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181 dessas estratégias ressaltando sua contribuição pedagógica para um ensino menos colonizado no campo das ciências sociais PALAVRAS CHAVE Póscolonialismo pedagogia Paulo Freire ciências sociais RESUMEN El presente articulo retoma algunos puntos de convergencia entre la obra de Paulo Freire Pedagogia do Oprimido 1968 y la perspectiva poscolonial latinoamericana o decolonial con el objetivo de señalar para el carácter pedagógico que este tiene en el campo de las ciencias sociales Se parte de la identificación y discusión de algunos aspectos convergentes en la obra de Freire y en los trabajos de Franz Fanon Aimé Cesáire Enrique Dussel Aníbal Quijano e Walter Mignolo argumento que el pensamiento de estos autores poscoloniales contribuyen para la enseñanza en el campo de las ciencias sociales al proponer el paradigma colonialidad modernidad Así como la Pedagogia do Oprimido propone formas de desconstrucción del mito de la estructura opresora la perspectiva poscolonial señala diferentes estrategias para la desconstrucción del mito del eurocentrismo El articulo apunta algunas de estas estrategias resaltando su contribución pedagógica para una enseñanza menos colonizada en el campo de las ciencias sociales PALABRAS CLAVE poscolonialismo pedagogía Paulo Freire ciencias sociales Paulo Freire no Pensamento decolonial um olhar Pedagógico sobre a teoria Pós colonial latino americana Camila Penna1 RESUMO O artigo retoma alguns pontos de convergência entre a obra de Paulo Freire Pedagogia do Oprimido 1968 e a perspectiva póscolonial latinoamericana ou decolonial com vistas a assinalar para o caráter pedagógico que esta tem no campo das ciências sociais A partir da identificação e discussão de alguns aspectos convergentes na obra de Freire e nos trabalhos de Franz Fanon Aimé Cesáire Enrique Dussel Aníbal Quijano e Walter Mignolo argumento que o pensamento destes autores póscoloniais contribui para o ensino no campo das ciências sociais ao propor um novo lugar de fala a partir do paradigma colonialidademodernidade Assim como a Pedagogia do Oprimido propõe formas de descontruir o mito da estrutura opressora a perspectiva póscolonial assinala diferentes estratégias para a desconstrução do mito do eurocentrismo O artigo aponta algumas 1 Camila Penna é mestre em Ciência Política e Doutora em Sociologia pela Universidade de Brasilia Atualmente é bolsista PNPD do Instituto de Ciência Política IPOL da UnB 182 ABSTRACT This article observes converging points between Paulo Freires Pedagogia do Oprimido 1968 and the latinamerican postcolonial perspective pointing to the pedagogical contribution the latter has had in social sciences Through the identification and discussion of converging aspects in Paulo Freires work as well as in Franz Fanons Aimé Cesáires Enrique Dussels Aníbal Quijanos and Walter Mignolos work I sustain that these authors contribute to the social sciences field when they propose a shift to the modernitycoloniality paradigm As Pedagogia do Oprimido addresses forms of deconstructing the myth of the structure of oppression the decolonial perspective points to different strategies for deconstructing the Eurocentric myth This article recovers some of these strategies highlighting its pedagogical contribution to a less colonized teaching process in social sciences KEYWORDS Postcolonialism pedagogy Paulo Freire social sciences Introdução O artigo retoma alguns pontos de convergência entre o pensamento póscolonial latinoamericano e a obra de Paulo Freire Pedagogia do Oprimido com vistas a extrair argumentos que justifiquem maior atenção à dimensão pedagógica daquela literatura para o campo das ciências sociais A obra de Freire converge com algumas das principais matrizes críticas de pensamento latino americano das últimas décadas Além do forte matiz marxista estão presentes elementos da Teologia da Libertação haja vista a recorrente utilização de termos como comunhão com os oprimidos ou testemunho da libertação Há também um diálogo com o pensamento de Frantz Fanon quando Freire utiliza em algumas passagens a expressão condenados da terra para se referir aos oprimidos e uma convergência com a literatura pós colonial latinoamericana mais recente2 quando o autor utiliza a analogia metrópole colôniaopressoroprimido para se referir aos processos opressivos de invasão cultural Na verdade toda dominação implica uma invasão não apenas física visível mas às vezes camuflada em que o invasor se apresenta como fosse o amigo que ajuda No fundo invasão é uma forma de dominar econômica e culturalmente o invadido Invasão realizada por uma sociedade matriz metropolitana numa sociedade dependente ou invasão implícita na dominação de uma classe sobre a outra numa mesma sociedade Freire 2005 p 173174 Cumpre observar que a Pedagogia do Oprimido desenvolvida a partir da experiência do autor como educador no Brasil e em outros 2 É importante ressaltar que os termos decolonial e pós colonialismo latinoamericano aqui utilizados de forma intercambiável passam a ser mais utilizados no início do século XXI Embora sejam frequentemente retomados no marco desta literatura alguns autores aos quais faço referencia como Freire Fanon e Cesáire estavam escrevendo em um período anterior entre os anos 1950 e 1970 183 países3 toma como ponto de partida uma realidade que ele identifica como comum a toda a América Latina a qual ele denomina estrutura opressora Em alguns momentos a obra faz alusão à sobreposição entre essa estrutura opressora e a realidade em países colonizados notadamente quando aponta para uma possível razão do fatalismo dos oprimidos é fruto de uma situação histórica e sociológica e não um traço essencial da forma de ser do povo Freire 2005 p54 e quando faz referência às sociedades invadidas Mais especificamente alguns pontos levantados por Freire 2005 sobre a estrutura opressora e sobre as características dos oprimidos se aproximam do que Quijano 2005 e Mignolo 2007 chamam de colonização do ser ou colonização cognitiva Exploro a seguir alguns destes pontos observando em que medida a proposta da Pedagogia do Oprimido identificação e problematização de determinados temas da estrutura opressora antes não questionados se aproxima do conteúdo programático do póscolonialismo latinoamericano Argumento que a proposta da perspectiva decolonial tem assim com a obra de Freire um valor pedagógico na medida em que questiona os referenciais eurocêntricos a partir dos quais o conhecimento no campo das ciências sociais é produzido As duas primeiras sessões apontam para pressupostos e argumentos da obra de Freire 3 O livro foi escrito no final dos anos 1960 quando Freire estava exilado no Chile e publicado pela primeira vez em inglês no ano de 1968 Após já ter sido publicado em cinco línguas Pedagogia do Oprimido foi publicado em português em 1970 pela editora Paz e Terra que convergem com a literatura decolonial tais como o raciocínio dialético a ideia de colonização cognitiva e o argumento de que a dominação se fundamenta em um mito mito da estrutura opressora ou mito do eurocentrismo As quatro últimas sessões apresentam diferentes estratégias para reverter a colonização do ser que aparecem tanto na obra de Freire quanto nas obras dos autores póscoloniais Essas estratégias são revolução objetivação da mitologia opressora ou eurocêntrica deslocamento do lugar de fala e valorização do conhecimento fronteiriço Ao final do artigo apresento algumas considerações sobre a dimensão pedagógica que a literatura decolonial pode ter para o ensino e produção no campo das ciências sociais Dialética e colonialidade O primeiro ponto de convergência entre a obra de Paulo Freire 2005 e a literatura póscolonial latinoamericana notadamente os trabalhos de Dussel 2005 e de Quijano 2005 é a predominância do raciocínio dialético Freire retoma Hegel para explicar a relação entre o opressor e o oprimido Usa a analogia do senhor e do escravo para demonstrar como a classe opressora e a classe oprimida se constituem mutuamente e como a permanência de uma depende da outra ao fazerse opressora a realidade implica a existência dos que oprimem e dos que são oprimidos Freire 2005 p 4142 As duas classes são polos opostos e dependentes em uma relação de contradição Contradição na medida em que o oprimido hospeda em si características do opressor que são internalizadas ao longo do processo de 184 educação e socialização no contexto da estrutura opressora Exemplos de elementos cognitivos internalizados pelos oprimidos e constitutivos da razão da estrutura opressora são a crença de que o patrão é superior e de que sua autoridade é inquestionável o que gera uma espécie de admiração a crença de que a desigualdade social é uma estrutura imutável e que sempre existiu a visão de sua própria situação de miséria como fatalidade e não como injustiça etc Essa contradição característica do oprimido é a mesma que o leva a crer que o ideal do homem é um dia chegar a ser como o patrão ou opressor tanto no aspecto material como no aspecto subjetivo o que vale ressaltar é simultâneo a um sentimento de medo e repulsa Há por outro lado em certo momento da experiência existencial dos oprimidos uma irresistível atração pelo opressor Pelos seus padrões de vida Participar destes padrões constitui uma incontida aspiração Na sua alienação querem a todo custo parecer com o opressor Imitálo Seguilo Freire 2005 p 55 Para explicar como se dá o processo de imersão da consciência do oprimido Freire faz alusão ao trabalho de Albert Memmi Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador 1977 estabelecendo um paralelo entre a imersão da consciência do oprimido e a da consciência do colonizado É interessante observar como Memmi em uma excepcional análise da consciência colonizada se refere à sua repulsa de colonizado ao colonizador mesclada contudo de apaixonada atração por ele Memmi apud Freire 2005 p 56 O processo que permite esta colonização cognitiva ou colonização do ser levando o indivíduo a pensar e ver o mundo a partir de categorias que o colocam na posição de oprimido é um tema ao qual se dedica a literatura póscolonial Contudo a dialética presente aí é a da colonialidademodernidade Ou seja a colonialidade é entendida como a outra face da modernidade Mignolo 2007 não sendo pois possível se falar em modernidade sem levar em consideração o processo de exploração das colônias e a construção ideológica do outro o colonizado como atrasado selvagem primitivo Dussel 1993 em oposição ao qual a Europa poderia se classificar como moderna civilizada evoluída atributos da metrópole construídos a partir da alteridade Quijano 2005 aponta para outro aspecto da colonialidade de acordo com ele a colonialidade cria um novo padrão de poder cujo eixo central é a raça ou a classificação da população mundial sobre a ideia de raça forjada com a descoberta e colonização da América A partir da colonização ibérica as relações sociais e de trabalho passam a ser pautadas pela noção de raça entendida homogeneamente como característica do dominado Contudo essa classificação produzida no colonialismo teria se mostrado mais duradoura que ele próprio É portanto um elemento de colonialidade ainda presente no padrão de poder mundial hegemônico atualmente daí a ideia de 185 colonialidade do poder Com o advento da colonização há a convergência de dois processos A codificação da diferença entre dominantes e dominados em termos de raça e a articulação de todas as formas históricas de controle do trabalho em torno do mercado mundial notese que o capitalismo havia se tornado mundial com a descoberta das Américas Esses dois processos não só foram convergentes como também estiveram conectados e se reforçaram mutuamente Com efeito a partir da descoberta da América toma lugar uma identificação da distribuição do trabalho com a raça Em outras palavras as raças inferiores não deveriam ser destinadas ao trabalho assalariado mas sim ao trabalho escravo A esse tipo de divisão do trabalho corresponde uma divisão geográfica criando o que o autor chama de identidades geoculturais A identidade geocultural nas Américas teria sido a primeira a se formar constituindo a base para a formação da identidade geocultural na Europa a partir da qual se constrói a ideia de modernidade em alteridade com o mundo colonial não moderno Nesse contexto surge também a noção de eurocentrismo que representa como assinala Quijano a dimensão cognitiva da colonização Ao lado da colonização material estaria a colonização cognitiva tendo o eurocentrismo como perspectiva hegemônica e fundamentada na idéia de história como trajetória evolutiva e na diferença entre Europa e não Europa codificada em termos de raça Invasão cultural e colonização do ser Embora não possam ser utilizadas de forma intercambiável as categorias utilizadas por Paulo Freire oprimidos e pela literatura pós colonial condenados da terra apresentam alguns pontos de convergência4 Freire 2005 identifica algumas características dos oprimidos como a dualidade existencial devido à introjeção do opressor e a irresistível atração por ele e por seu modo de vida processo que descrevemos acima Outra característica é o fatalismo alongado em docilidade que longe de ser um elemento do caráter nacional como algumas análises superficiais parecem sugerir é fruto de uma situação histórica e sociológica marcadas pela dominação e escravidão de três séculos Esse fatalismo que está muitas vezes ligado à percepção do poder do destino da sina ou do fado é consequência da imersão das consciências naquilo que Freire 2005 chama de mitologia da estrutura opressora Essa mesma mitologia é responsável por outra característica dos oprimidos a autodesvalia que é a 4 Cabe aqui uma ressalva no tocante à categoria oprimido que por vezes na obra de Paulo Freire se sobrepõe à categoria de Fanon condenados da terra utilizada no marco da literatura colonial e que tampouco pode ser confundida com a categoria raça Quando utiliza o termo oprimido Freire está se referindo àquele indivíduo que foi privado de ser mais de forma geral Nesse sentido o testemunho da opressão passa mais pela impossibilidade de se libertar para poder ser mais do que por características como etnia ou origem que são pontos relevantes na categoria de condenados da terra Podese dizer então que o que Paulo Freire chama de classe oprimida está mais próximo da experiência da pobreza do que propriamente da discriminação por etnia origem língua etc Haja vista a referência geral que o autor faz a operários urbanos e a camponeses única diferenciação da classe oprimida que aparece demarcada com clareza na obra Portanto não é possível utilizar de forma intercambiável os termos oprimido e condenados da terra na acepção que Fanon 1962 e Mignolo 2007 dão ao último Tampouco se pode dizer que haja uma sobreposição entre a categoria oprimido e a categoria raça descrita por Quijano 2005 186 introjeção pelos oprimidos da visão negativa que deles tem o opressor a de seres ignorantes inferiores incapazes etc Nesse ponto há um paralelo interessante entre a mitologia opressiva fomentada pela invasão cultural e o que os autores póscoloniais chamam de mitologia do eurocentrismo A mitologia do eurocentrismo é desconstruída por Dussel 2005 no texto crítico Europa modernidade e eurocentrismo no qual o autor apresenta os principais mitos da modernidade eurocêntrica 1 A civilização moderna autodescrevese como mais desenvolvida e superior o que significa sustentar inconscientemente uma posição eurocêntrica 2 A superioridade obriga a desenvolver os mais primitivos bárbaros rudes como exigência moral 3 O caminho de tal processo educativo de desenvolvimento deve ser aquele seguido pela Europa é de fato um desenvolvimento unilinear e à européia o que determina novamente de modo inconsciente a falácia desenvolvimentista 4 Como o bárbaro se opõe ao processo civilizador a práxis moderna deve exercer em último caso a violência se necessário for para destruir os obstáculos dessa modernização a guerra justa colonial 5 Esta dominação produz vítimas de muitas e variadas maneiras violência que é interpretada como um ato inevitável e com o sentido quase ritual de sacrifício o herói civilizador reveste a suas próprias vítimas da condição de serem holocaustos de um sacrifício salvador o índio colonizado o escravo africano a mulher a destruição ecológica etcetera 6 Para o moderno o bárbaro tem uma culpa por oporse ao processo civilizador que permite à Modernidade apresentarse não apenas como inocente mas como emancipadora dessa culpa de suas próprias vítimas 7 Por último e pelo caráter civilizatório da Modernidade interpretamse como inevitáveis os sofrimentos ou sacrifícios os custos da modernização dos outros povos atrasados imaturos das outras raças escravizáveis do outro sexo por ser frágil etc Dussel 2005 p 60 Outro elemento fundamental da mitologia eurocêntrica assinalado por Quijano 2005 é a ideia do estado de natureza como ponto de partida do curso civilizatório cujo cume é a civilização europeia e ocidental Desse mito se origina a especificamente eurocêntrica perspectiva evolucionista de movimento e de mudança unilinear e unidirecional da história humana Tal mito foi associado com a classificação racial da população do mundo Essa associação produziu uma visão na qual se amalgamam paradoxalmente evolucionismo e dualismo Quijano 2005 p236 Em Discurso sobre o Colonialismo 1955 Aimé Césaire também aponta alguns dos mitos forjados por pensadores das metrópoles Destaca 187 especificamente os diversos enquadramentos e formas de qualificação dos povos africanos negros que tiveram como efeito a produção de uma justificativa para a colonização com todas as atrocidades que lhe foram características E nesse aspecto denuncia não só a postura dos conquistadores como também o pensamento de antropólogos sociólogos psicólogos teólogos etc Dentre alguns dos argumentos trazidos à tona por Césaire com o propósito de denunciar o pensamento europeu racista que permitiu o colonialismo estão a idéia de que o negro não compartilharia das mesmas capacidades cognitivas do branco sendo portanto incapaz de evoluir ou se desenvolver aos níveis da Europa se deixado a sua própria sorte Outro argumento é o de que os negros só seriam iguais aos europeus em seus direitos humanos que deveriam ser resguardados Não seriam iguais aos europeus em termos da utilização da razão e da lógica o que estaria fundamentado pelo fato de que todos os descobrimentos e inovações no campo da ciência ocorreram na Europa e nada de relevante teria sido feito pelos africanos ou outros povos colonizados Importa observar que como aponta Césaire esse pensamento que de um lado conclama à defesa dos direitos humanos dos colonizados de outro lado justifica sua violação ao construir um discurso de inferioridade dos africanos Um terceiro argumento denunciado pelo autor é o pensamento produzido no campo da psicologia de que os africanos sudaneses sofreriam de um complexo de paternidade não tendo passado pelo rito da virilidade e autonomia em relação à figura paterna Nesse sentido não teriam passado ao estágio da maturidade O desdobramento deste diagnóstico seria a justificativa da colonização na medida em que para esses povos caberia a figura paternal do europeu que permitisse aos africanos passar à maturidade Todos esses mitos do eurocentrismo teriam culminado na imersão das consciências dos colonizados em um processo denominado colonização do ser Esse tipo de colonização tal qual a imersão da consciência dos oprimidos leva à internalização e naturalização das categorias do eurocentrismo Ou seja na categorização de si próprios como inferiores atrasados e nãocivilizados dentro de um ideal de civilização eurocêntrico que é em si um mito construído com um determinado propósito o de justificar a dominação e a exploração Nesse sentido podese verificar uma convergência com o processo descrito por Freire 2005 de invasão cultural pela mitologia da estrutura opressora Os mitos são passados às classes oprimidas por meio de uma forma de educação à qual Freire chama de bancária Nela não há um processo dialógico no qual são questionados ou problematizados determinados temas Os temas são passados na forma de depósitos bancários depositados como verdades inquestionáveis e legitimados pela autoridade do educador contraposta à suposta ignorância do educando Alguns dos mitos que fundamentam a estrutura opressora e que são indispensáveis para a manutenção do status quo são pontuados por Freire e logo em seguida 188 desconstruídos A seguir reproduzimos um fragmento na íntegra no qual com atualidade e lucidez exemplares Freire relaciona alguns dos mitos da estrutura opressora O mito por exemplo de que a ordem opressora é uma ordem de liberdade De que todos são livres para trabalhar onde queiram Se não lhes agrada o patrão podem deixálo e procurar outro emprego O mito de que todos bastando não ser preguiçosos podem chegar a ser empresários mais ainda o mito de que o homem que vende pelas ruas gritando doce de banana e goiaba é um empresário tal qual o dono de uma grande fábrica O mito do direito de todos à educação quando o número de brasileiros que chegam às escolas primárias do país e o dos que conseguem nela permanecer é irrisório O mito da igualdade de classe quando o sabe com quem está falando ainda é uma pergunta dos nossos dias O mito do heroísmo das classes opressoras como mantenedoras da ordem que encarna a civilização ocidental e cristã que elas defendem a barbárie materialista O mito de sua caridade de sua generosidade quando o que fazem enquanto classe é assistencialismo que se desdobra no mito da falsa ajuda que no plano das nações mereceu segura advertência de João XXIII O mito de que as elites dominadoras no reconhecimento de seus deveres são as promotoras do povo devendo este num gesto de gratidão aceitar a sua palavra e conformarse com ela O mito da propriedade privada como fundamento do desenvolvimento da pessoa humana desde porém que pessoas humanas sejam apenas os opressores O mito da operosidade dos opressores e o da preguiça e desonestidade dos oprimidos O mito da inferioridade ontológica destes e o da superioridade daqueles Freire 2005 p159160 Assim como a existência da mitologia do eurocentrismo que possibilita a colonização do ser é indispensável a invasão da colônia à mitologia opressiva é necessária a invasão cultural E o processo de invasão cultural descrito por Freire 2005 se aproxima muito do processo de colonização do ser a que a literatura póscolonial se dedica Como manifestação da conquista a invasão cultural conduz à inautenticidade do ser dos invadidos O seu programa responde ao quadro valorativo de seus atores a seus padrões a suas finalidades Uma condição básica ao êxito da invasão cultural é o conhecimento por parte dos invadidos de sua inferioridade intrínseca Quanto mais se acentua a invasão alienando o ser da cultura e o ser dos invadidos mais estes quererão parecer com aqueles andar como aqueles vestir à sua maneira falar a seu modo Freire 2005 p 174175 Foram apresentados até aqui alguns dos pontos de convergência entre os pressupostos e argumentos presentes na literatura póscolonial latinoamericana e na obra de Freire Ambas utilizam o raciocínio dialético para construir o argumento de que oprimidos e opressores se encontram em uma relação de contradição e para apresentar a colonialidade como a outra face da modernidade sem a qual esta não seria possível Ambas trabalham o tema da dominação 189 cognitiva que sustenta a dominação material o que aparece como invasão cultural na obra de Freire e como colonização do ser na literatura decolonial E ambas argumentam que essa dominação cognitiva se sustenta na criação de mitos que são internalizados como verdade o mito do eurocentrismo e o mito da estrutura opressora As sessões a seguir retomam algumas das proposições levantadas pelos autores para lidar com os problemas da invasão cultural e da colonização do ser a saber revolução objetivação da mitologia opressora deslocamento do lugar de fala e valorização do pensamento fronteiriço Ao assinalar para a convergência entre as proposições de Freire e dos pensadores póscoloniais latinoamericanos busco indicar como nos moldes da Pedagogia do Oprimido a perspectiva póscolonial oferece uma contribuição pedagógica para o campo das ciências sociais Revolução como libertação Um das saídas para a colonização do ser aventada na literatura póscolonial latino americana é a revolução A revolução como única forma completa de luta por libertação aparece na obra de Freire e é também uma consideração central na obra de Frantz Fanon 1968 É importante ressaltar que há aqui uma convergência mais forte do contexto históricopolítico da década de 1960 do que nos outros autores póscoloniais E também há que se considerar o contexto de guerras pela independência nas colônias africanas especificamente a guerra de independência da Argélia na qual Fanon estava engajado A preocupação com a colonização do ser tem centralidade na obra de Fanon e está diretamente relacionada com a necessidade de formação de uma consciência nacional Esse processo de construção de uma consciência nacional oposta ao do colonizador seria na visão do autor um processo em diferentes etapas Um primeiro momento marcado pelo assimilacionismo no qual o pensamento do colonizador é visto como superior e almejase assimilálo e absorvêlo Um segundo momento no qual se começa a notar os efeitos alienantes que a assimilação do pensamento europeu teria para o povo colonizado propondose alternativamente uma busca e uma volta às origens nativas já não mais existentes como tais mas sim reformuladas ou reconstruídas ao longo da dominação Na visão de Fanon 1979 esse movimento de resgate às origens como forma de resistir à colonização é por si hipócrita e sem efeito Hipócrita porque busca voltar ao que já não mais existe e muitas vezes nunca fora vivido Sem efeito uma vez que ao se olhar apenas para o passado e para as origens negligencia se o estágio atual do povo colonizado e os problemas imediatos a serem enfrentados para resistir à colonização Ou seja na medida em que não envolve um tratamento dos problemas atuais e uma orientação para a ação ou para a luta armada essa filosofia que busca resgatar as origens do povo colonizado não tem utilidade alguma É apenas um exercício intelectual que 190 pode ainda incorrer na falácia de buscar uma reconstrução da cultura originária a partir das categorias definidas pelo próprio colonizador Em outras palavras ao tentarse reconstruir uma identidade antagonista à identidade negada pelo colonizador como por exemplo uma identidade da raça negra colocando se os matizes em um mesmo todo como o fizeram os europeus ao categorizar os povos negros desconsiderase o estado atual de heterogeneidade e os diferentes problemas e particularidades surgidos em cada contexto a partir das diferentes formas de colonização e dos diferentes colonizadores Finalmente ao identificar a dominação e a dependência como obstáculos centrais à formação de uma cultura e uma consciência nacionais a obra de Fanon 1979 faz uma defesa do combate ao colonizador e da luta material pela liberdade como alternativa única à situação de dominado Importa observar que a situação de dominado aqui se sobrepõe à situação de colonizado O desafio de formação de uma nação face ao problema da colonização do ser também é assinalado por Quijano 2005 Para ele a permanência da colonialidade do poder em alguns países da América Latina5 é fator impeditivo da construção de um Estadonação que tem como pressuposto participação política e civil democráticas o que por sua vez requer a democratização das relações sociais A solução seria para o autor uma radical devolução do 5 Como intelectual peruano Quijano reflete principalmente sobre a realidade dos países andinos nos quais a colonialidade do poder ainda vigente mitiga a participação democrática na vida política e civil controle sobre o trabalho sexo autoridade e conhecimento às pessoas Tal distribuição todavia não poderia ser feita através da concentração de poder nas mãos do Estado sob a pena de um total despotismo Se bem não fala em revolução como o fazem Freire e Fanon esse caminho apontado por Quijano tampouco está claro Embora não desconsidere em momento algum os aspectos objetivos e materiais da revolução como fim último em Pedagogia do Oprimido Freire se detém sobre o processo pedagógico de objetivação de determinados temas pelos oprimidos como forma de libertação O enfoque central da obra é nos aspectos cognitivos de transformação da realidade que como lembra Freire não podem ser separados dos aspectos objetivos correndose o risco de se cair em um objetivismo ou em um subjetivismo ingênuos Objetivação da mitologia eurocêntrica O projeto pedagógico de Freire visa à formação de uma percepção crítica da realidade opressora pelos educandos e a problematização de temas antes não questionados e de situações e condições antes assimiladas como naturais a análise crítica de uma dimensão significativa existencial possibilita aos indivíduos uma nova postura também crítica em face das situações limites Freire 2005 p 112 Em outras palavras o propósito da educação libertadora é o de superar a visão fatalista da realidade como eterna e imutável passandose à percepção de que ela é construída pelos homens e passível de ser transformada 191 Para que seja superada a visão fatalista da realidade é necessário que a mitologia opressiva seja desconstruída processo em que a educação libertadora tem papel fundamental Ao problematizar aspectos da realidade dos oprimidos ela permite aos educandos apreender o processo de construção da estrutura opressora e as categorias e mitos que fundamentam tal estrutura E os permite também localizarse no escopo dessa estrutura deixando de ser aderentes passivos a ela A percepção ingênua ou mágica da realidade da qual resultava a postura fatalista cede seu lugar a uma percepção que é capaz de perceberse E porque é capaz de perceberse enquanto percebe a realidade que lhe parecia em si inexorável é capaz de objetivála O fatalismo cede então seu lugar ao ímpeto de transformação e busca de que os homens se sentem sujeitos Freire 2005 p85 Para Freire 2005 uma das formas pelas quais o educador poderia ajudar no sentido de superação da mitologia opressiva e por conseguinte na superação da colonização do ser é por meio da explicitação de alguns dos mitos sobre os quais a dominação se fundamenta o que há de fazer é propor aos oprimidos os slogans dos opressores como problema proporcionandose assim a sua expulsão de dentro dos oprimidos Freire 2005 p 99 A problematização das categorias e esquemas de interpretação subjacentes ao eurocentrismo notadamente através da explicitação dos mitos que o constroem é justamente a proposta do poscolonialismo latinoamericano E nesse sentido adotar como conteúdo programático a apresentação de alguns discursos coloniais como mitos forjados com vistas a justificar a dominação tem assim como o projeto de Freire um caráter pedagógico Para Dussel 2005 a saída da colonização do ser passa pela superação da mitologia da modernidade eurocêntrica Mas para que a superação da modernidade seja possível é necessário que a outraface da modernidade negada e inferiorizada se veja como inocente e como vítima do processo de dominação6 e ao fazêlo possa identificar o mito da modernidade como culpado da violência originária e conquistadora Apenas quando se nega o mito civilizatório e da inocência da violência moderna se reconhece a injustiça da práxis sacrificial fora da Europa e mesmo na própria Europa e então pode se igualmente superar a limitação essencial da razão emancipadora Superase a razão emancipadora como razão libertadora quando se descobre o eurocentrismo da razão ilustrada quando se define a falácia desenvolvimentista do processo de modernização hegemônico Isto é possível mesmo para a razão da Ilustração quando eticamente se descobre a dignidade do Outro da outra cultura do outro sexo e gênero etc quando se declara inocente a vítima pela afirmação de sua Alteridade como Identidade na Exterioridade como pessoas que foram negadas 6 Notese que a noção de inocente aqui diz respeito ao auto reconhecimento da inocência da acusação de atraso Assumir a posição de vítima seria então uma estratégia de descolonização do ser reconhecendose não como atrasado o que justificaria a colonização como evolução em direção à modernidade mas sim como inocente deste estigma 192 pela Modernidade Dussel 2005 p 60 Notese que o que Dussel chama de superação do mito da modernidade eurocêntrica se aproxima do propósito da educação libertadora de Freire o de superar a contradição opressoroprimido por meio da objetivação do opressor como causa da situação atual e por meio da problematização e questionamento da mitologia da opressão A Pedagogia do Oprimido propõe a objetivação e a desconstrução do mito da estrutura opressora como estratégia para que o educando possa questionar temas e aspectos da realidade antes tidos como dados superando assim sua visão fatalista do mundo No mesmo sentido a literatura póscolonial advoga pela objetivação e desconstrução do mito do eurocentrismo através do paradigma da colonialidademodernidade como forma de produzir um conhecimento menos colonizado e excludente daí seu caráter pedagógico para o campo das ciências sociais Deslocamento do lugar de fala No processo de desconstrução da mitologia da estrutura opressora a palavra tem um papel fundamental Não a palavra como um meio para o diálogo