deste final de século é um factor-chave para compreender tal crise. 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A política dos direitos humanos deve ser simultaneamente uma política reguladora e uma política emancipatória; está armadilhada nesta dupla crise, ao mesmo tempo que é sinal do desejo de a ultrapassar. A segunda tensão dialéctica ocorre entre o Estado e a sociedade civil. O Estado moderno, não obstante apresentar-se como um Estado minimalista, é, potencialmente, um Estado maximalista, pois, a sociedade civil, enquanto parte do Estado, auto-reproduz-se através de leis e regulações que emanam do Estado e para as quais não parece existir limites, desde que as regras democráticas na produção de leis sejam respeitadas. Os direitos humanos estão no meio desta tensão: enquanto a primeira geração de direitos humanos (os direitos cívicos e políticos) foi concebida como a luta da sociedade civil contra o Estado, considerado como o principal 1 Noutro trabalho, analiso com mais detalhe as tensões dialécticas da modernidade ocidental (Santos, 1995) Por uma concepção multicultural de direitos humanos 13 violador potencial dos direitos humanos, a segunda e terceira gerações (direitos económicos e sociais e direitos culturais, da qualidade de vida, etc.) pressupõem que o Estado é o principal garante dos direitos humanos. Por fim, a terceira tensão ocorre entre o Estado-nação e o que designamos por globalização. O modelo político da modernidade ocidental é um modelo de Estados-nação soberanos, coexigindo num sistema internacional de Estados igualmente soberanos — o sistema interestatal. A unidade, a escala privilegiadas, quer da regulação social quer da emancipação social, é o Estado-nação. O sistema interestatal foi sempre concebido como uma sociedade mais ou menos anárquica, regida por uma legalidade muito ténue, e menos o internacionalismo da classe operária sempre foi mais uma aspiração do que uma realidade. Hoje, apesar da crise do Estado-nação, imputável à intensificação da globalização, caiu, em desuso saber se sobreviverá. A emancipação social, quer da regulação social, deverá ser despertada para o nível global através deste sentido, se quisermos sair da crise em que nos encontramos. Na minha opinião, a política dos direitos humanos deve ser simultaneamente local e global, governo global e cidade global. Na primeira instância, será de destacar o facto de, nos finais deste século, as lutas em defesa dos direitos humanos e as lutas em defesa deles continuarem a ter uma decisiva dimensão nacional, e, por outro lado, no facto de, em aspectos cruciais, se atitudes perante os direitos humanos assentarem em pressupostos culturais específicos. A política dos direitos humanos é, basicamente, uma política cultural. Tanto assim é que poderemos mesmo pensar os direitos humanos como sinal do regresso do cultural, e até mesmo do religioso, em finais de século. Ora, falar de cultura e de religião é falar de diferença, de fronteiras, de particularismos. Como poderão os direitos humanos ser uma política simultaneamente cultural e global? Nesta ordem de ideias, o meu objectivo é desenvolver um quadro analítico capaz de reforçar o potencial emancipatório da política dos direitos humanos no duplo contexto da globalização, por um lado, e da fragmentação cultural e da política de identidades, por outro. A minha intenção é justificar uma política progressista de direitos humanos com âmbito global e com legitimidade local. Boaventura de Sousa Santos Acerca das globalizações Começarei por especificar o que entendo por globalização. A globalização é muito difícil de definir. 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Qualquer conceito mais abrangente deve ser tão exacto quanto vago as condições de especificação. Mais do que relações sociais, as globalizações envolvem conflitos, nomeadamente vencedores e vencidos. Frequentemente, discute-se sobre globalização e a vitória dos vencedores tomando-a como um propósito. Na verdade, a vitória é aparentemente tão absoluta que os derrotados acabam por desaparecer totalmente da cena. Proponho, pois, a seguinte definição: a globalização é o processo pelo qual determinada condição ou entidade local estende a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outra condição social ou entidade rival. As implicações mais importantes desta definição são as seguintes. Em primeiro lugar, perante as condições do sistema-mundo ocidental não existe globalização genuína: aquilo a que chamamos globalização é sempre a globalização bem sucedida de determinado localismo. 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Tal como os moradores das favelas do Rio, que permanecem prisioneiros da vida urbana marginal, enquanto as suas canções e as suas danças, sobretudo o samba, constituem hoje parte de uma cultura musical globalizada. Finalmente, e ainda noutra perspectiva, a competição global requer, por vezes, a acentuar da especificidade local. Muitos dos lugares turísticos de hoje têm de possuir um carácter exótico, vernáculo e tradicional para além de ser suficientemente atractivos para o mercado de turismo global plural. Para dar conta destas assimetrias, a globalização, tal como surgiu, deve ser sempre considerada, também, em quadro alargado, já que considera diferentes modos de produção da globalização. Distingo quatro modos de produção da globalização, os quais, em meu entender, dão origem a quatro formas de globalização. A primeira forma de globalização é o localismo globalizado. Consiste no processo pelo qual determinado fenómeno local é globalizado com sucesso, seja a actividade mundial das multinacionais, a transformação da língua inglesa em lingua franca, a globalização do fast food americano ou da sua música popular, ou a adopção mundial das leis de propriedade intelectual ou de telecomunicações dos EUA. A segunda forma de globalização abrange globalismo localizado. Consiste no impacto específico de práticas e imperativos transnacionais nas condições locais, as quais são, por essa via, desestruturadas e reestruturadas de modo a responder a esses imperativos transnacionais. 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Escrevendo em 1981 sobre a manipulação da temática dos direitos humanos nos Estados Unidos pelos meios de comunicação social, Richard Falk identifica uma «política de invisibilidade» e uma «política de supervisibilidade». Como exemplos da política de invisibili- dade, menciona Falk a ocultação total, pelos media, de notí- cias sobre o trágico genocídio do povo Maubere em Timor Leste (que ceifou mais de 300.000 vidas, ou cerca de um terço dos cerca de um milhão de «indonésicos» na ilha). Como exem- plos da política de supervisibilidade, Falk refere ao tratamento insuflável que os atropelos pós-revolucionários na Nicarágua mereceram no livro e no filme que sobre foram realizados nos EUA. A verdade é que o mesmo pode dizer-se dos países da União Europeia, sendo o exemplo mais sensacional o men- tado e silêncio sucedido sobre o genocídio cometido pelos exércitos dos europeus durante uma década, anos 80, faciimtando o continue e próspero comércio com a Indonésia. A marca ocidental, ou melhor, ocidental-liberal do dis- curso dominante dos direitos humanos pode ser facilmente identificada em muitos outros exemplos: na Declaração Uni- versal de 1948, elaborada sem a participação da maioria dos povos do mundo; no reconhecimento exclusivo de direitos individuais, com a única exceção do direito coletivo à auto- determinação, o qual, no entanto, foi restringido aos povos subjugados pelo colonialismo europeu; na prioridade conce- dada aos direitos cívicos e políticos sobre os direitos económi- cos, sociais e culturais e no reconhecimento do direito de pro- priedade como o primeiro e, durante muitos anos, o único direito económico. Mas há também um outro lado desta questão. Em todo o mundo, milhões de pessoas e milhares de ONG's têm vindo a lutar pelos direitos humanos, muitas vezes correndo grandes riscos, em defesa de classes sociais e grupos oprimidos, em muitos casos vitimizados por Estados capitalistas autoritários. 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