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Resumo do Artigo

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A colonização holandesa em Pernambuco fragmentos de uma história do Atlântico Rômulo Luiz Xavier do Nascimento Em 15 de fevereiro ao amanhecer viuse a três léguas a armada sotaventeada do porto do Recife para o forte mas o vento lhe foi dando lugar para acercarse Na armada inimiga vinham 16 baixéis com 16 barcaças e duas chalupas cada um destinadas a deitar a gente em terra e com ela o seu general Teodoro Vanuvardemburg Wanderburch Eram 3600 soldados e 400 marinheiros bem armados com ordem de que quando o resto da armada estivesse dentro da barra do porto principal do Recife se apartassem para deixar a gente nas praias da banda do Norte ou do Sul COELHO 2003 p 27 Apesar de exagerado nos números uma vez que a Companhia das Índias Ocidentais WIC chegou com 3 mil homens o relato acima feito pelo donatário da Capitania de Pernambuco Duarte de Albuquerque Coelho nos dá bem uma noção do que se avizinhava de nossas praias e vilas Quando se avistou da costa de Pernambuco a enorme esquadra holandesa numa manhã de fevereiro de 1630 houve temor mas não surpresa por parte dos lusobrasileiros A ocupação de Salvador cinco anos antes já havia sido um sinal Também a geopolítica internacional prenunciava a invasão da WIC a Pernambuco A frota se dividiu em duas Uma parte desembarcou as tropas na Praia de Pau Amarelo norte de Olinda e logo marchou em direção a esta vila tendoa encontrado vazia A frota em frente ao porto do Recife penou uns dois dias A guerrademato era a típica forma de combate travado nas matas de Pernambuco ou em qualquer região de Mata Atlântica e que exigia uma preparação e uma estratégia de combate adaptadas ao meio Os holandeses estavam habituados à guerra nos campos europeus num clima temperado e domínio vegetacional diverso do meio tropical no Novo Mundo o preço do açúcar e do tabaco teria aumentado consideravelmente transformandoos em artigos de luxo consumidos por uma minoria da elite europeia EMMER 2006 p 18 Isso explica muito dos dilemas vividos pelo primeiro capitão donatário de Pernambuco e seus filhos na tentativa de incrementar um tráfico regular para Pernambuco como condição da expansão dos engenhos nas várzeas do Capibaribe e Beberibe À medida que as fronteiras do açúcar iam se alargando nas terras da família de Duarte Coelho ia também aumentando a quantidade de refina rias de açúcar nos Países Baixos No final do século XVI crescia o interesse holandês pelo transporte e refino do açúcar de Pernambuco Por aí também percebemos ligação atlântica entre Pernambuco e Holanda Por aí também percebemos que a invasão a Bahia 1624 e Pernambuco 1630 não fora segundo Engel Sluiter uma atitude não premeditada ou um simples impulso de corsário Apud MELLO 1985 p 10 A passagem do século XVI para o XVII é fundamental para se entender a expansão do capitalismo e o estreitamento de laços econômicos entre as várias regiões do mundo A Capitania de Pernambuco não ficaria imune a isso No livro O Atlântico de Amsterdã Michiel van Groesen demonstrou como a ocupação de Pernambuco moldou a visão que os moradores de Amsterdã passaram a ter do Atlântico Por intermédio da análise de pequenos jornais da época o autor demonstrou que as notícias da guerra e do governo de Pernambuco retiraram do imaginário coletivo holandês a ideia de uma América portuguesa fantástica Dessa forma o cotidiano da administração holandesa mostrava o pragmatismo o trabalho diário o esforço de administrar um lugar distante Claro que as notícias que chegavam de Pernambuco nem sempre eram verdadeiras Não raro os jornais holandeses manipulavam os acontecimentos com o fim de influenciar o valor das ações da WIC Destacase no referido estudo a percepção da existência de uma certa cultura de informação presente num centro urbano importante na Europa Setentrional e não a análise de dados de exportação ou acontecimentos da vida política ao modo de uma história positivista GROESEN 2017 O que vemos aqui nada mais é do que um mundo ou uma cultura de olho no outro E era dessa forma que o Atlântico se movimentava Como qualquer história a que trata da presença holandesa no Brasil não pode ser isolada espacial e temporalmente Por mais que a historiografia tradicional nos tenha colocado marcos temporais a presença holandesa no Brasil rompe com as barreiras de uma data precisa e de uma geografia definida com exatidão Assim apenas para facilitar a compreensão precisamos local e data de uma história que está longe de ser provinciana Pelo contrário a presença holandesa no Brasil dialoga com uma espacialidade que abraça a América portuguesa a Europa Setentrional e a costa ocidental africana Ela engloba enfim desde as matas de Pernambuco bem como as ruas estreitas e portos holandeses até as praias e interiores da Costa do Ouro e Angola Em todo esse espaço mediado pelo Atlântico se movimentaram homens ideias e coisas formando uma das mais importantes experiências de trocas entre culturas antes desconhecidas umas das outras Após terem passado quase um ano na Bahia em 1625 os holandeses atacaram a Capitania de Pernambuco onde permaneceram por quase 24 anos De fato Pernambuco foi o centro da administração da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil o que não diminui a importância dos outros pontos conquistados a partir daqui A Capitania de Pernambuco era tida como o centro econômico da América portuguesa ao passo que a Bahia era o centro político Na virada do século XVI para o XVII a produção açucareira explodia e abastecia quase dois terços do mercado europeu Pernambuco também ocupava uma posição estratégica no Atlântico Sul o que permitiu aos holandeses várias expedições bemsucedidas a partir do porto do Recife A vinda da WIC para Pernambuco apesar de sugerir um propósito específico tinha um caráter sistêmico Tanto que nas instruções da Companhia o plano era a partir de Pernambuco tentar reconquistar a Bahia e se possível o Rio de Janeiro Maurício de Nassau tentou seguir esse plano numa campanha feita a Ilhéus mas foi malsucedido A dimensão atlântica de Pernambuco em sua relação com a costa africana e até com o Oriente se materializava pela existência do porto do Recife de bela formação natural e indispensável no comércio da capitania com o mundo Na verdade Recife era o porto da vila de Olinda sede da capitania com câmara e homens influentes na plantation e no comércio de grosso trato Até a chegada dos holandeses em 1630 o Recife não existia como vila e sim como praticamente um arruado de umas 80 famílias de pescadores oficiais mecânicos e estivadores do porto O nervo urbano mesmo era Olinda que junto com Salvador estava aberta ao mundo Para termos uma noção da dimensão atlântica de Pernambuco temos que vários navios de Hamburgo já frequentavam o porto do Recife desde o século XVI MELLO 1993 p 2185 A própria condição de porto negreiro dotava Pernambuco de uma dimensão internacional O comércio de escravos com a Costa da Mina e Angola se intensificou com o aumento da produção açucareira No final do século XVI já se tinha aqui uma economia relativamente consolidada com uma classe mercantil e agrária com atividade intensa No plano da expansão e ocupação efetiva dos portugueses do litoral ao interior do Brasil tanto Pernambuco como a Bahia desempenharam um papel importante A partir de Olinda por exemplo várias campanhas militares partiram em direção ao Maranhão Muitas famílias da Capitania de Pernambuco se estabeleceram lá e também no Rio Grande do Norte e no Ceará Em direção ao sertão deuse o mesmo A expansão para o interior empreendida por pernambucanos e baianos só foi interrompida pela ocupação holandesa Depois da expulsão seguiramse as incursões em busca de metais preciosos e espraiarmento da pecuária ao mesmo tempo em que se empreendiam guerras às comunidades indígenas do interior Foi a chamada Guerra dos Bárbaros Os portugueses estavam ao mesmo tempo do outro lado do Atlântico Em 1625 faziam descrições de Serra Leoa como os holandeses faziam descrições da Capitania de Pernambuco Conhecer para dominar BRÁSIO 1953 p 9195 MELLO 1985 p 3539 A história da Holanda com o Império português se cruzou de forma decisiva no século XVII Esses países não tinham problemas entre si No entanto como a União Ibérica transformou Portugal numa possessão espanhola e a Holanda entrou em conflito com a Espanha Portugal e suas posses pagaram um preço muito alto Dessa forma já desde fins do século XVI os holandeses vinham minando as possessões portuguesas no ultramar desde a Ásia até a América portuguesa Na segunda metade do século XVI já haviam montado várias companhias pequenas de comércio as voorcompanpies précompanhias ou Compagnies van Verre companhias para lugares distantes Essas por sua vez realizaram uma sequência de intervenções que atingiram em cheio o antigo comércio português das especiarias Mas não ficaram só aí No alvorecer do século XVII criaram a Companhia das Índias Orientais VOC e em 1621 a Companhia das Índias Ocidentais Ambas com grande aporte militar e financeiro de particulares e do Estado holandês Essas grandes companhias de comércio que funcionavam como companhias de compra e venda de ações congenimavam atividade militar e comercial com o aval do governo holandês Eram o próprio Estado e empreendimento particular em movimento pelo mundo Na verdade a história das lutas dos holandeses contra os portugueses se iniciou com as investidas holandesas contra São Tomé e Príncipe em 1598 e foi até 1663 com a tomada das colônias portuguesas no Malabar Importante ressaltar que a criação das companhias de comércio não foi obra apenas dos holandeses dado que existiam companhias inglesas e de outras partes da Europa do Norte mas no caso dos Países Baixos elas atingiram um grau superlativo de importância no jogo econômico mundial daquela época sendo a Holanda um modelo de um capitalismo nascente na Europa setentrional O sociólogo Immanuel Wallerstein considera que os holandeses em dado momento pouco antes do século XVII tornaramse um exemplo perfeito de hegemonia capitalista nos ramos do comércio indústria logística e capital financeiro Essa posição a Holanda segurou por quase todo o século XVII considerado por muitos como o século de ouro dos Países Baixos Esse estado de coisas só seria quebrado pela ascensão da Inglaterra na economiamundo Durante a presença holandesa no Brasil Amsterdã florescia como um grande centro econômico e cultural As cidades próximas de Roterdã Leiden e Haia formavam um cinturão urbano da mais alta renda per capita do mundo ocidental Aliada à importância econômica vinha por extensão a vida cultural É certo que com dinheiro sobrando as manifestações do espírito fluem como um rio largo Não fora diferente nas maiores cidades holandesas do litoral Amsterdã era o centro de tudo Para lá iam artistas comerciantes escritores publicistas No século XVII o alto índice de alfabetização de 86 87 sua população facultou o florescimento de editoras Assim jornais e livros tinham ali um grande mercado Na verdade todo esse giro de informações nem sempre verídicas influenciavam no valor das ações das companhias Uma grande perda no Oriente fazia os preços das ações da VOC baixarem Por outro lado a ocupação de Olinda em 1630 faria os preços das ações da WIC subirem Nessa gangorra financeira não diferente do que vemos hoje tanto pequenos como grandes investidores arriscavam sua sorte no alémmar sem saírem de casa É fato que quem perdia mais eram os mais pobres que eram boa parte da classe média holandesa daquele tempo Nesse espaço social e econômico se desenvolveu toda uma cultura urbana e burguesa que caracterizou o povo holandês a partir de então E isso se refletiu na arte e grande produção de livros em Amsterdã SCHAMA 1992 As próprias obras de arte de pintores como Rembrandt e Vermeer foram reflexo desse espírito burguês Na verdade se quisermos expandir mais um pouco o nascente mundo burguês típico de Amsterdã podemos chegar a Londres e ao norte e oeste da França WALLERSTEIN 1974 p 45 Para atacar os portugueses as Companhias das Índias Orientais VOC e Ocidentais WIC apontaram sua artilharia para o comércio de especiarias do Índico o tráfico de escravos marfim e ouro da costa oriental africana e o vultoso comércio de açúcar do Brasil onde só Pernambuco era responsável por dois terços do que era consumido nas mesas europeias Os navios holandeses estavam nos principais portos do mundo todo desde bem antes da ocupação de Pernambuco em fevereiro de 1630 Eles tinham uma longa tradição em navegação e comércio marítimo além de uma indústria naval muito à frente da de qualquer país de seu entorno Os capitães de navios e marinheiros holandeses foram antes de 1630 bem antes até adquirindo conhecimento pormenorizado das praias produtos e pessoas dispostas ao longo do vasto império holandês desde a planície de Malaca até Pernambuco A chegada deles ao Brasil não foi uma surpresa Desde o início do século XVII relatórios encomendados pelo rei da Espanha apontavam no caso de Pernambuco para uma possível ocupação da capitania com um destacamento desembarcando ao norte da vila de Olinda e a ocupando que foi o que de fato aconteceu Olinda era mal guarnecida e a chegada de tropas holandesas pelo norte já era uma pedra cantada desde há muito Na África desde a Costa do Ouro até o Delta do Níger os holandeses atuaram a partir do Forte Mouri construído por eles em 1611 Nas praias africanas se apercebiam da geografia local das populações nativas e se empolgavam com um largo comércio de marfim e ouro Pouco a pouco foram deixando os escrúpulos de lado e se enfrentando no comércio de gente Todo esse trânsito pelo Atlântico dotou os mercadores e militares holandeses de um conhecimento grande do regime de ventos e rotas tanto longas como curtas Passaram a dominar as navegações de longo curso e de cabotagem o que fizeram com grande maestria nos portos do Brasil A ocupação efetiva de portos portugueses no Atlântico do século XVII não foi nada mais do que a conclusão de uma longa ópera começada no último quartel do século XVI Nesse painel maior é que se insere a administração brasílica pelos holandeses tendo como centro o Recife Cotidiano e desinteração de culturas Atingindo a cidade subi ao alto em direção ao convento dos jesuítas com a vanguarda e o batalhão havia barricadas por trás das portas Vendonos subir com tanta coragem e abrir essas portas todos quanto ali se achavam fugiram igualmente deixando diversos mortos e feridos enquanto nós também tivemos a nosso turno alguns mortos DOCUMENTOS HOLANDESES 1945 p 127 Eis o relato inicial da tomada de Olinda pelo primeiro governador do Brasil holandês o coronel Wanderburch A partir daí passaram a atacar o pequeno povoado do Recife e em seguida a Ilha de Antônio Vaz Tendo feito isso concluiu Wanderburch que assim a cidade com todas as suas fortalezas e praças fortes sem nenhuma exceção foi submetida Idem p 28 Tudo parecia fácil nesse início bastante comemorado pelos holandeses muito ciosos de si Mas não demoraria muito para caírem na real e 88 89 verem o inferno em que se meteram Os primeiros anos da presença holandesa em Pernambuco foram muito difíceis A tropa padecia com moléstias tropicais falta de víveres e apoio bélico O primeiro obstáculo que os militares da Companhia das Índias Ocidentais tiveram que enfrentar foi o clima e o domínio vegetacional bem diversos do que tinham no teatro de guerra europeu Apenas para efeito de exemplo imaginem um alemão ou amsterdamês marchando por horas numa mata tropical ou tendo que passar por um manguezal sem molhar a pólvora Logo nos três primeiros meses o governadormilitar escrevia aos Estados Gerais dos Países Baixos dando conta das condições e possibilidades de fortificação da vila de Olinda e do Recife e Santo Antônio Eram várias frentes para se defenderem dos ataques lusobrasileiros que eram constantes Wanderburch reclamava que mal tinham tempo para dormir porque os inimigos nos obrigam a um estado de permanente vigilância Muito trabalho começou a ser feito num grande esforço para construir as fortalezas do Recife e Antônio Vaz que ganharam corpo a partir dos projetos do engenheiro Commerstein Apesar disso o governador avaliou que para proteger o Recife fossem necessários uns 35 mil homens já que ele estava muito exposto na parte sul Idem p 39 Tudo isso era muito custoso para a WIC Quando começou a estação das chuvas em maio os holandeses começaram a sentir o drama que era se movimentar com material de construção em terreno enlameado A tropa se dividia entre a guerra e a construção de um mundo novo Em julho de 1630 as condições de fortificação do Recife e Antônio Vaz já eram bem melhores Só um ataque de indígenas a mando dos portugueses foi tido como assustador por parte de Wanderbuch Ataque em que eles em menos de 15 minutos escalaram a muralha construída na Ilha de Santo Antônio e invadiram o acampamento Mas foram duramente repelidos Idem p 45 Vale ressaltar que o governadormilitar era assessoradopor um conselho de civis o Conselho Político Politicqe Raaden A Holanda se constituíra numa república que se tornava independente dos Habsburgos Portanto queria firmar uma forma de governança em que o poder civil estivesse acíma do militar Historicamente havia sofrido bastante sob a tutela do Duque de Alba preposto de Filipe II nos Países Baixos Por isso a primazia do poder civil sobre o militar fazia parte do novo processo do nacionalismo holandês ainda em construção A própria organização das companhias de comércio era reflexo disso Tanto na VOC como na WIC houve sempre uma governança civil na qual juristas e grandes comerciantes tomavam parte Isso gerou grande insatisfação por parte dos moradores de Pernambuco acostumados a uma cultura política em que a nobreza militar exercia os ofícios públicos No caso holandês mesmo Nassau que era nobre e de formação militar veio para o Brasil na condição de administrador contratado e era assessorado igualmente por um conselho civil o Alto Conselho Hooge Raaden Nesse sentido as companhias eram a nova república dos Países Baixos em movimento Voltando à vida no Recife neste antigo burgo triste e sem vida temos que aqui viveram os holandeses extremos terríveis da escassez de víveres segundo José Antônio Gonsalves de Mello Foram quase três anos passando fome sem achar refresco para as tropas sem acesso a madeira para construção e completamente dependentes da ajuda exterior MELLO 1987 p 41 Numa carta enviada aos Países Baixos pelo governador Wanderburg ainda em fins de 1631 consta que escorbuto ainda matava vários soldados e marinheiros desprovidos de frutas cítricas Documentos holandeses 1945 p 89 Novos que eram os holandeses nas guerras de mato e emboscadas num mundo tropical tremiam de medo de serem surpreendidos pela ferocidade desses ataques Num primeiro momento houve uma grande discussão para saber onde seria o centro administrativo do Brasil holandês Olinda fora descartada em função da dificuldade em defendêla Também pesava o fato de estar a uma légua do porto do Recife Por questões topográficas ficaram com o Recife A partir de 1631 com o incêndio e destruição da vila de Olinda então sede da Capitania de Pernambuco Recife começaria a mudar de feição ganhando ares de uma cidade planejada projeto esse que se concretizaria com a vinda de Nassau em 1637 Não é descabido considerar que muitos entulhos de Olinda serviram para se aterrar e construir novos prédios do novo Recife que surgia A destruição de Olinda era um soco no estômago 90 91 da nobreza da terra Olinda era símbolo da pujança portuguesa e pernambucana no Atlântico A sua câmara era uma das mais importantes do Brasil ombreada somente pela de Salvador sede do Governo Geral Uma vez no Recife os holandeses procuraram recriar uma pequena Amsterdã com uma Rua do Mar Zeestraten e uma Rua do Vinho Weinstraten tal qual a sua congênere europeia De fato a cidade não é só a sua estrutura física mas a vida que há nela Pouco a pouco conforme a população e imigração ia aumentando o Recife se encheu de vida com tabernas cervejaria feiras comércio no pé do porto De um simples arruado Recife passou a ter alma Fora do Recife as campanhas militares eram muito tímidas Os holandeses não dominavam ainda a guerrademato Matias de Albuquerque irmão do capitão donatário e exímio estrategista militar fugiu para o interior e construiu um sistema de defesa batizado de Arraial do Bom Jesus Durante quase cinco anos os lusobrasileiros do Arraial fizeram da vida dos holandeses um inferno Com o passar do tempo os holandeses passaram a entender e praticar a guerrademato O primeiro governador do Brasil holandês o coronel Wanderburch foi um dos que mais cedo entenderam e espelharam a tática brasílica de guerra A partir dos anos de 16331634 os holandeses estavam mais adaptados ao clima e à mata úmida Também contavam com a ajuda de moradores locais nativos brasilianen e escravos fugidos de seus senhores Fora do Recife seguiuse a tomada da vila de Igarassu Goiana Itamaracá e da Paraíba Nesse sentido fecharam e ocuparam os portos por onde os lusobrasileiros recebiam ajuda da Europa e remetiam a produção de açúcar remanescente dos engenhos mais próximos ao Arraial Na verdade o Arraial servia também para proteger os engenhos e roças de mandioca da várzea do Capibaribe estratégia que deu certo nos primeiros anos Na medida em que conquistavam as vilas e povoados ao norte do Recife os holandeses iam travando conhecimento com os moradores que não fugiram para o Arraial e iam também conhecendo cada vez mais o interior os costumes os rios e as possibilidades de ganhos econômicos Não foi à toa que muitos militares soldados inclusive se tornaram comerciantes livres vrijluiden após o serviço militar de três anos no Brasil Dessa forma muitos passaram a fornecer produtos os mais diversos para os armazéns da WIC no Recife Caixas de açúcar frutas madeira entre outros gêneros começaram a ser fornecidos pelos vrijluiden a partir de 16341635 na medida em que a guerra arrefecia ao norte do Recife Não demorou para que se formasse um quadrilátero comercial entre o Recife Igarassu Itamaracá e Goiana Entre essas vilas circularam grandes e pequenas embarcações típicas da paisagem dos Países Baixos Assim iates e chalupas passaram a disputar espaço com as jangadas e barcaças lusobrasileiras O aumento da circulação dessas embarcações menores dinamizou um pequeno comércio próximo ao Recife Frutas caixas de açúcar paubrasil e outras mercadorias passaram a ser comercializadas largamente por exmilitares ou funcionários da Companhia que após três anos de serviço militar pediam desligamento para tentar a sorte nos pequenos comércios De fato a experiência militar pregressa dotou essas pessoas de conhecimento mais preciso das pessoas e lugares do interior Logo sabiam para onde podiam retornar para comerciar algo ou com quem podiam contar Nesse jogo difícil da guerra havia espaço para entendimentos Muitos portugueses optaram por ficar e não fugiram para o Arraial Velho com Matias de Albuquerque Em Itamaracá muitos até permaneceram e aceitaram dentro do possível a governança holandesa Os anos de 1635 e 1636 assistiram a uma mudança de panorama na presença holandesa no Brasil Depois da queda do Arraial Velho do Bom Jesus muitos holandeses migraram para o Recife Esse povoado que antes era praticamente um arruado passara a crescer vertiginosamente Logo uma grande densidade demográfica na vila jogava para a administração superior uma grande responsabilidade Ao mesmo tempo muitos oficiais mecânicos e judeus vieram tentar a vida na conquesten Por essa época também a WIC recebeu vários padeiros e pedidos de desligamento de soldados Os anos de 1635 e 1636 são bem diversos dos anteriores quando muitos achavam que a conquista estava por um fio A perda do Forte de Nazaré cessou o último porto por onde a gente do Arraial poderia receber reforços A vinda de Nassau no início de 1637 jogou uma pá de cal na resistência lusobrasileira agora já amotinada no sul da capitania Restoulhe a debandada para a Bahia 93 92 Maurício de Nassau não econtrou a capitania completamente destruída Os dois anos anteriores resgistram os kleine profijten pequenos lucros havendo um estabelecimento de um sistema regular de navegação fluvial a prova de que o conde alemão não tive que construir um mundo do nada como quer uma certa historiografia tradicional do tema É fato que muita coisa teria que ser feita como o restabelecimento da produção de açúcar e do comércio de escravos para Pernambuco Durante os primeiros anos de guerra muitos cativos fugiram para o mato Não foi à toa que essa época foi marcada pelo aumento considerável dos mocambos dos Palmares No entanto esses mesmos anos de guerras constantes serviram para os holandeses se adaptarem ao clima e conhecerem os lusobrasileiros com quem poderiam contar numa fitura administração das localidades No processo mesmo da reconstrução e leilão dos engenhos alguns desses elementos se apresentaram às autoridades da Companhia no Recife Obviamente eles não apareceram do nada A fase dos kleine profijten permitiu que os holandeses os conhecessem Assim os nomes de lusobrasileiros que aparecem nas atas do governo holandês após a chegada de Nassau são geralmente os mesmos dos anos de 16351636 Como segundo o historiador Carlo Ginzburg a história se guia pelos nomes vamos ver aqui alguns deles O ano de 1635 mal começava e já se podia encontrar em Pernambuco um clima diferente da guerrilha constante Em abril desse ano a WIC comprou açúcar do português Antônio Rocha Também por esse mesmo tempo o assistente de padeiro Cornelius Ketel requeria a condição de cidadão livre uma vez que o seu tempo de serviço para a WIC já havia expirado Dois dias depois um morador de Muribeca sul do Recife Gonsalvo de Almeida chegava ao Recife em seu barco trazendo consigo duas caixas de açúcar branco Enquanto se fazia guerra contra o Arraial do Bom Jesus holandeses e lusobrasileiros iam realizando mesmo que timidamente um pequeno comércio A administração fora do Recife ia se desenhando Prova disso foi que em 30 de abril de 1635 a WIC nomeava um novo comissário de bens espécie de almoxarife para Goiana algo impensável pouco tempo atrás Nesse mesmo dia um burocrata da administração superior Willen Schott chegou ao Recife dizendo ser necessário mandar colocar no Rio Jangada sul de Pernambuco um grande barco para o transporte de açúcar Sobre isso foi decidido que o açúcar viesse por terra mesmo dado o maior risco de emboscada no litoral sul de Pernambuco As trocas e a administração do cotidiano se tornavam mais dinâmicas e se dividiam entre a guerra e o pequeno comércio Tanto que em maio desse mesmo ano a WIC vendera ao português Baltasar Ferdinandt material para ele construir uma embarcação para um dos diretores da WIC no Recife Provavelmente essa embarcação seria utilizada por ele para alguma atividade paralela de comércio O que importa aqui é a contratação de mão de obra local pelos holandeses Ata do Alto Conselho 3004 e 01051635 Em maio de 1635 um vrijleiden holandês Roeland Carpentier já fornecia à WIC paubrasil Ata do Alto Conselho 01051635 Isso prova que se tratava de alguém que conhecia bem o interior da capitania De fato os primeiros anos de guerrilha permitiram aos holandeses conhecerem as possibilidades de comércio futuro e sonharem com uma carreira mercantil Nem todos que se desligaram da WIC e obtiveram a condição de vrijleiden conseguiram ter êxito mas muitos tentaram Ainda em maio os cruzadores De Goutvinck e De Spreeuw iriam para a freguesia de Goiana norte do Recife para serem carregados de açúcar e levavam 1200 florins para o senhor Ippo Eisens responsável pela administração local Ata do Alto Conselho idem Esse episódio é muito sintomático em duas questões A primeira delas é o pequeno comércio que se fazia mais dinâmico nas freguesias ao norte do Recife A segunda é a necessidade de monetarização da economia que foi um problema constante durante toda a presença holandesa no Brasil De qualquer forma muitas dessas embarcações de menor porte iates pequenos cruzadores e chalupas passaram a levar bens e correspondências entre os administradores das freguesias do interior e o centro da administração no Recife Antes mesmo da vinda de Nassau já se vivia um clima de relativa paz entre a guerra e os pequenos lucros bastante comemorados pela WIC Nesse momento dos holandeses em Pernambuco interesses particulares e da própria Companhia se entrecruzavam Os holandeses ajudavam a WIC como fornecedores e prestadores de serviço e recebiam desta uma boa retaguarda militar e institucional A construção e 95 94 reforma de fortes contou muito com o serviço terceirizado em que pequenos empreiteiros também queriam a sua parte no bolo Um movimento interessante pode ser observado a partir de 11 de maio de 1635 que foi a vinda para Pernambuco de muitos assistentes de padeiro e padeiros profissionais As fontes holandesas estão cheias desses pedidos Os assistentes eram contratados pelo salário de 14 florins por mês Esse foi o caso de Harmen van Eijssens Jan de Woerden Jan de Fijn e Gerrit Strijte Já Jan Barentsen e Lambert Everts passariam a receber 17 florins na condição de padeiroschefe Idem 11051635 A explosão de padarias ocorreu de Pernambuco até a Paraíba Isso era sinal de aumento das campanhas militares que demandavam a provisão das tropas e de civis O aumento da frequência de carregamento de trigo dos Países Baixos também permitia a pulverização das padarias e as possibilidades de trabalho para os holandeses pobres De alguma forma a economia girava em paralelo à guerra de resistência Pernambuco se abria aos poucos para os groote profijten grandes lucros Em novembro de 1635 Moses Navarro cristãonovo português e comerciante livre com larga experiência no transporte e negócio de açúcar e tabaco requeria a condição de corretor na comissão de todos os comerciantes dentro dos limites das conquistas da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil Isso foi concedido dada a sua experiência no ramo Também por essa época os contratadores de paubrasil Roelant Carpentier e Hans Louissen requeriam vinho como pagamento da madeira fornecida Idem 06111635 De certo tinham boas oportunidades de venda dessa bebida Isso também denota a pouca circulação de dinheiro na conquista Até na atividade canavieira os holandeses passaram a ter interesse Ainda em novembro de 1635 os funcionários da WIC Sigismund van Schoppe e o fiscal Nicolaas de Ridder se ofereceram para restaurar e adquirir o engenho abandonado de João Paes Barreto no Cabo de Santo Agostinho Também lhes foram oferecidos os engenhos Velho e Guerra Idem 08111635 No ano de 1636 continuam as atividades dos pequenos lucros mas muito comemorados pela Companhia Muitos empregados da WIC continuavam a pedir desligamento findo o contrato de trabalho para se aventurarem no pequeno comércio e em outras atividades Do lado lusobrasileiro as coisas também se dinamizavam Em janeiro desse ano o português Diego Fernandes pediu permissão para usar um barco da WIC para enviar caixas de açúcar vinho e duas toneladas de biscoito para a Paraíba Esse entendimento entre as duas partes que a historiadora Lúcia Xavier chamou de socialização era um indicativo de que Nassau não contraria um Pernambuco completamente destruído Claro que as atividades econômicas de lusobrasileiros eram seguidas de perto pelos fiscais da WIC Fernandes não usaria a embarcação de graça mas sob o pagamento de frete Idem 17011636 Até na atividade de prático e timoneiro havia lusobrasileiro servindo à WIC em Pernambuco Esse foi o caso de Manuel Graci que desde as campanhas da conquista da Paraíba e do Cabo de Santo Agostinho que remontam aos anos de 16331634 estava nessa função sem salário fixo Resolveuse então darlhe o vencimento de 38 florins por mês Era um bom salário uma vez que o prático conhece bem as entradas dos portos e barras podendo por isso evitar um encalhe de navio de carga ou militar Idem 21011636 O processo de retomada da produção açucareira foi particularmente interessante porque nos mostra o custo da montagem de um engenho e a divisão técnica de funções na plantation Nesse processo as fintas holandesas nos mostram quanto deveria ganhar um mestre de açúcar função que pagava muito bem já que muitos técnicos do açúcar haviam fugido com a invasão Outra função muito bem paga era a de capitão do mato A retomada da produção e do tráfico de escravos correu paralelamente a partir do ano de 1637 No ano seguinte a WIC comemorava as primeiras safras depois da Guerra Velha Nesse momento Nassau e o Alto Conselho que o assessorava tinha muito a fazer Um dos desafios seria consolidar a conquista no Maranhão e na região do São Francisco Mas antes mesmo de chegarem ao domínio da fronteira sul a área que hoje corresponde ao estado de Alagoas se mostrava como um grande entrave ao estabelecimento da boa ordem em vilas como Porto Calvo e nos povoados das duas Alagoas Aquela área era muito cobiçada porque lá se desenvolvera há muito tempo a pecuária a economia do tabaco e a produção em grande quantidade de farinha de mandioca Lá havia também produção de açúcar mas insignificante 97 96 porque existiam poucos engenhos Alagoas se tornou um problema porque era corredor de campanhistas lusobrasileiros que atravessavam o São Francisco vindos da Bahia para incendiarem engenhos em Pernambuco e Paraíba Os moradores dessa região sofriam bastante com os ataques dos quilombolas dos Palmares muitos dos quais havendo aproveitado os primeiros anos de guerra para fugir e engrossar as populações dos mocambos Depois da queda do Arraial Velho em meados de 1635 o Recife passou a receber muitos imigrantes dos Países Baixos A cidade antes um burgo triste e sem vida crescia bastante Os anos de 1635 e 1636 prepararam o terreno para a administração de Maurício de Nassau que ficou em Pernambuco entre 1637 e 1644 A partir de então os holandeses em Pernambuco entrariam na fase dos groote profijten grandes lucros A tarefa era difícil As relações com os moradores se alargaram e entraram em muitos casos num modo de cooperação apesar do clima constante de desconfiança mútua A partir de janeiro de 1637 Nassau e o seu Alto Conselho passariam a tocar a conquista Tão logo ele chegou ao Brasil os moradores de Olinda recorreram a Nassau com uma série de pedidos tais como necessidade de retomar suas casas e reconstruílas em Olinda ter alguns de seus privilégios respeitados como era antes da invasão trazer clérigos para rezar missas e armar seus negros para buscar escravos fugidos A administração procurou atender a esses pedidos da melhor forma já que se tratava de moradores importantes que poderiam fomentar a retomada da produção açucareira e o comércio de escravos Um desses pedidos se tratava de um perdão geral dos holandeses para com os portugueses que queriam retomar suas vidas na capitania Isso foi visto com cautela pela administração superior de modo que muitas pessoas poderão ser perdoadas depois de um inquérito Idem 04 e 05051637 De fato era um longo jogo de negociação De fato durante a ocupação holandesa principalmente durante a guerra de resistência lusobrasileira a população do Quilombo dos Palmares havia crescido vertiginosamente e causava pânico às vilas do sul da antiga capitania de Duarte Coelho A situação lá sempre foi muito difícil para os holandeses Frequentemente os moradores eram vítimas de extorsões por parte dos escoltetos espécie de xerifes Atitudes como essas desagradavam a administração superior estabelecida no Recife e minavam a boa convivência entre a WIC e a população local Sobre isso Nassau e o Alto Conselho procuraram ser bastante enérgicos tanto que extinguiram a atuação dos escoltetos naquela região Era preciso garantir a produção de carne fumo açúcar e mandioca Sobretudo essa última tão necessária ao abastecimento das tropas O aumento das campanhas militares e da população civil na conquista tornou a produção de farinha uma questão muito sensível De antemão temos que o controle dessa produção fora mais efetivo sobre os moradores da várzea do Capibaribe que ainda assim sempre arrumavam uma justificativa para não fornecerem a quantidade exigida Em 1643 a administração superior nomeou uma espécie de gestor para Alagoas o exadvogado fiscal da WIC Hendrick de Moucheron que propôs uma série de medidas para a administração do distrito mas sem efeito prático algum Pouco tempo depois se iniciaria a guerra de Restauração e Alagoas cairia em desordem social O mesmo aconteceu com o Rio Grande Sob a proteção do Forte Ceulen atual Forte dos Reis Magos a WIC extraía de lá muito sal e obtinha muitos ganhos com a pecuária A produção de açúcar era exígua se comparada à dos engenhos de Pernambuco Paraíba e Itamaracá A incursão holandesa no sertão do Rio Grande e Ceará levou ao estabelecimento de acordos com os tapuias que foram aliados importantíssimos em diversas campanhas militares Eram os indígenas do grande chefe Janduí Os holandeses viam essas alianças com muito bons olhos por motivos óbvios Também o Rio Grande era passagem para o Norte e por isso mesmo um ótimo ponto de apoio estratégico para a navegação holandesa em direção ao Amazonas Mesmo em meio a tantos percalços em sua administração alguns momentos de calmaria surgiam no horizonte do Brasil holandês A franca dilatação das possessões da WIC no Brasil e na África sobreviveram as transformações arquitetônicas e promoções de atividades científicas levadas a cabo por Maurício de Nassau Nesse sentido Nassau empreendeu a construção do palácio Vrijburg Segundo Evaldo Cabral de Mello não resta dúvidas de que a sua construção serviria para demonstrar status como também para demonstrar a estabilidade da presença holandesa no Brasil tanto para os holandeses como para os da terra Aliado a isso o Recife mudava radicalmente a sua 99 98 face com a construção da Cidade Maurícia Mauritzstadt obras urbanísticas acompanhadas por Huigens e Pieter Post Do ponto de vista arquitetônico o palácio Vrijburg seria segundo Cabral de Mello uma adaptação dos modelos paladianos europeus às condições tropicais MELLO 2006 p135 O palácio Vrijburg passou a abrigar então a corte nassoviana composta entre outros de cientistas e pintores como o médico Piso os pintores Eckhout e Frans Post e o cartógrafo Marcgraf Segundo Cabral de Mello a quem coube fazer uma bela biografia sobre Nassau todo esse mundo de gente consumia uma boa quantidade de víveres dos quais 45 quilos era só o consumo diário de carne vermelha MELLO 2006 p 137 O apreço de Nassau pelas artes se expressou nos estímulos à pintura das telas de Frans Post e Albert Eckhout que bem retrataram o cotidiano do Brasil holandês e ajudaram a divulgar na Europa a conquista da Companhia e dele evidentemente Um outro palácio construído por Nassau o da Boa Vista dividiu com o Vrijburg a sua coleção zoológica botânica e etnográfica compostas a partir de expedições realizadas ao interior Finalmente segundo Mello nenhuma teve êxito apenas o mérito de enriquecer as coleções etnográficas de Nassau Mello idem p 141 A urbanização do Recife fez surgir um burgo que se tornaria rival de Olinda e que passaria a abrigar em definitivo uma nova classe de comerciantes de médio e grosso trato que se tornariam uma antítese aos produtores de açúcar vereadores da Câmara de Olinda Esse clima de embelezamento urbano e constituição de uma corte logo flertou com a impermanência quando Nassau regressou aos Países Baixos em meio a uma série de desavenças com os diretores da Companhia O auge econômicocultural do Brasil holandês viu se configurar uma poderosa comunidade judaica no Recife que formou a Kahal Zur Israel a mais antiga sinagoga das Américas No Brasil Nassau concedeulhe liberdade de culto e não bastou muito para que muitos criptojudeus de Pernambuco se juntassem aos judeus de Amsterdã Esse foi o caso de Manuel Gomes Chacão cristãonovo de Itamaracá retratado por Ronaldo Vainfas Com o incremento do tráfico de escravos de São Jorge da Mina 1637 e Luanda 1641 abriuse uma janela de atividades de corretagem na venda de cativos nos leilões ocorridos na Rua dos Judeus Grande parte dessa atividade estava em mãos judaicas o que despertou despeito de católicos e protestantes Alguns vieram de outras partes da Europa como foi o caso de Abraão Bueno Diogo Henriques que declarou ao Santo Ofício ter nascido em Baiona França e ser filho de portugueses Bueno viera com a mãe em 1641 para Pernambuco certamente atraídos pela nova conjuntura econômica favorável MELLO 1979 p 18 Todas as conquistas da WIC longe de Pernambuco Paraíba e Itamaracá foram muito frágeis Isso é bom que se diga para que o leitor não crie a ideia de uma conquista coesa e de uma administração exemplar em que Nassau teve em suas mãos todas as rédeas da governança Pelo contrário o desconforto foi constante durante a sua administração no Recife e longe dele Diante disso devemos relativizar o que a historiografia tradicional chamou como pax nassoviana Essa visão tem muito a ver com a construção do mito nassoviano que veremos na última parte deste texto A Restauração Pernambucana o início do fim 101 100 Saída da Holanda esta terrível companhia a WIC e quadrilha bateu os mares do infeliz Pernambuco onde tendo bem demarcado a praia por onde podia pisar a terra tomou porto na do PauAmarelo e lançando nelas os vorazes lobos que toda a sede anelaram o inocente sangue do católico português CALADO 2004 p 255 A passagem acima rica em metáforas consta no livro de crônicas do Frei Manoel Calado contemporâneo da presença holandesa em Pernambuco A memória é um ótimo combustível para se iniciar uma guerra ou para se firmar uma identidade de um certo grupo Dessa forma ao descrever o início do movimento de retomada de Pernambuco aos holandeses Calado lembrava aos seus iguais todo o mal que representavam os invasores O ano de 1645 marcaria o início do fim A partir daí os lusobrasileiros organizaram todos os esforços contra os holandeses Um de seus maiores arquitetos o senhor de engenho João Fernandes Vieira declarou ser aquela uma guerra pela liberdade divina para justificar a reação Com instruções de Portugal urdiu a partir dos engenhos do interior da Capitania de Pernambuco uma série de operações militares que durariam quase dez anos A guerra de Restauração deu vez a uma grande produção de crônicas que ajudaram a formar a classe senhorial pernambucana e até serviu de esteio para que se criasse o mito da fundação do Exército brasileiro a partir das Batalhas dos Guararapes João Fernandes Vieira que se tornou um dos homens mais ricos e poderosos durante a ocupação holandesa juntouse com alguns outros comandantes de armas e militares experimentados e colocaram em prática as escaramuças contra as tropas holandesas É lógico que ele não agiu sozinho e sim com uma grande ajuda local vinda da Bahia e de Portugal Em 1645 Portugal já havia se desvencilhado da Espanha e tinha rei próprio Dom João IV Mas as insatisfações com os holandeses se deram mesmo no mesquinho cotidiano da administração E foi justamente nas práticas dos escabinos nas diversas localidades As câmaras dos escabinos foram alvo de reclamações por parte dos portugueses desde a sua fundação em 1638 O cronista Diogo Lopes Santiago deu conta de que na prática os escabinos holandeses que eram sempre maioria faziam o que queriam e obrigavam os suplicantes portugueses a gastarem com tradução de documentos Somase o fato de que era difícil que os escabinos portugueses estivessem todos juntos nas seções uma vez que moravam distantes uns dos outros enquanto os holandeses viviam todos no Recife Na visão do cronista sempre o parecer dos juízes holandeses era confirmado segundo queriam os quais falavam uns com os outros em sua língua e despachavam como lhes parecia e davam o papel e sentença aos portugueses que assinassem Para Santiago ainda que os portugueses se negassem a assinar a sentença valeria de qualquer jeito O cronista também mencionou os abusos cometidos pelos escoltetos nas freguesias sobretudo quando iam cobrar a contribuição de farinha de mandioca dos moradores Finalmente o cronista militar relatou expedientes baixos que os holandeses utilizavam Diziam para suas mulheres atraírem homens portugueses para a conversa e em dado momento darem a entender que eles as estavam assediando Para se sair disso tudo vinha a parar em que os portugueses pagassem ao marido e à mulher cinquenta e sessenta dobrões para que não fosse por diante o rigor Para completar o rol de arbitrariedades dos holandeses Lopes Santiago carregou nas tintas ao detalhar a rapinagem dos soldados que partiram com Nassau em 1645 Disse ele que às vésperas da partida saíam de noite em quadrilhas e dando de súbito nas casas dos moradores roubavam quanto achavam e na Várzea que ficava mais perto do Recife roubavam muito dinheiro e joias de ouro e muita prata e se atreveram a estes e outros latrocínios que como se embarcavam ninguém lhes pediria conta nem os buscariam SANTIAGO 2004 p 156161 As queixas relatadas por Diogo Lopes Santiago sendo exageradas ou não já eram mais que suficientes para provocar a ira dos lusobrasileiros Especialmente dos moradores da várzea do Capibaribe local da primeira nobreza da terra Coincidentemente foi a partir dessa freguesia que se pensou e organizou com requinte o troco que dariam aos holandeses Na Várzea os holandeses pisavam na elite da terra no nervo social que sempre teve assento na Câmara de Olinda nas famílias de brasões mais relevantes A própria crônica de Santiago veio como um registro da memória daquela classe nata da açucarocracia Com fatos como esses narrados acima não haveria tecido social que não se esgarçasse Foi inevitável que viesse a guerra Aos poucos já em fins de 1644 juntamse os principais nomes que levariam a guerra a cabo João Fernandes Vieira André Vidal de Negreiros Dom Antônio Felipe Camarão e Antônio Dias Cardoso Este último em segundo plano Muitos cronistas em tom elegíaco atribuem a organização desse movimento a Fernandes Vieira que teria enviado cartas ao governadorgeral Antônio Telles da Silva dando conta da necessidade da guerra Dias Cardoso levara notícias para a Bahia sede do GovernoGeral informando dos males que os holandeses faziam à população civil em Pernambuco e do pedido de armas e munições para se começar a retomada Dessa forma a partir de seu engenho na Várzea devotado a São João Batista Vieira reunira os principais nomes da terra numa mesa de jantar para urdir o plano Gente em quem confiava piamente Assim começaram a se reunir na surdina e vindo em grupos separados para não levantar suspeitas nas matas junto ao Rio Tejipió e próximo aos currais de propriedade de Fernandes Vieira Ao julgarmos pelas páginas bajulatórias de Diogo Lopes Santiago temos um Fernandes Vieira determinado e que passou armas e todo tipo de material de guerra às escondidas e mandou fazer pelos matos muitos armazéns ocultos de muitos mantimentos e fardos Aos poucos nas freguesias de Pernambuco a resistência se preparava a partir de cartas e instruções de Vieira Idem p 186189 Do lado holandês após se saber das intenções de Fernandes Vieira foram iniciados reparos nas estruturas e o reforço do armamento das fortalezas do Recife O Alto Conselho Holandês ordenou via edital que não se retirasse comida ou bebida do Recife e Cidade Maurícia sem a devida permissão Na paranoia de uma guerra iminente os holandeses começaram a trazer presos portugueses de diversas freguesias para lhes interrogar e impor fidelidade Nada disso adiantou tanto que em 3 de agosto de 1645 os holandeses comandados pelo coronel Hendrick Haus e o capitão Jan Blaer perderam muitos de seus homens no conflito do Monte das Tabocas Vale salientar que Jan Blaer era um exímio conhecedor dos indígenas e da geografia local havendo se tornado um temido capitão do mato da região de Sirinhaém sul de Pernambuco Não faltaria muito para sua vida perecer A batalha das Tabocas foi tão comemorada pelos lusobrasileiros que um cronista chegou a dizer que foi essa gloriosa vitória de grande honra para os nossos e de grande abatimento para o inimigo que tão soberbo andava porque nela perdeu a reputação e a mais florida gente que tinha CALADO 2004 p 14 Muitos nativos aliados dos holandeses também haviam morrido nas Tabocas A julgar pelas avaliações geralmente parciais dos cronistas a raiva dos holandeses por essa grande derrota os teria levado a executar toda sorte de males aos moradores da região como foi o caso dos moradores de Apipucos na várzea do Capibaribe Tudo isso para descontar o sangue holandês derramado na contenda Idem p 35 Não tardou para que os lusobrasileiros enfrentassem os holandeses no engenho CasaForte de Dona Ana Paes A notícia de que muitas mulheres de moradores da Várzea haviam sido presas no Recife teria provocado uma reação rápida dos da terra no intento de lutar por suas honras Logo após a derrota no Monte das Tabocas os holandeses haviam recebido um reforço importantíssimo dos tapuias do Rio Grande No caminho para Casa Forte fato desde julho de 1645 segundo Hermann Wätjen as guerrilhas foram assumindo formas cada vez mais cruéis E destacou aqui a figura do capitão Jan Blaer o qual levou por diante a luta com terrível desumanidade o destemido guerrilheiro segundo Wätjen foi morto no caminho para a Bahia em consequência do ódio despertado nos portugueses pelas atrocidades que havia cometido na guerra WÄTJEN 1938 p 235 Já em fins desse ano o Recife estava cercado dado que Vieira Vidal e os demais haviam tomado a região de Sirinhaém e o porto de Nazaré no Cabo ao norte as terras dos engenhos da Várzea e Olinda O cerco ao Recife estava montado começava a falta de comida para as localidades do interior As conquistas de Itamaracá Paraíba e Rio Grande pararam de receber víveres A administração holandesa se desesperava rogando ajuda aos Países Baixos Os holandeses passavam agora o que os da terra viveram nos últimos dias do Arraial Velho do Bom Jesus dez anos antes A partir de então a roda da fortuna virou de lado Eram os lusobrasileiros quem davam as cartas Os quase dez anos seguintes da guerra da Restauração pernambucana serviriam para além de expulsar os holandeses por meio de guerra e acordos diplomáticos consolidar uma nova elite local com consequências inclusive na nova economia atlântica do postbellum Mas isso é uma outra história MELLO 1998 p 2152 Referências ATAS do Alto Conselho no Brasil Coleção José Higyno Arquivo do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano IAHGP BRÁSIO António org Monumenta missionária africana 2 série África Ocidental Central 15 vols Lisboa 19531958 BOXER Charles Ralph Os holandeses no Brasil Recife Cepe 2004 O império marítimo português São Paulo Companhia das Letras 2002 CALADO Frei Manuel O Valeroso Lucideno e triunfo da liberdade 2 vols Recife Cepe 2004 COELHO Duarte de Albuquerque Memórias diárias da guerra do Brasil São Paulo Beca 2003 DOCUMENTOS holandeses Rio de Janeiro Biblioteca Nacional 1945 segundo o frei Manuel Calado Fernandes Vieira havia descansado com a tropa e sonhado com Santo Antônio que lhe mandava que se levantasse com pressa e fosse a buscar o inimigo Idem p 43 Para o cronista tudo era divino na ação de Vieira o que por si só justificava a guerra movida pela gente da Várzea descendentes dos primeiros portugueses que vieram a Pernambuco com Duarte Coelho Essa narrativa verdadeira ou não ficaria para a posteridade como um documento dessa classe Vindos de Muribeca sul do Recife passaram para o Engenho do Meio e Santo Antônio na Várzea de propriedade do próprio Vieira cruzaram o Capibaribe na direção do Engenho de Ana Paes mais ao norte e surpreenderam Haus Blaer e seus homens com seus brindes e galhofas como eles costumam fazer quando bebem Idem p 45 Dessa forma os holandeses eram representados nas crônicas lusobrasileiras Já os seus responsáveis abstêmios e diligentes Em Casa Forte em 17 de agosto Haus e os seus homens se renderam pela surpresa do cerco dos lusobrasileiros Suas vidas foram preservadas mas não as dos indígenas vistos como traidores pelos da terra Para eles se dirigiram todos os ódios dos lusobrasileiros Todos foram degolados Nesse momento a figura de Calabar ainda estava bem viva na mente dos lusobrasileiros Idem p 5051 Frei Calado se não exagerou narrou que após a rendição das tropas de Haus em Casa Forte um grande alarido havia tomado conta dos moradores de Apipucos e parte da Várzea que bradavam gritos de vitória assustando assim os holandeses Laudatório que era o frei Manuel Calado chegou a comparar em versos Fernandes Vieira a Aníbal o grande conquistador cartaginês Disse Na retaguarda o Aníbal Valente Marcha com os briosos ventureiros Que trouxe da Bahia brava gente Valentes esforçados e guerreiros Construíase assim um mito de Vieira Idem p 57 Tabocas e Casa Forte haviam tornado os lusobrasileiros praticamente donos do interior Os holandeses temiam a circulação de civis fora do Recife ou seja fora da proteção das fortificações Com isso a circulação de paubrasil açúcar e produtos em geral praticamente cessou Fenecia a vitalidade econômica da Capitania de Pernambuco Enquanto isso os reforços chegavam da Bahia por ordem do GovernadorGeral Antônio Telles da Silva De mas não conseguiu impedir a conquista da vila e de seu porto o Recife CALADO 2004 COELHO 1981 PUDSEY 2000 RICHSHOFFER 1930 A queda de Olinda e de seu porto a exemplo do sucedido em Salvador não se traduziu em avanço holandês para o interior da colônia A despeito da vitória as tropas locais conseguiram manter os holandeses confinados em Olinda e no Recife No entanto ao contrário do que ocorreu em 1625 quando os Habsburgo conseguiram mobilizar uma poderosa armada os colonos do Brasil tiveram que se contentar com recursos escassos e inconsistentes haja vista a crise financeira que abatia a Monarquia hispânica e congentemente resultava em seu declínio naval deixando o Brasil exposto MELLO 2012 p71 SANTOSPÉREZ 2016 p174 O peso da defesa da terra recairia sobremaneira nos colonos de Pernambuco e áreas vizinhas Nos dois anos subsequentes à tomada de Olinda e do Recife os holandeses estiveram reclusos nessas duas localidades e permaneceram com acesso limitado ao interior por efeito de um dispositivo militar montado pelos colonos composto de uma combinação de forças convencionais concentradas em uma fortificação denominada Arraial do Bom Jesus levantada na vizinhança entre Olinda e o Recife e de contingentes móveis que ocupavam postos avançados ou estâncias que cercavam e impediam a saída dos holandeses dessas localidades com escaramuças O objetivo era mantêlos em Olinda e no Recife até que fosse possível uma grande intervenção naval que pudesse fechar o cerco e forçar a capitulação como se observou em Salvador MIRANDA 2020 p5 O resultado da estratégia local colheu frutos Até 1632 os holandeses só conseguiram fincar seus pés em uma ponta de terra na Ilha de Itamaracá 1631 Sofreram reveses militares na tentativa de expandir o território nas capitanias da Paraíba e do Rio Grande bem como em outras localidades de Pernambuco MELLO 1998 p3334 A guerra de escaramuças nas vizinhanças de Olinda e Recife foi lentamente suplantada pela Companhia na medida em que ela mudou a estratégia de avançar nas zonas vizinhas ao Recife e passou a usar seu poder naval para desembarcar tropas no interior em posições longe das bases de apoio dos colonos o que os impossibilitava de fazer uma oposição rápida e eficiente Deixava ainda a população rural à mercê dos holandeses BOXER 2004 p 120123 LAET 1916 p 369370 WÄTJEN 2004 p 120123 Mesmo com a mudança de estratégia do exército invasor o impasse militar que caracterizou a guerra nos primeiros anos de ocupação foi extremamente danoso para a Companhia Ela não estava compensando financeiramente os avultados gastos para a conquista de um território que julgara fácil de ser conquistado Também acumulava dívidas e aumentava as desconfianças dos investidores no futuro da colônia HEIJER 2005 p36 Eventualmente a estratégia de contraguerrilha acabou produzindo os resultados desejados a Companhia lentamente enfraqueceu a guerrilha e tomou importantes posições no Brasil como a Fortaleza dos Reis Magos no Rio Grande em 1633 os fortes Santa Catarina de Cabedelo e Santo Antônio e a cidade de Filipeia de Nossa Senhora das Neves atual João Pessoa na Paraíba em 1634 Essas conquistas foram seguidas de uma maior interiorização no território e da adesão dos moradores aos invasores Na Paraíba os moradores foram forçados a assinar uma capitulação em troca de não serem molestados pelos holandeses Gradativamente moradores de outras localidades começaram a aderir à Companhia e negociações e trocas começaram a ser observadas nesse período LAET 2016 p 517518 NASCIMENTO 2004 p 84 Com a queda da Paraíba a resistência local perdeu um importante ponto de apoio logístico o que afetava diretamente a defesa montada nas imediações de Olinda e Recife O desmoronamento da resistência fezse completo no ano de 1635 quando o Arraial do Bom Jesus base central da guerrilha e o Cabo de Santo Agostinho onde estava o principal porto do exército de resistência para o recebimento de reforços e escoamento do açúcar produzido na região importante mantenedor da guerra foram sitiados e conquistados Tais derrotas acarretaram uma debandada de parte da população do interior junto com as tropas de resistência as quais tentaram manter o sul de Pernambuco enquanto aguardavam reforços substanciais para conter a ofensiva dos holandeses BOXER 2004 p 7484 WÄTJEN 2004 p 124130 Mesmo perdendo o Arraial as forças locais privaram a Companhia de reestruturar a indústria açucareira com persistentes ataques às plantações e 113 112 ou passaram a se empregar na própria Companhia devido às flutuações econômicas e instabilidades do território A Companhia não teve planos de colonização eficientes e regulares Também evitou custear a ida de colonos que se não tivessem capital acabariam dependendo economicamente dela Por outro lado precisava colonizar o interior e diminuir a dependência da população portuguesa que controlava o plantio da canadeaçúcar Era um problema conhecido mas nunca tratado com a seriedade necessária DUSSEN 2004 p178181 MELLO 2001 p5759 XAVIER 2018 p7186 Os portugueses que aceitaram o domínio da Companhia permaneceram de posse de seus engenhos Outros adquiriram engenhos confiscados ou labutaram como lavradores e trabalhadores de ofício que atendiam nas fábricas de açúcar Sua experiência era fundamental para o sucesso do empreendimento embora sua relação com os holandeses fosse tensa e mantida na base da coação Os conflitos se davam por questões religiosas e também pela subrepresentação política a que foram levados com a invasão A quebra de prestígio político deles está na chave do entendimento da rebelião de 1645 junto com o notável endividamento pelos empréstimos para reconstrução dos engenhos mas também para a aquisição de escravizados e de mercadorias a comerciantes da cidade Nassau percebia bem a delicada relação com os portugueses e recomendou aos membros do Alto Governo em 1644 que dessem tratamento cortês aos moradores enfatizando também que não os pressionassem para o pagamento de dívidas DUSSEN 2004 p181182 MELLO 2001 p143144 242257 MELLO 2000 p90114 MELLO 2012 p262 LUCIANI 2012 Já a comunidade formada por judeus no Brasil era em sua maioria composta de judeus portugueses e seus descendentes que haviam fugido para Amsterdã em decorrência da perseguição da Inquisição Além dos negócios atrelados ao mundo do açúcar ocupavamse na colônia do comércio miúdo a retalho da cobrança de impostos corretagem e venda de escravizados Era uma comunidade diversa que cresceu substancialmente e que encontrou florescimento no Brasil A Companhia demonstrou interesse na sua migração para a colônia e lhes concedeu vantagens no território que não lhes eram oferecidas na Europa MELLO 1996 p 533 201255 VAINFAS 2010 p 87140 No que se refere aos povos indígenas a relação dos holandeses foi direcionada desde o início para a formação de alianças Povos de origem tupi Potiguara e tapuia Tarairiu entraram em definitivo nas guerras do açúcar e enxergaram na aliança com os holandeses a oportunidade de retaliaren os portugueses contra quem vinham travando lutas desde o século anterior Os indígenas do litoral foram dentre os povos locais com os quais os holandeses se relacionaram os mais próximos e para eles foi montado um aparato de catequese da religião reformada que obteve algum sucesso Indígenas aldeados formaram a linha auxiliar de defesa do interior e permaneceram firmes em sua aliança com os holandeses até 1654 Os tapuia por sua vez procuraram se aliançar com a Companhia logo no início da ocupação embora tenham se mostrado aliados instáveis Eles garantiriam certa segurança na porção setentrional da colônia mesmo após a insurreição dos portugueses em 1645 MIRANDA 