mas sim como práxis ou seja como fruto da ação e da reflexão humana A palavra tem o papel de pronunciar o mundo de problematizálo de modificálo Freire 2005 O papel da palavra como ação destacado por Freire se aproxima do argumento da perspectiva póscolonial para a qual a linguagem e o discurso têm lugar central Cabe destacar por exemplo a preocupação de Freire em apontar que a pronúncia da palavra não deve ser prerrogativa apenas de alguns E seu objetivo de libertação das classes oprimidas está diretamente ligado à conquista da capacidade destas de também dizer a palavra dizela conforme sua forma de perceber a realidade ou se poderia dizer emiti la a partir de seu lugar de fala Se dizer a palavra verdadeira que é trabalho que é práxis é transformar o mundo dizer a palavra não é privilégio de alguns homens mas direito de todos os homens Precisamente por isto ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho ou dizêla para os outros num ato de prescrição com o qual rouba a palavra dos demais Freire 2005 p 91 Notese que a necessidade de mudança do lugar de fala ressaltada pelos autores póscoloniais segue esta mesma lógica de impedir que a palavra seja prescrita a ou roubada de determinados povos A mesma lógica de denunciar a permanência histórica de um privilégio da pronúncia da palavra quando na verdade essa pronúncia deveria ser direito de todos Ao argumento de Dussel em O encobrimento do outro 1993 está subjacente uma denúncia do roubo do direito de pronunciar a palavra da detenção de um privilégio da Europa moderna para classificar e enquadrar o resto do mundo a partir da falácia da civilização É exemplo a explicitação da legitimidade e autoridade de Hegel como pensador moderno para enunciar a forma pela qual deveria ser apreendia a América Latina e a África 193 De América y de su grado de civilización especialmente en México y Perú tenemos información de su desarrollo pero como una cultura enteramente particular que expira en el momento en que el Espíritu se le aproxima La inferioridad de estos individuos en todo respecto es enteramente evidente En lo que se refiere a sus elementos América no ha terminado aún su formación Latino América es por consiguiente la tierra del futuro En tiempos futuros se mostrará su importancia histórica Mas como país del futuro América no nos interesa pues el filósofo no hace profecias Hegel apud Dussel 1993 p1516 Africa es en general una tierra cerrada y mantiene este su carácter fundamental Entre los negros es en efecto característico el hecho de que su conciencia no ha llegado aún a la intuición de ninguna objetividad como por ejemplo Dios la ley en la cual el hombre está en relación con su voluntad y tiene la intuición de su esencia Es un hombre en bruto Este modo de ser de los africanos explica el que sea tan extraordinariamente fácil fanatizarlos El Reino del Espíritu es entre ellos tan pobre y el Espíritu tan intenso que una representación que se les inculque basta para impulsarlos a no respetar nada a destrozarlo todo Africa no tiene propiamente historia Por eso abandonamos Africa para no mencionarla ya más No es una parte del mundo histórico no presenta un movimiento ni un desarrollo histórico Lo que entendemos propiamente por Africa es algo aislado y sin historia sumido todavía por completo en el espíritu natural y que sólo puede mencionarse aquí en el umbral de la historia universal Hegel apud Dussel 1993 p 17 Os fragmentos acima são elucidativos não apenas do que Freire 2005 chama de ato de prescrição com o qual se rouba a palavra dos demais Eles ilustram também como as categorias de interpretação do mundo são forjadas a partir de mitos de civilização e evolução humana tomando como padrão e critério de medição a Europa moderna E assim como a literatura póscolonial aponta para a necessidade de criação de novos lugares de fala a partir dos quais seja possível questionar essas categorias e formas de enquadramento e interpretação do mundo Freire assinala como fundamental a reconquista do direito de enunciação e de pronuncia do mundo para que se cesse o processo de desumanização Não é possível o diálogo entre os que querem a pronuncia do mundo e os que não a querem entre os que negam aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste direito É preciso primeiro que os que assim se encontram negados no direito primordial de dizer a palavra reconquistem esse direito proibindo que este assalto desumanizante continue Se é dizendo a palavra com que pronunciando o mundo os homens o transformam o diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens ganham significação enquanto homens Freire 2005 p 91 Embora haja divergências entre os pensadores decoloniais sobre qual deve ser a saída para o problema da colonização do ser podese dizer 194 que todos convergem quanto ao argumento de que o póscolonialismo representa a inserção de um novo lugar de fala de um novo lugar de enunciação do ponto de vista da geopolítica do conhecimento E isso já é uma forma de resistir à colonização cognitiva Descentralizar o centro ou multiplicálo oferece novas perspectivas no discurso colonial e pós colonial aquela do lócus da enunciação criado no próprio ato de postular a categoria do discurso colonial e também o lócus de enunciação criado não no ato de estudálo ou analisálo mas de resistir a ele Mignolo1993 p 124 O surgimento de um novo lugar de fala se torna possível na medida em que o próprio discurso colonial é colocado em xeque se tornando o centro da análise Como o fazem por exemplo Aimé Césaire em Discurso sobre o colonialismo 1955 e Edmundo OGorman em A invenção da América 1958 ao problematizar as formas de colonialismo intelectual assinalando que a América Latina é também um lugar de fala de produção intelectual e não somente um lugar a ser analisado por intelectuais dos países desenvolvidos O lugar de fala destacado na literatura póscolonial é parte de um paradigma mais amplo que alguns autores chamam de paradigma da colonialidade Mignolo 2007 argumenta que a colonialidade é uma noção distinta do paradigma dominante imperialista A narrativa da colonialidade compreende o relato da história colonial e da exploração a partir da versão do colonizado ou dos condenados da terra tomando emprestado o conceito de Frantz Fanon No pensamento póscolonial a colonialidade seria a face oculta da modernidade que surge do sentimento de inferioridade imposto nos seres humanos que não se encaixam no modelo eurocêntrico A modernidade só pode ser pensada em coexistência e simultaneidade com a colonialidade na medida em que a identificação como moderno e civilizado se afirma a partir da categorização da colônia como bárbara e atrasada E nesse sentido a escravidão o genocídio e a exploração também são parte da modernidade estão na face da colonialidade O projeto póscolonial ao adotar essa noção de colonialidade sugere uma mudança de posicionamento diante da história deixando de pensar a modernidade como um objetivo e vendoa como uma construção europeia da história a favor dos interesses da Europa Mignolo 2007 Valorização do pensamento fronteiriço Para Freire o ponto central para superar a colonização do ser é a educação libertadora e essa educação tem algumas características que se opõem à educação bancária referida acima dominante na América Latina Primeiramente a educação libertadora pressupõe o diálogo como fundamental ao processo pedagógico Diálogo entre educador e educando no qual o último possa agir como sujeito questionador e não apenas como coisa passiva em que se deposita conteúdo Essa concepção dialógica da educação pressupõe o respeito aos educandos e à sua forma de pensar e interpretar a realidade o que implica a negação do que Freire chama de 195 absolutização da ignorância do educando Na visão bancária da educação O saber é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão a absolutização da ignorância que constitui o que chamamos de alienação da ignorância segundo a qual esta se encontra sempre no outro O educador que aliena a ignorância se mantém em posições fixas invariáveis Será sempre o que sabe enquanto os educados serão sempre os que não sabem Freire 2005 p 67 O processo pedagógico de acordo com Freire só tem sentido na medida em que o educando é respeitado e sua forma de perceber e interpretar a realidade são investigadas profundamente pelo educador e consideradas no momento de se construir o conteúdo programático O que se busca com esse processo é partir de uma realidade que seja próxima e acessível ao educando evitando a imposição de conteúdos programáticos alheios e formados a priori sem nenhuma relação com a realidade vivida pelos educandos e portanto alienante e de difícil compreensão O pensar do educador somente ganha autenticidade na autenticidade do pensar dos educandos mediatizados ambos pela realidade portanto na intercomunicação Por isto o pensar daquele não pode ser um pensar para estes nem a estes imposto Daí que não deva ser um pensar no isolamento na torre do marfim mas na e pela comunicação em torno repitamos de uma realidade Freire 2005 p 74 A proposta de superação de uma concepção bancaria de educação na qual o educador se isola em uma torre de marfim se aproxima da proposta de descolonização epistêmica Mignolo 2004 que pressupõe a superação da hierarquia entre os centros produtores e receptores de conhecimento e a superação da assimetria entre investigadores e investigados Nesse sentido o ensino e a produção no campo das ciências sociais deve ser capaz de considerar em um mesmo nível de relevância e não como hierarquicamente inferior a episteme de diferentes grupos historicamente excluídos ou entendidos como nãomodernos Outro ponto de convergência entre a Pedagogia do Oprimido e a literatura decolonial é a importância dada à investigação do conhecimento produzido na região específica a ser trabalhada Mignolo 2007 aponta para a necessidade de se prestar mais atenção ao tipo de saber que atende às necessidades dos condenados da terra e que está sendo produzido no que ele chama de zonas de fronteira Esse tipo de saber é caracterizado pela compreensão e interpretação do mundo a partir da chave de compreensão e das categorias subjacentes às cosmologias específicas dos povos condenados Exemplo deste tipo de saber é o projeto de Guaman Poma que ainda no século XVI propõe ao rei espanhol uma forma de governo e gestão da colônia a partir de uma perspectiva do império Inca produzindo um pensamento de fronteira que enquadra a história imperial e ocidental a partir do sistema de pensamento e conhecimento local 196 e da própria história colonial Mignolo 2007 argumenta que a ruptura epistêmica produzida a partir deste tipo de saber poderia levar a um processo de descolonização do ser Daí a necessidade de investigar esses tipos de saberes de fronteira e identificar em que medida eles oferecem resistência à colonização do ser Para Freire 2005 a investigação do saber regional do povo a partir de uma postura de respeito é um dos pontos fundamentais no processo pedagógico a metodologia que defendemos exige por isto mesmo que no fluxo da investigação se façam ambos sujeitos da mesma os investigadores e os homens do povo que aparentemente seriam seu objeto Freire 2005 p 135 Considerações Finais O trabalho teve como objetivo apontar alguns pontos de convergência entre a obra de Freire Pedagogia do Oprimido e a perspectiva decolonial com o propósito de discutir em que medida esta literatura tem algum valor pedagógico comparável àquela Assinalei primeiramente alguns paralelos no tocante a pressupostos e argumentos centrais a compreensão dialética da relação oprimidoopressor e da relação colonialidade modernidade o destaque da dimensão subjetiva de dominação expressa nas ideias de invasão cultural e colonização do ser e o argumento de que são os mitos da estrutura opressora e do eurocentrismo que sustentam essa dominação cognitiva que por sua vez é essencial à dominação material A segunda parte do texto identifica as estratégias apontadas por Freire e pela literatura póscolonial para lidar com o problema da colonização do ser É na convergência entre essas estratégias que a dimensão pedagógica da contribuição decolonial se torna visível Se no contexto dos movimentos de descolonização da África nos anos 1960 a estratégia central era a revolução notadamente em regiões onde opressão e colonização ainda se sobrepunham como no caso da Argélia tratado por Fanon 1979 outras estratégias também foram propostas no marco da literatura decolonial Uma das mais importantes propostas ressaltada por Freire e pelos autores póscoloniais é a objetivação e problematização da mitologia que sustenta a dominação No caso da Pedagogia do Oprimido isso é feito através do questionamento de alguns elementos da estrutura opressora Já na perspectiva póscolonial trata se de descontruir o mito do eurocentrismo É importante lembrar que a desconstrução desses mitos que sustentam a dominação cognitiva na qual o próprio oprimido se vê como inferior é uma forma de reverter a colonização do ser Outra proposta da perspectiva decolonial é o deslocamento do lugar de fala o que se aproxima da estratégia da pedagogia de Freire de devolver a palavra ao oprimido Falar a partir do paradigma colonialidademodernidade ressaltando a colonialidade como a outra face a modernidade é uma forma de desafiar o discurso moderno hegemônico Por fim a perspectiva póscolonial assinala para a necessidade de dar relevância ao discurso produzido nas zonas de 197 fronteiras pelos grupos excluídos e oprimidos como forma de resistir à colonização do ser o que encontra um paralelo na proposta de educação libertadora de Freire Cabe ressalvar que à diferença da Pedagogia do Oprimido o conteúdo programático proposto pela literatura póscolonial está mais próximo a um debate acadêmico e não representa propriamente um conteúdo acessível a um público mais amplo Portanto quando falo em proposta pedagógica do póscolonialismo latino americano não estou sugerindo um programa do mesmo alcance do de Freire Estou me referindo à importância pedagógica do debate póscolonial no ensino e produção no campo das ciências sociais Como proposta questionadora das categorias teóricas e das formas de raciocínio já naturalizadas como legítimas essa literatura tem um valor pedagógico que não pode ser desconsiderado O projeto pedagógico do póscolonialismo tem função paralela à pedagogia de Freire a de ajudarnos a perceber quão permeados podem estar nosso processo intelectual e nossos critérios de julgamento Permeados por um processo de invasão cultural que acaba levando à imersão de nossa consciência crítica em uma mitologia das formas de conhecimento legítimas dos temas premiáveis das categorias teóricas adequadas das metodologias aceitáveis no mais das vezes construídos a partir de casos particulares tomados como universais na lógica da geopolítica do conhecimento Um das contribuições do póscolonialismo para o ensino e produção no campo das ciências sociais é justamente a explicitação da geopolítica do conhecimento a problematização do processo internacional assimétrico de produção de conhecimento e do lugar que ocupam os países de terceiro mundo e o conhecimento neles produzido Esta explicitação por sua vez é relevante para a construção de um olhar crítico sobre as categorias de pensamento a partir das quais construímos nosso raciocínio acadêmico para o questionamento dos sistemas de classificação construídos nas academias dos países do ocidente que muitas vezes excluem ou minimizam a importância dos nossos objetos de pesquisa porque não foram considerados na construção destes sistemas de classificação ditos universais e para a problematização do próprio objetivo de universalização da pesquisa nas ciências sociais ao qual subjaz a noção de que existe apenas uma única episteme ou forma aceitável de conhecimento e compreensão do mundo Cabe citar um último aspecto da dimensão pedagógica da literatura póscolonial no campo das ciências sociais a compreensão da nossa realidade latinoamericana como marcada por um processo histórico e sociológico de opressão e colonização O que em si pressupõe um ponto de partida ou um lugar de fala distinto do lugar a partir do qual o conhecimento hegemônico é enunciado E isto marca nossa produção nossos quadros interpretativos nossas formas de compreender e classificar o mundo 198 Nesse sentido para que possamos conceber nossos próprios objetos de investigação tomando uma distância crítica das categorias formas de classificação e métodos construídos a priori e em outros contextos é fundamental que possamos tomar uma postura de sujeitos e deixar de adequarnos passivamente à realidade imutável e canônica das ciências sociais tal como nos é passada ou depositada em nós e tal como depositamos em nossos alunos Se não formos capazes de trabalhar com essas categorias de forma crítica não nos dando conta de que nossa produção está situada no entrelugar de Silviano Santiago 1978 incorremos no risco de ofuscarmos a visão da nossa própria realidade e problematizarmos de forma ingênua ou equivocada nossos temas de pesquisa BIBLIOGRAFIA CESÁIRE Aimé Discurso sobre o Colonialismo Paris 1955 DUSSEL Enrique Europa modernidade e eurocentrismo In LANDER Edgardo A colonialidade do saber eurocentrismo e ciências sociais Perspectivas latinoamericanas CLACSO Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales Ciudad Autónoma de Buenos Aires Argentina Setembro 2005 DUSSEL Enrique 1492 o encobrimento do Outro a origem do mito da modernidade Conferências de Frankfurt Tradução de Jaime A Clasen Petrópolis Vozes 1993 FANON Frantz Os Condenados da Terra 2ª Ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1979 FREIRE Paulo Pedagogia do Oprimido 47ª Ed Petrópolis Vozes 2005 1970 FREIRE Paulo GUIMARÃES Sérgio Diálogos sobre o vivido diálogos entre Sérgio Guimarães e Paulo Freire Educação Sociedade e Culturas n 23 2005 MIGNOLO Walter La Idea de América Latina la herida colonial y la opción decolonial Barcelona Gedisa Editorial 2007 MIGNOLO Walter Colonial and Postcolonial Discourse Cultural Critique or Academic Colonialism Latin American Research Review Vol 28 No 3 1993 pp 120134 MIGNOLO Walter Herencias coloniales y teorias postcoloniales Nueva Sociedad 1996 MIGNOLO Walter 2004 Os esplendores e as misérias da ciência colonialidade geopolítica do conhecimento e pluriversalidade epistémica In SANTOS Boaventura de Sousa Org Conhecimento prudente para uma vida decente Um discurso sobre as Ciências revisitado São Paulo Cortez p 667709 OGORMAN Edmundo A invenção da América São Paulo Editora Unesp 1992 1986 QUIJANO Aníbal Colonialidade do poder eurocentrismo e América Latina 199 In LANDER Edgardo A colonialidade do saber eurocentrismo e ciências sociais Perspectivas latinoamericanas CLACSO Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales Ciudad Autónoma de Buenos Aires Argentina Setembro 2005 SANTIAGO Silviano Uma literatura nos trópicos São Paulo Perspectiva 1978 AS CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA E AS TEORIAS EDUCACIONAIS MODERNAS E CONTEMPORÂNEAS Paulo Ghiraldelli Jr RESUMO As concepções de infância e as teorias educacionais modernas e contemporâneas O texto trata de diferentes concepções de infância em Descartes Nabokov Hegel Ariés e outros Comenta uma posição metafísica e uma posição historicista A concepção naturalista de infância no início é uma metafísica posição Ela tem duas direções com Rousseu e Nabokov por exemplo Em vez disso Hegel e Ariés seguram a bandeira dos historicistas mas eles ainda estão no campo da metafísica Podíamos dar mais um passo com Rorty unindo naturalismo e historicismo O texto coloca as concepções de infância junto com as concepções de filosofia da educação e teoria educacional No final o texto mostra um novo pensamento o campo pósmoderno em filosofia da educação e teoria educacional em que se abandona a noção moderna de infância Palavraschave infância filosofia da educação pragmatismo história da educação Rorty ABSTRACT Childhood conceptions and the modern and contemporary educational theories This paper discusses several conceptions of childhood Descartes Nabokov Hegel Ariés and others It comments a metaphisical position and a historicist position The naturalist conception of childhood in the begining is a metaphisical position It has two directions with Rousseau and Nabokov for example Instead Hegel and Ariès cacht the flag from the historicist but still they are in the field of metaphysis We could give more a step with Rorty joining naturalism and historicism The article put the childhood conceptions together with the concepcions in Philosophy of Education and Educational Theory In the end the text shows a new thinking the postmodern field in Philosophy of Education and in Educational Theory giving up the modern notion of childhood Keywords childhood philosophy of education pragmatism history of education Rorty Concepções da infância Rousseau e Nabokov Quando se trata de julgar questões que envolvem direitos da infância em geral temos dois grupos de pessoas Há um grupo que acredita na idéia da infância como sendo um período prolongado que se caracteriza principal mente pela inocência Contestando este há um outro grupo que defende a idéia de que a infância sendo ou não um período longo pode ser pensada como possuindo uma série de características mas nunca as de inocência e bondade como essenciais O primeiro grupo podese assim dizer é o herdeiro de um movimento específico na história do pensamento no ocidente a saber a ruptura proporcio nada por Rousseau em relação às concepções sobre a infância vindas de Santo Agostinho e de Descartes Como se sabe Santo Agostinho viu a criança imersa no pecado na medida em que não possuindo a linguagem infante o que não fala portanto aquele que não possui logos mostrarseia desprovida de razão exatamente o que seria o reflexo da condição divina em nós os adultos Descartes viu a criança como alguém que vive uma época do predomínio da imaginação dos sentidos e sensações sobre a razão e mais uma época da aceitação acrítica das tradições postas pelos preceptores tudo o que macularia nosso pensamento conduzindonos mais tarde uma vez adultos à dificuldade no uso da razão e portanto ao erro Para os dois Agostinho e Descartes quanto mais cedo saíssemos da condição de criança melhor para nósl Rousseau rompeu com a visão agostiniana e cartesiana na medida em que colocou o erro a mentira e a corrupção como sendo frutos da incapacidade de julgar de quem não pode mais beneficiarse nos seus julgamentos do crivo de um coração sincero e puro próprio da condição infantil o protótipo da con dição do bom selvagem A infância até então a inimiga número um da filosofia e portanto da verdade e do bem agora inversamente seria a própria condição para a filosofia Nela estariam a inocência e a pureza necessárias para o acolhimento da verdade e para a participação no que é moralmente corret02 O segundo grupo pode ser razoavelmente vinculado a vários pensadores e escritores contemporâneos Penso que Nabokov é um bom exemplo aqui pelo espírito francamente contrário ao rousseauísmo algo que nos lembra Nietzsche Se voltarmos ao seu romance Lotita3 principalmente ao capítulo 28 da parte I veremos o personagem Humbert ao se preparar para se deleitar com o corpo de Lolita então com doze anos se consolar lembrando que ela estará dormin do está dopada e que ele no limite não irá de fato completar o ato O consolo é para com sua própria consciência de como diz habitante do Velho Mun do eu JeanJacques Humbert O filme Lotita na sua segunda versão nos permite visualizar a idéia de Nabokov de ligar Humbert e Rousseau por meio das expressões eu JeanJacques Humbert e habitante do Velho Mundo A 46 proteção à infância para Nabokov era uma idéia que vinha do Velho Mundo e ainda que parecesse tão mais vigente na América do que na Europa ela havia se tomado uma vez na América uma piada que só atormentava a mente do personagem Pois afinal Lolita tinha experiências sexuais inclusive com pedófilos na sua escola religiosa ironicamente uma escola adepta de acam pamentos teatro e outros eventos os quais via como oportunidade de sociali zação das crianças As meninas por sua vez não só não estavam com medo disso ou horrorizadas com suas práticas até mesmo com pedófilos mas eram cúmplices nessas experiências perversamente cúmplices Nada há de ino cente puro ou bondoso na infância desenhada por Nabokov Concepções de infância Hegel Collodi e Aries Conversas afinadas com um certo espírito nabokoviano podem parecer subversivas em relação à infância clássica rousseauísta Mas de fato nem sempre fazem muito contra ela Muitas vezes dão margem apenas a um rousseauísmo invertido Seguem a concepção clássica na medida em que po dem muito bem pensar a infância como um dado natural A infância não seria inocente mas nem por isso não cumpriria o destino posto pela sua natu reza Há pelo menos duzentos anos desde Hegel uma boa parte dos ocidentais começou a falar sobre as coisas do mundo de um modo diferente consideran doas menos como situações e elementos dados e imutáveis naturais no sentido essencialista do termo mas como situações e elementos historica mente construídos Assim começamos a esboçar uma terceira via para con versarmos sobre as crianças Novos sentimentos associados a essa nova forma de falar sobre o que fazer com as crianças em favor da comodidade dos adul tos e da comunidade ganharam algumas pessoas das cidades do ocidente nos séculos XIX e XX Nessas conversas no início do século XIX a infância já aparece como algo obtido por construção Inclusive uma construção que a entrelaça com a cidade e com a escola O conto As Aventuras de Pinóquio de Carlo Collodi é uma narrativa desse tip04 Como se sabe o conto começa com um marceneiro Gepeto que recebe de presente um pedaço de pau falante e o transforma em um boneco Pinóquio o boneco de madeira não é obviamente uma criança Como nota o Grilofalan te o que é pior em Pinóquio é que ele tem cabeça de pau Para ser um menino de verdade5 seria preciso ser bom para seu pai e para com os outros ter responsabilidade ter sua própria consciência Assim a fada para o trans formar em menino de verdade depende de alguns prérequisitos Para poder agir sobre a obra da natureza o pedaço de pau falante e sobre o trabalho paterno o boneco de madeira e transformar Pinóquio em um menino a fada 47 necessita que ele já esteja vivendo como tal Ora Gepeto sabe muito bem quem deve então proporcionar isso ao Pinóquio É a escola Ao trocar seu próprio casaco por uma cartilha Gepeto indica que acredita na escola como o local que pode fazer Pinóquio ter condições de viver como um menino de verdade Onde fica a escola Na cidade A cidade e a escola então são res ponsáveis pela parte mais decisiva da construção da infância Todavia elas formam um campo aberto de possibilidades históricas Nelas a infância pode ocorrer mas não necessariamente ocorrerá Isso fica claro quando Pinóquio vai à cidade encaminhandose para a escola e encontra a raposa e o gato elementos que vivem na cidade mas que estão longe de serem cidadãos De sencaminham Pinóquio mostrando assim as outras possibilidades da cidade Inclusive mostram a possibilidade de podermos mudar de cidades de irmos para cidades terríveis cidades sem cidadania como aquela em que habitavam as criançasasnos onde Pinóquio quase termina por se transformar completa mente em asno Contrariando Nabokov e Rousseau o Pinóquio de Collodi não é essencial mente mau nem bom é apenas um boneco de pau Contrariando outros auto res a cidade de Collodi não está sujeita a digamos leis históriconaturais nela tudo pode acontecer pois ela não está sujeita à lei alguma que não possa ser quebrada ou subvertida Se Pinóquio for bom e responsável terá feito dessa época de sua vida um trampolim para poder dizer sou um menino de verda de Ao final do conto de fato ele se transforma em menino de verdade na medida em que contrariando aqueles que não são cidadãos e que gostariam de fazer dele também um nãocidadão o gato e a raposa e outros personagens do mesmo tipo ele desenvolve comportamentos que indicam aos olhos de seu pai e da fada responsabilidade e bondade Nós ocidentais desde o final do século XVIII e mais decisivamente no século XIX ao mesmo tempo que começamos a descrever a infância como algo natural segundo um recorte que se pretendia único também utilizamos outras descrições como a contida em Pinóquio Nesta a infância é algo recor tado de modo menos rígido pois é vista com algo dependente de construção histórica Nesse tipo de descrição a infância surgiu como algo para cuja cons tituição concorrem várias forças culturais e completamente contingentes en tre as quais a cidade e a escola se tomaram muito importantes Mas o historicismo ensaiado no conto de Collodi é bastante ameno perto do que temos no século XX principalmente nos últimos quarenta anos Mais do que conversarmos sobre a infância de cada criança como algo que não é de todo essencialmente natural passamos a falar sobre a própria idéia de infân cia natural como algo historicamente criado E os que seguem tal caminho como Philippe Ariês no início dos anos 60 ensinam uma maneira de conver sar sobre a infância bastante distante das formas utilizadas pelos dois grupos inicialmente aludidos os inspirados na virada rousseauísta e os representados 48 pelo espírito nabokoviano Philippe Aries dá continuidade à terceira via a de Hegel e Collodi É certo que Aries6 fala em descoberta da infância e com isso nubla um pouco a idéia de invenção da infância Assim com Aries ainda poderíamos estar pensando na infância como uma fase natural dos seres humanos nunca antes percebida mas que em certo momento seria encontrada por intelectuais de melhor visão Tratarseia então de fazer cada criança viver sob condições específicas para que sua infância pudesse ocorrer da maneira como a natureza programou Mas não é este o espírito do texto de Aries Ele trata a noção de infância como algo que vai sendo montado criado a partir das novas formas de falar e sentir dos adultos em relação ao que fazer com as crianças Em Pinóquio a escola e a cidade são elementos que concorrem para que o boneco se tome um menino de verdade Ou seja são as forças culturais completa mente contingentes que estão presentes e que forjam a infância Em Aries de modo mais abrangente e radical as próprias noções que diferenciam um meni no de um adulto aparecem como criação criação prática a partir da conversa ção e dos afetos que os grupos urbanos desenvolvem a respeito de seus filhos Levar o historicismo de Aries adiante é então admitir que não somente a idéia de infância clássica é uma invenção mas claro que o mesmo pode ser dito da sua inversão nabokoviana E mais que toda e qualquer descrição da infância seja ela posta pela ciência pela filosofia pela literatura e pelas artes em geral são enfim apenas novas descrições Elas não permitem que as mensuremos nos referindo a uma super descrição que seria então a verdade sobre o que é o menino de verdade O que significa conversar sobre as crianças desse modo Significa não acreditar que os direitos da infância todos esses direitos de proteção já conquistados e aqueles a conquistar e a inventar na cultura liberaldemocrá tica ocidental podem ser ditos válidos porque assentados na verdade teórica que nos pretende dizer o que é a infância Significa não mais procurar expli car e justificar os direitos da criança a partir da verdadeira definição de meni no de verdade Mas então os direitos da infância estão condenados Nem sim nem não Como assim Talvez Gepeto possa nos ensinar algo sobre isso Gepeto não sabe muito bem o que é ser um menino de verdade a não ser o que todos os habitantes razoáveis da cidade sempre disseram que um meni no devia ser bom e responsável ter uma consciência e não uma cabeça de pau O que ele sabe muito bem é que a cidade oferece um espaço próprio para todos os meninos Na escola entende Gepeto viverseia como menino de verdade para enfim tomarse menino de verdade Gepeto não espera en contrar na entrada da escola um aviso do tipo aqui não aceitamos bonecos de pau só meninos de verdade e de fato não encontra Pinochio consegue matrícula Por um acordo histórico e cultural a cidade em que vive Gepeto reserva para as crianças um espaço isto é mais um direito da infância pouco 49 se importando para tal em perguntar aos seus sábios locais ou estrangeiros o que é verdadeira e objetivamente um menino de verdade Mas não só fundamentar os direitos da infância na verdade teórica sobre a infância é pouco possível para uma cultura historicista da qual participam muitos em nossos tempos Para alguns que participam dessa cultura isso pode mesmo até ser um perigo Circunscrever os direitos da criança a partir de uma rígida delimitação da infância segundo uma única descrição significa também abrir caminho para que muitos bonecos de pau não usufruam desses direitos Se cairmos na tentação de padres metafísicos e cientistas de fun damentar os direitos das crianças a partir da verdade sobre o que é o menino de verdade talvez a maior parte das crianças fique de fora das nossas conver sas e pior dos nossos cuidados e preocupações As teorias educacionais e a infância Dentro desse quadro acima colocado o que se pode dizer da relação entre as grandes teorias educacionais atuais e a infância Para responder a essa pergunta é necessário que eu diga também o que considero como sendo as grandes teorias educacionais dos nossos tempos tomando aqui como os nos sos tempos os séculos XIX XX e agora o início do século XXI As pessoas dos séculos