·
Medicina ·
Ética Geral e Profissional
Envie sua pergunta para a IA e receba a resposta na hora
Recomendado para você
7
Abordagem dos Profissionais de Saúde em Instituições Hospitalares para Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência
Ética Geral e Profissional
FAMESC
5
Regulamento para Inscrição de Trabalhos Técnico-Científicos na VII Expociência Universitária
Ética Geral e Profissional
FAMESC
2
Ética e Atuação Profissional em Casos de Atendimento Psicológico para Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência: Uma Revisão da Literatura
Ética Geral e Profissional
FAMESC
26
Abordagens sobre Diretivas Antecipadas da Vontade no Brasil
Ética Geral e Profissional
UNIFACIMED
8
Introdução aos Conceitos de Ética e sua Relação com a Sociedade
Ética Geral e Profissional
UNISA
1
Análise da Nulidade do Auto de Prisão em Flagrante do Advogado Jair
Ética Geral e Profissional
FMU
12
Introdução aos Conceitos de Ética e Bioética
Ética Geral e Profissional
CESA
1
Pesquisa sobre Carreira de Advogados e Ética Profissional
Ética Geral e Profissional
UNIFTC
1
Data de Entrega: Amanhã às 17h20
Ética Geral e Profissional
UEG
Texto de pré-visualização
Journal of Public Health Universidade de São Paulo Faculdade de Saúde Pública VOLUME 34 NÚMERO 6 DEZEMBRO 2000 Revista de Saúde Pública p 65965 Implicações éticas da violência doméstica contra a criança para profissionais de saúde Ethical implications of child abuse for the health care professionals Ana L Ferreiraa e Fermin R Schrammb aDepartamento de Pediatria do Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira da Universida de Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro RJ Brasil bDepartamento de Ciências Sociais da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro RJ Brasil FERREIRAa Ana L0 e Fermin R Schrammb Implicações éticas da violência doméstica contra a criança para profissio nais de saúde Rev Saúde Pública 34 6 65965 2000 wwwfspuspbrrsp 659 659 659 659 659 Rev Saúde Pública 200034665965 wwwfspuspbrrsp Implicações éticas da violência doméstica contra a criança para profissionais de saúde Ethical implications of child abuse for the health care professionals Ana L Ferreiraa e Fermin R Schrammb aDepartamento de Pediatria do Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira da Universida de Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro RJ Brasil bDepartamento de Ciências Sociais da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro RJ Brasil Recebido em 281999 Reapresentado em 262000 Aprovado em 182000 Correspondência paraCorrespondence to Ana Lúcia Ferreira Departamento de PediatriaFiocruz Av Brigadeiro Trompowsky snº 3o andar 21941590 Ilha do Fundão Rio de Janeiro RJ Email anaferrgblcombr Resumo Baseandose em alguns problemas com os quais profissionais de saúde se deparam no atendimento a crianças vítimas de violência discutemse as implicações éticas da interferência na dinâmica familiar utilizada para promover a proteção dessas crianças Partindo do princípio de que a violência contra a criança é prima facie moralmente errada abordase a questão dos direitos da criança e discutese a intervenção praticada a partir de algumas teorias éticas conseqüencialismo utilitarismo e deontologia Concluise que uma interferência que proteja a criança tentando preservar a integridade familiar sempre que possível é moralmente justificável Abstract Based upon some problems faced by health professionals in the care of abused children this is a discussion of the ethical implications in family interventions aiming to protect these children Accepting the prima facie principle that violence is morally wrong some issues related to the childrens rights as well as some ethical theories such as consequentialism utilitarianism and deontology are discussed The conclusion is that the protection of these children is morally justifiable and the maintenance of the families unity should always be attempted Descritores Violência doméstica Relações profissionalfamiliar Maustratos sexuais infantis Ética Atitude do pessoal de saúde Keywords Domestic violence Professional family relations Child abuse sexual Ethics Attitude of health personnel INTRODUÇÃO Transformações sociais recentes têm questionado valores vigentes em nossa sociedade delineando uma transição paradigmática no campo da ética carac terizada pela passagem de modelos de comportamento baseados em deveres absolutos para modelos de de veres prima facie e contextualizados210 Como conseqüência os profissionais de saúde vêm se confrontando com novos e desafiadores problemas em sua prática cotidiana dentre os quais destacase a violência contra a criança A palavra violência tem uma conotação negativa por que vinculada à noção de ato moralmente repro vável isto é contra o qual existe uma presunção ne gativa de tal forma que quem comete intencional mente este tipo de ato é obrigado a justificálo mos trando que existem boas razões em princípio mais fortes que a presunção negativa que temos contra ele10 Esta noção de violência expressa uma posição normativa que não implica necessariamente que todo ato violento seja moralmente reprovável per se Tal é o caso da violência por legítima defesa Assim sendo para caracterizar um ato como violento devem ser Atualização Current Comments 660 660 660 660 660 Rev Saúde Pública 200034665965 wwwfspuspbrrsp Ética da violência contra crianças Ferreira AL Schramm FR preenchidas pelo menos as seguintes condições cau sar um dano a terceiros usar a força física ou psíqui ca ser intencional e ir contra a livre e espontânea vontade de quem é objeto do dano10 A violência é um problema social e histórico pre sente em todas as sociedades Na área da saúde públi ca no País no entanto apenas nas últimas décadas tem sido objeto de atenção especial havendo atual mente forte demanda para intervenção naqueles ca sos considerados moralmente reprováveis Ao tentar responder esta demanda os profissionais de saúde envolvidos devem enfrentar as implicações morais da intervenção A dificuldade que esses pro fissionais têm ao confrontarse com alguns procedi mentos específicos como a notificação dos casos ao sistema legal tem sido apontada pela literatura espe cializada Além disso temse notado que a interfe rência na dinâmica familiar que é fundamental na assistência aos casos de violência doméstica nem sempre é bem aceita pela família Sendo assim os profissionais encontramse diante do desafio de evitar as formas traumáticas de inter venção sem resvalar contudo na negligência com que o tema da violência contra crianças tem sido tratado no Brasil com raras e honrosas exceções12 O objetivo do presente trabalho é discutir no con texto da ética aplicada as implicações éticas resultan tes da intervenção dos profissionais de saúde nas rela ções familiares em que haja suspeita ou confirmação de casos de violência contra a criança Tem como base a experiência por quatro anos de um dos autores do presente trabalho em um serviço que já prestou atendi mento a mais de 300 crianças e adolescentes vítimas de violência em sua maioria violência doméstica ALGUNS ENTRAVES AO ENFRENTAMENTO DOS CASOS APESAR DELES JUSTIFICASE A INTERVENÇÃO Situações da prática clínica permitem discutir al guns aspectos morais da intervenção nos casos de vi olência contra crianças e adolescentes Os maustratos são aceitos pela família Muitas vezes o aspecto da violência é levantado pelo profissional porém não é reconhecido pela fa mília como um problema Este é o caso de uma me nina de três anos cuja queixa principal era dificul dade para urinar Ao exame físico observouse he matomas na região lombar e nos membros inferio res que haviam sido provocados pelo pai através de agressão com colher de pau Esclarecida a causa da queixa principal infecção urinária a mãe não que ria discutir a questão do abuso físico argumentando que o pai havia batido na filha para corrigir maus comportamentos A mãe acrescentou ainda que era muito grata ao próprio pai por haver lhe ensinado muitas