2020 p9 Além de auxílio na guerra a Companhia esperava dos aldeados tupi participação nas frentes de lavoura mediante pagamento ainda que ínfimo o que deu vazão a conflitos Esses aldeados tiveram autonomia política a ponto de estabelecerem uma assembleia indígena na década de 1640 quando da revolta dos portugueses Ainda que lacunar a documentação permite obter as minúcias dos acordos desses povos com a administração da Companhia e até mesmo as implicações e consequências políticas da escolha daqueles que se aliançaram com holandeses após sua expulsão além de diversos aspectos sobre a cultura e sociedades indígenas daqueles territórios BOOGAART 1979 p 519538 HULSMAN 2006 p3769 MELLO 2001 p 207236 MEUWESE 2012 p125190 SCHALKWIJK 2004 p 207227 A conquista de áreas produtoras de açúcar acabou levando os holandeses para um importante negócio sem o qual os engenhos de açúcar não podiam subsistir o trato de escravizados Os entraves morais iniciais para a entrada no tráfico e a participação esporádica no trato foram logo superados Como referido em 1637 a Companhia fez sua primeira expedição à costa africana para se apossar de um entreposto negreiro português São Jorge da Mina Não era a primeira incursão holandesa na costa africana embora fosse a primeira fixação naquela banda do Atlântico Posteriormente em plena reestruturação 117 116 fábricas Gente desterrada parte rumou para a Bahia fábricas destruídas canaviais queimados e escravizados em fuga fariam parte da paisagem da zona rural naqueles primeiros anos Tal situação só iria mudar quando um novo governador fosse apontado para o Brasil Ele daria início a uma campanha para expulsar em definitivo o exército da resistência do sul de Pernambuco e liberar assim se esperava a zona do açúcar da presença portuguesa BOXER 2004 p 8993 WÄTJEN 2004 p 134136 Expansão e governo de Johan Maurits van NassauSiegen 16371644 Escolhido em 1636 para governar o Brasil Johan Maurits van NassauSiegen 16041679 veio com o desafio de sacramentar a posição holandesa no território e restabelecer a economia da colônia amplamente afetada pela guerra de conquista Mal colocou os pés no Brasil ele direcionou suas tropas para uma campanha capaz de empurrar a resistência local para o sul da colônia Mesmo com constantes infiltrações inimigas no território Nassau garantiu uma fronteira natural para o Brasil holandês no Rio São Francisco e a manteve até 1644 Sob seu governo seriam ainda ampliadas as fronteiras da colônia na sua porção norte com a anexação do Ceará 1637 O projeto se estenderia ao ultramar sendo conquistado São Jorge da Mina 1637 e Luanda 1641 na África Ocidental importantes para o projeto de reestruturação econômica da colônia que dependia de mão de obra escravizada Um dos maiores desafios de Nassau foi reativar a economia açucareira após a longa guerra para dominar a colônia que resultou no abandono e destruição de boa parte dos engenhos de açúcar de Pernambuco CEULEN DUSSEN 2004 SCHOTT 2004 Com o intuito de restabelecer esses engenhos o novo governo confiscou e revendeu financiado no ano de 1638 68 engenhos de um total de 149 abandonados ao longo da guerra A maior parte deles seria comprada por holandeses seguidos por um bom número de portugueses Não demoraria para que parte substancial dos engenhos da colônia voltasse à atividade chegando a um pico de produção de açúcar nos primeiros anos da década de 1640 Parte desses engenhos adquiridos por holandeses também acabaria nas mãos dos portugueses que sabiam tocar o negócio melhor do que os primeiros CEULEN DUSSEN 2004 MELLO 2001 p144146 WÄTJEN 2004 p 153 422424 A bonança rapidamente cedeu à crise Retrações nos valores do açúcar entre 1638 e 1643 quebrando a sequência de alta secular de momentos anteriores afetaram em demasia os lucros dos endividados produtores Apertada em virtude dos polpudos e necessários empréstimos concedidos para a reconstrução do sistema produtivo e com queda de receita advinda do colapso do preço do açúcar a Companhia passou a pressionar os produtores para saldarem suas dívidas MELLO 2000 p 110112 MELLO 2012 p 297298 Os povos do Brasil holandês e sua governança A governança do Brasil holandês era a tensa administração de povos de origens e tradições políticas e religiosas muitos distintas portugueses junto com judeus inclusive cristãosnovos e criptojudeus holandeses e gente da Companhia que consistia numa multiplicidade de pessoas de diferentes localidades do norte da Europa estados alemães Flandres Valônia França Inglaterra Irlanda Escócia e Escandinávia Para complementar o caldeiração étnico havia as várias populações africanas trazidas forçosamente pelo tráfico atlântico de escravizados e os diversos povos indígenas igualmente distintos em língua costumes e vinculações políticas aos europeus ALENCASTRO 2000 p 210215 MELLO 1996 p 533 201255 MELLO 2012 p 201207 MIRANDA 2014 p 5267 VAINFAS 2010 p 90106 O grosso da população branca era de gente da Companhia Soldados e empregados civis muitos dos quais passaram a engrossar a fileira de cidadãos livres após o término de seus contratos Outros migrantes começaram a chegar em bom número a partir da queda do Arraial em 1635 e sobretudo com a instauração da liberdade de comércio em 1638 Comerciantes e os mais diversos artífices tentavam sua sorte na colônia mas muitos a deixaram 115 114 das fábricas após o fim da guerra de conquista e com a reativação da economia açucareira os holandeses necessitando ampliar seus planteis deram um golpe duríssimo nos portugueses ao conquistar Luanda MIRANDA 2020 p 910 A conquista dos entrepostos em São Jorge da Mina São Tomé e Luanda os levaria a entrar em contato com diversos povos africanos Logo aprenderam como lidar com o trato e com os costumes de alguns dos escravizados gente oriunda de Angola de Ardra da Guiné de Serra Leoa e do Congo comprada no outro lado do Atlântico e conduzida forçada pelos holandeses para toda a sorte de trabalho no Brasil Os holandeses fizeram parte de um negócio que teve um crescimento vertiginoso na década de 1640 e resultara na importação de mais de 26 mil escravizados ao longo dos anos de 1630 a 1651 com picos entre 1637 e 1645 O trato transmutarseia posteriormente numa das principais atividades da Companhia e com sua saída do Brasil os holandeses passaram a alimentar suas novas colônias no Caribe e no Suriname fornecendo também para outros territórios sem controle holandês ALENCASTRO 2000 p 210238 BOOGAART EMMER 1979 p 367369 EMMER 2000p 3945 SILVA 2011 p 169324 RATELBAND 2003 A relação da Companhia para com os povos de origem africana no Brasil não foi apenas de escravidão Desde cedo escravizados fugidos encontraram guarida entre as forças invasoras atuando como guias e guerreiros Muitos foram recompensados e permaneceram com os holandeses até seus últimos dias Alguns inclusive migrarem para os Países Baixos e constituiriam família por lá MELLO 2001 p 185 204 PONTE 2019 p 3361 XAVIER 2018 p 125 A restauração do Brasil e expulsão dos holandeses 16451654 Nassau e os administradores do Brasil holandês tiveram que encarar o desafio de governar povos de diversas origens e credos Eram grupos de interesses conflitantes mas Nassau conseguiu reduzir parcialmente os desgastes com políticas conciliadoras delineadas pela Companhia inclusive no que toca à manutenção da tolerância religiosa Contudo desordens de caráter econômico religioso e político que já emergiam entre os grupos terminaram por ficar latentes após a demissão dele em 1644 e com a composição de um novo governo principiado em 1645 Eles se mostraram incapazes de compreender e de solucionar os muitos problemas da colônia Ainda que eventos não ocorram em sucessão e se encadeiem numa lógica de causa e efeito é perceptível que os antecedentes da restauração do Brasil e da guerra que culminou na expulsão dos holandeses estejam como já referido relacionados a uma miríade de eventos de ordem econômica religiosa e política Cabe explicar melhor algumas dessas situações e instabilidades a referida queda no valor do açúcar na década de 1640 que junto com a destruição no campo promovida pela guerrilha levaria a mais endividamento dos proprietários de engenho O cenário foi agravado por cheias pragas e uma epidemia de bexiga que ceifou parte da mão de obra escravizada na década de 1640 MELLO 2000 p 102103 Incapazes de honrar com dívidas de empréstimos obtidos com a Companhia anos antes para a aquisição e reformas de engenhos e de mão de obra muitos foram pressionados também a quitar outros débitos com credores particulares tão logo o novo governo assumiu a colônia Abusos de toda ordem irromperam na cobrança das dívidas dessa elite local abrindose portanto o caminho para uma rebelião dos lusobrasileiros contra os holandeses e credores a eles vinculados LENK 2013 p 315 MELLO 1998 p 381447 Após a invasão ocorreram a destruição de templos católicos e a expulsão de ordens religiosas e de seus membros alguns dos quais atuaram ativamente contra os holandeses Também foram levantadas proibições a demonstrações públicas da fé bem como promovidos distúrbios e perseguições por gente não católica atrelada à Companhia das Índias Ocidentais Por tudo isso o elemento religioso deu o tom da guerra de liberdade divina apontado pelos conjurados em alguns textos produzidos nos primeiros momentos da rebelião e não deve ser deixado de lado em qualquer análise que se faça sobre esses eventos MELLO 2000 p 9496 VAINFAS 2010 p 188207 2 1 Um dos melhores balanços das motivações para a insurreição é feito por José Antônio Gonsalves de Mello em seu livro João Fernandes Vieira 2000 p 90115 2 Textos como o Compromisso de 1645 hoje na Biblioteca Pública de Évora ou o Manifesto dos moradores de Pernambuco de 1646 O Instituto Ricardo Brennand possui cópia manuscrita do Manifesto que contém justificativas de caráter religioso produzidas pelos colonos para Outros acontecimentos de ordem política ajudaram a constituir o cenário da rebelião O primeiro que pode ser pensado se dá já com a constituição de um governo holandês nos primeiros anos da conquista e o abalo da ordem política vigente com a substituição dos cabeças políticos dos territórios ocupados por um novo grupo exógeno que passara a administrar a terra e a justiça Mas essa era uma mudança apenas parcial haja vista a dependência econômica que a Companhia das Índias Ocidentais tinha dos senhores de engenho portugueses que se mantiveram como grupo majoritário a tocar a produção do açúcar e que voltariam a exercer decorridos alguns anos da guerra participação política naquela sociedade Sua atuação não ocorreria sem fissuras e tensões com os holandeses como se observa ao longo dos anos de funcionamento da Câmara dos Escabinos criada em 1637 pela Companhia com o objetivo de ter um aparato governativo que tivesse representação dos principais grupos da colônia dirimindo assim conflitos entre as partes MELLO 2001 p 122127 LUCIANI 2012 p 206224 Elemento de ordem política de primeira grandeza para pensar a insurreição foi a própria restauração portuguesa de 1640 e o fim do vínculo ao império espanhol Apartado da coroa espanhola e aclamado um novo rei para Portugal caía em tese a justificativa holandesa para ocupação das capitanias do Norte do Brasil agora que ambos os países compartilhavam um inimigo comum Negociações entre Portugal e os Países Baixos resultaram em tratado que cessava as hostilidades entre as duas nações As tratativas previam o restabelecimento dos vínculos comerciais a cooperação militar contra os espanhóis e o mais importante congelava a situação da ocupação de territórios portugueses no ultramar enquanto se negociava sua restituição mediante indenização Nos bastidores contudo se articulavam elementos catalisadores para a revolta e restauração de Pernambuco e demais capitanias haja vista a percepção dos portugueses de que a devolução não iria se consolidar por via da diplomacia MELLO 1998 p 3647 É fácil inclusive entender que Portugal precisava ainda mais de suas colônias para sobreviver como reino independente quando o grosso do seu império estava concentrado no Brasil e este era dependente do trato de escravizados obtidos em entrepostos da costa africana parcialmente ocupados e acosados pelos holandeses Os últimos aproveitando o atraso na comunicação da assinatura de tréguas com Portugal avançaram sobre territórios coloniais portugueses no Brasil Sergipe e São Luís no Maranhão e em Angola Luanda um duro golpe compreendido como um gesto de traição e que acirraria ainda mais os ânimos daqueles que não mediram esforços em fomentar a rebelião Por outro lado os portugueses da Bahia e na capital também vivia parte dos emigrados da guerra de Pernambuco desejosos em retornar para suas terras sofriam com o enorme peso fiscal acarreta do pelo longo conflito e ansiavam em se livrar da ameaçadora presença holandesa na sua fronteira setentrional Portanto eram pelo menos três grandes grupos reinóis e colonos da Bahia e de Pernambuco com interesses dos mais diversos agindo direta e indiretamente para o fomento da insurreição ARAÚJO 2014 p 3032 ARAÚJO 2022 p 129 LENK 2013 p 323368 MELLO 1998 p 2328 400403 A Companhia por sua vez cometeu erros estratégicos e não soube fazer a leitura de todas as movimentações portuguesas para uma eficiente ação de sufocamento dos rebeldes Teve com antecipação múltiplas notícias da frustração dos lusobrasileiros para com a política da Companhia e reconhecia a possibilidade de uma rebelião embora acabasse por não acreditar que a revolta saísse da fase de planejamento BARDENHEUER 2018 p 24 Ademais visando cortar custos haja vista a celebração do tratado de paz reduziu efetivos militares no Brasil dispensando oficiais veteranos conhecedores do território Era uma atitude errada diante da crescente insatisfação dos portugueses para com sua administração manifestada em uma revolta no Maranhão que resultaria na expulsão dos holandeses daquela localidade em 1643 No ano seguinte em decorrência de desavenças com a direção da Companhia Nassau seria demitido A Companhia retirou portanto alguém que se mostrava hábil na mediação e mitigação de conflitos da colônia Nassau seria substituído por um conselho formado por civis que em atitude contrária às recomendações dadas por ele no tempo de sua saída permitiu a execução de dívidas dos moradores como visto Instigavam dessa forma o confronto com os locais no lugar de reduzir os antagonismos reinantes na colônia Para ser fiel aos fatos é necessário dizer que houve uma tentativa por parte do novo governo de diminuir os problemas dos senhores de engenho Costuraram um acordo com comerciantes particulares e moradores lusobrasileiros para pagamento de dívidas que já ultrapassavam 2 milhões de florins A entrega de toda a produção para liquidação dos empréstimos estava planejada A princípio o acordo era visto como positivo nos Países Baixos e até mesmo vantajoso para a Companhia pois era a chance de receber o dinheiro já considerado perdido A medida foi pensada ainda para impedir uma insurreição já que os senhores de engenho endividados passariam a dever à Companhia e não mais aos comerciantes particulares Esperavam evitar os vexames habituais causados por esses credores que confiscavam com anuência da Companhia propriedades e bens dos produtores a exemplo de mão de obra escravizada e equipamentos essenciais para o bom funcionamento dos engenhos Era sabido que a continuação de tal situação levaria os senhores de engenho a defender seus bens pela força e que o clima geral na colônia era de rebeldia Por fim a Companhia diminuiu os juros aplicados para 1 ao mês no lugar de 25 e 3 dos antigos credores e permitiu que os senhores de engenho tivessem tempo para safrejar e portanto produzir o suficiente para abaterem parte de suas dívidas Era uma tentativa de tirar a grande pressão sobre os produtores e arrefecer ideias de sedição ao mesmo tempo que impedia a ruína da própria Companhia MELLO 2010 p 331332 Apesar disso desde a aclamação do duque de Bragança como novo rei de Portugal que se planejava a rebelião embora no reino pairassem dúvidas sobre sua adesão ao projeto o que fez com que apenas no início de 1644 esgotadas as possibilidades diplomáticas para a devolução do Brasil a Portugal a Coroa encampasse o projeto insurreccional BOXER 2004 p 218221 MELLO 2010 p 4460 3 Nassau foi substituído por uma junta de membros civis do Alto e Secreto Conselho composta por Hendrik Hamel Adriaan van Bullestrate e Dirck Codde van der Burgh Van der Burgh falece encore ainda em 1644 e fora substituído por Pieter Jansen Bas que se encontrava no Conselho Político MELLO 2012 p 331 os holandeses espremidos em suas fortificações e os portugueses à espreita e impedindo sua movimentação para o interior A situação dos holandeses na chegada do segundo ano de rebelião era calamitosa O Recife amargou sítio e fome No segundo semestre do ano de 1646 graças a reforços em tropas frescas enviadas dos Países Baixos a Companhia pôde arrefecer o cerco e efetivar algumas ações militares Todavia as tentativas do coronel Sigismund von Schkoppe experiente militar na guerra local e comandante geral das tropas da Companhia mostraramse improdutivas Recife e outras posições holandesas continuaram sob assédio dos portugueses Apenas com a chegada da frota comandada pelo almirante Witte Corneliszoon de With em março de 1648 com amplo reforço em soldados que uma ofensiva ampla foi posta em curso MIRANDA 2014 p 45 Autoridades civis e militares da Companhia passaram então a debater a próxima etapa no enfrentamento aos rebeldes A opção escolhida menos encorajadas pelos oficiais do exército foi de forçar os portugueses a entrar em batalha campal com as tropas dos holandeses Ansiavam por ter uma batalha decisiva cujo resultado poderia mudar o rumo da situação da Companhia na região MIRANDA 2014 p 45 Em abril de 1648 Von Schkoppe comandando 4500 soldados rumou para a Muribeca com o objetivo de fechar o trajeto por terra para o Cabo de Santo Agostinho local onde estava o porto que atendia às forças portuguesas Essas por sua vez estavam majoritariamente assentadas em um novo arraial construído na várzea açucareira Dele saíam tropas que apertavam o cerco ao Recife Se Von Schkoppe fosse bemsucedido em tomar o caminho para o sul de Pernambuco ele esperava que os portugueses fossem tentar furar seu bloqueio dandolhe portanto a batalha que procurava MELLO 2010 p 435 MIRANDA 2014 p 45 Pouco após sair do Recife as tropas da Companhia fizeram primeiro contato com as forças lusobrasileiras em um local pouco adiante de Afogados Conseguiram bater esses soldados e acamparam numa área de pasto denominada Leiteria Não tinham adentrado muito nas terras e ainda aguardavam gente para sua retaguarda O atraso foi suficiente para que os lusobrasileiros se reforçassem Essa tropa de 2200 homens atraiu os comandados de Von Schkoppe para uma série de outeiros no caminho entre o Recife e a Muribeca Mais uma vez como fizeram em Santo Antão anos antes os rebeldes usaram a vantagem do terreno para bater no dia 19 de abril as forças holandesas mesmo em condições numéricas desfavoráveis Repetiriam a façanha no ano seguinte quando o exército da Companhia tentou mais uma vez romper o cerco do Recife Entraram em confronto nos mesmos montes de nome Guararapes MIRANDA 2014 p 4546 Essa sequência de derrotas em Santo Antão 1645 Casa Forte 1645 e Guararapes 1648 e 1649 praticamente selou o destino da colônia Faltaram todavia meios materiais para que os portugueses conseguissem fechar o cerco e conquistar o Recife Enfrentaram sérias dificuldades logísticas e instabilidades em suas fileiras MELLO 1998 p 306312 A guerra se estendeu até 1654 quando o sítio pôde ser feito por terra e por mar tornando a posição holandesa mais frágil e impedindo os comandantes e administradores da Companhia a negociar termos de rendição Entre 1649 e 1654 os holandeses também careceram de meios para tentar mudar a situação militar Tiveram ainda que lidar com deserções e motins de tropas que constituíram importantes fatores para a capitulação MIRANDA 2014 p 352377 Após a rendição em janeiro de 1654 restaram as pressões políticas e militares na Europa que garantiriam à República das Províncias Unidas dos Países Baixos uma indenização pelas perdas no Brasil conforme ratificado nos tratados da Haia de 1661 e 1669 Algumas considerações finais adicionais devem ser feitas Enquanto esteve no Brasil a Companhia enfrentou sérios problemas financeiros Estes foram agravados ainda mais pela guerra quase incessante que a obrigou a operar 128 129 As melhores descrições dos eventos em Guararapes podem ser encontradas em Castrioto lusitano JESUS 1679 História da guerra de Pernambuco SANTIAGO 2004 e nos relatos dos oficiais do exército da Companhia Von Schkoppe e Van den Brande parcialmente publicados por Evaldo Cabral de Mello 2010 e integralmente por António de Souza Júnior 1998 Na historiografia a análise do confronto foi bem esquematizada em Guararapes MELLO 2002 e Do Recôncavo aos Guararapes SOUZA JÚNIOR 1998 Ainda que não tratando amplamente das batalhas em Guararapes Hoboken em Witte de With in Brazilie 16481649 1955 traz uma contextualização importante para os eventos que envolvem as duas batalhas Nesse sentido ver também Gente de guerra MIRANDA 2014 cap 6 que demonstra questões disciplinares que foram basilares para entender em parte a derrota do exército da Companhia na primeira batalha dos Guararapes sob permanente risco de falência Ainda no ano de 1633 os grandes custos do conflito tinham levado membros dos Estados Gerais a advogar uma negociação com a Espanha e o abandono do Brasil Em 1636 depois de seis anos de guerra a Companhia acumulava uma dívida de 18 milhões de florins e para financiar a guerra o corpo de diretores da Companhia terminou fazendo empréstimos com elevados juros de 6 Mesmo empurrando as tropas lusoespanholas para fora da zona do açúcar em 1637 a Companhia não conseguia ressarcir seus gastos por causa da destruição da zona produtora o que a obrigou a fazer pesados investimentos para reconstruir o sistema econômico A falta de colonos e de um plano de colonização também a impossibilitava de prover e defender seu território sem custos extremos Quando a rebelião irrompeu em 1645 a Companhia estava financeiramente muito comprometida e dependia do suporte dos Estados Gerais para montar uma esquadra de socorro Além disso ela tinha que defender um território muito maior do que suas reais capacidades operacionais e que já estava esvaziado de gente de guerra em decorrência de cortes de pessoal subsequentes à assinatura do tratado de paz com Portugal em 1641 como já mencionado Para piorar ela ainda enfrentou oposição interna da câmara de Amsterdã que sendo a maior investidora na Companhia era a que mais gastava para sua manutenção e portanto desejava fazer paz para se livrar do pesado custo da guerra no ultramar e restabelecer o comércio com Portugal Em 1649 o débito da Companhia era de 36 milhões de florins incluindo no valor 17 milhões de investimentos Esse era o maior sinal de que não havia mais condições de atuar na região Esses são elementos a mais para entender a derrocada do projeto holandês no Brasil GOSLINGA 1971 p 291307 HEIJER 2002 p 4354 97102 HEIJER 2003 p 9798 Referências ALENCASTRO Luiz Felipe de O trato dos viventes São Paulo Companhia das Letras 2000 ARAÚJO Hugo André Flores Fernandes Amigos fingidos e inimigos encobertos o governo geral e a insurreição pernambucana 16421645 Prohistoria ano XVII número 21 2014 p 2653 The insurrection of Pernambuco and the surrender of the Dutch in Brazil 16451654 In Oxford Research Encyclopedia of Latin American History 2022 ATAS diárias do Alto e Secreto Conselho do Brasil Dagelijkse Notulen van de Hoge en Secrete Raad van Brazilië Arquivo Nacional da Haia Países Baixos Coleção da Velha Companhia das Índias Ocidentais 1050101 inv nr 70 05081645 ATAS diárias do Alto e Secreto Conselho do Brasil Dagelijkse Notulen van de Hoge en Secrete Raad van Brazilië Arquivo Nacional da Haia Países Baixos Coleção da Velha Companhia das Índias Ocidentais 1050101 inv nr 70 17081645 BARDENHEUER Markus Várzea Talk War and communication in Dutch Brazil 16451654 Dissertação Mestrado em História Universiteit Leiden Leiden 2018 BICK Alexander Governing the free sea the Dutch West India Company and commercial politics 16181645 Tese Doutorado em História Princeton University New Jersey 2012 BOOGAART Ernst van den EMMER Piet C The Dutch participation in the Atlantic Slave Trade 15961650 Leiden Centre for the History of European Expansion 1979 BOOGAART Ernst van den Infernal allies The Dutch West India Company and the Tarairiu 16301654 In BOOGAART Ernst van den ed Johan Maurits van NassauSiegen 16041679 A humanist prince in Europe and Brazil The Hague The Johan Maurits van Nassau Stichting 1979 BOXER Charles Ralph Os holandeses no Brasil Recife Companhia Editora de Pernambuco 2004 Salvador de Sá and the struggle for Brazil and Angola London Athlone Press 1952 BRANDÃO Ambrósio Fernandes Diálogos das grandezas do Brasil Recife Massangana 1997 CALADO Manoel O Valeroso Lucideno e o triunfo da liberdade 2 volumes Recife Companhia Editora de Pernambuco 2004 CEULEN Mathias van DUSSEN Adriaen van der Breve discurso sobre o Estado das quatro capitanias conquistadas de Pernambuco Itamaracá Paraíba e Rio Grande situadas na parte setentrional do Brasil In MELLO José Antônio Gonsalves de org Fontes para a História do Brasil holandês a economia açucareira Recife Companhia Editora de Pernambuco 2004 COELHO Duarte de Albuquerque Memórias diárias da Guerra do Brasil Recife Fundação de Cultura da Cidade do Recife 1981 COMPROMISSO dos conjurados 23051645 Biblioteca Pública de Évora Portugal Códice CVI22 fólios 182f183v DUSSEN Adriaen van der Relatório sobre o estado das capitanias conquistadas no Brasil datado de 10 de dezembro de 1639 In MELLO José Antônio Gonsalves de org Fontes para a História do Brasil holandês a economia açucareira Recife Companhia Editora de Pernambuco 2004 130 131 PUDSEY Cuthbert Journal of a residence in Brazil 16291640 Petrópolis Editora Index 2000 PUNTONI Pedro A misera sorte A escravidão africana no Brasil holandês e as guerras do tráfico no Atlântico Sul 16211648 São Paulo Hucitec 1999 RATELBAND Klaas Os holandeses no Brasil e na Costa Africana Angola Kongo e S Tomé 16001650 Lisboa Vega 2003 RICHSHOFFER Ambrosius Reise nach Brasilien 16291632 In NABER S P IHonoré Ed Reisebeschreibungen von Deutschen Beamten und Kriegsleuten im Dienst der Niederländischen West und OstIndischen Kompagnien 16021797 Den Haag Martinus Nijhoff 1930 SANTIAGO Diogo Lopes História da Guerra de Pernambuco Recife Companhia Editora de Pernambuco 2004 SANTOS PÉREZ José Manuel Estado Capitanias donatariais e companhias comerciais Uma visão Comparativa do Brasil holandês In SILVA Kalina Vanderlei Org Histórias conectadas Ensaios sobre História Global Comparada e Colonial na Idade Moderna Brasil Ásia e América Hispânica Rio de Janeiro Autografia 2016 SCHALKWIJK Frans Leonard Igreja e Estado no Brasil holandês 16301654 São Paulo Cultura Cristã 2004 SCHOTT Willem Inventário dos engenhos situados entre o Rio das Jangadas e o Rio Una em Pernambuco 1636 In MELLO José Antônio Gonsalves de Fontes para a História do Brasil holandês a economia açucareira Recife Companhia Editora de Pernambuco 2004 SILVA Filipa Ribeiro da Dutch and Portuguese in Western Africa States Merchants and the Atlantic System 15801674 Leiden Brill 2011 VAINFAS Ronaldo Jerusalém colonial Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2010 WAITJEN Hermann O domínio colonial holandês no Brasil Recife Companhia Editora de Pernambuco 2004 XAVIER Lucia Furquim Werneck Sociabilidade no Brasil holandês 16301654 Tese Doutorado em História Universiteit Leiden Leiden 2018 O ciclo das revoluções libertárias em Pernambuco 181718211824 Flavio José Gomes Cabral Espaço das rebeldias No prelúdio do século XIX Pernambuco era uma das mais importantes capitanias da América portuguesa e tal denominação se estendia à vila do Recife que apesar de constituir um grande centro urbano não era a capital que se encontrava localizada a pouca distância na cidade de Olinda Esta cidade com o passar dos anos perdeu seu prestígio para a vizinha vila que cresceu a olhos vistos vocacionada para as atividades mercantis e portuárias As autoridades paulatinamente abandonaramna e se fixaram no Recife que se tornou o centro das grandes decisões políticas e administrativas A importância da capitania vinha desde os tempos coloniais quando ela se projetou na região em que estava inserida sendo muitas vezes chamada para auxiliar as capitanias vizinhas durante ameaças internas e externas e até na manutenção de outros estabelecimentos coloniais Esse tipo de socorro ocorreu por exemplo nos anos de 1822 e 1823 período no qual a província prestou apoio logístico durante as guerras da Independência fornecendo tropas munições de guerra e víveres importantes para que as tropas imperiais principalmente na Bahia e no Piauí pudessem se manter e combater as forças portuguesas concentradas naquelas regiões O território de Pernambuco naquele prelúdio do Oitocentos se estendia por toda a Comarca do São Francisco banhada pelo rio homônimo que dividia a Capitania da Bahia Figura 1 134 135 Figura 1 Carta topográfica da Capitania de Pernambuco Desenhista José Fernandes Portugal 1807 A carta destaca parte da costa brasileira o Rio São Francisco marco divisório entre as capitanias de Pernambuco Bahia Minas Gerais e Goiás Figura 2 Correio de Pernambuco no dia da chegada do vapor Europa 18631865 Vêse a Igreja do Espírito Santo e seu telégrafo semafórico Junto a ela o Palácio do Colégio dos Jesuítas do Recife Ainda naquele início de século falavase das mudanças políticas ocorridas na Europa e nos Estados Unidos da América do Norte Muitas dessas novidades chegavam por intermédio dos viajantes e tripulação das embarcações que arribavam no porto recifense e eram recebidas com euforia Ao perceber as movimentações das bandeiras coloridas do telégrafo semafórico instalado na torre da Igreja do Espírito Santo localizada no Bairro de Santo Antônio e contígua ao Palácio do Colégio sede do governo a população imediatamente corria para o cais a fim de receber notícias do outro lado do Atlântico Figura 2 A operacionalização das bandeiras coloridas tinha a finalidade de comunicar que navios se aproximavam pondo em alerta não apenas a população curiosa mas também os comerciantes e as autoridades militares Estas ficavam em estado de vigilância sobre a presença de possíveis embarcações inimigas os fortes eram preparados para apontar seus canhões contra os invasores Os comerciantes providenciavam pessoas para transportar as mercadorias vindas a bordo naquelas embarcações 136 137 se passava aqui e lá fora como também a arraiamiúda que circulava em vários espaços e ouvia as novidades dos viajantes almocreves feirantes soldados e escravizados Falavase muito em voz alta para que tais informações fossem escutadas repassadas e inclusive alteradas Insatisfações e rebeldias e a República de 1817 No dia 6 de março de 1817 quando eclodiu uma revolução em que se contestou a autoridade real pairava sobre o Norte uma recessão generalizada com grandes flutuações dos preços dos principais gêneros de primeira necessidade O custo de vida em um centro urbano como o Recife era difícil para todo mundo Um pescador disse à época que preferia viver em Maceió porque viver lá era melhor Na zona rural o quadro era talvez pior e também havia protestos No sertão bandoleiros aterrorizavam a população Com a chegada da família real a carga tributária cresceu para desespero de todos Por ser uma das capitanias mais lucrativas Pernambuco era também a mais explorada sendo obrigada a financiar os gastos da Corte Em 1809 o governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro mostrouse preocupado com a possibilidade de não continuar honrando compromissos mas a Coroa nada fazia para atenuar as reclamações Apeje CC cód 69 fls 1520 Tanto os homens endinheirados quanto a população pobre acreditavam que o rei havia dado as costas para a província Havia descontentamentos em várias esferas sociais a ponto de se orquestrarem sedições No Recife alguns desses encontros foram organizados nas casas de vários maçons entre os quais Domingos José Martins o padre João Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro o comerciante mestiço Antônio Gonçalves da Cruz Cabugá e o cirurgião Vicente Ferreira dos Guimarães Peixoto Participavam homens ligados às elites e de outros estamentos como soldados e funcionários públicos DOCUMENTOS HISTÓRICOS 1955 vol CVII p 233234 Um cenário exterior encantava os revolucionários o das independências da América A revolução dos Estados Unidos inspirou os revolucionários pernambucanos tanto que se explicou ao presidente norteamericano James Madison que o movimento pernambucano de 1817 havia se inspirado na revolução ocorrida em seu país Quando a revolução já cantava algumas vitórias ela conseguiu a adesão da Paraíba do Rio Grande do Norte e de parte do Ceará Quando as notícias do levante chegaram à Corte do Rio de Janeiro a preocupação de Dom João VI foi imensa a ponto de ele suspender a data de sua aclamação Nesse interregno o cônsul britânico Henry Chamberlain interceptou uma carta escrita em 25 de março de 1817 pelo refugiado portenho Carlos Alvear dirigida a Matias de Irigoyen que deveria fazer com que a missiva chegasse em segurança nas mãos de Juan Matin Pueyrredon Tratavase de trocas epistolares entre lideranças ligadas ao processo de independência da futura Argentina A missiva dizia que a revolução estava prevista para acontecer em outro momento e que os maçons estavam por trás dela Ao relatar o conteúdo da carta para o secretário de Estado britânico Lord Castlereagh o cônsul Chamberlain mostrou surpresa com o modo como a revolução se expandiu e o desejo de que seu espaço geográfico se expandisse DOCUMENTS DIPLOMATIQUES 1973 p 863 Muitas das ideias defendidas pelos revolucionários como soberania popular constituição e abolição da escravatura estavam presentes nos pensamentos do frade carmelita Manuel de Arruda Câmara Em 1810 ele se encontrava acamado e mandou chamar o também maçom padre João Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro um dos componentes do Governo Provisório de 1817 até sua residência em Itamaracá e lhe confiou a guarda de uma cartatestamento contendo planos revolucionários Segundo Pereira da Costa 1982 p 642 o documento deveria chegar em segurança até o amigo N residente nos Estados Unidos por contar planos sediciosos justamente em um momento que a América do Sul se tornava independente Tanto a carta interceptada no Rio de Janeiro quanto a de Arruda Câmara sinalizam a existência de um tipo de sociabilidade epistolar no continente em que se confidenciavam planos e estratégias revolucionárias A questão de soberania pensada por Arruda Câmara e pontuada no texto da Lei Orgânica da República de Pernambuco sinalizava que seus pensadores tinham conhecimento das tramas políticas ocorridas na Espanha no início do século XIX 138 139 um movimento liberal culminou com a convocação das Cortes e a promulgação da Constituição de Cádiz em 1812 que muito influenciou o processo de independência iberoamericano O texto da constituição gaditana fazia referência à soberania popular que na prática retirava do rei o poder Apesar de a proposta republicana ter sido vencedora os monarquistas constitucionalistas ponderaram que não se deveria mudar a forma de governo bruscamente Segundo informou o padre Muniz Tavares 1969 p 61 participante do movimento o advogado José Luís de Mendonça foi um dos que opinaram sobre a manutenção da monarquia sob a forma constitucional e quando ele contou sua proposta ao capitão Pedro da Silva Pedroso este aos gritos o chamou de traidor Empunhou sua espada e só não a utilizou porque foi impedido pelos reunidos Mendonça não reagiu e logo escreveria um documento denominado Preciso Figura 3 que explicava os motivos do rompimento da província com o soberano Figura 3 Preciso dos sucessos que tiveram lugar em Pernambuco Um breve relato para informar aos habitantes da província sobre os fatos e os objetivos da Revolução de 1817 Como a jovem República adotou outro tipo de soberania que se divorciava do corpo do rei este se sentiu traído porque sua real soberania e suprema autoridade haviam sido ameaçadas DH 1953 II p 14 Não havia perdão para os que o atraiçoavam uma vez que haviam cometido um dos mais infames crimes o de lesamajeste isto é crime de alta traição contra sua majestade fidelíssima Isto explica os pesados castigos impostos por ele contra os insurgentes Iara Lis explica que o rei no plano ideal age com doçura e justiça porém como pai sabe pesar suas mãos Por ocasião da repressão realista ele não poupou ninguém nem padres nem proprietários nem soldados nem escravizados Os ecos revolucionários não se circunscreveram ao Recife e Olinda chegaram às longínquas localidades interioranas Na vila de Cimbres Joaquim de Almeida Catanho morador do Recife cooptou uma pessoa para se insurgir e intencionava seguir para os sertões com a mesma finalidade José Porfírio de Freitas foi um dos que comungavam com o pensamento de Catanho e não mediu esforço para engajar pessoas para servirem às hostes revolucionárias Se esses homens procuravam adesão da população ao governo republicano Maria White esposa de James White em altos gritos dava vivas à religião e ao rei Depois foi impedida de continuar com seu protesto por um dos filhos de Porfírio que de posse de uma pistola ameaçava tirarlhe a vida Apeje Ord 1 fls 49 49v De uma ou de outra forma o posicionamento da senhora White foi inédito principalmente porque em uma época dominada pelos homens a voz feminina era pouco escutada o que sinaliza que outras mulheres devem ter tomado algum tipo de atitude durante a Revolução No povoado de Bonito a população permaneceu fiel ao rei e de armas na mão ingressou nos exércitos realistas Mesmo assim as autoridades locais permanecerem em estado de alerta por temerem eclosões de rebeliões escravas e dos homens que foram recrutados à força para os citados exércitos Apeje Ord 1 fls 3637 Os bonitenses tinham suas razões em 1816 eles haviam sido beneficiados com uma gleba de sesmaria pela Coroa e o documento lhes dava posse definitiva da terra que haviam ocupado desde o fim do século XVIII Assim sentiamse gratificados pela decisão real 140 141 Quando a Revolução eclodiu os manifestantes tomaram as ruas aos gritos de viva a pátria e liberdade e procuraram apagar da memória tudo o que lembrasse a monarquia absoluta Os quadros de Dom João VI e os símbolos reais foram removidos das repartições ou desfigurados com instrumentos cortantes Posteriormente por ordem do Governo Provisório foi autorizada a remoção dos símbolos reais das fachadas dos edifícios e dos timbres dos papéis oficiais Foram reutilizados os papéis antigos porém com as armas reais de pontacabeça como se viu na edição do panfleto Preciso Figura 3 Durante as manifestações o consulado britânico não foi poupado o emblema real inglês ostentado em seu frontispício foi alvo da fúria dos manifestantes A exemplo do sucedido com as insígnias portuguesas ele foi danificado contudo o Governo Provisório mandou reparar os estragos assim que possível e pediu desculpas ao representante do governo britânico Por ocasião da tomada do edifício do erário pelos insurgentes o cônsul John Lampreie testemunhou a bandeira do Reino Unido Português ser arriada e substituída por outra totalmente branca e só após a capitulação do governador Caetano Pinto a flâmula republicana azul e branco em que a princípio figurava uma estrela foi adotada e passou a tremular em várias localidades O estandarte foi apresentado ao público em uma solenidade cívicoreligiosa realizada no Campo do Erário Campo da Honra hoje Praça da República Uma aquarela dessa bandeira foi entregue por Cabugá ao governo norteamericano contendo notas explicativas em inglês sobre seus símbolos Posteriormente cópia do referido pavilhão foi publicada no Boston Patriot de 16 de maio de 1817 BOURDON 1975 p 271 Os tempos da Revolução foram considerados os tempos da pátria Isto é o tempo da pátria particular A época a palavra pátria hoje elucida da pela historiografía se referia ao local de nascimento das pessoas uma vez que não existia sentimento de nacionalidade ele surgiu posteriormente A Revolução procurou investir em linguagem política o que era importante para que ela ganhasse corpo em meio à população Uma das inovações foi o uso de palavras como vós em substituição de vossa mercê O uso de vossa mercê era recorrente entretanto tratase de uma expressão ligada à realeza Só o rei concedia mercês e distribuía justiça O tratamento vós deixou de ser limitado ao trato real e posteriormente se estendeu para outras pessoas A mudança de tratamento não agradou às elites principalmente a nobreza da terra porque incentivava igualdade Caiu no desgado de muitos brancos Fazer parte daquela nobreza significava ter poder e distinção Foi arvorandose desse capital simbólico parafraseando Pierre Bourdieu 1989 que o advogado do abastado senhor de terras Francisco de Paula Albuquerque Maranhão se esforçou em sua defesa para qualificálo de descendente da primeira e maior nobreza de Pernambuco DOCUMENTOS HISTÓRICOS 1955 vol CVIII p 8788 Figura 4 Vista da cidade de Recife tomada do Forte do Brum 18 Durante a Revolução de 1817 o que se pensou sobre a questão da escravatura desagradou as elites A ideia de igualdade pautada nos direitos do homem por sinal muito debatida pelos insurgentes não caiu no agrado de muitos nobres Esses desapontamentos demonstram que em dado momento muitos desses senhores se encantaram com o projeto revolucionário principalmente aqueles que contestavam o fisco e falavam sobre os perdões das dívidas Contudo eles se mostraram arredios quando o tema era escravidão ou igualdade e alguns começaram abandonar a Revolução Apesar de ter sido pensada pelos revolucionários a abolição da escravidão encontrou resistência e ficou acatado que ela seria solucionada no longo prazo de forma lenta regular e legal Desta forma explicou Marcus Carvalho que a Revolução em destaque não era abolicionista mas não era escravista seu posicionamento era emancipationista isto é defendia o fim gradual da escravidão Defendendo o direito de propriedade a Revolução se viu em fogo cruzado porque muitos proprietários rurais não abriam mão de seus escravizados por isso muitos começaram a desistir do movimento Para essas pessoas o liberalismo tinha limites ele não deveria tocar na propriedade e qualquer diálogo sobre a escravidão era inaceitável Para as elites o direito da propriedade e a manutenção da escravidão eram intocáveis Essas decisões demonstram o quanto as elites interferiam em benefício próprio e com a Independência em 1822 o Estado continuou sendo influenciado por elas Aliás pouca coisa mudaria no Brasil A república pernambucana durou cerca de 74 dias Ela foi no dizer de Denis Bernardes 2006 p 205 a mais ousada e radical tentativa de enfrentamento até então vivido pela monarquia portuguesa em toda a sua história Se a revolução não triunfou explicou Carlos Guilherme Mota 1972 p 3 em contrapartida os zeladores do regime não conseguiram o retorno pacífico ao status quo ante Durante os quase dois meses da Revolução a fidelidadeum dos mais importantes laços de união dos súditos ao monarca foi rompida A entrada do governador Luís do Rego Barreto no Recife foi motivo de muitos festejos porque ele representava o próprio rei a entrar em seus dominos A Revolução de 1817 encanta principalmente pelas ideias algumas delas muito presentes atualmente eleição voto constituinte e Constituição Ela foi a única que saiu das teias sediciosas arquitetadas entre quatro paredes tomou as ruas e o poder após expulsar o governador régio elegeu um governo colegiado semelhante ao que vinha acontecendo no exterior recebeu atenção da imprensa europeia e americana e enviou representação diplomática para o exterior vieram à tona e constataram que o padre se cercou de vários meios para prejudicar o capitão de Buíque seus parentes e amigos Também foram ouvidas testemunhas que afirmaram terem sido coagidas tanto pelo cura quanto pelo ouvidor Coutinho sob ameaça de serem castigadas se não denunciassem os implicados Outras disseram que foram obrigadas a assinar papéis comprometedores sem ao menos ler seu teor Naquela oportunidade também se constatou que a casa tida como lugar das mencionadas reuniões era um velho local onde se realizavam danças de baiano AN IJJ9 cód 245 fl 301 e outros entretenimentos frequentado por moradores de Buíque e cercanias Não tendo ficado claro na devassa se a acusação de que os implicados organizavam reuniões sediciosas procedia o caso foi encerrado e os implicados isentados de culpa Entretanto o caso de Buíque abriu possibilidades para se compreender o clima de tensão existente em Pernambuco no período pósrevolucionário quando na esteira do debaque da revolução emergiu uma onda de denuncismo muitos desafetos foram denunciados não sendo poupados parentes próximos que foram presos e severamente castigados Em várias correspondências para a Corte Luís do Rego dizia não ter sossego quase todos os dias chegavam denúncias de sedições mas afirmava estar atento para defender os direitos do rei Entre março e abril de 1820 tomou conhecimento de ajuntamentos de pessoas nas cercanias da Serra do Rodeador no povoado de Bonito As notícias chegavam desencontradas Falavase que ali se abrigavam hordas de salteadores depois espalhouse história de desacantos de reinos O governador pediu que as autoridades do povoado vigiassem o local e tomassem medidas necessárias para saber sobre seus desejos Ele tinha convicção de que aquele povo era remanescente da Revolução de 1817 e ali se instalara para fomentar um movimento contrarrevolucionário Assim sendo o sítio do Rodeador foi espionado e arrasado em 26 de outubro de 1820 Uma devassa foi aberta a pedido do governador e revelou que as pessoas que se instalaram no Rodeador eram mulatos pobres desempregados que sonhavam com o retorno do rei Dom Sebastião soberano português morto no Marrocos havia quase 250 anos quando então as injustiças sociais deixariam de existir CABRAL 2004 A chegada da família real ao Brasil em 1808 em nada melhorou a situação da população nortista principalmente em relação à pobreza Os métodos de recrutamento militar continuaram rigorosos e a população pobre cresceu sem perspectiva de trabalho O trabalhador rural Antônio Ferreira de 45 anos foi um dos moradores do Rodeador que foram presos durante o cerco àquela localidade Durante o inquérito denunciou que tudo estava muito caro e quem não tinha dinheiro não podia se enterrar na igreja DEVASSA fl 127 Tanto Ferreira quanto outras pessoas que correram para o Rodeador nutriam esperanças de que viviam no paraíso terreai uma terra sem mal e que todos seriam agraciados com a posse da terra e outros desejos Essas ideias eram propagadas por Silvestre dos Santos desertor do 12º Batalhão de milícias locais As histórias contadas por Silvestre encantavam por prometer mudanças que poderiam acontecer no país inclusive o fim dos pesados castigos impostos aos desertores e os vexames impostos aos soldados A maioria dos habitantes do Rodeador fazia parte da Irmandade Bom Jesus da Lapa fundada por Silvestre e seu cunhado Manuel Gomes das Virgens tidos como procuradores de Cristo Abaixo deles 12 pessoas denominadas de sabidas exerciam atividades importantes nos rituais de iniciação de novos membros A estrutura social do grupo comportava um corpo composto de procuradores e procuradoras da honestidade cujas funções eram velar os vestiários e proibir uniões que maculassem a religião O que chama a atenção no corpo dessa procuradoria eram as mulheres que exerciam funções importantes na comunidade Entre as mais importantes procuradoras figuraram Feliciana Maria da Conceição Joana Batista Francisca Maria de Santa Ana Isabel Maria e Joana Evangelista Elas se destacaram em alguns ritos o que era raro na sociedade patriarcal de então pois eram atividades que não se verificavam na vida profana tampouco na hierarquia eclesiástica Os habitantes do Rodeador se diziam agir por autorização divina que reconheciam apenas o rei Dom Sebastião o que era muito grave e que um dia haviam de sair daquele sítio e ir a toda parte a fim de seguir sua lei Os que seguissem tais doutrinas seriam felizes Luís do Rego não era benquisto naqueles mundos tanto que as lideranças locais desejavam se encontrar com ele para lhe fazerem umas cuias da cabeça uma para eles beberem e outra para quem a quisesse DEVASSA fl 73 Não reconheciam João VI como seu soberano e ele não seria nada quando do retorno de Dom Sebastião Essas declarações foram vistas como ameaçadoras porque mesmo tratandose de um grupo monarquista a autoridade de Dom João VI e seus agentes não era reconhecida reconheciase outro rei que estava encantado em uma das encostas da Serra do Rodeador Tudo isso levantou suspeitas de que uma experiência sediciosa estivesse sendo orquestrada ali Na realidade a história dos deserdados do Rodeador revela muitas das aspirações da população pobre livre que vivia por esses brasís no tempo do processo de Independência Muitos desconfortos infernizavam aquele povo como a carestia as injustiças sociais e principalmente o sistema de recrutamento de tropas Pernambuco entre metrópoles No momento em que Luís do Rego decidiu viajar até o povoado de Bonito para dirigir in loco as operações militares destinadas a dissolver a comunidade do Rodeador foi surpreendido com a chegada de uma embarcação inglesa portadora de novidades sobre a eclosão de uma revolução ocorrida no dia 24 de agosto de 1820 na cidade do Porto A revolução inspirada nos movimentos liberais espanhóis convocou à revelia do rei as Cortes que deveriam organizar uma Constituição pondo em xeque o absolutismo monárquico A conjuntura política dos anos 1820 não pode ser entendida sem um olhar mais abrangente porque embora tenha iniciado na Península Ibérica logo se espalhou na América espanhola e portuguesa Foi um período de grande conturbacão política pois as rédeas da província passavam das mãos do governador régio para as de uma Junta Provisória de Governo e não foi uma passagem simples uma vez que Luís do Rego relutou em entregar o governo Figura 5 Junta em Pernambuco Em Goiana em 29 de agosto de 1821 se iniciou um movimento armado contra o governador Luís do Rego Diante da resistência de Luís do Rego seus opositores orquestraram sua queda em Goiana O movimento ganhou corpo com a adesão de vários senhores de engenho da região da Mata Norte Na noite do dia 28 de agosto de 1821 a vila foi sitiada No dia seguinte a Câmara foi ocupada e forçouse sua anuência Nesse interregno foi convocada uma eleição para se instalar uma Junta Provisória Figura 5 que deveria se submeter apenas ao senhor rei Dom João VI e às Cortes Apeje OC Cód 1 fl 335 Este governo propunha o afastamento de Luís do Rego e a realização de eleições e estava formado por Francisco de Paula Gomes dos Santos presidente Felipe Mena Calado da Fonseca secretário o capitãomor Joaquim Martins da Cunha Souto Maior o padre Manuel Silvestre de Araújo Manuel dos Reis Curado Antônio Máximo de Souza o capitão José Vitorino Delgado de Borba Cavalcanti de Albuquerque e Bernardo Pereira do Carmo Quando Luís do Rego tomou conhecimento das ocorrências de Goiana convocou no Recife algumas pessoas para elegerem um governo provisório denominado Conselho Constitucional Governativo da Província Na realidade tal atitude procurava atender as exigências da Junta de Goiana mas mantendose o general no comando do governo A reação da junta goianense foi rápida Com exceção das câmaras do Cabo Ipojuca Sirinhaém e Santo Antão Luís do Rego não contava com o apoio das demais câmaras municipais que inclusive se recusaram a atendêlo sobre o envio de forças armadas para desbancar os liberais goianenses Como Luís do Rego não dava sinais de deixar o governo em Goiana ficou acordada a invasão do Recife O governador tentou responder ao ataque mobilizando tropas mas elas recuaram devido a vários problemas Após diversas discussões um acordo começou a ser traçado Em 5 de outubro de 1821 algumas lideranças dos dois governos e alguns representantes das câmaras interioranas se reuniram na povoação de Beberibe e assinaram um armistício em que ficaram acertados alguns pontos importantes Que se esperariam as ordens de Sua Majestade e das Cortes para a instalação da Junta Provisória que deve governar a província por inteira PERNAMBUCO 1973 p 144146 Antes de ser efetivado o acordo que ficou conhecido por Convenção de Beberibe passou por vários ajustes Houve vozes discordantes como a de Felipe Mena Calado da Fonseca um dos radicais mais exaltados À medida que as conversas avançaram ele foi obrigado a ceder em vários pontos principalmente quando se expuseram os problemas de ordem econômica da província Era preciso sossegar o espírito dos povos e aliviar a agricultura da suspensão dos trabalhos rurais desembaraçando as milícias empregadas no restabelecimento da ordem Em Lisboa em atendimento às insistentes reclamações dos deputados pernambucanos resolveu o Soberano Congresso destituir o general por meio do decreto de 1º de setembro de 1821 Com esta decisão mandava também instalar em Pernambuco sua Junta de Governo Ela seria de caráter provisório e deveria ser eleita por um colégio eleitoral reunindo as comarcas de Olinda Recife e do Sertão O general foi informado dessas decisões por meio de uma carta de Dom João VI datada de 2 de setembro de 1821 que teve ampla divulgação no jornal Segarrega de 10 de dezembro Com a exoneração de Barreto foi dado início ao processo eleitoral para a escolha da Junta Provisória de Pernambuco As câmaras foram convocadas a enviar representantes que reunidos na Sé de Olinda no dia 26 de outubro de 1821 elegeram o novo governo pernambucano Ele passou a ser constituído pelo comerciante Gervásio Pires Ferreira presidente pelo padre Laurentino Antônio Moreira de Carvalho secretário pelo cônego Manuel Inácio de Carvalho pelo coronel António José Vitoriano Borges da Fonseca por Felipe Néri Ferreira por Joaquim José de Miranda e pelo comerciante Bento José da Costa A criação de juntas provisórias significou no dizer de Barman 1988 p 75 uma redefinição da rede de poder que abrangia o império português já que seus integrantes eram eleitos e submetidos diretamente a Lisboa Os eleitos tinham confiança de que as províncias antigas capitanias poderiam administrar seus próprios negócios sem a interferência de direção externa As províncias foram preservadas dos benefícios conquistados em 1808 ficando restabelecida a influência local nos assuntos administrativos e fiscais perdidos desde aquela data Essas medidas agradaram os membros da junta pernambucana cujo espírito autonomista herdado da Revolução de 1817 era algo de que os novos governantes não abriam mão Por conta dessa independência a primeira junta chefiada pelo comerciante Gervásio Pires mantevese fiel à Lisboa e foi vista com desconfiança pelo grupo político que apoiava o príncipe regente D Pedro Os anos de 1821 e 1822 foram tumultuados em face dos enfrentamentos entre as Cortes e Dom Pedro Este negava obedecer ao Soberano Congresso que havia ordenado seu retorno para a Europa optando no dia 9 de janeiro de 1822 por permanecer no Brasil ato conhecido por Dia do Fico Em seguida expediu dois importantes decretos o de 16 de fevereiro que criava o Conselho dos Procuradores provavelmente de autoria de José Bonifácio de Andrada e Silva e o de 3 de junho que convocava a Constituinte brasileira ou brasilíca como se dizia na época Gervásio Pires questionou ambos porque ajuizava que não era da competência do príncipe decidir sobre aquele estado de coisa e sim das Cortes Os palacianos cariocas que assesssoravam Dom Pedro viam a situação política pernambucana com muita preocupação Eles tinham consciência da influência de Pernambuco sobre os nortistas por isso entendiam que a província deveria ser conquistada para servir de ponto estratégico para a expansão dos seus projetos políticos naquela região E como a junta não dava sinais de aderir ao Rio resolveu o ministro José Bonifácio intervir e enviou Antônio de Meneses de Vasconcelos Drummond ao Recife para sujeitar a Junta ao regente A Junta gervasista não apenas enfrentou oposição dos partidários de Dom Pedro Ela enfrentou também problemas no tocante a conflitos étnicoraciais que brotaram continuamente Vários conflitos de rua de que participaram as tropas escravizados e gente descalça exigiram que a Junta reconhecesse Dom Pedro como chefe do Executivo do Brasil A solicitação foi considerada inconstitucional por isso não foi atendida A situação se tornou insustentável a ponto de a Junta pedir exoneração entretanto ficou na governança à espera de uma decisão do Rio de Janeiro Neste interregno o capitão Pedro da Silva Pedroso recentemente libertado da prisão que cumpriu devido à sua atuação em 1817 posicionouse contrário a Gervásio antigo companheiro de enxo via e se proclamou governador das Armas Ele era muito benquisto entre as tropas e populares e conseguiu arrastálas para as ruas depois a Junta exigiu que a Câmara do Recife elegesse temporariamente outra em substituição O golpe perpetrado por Pedroso contou com o apoio político do Rio de Janeiro e representou a queda de um grupo que tinha em mente o autogoverno cujos participantes haviam sido eleitos pelos membros das câmaras provinciais A ação golpista saiu vitoriosa porque os militares seduzidos pelo aumento de soldo e por melhorias de vida caso aderissem a Dom Pedro Ihe deram total apoio Essa retórica parece ter conquistado o coração das companhias de Monta Brechas Bravos da Pátria e Intrépidos fundadas por Gervásio Pires Esses homens ou não conseguiram apoiálo ou haviam se bandeado para o lado oposto Além dessas companhias o golpe contou com as articulações do capitão José de Barros Falcão de Lacerda junto de seus comandados que haviam se deslocado para a Bahia para combater as tropas portuguesas sob o comando do general Inácio Luís Madeira de Melo Após a derrubada da junta gervasista no dia 18 de setembro de 1822 foi escolhida outra presidida por Francisco de Paula Gomes dos Santos Ela foi temporária funcionando até 23 de setembro dia da eleição do novo governo conhecida por Junta dos Matutos porque as pessoas que a integravam estavam ligadas às atividades rurais isto é por senhores que compunham a nobreza da terra A nova junta estava presidida por Afonso de Albuquerque Maranhão os demais integrantes do governo eram representantes das mais importantes e tradicionais famílias locais Foi com essa junta que Pernambuco reconheceu a Independência em 8 de dezembro de 1822 No dia 7 de setembro de 1822 o Brasil não estava todo independente Se em dezembro Pernambuco festejou sua adesão ao Império isso não significou que todas as províncias tivessem aderido ao projeto independentista Algumas delas se encontravam ocupadas por tropas portuguesas que resistiram à Independência o que abriu caminho para uma iminente guerra civil Pernambuco havia desde os tempos de Gervásio Pires expulsado o Batalhão dos Algarves composto por soldados portugueses que em 1817 atravessaram o Atlântico para auxiliar Luís do Rego no desmonte da Revolução que eclodiu naquele ano Apesar de as tropas estarem subordinadas a Lisboa e diante da ausência do governador das Armas que deveria comandálas a junta gervasista aproveitou o ensejo e tomou para si antigas prerrogativas dos governadores Mesmo diante dessa ação as Cortes persistiram no envio de novas tropas como aquelas que chegaram com o governador das Armas José Maria de Moura e que foram impedidas de desembarcar em 3 de fevereiro de 1822 Apesar da insistência das Cortes em enviar tropas para a província a junta gervasista recusou todas sob a alegação de não necessitar de tropas para tranquilizar a província porque tudo caminhava na normalidade Graças à firmeza do governo pernambucano diz Franchini que a província não seguiu o mesmo curso da Bahia Teria sido difícil para o Império unificar o Norte às províncias coligadas isto é ao conjunto de províncias formado pelo Rio de Janeiro São Paulo e Minas Gerais Novos desacertos e ameaças Segundo Socorro Ferraz o governo dos matutos foi caracterizado pela ausência de autoridade e por discórdia o que motivou consecutivos pedidos de renúncia e troca de presidência O ambiente governamental estava polarizado entre o grupo liderado por Francisco de Paula Gomes dos Santos expresidente da Junta de Goiana e defensor do autogoverno e os que seguiam as orientações vindas do Rio os centralistas encastelados em torno de Francisco Paes Barreto morgado do Cabo também conhecido como