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Direito ·
Introdução ao Estudo do Direito
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Revista de Ciéncias Juridicas ULBRA Vol 10 N 2 JulDez 2009 ISSN 15181685 oom EVANGELICA LUTERANA SAO PAULO Joaquin Herrera Flores Universidad Pablo OlavideEspanha j Luigi Ferrajoli Roma TreItalia President Delmar Stahnke Wanda Capeller ToulouseFranga j j Membros nacionais externos ooh Vicepresidente S 4 5 Aldacy Rachid Coutinho UFPR Joseida Elizabete Ti By oseraa Eiizapere 1m Claudio Brandao UFPE oe Claudio Muradas Homercher Uidign UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL Cisse Muras Homers Reitor elbo Marcus Lobo de Souza UNISINOS Marcos Fernando Ziemer Jacinto Nelson de Miranda Coutinho UFPR ViceReitor J0S Maria Rosa Tesheiner PUCRS Valter Kuchenbecker Luis Afonso Heck UFRGS Miguel Reale Jr USP ProReitor de Administragao Nereu José Giacomolli PUCRS Ricardo Miller Vadimir Passos de Freitas UFPR 5 7 Membros nacionais internos ProReitor de Grad a Ricardos Prates Marto Angelo Roberto Iiha da Silva ULBRACanoas ProReitor Adjunto de Graduagado Gerson Luiz Carlos Branco ULBRA Canoas Pedro Antonio Gonzalez Hernandez Leonel Pires Ohlweiler ULBRACanoas Pr6Reitor de Pesquisa e PosGraduagao Wilson Anténio Steinmetz ULBRACanoas Erwin Francisco Tochtrop Junior ProéReitor de Extensao e Assuntos Comunitarios EDITORA DA ULBRA Ricardo Willy Rieth Diretor Astomiro Romais Coordenador de periddicos Roger Kessler Gomes Capelao Geral Capa Everaldo Manica Ficanha Gerhard Grasel Editoragao Rodrigo Saldanha de Abreu Email editoraulbrabr DIREITOE DEMOCRACIA Solicitase permuta We request exchange On demande Iéchange Indexador LATINDEX naexacor Wir erbitten Austausch Editora Enderego para permuta Elaine Harzheim Maced aine Naraneim Maceo Universidade Luterana do Brasil Conselho Editorial Biblioteca Martinho Lutero Membros internacionais Setor de aquisigao AndréJean Arnaud Paris XNanterre AV Farroupilha 8001 Prédio 05 Etienne Picard Université de Paris Franga 92425900 CanoasRS Email bibpermutaulbrabr O conteudo e estilo linguistico sao de responsabilidade exclusiva dos autores Direitos autorais reservados Citagao parcial permitida com referéncia a fonte Dados Internacionais de Catalogacao na Publicagao CIP D598 Direito e Democracia revista do Centro de Ciéncias Juridicas Universidade Luterana do Brasil Vol 1 n 1 2000 CanoasEdULBRA2000 v 23 cm Semestral A partir do vol 1 n 2 2000 o subtitulo foi modificado para Revista de Ciéncias Juridicas ISSN 15181685 1 Direito periddicos 2 Ciéncias juridicas Universidade Luterana do Brasil CDU 3405 Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero Sumário 187 Editorial 189 Breves considerações sobre o olhar ouvir e escrever enquanto passos constitutivos da pesquisa qualitativa no âmbito jurídico aproximações entre antropologia e direito Vinícius Gil Braga 200 Estado social brasileiro e equilíbrio financeiro Paulo Sergio Rosso 212 O desenvolvimento dos direitos humanos fundamentais numa perspectiva histórica Alberto de Magalhães Franco Filho 228 O princípio da igualdade na sociedade brasileira pluralista a questão das cotas raciais em universidades Helton Kramer Lustoza 250 O compromisso de compra e venda e a vigência das Súmulas 84 e 239 do STJ Gerson Luiz Carlos Branco 267 A utilização do Sistema de Registro de Preços por órgãos que não participaram da licitação uma análise do art 8º do Decreto Federal nº 3931 de 19 de setembro de 2001 Thiago Dellazari Melo 286 O monumento bárbaro desconcertando o sistema penal entre violência crime e logos Alexandre Costi Pandolfo 295 Discurso poder e ética na decisão penal Gabriel Antinolfi Divan Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 186 311 O ensino do Direito Penal da legitimação da violência à luta pela vida Marília Denardin Budó 331 Giorgio Agamben e o garantismo razões de um desencontro Moysés da Fontoura Pinto Neto 344 Documento histórico A carta de Pero Vaz de Caminha Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 187 Editorial É de Edgar Morin a crítica de que o progresso não se resume ao enunciado de que o amanhã será melhor que o ontem embora tenha sido essa uma verdade vendida aos quatro ventos A ambivalência se faz presente no progresso afirma o sociólogo produzindo ao mesmo tempo curas milagrosas para doenças que muito atormentaram o homem e armas de destruição em massa a economia se divide entre a concentração de riquezas e os guetos de miserabilidade a cultura se dissipa entre a massificação e a retomada da tradição e do pluralismo Nessa bipolarização também o direito se defronta com novas e velhas probabilidades desafiando o jurista a encontrar o seu mister porque ao mesmo tempo é partícipe e destinatário diretamente comprometido desse constante renascer não lhe cabendo abdicar do seu próprio destino E é nesse espaço que vem a lume a Direito e Democracia em seu volume 10 número 2 orgulhosa em veicular os trabalhos de seus articulistas juristas conscientes de seu papel e de seu lugar neste universo A indispensabilidade da necessária pesquisa qualitativa do direito através de um diálogo atento à epistemologia e à antropologia estabelecendo novos olhares sobre a realidade experimentada transformandoa a partir do olhar do ouvir e do escrever faculdades a serem estimuladas no entendimento sociocultural é enfrentada por Vinícius Gil Braga De Paulo Sergio Rosso vem a contribuição sobre o estudo do equilíbrio financeiro entre as exigências do estabelecimento do Estado social e o seu poder de arrecadação assentando a melhor adequação dos serviços prestados porque vedado o retrocesso dos direitos sociais como única alternativa jurídica sobejante O desenvolvimento dos direitos humanos e a mudança de paradigmas dos direitos individuais para os transindividuais é objeto do trabalho que leva a autoria de Alberto de Magalhães Franco Filho tema que sempre merece atenção de todo estudioso do direito Helton Kramer Lustoza aborda a polêmica da questão das cotas raciais em universidades situada entre os extremos de uma política de discriminação positiva e da ausência de legitimação perante o princípio da igualdade A distinção entre o regime dos efeitos do compromisso de compra e venda registrado com eficácia real e o não registrado com eficácia obrigacional gerando respectivamente ações reais e ações obrigacionais diante das novas disposições do CCB de 2002 e a jurisprudência pretérita consolidada pelas Súmulas 84 e 239 do STJ ganha corpo no artigo da lavra de Gerson Luiz Carlos Branco No âmbito das licitações recebe de Thiago Dellazari Melo estudo o Sistema de Registro de Preços por órgãos não participantes da chamada pública com vistas à preservação e manutenção dos princípios jurídicos que fundamentam o respectivo ordenamento de regência Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 188 A desconstrução do poder punitivo a partir da análise do pensamento de Walter Benjamin Giorgio Agamben e Robert Musil é o foco do artigo firmado por Alexandre Costi Pandolfo a apontar que o sistema penal e bem assim o direito estado e história representam monumentos bárbaros retratando a violência intrínseca ao próprio logos De Gabriel Antinolfi Divan vem o estudo sobre o discurso o poder e a ética nas decisões penais com vistas a não ser infligida ao acusado pena que ultrapasse a devida cominação sob o equívoco de manifestação atécnica passional e exageradamente estigmatizante Diante da deslegitimação teórica e fática do sistema penal Marília Denardin Budó esgrima o descompasso dessa constatação com o ensino do direito penal no Brasil onde ainda não se questionam o real exercício de poder e a violência que vigora no próprio sistema a marcálo pela morte denunciando a articulista que o tratamento de tais questões de forma crítica significa de certa forma poupar vidas Moysés da Fontoura Pinto Neto critica as apropriações do pensamento do filósofo Giorgio Agamben por grande parte dos juristas propondo uma leitura diversa ao resgatar de seus textos a ênfase de uma política que vem na qual conceitos atuais como soberania direitos humanos e contrato social perdem seu papel No espaço documento histórico a Direito e Democracia oferece aos seus leitores versão oficial de A Carta de Pero Vaz de Caminha que não apenas retrata descrições geográficas da terra descoberta mas também assinala os primeiros atos jurídicos da civilização europeia nas terras brasileiras Aos nossos consumidores que aproveitem a leitura Elaine Harzheim Macedo Editora Breves considerações sobre o olhar ouvir e escrever enquanto passos constitutivos da pesquisa qualitativa no âmbito jurídico aproximações entre antropologia e direito1 Vinícius Gil Braga RESumo O presente escrito tem por finalidade a proposição de novas possibilidades à pesquisa qualitativa no direito Nesse sentido estabelece um diálogo atento à epistemologia e à antropologia sugerindo ao juristadiscente do direito a realização de um exercício de observação capaz de instigar o estabelecimento de novos olhares sobre a realidade experienciada transformandoa Para tanto estimulase o desenvolvimento de três faculdades de entendimento sociocultural inerentes ao modo de conhecer das ciências sociais o olhar o ouvir e o escrever Palavraschave Direito Antropologia Epistemologia Pesquisa qualitativa Short contributions about watching listening and writing as constitutives steps of qualitative research in the juridical space Approaches between anthropology and law ABStRAct The present work aims at the proposition of new possibilities for qualitative law research Therefore an attentive dialogue is established in relation to epistemology and anthropology Such dialogue suggests to juristlaw students the performance of an observation exercise capable of providing the viable establishment of new perspectives about an experienced reality modifying it Thus the development of three sociocultural understanding senses is stimulated those inserted into the social sciences pattern of acquiring knowledge watching listening and writing Keywords Law Anthropology Epistemology Qualitative research Vinícius Gil Braga é Mestre em Ciências Criminais PUCRS Professor de Direito na Faculdade Cenecista de Osório CNECOsório e American College of Brazilian Studies AMBRA Email viniciusgilbragahotmailcom 1 O presente artigo se constitui em fragmento de um trabalho de maior fôlego ainda inédito voltado ao exame e proposição de novas possibilidades à pesquisa qualitativa no direito ademais esse escrito segue como fonte de estímulo e orientação o artigo intitulado O trabalho do antropólogo olhar ouvir escrever de autoria de Roberto Cardoso de Oliveira CARDOSO DE OLIVEIRA Roberto O trabalho do antropólogo olhar ouvir escrever Revista de Antropologia USP vol 39 nº 1 São Paulo 1996 p1337 Direito e Democracia v10 n2 p189199 juldez 2009 Canoas Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 190 a procura das coisas perdidas é dificultada pelos hábitos rotineiros e é por isso que dá tanto trabalho encontrálas Gabriel García Márquez Cem anos de solidão 1 conSiDERAçõES iniciAiS ou DA nEcESSiDADE DE um PEnSAmEnto comPlExo Je travaille les idées qui me travaillent2 Edgar Morin Não falamos todos do mesmo lugar Ter posições claras a respeito de condições e circunstâncias históricas culturais sociais psicológicas particulares importa na assunção de uma posição particular a nossa posição enquanto sujeitos do conhecimento a partir da qual falamos e direcionamos nossos esforços para a construção do conhecimento através de um exercício reflexivo pessoal e compartilhado Nesse particular atentese à formação sutil da palavra conviver necessário viver com o outro em aberto respeito à sua dignidade e diferença3 Somos sobreviventes de nossa história4 O conhecimento produzido traz consigo nossa carga de historicidade vivências relações angústias limites etc Encontra se portanto sujeito às nossas ideias experiências e faltas persistindo sempre a inextricável relação entre o saber próprio ao pesquisador e o conhecimento por ele produzido ou da influência do observador no resultado de sua observação Ditas contingências delineiam nossos conceitos e concepções importando nessa esteira que um ponto de vista seja tão somente a vista de um ponto ou em melhor expressão a consciência de que o olhar lançado dirigese sobre uma perspectiva apenas uma no seio de tantas outras possíveis As duas assertivas acima traduzem a sensível necessidade de refletir as questões inerentes ao conhecer isto é que o embasam e fundamentam e a partir das quais são informadas e legitimadas suas formas de construção Tão somente a partir desse horizonte compreensivo uma base metodológica qualitativa e suas técnicas de pesquisa passam a auferir sentido isto é tratase fundamentalmente da conscientização crítica sobre os modos de expressão do processo científico necessariamente marcados pela indagação e pelo questionamento de seus limites e possibilidades 2 Trabalho as ideias que me trabalham tradução livre do francês Entretien avec Edgar Morin MARS Le Monde Arabe dans la Recherche Scientifique nº 6 Paris 1996 p59 3 SOUZA Ricardo Timm de Sobre a construção do sentido o pensar e o agir entre a vida e a filosofia São Paulo Perspectiva 2004 p1516 4 Esse breve escrito é tributário do convívio e dos ensinamentos do filósofo e professor Ricardo Timm de Souza exemplo de serhumano que levaremos sempre conosco como fonte de incentivo e inspiração Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 191 Como bem refere Edgar Morin até a metade do século XX a maior parte das ciências tinha a redução como método do conhecimento isto é do conhecimento de um todo para o conhecimento das partes que o compõem e o determinismo como conceito principal ou seja a ocultaçãodesconsideração do acaso do novo das invenções e a aplicação da lógica mecânica da máquina artificial aos problemas vivos humanos e sociais Interessante perceber em contraponto que a cultura humana geral sempre admitiu a possibilidade de se buscar a contextualização de toda informação ou ideia Ao passo que a cultura técnica e científica como referido em nome do seu caráter disciplinar especializado optou por seguir um modelo de racionalidade responsável por separar e compartimentar os conhecimentos prejudicando ainda mais a contextualização dos mesmos5 Com propriedade assevera o epistemólogo francês Deveríamos portanto ser animados por um princípio de pensamento que nos permitisse ligar as coisas que nos parecem separadas umas em relação às outras Ora nosso sistema educativo privilegia a separação em vez de praticar a ligação A organização do conhecimento sob a forma de disciplinas seria útil se estas não estivessem fechadas em si mesmas compartimentadas umas em relação às outras assim o conhecimento de um conjunto global o homem é um conhecimento parcelado Se quisermos conhecer o espírito humano podemos fazêlo através das ciências humanas como a psicologia mas o outro aspecto do espírito humano o cérebro órgão biológico será estudado pela biologia Vivemos numa sociedade multidimensional simultaneamente econômica psicológica mitológica sociológica mas estudamos estas dimensões separadamente e não umas em relação com as outras O princípio de separação tornanos talvez mais lúcidos sobre uma pequena parte separada do seu contexto mas nos torna cegos ou míopes sobre a relação entre a parte e o seu contexto6 destaque nosso Acreditamos que a leitura jurídica do corrente Século XXI somente apresenta sentido de realidade se tomar o direito como uma ciência aberta ao seu tempo Um modo de pensar aberto disposto a explorar os sentidos plurais pertencentes às interfaces entre direito e sociedade qual seja disposto à reflexão e à problematização com vistas a desenvolver nova consistência e tratamento legitimidade e fundamentação Em outras palavras voltado à configuração de uma dogmática jurídica renovada que vislumbra no direito um mecanismo renovado de regulação social o que todavia não se confunde com engessamento da realidade mais próximo e adequado à realidade social a qual se destina O referido modelo reflexivo enseja a assunção de um compromisso com a arte de 5 MORIN Edgar A necessidade de um pensamento complexo In Representação e complexidade MENDES Candido organizador Rio de Janeiro Garamond 2003 6 MORIN Edgar Da necessidade de um pensamento complexo In Para navegar no século 21 Tecnologias do imaginário e cibercultura MARTINS Francisco Menezes SILVA Juremir Machado da organizadores 2ª ed Porto Alegre Sulina 2000 p20 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 192 saberviver em espaço aberto plural e de respeito à diferença Isto é uma cultura de protagonistas cujos diferentes projetos oriundos da diversidade possam ser respeitados e valorizados na medida e riqueza de cada experiência As recentes percepções em torno ao Estado democrático de direito já caminham nessa direção muito embora demasiado resta ao que se aprenderdiscutirreformular um projeto vivo no tempo Para tanto fazse necessário estabelecer novas relações quer dizer dar azo ao diálogo para com outras dimensões do conhecimento inclusive à arte Nesse sentido a partir deste escrito gostaríamos de ensejar a percepção de que o aprender exigenos um remanejamento do olhar reaprender a olhar não raro importando em certas circunstâncias desaprender qual seja estarmos abertos a novas experiências e possibilidades reconstrutivas Legitimamente experimentar Extrair do conhecimento todo o seu sabor O sabor de conhecer7 Isto se aplica diretamente às chamadas metodologias qualitativas marcadas por privilegiar de modo geral a análise de microprocessos através do estudo das ações sociais individuais e grupais realizando um exame intensivo dos dados tanto em amplitude quanto em profundidade caracterizada consoante se depreende do exposto pela heterodoxia no momento da análise8 As páginas que seguem visam a estabelecer um exercício de observação capaz de instigar o discente do direito ao estabelecimento de novos olhares sobre a realidade experienciada transformandoa Sobretudo quando se reconhece o fato do quão adstrita está a pesquisa jurídica ao uso de fontes bibliográficas eou jurisprudenciais bem como do consequente imobilismo que essa postura tem acarretado 7 GOLDENBERG Mirian A arte de pesquisar como fazer pesquisa