coisas desta forma Neste caso a questão moralmente relevante é se a agressão física contra a criança mesmo tendo sido utilizada para o seu bem não deva ser considerada uma violência moralmente reprovável por vir carre gada da intenção do adulto em causar dor5 Acredita se que sim pois é pouco provável que a criança tenha consentido com tal ato A própria criança aceita a violência Há situações em que a criança relativiza o valor da agressão de que foi vítima no lar Este é o caso de um menino de nove anos no qual em consulta anual de rotina foi verificado grande hematoma na perna A mãe admitiu têlo agredido com madeira de caixote O menino argumentou que não concordava com a necessidade de consulta no Ambulatório da Família por que se tivesse caído de bicicleta ou se machuca do seria igual e se tivesse caído de um cavalo e ficado paralítico seria muito pior Neste caso que aparentemente não preenche todas as condições para que seja caracterizada a violência e confirmada a presunção negativa surge a questão de como interpretar a justificativa da criança feita por comparação com um mal maior a queda do cavalo pois podese razoavelmente questionar sua compe tência em concordar com o ato De fato embora a jurisprudência liberal tenha como um princípiocha ve que para quem consentiu nenhum mal é feito volenti non fit injuria crianças não podem ser con sideradas totalmente capazes de determinar por elas mesmas como devem viver3 Esta idéia é reforçada por diversos autores6 que defendem que a autonomia pessoal é adquirida gradualmente ao longo de um pro cesso evolutivo de interação com o ambiente socio cultural no qual a criança vai passando por estágios em seu desenvolvimento cognitivo segundo Piaget lingüístico segundo Habermas moral segundo Kohlberg e interativo segundo Selman Por isso para Holm9 a autonomia não é um fenô meno de tudo ou nada sendo portanto praticamen te impossível verificar a partir de que momento pre ciso alguém tem poder de autodeterminação Esta interpretação gradualista e evolutiva da auto nomia pode ser de interesse específico em discussões 661 661 661 661 661 Rev Saúde Pública 200034665965 wwwfspuspbrrsp Ética da violência contra crianças Ferreira AL Schramm FR sobre o status moral da criança visto que sugere ser implausível reivindicar que crianças tenham autono mia completa para decidir em que momento de seu desenvolvimento querem apanhar Por outro lado uma abordagem gradualista parece ser mais sensível à peculiaridade de cada caso po dendo ser corroborada pela observação empírica de que crianças desenvolvem continuamente suas prefe rências conforme amadurecem e que o raciocínio que está por trás dessas preferências tornase gradualmente mais sofisticado como mostraram os estudos clássi cos de Piaget e de Kohlberg Entretanto Holm9 objeta que há situações nas quais as conseqüências de se respeitar uma dada escolha autônoma será tão ruim para a pessoa em questão que o paternalismo seria desejável Além disso é difícil identificar até que ponto afirmações como as da criança representam real mente o que ela pensa ou se resultam de pressões dos adultos A criança quer a interrupção do abuso mas não deseja a punição do abusador Esta situação pode ser exemplificada com o caso de uma criança de sete anos que era manipulada em sua genitália pelo avô paterno A partir da denúncia da mãe à delegacia de polícia o avô mudouse para outro Estado e a criança passou a sofrer pressões da família que levaram a mãe a retirar a queixa meses depois A criança se sentia responsável por toda a mudança que decorreu da sua revelação e não queria que o avô fosse preso porque sabia que ele iria so frer na prisão Este caso é muito mais complexo que os anterio res Embora preencha todas as condições para carac terizar o ato de violência e moralmente reprovável introduz um elemento suplementar porque a solução do dano implica situação de duplo efeito uma vez que cria um outro dano Neste caso é importante pon derar com muito cuidado qual seria não tanto a me lhor solução mas a menos ruim Tratase de uma situação complexa visto que a so ciedade tem interesse em ver o abusador identificado e punido a criança tem o interesse de ver reconheci da sua condição de vítima e ambos têm o interesse de que o abuso cesse Mas ao mesmo tempo criase um dilema porque a solução do problema punição do abusador pode redundar num acréscimo de sofri mento para a criança separação do abusador Isso leva à conclusão intuitiva de que neste caso e em outros similares respeitando portanto a cláusula ceteris paribus só resta a possibilidade da coopera ção e da busca de um consenso entre a família e as agências de proteção à criança para que tudo se resol va da forma menos traumática para a criança evitan do que ao dano do abuso se adicionem outros danos isto é evitando as conseqüências negativas resultan tes do duplo efeito A VIOLÊNCIA CONTRA A CRIANÇA É MORALMENTE ERRADA O último exemplo nos leva a caracterizar melhor a primeira condição da violência o dano a terceiros Segundo Archard3 ninguém pode razoavelmente con testar que o abuso contra a criança seja moralmente errado e que provavelmente é um erro moral muito grave pois o dano deste tipo de abuso é duplo uma vez que atinge a própria criança e o futuro adulto em que vai se tornar Em relação à própria criança o abuso estaria violando aquilo que torna a infância especial fraqueza dependência vulnerabilidade e inocência Assim seria particularmente errado um adulto agre dir alguém que é mais vulnerável a sofrer danos e menos capaz de resistir à violência infligida além de ser dependente de seus cuidados O adulto explora portanto o poder que tem sobre a criança e ao fazê lo usaa como mero meio para seus próprios fins infringindo portanto o princípio da benevolência kantiano e o direito à autonomia da criança mesmo que essa seja ainda parcial Segundo Gelles5 as conseqüências do abuso con tra crianças podem ser devastadoras e muitos pes quisadores já documentaram conseqüências físicas variando de pequenas cicatrizes até danos cerebrais permanentes e morte psicológicas desde baixa auto estima até desordens psíquicas severas cognitivas desde deficiência de atenção e distúrbios de apren dizado até distúrbios orgânicos cerebrais severos e comportamentais variando de dificuldade de relaci onamento com colegas até comportamentos suicidas e criminosos decorrentes de abusos físicos psicoló gicos sexuais e de negligência Essas conseqüências reforçam a idéia intuitiva do mal que pode ser causa do a uma criança por meio da violência Entretanto ao analisar um ato violento devese considerar não só a moralidade do ato e suas conse qüências mas também o contexto sociocultural no qual ocorre Com efeito a mesma ação pode ter um significado diferente em contextos socioculturais di ferentes Por exemplo a escarificação do corpo da criança pelos pais pode ser vista como parte essencial do embelezamento ou simplesmente como uma mu tilação abusiva O que distingue esta mesma prática 662 662 662 662 662 Rev Saúde Pública 200034665965 wwwfspuspbrrsp Ética da violência contra crianças Ferreira AL Schramm FR em contextos diferentes é a qualidade da intenção do adulto no primeiro caso é a promoção da autoesti ma da criança e de seu status social o que é significa tivamente diferente do segundo caso no qual a inten ção é ferir sem nenhum retorno positivo para a cri ança Em suma o primeiro caso difere do segundo porque a criança não é mero meio para os fins do adulto respeitando portanto o imperativo kantiano Porém independentemente da intencionalidade exis te um patamar a partir do qual certas práticas podem ser consideradas violentas Burke4 por exemplo de fende o ponto de vista de que permitir colocar vidas humanas em risco é dar valor extremado ao princípio do relativismo cultural O autor se pergunta parece que estamos diante de um conflito entre o respeito às opiniões éticas de outras culturas e o respeito à vida humana É possível resolver tal conflito Tal questão é relevante