XIX e XX no Ocidente assistiram a três grandes revoluções em teoria educacional Nós da transição do século XX para o XXI estamos assistindo a uma quarta revolução As três primeiras revoluções en contram seus melhores representantes nos nomes de Herbart Dewey e Paulo Freire A quarta revolução da maneira que eu acho que ela está ocorrendo pode encontrar justificativas em Richard Rorty e Donald Davidson As três primeiras foram revoluções modernas em teoria educacional A quarta é uma revolução pósmoderna7 Cada uma dessas revoluções gira em tomo da emergência de um elemento chave na discussão entre os filósofos da educação Em Herbart a emergência da mente Em Dewey a emergência da democracia Em Paulo Freire a emer gência do oprimido A quarta revolução por sua vez segue em tomo da emer gência da metáfora entendida aí segundo as novas visões de Davidson lido por Rorty As revoluções do passado não perdem a importância perante a revolução que está ocorrendo agora Pertencem ao passado em um sentido cronológico e não valorativo Podemos ver isso olhando para cada uma das conquistas dessas revoluções Hoje em dia avançamos muito em filosofia da mente e não poderíamos fazer teoria educacional sem considerála Assim a herança de Herbart está viva No caso de Dewey mais ainda temos a sensação de algo vivo não passaria pela maioria das cabeças dos filósofos da educação no Oci 50 dente a idéia de adotar a educação autoritária no lugar da educação democrá tica e talvez poucos ainda acreditem que poderia haver verdadeira educação em uma situação social não dinâmica e não livre Paulo Freire por sua vez está presente na medida em que os países ricos se tomaram mais ricos e os países pobres mais pobres e que o fenômeno do aparecimento do desenraí zado seja ele o pobre ou o pertencente a grupos minoritários é agora tam bém visível mesmo onde estava prometido que desapareceria ou não surgiria nas democracias ricas da América do Norte e Europa As três primeiras revo luções portanto não se distinguem da revolução pósmoderna em teoria da educação por um pretenso fato de que esta última revolução teria superado tudo o que foi pensado em educação anteriormente O que ocorre é que a revo lução pósmoderna em teoria educacional está acoplada a uma maneira de conversar em termos técnicos de filosofia e filosofia da educação que desloca as filosofias da educação que justificavam as teorias educacionais modernas nomeadas aqui por Herbart Dewey e Freire Herbart e Dewey começam e terminam pensando na educação das crian ças e estão preocupados em conceituar segundo seu contexto de época a in fância Paulo Freire começa pensando a educação de adultos mas no decorrer da sua obra também revela uma sensibilidade para com a criança O quadro abaixo coloca as quatro teorias educacionais aqui citadas em seus passos didáticos em comparação Vejamos os passos e então o que eles implicam em relação às noções de infância envolvidas frEORIA EDUCACIONAL TEORIA EDUCACIONAL TEORIA EDUCACIONAL TEORIA EDUCACIONAl DEHERBART DEDEWEY DE FREIRE PÓSMODERNA CINCO PASSOS CINCO PASSOS CINCO PASSOS CINCO PASSOS DIDÁTICOS DIDÁTICOS DIDÁTICOS DIDÁTICOS PREPARAÇÃO ATIVIDADE E VIVÊNCIA E PEsQUISA APRESENTAÇÃO DE PEsQUISA PROBLEMAS ARTICULAÇÃO ENTRE ApRESENTAÇÃO PROBLEMAS TEMAS GERADORES OS PROBLEMAS APRESEN TADOS E OS PROBLEMAS DA VIDA COTIDIANA DISCUSSÃO DOS PROBLEMAS ATRAVÊS ASSOCIAçÃO COLETA DE DADOS PROBLEMATIZAÇÃO DE NARRATIVAS TOMADAS SEM HIERARQUIZAÇÃO EPISTEMOLóGICA GENERALIZAÇÃO HIPÓTESES Fiou CONSCIENTIZAÇÃO FORMULAÇÃO DE HEURÍSTICA NOVAS NARRATIVAS APLICAÇÃO EXPERIMENTAÇÃO Fi AçÃO PoLtncA AçÃO CULTURAL ou JULGAMENTO SOCIAL E POLíTICA 51 Antes de qualquer comentário explicativo dos passos do quadro acima quero fazer um alerta nenhuma dessas formulações deve ser lida por meio da visão que põe a dualidade diretividade versus nãodiretividade O grande erro dos livros de teoria da educação e didática é o de apelar para essa divisão Todas as teorias educacionais acima envolvem uma exaustiva participação do professor e do estudante Outro alerta tais teorias não devem ser lidas por meio da visão que põe a dualidade progressista versus não progressista Esta pior que a anterior crivou alguns livros que falavam sobre didática nos anos 80 também trazendo mais confusão que acerto e favorecendo o pensamento esquemático e maniqueísta Comento abaixo em uma dialética conjunta as três primeiras partes do quadro acima Deixo para comentar em separado a teoria educacional pós moderna Passo 1 O processo de ensinoaprendizagem para Herbart começa com a preparação que consiste na atividade que o professor desenvolve na medida em que recorda ao aluno o assunto anteriormente ensinado ou algo que o aluno já sabe Dewey por sua vez não vê necessidade de um tal procedimento pois ele acredita que o processo de ensinoaprendizagem tem início quando pela atividade dos estudantes eles se defrontam com dificuldades e problemas ten do então o interesse aguçado Paulo Freire vê o processo de ensinoaprendiza gem se iniciando em um momento especial quando o educador está vivendo na comunidade dos educandos observando suas vidas e participando de seus apuros pesquisando sobre a comunidade deixando de ser educador para ser educadoreducando Passo 2 A teoria herbartiana diz que após a preparação o professor já pode apresentar aos alunos o novo assunto os conceitos morais históricos e científicos que serão a matéria do processo de ensinoaprendizagem eles são o carro chefe do processo mental e são eles que puxam os interesses A teoria deweyana ao contrário acredita que o carrochefe da movimentação psicoló gica são os interesses e que estes são despertados pelo encontro com dificulda des e com a delimitação de problemas Assim para Dewey da atividade segue se a enumeração e a eleição de problemas Paulo Freire acredita na mesma coisa que Dewey mas ele acha que os problemas não são tão motivantes quan to os temas geradores as palavraschave colhidas no seio da comunidade de educandos e que podem despertar a atenção destes na medida em que fazem parte de suas atividades vitais Passo 3 Herbart acredita que uma vez que o novo assunto foi introduzido isto é uma vez que novas idéias e conceitos morais históricos e científicos estão postos eles serão assimilados pelos alunos na medida em que estes pude 52 rem ser induzidos a uma associação com as idéias e conceitos já sabidos Dewey por sua vez nesta fase do processo de ensinoaprendizagem está preocupado em ajudar os alunos na atividade de formulação de hipóteses ou caminhos heurísticos para enfrentar os problemas admitidos na fase anterior Paulo Freire então na medida em que já trabalhou os temas geradores começa a proble matizálos desenvolvese aqui uma atividade de diálogo horizontal entre edu cadoreducando e educandoeducador de modo que os temas geradores pos sam ser entendidos como problemas mas problema neste caso quer dizer problema político A problematização ocorre se o tema gerador é visto nas suas relações com o poder com a perversidade das instituições com a dema gogia das elites etc Passo 4 Nesta fase a teoria herbartiana acredita que o aluno já aprendeu o novo por associação com o velho mas que agora ele precisa sair do caso particular exposto e traçar generalizações abstrações leis O professor é cla ro pode insistir para que o aluno faça inferências e chegue então a adotar leis na moral e na ciência A teoria deweyana nesta fase quer alimentar as hipó teses formuladas na fase anterior Sendo assim a atividade do professor e do estudante agora é a de buscar nas bibliotecas e outros meios inclusive na pró pria memória os dados capazes de dar uma arquitetura mais empírica às hipó teses ou uma melhor razoabilidade aos caminhos heurísticos Na teoria freireana este é o momento em que educadoreducando e educandoeducador ao traça rem as relações entre suas vidas e o poder através da problematização do temas geradores chegam a perceber o que acontece com eles enquanto seres sociais e políticos e então chegam à conscientização passam a ter consciên cia de suas condições na poUso Passo 5 Nesta última fase na teoria herbartiana o aluno deve ser posto na condição de aplicar as leis abstrações e generalizações a casos diferentes ain da inéditos na situação particular sua de ensinoaprendizagem Na última fase na teoria deweyana optase por uma ou duas hipóteses em detrimento de outras na medida em que há confirmação destas por processos experimentais Temse então uma tese Ou então optase por uma heurística e assim por uma conclusão na medida em que a plausibilidade das outras formulações heurísticas caiu por terra frente às exigências de coerência lógica etc O passo final na teoria freireana é a tentativa de solução do problema apontado desde o tema gerador através da ação política que pode inclusive ter desdobramentos práticos de ação políticopartidária Nos três casos estamos diante de teorias educacionais modernas que po deriam muito bem se sentir confortáveis e assim o fizeram na medida em que tinham uma boa justificativa filosófica para procederem como queriam 53 proceder Justificativas filosóficas que foram montadas pelos grandes movi mentos do Iluminismo e do Romantismo entre os séculos XVII e XX E pelo movimento keynesiano de construção do Welfare State após a Segunda Guerra Mundial Herbart quer na formulação humanista criar o homem enquanto ser ca paz de se autodeterminar É claro que Herbart pensava isso nos termos dos iluministas clássicos o homem enquanto ser que sai da menoridade e passa a julgar as coisas pela própria razão é o homem que se autodetermina o verda deiro indivíduo Kant A noção de infância de Herbart é em certa medida a noção deixada por Descartes a infância é um estágio negativo que devemos superar Quanto aos objetivos educacionais o humanismo herbartiano está presente em Freire Esse humanismo está mesclado com as leituras de Freire de várias correntes de filosofia contemporânea com inspiração mais românti ca na vaga do existencialismo marxista eou cristão Para elas o homem deveria deixar de ser objeto e tomarse sujeito de sua própria história Toda via influenciado por Dewey esse movimento em Freire não implica uma visão negativa da infância mas sim uma visão positiva mais rousseauísta Dewey por sua vez quer o bípede sem penas como ser capaz de enfrentar a mudança contínua própria da vida livre a vida democrática Assim para Dewey há ainda um sexto passo didático o próprio conjunto dos cinco passos é mais importante que a conclusão indicada pela hipótese que havia se mostra do correta Para ele aprender os cinco passos isto é aprender o que ele cha mava de procedimento científico para a resolução de problemas é na verda de aprender a aprender e assim estar preparado para qualquer eventuali dade da vida moderna Mais que Paulo Freire e muito mais ainda que Herbart Dewey propõe uma filosofia da educação que é uma filosofia de consideração da contingência em um mundo completamente naturalizado e historicizado Paulo Freire também pensa como Dewey que a educação deve preparar para a eventualidade só que as eventualidades do desenraizado seriam mais repetitivas elas sempre seriam problemas políticos nos quais o desenraizado estaria sendo oprimido Paulo Freire sempre mantém o modelo da educação de adultos como guia para seu pensamento pedagógico geral Dewey não Ao considerar a contingência como um elemento chave na sua filosofia da histó ria Dewey quer que a criança atue como o EmOio do romance pedagógico de Rousseau um garoto que formula e resolve problemas mais do que um erudi to que disserta sobre todas as coisas De certo modo Dewey está com um pé no historicismo o que deslocaria sua noção de infância para as proximidades do que pensa Ariês Mas ele não dá um passo completo nesse sentido Ainda que seu rousseauísmo esteja sempre posto na berlinda pela sua leitura de Nietzsche Nabokov é de certo modo nietzschiano Dewey na prática parece não aban donar totalmente a idéia de essência na sua concepção de infância De certo modo Dewey espera que exista na criança um elemento interior que pode ser aceso menos pela erudição do que pelo aprender a aprender 54 Vamos agora à teoria educacional pósmoderna Ela fornece outros passos Passo 1 O início do processo de ensinoaprendizagem segundo a postura pósmoderna se dá pela aprentação direta de problemas e situações problemá ticas ou mesmo curiosas e difíceis Mas que tipo de problemas e situações problemáticas Os problemas culturais éticos étnicos de convivência entre gêneros mentalidades e modelos políticos diferentes Esses problemas são apresentados por diversos meios do cinema ao romance passando pelo conto pelos comic books pela música pela poesia e teatro etc Passo 2 Na seqüência o processo de ensinoaprendizagem visa relacionar as situações problemáticas e o problemas propriamente ditos com os proble mas da vida cotidiana dos estudantes dos seus avós e pais e enfim do seu grupo social ou familiar ou de amigos e até mesmo do seu país presente passado e futuro Aqui o estudante é convidado a ser um personagem da nar rativa contada no passo anterior e ao mesmo tempo um filósofo isto é se gundo Nietzsche um juiz dos desdobramentos internos da narrativa Passo 3 Redescrição das narrativas nas quais os problemas estavam inse ridos isto através de outras narrativas de ordem ficcional histórica científica e filosófica O importante aqui é que o estudante perceba que essas narrativas que redescrevem aquelas não estão hieraquizadas epistemologicamente Não há uma narrativa que aprende a realidade como ela é Mas há sim em cada uma jogos de linguagem distintos que estão aptos pragmaticamente para uma coisa e não outra Se quero saber como uma nave espacial funciona um bom vocabulário é o dos físicos mas se quero dizer para minha namorada como a nave atravessa os céus em uma noite estrelada creio que seria melhor um vocabulário ficcional seria pedante e inútil para o namoro a explicação física Penso que aqui deveríamos ir de Júlio Verne Mas o erro seria achar que no segundo caso estou no campo metafórico e no primeiro no campo literal e que ambos os campos estão nitidamente delimitados Eles são vocabulários incomensuráveis cuja distinção se dá pela utilização lingüística que o bípede sem penas faz deles Passo 4 Neste estágio o estudante é convidado ele próprio a propor sua narrativa de redescrição das narrativas em que estavam inseridos os proble mas e a discutir a pertinência delas com os colegas com o professor e enfim com os livros e outros meios Este é o momento de criação de imaginação e portanto o auge do processo de criação de metáforas Passo 5 Por fim o que se tem é o recolhimento das idéias e sugestões vindas das narrativas e suas redescrições para a condução intelectual moral e estética no campo cultural social e político de cada um Cabe aqui a ação 55 política organizada inclusive a ação política partidária Mas é necessário lem brar que a própria formulação de uma narrativa e sua divulgação a criação de uma nova metáfora que não só garanta direitos democráticos mas que invente outros direitos já são uma ação política Se os professores pósmodernos e os teóricos da educação quiserem uma justificativa para esses procedimentos vão facilmente encontrála no passa do em germe nas formulações da filosofia da linguagem e do pragmatismo de Nietzsche e William James Afinal foram eles os pioneiros na argumentação que borrou a nítida linha que separava o que é metafórico do que é literal Foi Nietzsche quem no final do século XIX colocou a linguagem em um plano articulado ao plano social e definiu a própria verdade como metáfora Mas se os professores pósmodernos e os teóricos da educação quiserem elaborar me lhor uma filosofia da educação mais adequada aos procedimentos dos cinco passos acima e para tal quiserem utilizar a linguagem atual á filosofia penso que a leitura dos textos de Donald Davidson é o suficiente Principalmente na formulação que é dada por Richard Rorty O segredo aqui para entendermos a postura pósmoderna é perguntar mos o que é a metáfora para Davidson Se tomamos a metáfora na sua definição tradicional veremos que a enten demos como apenas a cobertura de um bolo Ela seria a maneira de descrever as coisas de uma forma que uma vez clarificada analisada traria a verdade o essencial A metáfora teria uma mensagem a ser decodificada mensagem esta que poderia ser apreendida por investigação da semântica Assim a metá fora teria um conteúdo cognitivo e poderia ser explicada Uma terrível objeção a essa formulação aparentemente tranqüila da metá fora dada por Davidson é a de que a metáfora não pode ser parafraseada E que se quisermos explicar uma metáfora certamente estaremos sujeitos a fazer alguma construção teórica sofrível de mau gosto Para Davidson como Rorty e eu o lemos a metáfora não é uma mensagem não tem um conteúdo cognitivo a ser decodificado Ela é sim um ato inusitado no meio do processo comunicacional que embora tenha efeitos de grande impacto sobre o ouvinte não pretende lhe dizer coisa alguma É claro que uma metáfora depois de algum tempo se for saboreada e não cuspida e esquecida pode então se adap tar a um jogo de linguagem existente ou forjar um novo jogo de linguagem e então se literalizar ou seja ganhar valor de verdade Aliás digase de passa gem como Rorty lembra nossa linguagem é na sua maioria um monte de metáforas mortas Mas em um primeiro momento ela não é uma explicação e não tem valor de verdade na medida em que ela não está nos quadros do jogo semântico tradicional Por isso mesmo seu lançamento em uma conversa é muitas vezes espontâneo e quem a lançou pouco sabia o que ela significava ela não significava Assim duvido que o movimento negro poderia na épo 56 ca de seu auge explicar o que era Black is beautiful Do mesmo modo que agora seria uma péssima idéia tentar explicar o que é Gay is good Não há paráfrase nem explicações para Gay is good e qualquer tentativa destrói ra pidamente a metáfora e todo o movimento de impacto que ela causa na menta lidade conservadora Todavia apesar de não ter mensagem ela é forte o sufi ciente para estar envolvida com a busca de criação de novos direitos democrá ticos como por exemplo a discussão em vários países sobre a legitimidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo pois afinal gay is good Essa nova filosofia da educação em nada solapa os ideais das filosofias da educação modernas pelo contrário ela os potencializa Quem faz metáforas em prol da criação de novos direitos está certamente colaborando com a idéia humanista de que a educação é aquisição de autodeterminação como em Herbart Também está favorecendo a diversidade e a liberdade e portanto está se alinhando com Dewey na valorização da democracia E pode fornecer au toridade semântica para os grupos oprimidos levandoos a uma redescrição de si mesmos conquistando então vez e voz na sociedade na medida em que puderem colocar seus vocabulários alternativos seus jogos de linguagem secundarizados como elementos também contáveis na sociedade Com isso colaborase com Paulo Freire na luta por uma educação em favor do oprimido pelo fim da opressão A teoria educacional pósmoderna nessa filosofia da educação é a busca de realização dos melhores ideais modernos Mas o que diz essa a teoria pósmoderna sobre a criança Qual é sua con cepção de infância A teoria pósmoderna nada diz sobre a criança Ou pelo menos nada diz de especial de especificamente essencial sobre a criança E não tem uma con cepção de infância Ela é a teoria completamente historicista de Gepeto aque le pai que leva seu Pinóquio para a escola porque as pessoas sensatas de sua cidade assim fazem com as crianças E não lhe passa pela cabeça que lá na escola vá existir alguém selecionando quem são os verdadeiros meninos de verdade A teoria educacional pósmoderna não está nem do lado de Rousseau nem do lado de Nabokov Ela simplesmente representa no sentido kuhniano da palavra uma mudança de paradigma ela não precisa de uma noção de infân cia para falar sobre a educação ela quer é estar atenta às novas metáforas inclusive as novas metáforas sobre as crianças e com isso ver se ela consegue ampliar direitos democráticos e inventar novos direitos democráticos para todas as crianças A noção de infância é uma noção moderna A pós modernidade não precisa dessa noção A educação pósmoderna então pode finalmente fazer educação sem ter de perguntar se Pinóquio por ter cabeça de pau deve ou não estar na escola 57 Referências Bibliográficas COLLODI C As aventuras de Pinóquio São Paulo Edições Paulinas 1992 GHIRALDELLI JR P O que é preciso saber em Filosofia da Educação e Teorias Educacionais Rio de Janeiro DPA 2000 NABOKOV V Lolita São Paulo Companhia das Letras 1994 RORTY R Contingency Irony and Solidarity Cambridge Cambridge University Press 1989 Notas 1 Para mais informações sobre a noção de infância ver GhiradeIli Jr P Org Infância Escola e Modernidade São Paulo e Curitiba Cortez e Editora da UFPr 1996 Ou ainda as primeiras páginas de Ghiraldelli Jr P Org O que é Filosofia da Educação Rio de Janeiro DPA 2000 2 Ghiraldelli Jr P Infância op cito 3 Cf Nabokov V Lolita Trad Jorio Dauster São Paulo Companhia das Letras 1994 4 Cf Collodi C As aventuras de Pinóquio São Paulo Edições Paulinas 1992 5 Collodi não usa a expressão menino de verdade e sim a expressão um menino como os outros A expressão menino de verdade é utilizada se não me falha a memória da infância na versão Disney para o cinema refirome à dublagem em português é claro 6 Cf Aries P História social da criança e da famaia Trad Dora Flaksman Rio de Janeiro Editora Guanabara 1981 7 Cf GhiraldeIli Jr P O que é preciso saber em Filosofia da Educação e teorias educacionais Rio de Janeiro DPA 2000 Paulo Ghiraldelli Jr é professor de Filosofia Contemporânea e Filosofia da Educação na Universidade Estadual Paulista UNESP em Manlia São Pau lo e é professor visitante na Auckland University na Nova Zelândia Endereço para correspondência httpwwwfilosofiaprobr 58 Aletheia 25 janjun 2007 109 Aletheia n25 p109122 janjun 2007 Fracasso escolar do que se trata Psicologia e educação debates possíveis1 Ana Lucia Coelho Heckert Maria Elizabeth Barros de Barros Resumo O artigo visa a analisar como a Psicologia tem encarado os desafios colocados pelo desempenho escolar Discute os princípios e as ferramentas que têm orientado as práticas psicológicas no campo do fracasso escolar Faz um debate acerca da interface Psicologia e Educação partindo dos princípios da transdisciplinaridade e da inseparabilidade Psicologia e Política Problematiza as práticas da Psicologia no campo da Educação que tem se pautado hegemonicamente em formas naturalizadas e instituídas Considera que a produção do fracasso escolar não é um destino inexorável mas produzido a partir de um modo de existência que define distribui e fixa competências e incompetências na escola Objetiva afirmar a escola como usina de conhecimento e de novas formas subjetivas Palavraschave psicologia e educação fracasso escolar subjetividade School failure What is it about Psychology and education Possible debates Abstract The article aims to analyze how Psychology has been seeing the challenges raised by school performance It discusses the principles and tools that has been guiding Psychology practices in the field of school failure It debates the interface between Psychology and Education based on the principles of transdisciplinarity and inseparability of Psychology and Politics It brings into discussion the psychological practices in the field of Education that have been hegemonically based on naturalized and established forms This article does not consider the production of school failure as an inexorable fate but as being produced based on a way of existence that defines distributes and establishes competent and incompetent practices at school It aims to state school as a factory of knowledge and new subjective forms Key words psychology and education school failure subjectivity Introdução Como a Psicologia tem encarado os desafios colocados pelos atuais modos de funcionamento da escola Quais princípios têm orientado as práticas psi no campo do fracasso escolar Quais ferramentas os psicólogos têm utilizado para interferir no chamado fracasso escolar Com vistas a contribuir para o debate sobre o lugar que a Psicologia vem ocupando no campo das práticas em educação partimos dos princípios da transdisciplinaridade e da inseparabilidade Psicologia e Política Tais princípios 1 Falar de possíveis não é o mesmo que falar de possibilidades ou seja do que pode acontecer efetiva ou logicamente Referese ao que não temos previamente apenas quando o criamos Zourabichvili 2000 Aletheia 25 janjun 2007 110 buscam problematizar um lugar ocupado pela Psicologia que padroniza ações e repete modos de funcionamento de forma sintomática o que significa portanto tirála de um lugarsintoma de um lugar que paralisa e reproduz um sentido já dado Benevides Passos 2005 Na direção que imprimimos no presente artigo a Psicologia no campo da Educação tem se efetivado por meio de práticas com sentidos estabilizados ou instituídos perdendo muitas vezes o movimento pela mudança dessas práticas Apontar esse caráter sintomático das práticas psi em educação impõe que identifiquemos o que ai se paralisa mas também o que insiste como índice de um movimento que não se esgota sua face positiva Benevides Passos 2005 p 389 Assim analisar o que aqui estamos chamando de práticasintoma é permitir a retomada de um processo pelo qual possamos fazer a crítica ao que se instituiu nas práticas de Psicologia em Educação como a busca do aluno perfeito bom disciplinado figura ideal que regularia as experiências concretas Benevides Passos 2005 p 389 A direção que buscamos afirmar para a Psicologia na Educação visa portanto a dar a conhecer a complexidade do cotidiano das escolas que podem produzir tanto práticassintomas como práticas que acionam outrosnovos modos de ser aluno e trabalhador da educação recusando as diferentes formas de assujeitamento formas de vida massificadas padronizadas reproduzidas em clichês como decalques reproduções do empírico Tal direcionamento do olhar implica que façamos de imediato uma torção em nossa abordagem que não deverá focar o aluno o professor mas o processo de ensinoaprendizagem a organização do trabalho em curso nas escolas processos que tomamos como efeito concreto de um modo de trabalhar que se coloca no cenário das políticas públicas em educação Interessanos neste enfoque algo que se passa na ordem do impessoal e do comum e que pode ser considerado como um plano de composição a partir do qual se engendram tanto as formas históricas de produção como os próprios sujeitos que lhes concernem Que não seja confundida tal abordagem àquela da busca de elementos estruturais de cuja exploração teria as já conhecidas respostas generalizantes e universalizantes Barros Fonseca 2004 p 38 Isso significa relançar alunos professores e demais trabalhadores assim como as políticas públicas que engendram formas e modos de fazer educação ao processo de sua produção não buscando a verdade imperativa e constitutiva desses atores e dos processos de trabalho nas escolas mas os acasos que atestam que somos produto de contingências históricas podendo tudo ter se configurado de outra maneira Essa postura implica nos lançarmos para além dos fatos e interrogar sobre o que os faz serem o que são sobre os processos que os engendraram Barros Fonseca 2004 Assim com esse propósito pretendemos nos lançar no desafio de criar conceitos ferramentas que nos possibilitem operar no campo da educação nos seus diferentes âmbitos Pensar o que acontece na escola para além da lógica adaptativa é fazer Aletheia 25 janjun 2007 111 opção pela potencialidade autopoiética dos corpos apreendidos como multiplicidades diferenciadas e que se diferenciam ao viver A torção que propomos levanos a escolher como locus de nossa análise exatamente o ponto de encontro Psicologia e Educação Interessanos apreender as relações de intercessão e de interferência desses campos disciplinares cartografando as perturbações produzidas em cada um desses âmbitos considerados como dotados de uma abertura constitutiva num processo heterogenético que transforma cada uma dessas disciplinas em planos de criação e devires Intercessão aqui tem o sentido de produzir efeito de desestabilização Os intercessores operam entrecruzamento de diferentes domínios de saber e só podem ser pensados na relação de interferência que produzem entre esses domínios Um intercessor produz contágio é relação de perturbação cruzamento que desestabiliza e faz diferir Os princípios interacionistas interdisciplinares parecemnos insuficientes para dar visibilidade ao processo de coengendramento de alunos e trabalhadores da educação dos processos de trabalho nas escolas nas suas múltiplas dimensões complexas Vemos que tradicionalmente a Psicologia tem se pautado por abordagens binárias que tomam como aspectos dicotômicos o indivíduo e a sociedade a escola e seu entorno a Psicologia e a Educação dentre outras dicotomias Neste texto discutimos a questão da Psicologia a partir da noção de coletivo o que significa pensála num plano de produção do indivíduo e da sociedade um plano de imanência de composição sempre aberto a outras possibilidades de constituição Como refere Foucault 2000 p 351 É preciso considerar a ontologia crítica de nós mesmos não certamente como uma teoria uma doutrina nem mesmo como um corpo permanente de saber que se acumula é preciso concebêla como uma atitude um êthos uma via filosófica em que a crítica do que somos é simultaneamente análise histórica dos limites que nos são colocados e prova de sua ultrapassagem Nessa direção filosófica a Psicologia deve abrirse à experiência para além dos quadros de referência instituídos A crítica precisa ser exercida não mais no plano das estruturas formais de valor universal mas como pesquisa histórica através dos acontecimentos que nos levaram a nos constituir e a nos reconhecer como sujeitos do que fazemos pensamos dizemos Foucault 2000 p 347348 Alinhandonos a esse pensamento podemos considerar que o trabalho do psicólogo deve incidir no processo que constrói a realidade das diferentes práticas educacionais e não em seus produtos por exemplo o fracasso escolar A realidade é movente e portanto o princípio que orienta nossas práticas precisa detectar forças tendenciais direções e movimentos que escapem ao plano das formas constituídas O que está em causa na postura que estamos adotando é o combate tanto da noção de mundo dado de educação e escola instituídas quanto da noção de sujeito transcendental de aluno de trabalhador em educação e de psicólogo combate a essas noções que não sejam forjadas nas práticas que as engendram Tratase de uma posição política que busca desnaturalizar o mundo e o sujeito e aposta na transformação do Aletheia 25 janjun 2007 112 que está instituído É a partir dessa postura ética que vislumbramos caminhos para operar uma torção nas práticas psi em educação O que seria fracasso escolar na perspectiva que apontamos Como essa direção proposta pode contribuir para a produção de atitudes que privilegiem práticas psi que dignificam a vida A resposta talvez seja produzir uma política de invenção Não sendo uma disciplina fechada não se pode pretender também que seja um saber para ser meramente aplicado ou seja não se trata de aplicar a Psicologia ao campo da Educação Seguindo Kastrup 1999 p16 nas suas formulações diríamos que a prática do profissionalpsicólogo é atuar como um aprendizartista mantendo em sua prática diária a tensão permanente entre a problematização e a ação Nesse sentido tratase de uma tomada de posição política uma vez que está envolvida na posição que deseja o já feito as formas prontas uma moral conservadora uma política de manutenção das formas de existência estabelecidas e de desqualificação da invenção e da diferença Por outro lado quando as formas de ação perdem sua garantia de neutralidade elas se constituem em instrumentos importantes para a efetuação de mudanças no plano coletivo de novas políticas no campo da Psicologia e da Educação No momento em que o objeto das disciplinas perde a eternidade o saber que sobre ele pode se produzir também está sempre em vias de se constituir Portanto um importante desafio que se coloca é problematizar as praticas dos psicólogos no campo da Educação não apenas para podermos esboçar novas saídas para os impasses vividos mas principalmente para promover outras perguntas Perguntarproblematizar nossas práticas é desnaturalizálas pois ao serem consideradas como da ordem da natureza obviamente já dadas não nos provocam tornando endurecidos os sentidos e as relações da interface Psicologia e Educação As perguntas que formulamos partem assim de uma postura que coloca entre parênteses as realidades dadas visando a elaborar um olhar crítico da experiência do presente Como realizar a análise e produzir novas estratégias para interferir no que foi produzido no âmbito da educação no que diz respeito ao fracasso escolar Nossa apostaproposta é que a operação no concreto para a realização dessa tarefa é a prática da transversalização pautada numa rede de produção de saberes coletivos que produzem intervenções no que está instituído no âmbito do debate sobre o fracasso escolar e não seu uso para constatar diagnosticar ou explicar essa realidade As nossas preocupações giram em torno da problematização dos processos de produção do fracasso escolar que têm caminhado mais no sentido da individualizaçãoprivatização do que numa concepção de fracasso como