grupo morgadista que mais tarde substituiria Afonso Maranhão na presidência A Junta tentou destituílo mas devido a uma manobra de Francisco de Paula Gomes dos Santos ele conseguiu se conservar no comando das Armas Na noite de 21 de fevereiro de 1823 a Junta utilizando alguns subterfúgios conseguiu encurralar Pedroso em Afogados Contudo o capitão conseguiu resistir e retornou para o Recife nos braços de seus admiradores em meio a grande gritaria o que pôs em sobressalto os membros do governo Temendo represália fugiram do Recife para suas propriedades e deixaram o governo acéfalo Pedroso apoiado por Gomes dos Santos exigiu a deposição da Junta e sua imediata substituição por outra de seu agrado O desfecho deste levante Pedrosada se deu a partir do momento em que estando os membros do governo encurralados em suas propriedades as tropas começaram a refletir sobre quem pagaria seus soldos uma vez que não se sabia onde residia a autoridade E na iminência de serem prejudicadas e sem dinheiro para saldar seus compromissos as tropas começaram a abandonar o capitão abrindo caminho para que ele fosse preso por ordem do intendente da Marinha Manuel de Carvalho Paes de Andrade e imediatamente embarcado para o Rio de Janeiro para cumprir sua sentença de prisão O ano de 1823 foi turbulento No dia 9 de abril entrou em circulação o jornal Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco editado pelo médico baiano Cipriano José Barata que desde dezembro de 1822 havia se instalado no Recife após sua fuga de Lisboa pois havia sido impedido de retornar à sua província em guerra civil pela Independência O jornal era editado na Rua Direita uma das principais artérias recifenses e foi responsável pela ampliação das discussões políticas Era lido oralmente ouvido e seu conteúdo era transmitido para outras pessoas ajudando na formação de opiniões Em um momento em que o Estado nacional estava em construção Cipriano dizia que Hei de escrever para os da cidade e da aldeia homens mulheres sábios e poucos instruídos mas todos os discursos se bem refletirem hão de saber sempre ao bem geral da Pátria NASCIMENTO 1969 v 4 p 45 absolutista por isso foi denominado pelo redator do Sentinela da Liberdade de Clube de corrompidos ou estúpidos aristocratas propugnadores da malvada fé da monarquia absoluta Durante dias o falatório cresceu e isso alimentou o clima de insegurança A província praticamente se encontrava acéfala havendo quem opinasse que o governo deveria ser substituído Foi nesse clima de incerteza que o Grande Conselho reunido em 13 de dezembro de 1823 decidiu tratar dos destinos da província O presidente Paes Barreto não compareceu alegando enfermidade e foi substituído por Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque a quem delegou poderes para sugerir proposições para o restabelecimento da ordem pública inclusive a exoneração da Junta caso os reunidos não acatassem suas ordens As estratégias de Paes Barreto falharam A reunião do Grande Conselho foi conturbada pela gritaria de abaixo o governo vinda das ruas Depois de muita conversa o Conselho aprovou a substituição da Junta por um presidente provincial que foi eleito naquele mesmo dia Manuel de Carvalho Paes de Andrade e um secretário doutor José da Natividade Saldanha Esta eleição representou uma afronta das lideranças pernambucanas a Dom Pedro I porque pela lei de 20 de outubro de 1823 era dele o direito de nomear o presidente e o secretário provinciais As divergências tomaram vulto quando o citado Conselho em 8 de janeiro de 1824 ratificou o nome dos eleitos não mais em caráter precário decisão que contou com a anuência dos representantes das câmaras de Olinda Recife Igarassu Paudalho Cabo Limoeiro e Sirinhaém Em fevereiro de 1824 a Corte do Rio de Janeiro nomeou Francisco Paes Barreto para presidente da província e ordenou ao Senado da Câmara de Olinda que o empossasse A decisão imperial foi retardada e acabou não sendo cumprida sob a alegação de que as câmaras municipais precisavam ser consultadas Como as câmaras ratificaram a eleição de Paes de Andrade este foi mantido na presidência sob a alegação de que o morgado do Cabo não tinha condições para governar a província porque havia se demitido da Junta alegando ter perdido a força moral para governar Frei Caneca justificou os motivos da rejeição ao preferido do imperador porque não se confiava em suas atitudes além de pesarem sobre seus ombros acusações de ter ordenado a prisão de Cipriano Barata perseguir a imprensa combativa do estilo autoritário de Dom Pedro I combater os velhos companheiros de 1817 e ter influído nas desinteligências entre o capitão Pedroso e a Junta presidida por Albuquerque Maranhão Ante a desobediência das lideranças pernambucanas o imperador se sentiu ultrajado e não mediu esforços para punir os rebeldes A Corte do Rio de Janeiro resolveu deslocar para Pernambuco o capitão inglês John Taylor com a missão de bloquear o Recife caso persistisse a oposição à posse de Paes Barreto Entre outras instruções havia aquela que mandava prender Paes de Andrade e outros que desobedecessem ao mandatário imperial A fragata Niterói que conduzia o capitão inglês e outras embarcações que a acompanharam fundearam no dia 31 de março no lugar Lamerão no porto recifense No dia seguinte Taylor expediu uma proclamação em que pedia aos pernambucanos que acatassem as ordens imperiais a fim de evitar uma guerra civil O bloqueio dos portos pernambucanos motivou o acirramento das rivalidades existentes na província Segundo Glacyra Leite os grupos populares requisitados pelos carvalhistas e pelo morgado achavamse divididos e dependendo das vantagens apoiavam ora um ora outro Depois da queda do capitão Pedroso a população dos centros urbanos passou a apoiar Paes de Andrade e a do interior menos comprometido com as lideranças e apegado à realeza concentrou seu apoio aos morgadistas À medida que os conflitos caminhavam para uma rebelião os carvalhistas passaram a contar com importantes suportes da Câmara e das tropas olindenses Além da proclamação citada anteriormente que causou celeumas o capitão Taylor explicou a Manuel de Carvalho Paes de Andrade o motivo de sua vinda a Recife e esperava dele bom senso uma vez que tanto ele quanto Dom Pedro I só reconheciam Paes Barreto como presidente do governo Em resposta Carvalho explicou que havia sido eleito com 110 votos em um colégio eleitoral composto de 150 votantes Adiantou que seu opositor era inapto para assumir o cargo porque não inspirava confiança AN BR RJ B2 XM 056 John Taylor tentou arrumar uma solução para o impasse e mostrouse alarmado com o posicionamento republicano dos apoiadores do intruso No dia 6 de maio de 1824 ocorreram no Recife duas importantes reuniões a primeira do Grande Conselho deliberou sem perda de tempo ataque à província de Alagoas em razão de seu governo apoiar o morgado e imediatamente instalar outro governo compromissado com o carvalhismo a segunda ocorreu no Senado da Câmara para deliberar sobre o conhecimento da nomeação de Mayrink e sobre o juramento do projeto de Constituição preparado pelo Conselho de Estado e proposto por Dom Pedro I Quanto ao primeiro item os grupos mais radicais se opuseram à posse do indicado pelo imperador para ocupar a presidência Quanto à segunda deliberação Frei Caneca que se encontrava presente contestou a maioria dos artigos que compunham o projeto de Constituição por encontrar incongruências Em sua exposição o Carmelita chamou a atenção para o descaramento do poder central que mandava jurar um projeto quando a província vivia momentos difíceis com um bloqueio à vista fazendonos todas as hostilidades Declarou voto contrário e foi seguido pelos demais Viviamse momentos pontuados pela indignação por conta do fechamento da Assembleia Constituinte por Dom Pedro e sua recusa em reabrila atos considerados despóticos pela elite intelectual Manuel de Carvalho Paes de Andrade em seu manifesto de 1o de maio de 1824 chamou a atenção dos nortistas para o projeto de Constituição oferecido pelo imperador em substituição à Carta que estava sendo preparada por uma Assembleia Para ele isso se constituía em uma ilusória promessa de ser duplcadamente mais liberal do que aquele que se discutia na Assembleia extinta Eis um novo absurdo que na sua cegueira não conheceram os infames áulicos que precipitaram o imperador jovem inexperto ou que esperavam de nós tanta ignorância que deixássemos passar esta monstruosidade A soberania é da nação só à nação compete escolher a matéria do pacto social projetar e construir FONSECA 2016 p 16 Percebese que as lideranças pernambucanas dificilmente aceitariam acatar as ordens emanadas do Rio de Janeiro sem protesto O projeto de independência foi arquitetado naquela cidade de modo que unisse todas as províncias união que repousava na fundação de um império constitucional tendo Dom Pedro como imperador Assim a dissolução da constituição abalou a união e pôs o Império à deriva Na prática as lideranças de 1824 começaram a enxergar a Independência do Brasil como a conservação de um ramo bragantino no trono como ato enganador Esperavase novo sistema e Constituição livre que lhes agrade Constituição feita sobre princípios liberais que destroça ordens privilégios e isenções classes morgados comendas BNRJ 38 110 A Independência não trouxe novidades para desespero de quem confiara em Dom Pedro desde as comoções de rua ocorridas no tempo da Junta Provisória por Gervásio Pires Em 2 de julho de 1824 Paes de Andrade convidou as províncias nortistas a se rebelar contra o Império Em seu manifesto ele procurou demonstrar que tanto o sistema de governo existente no Brasil quanto o imperador não estavam correspondendo às expectativas para defesa da pátria e para a soberania da nação Propunha pôr em prática um sistema americano de governo considerado mais apropriado para o Brasil Em outras palavras com a dissolução da constituinte a reivindicação de uma república confederada vem a representar a defesa da autonomia provincial FONSECA 2016 p 16 Foi proposto que no dia 17 de agosto de 1824 os procuradores das províncias confederadas se reunissem no Recife a fim de preencher as lacunas deixadas pela dissolução da constituinte Em resposta a essa rebeldia o governo imperial como em 1817 manteve o controle do mar e novamente bloqueou os portos pernambucanos em operação comandada pelo almirante Cochrane Maria Graham que havia estado em Pernambuco em 1821 desembarcou no Recife pela segunda vez em trânsito para a capital imperial e tentou convencer Manuel de Carvalho Paes de Andrade a aceitar a rendição porque as forças do Rio eram superiores às dele Em meados de setembro de 1824 as tropas imperiais cercaram o Recife e Paes de Andrade conseguiu fugir para a Inglaterra Em novembro os últimos rebeldes entre os quais Frei Caneca foram vencidos no sul do Ceará A partir daí seguiuse uma verdadeira caçada humana com prisões e execuções entre elas a do Carmelita arcabuzado em 13 de janeiro de 1825 no Largo de Cinco Pontas no Recife da Companhia informam apenas que Hendrick van Haus responsável pelo comando das tropas que deram perseguição aos rebeldes lutara por 2 ou 3 horas sem parar contra as forças dos lusobrasileiros e que estas estavam em posição vantajosa em um monte íngreme cuja subida só era possível através de uma única e estreita passagem Com muitas baixas e com pouca munição e provisões o comandante decidiu se retirar quando escureceu ATAS DIÁRIAS DO ALTO E SECRETO CONSELHO DO BRASIL 05081645 MELLO 2010 p 364365 NIEUHOFF 1981 p 191 Um soldado que participara da refrega um dinamarquês de nome Peter Hansen Hajstrup fora igualmente econômico em suas palavras sobre o evento mas confirma em seu diário a dificuldade enfrentada pela tropa de seu comandante Lutaram contra pequenos grupos de rebeldes e foram atraídos para um monte íngreme onde os lusobrasileiros tinham posições entrincheiradas e várias armadilhas preparadas Lutaram até o anoitecer e se retiraram com grandes baixas HAJSTRUP apud MIRANDA TEENSMA XAVIER 2016 p 54 Do lado português o frei Manuel Calado é quem faz o relato mais detalhado do confronto citando os lugares e a disposição das tropas CALADO 2004 p 531 Construíu uma narrativa muito vívida do episódio embora não o tenha presenciado pessoalmente Os relatos de Calado Hajstrup e do governo holandês embora com qualidades e estilos distintos possuem alguns fatos compatíveis as várias tentativas holandesas de tomar a posição dos rebeldes a posição vantajosa dos lusobrasileiros a retirada da gente da Companhia que ocorreu com o abrigo da noite e o tempo de luta Entremties André Vidal de Negreiros e Martim Soares Moreno desembarcaram tropas em Tamandaré sul de Pernambuco Essa força sitiou e rendeu tropas da Companhia em Sirinhaém e depois rumou para Santo António do Cabo Lá sitiaram a fortaleza de Nazaré O comandante da fortificação Diederick van Hoogstraten mediante acordo prévio com os sitiadores entregou a posição aos portugueses MELLO 2000 p 170171 MELLO 2010 p 369 NIEUHOFF 1981 p 196 223 Teatralmente as forças dos terços de Negreiros e Moreno prenderam João Fernandes Vieira Fingiram cumprir ordens do governo de Salvador Depois juntaramse com a gente de Filipe Camarão e de Henrique Dias e partiram para perseguir tropas da Companhia Eram os soldados remanescentes e esgotados do confronto em Santo Antão que marchavam de volta ao Recife e após passar por São Lourenço fizeram pouso em um engenho da várzea do Capibaribe de nome Tourlon4 Eles foram cercados atacados e vencidos pelas forças lusobrasileiras MELLO 2010 p 370 Sobre esse evento o Alto Conselho fez uma nota concisa em seus registros diários datada de 17 de agosto de 1645 informando que o Senhor Haus fora atacado com grande força por uma tropa do inimigo no engenho do Senhor De With ATAS DIÁRIAS DO ALTO E SECRETO CONSELHO DO BRASIL 17081645 O soldado Peter Hansen Hajstrup sobrevivente da batalha em Santo Antão estava entre os combatentes da Companhia que foram sitiados no Engenho Tourlon Seu relato narra a luta dramática entre as partes e o desespero dos seus camaradas Ele foi um dos poucos que conseguiram escapar das forças lusobrasileiras e chegar ao Recife para amargar um longo cerco que se estenderia pelos anos seguintes HAJSTRUP 2016 p 5658 Mais uma vez o frei Manuel Calado faz registro pormenorizado e rico do evento CALADO 2004 p 3368 O dano foi imenso nas forças holandesas Haus fora responsabilizado pela derrota no Engenho Tourlon teria demorado demais para retornar ao Recife sendo surpreendido pelas forças encabezadas por André Vidal de Negreiros e aprisionado junto com outros oficiais NIEUHOFF 1981 p 235236 Em poucos dias de agosto de 1645 o exército da Companhia estava virtualmente esfacelado e restrito a algumas posições fortificadas em vilas e cidades das capitanias do Norte MELLO 2010 p 374375 Apesar do sucesso inicial da rebelião que tomou várias localidades holandesas os portugueses não foram capazes de conquistar o Recife e praças fortificadas no Rio Grande e Paraíba O Brasil voltava praticamente ao estágio da guerra dos primeiros anos com 4 A denominação está atrelada ao capitão Charles de Tourlon casado com Ana Pais dAltro herdeira do engenho de invocação a Nossa Senhora das Necessidades Posteriormente o engenho foi denominado Nassau De With e Casa Forte Charles de Tourlon foi comandante da guarda de Johan Maurits van NassauSiegen mas em 1643 fora destituído e preso a mando dele acusado de conspirar para tomar seu posto e de participar numa conjuração de moradores portugueses contra a Companhia Fora expulso do Brasil e faleceria em 1644 nos Países Baixos inocentado após uma investigação A viúva casouse com Gijsbert de With funcionário da Companhia O casal residiu no Brasil até a capitulação dos holandeses em 1654 partindo para os Países Baixos naquele ano MELLO 2006 p 188189 MELLO 2012 p 6970 126 127 internos necessita sempre dessa referência Dessa relação com o resto da história do país e da história do mundo atlântico escravista Ampliando o espectro da anedota se tivesse de concluir este texto em uma sentença ousaria dizer que o cerne da história de Pernambuco na primeira metade do século XIX é a história do fortalecimento da escravidão e derrota de todas as propostas liberais iluministas que poderiam levar o país a um modelo político mais avançado com representação popular mais ampla e provavelmente trazendo o fim da escravidão mais cedo Resumindo ainda mais a escravidão e o latifúndio ganharam1 A segunda metade do XIX que começa com a derrota dos praieiros é a vitória do agronegócio latifundiário escravista com o esmagamento das propostas mais avançadas vinculadas ao Iluminismo A luta continuaria claro Nunca faltou resistência dos trabalhadores livres e escravizados os intelectuais mais radicais nem sempre se calaram e o movimento abolicionista em Pernambuco não foi apenas palaciano ou dependente da imprensa Foi popular como de resto em todo o Brasil com o protagonismo dos escravizados e de seus descendentes em busca de direitos muitos dos quais líquidos e certos mas totalmente descumpridos com o aval das autoridades locais e imperiais Afinal de contas na letra da lei todos os africanos que entraram no país depois de 1831 eram pessoas livres Neste texto partimos dessa perspectiva mais ampla que conecta a história do tráfico de escravizados para Pernambuco com a história do mundo atlântico escravista para tentar descrever uma pequena parte dos múltiplos processos vinculados a este cenário maior Apesar de evitar uma visão regionalista mais estreita é necessário por outro lado descrever esses processos sem se afastar da perspectiva da História de Pernambuco Esta perspectiva justificase por duas razões principais Primeiro porque o estudo do protagonismo dos agentes locais vinculados ao tráfico é fundamental para o entendimento desta questão na história de Pernambuco Em 1 Este texto é baseado principalmente em pesquisas feitas ao longo de minha carreira algumas delas constantes da bibliografia mas apesar de autoral não poderia ser escrito sem o luxuoso auxílio de outros estudiosos alguns dos quais referenciados ao longo do trabalho que nem de longe pretende esgotar um assunto tão vasto como o tráfico após a Independência Peço desculpas portanto pelas muitas omissões encontradas nas páginas seguintes segundo lugar esta perspectiva tem a contribuir com a história do tráfico para as demais províncias do Império do Brasil pois o apogeu do tráfico no resto do país aconteceu a partir de 1837 quando a Regência foi assumida por Araújo Lima o futuro Marquês de Olinda a maior liderança política de Pernambuco no século XIX Depois da Abolição a escravidão e o tráfico foram se tornando assuntos que só interessavam às suas vítimas e a alguns poucos estudiosos Muitos já observaram essa tentativa de esquecimento colocandose uma pedra sobre o assunto Não obstante o nome de Pernambuco sempre teimou em aparecer em todos os trabalhos escritos sobre o comércio de gente escravizada numa escala atlântica A obra de Gilberto Freyre deixou claro que não havia como fazer a história do Brasil sem se estudar o problema da escravidão a fundo Mas ficaria para o futuro o estudo mais aprofundado do tráfico para Pernambuco A capitania de Duarte Coelho está muito presente no livro de Pierre Verger sobre o tráfico da Costa da Mina para a Bahia e desponta na obra de Philip Curtin o primeiro estudo mais geral sobre a dimensão demográfica do trato de gente escravizada da África para as Américas Ambos os livros originalmente publicados na década de 1960 deixavam entrever que para se estudar a séria a história de Pernambuco até 1850 pelo menos o tráfico de escravizados tinha que ser levado em consideração E de fato havia historiadores atentos ao problema antes até dos anos 1960 como por exemplo José Antônio Gonsalves de Mello Mas no que diz respeito ao século XIX foi só nos anos 1970 que Peter Eisenberg mostrou os dados ingleses mais gerais sobre o tráfico para Pernambuco e os analisou cotejando com sua fantástica pesquisa primária em inventários Ficava claro a relevância da velha capitania depois província como nexo do tráfico atlântico Ressalto que hoje em dia esses censos gerais do tráfico estão disponíveis e com alguma perseverança o pesquisador encontra vários desses relatórios ingleses na internet Mas quando Eisenberg publicou seu livro ainda era preciso sair do Brasil para se ter acesso àquelas fontes Mesmo então ainda faltavam nomes e detalhes Quem eram os traficantes que operavam a partir de Pernambuco no século XIX principalmente depois da Independência Como atuavam politicamente e qual o seu lugar 167 social Como funcionava o tráfico a partir de sua total ilegalidade depois da lei antitráfico de 1831 A historiografia acadêmica contemporânea tem abordado essas questões revelando que de fato não há como estudar a história de Pernambuco sem referência ao tráfico Atrevome a dizer que só é possível entender o sucesso da província em se manter como produtora de um dos açúcares mais baratos do mundo atlântico no século XIX devido à facilidade da navegação desde a África centroocidental Congo e Angola até a parte do litoral brasileiro entre o Cabo de Santo Agostinho e Cabedelo O trajeto durava em média pouco mais de 26 dias segundo uma amostra de navios negreiros que viajaram de Angola para o Recife entre 1827 e 1831 cujo tempo de viagem foi registrado nas páginas do Diario de Pernambuco Nenhuma outra rota do litoral africano até as Américas pôde ser feita em tão pouco tempo como esta entre Angola e Pernambuco O total domínio sobre a posse da terra proletarizando as pessoas livres despossuídas fechava o circuito da agroindústria açucareira de Pernambuco Os ventos e correntes marítimas portanto subsidiaram o tráfico para Pernambuco e consequentemente sua agricultura escravista O pouco tempo de viagem cortava os custos com víveres e salários da tripulação despencava a mortalidade dos cativos e até dos marujos a bordo permitia o uso de embarcações precárias e facilitava a fuga do controle do cruzeiro inglês que tentava capturar os navios negreiros depois de 1831 A facilidade do tráfico de cativos desde o Congo e Angola permitiu aos produtores rurais escravistas de Pernambuco concorrerem com outras paragens da América açucareira garantindo a rentabilidade dos seus negócios apesar da baixa capitalização dos senhores de engenho e da praça do Recife isso se torna evidente quando comparamos sua realidade a de outros locais do mundo atlântico escravista inclusive a Bahia Vale salientar que no alvorecer do Brasil imperial os negociantes atlânticos de gente escravizada em Pernambuco já tinham uma experiência secular nesse sórdido ramo de negócios Para aferir a presença deles basta olhar os dados do site slavevoyagesorg disponíveis gratuitamente Os próprios criadores do site enfatizam que se trata de uma amostra de uma realidade complexa o tráfico cuja completude jamais seremos capazes de aquilatar pois é impossível saber exatamente quantas pessoas foram efetivamente embarcadas no imenso litoral da África quantos pereceram durante a viagem e quantos efetivamente desembarcaram deste lado Também tem sido salientado pelos estudiosos que comparado ao voluplo ainda é pouco o que sabemos sobre o tráfico para a América inglesa e francesa por exemplo ainda é pouco o que sabemos sobre o tráfico para a América portuguesa depois Brasil menos ainda sobre o caso pernambucano DOMINGUES DA SILVA ELTIS 2008 Postas essas ponderações a partir dos dados da plataforma slavevoyagesorg percebese que praticamente metade dos africanos que chegaram no Brasil até 1630 desembarcaram em Pernambuco Até a virada do século XVI para o XVII a grande maioria dos cativos que vieram para a América portuguesa desembarcaram na capitania de Duarte Coelho Podese dizer que o tráfico para a América portuguesa praticamente começou em Pernambuco e secundariamente na Bahia A diminuição relativa de Pernambuco em comparação a outras partes das Américas inclusive a Bahia e o Rio de Janeiro data da ocupação holandesa em 1630 No século XIX portanto a escravidão em Pernambuco não era um epifenômeno da agricultura canavieira Era um modo de vida e permaneceu assim após a Independência quando de acordo com o estudo de Domingues da Silva e Eltis 2008 96278 africanos vieram para a província dentre os quais 49196 chegaram depois da lei antitráfico de 1831 e foram ilegalmente escravizados Devido a esse influxo quase ininterrupto de gente escravizada surgiram rotinas portuárias bem definidas no Recife com diversos locais para aprisionamento dos africanos recémchegados gente especializada nas tarefas de vigilância e cuidados para que a valiosa mercadoria pudesse se recuperar o mais rapidamente possível da terrível viagem Não faltavam os aparelhos e trabalhadores necessários para o pleno funcionamento desse ramo de negócios inclusive agentes da saúde línguas2 e até cativos operando a mando dos senhores ou alugados na estiva e nas demais atividades portuárias Pelo que se sabe até o momento não havia apenas uma única categoria de comerciantes especializados nesse ramo de negócios As fontes 2 Tradutores 168 169 existentes sobre os navios negreiros na rota para o Brasil no século XIX demonstram que muita gente mesmo que apenas eventualmente participou do tráfico inclusive em parceria com outros negociantes Apesar disso havia de fato alguns negociantes cujo principal ramo de atividade era o comércio atlântico de gente escravizada Esses grandes traficantes participavam ativamente da política imperial e provincial quase sempre vinculados às facções mais conservadoras e pertenciam a câmaras de vereadores assembleia provincial juizados de paz associação comercial irmandades etc Amealharam fortuna e poder durante o Primeiro Reinado quando o tráfico ao sul da Linha do Equador ainda era legal Foi dessa área que engloba os atuais Congo e Angola que veio a imensa maioria dos cativos que desembarcaram em Pernambuco depois da Independência Uma minoria todavia veio da chamada Costa da Mina ao norte da Linha do Equador ou seja o que estava proibido pelos tratados assinados depois da derrota de Napoleão e que o Brasil assumiu depois da Independência Assim após a Independência entraram inúmeros africanos ilegalmente escravizados antes mesmo da lei antitráfico de 1831 que proibia todo o comércio transatlântico de cativos Entre os principais traficantes da rota para Pernambuco alguns fizeram carreira tanto no litoral africano como no pernambucano como os irmãos Regadas e Francisco Ribeiro de Brito O mais importante de todos esses negociantes foi Ângelo Francisco Carneiro um dos maiores traficantes da primeira metade do século XIX cujos negócios tinham múltiplos elos em diversas províncias do Brasil Discreto em suas atividades Ângelo terminou aparecendo menos nas fontes mais óbvias sobre o tráfico do que poderia sugerir a sua bemsucedida carreira no ramo pois nem sempre seu nome consta como proprietário ou dono de navios negreiros Ângelo todavia foi responsável pela vinda de milhares de africanos para o Brasil atuando no próprio litoral africano antes de se estabelecer no Recife ALBUQUERQUE 2016 Além disso não era incomum que os negociantes se aliassem nesse tipo de aventura repartindo custos e riscos O caso da barca Ermelinda é sintomático da presença de vários investidores Até o cozinheiro Rufino José Maria personagem principal do livro de Reis Gomes e Carvalho levou consigo caixas de goiabada para negociar no continente africano Apreendida pelos ingleses a embarcação aparece com papéis em nome de José Francisco de Azevedo Lisboa Todavia quando a situação ficou difícil diante da comissão mista foi Ângelo quem apareceu para liderar a defesa da embarcação e seus tripulantes Ainda teve o desplante de desafiar os ingleses lançando ao mar a Ermelinda Segunda logo depois com explícita intenção de ser apreendida para que fosse solicitada indenização REIS GOMES CARVALHO 2010 Não era incomum que os negociantes atlânticos de cativos formassem sociedades mercantis voltadas para esse tipo de atividade Eventualmente seus sócios anunciavam nos jornais o encerramento de contratos de sociedades mercantis queixavamse uns dos outros inclusive falando de dívidas ou créditos pela venda de cativos revelando a verdadeira atividade que exerciam conjuntamente Uma dessas empresas deixou um registro mais claro de suas atividades pois em 1837 a marinha inglesa apreendeu no Rio Benim dois navios negreiros da rota para Pernambuco o Veloz e o Camões Na documentação apreendida pelos ingleses estavam uma cópia de um contrato entre os sócios e uma parte da correspondência entre os seus gerentes e empregados que trabalhavam numa feitoria do tráfico montada pela sociedade para negociar no Rio Benim na atual Nigéria MARQUES 2002 REIS GOMES CARVALHO 2010 A cópia do contrato apreendida não tem a assinatura dos seus 20 sócios mas indica o nome do gerentegeral da empresa José Francisco de Azevedo Lisboa As embarcações seriam compradas em nome dele como no caso da Ermelinda mencionada acima mas na realidade pertenciam à empresa O contrato traz ainda o nome de dois negociantes de grosso trato que serviriam como conselheiros diretos do gerentegeral no caso Joaquim Leocádio de Oliveira Guimarães e Manuel Alves Guerra Este último traficante aparece como proprietário ou consignatário de vários navios negreiros da rota para Pernambuco sendo responsável por trazer pelo menos 2630 cativos para a província se somarmos os dados do slavevoyagesorg com os de cativos vindos no Nossa Senhora da Conceição em 7 de fevereiro de 1827 e no Borboleta em 15 de maio de 1829 que constam das entradas de navios negreiros no Recife publicadas pelo Diário de Pernambuco Leocádio de Oliveira Guimarães por sua vez era maçom e provavelmente detinha uma posição importante na instituição3 É possivelmente por esta razão que se encontra entre os papéis apreendidos um longo relato sobre os segredos da maçonaria em Pernambuco identificando também suas lojas localização e lideranças O nome desse negociante é menos conspícuo nas fontes sobre o tráfico que identificam proprietários e consignatários de navios negreiros da rota para Pernambuco Está no entanto na cópia do contrato daquela empresa que apareceria várias vezes como protagonista do tráfico para Pernambuco através do nome do seu gerente José Francisco de Azevedo Lisboa O nome de Leocádio consta ainda de uma carta daquele gerente ao comandante do Veloz com várias instruções A carta menciona que uma parte do soldo do comandante do Camões Joaquim Antônio Coelho no valor de 200 mil réis foi depositado em seu nome com Leocádio4 Mais conhecido no Recife por Azevedinho José Francisco de Azevedo Lisboa segundo o contrato apreendido deveria comprar os navios negreiros em seu nome Não era todavia o verdadeiro proprietário de nenhum deles Não entrava com capital na empresa mas participaria dos lucros junto com outros empregados mais qualificados que entretanto recebiam um pouco menos do que ele Nos anos seguintes o nome de Azevedinho seria mencionado várias vezes na documentação diplomática inglesa referente ao tráfico já que os navios da empresa navegavam em seu nome não apenas ao norte da Linha do Equador onde foram capturados os navios negreiros Veloz e Camões mas também no litoral do Congo e Angola As fontes sobre tráfico da rota para Pernambuco mencionam muitas das atividades da sociedade e sugerem que dela participavam vários outros traficantes que provavelmente eram os signatários do contrato REIS GOMES CARVALHO 2010 Um dos possíveis participantes daquela sociedade foi Gabriel Antônio cuja trajetória de vida difere da de outros negociantes advindos de gente rica vinculada ao comércio de grosso trato Gabriel Antônio pelo que sabemos galgou aos poucos uma posição de destaque no tráfico pois no final dos anos 1820 ainda era mestre e caixa de um dos navios negreiros do maior traficante da rota para Pernambuco Elias Coelho Cintra A posição de capitão de navio negreiro podia até pagar bem comparada ao comando de outras embarcações mercantis Mas envolvia riscos imensos inclusive de contrair doenças sem cura na época ou até ser morto pelos cativos a bordo Raramente o comando de navios negreiros garantia fortuna para alguém RODRIGUES 2005 SOUZA 2011 REDIKER 2011 Eventualmente alguns traficantes que vieram de baixo alcançaram imensa riqueza e até a nobreza tornandose membros ativos da elite imperial O mais famoso deles talvez tenha sido José Bernardino de Sá Visconde de Vila Nova do Minho SARAIVA ALMICO e PESSOA 2021 Em Pernambuco Gabriel Antônio conseguiu ascender economicamente tornandose bem conhecido por sua riqueza alcançada depois de 1831 Apesar disso não alcançou o status social a qualidade necessária para pertencer à elite local como Bernardino de Sá no Rio de Janeiro tanto que mereceu poucas linhas na extensa obra de Gilberto Freyre que nada falou sobre suas atividades no tráfico referindose a ele como um negociante citadino que se tornou senhor de engenho sem saber entretanto trocar por botas de montaria os tamancos de português enriquecido em taverna FREYRE 1977 vol 1 p 281 Houve traficantes da rota para Pernambuco entretanto que frequentaram os salões mais nobres da província como foi o caso dos concunhados Ângelo Francisco Carneiro e Francisco Antônio de Oliveira Ambos conviveram bastante com o Barão depois Conde da Boa Vista que governou Pernambuco entre 1837 e 1844 e gastou imensos recursos para a modernização dos espaços públicos frequentados pelas camadas mais altas da sociedade Ângelo e Francisco beneficiaramse disso Formaram inclusive uma sociedade para a construção do Teatro de Santa Isabel que recebeu recursos públicos ALBUQUERQUE 2016 GOMES 2016 Em seu diário o engenheiro francês Louis Léger Vauthier narra alguns dos seus muitos encontros com Francisco de Oliveira futuro Barão de Beberibe o principal empreiteiro da obra em cuja casa foi várias vezes jantar Vauthier não se omite em mencionar o envolvimento de Ângelo e Francisco no tráfico É interessante também notar o desgosto do engenheiro francês com várias das decisões tomadas pela sociedade entre os dois traficantes em relação à construção do teatro levando ao aumento de custos desnecessários VAUTHIER 1970 Os praieiros portanto não estavam errados ao denunciar o caráter perdulário de muitas das obras realizadas no governo do Barão da Boa Vista como apontou Amaro Quintas em sua obra em que pese parte da historiografia que transborda em elogios às suas reformas Apesar de ocuparem posições de destaque na política local devido à grandeza de seus negócios que demandavam tempo e constância foram poucos os traficantes mais expressivos que se candidataram ao parlamento brasileiro Em Pernambuco os que trouxeram mais gente escravizada Elias Coelho Cintra e Francisco Antônio de Oliveira não viriam a ocupar assentos na câmara ou no senado imperial Francisco de Oliveira chegou a participar de chapas do partido conservador para o parlamento mas não logrou ser eleito Todavia presidiu a Assembleia Provincial por vários anos como mostrou o estudo de Amanda Barlavento Gomes 2016 Esses negociantes de cativos ilegalmente escravizados depois de 1831 não precisavam pertencer ao parlamento imperial pois estavam muito bem representados na Corte principalmente pela bancada conservadora de Pernambuco Os estudos de Paulo Cadena por exemplo demonstraram que os irmãos Cavalcanti estavam claramente vinculados ao tráfico não apenas por serem consumidores da mercadoria humana mas por terem vínculos bastante estreitos com alguns dos grandes traficantes da rota para Pernambuco O mesmo se pode dizer do mais importante político de Pernambuco durante o Brasil imperial Araújo Lima Marquês de Olinda Seus vínculos com traficantes por parentesco e amizade também foram revelados nos estudos de Cadena Araújo Lima tornouse ministro pela primeira vez ainda no Primeiro Reinado Ninguém ocuparia mais pastas em ministérios no Império do Brasil do que ele que assumiu a Regência entre 1837 e a maioridade de Pedro II em 1840 o que lhe valeu o apelido de vicerei segundo Cadena 2013 e 2018 É importante salientar o papel de Araújo Lima na brutal aceleração do comércio atlântico de africanos escravizados ao assumir a Regência em 1837 No Primeiro Reinado enquanto esteve à frente do governo imperial Pedro I pouco fez de efetivo para acabar com a escravidão A sua oposição ao escravismo nunca passou de um discurso sem resultados objetivos relevantes Na realidade era apenas uma maneira de não destoar das luzes do século como convinha a um monarca na era pósnapoleônica A queda de Pedro I em abril de 1831 no entanto guindou o governo regencial a uma aliança que incluía liberais doutrinários opostos às excessivas prerrogativas do imperador concentrados no chamado poder moderador que nas palavras da Constituição de 1824 era a chave de toda a organização política art 98 Nos primeiros anos da Regência houve até tentativas malsucedidas de restringir as imensas prerrogativas que o imperador se autoconce deu ao dar um golpe de estado no dia 12 de novembro de 1823 fechando nossa primeira Assembleia Constituinte e impondo à nação a Carta de 1824 Foi no período regencial que houve finalmente uma medida concreta contra o tráfico atlântico de escravos a qual se pensava então que seria o primeiro passo para acabar com a escravidão a lei antitráfico de setembro de 1831 O Padre Feijó fora um dos líderes da oposição a Pedro I no parlamento Depois da queda do imperador em 1831 Feijó assumiu o Ministério da Justiça e apoiado por uma maré de reformas liberais conseguiu aprovar a lei antitráfico de 7 de novembro de 1831 Esta lei conhecida como Lei Feijó não foi promulgada para inglês ver como há muito deixaram claro Grinberg e Mamigonian 2007 n 1235 A sua inobservância foi um resultado posterior devido ao imenso poder dos traficantes e seus aliados os grandes latifundiários e proprietários de cativos cuja representação no parlamento foi crescendo chegando ao auge a partir de 1837 Só que depois da lei antitráfico de 1831 os navios negreiros não podiam desembarcar cativos nos portos das grandes cidades litorâneas como faziam desde o período colonial pois pela lei essas pessoas eram africanos livres O tráfico então 5 Embora dispersa é bastante extensa a historiografia sobre os impactos da lei antitráfico de 1831 Destaco os estudos recentes em SARAIVA ALMICO PESSOA 2021 e RAMOS DE SANTANA SILVA Jr REGINALDO FERREIRA 2022 mudouse para outras partes do litoral fora das grandes cidades portuárias Em Pernambuco todos os portos naturais estavam situados em praias contíguas a grandes engenhos de açúcar ou em frente a povoações também sob o jugo político da classe senhorial O governo regencial conseguiu que o tráfico para o Brasil caísse efetivamente entre 1831 e 1833 só começando a crescer em 1834 revelando o paulatino reempoderamento dos defensores do tráfico e do latifúndio escravista No ano seguinte 1835 como observou Leslie Bethell em um livro originalmente publicado nos anos 1970 a maioria parlamentar assumiu a defesa dos interesses da grande propriedade agrária e do tráfico BETHELL 2002 p 104 A bem da verdade ficava claro nos debates parlamentares o rumo mais conservador que a maioria parlamentar estava tomando principalmente depois da morte de Pedro I em setembro de 1834 impedindo qualquer possibilidade da sua volta e a reunião das coroas portuguesa e brasileira enfraquecendo a oposição que pretendia limitar ou mesmo extinguir o Poder Moderador Antes disso em agosto o parlamento havia votado a reforma constitucional da qual resultou o Ato Adicional e a substituição da regência trina por um único regente As eleições para o parlamento e para a regência única em 1835 geraram resultados contraditórios entre si e com imensas repercussões Naquela eleição as lideranças regionais vinculadas ao tráfico e à grande propriedade agrária que depois viriam a formar o Partido Conservador consolidaram seu domínio sobre a Câmara dos Deputados elegendo sólida maioria Esse grupo prometia uma volta à ordem através da violenta repressão aos levantes populares motins urbanos e rebeliões que pipocavam pelo país tais como a Cabanada 18321835 entre Pernambuco e Alagoas e a Cabanagem 18351840 esta última possivelmente a maior rebelião popular que ocorreu neste país que incendiou vários dos atuais estados na região amazônica A Sabinada 18371838 e a Balaiada 18381841 violentamente esmagadas também serviriam de justificativa para os que defendiam uma volta à ordem como diziam empregando todos os meios possíveis para coibir as manifestações populares que poderiam de alguma forma ameaçar o latifúndio e a escravidão Devido a esta explícita intenção de uma volta ao que teria sido a antiga ordem monárquica esse grupo que viria a dominar o parlamento na segunda metade do período regencial ficou conhecido como regressistas ou mesmo reacionários Talvez devido ao excesso de confiança essa maioria parlamentar oligárquica dividiuse lançando vários candidatos para a Regência que agora deixava de ser composta de três membros passando a ser ocupada por uma única pessoa O resultado foi a pulverização dos votos dos conservadores Como a eleição não tinha segundo turno como hoje em dia os candidatos conservadores terminaram sendo derrotados Somados tinham 4487 votos mas individualmente ficaram atrás do Padre Feijó considerado um farroupilha ou seja um liberal exaltado que teve 2826 votos O segundo mais votado foi o candidato pernambucano Holanda Cavalcanti com 2251 um representante da facção oligárquica mais moderada seguido de três candidatos ainda mais conservadores do que ele no caso José da Costa Carvalho com 847 votos o também pernambucano e futuro regente Araújo Lima com 760 votos e o general Lima e Silva com 629 Contrastando com esse voto oligárquico vitorioso no parlamento e derrotado na Regência estavam o próprio Feijó e o pernambucano Manuel de Carvalho Paes de Andrade presidente da Confederação do Equador em 1824 que anistiado conseguiu 605 votos na eleição para regente FALAS DO TRONO 2019 p 211 Embora pareça pouco a votação de Manuel de Carvalho Paes de Andrade não pode ser considerada inexpressiva pois era um candidato que apenas 10 anos antes havia liderado um movimento republicano liberal radical nas províncias do Norte que poderia ter se espalhado pelo Brasil Essa votação demonstra a representatividade dos liberais radicais e revolucionários nas chamadas províncias do Norte mesmo que minoritária no cômputo geral dos votos Feijó ganhou a eleição tornandose regente do Império do Brasil mas sem maioria absoluta dos votos e dependendo de um parlamento avesso a quaisquer reformas que pudessem ameaçar a escravidão e a grande propriedade agrária A defesa da escravidão encontrava também ressonância nos inúmeros pequenos e médios proprietários de cativos pelo país afora Não era somente na Câmara esse predomínio dos interesses escravocratas e latifundiários A maior parte do Senado fora indicada por Pedro I ainda no Primeiro Reinado Assim os opositores do tráfico e reformistas liberais estavam em franca minoria nas duas casas legislativas durante a regência do Padre Feijó O regente teve que enfrentar a maioria do parlamento o que dificultou muito a sua administração Devido a essa dificuldade e com problemas de saúde Feijó terminaria renunciando em 1837 Foi a partir daí que o pernambucano Araújo Lima que presidira a Câmara por alguns anos tornouse regente interino seguindo o preceito constitucional pois era então ministro do Império Araújo Lima subiu apoiado pelos saquaremas uma aliança que congregava os conservadores os reacionários como diziam os liberais exaltados do Rio de Janeiro Minas Gerais e São Paulo principalmente O período regencial marca o momento em que o valor do café passou o do açúcar na pauta de exportações brasileiras A ascensão dos saquaremas somada à preeminência do café demarca o início do completo predomínio das províncias do Sudeste brasileiro sobre a política imperial Essa preeminência acarretou uma taxa de câmbio que não beneficiava o açúcar que precisava importar máquinas e utensílios para os engenhos pois o Brasil era um país essencialmente desindustrializado Esse detalhe todavia não vitimizou necessariamente a agricultura das chamadas províncias do Norte pois seu principal motor não eram as máquinas inglesas mas a mão de obra cativa e o latifúndio e a política imperial continuou protegendo esses privilégios da classe senhorial no país inteiro O principal orador e líder intelectual dos saquaremas era Bernardo Pereira de Vasconcelos que defendia o tráfico tanto no parlamento como na imprensa Nomeado por Araújo Lima para a pasta da Justiça uma de suas primeiras medidas foi revogar um decreto que exigia um exame mais atento das embarcações que chegavam da África nos portos brasileiros buscando detectar sinais de que era um navio negreiro que antes de aportar deixara cativos em algum ponto do litoral menos vigiado pelas autoridades locais Bernardo Pereira de Vasconcelos aproveitou a revogação dessa medida para também liberar imediatamente três embarcações que estavam sendo averiguadas BETHELL 2002 p 108 O ano de 1837 portanto representa o retorno triunfal do tráfico com a total convivência do Estado brasileiro mesmo sendo totalmente ilegal pois a Lei Feijó de 1831 não foi revogada Podese dizer que a regência do pernambucano Araújo Lima representou a completa vitória dos traficantes atlânticos sobre os ideais liberais iluministas de acabar paulatinamente que fosse com a escravidão A ascensão daquele grupo à Regência o chamado regresso de 1837 não representava apenas um governo reacionário como dizia boa parte da imprensa na época por ser contrário às mudanças propostas nos primeiros anos da Regência O regresso de 1837 era a tomada do poder pelos defensores e protagonistas do tráfico Jeffrey Needell 2006 demonstrou claramente os vínculos entre os saquaremas e os maiores traficantes do Sudeste do Brasil Paulo Cadena 2018 como vimos acima descreveu em sua tese os vínculos pessoais e familiares do regente Araújo Lima com os agentes do tráfico Araújo Lima representava às oligarquias da periferia da Corte imperial no Rio de Janeiro Aos poucos a aliança composta com os saquaremas que representavam os interesses do café foi azedando até mesmo porque Araújo Lima não era exatamente um saquarema tanto que uma vez regente ele não chamou apenas os saquaremas para compor o tal gabinete das capacidades mas também designou dois outros políticos enraizados em Pernambuco para o gabinete ministerial Maciel Monteiro e Sebastião do Rego Barros Este detalhe tem sido relegado pela historiografia tradicional que muitas vezes costuma observar a política imperial apenas da perspectiva da Corte imperial sem olhar as demais províncias mesmo ficando claro que o Brasil ainda estava em construção e que o Império esteve em vias de se esfacelar por várias vezes na primeira metade do século XIX De um lado devido aos muitos movimentos e rebeliões de caráter mais popular como a Cabanada a Cabanagem a Sabinada e a Balaiada e no extremo sul devido à rebelião farroupilha liderada por estancieiros escravistas O ápice da tensão entre Araújo Lima e a bancada saquarema foi quando o regente indicou para senador pela província do Rio de Janeiro um político pernambucano de sua confiança Lopes Gama irmão do bem conhecido Padre Carapuceiro mas que nunca teve a mesma notoriedade do irmão publicista Lopes Gama flanou em sua carreira de acordo com os interesses das oligarquias locais que representava principalmente do seu padrinho político Araújo Lima CARVALHO CADENA 2019 NEEDELL 2006 Naquela eleição para senador do Rio de Janeiro os saquaremas haviam apoiado José Clemente Pereira uma das grandes lideranças políticas do Império desde a Independência e sogro de Eusébio de Queirós conhecido como o papa saquarema tamanha era sua liderança sobre aquela facção política centralizada no Sudeste do Brasil Clemente era a escolha natural a ser feita na lista tríplice de onde sairia o novo representante do Rio de Janeiro no Senado imperial Araújo Lima não se fez de rogado e rasgou a seda Ignorou o candidato dos saquaremas e escolheu na lista tríplice um político de Pernambuco de pouca expressividade diante do renomado candidato apoiado pelos barões do café e pela elite da Corte imperial A partir dali os saquaremas passaram a fazer oposição ao regente abrindo espaço para o chamado golpe da maioridade em 1840 que colocaria um menino de menos de 15 anos no trono do Brasil BARMAN 1988 NEEDELL 2006 MATTOS 2004 CARVALHO CADENA 2019 Os ingleses não tinham dúvida da vitória do tráfico em 1837 de tal forma que dali em diante azedou muito a relação com o Império do Brasil levando a marinha inglesa a implementar o uso de uma cláusula dos equipamentos no Bill Palmerston de 1839 Aquela medida unilateral do governo inglês autorizava sua marinha a capturar e condenar qualquer embarcação que tivesse sinais de ter sido empregada no tráfico tais como escotilhas gradeadas instrumentos de tortura correntes algemas quantidade de água e alimentos muito além do que precisaria a tripulação panelas forno e instrumentos próprios para se cozinhar para muita gente tábuas para se fazer andares adicionais no porão bailéus esteiras para evitar que a pele dos cativos emparedados nos bailéus se ferisse na fricção com a madeira etc O Bill Palmerston também desobrigava a marinha inglesa a respeitar a bandeira portuguesa debaixo da qual vários traficantes traziam gente ilegalmente escravizada da África para o Brasil REIS GOMES CARVALHO 2010 A cláusula dos equipamentos era baseada em uma realidade observável os próprios navios negreiros que depois de desembarcarem os cativos 180 em locais previamente combinados do litoral brasileiro seguiam viagem até algum porto maior próximo Chegavam sem nenhum cativo a bordo mas com várias evidências de serem navios negreiros inclusive o terrível cheiro de excrementos e cadáveres Em 1835 quando o governo ainda tentava manter o controle sobre o tráfico o ministro Alves Branco assinou um termo aditivo aos tratados vigentes com a Inglaterra que admitia como prova os equipamentos vinculados ao tráfico como água e víveres além do que precisava a tripulação para a viagem instrumentos de tortura e aprisionamento etc Esse termo aditivo que antecipava a cláusula dos equipamentos de 1839 não foi todavia ratificado pelo parlamento brasileiro dominado pelos interesses do tráfico A partir do decreto de 10 de dezembro de 1836 o governo lusitano passou a aplicar regras análogas o que permitiu à sua marinha ser mais eficaz no combate ao tráfico sob a bandeira lusitana já proibido pela legislação portuguesa desde os tratados assinados após a derrota de Napoleão A marinha lusitana era frágil não apenas sob o ponto de vista militar mas também no confronto com os interesses do tráfico em Portugal e na África Só que pelos tratados com a Inglaterra apenas os navios da marinha portuguesa poderiam coibir o tráfico feito em embarcações sob a bandeira lusitana o que fez dela a preferida dos traficantes fossem eles portugueses de nascimento ou não O Bill Palmerston foi uma medida inglesa unilateral para coibir o tráfico feito sob aquela bandeira A medida desrespeitava os tratados com Portugal gerando muitos protestos da diplomacia portuguesa tanto em Lisboa como no Brasil A tal cláusula dos equipamentos portanto não foi uma invenção tirada da cartola pelo almirantado britânico mas uma medida baseada nas práticas dos traficantes A primeira embarcação a ser investigada em Pernambuco depois da lei antitráfico de 1831 demonstra isso A escuna Despique muito veleira partiu do Recife em direção a Angola por Benguela em julho de 1831 A Lei Feijó seria promulgada em setembro do mesmo ano Quando a escuna aportou no Recife em janeiro de 1832 talvez um pouco antes não tinha cativos a bordo mas trazia quatro ou cinco barris cheios de correntes e grilhões mais de 200 esteiras um número excessivo de barris para armazenar água e outros equipamentos próprios de navios negreiros Trazia aquelas 181 características de navio negreiro que os ingleses colocariam na tal cláusula dos equipamentos anos depois em 1839 Antes de aportar no Recife a Despique desembarcou mais de 200 cativos em Pau Amarelo Essa seria a rotina do tráfico nos anos posteriores a 1831 Primeiro os navios deixavam os africanos nos portos naturais previamente combinados com a classe senhorial pernambucana Depois procediam para o Recife para reparos e demais providências necessárias a outras viagens de tráfico ou outras atividades já que praticamente qualquer embarcação poderia ser aprestada para o tráfico dependendo do interesse do seu proprietário ou consignatário O caso da Despique foi bastante escandaloso Incomodou muito o consulado inglês no Recife por exemplo o fato de a provedoria da saúde do porto ter mantido a escuna Despique em quarentena por apenas oito dias dentro do porto protegido do mar alto e das intempéries enquanto o brigue inglês Peruvian foi obrigado a ficar mais tempo em quarentena fora do porto ao largo por ser procedente de Hamburgo uma cidade assolada pelo cólera CARVALHO ALBUQUERQUE 2016 Nessa mesma correspondência diplomática o cônsul inglês todavia não deixou de elogiar a conduta do então presidente da província Francisco de Carvalho Paes de Andrade Como vimos os primeiros anos da Regência guindaram ao centro do poder alguns dos chamados liberais exaltados Aquele presidente de Pernambuco em 1832 era irmão de Manuel de Carvalho Paes de Andrade que havia liderado a Confederação do Equador em 1824 e que voltaria à presidência de Pernambuco alguns anos depois do seu irmão Francisco de Carvalho Paes de Andrade que estava sintonizado com a intenção do ministro da Justiça o Padre Feijó de cumprir a lei antitráfico de 1831 a Lei Feijó6 Como não havia cativos a bordo da Despique o caso não foi adiante na Justiça que não considerava os equipamentos encontrados prova material do crime Nos anos seguintes a ausência de cativos a bordo seria um dos principais argumentos da defesa dos traficantes em casos judiciais Os traficantes inclusive podiam pagar os melhores advogados em suas demandas tanto no Brasil como no exterior nas Comissões Mistas que deliberavam a este respeito A partir de 1835 como vimos os parlamentares que futuramente iriam constituir o chamado partido conservador foram ocupando cada vez mais espaço na Câmara até tomarem o poder em definitivo no regresso de 1837 Foi Araújo Lima enquanto regente entre 1837 e 1840 que em lista tríplice escolheu para o Senado dois dos três irmãos Cavalcanti que ser tornariam senadores durante o Brasil imperial Araújo Lima e os irmãos Cavalcanti ocuparam inúmeros ministérios no Brasil imperial Em várias ocasiões se colocariam em posições distintas e até opostas na política imperial As eleições dos seus aliados em Pernambuco a sede de poder de cada um deles muitas vezes os impulsionaram a lugares diferentes no tabuleiro político como ocorrera nas eleições para regente em 1835 por exemplo Estavam unidos todavia na defesa da ordem escravista e foram beneficiários diretos e indiretos do tráfico ilegal depois de 1831 pois eram também proprietários rurais e urbanos de cativos e vinculados a traficantes atlânticos por laços variados Não é à toa que o tráfico retornaria no Sudeste com um vigor que não tivera antes a partir da regência de Araújo Lima em 1837 Numa escala nacional os anos entre 1837 e 1851 marcam o auge histórico do tráfico para a antiga América portuguesa Só que o Brasil já era independente O tráfico portanto foi praticamente reinventado pois alcançou o seu apogeu no país naqueles anos em que era totalmente ilegal Talvez esteja aí a raiz do desrespeito que as camadas dominantes do país costumam ter em relação à legislação vigente e à violência também ilegal com que tratam o povo sempre que se sentem ameaçados em seus privilégios A demografia do tráfico para Pernambuco tem nuances próprias que destoam do que aconteceu no Rio de Janeiro e na Bahia De acordo com o estudo de Daniel Domingues da Silva e David Eltis 2008 sobre a demografia do tráfico para Pernambuco o apogeu do tráfico na província aconteceu quando o algodão chegou ao seu ápice na pauta de exportações um processo que começou na virada do século XVIII para o XIX Somente entre 1810 e 1821 mais de 95 mil cativos desembarcaram em Pernambuco O algodão 182 183 começou a entrar em crise por volta de 1816 numa longa agonia que se estenderia por vários anos levando a uma diminuição do tráfico depois da Independência Como vimos no começo deste texto entre a Independência e 1831 mais de 47 mil africanos escravizados vieram para Pernambuco Como no resto do país o tráfico declinou durante os primeiros anos da Regência de tal forma que pouco mais de 4 mil africanos ilegalmente escravizados entraram na província entre 1832 e 1835 Em 1836 o tráfico começou a se recuperar chegando a 3500 desembarques e explodiu no ano seguinte com 6650 O salto aconteceu exatamente a partir da regência de Araújo Lima 1837 e 1840 quando entraram 23533 cativos na província DOMINGUES DA SILVA ELTIS 2008 O paradoxo da história do tráfico para Pernambuco é que ele entra em colapso a partir da metade da década de 1840 época de imensa expansão no Sudeste principalmente no Rio de Janeiro onde o café chegara ao seu apogeu O estudo de Daniel Domingues da Silva e David Eltis 2008 sobre a demografia do tráfico para Pernambuco mostra esse declínio que pode ser explicado pela transferência dos escravizados do algodão para o açúcar e pela proletarização dos trabalhadores livres e libertos da Zona da Mata pernambucana cuja única alternativa era ser morador de condição e assim mão de obra barata para os senhores de engenho Vale destacar ainda que durante o governo praeiro 18451848 houve uma tentativa de coibição do tráfico com a captura de alguns navios negreiros Pelo que se sabe até o momento a imensa maioria dos cativos apreendidos a rigor africanos livres terminou sendo escravizada mas o fato de não terem chegado nas mãos dos consignatários dos navios negreiros atacados pela polícia civil praeira trouxe imensos prejuízos aos traficantes locais Isso abalou o tráfico para Pernambuco de tal forma que durante o governo praeiro 18451848 apenas 4460 cativos desembarcaram na província Menos de um quinto dos 23533 cativos que vieram durante a regência de Araújo Lima Marquês de Olinda Foi somente em 1850 que o estado imperial finalmente decidiu conter o tráfico como uma resposta a vários problemas entre os quais despontava a vigorosa resistência da população cativa e a ameaça de guerra no Prata O general Rosas entrara em acordo com os ingleses e franceses e ameaçava claramente interferir no Uruguai com muito apoio naquele país inclusive O Brasil precisava da livre navegação no Prata que dependia da manutenção da autonomia do Uruguai em relação a Buenos Aires Uma nova guerra com Buenos Aires estava fadada ao fracasso se o Brasil não pudesse contar com o apoio ou ao menos com a mediação inglesa para impedir a anexação do Uruguai A crise diplomática com a Inglaterra todavia só crescera depois do Bill Aberdeen em 1845 Dali em diante a marinha inglesa passou a invadir águas brasileiras até na baía de Guanabara à vista de todos para capturar ou mesmo bombardear navios suspeitos de estarem envolvidos no tráfico sem nenhum respeito à Marinha brasileira à Corte imperial e aos tratados com o Império Caso fosse malsucedido na guerra o Brasil corria o risco de ficar numa situação difícil pois o Rio da Prata era o principal caminho fluvial para o interior das províncias do Brasil que margeavam os rios Uruguai Paraguai e Paraná Enquanto isso as fugas e levantes de cativos se avolumavam As principais cidades litorâneas do país tinham imensos contingentes de escravizados a maioria dos quais africanos O Recife particularmente o bairro de São José segundo os estudos de Valéria Costa 2013 e 2015 era uma cidade marcada pela presença africana principalmente por pessoas advindas da África CentroOcidental Congo e Angola e seus descendentes O influxo de africanos a partir do boom do algodão alimentou o Quilombo do Catucá liderado por Malunguinho Um processo análogo ocorreria na capital do Império em cujo entorno surgiram imensos quilombos GOMES 1993 As fugas multiplicavamse em todo o país Os defensores do tráfico no Brasil portanto foram derrotados pelos acontecimentos no Brasil e no exterior A nova lei antitráfico em 1850 dava mais poderes ao governo central e à Marinha a qual caberia julgar os responsáveis pelas embarcações apreendidas tirando da Justiça local essa prerrogativa que terminava absolvendo praticamente todos os traficantes capturados nos anos anteriores A lei antitráfico de 1850 seria reforçada em 1854 pela Lei Nabuco de Araújo que ampliava a jurisdição da auditoria de Marinha para também alcançar aqueles que colaboravam