no contexto da crescente preocupação internacional com o respeito aos direi tos humanos considerados universais por se refe rirem ao ser humano considerado como pessoa que tem interesses e direitos dentre os quais destacase o direito de não ser tratada de modo pior que qualquer outra pessoa Para Gelles5 num mundo multicultural é crucial a sensibilidade para com as diferenças culturais mas é importante também a preocupação em se definir uma categoria global sob a qual o abuso possa ser compreendido internacionalmente con ferindo força ao argumento de que uma prática mesmo investida de significação social pode ser abusiva A infibulação de meninas jovens seria um bom exemplo disso OS DIREITOS DA CRIANÇA Novos marcos sociais e legais relativos à violência contra a criança ainda não estão totalmente integrados na prática dos profissionais de saúde criandolhes di lemas que via de regra não estão preparados a enfren tar Um desses problemas é a forma de lidar com os direitos conquistados pela criança recentemente Neste novo contexto não se pode assumir auto maticamente que os interesses das crianças coinci dem com os interesses de sua família nem que seus interesses são realmente representados por seus pais ou responsáveis Isso sugere que os direitos das cri anças quaisquer que eles sejam podem legitima mente requerer proteção de uma instância de fora tal como o Estado Segundo Aiken Purdy1 há duas diferentes correntes que discutem aspectos dos di reitos das crianças a protecionista que acredita que crianças por falta de experiência competência e maturidade têm um status moral especial o que outorga a elas trata mento moral e legal especial Por isso esperase que os pais protejam e guiem seus filhos ao longo de todas suas fases de desenvolvimento expandin do gradualmente seus direitos e suas responsabili dades isto é sua competência à autonomia Segun do Häyry8 apesar de restringir liberdades ou violar a autonomia o paternalismo seria prima facie jus tificável no caso de crianças pois constitui uma for ma de cuidado a alguém que não tem sua capacida de de decisão completamente desenvolvida a liberacionista que propõe direitos iguais para as crianças e os adultos Embora reconheça que as capacidades das crianças sejam diferentes das dos adultos considera que elas são prejudicadas pelos limites impostos pois só serão capazes de se defender quando tiverem direitos iguais aos dos adultos Em suma considera que as diferenças entre crianças e adultos não são moralmente rele vantes Ao contrário da corrente protecionista acredita que a criança dispõe de boa capacidade de raciocínio instrumental ou seja possui habili dade para fazer julgamentos prudentes e morais sobre as conseqüências de uma dada ação Aiken Purdy1 consideram que provavelmen te argumentar em termos de direitos não é o me lhor meio para promover os interesses das crian ças Evocar direitos morais extralegais é com plicado bem como evocar leis muitas vezes incoe rentes Crianças e famílias seriam mais bem servi das por abordagens morais diferenciadas ex res ponsabilidade dos pais ênfase nas relações pais filhos mudança da visão de família Por outro lado os que defendem os direitos dizem que é a única forma de chamar atenção para as questões de abu so negligência opressão e exploração historica mente conhecidas começando a remediar este tra tamento moralmente censurável QUE QUESTÃO ÉTICA SE COLOCA Inúmeros exemplos mostram quotidianamente que a família muitas vezes mesmo reconhecendo que a criança vitimizada passa por uma experiência que não é boa para ela prefere que não haja interferên cia externa nas relações familiares devido às possí veis conseqüências indesejáveis apontadas no ter ceiro caso citado Apesar disso os profissionais movidos pela intenção de proteger a criança contra algo que se acredita ser prejudicial ao seu desenvol vimento biopsicossocial e respaldados eou obri gados pela legislação cada vez mais fazem inter ferências nessas relações 663 663 663 663 663 Rev Saúde Pública 200034665965 wwwfspuspbrrsp Ética da violência contra crianças Ferreira AL Schramm FR Cada interferência no entanto suscita nos pro fissionais embaraçosas perguntas tais como temos o direito de interferir nos casos em que o problema da violência não é trazido espontaneamente como queixa Devemos interferir quando a própria cri ança não sente o abuso como problema A partir de que patamar de violência temos que interferir Que tipo de intervenção deve ocorrer Até onde deve ir nossa interferência Segundo Soares12 existe uma séria questão posta na ordem do dia nos Estados Unidos e que é de alguma forma o que se discute no presente trabalho quando o Estado ultrapassa a porta da casa está invadindo a pri vacidade ou protegendo vítimas indefesas Está sendo despótico ou estendendo a cidadania A autora con sidera que é insuficiente lavar as mãos em nome da proteção da privacidade pois onde há vitimização fal ta cidadania razão pela qual é importante analisar os efeitos perversos de políticas públicas bem intenci onadas para evitar o risco de que elas venham a gerar novas formas de vitimização p5 É especialmente importante ter em mente esse dilema na medida em que treinamentos têm sido efetivados no sentido de fornecer aos profissionais os instrumentos necessários para o reconhecimento de famílias de risco detectan do os casos cada vez mais precocemente Frutificar o conhecimento e não cair na armadilha de gerar novas formas de vitimização às quais se refere a autora é trilhar um caminho seguro na solução da questão cen tral há justificativas eticamente corretas para a inter venção nos casos em que as famílias não demandam envolvimento dos profissionais em seus problemas INTERVENÇÃO NOS CASOS DE VIOLÊN CIA DOMÉSTICA VISÕES A PARTIR DE DIFERENTES TEORIAS ÉTICAS Alguns princípios específicos que regem as rela ções entre pais crianças e o Estado devem ser consi derados quando se quer discutir caminhos moralmente apropriados para lidar com a violência doméstica Archard3 considera três deles relevantes o princípio da integridade familiar pode ser sub dividido em autonomia dos pais livres para criar seus filhos da forma que lhes parece ser mais con veniente e privacidade familiar a família tem direito à proteção contra intrusão não consentida em suas atividades o princípio do parens patrie legitima que o Estado assuma a responsabilidade pelo bemestar das cri anças nos casos em que a família falha em seu pa pel ou quando a criança não tem pais adequados o princípio dos melhores interesses da criança co loca como primordial o interesse ou o bemestar da criança Este princípio está atualmente sacramentado em todos os instrumentos legais que lidam com a criança A questão que se coloca é quando e como o Estado deve interferir no abuso contra a criança ou seja em que situações ele pode prima facie violar o princípio do respeito da integridade familiar para promover os melhores interesses da criança assumindo seu papel de parens patrie e protegendo portanto a parte mais vulnerável O profissional de saúde exerce esse pa pel uma vez que identifica e encaminha casos de vi olência contra a criança representando portanto o início da cadeia de procedimentos a serem tomados pelo Estado A seguir serão analisados os problemas postos à luz de algumas teorias éticas Conseqüencialismo O conseqüencialismo é um conjunto de teorias morais que em síntese afirma que uma ação moral mente correta é aquela que produz bons resultados Uma das críticas a todas as formas de conseqüencialismo é a dificuldade de se medir tais resultados numa decisão moral Quer sejam medi das quantitativas quer sejam qualitativas é quase impossível predizer com precisão que ato através do tempo vai maximizar as boas conseqüências ou minimizar as más Na prática como se pode de terminar acuradamente que impacto uma decisão moral vai desencadear Mill respondia a esta ques tão dizendo que os milhares de anos de experiên cia coletiva humana nos informaram a respeito de que decisões tomar7 A