qualitativa em Ciências Sociais 10ª ed Rio de Janeiro Record 2007 8 MARTINS Heloísa Metodologia qualitativa de pesquisa Educação e pesquisa v 30 nº 2 São Paulo 2004 p292 Nas palavras da autora Outra característica importante da metodologia qualitativa consiste na heterodoxia no momento da análise dos dados A variedade de material obtido qualitativamente exige do pesquisador uma capacidade integrativa e analítica que por sua vez depende do desenvolvimento de uma capacidade criadora e intuitiva A maior dificuldade da disciplina de métodos e técnicas de pesquisa está na dificuldade de ensinar como se analisa os dados isto é como se atribui a eles significados sendo mais fácil ensinar a coletálos ou a realizar trabalho de campo A intuição aqui mencionada não é um dom mas uma resultante da formação teórica e dos exercícios práticos do pesquisador Já no desenvolvimento do emprego de metodologias quantitativas o que se procura é justamente o contrário isto é controlar o exercício da intuição e da imaginação mediante a adoção de procedimentos bem delimitados que permitam restringir a ingerência e a expressão da subjetividade do pesquisador O uso de uma metodologia ou de outra dependerá muito do tipo de problema colocado e dos objetivos da pesquisa no que se refere especificamente à metodologia qualitativa é que com ela a pesquisa depende fundamentalmente da competência teórica e metodológica do cientista social Tratase de um trabalho que só pode ser realizado com o uso da intuição da imaginação e da experiência do sociólogo o que não significa que no caso da metodologia quantitativa também não seja requerida a competência é que neste caso a formalização técnica acaba dominando o pesquisador p292293 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 193 2 PoR um REmAnEjo Do olhAR BREVE ExERcício DE AnáliSE com ViStAS à PRomoção DE noVAS PoSSiBiliDADES REflExiVAS Ao EStuDo Do DiREito A metodologia qualitativa trabalha sempre com unidades sociais privilegia os estudos de caso entendendose como caso o indivíduo a comunidade o grupo a instituição9 Em seu seio estão presentes três faculdades de entendimento sociocultural isto é inerentes ao modo de conhecer das ciências sociais e do direito enquanto modalidade de ciência social aplicada a saber o olhar o ouvir e o escrever10 Notoriamente quando aludimos ao reaprender a olhar está se fazendo referência à postura epistemológica do conhecer conformadora de uma visão de mundo e igualmente do estudo escolhido envolvendo por conseguinte as três faculdades de entendimento nomeadas O olhar em sentido estrito é no mais das vezes a primeira experiência do pesquisador em sua situação de pesquisa marcado sobremaneira por sua domesticação teórica Consoante adverte Roberto Cardoso de Oliveira a partir do momento em que nos sentimos preparados para a investigação empírica o objeto sobre o qual dirigimos o nosso olhar já foi previamente alterado pelo próprio modo de visualizálo Em outras palavras seja qual for esse objeto ele não escapa de ser apreendido pelo esquema conceitual da disciplina formadora de nossa maneira de ver a realidade11 Nas palavras de Cardoso de Oliveira Esse esquema conceitual disciplinadamente apreendido durante o nosso itinerário acadêmico daí o termo disciplina para as matérias que estudamos funciona como uma espécie de prisma por meio do qual a realidade observada sofre um processo de refração É certo que isso não é exclusivo do Olhar uma vez que está presente em todo processo de conhecimento envolvendo portanto todos aqueles atos cognitivos em seu conjunto Mas é certamente no Olhar que essa refração pode ser mais bem compreendida A própria imagem óptica refração chama a atenção para isso12 9 MARTINS Heloísa Metodologia qualitativa de pesquisa Educação e pesquisa v 30 nº 2 São Paulo 2004 p294 10 CARDOSO DE OLIVEIRA opcit p14 e seguintes 11 Idem p15 12 Idem p16 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 194 Imaginemos a situação de um estudante de direito que se dirige ao Fórum de sua cidade com vistas a observar o Juizado Especial Criminal13 em sua ritualística dinâmicas e procedimentos Claro está que a sua condição de estudante de direito não pode ser desconsiderada no processo de seu exercício de observação Ao ingressar no ambiente do Fórum perceberá os olhares que a ele são dirigidos de parte dos funcionários de segurança servidores dos cartórios e demais transeuntes A sua postura vestimenta e empatia poderão levar um simples pedido de informações a diferentes possibilidades Olhares e posturas que poderão encetar ou não alguma significação Com o passar do tempo vaise desenvolvendo uma espécie de sensibilidade no trato dessas questões uma sorte de conhecimento produzido a partir de acertos e equívocos responsáveis por ao longo desse processo conduzirnos a uma gradativa sensação de segurança e colocação diante destas situações Retomando o argumento Não obstante além da sua vivência junto à prática jurídica de igual modo serão os seus conhecimentos de direito material e processual responsáveis por balizar as suas percepções primeiras Ao adentrar na sala de audiência o observador identificará a disposição dos atores jurídicos juiz de direito defesa e acusação tal qual estudou em disciplinas e manuais de direito penal processo penal e organização judiciária Observará ainda as características arquitetônicas da sala de audiência e suas similitudes eou diferenças em relação às outras que por ventura tenha presenciado ou assistido em filmes ou demais fontes de informação Todavia em seguida chegará à conclusão de que para dar conta da natureza das relações sociojurídicas estabelecidas nesse ambiente somente o Olhar não seria suficiente Como alcançar o significado dessas relações sem se valer concomitantemente de outro recurso para obtenção dos dados o Ouvir Se o Olhar possui uma significação específica para um cientista social o Ouvir também o tem Ao observador de uma audiência do Juizado Especial Criminal os discursos terão como liame comum o desenvolvimento de argumentos pautados por essa esfera do direito penal e processual penal Entretanto o mesmo poderá reparar em certos equívocos ou imprecisões no uso dessa linguagem e inclusive dos próprios termos e institutos do direito Ninguém está livre de falhas Poderá perceber ainda uma ampla gama de nãoditos por vezes ensurdecedores e inclusive posturas violadoras ao sentimento de justiça O Olhar aliado ao Ouvir poderá portanto informar ao estudante uma série de circunstâncias imponderáveis imprevistas que não estavam presentes no repertório legislativo e doutrinário de seu aprendizado em uma disciplina acadêmica Outro aspecto o pesquisador poderá avançar em seu entendimento desde que atento à globalidade de informações que se entrecruzam naquele campo a exemplo dos ditosnãoditos olhares etc presentes no próprio intervalo entre as audiências da pauta de julgamentos em questão ou ainda no perfil das partes envolvidas e suas dinâmicas entre outros Em suma tratase 13 Os Juizados Especiais Criminais tiveram sua origem por ocasião da Lei 909995 responsável por estabelecer a informalização dos procedimentos judiciais civil e criminal no âmbito da administração da justiça Sob esse prisma a esfera criminal do dispositivo passou a se ocupar das chamadas infrações de menor potencial ofensivo isto é contravenções penais e demais crimes cuja pena máxima não excede dois anos de prisão Lei 1025101 Para tanto compreende um amplo rol de pequenos delitos que com o passar dos anos encontravamse afastados da justiça criminal tradicional em nome do princípio da insignificância ou bagatela assim regressando ao sistema penal e às agências oficiais de controle Para uma rápida referência aos juizados especiais criminais princípios e regras gerais vide GONÇALVES Victor Eduardo Rios Juizados especiais criminais doutrina e jurisprudência atualizadas São Paulo Saraiva 1998 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 195 de um repertório amplo de possibilidades que podem fazerse presentes nas situações de pesquisa experienciadas delineadas de acordo com o recorte da pesquisa em particular seu problema de estudo e seus objetivos anteriormente delimitados orientando inclusive para novos rumos e eventuais correções de adequação da pesquisa Todavia fazse relevante esclarecer que o Ouvir não se restringe à sua manifestação passiva isto é um observador mergulhado no curso de um ritual judiciário não pode se manifestar interromper a audiência eou retirar suas dúvidas com as partes envolvidas Imaginemos por conseguinte um momento posterior em que o mesmo tem a oportunidade de realizar entrevistas Mas para isso há de se saber Ouvir Acompanhando Roberto Cardoso de Oliveira entendemos que esse exercício se apresenta como delicado problemático ínsito à própria natureza da relação estabelecida entre entrevistador e entrevistado O observadorentrevistador deve estar aberto às situações a ele colocadas consoante referimos anteriormente o aprender exigenos um remanejamento do olhar reaprender a olhar aqui compreendido como olhar em sentido estrito ouvir e escrever não raro importando em certas circunstâncias desaprender qual seja estarmos abertos a novas experiências e possibilidades reconstrutivas Legitimamente experimentar Extrair do conhecimento todo o seu sabor O sabor de conhecer Pois bem percebase que caso essa atitude não seja espontaneamente assumida teremos tão somente perguntas feitas em busca de respostas pontuais criando um campo ilusório de interação Em outras palavras não se pode perguntar com vistas a orientar a resposta que se quer ouvir Isto porque a rigor não há verdadeira interação entre entrevistador e entrevistado se não se cria condições de efetivo diálogo Portanto estamos falando de dois níveis de importância a saber a primeira atinente ao próprio sujeito do conhecimento que deve se mostrar aberto crítico e positivamente inquieto no curso do processo de pesquisa e ainda uma segunda que diz respeito à necessidade de se perceber no informante um interlocutor qual seja edificar uma relação em que o pesquisador tenha a habilidade de ouvir o entrevistado e por ele ser igualmente ouvido construir pontes cognitivas encetando um diálogo teoricamente de iguais sem receio de estar assim contaminando o discurso do informante com elementos de seu próprio discurso pesquisador Portanto sabendose não ser possível a neutralidade idealizada pelos defensores da objetividade absoluta é tão somente no diálogo marcado pela fusão de horizontes que o Ouvir ganha em qualidade e altera uma relação qual estrada de mão única numa outra de mão dupla constituindo assim uma verdadeira interação14 De outra sorte é oportuno referir que uma relação em tal nível envolve um exercício mais aprofundado de pesquisa mais intenso o que em antropologia convencionouse chamar de observação participante Nas palavras de Cardoso de Oliveira 14 Idem p21 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 196 o que significa dizer que o pesquisador assume um papel perfeitamente digerível pela sociedade ou situação de pesquisa observada a ponto de viabilizar uma aceitação senão ótima pelos membros daquela sociedade ou situação pelo menos afável de modo a não impedir a necessária interação Entendo que tal modalidade de observação realiza um inegável ato cognitivo desde que a compreensão Verstehen que lhe é subjacente capta aquilo que um hermeneuta chamaria de excedente de sentido i e aquelas significações por conseguinte dados que escapam a quaisquer metodologias de pretensão nomológica Portanto por meio do qual o pesquisador busca interpretar melhor dizendo compreender a sociedade e a cultura do Outro de dentro em sua verdadeira interioridade Tentando penetrar nas formas de vida que lhe são estranhas a vivência que delas passa a ter cumpre uma função estratégica no ato de elaboração do texto uma vez que essa vivência só assegurada pela observação participante estando lá passa a ser evocada durante toda a interpretação do material etnográfico no processo de sua inscrição no discurso da disciplina15 Assim para que a pesquisa se realize é necessário que o pesquisado aceite o pesquisador disponhase a falar sobre sua vida introduza o pesquisador no seu grupo e dêlhe liberdade de observação Esse mergulho na vida de grupos e culturas aos quais o pesquisador não pertence exige uma aproximação baseada na simpatia confiança afeto amizade empatia etc16 Entretanto há de se ter prudência na escolha dos informantes sobretudo quando se restringe a pesquisa tão somente a um informante privilegiado Sobre a questão adverte Heloísa Martins O recurso ao depoimento oral como forma de construção do documento tem levado várias questões e objeções que dizem respeito à memória A referência às peças que a memória prega baseiase na compreensão de que entre o tempo do acontecimento e o tempo presente do relato o informante cuja memória se apela viveu um conjunto de experiências que de certa forma orientam a visão que ele tem do passado Seu olhar presente para o já vivido sofre a interferência daquelas experiências muitas vezes ele não espelha a verdade sobre a vida passada mas se limita a lembrar aquilo que ele quer ou pode recordar à luz das vivências mais recentes Nesse sentido o informante estaria fazendo interpretações e não expondo a verdade Essa é uma questão que frequentemente preocupa os historiadores que sempre recomendaram que se fizesse a crítica do dado da fonte do documento para averiguar sua veracidade Daí a constante desconfiança acerca da confiabilidade de certos relatos17 15 Idem p2122 31 16 MARTINS opcit p294 17 Idem p295 Interessante referir em contraponto o relato presente no texto O grande mentiroso tradição veracidade e imaginação em história oral de autoria de Janaína Amado AMADO Janaína O grande mentiroso tradição veracidade e imaginação em história oral História nº 14 São Paulo 1995 p125136 A autora com base na análise de uma entrevista explora a questão da mentira na história oral para tanto defende a ideia de que depoimentos desprezados por historiadores por serem mentirosos isto é por não promoverem reconstituições históricas fidedignas dos fatos pesquisados podem conter dimensões simbólicas extremamente importantes O exemplo utilizado demonstra como tradição imaginação e cultura erudita e popular combinaramse para produzir um depoimento mentiroso que entretanto se revelou o mais rico e fértil para a análise histórica Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 197 Retomando o argumento se o Olhar etnográfico tanto quanto o Ouvir cumpre sua função elementar na pesquisa empírica é o Escrever momento posterior e particular que se revela como o passo mais fecundo da interpretação e é por meio dele quando se textualiza a realidade sociocultural que o pensamento se manifesta em sua plena criatividade18 Desse modo o Escrever é a etapa seguinte à observação olhar e ouvir cumprindo a mais alta função cognitiva Em outros termos envolve o processo de textualização dos fenômenos socioculturais observados estando lá trazendo ao texto os fatos observados vistos e ouvidos para o plano do discurso Tratase de um empreendimento bastante complexo que não se confunde com as anotações eou rabiscos que por ventura tenham sido feitos na primeira fase da pesquisa É portanto necessariamente recursivo19 cíclico um processo de idas e vindas aliando o conhecimento teórico em compasso com as circunstâncias experienciadas mediadas permanentemente pela reflexão Como bem pondera Roberto Cardoso de Oliveira Pelo menos minha experiência indica que o ato de escrever e o de pensar são de tal forma solidários entre si que juntos formam praticamente um mesmo ato cognitivo Isso significa que nesse caso o texto não espera que o seu autor tenha primeiro todas as respostas para só então poder ser iniciado Entendo que ocorra na elaboração de uma boa narrativa que o pesquisador de posse de suas observações devidamente organizadas já inicie o processo de textualização uma vez que esta não é apenas uma forma escrita de simples exposição uma vez que há também a forma oral porém é a produção do texto também produção de conhecimento Não obstante sendo o ato de escrever um ato igualmente cognitivo esse ato tende a ser repetido quantas vezes for necessário portanto ele é escrito e reescrito repetidamente não apenas para aperfeiçoar o texto do ponto de vista formal mas também para melhorar a veracidade das descrições e da narrativa aprofundar a análise e consolidar argumentos20 Desse modo concluindo o exemplo mencionado imaginemos que o nosso observador poderia textualizar em sua síntese final de que o exercício de pesquisa realizado permitiulhe estranhar um descompasso entre a previsão abstrata da lei e o âmbito das práticas rituais ou seja do exercício do poder emanado da lei e sua imbricação com as dinâmicas estabelecidas ilustrado a partir da corporalidade e demais expressões performáticas olhares posturas atos de fala brincadeiras sutis repreensões violências explícitas e simbólicas entre outros dos atores nas diferenciadas relações envolvidas Portanto depreendese do exposto que o olhar 18 CARDOSO DE OLIVEIRA op cit p13 19 A respeito do caráter recursivo da construção do conhecimento no âmbito das ciências humanas vide DESHAIES Bruno Metodologia da investigação em ciências humanas Lisboa Instituto Piaget 1992 p213215 20 CARDOSO DE OLIVEIRA op cit p29 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 198 o ouvir e o escrever podem e devem ser questionados em si mesmos embora num primeiro momento possam nos parecer tão familiares e por isso tão triviais a ponto de nos sentirmos dispensados de problematizálos todavia num segundo momento marcado por nossa inserção nas ciências sociais essas faculdades ou melhor dizendo esses atos cognitivos delas decorrentes assumem um sentido todo particular de natureza epistêmica uma vez que é com tais atos que logramos construir o nosso saber21 3 conSiDERAçõES finAiS Este breve escrito objetivou informar ao discente do direito sobre a análise e reflexão dos atos inerentes ao processo cognitivo orientandoo à realização de exercícios de pesquisa de cunho qualitativo Notoriamente o exposto não pode ser desvinculado de outras ideias centrais vinculadas a um conjunto mínimo de decisões e práticas que devem necessariamente acompanhar