com o tráfico em terra bem além dos locais de desembarque e não apenas a tripulação e os demais agentes diretamente envolvidos nas operações dos navios negreiros BETHELL 2002 Nos 20 anos anteriores entre 1831 e 1850 os navios negreiros desovavam como se dizia na época a sua preciosa carga humana nos portos naturais do litoral pernambucano todos eles situados em praias contíguas a engenhos de açúcar ou povoações dominadas pelos grandes potentados rurais escravistas A bem da verdade não existiam praias sem dono em Pernambuco pois todas elas estavam na Zona da Mata apropriada pela classe senhorial desde o período colonial Os pescadores que porventura vivessem entre os coqueirais e cajueiros dessas praias onde a cana não vicejava eram meros posseiros totalmente dependentes dos senhores de engenho Tanto que não era incomum serem incorporados aos inúmeros trabalhadores do tráfico uma atividade que demandava muita gente em diferentes funções Os senhores de engenhos empregavam jangadeiros para irem ao encontro dos navios negreiros em altomar para ajudar a guiálos ao ponto certo de desembarque Esses mesmos senhores de engenho que recepcionavam os navios negreiros nas praias dos seus engenhos eram os capitãesmores das comarcas do litoral até a extinção dos corpos de ordenanças depois da criação da guarda nacional quando se tornaram coronéis e subcoronéis nas localidades em que residiam Eram também os juízes de paz os juízes ordinários e quando togados galgavam posições mais altas no Judiciário imperial Vale ressaltar que cabia aos juízes de paz reprimir quilombos capturar cativos fujões e proceder contra os traficantes nos termos da lei antitráfico de 1831 Não é à toa que o tráfico tenha permanecido praticamente impune até a lei antitráfico de 1850 Os desembarques distribuição e escravização ilegal dos africanos contavam com a total anuência do aparato policial e judicial brasileiro Os senhores de engenho do litoral de Pernambuco Alagoas e Paraíba eram senhores de engenhotraficantes uma categoria aplicável a essa facção da classe terratente do Império do Brasil Processos análogos surgiram em vários portos naturais do Sudeste pois o tráfico rapidamente vinculouse a grandes propriedades agrárias que começavam no litoral ou então tornou possível a exploração de terras antes pouco frequentadas pela marinha mercantil pois rapidamente surgiram muitas estruturas próprias para acolher navios negreiros e redistribuir os cativos desembarcados inclusive para as cidades A marinha inglesa observou o surgimento de imensos barracões no litoral do Sudeste para aprisionar os cativos recémchegados Todos os equipamentos próprios para recepção de navios negreiros foram implantados no litoral com pomares e água potável canalizada até os pontos de desembarque O litoral sudestino passou a recepcionar navios negreiros que antes iam direto para a capital imperial O complexo cafeeiro e negreiro dos irmãos Breves no litoral do Rio de Janeiro por exemplo foi fundamental para os seus proprietários se colocarem entre os maiores produtores de café do Brasil imperial FORBES 1849 PEREIRA PESSOA 2019 PEREIRA 2021 PESSOA 2021 Em muitas paróquias até o clero costumava participar da parentela senhorial quando não eram eles mesmos proprietários que oravam nas capelas dos seus próprios engenhos Mesmo quando não eram da classe senhorial também ajudavam o tráfico ao batizar os africanos recémchegados Nessa época o batistério equivalia à atual certidão de nascimento A Igreja e o Estado estavam unidos Os párocos eram funcionários do Estado Ao dizer que uma pessoa era escrava de outra o batistério definia a situação legal da criança ou do adulto batizado Muitas vezes definia também a tonalidade da pele Assim o que estava escrito no livro de batismo era a condição legal e a posição social da pessoa ou seja a qualidade Ao registrar africanos livres como escravos o clero sacramentava a escravização dessas pessoas transformando um africano livre num cativo como outro qualquer Reverter isso seria tarefa para o futuro como no caso da ação de liberdade do africano Camilo ilegalmente escravizado depois de 1831 Camilo contou que era apenas uma criança pequena quando o navio negreiro aportou em Atapus Havia outros meninos pequenos com ele Todos foram batizados por um padre cujo nome Camilo não lembrava mas se recordava que era branco e de boa altura AMARAL SETTE 2012 A história do tráfico de escravos para Pernambuco tem muitos episódios que ajudam a clarificar o seu funcionamento por intermédio da classe senhorial e com a anuência do poder judiciário do clero e das autoridades governamentais como um todo Nabuco de Araújo pai do líder 186 187 abolicionista Joaquim Nabuco era ministro da Justiça do Império durante o desembarque de Sirinhaém em 1855 Este desembarque teve muita repercussão nacional e internacional pois o tráfico havia de fato estancado àquela altura Surpreendeu a todos a apreensão de um navio negreiro no litoral pernambucano tentando desembarcar cativos em frente à Ilha de Santo Aleixo numa época em que o tráfico parecia estar sob controle Na realidade o navio só foi capturado porque seu comandante errou o ponto de desembarque e terminou indo parar no engenho errado embora perto do local onde era esperado Ora os proprietários rurais tinham suas desavenças Poderia ser vantajoso denunciar um desembarque ilegal nas praias contíguas ao engenho de um adversário político ou mesmo inimigo pessoal Caso um navio negreiro fosse parar na praia errada fora do controle do proprietário ao qual eram endereçados os africanos ilegalmente escravizados os riscos eram imensos pois nesses casos a carga humana poderia ser simplesmente roubada por outro proprietário ou o desembarque ser denunciado Não faltam episódios dessa natureza nas praias de Pernambuco gerando muita confusão Os africanos livres desembarcados na imensa maioria das vezes terminavam escravizados Mas nesses casos a propriedade dessas pessoas ficava com os proprietários que controlavam o acesso à praia e não com o senhor do engenho que deveria ter acolhido o navio negreiro Houve um caso inclusive em que o traficante correu do Recife para o local onde ocorrera o desembarque tentando salvar seu empreendimento Terminou todavia levando uma surra Não conseguiu recuperar nenhum dos cativos desembarcados na praia errada CARVALHO 20217 O que aconteceu em 1855 em Sirinhaém foi um desembarque em um lugar errado Ao perceber que fora parar no engenho de uma pessoa sem ligação com o desembarque o comandante do navio negreiro voltou para seu navio e tentou negociar os cativos que foram sendo rapidamente repassados A maioria deles desapareceu entre os engenhos da região e terminou escravizada como um milhão ou mais de outros africanos ilegalmente escravizados no Brasil depois de 1831 Apesar da denúncia as autoridades locais foram bastante vagarosas em agir revelando incompetência e anuência O mesmo se pode dizer do governo provincial cujo presidente também tinha laços de família e aliança política com alguns dos envolvidos A notícia do desembarque espalhouse rapidamente alcançando a imprensa na qual há várias narrativas sobre as muitas pontas soltas do inquérito gerando mais um atrito diplomático entre o Brasil e a Inglaterra e debates entre os protagonistas do tabuleiro político de Pernambuco Logo os envolvidos começaram a se denunciar mutuamente como acontecia nos anos 1840 Foi este o último desembarque apreendido com cativos a bordo no litoral brasileiro VEIGA 1977 Este episódio trouxe muitos dissabores para o ministro da Justiça Nabuco de Araújo pois os seus aliados diretos em Pernambuco inclusive gente do clã Cavalcanti estavam envolvidos no crime e o senhor de engenho que pretendia acolher o desembarque era bem conhecido por participar do tráfico A família daquele senhor de engenho também tinha vínculos com Araújo Lima cujo engenho o Antas margeava o Rio Sirinhaém que dava justamente na praia onde ocorrera o desembarque de 1855 e outros nos anos anteriores A própria Ilha de Santo Aleixo onde o navio foi parar era também ponto conhecido dos traficantes O desembarque de Sirinhaém revelou o que todos sabiam a classe senhorial pernambucana estava envolvida diretamente no tráfico e teimava em não deixar este velho hábito mesmo ocupando com mão de ferro o próprio governo provincial e participando do governo imperial pois os liberais radicais remanescentes dos anos da Independência haviam sido esmagados na Insurreição Praieira em 18481849 CARVALHO CADENA 2019 Quanto ao ministro da Justiça Nabuco de Araújo não havia como ele se omitir do desembarque Foi na sua administração que foi promulgada a Lei Nabuco de Araújo que ampliava os instrumentos de repressão ao tráfico da lei antitráfico de 1850 Mas não era só isso Desde a juventude Nabuco de Araújo teceu sólidos vínculos com a classe senhorial pernambucana Nabuco de Araújo filho de um magistrado depois senador do Império estudou Direito em Pernambuco onde também começaria a sua carreira política como 188 189 um protegido dos irmãos Cavalcanti principalmente do Visconde de Camaragibe Em 1847 quando os prai eiros governavam a província ele publicou um longo panfleto anônimo atacando o governo praieiro Foi seu filho Joaquim Nabuco quem revelou que o autor do panfleto foi o seu pai biografado em Um estadista do Império um livro que tenta narrar a história imperial mas da perspectiva das ações do seu pai Nabuco de Araújo ministro da Justiça durante o desembarque de Sirinhaém Um estadista do Império é muito lido até hoje principalmente por tratar de detalhes da vida pessoal e até da personalidade de vários dos grandes do Império Isso em uma narrativa deliciosa de se ler pois Joaquim Nabuco era um grande escritor É um livro essencial mas não muito confiável como bem disse Jeffrey Needell uma vez que é a biografia de um esperto político conservador escrita por seu próprio filho indispensable and undependable NEEDELL 2006 p 200 Pois bem Nabuco de Araújo no seu panfleto de 1847 admitiu claramente que os Cavalcanti e a parentela do Barão depois Conde da Boa Vista acolhiam navios negreiros nas praias sob seu controle Para livrálos da pecha de traficantes Nabuco de Araújo disse que os engenhos dos seus adversários vinculados ao partido praieiro faziam o mesmo Ou seja segundo ele todos os engenhos do litoral de Pernambuco acolhiam navios negreiros nas praias sob seu controle O tráfico ocorria graças à classe senhorial que controlava o acesso às praias e isso independia da afiliação partidária dos proprietários segundo Nabuco de Araújo A bem da verdade para provar o envolvimento da fina flor da classe senhorial de Pernambuco no tráfico nem seria preciso esta confissão de Nabuco de Araújo no panfleto de 1847 pois todos os navios negreiros capturados em sua imensa maioria abandonados no litoral de Pernambuco encontravamse em praias contíguas a grandes engenhos de açúcar O próprio Nabuco de Araújo quando ainda era promotor participou de fiascos na repressão ao tráfico ao denunciar os desembarques perpetrados pelos navios negreiros Bom Sucesso e Rápido no litoral pernambuca no antes de aportarem no Recife em 1837 Nabuco de Araújo reconhecia que tinha poucos indícios contra o brigue Rápido exceto pelo fato de ter aguada ou seja provisão de água muito maior do que a necessária para a tripulação da viagem O ofício não deixa claro o que ele tinha contra o patacho Bom Sucesso As fontes inglesas sobre o tráfico para Pernambuco entretanto indicam que aquela embarcação visitou várias vezes o litoral pernambucano carregada de cativos ilegalmente escravizados ao desembarcar no Brasil Nessa viagem denunciada por Nabuco de Araújo o Bom Sucesso chegou no Recife procedente de Luanda consignado ao conhecido traficante Gabriel Antônio A denúncia de Nabuco de Araújo foi malsucedida em ambos os casos O mesmo aconteceria no caso do patacho Providência Como em outros episódios de desembarque não se sabia ao certo se o navio tinha deixado os cativos em praias ao sul ou ao norte do Recife Da perspectiva da História do tráfico isso não importa tanto pois há casos bem documentados de desembarques em praticamente todo o litoral de Pernambuco naquele ano O Providência foi capturado pela Marinha brasileira uma exceção à regra a mando do presidente da província o Barão da Boa Vista Foi o único navio negreiro apreendido em Pernambuco entre os 23 que deixaram cativos nas praias da província em 1839 Também foi o único que parece ter vindo parar em Pernambuco sem ser este o seu destino e sim a Bahia ou o Rio de Janeiro Talvez o fato de não estar endereçado a um proprietário local tenha precipitado a sua captura O Providência então foi parar na praia errada e por isso foi capturado Os traficantes todavia eram articulados entre si de tal forma que o navio terminou desembarcando com sucesso a sua preciosa carga humana graças à interferência de Azevedinho o gerente da empresa do tráfico mencionado acima O caso foi parar no tribunal mas o juiz o futuro conselheiro Aguiar terminou absolvendo os envolvidos pois não havia cativos a bordo a prova material do crime segundo o juiz apesar de terem sido encontrados alguns dos equipamentos considerados prova do emprego do navio no tráfico segundo o Equipment Act inglês daquele mesmo ano de 1839 8 Ofício do promotor público José Thomaz Nabuco de Araújo ao presidente da província Vicente Tomás de Figueirêdo Camargo Recife 08041837 MINISTÉRIO PÚBLICO DE PERNAMBUCO Promotores Públicos O Cotidiano da Defesa da Legalidade Transcrição de Documentos Manuscritos 18321843 Transcrição coordenada por Vera Lúcia Costa Acioli Recife Procuradoria Geral da JustiçaArquivo Público Estadual 1999 vol 1 f 120 190 191 A lei antitráfico de 1831 nunca seria revogada Isso significava que caso ela fosse minimamente cumprida os africanos ilegalmente escravizados que haviam sobrevivido aos horrores do cativeiro deveriam ser emancipados pois a rigor eram africanos livres Era muito difícil para um cativo alcançar a emancipação na Justiça comum pois a presunção jurídica no Brasil era de que todo negro era um cativo Ainda mais se fosse africano A situação começaria a mudar a partir da Lei do Ventre Livre em 1871 que passou a exigir que todos os cativos fossem matriculados dentro de um determinado prazo Passado o prazo estavam emancipados Inúmeros cativos começaram a entrar com ações de liberdade exigindo sua libertação por não terem sido matriculados Aquela lei também regulamentou o pecúlio que existia apenas informalmente permitindo aos próprios cativos comprar a sua liberdade por valor a ser arbitrado na Justiça A historiografia tem demonstrado que a maior mudança provocada pela lei foi a reação dos escravizados que passaram a agir judicialmente contra a classe senhorial O resultado final das ações de liberdade todavia dependia do contexto social e político maior Como observou décadas atrás Robert Conrad a Lei do Ventre Livre a rigor não emancipou ninguém sendo em grande parte um instrumento legal para frear o movimento abolicionista que crescia pois àquela altura 1871 a escravidão nas Américas só persistia no Brasil e em Cuba Logo o movimento abolicionista recobrou fôlego transbordando para os tribunais As ações de liberdade propostas por africanos ilegalmente escravizados depois de 1831 deixaram de ser raridade à medida que o movimento popular abolicionista avançava na década de 1880 Talvez o leitor se pergunte que idade teriam esses africanos depois da Lei do Ventre Livre de 1871 pois eles haviam entrado no país entre 1831 e 1850 passando décadas escravizados Vale mencionar um outro detalhe sórdido do tráfico no século XIX Nessa época os navios negreiros procedentes de Angola e Congo começaram a ter cada vez mais crianças pequenas em seus porões a ponto de se tornarem a maioria dos cativos a bordo Em alguns casos praticamente todos Ora a idade considerada ideal para se comprar uma pessoa escravizada no litoral africano era de 12 a 18 anos como ensinou o traficante José Francisco de Azevedo Lisboa ao instruir seus agentes no litoral africano CARVALHO 2016 O que mudou no XIX é que os navios negreiros passaram a trazer crianças tão pequenas que ainda não haviam sequer passado pelos rituais de iniciação em suas comunidades originárias não tendo escarificações as chamadas marcas de nação Essas criancinhas muitas com menos de 7 anos e até no colo sendo amamentadas lotavam os navios negreiros durante o Brasil imperial Principalmente os navios procedentes de Angola e Congo local de onde vieram aproximadamente 88 por cento dos africanos escravizados que desembarcaram em Pernambuco no século XIX A presença marcante de crianças pequenas nos navios negreiros foi notada por vários observadores no século XIX Um comandante da marinha inglesa responsável pela apreensão de vários navios negreiros depois de 1831 disse que as naus que se dirigiam ao Brasil eram verdadeiras hellish nurseries berçários infernais FORBES 1849 p 87 tamanha era a quantidade de crianças pequenas a bordo Essas crianças eram boa mercadoria Custavam menos no litoral africano comiam e bebiam menos água durante a viagem ao Brasil eram menos capazes de se rebelar com eficácia e ocupavam menos espaço o que permitia mais do que dobrar a carga humana de um navio Ao chegar no Brasil prometiam uma longa vida no cativeiro maximizando os lucros Muitas dessas crianças poderiam até passar por cativos nascidos no Brasil uma vez que eram muito jovens para terem marcas de nação Algumas dessas ações de liberdade tentando fazer valer a lei antitráfico de 1831 a Lei Feijó Eram imensas suas dificuldades diante da Justiça pois tinham que provar que vieram em navios que aportaram clandestinamente em Pernambuco sob a proteção da classe senhorial do aparato estatal do poder judiciário e do clero A classe senhorial como vimos contava também com os melhores advogados ou ao menos os mais caros Alguns desses processos que chegaram até nós em Pernambuco trazem narrativas do desembarque de africanos melhor dizendo dessas crianças fadadas à escravidão LIRA 2021bCASTELO BRANCO 2019 Alguns ca acima é o caso de Camilo o nome que o menino africano recebeu ao ser batizado no Brasil Desconhecemos o seu nome africano Nos autos da sua ação de liberdade Camilo contou que desembarcou na Praia de Atapus uma praia paradisíaca na entrada da barra onde está a Ilha de Itamaracá não muito longe de Barra de Catuama um porto de navios negreiros bem conhecido da diplomacia inglesa Sobreviveu a duas gerações senhoriais Quando foi finalmente emancipado em juízo era cativo do neto do seu primeiro proprietário em Pernambuco O tráfico de escravizados sustentou a agricultura escravista de Pernambuco A facilidade da viagem desde o litoral africano possibilitou a capitania depois província a continuar competindo no mercado atlântico do açúcar apesar da baixa capitalização da sua classe senhorial e da praça do Recife Foi também um imenso subsídio ao algodão Foi portanto fundamental para a formação do capitalismo na província Depois de 1831 os desembarques passaram a ocorrer nas praias contíguas a alguns dos maiores engenhos da província ou povoações sob o domínio político e clientelar da classe senhorial Os senhores de engenho de Pernambuco tornaramse senhores de engenhotraficantes pois dependia deles qualquer desembarque bemsucedido Os políticos mais poderosos da província participaram ativamente desse ramo de negócios tanto direta como indiretamente O tráfico e a escravidão estavam entranhados no ethos e no modo de ser das camadas dominantes da sociedade A história do tráfico para Pernambuco em que pese a multiplicação de trabalhos sobre o assunto ainda é um tema aberto à pesquisa Esperamos que este texto sirva de inspiração para outros estudiosos Referências ALBUQUERQUE Aline E B De Angello dos retalhos a Visconde de Loures a trajetória de um traficante 18181858 Dissertação Mestrado em História UFPE Recife 2016 AMARAL Carlos Alberto V SETTE Iara Schechtman transcrição Revista Documentação e Memória Memorial da Justiça TJPE v 3 n 5 jandez 2012 Disponível em httpswwwtjpejusbrwebrevistadocumentacaoememoriaedicoesanterioresrevista2012 Acesso em 9 abril 2022 como ensinou o traficante José Francisco de Azevedo Lisboa ao instruir seus agentes no litoral africano CARVALHO 2016 O que mudou no XIX é que os navios negreiros passaram a trazer crianças tão pequenas que ainda não haviam sequer passado pelos rituais de iniciação em suas comunidades originárias não tendo escarificações as chamadas marcas de nação Essas criancinhas muitas com menos de 7 anos e até no colo sendo amamentadas lotavam os navios negreiros durante o Brasil imperial Principalmente os navios procedentes de Angola e Congo local de onde vieram aproximadamente 88 por cento dos africanos escravizados que desembarcaram em Pernambuco no século XIX A presença marcante de crianças pequenas nos navios negreiros foi notada por vários observadores no século XIX Um comandante da marinha inglesa responsável pela apreensão de vários navios negreiros depois de 1831 disse que as naus que se dirigiam ao Brasil eram verdadeiras hellish nurseries berçários infernais FORBES 1849 p 87 tamanha era a quantidade de crianças pequenas a bordo Essas crianças eram boa mercadoria Custavam menos no litoral africano comiam e bebiam menos água durante a viagem ao Brasil eram menos capazes de se rebelar com eficácia e ocupavam menos espaço o que permitia mais do que dobrar a carga humana de um navio Ao chegar no Brasil prometiam uma longa vida no cativeiro maximizando os lucros Muitas dessas crianças poderiam até passar por cativos nascidos no Brasil uma vez que eram muito jovens para terem marcas de nação Algumas dessas ações de liberdade tentando fazer valer a lei antitráfico de 1831 a Lei Feijó Eram imensas suas dificuldades diante da Justiça pois tinham que provar que vieram em navios que aportaram clandestinamente em Pernambuco sob a proteção da classe senhorial do aparato estatal do poder judiciário e do clero A classe senhorial como vimos contava também com os melhores advogados ou ao menos os mais caros Alguns desses processos que chegaram até nós em Pernambuco trazem narrativas do desembarque de africanos melhor dizendo dessas crianças fadadas à escravidão LIRA 2021bCASTELO BRANCO 2019 Alguns ca acima é o caso de Camilo o nome que o menino africano recebeu ao ser batizado no Brasil Desconhecemos o seu nome africano Nos autos da sua ação de liberdade Camilo contou que desembarcou na Praia de Atapus uma praia paradisíaca na entrada da barra onde está a Ilha de Itamaracá não muito longe de Barra de Catuama um porto de navios negreiros bem conhecido da diplomacia inglesa Sobreviveu a duas gerações senhoriais Quando foi finalmente emancipado em juízo era cativo do neto do seu primeiro proprietário em Pernambuco O tráfico de escravizados sustentou a agricultura escravista de Pernambuco A facilidade da viagem desde o litoral africano possibilitou a capitania depois província a continuar competindo no mercado atlântico do açúcar apesar da baixa capitalização da sua classe senhorial e da praça do Recife Foi também um imenso subsídio ao algodão Foi portanto fundamental para a formação do capitalismo na província Depois de 1831 os desembarques passaram a ocorrer nas praias contíguas a alguns dos maiores engenhos da província ou povoações sob o domínio político e clientelar da classe senhorial Os senhores de engenho de Pernambuco tornaramse senhores de engenhotraficantes pois dependia deles qualquer desembarque bemsucedido Os políticos mais poderosos da província participaram ativamente desse ramo de negócios tanto direta como indiretamente O tráfico e a escravidão estavam entranhados no ethos e no modo de ser das camadas dominantes da sociedade A história do tráfico para Pernambuco em que pese a multiplicação de trabalhos sobre o assunto ainda é um tema aberto à pesquisa Esperamos que este texto sirva de inspiração para outros estudiosos Referências ALBUQUERQUE Aline E B De Angello dos retalhos a Visconde de Loures a trajetória de um traficante 18181858 Dissertação Mestrado em História UFPE Recife 2016 AMARAL Carlos Alberto V SETTE Iara Schechtman transcrição Revista Documentação e Memória Memorial da Justiça TJPE v 3 n 5 jandez 2012 Disponível em httpswwwtjpejusbrwebrevistadocumentacaoememoriaedicoesanterioresrevista2012 Acesso em 9 abril 2022 BARMAN Roderick The forging of a nation 17981852 Stanford Stanford University Press 1988 BETHELL Leslie A abolição do comércio brasileiro de escravos Brasília Senado Federal 2002 CADENA Paulo Henrique Fontes O vicerei Pedro de Araújo Lima e a governança do Brasil no século XIX Tese Doutorado em História Social Programa de PósGraduação em História UFPE Recife 2018 Ou há de ser Cavalcanti ou há de ser cavalgado trajetórias políticas dos Cavalcanti de Albuquerque Pernambuco 18011844 Recife EDUFPE 2013 CARNEIRO Maciel Henrique Uma africana livre e a corrupção dos costumes Pernambuco 18301844 Estudos AfroAsiáticos 2007 ano 29 n 123 jandez p 123160 CARVALHO Marcus J M de ALBUQUERQUE Aline Emanuelle de Biase Os desembarques de cativos africanos e as rotinas médicas no Porto do Recife antes de 1831 Almanack 2016 v 1 p 4464 CARVALHO MARCUS J M de Trabalho cotidiano administração e negociação numa feitoria do tráfico no Rio Benim em 1837 Afroasia 2016 v 53 p 227273 A rápida viagem dos berçários infernais e os desembarques nos engenhos do litoral de Pernambuco depois de 1831 In OSÓRIO Helen XAVIER Regina org Do tráfico ao pósabolição trabalho compulsório e livre e a luta por direitos sociais no Brasil Porto Alegre Oikos 2018 v 1 p 126164 Os senhores de engenhotraficantes de Pernambuco 18311855 In SARAIVA Luiz Fernando ALMICO Rita PESSOA Thiago Campos Tráfico e traficantes na ilegalidade de São Paulo Hucitec 2021 p 125150 CARVALHO Marcus J M de CADENA Paulo Henrique Fontes A política como arte de matar a vergonha o desembarque de Sirinhaém em 1855 e os últimos anos do tráfico para o Brasil Topoi 2019 v 20 p 651677 CASTELO BRANCO Arthur Danilo Carapuça a quem servir fugas roubos e tráfico de escravos no Pernambuco Imperial 18501873 Dissertação Mestrado em História UFPE Recife 2019 COSTA Valéria Gomes Trajetórias negras os libertos da Costa dÁfrica no Recife 18461890 Tese de Doutorado UFBA 2013 Para além dos laços sanguíneos redes familiares e de parentesco entre os libertos da Costa dÁfrica no Recife Oitocentista Clio 2015 v 33 p 223244 DOMINGUES DA SILVA Daniel Barros ELTIS David The slave trade to Pernambuco 15611851 In ELTIS David RICHARDSON David eds Extending the frontiers essays on the New Transatlantic Slave Trade Database New Haven Yale University Press 2008 p 95129 FALAS DO TRONO Rio de Janeiro 1889 Senado Federal 2019 FORBES Lieutenant R N Six months service in the African blockade from April to October 1848 in command of HMS Bonetta Londres Richard Bentley New BurlingtonStreet 1849 Pernambuco na República Velha Severino Vicente da Silva Este capítulo sintetiza parte do conhecimento já produzido sobre o tema e pretende ser mais do que uma visão da evolução política de Pernambuco uma leitura possível da trajetória de uma história na qual o povo tem sido posto em plano secundário e embora haja muito a ser dito sobre os governantes ainda há mais a dizer sobre os governados Antecedentes republicanos O termo República Velha como sempre acontece foi usado pelos historiográfos para estabelecer diferenças entre os objetivos a que se propunham os que apearam do poder o presidente Washington Luís 18691957 em outubro de 1930 e o que representou o período anterior da República brasileira iniciada por um golpe de Estado impulsionado por militares e civis liderado pelo marechal Manuel Deodoro da Fonseca 18271892 a 15 de novembro de 1889 No dia seguinte o já então eximperador do Brasil Dom Pedro II 18251891 foi expulso do país com toda sua família no intuito de evitar algum movimento restaurador como ocorrera após seu pai Dom Pedro I 17981834 ter renunciado ao trono brasileiro para cuidar de garantir o trono português para sua filha Dona Maria II 18191853 Um manifesto de políticos dissidentes do Partido Liberal ocorrido em Itu no ano de 1870 pode ser considerado como o início da ideia republicana no Brasil Contudo em Pernambuco esta palavra vinha sendo usada desde 1710 Ter e ser um porto garantiu a vida política do Recife Naquele ano um vereador de Olinda insatisfeito com a política colonial que elevara a povoação do Recife à condição de vila Bernardo Vieira de Melo 16581718 liderando os senhores de engenho que tinham o Recife como seu porto para exportação de açúcar e importação de artigos europeus eou asiáticos para o seu conforto quis fazer de Olinda uma república assemelhada às experiências que ocorriam na Península Itálica desde o século XIII Sem apoio de seus parceiros o também sargentomor foi aprisionado levado à metrópole e condenado por crime de lesamajestade vindo a morrer na cadeia em Lisboa O final do século XVIII foi marcado pela expansão de uma nova maneira de entender a palavra República como a entendiam Oliver Cromwell 15991658 John Locke 16321704 JeanJacques Rousseau 17121778 Maximiliano Robespierre 17581794 Thomas Jefferson 17431826 Benjamin Franklin 17061790 e outros Na América do Norte os colonos criaram a República dos Estados Unidos da América do Norte na Europa com o apoio dos exércitos do general Napoleão Bonaparte 17691821 essa ideia espalhouse mas após salvar a República o general se fez imperador e sua política expansionista forçou o príncipe regente Dom João a mudar a sede do Império português para o Brasil tendo escolhido o Rio de Janeiro para tal função Tornar a cidade de uma colônia em sede metropolitana custa muitos impostos e como Pernambuco era a província mais rica arcou mais tributos para garantir a beleza e fazer maravilhosa a cidade escolhida pelos ingleses que auxiliaram a transferência real A insatisfação por estar financiando seus concorrentes aliada às ideias iluministas ensinadas nas academias nas lojas maçônicas nas aulas ministradas no Seminário de Nossa Senhora das Graças em Olinda além dos sermões dominicais e dos soldados atrasados dos militares levaram à eclosão da Revolução Republicana em 1817 no dia 6 março Durante 70 dias Pernambuco Paraíba Rio Grande do Norte e parte do Ceará formaram uma República Ela foi derrotada pelas forças monárquicas do Rio de Janeiro e Bahia com o apoio da Comarca de Alagoas que decidiu deixar de ser pernambucana Mas a República de 1817 por não tornar livres os africanos escravizados não pôde formar exército para defender seu ideal republicano O rei Dom João VI e seu filho Pedro martirizaram Pernambuco Quando o imperador Dom Pedro I fechou a Assembleia Constituinte e impôs uma Constituição que estabelecia um quarto poder que ele pretendia que fosse moderador os pernambucanos liderados por Manuel Paes de Carvalho 17741855 e pelo frei Joaquim do Amor Divino Caneca 17791825 proclamaram mais uma vez a República Novamente houve a participação das províncias da Paraíba Rio Grande do Norte e Ceará E uma vez mais a República foi derrotada pelas forças monarquistas enviadas por Dom Pedro I Como castigo uma vasta área do território pernambucano foi desmembrado e anexado primeiro a Minas Gerais e depois à Bahia Apesar desse histórico Pernambuco não teve representante no convés della quando o jovem Prudente de Morais subscreveu o Manifesto Republicano documento que não teve maiores repercussões imediatas Mas o republicanismo e o abolicionismo caminhavam com dificuldade Entretanto foi a Lei Áurea que fez crescer o número de republicanos jocosamente chamados de republicanos do 14 de maio Esta lei foi redigida pelo ministro João Alfredo Correia de Oliveira 18351919 pernambucano senhor do Engenho Uruaé e proprietário de usina em Itambé Como Pernambuco foi muito ativo na campanha abolicionista as lideranças republicanas ficaram obnubiladas no cenário político Quando da proclamação da República não havia no estado um partido republicano forte que pudesse ou viesse a ter influência no governo central Em Pernambuco o Partido Republicano veio a ser criado em dezembro de 1888 Importante entretanto ressaltar a atuação dos republicanos Martins Junior e Silva Jardim Flávia Bruna Ribeiro Braga 2017 nos chama a atenção para o silêncio que foi criado em torno desse grupo republicano influente em Pernambuco Rio Grande do Norte e Bahia que teria sido 201 ofuscado pelas personalidades de Joaquim Nabuco 18491910 e José Mariano Carneiro da Cunha 18501912 líderes abolicionistas mas não republicanos A historiadora aponta que os republicanos em Pernambuco apesar de não serem pobres não tinham condições de igualarse aos demais grupos políticos ligados ao poder do açúcar dominante como ocorreu com os republicanos do sul que estavam ligados às famílias de cafeicultores e proprietários de charqueadas BRAGA 2017 p 28 Mas interessa aqui lembrar que não foi possível aos republicanos em Pernambuco manteremse unidos aos antigos aliados após a Lei Áurea Eles também não conseguiram meios de influenciar a organização do governo após a proclamação da República que a todos pegou de surpresa uma vez que foi articulada pelos de São Paulo e Rio de Janeiro A República encontra Pernambuco em crise política e nela segue No dia anterior à proclamação da República tomou posse no governo da província Sigismundo Gonçalves 18451915 Ele havia sido deputado provincial e por força da situação nacional governou apenas até o dia seguinte pois transmitiu o cargo ao coronel José Cerqueira de Aguiar Lima ligado ao Partido Republicano Brasileiro PRB Logo que a República foi proclamada ele foi nomeado por decreto de 21 do mês de novembro governador e comandante das Armas de Pernambuco mas só assumiu o cargo em 12 de dezembro de 1889 Sua posse no governo de Pernambuco configurou a preponderância no estado do antigo Partido Liberal então denominado Partido Democrata chefiado por José Mariano Carneiro da Cunha e José Maria de Albuquerque e Melo o que significou a perda de espaço do pequeno partido dos republicanos históricos que dominou a região nos primeiros dias do novo regime Mas a atuação do Partido Democrata desagradou não só aos republicanos históricos como também ao antigo Partido Conservador liderado por Francisco de Assis Rosa e Silva João Alfredo Correia de Oliveira e Antônio João de Amorim o barão de Casa Forte No mesmo ano Deodoro da Fonseca chefe do governo provisório da República nomeou o seu ministro Henrique Pereira de Lucena o barão de Lucena para governar Pernambuco exercendo simultaneamente o cargo de ministro da Agricultura no Rio de Janeiro O barão de Lucena afastouse do governo de Pernambuco que veio a ser assumido pelo vice José Antônio Correia da Silva um lucenista CAVALCANTI 2014 p 98 As lideranças Os primeiros anos da República foram marcados pela ação política dos marechais Manuel Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto 18391895 e foram anos de adaptação aos novos modos de fazer política de fazer o poder funcionar na direção do povo como a palavra informa Os dois militares que moldaram sua personalidade e carreira nos campos de batalha estavam mais preparados para dar ordens do que para ouvilas Deodoro apresentou dificuldade de articulação com o Parlamento mas conseguiu promulgar uma nova Constituição Entretanto teve dificuldades e renunciou dizendo que buscava evitar uma guerra civil e libertar o último escravo referindose a si mesmo Foi substituído por seu contemporâneo Floriano Peixoto que havia sido eleito na chapa que lhe fez oposição recebendo mais votos que o próprio Deodoro Ao assumir o governo Floriano afastou os governadores indicados por Deodoro substituindo por pessoas de sua confiança Logo enfrentou um manifesto de 13 generais que não o aceitavam como presidente pois entendiam que ele deveria convocar uma eleição não assumir o governo Sua reação foi mandar prender os generais em seguida enfrentou a Segunda Revolta da Armada e a Revolta Federalista do Rio Grande do Sul Sua maneira enérgica e ditatorial de governar lhe valeu o cognome de Marechal de Ferro Em Pernambuco a luta política favorecia os setores mais conservadores que cuidavam mais de buscar apoio nas hostes do latifúndio como fazia o Partido Republicano em sua relação com os grandes proprietários CAVALCANTI 2014 p 69 José Isidoro Martins Junior era um líder republicano 203 gerado politicamente fora do seio das tradicionais famílias do poder em Pernambuco De vocação mais voltada para as negociações políticojurídicas nem sempre bemsucedidas e pouco hábil na relação com populares Martins Junior sempre teve sua liderança contestada dentro e fora das hostes republicanas Talvez por isso o presidente Deodoro da Fonseca enviara para o governo do estado Henrique Pereira de Lucena o barão de Lucena monarquista que se torna republicano pela amizade com o presidente O discurso da conciliação da família pernambucana acompanhava o novo governador Entretanto o barão de Lucena por questões de política nacional e do trato com o Congresso foi chamado para assumir pasta ministerial do governo Deodoro A permanência do barão de Lucena no governo é curta pois logo o marechal mandou fechar o Congresso Líderes pernambucanos como José Mariano Carneiro da Cunha abolicionista fundador do jornal A Provincia rapidamente aderiram ao golpe de Deodoro mas este se viu forçado a renunciar Uma surpresa para os adesistas Com a posse de Floriano Peixoto novas mudanças políticas ocorreram trazendo o capitão Alexandre José Barbosa Lima 18621931 para o governo de Pernambuco Ele fora eleito deputado constituinte pelo Ceará De perfil autoritário promoveu atraso de calendário eleitoral e enfrentou a oposição armada dos republicanos históricos liderados por José Isidoro Martins Junior em vários municípios Mais tarde demitiu Martins Junior do cargo de professor da Faculdade de Direito do Recife Em seu governo foi criada a Inspetoria de Higiene do Estado para o combate às epidemias ampliouse as redes de telégrafo e esgoto ampliouse a rede de telégrafo foram fundadas a Escola de Engenharia a Escola Frei Caneca para Órfãos e escolas no interior do estado Após o seu governo que terminou em 1896 veio a sequência de governadores indicados por Francisco de Assis Rosa e Silva 18571929 Em Pernambuco entre os anos de 1896 e 1910 imperava Rosa e Silva Filho de comerciante dedicouse às lides políticas desde o Império Ainda no regime monárquico foi deputado entre 1882 e 1889 e ministro da Justiça de janeiro a junho de 1889 Recebeu de Dom Pedro II o título de conselheiro do Império Com a proclamação da República foi eleito deputado federal 18901896 participando da elaboração da Constituição de 1891 senador 18961898 19031911 19241929 e vicepresidente no mandato de Campos Sales 18981902 Estamos diante de um autêntico republicano de 16 de novembro Apesar de ser o representante dos interesses da litorânea oligarquia do açúcar seus tentáculos alcançavam o interior do Estado sem o qual a estabilidade oligárquica não subsistiria A inércia sempre foi o seu principal aliado e a inércia é a fonte de poder dos conservadores Assim é que veio ocorrer uma modernização conservadora que levou alguma tecnologia nova aos canaviais dominantes Nesse período que se poderia dizer imperial do Rosismo Sigismundo Gonçalves retornou ao governo de Pernambuco 19041908 e sua gestão ficou marcada pela organização da polícia de Segurança Noturna SN que o povo jocosamente chamava de segurança nenhuma Não obstante ele deu início às obras que modificaram o Recife alargando os seus logradouros Nesse tempo ocorreu o esforço para controlar a rebeldia do povo que se materializa na invenção do carnaval de rua na ampliação do número dos clubes pedestres e na emergência do frevo O número de famílias europeias na cidade fez o Recife receber a Associação Cristã dos Moços uma tentativa de evitar o contato da juventude dourada com os demais jovens da cidade Mas a principal lembrança desse governo foi que nele ocorreu o incêndio no mercado do Derby mandado construir por Delmiro Gouveia 18631917 que Rosa e Silva tinha como inimigo O novo governador eleito com o apoio de Rosa e Silva foi Herculano Bandeira de Melo 18501916 senhor de engenho em Nazaré da Mata Eleito contratou o engenheiro sanitarista Saturnino de Brito 18641929 para organizar o serviço de abastecimento de água para o Recife bem como a criação de um serviço de esgotamento As mudanças políticas nacionais e a candidatura do ministro da Guerra Emídio Dantas Barreto 18501931 ao governo do estado forçaram a postulação do próprio Rosa e Silva ao posto máximo do Executivo estadual Herculano Bandeira renunciou e Estácio de Albuquerque Coimbra 18721937 assumiu o governo entre setembro e dezembro de 1911 para presidir a eleição que confrontou o general Dantas Barreto e o representante da oligarquia Rosa e Silva Dantas Barreto nasceu na cidade de Bom Conselho fez carreira no Exército ao longo da guerra contra o Paraguai veio a tornarse escritor filósofo membro da Academia Brasileira de Letras Sua candidatura apresentou o desejo de mudança em Pernambuco Foi uma eleição fácil com jaguncos no interior do estado e revolta popular nas ruas da capital Cantavase na rua o coco O pau rolou caiu Rosa murchou Dantas subiu Sua eleição marcou o declínio de uma época A modernização do porto do Recife levou à demolição prédios seculares como a Igreja do Corpo Santo Dantas Barreto recusou a oferta de Delmiro Gouveia para iluminar a cidade com a eletricidade produzida na cachoeira de Paulo Afonso e enfrentou a necessidade de conter a população que pretendia avançar sobre o convento franciscano de Santo Antônio habitado por frades alemães quando o Brasil entrou na guerra de 1914 Promoveu a primeira vitória contra o cangaço com a polícia prendendo Antônio Silvino Sua pouca aptidão política levou seu sucessor Manuel Antônio Pereira Borba 18641928 a restabelecer algum poder ao Rosismo Manuel Borba era proveniente da Mata Norte de Pernambuco comerciante e industrial sendo um dos sócios da Fiação de Tecidos Goiana Fiteg Criou a Imprensa Oficial promoveu a melhoria do rebanho bovino introduzindo o gado nelore interferiu no exercício do poder em algumas regiões do Sertão como em Salgueiro retirando do mando a família Sá e abrindo espaço para os Soares Durante o governo de Manuel Borba mas sem interferência sua um grupo de jovens estudantes de engenharia fez no Recife a primeira transmissão radiofônica o que deu origem à Rádio Club de Pernambuco em 1919 Seus sucessores foram José Henrique Carneiro da Cunha 18671929 José Rufino Bezerra Cavalcanti 18651922 e Sérgio Teixeira Lins de Barros Loreto 18671937 Nascido em Águas Belas o magistrado Sérgio Loreto fez carreira fora do estado mas foi escolhido para evitar um racha nos grupos dominantes Sérgio Loreto governou Pernambuco com mão de ferro com o apoio das elites urbanas ligadas ao comércio Reorganizou o serviço público especialmente na área de saúde colocando à frente desta o médico Amaury de Medeiros seu genro que criou setores especializados para combater a malária a tuberculose a sífilis e para tratar as doenças mentais Abriu uma rede de hospitais que atendia aos municípios de Goiana Cabo Bonito Canhotinho Olinda Nazaré da Mata Ribeirão além de 26 postos de saúde em outras partes do interior do estado Reformou o Hospital de Santa Águeda hoje chamado Oswaldo Cruz conseguindo erradicar a varíola a febre amarela e diminuir significativamente o índice de mortalidade de crianças e adultos O quadrênio de Sérgio Loreto segundo Valdemar de Oliveira já teria valido se ele houvesse realizado apenas A validação do Derby da Avenida Boa Viagem drenada em 1924 ligada ao Recife por linhas de bondes Esta avenida construída a onze quilômetros da cidade passa a ser apontada pela elite como símbolo da modernização que chega ao estado chegando a ser comparada com a Torre Eiffel SILVA 2014 p 45 O governador seguinte veio a ser mais uma vez Estácio Coimbra Com ele termina a República Velha em Pernambuco O caldo da cana Até 1890 foram criados 10 engenhos centrais e usinas e embora não houvesse diferenças técnicas entre eles os engenhos centrais estavam proibidos de possuir terras desenvolver atividades agrícolas e antes da Abolição utilizarem trabalho escravo Quem não podia possuir um engenho central procurou modernizar o seu engenho mas esses não puderam competir com as usinas capazes de moer uma maior quantidade de cana e consequentemente produzir mais açúcar As usinas por seu turno podiam ter terras compravam as canas necessárias dos pequenos proprietários e antes 206 207 da Abolição lhes era permitido utilizar o trabalho escravo ANDRADE 2001 p 25 e 29 Aos poucos os engenhos de banguê desapareceram tornaramse de fogo morto E foram obrigados a liberar mão de obra o que promoveu uma nova distribuição populacional no estado Aqui deve ser notado que os engenhos de banguê continuaram a existir em regiões do Agreste e Sertão produzindo principalmente rapadura e cachaça O mesmo ocorreu a muitos engenhos que diminuíram o fogo de suas caldeiras embora mantivessem suficiente calor para seus tachos e alambiques tornandose produtores de rapadura e cachaça As usinas contudo não conseguiam fazer frente à concorrência que vinha do estrangeiro ou do sul do país onde a modernização já tinha se iniciado antes e se utilizava mão de obra livre importada da Europa As solicitações de apoio ao governo federal raramente eram atendidas e os empréstimos recebidos para refinarias industriais do açúcar beneficiavam a poucos especialmente a elite agrícola e usineiros LEVINE 1985 p 128 O estabelecimento dessas usinas e engenhos centrais foi acompanhado de construção de estradas de ferro para levar a cana até os locais de processamento e transportar o açúcar até a linha de ferro da Great Western cujo roteiro levava ao porto do Recife continuando a prática do produzir para exportar As estradas de ferro provocaram mudança nos meios de transporte com a saída de cena dos carros de boi e o início de aglomerados urbanos em torno das usinas alguns desses aglomerados tornaramse cidades posteriormente A modernização trazida pelas usinas e pela estrada de ferro não modernizou as relações de trabalho dos moradores dos engenhos As ferrovias e outros caminhos A ferrovia em busca do açúcar e algodão A instalação das usinas de açúcar não modificou apenas as regiões imediatamente próximas mas afetou a vida da capital que começou a receber migrantes Muitos dos que foram expulsos da área rural dirigiramse para a capital acentuando o crescimento de regiões periféricas da cidade às margens do Rio Capibaribe ocupando os morros da parte norte da cidade pois por ela passava o ramal norte da Great Western com os trens que se dirigiam até Limoeiro em busca do açúcar produzido em Paudalho Carpina ou Nazaré da Mata Além disso os trens em Carpina e Limoeiro recolhiam o algodão para as fábricas de tecidos recémmontadas na capital e vizinhança Descaroçadoras de algodão foram implantadas nesta última localidade e em Timbaúba Importante recordar que o barão de Lucena nasceu em Belo Jardim que fazia parte da Comarca de Limoeiro Outra linha da Great Western a do São Francisco deveria chegar até as usinas de Alagoas o trem sempre seguindo canaviais acompanhando os territórios de usinas Um ramal da ferrovia levou o trem até Garanhuns em 1897 18 anos após sua elevação à situação de cidade o que ocorreu após defesa do barão de Nazaré que havia passado alguns dias na região e encantouse por seu clima e pela possibilidade de uma estação de lazer A Great Western fez vir da Europa os técnicos que a prática educacional da sociedade pernambucana e brasileira não formaram e alguns trabalhadores rurais foram treinados para atividades mecânicas servindo como auxiliares de manutenção Cumpriase o que havia sido dito por Joaquim Nabuco e outros abolicionistas sem a libertação da terra as práticas escravistas seriam mantidas embora que dissimuladas em baixos salários e ausência de educação para os descendentes de escravizados Um proletariado ligado às ferrovias foi sendo gestado por onde o trem passava notadamente em Ribeirão e Jaboatão onde se concentravam as maiores oficinas que atendiam os trens que iam em direção de Alagoas A Revolução Industrial parecia ter chegado ao Recife com indústrias capazes de melhor aproveitar as possibilidades gastronômicas ativadas pelo açúcar A indústria de alimentos como a fábrica de biscoitos Pilar 1876 e a Renda Priore 1920 e a Indústria Metalúrgica Pernambucana Ipan da mesma forma que as usinas necessitavam de novas máquinas para a produção Peças de substituição passaram a ser produzidas em oficinas locais E essa demanda fez surgir algumas oficinas de metalurgia ALBUQUERQUE 2017 A mecanização da tecelagem foi o momento inicial da revolução industrial inglesa Este poderia ter sido o mesmo fado do Brasil mas a experiência de cultivo para o maquinário inglês em duas ocasiões parece 208 209 que apenas serviu para enredar um pouco mais os produtores e os exportadores A Abolição estabelecida pela Lei João Alfredo parece ter sido feita para atender os interesses do Estado e garantir a segurança aos exdominos de escravizados mas não promoveu a criação de um mercado interno que fortalecesse o capital local uma vez que os exescravizados passaram a receber salários baixos não gerando poder aquisitivo suficiente para aquecer a economia do estado Alguns anos antes da Abolição a fundação da Companhia de Fiação e Tecidos de Pernambuco Fábrica da Torre no Recife em 1874 poderia ter gerado uma industrialização ainda que dependente da tecnologia européia Seguiuse no Recife e em seu entorno o estabelecimento da Fábrica da Madalena 1876 da Companhia de Tecidos Paulista 1891 da Companhia Industrial de Fiação e Tecidos de Goiana 1894 da Fábrica de Tecidos Apipucos 1894 depois a partir de 1925 conhecida como Fábrica da Macaxeira do Cotonifício Moreno 1910 da Tecidos Pirapama em Escada 1925 em Olinda da Manufatura de Tecidos do Norte mais conhecida como Fábrica Tacaruna 1925 Antigos moradores dos engenhos desativados com a expansão das usinas de açúcar formaram o proletariado e subproletariado e se aninharam nos mangues que aterravam e nos morros destruindo a vegetação para construir suas casas formando contraste com as residências e palacetes construídos ao longo do Rio Capibaribe As fábricas produziam tecidos para o consumo da população e também estavam a serviço das usinas confeccionando sacos e estopas para o transporte do açúcar Como as famílias ricas compravam tecidos refinados em lojas especializadas em produtos chegados da Europa não havia interesse maior em aperfeiçoar a produção dos tecidos melhorar a qualidade Contudo devese lembrar que os tecidos das fábricas de Paulista Torre e Moreno eram de boa qualidade inclusive sendo vendidos em outros estados Mas a postura de pouca iniciativa que levava a produzir sempre o mesmo favorecia a não modernização das máquinas que foram se tornando obsoletas e não puderam concorrer com o que era produzido em outras regiões após meados do século XX Nos sertões algumas veredas Uma das riquezas produzidas em Cimbres na Serra do Orobubá foi o algodão No alto da Serra do Orobubá os algodoais foram cuidados por negros escravizados Tollenare informa que os produtores de algodão possuíam de 50 a 300 escravizados trabalhando nos algodais Em 1816 o maior proprietário de que se tem notícias em Pernambuco era Antônio dos Santos Coelho capitãomor instalado nas terras de Cimbres solo de excelente qualidade Ele possuía de 600 a 700 escravizados e segundo se pode concluir dominava a produção algodoeira da região RIBEIRO JUNIOR 1981 p 4 Parece que a produção de algodão possibilitava a compra da liberdade segundo Koster citado por Ribeiro Junior 1981 Depois de libertos por compra ou em consequência da Lei Áurea eles ainda continuavam presos às condições de trabalho semelhantes ao que tinham antes de 1888 Foram seus descendentes os que trabalharam nas fábricas e plantações que no início do século XX fizeram a riqueza de Pesqueira O final da escravidão parece não ter mudado as maneiras de relações sociais as condições de vida das camadas geradoras de riquezas descendentes de escravizados e descendentes de proprietários continuaram a viver as mesmas distâncias sociais construindo novas formas de exclusão dos mais pobres na fruição da riqueza gerada pelo trabalho E ainda como consequência da legislação colonial a República Velha não reconhecia a população indígena existente na serra ainda que os Xucuru houvessem enviado voluntários para defender a pátria na guerra contra o Paraguai Aplicavase aos Xucuru no final do século XIX o mesmo tratamento dado aos indígenas desde o Diretório das Povoaçoes dos Índios do Pará e Maranhão feito em maio de 1757 por Francisco Xavier de Mendonça Furtado aquele que proibia o uso de língua indígena aportuguesava os seus nomes e proibia chamar os indígenas de negros BEOZZO 1983 p 126 Dessa forma por decreto já no tempo dos portugueses o Brasil não mais tinha indígenas e suas aldeias passaram a ser denominadas vilas E esses indígenas 210 211 1 A Colonização Holandesa em Pernambuco A colonização holandesa em Pernambuco no século XVII foi um período de intensas transformações e conflitos que moldaram a história do Brasil Impulsionados pelo lucrativo comércio de açúcar os holandeses invadiram a região em 1630 buscando controlar a produção e distribuição desse valioso produto A Companhia das Índias Ocidentais fundada em 1621 foi a principal responsável pela organização e financiamento da invasão refletindo o espírito expansionista das Províncias Unidas dos Países Baixos Inicialmente as relações entre holandeses e portugueses eram comerciais mas a União Ibérica 15801640 e a proibição do comércio com os holandeses levaram à invasão Sob o governo de Maurício de Nassau 16371644 Recife experimentou um período de prosperidade com melhorias urbanas e administrativas como a construção de pontes canais e jardins Nassau também atraiu artistas e cientistas como Frans Post e Georg Marcgraf que registraram a fauna a flora e a cultura local enriquecendo o conhecimento europeu sobre o Brasil No entanto a exploração econômica e a intolerância religiosa geraram resistência entre os colonos portugueses e lusobrasileiros A Insurreição Pernambucana 16451654 liderada por figuras como João Fernandes Vieira André Vidal de Negreiros e Henrique Dias marcou a luta pela expulsão dos holandeses Batalhas como a dos Guararapes 16481649 foram decisivas para a vitória lusobrasileira em 1654 que pôs fim ao domínio holandês restaurando o controle português sobre a região Apesar da breve duração a colonização holandesa deixou marcas profundas na cultura e na economia de Pernambuco A produção de açúcar principal motor econômico da região foi reorganizada e modernizada pelos holandeses que introduziram novas técnicas e tecnologias impulsionando a produção e o comércio A arquitetura e o urbanismo de Recife também foram influenciados pelo estilo holandês com a construção de edifícios e canais que ainda podem ser vistos hoje testemunhando a presença holandesa Além disso a presença holandesa contribuiu para a formação de uma identidade pernambucana distinta marcada pela resistência e pela luta contra o domínio estrangeiro A Insurreição Pernambucana é considerada um dos primeiros movimentos de caráter nacionalista na história do Brasil simbolizando a luta pela autonomia e a construção de uma identidade própria A colonização holandesa em Pernambuco foi um período crucial na história do Brasil com consequências duradouras para a região e para o país alterando dinâmicas sociais econômicas e culturais que se estenderam por séculos moldando o futuro do Nordeste brasileiro A invasão holandesa em Pernambuco fez parte de um contexto maior de conflitos europeus nos quais as potências disputavam territórios e rotas comerciais em todo o mundo refletindo a importância estratégica do Brasil no cenário global 2 O Ciclo das Revoluções Libertárias No final do século XVIII e no início do século XIX o Brasil fervilhava em um caldeirão de mudanças e agitações O ar estava carregado de insatisfação e o desejo por um país livre e igualitário pulsava nos corações dos brasileiros O domínio português outrora aceito agora era visto como um fardo opressor e a busca por autonomia se tornava cada vez mais urgente A Inconfidência Mineira liderada pelo visionário Tiradentes foi a faísca que acendeu a chama da rebelião Inspirados pelos ideais iluministas de liberdade e igualdade que ecoavam da Europa os inconfidentes ousaram desafiar o poder da coroa portuguesa pagando um alto preço por sua coragem Logo em seguida a Conjuração Baiana irrompeu com ainda mais força reunindo uma massa de pessoas do povo escravizados e libertos que clamavam pelo fim da escravidão e por uma sociedade onde a cor da pele não ditasse o destino de ninguém A ousadia dos conjurados baianos assustou as elites e mostrou que o desejo por igualdade não era apenas um anseio das classes mais abastadas A Revolução Pernambucana de 1817 elevou a ousadia a um novo patamar com os revolucionários chegando a instaurar um governo próprio ainda que por um breve período A experiência pernambucana demonstrou que o desejo de autonomia era uma força crescente em todo o território brasileiro impulsionando a luta pela independência A chegada da família real portuguesa ao Brasil em 1808 e a abertura dos portos trouxeram algumas mudanças superficiais mas não foram suficientes para aplacar a sede de liberdade que consumia o país As revoltas foram brutalmente reprimidas mas as ideias de independência como sementes ao vento encontraram solo fértil em cada canto do Brasil A declaração da independência em 1822 foi o florescer dessas sementes um grito de liberdade que ecoou por todo o continente As revoltas que a precederam foram cruciais para a formação da identidade brasileira moldando um povo que aprendeu a lutar por seus direitos e a construir um futuro mais justo Cada revolta com suas peculiaridades e nuances contribuiu para a construção do mosaico que é o Brasil A Inconfidência Mineira a Conjuração Baiana e a Revolução Pernambucana entre outras foram marcos na história do país demonstrando a força da união e a importância de lutar por um ideal Os ideais de liberdade e igualdade que impulsionaram esses movimentos permanecem vivos na alma do Brasil lembrandonos que a luta por um país mais justo é um legado que nos foi deixado por aqueles que ousaram sonhar com um futuro melhor 3 Pernambuco na República Velha A República Velha período que se estendeu de 1889 a 1930 foi um capítulo marcante na história do Brasil e de Pernambuco caracterizado por profundas transformações e intensos contrastes Em Pernambuco esse período foi especialmente singular com a forte influência das elites agrárias e a consolidação do poder dos coronéis que exerciam controle político e social através do voto de cabresto e da violência A economia pernambucana centrada na produção de açúcar enfrentou desafios significativos devido à concorrência internacional e às crises econômicas que abalaram o país A seca um flagelo recorrente no sertão agravava a miséria e impulsionava a migração em busca de melhores condições de vida O cangaço liderado por figuras emblemáticas como Lampião emergiu como uma forma de resistência à opressão e à violência desafiando a ordem estabelecida e expressando o descontentamento das camadas mais pobres da população A Igreja Católica desempenhou um papel crucial na sociedade pernambucana exercendo grande influência religiosa e política Padre Cícero líder carismático no sertão tornouse uma figura central na vida social e política da região A cultura popular floresceu nesse período com manifestações artísticas como o frevo e o maracatu que expressavam a identidade e a criatividade do povo pernambucano Essas manifestações culturais resistiram às dificuldades e se tornaram símbolos da rica herança cultural do estado A República Velha foi um período de grandes transformações para o Brasil como um todo com a transição da monarquia para a república e a consolidação do sistema republicano No entanto em Pernambuco essas transformações vieram acompanhadas de desafios sociais significativos como a seca e o cangaço que marcaram profundamente a vida da população Apesar das dificuldades a República Velha também foi um período de modernização da economia e expansão da infraestrutura em Pernambuco com a construção de estradas ferrovias e outras obras públicas No entanto os benefícios dessas transformações não foram distribuídos de forma equitativa resultando em desigualdades sociais persistentes A República Velha foi um período de contrastes com riqueza para poucos e dificuldades para muitos mas também de importantes transformações sociais e culturais em Pernambuco A memória desse período continua viva na história do estado moldando a identidade e a cultura pernambucana