violência vem sendo considerada em termos de prevenção e intervenção há apenas cerca de três dé cadas Portanto ainda não há experiência acumulada de forma a garantir que as conseqüências da inter venção serão sempre benéficas para a criança Geral mente não se sabe como a intervenção vai ser recebi da pelas famílias uma vez que cada uma responde de modo peculiar Além disso no decorrer do tempo há mudanças nas relações familiares mudanças estas que alteram o curso da intervenção planejada Ou seja embora as intervenções nos casos da violência do méstica possam trazer bons resultados para as crian ças não é possível prevêlos com segurança De modo geral o abuso cessa após a intervenção mesmo que temporariamente Portanto a curto prazo os resulta dos costumam ser favoráveis A longo prazo no en tanto uma possível desintegração da família ou a ins titucionalização da criança podem representar um novo dano para esta 664 664 664 664 664 Rev Saúde Pública 200034665965 wwwfspuspbrrsp Ética da violência contra crianças Ferreira AL Schramm FR Utilitarismo Uma das formas de conseqüencialismo é o utilitarismo teorizado por Bentham e Mill Esta teo ria afirma que em situações em que os interesses pró prios de uma pessoa se chocam com os interesses da comunidade o indivíduo deve sacrificarse em prol do bem da comunidade assumindo que os benefícios obtidos por ela têm uma prioridade lexical sobre aque le obtido pelo indivíduo7 Hallgarth7 refere que Mill propôs o princípio do dano harm principle para tentar harmonizar a autonomia pessoal em atingir seus próprios fins prazeres individuais com o mandado do Estado para manter a vida comunitária prazer cor porativo Este princípio põe limites à autonomia que adultos possam exercer ao perseguir seus fins na comunidade ao mesmo tempo que limita o po der do Estado em intervir na vida pessoal dos cida dãos a não ser para proteger terceiros Os agressores de crianças causam danos à criança agredida e ao futuro adulto no qual esta se tornará ou seja a terceiros Sendo assim do ponto de vista utilitarista a violência é um ato moralmente conde nável justificandose a intervenção do Estado para fazer cessar tal comportamento Deontologia As teorias éticas deontológicas são uma classe to talmente diferente de teorias morais Elas defendem que a obediência a princípios morais é um dever não dependente da produção de resultados benéficos não nascendo da situação A deontologia é a ética do dever desenvolvida so bretudo por Kant para quem a moralidade do agir baseiase na motivação humana isto é na boa von tade do agente moral e não nas conseqüências de seus atos7 Para Kant os homens enquanto seres racionais imperfeitos necessitam do conceito de dever como um guia prático para a ação visto que é necessário subordinar desejos humanos conflituosos à vontade racional autônoma e cumpridora das leis Portanto segundo esta perspectiva a comparação de utilidades é sempre irrelevante algumas ações sim plesmente não devem ser feitas quaisquer que sejam as conseqüências11 O pensamento conseqüencialista dominou o deba te ético no século XIX e no início do século XX até que WD Ross fez ressurgir o interesse filosófico para a noção do dever reformulandoo Ross retomou a teoria dos deveres mas introduziu o conceito de de veres prima facie isto é não absolutos Isto diferen cia suas idéias daquelas da deontologia clássica Um dever prima facie é aquele que a pessoa deve cumprir a menos que ela vá ao encontro de um dever mais importante reconhecido intuitivamente Segun do Ross uma ação é moralmente certa isto é um real dever se e somente se é um dever prima facie e quando nenhuma outra ação conflitante representa um dever mais rigoroso7 Ross admitia a complexidade do domínio moral nos interesses humanos Diante de cada situação da vida consideramse os diversos deveres pesase cada um e decidese qual é o mais importante naquele momen to O peso que se dá intuitivamente aos vários deve res é de fato como se trabalha a moralidade na práti ca Embora isto represente uma certa fraqueza ofere ce explicação prática para a complexidade moral que as pessoas encontram no diaadia isto é em seus conflitos No caso da violência contra a criança os profissio nais ficam entre os deveres de proteger a criança de tratála clinicamente de mantêla junto à família de melhorar as relações familiares e de notificar o caso às autoridades competentes A experiência tem mos trado que em cada caso um desses deveres precisa ser cumprido prioritariamente mas o objetivo é alcançar o cumprimento de todos eles numa ordem hierárqui ca que é individualizada para cada caso Um dos mais importantes avanços do Estatuto da Criança e do Adolescente ECA lei federal nº 8069 90 foi o resgate do sentido de cidadania da criança através da doutrina da proteção integral Essa lei tor nou obrigatória a notificação de casos suspeitos ou confirmados de maustratos contra criança ou ado lescente e os profissionais de saúde passaram a ter uma razão prática para proceder à notificação o de ver previsto em lei É através da notificação que se cria o elo entre a área da saúde e o sistema legal iniciandose a formação da rede multiprofissional e interinstitucional da atuação fundamental nesses casos permitindo também o dimensionamento epidemiológico da violência CONCLUSÕES Podese razoavelmente concluir que o Estado tem o dever prima facie de intervir para proteger crian ças de situações seriamente danosas para elas Se 665 665 665 665 665 Rev Saúde Pública 200034665965 wwwfspuspbrrsp Ética da violência contra crianças Ferreira AL Schramm FR gundo Aiken Purdy1 nenhuma teoria especial de direitos morais é necessária para justificar esta in terferência A intervenção é baseada em um dever mais amplo do Estado em prover proteção básica a indivíduos em situação de vulnerabilidade compa rativamente maior Ademais ao defender a imunidade parental de in terferências o respeito pelo direito de autonomia está sendo limitado à geração dos pais não atingindo as gerações seguintes o que pode ser visto como moral mente injusto Além disso não é incomum se valer do direito de privacidade familiar e de nãointerfe rência para deixar de atuar em situações nas quais REFERÊNCIAS 1 Aiken W Purdy LM Childrens rights In Encyclopedia of applied ethics San Diego Academic Press 1998 v 1 p 4516 2 Almeida JLT Schramm FR Paradigm shift metamorphosis of medical ethics and the rise of bioethics Cad Saúde Pública 199915 Supl 11525 3 Archard D Child abuse In Encyclopedia of applied ethics San Diego Academic Press 1998 v 1 p 43750 4 Burke P Mal estar na civilização Folha de São Paulo 1999 maio 2 Caderno Mais 9 5 Gelles RJ Intimate violence in families Thousand Oaks Sage Publications 1997 6 Habermas J Consciência moral e agir comunicativo Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1989 haja possibilidade de conseqüências indesejáveis da intervenção para a criança Podese afirmar que nenhum dos extremos deixar tudo por conta da família ou o Estado interferir sem considerar os desejos da família esteja respeitando os melhores interesses da criança A experiência en sina que tem sido melhor para a criança e para a soci edade que as crianças aprendam a lidar com o mundo a partir de uma posição de proteção relativa que per mita garantir prima facie seus direitos específicos sem impedir seu desenvolvimento biopsicossocial cuja característica principal é o exercício de cidadania baseado na autonomia com responsabilidade 7 Hallgart MW Consequentialismm and deontology In Encyclopedia of applied ethics San Diego Academic Press 1998 v 1 p 60921 8 Häyry H Paternalism In Encyclopedia of applied ethics San Diego Academic Press 1998 v3 p 44957 9 Holm S Autonomy In Encyclopedia of applied ethics San Diego Academic Press 1998 v 1 p 26774 10 Mori M A bioética sua natureza e história Humanida des 1994933341 11 Scarre G Utilitarianism In Encyclopedia of applied ethics San Diego Academic Press 1998 v 4 p 43956 12Soares BM Formas de violência doméstica Folha de São Paulo 1997 maio 18 Caderno Mais 5