efeito da produção de práticas educacionais eou psicológicas Esse modo de interrogar essas questões faznos tomar em análise uma maneira de organização das disciplinas que vêm marcando fronteiras muitas vezes rígidas na definição de seus objetos de pesquisa eou interesse Benevides Passos 2000 p 74 Não é suficiente a flexibilização das fronteiras disciplinares que se pode operar por meio de procedimentos que somam disciplinas para dar conta de determinados objetos multidisciplinaridade ou produzir um saber específico a partir de uma zona de interseção entre elas que seria a interdisciplinaridade Mas tanto num caso como no outro temos movimentos que se limitam a uma articulação entre os termos Aletheia 25 janjun 2007 113 considerados a priori e que se entrecruzariam e não relações que se efetivam num processo de coengendramento aberto para outras possibilidades de composição Romper com essas fronteiras rígidas implica construir planos de análise que privilegiam a relação que constitui os termos Assim o princípio da transdisciplinaridade que afirmamos não mantém a idéia de disciplinas independentes em contato umas com as outras ou seja uma relação de conjugação entre dois domínios definidos estáveis resultando num terceiro que se constituiria numa nova identidade como é o caso da Psicopedagogia A perspectiva transdisciplinar a que nos referimos não busca estabilidade mas a interferência entre as disciplinas intervenção que desestabiliza um saber disciplinar visando a uma transformação nos modos instituídos de funcionamento nos diferentes campos disciplinares Assim o viés interdisciplinar que perfila de forma dualista o processo de constituição das disciplinas e suas articulações ao se insinuar nas práticas no campo da Psicologia acaba por fixar territórios fechados de campos disciplinares o que pode dificultar a construção de novos arranjos institucionais que possam se constituir em efeitos de polifonia Esse modo de tratar essa questão significa afirmar que tanto o objeto quanto o sujeito e o sistema teórico ou conceitual com o qual ele se identifica são efeitos que emergem de um plano de constituição atravessado também por aspectos estéticos éticos econômicos políticos e afetivos não tendo assim a unidade e homogeneidade de uma disciplina ou de um campo científico Barros 2005 Problematizar os limites de cada disciplina é argüilas em seus pontos de congelamento e universalidade nomadizar as fronteiras dos campos de saber tornando as instáveis fazendoas planos de criação de outros objetossujeitos Declaramos a urgência de analisar esse campo de produção de experiências e de conhecimentos que se atualiza na interface Psicologia e Educação avaliando os efeitos dessas práticas sobre os corpos Se perseguirmos a compreensãotransformação dos processos em curso nesse campo é necessário definir mais detalhadamente os mecanismos envolvidos na produção dessas práticas descrevendo o que incide na sua composição os valores que estão implicados ou seja destrinchar essas misturas longe de unidades estáveis já que essas falariam de identidades Transversalizar as disciplinas na direção que buscamos imprimir tem portanto o sentido de conjugar forças de impedimento e forças de resistência que constituem ações concretas no plano da experiência das práticas em Psicologia e Educação Esse modo de operar o saber psi implica interrogar os modos verticalizadoshierarquizados de funcionamento desse saberfazer no campo da Psicologia que operam por totalização unificação e ao invés de afirmar suas condições de enunciação coletiva privilegiam agenciamentos estereotipados O conceito foi criado no contexto da análise institucional dos anos 60 numa transformação e desvio em relação ao conceito de transferência e contratransferência e ao de hierarquia institucional Sua importância neste texto é precisamente pelo fato de ser um conceito ferramenta que emerge num cenário de fechamento da experiência e de crise Benevides Passos 2003 p9 E é esse o sentido que buscamos dar à comunicação entre os campos disciplinares Com esse objetivo a proposta deste texto é contribuir para o debate sobre a Aletheia 25 janjun 2007 114 questão do fracasso escolar buscando instituir outras práticas que possibilitem pensar a própria posição das disciplinas envolvidas na produção do chamado fracasso escolar numa direção que ao abrirse para processos inventivos recusa as hierarquias e as totalidades conjura os absolutos não busca garantias transcendentais e se define por uma abertura por um processo de comunicação rizomática que tem o sentido de uma dinâmica de comunicação multivetorializada ou transversal Neste artigo indicamos as novas roupagens que o tema assume nos anos 90 e os pressupostos teóricopolíticos do campo da Psicologia e da Educação que permeiam o objeto fracasso escolar Fracasso escolar a confirmação de supostas deficiências Os pressupostos da teoria do capital humano aliados às explicações advindas das teorias da marginalidade e carência cultural constituíramse em ferramentas estratégicas na elaboração das políticas educacionais nos anos 60 e 70 e em políticas sociais de cunho compensatório que tentavam conter conflitos sociais As produções teóricas conhecidas aqui no Brasil como teoria da carência ou deficiência cultural emergiram nos EUA nos anos 40 Porém foi com os movimentos contestatórios das minorias raciais lá ocorridos nos anos 60 que essas teorias ganharam novo fôlego Transplantados para o Brasil nos anos de 1970 tais programas objetivavam substituir a família das camadas populares considerada por alguns educadores e psicólogos incapaz de estimular adequadamente seus filhos Com esse fim absorviase precocemente a criança na escola com o intuito de suprir as supostas carências nutricionais cognitivas afetivas e culturais Patto 1983 Nesse processo algumas produções no campo da Psicologia fertilizaram o terreno da individualização do desempenho escolar e das desigualdades sociais desenvolvendo pesquisas e explicações teóricas que tinham como foco a caracterização psicológica dos chamados grupos desfavorecidos Ressaltamos que essa caracterização era empreendida tendo como parâmetro para comportamentos atitudes hábitos estilo lingüístico modos de sociabilidade entre outras categorias encontradas em grupos sociais de maior poder aquisitivo Dessa forma diversos pesquisadores ao se pautarem em normas de comportamento previamente estabelecidas e em arcabouços científicos pretensamente neutros e portanto generalizáveis traçaram um perfil psicológico que colocava e coloca ainda hoje as famílias e as crianças das camadas populares no lugar de carentes e faltosos Reduzindo a compreensão das desigualdades sociais e educacionais a relações causais diretas essas concepções naturalizaram a qualificação e um suposto déficit cultural como fatores determinantes do desempenho dos sujeitos mantendo em suspenso os embates travados em torno do ensino público e das concepções que permeiam as práticas educacionais e psicológicas Novos olhares sobre o tema fracasso escolar o que se repete Na década de 80 demarcada pelos estertores do regime militar e pelas tentativas de democratização políticoinstitucional o foco das análises no âmbito educacional foi a democratização das oportunidades de ensino Nesse sentido o fracasso escolar Aletheia 25 janjun 2007 115 permaneceu como questão mas aí tematizado como um dos fatores que colocavam em xeque as proposições de democratização do ensino brasileiro O que aproximam algumas dessas análises mesmo que tenham partido de princípios políticos e filosóficos diversos é a compreensão de que o fracasso escolar é o elemento que permite vislumbrar as intensas desigualdades sociais instituídas no País Desigualdades essas que se materializam também no espaço educacional Como explicar a inexistência de escola para todos e as desigualdades educacionais e sociais O fracasso escolar era um dos problemas que colocava a nu naquele momento a realidade discriminatória e desigual da sociedade brasileira interrogando as políticas públicas vigentes O prometido compromisso do Estado com a educação pública podia ser argüido nos parcos investimentos destinados ao sistema público de ensino na inexistência de prédios escolares em várias regiões do País fazendo com que crianças em idade escolar estivessem fora da escola ou caminhassem vários quilômetros para chegar à escola disponível E ainda nas dificuldades diárias a serem enfrentadas como falta de condições financeiras para arcar com custos do uniforme e material escolar de merenda escolar de transporte de livros dentre outras Entretanto é importante assinalar que não houve apenas um vetor crítico de análise dessa problemática Várias foram as pesquisas e análises desenvolvidas com a contribuição de aportes da Psicologia Educacional que assinalaram a responsabilidade das famílias dos professores e da própria escola no desempenho escolar dos alunos Essas análises acabaram por corroborar a psicologização do desempenho escolar individualizandoo e naturalizandoo Percorrendo um outro caminho de abordagem dessa problemática produziramse no Brasil várias análises críticas Benevides 1997 Patto 1990 1983 que ultrapassavam a compreensão causal e reducionista que caracterizou boa parte dos estudos com relação ao fracasso escolar No lugar de procurar as causas determinantes do desempenho escolar na vida familiar dos alunos abordada na maioria das pesquisas como espaço pobre de estímulos sociais cognitivos e culturais ou em fatores de ordem biológica ou ainda nos chamados fatores intraescolares faziase necessário apreender esse processo em sua ordem de complexidade Ou seja partir não do objeto mas das práticas que o constituem Oliveira 2001 destaca algumas regularidades ainda em funcionamento nas análises e práticas educacionais voltadas ao entendimento dessa questão O que se repete segundo a autora é a naturalização do fracasso escolar como um objeto já dado uma verdade a ser descoberta com o apoio de pressupostos científicos que segregam e silenciam outros saberes que escapam às leis universais e transcendentes Ao avaliar selecionar e hierarquizar certos comportamentos dissonantes como distúrbios e dificuldades como cópias degradadas a serem corrigidas sua potência desestabilizadora das práticas instituídas é esvaziada intensificando a tutela do processo de aprendizagem dos alunos Nessa mesma direção de análise Benevides 1997 aborda o fracasso escolar como elemento analisador das redes de culpabilização infantilização e desqualificação em meio às quais se produzem subjetividades fracassadas repetentes Ao manter as análises acerca do desempenho escolar nessas redes excluímos os fatores político sociais que produzem as condições de repetência e fechamos as portas para algumas Aletheia 25 janjun 2007 116 perguntas o que a repetência tem a nos dizer Não haveria aí movimentos que tentam afirmar outros processos de aprendizagem outras maneiras de viver que recusam as formas de subjetividade homogeneizadas O que essa deserção dos modos instituídos de aprender ensinar e viver tem enfim a nos dizer Fracasso escolar e sucesso escolar novas regulações Nas duas últimas décadas as políticas governamentais implementadas no campo da educação pública tiveram como propósito transformar o fracasso em sucesso Ou seja visaram a superar a chamada cultura do fracasso escolar por meio de várias estratégias tais como programas de correção de fluxo escolar progressão automática de alunos e classes de reforço Assim reduzir custos otimizar recursos públicos corrigir panes no fluxo de entrada e saída de alunos planificar os currículos por meio de parâmetros nacionais descentralizar a administração dos sistemas de ensino instituir procedimentos de avaliação do produto escolar foram procedimentos utilizados para elevar a produtividade e a qualidade do sistema público de ensino Porém cabe discutir quais concepções de qualidade e produtividade nortearam essas reformas do ensino público A produtividade da escola e sua qualidade são fatores que não se separam nem se opõem e permeiam o esforço de todos aqueles que se dedicaram às lutas para efetivar a escola pública como direito social e político Contudo produtividade e qualidade não são noções abstratas e etéreas ou ainda invariantes pois que seu sentido se constitui historicamente Nas reformas educacionais elaboradas pelo governo federal e por vários governos estaduais e municipais o pressuposto que delinearia a qualidade e produtividade da escola esteve focalizado nos resultados apresentados ou seja no seu desempenho e não no interesse coletivo Entendendo que não podemos reduzir as questões do sistema educacional aos problemas de ordem quantitativa consideramos que um grande desafio é analisar a qualidade do serviço ofertado a evasão e a repetência não como obstáculos a serem vencidos para que a garantia do acesso à escola se efetue É importante analisar esse quadro a partir do que se produz no cotidiano de trabalho Freqüentemente as reformas educacionais impõem pacotes de reversão dos problemas que ocorrem na escola pública sem levar em conta a experiência dos profissionais do ensino tecida no cotidiano dos estabelecimentos educacionais Conforme sinaliza Schwartz 2003 a diferença entre o trabalho prescrito e a atividade realizada mostra que uma forma de qualidade já está se fazendo no processo de trabalho e que esta se expressa na recriação de saberes para dar conta da variabilidade das situações de trabalho Os parâmetros que definem o que é ou não ensino de qualidade variam e isso ocorre porque a especificidade do trabalho docente as demandas com relação à escolarização e os objetivos e desafios colocados para a escola não se mantêm sempre os mesmos Então do mesmo modo que não podemos negar que a escola pública no Brasil apresenta problemas sérios do ponto de vista da qualidade do serviço público prestado à população não concordamos que as estratégias de produção de qualidade da escola empreendidas nas reformas educacionais atendam aos anseios dos profissionais do ensino dos estudantes e de suas famílias Uma política de qualidade requer a análise e o enfrentamento das condições históricas nas Aletheia 25 janjun 2007 117 quais os processos de escolarização se efetuam Como traçar metas de qualidade do ensino sem alterar os modos de funcionamento da escola sem delimitar o número de alunos por turma e sem ampliar o quantitativo de profissionais de ensino que atuam na escola E ainda sem instituir processos de formação desses profissionais que estejam vinculados ao trabalho que realizam O que significa transformar o fracasso em sucesso sem alterar as condições de trabalho na escola É possível medir a qualidade do ensino com avaliações padronizadas A transposição de padrões de produtividade aplicados a outros setores da produção para a escola é uma operação delicada não só porque se trata de trabalhos com especificidades diferentes como também porque o ensino público não é uma mercadoria como as outras A heterogeneidade entre as escolas públicas demanda a formulação de diretrizes de qualidade e produtividade situadas que abarquem a diversidade existente no lugar de padrões de qualidade e produtividade ditados externamente às escolas concebidos para maximizar os resultados por meio da otimização de recursos materiais e humanos Estudo realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira INEP em outubro de 2003 mostrava que o Brasil tinha 26 milhões de professores na educação básica e superior Em relação à infraestrutura das escolas 45 dos profissionais da educação trabalhavam em escolas sem laboratório de informática 80 não contavam com laboratórios de ciências 45 trabalhavam em escolas sem bibliotecas No Nordeste esse percentual era de 66 Os professores da Região Sudeste ganhavam em média duas vezes o salário dos professores que atuavam no Nordeste O professor da educação infantil recebia um salário 20 vezes menor do que o de um juiz O número de alunos por sala situavase em torno de 37 estudantes Assim qualquer política de qualidade que se pretenda eficaz deve considerar essa realidade diversa e desigual que demarca o sistema de ensino brasileiro Como mostram Athayde e Brito 2003 mesmo tendo normas comuns as escolas públicas recriam essas normas desenhando um universo muito mais rico e ao mesmo tempo mais cruel do que supõem aqueles que traçam os atuais mecanismos de regulação da escola As escolas como os serviços de saúde são locais de trabalho onde há normas comuns ao conjunto da rede a que estão vinculadas No entanto existem normas específicas nem sempre formalizadas de forma escrita em cada escola devido à sua localização geográfica e às características da clientela entre outros fatores Como outras atividades do serviço público tratase de trabalho fortemente marcado pela singularidade envolvendo conflito de valores tanto os adjacentes ao trabalho educativo quanto os definidos pelos grupos que desenvolvem esse trabalho em cada escola Athayde Brito 2003 p 243 É preciso então dar um outro passo pois se as políticas governamentais implementadas passam a ter como propósito transformar o fracasso em sucesso ou seja se já não falamos mais em fracasso mas apenas em sucesso é preciso ouvir com atenção os trabalhadores do ensino para apreender como lidam com essas formulações no cotidiano de trabalho e as modulações que fabricam O que se nota é que a mudança Aletheia 25 janjun 2007 118 2 Esse é um trecho da entrevista realizada com a poeta Hilda Hilst em 1997 publicada no jornal O Estado de S Paulo 31 de maio 1997 Caderno 2 p D7 de foco não teve como correlato a ruptura das classificações desqualificações e hierarquizações que permeiam as práticas de avaliação Ao contrário o que se percebe é que essas concepções ganharam novas roupagens Segundo Frigotto 1995 1998 as novas combinações efetuaramse intensificando e complexificando os mecanismos classificatórios Tais modulações ampliaram o controle sobre as escolas por meio das avaliações externas e dos parâmetros curriculares nacionais O postulado do sucesso acaba sendo desmentido na inexistência de condições que o materializem Nesse sucesso escolar a ênfase recai nas atitudes no comportamento na socialização Porém aspectos importantes como o acesso ao conhecimento ficaram na penumbra Outros aspectos relativos às políticas que visam ao sucesso escolar devem ser ressaltados lembrando sempre que não somos contrários ao sucesso escolar dos estudantes Contudo consideramos relevante problematizar que sucesso é esse Para quê Como se constitui Oliveira 2001 sinaliza alguns problemas que ocorreram devido à adoção de mecanismos de ajuste do fluxo escolar Analisando os procedimentos utilizados na Rede Estadual de Ensino de Minas Gerais no período 19901998 a autora indica que as medidas efetuadas produziram um crescimento homogêneo da matrícula Entretanto essa rapidez no fluxo de alunos pode indicar um processo de aceleração da escolarização ou da certificação da escolaridade Oliveira 2001 p 90 e que dependendo da forma como esse processo estiver ocorrendo pode resultar na deterioração da qualidade do ensino fundamental público Novos desafios outros possíveis no encontro da Psicologia com a Educação As freiras onde eu estudava ficavam desesperadas A que ensinava aritmética chegava e dizia Tenho três galinhas Uma enquanto estava caminhando se perdeu A outra morreu Quantas galinhas sobraram Aí eu começava Mas por que a galinha morreu E a outra Como se perdeu Como é que alguém perde uma galinha Mas quem estava tomando conta delas não sabe dar explicações Aí criava uma situação A Freira respondia Não precisa saber o porquê Eu queria a história desta galinha perdida morta 2 O que fazer com os alunos perdidos no caminho Perguntar e buscar o como e os porquês não é o que se espera de um bom aluno Não dar as respostas esperadas não tem o sentido de uma recusa a se submeter às sobrecodificações impostas pelos projetos educacionais prescritos Aletheia 25 janjun 2007 119 Como o espaço escolar lida com esse nãosaber Como dar passagem a outras aprendizagens a outras formas de subjetividade a outras vidas possíveis Como romper com o território do fracasso e do sucesso escolar e construir outros para além do fracasso e do sucesso Qual a importância de tal formulação Para que nos interessa a nós psicólogos e educadores esse modo de apreensão da questão do fracasso escolar Não se trata de colocar mais uma definição sobre fracasso escolar nas prateleiras acadêmicas para alimentar o debate sobre as chamadas dificuldades de aprendizagem Só nos interessam os conceitos e estratégias metodológicas que sirvam para inventar outrosnovos modos de intervir nas situações que se atualizam nos estabelecimentos educacionais Vamos tomar como situaçãocaso o modo como temos operado nas escolas onde temos trabalhado Nas intervenções que realizamos nos sistemas municipais de ensino na Grande VitóriaES trazemos essa temática para o debate priorizando o uso de dispositivos como a grupalização das questões que afetam a escola e dentre essas questões a do fracasso escolar Por entender que os processos de formação não se dissociam dos processos de gestão do cotidiano escolar lançamos mão de rodas de conversa com profissionais da educação buscando com eles fabricar estratégias de ação que permitam ampliar as análises sobre o desempenho dos alunos para além das culpabilizações e individualizações já instituídas Tomando como eixo as práticas nas escolas propomos portanto a utilização de uma metodologia pautada na experiência dos educadores no seu fazer cotidiano Trata se de uma estratégia que se efetiva no esforço coletivo incorporando à produção de conhecimento o saber que os trabalhadores desenvolvem a partir da experiência no trabalho educacional transformandoo em rico material para o debate sobre a produção do fracasso escolar Essa é uma perspectiva que considera que é no encontro e no diálogo com o outro que o humano se constitui a si e ao mundo Nesse contexto a linguagem emerge de um viver junto entrelaçada com as emoções É o que Maturana 2002 chamou de conversar Conforme esse autor todo viver humano constituise nessa prática cotidiana de rede de conversações O humano se constitui nesse movimento de viver e conversar É no conversar que acontece o viver humano a convivência com o outro e é nesse espaço de conversa que emerge a possibilidade de mudar nos modos de viver amar trabalhar pensar Essa estratégia metodológica busca então acompanhar esse movimento plástico dos humanos para produzir um regime de produção de conhecimentossaberes sobre a temática em tela e colocála em movimento A metodologia visa a criar condições que viabilizem o encontro e o diálogo entre os atores envolvidos nesse debate Esse regime de produção de conhecimentosaberes quando priorizado no âmbito das práticas pedagógicas contempla esse caráter dos seres vivos que é estar em movimento em atividade Nessa direção de análise o conhecimento científico tem seu modo específico de funcionar tem limites e potencialidades e não pode se impor de forma incontestável no cotidiano das escolas Com relação a tudo o que é humano fica algo sempre enigmático ou invisível para a ciência algo que emerge no diálogo e no confronto com os protagonistas dos processos de trabalho Athayde Brito 2003 Aletheia 25 janjun 2007 120 Na interface Psicologia e Educação é fundamental a construção dessas estratégias pautadas no diálogo dinâmico entre os pólos da ciência e da experiência da prática dos educadores Também é preciso construir práticas educacionais que sejam condizentes com os princípios de uma política pública de educação entendida como o plano coletivo e portanto referentes à experiência concreta dos coletivos construídos a partir das experiências de cada um dos humanos A proposta é assim pôr em ação práticas educacionais em parceria uma coelaboração em um espaço onde cada pólo de saber pode ampliar seus horizontes reformular suas próprias questões suas formas de colocar as questões fortalecendoos para recolocar novas questões um para o outro O diálogo crítico baseado na possibilidade de fazer do confronto um motor no processo de aprendizagem é um elemento importante para que o saber da experiência seja afirmado e se efetive o diálogo com o conhecimento científico Dialogando aprende se a ouvir entender e discordar exercitando o debate e a crítica de modo que nesse movimento afirmamos inventamos e ampliamos conhecimentos e saberes Convocar o saber presente no pólo das disciplinas científicas não é necessariamente se subordinar a esse saber O que se propõe é que se proceda a uma discussão pautada num acordo sobre valores comuns sobre a diferença entre saberes sobre a capacidade de criar novos modos de trabalhar enfim comviver Quem pode gerar mudanças nas formas de produção de sujeitosalunos educadores do agir em educação é o movimento de vida esse movimento expansivo que se afirma nas atividades industriosas dos humanos Diríamos ainda que esse modo de operar não pode se tornar um regime meramente operacional e tecnicista Nesse sentido é que podemos dizer que estamos propondo um processo que se efetive num movimento que se dá sempre entre no processo sem começo nem fim Um diálogo efetivo entre os diferentes saberes no qual os conteúdos conhecimentos e experiências circulem em espiral uma forma que visa a ampliar nossa capacidade de escuta compreensiva do outro Porém entendemos também que a análise sobre o que se passa na escola não deve ficar contida em seus muros Muitos são os atores envolvidos com a escola e quanto maior for o grau de comunicação entre esses atores maior será a possibilidade de resolver os problemas vividos no cotidiano Em um dos municípios em que efetivamos nossas pesquisas lideranças populares constituíram uma comunidade ampliada de pesquisa em educação visando a mapear as condições de trabalho e estudo nas escolas públicas do município bem como interferir nos rumos das políticas governamentais em Educação A produção do fracasso escolar não é portanto um destino inexorável Tentamos neste texto afirmálo como produzido a partir de um modo de existência que define distribui e fixa competências e incompetências na escola O desafio para a Psicologia é problematizar essa maquinaria modelizadora em que muitas vezes se constitui o espaço escolar afirmandoo como usina de conhecimento de invenção de novas formas subjetivas Como nos diz Rocha 1996 p 179 A vida escolar pode se desdobrar em perspectivas que a façam sair da condição de usuária dos paradigmas instituídos transformandose em usina de Aletheia 25 janjun 2007 121 conhecimento E essa escolausinadeconhecimento está ali onde os humanos lutam suam e criam cabe dar visibilidade e dizibilidade a esses movimentos que aliançados com o invisível vão produzindo objetos e sujeitos não modelizados Oliveira 2001 p 237 Referências Athayde M Brito J 2003 Trabalho educação e saúde o ponto de vista enigmá tico da atividade Revista Trabalho Educação e Saúde 12 239265 Barros M E B Fonseca T M G 2004 Psicologia e processos de trabalho um outro olhar Psico 352 3551 Barros M E B 2005 Desafios éticopolíticos para a formação dos profissionais de saúde transdisciplinaridade e integralidade Em R Pinheiro Ensinar saúde a integralidade e o SUS nos cursos de graduação na área da saúde Rio de Janeiro IMSUERJ CEPESQ ABRASCO Benevides R 1997 Subjetividade repetente Contemporaneidade e Educação 22 111129 Benevides de Barros R Passos E 2000 A construção do plano da clínica e o conceito de transdisciplinaridade Psicologia Teoria e Pesquisa 1617179 Benevides R Passos E 2003 Política Nacional de Humanização HumanizaSUS políticas da transversalidade ou a transversalização como método clínicopolítico pp 318 CampinasSP Oficina de trabalho dos consultores PNH Benevides R Passos E 2005 Humanização na saúde um novo modismo Interface Botucatu 917 389394 Brasil Ministério da Educação e Cultura Estatística dos Professores no Brasil outu bro 2003 Brasília INEPMEC Disponível wwwmecgovbr Acesso 20 out 2003 Foucault M 2000 Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento Rio de Janeiro Forense Universitária Frigotto G 1995 Os delírios da razão Petrópolis Vozes Frigotto G 1998 Educação crise do trabalho assalariado e do desenvolvimento teo rias em conflito Em G Frigotto Educação e crise do trabalho perspectivas de final de século Petrópolis Vozes Kastrup V 1999 A invenção de si e do mundo uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição Campinas Papirus Maturana H 2002 De máquinas e seres vivos autopoiese a organização do vivo Porto Alegre ArtMed Oliveira S P de 2001 Micropolítica do fracasso escolar uma tentativa de aliança com o invisível Dissertação de Mestrado não publicada Programa de Pós Graduação em Educação Universidade Federal do Espírito Santo Vitória Patto M H S Org 1983 Introdução à Psicologia Escolar São Paulo T A Queiroz Patto M H S 1987 Psicologia e Ideologia São Paulo T A Queiroz Patto M H S 1990 A produção do fracasso escolar histórias de submissão e rebel dia São Paulo T A Queiroz Aletheia 25 janjun 2007 122 Rocha M L 1996 Do tédio à cronogênse uma abordagem éticoestéticopolítica da prática escolar Tese de Doutorado não publicada Programa de PósGraduação em Psicologia Clínica Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Schwartz Y 2003 Travail et ergologie Toulouse Octares Zourabichvili F Deleuze e o possível Em É Alliez Org Gilles Deleuze uma vida filosófica pp 5476 São Paulo Editora 34 Recebido em maio de 2006 Aceito em outubro de 2006 Ana Lucia Coelho Heckert é psicóloga Doutora em Educação professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo Maria Elizabeth Barros de Barros é psicóloga Doutora em Educação professora do Departamento de Psicologia e do Programa de PósGraduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo Endereço para correspondência anaheckertuolcombr O enredo do filme Capitão fantástico trás a amostra uma família de sete pessoas com o pai cujo nome é Bem e seus seis filhos que possuem a sua habitação baseada em aspectos naturais da floresta utilizandose da caça exercícios físicos diários fazem rituais seguindo o roteiro de uma sociedade primitiva Concomitantemente a isso há o momento de leitura com uma icônica biblioteca no meio da selva aprendem música e até mesmo possuem o discernimento de refletir sobre questões de uma profundidade abstrata das relações humanas Assistir ao filme é embarcar na possibilidade da construção de uma sociedade utópica em que a chama da consciência aquela que a mitologia grega atribui a Prometeu a responsabilidade de têla oferecido aos humanos consegue ter uma relação harmônica com os princípios naturais e instintivos da vida É notória a preocupação do pai com uma rotina estruturada sobretudo no diz respeito a questão da aprendizagem e intelectualidade incentivandoos à leitura e à aprendizagem de outros idiomas e matérias do conhecimento que são comumente ministrados em instituições de ensino deixando evidente a sua relação com o artigo as concepções de infância e as teorias educacionais modernas e contemporâneas de Paulo Ghiraldelli Jr É de extrema importância notar a metodologia de ensino e aprendizagem sob condições que não são tão adequadas para isso não visa à aprovação dos filhos em universidades nem ao preparo deles para o mercado de trabalho Semelhante aos artigo os estudos de Herbart começa com a preparação fórmula que envolve a atividade do professor com o envolvimento do conteúdo já apreendido outrora com o escopo de fixar Já Dewey por sua vez não vê necessidade de um tal procedimento pois ele acredita que o processo de ensinoaprendizagem tem início quando pela atividade dos estudantes eles se defrontam com dificuldades e problemas tendo então o interesse aguçado Ben procura transmitir às crianças valores como o cuidado com a saúde a importância do contato com a natureza dos exercícios físicos e da alimentação a sustentabilidade o desenvolvimento de senso crítico e a criatividade a valorização do conhecimento entretanto no desenrolar da narrativa as falhas na educação provida por Ben vão sendo aos poucos evidenciadas A maior delas pode ser observada na falta de socialização das crianças e nas consequências provocadas pela atitude extremista de criálas em isolamento A educação de Ben se mostra enriquecedora motivo da frase de sua esposa em determinada cena do filme Criamos o Paraíso fora da República de Platão Nossos filhos serão reis filósofos Logo podese concluir que as teorias educacionais pósmoderna não está nem do representam uma mudança de paradigma pois não necessariamente precisa ter uma noção de infância para dissertar sobre a educação ela quer é estar atenta às novas metáforas A educação pósmoderna então pode finalmente fazer educação sem ter de perguntar se Pinóquio por ter cabeça de pau deve ou não estar na escola É urgente a necessidade de reestabelecermos uma relação harmônica com o trabalho em que ele possibilite nosso desenvolvimento como ser humano e que cumpra seu propósito primário que é oferecer um produtoserviço que servirá positivamente a sociedade recompensando de maneira justa as pessoas que trabalham por isso Num olhar simplório isso não deveria ser danoso ao indivíduo ou seja não deveria causar adoecimento A nossa jornada de vida não é um caminho prescrito e em si é um processo de aprendizado Por outro lado precisase ter um papel ativo na aceitação e compreensão de padrões antagônicos sabendo que são eles que propiciam equilíbrio dinâmico quando aplicados harmonicamente A existência de um lado não deve ser a razão para reprimir a existência do outro lado