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A colonização holandesa em Pernambuco fragmentos de uma história do Atlântico Rômulo Luiz Xavier do Nascimento Em 15 de fevereiro ao amanhecer viuse a três léguas a armada sotaventeada do porto do Recife para o forte mas o vento lhe foi dando lugar para acercarse Na armada inimiga vinham 16 baixéis com 16 barcaças e duas chalupas cada um destinadas a deitar a gente em terra e com ela o seu general Teodoro Vanuvardemburg Wanderburch Eram 3600 soldados e 400 marinheiros bem armados com ordem de que quando o resto da armada estivesse dentro da barra do porto principal do Recife se apartassem para deixar a gente nas praias da banda do Norte ou do Sul COELHO 2003 p 27 Apesar de exagerado nos números uma vez que a Companhia das Índias Ocidentais WIC chegou com 3 mil homens o relato acima feito pelo donatário da Capitania de Pernambuco Duarte de Albuquerque Coelho nos dá bem uma noção do que se avizinhava de nossas praias e vilas Quando se avistou da costa de Pernambuco a enorme esquadra holandesa numa manhã de fevereiro de 1630 houve temor mas não surpresa por parte dos lusobrasileiros A ocupação de Salvador cinco anos antes já havia sido um sinal Também a geopolítica internacional prenunciava a invasão da WIC a Pernambuco A frota se dividiu em duas Uma parte desembarcou as tropas na Praia de Pau Amarelo norte de Olinda e logo marchou em direção a esta vila tendoa encontrado vazia A frota em frente ao porto do Recife penou uns dois dias A guerrademato era a típica forma de combate travado nas matas de Pernambuco ou em qualquer região de Mata Atlântica e que exigia uma preparação e uma estratégia de combate adaptadas ao meio Os holandeses estavam habituados à guerra nos campos europeus num clima temperado e domínio vegetacional diverso do meio tropical no Novo Mundo o preço do açúcar e do tabaco teria aumentado consideravelmente transformandoos em artigos de luxo consumidos por uma minoria da elite europeia EMMER 2006 p 18 Isso explica muito dos dilemas vividos pelo primeiro capitão donatário de Pernambuco e seus filhos na tentativa de incrementar um tráfico regular para Pernambuco como condição da expansão dos engenhos nas várzeas do Capibaribe e Beberibe À medida que as fronteiras do açúcar iam se alargando nas terras da família de Duarte Coelho ia também aumentando a quantidade de refina rias de açúcar nos Países Baixos No final do século XVI crescia o interesse holandês pelo transporte e refino do açúcar de Pernambuco Por aí também percebemos ligação atlântica entre Pernambuco e Holanda Por aí também percebemos que a invasão a Bahia 1624 e Pernambuco 1630 não fora segundo Engel Sluiter uma atitude não premeditada ou um simples impulso de corsário Apud MELLO 1985 p 10 A passagem do século XVI para o XVII é fundamental para se entender a expansão do capitalismo e o estreitamento de laços econômicos entre as várias regiões do mundo A Capitania de Pernambuco não ficaria imune a isso No livro O Atlântico de Amsterdã Michiel van Groesen demonstrou como a ocupação de Pernambuco moldou a visão que os moradores de Amsterdã passaram a ter do Atlântico Por intermédio da análise de pequenos jornais da época o autor demonstrou que as notícias da guerra e do governo de Pernambuco retiraram do imaginário coletivo holandês a ideia de uma América portuguesa fantástica Dessa forma o cotidiano da administração holandesa mostrava o pragmatismo o trabalho diário o esforço de administrar um lugar distante Claro que as notícias que chegavam de Pernambuco nem sempre eram verdadeiras Não raro os jornais holandeses manipulavam os acontecimentos com o fim de influenciar o valor das ações da WIC Destacase no referido estudo a percepção da existência de uma certa cultura de informação presente num centro urbano importante na Europa Setentrional e não a análise de dados de exportação ou acontecimentos da vida política ao modo de uma história positivista GROESEN 2017 O que vemos aqui nada mais é do que um mundo ou uma cultura de olho no outro E era dessa forma que o Atlântico se movimentava Como qualquer história a que trata da presença holandesa no Brasil não pode ser isolada espacial e temporalmente Por mais que a historiografia tradicional nos tenha colocado marcos temporais a presença holandesa no Brasil rompe com as barreiras de uma data precisa e de uma geografia definida com exatidão Assim apenas para facilitar a compreensão precisamos local e data de uma história que está longe de ser provinciana Pelo contrário a presença holandesa no Brasil dialoga com uma espacialidade que abraça a América portuguesa a Europa Setentrional e a costa ocidental africana Ela engloba enfim desde as matas de Pernambuco bem como as ruas estreitas e portos holandeses até as praias e interiores da Costa do Ouro e Angola Em todo esse espaço mediado pelo Atlântico se movimentaram homens ideias e coisas formando uma das mais importantes experiências de trocas entre culturas antes desconhecidas umas das outras Após terem passado quase um ano na Bahia em 1625 os holandeses atacaram a Capitania de Pernambuco onde permaneceram por quase 24 anos De fato Pernambuco foi o centro da administração da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil o que não diminui a importância dos outros pontos conquistados a partir daqui A Capitania de Pernambuco era tida como o centro econômico da América portuguesa ao passo que a Bahia era o centro político Na virada do século XVI para o XVII a produção açucareira explodia e abastecia quase dois terços do mercado europeu Pernambuco também ocupava uma posição estratégica no Atlântico Sul o que permitiu aos holandeses várias expedições bemsucedidas a partir do porto do Recife A vinda da WIC para Pernambuco apesar de sugerir um propósito específico tinha um caráter sistêmico Tanto que nas instruções da Companhia o plano era a partir de Pernambuco tentar reconquistar a Bahia e se possível o Rio de Janeiro Maurício de Nassau tentou seguir esse plano numa campanha feita a Ilhéus mas foi malsucedido A dimensão atlântica de Pernambuco em sua relação com a costa africana e até com o Oriente se materializava pela existência do porto do Recife de bela formação natural e indispensável no comércio da capitania com o mundo Na verdade Recife era o porto da vila de Olinda sede da capitania com câmara e homens influentes na plantation e no comércio de grosso trato Até a chegada dos holandeses em 1630 o Recife não existia como vila e sim como praticamente um arruado de umas 80 famílias de pescadores oficiais mecânicos e estivadores do porto O nervo urbano mesmo era Olinda que junto com Salvador estava aberta ao mundo Para termos uma noção da dimensão atlântica de Pernambuco temos que vários navios de Hamburgo já frequentavam o porto do Recife desde o século XVI MELLO 1993 p 2185 A própria condição de porto negreiro dotava Pernambuco de uma dimensão internacional O comércio de escravos com a Costa da Mina e Angola se intensificou com o aumento da produção açucareira No final do século XVI já se tinha aqui uma economia relativamente consolidada com uma classe mercantil e agrária com atividade intensa No plano da expansão e ocupação efetiva dos portugueses do litoral ao interior do Brasil tanto Pernambuco como a Bahia desempenharam um papel importante A partir de Olinda por exemplo várias campanhas militares partiram em direção ao Maranhão Muitas famílias da Capitania de Pernambuco se estabeleceram lá e também no Rio Grande do Norte e no Ceará Em direção ao sertão deuse o mesmo A expansão para o interior empreendida por pernambucanos e baianos só foi interrompida pela ocupação holandesa Depois da expulsão seguiramse as incursões em busca de metais preciosos e espraiarmento da pecuária ao mesmo tempo em que se empreendiam guerras às comunidades indígenas do interior Foi a chamada Guerra dos Bárbaros Os portugueses estavam ao mesmo tempo do outro lado do Atlântico Em 1625 faziam descrições de Serra Leoa como os holandeses faziam descrições da Capitania de Pernambuco Conhecer para dominar BRÁSIO 1953 p 9195 MELLO 1985 p 3539 A história da Holanda com o Império português se cruzou de forma decisiva no século XVII Esses países não tinham problemas entre si No entanto como a União Ibérica transformou Portugal numa possessão espanhola e a Holanda entrou em conflito com a Espanha Portugal e suas posses pagaram um preço muito alto Dessa forma já desde fins do século XVI os holandeses vinham minando as possessões portuguesas no ultramar desde a Ásia até a América portuguesa Na segunda metade do século XVI já haviam montado várias companhias pequenas de comércio as voorcompanpies précompanhias ou Compagnies van Verre companhias para lugares distantes Essas por sua vez realizaram uma sequência de intervenções que atingiram em cheio o antigo comércio português das especiarias Mas não ficaram só aí No alvorecer do século XVII criaram a Companhia das Índias Orientais VOC e em 1621 a Companhia das Índias Ocidentais Ambas com grande aporte militar e financeiro de particulares e do Estado holandês Essas grandes companhias de comércio que funcionavam como companhias de compra e venda de ações congenimavam atividade militar e comercial com o aval do governo holandês Eram o próprio Estado e empreendimento particular em movimento pelo mundo Na verdade a história das lutas dos holandeses contra os portugueses se iniciou com as investidas holandesas contra São Tomé e Príncipe em 1598 e foi até 1663 com a tomada das colônias portuguesas no Malabar Importante ressaltar que a criação das companhias de comércio não foi obra apenas dos holandeses dado que existiam companhias inglesas e de outras partes da Europa do Norte mas no caso dos Países Baixos elas atingiram um grau superlativo de importância no jogo econômico mundial daquela época sendo a Holanda um modelo de um capitalismo nascente na Europa setentrional O sociólogo Immanuel Wallerstein considera que os holandeses em dado momento pouco antes do século XVII tornaramse um exemplo perfeito de hegemonia capitalista nos ramos do comércio indústria logística e capital financeiro Essa posição a Holanda segurou por quase todo o século XVII considerado por muitos como o século de ouro dos Países Baixos Esse estado de coisas só seria quebrado pela ascensão da Inglaterra na economiamundo Durante a presença holandesa no Brasil Amsterdã florescia como um grande centro econômico e cultural As cidades próximas de Roterdã Leiden e Haia formavam um cinturão urbano da mais alta renda per capita do mundo ocidental Aliada à importância econômica vinha por extensão a vida cultural É certo que com dinheiro sobrando as manifestações do espírito fluem como um rio largo Não fora diferente nas maiores cidades holandesas do litoral Amsterdã era o centro de tudo Para lá iam artistas comerciantes escritores publicistas No século XVII o alto índice de alfabetização de 86 87 sua população facultou o florescimento de editoras Assim jornais e livros tinham ali um grande mercado Na verdade todo esse giro de informações nem sempre verídicas influenciavam no valor das ações das companhias Uma grande perda no Oriente fazia os preços das ações da VOC baixarem Por outro lado a ocupação de Olinda em 1630 faria os preços das ações da WIC subirem Nessa gangorra financeira não diferente do que vemos hoje tanto pequenos como grandes investidores arriscavam sua sorte no alémmar sem saírem de casa É fato que quem perdia mais eram os mais pobres que eram boa parte da classe média holandesa daquele tempo Nesse espaço social e econômico se desenvolveu toda uma cultura urbana e burguesa que caracterizou o povo holandês a partir de então E isso se refletiu na arte e grande produção de livros em Amsterdã SCHAMA 1992 As próprias obras de arte de pintores como Rembrandt e Vermeer foram reflexo desse espírito burguês Na verdade se quisermos expandir mais um pouco o nascente mundo burguês típico de Amsterdã podemos chegar a Londres e ao norte e oeste da França WALLERSTEIN 1974 p 45 Para atacar os portugueses as Companhias das Índias Orientais VOC e Ocidentais WIC apontaram sua artilharia para o comércio de especiarias do Índico o tráfico de escravos marfim e ouro da costa oriental africana e o vultoso comércio de açúcar do Brasil onde só Pernambuco era responsável por dois terços do que era consumido nas mesas europeias Os navios holandeses estavam nos principais portos do mundo todo desde bem antes da ocupação de Pernambuco em fevereiro de 1630 Eles tinham uma longa tradição em navegação e comércio marítimo além de uma indústria naval muito à frente da de qualquer país de seu entorno Os capitães de navios e marinheiros holandeses foram antes de 1630 bem antes até adquirindo conhecimento pormenorizado das praias produtos e pessoas dispostas ao longo do vasto império holandês desde a planície de Malaca até Pernambuco A chegada deles ao Brasil não foi uma surpresa Desde o início do século XVII relatórios encomendados pelo rei da Espanha apontavam no caso de Pernambuco para uma possível ocupação da capitania com um destacamento desembarcando ao norte da vila de Olinda e a ocupando que foi o que de fato aconteceu Olinda era mal guarnecida e a chegada de tropas holandesas pelo norte já era uma pedra cantada desde há muito Na África desde a Costa do Ouro até o Delta do Níger os holandeses atuaram a partir do Forte Mouri construído por eles em 1611 Nas praias africanas se apercebiam da geografia local das populações nativas e se empolgavam com um largo comércio de marfim e ouro Pouco a pouco foram deixando os escrúpulos de lado e se enfrentando no comércio de gente Todo esse trânsito pelo Atlântico dotou os mercadores e militares holandeses de um conhecimento grande do regime de ventos e rotas tanto longas como curtas Passaram a dominar as navegações de longo curso e de cabotagem o que fizeram com grande maestria nos portos do Brasil A ocupação efetiva de portos portugueses no Atlântico do século XVII não foi nada mais do que a conclusão de uma longa ópera começada no último quartel do século XVI Nesse painel maior é que se insere a administração brasílica pelos holandeses tendo como centro o Recife Cotidiano e desinteração de culturas Atingindo a cidade subi ao alto em direção ao convento dos jesuítas com a vanguarda e o batalhão havia barricadas por trás das portas Vendonos subir com tanta coragem e abrir essas portas todos quanto ali se achavam fugiram igualmente deixando diversos mortos e feridos enquanto nós também tivemos a nosso turno alguns mortos DOCUMENTOS HOLANDESES 1945 p 127 Eis o relato inicial da tomada de Olinda pelo primeiro governador do Brasil holandês o coronel Wanderburch A partir daí passaram a atacar o pequeno povoado do Recife e em seguida a Ilha de Antônio Vaz Tendo feito isso concluiu Wanderburch que assim a cidade com todas as suas fortalezas e praças fortes sem nenhuma exceção foi submetida Idem p 28 Tudo parecia fácil nesse início bastante comemorado pelos holandeses muito ciosos de si Mas não demoraria muito para caírem na real e 88 89 verem o inferno em que se meteram Os primeiros anos da presença holandesa em Pernambuco foram muito difíceis A tropa padecia com moléstias tropicais falta de víveres e apoio bélico O primeiro obstáculo que os militares da Companhia das Índias Ocidentais tiveram que enfrentar foi o clima e o domínio vegetacional bem diversos do que tinham no teatro de guerra europeu Apenas para efeito de exemplo imaginem um alemão ou amsterdamês marchando por horas numa mata tropical ou tendo que passar por um manguezal sem molhar a pólvora Logo nos três primeiros meses o governadormilitar escrevia aos Estados Gerais dos Países Baixos dando conta das condições e possibilidades de fortificação da vila de Olinda e do Recife e Santo Antônio Eram várias frentes para se defenderem dos ataques lusobrasileiros que eram constantes Wanderburch reclamava que mal tinham tempo para dormir porque os inimigos nos obrigam a um estado de permanente vigilância Muito trabalho começou a ser feito num grande esforço para construir as fortalezas do Recife e Antônio Vaz que ganharam corpo a partir dos projetos do engenheiro Commerstein Apesar disso o governador avaliou que para proteger o Recife fossem necessários uns 35 mil homens já que ele estava muito exposto na parte sul Idem p 39 Tudo isso era muito custoso para a WIC Quando começou a estação das chuvas em maio os holandeses começaram a sentir o drama que era se movimentar com material de construção em terreno enlameado A tropa se dividia entre a guerra e a construção de um mundo novo Em julho de 1630 as condições de fortificação do Recife e Antônio Vaz já eram bem melhores Só um ataque de indígenas a mando dos portugueses foi tido como assustador por parte de Wanderbuch Ataque em que eles em menos de 15 minutos escalaram a muralha construída na Ilha de Santo Antônio e invadiram o acampamento Mas foram duramente repelidos Idem p 45 Vale ressaltar que o governadormilitar era assessoradopor um conselho de civis o Conselho Político Politicqe Raaden A Holanda se constituíra numa república que se tornava independente dos Habsburgos Portanto queria firmar uma forma de governança em que o poder civil estivesse acíma do militar Historicamente havia sofrido bastante sob a tutela do Duque de Alba preposto de Filipe II nos Países Baixos Por isso a primazia do poder civil sobre o militar fazia parte do novo processo do nacionalismo holandês ainda em construção A própria organização das companhias de comércio era reflexo disso Tanto na VOC como na WIC houve sempre uma governança civil na qual juristas e grandes comerciantes tomavam parte Isso gerou grande insatisfação por parte dos moradores de Pernambuco acostumados a uma cultura política em que a nobreza militar exercia os ofícios públicos No caso holandês mesmo Nassau que era nobre e de formação militar veio para o Brasil na condição de administrador contratado e era assessorado igualmente por um conselho civil o Alto Conselho Hooge Raaden Nesse sentido as companhias eram a nova república dos Países Baixos em movimento Voltando à vida no Recife neste antigo burgo triste e sem vida temos que aqui viveram os holandeses extremos terríveis da escassez de víveres segundo José Antônio Gonsalves de Mello Foram quase três anos passando fome sem achar refresco para as tropas sem acesso a madeira para construção e completamente dependentes da ajuda exterior MELLO 1987 p 41 Numa carta enviada aos Países Baixos pelo governador Wanderburg ainda em fins de 1631 consta que escorbuto ainda matava vários soldados e marinheiros desprovidos de frutas cítricas Documentos holandeses 1945 p 89 Novos que eram os holandeses nas guerras de mato e emboscadas num mundo tropical tremiam de medo de serem surpreendidos pela ferocidade desses ataques Num primeiro momento houve uma grande discussão para saber onde seria o centro administrativo do Brasil holandês Olinda fora descartada em função da dificuldade em defendêla Também pesava o fato de estar a uma légua do porto do Recife Por questões topográficas ficaram com o Recife A partir de 1631 com o incêndio e destruição da vila de Olinda então sede da Capitania de Pernambuco Recife começaria a mudar de feição ganhando ares de uma cidade planejada projeto esse que se concretizaria com a vinda de Nassau em 1637 Não é descabido considerar que muitos entulhos de Olinda serviram para se aterrar e construir novos prédios do novo Recife que surgia A destruição de Olinda era um soco no estômago 90 91 da nobreza da terra Olinda era símbolo da pujança portuguesa e pernambucana no Atlântico A sua câmara era uma das mais importantes do Brasil ombreada somente pela de Salvador sede do Governo Geral Uma vez no Recife os holandeses procuraram recriar uma pequena Amsterdã com uma Rua do Mar Zeestraten e uma Rua do Vinho Weinstraten tal qual a sua congênere europeia De fato a cidade não é só a sua estrutura física mas a vida que há nela Pouco a pouco conforme a população e imigração ia aumentando o Recife se encheu de vida com tabernas cervejaria feiras comércio no pé do porto De um simples arruado Recife passou a ter alma Fora do Recife as campanhas militares eram muito tímidas Os holandeses não dominavam ainda a guerrademato Matias de Albuquerque irmão do capitão donatário e exímio estrategista militar fugiu para o interior e construiu um sistema de defesa batizado de Arraial do Bom Jesus Durante quase cinco anos os lusobrasileiros do Arraial fizeram da vida dos holandeses um inferno Com o passar do tempo os holandeses passaram a entender e praticar a guerrademato O primeiro governador do Brasil holandês o coronel Wanderburch foi um dos que mais cedo entenderam e espelharam a tática brasílica de guerra A partir dos anos de 16331634 os holandeses estavam mais adaptados ao clima e à mata úmida Também contavam com a ajuda de moradores locais nativos brasilianen e escravos fugidos de seus senhores Fora do Recife seguiuse a tomada da vila de Igarassu Goiana Itamaracá e da Paraíba Nesse sentido fecharam e ocuparam os portos por onde os lusobrasileiros recebiam ajuda da Europa e remetiam a produção de açúcar remanescente dos engenhos mais próximos ao Arraial Na verdade o Arraial servia também para proteger os engenhos e roças de mandioca da várzea do Capibaribe estratégia que deu certo nos primeiros anos Na medida em que conquistavam as vilas e povoados ao norte do Recife os holandeses iam travando conhecimento com os moradores que não fugiram para o Arraial e iam também conhecendo cada vez mais o interior os costumes os rios e as possibilidades de ganhos econômicos Não foi à toa que muitos militares soldados inclusive se tornaram comerciantes livres vrijluiden após o serviço militar de três anos no Brasil Dessa forma muitos passaram a fornecer produtos os mais diversos para os armazéns da WIC no Recife Caixas de açúcar frutas madeira entre outros gêneros começaram a ser fornecidos pelos vrijluiden a partir de 16341635 na medida em que a guerra arrefecia ao norte do Recife Não demorou para que se formasse um quadrilátero comercial entre o Recife Igarassu Itamaracá e Goiana Entre essas vilas circularam grandes e pequenas embarcações típicas da paisagem dos Países Baixos Assim iates e chalupas passaram a disputar espaço com as jangadas e barcaças lusobrasileiras O aumento da circulação dessas embarcações menores dinamizou um pequeno comércio próximo ao Recife Frutas caixas de açúcar paubrasil e outras mercadorias passaram a ser comercializadas largamente por exmilitares ou funcionários da Companhia que após três anos de serviço militar pediam desligamento para tentar a sorte nos pequenos comércios De fato a experiência militar pregressa dotou essas pessoas de conhecimento mais preciso das pessoas e lugares do interior Logo sabiam para onde podiam retornar para comerciar algo ou com quem podiam contar Nesse jogo difícil da guerra havia espaço para entendimentos Muitos portugueses optaram por ficar e não fugiram para o Arraial Velho com Matias de Albuquerque Em Itamaracá muitos até permaneceram e aceitaram dentro do possível a governança holandesa Os anos de 1635 e 1636 assistiram a uma mudança de panorama na presença holandesa no Brasil Depois da queda do Arraial Velho do Bom Jesus muitos holandeses migraram para o Recife Esse povoado que antes era praticamente um arruado passara a crescer vertiginosamente Logo uma grande densidade demográfica na vila jogava para a administração superior uma grande responsabilidade Ao mesmo tempo muitos oficiais mecânicos e judeus vieram tentar a vida na conquesten Por essa época também a WIC recebeu vários padeiros e pedidos de desligamento de soldados Os anos de 1635 e 1636 são bem diversos dos anteriores quando muitos achavam que a conquista estava por um fio A perda do Forte de Nazaré cessou o último porto por onde a gente do Arraial poderia receber reforços A vinda de Nassau no início de 1637 jogou uma pá de cal na resistência lusobrasileira agora já amotinada no sul da capitania Restoulhe a debandada para a Bahia 93 92 Maurício de Nassau não econtrou a capitania completamente destruída Os dois anos anteriores resgistram os kleine profijten pequenos lucros havendo um estabelecimento de um sistema regular de navegação fluvial a prova de que o conde alemão não tive que construir um mundo do nada como quer uma certa historiografia tradicional do tema É fato que muita coisa teria que ser feita como o restabelecimento da produção de açúcar e do comércio de escravos para Pernambuco Durante os primeiros anos de guerra muitos cativos fugiram para o mato Não foi à toa que essa época foi marcada pelo aumento considerável dos mocambos dos Palmares No entanto esses mesmos anos de guerras constantes serviram para os holandeses se adaptarem ao clima e conhecerem os lusobrasileiros com quem poderiam contar numa fitura administração das localidades No processo mesmo da reconstrução e leilão dos engenhos alguns desses elementos se apresentaram às autoridades da Companhia no Recife Obviamente eles não apareceram do nada A fase dos kleine profijten permitiu que os holandeses os conhecessem Assim os nomes de lusobrasileiros que aparecem nas atas do governo holandês após a chegada de Nassau são geralmente os mesmos dos anos de 16351636 Como segundo o historiador Carlo Ginzburg a história se guia pelos nomes vamos ver aqui alguns deles O ano de 1635 mal começava e já se podia encontrar em Pernambuco um clima diferente da guerrilha constante Em abril desse ano a WIC comprou açúcar do português Antônio Rocha Também por esse mesmo tempo o assistente de padeiro Cornelius Ketel requeria a condição de cidadão livre uma vez que o seu tempo de serviço para a WIC já havia expirado Dois dias depois um morador de Muribeca sul do Recife Gonsalvo de Almeida chegava ao Recife em seu barco trazendo consigo duas caixas de açúcar branco Enquanto se fazia guerra contra o Arraial do Bom Jesus holandeses e lusobrasileiros iam realizando mesmo que timidamente um pequeno comércio A administração fora do Recife ia se desenhando Prova disso foi que em 30 de abril de 1635 a WIC nomeava um novo comissário de bens espécie de almoxarife para Goiana algo impensável pouco tempo atrás Nesse mesmo dia um burocrata da administração superior Willen Schott chegou ao Recife dizendo ser necessário mandar colocar no Rio Jangada sul de Pernambuco um grande barco para o transporte de açúcar Sobre isso foi decidido que o açúcar viesse por terra mesmo dado o maior risco de emboscada no litoral sul de Pernambuco As trocas e a administração do cotidiano se tornavam mais dinâmicas e se dividiam entre a guerra e o pequeno comércio Tanto que em maio desse mesmo ano a WIC vendera ao português Baltasar Ferdinandt material para ele construir uma embarcação para um dos diretores da WIC no Recife Provavelmente essa embarcação seria utilizada por ele para alguma atividade paralela de comércio O que importa aqui é a contratação de mão de obra local pelos holandeses Ata do Alto Conselho 3004 e 01051635 Em maio de 1635 um vrijleiden holandês Roeland Carpentier já fornecia à WIC paubrasil Ata do Alto Conselho 01051635 Isso prova que se tratava de alguém que conhecia bem o interior da capitania De fato os primeiros anos de guerrilha permitiram aos holandeses conhecerem as possibilidades de comércio futuro e sonharem com uma carreira mercantil Nem todos que se desligaram da WIC e obtiveram a condição de vrijleiden conseguiram ter êxito mas muitos tentaram Ainda em maio os cruzadores De Goutvinck e De Spreeuw iriam para a freguesia de Goiana norte do Recife para serem carregados de açúcar e levavam 1200 florins para o senhor Ippo Eisens responsável pela administração local Ata do Alto Conselho idem Esse episódio é muito sintomático em duas questões A primeira delas é o pequeno comércio que se fazia mais dinâmico nas freguesias ao norte do Recife A segunda é a necessidade de monetarização da economia que foi um problema constante durante toda a presença holandesa no Brasil De qualquer forma muitas dessas embarcações de menor porte iates pequenos cruzadores e chalupas passaram a levar bens e correspondências entre os administradores das freguesias do interior e o centro da administração no Recife Antes mesmo da vinda de Nassau já se vivia um clima de relativa paz entre a guerra e os pequenos lucros bastante comemorados pela WIC Nesse momento dos holandeses em Pernambuco interesses particulares e da própria Companhia se entrecruzavam Os holandeses ajudavam a WIC como fornecedores e prestadores de serviço e recebiam desta uma boa retaguarda militar e institucional A construção e 95 94 reforma de fortes contou muito com o serviço terceirizado em que pequenos empreiteiros também queriam a sua parte no bolo Um movimento interessante pode ser observado a partir de 11 de maio de 1635 que foi a vinda para Pernambuco de muitos assistentes de padeiro e padeiros profissionais As fontes holandesas estão cheias desses pedidos Os assistentes eram contratados pelo salário de 14 florins por mês Esse foi o caso de Harmen van Eijssens Jan de Woerden Jan de Fijn e Gerrit Strijte Já Jan Barentsen e Lambert Everts passariam a receber 17 florins na condição de padeiroschefe Idem 11051635 A explosão de padarias ocorreu de Pernambuco até a Paraíba Isso era sinal de aumento das campanhas militares que demandavam a provisão das tropas e de civis O aumento da frequência de carregamento de trigo dos Países Baixos também permitia a pulverização das padarias e as possibilidades de trabalho para os holandeses pobres De alguma forma a economia girava em paralelo à guerra de resistência Pernambuco se abria aos poucos para os groote profijten grandes lucros Em novembro de 1635 Moses Navarro cristãonovo português e comerciante livre com larga experiência no transporte e negócio de açúcar e tabaco requeria a condição de corretor na comissão de todos os comerciantes dentro dos limites das conquistas da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil Isso foi concedido dada a sua experiência no ramo Também por essa época os contratadores de paubrasil Roelant Carpentier e Hans Louissen requeriam vinho como pagamento da madeira fornecida Idem 06111635 De certo tinham boas oportunidades de venda dessa bebida Isso também denota a pouca circulação de dinheiro na conquista Até na atividade canavieira os holandeses passaram a ter interesse Ainda em novembro de 1635 os funcionários da WIC Sigismund van Schoppe e o fiscal Nicolaas de Ridder se ofereceram para restaurar e adquirir o engenho abandonado de João Paes Barreto no Cabo de Santo Agostinho Também lhes foram oferecidos os engenhos Velho e Guerra Idem 08111635 No ano de 1636 continuam as atividades dos pequenos lucros mas muito comemorados pela Companhia Muitos empregados da WIC continuavam a pedir desligamento findo o contrato de trabalho para se aventurarem no pequeno comércio e em outras atividades Do lado lusobrasileiro as coisas também se dinamizavam Em janeiro desse ano o português Diego Fernandes pediu permissão para usar um barco da WIC para enviar caixas de açúcar vinho e duas toneladas de biscoito para a Paraíba Esse entendimento entre as duas partes que a historiadora Lúcia Xavier chamou de socialização era um indicativo de que Nassau não contraria um Pernambuco completamente destruído Claro que as atividades econômicas de lusobrasileiros eram seguidas de perto pelos fiscais da WIC Fernandes não usaria a embarcação de graça mas sob o pagamento de frete Idem 17011636 Até na atividade de prático e timoneiro havia lusobrasileiro servindo à WIC em Pernambuco Esse foi o caso de Manuel Graci que desde as campanhas da conquista da Paraíba e do Cabo de Santo Agostinho que remontam aos anos de 16331634 estava nessa função sem salário fixo Resolveuse então darlhe o vencimento de 38 florins por mês Era um bom salário uma vez que o prático conhece bem as entradas dos portos e barras podendo por isso evitar um encalhe de navio de carga ou militar Idem 21011636 O processo de retomada da produção açucareira foi particularmente interessante porque nos mostra o custo da montagem de um engenho e a divisão técnica de funções na plantation Nesse processo as fintas holandesas nos mostram quanto deveria ganhar um mestre de açúcar função que pagava muito bem já que muitos técnicos do açúcar haviam fugido com a invasão Outra função muito bem paga era a de capitão do mato A retomada da produção e do tráfico de escravos correu paralelamente a partir do ano de 1637 No ano seguinte a WIC comemorava as primeiras safras depois da Guerra Velha Nesse momento Nassau e o Alto Conselho que o assessorava tinha muito a fazer Um dos desafios seria consolidar a conquista no Maranhão e na região do São Francisco Mas antes mesmo de chegarem ao domínio da fronteira sul a área que hoje corresponde ao estado de Alagoas se mostrava como um grande entrave ao estabelecimento da boa ordem em vilas como Porto Calvo e nos povoados das duas Alagoas Aquela área era muito cobiçada porque lá se desenvolvera há muito tempo a pecuária a economia do tabaco e a produção em grande quantidade de farinha de mandioca Lá havia também produção de açúcar mas insignificante 97 96 porque existiam poucos engenhos Alagoas se tornou um problema porque era corredor de campanhistas lusobrasileiros que atravessavam o São Francisco vindos da Bahia para incendiarem engenhos em Pernambuco e Paraíba Os moradores dessa região sofriam bastante com os ataques dos quilombolas dos Palmares muitos dos quais havendo aproveitado os primeiros anos de guerra para fugir e engrossar as populações dos mocambos Depois da queda do Arraial Velho em meados de 1635 o Recife passou a receber muitos imigrantes dos Países Baixos A cidade antes um burgo triste e sem vida crescia bastante Os anos de 1635 e 1636 prepararam o terreno para a administração de Maurício de Nassau que ficou em Pernambuco entre 1637 e 1644 A partir de então os holandeses em Pernambuco entrariam na fase dos groote profijten grandes lucros A tarefa era difícil As relações com os moradores se alargaram e entraram em muitos casos num modo de cooperação apesar do clima constante de desconfiança mútua A partir de janeiro de 1637 Nassau e o seu Alto Conselho passariam a tocar a conquista Tão logo ele chegou ao Brasil os moradores de Olinda recorreram a Nassau com uma série de pedidos tais como necessidade de retomar suas casas e reconstruílas em Olinda ter alguns de seus privilégios respeitados como era antes da invasão trazer clérigos para rezar missas e armar seus negros para buscar escravos fugidos A administração procurou atender a esses pedidos da melhor forma já que se tratava de moradores importantes que poderiam fomentar a retomada da produção açucareira e o comércio de escravos Um desses pedidos se tratava de um perdão geral dos holandeses para com os portugueses que queriam retomar suas vidas na capitania Isso foi visto com cautela pela administração superior de modo que muitas pessoas poderão ser perdoadas depois de um inquérito Idem 04 e 05051637 De fato era um longo jogo de negociação De fato durante a ocupação holandesa principalmente durante a guerra de resistência lusobrasileira a população do Quilombo dos Palmares havia crescido vertiginosamente e causava pânico às vilas do sul da antiga capitania de Duarte Coelho A situação lá sempre foi muito difícil para os holandeses Frequentemente os moradores eram vítimas de extorsões por parte dos escoltetos espécie de xerifes Atitudes como essas desagradavam a administração superior estabelecida no Recife e minavam a boa convivência entre a WIC e a população local Sobre isso Nassau e o Alto Conselho procuraram ser bastante enérgicos tanto que extinguiram a atuação dos escoltetos naquela região Era preciso garantir a produção de carne fumo açúcar e mandioca Sobretudo essa última tão necessária ao abastecimento das tropas O aumento das campanhas militares e da população civil na conquista tornou a produção de farinha uma questão muito sensível De antemão temos que o controle dessa produção fora mais efetivo sobre os moradores da várzea do Capibaribe que ainda assim sempre arrumavam uma justificativa para não fornecerem a quantidade exigida Em 1643 a administração superior nomeou uma espécie de gestor para Alagoas o exadvogado fiscal da WIC Hendrick de Moucheron que propôs uma série de medidas para a administração do distrito mas sem efeito prático algum Pouco tempo depois se iniciaria a guerra de Restauração e Alagoas cairia em desordem social O mesmo aconteceu com o Rio Grande Sob a proteção do Forte Ceulen atual Forte dos Reis Magos a WIC extraía de lá muito sal e obtinha muitos ganhos com a pecuária A produção de açúcar era exígua se comparada à dos engenhos de Pernambuco Paraíba e Itamaracá A incursão holandesa no sertão do Rio Grande e Ceará levou ao estabelecimento de acordos com os tapuias que foram aliados importantíssimos em diversas campanhas militares Eram os indígenas do grande chefe Janduí Os holandeses viam essas alianças com muito bons olhos por motivos óbvios Também o Rio Grande era passagem para o Norte e por isso mesmo um ótimo ponto de apoio estratégico para a navegação holandesa em direção ao Amazonas Mesmo em meio a tantos percalços em sua administração alguns momentos de calmaria surgiam no horizonte do Brasil holandês A franca dilatação das possessões da WIC no Brasil e na África sobreviveram as transformações arquitetônicas e promoções de atividades científicas levadas a cabo por Maurício de Nassau Nesse sentido Nassau empreendeu a construção do palácio Vrijburg Segundo Evaldo Cabral de Mello não resta dúvidas de que a sua construção serviria para demonstrar status como também para demonstrar a estabilidade da presença holandesa no Brasil tanto para os holandeses como para os da terra Aliado a isso o Recife mudava radicalmente a sua 99 98 face com a construção da Cidade Maurícia Mauritzstadt obras urbanísticas acompanhadas por Huigens e Pieter Post Do ponto de vista arquitetônico o palácio Vrijburg seria segundo Cabral de Mello uma adaptação dos modelos paladianos europeus às condições tropicais MELLO 2006 p135 O palácio Vrijburg passou a abrigar então a corte nassoviana composta entre outros de cientistas e pintores como o médico Piso os pintores Eckhout e Frans Post e o cartógrafo Marcgraf Segundo Cabral de Mello a quem coube fazer uma bela biografia sobre Nassau todo esse mundo de gente consumia uma boa quantidade de víveres dos quais 45 quilos era só o consumo diário de carne vermelha MELLO 2006 p 137 O apreço de Nassau pelas artes se expressou nos estímulos à pintura das telas de Frans Post e Albert Eckhout que bem retrataram o cotidiano do Brasil holandês e ajudaram a divulgar na Europa a conquista da Companhia e dele evidentemente Um outro palácio construído por Nassau o da Boa Vista dividiu com o Vrijburg a sua coleção zoológica botânica e etnográfica compostas a partir de expedições realizadas ao interior Finalmente segundo Mello nenhuma teve êxito apenas o mérito de enriquecer as coleções etnográficas de Nassau Mello idem p 141 A urbanização do Recife fez surgir um burgo que se tornaria rival de Olinda e que passaria a abrigar em definitivo uma nova classe de comerciantes de médio e grosso trato que se tornariam uma antítese aos produtores de açúcar vereadores da Câmara de Olinda Esse clima de embelezamento urbano e constituição de uma corte logo flertou com a impermanência quando Nassau regressou aos Países Baixos em meio a uma série de desavenças com os diretores da Companhia O auge econômicocultural do Brasil holandês viu se configurar uma poderosa comunidade judaica no Recife que formou a Kahal Zur Israel a mais antiga sinagoga das Américas No Brasil Nassau concedeulhe liberdade de culto e não bastou muito para que muitos criptojudeus de Pernambuco se juntassem aos judeus de Amsterdã Esse foi o caso de Manuel Gomes Chacão cristãonovo de Itamaracá retratado por Ronaldo Vainfas Com o incremento do tráfico de escravos de São Jorge da Mina 1637 e Luanda 1641 abriuse uma janela de atividades de corretagem na venda de cativos nos leilões ocorridos na Rua dos Judeus Grande parte dessa atividade estava em mãos judaicas o que despertou despeito de católicos e protestantes Alguns vieram de outras partes da Europa como foi o caso de Abraão Bueno Diogo Henriques que declarou ao Santo Ofício ter nascido em Baiona França e ser filho de portugueses Bueno viera com a mãe em 1641 para Pernambuco certamente atraídos pela nova conjuntura econômica favorável MELLO 1979 p 18 Todas as conquistas da WIC longe de Pernambuco Paraíba e Itamaracá foram muito frágeis Isso é bom que se diga para que o leitor não crie a ideia de uma conquista coesa e de uma administração exemplar em que Nassau teve em suas mãos todas as rédeas da governança Pelo contrário o desconforto foi constante durante a sua administração no Recife e longe dele Diante disso devemos relativizar o que a historiografia tradicional chamou como pax nassoviana Essa visão tem muito a ver com a construção do mito nassoviano que veremos na última parte deste texto A Restauração Pernambucana o início do fim 101 100 Saída da Holanda esta terrível companhia a WIC e quadrilha bateu os mares do infeliz Pernambuco onde tendo bem demarcado a praia por onde podia pisar a terra tomou porto na do PauAmarelo e lançando nelas os vorazes lobos que toda a sede anelaram o inocente sangue do católico português CALADO 2004 p 255 A passagem acima rica em metáforas consta no livro de crônicas do Frei Manoel Calado contemporâneo da presença holandesa em Pernambuco A memória é um ótimo combustível para se iniciar uma guerra ou para se firmar uma identidade de um certo grupo Dessa forma ao descrever o início do movimento de retomada de Pernambuco aos holandeses Calado lembrava aos seus iguais todo o mal que representavam os invasores O ano de 1645 marcaria o início do fim A partir daí os lusobrasileiros organizaram todos os esforços contra os holandeses Um de seus maiores arquitetos o senhor de engenho João Fernandes Vieira declarou ser aquela uma guerra pela liberdade divina para justificar a reação Com instruções de Portugal urdiu a partir dos engenhos do interior da Capitania de Pernambuco uma série de operações militares que durariam quase dez anos A guerra de Restauração deu vez a uma grande produção de crônicas que ajudaram a formar a classe senhorial pernambucana e até serviu de esteio para que se criasse o mito da fundação do Exército brasileiro a partir das Batalhas dos Guararapes João Fernandes Vieira que se tornou um dos homens mais ricos e poderosos durante a ocupação holandesa juntouse com alguns outros comandantes de armas e militares experimentados e colocaram em prática as escaramuças contra as tropas holandesas É lógico que ele não agiu sozinho e sim com uma grande ajuda local vinda da Bahia e de Portugal Em 1645 Portugal já havia se desvencilhado da Espanha e tinha rei próprio Dom João IV Mas as insatisfações com os holandeses se deram mesmo no mesquinho cotidiano da administração E foi justamente nas práticas dos escabinos nas diversas localidades As câmaras dos escabinos foram alvo de reclamações por parte dos portugueses desde a sua fundação em 1638 O cronista Diogo Lopes Santiago deu conta de que na prática os escabinos holandeses que eram sempre maioria faziam o que queriam e obrigavam os suplicantes portugueses a gastarem com tradução de documentos Somase o fato de que era difícil que os escabinos portugueses estivessem todos juntos nas seções uma vez que moravam distantes uns dos outros enquanto os holandeses viviam todos no Recife Na visão do cronista sempre o parecer dos juízes holandeses era confirmado segundo queriam os quais falavam uns com os outros em sua língua e despachavam como lhes parecia e davam o papel e sentença aos portugueses que assinassem Para Santiago ainda que os portugueses se negassem a assinar a sentença valeria de qualquer jeito O cronista também mencionou os abusos cometidos pelos escoltetos nas freguesias sobretudo quando iam cobrar a contribuição de farinha de mandioca dos moradores Finalmente o cronista militar relatou expedientes baixos que os holandeses utilizavam Diziam para suas mulheres atraírem homens portugueses para a conversa e em dado momento darem a entender que eles as estavam assediando Para se sair disso tudo vinha a parar em que os portugueses pagassem ao marido e à mulher cinquenta e sessenta dobrões para que não fosse por diante o rigor Para completar o rol de arbitrariedades dos holandeses Lopes Santiago carregou nas tintas ao detalhar a rapinagem dos soldados que partiram com Nassau em 1645 Disse ele que às vésperas da partida saíam de noite em quadrilhas e dando de súbito nas casas dos moradores roubavam quanto achavam e na Várzea que ficava mais perto do Recife roubavam muito dinheiro e joias de ouro e muita prata e se atreveram a estes e outros latrocínios que como se embarcavam ninguém lhes pediria conta nem os buscariam SANTIAGO 2004 p 156161 As queixas relatadas por Diogo Lopes Santiago sendo exageradas ou não já eram mais que suficientes para provocar a ira dos lusobrasileiros Especialmente dos moradores da várzea do Capibaribe local da primeira nobreza da terra Coincidentemente foi a partir dessa freguesia que se pensou e organizou com requinte o troco que dariam aos holandeses Na Várzea os holandeses pisavam na elite da terra no nervo social que sempre teve assento na Câmara de Olinda nas famílias de brasões mais relevantes A própria crônica de Santiago veio como um registro da memória daquela classe nata da açucarocracia Com fatos como esses narrados acima não haveria tecido social que não se esgarçasse Foi inevitável que viesse a guerra Aos poucos já em fins de 1644 juntamse os principais nomes que levariam a guerra a cabo João Fernandes Vieira André Vidal de Negreiros Dom Antônio Felipe Camarão e Antônio Dias Cardoso Este último em segundo plano Muitos cronistas em tom elegíaco atribuem a organização desse movimento a Fernandes Vieira que teria enviado cartas ao governadorgeral Antônio Telles da Silva dando conta da necessidade da guerra Dias Cardoso levara notícias para a Bahia sede do GovernoGeral informando dos males que os holandeses faziam à população civil em Pernambuco e do pedido de armas e munições para se começar a retomada Dessa forma a partir de seu engenho na Várzea devotado a São João Batista Vieira reunira os principais nomes da terra numa mesa de jantar para urdir o plano Gente em quem confiava piamente Assim começaram a se reunir na surdina e vindo em grupos separados para não levantar suspeitas nas matas junto ao Rio Tejipió e próximo aos currais de propriedade de Fernandes Vieira Ao julgarmos pelas páginas bajulatórias de Diogo Lopes Santiago temos um Fernandes Vieira determinado e que passou armas e todo tipo de material de guerra às escondidas e mandou fazer pelos matos muitos armazéns ocultos de muitos mantimentos e fardos Aos poucos nas freguesias de Pernambuco a resistência se preparava a partir de cartas e instruções de Vieira Idem p 186189 Do lado holandês após se saber das intenções de Fernandes Vieira foram iniciados reparos nas estruturas e o reforço do armamento das fortalezas do Recife O Alto Conselho Holandês ordenou via edital que não se retirasse comida ou bebida do Recife e Cidade Maurícia sem a devida permissão Na paranoia de uma guerra iminente os holandeses começaram a trazer presos portugueses de diversas freguesias para lhes interrogar e impor fidelidade Nada disso adiantou tanto que em 3 de agosto de 1645 os holandeses comandados pelo coronel Hendrick Haus e o capitão Jan Blaer perderam muitos de seus homens no conflito do Monte das Tabocas Vale salientar que Jan Blaer era um exímio conhecedor dos indígenas e da geografia local havendo se tornado um temido capitão do mato da região de Sirinhaém sul de Pernambuco Não faltaria muito para sua vida perecer A batalha das Tabocas foi tão comemorada pelos lusobrasileiros que um cronista chegou a dizer que foi essa gloriosa vitória de grande honra para os nossos e de grande abatimento para o inimigo que tão soberbo andava porque nela perdeu a reputação e a mais florida gente que tinha CALADO 2004 p 14 Muitos nativos aliados dos holandeses também haviam morrido nas Tabocas A julgar pelas avaliações geralmente parciais dos cronistas a raiva dos holandeses por essa grande derrota os teria levado a executar toda sorte de males aos moradores da região como foi o caso dos moradores de Apipucos na várzea do Capibaribe Tudo isso para descontar o sangue holandês derramado na contenda Idem p 35 Não tardou para que os lusobrasileiros enfrentassem os holandeses no engenho CasaForte de Dona Ana Paes A notícia de que muitas mulheres de moradores da Várzea haviam sido presas no Recife teria provocado uma reação rápida dos da terra no intento de lutar por suas honras Logo após a derrota no Monte das Tabocas os holandeses haviam recebido um reforço importantíssimo dos tapuias do Rio Grande No caminho para Casa Forte fato desde julho de 1645 segundo Hermann Wätjen as guerrilhas foram assumindo formas cada vez mais cruéis E destacou aqui a figura do capitão Jan Blaer o qual levou por diante a luta com terrível desumanidade o destemido guerrilheiro segundo Wätjen foi morto no caminho para a Bahia em consequência do ódio despertado nos portugueses pelas atrocidades que havia cometido na guerra WÄTJEN 1938 p 235 Já em fins desse ano o Recife estava cercado dado que Vieira Vidal e os demais haviam tomado a região de Sirinhaém e o porto de Nazaré no Cabo ao norte as terras dos engenhos da Várzea e Olinda O cerco ao Recife estava montado começava a falta de comida para as localidades do interior As conquistas de Itamaracá Paraíba e Rio Grande pararam de receber víveres A administração holandesa se desesperava rogando ajuda aos Países Baixos Os holandeses passavam agora o que os da terra viveram nos últimos dias do Arraial Velho do Bom Jesus dez anos antes A partir de então a roda da fortuna virou de lado Eram os lusobrasileiros quem davam as cartas Os quase dez anos seguintes da guerra da Restauração pernambucana serviriam para além de expulsar os holandeses por meio de guerra e acordos diplomáticos consolidar uma nova elite local com consequências inclusive na nova economia atlântica do postbellum Mas isso é uma outra história MELLO 1998 p 2152 Referências ATAS do Alto Conselho no Brasil Coleção José Higyno Arquivo do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano IAHGP BRÁSIO António org Monumenta missionária africana 2 série África Ocidental Central 15 vols Lisboa 19531958 BOXER Charles Ralph Os holandeses no Brasil Recife Cepe 2004 O império marítimo português São Paulo Companhia das Letras 2002 CALADO Frei Manuel O Valeroso Lucideno e triunfo da liberdade 2 vols Recife Cepe 2004 COELHO Duarte de Albuquerque Memórias diárias da guerra do Brasil São Paulo Beca 2003 DOCUMENTOS holandeses Rio de Janeiro Biblioteca Nacional 1945 segundo o frei Manuel Calado Fernandes Vieira havia descansado com a tropa e sonhado com Santo Antônio que lhe mandava que se levantasse com pressa e fosse a buscar o inimigo Idem p 43 Para o cronista tudo era divino na ação de Vieira o que por si só justificava a guerra movida pela gente da Várzea descendentes dos primeiros portugueses que vieram a Pernambuco com Duarte Coelho Essa narrativa verdadeira ou não ficaria para a posteridade como um documento dessa classe Vindos de Muribeca sul do Recife passaram para o Engenho do Meio e Santo Antônio na Várzea de propriedade do próprio Vieira cruzaram o Capibaribe na direção do Engenho de Ana Paes mais ao norte e surpreenderam Haus Blaer e seus homens com seus brindes e galhofas como eles costumam fazer quando bebem Idem p 45 Dessa forma os holandeses eram representados nas crônicas lusobrasileiras Já os seus responsáveis abstêmios e diligentes Em Casa Forte em 17 de agosto Haus e os seus homens se renderam pela surpresa do cerco dos lusobrasileiros Suas vidas foram preservadas mas não as dos indígenas vistos como traidores pelos da terra Para eles se dirigiram todos os ódios dos lusobrasileiros Todos foram degolados Nesse momento a figura de Calabar ainda estava bem viva na mente dos lusobrasileiros Idem p 5051 Frei Calado se não exagerou narrou que após a rendição das tropas de Haus em Casa Forte um grande alarido havia tomado conta dos moradores de Apipucos e parte da Várzea que bradavam gritos de vitória assustando assim os holandeses Laudatório que era o frei Manuel Calado chegou a comparar em versos Fernandes Vieira a Aníbal o grande conquistador cartaginês Disse Na retaguarda o Aníbal Valente Marcha com os briosos ventureiros Que trouxe da Bahia brava gente Valentes esforçados e guerreiros Construíase assim um mito de Vieira Idem p 57 Tabocas e Casa Forte haviam tornado os lusobrasileiros praticamente donos do interior Os holandeses temiam a circulação de civis fora do Recife ou seja fora da proteção das fortificações Com isso a circulação de paubrasil açúcar e produtos em geral praticamente cessou Fenecia a vitalidade econômica da Capitania de Pernambuco Enquanto isso os reforços chegavam da Bahia por ordem do GovernadorGeral Antônio Telles da Silva De mas não conseguiu impedir a conquista da vila e de seu porto o Recife CALADO 2004 COELHO 1981 PUDSEY 2000 RICHSHOFFER 1930 A queda de Olinda e de seu porto a exemplo do sucedido em Salvador não se traduziu em avanço holandês para o interior da colônia A despeito da vitória as tropas locais conseguiram manter os holandeses confinados em Olinda e no Recife No entanto ao contrário do que ocorreu em 1625 quando os Habsburgo conseguiram mobilizar uma poderosa armada os colonos do Brasil tiveram que se contentar com recursos escassos e inconsistentes haja vista a crise financeira que abatia a Monarquia hispânica e congentemente resultava em seu declínio naval deixando o Brasil exposto MELLO 2012 p71 SANTOSPÉREZ 2016 p174 O peso da defesa da terra recairia sobremaneira nos colonos de Pernambuco e áreas vizinhas Nos dois anos subsequentes à tomada de Olinda e do Recife os holandeses estiveram reclusos nessas duas localidades e permaneceram com acesso limitado ao interior por efeito de um dispositivo militar montado pelos colonos composto de uma combinação de forças convencionais concentradas em uma fortificação denominada Arraial do Bom Jesus levantada na vizinhança entre Olinda e o Recife e de contingentes móveis que ocupavam postos avançados ou estâncias que cercavam e impediam a saída dos holandeses dessas localidades com escaramuças O objetivo era mantêlos em Olinda e no Recife até que fosse possível uma grande intervenção naval que pudesse fechar o cerco e forçar a capitulação como se observou em Salvador MIRANDA 2020 p5 O resultado da estratégia local colheu frutos Até 1632 os holandeses só conseguiram fincar seus pés em uma ponta de terra na Ilha de Itamaracá 1631 Sofreram reveses militares na tentativa de expandir o território nas capitanias da Paraíba e do Rio Grande bem como em outras localidades de Pernambuco MELLO 1998 p3334 A guerra de escaramuças nas vizinhanças de Olinda e Recife foi lentamente suplantada pela Companhia na medida em que ela mudou a estratégia de avançar nas zonas vizinhas ao Recife e passou a usar seu poder naval para desembarcar tropas no interior em posições longe das bases de apoio dos colonos o que os impossibilitava de fazer uma oposição rápida e eficiente Deixava ainda a população rural à mercê dos holandeses BOXER 2004 p 120123 LAET 1916 p 369370 WÄTJEN 2004 p 120123 Mesmo com a mudança de estratégia do exército invasor o impasse militar que caracterizou a guerra nos primeiros anos de ocupação foi extremamente danoso para a Companhia Ela não estava compensando financeiramente os avultados gastos para a conquista de um território que julgara fácil de ser conquistado Também acumulava dívidas e aumentava as desconfianças dos investidores no futuro da colônia HEIJER 2005 p36 Eventualmente a estratégia de contraguerrilha acabou produzindo os resultados desejados a Companhia lentamente enfraqueceu a guerrilha e tomou importantes posições no Brasil como a Fortaleza dos Reis Magos no Rio Grande em 1633 os fortes Santa Catarina de Cabedelo e Santo Antônio e a cidade de Filipeia de Nossa Senhora das Neves atual João Pessoa na Paraíba em 1634 Essas conquistas foram seguidas de uma maior interiorização no território e da adesão dos moradores aos invasores Na Paraíba os moradores foram forçados a assinar uma capitulação em troca de não serem molestados pelos holandeses Gradativamente moradores de outras localidades começaram a aderir à Companhia e negociações e trocas começaram a ser observadas nesse período LAET 2016 p 517518 NASCIMENTO 2004 p 84 Com a queda da Paraíba a resistência local perdeu um importante ponto de apoio logístico o que afetava diretamente a defesa montada nas imediações de Olinda e Recife O desmoronamento da resistência fezse completo no ano de 1635 quando o Arraial do Bom Jesus base central da guerrilha e o Cabo de Santo Agostinho onde estava o principal porto do exército de resistência para o recebimento de reforços e escoamento do açúcar produzido na região importante mantenedor da guerra foram sitiados e conquistados Tais derrotas acarretaram uma debandada de parte da população do interior junto com as tropas de resistência as quais tentaram manter o sul de Pernambuco enquanto aguardavam reforços substanciais para conter a ofensiva dos holandeses BOXER 2004 p 7484 WÄTJEN 2004 p 124130 Mesmo perdendo o Arraial as forças locais privaram a Companhia de reestruturar a indústria açucareira com persistentes ataques às plantações e 113 112 ou passaram a se empregar na própria Companhia devido às flutuações econômicas e instabilidades do território A Companhia não teve planos de colonização eficientes e regulares Também evitou custear a ida de colonos que se não tivessem capital acabariam dependendo economicamente dela Por outro lado precisava colonizar o interior e diminuir a dependência da população portuguesa que controlava o plantio da canadeaçúcar Era um problema conhecido mas nunca tratado com a seriedade necessária DUSSEN 2004 p178181 MELLO 2001 p5759 XAVIER 2018 p7186 Os portugueses que aceitaram o domínio da Companhia permaneceram de posse de seus engenhos Outros adquiriram engenhos confiscados ou labutaram como lavradores e trabalhadores de ofício que atendiam nas fábricas de açúcar Sua experiência era fundamental para o sucesso do empreendimento embora sua relação com os holandeses fosse tensa e mantida na base da coação Os conflitos se davam por questões religiosas e também pela subrepresentação política a que foram levados com a invasão A quebra de prestígio político deles está na chave do entendimento da rebelião de 1645 junto com o notável endividamento pelos empréstimos para reconstrução dos engenhos mas também para a aquisição de escravizados e de mercadorias a comerciantes da cidade Nassau percebia bem a delicada relação com os portugueses e recomendou aos membros do Alto Governo em 1644 que dessem tratamento cortês aos moradores enfatizando também que não os pressionassem para o pagamento de dívidas DUSSEN 2004 p181182 MELLO 2001 p143144 242257 MELLO 2000 p90114 MELLO 2012 p262 LUCIANI 2012 Já a comunidade formada por judeus no Brasil era em sua maioria composta de judeus portugueses e seus descendentes que haviam fugido para Amsterdã em decorrência da perseguição da Inquisição Além dos negócios atrelados ao mundo do açúcar ocupavamse na colônia do comércio miúdo a retalho da cobrança de impostos corretagem e venda de escravizados Era uma comunidade diversa que cresceu substancialmente e que encontrou florescimento no Brasil A Companhia demonstrou interesse na sua migração para a colônia e lhes concedeu vantagens no território que não lhes eram oferecidas na Europa MELLO 1996 p 533 201255 VAINFAS 2010 p 87140 No que se refere aos povos indígenas a relação dos holandeses foi direcionada desde o início para a formação de alianças Povos de origem tupi Potiguara e tapuia Tarairiu entraram em definitivo nas guerras do açúcar e enxergaram na aliança com os holandeses a oportunidade de retaliaren os portugueses contra quem vinham travando lutas desde o século anterior Os indígenas do litoral foram dentre os povos locais com os quais os holandeses se relacionaram os mais próximos e para eles foi montado um aparato de catequese da religião reformada que obteve algum sucesso Indígenas aldeados formaram a linha auxiliar de defesa do interior e permaneceram firmes em sua aliança com os holandeses até 1654 Os tapuia por sua vez procuraram se aliançar com a Companhia logo no início da ocupação embora tenham se mostrado aliados instáveis Eles garantiriam certa segurança na porção setentrional da colônia mesmo após a insurreição dos portugueses em 1645 MIRANDA 2020 p9 Além de auxílio na guerra a Companhia esperava dos aldeados