o desenho de qualquer pesquisa conduzindo a mesma a diferentes possibilidades a saber a decisões relativas à construção do objeto ou delimitação do problema a ser investigado b decisões relativas à seleção dos dados e suas especificidades pessoas locais documentos entre outros c decisões relativas à coleta dos dados e seus corolários os meios necessários para a obtenção da informação indispensável para fins de investigação questionários entrevistas dentre outros d decisões concernentes à análise dos dados e demais elementos da pesquisa técnicas e ferramentas empregadas para ordenar resumir dar sentido às informações coletadas22 Considerando portanto o processo de conhecimento em toda sua complexidade REfERênciAS AMADO Janaína O grande mentiroso tradição veracidade e imaginação em história oral História n14 São Paulo 1995 CARDOSO DE OLIVEIRA Roberto O trabalho do antropólogo olhar ouvir escrever Revista de Antropologia USP v39 n1 São Paulo 1996 DESHAIES Bruno Metodologia da investigação em ciências humanas Lisboa Instituto Piaget 1992 ENTRETIEN AVEC EDGAR MORIN MARS Le Monde Arabe dans la Recherche Scientifique n6 Paris 1996 GOLDENBERG Mirian A arte de pesquisar como fazer pesquisa qualitativa em Ciências Sociais 10ed Rio de Janeiro Record 2007 GONÇALVES Victor Eduardo Rios Juizados especiais criminais doutrina e jurisprudência atualizadas São Paulo Saraiva 1998 21 Idem p15 22 MARRADI Alberto ARCHENTI Nélida PIOVANI Juan Metodología de las ciencias sociales Buenos Aires Emecé 2007 p7185 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 199 MARTINS Heloísa Metodologia qualitativa de pesquisa Educação e pesquisa v30 n2 São Paulo 2004 SOUZA Ricardo Timm de Sobre a construção do sentido o pensar e o agir entre a vida e a filosofia São Paulo Perspectiva 2004 Direito e Democracia v10 n2 p200211 juldez 2009 Canoas Estado social brasileiro e equilíbrio financeiro Paulo Sergio Rosso RESumo Procura encontrar solução para o problema decorrente das exigências do Estado social e os poucos recursos financeiros disponíveis Delineia as características históricas do Estado liberal e do Estado social Rememora implantação do Estado social no Brasil Aponta os graves problemas decorrentes das limitações orçamentárias a que está submetido o moderno Estado social brasileiro em razão das imensas responsabilidades que lhe são impostas constitucionalmente Indica as principais possibilidades de conduta dos governantes visando a atender as responsabilidades impostas pela Constituição Conclui pela impossibilidade de aumento da carga tributária em razão da existência do princípio da vedação ao confisco bem como pela impossibilidade de redução dos investimentos sociais do Estado em face ao princípio da impossibilidade de retrocesso dos direitos sociais Sugere a melhor adequação dos serviços prestados pelo Estado não apenas como solução administrativa mas como única alternativa jurídica sobejante Palavraschave Estado social Estado liberal Crise financeira Despesas públicas Brazilian social State and financial balance ABStRAct The aim of this paper is to find the solution to problems having recourse from the demands of the social State and also of the scarce financial resources available It outlines the historical characteristics of the liberal State and of the social State It goes on to review the implementation of the Social State in Brazil It also highlights severe problems recurring from the budget limitations to which Brazilian modern social State is submitted to due to the huge responsibilities constitutionally imposed on in It shows the main behavioral possibilities of the governors aiming to attend to the responsibilities imposed by the Constitution It ends by outlining the impossibility of increasing the taxation burden due to the existence of a confiscation breach principle as well as the impossibility of reducing the social investments of the State in face of the impossibility of receding social rights principle It also suggests a better adaptation of the services provided by the State not only as an administrative solution but also as the only exceeding legal alternative Keywords Social state Liberal state Financial crisis Public expenditure Paulo Sergio Rosso é procurador do Estado do Paraná Professor de Direito Tributário e Sociologia Jurídica na UENPFUNDINOPI e FANORPI Mestrando em Ciência Jurídica Email paulosrpgeprgovbr Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 201 1 intRoDução A Constituição brasileira caracterizase por sua clara preocupação social Indubitavelmente a conformação atribuída ao Estado brasileiro tem por escopo uma atuação bastante presente do Estado na vida dos cidadãos não se limitando a fazer às vezes de mediador das relações mero tutor das liberdades como ocorria no Estado liberal Inúmeros são os direitos sociais previstos pela lei mas limitados são os recursos dos quais o Estado dispõe visando à solução dos problemas sociais cada vez mais amplos Ao atender os reclamos da sociedade os governos democráticos veemse balizados por duas possíveis soluções aumentar a carga tributária ou reduzir as despesas estatais A primeira solução é em regra a eleita mas a carga tributária brasileira é tida pelos setores produtivos como excessiva fato que diminui a competitividade do país e atravanca o crescimento econômico enquanto a segunda solução redução de despesas pode esbarrar no risco de se minimizarem ainda mais os investimentos públicos no setor social O presente artigo procura analisar o problema situandoo especialmente sob o ângulo jurídico e não apenas administrativo como sói acontecer nos estudos existentes sobre o tema No âmbito do direito há que se questionar se os governos ainda que democraticamente eleitos podem ampliar a arrecadação do Estado mediante incrementos na tributação ao seu talante ou se o próprio Poder Constituinte originário previu limites para tanto Da mesma forma devese indagar se a redução de despesas com a consequente decadência da qualidade dos serviços públicos não significaria da mesma forma uma conduta inconstitucional face às obrigações impostas ao Estado brasileiro pela Constituição de 1988 Há que se destacar com maior rigor a importantíssima missão do Poder Judiciário que pode e deve interferir neste processo não avocando indevidamente para si as funções do administrador mas impedindo que a administração descumpra por excessos ou omissões os ordenamentos constitucionalmente inscritos Num primeiro momento este trabalho faz breves reminiscências sobre a história da implantação do Estado social no Brasil bem como as razões que ocasionaram as crises econômicas verificadas a partir da década de 70 Ao final analisa como deve ser pautada a atuação do administrador público em respeito à Constituição Federal de 1988 2 EStADo SociAl E EStADo liBERAl O Estado social nasceu das novas demandas surgidas com a ascensão política de classes antes renegadas e alijadas do poder Enquanto o Estado liberal representava o modelo ideal para a classe burguesa abraçando a ideia do Estado mínimo não intervencionista o Estado social advém do desejo das classes economicamente desfavorecidas de ao lado do seu crescente poderio político obterem também progressos sociais Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 202 No Estado liberal a atuação estatal era preponderantemente negativa limitando se a proteger os cidadãos da possível violência decorrente da relação de convivência no Estado social os objetivos a serem alcançados são muito mais ousados pretendese garantir ao cidadão condições materiais de sobrevivência digna Problemas atinentes à desigualdade econômica educação saúde e outros direitos recentemente nascidos são encarados como problemas de todos obrigação e prioridade do Estado BONAVIDES 1994 p344 O Estado aparece doravante como o aliado o protetor dos novos valores ao passo que a Sociedade figura como o reino da injustiça o estuário das desigualdades De tudo isso se pode inferir conforme disse Huber que o Estado de Direito foi um produto da Revolução burguesa enquanto o Estado social é um produto da sociedade industrial BONAVIDES 1994 p345 O grande problema que exsurge das promessas feitas pelo Estado social é que diante do aumento de demandas cada vez mais numerosas e complexas as despesas decorrentes de suas crescentes funções tornamse tão amplas que os desequilíbrios financeiros daí decorrentes passam a ser cada vez mais graves e frequentes ocasionando crises minando governos e democracias fazendo nascer a sensação de que o projeto de Estado como instrumento para o alcance do bem comum fracassou Nos anos 70 houve uma melhor compreensão mundial acerca das dificuldades de se manter um Estado gigante interessado em todos os aspectos da vida social Cai por terra a expectativa de que por meio do Estado todos os problemas sociais possam ser solucionados A crise do petróleo agravou a situação brasileira levando o país a uma situação de insolvência no final da década prenunciandose a enorme explosão inflacionária vivenciada na década de 80 Os anos 1970 irão aprofundar esse desequilíbrio econômico na medida em que o aumento da atividade e das demandas em face do Estado e a crise econômica mundial explicitada a partir da crise da matriz energética de base petroquímica com os reflexos inexoráveis sobre o cotidiano das pessoas impondolhes necessidades e retirandolhes a capacidade de suportálas implicam um acréscimo ainda maior de despesas públicas o que redundará no crescimento do déficit público na medida em que o jogo de tensões sociais sugere uma menor incidência tributária ou estratégias de fugas seja via sonegação seja via administração tributária projetando uma menor arrecadação fiscal por um lado e de outro as necessidades sociais muitas delas inerentes a um momento de crise econômica e das atividades produtivas avolumamse formando um círculo vicioso entre crise econômica debilidade pública e necessidades sociais MORAIS 2002 p41 O caso da política brasileira é especialmente didático Analisando o século XX podemos perceber que a visão governamental sempre esteve ligada ao Estado provedor Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 203 ao Estado como primeiro e maior responsável pelo progresso do país como se pode verificar em Getúlio Vargas figura política mais marcante do século que chefiou um primeiro governo bastante longo 19301945 caracterizado pelo autoritarismo e pelos avanços sociais No que pertine à positivação dos direitos sociais a Constituição de 1934 representa um marco para o constitucionalismo brasileiro Em 1934 demos o grande salto constitucional que nos conduziria ao Estado social já efetivado em parte depois da Revolução de 30 por obra de algumas medidas tomadas pela ditadura do Governo Provisório Os novos governantes fizeram dos princípios políticos e formais do liberalismo uma bandeira de combate mas em verdade estavam mais empenhados em legitimar seu movimento com a concretização de medidas sociais atendendo assim a um anseio reformista patenteado de modo inconsciente desde a década de 20 por influxo talvez das pressões ideológicas sopradas do velho mundo e que traziam para o País o rumor inquietante da questão social BONAVIDES 2002 p331 A Constituição de 1934 foi diretamente influenciada pela Constituição mexicana de 1917 e a chamada Constituição de Weimar de 1919 BRENDLER 2005 Também nos momentos posteriores como na Constituição de 1946 esta visão constitucional foi mantida o Estado tomando para si a responsabilidade pelo avanço social e econômico do país BONAVIDES 1994 p335 Nos vinte anos de ditadura militar 19641985 verificouse uma mesma orientação nacionalista e estatizante características suportadas pelo poderio internacional que preferia esta linha de atuação ao risco de tomada de poder pelas linhas de pensamento socialistas Enfim a história constitucional brasileira no Século XX está profundamente marcada pela Constituição de Weimar culminando com o texto de 1988 De último prosseguiu com não menos força na mais recente das Constituições brasileiras a de 5 de outubro de 1988 conforme podemos averiguar examinando lhe alguns capítulos ou artigos Na técnica na forma e na substância da matéria pertinente a direitos fundamentais a derradeira Constituição do Brasil se acerca da Lei Fundamental alemã de 1949 e até ultrapassa em alguns pontos BONAVIDES 1994 p335 A Constituição inspirada na ideia de um Estado social é marcantemente distinta daquela construída sob a égide do Estado liberal Esta é uma Constituição antigoverno e antiEstado enquanto a Constituição social contém a ideologia antiabsolutista e antiindividualista mas com claras preocupações sociais buscando garantir a todos um mínimo material BONAVIDES 1994 p336 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 204 Especificamente no caso brasileiro a demanda pelo cumprimento das grandiosas funções atribuídas ao Estado está em plena consonância com os princípios insculpidos pela Constituição de 1988 segundo os quais não há democracia nem liberdade sem o reconhecimento de que o indivíduo depende das prestações do Estado BONAVIDES 1994 p343 Entretanto o pensamento otimista sobre o Estado do bem estar social começa a naufragar em meados da década de 60 Os primeiros sintomas da crise fiscal ou financeira começaram a surgir em meados dos anos 60 através da constatação de que estava havendo um desequilíbrio na balança fiscal no sentido de que os gastos em políticas sociais estavam sendo maiores do que a receita arrecadada pelo Estado A situação começou a agravarse no final dos anos 70 quando iniciou um crescimento descontrolado da inflação ao mesmo tempo em que há um quadro de intensa estagnação econômica Desta forma todo o estímulo ou desestímulo da demanda que haviam sido as alternativas características deste modelo Estatal mostrouse ineficiente frente ao aumento daqueles dois indicadores BRENDLER 2005 Nos anos 80 e 90 o Estado brasileiro viuse obrigado a adotar medidas contingenciais visando à redução de gastos até em razão das fortes pressões internacionais A própria Lei de Responsabilidade Fiscal Lei Complementar nº 101 de 040500 que fixou limites de gastos com pessoal responsabilizando pessoalmente o administrador público quanto ao respeito de tais limites tem caráter emblemático para a época marcada pela intensa pressão em prol do controle dos gastos públicos A gravíssima crise financeira vivida pelo país logo após o retorno ao regime democrático a partir de 1985 trouxe à baila o discurso neoliberal antiestatizante o qual foi seguido pelo Governo Collor 19901993 e em menor grau por Fernando Henrique Cardoso 19942002 Enquanto no breve governo Collor a intenção era reduzir ao máximo o tamanho do Estado com Fernando Henrique Cardoso a intenção era manter o Estado na condição de fiscalizador e mediador outorgando à iniciativa privada a responsabilidade pelos investimentos públicos Com base nesse raciocínio justificase a criação e a tentativa de estruturação das Agências Reguladoras que fariam o papel regulador e fiscalizador missão originária do Estado Difícil dizer até que ponto tratouse efetivamente de uma mudança de mentalidade ou apenas de uma situação insuperável inevitável diante da realidade econômica interna das pressões internacionais e das exigências da sociedade cada vez mais complexa e cheia de necessidades desatendidas Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 205 3 limitES finAncEiRoS E PoSSíVEiS SoluçõES Diante da imensa gama de esperanças depositadas sobre o Estado social e aos limitados recursos disponíveis em países com economias relativamente frágeis como a brasileira vislumbramse duas opções viáveis a Ampliar a arrecadação ou b Reduzir despesas 31 Ampliar a arrecadação Para os governantes a opção de aumentar tributos é sempre preferível Na origem a tributação é uma relação de poder Ainda que essa visão tenha evoluído para o conceito de relação jurídica os governos não parecem preocupados com a capacidade de pagamento dos cidadãos nem demonstram sensibilidade diante do fato de que a carga tributária no Brasil hoje atinge o alarmante e crescente percentual de 377 RIBEIRO 2006 on line Nenhuma empresa ou cidadão comum tem a faculdade de ao sofrer restrições financeiras aumentar sua arrecadação sem maiores esforços Ao governo basta negociar e legislar Realidade insofismável é que os limites razoáveis da carga tributária brasileira foram há muito superados de forma que parece ser insuportável uma adicional ampliação dessa carga embora isso não possa ser descartado ante a histórica falta de visão governamental acerca dos limites de tributação e a relativa timidez do Poder Judiciário em coibir essa prática Não parece estar sendo respeitado o princípio de vedação ao confisco insculpido no art 150 inc III alínea d da Constituição Federal Segundo Ives Gandra Martins 2001 p23 há desatendimento ao princípio sempre que a tributação agregada retire a capacidade de o contribuinte se sustentar e se desenvolver ganhos para suas necessidades essenciais e ganhos a mais do que essas necessidades para reinvestir ou se desenvolver Muito embora o princípio constitucional de vedação ao confisco seja realmente fluído já que os limites daquilo que equivaleria a confisco deixando de ser mera tributação são de difícil definição verdade é que o problema sempre haverá de ser resolvido tendose em vista o princípio da razoabilidade AMARO 2005 p144 Considerase pois que se a tributação é por sua grande magnitude não razoável em virtude da exagerada carga imposta ao cidadão também haverá de ser considerada por consequência inconstitucional Infelizmente como princípio que é o conceito de vedação ao confisco deveria ser aplicado pelo legislador respeitado pelo administrador público e salvaguardado pelo Poder Judiciário de forma mais específica e ousada do que vem sendo O princípio da vedação ao confisco ainda não apresenta contornos suficientemente definidos cabendo dentre outras dúvidas o questionamento referirseia apenas a algum tributo singularmente considerado ou representaria mais que isso uma limitação geral à carga tributária imposta aos cidadãos Segundo Ives Gandra Martins o princípio de vedação ao confisco pode ser considerado em relação à totalidade dos tributos incidentes e não apenas a um tributo isoladamente Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 