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181 dessas estratégias ressaltando sua contribuição pedagógica para um ensino menos colonizado no campo das ciências sociais PALAVRAS CHAVE Póscolonialismo pedagogia Paulo Freire ciências sociais RESUMEN El presente articulo retoma algunos puntos de convergencia entre la obra de Paulo Freire Pedagogia do Oprimido 1968 y la perspectiva poscolonial latinoamericana o decolonial con el objetivo de señalar para el carácter pedagógico que este tiene en el campo de las ciencias sociales Se parte de la identificación y discusión de algunos aspectos convergentes en la obra de Freire y en los trabajos de Franz Fanon Aimé Cesáire Enrique Dussel Aníbal Quijano e Walter Mignolo argumento que el pensamiento de estos autores poscoloniales contribuyen para la enseñanza en el campo de las ciencias sociales al proponer el paradigma colonialidad modernidad Así como la Pedagogia do Oprimido propone formas de desconstrucción del mito de la estructura opresora la perspectiva poscolonial señala diferentes estrategias para la desconstrucción del mito del eurocentrismo El articulo apunta algunas de estas estrategias resaltando su contribución pedagógica para una enseñanza menos colonizada en el campo de las ciencias sociales PALABRAS CLAVE poscolonialismo pedagogía Paulo Freire ciencias sociales Paulo Freire no Pensamento decolonial um olhar Pedagógico sobre a teoria Pós colonial latino americana Camila Penna1 RESUMO O artigo retoma alguns pontos de convergência entre a obra de Paulo Freire Pedagogia do Oprimido 1968 e a perspectiva póscolonial latinoamericana ou decolonial com vistas a assinalar para o caráter pedagógico que esta tem no campo das ciências sociais A partir da identificação e discussão de alguns aspectos convergentes na obra de Freire e nos trabalhos de Franz Fanon Aimé Cesáire Enrique Dussel Aníbal Quijano e Walter Mignolo argumento que o pensamento destes autores póscoloniais contribui para o ensino no campo das ciências sociais ao propor um novo lugar de fala a partir do paradigma colonialidademodernidade Assim como a Pedagogia do Oprimido propõe formas de descontruir o mito da estrutura opressora a perspectiva póscolonial assinala diferentes estratégias para a desconstrução do mito do eurocentrismo O artigo aponta algumas 1 Camila Penna é mestre em Ciência Política e Doutora em Sociologia pela Universidade de Brasilia Atualmente é bolsista PNPD do Instituto de Ciência Política IPOL da UnB 182 ABSTRACT This article observes converging points between Paulo Freires Pedagogia do Oprimido 1968 and the latinamerican postcolonial perspective pointing to the pedagogical contribution the latter has had in social sciences Through the identification and discussion of converging aspects in Paulo Freires work as well as in Franz Fanons Aimé Cesáires Enrique Dussels Aníbal Quijanos and Walter Mignolos work I sustain that these authors contribute to the social sciences field when they propose a shift to the modernitycoloniality paradigm As Pedagogia do Oprimido addresses forms of deconstructing the myth of the structure of oppression the decolonial perspective points to different strategies for deconstructing the Eurocentric myth This article recovers some of these strategies highlighting its pedagogical contribution to a less colonized teaching process in social sciences KEYWORDS Postcolonialism pedagogy Paulo Freire social sciences Introdução O artigo retoma alguns pontos de convergência entre o pensamento póscolonial latinoamericano e a obra de Paulo Freire Pedagogia do Oprimido com vistas a extrair argumentos que justifiquem maior atenção à dimensão pedagógica daquela literatura para o campo das ciências sociais A obra de Freire converge com algumas das principais matrizes críticas de pensamento latino americano das últimas décadas Além do forte matiz marxista estão presentes elementos da Teologia da Libertação haja vista a recorrente utilização de termos como comunhão com os oprimidos ou testemunho da libertação Há também um diálogo com o pensamento de Frantz Fanon quando Freire utiliza em algumas passagens a expressão condenados da terra para se referir aos oprimidos e uma convergência com a literatura pós colonial latinoamericana mais recente2 quando o autor utiliza a analogia metrópole colôniaopressoroprimido para se referir aos processos opressivos de invasão cultural Na verdade toda dominação implica uma invasão não apenas física visível mas às vezes camuflada em que o invasor se apresenta como fosse o amigo que ajuda No fundo invasão é uma forma de dominar econômica e culturalmente o invadido Invasão realizada por uma sociedade matriz metropolitana numa sociedade dependente ou invasão implícita na dominação de uma classe sobre a outra numa mesma sociedade Freire 2005 p 173174 Cumpre observar que a Pedagogia do Oprimido desenvolvida a partir da experiência do autor como educador no Brasil e em outros 2 É importante ressaltar que os termos decolonial e pós colonialismo latinoamericano aqui utilizados de forma intercambiável passam a ser mais utilizados no início do século XXI Embora sejam frequentemente retomados no marco desta literatura alguns autores aos quais faço referencia como Freire Fanon e Cesáire estavam escrevendo em um período anterior entre os anos 1950 e 1970 183 países3 toma como ponto de partida uma realidade que ele identifica como comum a toda a América Latina a qual ele denomina estrutura opressora Em alguns momentos a obra faz alusão à sobreposição entre essa estrutura opressora e a realidade em países colonizados notadamente quando aponta para uma possível razão do fatalismo dos oprimidos é fruto de uma situação histórica e sociológica e não um traço essencial da forma de ser do povo Freire 2005 p54 e quando faz referência às sociedades invadidas Mais especificamente alguns pontos levantados por Freire 2005 sobre a estrutura opressora e sobre as características dos oprimidos se aproximam do que Quijano 2005 e Mignolo 2007 chamam de colonização do ser ou colonização cognitiva Exploro a seguir alguns destes pontos observando em que medida a proposta da Pedagogia do Oprimido identificação e problematização de determinados temas da estrutura opressora antes não questionados se aproxima do conteúdo programático do póscolonialismo latinoamericano Argumento que a proposta da perspectiva decolonial tem assim com a obra de Freire um valor pedagógico na medida em que questiona os referenciais eurocêntricos a partir dos quais o conhecimento no campo das ciências sociais é produzido As duas primeiras sessões apontam para pressupostos e argumentos da obra de Freire 3 O livro foi escrito no final dos anos 1960 quando Freire estava exilado no Chile e publicado pela primeira vez em inglês no ano de 1968 Após já ter sido publicado em cinco línguas Pedagogia do Oprimido foi publicado em português em 1970 pela editora Paz e Terra que convergem com a literatura decolonial tais como o raciocínio dialético a ideia de colonização cognitiva e o argumento de que a dominação se fundamenta em um mito mito da estrutura opressora ou mito do eurocentrismo As quatro últimas sessões apresentam diferentes estratégias para reverter a colonização do ser que aparecem tanto na obra de Freire quanto nas obras dos autores póscoloniais Essas estratégias são revolução objetivação da mitologia opressora ou eurocêntrica deslocamento do lugar de fala e valorização do conhecimento fronteiriço Ao final do artigo apresento algumas considerações sobre a dimensão pedagógica que a literatura decolonial pode ter para o ensino e produção no campo das ciências sociais Dialética e colonialidade O primeiro ponto de convergência entre a obra de Paulo Freire 2005 e a literatura póscolonial latinoamericana notadamente os trabalhos de Dussel 2005 e de Quijano 2005 é a predominância do raciocínio dialético Freire retoma Hegel para explicar a relação entre o opressor e o oprimido Usa a analogia do senhor e do escravo para demonstrar como a classe opressora e a classe oprimida se constituem mutuamente e como a permanência de uma depende da outra ao fazerse opressora a realidade implica a existência dos que oprimem e dos que são oprimidos Freire 2005 p 4142 As duas classes são polos opostos e dependentes em uma relação de contradição Contradição na medida em que o oprimido hospeda em si características do opressor que são internalizadas ao longo do processo de 184 educação e socialização no contexto da estrutura opressora Exemplos de elementos cognitivos internalizados pelos oprimidos e constitutivos da razão da estrutura opressora são a crença de que o patrão é superior e de que sua autoridade é inquestionável o que gera uma espécie de admiração a crença de que a desigualdade social é uma estrutura imutável e que sempre existiu a visão de sua própria situação de miséria como fatalidade e não como injustiça etc Essa contradição característica do oprimido é a mesma que o leva a crer que o ideal do homem é um dia chegar a ser como o patrão ou opressor tanto no aspecto material como no aspecto subjetivo o que vale ressaltar é simultâneo a um sentimento de medo e repulsa Há por outro lado em certo momento da experiência existencial dos oprimidos uma irresistível atração pelo opressor Pelos seus padrões de vida Participar destes padrões constitui uma incontida aspiração Na sua alienação querem a todo custo parecer com o opressor Imitálo Seguilo Freire 2005 p 55 Para explicar como se dá o processo de imersão da consciência do oprimido Freire faz alusão ao trabalho de Albert Memmi Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador 1977 estabelecendo um paralelo entre a imersão da consciência do oprimido e a da consciência do colonizado É interessante observar como Memmi em uma excepcional análise da consciência colonizada se refere à sua repulsa de colonizado ao colonizador mesclada contudo de apaixonada atração por ele Memmi apud Freire 2005 p 56 O processo que permite esta colonização cognitiva ou colonização do ser levando o indivíduo a pensar e ver o mundo a partir de categorias que o colocam na posição de oprimido é um tema ao qual se dedica a literatura póscolonial Contudo a dialética presente aí é a da colonialidademodernidade Ou seja a colonialidade é entendida como a outra face da modernidade Mignolo 2007 não sendo pois possível se falar em modernidade sem levar em consideração o processo de exploração das colônias e a construção ideológica do outro o colonizado como atrasado selvagem primitivo Dussel 1993 em oposição ao qual a Europa poderia se classificar como moderna civilizada evoluída atributos da metrópole construídos a partir da alteridade Quijano 2005 aponta para outro aspecto da colonialidade de acordo com ele a colonialidade cria um novo padrão de poder cujo eixo central é a raça ou a classificação da população mundial sobre a ideia de raça forjada com a descoberta e colonização da América A partir da colonização ibérica as relações sociais e de trabalho passam a ser pautadas pela noção de raça entendida homogeneamente como característica do dominado Contudo essa classificação produzida no colonialismo teria se mostrado mais duradoura que ele próprio É portanto um elemento de colonialidade ainda presente no padrão de poder mundial hegemônico atualmente daí a ideia de 185 colonialidade do poder Com o advento da colonização há a convergência de dois processos A codificação da diferença entre dominantes e dominados em termos de raça e a articulação de todas as formas históricas de controle do trabalho em torno do mercado mundial notese que o capitalismo havia se tornado mundial com a descoberta das Américas Esses dois processos não só foram convergentes como também estiveram conectados e se reforçaram mutuamente Com efeito a partir da descoberta da América toma lugar uma identificação da distribuição do trabalho com a raça Em outras palavras as raças inferiores não deveriam ser destinadas ao trabalho assalariado mas sim ao trabalho escravo A esse tipo de divisão do trabalho corresponde uma divisão geográfica criando o que o autor chama de identidades geoculturais A identidade geocultural nas Américas teria sido a primeira a se formar constituindo a base para a formação da identidade geocultural na Europa a partir da qual se constrói a ideia de modernidade em alteridade com o mundo colonial não moderno Nesse contexto surge também a noção de eurocentrismo que representa como assinala Quijano a dimensão cognitiva da colonização Ao lado da colonização material estaria a colonização cognitiva tendo o eurocentrismo como perspectiva hegemônica e fundamentada na idéia de história como trajetória evolutiva e na diferença entre Europa e não Europa codificada em termos de raça Invasão cultural e colonização do ser Embora não possam ser utilizadas de forma intercambiável as categorias utilizadas por Paulo Freire oprimidos e pela literatura pós colonial condenados da terra apresentam alguns pontos de convergência4 Freire 2005 identifica algumas características dos oprimidos como a dualidade existencial devido à introjeção do opressor e a irresistível atração por ele e por seu modo de vida processo que descrevemos acima Outra característica é o fatalismo alongado em docilidade que longe de ser um elemento do caráter nacional como algumas análises superficiais parecem sugerir é fruto de uma situação histórica e sociológica marcadas pela dominação e escravidão de três séculos Esse fatalismo que está muitas vezes ligado à percepção do poder do destino da sina ou do fado é consequência da imersão das consciências naquilo que Freire 2005 chama de mitologia da estrutura opressora Essa mesma mitologia é responsável por outra característica dos oprimidos a autodesvalia que é a 4 Cabe aqui uma ressalva no tocante à categoria oprimido que por vezes na obra de Paulo Freire se sobrepõe à categoria de Fanon condenados da terra utilizada no marco da literatura colonial e que tampouco pode ser confundida com a categoria raça Quando utiliza o termo oprimido Freire está se referindo àquele indivíduo que foi privado de ser mais de forma geral Nesse sentido o testemunho da opressão passa mais pela impossibilidade de se libertar para poder ser mais do que por características como etnia ou origem que são pontos relevantes na categoria de condenados da terra Podese dizer então que o que Paulo Freire chama de classe oprimida está mais próximo da experiência da pobreza do que propriamente da discriminação por etnia origem língua etc Haja vista a referência geral que o autor faz a operários urbanos e a camponeses única diferenciação da classe oprimida que aparece demarcada com clareza na obra Portanto não é possível utilizar de forma intercambiável os termos oprimido e condenados da terra na acepção que Fanon 1962 e Mignolo 2007 dão ao último Tampouco se pode dizer que haja uma sobreposição entre a categoria oprimido e a categoria raça descrita por Quijano 2005 186 introjeção pelos oprimidos da visão negativa que deles tem o opressor a de seres ignorantes inferiores incapazes etc Nesse ponto há um paralelo interessante entre a mitologia opressiva fomentada pela invasão cultural e o que os autores póscoloniais chamam de mitologia do eurocentrismo A mitologia do eurocentrismo é desconstruída por Dussel 2005 no texto crítico Europa modernidade e eurocentrismo no qual o autor apresenta os principais mitos da modernidade eurocêntrica 1 A civilização moderna autodescrevese como mais desenvolvida e superior o que significa sustentar inconscientemente uma posição eurocêntrica 2 A superioridade obriga a desenvolver os mais primitivos bárbaros rudes como exigência moral 3 O caminho de tal processo educativo de desenvolvimento deve ser aquele seguido pela Europa é de fato um desenvolvimento unilinear e à européia o que determina novamente de modo inconsciente a falácia desenvolvimentista 4 Como o bárbaro se opõe ao processo civilizador a práxis moderna deve exercer em último caso a violência se necessário for para destruir os obstáculos dessa modernização a guerra justa colonial 5 Esta dominação produz vítimas de muitas e variadas maneiras violência que é interpretada como um ato inevitável e com o sentido quase ritual de sacrifício o herói civilizador reveste a suas próprias vítimas da condição de serem holocaustos de um sacrifício salvador o índio colonizado o escravo africano a mulher a destruição ecológica etcetera 6 Para o moderno o bárbaro tem uma culpa por oporse ao processo civilizador que permite à Modernidade apresentarse não apenas como inocente mas como emancipadora dessa culpa de suas próprias vítimas 7 Por último e pelo caráter civilizatório da Modernidade interpretamse como inevitáveis os sofrimentos ou sacrifícios os custos da modernização dos outros povos atrasados imaturos das outras raças escravizáveis do outro sexo por ser frágil etc Dussel 2005 p 60 Outro elemento fundamental da mitologia eurocêntrica assinalado por Quijano 2005 é a ideia do estado de natureza como ponto de partida do curso civilizatório cujo cume é a civilização europeia e ocidental Desse mito se origina a especificamente eurocêntrica perspectiva evolucionista de movimento e de mudança unilinear e unidirecional da história humana Tal mito foi associado com a classificação racial da população do mundo Essa associação produziu uma visão na qual se amalgamam paradoxalmente evolucionismo e dualismo Quijano 2005 p236 Em Discurso sobre o Colonialismo 1955 Aimé Césaire também aponta alguns dos mitos forjados por pensadores das metrópoles Destaca 187 especificamente os diversos enquadramentos e formas de qualificação dos povos africanos negros que tiveram como efeito a produção de uma justificativa para a colonização com todas as atrocidades que lhe foram características E nesse aspecto denuncia não só a postura dos conquistadores como também o pensamento de antropólogos sociólogos psicólogos teólogos etc Dentre alguns dos argumentos trazidos à tona por Césaire com o propósito de denunciar o pensamento europeu racista que permitiu o colonialismo estão a idéia de que o negro não compartilharia das mesmas capacidades cognitivas do branco sendo portanto incapaz de evoluir ou se desenvolver aos níveis da Europa se deixado a sua própria sorte Outro argumento é o de que os negros só seriam iguais aos europeus em seus direitos humanos que deveriam ser resguardados Não seriam iguais aos europeus em termos da utilização da razão e da lógica o que estaria fundamentado pelo fato de que todos os descobrimentos e inovações no campo da ciência ocorreram na Europa e nada de relevante teria sido feito pelos africanos ou outros povos colonizados Importa observar que como aponta Césaire esse pensamento que de um lado conclama à defesa dos direitos humanos dos colonizados de outro lado justifica sua violação ao construir um discurso de inferioridade dos africanos Um terceiro argumento denunciado pelo autor é o pensamento produzido no campo da psicologia de que os africanos sudaneses sofreriam de um complexo de paternidade não tendo passado pelo rito da virilidade e autonomia em relação à figura paterna Nesse sentido não teriam passado ao estágio da maturidade O desdobramento deste diagnóstico seria a justificativa da colonização na medida em que para esses povos caberia a figura paternal do europeu que permitisse aos africanos passar à maturidade Todos esses mitos do eurocentrismo teriam culminado na imersão das consciências dos colonizados em um processo denominado colonização do ser Esse tipo de colonização tal qual a imersão da consciência dos oprimidos leva à internalização e naturalização das categorias do eurocentrismo Ou seja na categorização de si próprios como inferiores atrasados e nãocivilizados dentro de um ideal de civilização eurocêntrico que é em si um mito construído com um determinado propósito o de justificar a dominação e a exploração Nesse sentido podese verificar uma convergência com o processo descrito por Freire 2005 de invasão cultural pela mitologia da estrutura opressora Os mitos são passados às classes oprimidas por meio de uma forma de educação à qual Freire chama de bancária Nela não há um processo dialógico no qual são questionados ou problematizados determinados temas Os temas são passados na forma de depósitos bancários depositados como verdades inquestionáveis e legitimados pela autoridade do educador contraposta à suposta ignorância do educando Alguns dos mitos que fundamentam a estrutura opressora e que são indispensáveis para a manutenção do status quo são pontuados por Freire e logo em seguida 188 desconstruídos A seguir reproduzimos um fragmento na íntegra no qual com atualidade e lucidez exemplares Freire relaciona alguns dos mitos da estrutura opressora O mito por exemplo de que a ordem opressora é uma ordem de liberdade De que todos são livres para trabalhar onde queiram Se não lhes agrada o patrão podem deixálo e procurar outro emprego O mito de que todos bastando não ser preguiçosos podem chegar a ser empresários mais ainda o mito de que o homem que vende pelas ruas gritando doce de banana e goiaba é um empresário tal qual o dono de uma grande fábrica O mito do direito de todos à educação quando o número de brasileiros que chegam às escolas primárias do país e o dos que conseguem nela permanecer é irrisório O mito da igualdade de classe quando o sabe com quem está falando ainda é uma pergunta dos nossos dias O mito do heroísmo das classes opressoras como mantenedoras da ordem que encarna a civilização ocidental e cristã que elas defendem a barbárie materialista O mito de sua caridade de sua generosidade quando o que fazem enquanto classe é assistencialismo que se desdobra no mito da falsa ajuda que no plano das nações mereceu segura advertência de João XXIII O mito de que as elites dominadoras no reconhecimento de seus deveres são as promotoras do povo devendo este num gesto de gratidão aceitar a sua palavra e conformarse com ela O mito da propriedade privada como fundamento do desenvolvimento da pessoa humana desde porém que pessoas humanas sejam apenas os opressores O mito da operosidade dos opressores e o da preguiça e desonestidade dos oprimidos O mito da inferioridade ontológica destes e o da superioridade daqueles Freire 2005 p159160 Assim como a existência da mitologia do eurocentrismo que possibilita a colonização do ser é indispensável a invasão da colônia à mitologia opressiva é necessária a invasão cultural E o processo de invasão cultural descrito por Freire 2005 se aproxima muito do processo de colonização do ser a que a literatura póscolonial se dedica Como manifestação da conquista a invasão cultural conduz à inautenticidade do ser dos invadidos O seu programa responde ao quadro valorativo de seus atores a seus padrões a suas finalidades Uma condição básica ao êxito da invasão cultural é o conhecimento por parte dos invadidos de sua inferioridade intrínseca Quanto mais se acentua a invasão alienando o ser da cultura e o ser dos invadidos mais estes quererão parecer com aqueles andar como aqueles vestir à sua maneira falar a seu modo Freire 2005 p 174175 Foram apresentados até aqui alguns dos pontos de convergência entre os pressupostos e argumentos presentes na literatura póscolonial latinoamericana e na obra de Freire Ambas utilizam o raciocínio dialético para construir o argumento de que oprimidos e opressores se encontram em uma relação de contradição e para apresentar a colonialidade como a outra face da modernidade sem a qual esta não seria possível Ambas trabalham o tema da dominação 189 cognitiva que sustenta a dominação material o que aparece como invasão cultural na obra de Freire e como colonização do ser na literatura decolonial E ambas argumentam que essa dominação cognitiva se sustenta na criação de mitos que são internalizados como verdade o mito do eurocentrismo e o mito da estrutura opressora As sessões a seguir retomam algumas das proposições levantadas pelos autores para lidar com os problemas da invasão cultural e da colonização do ser a saber revolução objetivação da mitologia opressora deslocamento do lugar de fala e valorização do pensamento fronteiriço Ao assinalar para a convergência entre as proposições de Freire e dos pensadores póscoloniais latinoamericanos busco indicar como nos moldes da Pedagogia do Oprimido a perspectiva póscolonial oferece uma contribuição pedagógica para o campo das ciências sociais Revolução como libertação Um das saídas para a colonização do ser aventada na literatura póscolonial latino americana é a revolução A revolução como única forma completa de luta por libertação aparece na obra de Freire e é também uma consideração central na obra de Frantz Fanon 1968 É importante ressaltar que há aqui uma convergência mais forte do contexto históricopolítico da década de 1960 do que nos outros autores póscoloniais E também há que se considerar o contexto de guerras pela independência nas colônias africanas especificamente a guerra de independência da Argélia na qual Fanon estava engajado A preocupação com a colonização do ser tem centralidade na obra de Fanon e está diretamente relacionada com a necessidade de formação de uma consciência nacional Esse processo de construção de uma consciência nacional oposta ao do colonizador seria na visão do autor um processo em diferentes etapas Um primeiro momento marcado pelo assimilacionismo no qual o pensamento do colonizador é visto como superior e almejase assimilálo e absorvêlo Um segundo momento no qual se começa a notar os efeitos alienantes que a assimilação do pensamento europeu teria para o povo colonizado propondose alternativamente uma busca e uma volta às origens nativas já não mais existentes como tais mas sim reformuladas ou reconstruídas ao longo da dominação Na visão de Fanon 1979 esse movimento de resgate às origens como forma de resistir à colonização é por si hipócrita e sem efeito Hipócrita porque busca voltar ao que já não mais existe e muitas vezes nunca fora vivido Sem efeito uma vez que ao se olhar apenas para o passado e para as origens negligencia se o estágio atual do povo colonizado e os problemas imediatos a serem enfrentados para resistir à colonização Ou seja na medida em que não envolve um tratamento dos problemas atuais e uma orientação para a ação ou para a luta armada essa filosofia que busca resgatar as origens do povo colonizado não tem utilidade alguma É apenas um exercício intelectual que 190 pode ainda incorrer na falácia de buscar uma reconstrução da cultura originária a partir das categorias definidas pelo próprio colonizador Em outras palavras ao tentarse reconstruir uma identidade antagonista à identidade negada pelo colonizador como por exemplo uma identidade da raça negra colocando se os matizes em um mesmo todo como o fizeram os europeus ao categorizar os povos negros desconsiderase o estado atual de heterogeneidade e os diferentes problemas e particularidades surgidos em cada contexto a partir das diferentes formas de colonização e dos diferentes colonizadores Finalmente ao identificar a dominação e a dependência como obstáculos centrais à formação de uma cultura e uma consciência nacionais a obra de Fanon 1979 faz uma defesa do combate ao colonizador e da luta material pela liberdade como alternativa única à situação de dominado Importa observar que a situação de dominado aqui se sobrepõe à situação de colonizado O desafio de formação de uma nação face ao problema da colonização do ser também é assinalado por Quijano 2005 Para ele a permanência da colonialidade do poder em alguns países da América Latina5 é fator impeditivo da construção de um Estadonação que tem como pressuposto participação política e civil democráticas o que por sua vez requer a democratização das relações sociais A solução seria para o autor uma radical devolução do 5 Como intelectual peruano Quijano reflete principalmente sobre a realidade dos países andinos nos quais a colonialidade do poder ainda vigente mitiga a participação democrática na vida política e civil controle sobre o trabalho sexo autoridade e conhecimento às pessoas Tal distribuição todavia não poderia ser feita através da concentração de poder nas mãos do Estado sob a pena de um total despotismo Se bem não fala em revolução como o fazem Freire e Fanon esse caminho apontado por Quijano tampouco está claro Embora não desconsidere em momento algum os aspectos objetivos e materiais da revolução como fim último em Pedagogia do Oprimido Freire se detém sobre o processo pedagógico de objetivação de determinados temas pelos oprimidos como forma de libertação O enfoque central da obra é nos aspectos cognitivos de transformação da realidade que como lembra Freire não podem ser separados dos aspectos objetivos correndose o risco de se cair em um objetivismo ou em um subjetivismo ingênuos Objetivação da mitologia eurocêntrica O projeto pedagógico de Freire visa à formação de uma percepção crítica da realidade opressora pelos educandos e a problematização de temas antes não questionados e de situações e condições antes assimiladas como naturais a análise crítica de uma dimensão significativa existencial possibilita aos indivíduos uma nova postura também crítica em face das situações limites Freire 2005 p 112 Em outras palavras o propósito da educação libertadora é o de superar a visão fatalista da realidade como eterna e imutável passandose à percepção de que ela é construída pelos homens e passível de ser transformada 191 Para que seja superada a visão fatalista da realidade é necessário que a mitologia opressiva seja desconstruída processo em que a educação libertadora tem papel fundamental Ao problematizar aspectos da realidade dos oprimidos ela permite aos educandos apreender o processo de construção da estrutura opressora e as categorias e mitos que fundamentam tal estrutura E os permite também localizarse no escopo dessa estrutura deixando de ser aderentes passivos a ela A percepção ingênua ou mágica da realidade da qual resultava a postura fatalista cede seu lugar a uma percepção que é capaz de perceberse E porque é capaz de perceberse enquanto percebe a realidade que lhe parecia em si inexorável é capaz de objetivála O fatalismo cede então seu lugar ao ímpeto de transformação e busca de que os homens se sentem sujeitos Freire 2005 p85 Para Freire 2005 uma das formas pelas quais o educador poderia ajudar no sentido de superação da mitologia opressiva e por conseguinte na superação da colonização do ser é por meio da explicitação de alguns dos mitos sobre os quais a dominação se fundamenta o que há de fazer é propor aos oprimidos os slogans dos opressores como problema proporcionandose assim a sua expulsão de dentro dos oprimidos Freire 2005 p 99 A problematização das categorias e esquemas de interpretação subjacentes ao eurocentrismo notadamente através da explicitação dos mitos que o constroem é justamente a proposta do poscolonialismo latinoamericano E nesse sentido adotar como conteúdo programático a apresentação de alguns discursos coloniais como mitos forjados com vistas a justificar a dominação tem assim como o projeto de Freire um caráter pedagógico Para Dussel 2005 a saída da colonização do ser passa pela superação da mitologia da modernidade eurocêntrica Mas para que a superação da modernidade seja possível é necessário que a outraface da modernidade negada e inferiorizada se veja como inocente e como vítima do processo de dominação6 e ao fazêlo possa identificar o mito da modernidade como culpado da violência originária e conquistadora Apenas quando se nega o mito civilizatório e da inocência da violência moderna se reconhece a injustiça da práxis sacrificial fora da Europa e mesmo na própria Europa e então pode se igualmente superar a limitação essencial da razão emancipadora Superase a razão emancipadora como razão libertadora quando se descobre o eurocentrismo da razão ilustrada quando se define a falácia desenvolvimentista do processo de modernização hegemônico Isto é possível mesmo para a razão da Ilustração quando eticamente se descobre a dignidade do Outro da outra cultura do outro sexo e gênero etc quando se declara inocente a vítima pela afirmação de sua Alteridade como Identidade na Exterioridade como pessoas que foram negadas 6 Notese que a noção de inocente aqui diz respeito ao auto reconhecimento da inocência da acusação de atraso Assumir a posição de vítima seria então uma estratégia de descolonização do ser reconhecendose não como atrasado o que justificaria a colonização como evolução em direção à modernidade mas sim como inocente deste estigma 192 pela Modernidade Dussel 2005 p 60 Notese que o que Dussel chama de superação do mito da modernidade eurocêntrica se aproxima do propósito da educação libertadora de Freire o de superar a contradição opressoroprimido por meio da objetivação do opressor como causa da situação atual e por meio da problematização e questionamento da mitologia da opressão A Pedagogia do Oprimido propõe a objetivação e a desconstrução do mito da estrutura opressora como estratégia para que o educando possa questionar temas e aspectos da realidade antes tidos como dados superando assim sua visão fatalista do mundo No mesmo sentido a literatura póscolonial advoga pela objetivação e desconstrução do mito do eurocentrismo através do paradigma da colonialidademodernidade como forma de produzir um conhecimento menos colonizado e excludente daí seu caráter pedagógico para o campo das ciências sociais Deslocamento do lugar de fala No processo de desconstrução da mitologia da estrutura opressora a palavra tem um papel fundamental Não a palavra como um meio para o diálogo