tupi participação nas frentes de lavoura mediante pagamento ainda que ínfimo o que deu vazão a conflitos Esses aldeados tiveram autonomia política a ponto de estabelecerem uma assembleia indígena na década de 1640 quando da revolta dos portugueses Ainda que lacunar a documentação permite obter as minúcias dos acordos desses povos com a administração da Companhia e até mesmo as implicações e consequências políticas da escolha daqueles que se aliançaram com holandeses após sua expulsão além de diversos aspectos sobre a cultura e sociedades indígenas daqueles territórios BOOGAART 1979 p 519538 HULSMAN 2006 p3769 MELLO 2001 p 207236 MEUWESE 2012 p125190 SCHALKWIJK 2004 p 207227 A conquista de áreas produtoras de açúcar acabou levando os holandeses para um importante negócio sem o qual os engenhos de açúcar não podiam subsistir o trato de escravizados Os entraves morais iniciais para a entrada no tráfico e a participação esporádica no trato foram logo superados Como referido em 1637 a Companhia fez sua primeira expedição à costa africana para se apossar de um entreposto negreiro português São Jorge da Mina Não era a primeira incursão holandesa na costa africana embora fosse a primeira fixação naquela banda do Atlântico Posteriormente em plena reestruturação 117 116 fábricas Gente desterrada parte rumou para a Bahia fábricas destruídas canaviais queimados e escravizados em fuga fariam parte da paisagem da zona rural naqueles primeiros anos Tal situação só iria mudar quando um novo governador fosse apontado para o Brasil Ele daria início a uma campanha para expulsar em definitivo o exército da resistência do sul de Pernambuco e liberar assim se esperava a zona do açúcar da presença portuguesa BOXER 2004 p 8993 WÄTJEN 2004 p 134136 Expansão e governo de Johan Maurits van NassauSiegen 16371644 Escolhido em 1636 para governar o Brasil Johan Maurits van NassauSiegen 16041679 veio com o desafio de sacramentar a posição holandesa no território e restabelecer a economia da colônia amplamente afetada pela guerra de conquista Mal colocou os pés no Brasil ele direcionou suas tropas para uma campanha capaz de empurrar a resistência local para o sul da colônia Mesmo com constantes infiltrações inimigas no território Nassau garantiu uma fronteira natural para o Brasil holandês no Rio São Francisco e a manteve até 1644 Sob seu governo seriam ainda ampliadas as fronteiras da colônia na sua porção norte com a anexação do Ceará 1637 O projeto se estenderia ao ultramar sendo conquistado São Jorge da Mina 1637 e Luanda 1641 na África Ocidental importantes para o projeto de reestruturação econômica da colônia que dependia de mão de obra escravizada Um dos maiores desafios de Nassau foi reativar a economia açucareira após a longa guerra para dominar a colônia que resultou no abandono e destruição de boa parte dos engenhos de açúcar de Pernambuco CEULEN DUSSEN 2004 SCHOTT 2004 Com o intuito de restabelecer esses engenhos o novo governo confiscou e revendeu financiado no ano de 1638 68 engenhos de um total de 149 abandonados ao longo da guerra A maior parte deles seria comprada por holandeses seguidos por um bom número de portugueses Não demoraria para que parte substancial dos engenhos da colônia voltasse à atividade chegando a um pico de produção de açúcar nos primeiros anos da década de 1640 Parte desses engenhos adquiridos por holandeses também acabaria nas mãos dos portugueses que sabiam tocar o negócio melhor do que os primeiros CEULEN DUSSEN 2004 MELLO 2001 p144146 WÄTJEN 2004 p 153 422424 A bonança rapidamente cedeu à crise Retrações nos valores do açúcar entre 1638 e 1643 quebrando a sequência de alta secular de momentos anteriores afetaram em demasia os lucros dos endividados produtores Apertada em virtude dos polpudos e necessários empréstimos concedidos para a reconstrução do sistema produtivo e com queda de receita advinda do colapso do preço do açúcar a Companhia passou a pressionar os produtores para saldarem suas dívidas MELLO 2000 p 110112 MELLO 2012 p 297298 Os povos do Brasil holandês e sua governança A governança do Brasil holandês era a tensa administração de povos de origens e tradições políticas e religiosas muitos distintas portugueses junto com judeus inclusive cristãosnovos e criptojudeus holandeses e gente da Companhia que consistia numa multiplicidade de pessoas de diferentes localidades do norte da Europa estados alemães Flandres Valônia França Inglaterra Irlanda Escócia e Escandinávia Para complementar o caldeiração étnico havia as várias populações africanas trazidas forçosamente pelo tráfico atlântico de escravizados e os diversos povos indígenas igualmente distintos em língua costumes e vinculações políticas aos europeus ALENCASTRO 2000 p 210215 MELLO 1996 p 533 201255 MELLO 2012 p 201207 MIRANDA 2014 p 5267 VAINFAS 2010 p 90106 O grosso da população branca era de gente da Companhia Soldados e empregados civis muitos dos quais passaram a engrossar a fileira de cidadãos livres após o término de seus contratos Outros migrantes começaram a chegar em bom número a partir da queda do Arraial em 1635 e sobretudo com a instauração da liberdade de comércio em 1638 Comerciantes e os mais diversos artífices tentavam sua sorte na colônia mas muitos a deixaram 115 114 das fábricas após o fim da guerra de conquista e com a reativação da economia açucareira os holandeses necessitando ampliar seus planteis deram um golpe duríssimo nos portugueses ao conquistar Luanda MIRANDA 2020 p 910 A conquista dos entrepostos em São Jorge da Mina São Tomé e Luanda os levaria a entrar em contato com diversos povos africanos Logo aprenderam como lidar com o trato e com os costumes de alguns dos escravizados gente oriunda de Angola de Ardra da Guiné de Serra Leoa e do Congo comprada no outro lado do Atlântico e conduzida forçada pelos holandeses para toda a sorte de trabalho no Brasil Os holandeses fizeram parte de um negócio que teve um crescimento vertiginoso na década de 1640 e resultara na importação de mais de 26 mil escravizados ao longo dos anos de 1630 a 1651 com picos entre 1637 e 1645 O trato transmutarseia posteriormente numa das principais atividades da Companhia e com sua saída do Brasil os holandeses passaram a alimentar suas novas colônias no Caribe e no Suriname fornecendo também para outros territórios sem controle holandês ALENCASTRO 2000 p 210238 BOOGAART EMMER 1979 p 367369 EMMER 2000p 3945 SILVA 2011 p 169324 RATELBAND 2003 A relação da Companhia para com os povos de origem africana no Brasil não foi apenas de escravidão Desde cedo escravizados fugidos encontraram guarida entre as forças invasoras atuando como guias e guerreiros Muitos foram recompensados e permaneceram com os holandeses até seus últimos dias Alguns inclusive migrarem para os Países Baixos e constituiriam família por lá MELLO 2001 p 185 204 PONTE 2019 p 3361 XAVIER 2018 p 125 A restauração do Brasil e expulsão dos holandeses 16451654 Nassau e os administradores do Brasil holandês tiveram que encarar o desafio de governar povos de diversas origens e credos Eram grupos de interesses conflitantes mas Nassau conseguiu reduzir parcialmente os desgastes com políticas conciliadoras delineadas pela Companhia inclusive no que toca à manutenção da tolerância religiosa Contudo desordens de caráter econômico religioso e político que já emergiam entre os grupos terminaram por ficar latentes após a demissão dele em 1644 e com a composição de um novo governo principiado em 1645 Eles se mostraram incapazes de compreender e de solucionar os muitos problemas da colônia Ainda que eventos não ocorram em sucessão e se encadeiem numa lógica de causa e efeito é perceptível que os antecedentes da restauração do Brasil e da guerra que culminou na expulsão dos holandeses estejam como já referido relacionados a uma miríade de eventos de ordem econômica religiosa e política Cabe explicar melhor algumas dessas situações e instabilidades a referida queda no valor do açúcar na década de 1640 que junto com a destruição no campo promovida pela guerrilha levaria a mais endividamento dos proprietários de engenho O cenário foi agravado por cheias pragas e uma epidemia de bexiga que ceifou parte da mão de obra escravizada na década de 1640 MELLO 2000 p 102103 Incapazes de honrar com dívidas de empréstimos obtidos com a Companhia anos antes para a aquisição e reformas de engenhos e de mão de obra muitos foram pressionados também a quitar outros débitos com credores particulares tão logo o novo governo assumiu a colônia Abusos de toda ordem irromperam na cobrança das dívidas dessa elite local abrindose portanto o caminho para uma rebelião dos lusobrasileiros contra os holandeses e credores a eles vinculados LENK 2013 p 315 MELLO 1998 p 381447 Após a invasão ocorreram a destruição de templos católicos e a expulsão de ordens religiosas e de seus membros alguns dos quais atuaram ativamente contra os holandeses Também foram levantadas proibições a demonstrações públicas da fé bem como promovidos distúrbios e perseguições por gente não católica atrelada à Companhia das Índias Ocidentais Por tudo isso o elemento religioso deu o tom da guerra de liberdade divina apontado pelos conjurados em alguns textos produzidos nos primeiros momentos da rebelião e não deve ser deixado de lado em qualquer análise que se faça sobre esses eventos MELLO 2000 p 9496 VAINFAS 2010 p 188207 2 1 Um dos melhores balanços das motivações para a insurreição é feito por José Antônio Gonsalves de Mello em seu livro João Fernandes Vieira 2000 p 90115 2 Textos como o Compromisso de 1645 hoje na Biblioteca Pública de Évora ou o Manifesto dos moradores de Pernambuco de 1646 O Instituto Ricardo Brennand possui cópia manuscrita do Manifesto que contém justificativas de caráter religioso produzidas pelos colonos para Outros acontecimentos de ordem política ajudaram a constituir o cenário da rebelião O primeiro que pode ser pensado se dá já com a constituição de um governo holandês nos primeiros anos da conquista e o abalo da ordem política vigente com a substituição dos cabeças políticos dos territórios ocupados por um novo grupo exógeno que passara a administrar a terra e a justiça Mas essa era uma mudança apenas parcial haja vista a dependência econômica que a Companhia das Índias Ocidentais tinha dos senhores de engenho portugueses que se mantiveram como grupo majoritário a tocar a produção do açúcar e que voltariam a exercer decorridos alguns anos da guerra participação política naquela sociedade Sua atuação não ocorreria sem fissuras e tensões com os holandeses como se observa ao longo dos anos de funcionamento da Câmara dos Escabinos criada em 1637 pela Companhia com o objetivo de ter um aparato governativo que tivesse representação dos principais grupos da colônia dirimindo assim conflitos entre as partes MELLO 2001 p 122127 LUCIANI 2012 p 206224 Elemento de ordem política de primeira grandeza para pensar a insurreição foi a própria restauração portuguesa de 1640 e o fim do vínculo ao império espanhol Apartado da coroa espanhola e aclamado um novo rei para Portugal caía em tese a justificativa holandesa para ocupação das capitanias do Norte do Brasil agora que ambos os países compartilhavam um inimigo comum Negociações entre Portugal e os Países Baixos resultaram em tratado que cessava as hostilidades entre as duas nações As tratativas previam o restabelecimento dos vínculos comerciais a cooperação militar contra os espanhóis e o mais importante congelava a situação da ocupação de territórios portugueses no ultramar enquanto se negociava sua restituição mediante indenização Nos bastidores contudo se articulavam elementos catalisadores para a revolta e restauração de Pernambuco e demais capitanias haja vista a percepção dos portugueses de que a devolução não iria se consolidar por via da diplomacia MELLO 1998 p 3647 É fácil inclusive entender que Portugal precisava ainda mais de suas colônias para sobreviver como reino independente quando o grosso do seu império estava concentrado no Brasil e este era dependente do trato de escravizados obtidos em entrepostos da costa africana parcialmente ocupados e acosados pelos holandeses Os últimos aproveitando o atraso na comunicação da assinatura de tréguas com Portugal avançaram sobre territórios coloniais portugueses no Brasil Sergipe e São Luís no Maranhão e em Angola Luanda um duro golpe compreendido como um gesto de traição e que acirraria ainda mais os ânimos daqueles que não mediram esforços em fomentar a rebelião Por outro lado os portugueses da Bahia e na capital também vivia parte dos emigrados da guerra de Pernambuco desejosos em retornar para suas terras sofriam com o enorme peso fiscal acarreta do pelo longo conflito e ansiavam em se livrar da ameaçadora presença holandesa na sua fronteira setentrional Portanto eram pelo menos três grandes grupos reinóis e colonos da Bahia e de Pernambuco com interesses dos mais diversos agindo direta e indiretamente para o fomento da insurreição ARAÚJO 2014 p 3032 ARAÚJO 2022 p 129 LENK 2013 p 323368 MELLO 1998 p 2328 400403 A Companhia por sua vez cometeu erros estratégicos e não soube fazer a leitura de todas as movimentações portuguesas para uma eficiente ação de sufocamento dos rebeldes Teve com antecipação múltiplas notícias da frustração dos lusobrasileiros para com a política da Companhia e reconhecia a possibilidade de uma rebelião embora acabasse por não acreditar que a revolta saísse da fase de planejamento BARDENHEUER 2018 p 24 Ademais visando cortar custos haja vista a celebração do tratado de paz reduziu efetivos militares no Brasil dispensando oficiais veteranos conhecedores do território Era uma atitude errada diante da crescente insatisfação dos portugueses para com sua administração manifestada em uma revolta no Maranhão que resultaria na expulsão dos holandeses daquela localidade em 1643 No ano seguinte em decorrência de desavenças com a direção da Companhia Nassau seria demitido A Companhia retirou portanto alguém que se mostrava hábil na mediação e mitigação de conflitos da colônia Nassau seria substituído por um conselho formado por civis que em atitude contrária às recomendações dadas por ele no tempo de sua saída permitiu a execução de dívidas dos moradores como visto Instigavam dessa forma o confronto com os locais no lugar de reduzir os antagonismos reinantes na colônia Para ser fiel aos fatos é necessário dizer que houve uma tentativa por parte do novo governo de diminuir os problemas dos senhores de engenho Costuraram um acordo com comerciantes particulares e moradores lusobrasileiros para pagamento de dívidas que já ultrapassavam 2 milhões de florins A entrega de toda a produção para liquidação dos empréstimos estava planejada A princípio o acordo era visto como positivo nos Países Baixos e até mesmo vantajoso para a Companhia pois era a chance de receber o dinheiro já considerado perdido A medida foi pensada ainda para impedir uma insurreição já que os senhores de engenho endividados passariam a dever à Companhia e não mais aos comerciantes particulares Esperavam evitar os vexames habituais causados por esses credores que confiscavam com anuência da Companhia propriedades e bens dos produtores a exemplo de mão de obra escravizada e equipamentos essenciais para o bom funcionamento dos engenhos Era sabido que a continuação de tal situação levaria os senhores de engenho a defender seus bens pela força e que o clima geral na colônia era de rebeldia Por fim a Companhia diminuiu os juros aplicados para 1 ao mês no lugar de 25 e 3 dos antigos credores e permitiu que os senhores de engenho tivessem tempo para safrejar e portanto produzir o suficiente para abaterem parte de suas dívidas Era uma tentativa de tirar a grande pressão sobre os produtores e arrefecer ideias de sedição ao mesmo tempo que impedia a ruína da própria Companhia MELLO 2010 p 331332 Apesar disso desde a aclamação do duque de Bragança como novo rei de Portugal que se planejava a rebelião embora no reino pairassem dúvidas sobre sua adesão ao projeto o que fez com que apenas no início de 1644 esgotadas as possibilidades diplomáticas para a devolução do Brasil a Portugal a Coroa encampasse o projeto insurreccional BOXER 2004 p 218221 MELLO 2010 p 4460 3 Nassau foi substituído por uma junta de membros civis do Alto e Secreto Conselho composta por Hendrik Hamel Adriaan van Bullestrate e Dirck Codde van der Burgh Van der Burgh falece encore ainda em 1644 e fora substituído por Pieter Jansen Bas que se encontrava no Conselho Político MELLO 2012 p 331 os holandeses espremidos em suas fortificações e os portugueses à espreita e impedindo sua movimentação para o interior A situação dos holandeses na chegada do segundo ano de rebelião era calamitosa O Recife amargou sítio e fome No segundo semestre do ano de 1646 graças a reforços em tropas frescas enviadas dos Países Baixos a Companhia pôde arrefecer o cerco e efetivar algumas ações militares Todavia as tentativas do coronel Sigismund von Schkoppe experiente militar na guerra local e comandante geral das tropas da Companhia mostraramse improdutivas Recife e outras posições holandesas continuaram sob assédio dos portugueses Apenas com a chegada da frota comandada pelo almirante Witte Corneliszoon de With em março de 1648 com amplo reforço em soldados que uma ofensiva ampla foi posta em curso MIRANDA 2014 p 45 Autoridades civis e militares da Companhia passaram então a debater a próxima etapa no enfrentamento aos rebeldes A opção escolhida menos encorajadas pelos oficiais do exército foi de forçar os portugueses a entrar em batalha campal com as tropas dos holandeses Ansiavam por ter uma batalha decisiva cujo resultado poderia mudar o rumo da situação da Companhia na região MIRANDA 2014 p 45 Em abril de 1648 Von Schkoppe comandando 4500 soldados rumou para a Muribeca com o objetivo de fechar o trajeto por terra para o Cabo de Santo Agostinho local onde estava o porto que atendia às forças portuguesas Essas por sua vez estavam majoritariamente assentadas em um novo arraial construído na várzea açucareira Dele saíam tropas que apertavam o cerco ao Recife Se Von Schkoppe fosse bemsucedido em tomar o caminho para o sul de Pernambuco ele esperava que os portugueses fossem tentar furar seu bloqueio dandolhe portanto a batalha que procurava MELLO 2010 p 435 MIRANDA 2014 p 45 Pouco após sair do Recife as tropas da Companhia fizeram primeiro contato com as forças lusobrasileiras em um local pouco adiante de Afogados Conseguiram bater esses soldados e acamparam numa área de pasto denominada Leiteria Não tinham adentrado muito nas terras e ainda aguardavam gente para sua retaguarda O atraso foi suficiente para que os lusobrasileiros se reforçassem Essa tropa de 2200 homens atraiu os comandados de Von Schkoppe para uma série de outeiros no caminho entre o Recife e a Muribeca Mais uma vez como fizeram em Santo Antão anos antes os rebeldes usaram a vantagem do terreno para bater no dia 19 de abril as forças holandesas mesmo em condições numéricas desfavoráveis Repetiriam a façanha no ano seguinte quando o exército da Companhia tentou mais uma vez romper o cerco do Recife Entraram em confronto nos mesmos montes de nome Guararapes MIRANDA 2014 p 4546 Essa sequência de derrotas em Santo Antão 1645 Casa Forte 1645 e Guararapes 1648 e 1649 praticamente selou o destino da colônia Faltaram todavia meios materiais para que os portugueses conseguissem fechar o cerco e conquistar o Recife Enfrentaram sérias dificuldades logísticas e instabilidades em suas fileiras MELLO 1998 p 306312 A guerra se estendeu até 1654 quando o sítio pôde ser feito por terra e por mar tornando a posição holandesa mais frágil e impedindo os comandantes e administradores da Companhia a negociar termos de rendição Entre 1649 e 1654 os holandeses também careceram de meios para tentar mudar a situação militar Tiveram ainda que lidar com deserções e motins de tropas que constituíram importantes fatores para a capitulação MIRANDA 2014 p 352377 Após a rendição em janeiro de 1654 restaram as pressões políticas e militares na Europa que garantiriam à República das Províncias Unidas dos Países Baixos uma indenização pelas perdas no Brasil conforme ratificado nos tratados da Haia de 1661 e 1669 Algumas considerações finais adicionais devem ser feitas Enquanto esteve no Brasil a Companhia enfrentou sérios problemas financeiros Estes foram agravados ainda mais pela guerra quase incessante que a obrigou a operar 128 129 As melhores descrições dos eventos em Guararapes podem ser encontradas em Castrioto lusitano JESUS 1679 História da guerra de Pernambuco SANTIAGO 2004 e nos relatos dos oficiais do exército da Companhia Von Schkoppe e Van den Brande parcialmente publicados por Evaldo Cabral de Mello 2010 e integralmente por António de Souza Júnior 1998 Na historiografia a análise do confronto foi bem esquematizada em Guararapes MELLO 2002 e Do Recôncavo aos Guararapes SOUZA JÚNIOR 1998 Ainda que não tratando amplamente das batalhas em Guararapes Hoboken em Witte de With in Brazilie 16481649 1955 traz uma contextualização importante para os eventos que envolvem as duas batalhas Nesse sentido ver também Gente de guerra MIRANDA 2014 cap 6 que demonstra questões disciplinares que foram basilares para entender em parte a derrota do exército da Companhia na primeira batalha dos Guararapes sob permanente risco de falência Ainda no ano de 1633 os grandes custos do conflito tinham levado membros dos Estados Gerais a advogar uma negociação com a Espanha e o abandono do Brasil Em 1636 depois de seis anos de guerra a Companhia acumulava uma dívida de 18 milhões de florins e para financiar a guerra o corpo de diretores da Companhia terminou fazendo empréstimos com elevados juros de 6 Mesmo empurrando as tropas lusoespanholas para fora da zona do açúcar em 1637 a Companhia não conseguia ressarcir seus gastos por causa da destruição da zona produtora o que a obrigou a fazer pesados investimentos para reconstruir o sistema econômico A falta de colonos e de um plano de colonização também a impossibilitava de prover e defender seu território sem custos extremos Quando a rebelião irrompeu em 1645 a Companhia estava financeiramente muito comprometida e dependia do suporte dos Estados Gerais para montar uma esquadra de socorro Além disso ela tinha que defender um território muito maior do que suas reais capacidades operacionais e que já estava esvaziado de gente de guerra em decorrência de cortes de pessoal subsequentes à assinatura do tratado de paz com Portugal em 1641 como já mencionado Para piorar ela ainda enfrentou oposição interna da câmara de Amsterdã que sendo a maior investidora na Companhia era a que mais gastava para sua manutenção e portanto desejava fazer paz para se livrar do pesado custo da guerra no ultramar e restabelecer o comércio com Portugal Em 1649 o débito da Companhia era de 36 milhões de florins incluindo no valor 17 milhões de investimentos Esse era o maior sinal de que não havia mais condições de atuar na região Esses são elementos a mais para entender a derrocada do projeto holandês no Brasil GOSLINGA 1971 p 291307 HEIJER 2002 p 4354 97102 HEIJER 2003 p 9798 Referências ALENCASTRO Luiz Felipe de O trato dos viventes São Paulo Companhia das Letras 2000 ARAÚJO Hugo André Flores Fernandes Amigos fingidos e inimigos encobertos o governo geral e a insurreição pernambucana 16421645 Prohistoria ano XVII número 21 2014 p 2653 The insurrection of Pernambuco and the surrender of the Dutch in Brazil 16451654 In Oxford Research Encyclopedia of Latin American History 2022 ATAS diárias do Alto e Secreto Conselho do Brasil Dagelijkse Notulen van de Hoge en Secrete Raad van Brazilië Arquivo Nacional da Haia Países Baixos Coleção da Velha Companhia das Índias Ocidentais 1050101 inv nr 70 05081645 ATAS diárias do Alto e Secreto Conselho do Brasil Dagelijkse Notulen van de Hoge en Secrete Raad van Brazilië Arquivo Nacional da Haia Países Baixos Coleção da Velha Companhia das Índias Ocidentais 1050101 inv nr 70 17081645 BARDENHEUER Markus Várzea Talk War and communication in Dutch Brazil 16451654 Dissertação Mestrado em História Universiteit Leiden Leiden 2018 BICK Alexander Governing the free sea the Dutch West India Company and commercial politics 16181645 Tese Doutorado em História Princeton University New Jersey 2012 BOOGAART Ernst van den EMMER Piet C The Dutch participation in the Atlantic Slave Trade 15961650 Leiden Centre for the History of European Expansion 1979 BOOGAART Ernst van den Infernal allies The Dutch West India Company and the Tarairiu 16301654 In BOOGAART Ernst van den ed Johan Maurits van NassauSiegen 16041679 A humanist prince in Europe and Brazil The Hague The Johan Maurits van Nassau Stichting 1979 BOXER Charles Ralph Os holandeses no Brasil Recife Companhia Editora de Pernambuco 2004 Salvador de Sá and the struggle for Brazil and Angola London Athlone Press 1952 BRANDÃO Ambrósio Fernandes Diálogos das grandezas do Brasil Recife Massangana 1997 CALADO Manoel O Valeroso Lucideno e o triunfo da liberdade 2 volumes Recife Companhia Editora de Pernambuco 2004 CEULEN Mathias van DUSSEN Adriaen van der Breve discurso sobre o Estado das quatro capitanias conquistadas de Pernambuco Itamaracá Paraíba e Rio Grande situadas na parte setentrional do Brasil In MELLO José Antônio Gonsalves de org Fontes para a História do Brasil holandês a economia açucareira Recife Companhia Editora de Pernambuco 2004 COELHO Duarte de Albuquerque Memórias diárias da Guerra do Brasil Recife Fundação de Cultura da Cidade do Recife 1981 COMPROMISSO dos conjurados 23051645 Biblioteca Pública de Évora Portugal Códice CVI22 fólios 182f183v DUSSEN Adriaen van der Relatório sobre o estado das capitanias conquistadas no Brasil datado de 10 de dezembro de 1639 In MELLO José Antônio Gonsalves de org Fontes para a História do Brasil holandês a economia açucareira Recife Companhia Editora de Pernambuco 2004 130 131 PUDSEY Cuthbert Journal of a residence in Brazil 16291640 Petrópolis Editora Index 2000 PUNTONI Pedro A misera sorte A escravidão africana no Brasil holandês e as guerras do tráfico no Atlântico Sul 16211648 São Paulo Hucitec 1999 RATELBAND Klaas Os holandeses no Brasil e na Costa Africana Angola Kongo e S Tomé 16001650 Lisboa Vega 2003 RICHSHOFFER Ambrosius Reise nach Brasilien 16291632 In NABER S P IHonoré Ed Reisebeschreibungen von Deutschen Beamten und Kriegsleuten im Dienst der Niederländischen West und OstIndischen Kompagnien 16021797 Den Haag Martinus Nijhoff 1930 SANTIAGO Diogo Lopes História da Guerra de Pernambuco Recife Companhia Editora de Pernambuco 2004 SANTOS PÉREZ José Manuel Estado Capitanias donatariais e companhias comerciais Uma visão Comparativa do Brasil holandês In SILVA Kalina Vanderlei Org Histórias conectadas Ensaios sobre História Global Comparada e Colonial na Idade Moderna Brasil Ásia e América Hispânica Rio de Janeiro Autografia 2016 SCHALKWIJK Frans Leonard Igreja e Estado no Brasil holandês 16301654 São Paulo Cultura Cristã 2004 SCHOTT Willem Inventário dos engenhos situados entre o Rio das Jangadas e o Rio Una em Pernambuco 1636 In MELLO José Antônio Gonsalves de Fontes para a História do Brasil holandês a economia açucareira Recife Companhia Editora de Pernambuco 2004 SILVA Filipa Ribeiro da Dutch and Portuguese in Western Africa States Merchants and the Atlantic System 15801674 Leiden Brill 2011 VAINFAS Ronaldo Jerusalém colonial Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2010 WAITJEN Hermann O domínio colonial holandês no Brasil Recife Companhia Editora de Pernambuco 2004 XAVIER Lucia Furquim Werneck Sociabilidade no Brasil holandês 16301654 Tese Doutorado em História Universiteit Leiden Leiden 2018 O ciclo das revoluções libertárias em Pernambuco 181718211824 Flavio José Gomes Cabral Espaço das rebeldias No prelúdio do século XIX Pernambuco era uma das mais importantes capitanias da América portuguesa e tal denominação se estendia à vila do Recife que apesar de constituir um grande centro urbano não era a capital que se encontrava localizada a pouca distância na cidade de Olinda Esta cidade com o passar dos anos perdeu seu prestígio para a vizinha vila que cresceu a olhos vistos vocacionada para as atividades mercantis e portuárias As autoridades paulatinamente abandonaramna e se fixaram no Recife que se tornou o centro das grandes decisões políticas e administrativas A importância da capitania vinha desde os tempos coloniais quando ela se projetou na região em que estava inserida sendo muitas vezes chamada para auxiliar as capitanias vizinhas durante ameaças internas e externas e até na manutenção de outros estabelecimentos coloniais Esse tipo de socorro ocorreu por exemplo nos anos de 1822 e 1823 período no qual a província prestou apoio logístico durante as guerras da Independência fornecendo tropas munições de guerra e víveres importantes para que as tropas imperiais principalmente na Bahia e no Piauí pudessem se manter e combater as forças portuguesas concentradas naquelas regiões O território de Pernambuco naquele prelúdio do Oitocentos se estendia por toda a Comarca do São Francisco banhada pelo rio homônimo que dividia a Capitania da Bahia Figura 1 134 135 Figura 1 Carta topográfica da Capitania de Pernambuco Desenhista José Fernandes Portugal 1807 A carta destaca parte da costa brasileira o Rio São Francisco marco divisório entre as capitanias de Pernambuco Bahia Minas Gerais e Goiás Figura 2 Correio de Pernambuco no dia da chegada do vapor Europa 18631865 Vêse a Igreja do Espírito Santo e seu telégrafo semafórico Junto a ela o Palácio do Colégio dos Jesuítas do Recife Ainda naquele início de século falavase das mudanças políticas ocorridas na Europa e nos Estados Unidos da América do Norte Muitas dessas novidades chegavam por intermédio dos viajantes e tripulação das embarcações que arribavam no porto recifense e eram recebidas com euforia Ao perceber as movimentações das bandeiras coloridas do telégrafo semafórico instalado na torre da Igreja do Espírito Santo localizada no Bairro de Santo Antônio e contígua ao Palácio do Colégio sede do governo a população imediatamente corria para o cais a fim de receber notícias do outro lado do Atlântico Figura 2 A operacionalização das bandeiras coloridas tinha a finalidade de comunicar que navios se aproximavam pondo em alerta não apenas a população curiosa mas também os comerciantes e as autoridades militares Estas ficavam em estado de vigilância sobre a presença de possíveis embarcações inimigas os fortes eram preparados para apontar seus canhões contra os invasores Os comerciantes providenciavam pessoas para transportar as mercadorias vindas a bordo naquelas embarcações 136 137 se passava aqui e lá fora como também a arraiamiúda que circulava em vários espaços e ouvia as novidades dos viajantes almocreves feirantes soldados e escravizados Falavase muito em voz alta para que tais informações fossem escutadas repassadas e inclusive alteradas Insatisfações e rebeldias e a República de 1817 No dia 6 de março de 1817 quando eclodiu uma revolução em que se contestou a autoridade real pairava sobre o Norte uma recessão generalizada com grandes flutuações dos preços dos principais gêneros de primeira necessidade O custo de vida em um centro urbano como o Recife era difícil para todo mundo Um pescador disse à época que preferia viver em Maceió porque viver lá era melhor Na zona rural o quadro era talvez pior e também havia protestos No sertão bandoleiros aterrorizavam a população Com a chegada da família real a carga tributária cresceu para desespero de todos Por ser uma das capitanias mais lucrativas Pernambuco era também a mais explorada sendo obrigada a financiar os gastos da Corte Em 1809 o governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro mostrouse preocupado com a possibilidade de não continuar honrando compromissos mas a Coroa nada fazia para atenuar as reclamações Apeje CC cód 69 fls 1520 Tanto os homens endinheirados quanto a população pobre acreditavam que o rei havia dado as costas para a província Havia descontentamentos em várias esferas sociais a ponto de se orquestrarem sedições No Recife alguns desses encontros foram organizados nas casas de vários maçons entre os quais Domingos José Martins o padre João Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro o comerciante mestiço Antônio Gonçalves da Cruz Cabugá e o cirurgião Vicente Ferreira dos Guimarães Peixoto Participavam homens ligados às elites e de outros estamentos como soldados e funcionários públicos DOCUMENTOS HISTÓRICOS 1955 vol CVII p 233234 Um cenário exterior encantava os revolucionários o das independências da América A revolução dos Estados Unidos inspirou os revolucionários pernambucanos tanto que se explicou ao presidente norteamericano James Madison que o movimento pernambucano de 1817 havia se inspirado na revolução ocorrida em seu país Quando a revolução já cantava algumas vitórias ela conseguiu a adesão da Paraíba do Rio Grande do Norte e de parte do Ceará Quando as notícias do levante chegaram à Corte do Rio de Janeiro a preocupação de Dom João VI foi imensa a ponto de ele suspender a data de sua aclamação Nesse interregno o cônsul britânico Henry Chamberlain interceptou uma carta escrita em 25 de março de 1817 pelo refugiado portenho Carlos Alvear dirigida a Matias de Irigoyen que deveria fazer com que a missiva chegasse em segurança nas mãos de Juan Matin Pueyrredon Tratavase de trocas epistolares entre lideranças ligadas ao processo de independência da futura Argentina A missiva dizia que a revolução estava prevista para acontecer em outro momento e que os maçons estavam por trás dela Ao relatar o conteúdo da carta para o secretário de Estado britânico Lord Castlereagh o cônsul Chamberlain mostrou surpresa com o modo como a revolução se expandiu e o desejo de que seu espaço geográfico se expandisse DOCUMENTS DIPLOMATIQUES 1973 p 863 Muitas das ideias defendidas pelos revolucionários como soberania popular constituição e abolição da escravatura estavam presentes nos pensamentos do frade carmelita Manuel de Arruda Câmara Em 1810 ele se encontrava acamado e mandou chamar o também maçom padre João Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro um dos componentes do Governo Provisório de 1817 até sua residência em Itamaracá e lhe confiou a guarda de uma cartatestamento contendo planos revolucionários Segundo Pereira da Costa 1982 p 642 o documento deveria chegar em segurança até o amigo N residente nos Estados Unidos por contar planos sediciosos justamente em um momento que a América do Sul se tornava independente Tanto a carta interceptada no Rio de Janeiro quanto a de Arruda Câmara sinalizam a existência de um tipo de sociabilidade epistolar no continente em que se confidenciavam planos e estratégias revolucionárias A questão de soberania pensada por Arruda Câmara e pontuada no texto da Lei Orgânica da República de Pernambuco sinalizava que seus pensadores tinham conhecimento das tramas políticas ocorridas na Espanha no início do século XIX 138 139 um movimento liberal culminou com a convocação das Cortes e a promulgação da Constituição de Cádiz em 1812 que muito influenciou o processo de independência iberoamericano O texto da constituição gaditana fazia referência à soberania popular que na prática retirava do rei o poder Apesar de a proposta republicana ter sido vencedora os monarquistas constitucionalistas ponderaram que não se deveria mudar a forma de governo bruscamente Segundo informou o padre Muniz Tavares 1969 p 61 participante do movimento o advogado José Luís de Mendonça foi um dos que opinaram sobre a manutenção da monarquia sob a forma constitucional e quando ele contou sua proposta ao capitão Pedro da Silva Pedroso este aos gritos o chamou de traidor Empunhou sua espada e só não a utilizou porque foi impedido pelos reunidos Mendonça não reagiu e logo escreveria um documento denominado Preciso Figura 3 que explicava os motivos do rompimento da província com o soberano Figura 3 Preciso dos sucessos que tiveram lugar em Pernambuco Um breve relato para informar aos habitantes da província sobre os fatos e os objetivos da Revolução de 1817 Como a jovem República adotou outro tipo de soberania que se divorciava do corpo do rei este se sentiu traído porque sua real soberania e suprema autoridade haviam sido ameaçadas DH 1953 II p 14 Não havia perdão para os que o atraiçoavam uma vez que haviam cometido um dos mais infames crimes o de lesamajeste isto é crime de alta traição contra sua majestade fidelíssima Isto explica os pesados castigos impostos por ele contra os insurgentes Iara Lis explica que o rei no plano ideal age com doçura e justiça porém como pai sabe pesar suas mãos Por ocasião da repressão realista ele não poupou ninguém nem padres nem proprietários nem soldados nem escravizados Os ecos revolucionários não se circunscreveram ao Recife e Olinda chegaram às longínquas localidades interioranas Na vila de Cimbres Joaquim de Almeida Catanho morador do Recife cooptou uma pessoa para se insurgir e intencionava seguir para os sertões com a mesma finalidade José Porfírio de Freitas foi um dos que comungavam com o pensamento de Catanho e não mediu esforço para engajar pessoas para servirem às hostes revolucionárias Se esses homens procuravam adesão da população ao governo republicano Maria White esposa de James White em altos gritos dava vivas à religião e ao rei Depois foi impedida de continuar com seu protesto por um dos filhos de Porfírio que de posse de uma pistola ameaçava tirarlhe a vida Apeje Ord 1 fls 49 49v De uma ou de outra forma o posicionamento da senhora White foi inédito principalmente porque em uma época dominada pelos homens a voz feminina era pouco escutada o que sinaliza que outras mulheres devem ter tomado algum tipo de atitude durante a Revolução No povoado de Bonito a população permaneceu fiel ao rei e de armas na mão ingressou nos exércitos realistas Mesmo assim as autoridades locais permanecerem em estado de alerta por temerem eclosões de rebeliões escravas e dos homens que foram recrutados à força para os citados exércitos Apeje Ord 1 fls 3637 Os bonitenses tinham suas razões em 1816 eles haviam sido beneficiados com uma gleba de sesmaria pela Coroa e o documento lhes dava posse definitiva da terra que haviam ocupado desde o fim do século XVIII Assim sentiamse gratificados pela decisão real 140 141 Quando a Revolução eclodiu os manifestantes tomaram as ruas aos gritos de viva a pátria e liberdade e procuraram apagar da memória tudo o que lembrasse a monarquia absoluta Os quadros de Dom João VI e os símbolos reais foram removidos das repartições ou desfigurados com instrumentos cortantes Posteriormente por ordem do Governo Provisório foi autorizada a remoção dos símbolos reais das fachadas dos edifícios e dos timbres dos papéis oficiais Foram reutilizados os papéis antigos porém com as armas reais de pontacabeça como se viu na edição do panfleto Preciso Figura 3 Durante as manifestações o consulado britânico não foi poupado o emblema real inglês ostentado em seu frontispício foi alvo da fúria dos manifestantes A exemplo do sucedido com as insígnias portuguesas ele foi danificado contudo o Governo Provisório mandou reparar os estragos assim que possível e pediu desculpas ao representante do governo britânico Por ocasião da tomada do edifício do erário pelos insurgentes o cônsul John Lampreie testemunhou a bandeira do Reino Unido Português ser arriada e substituída por outra totalmente branca e só após a capitulação do governador Caetano Pinto a flâmula republicana azul e branco em que a princípio figurava uma estrela foi adotada e passou a tremular em várias localidades O estandarte foi apresentado ao público em uma solenidade cívicoreligiosa realizada no Campo do Erário Campo da Honra hoje Praça da República Uma aquarela dessa bandeira foi entregue por Cabugá ao governo norteamericano contendo notas explicativas em inglês sobre seus símbolos Posteriormente cópia do referido pavilhão foi publicada no Boston Patriot de 16 de maio de 1817 BOURDON 1975 p 271 Os tempos da Revolução foram considerados os tempos da pátria Isto é o tempo da pátria particular A época a palavra pátria hoje elucida da pela historiografía se referia ao local de nascimento das pessoas uma vez que não existia sentimento de nacionalidade ele surgiu posteriormente A Revolução procurou investir em linguagem política o que era importante para que ela ganhasse corpo em meio à população Uma das inovações foi o uso de palavras como vós em substituição de vossa mercê O uso de vossa mercê era recorrente entretanto tratase de uma expressão ligada à realeza Só o rei concedia mercês e distribuía justiça O tratamento vós deixou de ser limitado ao trato real e posteriormente se estendeu para outras pessoas A mudança de tratamento não agradou às elites principalmente a nobreza da terra porque incentivava igualdade Caiu no desgado de muitos brancos Fazer parte daquela nobreza significava ter poder e distinção Foi arvorandose desse capital simbólico parafraseando Pierre Bourdieu 1989 que o advogado do abastado senhor de terras Francisco de Paula Albuquerque Maranhão se esforçou em sua defesa para qualificálo de descendente da primeira e maior nobreza de Pernambuco DOCUMENTOS HISTÓRICOS 1955 vol CVIII p 8788 Figura 4 Vista da cidade de Recife tomada do Forte do Brum 18 Durante a Revolução de 1817 o que se pensou sobre a questão da escravatura desagradou as elites A ideia de igualdade pautada nos direitos do homem por sinal muito debatida pelos insurgentes não caiu no agrado de muitos nobres Esses desapontamentos demonstram que em dado momento muitos desses senhores se encantaram com o projeto revolucionário principalmente aqueles que contestavam o fisco e falavam sobre os perdões das dívidas Contudo eles se mostraram arredios quando o tema era escravidão ou igualdade e alguns começaram abandonar a Revolução Apesar de ter sido pensada pelos revolucionários a abolição da escravidão encontrou resistência e ficou acatado que ela seria solucionada no longo prazo de forma lenta regular e legal Desta forma explicou Marcus Carvalho que a Revolução em destaque não era abolicionista mas não era escravista seu posicionamento era emancipationista isto é defendia o fim gradual da escravidão Defendendo o direito de propriedade a Revolução se viu em fogo cruzado porque muitos proprietários rurais não abriam mão de seus escravizados por isso muitos começaram a desistir do movimento Para essas pessoas o liberalismo tinha limites ele não deveria tocar na propriedade e qualquer diálogo sobre a escravidão era inaceitável Para as elites o direito da propriedade e a manutenção da escravidão eram intocáveis Essas decisões demonstram o quanto as elites interferiam em benefício próprio e com a Independência em 1822 o Estado continuou sendo influenciado por elas Aliás pouca coisa mudaria no Brasil A república pernambucana durou cerca de 74 dias Ela foi no dizer de Denis Bernardes 2006 p 205 a mais ousada e radical tentativa de enfrentamento até então vivido pela monarquia portuguesa em toda a sua história Se a revolução não triunfou explicou Carlos Guilherme Mota 1972 p 3 em contrapartida os zeladores do regime não conseguiram o retorno pacífico ao status quo ante Durante os quase dois meses da Revolução a fidelidadeum dos mais importantes laços de união dos súditos ao monarca foi rompida A entrada do governador Luís do Rego Barreto no Recife foi motivo de muitos festejos porque ele representava o próprio rei a entrar em seus dominos A Revolução de 1817 encanta principalmente pelas ideias algumas delas muito presentes atualmente eleição voto constituinte e Constituição Ela foi a única que saiu das teias sediciosas arquitetadas entre quatro paredes tomou as ruas e o poder após expulsar o governador régio elegeu um governo colegiado semelhante ao que vinha acontecendo no exterior recebeu atenção da imprensa europeia e americana e enviou representação diplomática para o exterior vieram à tona e constataram que o padre se cercou de vários meios para prejudicar o capitão de Buíque seus parentes e amigos Também foram ouvidas testemunhas que afirmaram terem sido coagidas tanto pelo cura quanto pelo ouvidor Coutinho sob ameaça de serem castigadas se não denunciassem os implicados Outras disseram que foram obrigadas a assinar papéis comprometedores sem ao menos ler seu teor Naquela oportunidade também se constatou que a casa tida como lugar das mencionadas reuniões era um velho local onde se realizavam danças de baiano AN IJJ9 cód 245 fl 301 e outros entretenimentos frequentado por moradores de Buíque e cercanias Não tendo ficado claro na devassa se a acusação de que os implicados organizavam reuniões sediciosas procedia o caso foi encerrado e os implicados isentados de culpa Entretanto o caso de Buíque abriu possibilidades para se compreender o clima de tensão existente em Pernambuco no período pósrevolucionário quando na esteira do debaque da revolução emergiu uma onda de denuncismo muitos desafetos foram denunciados não sendo poupados parentes próximos que foram presos e severamente castigados Em várias correspondências para a Corte Luís do Rego dizia não ter sossego quase todos os dias chegavam denúncias de sedições mas afirmava estar atento para defender os direitos do rei Entre março e abril de 1820 tomou conhecimento de ajuntamentos de pessoas nas cercanias da Serra do Rodeador no povoado de Bonito As notícias chegavam desencontradas Falavase que ali se abrigavam hordas de salteadores depois espalhouse história de desacantos de reinos O governador pediu que as autoridades do povoado vigiassem o local e tomassem medidas necessárias para saber sobre seus desejos Ele tinha convicção de que aquele povo era remanescente da Revolução de 1817 e ali se instalara para fomentar um movimento contrarrevolucionário Assim sendo o sítio do Rodeador foi espionado e arrasado em 26 de outubro de 1820 Uma devassa foi aberta a pedido do governador e revelou que as pessoas que se instalaram no Rodeador eram mulatos pobres desempregados que sonhavam com o retorno do rei Dom Sebastião soberano português morto no Marrocos havia quase 250 anos quando então as injustiças sociais deixariam de existir CABRAL 2004 A chegada da família real ao Brasil em 1808 em nada melhorou a situação da população nortista principalmente em relação à pobreza Os métodos de recrutamento militar continuaram rigorosos e a população pobre cresceu sem perspectiva de trabalho O trabalhador rural Antônio Ferreira de 45 anos foi um dos moradores do Rodeador que foram presos durante o cerco àquela localidade Durante o inquérito denunciou que tudo estava muito caro e quem não tinha dinheiro não podia se enterrar na igreja DEVASSA fl 127 Tanto Ferreira quanto outras pessoas que correram para o Rodeador nutriam esperanças de que viviam no paraíso terreai uma terra sem mal e que todos seriam agraciados com a posse da terra e outros desejos Essas ideias eram propagadas por Silvestre dos Santos desertor do 12º Batalhão de milícias locais As histórias contadas por Silvestre encantavam por prometer mudanças que poderiam acontecer no país inclusive o fim dos pesados castigos impostos aos desertores e os vexames impostos aos soldados A maioria dos habitantes do Rodeador fazia parte da Irmandade Bom Jesus da Lapa fundada por Silvestre e seu cunhado Manuel Gomes das Virgens tidos como procuradores de Cristo Abaixo deles 12 pessoas denominadas de sabidas exerciam atividades importantes nos rituais de iniciação de novos membros A estrutura social do grupo comportava um corpo composto de procuradores e procuradoras da honestidade cujas funções eram velar os vestiários e proibir uniões que maculassem a religião O que chama a atenção no corpo dessa procuradoria eram as mulheres que exerciam funções importantes na comunidade Entre as mais importantes procuradoras figuraram Feliciana Maria da Conceição Joana Batista Francisca Maria de Santa Ana Isabel Maria e Joana Evangelista Elas se destacaram em alguns ritos o que era raro na sociedade patriarcal de então pois eram atividades que não se verificavam na vida profana tampouco na hierarquia eclesiástica Os habitantes do Rodeador se diziam agir por autorização divina que reconheciam apenas o rei Dom Sebastião o que era muito grave e que um dia haviam de sair daquele sítio e ir a toda parte a fim de seguir sua lei Os que seguissem tais doutrinas seriam felizes Luís do Rego não era benquisto naqueles mundos tanto que as lideranças locais desejavam se encontrar com ele para lhe fazerem umas cuias da cabeça uma para eles beberem e outra para quem a quisesse DEVASSA fl 73 Não reconheciam João VI como seu soberano e ele não seria nada quando do retorno de Dom Sebastião Essas declarações foram vistas como ameaçadoras porque mesmo tratandose de um grupo monarquista a autoridade de Dom João VI e seus agentes não era reconhecida reconheciase outro rei que estava encantado em uma das encostas da Serra do Rodeador Tudo isso levantou suspeitas de que uma experiência sediciosa estivesse sendo orquestrada ali Na realidade a história dos deserdados do Rodeador revela muitas das aspirações da população pobre livre que vivia por esses brasís no tempo do processo de Independência Muitos desconfortos infernizavam aquele povo como a carestia as injustiças sociais e principalmente o sistema de recrutamento de tropas Pernambuco entre metrópoles No momento em que Luís do Rego decidiu viajar até o povoado de Bonito para dirigir in loco as operações militares destinadas a dissolver a comunidade do Rodeador foi surpreendido com a chegada de uma embarcação inglesa portadora de novidades sobre a eclosão de uma revolução ocorrida no dia 24 de agosto de 1820 na cidade do Porto A revolução inspirada nos movimentos liberais espanhóis convocou à revelia do rei as Cortes que deveriam organizar uma Constituição pondo em xeque o absolutismo monárquico A conjuntura política dos anos 1820 não pode ser entendida sem um olhar mais abrangente porque embora tenha iniciado na Península Ibérica logo se espalhou na América espanhola e portuguesa Foi um período de grande conturbacão política pois as rédeas da província passavam das mãos do governador régio para as de uma Junta Provisória de Governo e não foi uma passagem simples uma vez que Luís do Rego relutou em entregar o governo Figura 5 Junta em Pernambuco Em Goiana em 29 de agosto de 1821 se iniciou um movimento armado contra o governador Luís do Rego Diante da resistência de Luís do Rego seus opositores orquestraram sua queda em Goiana O movimento ganhou corpo com a adesão de vários senhores de engenho da região da Mata Norte Na noite do dia 28 de agosto de 1821 a vila foi sitiada No dia seguinte a Câmara foi ocupada e forçouse sua anuência Nesse interregno foi convocada uma eleição para se instalar uma Junta Provisória Figura 5 que deveria se submeter apenas ao senhor rei Dom João VI e às Cortes Apeje OC Cód 1 fl 335 Este governo propunha o afastamento de Luís do Rego e a realização de eleições e estava formado por Francisco de Paula Gomes dos Santos presidente Felipe Mena Calado da Fonseca secretário o capitãomor Joaquim Martins da Cunha Souto Maior o padre Manuel Silvestre de Araújo Manuel dos Reis Curado Antônio Máximo de Souza o capitão José Vitorino Delgado de Borba Cavalcanti de Albuquerque e Bernardo Pereira do Carmo Quando Luís do Rego tomou conhecimento das ocorrências de Goiana convocou no Recife algumas pessoas para elegerem um governo provisório denominado Conselho Constitucional Governativo da Província Na realidade tal atitude procurava atender as exigências da Junta de Goiana mas mantendose o general no comando do governo A reação da junta goianense foi rápida Com exceção das câmaras do Cabo Ipojuca Sirinhaém e Santo Antão Luís do Rego não contava com o apoio das demais câmaras municipais que inclusive se recusaram a atendêlo sobre o envio de forças armadas para desbancar os liberais goianenses Como Luís do Rego não dava sinais de deixar o governo em Goiana ficou acordada a invasão do Recife O governador tentou responder ao ataque mobilizando tropas mas elas recuaram devido a vários problemas Após diversas discussões um acordo começou a ser traçado Em 5 de outubro de 1821 algumas lideranças dos dois governos e alguns representantes das câmaras interioranas se reuniram na povoação de Beberibe e assinaram um armistício em que ficaram acertados alguns pontos importantes Que se esperariam as ordens de Sua Majestade e das Cortes para a instalação da Junta Provisória que deve governar a província por inteira PERNAMBUCO 1973 p 144146 Antes de ser efetivado o acordo que ficou conhecido por Convenção de Beberibe passou por vários ajustes Houve vozes discordantes como a de Felipe Mena Calado da Fonseca um dos radicais mais exaltados À medida que as conversas avançaram ele foi obrigado a ceder em vários pontos principalmente quando se expuseram os problemas de ordem econômica da província Era preciso sossegar o espírito dos povos e aliviar a agricultura da suspensão dos trabalhos rurais desembaraçando as milícias empregadas no restabelecimento da ordem Em Lisboa em atendimento às insistentes reclamações dos deputados pernambucanos resolveu o Soberano Congresso destituir o general por meio do decreto de 1º de setembro de 1821 Com esta decisão mandava também instalar em Pernambuco sua Junta de Governo Ela seria de caráter provisório e deveria ser eleita por um colégio eleitoral reunindo as comarcas de Olinda Recife e do Sertão O general foi informado dessas decisões por meio de uma carta de Dom João VI datada de 2 de setembro de 1821 que teve ampla divulgação no jornal Segarrega de 10 de dezembro Com a exoneração de Barreto foi dado início ao processo eleitoral para a escolha da Junta Provisória de Pernambuco As câmaras foram convocadas a enviar representantes que reunidos na Sé de Olinda no dia 26 de outubro de 1821 elegeram o novo governo pernambucano Ele passou a ser constituído pelo comerciante Gervásio Pires Ferreira presidente pelo padre Laurentino Antônio Moreira de Carvalho secretário pelo cônego Manuel Inácio de Carvalho pelo coronel António José Vitoriano Borges da Fonseca por Felipe Néri Ferreira por Joaquim José de Miranda e pelo comerciante Bento José da Costa A criação de juntas provisórias significou no dizer de Barman 1988 p 75 uma redefinição da rede de poder que abrangia o império português já que seus integrantes eram eleitos e submetidos diretamente a Lisboa Os eleitos tinham confiança de que as províncias antigas capitanias poderiam administrar seus próprios negócios sem a interferência de direção externa As províncias foram preservadas dos benefícios conquistados em 1808 ficando restabelecida a influência local nos assuntos administrativos e fiscais perdidos desde aquela data Essas medidas agradaram os membros da junta pernambucana cujo espírito autonomista herdado da Revolução de 1817 era algo de que os novos governantes não abriam mão Por conta dessa independência a primeira junta chefiada pelo comerciante Gervásio Pires mantevese fiel à Lisboa e foi vista com desconfiança pelo grupo político que apoiava o príncipe regente D Pedro Os anos de 1821 e 1822 foram tumultuados em face dos enfrentamentos entre as Cortes e Dom Pedro Este negava obedecer ao Soberano Congresso que havia ordenado seu retorno para a Europa optando no dia 9 de janeiro de 1822 por permanecer no Brasil ato conhecido por Dia do Fico Em seguida expediu dois importantes decretos o de 16 de fevereiro que criava o Conselho dos Procuradores provavelmente de autoria de José Bonifácio de Andrada e Silva e o de 3 de junho que convocava a Constituinte brasileira ou brasilíca como se dizia na época Gervásio Pires questionou ambos porque ajuizava que não era da competência do príncipe decidir sobre aquele estado de coisa e sim das Cortes Os palacianos cariocas que assesssoravam Dom Pedro viam a situação política pernambucana com muita preocupação Eles tinham consciência da influência de Pernambuco sobre os nortistas por isso entendiam que a província deveria ser conquistada para servir de ponto estratégico para a expansão dos seus projetos políticos naquela região E como a junta não dava sinais de aderir ao Rio resolveu o ministro José Bonifácio intervir e enviou Antônio de Meneses de Vasconcelos Drummond ao Recife para sujeitar a Junta ao regente A Junta gervasista não apenas enfrentou oposição dos partidários de Dom Pedro Ela enfrentou também problemas no tocante a conflitos étnicoraciais que brotaram continuamente Vários conflitos de rua de que participaram as tropas escravizados e gente descalça exigiram que a Junta reconhecesse Dom Pedro como chefe do Executivo do Brasil A solicitação foi considerada inconstitucional por isso não foi atendida A situação se tornou insustentável a ponto de a Junta pedir exoneração entretanto ficou na governança à espera de uma decisão do Rio de Janeiro Neste interregno o capitão Pedro da Silva Pedroso recentemente libertado da prisão que cumpriu devido à sua atuação em 1817 posicionouse contrário a Gervásio antigo companheiro de enxo via e se proclamou governador das Armas Ele era muito benquisto entre as tropas e populares e conseguiu arrastálas para as ruas depois a Junta exigiu que a Câmara do Recife elegesse temporariamente outra em substituição O golpe perpetrado por Pedroso contou com o apoio político do Rio de Janeiro e representou a queda de um grupo que tinha em mente o autogoverno cujos participantes haviam sido eleitos pelos membros das câmaras provinciais A ação golpista saiu vitoriosa porque os militares seduzidos pelo aumento de soldo e por melhorias de vida caso aderissem a Dom Pedro Ihe deram total apoio Essa retórica parece ter conquistado o coração das companhias de Monta Brechas Bravos da Pátria e Intrépidos fundadas por Gervásio Pires Esses homens ou não conseguiram apoiálo ou haviam se bandeado para o lado oposto Além dessas companhias o golpe contou com as articulações do capitão José de Barros Falcão de Lacerda junto de seus comandados que haviam se deslocado para a Bahia para combater as tropas portuguesas sob o comando do general Inácio Luís Madeira de Melo Após a derrubada da junta gervasista no dia 18 de setembro de 1822 foi escolhida outra presidida por Francisco de Paula Gomes dos Santos Ela foi temporária funcionando até 23 de setembro dia da eleição do novo governo conhecida por Junta dos Matutos porque as pessoas que a integravam estavam ligadas às atividades rurais isto é por senhores que compunham a nobreza da terra A nova junta estava presidida por Afonso de Albuquerque Maranhão os demais integrantes do governo eram representantes das mais importantes e tradicionais famílias locais Foi com essa junta que Pernambuco reconheceu a Independência em 8 de dezembro de 1822 No dia 7 de setembro de 1822 o Brasil não estava todo independente Se em dezembro Pernambuco festejou sua adesão ao Império isso não significou que todas as províncias tivessem aderido ao projeto independentista Algumas delas se encontravam ocupadas por tropas portuguesas que resistiram à Independência o que abriu caminho para uma iminente guerra civil Pernambuco havia desde os tempos de Gervásio Pires expulsado o Batalhão dos Algarves composto por soldados portugueses que em 1817 atravessaram o Atlântico para auxiliar Luís do Rego no desmonte da Revolução que eclodiu naquele ano Apesar de as tropas estarem subordinadas a Lisboa e diante da ausência do governador das Armas que deveria comandálas a junta gervasista aproveitou o ensejo e tomou para si antigas prerrogativas dos governadores Mesmo diante dessa ação as Cortes persistiram no envio de novas tropas como aquelas que chegaram com o governador das Armas José Maria de Moura e que foram impedidas de desembarcar em 3 de fevereiro de 1822 Apesar da insistência das Cortes em enviar tropas para a província a junta gervasista recusou todas sob a alegação de não necessitar de tropas para tranquilizar a província porque tudo caminhava na normalidade Graças à firmeza do governo pernambucano diz Franchini que a província não seguiu o mesmo curso da Bahia Teria sido difícil para o Império unificar o Norte às províncias coligadas isto é ao conjunto de províncias formado pelo Rio de Janeiro São Paulo e Minas Gerais Novos desacertos e ameaças Segundo Socorro Ferraz o governo dos matutos foi caracterizado pela ausência de autoridade e por discórdia o que motivou consecutivos pedidos de renúncia e troca de presidência O ambiente governamental estava polarizado entre o grupo liderado por Francisco de Paula Gomes dos Santos expresidente da Junta de Goiana e defensor do autogoverno e os que seguiam as orientações vindas do Rio os centralistas encastelados em torno de Francisco Paes Barreto morgado do Cabo também conhecido como grupo morgadista que mais tarde substituiria Afonso Maranhão