206 Na minha especial maneira de ver o confisco não posso examinálo a partir de cada tributo mas da universalidade de toda a carga tributária incidente sobre um único contribuinte Se a soma dos diversos tributos incidentes representa carga que impeça o pagador de tributos de viver e se desenvolver estarseá perante carga geral confiscatória razão pela qual todo o sistema terá de ser revisto mas principalmente aquele tributo que quando criado ultrapasse o limite da capacidade contributiva do cidadão MARTINS 2001 p23 Parece óbvio que a atual carga tributária pode ser tomada como não razoável e consequentemente inconstitucional especialmente considerandose o fato de que o retorno em serviços concedido pelo Estado ao cidadão é confessadamente insignificante Infelizmente há uma inexplicável timidez por parte dos operadores jurídicos que diante da real dificuldade de estabelecimento de critérios mais objetivos para estabelecimento de limites à chamada sanha arrecadatória do Estado terminam por fazer letra morta um princípio tão caro ao Direito Constitucional Tributário Seguindo este raciocínio desprezado pelos tribunais e pela sociedade como um todo qualquer intenção de aumento da carga tributária no estágio atual poderia ser visto como atentado à Constituição fato que levaria à inviabilidade jurídica da ampliação da carga tributária brasileira graças a uma necessária e desejável atuação do Judiciário À parte do aspecto meramente jurídico o senso geral é que a carga tributária atingiu patamares insuportáveis sendo pouco recomendável sua ampliação em razão dos funestos resultados que disso adviriam sobrecarga do setor produtivo aumento da sonegação fiscal redução da capacidade de investimentos redução da competitividade internacional e outros Afastase portanto a ideia de ampliação da carga tributária tanto por questões administrativas quanto jurídicas 32 Reduzir despesas Restringido o caminho da ampliação da carga tributária remanesceria a outra possível solução reduzir os gastos Na visão liberal este seria o caminho recomendável o que passaria invariavelmente pela minimização estrutural do Estado Obviamente a supressão de órgãos estatais ou estruturas que não estejam adequadas a dar retorno útil à sociedade é sempre recomendável seja qual for a ideologia adotada muito embora na prática tal solução encontre inesperados percalços visto implicar no desatendimento a interesses de grupos burocráticos alguns deles extremamente influentes Ocorre porém que na maioria dos casos a redução de estruturas ocasiona também decadência na qualidade dos serviços prestados Em suma o Estado hoje tão criticado por sua omissão em casos tais ousa recuar ainda mais afastandose de sua missão constitucional Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 207 Entretanto uma coisa é a ideologia liberal do Estado mínimo outra bastante diversa é a ideologia abraçada pela Constituição Num Estado de direito não cabe ao governante que é efêmero modificar limitar ou desatender os princípios constitucionais que ao menos tencionam ser eternos Trabalhar continuamente pelo atendimento aos direitos sociais não é uma opção do administrador público tratase de obrigação imposta pelo Estado de direito instaurado no Brasil a partir da Constituição de 1988 Segundo Moraes 1999 p184 os direitos sociais são fundamentos do próprio Estado democrático Direitos sociais são direitos fundamentais do homem caracterizandose como verdadeiras liberdades positivas de observância obrigatória em um Estado Social de Direito tendo por finalidade a melhoria de condições de vida aos hipossuficientes visando à concretização da igualdade social e são consagrados como fundamentos do Estado democrático pelo art 1º IV da Constituição Federal Sendo assim afigurase que a fuga do Estado de campos nos quais está obrigado a atuar representaria no caso brasileiro verdadeiro desatendimento à Constituição já que esta lhe impõe a obrigação de atender seus cidadãos em inúmeros aspectos zelando pela consecução de padrões consideráveis de qualidade de vida Partindose do pressuposto de que a redução de despesas pode ser efetuada sem qualquer prejuízo à qualidade dos serviços públicos nada poderia se opor Como se afirmou anteriormente a realidade demonstra que esta solução aparentemente simples apresenta dificuldades razão pela qual geralmente é disfarçada em atos que na prática não atingem os objetivos anunciados como a extinção de órgãos mas a manutenção das estruturas passandoas à responsabilidade de outros órgãos sobreexistentes sem nenhuma efetiva melhoria administrativa Ao reduzir estruturas o governante deve estar cônscio de que qualquer tipo de atentado aos direitos sociais já conquistados esbarraria na discussão sobre a constitucionalidade desse ato Há que se concluir pela impossibilidade de supressão de direitos sociais seja por modificações legislativas seja pela omissão ou desinteresse do Estado em trazer os direitos constantes do ordenamento legal ao mundo fático em muitos casos mantémse o direito na previsão legal e nada se faz para efetiválo Tratase do princípio da proibição de retrocesso que Sarlet 2004 p147 assim conceitua Em linhas gerais o que se percebe é que a noção de proibição de retrocesso tem sido por muitos reconduzida à noção que José Afonso da Silva apresenta como sendo de um direito subjetivo negativo no sentido de que é possível impugnar judicialmente toda e qualquer medida que se encontre em conflito com o teor Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 208 da Constituição inclusive com os objetivos estabelecidos nas normas de cunho programático bem como rechaçar medidas legislativas que venham pura e simplesmente subtrair supervenientemente a uma norma constitucional o grau de concretização anterior que lhe foi outorgado pelo legislador Como se não bastasse o mencionado princípio implícito constitucional o Brasil é signatário do Pacto de São Salvador integrado ao sistema legal pátrio pelo Decreto Legislativo nº 56 de 19 de Abril de 1995 que assim dispõe em seu art 1º Artigo 1 Obrigação de adotar Medidas Os estadospartes neste Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos comprometem se a adotar as medidas necessárias tanto de ordem interna como por meio da cooperação entre os estados especialmente econômica e técnica até o máximo dos recursos disponíveis e levando em conta seu grau de desenvolvimento a fim de conseguir progressivamente e de acordo com a legislação interna a plena efetividade dos direitos reconhecidos neste Protocolo Pontifiquese que discussões de cunho puramente ideológico sobre a conveniência ou não recomendabilidade da atuação estatal de forma tão ampla devem ser reservadas ao âmbito legislativo político o que não significa dizer que a ideologia não participe do mundo do direito Há que se reconhecer entretanto que no Estado democrático e pluralista há um lócus especificamente destinado às lutas ideológicas que é o campo político A existência de uma Constituição positivada serve justamente para minimizar este tipo de debate no âmbito da administração pública que já sofre muito pelo excesso de discussões vazias de pragmatismo Nossa opção constitucional voltouse para uma forte participação estatal na área social respeitandose a propriedade privada e a economia de mercado e esta opção do constituinte representante popular deve ser respeitada mesmo por aqueles que dela discordam Em suma reduzir despesas quase sempre redunda em malefícios à qualidade dos serviços estatais o que se afigura também conduta inconstitucional passível portanto de controle jurisdicional muita embora há que se reconhecer a intervenção do Judiciário seja extremamente tímida nessa questão Sobre a atuação do Judiciário Streck 2006 p121 comenta O problema é que o judiciário sempre se encontra diante de um dilema se assume postura intervencionista imiscuindose até mesmo no controle de políticas públicas é acusado de ativista quando não de utilizar a jurisprudência dos valores se assume uma postura self restreinting vejase o caso do mandado de injunção e a discussão sobre a cassação das liminares durante a grande Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 209 privatização ocorrida no governo Fernando Henrique é criticado pela sua timidez ou conservadorismo Ainda que tais atos sejam de difícil detecção por parte do Judiciário e mesmo da sociedade há que se compreender que o administrador público está obrigado a atender a Constituição mesmo que sua eventual desobediência possa passar impune isto é mesmo inexistindo efetivo controle jurisdicional sobre tais comportamentos governamentais o administrador público tem a obrigação de atender os ditames constitucionais que não são dirigidos exclusivamente ao Poder Judiciário Muito embora essa visão seja rara nos governantes nem por isso deixa de ser desejável cabendo ao cidadão exigir da classe política respeito aos balizamentos impostos pela ordem constitucional 4 concluSão Por um aspecto não se pode cogitar em ampliação da carga tributária tendo em vista o grande sacrifício já imposto à coletividade que talvez possa ver no princípio constitucional da vedação ao confisco um válido e legítimo instrumento de defesa contra o irrefreável vício estatal de ampliar cada vez mais a arrecadação tributária Por outro aspecto reduzir os gastos estatais atingindo a qualidade ou amplitude dos serviços prestados pelo Estado também pode ser tomado como atentado ao princípio da vedação de retrocesso das conquistas sociais encampadas por nossa Constituição salvo quando tais reduções decorram de readequações administrativas que preservem a atuação estatal Frente a tantas exigências e tão parcos recursos estaria o Estado brasileiro diante de um impasse insuperável Obviamente a solução não poderá ser encontrada em condutas tradicionais Mais do que nunca está em jogo a capacidade administrativa do administrador eleito pelo povo em antever soluções que não impliquem nem em ampliação da carga tributária nem em redução da atuação ou da qualidade dos serviços públicos tão deficientemente prestados pelo Estado brasileiro O governante está constitucionalmente impossibilitado de recuar nos serviços públicos já prestados e também obrigado dentro do possível a envidar esforços pelo avanço na efetivação de tais direitos tendo em vista ser este o fim e a razão de existência do Estado social Reorganizar a administração pública realocando recursos financeiros e humanos parece ser a única solução viável Melhorar o desempenho dos servidores públicos buscando a melhoria da produtividade enfim reduzir despesas sem reduzir a capacidade do Estado em atender aos primordiais anseios do povo As parcerias com o setor privado ou a retirada do Estado de setores econômicos nos quais não está vocacionado a atuar Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 210 são decisões positivas desde que não representem simples abdicação dos interesses públicos em prol do setor privado Especialmente complexo é o enfrentamento a setores burocráticos cujo poderio hipertrofiou juntamente com o Estado enfrentar essa situação é causa de extremo desgaste para o político que muitas vezes prefere o caminho da omissão ao invés do enfrentamento Entretanto o Estado existe para a sociedade não o inverso As poucas soluções apontadas neste estudo consistentes na readequação do modelo administrativo do Estado não são meras opções consistem nas únicas alternativas juridicamente viáveis neste momento tendo em vista que os demais caminhos estão cerrados ao administrador público não por questões de inconveniência ou impraticabilidade administrativa mas em razão dos próprios mandamentos insculpidos na Constituição Não é em suma questão meramente administrativa mas também jurídica REfERênciAS AMARO Luciano Direito tributário brasileiro 11ed São Paulo Saraiva 2005 BONAVIDES Paulo Curso de direito constitucional 5ed São Paulo Malheiros 1994 BONAVIDES Paulo História Constitucional do Brasil 4ed Brasília OAB Editora 2002 BRASIL Constituição da República Federativa do Brasil Disponível em http wwwplanaltogovbrccivil03ConstituicaoConstituiE7aohtm Acesso em 25 set 2007 Decreto Legislativo nº 56 de 19 de abril de 1995 Pacto de São Salvador Disponível em httpwwwaidsgovbrlegislacaovol15htm Acesso em 07 set 2006 BRENDLER Karina Meneghetti A panaceia do estado social e a crise fiscal CDROM Juris Síntese nº 53 MaioJun 2005 CANOTILHO José Joaquim Gomes Direito constitucional e teoria da constituição 6ed Coimbra Almedina 2002 MARTINS Ives Gandra da Silva Curso de direito tributário 8ed São Paulo Saraiva 2001 MORAES Alexandre de Direito constitucional 5ed São Paulo Atlas 1999 MORAIS José Luis Bolzan de As crises do Estado e da Constituição e transformação espacial dos direitos humanos Porto Alegre Livraria do Advogado 2002 RIBEIRO Ana Paula Orçamento deixa de fora corte de gasto público e prevê mínimo de R 375 Folha Online Disponível em httpwww1folhauolcombrfolhadinheiro ult91u110686shtml Acesso em 07 set 2006 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 211 SARLET Ingo Wolfgang Direitos fundamentais sociais e proibição de retrocesso algumas notas sobre o desafio da sobrevivência dos direitos sociais num contexto de crise In Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica Porto Alegre 2004 STRECK Lenio Luiz Verdade e consenso constituição hermenêutica e teorias discursivas Rio de Janeiro Lumen Juris 2006 Direito e Democracia v10 n2 p212227 juldez 2009 Canoas o desenvolvimento dos direitos humanos fundamentais numa perspectiva histórica Alberto de magalhães franco filho RESumo Costumase fracionar o desenvolvimento dos direitos humanos em eras ou dimensões A primeira geração de direitos fundamentais surge no século XIX e é composta dos direitos de liberdade correspondentes aos direitos civis e políticos relativos à primeira fase do constitucionalismo A segunda geração que dominou o século XX compõese dos direitos sociais culturais e econômicos inseridos nas constituições das diversas formas de Estados sociais Já a terceira geração de direitos é fruto da alteração da sociedade por mudanças na comunidade internacional sociedade de massa crescente desenvolvimento tecnológico que fazem surgir novos problemas e preocupações mundiais como a preservação do meio ambiente proteção dos consumidores etc Em nosso trabalho pretendemos comentar o desenvolvimento dos direitos humanos e a mudança de paradigmas dos direitos individuais para os transindividuais Palavraschave Direitos fundamentais Direitos humanos Gerações Dimensões Eras de direitos the development of the basic human rights in a historical perspective ABStRAct It is custom if to divide the development of the human rights in ages or dimensions The first generation of basic rights appears in century XIX and is composed of the rights of freedom correspondents to the civil laws and politicians relative the first phase of the constitutionalism The second generation that dominated century XX is composed in social cultural and economic inserted the rights in the constitutions of the diverse forms of social States Already the third generation of rights is fruit of the alteration of the society for changes in the international community mass society increasing technological development that they make to appear new problems and worldwide concerns as the preservation of the environment protection of the consumers etc In our work we intend to comment the development of the human rights and the change of paradigms of the individual rights for the transindividuais Keywords Basic rights Human rights Generations Dimensions Ages of rights Alberto de Magalhães Franco Filho é especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário de Patos de Minas UNIPAM Mestrando em Direito Coletivo e Função Social do Direito pela Universidade de Ribeirão Preto UNAERP Bolsista da CAPES pelo programa PROSUP Advogado Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 213 1 intRoDução No presente trabalho pretendemos analisar a evolução e o desenvolvimento dos direitos humanos fundamentais Inicialmente iremos buscar uma terminologia adequada para os direitos que terão sua trajetória evolutiva estudada Em um segundo momento traçaremos um esboço histórico do surgimento das chamadas declarações de direitos marco inicial do estudo dos direitos humanos fundamentais Posteriormente trataremos da evolução dos direitos fundamentais sob a perspectiva das eras de direitos com o estudo das ondas geracionais ou dimensionais dos direitos humanos fundamentais Por fim analisaremos a mudança de paradigmas entre os direitos individuais e os interesses transindividuais 2 A tERminoloGiA ADEQuADA Como bem salienta José Adércio Leite Sampaio Qualquer estudo que se faça de um instituto ou categoria jurídicos como quase tudo nessa vida não prescinde do exame da terminologia apropriada e das perspectivas conceituais que se apresentam na doutrina como forma de encontro de uma semântica comum ou pelo menos de maneira de evitar confusões1 O estudo dos direitos do homem revestese de grande importância e relevância não só para o mundo jurídico talvez por isso tantos estudiosos de diversas áreas do conhecimento tenham se debruçado sobre ele dando ensejo a um grande número de expressões tidas como sinônimas e consequentemente a uma grande imprecisão terminológica A doutrina2 tem apontado diversas expressões para designar tais direitos entre elas podemos citar direitos naturais direitos inatos direitos originários direitos humanos direitos do homem direitos fundamentais direitos humanos fundamentais direitos individuais direitos civis direitos políticos direitos públicos subjetivos direitos morais direitos sociais direitos econômicos sociais e culturais direitos do 1 SAMPAIO Direitos fundamentais retórica e historicidade 2004 p5 2 Cf SILVA Curso de direito constitucional positivo 2001 p179 CANOTILHO Direito constitucional e teoria da constituição 2006 p393398 MIRANDA Manual de direito constitucional tomo 4 1988 p4872 PÉREZ LUÑO Los derechos fundamentales 1998 p23 TAVARES André Ramos Direitos fundamentais definição In DIMOULIS Dimitri coord Dicionário de direito constitucional 2007 p124 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 214 cidadão direitos de personalidade direitos dos povos interesses difusos liberdades