Envie sua pergunta para a IA e receba a resposta na hora
Recomendado para você
7
Abordagem dos Profissionais de Saúde em Instituições Hospitalares para Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência
Ética Geral e Profissional
FAMESC
5
Regulamento para Inscrição de Trabalhos Técnico-Científicos na VII Expociência Universitária
Ética Geral e Profissional
FAMESC
2
Ética e Atuação Profissional em Casos de Atendimento Psicológico para Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência: Uma Revisão da Literatura
Ética Geral e Profissional
FAMESC
26
Abordagens sobre Diretivas Antecipadas da Vontade no Brasil
Ética Geral e Profissional
UNIFACIMED
8
Introdução aos Conceitos de Ética e sua Relação com a Sociedade
Ética Geral e Profissional
UNISA
1
Análise da Nulidade do Auto de Prisão em Flagrante do Advogado Jair
Ética Geral e Profissional
FMU
12
Introdução aos Conceitos de Ética e Bioética
Ética Geral e Profissional
CESA
1
Pesquisa sobre Carreira de Advogados e Ética Profissional
Ética Geral e Profissional
UNIFTC
1
Data de Entrega: Amanhã às 17h20
Ética Geral e Profissional
UEG
Texto de pré-visualização
Journal of Public Health Universidade de São Paulo Faculdade de Saúde Pública VOLUME 34 NÚMERO 6 DEZEMBRO 2000 Revista de Saúde Pública p 65965 Implicações éticas da violência doméstica contra a criança para profissionais de saúde Ethical implications of child abuse for the health care professionals Ana L Ferreiraa e Fermin R Schrammb aDepartamento de Pediatria do Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira da Universida de Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro RJ Brasil bDepartamento de Ciências Sociais da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro RJ Brasil FERREIRAa Ana L0 e Fermin R Schrammb Implicações éticas da violência doméstica contra a criança para profissio nais de saúde Rev Saúde Pública 34 6 65965 2000 wwwfspuspbrrsp 659 659 659 659 659 Rev Saúde Pública 200034665965 wwwfspuspbrrsp Implicações éticas da violência doméstica contra a criança para profissionais de saúde Ethical implications of child abuse for the health care professionals Ana L Ferreiraa e Fermin R Schrammb aDepartamento de Pediatria do Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira da Universida de Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro RJ Brasil bDepartamento de Ciências Sociais da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro RJ Brasil Recebido em 281999 Reapresentado em 262000 Aprovado em 182000 Correspondência paraCorrespondence to Ana Lúcia Ferreira Departamento de PediatriaFiocruz Av Brigadeiro Trompowsky snº 3o andar 21941590 Ilha do Fundão Rio de Janeiro RJ Email anaferrgblcombr Resumo Baseandose em alguns problemas com os quais profissionais de saúde se deparam no atendimento a crianças vítimas de violência discutemse as implicações éticas da interferência na dinâmica familiar utilizada para promover a proteção dessas crianças Partindo do princípio de que a violência contra a criança é prima facie moralmente errada abordase a questão dos direitos da criança e discutese a intervenção praticada a partir de algumas teorias éticas conseqüencialismo utilitarismo e deontologia Concluise que uma interferência que proteja a criança tentando preservar a integridade familiar sempre que possível é moralmente justificável Abstract Based upon some problems faced by health professionals in the care of abused children this is a discussion of the ethical implications in family interventions aiming to protect these children Accepting the prima facie principle that violence is morally wrong some issues related to the childrens rights as well as some ethical theories such as consequentialism utilitarianism and deontology are discussed The conclusion is that the protection of these children is morally justifiable and the maintenance of the families unity should always be attempted Descritores Violência doméstica Relações profissionalfamiliar Maustratos sexuais infantis Ética Atitude do pessoal de saúde Keywords Domestic violence Professional family relations Child abuse sexual Ethics Attitude of health personnel INTRODUÇÃO Transformações sociais recentes têm questionado valores vigentes em nossa sociedade delineando uma transição paradigmática no campo da ética carac terizada pela passagem de modelos de comportamento baseados em deveres absolutos para modelos de de veres prima facie e contextualizados210 Como conseqüência os profissionais de saúde vêm se confrontando com novos e desafiadores problemas em sua prática cotidiana dentre os quais destacase a violência contra a criança A palavra violência tem uma conotação negativa por que vinculada à noção de ato moralmente repro vável isto é contra o qual existe uma presunção ne gativa de tal forma que quem comete intencional mente este tipo de ato é obrigado a justificálo mos trando que existem boas razões em princípio mais fortes que a presunção negativa que temos contra ele10 Esta noção de violência expressa uma posição normativa que não implica necessariamente que todo ato violento seja moralmente reprovável per se Tal é o caso da violência por legítima defesa Assim sendo para caracterizar um ato como violento devem ser Atualização Current Comments 660 660 660 660 660 Rev Saúde Pública 200034665965 wwwfspuspbrrsp Ética da violência contra crianças Ferreira AL Schramm FR preenchidas pelo menos as seguintes condições cau sar um dano a terceiros usar a força física ou psíqui ca ser intencional e ir contra a livre e espontânea vontade de quem é objeto do dano10 A violência é um problema social e histórico pre sente em todas as sociedades Na área da saúde públi ca no País no entanto apenas nas últimas décadas tem sido objeto de atenção especial havendo atual mente forte demanda para intervenção naqueles ca sos considerados moralmente reprováveis Ao tentar responder esta demanda os profissionais de saúde envolvidos devem enfrentar as implicações morais da intervenção A dificuldade que esses pro fissionais têm ao confrontarse com alguns procedi mentos específicos como a notificação dos casos ao sistema legal tem sido apontada pela literatura espe cializada Além disso temse notado que a interfe rência na dinâmica familiar que é fundamental na assistência aos casos de violência doméstica nem sempre é bem aceita pela família Sendo assim os profissionais encontramse diante do desafio de evitar as formas traumáticas de inter venção sem resvalar contudo na negligência com que o tema da violência contra crianças tem sido tratado no Brasil com raras e honrosas exceções12 O objetivo do presente trabalho é discutir no con texto da ética aplicada as implicações éticas resultan tes da intervenção dos profissionais de saúde nas rela ções familiares em que haja suspeita ou confirmação de casos de violência contra a criança Tem como base a experiência por quatro anos de um dos autores do presente trabalho em um serviço que já prestou atendi mento a mais de 300 crianças e adolescentes vítimas de violência em sua maioria violência doméstica ALGUNS ENTRAVES AO ENFRENTAMENTO DOS CASOS APESAR DELES JUSTIFICASE A INTERVENÇÃO Situações da prática clínica permitem discutir al guns aspectos morais da intervenção nos casos de vi olência contra crianças e adolescentes Os maustratos são aceitos pela família Muitas vezes o aspecto da violência é levantado pelo profissional porém não é reconhecido pela fa mília como um problema Este é o caso de uma me nina de três anos cuja queixa principal era dificul dade para urinar Ao exame físico observouse he matomas na região lombar e nos membros inferio res que haviam sido provocados pelo pai através de agressão com colher de pau Esclarecida a causa da queixa principal infecção urinária a mãe não que ria discutir a questão do abuso físico argumentando que o pai havia batido na filha para corrigir maus comportamentos A mãe acrescentou ainda que era muito grata ao próprio pai por haver lhe ensinado muitas coisas desta forma