na presidência A Junta tentou destituílo mas devido a uma manobra de Francisco de Paula Gomes dos Santos ele conseguiu se conservar no comando das Armas Na noite de 21 de fevereiro de 1823 a Junta utilizando alguns subterfúgios conseguiu encurralar Pedroso em Afogados Contudo o capitão conseguiu resistir e retornou para o Recife nos braços de seus admiradores em meio a grande gritaria o que pôs em sobressalto os membros do governo Temendo represália fugiram do Recife para suas propriedades e deixaram o governo acéfalo Pedroso apoiado por Gomes dos Santos exigiu a deposição da Junta e sua imediata substituição por outra de seu agrado O desfecho deste levante Pedrosada se deu a partir do momento em que estando os membros do governo encurralados em suas propriedades as tropas começaram a refletir sobre quem pagaria seus soldos uma vez que não se sabia onde residia a autoridade E na iminência de serem prejudicadas e sem dinheiro para saldar seus compromissos as tropas começaram a abandonar o capitão abrindo caminho para que ele fosse preso por ordem do intendente da Marinha Manuel de Carvalho Paes de Andrade e imediatamente embarcado para o Rio de Janeiro para cumprir sua sentença de prisão O ano de 1823 foi turbulento No dia 9 de abril entrou em circulação o jornal Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco editado pelo médico baiano Cipriano José Barata que desde dezembro de 1822 havia se instalado no Recife após sua fuga de Lisboa pois havia sido impedido de retornar à sua província em guerra civil pela Independência O jornal era editado na Rua Direita uma das principais artérias recifenses e foi responsável pela ampliação das discussões políticas Era lido oralmente ouvido e seu conteúdo era transmitido para outras pessoas ajudando na formação de opiniões Em um momento em que o Estado nacional estava em construção Cipriano dizia que Hei de escrever para os da cidade e da aldeia homens mulheres sábios e poucos instruídos mas todos os discursos se bem refletirem hão de saber sempre ao bem geral da Pátria NASCIMENTO 1969 v 4 p 45 absolutista por isso foi denominado pelo redator do Sentinela da Liberdade de Clube de corrompidos ou estúpidos aristocratas propugnadores da malvada fé da monarquia absoluta Durante dias o falatório cresceu e isso alimentou o clima de insegurança A província praticamente se encontrava acéfala havendo quem opinasse que o governo deveria ser substituído Foi nesse clima de incerteza que o Grande Conselho reunido em 13 de dezembro de 1823 decidiu tratar dos destinos da província O presidente Paes Barreto não compareceu alegando enfermidade e foi substituído por Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque a quem delegou poderes para sugerir proposições para o restabelecimento da ordem pública inclusive a exoneração da Junta caso os reunidos não acatassem suas ordens As estratégias de Paes Barreto falharam A reunião do Grande Conselho foi conturbada pela gritaria de abaixo o governo vinda das ruas Depois de muita conversa o Conselho aprovou a substituição da Junta por um presidente provincial que foi eleito naquele mesmo dia Manuel de Carvalho Paes de Andrade e um secretário doutor José da Natividade Saldanha Esta eleição representou uma afronta das lideranças pernambucanas a Dom Pedro I porque pela lei de 20 de outubro de 1823 era dele o direito de nomear o presidente e o secretário provinciais As divergências tomaram vulto quando o citado Conselho em 8 de janeiro de 1824 ratificou o nome dos eleitos não mais em caráter precário decisão que contou com a anuência dos representantes das câmaras de Olinda Recife Igarassu Paudalho Cabo Limoeiro e Sirinhaém Em fevereiro de 1824 a Corte do Rio de Janeiro nomeou Francisco Paes Barreto para presidente da província e ordenou ao Senado da Câmara de Olinda que o empossasse A decisão imperial foi retardada e acabou não sendo cumprida sob a alegação de que as câmaras municipais precisavam ser consultadas Como as câmaras ratificaram a eleição de Paes de Andrade este foi mantido na presidência sob a alegação de que o morgado do Cabo não tinha condições para governar a província porque havia se demitido da Junta alegando ter perdido a força moral para governar Frei Caneca justificou os motivos da rejeição ao preferido do imperador porque não se confiava em suas atitudes além de pesarem sobre seus ombros acusações de ter ordenado a prisão de Cipriano Barata perseguir a imprensa combativa do estilo autoritário de Dom Pedro I combater os velhos companheiros de 1817 e ter influído nas desinteligências entre o capitão Pedroso e a Junta presidida por Albuquerque Maranhão Ante a desobediência das lideranças pernambucanas o imperador se sentiu ultrajado e não mediu esforços para punir os rebeldes A Corte do Rio de Janeiro resolveu deslocar para Pernambuco o capitão inglês John Taylor com a missão de bloquear o Recife caso persistisse a oposição à posse de Paes Barreto Entre outras instruções havia aquela que mandava prender Paes de Andrade e outros que desobedecessem ao mandatário imperial A fragata Niterói que conduzia o capitão inglês e outras embarcações que a acompanharam fundearam no dia 31 de março no lugar Lamerão no porto recifense No dia seguinte Taylor expediu uma proclamação em que pedia aos pernambucanos que acatassem as ordens imperiais a fim de evitar uma guerra civil O bloqueio dos portos pernambucanos motivou o acirramento das rivalidades existentes na província Segundo Glacyra Leite os grupos populares requisitados pelos carvalhistas e pelo morgado achavamse divididos e dependendo das vantagens apoiavam ora um ora outro Depois da queda do capitão Pedroso a população dos centros urbanos passou a apoiar Paes de Andrade e a do interior menos comprometido com as lideranças e apegado à realeza concentrou seu apoio aos morgadistas À medida que os conflitos caminhavam para uma rebelião os carvalhistas passaram a contar com importantes suportes da Câmara e das tropas olindenses Além da proclamação citada anteriormente que causou celeumas o capitão Taylor explicou a Manuel de Carvalho Paes de Andrade o motivo de sua vinda a Recife e esperava dele bom senso uma vez que tanto ele quanto Dom Pedro I só reconheciam Paes Barreto como presidente do governo Em resposta Carvalho explicou que havia sido eleito com 110 votos em um colégio eleitoral composto de 150 votantes Adiantou que seu opositor era inapto para assumir o cargo porque não inspirava confiança AN BR RJ B2 XM 056 John Taylor tentou arrumar uma solução para o impasse e mostrouse alarmado com o posicionamento republicano dos apoiadores do intruso No dia 6 de maio de 1824 ocorreram no Recife duas importantes reuniões a primeira do Grande Conselho deliberou sem perda de tempo ataque à província de Alagoas em razão de seu governo apoiar o morgado e imediatamente instalar outro governo compromissado com o carvalhismo a segunda ocorreu no Senado da Câmara para deliberar sobre o conhecimento da nomeação de Mayrink e sobre o juramento do projeto de Constituição preparado pelo Conselho de Estado e proposto por Dom Pedro I Quanto ao primeiro item os grupos mais radicais se opuseram à posse do indicado pelo imperador para ocupar a presidência Quanto à segunda deliberação Frei Caneca que se encontrava presente contestou a maioria dos artigos que compunham o projeto de Constituição por encontrar incongruências Em sua exposição o Carmelita chamou a atenção para o descaramento do poder central que mandava jurar um projeto quando a província vivia momentos difíceis com um bloqueio à vista fazendonos todas as hostilidades Declarou voto contrário e foi seguido pelos demais Viviamse momentos pontuados pela indignação por conta do fechamento da Assembleia Constituinte por Dom Pedro e sua recusa em reabrila atos considerados despóticos pela elite intelectual Manuel de Carvalho Paes de Andrade em seu manifesto de 1o de maio de 1824 chamou a atenção dos nortistas para o projeto de Constituição oferecido pelo imperador em substituição à Carta que estava sendo preparada por uma Assembleia Para ele isso se constituía em uma ilusória promessa de ser duplcadamente mais liberal do que aquele que se discutia na Assembleia extinta Eis um novo absurdo que na sua cegueira não conheceram os infames áulicos que precipitaram o imperador jovem inexperto ou que esperavam de nós tanta ignorância que deixássemos passar esta monstruosidade A soberania é da nação só à nação compete escolher a matéria do pacto social projetar e construir FONSECA 2016 p 16 Percebese que as lideranças pernambucanas dificilmente aceitariam acatar as ordens emanadas do Rio de Janeiro sem protesto O projeto de independência foi arquitetado naquela cidade de modo que unisse todas as províncias união que repousava na fundação de um império constitucional tendo Dom Pedro como imperador Assim a dissolução da constituição abalou a união e pôs o Império à deriva Na prática as lideranças de 1824 começaram a enxergar a Independência do Brasil como a conservação de um ramo bragantino no trono como ato enganador Esperavase novo sistema e Constituição livre que lhes agrade Constituição feita sobre princípios liberais que destroça ordens privilégios e isenções classes morgados comendas BNRJ 38 110 A Independência não trouxe novidades para desespero de quem confiara em Dom Pedro desde as comoções de rua ocorridas no tempo da Junta Provisória por Gervásio Pires Em 2 de julho de 1824 Paes de Andrade convidou as províncias nortistas a se rebelar contra o Império Em seu manifesto ele procurou demonstrar que tanto o sistema de governo existente no Brasil quanto o imperador não estavam correspondendo às expectativas para defesa da pátria e para a soberania da nação Propunha pôr em prática um sistema americano de governo considerado mais apropriado para o Brasil Em outras palavras com a dissolução da constituinte a reivindicação de uma república confederada vem a representar a defesa da autonomia provincial FONSECA 2016 p 16 Foi proposto que no dia 17 de agosto de 1824 os procuradores das províncias confederadas se reunissem no Recife a fim de preencher as lacunas deixadas pela dissolução da constituinte Em resposta a essa rebeldia o governo imperial como em 1817 manteve o controle do mar e novamente bloqueou os portos pernambucanos em operação comandada pelo almirante Cochrane Maria Graham que havia estado em Pernambuco em 1821 desembarcou no Recife pela segunda vez em trânsito para a capital imperial e tentou convencer Manuel de Carvalho Paes de Andrade a aceitar a rendição porque as forças do Rio eram superiores às dele Em meados de setembro de 1824 as tropas imperiais cercaram o Recife e Paes de Andrade conseguiu fugir para a Inglaterra Em novembro os últimos rebeldes entre os quais Frei Caneca foram vencidos no sul do Ceará A partir daí seguiuse uma verdadeira caçada humana com prisões e execuções entre elas a do Carmelita arcabuzado em 13 de janeiro de 1825 no Largo de Cinco Pontas no Recife da Companhia informam apenas que Hendrick van Haus responsável pelo comando das tropas que deram perseguição aos rebeldes lutara por 2 ou 3 horas sem parar contra as forças dos lusobrasileiros e que estas estavam em posição vantajosa em um monte íngreme cuja subida só era possível através de uma única e estreita passagem Com muitas baixas e com pouca munição e provisões o comandante decidiu se retirar quando escureceu ATAS DIÁRIAS DO ALTO E SECRETO CONSELHO DO BRASIL 05081645 MELLO 2010 p 364365 NIEUHOFF 1981 p 191 Um soldado que participara da refrega um dinamarquês de nome Peter Hansen Hajstrup fora igualmente econômico em suas palavras sobre o evento mas confirma em seu diário a dificuldade enfrentada pela tropa de seu comandante Lutaram contra pequenos grupos de rebeldes e foram atraídos para um monte íngreme onde os lusobrasileiros tinham posições entrincheiradas e várias armadilhas preparadas Lutaram até o anoitecer e se retiraram com grandes baixas HAJSTRUP apud MIRANDA TEENSMA XAVIER 2016 p 54 Do lado português o frei Manuel Calado é quem faz o relato mais detalhado do confronto citando os lugares e a disposição das tropas CALADO 2004 p 531 Construíu uma narrativa muito vívida do episódio embora não o tenha presenciado pessoalmente Os relatos de Calado Hajstrup e do governo holandês embora com qualidades e estilos distintos possuem alguns fatos compatíveis as várias tentativas holandesas de tomar a posição dos rebeldes a posição vantajosa dos lusobrasileiros a retirada da gente da Companhia que ocorreu com o abrigo da noite e o tempo de luta Entremties André Vidal de Negreiros e Martim Soares Moreno desembarcaram tropas em Tamandaré sul de Pernambuco Essa força sitiou e rendeu tropas da Companhia em Sirinhaém e depois rumou para Santo António do Cabo Lá sitiaram a fortaleza de Nazaré O comandante da fortificação Diederick van Hoogstraten mediante acordo prévio com os sitiadores entregou a posição aos portugueses MELLO 2000 p 170171 MELLO 2010 p 369 NIEUHOFF 1981 p 196 223 Teatralmente as forças dos terços de Negreiros e Moreno prenderam João Fernandes Vieira Fingiram cumprir ordens do governo de Salvador Depois juntaramse com a gente de Filipe Camarão e de Henrique Dias e partiram para perseguir tropas da Companhia Eram os soldados remanescentes e esgotados do confronto em Santo Antão que marchavam de volta ao Recife e após passar por São Lourenço fizeram pouso em um engenho da várzea do Capibaribe de nome Tourlon4 Eles foram cercados atacados e vencidos pelas forças lusobrasileiras MELLO 2010 p 370 Sobre esse evento o Alto Conselho fez uma nota concisa em seus registros diários datada de 17 de agosto de 1645 informando que o Senhor Haus fora atacado com grande força por uma tropa do inimigo no engenho do Senhor De With ATAS DIÁRIAS DO ALTO E SECRETO CONSELHO DO BRASIL 17081645 O soldado Peter Hansen Hajstrup sobrevivente da batalha em Santo Antão estava entre os combatentes da Companhia que foram sitiados no Engenho Tourlon Seu relato narra a luta dramática entre as partes e o desespero dos seus camaradas Ele foi um dos poucos que conseguiram escapar das forças lusobrasileiras e chegar ao Recife para amargar um longo cerco que se estenderia pelos anos seguintes HAJSTRUP 2016 p 5658 Mais uma vez o frei Manuel Calado faz registro pormenorizado e rico do evento CALADO 2004 p 3368 O dano foi imenso nas forças holandesas Haus fora responsabilizado pela derrota no Engenho Tourlon teria demorado demais para retornar ao Recife sendo surpreendido pelas forças encabezadas por André Vidal de Negreiros e aprisionado junto com outros oficiais NIEUHOFF 1981 p 235236 Em poucos dias de agosto de 1645 o exército da Companhia estava virtualmente esfacelado e restrito a algumas posições fortificadas em vilas e cidades das capitanias do Norte MELLO 2010 p 374375 Apesar do sucesso inicial da rebelião que tomou várias localidades holandesas os portugueses não foram capazes de conquistar o Recife e praças fortificadas no Rio Grande e Paraíba O Brasil voltava praticamente ao estágio da guerra dos primeiros anos com 4 A denominação está atrelada ao capitão Charles de Tourlon casado com Ana Pais dAltro herdeira do engenho de invocação a Nossa Senhora das Necessidades Posteriormente o engenho foi denominado Nassau De With e Casa Forte Charles de Tourlon foi comandante da guarda de Johan Maurits van NassauSiegen mas em 1643 fora destituído e preso a mando dele acusado de conspirar para tomar seu posto e de participar numa conjuração de moradores portugueses contra a Companhia Fora expulso do Brasil e faleceria em 1644 nos Países Baixos inocentado após uma investigação A viúva casouse com Gijsbert de With funcionário da Companhia O casal residiu no Brasil até a capitulação dos holandeses em 1654 partindo para os Países Baixos naquele ano MELLO 2006 p 188189 MELLO 2012 p 6970 126 127 internos necessita sempre dessa referência Dessa relação com o resto da história do país e da história do mundo atlântico escravista Ampliando o espectro da anedota se tivesse de concluir este texto em uma sentença ousaria dizer que o cerne da história de Pernambuco na primeira metade do século XIX é a história do fortalecimento da escravidão e derrota de todas as propostas liberais iluministas que poderiam levar o país a um modelo político mais avançado com representação popular mais ampla e provavelmente trazendo o fim da escravidão mais cedo Resumindo ainda mais a escravidão e o latifúndio ganharam1 A segunda metade do XIX que começa com a derrota dos praieiros é a vitória do agronegócio latifundiário escravista com o esmagamento das propostas mais avançadas vinculadas ao Iluminismo A luta continuaria claro Nunca faltou resistência dos trabalhadores livres e escravizados os intelectuais mais radicais nem sempre se calaram e o movimento abolicionista em Pernambuco não foi apenas palaciano ou dependente da imprensa Foi popular como de resto em todo o Brasil com o protagonismo dos escravizados e de seus descendentes em busca de direitos muitos dos quais líquidos e certos mas totalmente descumpridos com o aval das autoridades locais e imperiais Afinal de contas na letra da lei todos os africanos que entraram no país depois de 1831 eram pessoas livres Neste texto partimos dessa perspectiva mais ampla que conecta a história do tráfico de escravizados para Pernambuco com a história do mundo atlântico escravista para tentar descrever uma pequena parte dos múltiplos processos vinculados a este cenário maior Apesar de evitar uma visão regionalista mais estreita é necessário por outro lado descrever esses processos sem se afastar da perspectiva da História de Pernambuco Esta perspectiva justificase por duas razões principais Primeiro porque o estudo do protagonismo dos agentes locais vinculados ao tráfico é fundamental para o entendimento desta questão na história de Pernambuco Em 1 Este texto é baseado principalmente em pesquisas feitas ao longo de minha carreira algumas delas constantes da bibliografia mas apesar de autoral não poderia ser escrito sem o luxuoso auxílio de outros estudiosos alguns dos quais referenciados ao longo do trabalho que nem de longe pretende esgotar um assunto tão vasto como o tráfico após a Independência Peço desculpas portanto pelas muitas omissões encontradas nas páginas seguintes segundo lugar esta perspectiva tem a contribuir com a história do tráfico para as demais províncias do Império do Brasil pois o apogeu do tráfico no resto do país aconteceu a partir de 1837 quando a Regência foi assumida por Araújo Lima o futuro Marquês de Olinda a maior liderança política de Pernambuco no século XIX Depois da Abolição a escravidão e o tráfico foram se tornando assuntos que só interessavam às suas vítimas e a alguns poucos estudiosos Muitos já observaram essa tentativa de esquecimento colocandose uma pedra sobre o assunto Não obstante o nome de Pernambuco sempre teimou em aparecer em todos os trabalhos escritos sobre o comércio de gente escravizada numa escala atlântica A obra de Gilberto Freyre deixou claro que não havia como fazer a história do Brasil sem se estudar o problema da escravidão a fundo Mas ficaria para o futuro o estudo mais aprofundado do tráfico para Pernambuco A capitania de Duarte Coelho está muito presente no livro de Pierre Verger sobre o tráfico da Costa da Mina para a Bahia e desponta na obra de Philip Curtin o primeiro estudo mais geral sobre a dimensão demográfica do trato de gente escravizada da África para as Américas Ambos os livros originalmente publicados na década de 1960 deixavam entrever que para se estudar a séria a história de Pernambuco até 1850 pelo menos o tráfico de escravizados tinha que ser levado em consideração E de fato havia historiadores atentos ao problema antes até dos anos 1960 como por exemplo José Antônio Gonsalves de Mello Mas no que diz respeito ao século XIX foi só nos anos 1970 que Peter Eisenberg mostrou os dados ingleses mais gerais sobre o tráfico para Pernambuco e os analisou cotejando com sua fantástica pesquisa primária em inventários Ficava claro a relevância da velha capitania depois província como nexo do tráfico atlântico Ressalto que hoje em dia esses censos gerais do tráfico estão disponíveis e com alguma perseverança o pesquisador encontra vários desses relatórios ingleses na internet Mas quando Eisenberg publicou seu livro ainda era preciso sair do Brasil para se ter acesso àquelas fontes Mesmo então ainda faltavam nomes e detalhes Quem eram os traficantes que operavam a partir de Pernambuco no século XIX principalmente depois da Independência Como atuavam politicamente e qual o seu lugar 167 social Como funcionava o tráfico a partir de sua total ilegalidade depois da lei antitráfico de 1831 A historiografia acadêmica contemporânea tem abordado essas questões revelando que de fato não há como estudar a história de Pernambuco sem referência ao tráfico Atrevome a dizer que só é possível entender o sucesso da província em se manter como produtora de um dos açúcares mais baratos do mundo atlântico no século XIX devido à facilidade da navegação desde a África centroocidental Congo e Angola até a parte do litoral brasileiro entre o Cabo de Santo Agostinho e Cabedelo O trajeto durava em média pouco mais de 26 dias segundo uma amostra de navios negreiros que viajaram de Angola para o Recife entre 1827 e 1831 cujo tempo de viagem foi registrado nas páginas do Diario de Pernambuco Nenhuma outra rota do litoral africano até as Américas pôde ser feita em tão pouco tempo como esta entre Angola e Pernambuco O total domínio sobre a posse da terra proletarizando as pessoas livres despossuídas fechava o circuito da agroindústria açucareira de Pernambuco Os ventos e correntes marítimas portanto subsidiaram o tráfico para Pernambuco e consequentemente sua agricultura escravista O pouco tempo de viagem cortava os custos com víveres e salários da tripulação despencava a mortalidade dos cativos e até dos marujos a bordo permitia o uso de embarcações precárias e facilitava a fuga do controle do cruzeiro inglês que tentava capturar os navios negreiros depois de 1831 A facilidade do tráfico de cativos desde o Congo e Angola permitiu aos produtores rurais escravistas de Pernambuco concorrerem com outras paragens da América açucareira garantindo a rentabilidade dos seus negócios apesar da baixa capitalização dos senhores de engenho e da praça do Recife isso se torna evidente quando comparamos sua realidade a de outros locais do mundo atlântico escravista inclusive a Bahia Vale salientar que no alvorecer do Brasil imperial os negociantes atlânticos de gente escravizada em Pernambuco já tinham uma experiência secular nesse sórdido ramo de negócios Para aferir a presença deles basta olhar os dados do site slavevoyagesorg disponíveis gratuitamente Os próprios criadores do site enfatizam que se trata de uma amostra de uma realidade complexa o tráfico cuja completude jamais seremos capazes de aquilatar pois é impossível saber exatamente quantas pessoas foram efetivamente embarcadas no imenso litoral da África quantos pereceram durante a viagem e quantos efetivamente desembarcaram deste lado Também tem sido salientado pelos estudiosos que comparado ao voluplo ainda é pouco o que sabemos sobre o tráfico para a América inglesa e francesa por exemplo ainda é pouco o que sabemos sobre o tráfico para a América portuguesa depois Brasil menos ainda sobre o caso pernambucano DOMINGUES DA SILVA ELTIS 2008 Postas essas ponderações a partir dos dados da plataforma slavevoyagesorg percebese que praticamente metade dos africanos que chegaram no Brasil até 1630 desembarcaram em Pernambuco Até a virada do século XVI para o XVII a grande maioria dos cativos que vieram para a América portuguesa desembarcaram na capitania de Duarte Coelho Podese dizer que o tráfico para a América portuguesa praticamente começou em Pernambuco e secundariamente na Bahia A diminuição relativa de Pernambuco em comparação a outras partes das Américas inclusive a Bahia e o Rio de Janeiro data da ocupação holandesa em 1630 No século XIX portanto a escravidão em Pernambuco não era um epifenômeno da agricultura canavieira Era um modo de vida e permaneceu assim após a Independência quando de acordo com o estudo de Domingues da Silva e Eltis 2008 96278 africanos vieram para a província dentre os quais 49196 chegaram depois da lei antitráfico de 1831 e foram ilegalmente escravizados Devido a esse influxo quase ininterrupto de gente escravizada surgiram rotinas portuárias bem definidas no Recife com diversos locais para aprisionamento dos africanos recémchegados gente especializada nas tarefas de vigilância e cuidados para que a valiosa mercadoria pudesse se recuperar o mais rapidamente possível da terrível viagem Não faltavam os aparelhos e trabalhadores necessários para o pleno funcionamento desse ramo de negócios inclusive agentes da saúde línguas2 e até cativos operando a mando dos senhores ou alugados na estiva e nas demais atividades portuárias Pelo que se sabe até o momento não havia apenas uma única categoria de comerciantes especializados nesse ramo de negócios As fontes 2 Tradutores 168 169 existentes sobre os navios negreiros na rota para o Brasil no século XIX demonstram que muita gente mesmo que apenas eventualmente participou do tráfico inclusive em parceria com outros negociantes Apesar disso havia de fato alguns negociantes cujo principal ramo de atividade era o comércio atlântico de gente escravizada Esses grandes traficantes participavam ativamente da política imperial e provincial quase sempre vinculados às facções mais conservadoras e pertenciam a câmaras de vereadores assembleia provincial juizados de paz associação comercial irmandades etc Amealharam fortuna e poder durante o Primeiro Reinado quando o tráfico ao sul da Linha do Equador ainda era legal Foi dessa área que engloba os atuais Congo e Angola que veio a imensa maioria dos cativos que desembarcaram em Pernambuco depois da Independência Uma minoria todavia veio da chamada Costa da Mina ao norte da Linha do Equador ou seja o que estava proibido pelos tratados assinados depois da derrota de Napoleão e que o Brasil assumiu depois da Independência Assim após a Independência entraram inúmeros africanos ilegalmente escravizados antes mesmo da lei antitráfico de 1831 que proibia todo o comércio transatlântico de cativos Entre os principais traficantes da rota para Pernambuco alguns fizeram carreira tanto no litoral africano como no pernambucano como os irmãos Regadas e Francisco Ribeiro de Brito O mais importante de todos esses negociantes foi Ângelo Francisco Carneiro um dos maiores traficantes da primeira metade do século XIX cujos negócios tinham múltiplos elos em diversas províncias do Brasil Discreto em suas atividades Ângelo terminou aparecendo menos nas fontes mais óbvias sobre o tráfico do que poderia sugerir a sua bemsucedida carreira no ramo pois nem sempre seu nome consta como proprietário ou dono de navios negreiros Ângelo todavia foi responsável pela vinda de milhares de africanos para o Brasil atuando no próprio litoral africano antes de se estabelecer no Recife ALBUQUERQUE 2016 Além disso não era incomum que os negociantes se aliassem nesse tipo de aventura repartindo custos e riscos O caso da barca Ermelinda é sintomático da presença de vários investidores Até o cozinheiro Rufino José Maria personagem principal do livro de Reis Gomes e Carvalho levou consigo caixas de goiabada para negociar no continente africano Apreendida pelos ingleses a embarcação aparece com papéis em nome de José Francisco de Azevedo Lisboa Todavia quando a situação ficou difícil diante da comissão mista foi Ângelo quem apareceu para liderar a defesa da embarcação e seus tripulantes Ainda teve o desplante de desafiar os ingleses lançando ao mar a Ermelinda Segunda logo depois com explícita intenção de ser apreendida para que fosse solicitada indenização REIS GOMES CARVALHO 2010 Não era incomum que os negociantes atlânticos de cativos formassem sociedades mercantis voltadas para esse tipo de atividade Eventualmente seus sócios anunciavam nos jornais o encerramento de contratos de sociedades mercantis queixavamse uns dos outros inclusive falando de dívidas ou créditos pela venda de cativos revelando a verdadeira atividade que exerciam conjuntamente Uma dessas empresas deixou um registro mais claro de suas atividades pois em 1837 a marinha inglesa apreendeu no Rio Benim dois navios negreiros da rota para Pernambuco o Veloz e o Camões Na documentação apreendida pelos ingleses estavam uma cópia de um contrato entre os sócios e uma parte da correspondência entre os seus gerentes e empregados que trabalhavam numa feitoria do tráfico montada pela sociedade para negociar no Rio Benim na atual Nigéria MARQUES 2002 REIS GOMES CARVALHO 2010 A cópia do contrato apreendida não tem a assinatura dos seus 20 sócios mas indica o nome do gerentegeral da empresa José Francisco de Azevedo Lisboa As embarcações seriam compradas em nome dele como no caso da Ermelinda mencionada acima mas na realidade pertenciam à empresa O contrato traz ainda o nome de dois negociantes de grosso trato que serviriam como conselheiros diretos do gerentegeral no caso Joaquim Leocádio de Oliveira Guimarães e Manuel Alves Guerra Este último traficante aparece como proprietário ou consignatário de vários navios negreiros da rota para Pernambuco sendo responsável por trazer pelo menos 2630 cativos para a província se somarmos os dados do slavevoyagesorg com os de cativos vindos no Nossa Senhora da Conceição em 7 de fevereiro de 1827 e no Borboleta em 15 de maio de 1829 que constam das entradas de navios negreiros no Recife publicadas pelo Diário de Pernambuco Leocádio de Oliveira Guimarães por sua vez era maçom e provavelmente detinha uma posição importante na instituição3 É possivelmente por esta razão que se encontra entre os papéis apreendidos um longo relato sobre os segredos da maçonaria em Pernambuco identificando também suas lojas localização e lideranças O nome desse negociante é menos conspícuo nas fontes sobre o tráfico que identificam proprietários e consignatários de navios negreiros da rota para Pernambuco Está no entanto na cópia do contrato daquela empresa que apareceria várias vezes como protagonista do tráfico para Pernambuco através do nome do seu gerente José Francisco de Azevedo Lisboa O nome de Leocádio consta ainda de uma carta daquele gerente ao comandante do Veloz com várias instruções A carta menciona que uma parte do soldo do comandante do Camões Joaquim Antônio Coelho no valor de 200 mil réis foi depositado em seu nome com Leocádio4 Mais conhecido no Recife por Azevedinho José Francisco de Azevedo Lisboa segundo o contrato apreendido deveria comprar os navios negreiros em seu nome Não era todavia o verdadeiro proprietário de nenhum deles Não entrava com capital na empresa mas participaria dos lucros junto com outros empregados mais qualificados que entretanto recebiam um pouco menos do que ele Nos anos seguintes o nome de Azevedinho seria mencionado várias vezes na documentação diplomática inglesa referente ao tráfico já que os navios da empresa navegavam em seu nome não apenas ao norte da Linha do Equador onde foram capturados os navios negreiros Veloz e Camões mas também no litoral do Congo e Angola As fontes sobre tráfico da rota para Pernambuco mencionam muitas das atividades da sociedade e sugerem que dela participavam vários outros traficantes que provavelmente eram os signatários do contrato REIS GOMES CARVALHO 2010 Um dos possíveis participantes daquela sociedade foi Gabriel Antônio cuja trajetória de vida difere da de outros negociantes advindos de gente rica vinculada ao comércio de grosso trato Gabriel Antônio pelo que sabemos galgou aos poucos uma posição de destaque no tráfico pois no final dos anos 1820 ainda era mestre e caixa de um dos navios negreiros do maior traficante da rota para Pernambuco Elias Coelho Cintra A posição de capitão de navio negreiro podia até pagar bem comparada ao comando de outras embarcações mercantis Mas envolvia riscos imensos inclusive de contrair doenças sem cura na época ou até ser morto pelos cativos a bordo Raramente o comando de navios negreiros garantia fortuna para alguém RODRIGUES 2005 SOUZA 2011 REDIKER 2011 Eventualmente alguns traficantes que vieram de baixo alcançaram imensa riqueza e até a nobreza tornandose membros ativos da elite imperial O mais famoso deles talvez tenha sido José Bernardino de Sá Visconde de Vila Nova do Minho SARAIVA ALMICO e PESSOA 2021 Em Pernambuco Gabriel Antônio conseguiu ascender economicamente tornandose bem conhecido por sua riqueza alcançada depois de 1831 Apesar disso não alcançou o status social a qualidade necessária para pertencer à elite local como Bernardino de Sá no Rio de Janeiro tanto que mereceu poucas linhas na extensa obra de Gilberto Freyre que nada falou sobre suas atividades no tráfico referindose a ele como um negociante citadino que se tornou senhor de engenho sem saber entretanto trocar por botas de montaria os tamancos de português enriquecido em taverna FREYRE 1977 vol 1 p 281 Houve traficantes da rota para Pernambuco entretanto que frequentaram os salões mais nobres da província como foi o caso dos concunhados Ângelo Francisco Carneiro e Francisco Antônio de Oliveira Ambos conviveram bastante com o Barão depois Conde da Boa Vista que governou Pernambuco entre 1837 e 1844 e gastou imensos recursos para a modernização dos espaços públicos frequentados pelas camadas mais altas da sociedade Ângelo e Francisco beneficiaramse disso Formaram inclusive uma sociedade para a construção do Teatro de Santa Isabel que recebeu recursos públicos ALBUQUERQUE 2016 GOMES 2016 Em seu diário o engenheiro francês Louis Léger Vauthier narra alguns dos seus muitos encontros com Francisco de Oliveira futuro Barão de Beberibe o principal empreiteiro da obra em cuja casa foi várias vezes jantar Vauthier não se omite em mencionar o envolvimento de Ângelo e Francisco no tráfico É interessante também notar o desgosto do engenheiro francês com várias das decisões tomadas pela sociedade entre os dois traficantes em relação à construção do teatro levando ao aumento de custos desnecessários VAUTHIER 1970 Os praieiros portanto não estavam errados ao denunciar o caráter perdulário de muitas das obras realizadas no governo do Barão da Boa Vista como apontou Amaro Quintas em sua obra em que pese parte da historiografia que transborda em elogios às suas reformas Apesar de ocuparem posições de destaque na política local devido à grandeza de seus negócios que demandavam tempo e constância foram poucos os traficantes mais expressivos que se candidataram ao parlamento brasileiro Em Pernambuco os que trouxeram mais gente escravizada Elias Coelho Cintra e Francisco Antônio de Oliveira não viriam a ocupar assentos na câmara ou no senado imperial Francisco de Oliveira chegou a participar de chapas do partido conservador para o parlamento mas não logrou ser eleito Todavia presidiu a Assembleia Provincial por vários anos como mostrou o estudo de Amanda Barlavento Gomes 2016 Esses negociantes de cativos ilegalmente escravizados depois de 1831 não precisavam pertencer ao parlamento imperial pois estavam muito bem representados na Corte principalmente pela bancada conservadora de Pernambuco Os estudos de Paulo Cadena por exemplo demonstraram que os irmãos Cavalcanti estavam claramente vinculados ao tráfico não apenas por serem consumidores da mercadoria humana mas por terem vínculos bastante estreitos com alguns dos grandes traficantes da rota para Pernambuco O mesmo se pode dizer do mais importante político de Pernambuco durante o Brasil imperial Araújo Lima Marquês de Olinda Seus vínculos com traficantes por parentesco e amizade também foram revelados nos estudos de Cadena Araújo Lima tornouse ministro pela primeira vez ainda no Primeiro Reinado Ninguém ocuparia mais pastas em ministérios no Império do Brasil do que ele que assumiu a Regência entre 1837 e a maioridade de Pedro II em 1840 o que lhe valeu o apelido de vicerei segundo Cadena 2013 e 2018 É importante salientar o papel de Araújo Lima na brutal aceleração do comércio atlântico de africanos escravizados ao assumir a Regência em 1837 No Primeiro Reinado enquanto esteve à frente do governo imperial Pedro I pouco fez de efetivo para acabar com a escravidão A sua oposição ao escravismo nunca passou de um discurso sem resultados objetivos relevantes Na realidade era apenas uma maneira de não destoar das luzes do século como convinha a um monarca na era pósnapoleônica A queda de Pedro I em abril de 1831 no entanto guindou o governo regencial a uma aliança que incluía liberais doutrinários opostos às excessivas prerrogativas do imperador concentrados no chamado poder moderador que nas palavras da Constituição de 1824 era a chave de toda a organização política art 98 Nos primeiros anos da Regência houve até tentativas malsucedidas de restringir as imensas prerrogativas que o imperador se autoconce deu ao dar um golpe de estado no dia 12 de novembro de 1823 fechando nossa primeira Assembleia Constituinte e impondo à nação a Carta de 1824 Foi no período regencial que houve finalmente uma medida concreta contra o tráfico atlântico de escravos a qual se pensava então que seria o primeiro passo para acabar com a escravidão a lei antitráfico de setembro de 1831 O Padre Feijó fora um dos líderes da oposição a Pedro I no parlamento Depois da queda do imperador em 1831 Feijó assumiu o Ministério da Justiça e apoiado por uma maré de reformas liberais conseguiu aprovar a lei antitráfico de 7 de novembro de 1831 Esta lei conhecida como Lei Feijó não foi promulgada para inglês ver como há muito deixaram claro Grinberg e Mamigonian 2007 n 1235 A sua inobservância foi um resultado posterior devido ao imenso poder dos traficantes e seus aliados os grandes latifundiários e proprietários de cativos cuja representação no parlamento foi crescendo chegando ao auge a partir de 1837 Só que depois da lei antitráfico de 1831 os navios negreiros não podiam desembarcar cativos nos portos das grandes cidades litorâneas como faziam desde o período colonial pois pela lei essas pessoas eram africanos livres O tráfico então 5 Embora dispersa é bastante extensa a historiografia sobre os impactos da lei antitráfico de 1831 Destaco os estudos recentes em SARAIVA ALMICO PESSOA 2021 e RAMOS DE SANTANA SILVA Jr REGINALDO FERREIRA 2022 mudouse para outras partes do litoral fora das grandes cidades portuárias Em Pernambuco todos os portos naturais estavam situados em praias contíguas a grandes engenhos de açúcar ou em frente a povoações também sob o jugo político da classe senhorial O governo regencial conseguiu que o tráfico para o Brasil caísse efetivamente entre 1831 e 1833 só começando a crescer em 1834 revelando o paulatino reempoderamento dos defensores do tráfico e do latifúndio escravista No ano seguinte 1835 como observou Leslie Bethell em um livro originalmente publicado nos anos 1970 a maioria parlamentar assumiu a defesa dos interesses da grande propriedade agrária e do tráfico BETHELL 2002 p 104 A bem da verdade ficava claro nos debates parlamentares o rumo mais conservador que a maioria parlamentar estava tomando principalmente depois da morte de Pedro I em setembro de 1834 impedindo qualquer possibilidade da sua volta e a reunião das coroas portuguesa e brasileira enfraquecendo a oposição que pretendia limitar ou mesmo extinguir o Poder Moderador Antes disso em agosto o parlamento havia votado a reforma constitucional da qual resultou o Ato Adicional e a substituição da regência trina por um único regente As eleições para o parlamento e para a regência única em 1835 geraram resultados contraditórios entre si e com imensas repercussões Naquela eleição as lideranças regionais vinculadas ao tráfico e à grande propriedade agrária que depois viriam a formar o Partido Conservador consolidaram seu domínio sobre a Câmara dos Deputados elegendo sólida maioria Esse grupo prometia uma volta à ordem através da violenta repressão aos levantes populares motins urbanos e rebeliões que pipocavam pelo país tais como a Cabanada 18321835 entre Pernambuco e Alagoas e a Cabanagem 18351840 esta última possivelmente a maior rebelião popular que ocorreu neste país que incendiou vários dos atuais estados na região amazônica A Sabinada 18371838 e a Balaiada 18381841 violentamente esmagadas também serviriam de justificativa para os que defendiam uma volta à ordem como diziam empregando todos os meios possíveis para coibir as manifestações populares que poderiam de alguma forma ameaçar o latifúndio e a escravidão Devido a esta explícita intenção de uma volta ao que teria sido a antiga ordem monárquica esse grupo que viria a dominar o parlamento na segunda metade do período regencial ficou conhecido como regressistas ou mesmo reacionários Talvez devido ao excesso de confiança essa maioria parlamentar oligárquica dividiuse lançando vários candidatos para a Regência que agora deixava de ser composta de três membros passando a ser ocupada por uma única pessoa O resultado foi a pulverização dos votos dos conservadores Como a eleição não tinha segundo turno como hoje em dia os candidatos conservadores terminaram sendo derrotados Somados tinham 4487 votos mas individualmente ficaram atrás do Padre Feijó considerado um farroupilha ou seja um liberal exaltado que teve 2826 votos O segundo mais votado foi o candidato pernambucano Holanda Cavalcanti com 2251 um representante da facção oligárquica mais moderada seguido de três candidatos ainda mais conservadores do que ele no caso José da Costa Carvalho com 847 votos o também pernambucano e futuro regente Araújo Lima com 760 votos e o general Lima e Silva com 629 Contrastando com esse voto oligárquico vitorioso no parlamento e derrotado na Regência estavam o próprio Feijó e o pernambucano Manuel de Carvalho Paes de Andrade presidente da Confederação do Equador em 1824 que anistiado conseguiu 605 votos na eleição para regente FALAS DO TRONO 2019 p 211 Embora pareça pouco a votação de Manuel de Carvalho Paes de Andrade não pode ser considerada inexpressiva pois era um candidato que apenas 10 anos antes havia liderado um movimento republicano liberal radical nas províncias do Norte que poderia ter se espalhado pelo Brasil Essa votação demonstra a representatividade dos liberais radicais e revolucionários nas chamadas províncias do Norte mesmo que minoritária no cômputo geral dos votos Feijó ganhou a eleição tornandose regente do Império do Brasil mas sem maioria absoluta dos votos e dependendo de um parlamento avesso a quaisquer reformas que pudessem ameaçar a escravidão e a grande propriedade agrária A defesa da escravidão encontrava também ressonância nos inúmeros pequenos e médios proprietários de cativos pelo país afora Não era somente na Câmara esse predomínio dos interesses escravocratas e latifundiários A maior parte do Senado fora indicada por Pedro I ainda no Primeiro Reinado Assim os opositores do tráfico e reformistas liberais estavam em franca minoria nas duas casas legislativas durante a regência do Padre Feijó O regente teve que enfrentar a maioria do parlamento o que dificultou muito a sua administração Devido a essa dificuldade e com problemas de saúde Feijó terminaria renunciando em 1837 Foi a partir daí que o pernambucano Araújo Lima que presidira a Câmara por alguns anos tornouse regente interino seguindo o preceito constitucional pois era então ministro do Império Araújo Lima subiu apoiado pelos saquaremas uma aliança que congregava os conservadores os reacionários como diziam os liberais exaltados do Rio de Janeiro Minas Gerais e São Paulo principalmente O período regencial marca o momento em que o valor do café passou o do açúcar na pauta de exportações brasileiras A ascensão dos saquaremas somada à preeminência do café demarca o início do completo predomínio das províncias do Sudeste brasileiro sobre a política imperial Essa preeminência acarretou uma taxa de câmbio que não beneficiava o açúcar que precisava importar máquinas e utensílios para os engenhos pois o Brasil era um país essencialmente desindustrializado Esse detalhe todavia não vitimizou necessariamente a agricultura das chamadas províncias do Norte pois seu principal motor não eram as máquinas inglesas mas a mão de obra cativa e o latifúndio e a política imperial continuou protegendo esses privilégios da classe senhorial no país inteiro O principal orador e líder intelectual dos saquaremas era Bernardo Pereira de Vasconcelos que defendia o tráfico tanto no parlamento como na imprensa Nomeado por Araújo Lima para a pasta da Justiça uma de suas primeiras medidas foi revogar um decreto que exigia um exame mais atento das embarcações que chegavam da África nos portos brasileiros buscando detectar sinais de que era um navio negreiro que antes de aportar deixara cativos em algum ponto do litoral menos vigiado pelas autoridades locais Bernardo Pereira de Vasconcelos aproveitou a revogação dessa medida para também liberar imediatamente três embarcações que estavam sendo averiguadas BETHELL 2002 p 108 O ano de 1837 portanto representa o retorno triunfal do tráfico com a total convivência do Estado brasileiro mesmo sendo totalmente ilegal pois a Lei Feijó de 1831 não foi revogada Podese dizer que a regência do pernambucano Araújo Lima representou a completa vitória dos traficantes atlânticos sobre os ideais liberais iluministas de acabar paulatinamente que fosse com a escravidão A ascensão daquele grupo à Regência o chamado regresso de 1837 não representava apenas um governo reacionário como dizia boa parte da imprensa na época por ser contrário às mudanças propostas nos primeiros anos da Regência O regresso de 1837 era a tomada do poder pelos defensores e protagonistas do tráfico Jeffrey Needell 2006 demonstrou claramente os vínculos entre os saquaremas e os maiores traficantes do Sudeste do Brasil Paulo Cadena 2018 como vimos acima descreveu em sua tese os vínculos pessoais e familiares do regente Araújo Lima com os agentes do tráfico Araújo Lima representava às oligarquias da periferia da Corte imperial no Rio de Janeiro Aos poucos a aliança composta com os saquaremas que representavam os interesses do café foi azedando até mesmo porque Araújo Lima não era exatamente um saquarema tanto que uma vez regente ele não chamou apenas os saquaremas para compor o tal gabinete das capacidades mas também designou dois outros políticos enraizados em Pernambuco para o gabinete ministerial Maciel Monteiro e Sebastião do Rego Barros Este detalhe tem sido relegado pela historiografia tradicional que muitas vezes costuma observar a política imperial apenas da perspectiva da Corte imperial sem olhar as demais províncias mesmo ficando claro que o Brasil ainda estava em construção e que o Império esteve em vias de se esfacelar por várias vezes na primeira metade do século XIX De um lado devido aos muitos movimentos e rebeliões de caráter mais popular como a Cabanada a Cabanagem a Sabinada e a Balaiada e no extremo sul devido à rebelião farroupilha liderada por estancieiros escravistas O ápice da tensão entre Araújo Lima e a bancada saquarema foi quando o regente indicou para senador pela província do Rio de Janeiro um político pernambucano de sua confiança Lopes Gama irmão do bem conhecido Padre Carapuceiro mas que nunca teve a mesma notoriedade do irmão publicista Lopes Gama flanou em sua carreira de acordo com os interesses das oligarquias locais que representava principalmente do seu padrinho político Araújo Lima CARVALHO CADENA 2019 NEEDELL 2006 Naquela eleição para senador do Rio de Janeiro os saquaremas haviam apoiado José Clemente Pereira uma das grandes lideranças políticas do Império desde a Independência e sogro de Eusébio de Queirós conhecido como o papa saquarema tamanha era sua liderança sobre aquela facção política centralizada no Sudeste do Brasil Clemente era a escolha natural a ser feita na lista tríplice de onde sairia o novo representante do Rio de Janeiro no Senado imperial Araújo Lima não se fez de rogado e rasgou a seda Ignorou o candidato dos saquaremas e escolheu na lista tríplice um político de Pernambuco de pouca expressividade diante do renomado candidato apoiado pelos barões do café e pela elite da Corte imperial A partir dali os saquaremas passaram a fazer oposição ao regente abrindo espaço para o chamado golpe da maioridade em 1840 que colocaria um menino de menos de 15 anos no trono do Brasil BARMAN 1988 NEEDELL 2006 MATTOS 2004 CARVALHO CADENA 2019 Os ingleses não tinham dúvida da vitória do tráfico em 1837 de tal forma que dali em diante azedou muito a relação com o Império do Brasil levando a marinha inglesa a implementar o uso de uma cláusula dos equipamentos no Bill Palmerston de 1839 Aquela medida unilateral do governo inglês autorizava sua marinha a capturar e condenar qualquer embarcação que tivesse sinais de ter sido empregada no tráfico tais como escotilhas gradeadas instrumentos de tortura correntes algemas quantidade de água e alimentos muito além do que precisaria a tripulação panelas forno e instrumentos próprios para se cozinhar para muita gente tábuas para se fazer andares adicionais no porão bailéus esteiras para evitar que a pele dos cativos emparedados nos bailéus se ferisse na fricção com a madeira etc O Bill Palmerston também desobrigava a marinha inglesa a respeitar a bandeira portuguesa debaixo da qual vários traficantes traziam gente ilegalmente escravizada da África para o Brasil REIS GOMES CARVALHO 2010 A cláusula dos equipamentos era baseada em uma realidade observável os próprios navios negreiros que depois de desembarcarem os cativos 180 em locais previamente combinados do litoral brasileiro seguiam viagem até algum porto maior próximo Chegavam sem nenhum cativo a bordo mas com várias evidências de serem navios negreiros inclusive o terrível cheiro de excrementos e cadáveres Em 1835 quando o governo ainda tentava manter o controle sobre o tráfico o ministro Alves Branco assinou um termo aditivo aos tratados vigentes com a Inglaterra que admitia como prova os equipamentos vinculados ao tráfico como água e víveres além do que precisava a tripulação para a viagem instrumentos de tortura e aprisionamento etc Esse termo aditivo que antecipava a cláusula dos equipamentos de 1839 não foi todavia ratificado pelo parlamento brasileiro dominado pelos interesses do tráfico A partir do decreto de 10 de dezembro de 1836 o governo lusitano passou a aplicar regras análogas o que permitiu à sua marinha ser mais eficaz no combate ao tráfico sob a bandeira lusitana já proibido pela legislação portuguesa desde os tratados assinados após a derrota de Napoleão A marinha lusitana era frágil não apenas sob o ponto de vista militar mas também no confronto com os interesses do tráfico em Portugal e na África Só que pelos tratados com a Inglaterra apenas os navios da marinha portuguesa poderiam coibir o tráfico feito em embarcações sob a bandeira lusitana o que fez dela a preferida dos traficantes fossem eles portugueses de nascimento ou não O Bill Palmerston foi uma medida inglesa unilateral para coibir o tráfico feito sob aquela bandeira A medida desrespeitava os tratados com Portugal gerando muitos protestos da diplomacia portuguesa tanto em Lisboa como no Brasil A tal cláusula dos equipamentos portanto não foi uma invenção tirada da cartola pelo almirantado britânico mas uma medida baseada nas práticas dos traficantes A primeira embarcação a ser investigada em Pernambuco depois da lei antitráfico de 1831 demonstra isso A escuna Despique muito veleira partiu do Recife em direção a Angola por Benguela em julho de 1831 A Lei Feijó seria promulgada em setembro do mesmo ano Quando a escuna aportou no Recife em janeiro de 1832 talvez um pouco antes não tinha cativos a bordo mas trazia quatro ou cinco barris cheios de correntes e grilhões mais de 200 esteiras um número excessivo de barris para armazenar água e outros equipamentos próprios de navios negreiros Trazia aquelas 181 características de navio negreiro que os ingleses colocariam na tal cláusula dos equipamentos anos depois em 1839 Antes de aportar no Recife a Despique desembarcou mais de 200 cativos em Pau Amarelo Essa seria a rotina do tráfico nos anos posteriores a 1831 Primeiro os navios deixavam os africanos nos portos naturais previamente combinados com a classe senhorial pernambucana Depois procediam para o Recife para reparos e demais providências necessárias a outras viagens de tráfico ou outras atividades já que praticamente qualquer embarcação poderia ser aprestada para o tráfico dependendo do interesse do seu proprietário ou consignatário O caso da Despique foi bastante escandaloso Incomodou muito o consulado inglês no Recife por exemplo o fato de a provedoria da saúde do porto ter mantido a escuna Despique em quarentena por apenas oito dias dentro do porto protegido do mar alto e das intempéries enquanto o brigue inglês Peruvian foi obrigado a ficar mais tempo em quarentena fora do porto ao largo por ser procedente de Hamburgo uma cidade assolada pelo cólera CARVALHO ALBUQUERQUE 2016 Nessa mesma correspondência diplomática o cônsul inglês todavia não deixou de elogiar a conduta do então presidente da província Francisco de Carvalho Paes de Andrade Como vimos os primeiros anos da Regência guindaram ao centro do poder alguns dos chamados liberais exaltados Aquele presidente de Pernambuco em 1832 era irmão de Manuel de Carvalho Paes de Andrade que havia liderado a Confederação do Equador em 1824 e que voltaria à presidência de Pernambuco alguns anos depois do seu irmão Francisco de Carvalho Paes de Andrade que estava sintonizado com a intenção do ministro da Justiça o Padre Feijó de cumprir a lei antitráfico de 1831 a Lei Feijó6 Como não havia cativos a bordo da Despique o caso não foi adiante na Justiça que não considerava os equipamentos encontrados prova material do crime Nos anos seguintes a ausência de cativos a bordo seria um dos principais argumentos da defesa dos traficantes em casos judiciais Os traficantes inclusive podiam pagar os melhores advogados em suas demandas tanto no Brasil como no exterior nas Comissões Mistas que deliberavam a este respeito A partir de 1835 como vimos os parlamentares que futuramente iriam constituir o chamado partido conservador foram ocupando cada vez mais espaço na Câmara até tomarem o poder em definitivo no regresso de 1837 Foi Araújo Lima enquanto regente entre 1837 e 1840 que em lista tríplice escolheu para o Senado dois dos três irmãos Cavalcanti que ser tornariam senadores durante o Brasil imperial Araújo Lima e os irmãos Cavalcanti ocuparam inúmeros ministérios no Brasil imperial Em várias ocasiões se colocariam em posições distintas e até opostas na política imperial As eleições dos seus aliados em Pernambuco a sede de poder de cada um deles muitas vezes os impulsionaram a lugares diferentes no tabuleiro político como ocorrera nas eleições para regente em 1835 por exemplo Estavam unidos todavia na defesa da ordem escravista e foram beneficiários diretos e indiretos do tráfico ilegal depois de 1831 pois eram também proprietários rurais e urbanos de cativos e vinculados a traficantes atlânticos por laços variados Não é à toa que o tráfico retornaria no Sudeste com um vigor que não tivera antes a partir da regência de Araújo Lima em 1837 Numa escala nacional os anos entre 1837 e 1851 marcam o auge histórico do tráfico para a antiga América portuguesa Só que o Brasil já era independente O tráfico portanto foi praticamente reinventado pois alcançou o seu apogeu no país naqueles anos em que era totalmente ilegal Talvez esteja aí a raiz do desrespeito que as camadas dominantes do país costumam ter em relação à legislação vigente e à violência também ilegal com que tratam o povo sempre que se sentem ameaçados em seus privilégios A demografia do tráfico para Pernambuco tem nuances próprias que destoam do que aconteceu no Rio de Janeiro e na Bahia De acordo com o estudo de Daniel Domingues da Silva e David Eltis 2008 sobre a demografia do tráfico para Pernambuco o apogeu do tráfico na província aconteceu quando o algodão chegou ao seu ápice na pauta de exportações um processo que começou na virada do século XVIII para o XIX Somente entre 1810 e 1821 mais de 95 mil cativos desembarcaram em Pernambuco O algodão 182 183 começou a entrar em crise por volta de 1816 numa longa agonia que se estenderia por vários anos levando a uma diminuição do tráfico depois da Independência Como vimos no começo deste texto entre a Independência e 1831 mais de 47 mil africanos escravizados vieram para Pernambuco Como no resto do país o tráfico declinou durante os primeiros anos da Regência de tal forma que pouco mais de 4 mil africanos ilegalmente escravizados entraram na província entre 1832 e 1835 Em 1836 o tráfico começou a se recuperar chegando a 3500 desembarques e explodiu no ano seguinte com 6650 O salto aconteceu exatamente a partir da regência de Araújo Lima 1837 e 1840 quando entraram 23533 cativos na província DOMINGUES DA SILVA ELTIS 2008 O paradoxo da história do tráfico para Pernambuco é que ele entra em colapso a partir da metade da década de 1840 época de imensa expansão no Sudeste principalmente no Rio de Janeiro onde o café chegara ao seu apogeu O estudo de Daniel Domingues da Silva e David Eltis 2008 sobre a demografia do tráfico para Pernambuco mostra esse declínio que pode ser explicado pela transferência dos escravizados do algodão para o açúcar e pela proletarização dos trabalhadores livres e libertos da Zona da Mata pernambucana cuja única alternativa era ser morador de condição e assim mão de obra barata para os senhores de engenho Vale destacar ainda que durante o governo praeiro 18451848 houve uma tentativa de coibição do tráfico com a captura de alguns navios negreiros Pelo que se sabe até o momento a imensa maioria dos cativos apreendidos a rigor africanos livres terminou sendo escravizada mas o fato de não terem chegado nas mãos dos consignatários dos navios negreiros atacados pela polícia civil praeira trouxe imensos prejuízos aos traficantes locais Isso abalou o tráfico para Pernambuco de tal forma que durante o governo praeiro 18451848 apenas 4460 cativos desembarcaram na província Menos de um quinto dos 23533 cativos que vieram durante a regência de Araújo Lima Marquês de Olinda Foi somente em 1850 que o estado imperial finalmente decidiu conter o tráfico como uma resposta a vários problemas entre os quais despontava a vigorosa resistência da população cativa e a ameaça de guerra no Prata O general Rosas entrara em acordo com os ingleses e franceses e ameaçava claramente interferir no Uruguai com muito apoio naquele país inclusive O Brasil precisava da livre navegação no Prata que dependia da manutenção da autonomia do Uruguai em relação a Buenos Aires Uma nova guerra com Buenos Aires estava fadada ao fracasso se o Brasil não pudesse contar com o apoio ou ao menos com a mediação inglesa para impedir a anexação do Uruguai A crise diplomática com a Inglaterra todavia só crescera depois do Bill Aberdeen em 1845 Dali em diante a marinha inglesa passou a invadir águas brasileiras até na baía de Guanabara à vista de todos para capturar ou mesmo bombardear navios suspeitos de estarem envolvidos no tráfico sem nenhum respeito à Marinha brasileira à Corte imperial e aos tratados com o Império Caso fosse malsucedido na guerra o Brasil corria o risco de ficar numa situação difícil pois o Rio da Prata era o principal caminho fluvial para o interior das províncias do Brasil que margeavam os rios Uruguai Paraguai e Paraná Enquanto isso as fugas e levantes de cativos se avolumavam As principais cidades litorâneas do país tinham imensos contingentes de escravizados a maioria dos quais africanos O Recife particularmente o bairro de São José segundo os estudos de Valéria Costa 2013 e 2015 era uma cidade marcada pela presença africana principalmente por pessoas advindas da África CentroOcidental Congo e Angola e seus descendentes O influxo de africanos a partir do boom do algodão alimentou o Quilombo do Catucá liderado por Malunguinho Um processo análogo ocorreria na capital do Império em cujo entorno surgiram imensos quilombos GOMES 1993 As fugas multiplicavamse em todo o país Os defensores do tráfico no Brasil portanto foram derrotados pelos acontecimentos no Brasil e no exterior A nova lei antitráfico em 1850 dava mais poderes ao governo central e à Marinha a qual caberia julgar os responsáveis pelas embarcações apreendidas tirando da Justiça local essa prerrogativa que terminava absolvendo praticamente todos os traficantes capturados nos anos anteriores A lei antitráfico de 1850 seria reforçada em 1854 pela Lei Nabuco de Araújo que ampliava a jurisdição da auditoria de Marinha para também alcançar aqueles que colaboravam com o tráfico em terra bem além dos locais de desembarque