fundamentais liberdades públicas garantias e deveres fundamentais etc Esse grande número de expressões empregadas atesta a confusão3 teórica e normativa envolta sobre o tema Tais expressões efetivamente não são sinônimas4 porém muitas vezes erroneamente empregadas como tal Vejamos a crítica de Paulo Bonavides quanto ao emprego descompassado destas expressões Temos visto nesse tocante o uso promíscuo de tais denominações na literatura jurídica ocorrendo porém o emprego mais frequente de direitos humanos e direitos do homem entre autores angloamericanos e latinos em coerência aliás com a tradição histórica enquanto a expressão direitos fundamentais parece ficar circunscrita á preferência dos publicistas alemães5 Em outro sentido e com relação á dimensão empregada na expressão Canotilho afirma que Segundo sua origem e significado poderiamos distinguilas da seguinte maneira direitos do homem são direitos validos para todos os povos em todos os tempos dimensão jusnaturalistauniversalista direitos fundamentais são os direitos são os direitos do homem jurídicoinstitucionalmente garantidos e limitados espacio temporalmente Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável intemporal e universal os direitos fundamentais seriam os direitos objectivamente vigentes numa ordem jurídica concreta6 Então qual expressão seria a mais adequada Tal questionamento é importante pois a expressão utilizada deverá refletir o real significado da complexidade do tema ora tratado Neste sentido é a lição de Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior que asseveram qualquer opção terminológica deve guardar o objetivo de melhor refletir a relação de correspondência sígnica entre a expressão eleita e a realidade que por ela se pretende produzir7 Uadi Lamego Bulos sugere o uso da expressão liberdades públicas em sentido amplo que designariam um conjunto de normas constitucionais que consagram 3 Em um capítulo intitulado Um eterno problema de nomes José Adércio Leite Sampaio analisa com pormenor a confusão teórica e normativa destes termos atribuindo grande parte desta confusão à história dos usos e costumes linguísticos da França e dos Estados Unidos da América que são os países de destaques em todo o exame retrospectivo destes direitos SAMPAIO Direitos fundamentais retórica e historicidade 2004 p522 4 Para um maior aprofundamento sobre o significado de cada uma das expressões mencionadas e a confrontação entre elas consultar as obras dos constitucionalistas portugueses José Joaquim Gomes Canotilho CANOTILHO Direito constitucional e teoria da constituição 2006 p393398 e Jorge Miranda MIRANDA Manual de direito constitucional tomo 4 1988 p4872 5 BONAVIDES Curso de direito constitucional 2002 514 6 CANOTILHO Ob cit p393 7 ARAUJO NUNES JÚNIOR Curso de direito constitucional 2006 p107 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 215 limitações jurídicas aos Poderes Públicos8 Nesse sentido também é o magistério de Maria Garcia que opta por liberdades públicas9 somente Porém como alerta Jorge Miranda10 a expressão direitos fundamentais tem sido a preferida pela doutrina e pelos textos constitucionais Araújo e Nunes Júnior afirmam que este termo é o único apto a exprimir a realidade jurídica precipitada11 Já José Afonso da Silva esclarece que direitos fundamentais do homem constituía a expressão mais adequada a este estudo no qualificativo fundamentais achase a indicação de que não se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza não convive e as vezes nem mesmo sobrevive fundamentais do homem no sentido de que a todos por igual devem ser não apenas formalmente reconhecidos mas concreta e materialmente efetivados Do homem não como o macho da espécie mas no sentido de pessoa humana destaques do autor12 Não obstante a interessante justificativa do autor julgamos ser mais pertinente a expressão direitos humanos fundamentais utilizada por e Manoel Gonçalves Ferreira Filho13 e Alexandre de Moraes14 por entendermos que esses direitos inicialmente pertencem às pessoas humanas e justamente por isso são qualificados como fundamentais Alexandre de Moraes define direitos humanos fundamentais como o conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana15 Por fim entendemos ser também adequado o emprego da expressão direitos fundamentais adotada pela maioria dos doutrinadores e dos textos constitucionais 8 BULOS Curso de direito constitucional 2007 401 9 GARCIA Desobediência civil direito fundamental 2004 10 MIRANDA Ob cit 1988 p48 11 ARAUJO NUNES JÚNIOR Ob cit p109 12 SILVA Ob cit p182 13 FERREIRA FILHO Direitos humanos fundamentais 2008 14 MORAES Direitos Humanos fundamentais teoria geral comentários aos arts 1º a 5º da Constituição da Republica Federativa do Brasil doutrina e jurisprudência 1998 15 Idem p39 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 216 3 hiStÓRico DoS DiREitoS humAnoS funDAmEntAiS Segundo a lição de Norberto Bobbio os direitos do homem por mais fundamentais que sejam são direitos históricos ou seja nascidos em certas circunstancias caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes e nascidos de modo gradual não todos de uma vez e nem de uma vez por todas16 Assim como os direitos do homem tem origem histórica se quisermos compreender a fase atual do desenvolvimento destes direitos é preciso lançarmos um olhar sobre a história Alexandre de Moraes comenta que a origem dos direitos individuais do homem pode ser encontrada no antigo Egito e Mesopotâmia no terceiro milênio a C onde já existiam alguns mecanismos de proteção individual em face do Estado A primeira codificação a consagrar direitos comuns a todos os homens seria o Código de Hamurabi 1690 a C O autor salienta também a influência filosóficoreligiosa dos direitos do homem com a propagação das ideias de Buda 500 a C 17 Grécia e Roma antigas são consideradas para alguns18 como a protohistória dos direitos humanos fundamentais Contudo conforme Oscar de Carvalho o mundo antigo não conheceu o primado da liberdade individual e por via de consequência nele não se fizeram presentes as condições históricas necessárias ao desenvolvimento dos direitos humanos19 Há também a contribuição do Cristianismo que trouxe uma mudança de paradigmas do paganismo grego e romano Ferreira Filho aponta como remoto ancestral da doutrina dos direitos fundamentais a antiguidade onde existia um direito superior não estabelecido pelos homens mas dado a este pelos deuses com referência a Antígona de Sófocles ao diálogo De Legibus de Cícero até a Suma teológica de São Tomás de Aquino Porém afirma o autor que foi com a escola do direito natural e das gentes que se formulou a doutrina adotada pelo pensamento iluminista que seria expressado mais á frente nas declarações de direitos20 Sintetizando a origem histórica dos direitos fundamentais José Adércio Leite Sampaio salienta que 16 BOBBIO A era dos direitos 2004 p25 17 MORAES Ob cit 1998 p2425 18 ACCIOLI apud PUHL Breve histórico sobre a evolução dos direitos fundamentais in Revista Jurídica UNIGRAN p10 19 CARVALHO Gênese e evolução dos direitos fundamentais in Revista Instituto de Pesquisas e Estudos Divisão Jurídica p32 20 FERREIRA FILHO Ob cit 2008 p910 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 217 temos dispostas assim três grandes matrizes do sistema de direitos humanos religião processo e propriedade Ou mais precisamente a liberdade religiosa as garantias processuais e o direito de propriedade Essas matrizes tiveram raízes e desdobramentos nos três grandes modelos de desenvolvimento dos direitos humanos Inglaterra Estados Unidos e França21 Não obstante a menção destes momentos históricos como sendo a gênese dos direitos humanos fundamentais o certo é que somente a partir do momento em que limites foram colocados ao poder incontrastável do Estado é que o conceito de direitos humanos formouse na história22 Diante desta constatação somente a partir da elaboração de declarações de direitos é que podemos afirmar o surgimento efetivo dos direitos fundamentais Dalmo de Abreu Dallari anota que O exame dos documentos legislativos da antiguidade revela já uma preocupação com a afirmação de direitos fundamentais que nascem com o homem e cujo respeito se impõe por motivos que estão acima da vontade de qualquer governante Observase porém que nos documentos antigos mesclavamse preceitos jurídicos morais e religiosos não se dissociando a recomendação de regras morais da imposição coercitiva de certos comportamentos Durante a Idade média também não se encontravam documentos que tenham o caráter de declarações abstratas de direitos havendo apenas documentos legislativos como a legislação dos povos germânicos que contém regras de vida social nas quais está implícita a existência dos direitos fundamentais Foi na Inglaterra já na ultima fase da Idade Média que teve a iniciativa de afirmações que podem ser consideradas precursoras das futuras declarações de direitos23 Segundo Manoel G Ferreira Filho o registro de direitos num documento escrito é pratica que se difundiu na segunda metade da Idade Média24 Sendo manifestada inicialmente por meio de pactos forais ou cartas de franquia25 O primeiro registro escrito de direitos foi a Magna Charta Libertatum outorgado por João SemTerra em 15 de junho de 1215 onde foram consagrados direitos dos barões e prelados ingleses restringindo o poder absoluto do monarca Vejamos seus dois artigos iniciais 21 SAMPAIO Ob cit p141 22 Cf CARVALHO Idem p31 23 DALARI Elementos da teoria geral do estado 2007 p206 24 FERREIRA FILHO Ob cit 2008 p11 25 FERREIRA FILHO Curso de direito constitucional 2007 p45 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 218 1 A Igreja de Inglaterra será livre e serão invioláveis todos os seus direitos e liberdades e queremos que assim seja observado em tudo e por isso de novo asseguramos a liberdade de eleição principal e indispensável liberdade da Igreja de Inglaterra a qual já tínhamos reconhecido antes da desavença entre nós e os nossos barões 2 Concedemos também a todos os homens livres do reino por nós e por nossos herdeiros para todo o sempre todas as liberdades abaixo remuneradas para serem gozadas e usufruídas por eles e seus herdeiros para todo o sempre 26 Gomes Canotilho faz menção à Carta inglesa de 1215 afirmando que embora contivesse fundamentalmente direitos estamentais já fornecia aberturas para a transformação dos direitos corporativos em diretos dos homens27 Após foram editados também na Inglaterra o Petition of Right em 7 de junho de 1628 o Habeas Corpus Act de 1679 o Bill of Right em 13 de fevereiro de 1689 e o Act of Settlement de 12 de junho de 1701 Muito embora os referidos documentos sirvam de precedentes históricos nas palavras de José Afonso da Silva a primeira declaração de direitos fundamentais em sentido moderno foi a Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia Esta declaração foi feita em 16 de junho de 1776 e consubstanciava as bases dos direitos do homem vejamos alguns de seus dispositivos I Todos os homens são por natureza igualmente livres e independentes e têm certos direitos inatos de que quando entram no estado de sociedade não podem por nenhuma forma privar ou despojar a sua posteridade nomeadamente o gozo da vida e da liberdade com os meios de adquirir e de possuir a propriedade e de buscar e obter felicidade e segurança II Todo poder reside no povo e por consequência deriva do povo os magistrados são seus mandatários e servidores e responsáveis a todo tempo perante ele III O governo existe e deve existir para o bem comum proteção e segurança do povo nação ou comunidade de todos os modos e formas de governo o melhor é o que é capaz de produzir o maior grau de felicidade e segurança e está mais eficazmente organizado contra o perigo de má administração e sempre que qualquer governo se mostre inadequado ou contrário a estes fins a maioria da comunidade tem o direito incontestável inalienável e irrevogável de o reformar modificar ou abolir da maneira que for julgada mais conducente à felicidade geral28 26 Cf MIRANDA Textos históricos do direito constitucional 1990 p13 27 CANOTILHO Ob cit p382383 28 Cf MIRANDA Idem 1990 p3132 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 219 Em segundo lugar de precedente histórico porém ocupando o destaque entre as declarações de direitos está a Déclaration dês Droits de lHomme et du Citoyen de 26 de agosto de 1789 Ela se encontra em vigor até os dias atuais na França e foi por um século e meio o modelo por excelência das declarações29 José Afonso da Silva comenta que a Declaração Francesa é mais importante tendo em vista seu caráter abstrato e universalizante enquanto a Declaração Americana era mais concreta preocupada com a situação particular que afligia aquelas comunidades seus três caracteres fundamentais eram o intelectualismo o mundialismo e o individualismo30 Vejamos seu preâmbulo e art 1º Os representantes do povo francês reunidos em Assembleia Nacional considerando que a ignorância o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos governos resolveram em declaração solene os direitos naturais inalienáveis e sagrados do Homem a fim de que esta declaração constantemente presente em todos os membros do corpo social lhes lembre sem cessar os seus direitos e seus deveres a fim de que os actos do Poder Legislativo e do Poder Executivo podendo ser em cada momento comparados com a finalidade de toda a instituição política sejam por isso mais respeitados a fim de que as reclamações dos cidadãos doravante fundadas em princípios simples e incontestáveis se dirijam sempre à conservação da Constituição e à felicidade geral Por consequência a Assembleia Nacional reconhece e declara na presença e sob os auspícios do Ser Supremo os seguintes direitos do homem e do cidadão Art1º Os homens nascem e são livres e iguais em direitos As distinções sociais só podem fundamentarse na utilidade comum31 Raul Machado Horta assevera que com a declaração de direitos de 1789 arquétipo constitucional de documentos dessa natureza fezse na verdade a catalogação mais famosa dos direitos individuais de resistência ao Estado e ao Poder32 Notese que as duas declarações de direitos de Virginia 1776 e francesa 1789 precedem as Constituições Americana 1787 e Francesa 1791 tal fato é explicado por Ferreira Filho no sentido de que primeiro formalizouse em um documento escrito o pacto social declaração de direitos contendo os direitos naturais e os limites destes e somente posteriormente com a garantia destes formalizouse o pacto político Constituição Somente mais adiante na era do constitucionalismo por economia de tempo e trabalho que se passou a estabelecer num mesmo documento a declaração de Direitos e a Constituição33 29 FERREIRA FILHO Ob cit 2008 p19 30 SILVA Ob cit p161162 31 Cf MIRANDA Ibidem p57 32 HORTA Estudos de direito constitucional 1995 p244 33 FERREIRA FILHO Idem p56 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 220 4 A EVolução DoS DiREitoS funDAmEntAiS A PARtiR DAS onDAS GERAcionAiS ou DimEnSionAiS Em 1979 proferindo a aula inaugural no Curso do Instituto Internacional dos Direitos do Homem em Estraburgo o jurista francês Karel Vazak utilizou pela primeira vez a expressão gerações de direitos do homem buscando metaforicamente demonstrar a evolução dos direitos humanos com base no lema da revolução francesa liberdade igualdade e fraternidade Vejamos o comentário de Paulo Bonavides o lema revolucionário do século XVIII esculpido pelo gênio político francês exprimiu em três princípios cardeais todo o conteúdo possível dos direitos fundamentais profetizando até mesmo a sequência histórica de sua gradativa institucionalização liberdade igualdade e fraternidade Com efeito descoberta a fórmula de generalização e universalização restava doravante seguir os caminhos que consentissem inserir na ordem jurídica positiva de cada ordenamento político os direitos e conteúdos matériais referentes àqueles postulados Os direitos fundamentais passaram na ordem institucional a manifestarse em três gerações sucessivas que traduzem sem dúvida um processo cumulativo e qualitativo o qual segundo tudo faz prever tem por bússola uma nova universalidade a universalidade material e concreta em substituição da universalidade abstrata e de certo modo metafísica daqueles direitos contida no jus naturalismo do século XVIII Existem outros autores como o alemão Konrad Hesse34 o português Canotilho35 e entre nós Ingo Wolfgang Sarlet36 e Leonardo Martins37 que preferem a utilização do termo dimensões pois o vocábulo gerações daria a ideia de substituição de uma geração por outra Há ainda quem critique tanto a ideia de gerações quanto dimensões como Antônio Augusto Cançado Trindade38 e George Marmelstein Lima39 Passemos então ao estudo das eras dos direitos40 humanos fundamentais que sem dúvida historicamente passaram por um processo expansivo de acumulação de níveis de proteção de esferas da dignidade da pessoa humana41 34 HESSE Estudos de direito constitucional da republica federal da Alemanha 1998 35 CANOTILHO Ob cit p386387 36 SARLET Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988 2004 37 MARTINS Direitos fundamentais história liberdade In DIMOULIS Dimitri coord Dicionário de direito constitucional 2007 p127128 38 Palestra proferida durante o Seminário Direitos Humanos das Mulheres A Proteção Internacional Disponível online httpwwwdhnetorgbrdireitosmilitantescancadotrindadeCancadoBobhtm 39 LIMA Crítica à teoria das gerações ou mesmo dimensões dos direitos fundamentais in Revista Opinião Jurídica Fortaleza v 2 n 3 p171182 2004 40 Expressão cunhada pelo italiano Norberto Bobbio 41 ARAUJO NUNES JÚNIOR Ob cit p115 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 221 Os primeiros direitos abrangem aqueles referidos nas declarações de Direitos das Revoluções americana e francesa são os primeiros a serem positivados e por isso são chamados de primeira geração ou dimensão eles se fundam numa separação entre Estado e sociedade que permeia o contratualismo individualista dos Séculos XVIII e XIX42 São os direitos de liberdade que se dividem em civis e políticos José A L Sampaio afirma que os direitos ou liberdade civis são aqueles que mediante garantias mínimas de integridade física e moral bem assim de correção procedimental nas relações judicantes entre