Neste caso a questão moralmente relevante é se a agressão física contra a criança mesmo tendo sido utilizada para o seu bem não deva ser considerada uma violência moralmente reprovável por vir carre gada da intenção do adulto em causar dor5 Acredita se que sim pois é pouco provável que a criança tenha consentido com tal ato A própria criança aceita a violência Há situações em que a criança relativiza o valor da agressão de que foi vítima no lar Este é o caso de um menino de nove anos no qual em consulta anual de rotina foi verificado grande hematoma na perna A mãe admitiu têlo agredido com madeira de caixote O menino argumentou que não concordava com a necessidade de consulta no Ambulatório da Família por que se tivesse caído de bicicleta ou se machuca do seria igual e se tivesse caído de um cavalo e ficado paralítico seria muito pior Neste caso que aparentemente não preenche todas as condições para que seja caracterizada a violência e confirmada a presunção negativa surge a questão de como interpretar a justificativa da criança feita por comparação com um mal maior a queda do cavalo pois podese razoavelmente questionar sua compe tência em concordar com o ato De fato embora a jurisprudência liberal tenha como um princípiocha ve que para quem consentiu nenhum mal é feito volenti non fit injuria crianças não podem ser con sideradas totalmente capazes de determinar por elas mesmas como devem viver3 Esta idéia é reforçada por diversos autores6 que defendem que a autonomia pessoal é adquirida gradualmente ao longo de um pro cesso evolutivo de interação com o ambiente socio cultural no qual a criança vai passando por estágios em seu desenvolvimento cognitivo segundo Piaget lingüístico segundo Habermas moral segundo Kohlberg e interativo segundo Selman Por isso para Holm9 a autonomia não é um fenô meno de tudo ou nada sendo portanto praticamen te impossível verificar a partir de que momento pre ciso alguém tem poder de autodeterminação Esta interpretação gradualista e evolutiva da auto nomia pode ser de interesse específico em discussões 661 661 661 661 661 Rev Saúde Pública 200034665965 wwwfspuspbrrsp Ética da violência contra crianças Ferreira AL Schramm FR sobre o status moral da criança visto que sugere ser implausível reivindicar que crianças tenham autono mia completa para decidir em que momento de seu desenvolvimento querem apanhar Por outro lado uma abordagem gradualista parece ser mais sensível à peculiaridade de cada caso po dendo ser corroborada pela observação empírica de que crianças desenvolvem continuamente suas prefe rências conforme amadurecem e que o raciocínio que está por trás dessas preferências tornase gradualmente mais sofisticado como mostraram os estudos clássi cos de Piaget e de Kohlberg Entretanto Holm9 objeta que há situações nas quais as conseqüências de se respeitar uma dada escolha autônoma será tão ruim para a pessoa em questão que o paternalismo seria desejável Além disso é difícil identificar até que ponto afirmações como as da criança representam real mente o que ela pensa ou se resultam de pressões dos adultos A criança quer a interrupção do abuso mas não deseja a punição do abusador Esta situação pode ser exemplificada com o caso de uma criança de sete anos que era manipulada em sua genitália pelo avô paterno A partir da denúncia da mãe à delegacia de polícia o avô mudouse para outro Estado e a criança passou a sofrer pressões da família que levaram a mãe a retirar a queixa meses depois A criança se sentia responsável por toda a mudança que decorreu da sua revelação e não queria que o avô fosse preso porque sabia que ele iria so frer na prisão Este caso é muito mais complexo que os anterio res Embora preencha todas as condições para carac terizar o ato de violência e moralmente reprovável introduz um elemento suplementar porque a solução do dano implica situação de duplo efeito uma vez que cria um outro dano Neste caso é importante pon derar com muito cuidado qual seria não tanto a me lhor solução mas a menos ruim Tratase de uma situação complexa visto que a so ciedade tem interesse em ver o abusador identificado e punido a criança tem o interesse de ver reconheci da sua condição de vítima e ambos têm o interesse de que o abuso cesse Mas ao mesmo tempo criase um dilema porque a solução do problema punição do abusador pode redundar num acréscimo de sofri mento para a criança separação do abusador Isso leva à conclusão intuitiva de que neste caso e em outros similares respeitando portanto a cláusula ceteris paribus só resta a possibilidade da coopera ção e da busca de um consenso entre a família e as agências de proteção à criança para que tudo se resol va da forma menos traumática para a criança evitan do que ao dano do abuso se adicionem outros danos isto é evitando as conseqüências negativas resultan tes do duplo efeito A VIOLÊNCIA CONTRA A CRIANÇA É MORALMENTE ERRADA O último exemplo nos leva a caracterizar melhor a primeira condição da violência o dano a terceiros Segundo Archard3 ninguém pode razoavelmente con testar que o abuso contra a criança seja moralmente errado e que provavelmente é um erro moral muito grave pois o dano deste tipo de abuso é duplo uma vez que atinge a própria criança e o futuro adulto em que vai se tornar Em relação à própria criança o abuso estaria violando aquilo que torna a infância especial fraqueza dependência vulnerabilidade e inocência Assim seria particularmente errado um adulto agre dir alguém que é mais vulnerável a sofrer danos e menos capaz de resistir à violência infligida além de ser dependente de seus cuidados O adulto explora portanto o poder que tem sobre a criança e ao fazê lo usaa como mero meio para seus próprios fins infringindo portanto o princípio da benevolência kantiano e o direito à autonomia da criança mesmo que essa seja ainda parcial Segundo Gelles5 as conseqüências do abuso con tra crianças podem ser devastadoras e muitos pes quisadores já documentaram conseqüências físicas variando de pequenas cicatrizes até danos cerebrais permanentes e morte psicológicas desde baixa auto estima até desordens psíquicas severas cognitivas desde deficiência de atenção e distúrbios de apren dizado até distúrbios orgânicos cerebrais severos e comportamentais variando de dificuldade de relaci onamento com colegas até comportamentos suicidas e criminosos decorrentes de abusos físicos psicoló gicos sexuais e de negligência Essas conseqüências reforçam a idéia intuitiva do mal que pode ser causa do a uma criança por meio da violência Entretanto ao analisar um ato violento devese considerar não só a moralidade do ato e suas conse qüências mas também o contexto sociocultural no qual ocorre Com efeito a mesma ação pode ter um significado diferente em contextos socioculturais di ferentes Por exemplo a escarificação do corpo da criança pelos pais pode ser vista como parte essencial do embelezamento ou simplesmente como uma mu tilação abusiva O que distingue esta mesma prática 662 662 662 662 662 Rev Saúde Pública 200034665965 wwwfspuspbrrsp Ética da violência contra crianças Ferreira AL Schramm FR em contextos diferentes é a qualidade da intenção do adulto no primeiro caso é a promoção da autoesti ma da criança e de seu status social o que é significa tivamente diferente do segundo caso no qual a inten ção é ferir sem nenhum retorno positivo para a cri ança Em suma o primeiro caso difere do segundo porque a criança não é mero meio para os fins do adulto respeitando portanto o imperativo kantiano Porém independentemente da intencionalidade exis te um patamar a partir do qual certas práticas podem ser consideradas violentas Burke4 por exemplo de fende o ponto de vista de que permitir colocar vidas humanas em risco é dar valor extremado ao princípio do relativismo cultural O autor se pergunta parece que estamos diante de um conflito entre o respeito às opiniões éticas de outras culturas e o respeito à vida humana É possível resolver tal conflito Tal questão é relevante no contexto da