mas sim como práxis ou seja como fruto da ação e da reflexão humana A palavra tem o papel de pronunciar o mundo de problematizálo de modificálo Freire 2005 O papel da palavra como ação destacado por Freire se aproxima do argumento da perspectiva póscolonial para a qual a linguagem e o discurso têm lugar central Cabe destacar por exemplo a preocupação de Freire em apontar que a pronúncia da palavra não deve ser prerrogativa apenas de alguns E seu objetivo de libertação das classes oprimidas está diretamente ligado à conquista da capacidade destas de também dizer a palavra dizela conforme sua forma de perceber a realidade ou se poderia dizer emiti la a partir de seu lugar de fala Se dizer a palavra verdadeira que é trabalho que é práxis é transformar o mundo dizer a palavra não é privilégio de alguns homens mas direito de todos os homens Precisamente por isto ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho ou dizêla para os outros num ato de prescrição com o qual rouba a palavra dos demais Freire 2005 p 91 Notese que a necessidade de mudança do lugar de fala ressaltada pelos autores póscoloniais segue esta mesma lógica de impedir que a palavra seja prescrita a ou roubada de determinados povos A mesma lógica de denunciar a permanência histórica de um privilégio da pronúncia da palavra quando na verdade essa pronúncia deveria ser direito de todos Ao argumento de Dussel em O encobrimento do outro 1993 está subjacente uma denúncia do roubo do direito de pronunciar a palavra da detenção de um privilégio da Europa moderna para classificar e enquadrar o resto do mundo a partir da falácia da civilização É exemplo a explicitação da legitimidade e autoridade de Hegel como pensador moderno para enunciar a forma pela qual deveria ser apreendia a América Latina e a África 193 De América y de su grado de civilización especialmente en México y Perú tenemos información de su desarrollo pero como una cultura enteramente particular que expira en el momento en que el Espíritu se le aproxima La inferioridad de estos individuos en todo respecto es enteramente evidente En lo que se refiere a sus elementos América no ha terminado aún su formación Latino América es por consiguiente la tierra del futuro En tiempos futuros se mostrará su importancia histórica Mas como país del futuro América no nos interesa pues el filósofo no hace profecias Hegel apud Dussel 1993 p1516 Africa es en general una tierra cerrada y mantiene este su carácter fundamental Entre los negros es en efecto característico el hecho de que su conciencia no ha llegado aún a la intuición de ninguna objetividad como por ejemplo Dios la ley en la cual el hombre está en relación con su voluntad y tiene la intuición de su esencia Es un hombre en bruto Este modo de ser de los africanos explica el que sea tan extraordinariamente fácil fanatizarlos El Reino del Espíritu es entre ellos tan pobre y el Espíritu tan intenso que una representación que se les inculque basta para impulsarlos a no respetar nada a destrozarlo todo Africa no tiene propiamente historia Por eso abandonamos Africa para no mencionarla ya más No es una parte del mundo histórico no presenta un movimiento ni un desarrollo histórico Lo que entendemos propiamente por Africa es algo aislado y sin historia sumido todavía por completo en el espíritu natural y que sólo puede mencionarse aquí en el umbral de la historia universal Hegel apud Dussel 1993 p 17 Os fragmentos acima são elucidativos não apenas do que Freire 2005 chama de ato de prescrição com o qual se rouba a palavra dos demais Eles ilustram também como as categorias de interpretação do mundo são forjadas a partir de mitos de civilização e evolução humana tomando como padrão e critério de medição a Europa moderna E assim como a literatura póscolonial aponta para a necessidade de criação de novos lugares de fala a partir dos quais seja possível questionar essas categorias e formas de enquadramento e interpretação do mundo Freire assinala como fundamental a reconquista do direito de enunciação e de pronuncia do mundo para que se cesse o processo de desumanização Não é possível o diálogo entre os que querem a pronuncia do mundo e os que não a querem entre os que negam aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste direito É preciso primeiro que os que assim se encontram negados no direito primordial de dizer a palavra reconquistem esse direito proibindo que este assalto desumanizante continue Se é dizendo a palavra com que pronunciando o mundo os homens o transformam o diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens ganham significação enquanto homens Freire 2005 p 91 Embora haja divergências entre os pensadores decoloniais sobre qual deve ser a saída para o problema da colonização do ser podese dizer 194 que todos convergem quanto ao argumento de que o póscolonialismo representa a inserção de um novo lugar de fala de um novo lugar de enunciação do ponto de vista da geopolítica do conhecimento E isso já é uma forma de resistir à colonização cognitiva Descentralizar o centro ou multiplicálo oferece novas perspectivas no discurso colonial e pós colonial aquela do lócus da enunciação criado no próprio ato de postular a categoria do discurso colonial e também o lócus de enunciação criado não no ato de estudálo ou analisálo mas de resistir a ele Mignolo1993 p 124 O surgimento de um novo lugar de fala se torna possível na medida em que o próprio discurso colonial é colocado em xeque se tornando o centro da análise Como o fazem por exemplo Aimé Césaire em Discurso sobre o colonialismo 1955 e Edmundo OGorman em A invenção da América 1958 ao problematizar as formas de colonialismo intelectual assinalando que a América Latina é também um lugar de fala de produção intelectual e não somente um lugar a ser analisado por intelectuais dos países desenvolvidos O lugar de fala destacado na literatura póscolonial é parte de um paradigma mais amplo que alguns autores chamam de paradigma da colonialidade Mignolo 2007 argumenta que a colonialidade é uma noção distinta do paradigma dominante imperialista A narrativa da colonialidade compreende o relato da história colonial e da exploração a partir da versão do colonizado ou dos condenados da terra tomando emprestado o conceito de Frantz Fanon No pensamento póscolonial a colonialidade seria a face oculta da modernidade que surge do sentimento de inferioridade imposto nos seres humanos que não se encaixam no modelo eurocêntrico A modernidade só pode ser pensada em coexistência e simultaneidade com a colonialidade na medida em que a identificação como moderno e civilizado se afirma a partir da categorização da colônia como bárbara e atrasada E nesse sentido a escravidão o genocídio e a exploração também são parte da modernidade estão na face da colonialidade O projeto póscolonial ao adotar essa noção de colonialidade sugere uma mudança de posicionamento diante da história deixando de pensar a modernidade como um objetivo e vendoa como uma construção europeia da história a favor dos interesses da Europa Mignolo 2007 Valorização do pensamento fronteiriço Para Freire o ponto central para superar a colonização do ser é a educação libertadora e essa educação tem algumas características que se opõem à educação bancária referida acima dominante na América Latina Primeiramente a educação libertadora pressupõe o diálogo como fundamental ao processo pedagógico Diálogo entre educador e educando no qual o último possa agir como sujeito questionador e não apenas como coisa passiva em que se deposita conteúdo Essa concepção dialógica da educação pressupõe o respeito aos educandos e à sua forma de pensar e interpretar a realidade o que implica a negação do que Freire chama de 195 absolutização da ignorância do educando Na visão bancária da educação O saber é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão a absolutização da ignorância que constitui o que chamamos de alienação da ignorância segundo a qual esta se encontra sempre no outro O educador que aliena a ignorância se mantém em posições fixas invariáveis Será sempre o que sabe enquanto os educados serão sempre os que não sabem Freire 2005 p 67 O processo pedagógico de acordo com Freire só tem sentido na medida em que o educando é respeitado e sua forma de perceber e interpretar a realidade são investigadas profundamente pelo educador e consideradas no momento de se construir o conteúdo programático O que se busca com esse processo é partir de uma realidade que seja próxima e acessível ao educando evitando a imposição de conteúdos programáticos alheios e formados a priori sem nenhuma relação com a realidade vivida pelos educandos e portanto alienante e de difícil compreensão O pensar do educador somente ganha autenticidade na autenticidade do pensar dos educandos mediatizados ambos pela realidade portanto na intercomunicação Por isto o pensar daquele não pode ser um pensar para estes nem a estes imposto Daí que não deva ser um pensar no isolamento na torre do marfim mas na e pela comunicação em torno repitamos de uma realidade Freire 2005 p 74 A proposta de superação de uma concepção bancaria de educação na qual o educador se isola em uma torre de marfim se aproxima da proposta de descolonização epistêmica Mignolo 2004 que pressupõe a superação da hierarquia entre os centros produtores e receptores de conhecimento e a superação da assimetria entre investigadores e investigados Nesse sentido o ensino e a produção no campo das ciências sociais deve ser capaz de considerar em um mesmo nível de relevância e não como hierarquicamente inferior a episteme de diferentes grupos historicamente excluídos ou entendidos como nãomodernos Outro ponto de convergência entre a Pedagogia do Oprimido e a literatura decolonial é a importância dada à investigação do conhecimento produzido na região específica a ser trabalhada Mignolo 2007 aponta para a necessidade de se prestar mais atenção ao tipo de saber que atende às necessidades dos condenados da terra e que está sendo produzido no que ele chama de zonas de fronteira Esse tipo de saber é caracterizado pela compreensão e interpretação do mundo a partir da chave de compreensão e das categorias subjacentes às cosmologias específicas dos povos condenados Exemplo deste tipo de saber é o projeto de Guaman Poma que ainda no século XVI propõe ao rei espanhol uma forma de governo e gestão da colônia a partir de uma perspectiva do império Inca produzindo um pensamento de fronteira que enquadra a história imperial e ocidental a partir do sistema de pensamento e conhecimento local 196 e da própria história colonial Mignolo 2007 argumenta que a ruptura epistêmica produzida a partir deste tipo de saber poderia levar a um processo de descolonização do ser Daí a necessidade de investigar esses tipos de saberes de fronteira e identificar em que medida eles oferecem resistência à colonização do ser Para Freire 2005 a investigação do saber regional do povo a partir de uma postura de respeito é um dos pontos fundamentais no processo pedagógico a metodologia que defendemos exige por isto mesmo que no fluxo da investigação se façam ambos sujeitos da mesma os investigadores e os homens do povo que aparentemente seriam seu objeto Freire 2005 p 135 Considerações Finais O trabalho teve como objetivo apontar alguns pontos de convergência entre a obra de Freire Pedagogia do Oprimido e a perspectiva decolonial com o propósito de discutir em que medida esta literatura tem algum valor pedagógico comparável àquela Assinalei primeiramente alguns paralelos no tocante a pressupostos e argumentos centrais a compreensão dialética da relação oprimidoopressor e da relação colonialidade modernidade o destaque da dimensão subjetiva de dominação expressa nas ideias de invasão cultural e colonização do ser e o argumento de que são os mitos da estrutura opressora e do eurocentrismo que sustentam essa dominação cognitiva que por sua vez é essencial à dominação material A segunda parte do texto identifica as estratégias apontadas por Freire e pela literatura póscolonial para lidar com o problema da colonização do ser É na convergência entre essas estratégias que a dimensão pedagógica da contribuição decolonial se torna visível Se no contexto dos movimentos de descolonização da África nos anos 1960 a estratégia central era a revolução notadamente em regiões onde opressão e colonização ainda se sobrepunham como no caso da Argélia tratado por Fanon 1979 outras estratégias também foram propostas no marco da literatura decolonial Uma das mais importantes propostas ressaltada por Freire e pelos autores póscoloniais é a objetivação e problematização da mitologia que sustenta a dominação No caso da Pedagogia do Oprimido isso é feito através do questionamento de alguns elementos da estrutura opressora Já na perspectiva póscolonial trata se de descontruir o mito do eurocentrismo É importante lembrar que a desconstrução desses mitos que sustentam a dominação cognitiva na qual o próprio oprimido se vê como inferior é uma forma de reverter a colonização do ser Outra proposta da perspectiva decolonial é o deslocamento do lugar de fala o que se aproxima da estratégia da pedagogia de Freire de devolver a palavra ao oprimido Falar a partir do paradigma colonialidademodernidade ressaltando a colonialidade como a outra face a modernidade é uma forma de desafiar o discurso moderno hegemônico Por fim a perspectiva póscolonial assinala para a necessidade de dar relevância ao discurso produzido nas zonas de 197 fronteiras pelos grupos excluídos e oprimidos como forma de resistir à colonização do ser o que encontra um paralelo na proposta de educação libertadora de Freire Cabe ressalvar que à diferença da Pedagogia do Oprimido o conteúdo programático proposto pela literatura póscolonial está mais próximo a um debate acadêmico e não representa propriamente um conteúdo acessível a um público mais amplo Portanto quando falo em proposta pedagógica do póscolonialismo latino americano não estou sugerindo um programa do mesmo alcance do de Freire Estou me referindo à importância pedagógica do debate póscolonial no ensino e produção no campo das ciências sociais Como proposta questionadora das categorias teóricas e das formas de raciocínio já naturalizadas como legítimas essa literatura tem um valor pedagógico que não pode ser desconsiderado O projeto pedagógico do póscolonialismo tem função paralela à pedagogia de Freire a de ajudarnos a perceber quão permeados podem estar nosso processo intelectual e nossos critérios de julgamento Permeados por um processo de invasão cultural que acaba levando à imersão de nossa consciência crítica em uma mitologia das formas de conhecimento legítimas dos temas premiáveis das categorias teóricas adequadas das metodologias aceitáveis no mais das vezes construídos a partir de casos particulares tomados como universais na lógica da geopolítica do conhecimento Um das contribuições do póscolonialismo para o ensino e produção no campo das ciências sociais é justamente a explicitação da geopolítica do conhecimento a problematização do processo internacional assimétrico de produção de conhecimento e do lugar que ocupam os países de terceiro mundo e o conhecimento neles produzido Esta explicitação por sua vez é relevante para a construção de um olhar crítico sobre as categorias de pensamento a partir das quais construímos nosso raciocínio acadêmico para o questionamento dos sistemas de classificação construídos nas academias dos países do ocidente que muitas vezes excluem ou minimizam a importância dos nossos objetos de pesquisa porque não foram considerados na construção destes sistemas de classificação ditos universais e para a problematização do próprio objetivo de universalização da pesquisa nas ciências sociais ao qual subjaz a noção de que existe apenas uma única episteme ou forma aceitável de conhecimento e compreensão do mundo Cabe citar um último aspecto da dimensão pedagógica da literatura póscolonial no campo das ciências sociais a compreensão da nossa realidade latinoamericana como marcada por um processo histórico e sociológico de opressão e colonização O que em si pressupõe um ponto de partida ou um lugar de fala distinto do lugar a partir do qual o conhecimento hegemônico é enunciado E isto marca nossa produção nossos quadros interpretativos nossas formas de compreender e classificar o mundo 198 Nesse sentido para que possamos conceber nossos próprios objetos de investigação tomando uma distância crítica das categorias formas de classificação e métodos construídos a priori e em outros contextos é fundamental que possamos tomar uma postura de sujeitos e deixar de adequarnos passivamente à realidade imutável e canônica das ciências sociais tal como nos é passada ou depositada em nós e tal como depositamos em nossos alunos Se não formos capazes de trabalhar com essas categorias de forma crítica não nos dando conta de que nossa produção está situada no entrelugar de Silviano Santiago 1978 incorremos no risco de ofuscarmos a visão da nossa própria realidade e problematizarmos de forma ingênua ou equivocada nossos temas de pesquisa BIBLIOGRAFIA CESÁIRE Aimé Discurso sobre o Colonialismo Paris 1955 DUSSEL Enrique Europa modernidade e eurocentrismo In LANDER Edgardo A colonialidade do saber eurocentrismo e ciências sociais Perspectivas latinoamericanas CLACSO Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales Ciudad Autónoma de Buenos Aires Argentina Setembro 2005 DUSSEL Enrique 1492 o encobrimento do Outro a origem do mito da modernidade Conferências de Frankfurt Tradução de Jaime A Clasen Petrópolis Vozes 1993 FANON Frantz Os Condenados da Terra 2ª Ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1979 FREIRE Paulo Pedagogia do Oprimido 47ª Ed Petrópolis Vozes 2005 1970 FREIRE Paulo GUIMARÃES Sérgio Diálogos sobre o vivido diálogos entre Sérgio Guimarães e Paulo Freire Educação Sociedade e Culturas n 23 2005 MIGNOLO Walter La Idea de América Latina la herida colonial y la opción decolonial Barcelona Gedisa Editorial 2007 MIGNOLO Walter Colonial and Postcolonial Discourse Cultural Critique or Academic Colonialism Latin American Research Review Vol 28 No 3 1993 pp 120134 MIGNOLO Walter Herencias coloniales y teorias postcoloniales Nueva Sociedad 1996 MIGNOLO Walter 2004 Os esplendores e as misérias da ciência colonialidade geopolítica do conhecimento e pluriversalidade epistémica In SANTOS Boaventura de Sousa Org Conhecimento prudente para uma vida decente Um discurso sobre as Ciências revisitado São Paulo Cortez p 667709 OGORMAN Edmundo A invenção da América São Paulo Editora Unesp 1992 1986 QUIJANO Aníbal Colonialidade do poder eurocentrismo e América Latina 199 In LANDER Edgardo A colonialidade do saber eurocentrismo e ciências sociais Perspectivas latinoamericanas CLACSO Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales Ciudad Autónoma de Buenos Aires Argentina Setembro 2005 SANTIAGO Silviano Uma literatura nos trópicos São Paulo Perspectiva 1978 AS CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA E AS TEORIAS EDUCACIONAIS MODERNAS E CONTEMPORÂNEAS Paulo Ghiraldelli Jr RESUMO As concepções de infância e as teorias educacionais modernas e contemporâneas O texto trata de diferentes concepções de infância em Descartes Nabokov Hegel Ariés e outros Comenta uma posição metafísica e uma posição historicista A concepção naturalista de infância no início é uma metafísica posição Ela tem duas direções com Rousseu e Nabokov por exemplo Em vez disso Hegel e Ariés seguram a bandeira dos historicistas mas eles ainda estão no campo da metafísica Podíamos dar mais um passo com Rorty unindo naturalismo e historicismo O texto coloca as concepções de infância junto com as concepções de filosofia da educação e teoria educacional No final o texto mostra um novo pensamento o campo pósmoderno em filosofia da educação e teoria educacional em que se abandona a noção moderna de infância Palavraschave infância filosofia da educação pragmatismo história da educação Rorty ABSTRACT Childhood conceptions and the modern and contemporary educational theories This paper discusses several conceptions of childhood Descartes Nabokov Hegel Ariés and others It comments a metaphisical position and a historicist position The naturalist conception of childhood in the begining is a metaphisical position It has two directions with Rousseau and Nabokov for example Instead Hegel and Ariès cacht the flag from the historicist but still they are in the field of metaphysis We could give more a step with Rorty joining naturalism and historicism The article put the childhood conceptions together with the concepcions in Philosophy of Education and Educational Theory In the end the text shows a new thinking the postmodern field in Philosophy of Education and in Educational Theory giving up the modern notion of childhood Keywords childhood philosophy of education pragmatism history of education Rorty Concepções da infância Rousseau e Nabokov Quando se trata de julgar questões que envolvem direitos da infância em geral temos dois grupos de pessoas Há um grupo que acredita na idéia da infância como sendo um período prolongado que se caracteriza principal mente pela inocência Contestando este há um outro grupo que defende a idéia de que a infância sendo ou não um período longo pode ser pensada como possuindo uma série de características mas nunca as de inocência e bondade como essenciais O primeiro grupo podese assim dizer é o herdeiro de um movimento específico na história do pensamento no ocidente a saber a ruptura proporcio nada por Rousseau em relação às concepções sobre a infância vindas de Santo Agostinho e de Descartes Como se sabe Santo Agostinho viu a criança imersa no pecado na medida em que não possuindo a linguagem infante o que não fala portanto aquele que não possui logos mostrarseia desprovida de razão exatamente o que seria o reflexo da condição divina em nós os adultos Descartes viu a criança como alguém que vive uma época do predomínio da imaginação dos sentidos e sensações sobre a razão e mais uma época da aceitação acrítica das tradições postas pelos preceptores tudo o que macularia nosso pensamento conduzindonos mais tarde uma vez adultos à dificuldade no uso da razão e portanto ao erro Para os dois Agostinho e Descartes quanto mais cedo saíssemos da condição de criança melhor para nósl Rousseau rompeu com a visão agostiniana e cartesiana na medida em que colocou o erro a mentira e a corrupção como sendo frutos da incapacidade de julgar de quem não pode mais beneficiarse nos seus julgamentos do crivo de um coração sincero e puro próprio da condição infantil o protótipo da con dição do bom selvagem A infância até então a inimiga número um da filosofia e portanto da verdade e do bem agora inversamente seria a própria condição para a filosofia Nela estariam a inocência e a pureza necessárias para o acolhimento da verdade e para a participação no que é moralmente corret02 O segundo grupo pode ser razoavelmente vinculado a vários pensadores e escritores contemporâneos Penso que Nabokov é um bom exemplo aqui pelo espírito francamente contrário ao rousseauísmo algo que nos lembra Nietzsche Se voltarmos ao seu romance Lotita3 principalmente ao capítulo 28 da parte I veremos o personagem Humbert ao se preparar para se deleitar com o corpo de Lolita então com doze anos se consolar lembrando que ela estará dormin do está dopada e que ele no limite não irá de fato completar o ato O consolo é para com sua própria consciência de como diz habitante do Velho Mun do eu JeanJacques Humbert O filme Lotita na sua segunda versão nos permite visualizar a idéia de Nabokov de ligar Humbert e Rousseau por meio das expressões eu JeanJacques Humbert e habitante do Velho Mundo A 46 proteção à infância para Nabokov era uma idéia que vinha do Velho Mundo e ainda que parecesse tão mais vigente na América do que na Europa ela havia se tomado uma vez na América uma piada que só atormentava a mente do personagem Pois afinal Lolita tinha experiências sexuais inclusive com pedófilos na sua escola religiosa ironicamente uma escola adepta de acam pamentos teatro e outros eventos os quais via como oportunidade de sociali zação das crianças As meninas por sua vez não só não estavam com medo disso ou horrorizadas com suas práticas até mesmo com pedófilos mas eram cúmplices nessas experiências perversamente cúmplices Nada há de ino cente puro ou bondoso na infância desenhada por Nabokov Concepções de infância Hegel Collodi e Aries Conversas afinadas com um certo espírito nabokoviano podem parecer subversivas em relação à infância clássica rousseauísta Mas de fato nem sempre fazem muito contra ela Muitas vezes dão margem apenas a um rousseauísmo invertido Seguem a concepção clássica na medida em que po dem muito bem pensar a infância como um dado natural A infância não seria inocente mas nem por isso não cumpriria o destino posto pela sua natu reza Há pelo menos duzentos anos desde Hegel uma boa parte dos ocidentais começou a falar sobre as coisas do mundo de um modo diferente consideran doas menos como situações e elementos dados e imutáveis naturais no sentido essencialista do termo mas como situações e elementos historica mente construídos Assim começamos a esboçar uma terceira via para con versarmos sobre as crianças Novos sentimentos associados a essa nova forma de falar sobre o que fazer com as crianças em favor da comodidade dos adul tos e da comunidade ganharam algumas pessoas das cidades do ocidente nos séculos XIX e XX Nessas conversas no início do século XIX a infância já aparece como algo obtido por construção Inclusive uma construção que a entrelaça com a cidade e com a escola O conto As Aventuras de Pinóquio de Carlo Collodi é uma narrativa desse tip04 Como se sabe o conto começa com um marceneiro Gepeto que recebe de presente um pedaço de pau falante e o transforma em um boneco Pinóquio o boneco de madeira não é obviamente uma criança Como nota o Grilofalan te o que é pior em Pinóquio é que ele tem cabeça de pau Para ser um menino de verdade5 seria preciso ser bom para seu pai e para com os outros ter responsabilidade ter sua própria consciência Assim a fada para o trans formar em menino de verdade depende de alguns prérequisitos Para poder agir sobre a obra da natureza o pedaço de pau falante e sobre o trabalho paterno o boneco de madeira e transformar Pinóquio em um menino a fada 47 necessita que ele já esteja vivendo como tal Ora Gepeto sabe muito bem quem deve então proporcionar isso ao Pinóquio É a escola Ao trocar seu próprio casaco por uma cartilha Gepeto indica que acredita na escola como o local que pode fazer Pinóquio ter condições de viver como um menino de verdade Onde fica a escola Na cidade A cidade e a escola então são res ponsáveis pela parte mais decisiva da construção da infância Todavia elas formam um campo aberto de possibilidades históricas Nelas a infância pode ocorrer mas não necessariamente ocorrerá Isso fica claro quando Pinóquio vai à cidade encaminhandose para a escola e encontra a raposa e o gato elementos que vivem na cidade mas que estão longe de serem cidadãos De sencaminham Pinóquio mostrando assim as outras possibilidades da cidade Inclusive mostram a possibilidade de podermos mudar de cidades de irmos para cidades terríveis cidades sem cidadania como aquela em que habitavam as criançasasnos onde Pinóquio quase termina por se transformar completa mente em asno Contrariando Nabokov e Rousseau o Pinóquio de Collodi não é essencial mente mau nem bom é apenas um boneco de pau Contrariando outros auto res a cidade de Collodi não está sujeita a digamos leis históriconaturais nela tudo pode acontecer pois ela não está sujeita à lei alguma que não possa ser quebrada ou subvertida Se Pinóquio for bom e responsável terá feito dessa época de sua vida um trampolim para poder dizer sou um menino de verda de Ao final do conto de fato ele se transforma em menino de verdade na medida em que contrariando aqueles que não são cidadãos e que gostariam de fazer dele também um nãocidadão o gato e a raposa e outros personagens do mesmo tipo ele desenvolve comportamentos que indicam aos olhos de seu pai e da fada responsabilidade e bondade Nós ocidentais desde o final do século XVIII e mais decisivamente no século XIX ao mesmo tempo que começamos a descrever a infância como algo natural segundo um recorte que se pretendia único também utilizamos outras descrições como a contida em Pinóquio Nesta a infância é algo recor tado de modo menos rígido pois é vista com algo dependente de construção histórica Nesse tipo de descrição a infância surgiu como algo para cuja cons tituição concorrem várias forças culturais e completamente contingentes en tre as quais a cidade e a escola se tomaram muito importantes Mas o historicismo ensaiado no conto de Collodi é bastante ameno perto do que temos no século XX principalmente nos últimos quarenta anos Mais do que conversarmos sobre a infância de cada criança como algo que não é de todo essencialmente natural passamos a falar sobre a própria idéia de infân cia natural como algo historicamente criado E os que seguem tal caminho como Philippe Ariês no início dos anos 60 ensinam uma maneira de conver sar sobre a infância bastante distante das formas utilizadas pelos dois grupos inicialmente aludidos os inspirados na virada rousseauísta e os representados 48 pelo espírito nabokoviano Philippe Aries dá continuidade à terceira via a de Hegel e Collodi É certo que Aries6 fala em descoberta da infância e com isso nubla um pouco a idéia de invenção da infância Assim com Aries ainda poderíamos estar pensando na infância como uma fase natural dos seres humanos nunca antes percebida mas que em certo momento seria encontrada por intelectuais de melhor visão Tratarseia então de fazer cada criança viver sob condições específicas para que sua infância pudesse ocorrer da maneira como a natureza programou Mas não é este o espírito do texto de Aries Ele trata a noção de infância como algo que vai sendo montado criado a partir das novas formas de falar e sentir dos adultos em relação ao que fazer com as crianças Em Pinóquio a escola e a cidade são elementos que concorrem para que o boneco se tome um menino de verdade Ou seja são as forças culturais completa mente contingentes que estão presentes e que forjam a infância Em Aries de modo mais abrangente e radical as próprias noções que diferenciam um meni no de um adulto aparecem como criação criação prática a partir da conversa ção e dos afetos que os grupos urbanos desenvolvem a respeito de seus filhos Levar o historicismo de Aries adiante é então admitir que não somente a idéia de infância clássica é uma invenção mas claro que o mesmo pode ser dito da sua inversão nabokoviana E mais que toda e qualquer descrição da infância seja ela posta pela ciência pela filosofia pela literatura e pelas artes em geral são enfim apenas novas descrições Elas não permitem que as mensuremos nos referindo a uma super descrição que seria então a verdade sobre o que é o menino de verdade O que significa conversar sobre as crianças desse modo Significa não acreditar que os direitos da infância todos esses direitos de proteção já conquistados e aqueles a conquistar e a inventar na cultura liberaldemocrá tica ocidental podem ser ditos válidos porque assentados na verdade teórica que nos pretende dizer o que é a infância Significa não mais procurar expli car e justificar os direitos da criança a partir da verdadeira definição de meni no de verdade Mas então os direitos da infância estão condenados Nem sim nem não Como assim Talvez Gepeto possa nos ensinar algo sobre isso Gepeto não sabe muito bem o que é ser um menino de verdade a não ser o que todos os habitantes razoáveis da cidade sempre disseram que um meni no devia ser bom e responsável ter uma consciência e não uma cabeça de pau O que ele sabe muito bem é que a cidade oferece um espaço próprio para todos os meninos Na escola entende Gepeto viverseia como menino de verdade para enfim tomarse menino de verdade Gepeto não espera en contrar na entrada da escola um aviso do tipo aqui não aceitamos bonecos de pau só meninos de verdade e de fato não encontra Pinochio consegue matrícula Por um acordo histórico e cultural a cidade em que vive Gepeto reserva para as crianças um espaço isto é mais um direito da infância pouco 49 se importando para tal em perguntar aos seus sábios locais ou estrangeiros o que é verdadeira e objetivamente um menino de verdade Mas não só fundamentar os direitos da infância na verdade teórica sobre a infância é pouco possível para uma cultura historicista da qual participam muitos em nossos tempos Para alguns que participam dessa cultura isso pode mesmo até ser um perigo Circunscrever os direitos da criança a partir de uma rígida delimitação da infância segundo uma única descrição significa também abrir caminho para que muitos bonecos de pau não usufruam desses direitos Se cairmos na tentação de padres metafísicos e cientistas de fun damentar os direitos das crianças a partir da verdade sobre o que é o menino de verdade talvez a maior parte das crianças fique de fora das nossas conver sas e pior dos nossos cuidados e preocupações As teorias educacionais e a infância Dentro desse quadro acima colocado o que se pode dizer da relação entre as grandes teorias educacionais atuais e a infância Para responder a essa pergunta é necessário que eu diga também o que considero como sendo as grandes teorias educacionais dos nossos tempos tomando aqui como os nos sos tempos os séculos XIX XX e agora o início do século XXI As pessoas dos séculos