e não apenas a tripulação e os demais agentes diretamente envolvidos nas operações dos navios negreiros BETHELL 2002 Nos 20 anos anteriores entre 1831 e 1850 os navios negreiros desovavam como se dizia na época a sua preciosa carga humana nos portos naturais do litoral pernambucano todos eles situados em praias contíguas a engenhos de açúcar ou povoações dominadas pelos grandes potentados rurais escravistas A bem da verdade não existiam praias sem dono em Pernambuco pois todas elas estavam na Zona da Mata apropriada pela classe senhorial desde o período colonial Os pescadores que porventura vivessem entre os coqueirais e cajueiros dessas praias onde a cana não vicejava eram meros posseiros totalmente dependentes dos senhores de engenho Tanto que não era incomum serem incorporados aos inúmeros trabalhadores do tráfico uma atividade que demandava muita gente em diferentes funções Os senhores de engenhos empregavam jangadeiros para irem ao encontro dos navios negreiros em altomar para ajudar a guiálos ao ponto certo de desembarque Esses mesmos senhores de engenho que recepcionavam os navios negreiros nas praias dos seus engenhos eram os capitãesmores das comarcas do litoral até a extinção dos corpos de ordenanças depois da criação da guarda nacional quando se tornaram coronéis e subcoronéis nas localidades em que residiam Eram também os juízes de paz os juízes ordinários e quando togados galgavam posições mais altas no Judiciário imperial Vale ressaltar que cabia aos juízes de paz reprimir quilombos capturar cativos fujões e proceder contra os traficantes nos termos da lei antitráfico de 1831 Não é à toa que o tráfico tenha permanecido praticamente impune até a lei antitráfico de 1850 Os desembarques distribuição e escravização ilegal dos africanos contavam com a total anuência do aparato policial e judicial brasileiro Os senhores de engenho do litoral de Pernambuco Alagoas e Paraíba eram senhores de engenhotraficantes uma categoria aplicável a essa facção da classe terratente do Império do Brasil Processos análogos surgiram em vários portos naturais do Sudeste pois o tráfico rapidamente vinculouse a grandes propriedades agrárias que começavam no litoral ou então tornou possível a exploração de terras antes pouco frequentadas pela marinha mercantil pois rapidamente surgiram muitas estruturas próprias para acolher navios negreiros e redistribuir os cativos desembarcados inclusive para as cidades A marinha inglesa observou o surgimento de imensos barracões no litoral do Sudeste para aprisionar os cativos recémchegados Todos os equipamentos próprios para recepção de navios negreiros foram implantados no litoral com pomares e água potável canalizada até os pontos de desembarque O litoral sudestino passou a recepcionar navios negreiros que antes iam direto para a capital imperial O complexo cafeeiro e negreiro dos irmãos Breves no litoral do Rio de Janeiro por exemplo foi fundamental para os seus proprietários se colocarem entre os maiores produtores de café do Brasil imperial FORBES 1849 PEREIRA PESSOA 2019 PEREIRA 2021 PESSOA 2021 Em muitas paróquias até o clero costumava participar da parentela senhorial quando não eram eles mesmos proprietários que oravam nas capelas dos seus próprios engenhos Mesmo quando não eram da classe senhorial também ajudavam o tráfico ao batizar os africanos recémchegados Nessa época o batistério equivalia à atual certidão de nascimento A Igreja e o Estado estavam unidos Os párocos eram funcionários do Estado Ao dizer que uma pessoa era escrava de outra o batistério definia a situação legal da criança ou do adulto batizado Muitas vezes definia também a tonalidade da pele Assim o que estava escrito no livro de batismo era a condição legal e a posição social da pessoa ou seja a qualidade Ao registrar africanos livres como escravos o clero sacramentava a escravização dessas pessoas transformando um africano livre num cativo como outro qualquer Reverter isso seria tarefa para o futuro como no caso da ação de liberdade do africano Camilo ilegalmente escravizado depois de 1831 Camilo contou que era apenas uma criança pequena quando o navio negreiro aportou em Atapus Havia outros meninos pequenos com ele Todos foram batizados por um padre cujo nome Camilo não lembrava mas se recordava que era branco e de boa altura AMARAL SETTE 2012 A história do tráfico de escravos para Pernambuco tem muitos episódios que ajudam a clarificar o seu funcionamento por intermédio da classe senhorial e com a anuência do poder judiciário do clero e das autoridades governamentais como um todo Nabuco de Araújo pai do líder 186 187 abolicionista Joaquim Nabuco era ministro da Justiça do Império durante o desembarque de Sirinhaém em 1855 Este desembarque teve muita repercussão nacional e internacional pois o tráfico havia de fato estancado àquela altura Surpreendeu a todos a apreensão de um navio negreiro no litoral pernambucano tentando desembarcar cativos em frente à Ilha de Santo Aleixo numa época em que o tráfico parecia estar sob controle Na realidade o navio só foi capturado porque seu comandante errou o ponto de desembarque e terminou indo parar no engenho errado embora perto do local onde era esperado Ora os proprietários rurais tinham suas desavenças Poderia ser vantajoso denunciar um desembarque ilegal nas praias contíguas ao engenho de um adversário político ou mesmo inimigo pessoal Caso um navio negreiro fosse parar na praia errada fora do controle do proprietário ao qual eram endereçados os africanos ilegalmente escravizados os riscos eram imensos pois nesses casos a carga humana poderia ser simplesmente roubada por outro proprietário ou o desembarque ser denunciado Não faltam episódios dessa natureza nas praias de Pernambuco gerando muita confusão Os africanos livres desembarcados na imensa maioria das vezes terminavam escravizados Mas nesses casos a propriedade dessas pessoas ficava com os proprietários que controlavam o acesso à praia e não com o senhor do engenho que deveria ter acolhido o navio negreiro Houve um caso inclusive em que o traficante correu do Recife para o local onde ocorrera o desembarque tentando salvar seu empreendimento Terminou todavia levando uma surra Não conseguiu recuperar nenhum dos cativos desembarcados na praia errada CARVALHO 20217 O que aconteceu em 1855 em Sirinhaém foi um desembarque em um lugar errado Ao perceber que fora parar no engenho de uma pessoa sem ligação com o desembarque o comandante do navio negreiro voltou para seu navio e tentou negociar os cativos que foram sendo rapidamente repassados A maioria deles desapareceu entre os engenhos da região e terminou escravizada como um milhão ou mais de outros africanos ilegalmente escravizados no Brasil depois de 1831 Apesar da denúncia as autoridades locais foram bastante vagarosas em agir revelando incompetência e anuência O mesmo se pode dizer do governo provincial cujo presidente também tinha laços de família e aliança política com alguns dos envolvidos A notícia do desembarque espalhouse rapidamente alcançando a imprensa na qual há várias narrativas sobre as muitas pontas soltas do inquérito gerando mais um atrito diplomático entre o Brasil e a Inglaterra e debates entre os protagonistas do tabuleiro político de Pernambuco Logo os envolvidos começaram a se denunciar mutuamente como acontecia nos anos 1840 Foi este o último desembarque apreendido com cativos a bordo no litoral brasileiro VEIGA 1977 Este episódio trouxe muitos dissabores para o ministro da Justiça Nabuco de Araújo pois os seus aliados diretos em Pernambuco inclusive gente do clã Cavalcanti estavam envolvidos no crime e o senhor de engenho que pretendia acolher o desembarque era bem conhecido por participar do tráfico A família daquele senhor de engenho também tinha vínculos com Araújo Lima cujo engenho o Antas margeava o Rio Sirinhaém que dava justamente na praia onde ocorrera o desembarque de 1855 e outros nos anos anteriores A própria Ilha de Santo Aleixo onde o navio foi parar era também ponto conhecido dos traficantes O desembarque de Sirinhaém revelou o que todos sabiam a classe senhorial pernambucana estava envolvida diretamente no tráfico e teimava em não deixar este velho hábito mesmo ocupando com mão de ferro o próprio governo provincial e participando do governo imperial pois os liberais radicais remanescentes dos anos da Independência haviam sido esmagados na Insurreição Praieira em 18481849 CARVALHO CADENA 2019 Quanto ao ministro da Justiça Nabuco de Araújo não havia como ele se omitir do desembarque Foi na sua administração que foi promulgada a Lei Nabuco de Araújo que ampliava os instrumentos de repressão ao tráfico da lei antitráfico de 1850 Mas não era só isso Desde a juventude Nabuco de Araújo teceu sólidos vínculos com a classe senhorial pernambucana Nabuco de Araújo filho de um magistrado depois senador do Império estudou Direito em Pernambuco onde também começaria a sua carreira política como 188 189 um protegido dos irmãos Cavalcanti principalmente do Visconde de Camaragibe Em 1847 quando os prai eiros governavam a província ele publicou um longo panfleto anônimo atacando o governo praieiro Foi seu filho Joaquim Nabuco quem revelou que o autor do panfleto foi o seu pai biografado em Um estadista do Império um livro que tenta narrar a história imperial mas da perspectiva das ações do seu pai Nabuco de Araújo ministro da Justiça durante o desembarque de Sirinhaém Um estadista do Império é muito lido até hoje principalmente por tratar de detalhes da vida pessoal e até da personalidade de vários dos grandes do Império Isso em uma narrativa deliciosa de se ler pois Joaquim Nabuco era um grande escritor É um livro essencial mas não muito confiável como bem disse Jeffrey Needell uma vez que é a biografia de um esperto político conservador escrita por seu próprio filho indispensable and undependable NEEDELL 2006 p 200 Pois bem Nabuco de Araújo no seu panfleto de 1847 admitiu claramente que os Cavalcanti e a parentela do Barão depois Conde da Boa Vista acolhiam navios negreiros nas praias sob seu controle Para livrálos da pecha de traficantes Nabuco de Araújo disse que os engenhos dos seus adversários vinculados ao partido praieiro faziam o mesmo Ou seja segundo ele todos os engenhos do litoral de Pernambuco acolhiam navios negreiros nas praias sob seu controle O tráfico ocorria graças à classe senhorial que controlava o acesso às praias e isso independia da afiliação partidária dos proprietários segundo Nabuco de Araújo A bem da verdade para provar o envolvimento da fina flor da classe senhorial de Pernambuco no tráfico nem seria preciso esta confissão de Nabuco de Araújo no panfleto de 1847 pois todos os navios negreiros capturados em sua imensa maioria abandonados no litoral de Pernambuco encontravamse em praias contíguas a grandes engenhos de açúcar O próprio Nabuco de Araújo quando ainda era promotor participou de fiascos na repressão ao tráfico ao denunciar os desembarques perpetrados pelos navios negreiros Bom Sucesso e Rápido no litoral pernambuca no antes de aportarem no Recife em 1837 Nabuco de Araújo reconhecia que tinha poucos indícios contra o brigue Rápido exceto pelo fato de ter aguada ou seja provisão de água muito maior do que a necessária para a tripulação da viagem O ofício não deixa claro o que ele tinha contra o patacho Bom Sucesso As fontes inglesas sobre o tráfico para Pernambuco entretanto indicam que aquela embarcação visitou várias vezes o litoral pernambucano carregada de cativos ilegalmente escravizados ao desembarcar no Brasil Nessa viagem denunciada por Nabuco de Araújo o Bom Sucesso chegou no Recife procedente de Luanda consignado ao conhecido traficante Gabriel Antônio A denúncia de Nabuco de Araújo foi malsucedida em ambos os casos O mesmo aconteceria no caso do patacho Providência Como em outros episódios de desembarque não se sabia ao certo se o navio tinha deixado os cativos em praias ao sul ou ao norte do Recife Da perspectiva da História do tráfico isso não importa tanto pois há casos bem documentados de desembarques em praticamente todo o litoral de Pernambuco naquele ano O Providência foi capturado pela Marinha brasileira uma exceção à regra a mando do presidente da província o Barão da Boa Vista Foi o único navio negreiro apreendido em Pernambuco entre os 23 que deixaram cativos nas praias da província em 1839 Também foi o único que parece ter vindo parar em Pernambuco sem ser este o seu destino e sim a Bahia ou o Rio de Janeiro Talvez o fato de não estar endereçado a um proprietário local tenha precipitado a sua captura O Providência então foi parar na praia errada e por isso foi capturado Os traficantes todavia eram articulados entre si de tal forma que o navio terminou desembarcando com sucesso a sua preciosa carga humana graças à interferência de Azevedinho o gerente da empresa do tráfico mencionado acima O caso foi parar no tribunal mas o juiz o futuro conselheiro Aguiar terminou absolvendo os envolvidos pois não havia cativos a bordo a prova material do crime segundo o juiz apesar de terem sido encontrados alguns dos equipamentos considerados prova do emprego do navio no tráfico segundo o Equipment Act inglês daquele mesmo ano de 1839 8 Ofício do promotor público José Thomaz Nabuco de Araújo ao presidente da província Vicente Tomás de Figueirêdo Camargo Recife 08041837 MINISTÉRIO PÚBLICO DE PERNAMBUCO Promotores Públicos O Cotidiano da Defesa da Legalidade Transcrição de Documentos Manuscritos 18321843 Transcrição coordenada por Vera Lúcia Costa Acioli Recife Procuradoria Geral da JustiçaArquivo Público Estadual 1999 vol 1 f 120 190 191 A lei antitráfico de 1831 nunca seria revogada Isso significava que caso ela fosse minimamente cumprida os africanos ilegalmente escravizados que haviam sobrevivido aos horrores do cativeiro deveriam ser emancipados pois a rigor eram africanos livres Era muito difícil para um cativo alcançar a emancipação na Justiça comum pois a presunção jurídica no Brasil era de que todo negro era um cativo Ainda mais se fosse africano A situação começaria a mudar a partir da Lei do Ventre Livre em 1871 que passou a exigir que todos os cativos fossem matriculados dentro de um determinado prazo Passado o prazo estavam emancipados Inúmeros cativos começaram a entrar com ações de liberdade exigindo sua libertação por não terem sido matriculados Aquela lei também regulamentou o pecúlio que existia apenas informalmente permitindo aos próprios cativos comprar a sua liberdade por valor a ser arbitrado na Justiça A historiografia tem demonstrado que a maior mudança provocada pela lei foi a reação dos escravizados que passaram a agir judicialmente contra a classe senhorial O resultado final das ações de liberdade todavia dependia do contexto social e político maior Como observou décadas atrás Robert Conrad a Lei do Ventre Livre a rigor não emancipou ninguém sendo em grande parte um instrumento legal para frear o movimento abolicionista que crescia pois àquela altura 1871 a escravidão nas Américas só persistia no Brasil e em Cuba Logo o movimento abolicionista recobrou fôlego transbordando para os tribunais As ações de liberdade propostas por africanos ilegalmente escravizados depois de 1831 deixaram de ser raridade à medida que o movimento popular abolicionista avançava na década de 1880 Talvez o leitor se pergunte que idade teriam esses africanos depois da Lei do Ventre Livre de 1871 pois eles haviam entrado no país entre 1831 e 1850 passando décadas escravizados Vale mencionar um outro detalhe sórdido do tráfico no século XIX Nessa época os navios negreiros procedentes de Angola e Congo começaram a ter cada vez mais crianças pequenas em seus porões a ponto de se tornarem a maioria dos cativos a bordo Em alguns casos praticamente todos Ora a idade considerada ideal para se comprar uma pessoa escravizada no litoral africano era de 12 a 18 anos como ensinou o traficante José Francisco de Azevedo Lisboa ao instruir seus agentes no litoral africano CARVALHO 2016 O que mudou no XIX é que os navios negreiros passaram a trazer crianças tão pequenas que ainda não haviam sequer passado pelos rituais de iniciação em suas comunidades originárias não tendo escarificações as chamadas marcas de nação Essas criancinhas muitas com menos de 7 anos e até no colo sendo amamentadas lotavam os navios negreiros durante o Brasil imperial Principalmente os navios procedentes de Angola e Congo local de onde vieram aproximadamente 88 por cento dos africanos escravizados que desembarcaram em Pernambuco no século XIX A presença marcante de crianças pequenas nos navios negreiros foi notada por vários observadores no século XIX Um comandante da marinha inglesa responsável pela apreensão de vários navios negreiros depois de 1831 disse que as naus que se dirigiam ao Brasil eram verdadeiras hellish nurseries berçários infernais FORBES 1849 p 87 tamanha era a quantidade de crianças pequenas a bordo Essas crianças eram boa mercadoria Custavam menos no litoral africano comiam e bebiam menos água durante a viagem ao Brasil eram menos capazes de se rebelar com eficácia e ocupavam menos espaço o que permitia mais do que dobrar a carga humana de um navio Ao chegar no Brasil prometiam uma longa vida no cativeiro maximizando os lucros Muitas dessas crianças poderiam até passar por cativos nascidos no Brasil uma vez que eram muito jovens para terem marcas de nação Algumas dessas ações de liberdade tentando fazer valer a lei antitráfico de 1831 a Lei Feijó Eram imensas suas dificuldades diante da Justiça pois tinham que provar que vieram em navios que aportaram clandestinamente em Pernambuco sob a proteção da classe senhorial do aparato estatal do poder judiciário e do clero A classe senhorial como vimos contava também com os melhores advogados ou ao menos os mais caros Alguns desses processos que chegaram até nós em Pernambuco trazem narrativas do desembarque de africanos melhor dizendo dessas crianças fadadas à escravidão LIRA 2021bCASTELO BRANCO 2019 Alguns ca acima é o caso de Camilo o nome que o menino africano recebeu ao ser batizado no Brasil Desconhecemos o seu nome africano Nos autos da sua ação de liberdade Camilo contou que desembarcou na Praia de Atapus uma praia paradisíaca na entrada da barra onde está a Ilha de Itamaracá não muito longe de Barra de Catuama um porto de navios negreiros bem conhecido da diplomacia inglesa Sobreviveu a duas gerações senhoriais Quando foi finalmente emancipado em juízo era cativo do neto do seu primeiro proprietário em Pernambuco O tráfico de escravizados sustentou a agricultura escravista de Pernambuco A facilidade da viagem desde o litoral africano possibilitou a capitania depois província a continuar competindo no mercado atlântico do açúcar apesar da baixa capitalização da sua classe senhorial e da praça do Recife Foi também um imenso subsídio ao algodão Foi portanto fundamental para a formação do capitalismo na província Depois de 1831 os desembarques passaram a ocorrer nas praias contíguas a alguns dos maiores engenhos da província ou povoações sob o domínio político e clientelar da classe senhorial Os senhores de engenho de Pernambuco tornaramse senhores de engenhotraficantes pois dependia deles qualquer desembarque bemsucedido Os políticos mais poderosos da província participaram ativamente desse ramo de negócios tanto direta como indiretamente O tráfico e a escravidão estavam entranhados no ethos e no modo de ser das camadas dominantes da sociedade A história do tráfico para Pernambuco em que pese a multiplicação de trabalhos sobre o assunto ainda é um tema aberto à pesquisa Esperamos que este texto sirva de inspiração para outros estudiosos Referências ALBUQUERQUE Aline E B De Angello dos retalhos a Visconde de Loures a trajetória de um traficante 18181858 Dissertação Mestrado em História UFPE Recife 2016 AMARAL Carlos Alberto V SETTE Iara Schechtman transcrição Revista Documentação e Memória Memorial da Justiça TJPE v 3 n 5 jandez 2012 Disponível em httpswwwtjpejusbrwebrevistadocumentacaoememoriaedicoesanterioresrevista2012 Acesso em 9 abril 2022 como ensinou o traficante José Francisco de Azevedo Lisboa ao instruir seus agentes no litoral africano CARVALHO 2016 O que mudou no XIX é que os navios negreiros passaram a trazer crianças tão pequenas que ainda não haviam sequer passado pelos rituais de iniciação em suas comunidades originárias não tendo escarificações as chamadas marcas de nação Essas criancinhas muitas com menos de 7 anos e até no colo sendo amamentadas lotavam os navios negreiros durante o Brasil imperial Principalmente os navios procedentes de Angola e Congo local de onde vieram aproximadamente 88 por cento dos africanos escravizados que desembarcaram em Pernambuco no século XIX A presença marcante de crianças pequenas nos navios negreiros foi notada por vários observadores no século XIX Um comandante da marinha inglesa responsável pela apreensão de vários navios negreiros depois de 1831 disse que as naus que se dirigiam ao Brasil eram verdadeiras hellish nurseries berçários infernais FORBES 1849 p 87 tamanha era a quantidade de crianças pequenas a bordo Essas crianças eram boa mercadoria Custavam menos no litoral africano comiam e bebiam menos água durante a viagem ao Brasil eram menos capazes de se rebelar com eficácia e ocupavam menos espaço o que permitia mais do que dobrar a carga humana de um navio Ao chegar no Brasil prometiam uma longa vida no cativeiro maximizando os lucros Muitas dessas crianças poderiam até passar por cativos nascidos no Brasil uma vez que eram muito jovens para terem marcas de nação Algumas dessas ações de liberdade tentando fazer valer a lei antitráfico de 1831 a Lei Feijó Eram imensas suas dificuldades diante da Justiça pois tinham que provar que vieram em navios que aportaram clandestinamente em Pernambuco sob a proteção da classe senhorial do aparato estatal do poder judiciário e do clero A classe senhorial como vimos contava também com os melhores advogados ou ao menos os mais caros Alguns desses processos que chegaram até nós em Pernambuco trazem narrativas do desembarque de africanos melhor dizendo dessas crianças fadadas à escravidão LIRA 2021bCASTELO BRANCO 2019 Alguns ca acima é o caso de Camilo o nome que o menino africano recebeu ao ser batizado no Brasil Desconhecemos o seu nome africano Nos autos da sua ação de liberdade Camilo contou que desembarcou na Praia de Atapus uma praia paradisíaca na entrada da barra onde está a Ilha de Itamaracá não muito longe de Barra de Catuama um porto de navios negreiros bem conhecido da diplomacia inglesa Sobreviveu a duas gerações senhoriais Quando foi finalmente emancipado em juízo era cativo do neto do seu primeiro proprietário em Pernambuco O tráfico de escravizados sustentou a agricultura escravista de Pernambuco A facilidade da viagem desde o litoral africano possibilitou a capitania depois província a continuar competindo no mercado atlântico do açúcar apesar da baixa capitalização da sua classe senhorial e da praça do Recife Foi também um imenso subsídio ao algodão Foi portanto fundamental para a formação do capitalismo na província Depois de 1831 os desembarques passaram a ocorrer nas praias contíguas a alguns dos maiores engenhos da província ou povoações sob o domínio político e clientelar da classe senhorial Os senhores de engenho de Pernambuco tornaramse senhores de engenhotraficantes pois dependia deles qualquer desembarque bemsucedido Os políticos mais poderosos da província participaram ativamente desse ramo de negócios tanto direta como indiretamente O tráfico e a escravidão estavam entranhados no ethos e no modo de ser das camadas dominantes da sociedade A história do tráfico para Pernambuco em que pese a multiplicação de trabalhos sobre o assunto ainda é um tema aberto à pesquisa Esperamos que este texto sirva de inspiração para outros estudiosos Referências ALBUQUERQUE Aline E B De Angello dos retalhos a Visconde de Loures a trajetória de um traficante 18181858 Dissertação Mestrado em História UFPE Recife 2016 AMARAL Carlos Alberto V SETTE Iara Schechtman transcrição Revista Documentação e Memória Memorial da Justiça TJPE v 3 n 5 jandez 2012 Disponível em httpswwwtjpejusbrwebrevistadocumentacaoememoriaedicoesanterioresrevista2012 Acesso em 9 abril 2022 BARMAN Roderick The forging of a nation 17981852 Stanford Stanford University Press 1988 BETHELL Leslie A abolição do comércio brasileiro de escravos Brasília Senado Federal 2002 CADENA Paulo Henrique Fontes O vicerei Pedro de Araújo Lima e a governança do Brasil no século XIX Tese Doutorado em História Social Programa de PósGraduação em História UFPE Recife 2018 Ou há de ser Cavalcanti ou há de ser cavalgado trajetórias políticas dos Cavalcanti de Albuquerque Pernambuco 18011844 Recife EDUFPE 2013 CARNEIRO Maciel Henrique Uma africana livre e a corrupção dos costumes Pernambuco 18301844 Estudos AfroAsiáticos 2007 ano 29 n 123 jandez p 123160 CARVALHO Marcus J M de ALBUQUERQUE Aline Emanuelle de Biase Os desembarques de cativos africanos e as rotinas médicas no Porto do Recife antes de 1831 Almanack 2016 v 1 p 4464 CARVALHO MARCUS J M de Trabalho cotidiano administração e negociação numa feitoria do tráfico no Rio Benim em 1837 Afroasia 2016 v 53 p 227273 A rápida viagem dos berçários infernais e os desembarques nos engenhos do litoral de Pernambuco depois de 1831 In OSÓRIO Helen XAVIER Regina org Do tráfico ao pósabolição trabalho compulsório e livre e a luta por direitos sociais no Brasil Porto Alegre Oikos 2018 v 1 p 126164 Os senhores de engenhotraficantes de Pernambuco 18311855 In SARAIVA Luiz Fernando ALMICO Rita PESSOA Thiago Campos Tráfico e traficantes na ilegalidade de São Paulo Hucitec 2021 p 125150 CARVALHO Marcus J M de CADENA Paulo Henrique Fontes A política como arte de matar a vergonha o desembarque de Sirinhaém em 1855 e os últimos anos do tráfico para o Brasil Topoi 2019 v 20 p 651677 CASTELO BRANCO Arthur Danilo Carapuça a quem servir fugas roubos e tráfico de escravos no Pernambuco Imperial 18501873 Dissertação Mestrado em História UFPE Recife 2019 COSTA Valéria Gomes Trajetórias negras os libertos da Costa dÁfrica no Recife 18461890 Tese de Doutorado UFBA 2013 Para além dos laços sanguíneos redes familiares e de parentesco entre os libertos da Costa dÁfrica no Recife Oitocentista Clio 2015 v 33 p 223244 DOMINGUES DA SILVA Daniel Barros ELTIS David The slave trade to Pernambuco 15611851 In ELTIS David RICHARDSON David eds Extending the frontiers essays on the New Transatlantic Slave Trade Database New Haven Yale University Press 2008 p 95129 FALAS DO TRONO Rio de Janeiro 1889 Senado Federal 2019 FORBES Lieutenant R N Six months service in the African blockade from April to October 1848 in command of HMS Bonetta Londres Richard Bentley New BurlingtonStreet 1849 Pernambuco na República Velha Severino Vicente da Silva Este capítulo sintetiza parte do conhecimento já produzido sobre o tema e pretende ser mais do que uma visão da evolução política de Pernambuco uma leitura possível da trajetória de uma história na qual o povo tem sido posto em plano secundário e embora haja muito a ser dito sobre os governantes ainda há mais a dizer sobre os governados Antecedentes republicanos O termo República Velha como sempre acontece foi usado pelos historiográfos para estabelecer diferenças entre os objetivos a que se propunham os que apearam do poder o presidente Washington Luís 18691957 em outubro de 1930 e o que representou o período anterior da República brasileira iniciada por um golpe de Estado impulsionado por militares e civis liderado pelo marechal Manuel Deodoro da Fonseca 18271892 a 15 de novembro de 1889 No dia seguinte o já então eximperador do Brasil Dom Pedro II 18251891 foi expulso do país com toda sua família no intuito de evitar algum movimento restaurador como ocorrera após seu pai Dom Pedro I 17981834 ter renunciado ao trono brasileiro para cuidar de garantir o trono português para sua filha Dona Maria II 18191853 Um manifesto de políticos dissidentes do Partido Liberal ocorrido em Itu no ano de 1870 pode ser considerado como o início da ideia republicana no Brasil Contudo em Pernambuco esta palavra vinha sendo usada desde 1710 Ter e ser um porto garantiu a vida política do Recife Naquele ano um vereador de Olinda insatisfeito com a política colonial que elevara a povoação do Recife à condição de vila Bernardo Vieira de Melo 16581718 liderando os senhores de engenho que tinham o Recife como seu porto para exportação de açúcar e importação de artigos europeus eou asiáticos para o seu conforto quis fazer de Olinda uma república assemelhada às experiências que ocorriam na Península Itálica desde o século XIII Sem apoio de seus parceiros o também sargentomor foi aprisionado levado à metrópole e condenado por crime de lesamajestade vindo a morrer na cadeia em Lisboa O final do século XVIII foi marcado pela expansão de uma nova maneira de entender a palavra República como a entendiam Oliver Cromwell 15991658 John Locke 16321704 JeanJacques Rousseau 17121778 Maximiliano Robespierre 17581794 Thomas Jefferson 17431826 Benjamin Franklin 17061790 e outros Na América do Norte os colonos criaram a República dos Estados Unidos da América do Norte na Europa com o apoio dos exércitos do general Napoleão Bonaparte 17691821 essa ideia espalhouse mas após salvar a República o general se fez imperador e sua política expansionista forçou o príncipe regente Dom João a mudar a sede do Império português para o Brasil tendo escolhido o Rio de Janeiro para tal função Tornar a cidade de uma colônia em sede metropolitana custa muitos impostos e como Pernambuco era a província mais rica arcou mais tributos para garantir a beleza e fazer maravilhosa a cidade escolhida pelos ingleses que auxiliaram a transferência real A insatisfação por estar financiando seus concorrentes aliada às ideias iluministas ensinadas nas academias nas lojas maçônicas nas aulas ministradas no Seminário de Nossa Senhora das Graças em Olinda além dos sermões dominicais e dos soldados atrasados dos militares levaram à eclosão da Revolução Republicana em 1817 no dia 6 março Durante 70 dias Pernambuco Paraíba Rio Grande do Norte e parte do Ceará formaram uma República Ela foi derrotada pelas forças monárquicas do Rio de Janeiro e Bahia com o apoio da Comarca de Alagoas que decidiu deixar de ser pernambucana Mas a República de 1817 por não tornar livres os africanos escravizados não pôde formar exército para defender seu ideal republicano O rei Dom João VI e seu filho Pedro martirizaram Pernambuco Quando o imperador Dom Pedro I fechou a Assembleia Constituinte e impôs uma Constituição que estabelecia um quarto poder que ele pretendia que fosse moderador os pernambucanos liderados por Manuel Paes de Carvalho 17741855 e pelo frei Joaquim do Amor Divino Caneca 17791825 proclamaram mais uma vez a República Novamente houve a participação das províncias da Paraíba Rio Grande do Norte e Ceará E uma vez mais a República foi derrotada pelas forças monarquistas enviadas por Dom Pedro I Como castigo uma vasta área do território pernambucano foi desmembrado e anexado primeiro a Minas Gerais e depois à Bahia Apesar desse histórico Pernambuco não teve representante no convés della quando o jovem Prudente de Morais subscreveu o Manifesto Republicano documento que não teve maiores repercussões imediatas Mas o republicanismo e o abolicionismo caminhavam com dificuldade Entretanto foi a Lei Áurea que fez crescer o número de republicanos jocosamente chamados de republicanos do 14 de maio Esta lei foi redigida pelo ministro João Alfredo Correia de Oliveira 18351919 pernambucano senhor do Engenho Uruaé e proprietário de usina em Itambé Como Pernambuco foi muito ativo na campanha abolicionista as lideranças republicanas ficaram obnubiladas no cenário político Quando da proclamação da República não havia no estado um partido republicano forte que pudesse ou viesse a ter influência no governo central Em Pernambuco o Partido Republicano veio a ser criado em dezembro de 1888 Importante entretanto ressaltar a atuação dos republicanos Martins Junior e Silva Jardim Flávia Bruna Ribeiro Braga 2017 nos chama a atenção para o silêncio que foi criado em torno desse grupo republicano influente em Pernambuco Rio Grande do Norte e Bahia que teria sido 201 ofuscado pelas personalidades de Joaquim Nabuco 18491910 e José Mariano Carneiro da Cunha 18501912 líderes abolicionistas mas não republicanos A historiadora aponta que os republicanos em Pernambuco apesar de não serem pobres não tinham condições de igualarse aos demais grupos políticos ligados ao poder do açúcar dominante como ocorreu com os republicanos do sul que estavam ligados às famílias de cafeicultores e proprietários de charqueadas BRAGA 2017 p 28 Mas interessa aqui lembrar que não foi possível aos republicanos em Pernambuco manteremse unidos aos antigos aliados após a Lei Áurea Eles também não conseguiram meios de influenciar a organização do governo após a proclamação da República que a todos pegou de surpresa uma vez que foi articulada pelos de São Paulo e Rio de Janeiro A República encontra Pernambuco em crise política e nela segue No dia anterior à proclamação da República tomou posse no governo da província Sigismundo Gonçalves 18451915 Ele havia sido deputado provincial e por força da situação nacional governou apenas até o dia seguinte pois transmitiu o cargo ao coronel José Cerqueira de Aguiar Lima ligado ao Partido Republicano Brasileiro PRB Logo que a República foi proclamada ele foi nomeado por decreto de 21 do mês de novembro governador e comandante das Armas de Pernambuco mas só assumiu o cargo em 12 de dezembro de 1889 Sua posse no governo de Pernambuco configurou a preponderância no estado do antigo Partido Liberal então denominado Partido Democrata chefiado por José Mariano Carneiro da Cunha e José Maria de Albuquerque e Melo o que significou a perda de espaço do pequeno partido dos republicanos históricos que dominou a região nos primeiros dias do novo regime Mas a atuação do Partido Democrata desagradou não só aos republicanos históricos como também ao antigo Partido Conservador liderado por Francisco de Assis Rosa e Silva João Alfredo Correia de Oliveira e Antônio João de Amorim o barão de Casa Forte No mesmo ano Deodoro da Fonseca chefe do governo provisório da República nomeou o seu ministro Henrique Pereira de Lucena o barão de Lucena para governar Pernambuco exercendo simultaneamente o cargo de ministro da Agricultura no Rio de Janeiro O barão de Lucena afastouse do governo de Pernambuco que veio a ser assumido pelo vice José Antônio Correia da Silva um lucenista CAVALCANTI 2014 p 98 As lideranças Os primeiros anos da República foram marcados pela ação política dos marechais Manuel Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto 18391895 e foram anos de adaptação aos novos modos de fazer política de fazer o poder funcionar na direção do povo como a palavra informa Os dois militares que moldaram sua personalidade e carreira nos campos de batalha estavam mais preparados para dar ordens do que para ouvilas Deodoro apresentou dificuldade de articulação com o Parlamento mas conseguiu promulgar uma nova Constituição Entretanto teve dificuldades e renunciou dizendo que buscava evitar uma guerra civil e libertar o último escravo referindose a si mesmo Foi substituído por seu contemporâneo Floriano Peixoto que havia sido eleito na chapa que lhe fez oposição recebendo mais votos que o próprio Deodoro Ao assumir o governo Floriano afastou os governadores indicados por Deodoro substituindo por pessoas de sua confiança Logo enfrentou um manifesto de 13 generais que não o aceitavam como presidente pois entendiam que ele deveria convocar uma eleição não assumir o governo Sua reação foi mandar prender os generais em seguida enfrentou a Segunda Revolta da Armada e a Revolta Federalista do Rio Grande do Sul Sua maneira enérgica e ditatorial de governar lhe valeu o cognome de Marechal de Ferro Em Pernambuco a luta política favorecia os setores mais conservadores que cuidavam mais de buscar apoio nas hostes do latifúndio como fazia o Partido Republicano em sua relação com os grandes proprietários CAVALCANTI 2014 p 69 José Isidoro Martins Junior era um líder republicano 203 gerado politicamente fora do seio das tradicionais famílias do poder em Pernambuco De vocação mais voltada para as negociações políticojurídicas nem sempre bemsucedidas e pouco hábil na relação com populares Martins Junior sempre teve sua liderança contestada dentro e fora das hostes republicanas Talvez por isso o presidente Deodoro da Fonseca enviara para o governo do estado Henrique Pereira de Lucena o barão de Lucena monarquista que se torna republicano pela amizade com o presidente O discurso da conciliação da família pernambucana acompanhava o novo governador Entretanto o barão de Lucena por questões de política nacional e do trato com o Congresso foi chamado para assumir pasta ministerial do governo Deodoro A permanência do barão de Lucena no governo é curta pois logo o marechal mandou fechar o Congresso Líderes pernambucanos como José Mariano Carneiro da Cunha abolicionista fundador do jornal A Provincia rapidamente aderiram ao golpe de Deodoro mas este se viu forçado a renunciar Uma surpresa para os adesistas Com a posse de Floriano Peixoto novas mudanças políticas ocorreram trazendo o capitão Alexandre José Barbosa Lima 18621931 para o governo de Pernambuco Ele fora eleito deputado constituinte pelo Ceará De perfil autoritário promoveu atraso de calendário eleitoral e enfrentou a oposição armada dos republicanos históricos liderados por José Isidoro Martins Junior em vários municípios Mais tarde demitiu Martins Junior do cargo de professor da Faculdade de Direito do Recife Em seu governo foi criada a Inspetoria de Higiene do Estado para o combate às epidemias ampliouse as redes de telégrafo e esgoto ampliouse a rede de telégrafo foram fundadas a Escola de Engenharia a Escola Frei Caneca para Órfãos e escolas no interior do estado Após o seu governo que terminou em 1896 veio a sequência de governadores indicados por Francisco de Assis Rosa e Silva 18571929 Em Pernambuco entre os anos de 1896 e 1910 imperava Rosa e Silva Filho de comerciante dedicouse às lides políticas desde o Império Ainda no regime monárquico foi deputado entre 1882 e 1889 e ministro da Justiça de janeiro a junho de 1889 Recebeu de Dom Pedro II o título de conselheiro do Império Com a proclamação da República foi eleito deputado federal 18901896 participando da elaboração da Constituição de 1891 senador 18961898 19031911 19241929 e vicepresidente no mandato de Campos Sales 18981902 Estamos diante de um autêntico republicano de 16 de novembro Apesar de ser o representante dos interesses da litorânea oligarquia do açúcar seus tentáculos alcançavam o interior do Estado sem o qual a estabilidade oligárquica não subsistiria A inércia sempre foi o seu principal aliado e a inércia é a fonte de poder dos conservadores Assim é que veio ocorrer uma modernização conservadora que levou alguma tecnologia nova aos canaviais dominantes Nesse período que se poderia dizer imperial do Rosismo Sigismundo Gonçalves retornou ao governo de Pernambuco 19041908 e sua gestão ficou marcada pela organização da polícia de Segurança Noturna SN que o povo jocosamente chamava de segurança nenhuma Não obstante ele deu início às obras que modificaram o Recife alargando os seus logradouros Nesse tempo ocorreu o esforço para controlar a rebeldia do povo que se materializa na invenção do carnaval de rua na ampliação do número dos clubes pedestres e na emergência do frevo O número de famílias europeias na cidade fez o Recife receber a Associação Cristã dos Moços uma tentativa de evitar o contato da juventude dourada com os demais jovens da cidade Mas a principal lembrança desse governo foi que nele ocorreu o incêndio no mercado do Derby mandado construir por Delmiro Gouveia 18631917 que Rosa e Silva tinha como inimigo O novo governador eleito com o apoio de Rosa e Silva foi Herculano Bandeira de Melo 18501916 senhor de engenho em Nazaré da Mata Eleito contratou o engenheiro sanitarista Saturnino de Brito 18641929 para organizar o serviço de abastecimento de água para o Recife bem como a criação de um serviço de esgotamento As mudanças políticas nacionais e a candidatura do ministro da Guerra Emídio Dantas Barreto 18501931 ao governo do estado forçaram a postulação do próprio Rosa e Silva ao posto máximo do Executivo estadual Herculano Bandeira renunciou e Estácio de Albuquerque Coimbra 18721937 assumiu o governo entre setembro e dezembro de 1911 para presidir a eleição que confrontou o general Dantas Barreto e o representante da oligarquia Rosa e Silva Dantas Barreto nasceu na cidade de Bom Conselho fez carreira no Exército ao longo da guerra contra o Paraguai veio a tornarse escritor filósofo membro da Academia Brasileira de Letras Sua candidatura apresentou o desejo de mudança em Pernambuco Foi uma eleição fácil com jaguncos no interior do estado e revolta popular nas ruas da capital Cantavase na rua o coco O pau rolou caiu Rosa murchou Dantas subiu Sua eleição marcou o declínio de uma época A modernização do porto do Recife levou à demolição prédios seculares como a Igreja do Corpo Santo Dantas Barreto recusou a oferta de Delmiro Gouveia para iluminar a cidade com a eletricidade produzida na cachoeira de Paulo Afonso e enfrentou a necessidade de conter a população que pretendia avançar sobre o convento franciscano de Santo Antônio habitado por frades alemães quando o Brasil entrou na guerra de 1914 Promoveu a primeira vitória contra o cangaço com a polícia prendendo Antônio Silvino Sua pouca aptidão política levou seu sucessor Manuel Antônio Pereira Borba 18641928 a restabelecer algum poder ao Rosismo Manuel Borba era proveniente da Mata Norte de Pernambuco comerciante e industrial sendo um dos sócios da Fiação de Tecidos Goiana Fiteg Criou a Imprensa Oficial promoveu a melhoria do rebanho bovino introduzindo o gado nelore interferiu no exercício do poder em algumas regiões do Sertão como em Salgueiro retirando do mando a família Sá e abrindo espaço para os Soares Durante o governo de Manuel Borba mas sem interferência sua um grupo de jovens estudantes de engenharia fez no Recife a primeira transmissão radiofônica o que deu origem à Rádio Club de Pernambuco em 1919 Seus sucessores foram José Henrique Carneiro da Cunha 18671929 José Rufino Bezerra Cavalcanti 18651922 e Sérgio Teixeira Lins de Barros Loreto 18671937 Nascido em Águas Belas o magistrado Sérgio Loreto fez carreira fora do estado mas foi escolhido para evitar um racha nos grupos dominantes Sérgio Loreto governou Pernambuco com mão de ferro com o apoio das elites urbanas ligadas ao comércio Reorganizou o serviço público especialmente na área de saúde colocando à frente desta o médico Amaury de Medeiros seu genro que criou setores especializados para combater a malária a tuberculose a sífilis e para tratar as doenças mentais Abriu uma rede de hospitais que atendia aos municípios de Goiana Cabo Bonito Canhotinho Olinda Nazaré da Mata Ribeirão além de 26 postos de saúde em outras partes do interior do estado Reformou o Hospital de Santa Águeda hoje chamado Oswaldo Cruz conseguindo erradicar a varíola a febre amarela e diminuir significativamente o índice de mortalidade de crianças e adultos O quadrênio de Sérgio Loreto segundo Valdemar de Oliveira já teria valido se ele houvesse realizado apenas A validação do Derby da Avenida Boa Viagem drenada em 1924 ligada ao Recife por linhas de bondes Esta avenida construída a onze quilômetros da cidade passa a ser apontada pela elite como símbolo da modernização que chega ao estado chegando a ser comparada com a Torre Eiffel SILVA 2014 p 45 O governador seguinte veio a ser mais uma vez Estácio Coimbra Com ele termina a República Velha em Pernambuco O caldo da cana Até 1890 foram criados 10 engenhos centrais e usinas e embora não houvesse diferenças técnicas entre eles os engenhos centrais estavam proibidos de possuir terras desenvolver atividades agrícolas e antes da Abolição utilizarem trabalho escravo Quem não podia possuir um engenho central procurou modernizar o seu engenho mas esses não puderam competir com as usinas capazes de moer uma maior quantidade de cana e consequentemente produzir mais açúcar As usinas por seu turno podiam ter terras compravam as canas necessárias dos pequenos proprietários e antes 206 207 da Abolição lhes era permitido utilizar o trabalho escravo ANDRADE 2001 p 25 e 29 Aos poucos os engenhos de banguê desapareceram tornaramse de fogo morto E foram obrigados a liberar mão de obra o que promoveu uma nova distribuição populacional no estado Aqui deve ser notado que os engenhos de banguê continuaram a existir em regiões do Agreste e Sertão produzindo principalmente rapadura e cachaça O mesmo ocorreu a muitos engenhos que diminuíram o fogo de suas caldeiras embora mantivessem suficiente calor para seus tachos e alambiques tornandose produtores de rapadura e cachaça As usinas contudo não conseguiam fazer frente à concorrência que vinha do estrangeiro ou do sul do país onde a modernização já tinha se iniciado antes e se utilizava mão de obra livre importada da Europa As solicitações de apoio ao governo federal raramente eram atendidas e os empréstimos recebidos para refinarias industriais do açúcar beneficiavam a poucos especialmente a elite agrícola e usineiros LEVINE 1985 p 128 O estabelecimento dessas usinas e engenhos centrais foi acompanhado de construção de estradas de ferro para levar a cana até os locais de processamento e transportar o açúcar até a linha de ferro da Great Western cujo roteiro levava ao porto do Recife continuando a prática do produzir para exportar As estradas de ferro provocaram mudança nos meios de transporte com a saída de cena dos carros de boi e o início de aglomerados urbanos em torno das usinas alguns desses aglomerados tornaramse cidades posteriormente A modernização trazida pelas usinas e pela estrada de ferro não modernizou as relações de trabalho dos moradores dos engenhos As ferrovias e outros caminhos A ferrovia em busca do açúcar e algodão A instalação das usinas de açúcar não modificou apenas as regiões imediatamente próximas mas afetou a vida da capital que começou a receber migrantes Muitos dos que foram expulsos da área rural dirigiramse para a capital acentuando o crescimento de regiões periféricas da cidade às margens do Rio Capibaribe ocupando os morros da parte norte da cidade pois por ela passava o ramal norte da Great Western com os trens que se dirigiam até Limoeiro em busca do açúcar produzido em Paudalho Carpina ou Nazaré da Mata Além disso os trens em Carpina e Limoeiro recolhiam o algodão para as fábricas de tecidos recémmontadas na capital e vizinhança Descaroçadoras de algodão foram implantadas nesta última localidade e em Timbaúba Importante recordar que o barão de Lucena nasceu em Belo Jardim que fazia parte da Comarca de Limoeiro Outra linha da Great Western a do São Francisco deveria chegar até as usinas de Alagoas o trem sempre seguindo canaviais acompanhando os territórios de usinas Um ramal da ferrovia levou o trem até Garanhuns em 1897 18 anos após sua elevação à situação de cidade o que ocorreu após defesa do barão de Nazaré que havia passado alguns dias na região e encantouse por seu clima e pela possibilidade de uma estação de lazer A Great Western fez vir da Europa os técnicos que a prática educacional da sociedade pernambucana e brasileira não formaram e alguns trabalhadores rurais foram treinados para atividades mecânicas servindo como auxiliares de manutenção Cumpriase o que havia sido dito por Joaquim Nabuco e outros abolicionistas sem a libertação da terra as práticas escravistas seriam mantidas embora que dissimuladas em baixos salários e ausência de educação para os descendentes de escravizados Um proletariado ligado às ferrovias foi sendo gestado por onde o trem passava notadamente em Ribeirão e Jaboatão onde se concentravam as maiores oficinas que atendiam os trens que iam em direção de Alagoas A Revolução Industrial parecia ter chegado ao Recife com indústrias capazes de melhor aproveitar as possibilidades gastronômicas ativadas pelo açúcar A indústria de alimentos como a fábrica de biscoitos Pilar 1876 e a Renda Priore 1920 e a Indústria Metalúrgica Pernambucana Ipan da mesma forma que as usinas necessitavam de novas máquinas para a produção Peças de substituição passaram a ser produzidas em oficinas locais E essa demanda fez surgir algumas oficinas de metalurgia ALBUQUERQUE 2017 A mecanização da tecelagem foi o momento inicial da revolução industrial inglesa Este poderia ter sido o mesmo fado do Brasil mas a experiência de cultivo para o maquinário inglês em duas ocasiões parece 208 209 que apenas serviu para enredar um pouco mais os produtores e os exportadores A Abolição estabelecida pela Lei João Alfredo parece ter sido feita para atender os interesses do Estado e garantir a segurança aos exdominos de escravizados mas não promoveu a criação de um mercado interno que fortalecesse o capital local uma vez que os exescravizados passaram a receber salários baixos não gerando poder aquisitivo suficiente para aquecer a economia do estado Alguns anos antes da Abolição a fundação da Companhia de Fiação e Tecidos de Pernambuco Fábrica da Torre no Recife em 1874 poderia ter gerado uma industrialização ainda que dependente da tecnologia européia Seguiuse no Recife e em seu entorno o estabelecimento da Fábrica da Madalena 1876 da Companhia de Tecidos Paulista 1891 da Companhia Industrial de Fiação e Tecidos de Goiana 1894 da Fábrica de Tecidos Apipucos 1894 depois a partir de 1925 conhecida como Fábrica da Macaxeira do Cotonifício Moreno 1910 da Tecidos Pirapama em Escada 1925 em Olinda da Manufatura de Tecidos do Norte mais conhecida como Fábrica Tacaruna 1925 Antigos moradores dos engenhos desativados com a expansão das usinas de açúcar formaram o proletariado e subproletariado e se aninharam nos mangues que aterravam e nos morros destruindo a vegetação para construir suas casas formando contraste com as residências e palacetes construídos ao longo do Rio Capibaribe As fábricas produziam tecidos para o consumo da população e também estavam a serviço das usinas confeccionando sacos e estopas para o transporte do açúcar Como as famílias ricas compravam tecidos refinados em lojas especializadas em produtos chegados da Europa não havia interesse maior em aperfeiçoar a produção dos tecidos melhorar a qualidade Contudo devese lembrar que os tecidos das fábricas de Paulista Torre e Moreno eram de boa qualidade inclusive sendo vendidos em outros estados Mas a postura de pouca iniciativa que levava a produzir sempre o mesmo favorecia a não modernização das máquinas que foram se tornando obsoletas e não puderam concorrer com o que era produzido em outras regiões após meados do século XX Nos sertões algumas veredas Uma das riquezas produzidas em Cimbres na Serra do Orobubá foi o algodão No alto da Serra do Orobubá os algodoais foram cuidados por negros escravizados Tollenare informa que os produtores de algodão possuíam de 50 a 300 escravizados trabalhando nos algodais Em 1816 o maior proprietário de que se tem notícias em Pernambuco era Antônio dos Santos Coelho capitãomor instalado nas terras de Cimbres solo de excelente qualidade Ele possuía de 600 a 700 escravizados e segundo se pode concluir dominava a produção algodoeira da região RIBEIRO JUNIOR 1981 p 4 Parece que a produção de algodão possibilitava a compra da liberdade segundo Koster citado por Ribeiro Junior 1981 Depois de libertos por compra ou em consequência da Lei Áurea eles ainda continuavam presos às condições de trabalho semelhantes ao que tinham antes de 1888 Foram seus descendentes os que trabalharam nas fábricas e plantações que no início do século XX fizeram a riqueza de Pesqueira O final da escravidão parece não ter mudado as maneiras de relações sociais as condições de vida das camadas geradoras de riquezas descendentes de escravizados e descendentes de proprietários continuaram a viver as mesmas distâncias sociais construindo novas formas de exclusão dos mais pobres na fruição da riqueza gerada pelo trabalho E ainda como consequência da legislação colonial a República Velha não reconhecia a população indígena existente na serra ainda que os Xucuru houvessem enviado voluntários para defender a pátria na guerra contra o Paraguai Aplicavase aos Xucuru no final do século XIX o mesmo tratamento dado aos indígenas desde o Diretório das Povoaçoes dos Índios do Pará e Maranhão feito em maio de 1757 por Francisco Xavier de Mendonça Furtado aquele que proibia o uso de língua indígena aportuguesava os seus nomes e proibia chamar os indígenas de negros BEOZZO 1983 p 126 Dessa forma por decreto já no tempo dos portugueses o Brasil não mais tinha indígenas e suas aldeias passaram a ser denominadas vilas E esses indígenas 210 211 1 A Colonização Holandesa em Pernambuco A colonização holandesa em Pernambuco no século XVII foi um período de intensas transformações e conflitos que moldaram a história do Brasil Impulsionados pelo lucrativo comércio de açúcar os holandeses invadiram a região em 1630 buscando controlar a produção e distribuição desse valioso produto A Companhia das Índias Ocidentais fundada em 1621 foi a principal responsável pela organização e financiamento da invasão refletindo o espírito expansionista das Províncias Unidas dos Países Baixos Inicialmente as relações entre holandeses e portugueses eram comerciais mas a União Ibérica 15801640 e a proibição do comércio com os holandeses levaram à invasão Sob o governo de Maurício de Nassau 16371644 Recife experimentou um período de prosperidade com melhorias urbanas e administrativas como a construção de pontes canais e jardins Nassau também atraiu artistas e cientistas como Frans Post e Georg Marcgraf que registraram a fauna a flora e a cultura local enriquecendo o conhecimento europeu sobre o Brasil No entanto a exploração econômica e a intolerância religiosa geraram resistência entre os colonos portugueses e lusobrasileiros A Insurreição Pernambucana 16451654 liderada por figuras como João Fernandes Vieira André Vidal de Negreiros e Henrique Dias marcou a luta pela expulsão dos holandeses Batalhas como a dos Guararapes 16481649 foram decisivas para a vitória lusobrasileira em 1654 que pôs fim ao domínio holandês restaurando o controle português sobre a região Apesar da breve duração a colonização holandesa deixou marcas profundas na cultura e na economia de Pernambuco A produção de açúcar principal motor econômico da região foi reorganizada e modernizada pelos holandeses que introduziram novas técnicas e tecnologias impulsionando a produção e o comércio A arquitetura e o urbanismo de Recife também foram influenciados pelo estilo holandês com a construção de edifícios e canais que ainda podem ser vistos hoje testemunhando a presença holandesa Além disso a presença holandesa contribuiu para a formação de uma identidade pernambucana distinta marcada pela resistência e pela luta contra o domínio estrangeiro A Insurreição Pernambucana é considerada um dos primeiros movimentos de caráter nacionalista na história do Brasil simbolizando a luta pela autonomia e a construção de uma identidade própria A colonização holandesa em Pernambuco foi um período crucial na história do Brasil com consequências duradouras para a região e para o país alterando dinâmicas sociais econômicas e culturais que se estenderam por séculos moldando o futuro do Nordeste brasileiro A invasão holandesa em Pernambuco fez parte de um contexto maior de conflitos europeus nos quais as potências disputavam territórios e rotas comerciais em todo o mundo refletindo a importância estratégica do Brasil no cenário global 2 O Ciclo das Revoluções Libertárias No final do século XVIII e no início do século XIX o Brasil fervilhava em um caldeirão de mudanças e agitações O ar estava carregado de insatisfação e o desejo por um país livre e igualitário pulsava nos corações dos brasileiros O domínio português outrora aceito agora era visto como um fardo opressor e a busca por autonomia se tornava cada vez mais urgente A Inconfidência Mineira liderada pelo visionário Tiradentes foi a faísca que acendeu a chama da rebelião Inspirados pelos ideais iluministas de liberdade e igualdade que ecoavam da Europa os inconfidentes ousaram desafiar o poder da coroa portuguesa pagando um alto preço por sua coragem Logo em seguida a Conjuração Baiana irrompeu com ainda mais força reunindo uma massa de pessoas do povo escravizados e libertos que clamavam pelo fim da escravidão e por uma sociedade onde a cor da pele não ditasse o destino de ninguém A ousadia dos conjurados baianos assustou as elites e mostrou que o desejo por igualdade não era apenas um anseio das classes mais abastadas A Revolução Pernambucana de 1817 elevou a ousadia a um novo patamar com os revolucionários chegando a instaurar um governo próprio ainda que por um breve período A experiência pernambucana demonstrou que o desejo de autonomia era uma força crescente em todo o território brasileiro impulsionando a luta pela independência A chegada da família real portuguesa ao Brasil em 1808 e a abertura dos portos trouxeram algumas mudanças superficiais mas não foram suficientes para aplacar a sede de liberdade que consumia o país As revoltas foram brutalmente reprimidas mas as ideias de independência como sementes ao vento encontraram solo fértil em cada canto do Brasil A declaração da independência em 1822 foi o florescer dessas sementes um grito de liberdade que ecoou por todo o continente As revoltas que a precederam foram cruciais para a formação da identidade brasileira moldando um povo que aprendeu a lutar por seus direitos e a construir um futuro mais justo Cada revolta com suas peculiaridades e nuances contribuiu para a construção do mosaico que é o Brasil A Inconfidência Mineira a Conjuração Baiana e a Revolução Pernambucana entre outras foram marcos na história do país demonstrando a força da união e a importância de lutar por um ideal Os ideais de liberdade e igualdade que impulsionaram esses movimentos permanecem vivos na alma do Brasil lembrandonos que a luta por um país mais justo é um legado que nos foi deixado por aqueles que ousaram sonhar com um futuro melhor 3 Pernambuco na República Velha A República Velha período que se estendeu de 1889 a 1930 foi um capítulo marcante na história do Brasil e de Pernambuco caracterizado por profundas transformações e intensos contrastes Em Pernambuco esse período foi especialmente singular com a forte influência das elites agrárias e a consolidação do poder dos coronéis que exerciam controle político e social através do voto de cabresto e da violência A economia pernambucana centrada na produção de açúcar enfrentou desafios significativos devido à concorrência internacional e às crises econômicas que abalaram o país A seca um flagelo recorrente no sertão agravava a miséria e impulsionava a migração em busca de melhores condições de vida O cangaço liderado por figuras emblemáticas como Lampião emergiu como uma forma de resistência à opressão e à violência desafiando a ordem estabelecida e expressando o descontentamento das camadas mais pobres da população A Igreja Católica desempenhou um papel crucial na sociedade pernambucana exercendo grande influência religiosa e política Padre Cícero líder carismático no sertão tornouse uma figura central na vida social e política da região A cultura popular floresceu nesse período com manifestações artísticas como o frevo e o maracatu que expressavam a identidade e a criatividade do povo pernambucano Essas manifestações culturais resistiram às dificuldades e se tornaram símbolos da rica herança cultural do estado A República Velha foi um período de grandes transformações para o Brasil como um todo com a transição da monarquia para a república e a consolidação do sistema republicano No entanto em Pernambuco essas transformações vieram acompanhadas de desafios sociais significativos como a seca e o cangaço que marcaram profundamente a vida da população Apesar das dificuldades a República Velha também foi um período de modernização da economia e expansão da infraestrutura em Pernambuco com a construção de estradas ferrovias e outras obras públicas No entanto os benefícios dessas transformações não foram distribuídos de forma equitativa resultando em desigualdades sociais persistentes A República Velha foi um período de contrastes com riqueza para poucos e dificuldades para muitos mas também de importantes transformações sociais e culturais em Pernambuco A memória desse período continua viva na história do estado moldando a identidade e a cultura pernambucana

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