crescente preocupação internacional com o respeito aos direi tos humanos considerados universais por se refe rirem ao ser humano considerado como pessoa que tem interesses e direitos dentre os quais destacase o direito de não ser tratada de modo pior que qualquer outra pessoa Para Gelles5 num mundo multicultural é crucial a sensibilidade para com as diferenças culturais mas é importante também a preocupação em se definir uma categoria global sob a qual o abuso possa ser compreendido internacionalmente con ferindo força ao argumento de que uma prática mesmo investida de significação social pode ser abusiva A infibulação de meninas jovens seria um bom exemplo disso OS DIREITOS DA CRIANÇA Novos marcos sociais e legais relativos à violência contra a criança ainda não estão totalmente integrados na prática dos profissionais de saúde criandolhes di lemas que via de regra não estão preparados a enfren tar Um desses problemas é a forma de lidar com os direitos conquistados pela criança recentemente Neste novo contexto não se pode assumir auto maticamente que os interesses das crianças coinci dem com os interesses de sua família nem que seus interesses são realmente representados por seus pais ou responsáveis Isso sugere que os direitos das cri anças quaisquer que eles sejam podem legitima mente requerer proteção de uma instância de fora tal como o Estado Segundo Aiken Purdy1 há duas diferentes correntes que discutem aspectos dos di reitos das crianças a protecionista que acredita que crianças por falta de experiência competência e maturidade têm um status moral especial o que outorga a elas trata mento moral e legal especial Por isso esperase que os pais protejam e guiem seus filhos ao longo de todas suas fases de desenvolvimento expandin do gradualmente seus direitos e suas responsabili dades isto é sua competência à autonomia Segun do Häyry8 apesar de restringir liberdades ou violar a autonomia o paternalismo seria prima facie jus tificável no caso de crianças pois constitui uma for ma de cuidado a alguém que não tem sua capacida de de decisão completamente desenvolvida a liberacionista que propõe direitos iguais para as crianças e os adultos Embora reconheça que as capacidades das crianças sejam diferentes das dos adultos considera que elas são prejudicadas pelos limites impostos pois só serão capazes de se defender quando tiverem direitos iguais aos dos adultos Em suma considera que as diferenças entre crianças e adultos não são moralmente rele vantes Ao contrário da corrente protecionista acredita que a criança dispõe de boa capacidade de raciocínio instrumental ou seja possui habili dade para fazer julgamentos prudentes e morais sobre as conseqüências de uma dada ação Aiken Purdy1 consideram que provavelmen te argumentar em termos de direitos não é o me lhor meio para promover os interesses das crian ças Evocar direitos morais extralegais é com plicado bem como evocar leis muitas vezes incoe rentes Crianças e famílias seriam mais bem servi das por abordagens morais diferenciadas ex res ponsabilidade dos pais ênfase nas relações pais filhos mudança da visão de família Por outro lado os que defendem os direitos dizem que é a única forma de chamar atenção para as questões de abu so negligência opressão e exploração historica mente conhecidas começando a remediar este tra tamento moralmente censurável QUE QUESTÃO ÉTICA SE COLOCA Inúmeros exemplos mostram quotidianamente que a família muitas vezes mesmo reconhecendo que a criança vitimizada passa por uma experiência que não é boa para ela prefere que não haja interferên cia externa nas relações familiares devido às possí veis conseqüências indesejáveis apontadas no ter ceiro caso citado Apesar disso os profissionais movidos pela intenção de proteger a criança contra algo que se acredita ser prejudicial ao seu desenvol vimento biopsicossocial e respaldados eou obri gados pela legislação cada vez mais fazem inter ferências nessas relações 663 663 663 663 663 Rev Saúde Pública 200034665965 wwwfspuspbrrsp Ética da violência contra crianças Ferreira AL Schramm FR Cada interferência no entanto suscita nos pro fissionais embaraçosas perguntas tais como temos o direito de interferir nos casos em que o problema da violência não é trazido espontaneamente como queixa Devemos interferir quando a própria cri ança não sente o abuso como problema A partir de que patamar de violência temos que interferir Que tipo de intervenção deve ocorrer Até onde deve ir nossa interferência Segundo Soares12 existe uma séria questão posta na ordem do dia nos Estados Unidos e que é de alguma forma o que se discute no presente trabalho quando o Estado ultrapassa a porta da casa está invadindo a pri vacidade ou protegendo vítimas indefesas Está sendo despótico ou estendendo a cidadania A autora con sidera que é insuficiente lavar as mãos em nome da proteção da privacidade pois onde há vitimização fal ta cidadania razão pela qual é importante analisar os efeitos perversos de políticas públicas bem intenci onadas para evitar o risco de que elas venham a gerar novas formas de vitimização p5 É especialmente importante ter em mente esse dilema na medida em que treinamentos têm sido efetivados no sentido de fornecer aos profissionais os instrumentos necessários para o reconhecimento de famílias de risco detectan do os casos cada vez mais precocemente Frutificar o conhecimento e não cair na armadilha de gerar novas formas de vitimização às quais se refere a autora é trilhar um caminho seguro na solução da questão cen tral há justificativas eticamente corretas para a inter venção nos casos em que as famílias não demandam envolvimento dos profissionais em seus problemas INTERVENÇÃO NOS CASOS DE VIOLÊN CIA DOMÉSTICA VISÕES A PARTIR DE DIFERENTES TEORIAS ÉTICAS Alguns princípios específicos que regem as rela ções entre pais crianças e o Estado devem ser consi derados quando se quer discutir caminhos moralmente apropriados para lidar com a violência doméstica Archard3 considera três deles relevantes o princípio da integridade familiar pode ser sub dividido em autonomia dos pais livres para criar seus filhos da forma que lhes parece ser mais con veniente e privacidade familiar a família tem direito à proteção contra intrusão não consentida em suas atividades o princípio do parens patrie legitima que o Estado assuma a responsabilidade pelo bemestar das cri anças nos casos em que a família falha em seu pa pel ou quando a criança não tem pais adequados o princípio dos melhores interesses da criança co loca como primordial o interesse ou o bemestar da criança Este princípio está atualmente sacramentado em todos os instrumentos legais que lidam com a criança A questão que se coloca é quando e como o Estado deve interferir no abuso contra a criança ou seja em que situações ele pode prima facie violar o princípio do respeito da integridade familiar para promover os melhores interesses da criança assumindo seu papel de parens patrie e protegendo portanto a parte mais vulnerável O profissional de saúde exerce esse pa pel uma vez que identifica e encaminha casos de vi olência contra a criança representando portanto o início da cadeia de procedimentos a serem tomados pelo Estado A seguir serão analisados os problemas postos à luz de algumas teorias éticas Conseqüencialismo O conseqüencialismo é um conjunto de teorias morais que em síntese afirma que uma ação moral mente correta é aquela que produz bons resultados Uma das críticas a todas as formas de conseqüencialismo é a dificuldade de se medir tais resultados numa decisão moral Quer sejam medi das quantitativas quer sejam qualitativas é quase impossível predizer com precisão que ato através do tempo vai maximizar as boas conseqüências ou minimizar as más Na prática como se pode de terminar acuradamente que impacto uma decisão moral vai desencadear Mill respondia a esta ques tão dizendo que os milhares de anos de experiên cia coletiva humana nos informaram a respeito de que decisões tomar7 A violência vem sendo