XIX e XX no Ocidente assistiram a três grandes revoluções em teoria educacional Nós da transição do século XX para o XXI estamos assistindo a uma quarta revolução As três primeiras revoluções en contram seus melhores representantes nos nomes de Herbart Dewey e Paulo Freire A quarta revolução da maneira que eu acho que ela está ocorrendo pode encontrar justificativas em Richard Rorty e Donald Davidson As três primeiras foram revoluções modernas em teoria educacional A quarta é uma revolução pósmoderna7 Cada uma dessas revoluções gira em tomo da emergência de um elemento chave na discussão entre os filósofos da educação Em Herbart a emergência da mente Em Dewey a emergência da democracia Em Paulo Freire a emer gência do oprimido A quarta revolução por sua vez segue em tomo da emer gência da metáfora entendida aí segundo as novas visões de Davidson lido por Rorty As revoluções do passado não perdem a importância perante a revolução que está ocorrendo agora Pertencem ao passado em um sentido cronológico e não valorativo Podemos ver isso olhando para cada uma das conquistas dessas revoluções Hoje em dia avançamos muito em filosofia da mente e não poderíamos fazer teoria educacional sem considerála Assim a herança de Herbart está viva No caso de Dewey mais ainda temos a sensação de algo vivo não passaria pela maioria das cabeças dos filósofos da educação no Oci 50 dente a idéia de adotar a educação autoritária no lugar da educação democrá tica e talvez poucos ainda acreditem que poderia haver verdadeira educação em uma situação social não dinâmica e não livre Paulo Freire por sua vez está presente na medida em que os países ricos se tomaram mais ricos e os países pobres mais pobres e que o fenômeno do aparecimento do desenraí zado seja ele o pobre ou o pertencente a grupos minoritários é agora tam bém visível mesmo onde estava prometido que desapareceria ou não surgiria nas democracias ricas da América do Norte e Europa As três primeiras revo luções portanto não se distinguem da revolução pósmoderna em teoria da educação por um pretenso fato de que esta última revolução teria superado tudo o que foi pensado em educação anteriormente O que ocorre é que a revo lução pósmoderna em teoria educacional está acoplada a uma maneira de conversar em termos técnicos de filosofia e filosofia da educação que desloca as filosofias da educação que justificavam as teorias educacionais modernas nomeadas aqui por Herbart Dewey e Freire Herbart e Dewey começam e terminam pensando na educação das crian ças e estão preocupados em conceituar segundo seu contexto de época a in fância Paulo Freire começa pensando a educação de adultos mas no decorrer da sua obra também revela uma sensibilidade para com a criança O quadro abaixo coloca as quatro teorias educacionais aqui citadas em seus passos didáticos em comparação Vejamos os passos e então o que eles implicam em relação às noções de infância envolvidas frEORIA EDUCACIONAL TEORIA EDUCACIONAL TEORIA EDUCACIONAL TEORIA EDUCACIONAl DEHERBART DEDEWEY DE FREIRE PÓSMODERNA CINCO PASSOS CINCO PASSOS CINCO PASSOS CINCO PASSOS DIDÁTICOS DIDÁTICOS DIDÁTICOS DIDÁTICOS PREPARAÇÃO ATIVIDADE E VIVÊNCIA E PEsQUISA APRESENTAÇÃO DE PEsQUISA PROBLEMAS ARTICULAÇÃO ENTRE ApRESENTAÇÃO PROBLEMAS TEMAS GERADORES OS PROBLEMAS APRESEN TADOS E OS PROBLEMAS DA VIDA COTIDIANA DISCUSSÃO DOS PROBLEMAS ATRAVÊS ASSOCIAçÃO COLETA DE DADOS PROBLEMATIZAÇÃO DE NARRATIVAS TOMADAS SEM HIERARQUIZAÇÃO EPISTEMOLóGICA GENERALIZAÇÃO HIPÓTESES Fiou CONSCIENTIZAÇÃO FORMULAÇÃO DE HEURÍSTICA NOVAS NARRATIVAS APLICAÇÃO EXPERIMENTAÇÃO Fi AçÃO PoLtncA AçÃO CULTURAL ou JULGAMENTO SOCIAL E POLíTICA 51 Antes de qualquer comentário explicativo dos passos do quadro acima quero fazer um alerta nenhuma dessas formulações deve ser lida por meio da visão que põe a dualidade diretividade versus nãodiretividade O grande erro dos livros de teoria da educação e didática é o de apelar para essa divisão Todas as teorias educacionais acima envolvem uma exaustiva participação do professor e do estudante Outro alerta tais teorias não devem ser lidas por meio da visão que põe a dualidade progressista versus não progressista Esta pior que a anterior crivou alguns livros que falavam sobre didática nos anos 80 também trazendo mais confusão que acerto e favorecendo o pensamento esquemático e maniqueísta Comento abaixo em uma dialética conjunta as três primeiras partes do quadro acima Deixo para comentar em separado a teoria educacional pós moderna Passo 1 O processo de ensinoaprendizagem para Herbart começa com a preparação que consiste na atividade que o professor desenvolve na medida em que recorda ao aluno o assunto anteriormente ensinado ou algo que o aluno já sabe Dewey por sua vez não vê necessidade de um tal procedimento pois ele acredita que o processo de ensinoaprendizagem tem início quando pela atividade dos estudantes eles se defrontam com dificuldades e problemas ten do então o interesse aguçado Paulo Freire vê o processo de ensinoaprendiza gem se iniciando em um momento especial quando o educador está vivendo na comunidade dos educandos observando suas vidas e participando de seus apuros pesquisando sobre a comunidade deixando de ser educador para ser educadoreducando Passo 2 A teoria herbartiana diz que após a preparação o professor já pode apresentar aos alunos o novo assunto os conceitos morais históricos e científicos que serão a matéria do processo de ensinoaprendizagem eles são o carro chefe do processo mental e são eles que puxam os interesses A teoria deweyana ao contrário acredita que o carrochefe da movimentação psicoló gica são os interesses e que estes são despertados pelo encontro com dificulda des e com a delimitação de problemas Assim para Dewey da atividade segue se a enumeração e a eleição de problemas Paulo Freire acredita na mesma coisa que Dewey mas ele acha que os problemas não são tão motivantes quan to os temas geradores as palavraschave colhidas no seio da comunidade de educandos e que podem despertar a atenção destes na medida em que fazem parte de suas atividades vitais Passo 3 Herbart acredita que uma vez que o novo assunto foi introduzido isto é uma vez que novas idéias e conceitos morais históricos e científicos estão postos eles serão assimilados pelos alunos na medida em que estes pude 52 rem ser induzidos a uma associação com as idéias e conceitos já sabidos Dewey por sua vez nesta fase do processo de ensinoaprendizagem está preocupado em ajudar os alunos na atividade de formulação de hipóteses ou caminhos heurísticos para enfrentar os problemas admitidos na fase anterior Paulo Freire então na medida em que já trabalhou os temas geradores começa a proble matizálos desenvolvese aqui uma atividade de diálogo horizontal entre edu cadoreducando e educandoeducador de modo que os temas geradores pos sam ser entendidos como problemas mas problema neste caso quer dizer problema político A problematização ocorre se o tema gerador é visto nas suas relações com o poder com a perversidade das instituições com a dema gogia das elites etc Passo 4 Nesta fase a teoria herbartiana acredita que o aluno já aprendeu o novo por associação com o velho mas que agora ele precisa sair do caso particular exposto e traçar generalizações abstrações leis O professor é cla ro pode insistir para que o aluno faça inferências e chegue então a adotar leis na moral e na ciência A teoria deweyana nesta fase quer alimentar as hipó teses formuladas na fase anterior Sendo assim a atividade do professor e do estudante agora é a de buscar nas bibliotecas e outros meios inclusive na pró pria memória os dados capazes de dar uma arquitetura mais empírica às hipó teses ou uma melhor razoabilidade aos caminhos heurísticos Na teoria freireana este é o momento em que educadoreducando e educandoeducador ao traça rem as relações entre suas vidas e o poder através da problematização do temas geradores chegam a perceber o que acontece com eles enquanto seres sociais e políticos e então chegam à conscientização passam a ter consciên cia de suas condições na poUso Passo 5 Nesta última fase na teoria herbartiana o aluno deve ser posto na condição de aplicar as leis abstrações e generalizações a casos diferentes ain da inéditos na situação particular sua de ensinoaprendizagem Na última fase na teoria deweyana optase por uma ou duas hipóteses em detrimento de outras na medida em que há confirmação destas por processos experimentais Temse então uma tese Ou então optase por uma heurística e assim por uma conclusão na medida em que a plausibilidade das outras formulações heurísticas caiu por terra frente às exigências de coerência lógica etc O passo final na teoria freireana é a tentativa de solução do problema apontado desde o tema gerador através da ação política que pode inclusive ter desdobramentos práticos de ação políticopartidária Nos três casos estamos diante de teorias educacionais modernas que po deriam muito bem se sentir confortáveis e assim o fizeram na medida em que tinham uma boa justificativa filosófica para procederem como queriam 53 proceder Justificativas filosóficas que foram montadas pelos grandes movi mentos do Iluminismo e do Romantismo entre os séculos XVII e XX E pelo movimento keynesiano de construção do Welfare State após a Segunda Guerra Mundial Herbart quer na formulação humanista criar o homem enquanto ser ca paz de se autodeterminar É claro que Herbart pensava isso nos termos dos iluministas clássicos o homem enquanto ser que sai da menoridade e passa a julgar as coisas pela própria razão é o homem que se autodetermina o verda deiro indivíduo Kant A noção de infância de Herbart é em certa medida a noção deixada por Descartes a infância é um estágio negativo que devemos superar Quanto aos objetivos educacionais o humanismo herbartiano está presente em Freire Esse humanismo está mesclado com as leituras de Freire de várias correntes de filosofia contemporânea com inspiração mais românti ca na vaga do existencialismo marxista eou cristão Para elas o homem deveria deixar de ser objeto e tomarse sujeito de sua própria história Toda via influenciado por Dewey esse movimento em Freire não implica uma visão negativa da infância mas sim uma visão positiva mais rousseauísta Dewey por sua vez quer o bípede sem penas como ser capaz de enfrentar a mudança contínua própria da vida livre a vida democrática Assim para Dewey há ainda um sexto passo didático o próprio conjunto dos cinco passos é mais importante que a conclusão indicada pela hipótese que havia se mostra do correta Para ele aprender os cinco passos isto é aprender o que ele cha mava de procedimento científico para a resolução de problemas é na verda de aprender a aprender e assim estar preparado para qualquer eventuali dade da vida moderna Mais que Paulo Freire e muito mais ainda que Herbart Dewey propõe uma filosofia da educação que é uma filosofia de consideração da contingência em um mundo completamente naturalizado e historicizado Paulo Freire também pensa como Dewey que a educação deve preparar para a eventualidade só que as eventualidades do desenraizado seriam mais repetitivas elas sempre seriam problemas políticos nos quais o desenraizado estaria sendo oprimido Paulo Freire sempre mantém o modelo da educação de adultos como guia para seu pensamento pedagógico geral Dewey não Ao considerar a contingência como um elemento chave na sua filosofia da histó ria Dewey quer que a criança atue como o EmOio do romance pedagógico de Rousseau um garoto que formula e resolve problemas mais do que um erudi to que disserta sobre todas as coisas De certo modo Dewey está com um pé no historicismo o que deslocaria sua noção de infância para as proximidades do que pensa Ariês Mas ele não dá um passo completo nesse sentido Ainda que seu rousseauísmo esteja sempre posto na berlinda pela sua leitura de Nietzsche Nabokov é de certo modo nietzschiano Dewey na prática parece não aban donar totalmente a idéia de essência na sua concepção de infância De certo modo Dewey espera que exista na criança um elemento interior que pode ser aceso menos pela erudição do que pelo aprender a aprender 54 Vamos agora à teoria educacional pósmoderna Ela fornece outros passos Passo 1 O início do processo de ensinoaprendizagem segundo a postura pósmoderna se dá pela aprentação direta de problemas e situações problemá ticas ou mesmo curiosas e difíceis Mas que tipo de problemas e situações problemáticas Os problemas culturais éticos étnicos de convivência entre gêneros mentalidades e modelos políticos diferentes Esses problemas são apresentados por diversos meios do cinema ao romance passando pelo conto pelos comic books pela música pela poesia e teatro etc Passo 2 Na seqüência o processo de ensinoaprendizagem visa relacionar as situações problemáticas e o problemas propriamente ditos com os proble mas da vida cotidiana dos estudantes dos seus avós e pais e enfim do seu grupo social ou familiar ou de amigos e até mesmo do seu país presente passado e futuro Aqui o estudante é convidado a ser um personagem da nar rativa contada no passo anterior e ao mesmo tempo um filósofo isto é se gundo Nietzsche um juiz dos desdobramentos internos da narrativa Passo 3 Redescrição das narrativas nas quais os problemas estavam inse ridos isto através de outras narrativas de ordem ficcional histórica científica e filosófica O importante aqui é que o estudante perceba que essas narrativas que redescrevem aquelas não estão hieraquizadas epistemologicamente Não há uma narrativa que aprende a realidade como ela é Mas há sim em cada uma jogos de linguagem distintos que estão aptos pragmaticamente para uma coisa e não outra Se quero saber como uma nave espacial funciona um bom vocabulário é o dos físicos mas se quero dizer para minha namorada como a nave atravessa os céus em uma noite estrelada creio que seria melhor um vocabulário ficcional seria pedante e inútil para o namoro a explicação física Penso que aqui deveríamos ir de Júlio Verne Mas o erro seria achar que no segundo caso estou no campo metafórico e no primeiro no campo literal e que ambos os campos estão nitidamente delimitados Eles são vocabulários incomensuráveis cuja distinção se dá pela utilização lingüística que o bípede sem penas faz deles Passo 4 Neste estágio o estudante é convidado ele próprio a propor sua narrativa de redescrição das narrativas em que estavam inseridos os proble mas e a discutir a pertinência delas com os colegas com o professor e enfim com os livros e outros meios Este é o momento de criação de imaginação e portanto o auge do processo de criação de metáforas Passo 5 Por fim o que se tem é o recolhimento das idéias e sugestões vindas das narrativas e suas redescrições para a condução intelectual moral e estética no campo cultural social e político de cada um Cabe aqui a ação 55 política organizada inclusive a ação política partidária Mas é necessário lem brar que a própria formulação de uma narrativa e sua divulgação a criação de uma nova metáfora que não só garanta direitos democráticos mas que invente outros direitos já são uma ação política Se os professores pósmodernos e os teóricos da educação quiserem uma justificativa para esses procedimentos vão facilmente encontrála no passa do em germe nas formulações da filosofia da linguagem e do pragmatismo de Nietzsche e William James Afinal foram eles os pioneiros na argumentação que borrou a nítida linha que separava o que é metafórico do que é literal Foi Nietzsche quem no final do século XIX colocou a linguagem em um plano articulado ao plano social e definiu a própria verdade como metáfora Mas se os professores pósmodernos e os teóricos da educação quiserem elaborar me lhor uma filosofia da educação mais adequada aos procedimentos dos cinco passos acima e para tal quiserem utilizar a linguagem atual á filosofia penso que a leitura dos textos de Donald Davidson é o suficiente Principalmente na formulação que é dada por Richard Rorty O segredo aqui para entendermos a postura pósmoderna é perguntar mos o que é a metáfora para Davidson Se tomamos a metáfora na sua definição tradicional veremos que a enten demos como apenas a cobertura de um bolo Ela seria a maneira de descrever as coisas de uma forma que uma vez clarificada analisada traria a verdade o essencial A metáfora teria uma mensagem a ser decodificada mensagem esta que poderia ser apreendida por investigação da semântica Assim a metá fora teria um conteúdo cognitivo e poderia ser explicada Uma terrível objeção a essa formulação aparentemente tranqüila da metá fora dada por Davidson é a de que a metáfora não pode ser parafraseada E que se quisermos explicar uma metáfora certamente estaremos sujeitos a fazer alguma construção teórica sofrível de mau gosto Para Davidson como Rorty e eu o lemos a metáfora não é uma mensagem não tem um conteúdo cognitivo a ser decodificado Ela é sim um ato inusitado no meio do processo comunicacional que embora tenha efeitos de grande impacto sobre o ouvinte não pretende lhe dizer coisa alguma É claro que uma metáfora depois de algum tempo se for saboreada e não cuspida e esquecida pode então se adap tar a um jogo de linguagem existente ou forjar um novo jogo de linguagem e então se literalizar ou seja ganhar valor de verdade Aliás digase de passa gem como Rorty lembra nossa linguagem é na sua maioria um monte de metáforas mortas Mas em um primeiro momento ela não é uma explicação e não tem valor de verdade na medida em que ela não está nos quadros do jogo semântico tradicional Por isso mesmo seu lançamento em uma conversa é muitas vezes espontâneo e quem a lançou pouco sabia o que ela significava ela não significava Assim duvido que o movimento negro poderia na épo 56 ca de seu auge explicar o que era Black is beautiful Do mesmo modo que agora seria uma péssima idéia tentar explicar o que é Gay is good Não há paráfrase nem explicações para Gay is good e qualquer tentativa destrói ra pidamente a metáfora e todo o movimento de impacto que ela causa na menta lidade conservadora Todavia apesar de não ter mensagem ela é forte o sufi ciente para estar envolvida com a busca de criação de novos direitos democrá ticos como por exemplo a discussão em vários países sobre a legitimidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo pois afinal gay is good Essa nova filosofia da educação em nada solapa os ideais das filosofias da educação modernas pelo contrário ela os potencializa Quem faz metáforas em prol da criação de novos direitos está certamente colaborando com a idéia humanista de que a educação é aquisição de autodeterminação como em Herbart Também está favorecendo a diversidade e a liberdade e portanto está se alinhando com Dewey na valorização da democracia E pode fornecer au toridade semântica para os grupos oprimidos levandoos a uma redescrição de si mesmos conquistando então vez e voz na sociedade na medida em que puderem colocar seus vocabulários alternativos seus jogos de linguagem secundarizados como elementos também contáveis na sociedade Com isso colaborase com Paulo Freire na luta por uma educação em favor do oprimido pelo fim da opressão A teoria educacional pósmoderna nessa filosofia da educação é a busca de realização dos melhores ideais modernos Mas o que diz essa a teoria pósmoderna sobre a criança Qual é sua con cepção de infância A teoria pósmoderna nada diz sobre a criança Ou pelo menos nada diz de especial de especificamente essencial sobre a criança E não tem uma con cepção de infância Ela é a teoria completamente historicista de Gepeto aque le pai que leva seu Pinóquio para a escola porque as pessoas sensatas de sua cidade assim fazem com as crianças E não lhe passa pela cabeça que lá na escola vá existir alguém selecionando quem são os verdadeiros meninos de verdade A teoria educacional pósmoderna não está nem do lado de Rousseau nem do lado de Nabokov Ela simplesmente representa no sentido kuhniano da palavra uma mudança de paradigma ela não precisa de uma noção de infân cia para falar sobre a educação ela quer é estar atenta às novas metáforas inclusive as novas metáforas sobre as crianças e com isso ver se ela consegue ampliar direitos democráticos e inventar novos direitos democráticos para todas as crianças A noção de infância é uma noção moderna A pós modernidade não precisa dessa noção A educação pósmoderna então pode finalmente fazer educação sem ter de perguntar se Pinóquio por ter cabeça de pau deve ou não estar na escola 57 Referências Bibliográficas COLLODI C As aventuras de Pinóquio São Paulo Edições Paulinas 1992 GHIRALDELLI JR P O que é preciso saber em Filosofia da Educação e Teorias Educacionais Rio de Janeiro DPA 2000 NABOKOV V Lolita São Paulo Companhia das Letras 1994 RORTY R Contingency Irony and Solidarity Cambridge Cambridge University Press 1989 Notas 1 Para mais informações sobre a noção de infância ver GhiradeIli Jr P Org Infância Escola e Modernidade São Paulo e Curitiba Cortez e Editora da UFPr 1996 Ou ainda as primeiras páginas de Ghiraldelli Jr P Org O que é Filosofia da Educação Rio de Janeiro DPA 2000 2 Ghiraldelli Jr P Infância op cito 3 Cf Nabokov V Lolita Trad Jorio Dauster São Paulo Companhia das Letras 1994 4 Cf Collodi C As aventuras de Pinóquio São Paulo Edições Paulinas 1992 5 Collodi não usa a expressão menino de verdade e sim a expressão um menino como os outros A expressão menino de verdade é utilizada se não me falha a memória da infância na versão Disney para o cinema refirome à dublagem em português é claro 6 Cf Aries P História social da criança e da famaia Trad Dora Flaksman Rio de Janeiro Editora Guanabara 1981 7 Cf GhiraldeIli Jr P O que é preciso saber em Filosofia da Educação e teorias educacionais Rio de Janeiro DPA 2000 Paulo Ghiraldelli Jr é professor de Filosofia Contemporânea e Filosofia da Educação na Universidade Estadual Paulista UNESP em Manlia São Pau lo e é professor visitante na Auckland University na Nova Zelândia Endereço para correspondência httpwwwfilosofiaprobr 58 Aletheia 25 janjun 2007 109 Aletheia n25 p109122 janjun 2007 Fracasso escolar do que se trata Psicologia e educação debates possíveis1 Ana Lucia Coelho Heckert Maria Elizabeth Barros de Barros Resumo O artigo visa a analisar como a Psicologia tem encarado os desafios colocados pelo desempenho escolar Discute os princípios e as ferramentas que têm orientado as práticas psicológicas no campo do fracasso escolar Faz um debate acerca da interface Psicologia e Educação partindo dos princípios da transdisciplinaridade e da inseparabilidade Psicologia e Política Problematiza as práticas da Psicologia no campo da Educação que tem se pautado hegemonicamente em formas naturalizadas e instituídas Considera que a produção do fracasso escolar não é um destino inexorável mas produzido a partir de um modo de existência que define distribui e fixa competências e incompetências na escola Objetiva afirmar a escola como usina de conhecimento e de novas formas subjetivas Palavraschave psicologia e educação fracasso escolar subjetividade School failure What is it about Psychology and education Possible debates Abstract The article aims to analyze how Psychology has been seeing the challenges raised by school performance It discusses the principles and tools that has been guiding Psychology practices in the field of school failure It debates the interface between Psychology and Education based on the principles of transdisciplinarity and inseparability of Psychology and Politics It brings into discussion the psychological practices in the field of Education that have been hegemonically based on naturalized and established forms This article does not consider the production of school failure as an inexorable fate but as being produced based on a way of existence that defines distributes and establishes competent and incompetent practices at school It aims to state school as a factory of knowledge and new subjective forms Key words psychology and education school failure subjectivity Introdução Como a Psicologia tem encarado os desafios colocados pelos atuais modos de funcionamento da escola Quais princípios têm orientado as práticas psi no campo do fracasso escolar Quais ferramentas os psicólogos têm utilizado para interferir no chamado fracasso escolar Com vistas a contribuir para o debate sobre o lugar que a Psicologia vem ocupando no campo das práticas em educação partimos dos princípios da transdisciplinaridade e da inseparabilidade Psicologia e Política Tais princípios 1 Falar de possíveis não é o mesmo que falar de possibilidades ou seja do que pode acontecer efetiva ou logicamente Referese ao que não temos previamente apenas quando o criamos Zourabichvili 2000 Aletheia 25 janjun 2007 110 buscam problematizar um lugar ocupado pela Psicologia que padroniza ações e repete modos de funcionamento de forma sintomática o que significa portanto tirála de um lugarsintoma de um lugar que paralisa e reproduz um sentido já dado Benevides Passos 2005 Na direção que imprimimos no presente artigo a Psicologia no campo da Educação tem se efetivado por meio de práticas com sentidos estabilizados ou instituídos perdendo muitas vezes o movimento pela mudança dessas práticas Apontar esse caráter sintomático das práticas psi em educação impõe que identifiquemos o que ai se paralisa mas também o que insiste como índice de um movimento que não se esgota sua face positiva Benevides Passos 2005 p 389 Assim analisar o que aqui estamos chamando de práticasintoma é permitir a retomada de um processo pelo qual possamos fazer a crítica ao que se instituiu nas práticas de Psicologia em Educação como a busca do aluno perfeito bom disciplinado figura ideal que regularia as experiências concretas Benevides Passos 2005 p 389 A direção que buscamos afirmar para a Psicologia na Educação visa portanto a dar a conhecer a complexidade do cotidiano das escolas que podem produzir tanto práticassintomas como práticas que acionam outrosnovos modos de ser aluno e trabalhador da educação recusando as diferentes formas de assujeitamento formas de vida massificadas padronizadas reproduzidas em clichês como decalques reproduções do empírico Tal direcionamento do olhar implica que façamos de imediato uma torção em nossa abordagem que não deverá focar o aluno o professor mas o processo de ensinoaprendizagem a organização do trabalho em curso nas escolas processos que tomamos como efeito concreto de um modo de trabalhar que se coloca no cenário das políticas públicas em educação Interessanos neste enfoque algo que se passa na ordem do impessoal e do comum e que pode ser considerado como um plano de composição a partir do qual se engendram tanto as formas históricas de produção como os próprios sujeitos que lhes concernem Que não seja confundida tal abordagem àquela da busca de elementos estruturais de cuja exploração teria as já conhecidas respostas generalizantes e universalizantes Barros Fonseca 2004 p 38 Isso significa relançar alunos professores e demais trabalhadores assim como as políticas públicas que engendram formas e modos de fazer educação ao processo de sua produção não buscando a verdade imperativa e constitutiva desses atores e dos processos de trabalho nas escolas mas os acasos que atestam que somos produto de contingências históricas podendo tudo ter se configurado de outra maneira Essa postura implica nos lançarmos para além dos fatos e interrogar sobre o que os faz serem o que são sobre os processos que os engendraram Barros Fonseca 2004 Assim com esse propósito pretendemos nos lançar no desafio de criar conceitos ferramentas que nos possibilitem operar no campo da educação nos seus diferentes âmbitos Pensar o que acontece na escola para além da lógica adaptativa é fazer Aletheia 25 janjun 2007 111 opção pela potencialidade autopoiética dos corpos apreendidos como multiplicidades diferenciadas e que se diferenciam ao viver A torção que propomos levanos a escolher como locus de nossa análise exatamente o ponto de encontro Psicologia e Educação Interessanos apreender as relações de intercessão e de interferência desses campos disciplinares cartografando as perturbações produzidas em cada um desses âmbitos considerados como dotados de uma abertura constitutiva num processo heterogenético que transforma cada uma dessas disciplinas em planos de criação e devires Intercessão aqui tem o sentido de produzir efeito de desestabilização Os intercessores operam entrecruzamento de diferentes domínios de saber e só podem ser pensados na relação de interferência que produzem entre esses domínios Um intercessor produz contágio é relação de perturbação cruzamento que desestabiliza e faz diferir Os princípios interacionistas interdisciplinares parecemnos insuficientes para dar visibilidade ao processo de coengendramento de alunos e trabalhadores da educação dos processos de trabalho nas escolas nas suas múltiplas dimensões complexas Vemos que tradicionalmente a Psicologia tem se pautado por abordagens binárias que tomam como aspectos dicotômicos o indivíduo e a sociedade a escola e seu entorno a Psicologia e a Educação dentre outras dicotomias Neste texto discutimos a questão da Psicologia a partir da noção de coletivo o que significa pensála num plano de produção do indivíduo e da sociedade um plano de imanência de composição sempre aberto a outras possibilidades de constituição Como refere Foucault 2000 p 351 É preciso considerar a ontologia crítica de nós mesmos não certamente como uma teoria uma doutrina nem mesmo como um corpo permanente de saber que se acumula é preciso concebêla como uma atitude um êthos uma via filosófica em que a crítica do que somos é simultaneamente análise histórica dos limites que nos são colocados e prova de sua ultrapassagem Nessa direção filosófica a Psicologia deve abrirse à experiência para além dos quadros de referência instituídos A crítica precisa ser exercida não mais no plano das estruturas formais de valor universal mas como pesquisa histórica através dos acontecimentos que nos levaram a nos constituir e a nos reconhecer como sujeitos do que fazemos pensamos dizemos Foucault 2000 p 347348 Alinhandonos a esse pensamento podemos considerar que o trabalho do psicólogo deve incidir no processo que constrói a realidade das diferentes práticas educacionais e não em seus produtos por exemplo o fracasso escolar A realidade é movente e portanto o princípio que orienta nossas práticas precisa detectar forças tendenciais direções e movimentos que escapem ao plano das formas constituídas O que está em causa na postura que estamos adotando é o combate tanto da noção de mundo dado de educação e escola instituídas quanto da noção de sujeito transcendental de aluno de trabalhador em educação e de psicólogo combate a essas noções que não sejam forjadas nas práticas que as engendram Tratase de uma posição política que busca desnaturalizar o mundo e o sujeito e aposta na transformação do Aletheia 25 janjun 2007 112 que está instituído É a partir dessa postura ética que vislumbramos caminhos para operar uma torção nas práticas psi em educação O que seria fracasso escolar na perspectiva que apontamos Como essa direção proposta pode contribuir para a produção de atitudes que privilegiem práticas psi que dignificam a vida A resposta talvez seja produzir uma política de invenção Não sendo uma disciplina fechada não se pode pretender também que seja um saber para ser meramente aplicado ou seja não se trata de aplicar a Psicologia ao campo da Educação Seguindo Kastrup 1999 p16 nas suas formulações diríamos que a prática do profissionalpsicólogo é atuar como um aprendizartista mantendo em sua prática diária a tensão permanente entre a problematização e a ação Nesse sentido tratase de uma tomada de posição política uma vez que está envolvida na posição que deseja o já feito as formas prontas uma moral conservadora uma política de manutenção das formas de existência estabelecidas e de desqualificação da invenção e da diferença Por outro lado quando as formas de ação perdem sua garantia de neutralidade elas se constituem em instrumentos importantes para a efetuação de mudanças no plano coletivo de novas políticas no campo da Psicologia e da Educação No momento em que o objeto das disciplinas perde a eternidade o saber que sobre ele pode se produzir também está sempre em vias de se constituir Portanto um importante desafio que se coloca é problematizar as praticas dos psicólogos no campo da Educação não apenas para podermos esboçar novas saídas para os impasses vividos mas principalmente para promover outras perguntas Perguntarproblematizar nossas práticas é desnaturalizálas pois ao serem consideradas como da ordem da natureza obviamente já dadas não nos provocam tornando endurecidos os sentidos e as relações da interface Psicologia e Educação As perguntas que formulamos partem assim de uma postura que coloca entre parênteses as realidades dadas visando a elaborar um olhar crítico da experiência do presente Como realizar a análise e produzir novas estratégias para interferir no que foi produzido no âmbito da educação no que diz respeito ao fracasso escolar Nossa apostaproposta é que a operação no concreto para a realização dessa tarefa é a prática da transversalização pautada numa rede de produção de saberes coletivos que produzem intervenções no que está instituído no âmbito do debate sobre o fracasso escolar e não seu uso para constatar diagnosticar ou explicar essa realidade As nossas preocupações giram em torno da problematização dos processos de produção do fracasso escolar que têm caminhado mais no sentido da individualizaçãoprivatização do que numa concepção de fracasso como