indivíduos e o Estado asseguram uma esfera de autonomia individual de modo a possibilitar o desenvolvimento de cada um Já os políticos são de inspiração democrática seu núcleo se encontra no direito de votar e ser votado43 Os direitos de primeira geração têm como titular o indivíduo singularmente considerado Eles surgem após o absolutismo no Estado de Direito Liberal e representam um nãoagir do Estado44 basicamente traduzemse em postulados de abstenção dos governantes criando obrigações de não fazer de não intervir sobre aspectos da vida pessoal de cada individuo45 Parafraseando Paulo Bonavides estes direitos apresentamse como faculdade ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico enfim são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado46 Como alerta Gilmar Mendes o descaso para com os problemas sociais que veio a caracterizar o État Gendarme associado ás pressões decorrentes da industrialização em marcha o impacto do crescimento demográfico e o agravamento das disparidades no interior da sociedade tudo isso gerou novas reivindicações impondo ao Estado um papel ativo na realização da justiça social O ideal absenteísta do Estado liberal não respondia satisfatoriamente ás exigências do momento Uma nova compreensão do relacionamento Estadosociedade levou os Poderes Públicos a assumir o dever de operar para que a sociedade lograsse superar as angústias estruturais Daí o progressivo estabelecimento pelos Estados de seguros sociais das ações estatais por objetivos de justiça social destaques do autor47 42 SAMPAIO Ob cit p260 43 SAMPAIO Idem p260 44 BOBBIO Ob cit p26 45 MENDES et al Curso de direito constitucional 2007 p223 46 BONAVIDES Ob cit 2002 p517 47 MENDES et al Idem p223 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 222 Os direitos de segunda geração da mesma forma que a primeira foram inicialmente objeto de formulação especulativa em campos políticos e filosóficos que possuíam grande cunho ideológico Dominaram o século XX assim como os de primeira geração dominaram o século XIX Tiveram seu nascedouro nas reflexões ideológicas e no pensamento antiliberal desse século 48 A segunda geração de direitos está ligada ao principio da igualdade na visão de Karel Vazak e são enquadrados como direitos prestacionais ou seja aqueles relativos à exigência de participação do Estado na realização da justiça social através de medidas efetivas para garantir o mínimo necessário à vida digna do ser humano Estes direitos são chamados também de direitos sociais culturais e econômicos Essa trilogia normalmente é apresentada sob o rótulo geral de direitos sociais porém há quem trace distinções internas É o magistério de José Adércio Leite Sampaio Os direitos sociais propriamente ditos seriam aqueles necessários á participação plena na vida da sociedade incluindo o direito á educação a instituir e manter uma família á proteção da maternidade e da infância bem como para permitir o gozo efetivo dos direitos de primeira geração como o reconhecimento do direito ao lazer e o direito a não haver discriminação Já os direitos econômicos se destinam a garantir um nível mínimo de vida e segurança materiais de modo que a cada pessoa desenvolva suas potencialidades Estão nesta lista os direitos trabalhistas a exemplo do direito ao trabalho e a um salário mínimo digno e previdenciários direitos de assistência social do direito á saúde á alimentação ao vestuário e o direito á moradia Por fim os direitos culturais dizem respeito ao resgate estímulo e a preservação das forma de preservação cultural das comunidades bom como se destinam a possibilitar a participação de todos nas riqueza esperituais comunitárias49 Vale ressaltar que segundo Gilmar Mendes os direitos sociais recebem esta denominação não por que sejam direitos de coletividades mas pelo fato de estarem ligados às reivindicações de justiça social50 É imperioso esclarecer também que estes direitos diferentemente dos primeiros possuem um aspecto objetivo qual seja a garantia de valores e princípios de proteção com que escudar e proteger as instituições dando vezo ao surgimento das garantias institucionais51 A terceira geração de direitos é fruto da desigualdade entre as nações Para Norberto Bobbio os direitos de terceira geração ou novos direitos são marcados pela alteração da sociedade por mudanças na comunidade internacional sociedade de massa crescente desenvolvimento tecnológico que fazem surgir novos problemas 48 BONAVIDES Idem p518 49 SAMPAIO Ididem p262263 50 MENDES et al Ibidem p224 51 BONAVIDES Ibidem p519 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 223 e preocupações mundiais como a preservação do meio ambiente proteção dos consumidores etc52 Paulo Bonavides comenta que A consciência de um mundo partido entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas ou em fase de precário desenvolvimento deu lugar em seguida a que se buscasse uma outra dimensão dos direitos fundamentais até então desconhecida Tratase daquela que se assenta sobre a fraternidade conforme assinala Karel Vasak53 Assim esses direitos assumem o caráter coletivo o que não estava presente nas duas dimensões anteriores porquanto visam à proteção do direito ao desenvolvimento à paz ao meio ambiente de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e à comunicação54 Nesse sentido55 também se posiciona Gilmar Ferreira Mendes afirmando que os direitos de terceira geração peculiarizamse pela titularidade difusa ou coletiva uma vez que são concebidos para a proteção não do homem isoladamente mas de coletividades de grupos56 No Brasil o órgão superior do poder judiciário e guardião da Constituição Federal Supremo Tribunal Federal STF reconhece expressamente a existência de três gerações de direitos 57 58 Os direitos de terceira geração surgem portanto num momento em que a sociedade experimenta profundas transformações trazendo uma nova realidade social econômica e jurídica É o comentário pertinente Marcus Vinícius Rios Gonçalvez 52 BOBBIO Idem p2527 53 BONAVIDES Ibidem p522 54 BONAVIDES Ibidem p523 55 Registrese que existem outros autores como por exemplo Etiene R Mbaya que apresentam um sentido de solidariedade que representaria a busca da cooperação internacional entre os povos Tal sentido não representa a mesma noção que nos apresentamos e julgamos ser a mais precisa muito embora não discordemos destas ponderações simplesmente a consideramos como um dos sentidos da terceira onda geracional de direitos MBAYA apud BONAVIDES Ibidem p523524 56 MENDES et al Ibidem p224 57 Enquanto os direitos de primeira geração direitos civis e políticos que compreendem as liberdades clássicas negativas ou formais realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração direitos econômicos sociais e culturais que se identificam com as liberdades positivas reais ou concretas acentuam o princípio da igualdade os de terceira geração que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento expansão e reconhecimento dos direitos humanos caracterizados como valores fundamentais indisponíveis pela nota de uma essencial inexauribilidade STF Pleno Mandado de Segurança n 22164SP Relator Ministro Celso Melo Diário da Justiça Seção I 17 novembro 1995 p39206 58 É importante mencionar que existem doutrinadores que ainda apresentam uma quarta geração de direitos e até mesmo uma quinta geração contudo não iremos fazer nenhuma observação sobre esta gerações ou dimensões pois já atingimos a evolução dos direitos individuais aos interesses transindividuais que é o objeto de nosso estudo Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 224 A realidade sócioeconômica modificouse com rapidez e o século XX assistiu ao desenvolvimento incessante das economias de massa Os sistemas de produção desenvolveramse com repercussão evidente na oferta de bens para a satisfação das necessidades humanas O individualismo do século XIX cedeu lugar à massificação em velocidade acelerada59 Neste cenário perdem os interesses puramente individuais o lugar de destaque para dar lugar aos interesses metaindividuais ou supraindividuais cujos titulares não são mais pessoas consideradas individualmente mas grupos de pessoas 5 concluSão À guisa das considerações finais podemos afirmar que o estudo dos direitos humanos fundamentais é tema bastante complexo porém desafiador A começar pela infinidade de termos empregados para simbolizálos e a confusão teórica e normativa causada por isso Também devemos ressaltar que os direitos humanos fundamentais são direitos essencialmente históricos e demandam um olhar criterioso para a história contudo percebemos sua gênese está ligada diretamente às Declarações de Direitos da Inglaterra dos Estados Unidos e da França Não podemos deixar de mencionar que estes direitos após sua formalização e positivação sofreram um processo histórico evolutivo dividido em gerações ou dimensões comumente chamado de Era dos Direitos Nestas ondas geracionais ou dimensionais percebemos a clara evolução cumulativa e qualitativa dos direitos pertencentes a indivíduos isolados direitos individuais até direitos pertencentes a grupos ou coletividades de pessoas interesses transindividuais ou metaindividuais Assim vislumbramos na evolução dos direitos humanos fundamentais não só o nascimento de novos direitos oriundos da sociedade de massas mas também o surgimento de uma nova visão que rompe o axioma individualista da sociedade moderna para dar vezo á um novo paradigma o da coletividade 59 GONÇALVES Tutela de interesses difusos e coletivos 2007 p1 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 225 REfERênciAS BONAVIDES Paulo Curso de direito constitucional 12ed rev e atual São Paulo Malheiros 2002 Do estado liberal ao estado social 8ed São Paulo Malheiros 2007 BULOS Uadi Lammêgo Curso de direito constitucional São Paulo Saraiva 2007 BOBBIO Norberto A era dos direitos trad Carlos Nelson Coutinho Rio de Janeiro Elsevier 2004 CANOTILHO José Joaquim Gomes Direito constitucional e teoria da constituição 7ed Coimbra Almedina 2006 CARVALHO Oscar de Gênese e evolução dos direitos fundamentais In Revista Instituto de Pesquisas e Estudos Divisão Jurídica Bauru edição 34 p3152 abrjul 2002 CEZNE Andrea Nárriman A teoria dos direitos fundamentais uma analise comparativa das perspectivas de Ronald Dworkin e Robert Alexy In Revista de Direito Constitucional e Internacional São Paulo Revista dos Tribunais ano 13 n52 p5167 julset 2005 DALLARI Dalmo de Abreu Elementos da teoria geral do estado 26ed São Paulo Saraiva 2007 DIMOULIS Dimitri org Dicionário brasileiro de direito constitucional São Paulo Saraiva 2007 FESTER Antonio Carlos Ribeiro org Direitos humanos e São Paulo Brasiliense 1989 FERREIRA FILHO Manoel Gonçalves Curso de direito constitucional 33ed rev e atual São Paulo Saraiva 2007 Direitos humanos fundamentais 10ª ed São Paulo Saraiva 2008 O estado e os direitos fundamentais em face da globalização In Arquivo de direitos humanos Rio de Janeiro Renovar v2 2000 GARCIA Gustavo Filipe Barbosa O futuro dos direitos humanos fundamentais In Revista Jurídica Consulex Brasília ano X n232 p6062 15 set 2006 GARCIA Maria Desobediência civil direito fundamental 2ed rev atual e ampl São Paulo Revista dos Tribunais 2004 GONÇALVES Marcos Vinícius Rios Tutela de interesses difusos e coletivos 3ed rev São Paulo Saraiva 2007 HESSE Konrad Estudos de direito constitucional da República Federal da Alemanha 20ed Trad Luís Afonso Heck Porto Alegre Sergio Antonio Fabris 1998 HORTA Raul Machado Estudos de direito constitucional Belo Horizonte Del Rey 1995 LALAGUNA Paloma Duran Manual de derechos humanos Granada Comares Editorial 1993 LIMA George Marmelstein Crítica à teoria das gerações ou mesmo dimensões dos direitos fundamentais In Revista Opinião Jurídica Fortaleza v2 n3 p171182 2004 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 226 MARTINS Ives Gandra da Silva CAMPOS Diogo Leite de coords O direito contemporâneo em Portugal e no Brasil São Paulo Saraiva 2004 MENDES Gilmar Ferreira COELHO Inocêncio Martirez BRANCO Paulo Gustavo Gonet Curso de direito constitucional São Paulo Saraiva 2007 MIRANDA Jorge Manual de direito constitucional direitos fundamentais tomo IV Coimbra Coimbra 1988 Textos históricos de direito constitucional 2ed Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 1990 MORAES Alexandre de Direito constitucional 23ed São Paulo Atlas 2008 Direitos Humanos fundamentais teoria geral comentários aos arts 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil doutrina e jurisprudência 2ed São Paulo Atlas 1998 MORAIS José Luiz Bolzan de Do direito social aos interesses transindividuais o estado e o direito na ordem contemporânea Porto Alegre Livraria do Advogado 1996 OLIVEIRA JUNIOR José Alcebíades de LEITE José Rubens Morato coords Cidadania coletiva Florianópolis Paralelo 27 1996 PÉREZ LUÑO AntonioEnrique Los derechos fundamentales 7ed Madrid Tecnos 1998 PINILLA Ignácio Ara Las transformaciones de los derechos humanos Madrid Tecnos 1994 PUHL Adilson Josemar Breve histórico sobre a evolução dos direitos fundamentais In Revista Jurídica UNIGRAN Dourados v5 n9 p925 janjun 2003 SAMPAIO José Adércio Leite Sampaio Direitos fundamentais retórica e historicidade Belo Horizonte Del Rey 2004 SARLET Ingo Wolfgang Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988 3ed rev atual ampl Porto Alegre Livraria do Advogado 2004 SLAIB FILHO Nagib Direito constitucional 2ed Rio de Janeiro Forense 2006 SIDOU J M Othon As garantias ativas dos direitos coletivos habeas corpus ação popular mandado de segurança estrutura constitucional e diretivas processuais Rio de Janeiro Forense 1977 Proteção ao consumidor quadro jurídico universal responsabilidade do produtor no direito convencional clausulas contratuais abusivas problemática brasileira esboço de lei Rio de Janeiro Forense 1977 SILVA Alexandre Vitorino da et al Estudos de direito público direitos fundamentais e estado democrático do direito Porto Alegre Síntese 2003 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 227 SILVA José Afonso Curso de direito constitucional positivo 19ed rev atual e ampl São Paulo Malheiros 2001 TRINDADE Antonio Augusto Cançado SANTIAGO Jaime Ruiz de La nueva dimension de las necessidades de proteccíon de ser humano em el inicio del siglo XXI San José Impressora Gossestra Internacional 2001 VASAK Karel Las dimensiones internacionales de los derechos humanos Vol 1 Barcelona SerbalUNESCO 1984 Direito e Democracia v10 n2 p228249 juldez 2009 Canoas o princípio da igualdade na sociedade brasileira pluralista a questão das cotas raciais em universidades helton Kramer lustoza RESumo A presente pesquisa vem avaliar a questão das cotas raciais em universidades no contexto da sociedade brasileira trazendo uma reflexão objetiva sobre pontos fundamentais sob o prisma do direito constitucional contemporâneo Primeiramente se faz uma analise do significado e da origem das diferenças raciais existentes no país para se encontrar a razão das medidas de legitimação de diferenças raciais Por fim se identifica a política de cotas raciais em universidades como uma provável ação afirmativa política de discriminação positiva no direito brasileiro mas que neste caso não encontra legitimação perante o princípio da igualdade Palavraschave Igualdade Política e discriminação the principle of equality in pluralist Brazilian society the question of racial quotas in universities ABStRAct This research looks for evaluating the issue of racial quotas in Brazilians universities bringing an objective discussion about contemporary themes of constitutional law First the analysis will be focus in the meaning and origin of racial differences in the country to find the right measures of legitimization of racial differences Finally to identify the policy of racial quotas in universities as a possible affirmative action positive discrimination policy under Brazilian law but in this case without legitimacy because of equality principle Keywords Equality Political and discrimination 1 A DominAção BASEADA no ASPEcto RAciAl no BRASil Este trabalho visa a abordar a questão específica das cotas raciais em universidades no contexto da sociedade brasileira de um modo desapaixonado à causa buscando trazer a reflexão pontos e situações fundamentais sob o prisma do direito constitucional moderno Helton Kramer Lustoza é especialista em Direito Tributário pelo IBPEX em CuritibaPR Mestrando em Direito Constitucional pela Unibrasil Membro do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário IBPT Pesquisador integrante do Grupo Justiça Tributária e Atividade Econômica da PUCPR Membro da comissão de Direito Tributário da OABPR Professor Universitário Email heltonkramerhotmailcom Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 229 Para tornar mais objetiva a reflexão tomase como foco de análise inicial a busca de um significado e origem das diferenças raciais existentes no país de modo que venha a legitimar mecanismos de inclusão social Pois é com a análise dos problemas do passado que se pode ter noção da eficácia de soluções do futuro Um dos principais problemas enfrentados pelo Brasil é a questão da desigualdade social Se por um lado a Constituição Federal de 1988 determina que todos são iguais perante a lei sem discriminação de qualquer natureza algumas pessoas ainda se utilizam de uma espécie de classificação por raça para justificar algum ato de segregação ou dominação O desafio do direito contemporâneo é dar respostas à questão de ambiguidades que se apresentam na seara racial permitindo uma garantia frente à pluralidade étnica existente no Brasil Para se iniciar um estudo sobre cotas raciais é essencial analisarse em que se baseou a formação do povo brasileiro para entender a origem das diferenças sociais existentes Desde a chegada dos europeus em terras tupiniquins observouse a exploração de mão de obra humana na qual a escravidão sempre foi a base da produção econômica brasileira1 sendo baseada inicialmente com a obtenção de escravos indígenas e posteriormente com escravos africanos A dificuldade enfrentada pelos exploradores foi na dominação dos índios que rejeitavam explicitamente a aceitar aqueles mandos do homem branco o que fez com que houvesse uma expansão da importação de negros para trabalharem nas lavouras Mas o que se deve observar