considerada em termos de prevenção e intervenção há apenas cerca de três dé cadas Portanto ainda não há experiência acumulada de forma a garantir que as conseqüências da inter venção serão sempre benéficas para a criança Geral mente não se sabe como a intervenção vai ser recebi da pelas famílias uma vez que cada uma responde de modo peculiar Além disso no decorrer do tempo há mudanças nas relações familiares mudanças estas que alteram o curso da intervenção planejada Ou seja embora as intervenções nos casos da violência do méstica possam trazer bons resultados para as crian ças não é possível prevêlos com segurança De modo geral o abuso cessa após a intervenção mesmo que temporariamente Portanto a curto prazo os resulta dos costumam ser favoráveis A longo prazo no en tanto uma possível desintegração da família ou a ins titucionalização da criança podem representar um novo dano para esta 664 664 664 664 664 Rev Saúde Pública 200034665965 wwwfspuspbrrsp Ética da violência contra crianças Ferreira AL Schramm FR Utilitarismo Uma das formas de conseqüencialismo é o utilitarismo teorizado por Bentham e Mill Esta teo ria afirma que em situações em que os interesses pró prios de uma pessoa se chocam com os interesses da comunidade o indivíduo deve sacrificarse em prol do bem da comunidade assumindo que os benefícios obtidos por ela têm uma prioridade lexical sobre aque le obtido pelo indivíduo7 Hallgarth7 refere que Mill propôs o princípio do dano harm principle para tentar harmonizar a autonomia pessoal em atingir seus próprios fins prazeres individuais com o mandado do Estado para manter a vida comunitária prazer cor porativo Este princípio põe limites à autonomia que adultos possam exercer ao perseguir seus fins na comunidade ao mesmo tempo que limita o po der do Estado em intervir na vida pessoal dos cida dãos a não ser para proteger terceiros Os agressores de crianças causam danos à criança agredida e ao futuro adulto no qual esta se tornará ou seja a terceiros Sendo assim do ponto de vista utilitarista a violência é um ato moralmente conde nável justificandose a intervenção do Estado para fazer cessar tal comportamento Deontologia As teorias éticas deontológicas são uma classe to talmente diferente de teorias morais Elas defendem que a obediência a princípios morais é um dever não dependente da produção de resultados benéficos não nascendo da situação A deontologia é a ética do dever desenvolvida so bretudo por Kant para quem a moralidade do agir baseiase na motivação humana isto é na boa von tade do agente moral e não nas conseqüências de seus atos7 Para Kant os homens enquanto seres racionais imperfeitos necessitam do conceito de dever como um guia prático para a ação visto que é necessário subordinar desejos humanos conflituosos à vontade racional autônoma e cumpridora das leis Portanto segundo esta perspectiva a comparação de utilidades é sempre irrelevante algumas ações sim plesmente não devem ser feitas quaisquer que sejam as conseqüências11 O pensamento conseqüencialista dominou o deba te ético no século XIX e no início do século XX até que WD Ross fez ressurgir o interesse filosófico para a noção do dever reformulandoo Ross retomou a teoria dos deveres mas introduziu o conceito de de veres prima facie isto é não absolutos Isto diferen cia suas idéias daquelas da deontologia clássica Um dever prima facie é aquele que a pessoa deve cumprir a menos que ela vá ao encontro de um dever mais importante reconhecido intuitivamente Segun do Ross uma ação é moralmente certa isto é um real dever se e somente se é um dever prima facie e quando nenhuma outra ação conflitante representa um dever mais rigoroso7 Ross admitia a complexidade do domínio moral nos interesses humanos Diante de cada situação da vida consideramse os diversos deveres pesase cada um e decidese qual é o mais importante naquele momen to O peso que se dá intuitivamente aos vários deve res é de fato como se trabalha a moralidade na práti ca Embora isto represente uma certa fraqueza ofere ce explicação prática para a complexidade moral que as pessoas encontram no diaadia isto é em seus conflitos No caso da violência contra a criança os profissio nais ficam entre os deveres de proteger a criança de tratála clinicamente de mantêla junto à família de melhorar as relações familiares e de notificar o caso às autoridades competentes A experiência tem mos trado que em cada caso um desses deveres precisa ser cumprido prioritariamente mas o objetivo é alcançar o cumprimento de todos eles numa ordem hierárqui ca que é individualizada para cada caso Um dos mais importantes avanços do Estatuto da Criança e do Adolescente ECA lei federal nº 8069 90 foi o resgate do sentido de cidadania da criança através da doutrina da proteção integral Essa lei tor nou obrigatória a notificação de casos suspeitos ou confirmados de maustratos contra criança ou ado lescente e os profissionais de saúde passaram a ter uma razão prática para proceder à notificação o de ver previsto em lei É através da notificação que se cria o elo entre a área da saúde e o sistema legal iniciandose a formação da rede multiprofissional e interinstitucional da atuação fundamental nesses casos permitindo também o dimensionamento epidemiológico da violência CONCLUSÕES Podese razoavelmente concluir que o Estado tem o dever prima facie de intervir para proteger crian ças de situações seriamente danosas para elas Se 665 665 665 665 665 Rev Saúde Pública 200034665965 wwwfspuspbrrsp Ética da violência contra crianças Ferreira AL Schramm FR gundo Aiken Purdy1 nenhuma teoria especial de direitos morais é necessária para justificar esta in terferência A intervenção é baseada em um dever mais amplo do Estado em prover proteção básica a indivíduos em situação de vulnerabilidade compa rativamente maior Ademais ao defender a imunidade parental de in terferências o respeito pelo direito de autonomia está sendo limitado à geração dos pais não atingindo as gerações seguintes o que pode ser visto como moral mente injusto Além disso não é incomum se valer do direito de privacidade familiar e de nãointerfe rência para deixar de atuar em situações nas quais REFERÊNCIAS 1 Aiken W Purdy LM Childrens rights In Encyclopedia of applied ethics San Diego Academic Press 1998 v 1 p 4516 2 Almeida JLT Schramm FR Paradigm shift metamorphosis of medical ethics and the rise of bioethics Cad Saúde Pública 199915 Supl 11525 3 Archard D Child abuse In Encyclopedia of applied ethics San Diego Academic Press 1998 v 1 p 43750 4 Burke P Mal estar na civilização Folha de São Paulo 1999 maio 2 Caderno Mais 9 5 Gelles RJ Intimate violence in families Thousand Oaks Sage Publications 1997 6 Habermas J Consciência moral e agir comunicativo Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1989 haja possibilidade de conseqüências indesejáveis da intervenção para a criança Podese afirmar que nenhum dos extremos deixar tudo por conta da família ou o Estado interferir sem considerar os desejos da família esteja respeitando os melhores interesses da criança A experiência en sina que tem sido melhor para a criança e para a soci edade que as crianças aprendam a lidar com o mundo a partir de uma posição de proteção relativa que per mita garantir prima facie seus direitos específicos sem impedir seu desenvolvimento biopsicossocial cuja característica principal é o exercício de cidadania baseado na autonomia com responsabilidade 7 Hallgart MW Consequentialismm and deontology In Encyclopedia of applied ethics San Diego Academic Press 1998 v 1 p 60921 8 Häyry H Paternalism In Encyclopedia of applied ethics San Diego Academic Press 1998 v3 p 44957 9 Holm S Autonomy In Encyclopedia of applied ethics San Diego Academic Press 1998 v 1 p 26774 10 Mori M A bioética sua natureza e história Humanida des 1994933341 11 Scarre G Utilitarianism In Encyclopedia of applied ethics San Diego Academic Press 1998 v 4 p 43956 12Soares BM Formas de violência doméstica Folha de São Paulo 1997 maio 18 Caderno Mais 5