efeito da produção de práticas educacionais eou psicológicas Esse modo de interrogar essas questões faznos tomar em análise uma maneira de organização das disciplinas que vêm marcando fronteiras muitas vezes rígidas na definição de seus objetos de pesquisa eou interesse Benevides Passos 2000 p 74 Não é suficiente a flexibilização das fronteiras disciplinares que se pode operar por meio de procedimentos que somam disciplinas para dar conta de determinados objetos multidisciplinaridade ou produzir um saber específico a partir de uma zona de interseção entre elas que seria a interdisciplinaridade Mas tanto num caso como no outro temos movimentos que se limitam a uma articulação entre os termos Aletheia 25 janjun 2007 113 considerados a priori e que se entrecruzariam e não relações que se efetivam num processo de coengendramento aberto para outras possibilidades de composição Romper com essas fronteiras rígidas implica construir planos de análise que privilegiam a relação que constitui os termos Assim o princípio da transdisciplinaridade que afirmamos não mantém a idéia de disciplinas independentes em contato umas com as outras ou seja uma relação de conjugação entre dois domínios definidos estáveis resultando num terceiro que se constituiria numa nova identidade como é o caso da Psicopedagogia A perspectiva transdisciplinar a que nos referimos não busca estabilidade mas a interferência entre as disciplinas intervenção que desestabiliza um saber disciplinar visando a uma transformação nos modos instituídos de funcionamento nos diferentes campos disciplinares Assim o viés interdisciplinar que perfila de forma dualista o processo de constituição das disciplinas e suas articulações ao se insinuar nas práticas no campo da Psicologia acaba por fixar territórios fechados de campos disciplinares o que pode dificultar a construção de novos arranjos institucionais que possam se constituir em efeitos de polifonia Esse modo de tratar essa questão significa afirmar que tanto o objeto quanto o sujeito e o sistema teórico ou conceitual com o qual ele se identifica são efeitos que emergem de um plano de constituição atravessado também por aspectos estéticos éticos econômicos políticos e afetivos não tendo assim a unidade e homogeneidade de uma disciplina ou de um campo científico Barros 2005 Problematizar os limites de cada disciplina é argüilas em seus pontos de congelamento e universalidade nomadizar as fronteiras dos campos de saber tornando as instáveis fazendoas planos de criação de outros objetossujeitos Declaramos a urgência de analisar esse campo de produção de experiências e de conhecimentos que se atualiza na interface Psicologia e Educação avaliando os efeitos dessas práticas sobre os corpos Se perseguirmos a compreensãotransformação dos processos em curso nesse campo é necessário definir mais detalhadamente os mecanismos envolvidos na produção dessas práticas descrevendo o que incide na sua composição os valores que estão implicados ou seja destrinchar essas misturas longe de unidades estáveis já que essas falariam de identidades Transversalizar as disciplinas na direção que buscamos imprimir tem portanto o sentido de conjugar forças de impedimento e forças de resistência que constituem ações concretas no plano da experiência das práticas em Psicologia e Educação Esse modo de operar o saber psi implica interrogar os modos verticalizadoshierarquizados de funcionamento desse saberfazer no campo da Psicologia que operam por totalização unificação e ao invés de afirmar suas condições de enunciação coletiva privilegiam agenciamentos estereotipados O conceito foi criado no contexto da análise institucional dos anos 60 numa transformação e desvio em relação ao conceito de transferência e contratransferência e ao de hierarquia institucional Sua importância neste texto é precisamente pelo fato de ser um conceito ferramenta que emerge num cenário de fechamento da experiência e de crise Benevides Passos 2003 p9 E é esse o sentido que buscamos dar à comunicação entre os campos disciplinares Com esse objetivo a proposta deste texto é contribuir para o debate sobre a Aletheia 25 janjun 2007 114 questão do fracasso escolar buscando instituir outras práticas que possibilitem pensar a própria posição das disciplinas envolvidas na produção do chamado fracasso escolar numa direção que ao abrirse para processos inventivos recusa as hierarquias e as totalidades conjura os absolutos não busca garantias transcendentais e se define por uma abertura por um processo de comunicação rizomática que tem o sentido de uma dinâmica de comunicação multivetorializada ou transversal Neste artigo indicamos as novas roupagens que o tema assume nos anos 90 e os pressupostos teóricopolíticos do campo da Psicologia e da Educação que permeiam o objeto fracasso escolar Fracasso escolar a confirmação de supostas deficiências Os pressupostos da teoria do capital humano aliados às explicações advindas das teorias da marginalidade e carência cultural constituíramse em ferramentas estratégicas na elaboração das políticas educacionais nos anos 60 e 70 e em políticas sociais de cunho compensatório que tentavam conter conflitos sociais As produções teóricas conhecidas aqui no Brasil como teoria da carência ou deficiência cultural emergiram nos EUA nos anos 40 Porém foi com os movimentos contestatórios das minorias raciais lá ocorridos nos anos 60 que essas teorias ganharam novo fôlego Transplantados para o Brasil nos anos de 1970 tais programas objetivavam substituir a família das camadas populares considerada por alguns educadores e psicólogos incapaz de estimular adequadamente seus filhos Com esse fim absorviase precocemente a criança na escola com o intuito de suprir as supostas carências nutricionais cognitivas afetivas e culturais Patto 1983 Nesse processo algumas produções no campo da Psicologia fertilizaram o terreno da individualização do desempenho escolar e das desigualdades sociais desenvolvendo pesquisas e explicações teóricas que tinham como foco a caracterização psicológica dos chamados grupos desfavorecidos Ressaltamos que essa caracterização era empreendida tendo como parâmetro para comportamentos atitudes hábitos estilo lingüístico modos de sociabilidade entre outras categorias encontradas em grupos sociais de maior poder aquisitivo Dessa forma diversos pesquisadores ao se pautarem em normas de comportamento previamente estabelecidas e em arcabouços científicos pretensamente neutros e portanto generalizáveis traçaram um perfil psicológico que colocava e coloca ainda hoje as famílias e as crianças das camadas populares no lugar de carentes e faltosos Reduzindo a compreensão das desigualdades sociais e educacionais a relações causais diretas essas concepções naturalizaram a qualificação e um suposto déficit cultural como fatores determinantes do desempenho dos sujeitos mantendo em suspenso os embates travados em torno do ensino público e das concepções que permeiam as práticas educacionais e psicológicas Novos olhares sobre o tema fracasso escolar o que se repete Na década de 80 demarcada pelos estertores do regime militar e pelas tentativas de democratização políticoinstitucional o foco das análises no âmbito educacional foi a democratização das oportunidades de ensino Nesse sentido o fracasso escolar Aletheia 25 janjun 2007 115 permaneceu como questão mas aí tematizado como um dos fatores que colocavam em xeque as proposições de democratização do ensino brasileiro O que aproximam algumas dessas análises mesmo que tenham partido de princípios políticos e filosóficos diversos é a compreensão de que o fracasso escolar é o elemento que permite vislumbrar as intensas desigualdades sociais instituídas no País Desigualdades essas que se materializam também no espaço educacional Como explicar a inexistência de escola para todos e as desigualdades educacionais e sociais O fracasso escolar era um dos problemas que colocava a nu naquele momento a realidade discriminatória e desigual da sociedade brasileira interrogando as políticas públicas vigentes O prometido compromisso do Estado com a educação pública podia ser argüido nos parcos investimentos destinados ao sistema público de ensino na inexistência de prédios escolares em várias regiões do País fazendo com que crianças em idade escolar estivessem fora da escola ou caminhassem vários quilômetros para chegar à escola disponível E ainda nas dificuldades diárias a serem enfrentadas como falta de condições financeiras para arcar com custos do uniforme e material escolar de merenda escolar de transporte de livros dentre outras Entretanto é importante assinalar que não houve apenas um vetor crítico de análise dessa problemática Várias foram as pesquisas e análises desenvolvidas com a contribuição de aportes da Psicologia Educacional que assinalaram a responsabilidade das famílias dos professores e da própria escola no desempenho escolar dos alunos Essas análises acabaram por corroborar a psicologização do desempenho escolar individualizandoo e naturalizandoo Percorrendo um outro caminho de abordagem dessa problemática produziramse no Brasil várias análises críticas Benevides 1997 Patto 1990 1983 que ultrapassavam a compreensão causal e reducionista que caracterizou boa parte dos estudos com relação ao fracasso escolar No lugar de procurar as causas determinantes do desempenho escolar na vida familiar dos alunos abordada na maioria das pesquisas como espaço pobre de estímulos sociais cognitivos e culturais ou em fatores de ordem biológica ou ainda nos chamados fatores intraescolares faziase necessário apreender esse processo em sua ordem de complexidade Ou seja partir não do objeto mas das práticas que o constituem Oliveira 2001 destaca algumas regularidades ainda em funcionamento nas análises e práticas educacionais voltadas ao entendimento dessa questão O que se repete segundo a autora é a naturalização do fracasso escolar como um objeto já dado uma verdade a ser descoberta com o apoio de pressupostos científicos que segregam e silenciam outros saberes que escapam às leis universais e transcendentes Ao avaliar selecionar e hierarquizar certos comportamentos dissonantes como distúrbios e dificuldades como cópias degradadas a serem corrigidas sua potência desestabilizadora das práticas instituídas é esvaziada intensificando a tutela do processo de aprendizagem dos alunos Nessa mesma direção de análise Benevides 1997 aborda o fracasso escolar como elemento analisador das redes de culpabilização infantilização e desqualificação em meio às quais se produzem subjetividades fracassadas repetentes Ao manter as análises acerca do desempenho escolar nessas redes excluímos os fatores político sociais que produzem as condições de repetência e fechamos as portas para algumas Aletheia 25 janjun 2007 116 perguntas o que a repetência tem a nos dizer Não haveria aí movimentos que tentam afirmar outros processos de aprendizagem outras maneiras de viver que recusam as formas de subjetividade homogeneizadas O que essa deserção dos modos instituídos de aprender ensinar e viver tem enfim a nos dizer Fracasso escolar e sucesso escolar novas regulações Nas duas últimas décadas as políticas governamentais implementadas no campo da educação pública tiveram como propósito transformar o fracasso em sucesso Ou seja visaram a superar a chamada cultura do fracasso escolar por meio de várias estratégias tais como programas de correção de fluxo escolar progressão automática de alunos e classes de reforço Assim reduzir custos otimizar recursos públicos corrigir panes no fluxo de entrada e saída de alunos planificar os currículos por meio de parâmetros nacionais descentralizar a administração dos sistemas de ensino instituir procedimentos de avaliação do produto escolar foram procedimentos utilizados para elevar a produtividade e a qualidade do sistema público de ensino Porém cabe discutir quais concepções de qualidade e produtividade nortearam essas reformas do ensino público A produtividade da escola e sua qualidade são fatores que não se separam nem se opõem e permeiam o esforço de todos aqueles que se dedicaram às lutas para efetivar a escola pública como direito social e político Contudo produtividade e qualidade não são noções abstratas e etéreas ou ainda invariantes pois que seu sentido se constitui historicamente Nas reformas educacionais elaboradas pelo governo federal e por vários governos estaduais e municipais o pressuposto que delinearia a qualidade e produtividade da escola esteve focalizado nos resultados apresentados ou seja no seu desempenho e não no interesse coletivo Entendendo que não podemos reduzir as questões do sistema educacional aos problemas de ordem quantitativa consideramos que um grande desafio é analisar a qualidade do serviço ofertado a evasão e a repetência não como obstáculos a serem vencidos para que a garantia do acesso à escola se efetue É importante analisar esse quadro a partir do que se produz no cotidiano de trabalho Freqüentemente as reformas educacionais impõem pacotes de reversão dos problemas que ocorrem na escola pública sem levar em conta a experiência dos profissionais do ensino tecida no cotidiano dos estabelecimentos educacionais Conforme sinaliza Schwartz 2003 a diferença entre o trabalho prescrito e a atividade realizada mostra que uma forma de qualidade já está se fazendo no processo de trabalho e que esta se expressa na recriação de saberes para dar conta da variabilidade das situações de trabalho Os parâmetros que definem o que é ou não ensino de qualidade variam e isso ocorre porque a especificidade do trabalho docente as demandas com relação à escolarização e os objetivos e desafios colocados para a escola não se mantêm sempre os mesmos Então do mesmo modo que não podemos negar que a escola pública no Brasil apresenta problemas sérios do ponto de vista da qualidade do serviço público prestado à população não concordamos que as estratégias de produção de qualidade da escola empreendidas nas reformas educacionais atendam aos anseios dos profissionais do ensino dos estudantes e de suas famílias Uma política de qualidade requer a análise e o enfrentamento das condições históricas nas Aletheia 25 janjun 2007 117 quais os processos de escolarização se efetuam Como traçar metas de qualidade do ensino sem alterar os modos de funcionamento da escola sem delimitar o número de alunos por turma e sem ampliar o quantitativo de profissionais de ensino que atuam na escola E ainda sem instituir processos de formação desses profissionais que estejam vinculados ao trabalho que realizam O que significa transformar o fracasso em sucesso sem alterar as condições de trabalho na escola É possível medir a qualidade do ensino com avaliações padronizadas A transposição de padrões de produtividade aplicados a outros setores da produção para a escola é uma operação delicada não só porque se trata de trabalhos com especificidades diferentes como também porque o ensino público não é uma mercadoria como as outras A heterogeneidade entre as escolas públicas demanda a formulação de diretrizes de qualidade e produtividade situadas que abarquem a diversidade existente no lugar de padrões de qualidade e produtividade ditados externamente às escolas concebidos para maximizar os resultados por meio da otimização de recursos materiais e humanos Estudo realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira INEP em outubro de 2003 mostrava que o Brasil tinha 26 milhões de professores na educação básica e superior Em relação à infraestrutura das escolas 45 dos profissionais da educação trabalhavam em escolas sem laboratório de informática 80 não contavam com laboratórios de ciências 45 trabalhavam em escolas sem bibliotecas No Nordeste esse percentual era de 66 Os professores da Região Sudeste ganhavam em média duas vezes o salário dos professores que atuavam no Nordeste O professor da educação infantil recebia um salário 20 vezes menor do que o de um juiz O número de alunos por sala situavase em torno de 37 estudantes Assim qualquer política de qualidade que se pretenda eficaz deve considerar essa realidade diversa e desigual que demarca o sistema de ensino brasileiro Como mostram Athayde e Brito 2003 mesmo tendo normas comuns as escolas públicas recriam essas normas desenhando um universo muito mais rico e ao mesmo tempo mais cruel do que supõem aqueles que traçam os atuais mecanismos de regulação da escola As escolas como os serviços de saúde são locais de trabalho onde há normas comuns ao conjunto da rede a que estão vinculadas No entanto existem normas específicas nem sempre formalizadas de forma escrita em cada escola devido à sua localização geográfica e às características da clientela entre outros fatores Como outras atividades do serviço público tratase de trabalho fortemente marcado pela singularidade envolvendo conflito de valores tanto os adjacentes ao trabalho educativo quanto os definidos pelos grupos que desenvolvem esse trabalho em cada escola Athayde Brito 2003 p 243 É preciso então dar um outro passo pois se as políticas governamentais implementadas passam a ter como propósito transformar o fracasso em sucesso ou seja se já não falamos mais em fracasso mas apenas em sucesso é preciso ouvir com atenção os trabalhadores do ensino para apreender como lidam com essas formulações no cotidiano de trabalho e as modulações que fabricam O que se nota é que a mudança Aletheia 25 janjun 2007 118 2 Esse é um trecho da entrevista realizada com a poeta Hilda Hilst em 1997 publicada no jornal O Estado de S Paulo 31 de maio 1997 Caderno 2 p D7 de foco não teve como correlato a ruptura das classificações desqualificações e hierarquizações que permeiam as práticas de avaliação Ao contrário o que se percebe é que essas concepções ganharam novas roupagens Segundo Frigotto 1995 1998 as novas combinações efetuaramse intensificando e complexificando os mecanismos classificatórios Tais modulações ampliaram o controle sobre as escolas por meio das avaliações externas e dos parâmetros curriculares nacionais O postulado do sucesso acaba sendo desmentido na inexistência de condições que o materializem Nesse sucesso escolar a ênfase recai nas atitudes no comportamento na socialização Porém aspectos importantes como o acesso ao conhecimento ficaram na penumbra Outros aspectos relativos às políticas que visam ao sucesso escolar devem ser ressaltados lembrando sempre que não somos contrários ao sucesso escolar dos estudantes Contudo consideramos relevante problematizar que sucesso é esse Para quê Como se constitui Oliveira 2001 sinaliza alguns problemas que ocorreram devido à adoção de mecanismos de ajuste do fluxo escolar Analisando os procedimentos utilizados na Rede Estadual de Ensino de Minas Gerais no período 19901998 a autora indica que as medidas efetuadas produziram um crescimento homogêneo da matrícula Entretanto essa rapidez no fluxo de alunos pode indicar um processo de aceleração da escolarização ou da certificação da escolaridade Oliveira 2001 p 90 e que dependendo da forma como esse processo estiver ocorrendo pode resultar na deterioração da qualidade do ensino fundamental público Novos desafios outros possíveis no encontro da Psicologia com a Educação As freiras onde eu estudava ficavam desesperadas A que ensinava aritmética chegava e dizia Tenho três galinhas Uma enquanto estava caminhando se perdeu A outra morreu Quantas galinhas sobraram Aí eu começava Mas por que a galinha morreu E a outra Como se perdeu Como é que alguém perde uma galinha Mas quem estava tomando conta delas não sabe dar explicações Aí criava uma situação A Freira respondia Não precisa saber o porquê Eu queria a história desta galinha perdida morta 2 O que fazer com os alunos perdidos no caminho Perguntar e buscar o como e os porquês não é o que se espera de um bom aluno Não dar as respostas esperadas não tem o sentido de uma recusa a se submeter às sobrecodificações impostas pelos projetos educacionais prescritos Aletheia 25 janjun 2007 119 Como o espaço escolar lida com esse nãosaber Como dar passagem a outras aprendizagens a outras formas de subjetividade a outras vidas possíveis Como romper com o território do fracasso e do sucesso escolar e construir outros para além do fracasso e do sucesso Qual a importância de tal formulação Para que nos interessa a nós psicólogos e educadores esse modo de apreensão da questão do fracasso escolar Não se trata de colocar mais uma definição sobre fracasso escolar nas prateleiras acadêmicas para alimentar o debate sobre as chamadas dificuldades de aprendizagem Só nos interessam os conceitos e estratégias metodológicas que sirvam para inventar outrosnovos modos de intervir nas situações que se atualizam nos estabelecimentos educacionais Vamos tomar como situaçãocaso o modo como temos operado nas escolas onde temos trabalhado Nas intervenções que realizamos nos sistemas municipais de ensino na Grande VitóriaES trazemos essa temática para o debate priorizando o uso de dispositivos como a grupalização das questões que afetam a escola e dentre essas questões a do fracasso escolar Por entender que os processos de formação não se dissociam dos processos de gestão do cotidiano escolar lançamos mão de rodas de conversa com profissionais da educação buscando com eles fabricar estratégias de ação que permitam ampliar as análises sobre o desempenho dos alunos para além das culpabilizações e individualizações já instituídas Tomando como eixo as práticas nas escolas propomos portanto a utilização de uma metodologia pautada na experiência dos educadores no seu fazer cotidiano Trata se de uma estratégia que se efetiva no esforço coletivo incorporando à produção de conhecimento o saber que os trabalhadores desenvolvem a partir da experiência no trabalho educacional transformandoo em rico material para o debate sobre a produção do fracasso escolar Essa é uma perspectiva que considera que é no encontro e no diálogo com o outro que o humano se constitui a si e ao mundo Nesse contexto a linguagem emerge de um viver junto entrelaçada com as emoções É o que Maturana 2002 chamou de conversar Conforme esse autor todo viver humano constituise nessa prática cotidiana de rede de conversações O humano se constitui nesse movimento de viver e conversar É no conversar que acontece o viver humano a convivência com o outro e é nesse espaço de conversa que emerge a possibilidade de mudar nos modos de viver amar trabalhar pensar Essa estratégia metodológica busca então acompanhar esse movimento plástico dos humanos para produzir um regime de produção de conhecimentossaberes sobre a temática em tela e colocála em movimento A metodologia visa a criar condições que viabilizem o encontro e o diálogo entre os atores envolvidos nesse debate Esse regime de produção de conhecimentosaberes quando priorizado no âmbito das práticas pedagógicas contempla esse caráter dos seres vivos que é estar em movimento em atividade Nessa direção de análise o conhecimento científico tem seu modo específico de funcionar tem limites e potencialidades e não pode se impor de forma incontestável no cotidiano das escolas Com relação a tudo o que é humano fica algo sempre enigmático ou invisível para a ciência algo que emerge no diálogo e no confronto com os protagonistas dos processos de trabalho Athayde Brito 2003 Aletheia 25 janjun 2007 120 Na interface Psicologia e Educação é fundamental a construção dessas estratégias pautadas no diálogo dinâmico entre os pólos da ciência e da experiência da prática dos educadores Também é preciso construir práticas educacionais que sejam condizentes com os princípios de uma política pública de educação entendida como o plano coletivo e portanto referentes à experiência concreta dos coletivos construídos a partir das experiências de cada um dos humanos A proposta é assim pôr em ação práticas educacionais em parceria uma coelaboração em um espaço onde cada pólo de saber pode ampliar seus horizontes reformular suas próprias questões suas formas de colocar as questões fortalecendoos para recolocar novas questões um para o outro O diálogo crítico baseado na possibilidade de fazer do confronto um motor no processo de aprendizagem é um elemento importante para que o saber da experiência seja afirmado e se efetive o diálogo com o conhecimento científico Dialogando aprende se a ouvir entender e discordar exercitando o debate e a crítica de modo que nesse movimento afirmamos inventamos e ampliamos conhecimentos e saberes Convocar o saber presente no pólo das disciplinas científicas não é necessariamente se subordinar a esse saber O que se propõe é que se proceda a uma discussão pautada num acordo sobre valores comuns sobre a diferença entre saberes sobre a capacidade de criar novos modos de trabalhar enfim comviver Quem pode gerar mudanças nas formas de produção de sujeitosalunos educadores do agir em educação é o movimento de vida esse movimento expansivo que se afirma nas atividades industriosas dos humanos Diríamos ainda que esse modo de operar não pode se tornar um regime meramente operacional e tecnicista Nesse sentido é que podemos dizer que estamos propondo um processo que se efetive num movimento que se dá sempre entre no processo sem começo nem fim Um diálogo efetivo entre os diferentes saberes no qual os conteúdos conhecimentos e experiências circulem em espiral uma forma que visa a ampliar nossa capacidade de escuta compreensiva do outro Porém entendemos também que a análise sobre o que se passa na escola não deve ficar contida em seus muros Muitos são os atores envolvidos com a escola e quanto maior for o grau de comunicação entre esses atores maior será a possibilidade de resolver os problemas vividos no cotidiano Em um dos municípios em que efetivamos nossas pesquisas lideranças populares constituíram uma comunidade ampliada de pesquisa em educação visando a mapear as condições de trabalho e estudo nas escolas públicas do município bem como interferir nos rumos das políticas governamentais em Educação A produção do fracasso escolar não é portanto um destino inexorável Tentamos neste texto afirmálo como produzido a partir de um modo de existência que define distribui e fixa competências e incompetências na escola O desafio para a Psicologia é problematizar essa maquinaria modelizadora em que muitas vezes se constitui o espaço escolar afirmandoo como usina de conhecimento de invenção de novas formas subjetivas Como nos diz Rocha 1996 p 179 A vida escolar pode se desdobrar em perspectivas que a façam sair da condição de usuária dos paradigmas instituídos transformandose em usina de Aletheia 25 janjun 2007 121 conhecimento E essa escolausinadeconhecimento está ali onde os humanos lutam suam e criam cabe dar visibilidade e dizibilidade a esses movimentos que aliançados com o invisível vão produzindo objetos e sujeitos não modelizados Oliveira 2001 p 237 Referências Athayde M Brito J 2003 Trabalho educação e saúde o ponto de vista enigmá tico da atividade Revista Trabalho Educação e Saúde 12 239265 Barros M E B Fonseca T M G 2004 Psicologia e processos de trabalho um outro olhar Psico 352 3551 Barros M E B 2005 Desafios éticopolíticos para a formação dos profissionais de saúde transdisciplinaridade e integralidade Em R Pinheiro Ensinar saúde a integralidade e o SUS nos cursos de graduação na área da saúde Rio de Janeiro IMSUERJ CEPESQ ABRASCO Benevides R 1997 Subjetividade repetente Contemporaneidade e Educação 22 111129 Benevides de Barros R Passos E 2000 A construção do plano da clínica e o conceito de transdisciplinaridade Psicologia Teoria e Pesquisa 1617179 Benevides R Passos E 2003 Política Nacional de Humanização HumanizaSUS políticas da transversalidade ou a transversalização como método clínicopolítico pp 318 CampinasSP Oficina de trabalho dos consultores PNH Benevides R Passos E 2005 Humanização na saúde um novo modismo Interface Botucatu 917 389394 Brasil Ministério da Educação e Cultura Estatística dos Professores no Brasil outu bro 2003 Brasília INEPMEC Disponível wwwmecgovbr Acesso 20 out 2003 Foucault M 2000 Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento Rio de Janeiro Forense Universitária Frigotto G 1995 Os delírios da razão Petrópolis Vozes Frigotto G 1998 Educação crise do trabalho assalariado e do desenvolvimento teo rias em conflito Em G Frigotto Educação e crise do trabalho perspectivas de final de século Petrópolis Vozes Kastrup V 1999 A invenção de si e do mundo uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição Campinas Papirus Maturana H 2002 De máquinas e seres vivos autopoiese a organização do vivo Porto Alegre ArtMed Oliveira S P de 2001 Micropolítica do fracasso escolar uma tentativa de aliança com o invisível Dissertação de Mestrado não publicada Programa de Pós Graduação em Educação Universidade Federal do Espírito Santo Vitória Patto M H S Org 1983 Introdução à Psicologia Escolar São Paulo T A Queiroz Patto M H S 1987 Psicologia e Ideologia São Paulo T A Queiroz Patto M H S 1990 A produção do fracasso escolar histórias de submissão e rebel dia São Paulo T A Queiroz Aletheia 25 janjun 2007 122 Rocha M L 1996 Do tédio à cronogênse uma abordagem éticoestéticopolítica da prática escolar Tese de Doutorado não publicada Programa de PósGraduação em Psicologia Clínica Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Schwartz Y 2003 Travail et ergologie Toulouse Octares Zourabichvili F Deleuze e o possível Em É Alliez Org Gilles Deleuze uma vida filosófica pp 5476 São Paulo Editora 34 Recebido em maio de 2006 Aceito em outubro de 2006 Ana Lucia Coelho Heckert é psicóloga Doutora em Educação professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo Maria Elizabeth Barros de Barros é psicóloga Doutora em Educação professora do Departamento de Psicologia e do Programa de PósGraduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo Endereço para correspondência anaheckertuolcombr O enredo do filme Capitão fantástico trás a amostra uma família de sete pessoas com o pai cujo nome é Bem e seus seis filhos que possuem a sua habitação baseada em aspectos naturais da floresta utilizandose da caça exercícios físicos diários fazem rituais seguindo o roteiro de uma sociedade primitiva Concomitantemente a isso há o momento de leitura com uma icônica biblioteca no meio da selva aprendem música e até mesmo possuem o discernimento de refletir sobre questões de uma profundidade abstrata das relações humanas Assistir ao filme é embarcar na possibilidade da construção de uma sociedade utópica em que a chama da consciência aquela que a mitologia grega atribui a Prometeu a responsabilidade de têla oferecido aos humanos consegue ter uma relação harmônica com os princípios naturais e instintivos da vida É notória a preocupação do pai com uma rotina estruturada sobretudo no diz respeito a questão da aprendizagem e intelectualidade incentivandoos à leitura e à aprendizagem de outros idiomas e matérias do conhecimento que são comumente ministrados em instituições de ensino deixando evidente a sua relação com o artigo as concepções de infância e as teorias educacionais modernas e contemporâneas de Paulo Ghiraldelli Jr É de extrema importância notar a metodologia de ensino e aprendizagem sob condições que não são tão adequadas para isso não visa à aprovação dos filhos em universidades nem ao preparo deles para o mercado de trabalho Semelhante aos artigo os estudos de Herbart começa com a preparação fórmula que envolve a atividade do professor com o envolvimento do conteúdo já apreendido outrora com o escopo de fixar Já Dewey por sua vez não vê necessidade de um tal procedimento pois ele acredita que o processo de ensinoaprendizagem tem início quando pela atividade dos estudantes eles se defrontam com dificuldades e problemas tendo então o interesse aguçado Ben procura transmitir às crianças valores como o cuidado com a saúde a importância do contato com a natureza dos exercícios físicos e da alimentação a sustentabilidade o desenvolvimento de senso crítico e a criatividade a valorização do conhecimento entretanto no desenrolar da narrativa as falhas na educação provida por Ben vão sendo aos poucos evidenciadas A maior delas pode ser observada na falta de socialização das crianças e nas consequências provocadas pela atitude extremista de criálas em isolamento A educação de Ben se mostra enriquecedora motivo da frase de sua esposa em determinada cena do filme Criamos o Paraíso fora da República de Platão Nossos filhos serão reis filósofos Logo podese concluir que as teorias educacionais pósmoderna não está nem do representam uma mudança de paradigma pois não necessariamente precisa ter uma noção de infância para dissertar sobre a educação ela quer é estar atenta às novas metáforas A educação pósmoderna então pode finalmente fazer educação sem ter de perguntar se Pinóquio por ter cabeça de pau deve ou não estar na escola É urgente a necessidade de reestabelecermos uma relação harmônica com o trabalho em que ele possibilite nosso desenvolvimento como ser humano e que cumpra seu propósito primário que é oferecer um produtoserviço que servirá positivamente a sociedade recompensando de maneira justa as pessoas que trabalham por isso Num olhar simplório isso não deveria ser danoso ao indivíduo ou seja não deveria causar adoecimento A nossa jornada de vida não é um caminho prescrito e em si é um processo de aprendizado Por outro lado precisase ter um papel ativo na aceitação e compreensão de padrões antagônicos sabendo que são eles que propiciam equilíbrio dinâmico quando aplicados harmonicamente A existência de um lado não deve ser a razão para reprimir a existência do outro lado