é que a escravidão foi tomada como mão de obra fundamental para a economia nascente no país no qual a dominação foi baseada em critérios estritamente econômicos O professor Darcy Ribeiro leciona que o processo de formação do povo brasileiro que se fez pelo entrechoque de seus contingentes índios negros e brancos foi por conseguinte altamente conflitivo Podese afirmar mesmo que vivemos praticamente em estado de guerra latente que por vezes e com frequência se torna cruento sangrento2 Isso demonstra que desde o início havia um conflito entre povos de modo que o europeu impunha sua dominação sob a base de uma macroetnia expansionista O branco precisava se impor frente a população dita inferior e a justificativa utilizada para a dominação foi através de uma hierarquia racial Após a abolição da escravatura o Brasil passou por um grande período de 1 Cf HOLANDA Sergio Buarque de Raízes do Brasil 26ed São Paulo Companhia das Letras 1995 p48 2 RIBEIRO Darcy O povo brasileiro a formação e o sentido do Brasil São Paulo Companhia das Letras 1995 p168 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 230 contradições e dilemas de uma sociedade rural em fase de transição para uma sociedade urbana recém industrializada mas que não conseguia libertarse de suas estruturas do passado A substituição da mão de obra escravocrata por uma mão de obra livre inviabilizava a industrialização do país que teimou em manter os padrões patriarcais A falta de uma racionalidade econômica e espírito competitivo fez com que o país pósescravatura meados século XX passasse por uma incontrolável migração do meio rural para o urbano transformando as áreas marginais às cidades em grandes favelas E um dos principais problemas enfrentados pelo Brasil diz respeito às diferenças sociais criadas pela imensa massa inserida nas cidades após a tentativa de industrialização do país o que fez com que se constatasse um fato no Brasil as classes ricas e as pobres se separam umas das outras por distâncias sociais e culturais quase tão grandes quanto as que medeiam entre povos distintos3 Observase que a tese de hierarquia de raças foi utilizada como justificativa para se manter a dicotomia entre pobres e ricos Assim percebese como o conceito de raça pura foi transportado da Botânica e da Zoologia para legitimar as relações de dominação e de sujeição entre as classes sociais Nobreza e Plebe sem que houvesse diferenças morfobiológicas notáveis entre os indivíduos pertencentes a ambas as classes4 Os povos dominadores se utilizaram de uma comparação biológica de determinadas raças para fixarem justificativas para legitimar diversos sistemas de dominação racial Observese o que o filósofo francês Voltaire escreveu em uma de suas obras A raça negra é uma espécie humana tão diferente da nossa quanto a raça de cachorros spainel dos galgos A lã negra nas suas cabeças e em outras partes do corpo não se parece em nada com o nosso cabelo e podese dizer que a sua compreensão mesmo que não seja de natureza diferente da nossa é pelo menos muito inferior5 Isso deixa claro que o critério de classificação de raças sempre foi utilizado na história para justificar as diferenças entres pessoas em uma sociedade mas não uma diferença que seria biológica Essa diferença é cultural criada pelo próprio homem para justificar uma dominação social o que serviu de embasamento para muitas discriminações 3 RIBEIRO Darcy O povo brasileiro a formação e o sentido do Brasil p210 4 MUNANGA Kabengele Uma abordagem conceitual das noções de raça racismo identidade e etnia Palestra proferida no 3º Seminário Nacional de Relações Raciais e Educação PENESBRJ em 05 de jan 2003 Disponível em httpwwwacaoeducativaorgbrdownloads09abordagempdf Acesso em 15 de dez de 2008 5 Voltaire citado por PENA Sérgio DJ Humanidade sem raças São Paulo Publi Folha 2008 p14 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 231 Segundo o professor Kabengele Munanga6 a classificação de raças tem fundamento histórico No século XVIII os filósofos iluministas contestavam o conhecimento da Igreja e se recusam a aceitar a explicação até então dada à história da humanidade consequentemente buscavam uma explicação baseada na razão Esses filósofos colocaram em debate se os povos recém descobertos por exemplo na América integravam à antiga humanidade como raças diferentes Para esse docente da USP levando em conta que as classificações são instrumentos que ajudam a operacionalizar o conhecimento foi essa técnica utilizada para explicar a diversidade humana O que não se poderia imaginar é que esse método de conhecimento acabou servindo de base para justificação de uma espécie de hierarquização o que pavimentou o caminho do racismo Assim Kabengele Munanga contesta a existência de raça como elemento biológico mas acredita ser um elemento cultural Combinando todos esses desencontros com os progressos realizados na própria ciência biológica genética humana biologia molecular bioquímica os estudiosos desse campo de conhecimento chegaram a conclusão de que a raça não é uma realidade biológica mas sim apenas um conceito alias cientificamente inoperante para explicar a diversidade humana e para dividila em raças estancas Ou seja biológica e cientificamente as raças não existem7 Isso não significa que todos os indivíduos são geneticamente idênticos ao contrário são diferentes mas essas diferenças não podem servir de suporte para se defender uma classificação em raças O grande problema histórico foi de se criar uma escala de valores entre as denominadas raças o que deu azo a enormes distorções na sociedade sendo utilizado como fundamento de grandes atrocidades como por exemplo o nazismo que defendia a existência de uma raça ariana superior O tipo físico como pele ou cabelo não pode ser utilizado como mecanismos de distinção muito menos de classificação de pessoas pois não há raças biológicas ou seja na espécie humana nada que possa ser classificado a partir de critérios científicos e corresponda ao que comumente chamamos de raça tem existência real segundo o que chamamos raça tem existência nominal efetiva e eficaz apenas no mundo social e portanto somente no mundo social pode ter realidade plena8 O que deixa claro que o conceito de raça tal como o empregamos hoje nada tem de biológico É um conceito carregado de ideologia pois como todas as ideologias ele 6 Cf MUNANGA Kabengele Uma abordagem conceitual das noções de raça racismo identidade e etnia hhtp wwwacaoeducativaorgbr acesso em 151208 7 MUNANGA Kabengele Uma abordagem conceitual das noções de raça racismo identidade e etnia idem 8 GUIMARÃES Antonio Sérgio Alfredo Classes Raças e Democracia São Paulo Editora 34 2002 p50 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 232 esconde uma coisa não proclamada a relação de poder e de dominação9 ou seja são construções fantasiosas criadas no imaginário social a partir das diferenças como a cor da pele e assim manter uma discriminação a certa pessoa ou grupo social Podese encontrar até mesmo uma explicação da origem da dominação na doutrina contratualista como Rousseau10 que defende que o homem viveu no estado de natureza de forma simples solitária e inocente preocupandose apenas com sua conservação Nessa época o homem não possuía a ideia do teu e do meu inexistia a ideia de propriedade Com a passagem da ordem natural para a formação da sociedade civil veio a instituição da noção de propriedade e assim que os homens antes livres se tornam escravos uns dos outros A partir desse momento o homem desenvolveu a ambição de ficar num status acima dos outros homens e não se contentava de produzir frutos somente para suas necessidades básicas mas para ganhar à custa do trabalho dos outros É nesse sentido que se observa o surgimento de um sentimento de dominação sobre outros homens o que denota que o fundamento seria econômico propriedade Nesse diapasão qualquer tipo de discriminação tomada com base no critério de classificação racial não encontrará um embasamento biológico Isso mostra o grande equívoco de muitas pessoas tomam apenas a raça ou traços culturais linguísticos religiosos para considerar que um determinado grupo social seria inferior a outro Fica claro que o aspecto raça é um conceito criado pela sociedade sem valor biológico e científico ou seja as raças não existem em nossa mente porque são reais mas são reais porque existem em nossa mente11 Tanto é assim que o juiz americano Warren no julgamento de um processo que tratava sobre o racismo expressou que não vejo como no dia e na época de hoje podemos separar um grupo do restante e dizer que eles não têm direito ao mesmo tratamento de todos os outros Fazer isso isto seria contrário às Décima Terceira Décima Quarta e Décima Quinta Emendas Elas visavam tornar os escravos iguais a todos os outros Pessoalmente não consigo ver de que forma podemos hoje justificar a segregação unicamente com base na raça12 Com essa mesma linha de pensamento o antropólogo Ralph Linton também defende que a utilização de superioridade de raças é uma questão de ideologia da dominação 9 MUNANGA Kabengele Uma abordagem conceitual das noções de raça racismo identidade e etnia idem 10 Cf ROUSSEAU JeanJacques Do contrato social ensaio sobre a origens das línguas discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens discurso sobre as ciencias e as artes Trad Lourdes Santos Machado 2ed São Paulo Abril Cultural 1978 p266 11 KAUFMAN Jay S citado por PENA Sérgio DJ Humanidade sem raças São Paulo Publi Folha 2008 p05 12 MENEZES Paulo Lucena de A ação afirmativa affirmative action no direito norteamericano 1ed São Paulo Revista dos Tribunais 2001 p82 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 233 Desde que os brancos eram mais bemsucedidos que as outras raças deviam ser em si mesmos superiores aos outros A falta de uma perspectiva mundial do europeu médio obstava que ele verificasse quão recente era esse domínio e o levava a complicadas tentativas para provar que as outras raças estavam realmente mais baixo na escala da evolução física13 Ainda que a classificação raça tenha sido desbancada pelas pesquisas contemporâneas com DNA ainda permanecem muitas mentalidades que defendem teses racistas não respeitando as diferenças culturais e étnicas É nesse cenário que se buscou a construção de uma política multiculturalista que garantisse a cada grupo social um espaço dentro da sociedade Mas o que se pode perceber é que o critério de diferenciação de raças possui uma origem econômica utilizado com o fim de criar escalonamento na sociedade Esse debate se mostra de extrema importância para resolver o dilema educacional da sociedade brasileira que oficialmente se diz democrática e postula a educação como sendo um mecanismo de ascensão social mas que de fato mostrase seletiva e pouco atraente para a classe desprestigiada O que se deve compreender é que a desigualdade social no Brasil partese de um problema econômico devendo as políticas públicas serem direcionadas nesse viés e não numa questão racial propriamente dita 2 AçõES AfiRmAtiVAS como PolíticAS DE comBAtE A DiScRiminAção RAciAl E A influênciA Do PluRAliSmo juRíDico A passagem do Estado liberal para o Estado social frente a uma discussão epistemológica contemporânea pode ser compreendida como uma quebra de paradigma14 uma passagem no plano do pensamento jurídico e estatal Na égide do Estado liberal de Direito a atuação estatal absorveu as bases teóricas de Locke e Monstequieu o que propiciou a difusão da ideia de direitos fundamentais e separação de poderes Os primados da legalidade e da liberdade foram elevados como matriz do Estado de modo que esses dois direitos foram os pilares do Estado liberal O Estado de Direito abandonou os elementos materiais para se reduzir a um esquema formal a partir disso já não interessa indagar o que o Estado pode querer basta verificar se quer na via do direito15 Essa legalidade construída perde cada vez 13 LINTON Ralph O homem uma introdução a antropologia Trad Lavínia Vilela 11ed São Paulo Martins Fontes 1981 p57 14 Um paradigma segundo Kuhn é um modelo ou padrão aceito que na dimensão científica raramente é suscetível de reprodução porque assim como decisões judiciais o paradigma é um objeto a ser mais bem articulado e precisado em condições novas ou mais rigorosas KUHN Thomas s A estrutura das revoluções científicas São Paulo Perspectiva 2000 p4344 15 NOVAIS Jorge Reis Contributo para uma teoria do Estado de direito do estado de direito liberal ao Estado social e democrático de direito Coimbra Coimbra 1987 p112 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 234 mais referência com o objetivo das liberdades e direitos individuais o que se verifica uma neutralidade do puro Estado de legalidade e consequente manipulação autoritária do conceito O Estado liberal se mostrou incapaz de responder as necessidades sociais a partir da mera separação das instancias política e social Assim entende Jorge Reis Novaes que ao lado dos direitos e liberdades clássicos moldados e comprimidos particularmente no que se refere ao direito de propriedade à medida das novas exigências de socialidade avultam agora os chamados direitos sociais indissociáveis das correspondentes prestações do Estado16 Assume o Estado Social o encargo de buscar uma reconfiguração da atuação estatal na sociedade atendendo as mais variadas áreas até então deixa a cargo dos particulares Diante da passagem de um modelo liberal para um modelo social de Estado Ronald Dworkin17 identifica um aparente conflito entre o princípio da liberdade e o princípio da igualdade distributiva haja vista que a liberdade concebida com sua natureza negativa nega a possibilidade de concessões de privilégios somente a uma parcela da sociedade Frente a esse dilema responde Dworkin que Faço essa afirmação ousada porque acredito estarmos hoje unidos na aceitação do princípio igualitário abstrato o governo deve agir para tornar melhor a vida daqueles a quem governa e deve demonstrar igual consideração pela vida de todos18 Na égide do atual Estado social não se pode estabelecer um sistema em que a liberdade irá prevalecer sobre a igualdade pois o pensamento jurídico contemporâneo é a favor de um Estado solidário um Estado que intervém na sociedade para garantir a igualdade de oportunidades É por isso que nesse novo cenário o princípio da igualdade surge como uma técnica de saneamento de diferenças isto é um instrumento de combate as desigualdades sociais existentes na sociedade 16 NOVAIS Jorge Reis Contributo para uma teoria do Estado de direito do estado de direito liberal ao Estado social e democrático de direito p197 17 Cf DWORKIN Ronald A virtude soberana a teoria e a prática da igualdade Trad Jussara Simões São Paulo Martins Fontes 2005 p168 18 DWORKIN Ronald A virtude soberana a teoria e a prática da igualdade Trad Jussara Simões São Paulo Martins Fontes 2005 p169 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 235 No Brasil o sistema multicultural aliado a má distribuição de renda desviando os interesses estatais sempre em favor de uma classe hegemônica baseado numa decisão da maioria sistema democrático acabou culminando na marginalização política jurídica e social de uma classe na sociedade Essa classe por muitos denominados como marginalizados não tinham voz ativa nos rumos desta sociedade sendo deixados às margens de qualquer beneficio que uma civilização possa proporcionar Essa classe não possui uma denominação racial mas sim sociológica são os pobres sem condições financeiras para obter participação digna na sociedade Frente a estes aspectos o campo foi propício para que os movimentos sociais assumissem um papel importante na defesa das minorias19 em busca de soluções a problemas que até então as outras classes sociais não levaram em conta já que a defesa não seria de seu interesse O Estado social transformou a conotação dos direitos individuais de índole formal em material Celso Bastos descreve essa passagem como os principais elementos componentes deste alargamento das funções públicas foram à promoção do bem comum e da justiça social20 Com o intuito de minimizar os problemas sociais os governantes propuseram uma séria de reformas estruturais haja vista que a legitimidade do Estado vem a anos sendo comprometida pois como se observa o Estado nunca agiu em prol do interesse das classes marginalizadas Sempre a maioria fundamento da democracia que decidia os rumos da nação nunca decidia em prol de todas as classes A busca para que a camada marginalizada de uma sociedade fosse resgatada para participação social desencadeou reflexões em todos os campos das ciências em especial no Direito Diante de uma crise dos instrumentos legais no campo de inclusão social a teoria crítica do direito aparece como um instrumento de conscientização Começase a perceber que o direito legal era apenas um elemento componente dentro do Direito21 havendo enumeras outras formas de regulação social que tinham aceitação dentro de uma determinada comunidade mas que não estavam abrangidos pelo direito legal É diante desse cenário que o pluralismo jurídico vem a estudar essas mudanças da realidade social oferecendo formas alternativas de realização das necessidades esquecidas pelo poder público Antonio Carlos Wolkmer assim define o pluralismo jurídico o pluralismo enquanto novo referencial do político e do jurídico necessita contemplar a questão do Estado suas transformações e desdobramentos mais recentes principalmente de um Estado limitado a reconhecer e garantir Direitos 19 Minoria não no sentido de quantitativo mas sim no sentido de poder político e jurídico 20 BASTOS Celso Ribeiro Curso de Teoria do Estado e Ciência Política São Paulo Saraiva 1986 p41 21 Cf COELHO Luis Fernando Teoria Critica do Direito 3ed Belo Horizonte Del Rey 2003 p442 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 236 emergentes Por outro lado há de se sublinhar a especificidade do pluralismo como projeção de um paradigma interdiciplinar do político e do jurídico22 Os movimentos sociais tiveram um papel importante nessa quebra de paradigma estão eles contribuindo para o impulso de uma nova cultura política participativa calcados no direito da diversidade Para Wolkmer os movimentos sociais devem ser entendidos como sujeitos coletivos transformadores advindos de diversos estratos sociais e integrantes de uma prática política cotidiana com reduzido grau de institucionalização imbuída de princípios valorativos comuns e objetivando a realização de necessidades humanas fundamentais23 Para o professor Marcos Augusto Maliska24 a implementação de processos autônomos de participação irá ajudar na modelação das políticas publicas do Estado conforme reivindicações realizadas Assim o direito pode ser compreendido como um instrumento de transformação social através do qual a sociedade deve lutar através de suas formas associativas para implementar os direitos previstos no texto legal Ante a necessidade de se resgatar a classe marginalizada e propulsionada pelas correntes do pluralismo jurídico o Estado inaugurou uma série de políticas públicas de inclusão social denominadas de ações positivas que poderiam ser definidas como um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório facultativo ou voluntário concebidas com vistas ao combate à discriminação racial de gênero e de origem nacional bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego25 Como representante do Direito Público Carmem Lucia Antunes defende que a ação afirmativa é então uma forma jurídica para se superar o isolamento ou a diminuição social a que se acham sujeitos as minorias26 Em outras palavras ações afirmativas podem ser compreendidas como mecanismos que promovem o princípio da igualdade de oportunidades trazendo ao seio social 22 WOLKMER Antonio Carlos Citado por MALISKA Marcos Antonio Pluralismo jurídico e Direito moderno Curitiba Juruá 2000 p65 23 WOLKMER Antonio Carlos Pluralismo Jurídico fundamentos de uma nova cultura do direito São Paulo Alfa Omega 2001 p125 24 Cf MALISKA Marcos Antonio Pluralismo jurídico e Direito moderno Curitiba Juruá 2000 p7582 25 GOMES Joaquim B Barbosa Ação afirmativa princípio constitucional da igualdade o direito como instrumento de transformação social A experiência dos EUA Rio de Janeiro Renovar 2001 p40 26 ROCHA Carmem Lucia Antunes Ação afirmativa o conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica In Revista Trimestral de Direito Público n1585 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 237 aqueles que foram marginalizados em uma dada sociedade Essa transformação visa atingir uma maior representatividade dos grupos minoritários nas atividades públicas e privadas As ações afirmativas tiveram origem nos Estados Unidos com o fim da Guerra civil americana e a escravidão diversas medidas jurídicas e políticas foram tomadas para combater a discriminação racial como por exemplo a Décima Terceira Emenda em 1865 que proibiu a escravidão Décima Quarta Emenda que trouxe o princípio do devido processo legal proibindo a discriminação racial e considerando cidadãos americanos todos aqueles nascidos nos EUA e a Décima Quinta Emenda em 1870 que impede o cerceamento do voto por motivo de raça Ocorre que todas as medidas tomadas pelos americanos não foram suficientes para evitar que os estados que compõe os EUA adotassem medidas segregacionistas sobretudo os do sul que lutaram na Guerra Civil em favor da manutenção da escravidão27 Entende Ronald Dworkin que o objetivo das ações afirmativas é implementar uma verdadeira discriminação positiva Muitas vezes se diz que os programas de ação afirmativa têm como objetivo alcançar uma sociedade racialmente consciente dividida em grupos raciais e étnicos cada um deles como grupo com direito a uma parcela proporcional de recursos carreiras ou oportunidades Essa é uma análise incorreta A sociedade norteamericana hoje é uma sociedade racialmente consciente essa é a consequência inevitável e evidente de uma história de escravidão repressão e preconceito Os programas de ação afirmativa usam critérios racialmente explícitos porque seu objetivo imediato é aumentar o número de membros de certas raças nessas profissões Mas almejam a longo prazo reduzir o grau em que a sociedade norteamericana como um todo é racialmente consciente28 O Brasil importou as ações afirmativas americanas tentando adotar políticas de combate à segregação com o intuito de fazer valer o princípio da igualdade material cristalizada no artigo 5º I da Constituição Federal de 1988 Assim com o efeito de combater os efeitos do passado escravocrata brasileiro o governo acaba implementando políticas concretas de inclusão social o que traz à baila a discussão acerca da necessidade e constitucionalidade da adoção de medidas compensatórias dessa magnitude como a reserva de cotas para ingresso em universidades públicas O assunto tomou destaque na mídia uma vez que a questão é extremamente polêmica Se de um lado se envolve questões históricas como a desigualdade social 27 Cf SANTOS Élvio Gusmão Igualdade e raça O erro da política de cotas raciais 28 DWORKIN Ronald Uma Questão de Princípio Trad Luís Carlos Borges São Paulo Martis Fontes 2000 p439 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 238 diferenças raciais por outro se tem que analisar os primados do princípio da igualdade para o fim de se averiguar se a finalidade da medida possui respaldo e validade constitucional O procurador federal Élvio Gusmão entende que a importação do sistema de cotas em universidades que funciona nos Estados Unidos é uma tentativa equivocada de solucionar um problema brasileiro com uma solução não compatível argumenta que A finalidade da importação da ideia de cotas dos Estados Unidos da América é trazer uma solução para um racismo que lá era institucionalizado a fim de resolver um problema que é mais de natureza econômica que ideológica ou institucional pois a maior discriminação como será demonstrado se dá mais em virtude da posição social e econômica da pessoa do que em relação a sua cor no Brasil Aqui após a abolição nunca houve lei alguma que promovesse barreira institucional a negros ou qualquer outra etnia29 No Brasil de forma diversa que nos EUA não existe uma discriminação institucionalizada embora possam ocorrer preconceitos de forma isolada mas o que não pode ocorrer é o fato de se aceitar como legítima toda e qualquer política pública importada sem realizar reflexões sobre as consequências da medida adotada É temerário admitir uma ação afirmativa discriminação positiva com base racial haja vista que a adoção de políticas de cotas poderá ocasionar uma série de consequências distorcidas pelo simples fato de inexistir uma verdadeira diferença biológica de raças discutidas no primeiro tópico Se a questão da desigualdade social existente no Brasil se deve a relação socioeconômica pois a história demonstra que a escravidão ocorreu por conta do uso do poderio econômico em prol de um modelo econômico nascente a solução das cotas raciais seria falha Entende Elvio Gusmão que O negro não foi escravizado por ser negro embora tenham sido utilizadas razões teológicas e pseudocientíficas para justificar a escravidão mas pelo fato de a África fornecer a mão de obra necessária mais abundante e de fácil captura bem como possuir civilizações e culturas menos avançadas tecnologicamente o que facilitou o seu domínio por parte do explorador europeu30 Essa situação coloca em dúvida se as cotas raciais em universidades seria a medida correta ou adequada para solucionar um problema social brasileiro Com isso a criação de cotas como forma de inserção social de grupos marginalizados via criação de vagas exclusivas para grupos em universidades 29 SANTOS Élvio Gusmão Igualdade e raça O erro da política de cotas raciais 30 SANTOS Élvio Gusmão Igualdade e raça O erro da política de cotas raciais Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 239 denominada de ação afirmativa parte da premissa de problemas de segregação racial o que na verdade a história brasileira comprova que seria socioeconômica Isso exige que o sistema de cota deve ser melhor refletido para que deva funcionar de uma forma diferente 3 o PRimADo conStitucionAl DA iGuAlDADE E A QuEStão DAS cotAS RAciAiS no EnSino SuPERioR mEDiDA PolíticA DE DESlEGitimAção conStitucionAl A intenção deste trabalho é pesquisar a questão da política de cotas raciais em universidades como ação afirmativa política de discriminação positiva no direito brasileiro levandose em conta as diretrizes constitucionais sobre o princípio da igualdade e sobre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil A constituição Federal de 1998 denota em seu art 5º I que as leis devem ser executadas sem consideração pessoais o que exige que toda norma jurídica seja aplicada a todos os casos que sejam abrangidos por seu suporte fático e a nenhum caso que não o seja31 Isso remete a máxima aristotélica de que consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais Mas a indagação que involuntariamente se apresenta é quem são os iguais e quem são os desiguais Devese perceber que a discriminação pode ocorrer em dois sentidos quando se trata como iguais pessoas em situações diferentes e também quando se trata de forma diferente pessoas em situações iguais Em outras palavras o ordenamento jurídico brasileiro deve buscar um tratamento semelhante em termos de direitos e obrigações para todos os cidadãos o que não impede por via do princípio da igualdade que determinada situação tenha tratamento diferenciado de outra É possível que determinada situação por apresentarse como uma especialidade possa receber um tratamento diferenciado desde que diante de uma justificativa legitimada Essa diferenciação não pode ser feita de maneira indiscriminada sob pena de violar o próprio postulado da igualdade conforme alerta Pimenta Bueno a lei deve ser uma e a mesma para todos qualquer especialidade ou prerrogativa que não for fundada só e unicamente em uma razão muito valiosa do bem público será uma injustiça e poderá ser uma tirania32 31 ALEXY Robert Teoria dos direitos fundamentais Trad Vergílio Afonso da Silva São Paulo Malheiros 2008 p394 32 BUENO Pimenta citado por MELLO Celso Antonio B de Conteúdo jurídico do princípio da igualdade 3ed São Paulo Malheiros 1999 p18 Também é o entendimento de Robert Alexy Se o enunciado geral de igualdade se limitasse ao postulado de uma práxis decisória universalizante o legislador poderia sem violálo realizar qualquer discriminação desde que sob a forma de uma norma universal o que é sempre possível A partir dessa interpretação a legislação nazista sobre judeus não violaria o enunciado os iguais devem ser tratados igualmente ALEXY Robert Teoria dos direitos fundamentais Trad Vergílio Afonso da Silva São Paulo Malheiros 2008 p398 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 240 Frente a essas premissas é possível trazer o entendimento de Robert Alexy onde ele defende que o direito de igualdade definitivo abstrato desdobrase no direito de ser tratado igualmente se não houver justificativa para o tratamento desigual e o direito de ser tratado desigualmente se tal justificativa estiver presente33 Este ainda compreende com base em uma jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão que o enunciado da igualdade é violado se não é possível encontrar um fundamento razoável que decorra da natureza das coisas ou uma razão objetivamente evidente para a diferenciação ou para o tratamento igual feitos pela lei34 sendo que promover determinados grupos já significa tratar os outros de forma desigual35 Fica claro que o princípio da igualdade se apresenta com caráter dúplice que de um lado obriga o Estado a não conceder privilégios injustificados mas também seria utilizado para a correção das injustiças sociais localizadas e pontuais técnica de saneamento de desigualdades Mas esse tratamento diferenciado deve ser aplicado com muita cautela haja vista o perigo em estar criando um novo tipo de discriminação com base em uma aparência de justiça Diante de uma dada situação entende Celso Antonio B Mello36 que primeiramente se deve identificar aquela situação que é erigida em critério discriminatório para depois se descobrir se existe alguma razão racional para atribuir um tratamento jurídico diferenciado Verificado qual o fato social que se mostre discriminado mecanismos legislativos e administrativos compensatórios poderiam ser adotados para buscar a solucionar o problema Nesse processo de identificação do fato discriminen devese ter o cuidado para que a situação analisada seja efetivamente especial ou seja possua característica ou traço diferenciado Para numa segunda etapa encontrar uma correlação lógica entre os fatores diferenciais do fato analisado com a diferenciação do regime jurídico estabelecida na legislação sendo que essa diferenciação somente poderá ser levada a efeito se o presente tratamento jurídico esteja fundado em razão valiosa protegida pela carta constitucional37 Frente à perspectiva doutrinária acima delineada as políticas públicas precisam ser avaliadas a partir de um fundamento sociológico e constitucional buscando a promoção da pessoa sanando as reais desigualdades existentes na sociedade A questão tormentosa que o Estado contemporâneo tem que lidar é o fato de encontrar razões para justificar 33 Cf ALEXY Robert Teoria dos direitos fundamentais p429 34 ALEXY Robert Teoria dos direitos fundamentais p403 35 ALEXY Robert Teoria dos direitos fundamentais p417 36 Cf Celso Antonio B de Conteúdo jurídico do princípio da igualdade 3ed São Paulo Malheiros 1999 p38 37 Cf Celso Antonio B de Conteúdo jurídico do princípio da igualdade p41 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 241 as discriminações positivas isto é de que determinada situação é realmente especial e merece guarida pelo Direito É nessa discussão que se insere a questão das cotas raciais em universidades no qual o Estado brasileiro elegeu como situação a merecer um tratamento diferenciado art 3º III da CF38 elencado como uma ação afirmativa destinada a promover a igualdade de acesso à educação Mas o problema é de responder as críticas que se embasam na tese de que as cotas raciais não encontrariam uma legitimidade constitucional bem como estaria criando ao invés de uma inclusão social uma nova forma de discriminação Sabese que o postulado da igualdade busca a concretização da justiça social visando um tratamento isonômico entre situações semelhantes Pela justificativa política da criação de cotas raciais em universidades ela estaria atrelada a concretização de uma justiça compensatória na qual a melhor forma de correção e de reparação desse estado de coisas consistiria em aumentar via ações afirmativas as chances dessas vítimas históricas de obterem os empregos e as posições de prestigio que elas naturalmente obteriam caso não houvesse discriminação39 Observase que a ideia central da política de cotas é a concretização da igualdade material entre os povos sejam eles brancos negros ou índios O que se buscou com essa ação afirmativa foi diminuir as desigualdades sociais ou tratar os desiguais na medida da sua desigualdade através de uma reparação de injustiças cometidas no passado o que deveria proporcionar uma correção social mediante a criação de um sistema diverso de recepção de acadêmicos pela via racial Ainda que a intenção seja moralmente significativa e de grande valia o problema é justificar as cotas raciais diante do postulado constitucional da igualdade Pois não se poderia remediar um suposto problema do passado criando um novo problema para o futuro haja vista que se estaria criando um novo fato discriminador assim o Estado brasileiro copiando uma solução dos Estados Unidos da América para um problema norteamericano deu início a uma política de pretensa inclusão social e econômica das populações negras e aborígenes com o fim de diminuir as desigualdades vigentes entre estes e os de cor branca incentivando todavia a discriminação racial40 38 Art 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil III erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais 39 GOMES Joaquim B Barbosa Ação afirmativa princípio constitucional da igualdade o direito como instrumento de transformação social A experiência dos EUA p6364 40 SANTOS Élvio Gusmão Igualdade e raça O erro da política de cotas raciais Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 242 Se a justificativa utilizada para a implantação da cotas raciais for de justiça compensatória existem pesadas críticas acerca de sua aceitação haja vista que em matéria de reparação de danos somente quem sofreu o dano teria legitimidade de receber a respectiva reparação bem como somente quem praticou o ato danoso tem o dever de arcar com a sanção não sendo permitido repassar o encargo e benefícios para terceiros Essas críticas tendem a enfraquecer a tese compensatória das ações afirmativas segundo entendimento de Joaquim Barbosa41 O sistema de cotas raciais foi uma opção política do Estado brasileiro como solução a fim de resolver um problema que é mais de natureza econômica do que ideológica ou racista ao contrário da história dos EUA A história brasileira comprova que a maior discriminação existente ocorre em virtude da posição social e econômica do que em relação à cor de pele Se a questão de raça sempre foi utilizada como um meio para a justificação de dominação de povos podese compreender que a instituição de uma forma diferenciada com base em raças seria falha ou pior discriminatória Além disso o artigo 208 inciso V da Constituição Federal determina que haverá o acesso aos níveis mais elevados do ensino da pesquisa e da criação artística segundo a capacidade de cada um o que impõe um caráter meritório na admissão de acadêmicos pelo ensino superior ao contrário do que ocorre no ensino fundamental e médio que se orientam pelo princípio da universalização Assim é vedada qualquer eleição de fator de discriminação que se baseia em nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo como o sexo a raça a nacionalidade religião conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal42 em casos semelhantes Defende Nina Beatriz Stocco Ranieri que as cotas raciais em universidades irá criar uma distorção extremamente prejudicial na sociedade realizando pesadas críticas a este sistema A reserva de vagas não resolve o problema da desigualdade educacional cujas raízes encontramse nas condições de acesso qualidade e permanência no ensino fundamental e médio Pelo contrário além de não o solucionar agrava a desigualdade assim produzida de forma perversa Cria duas categorias de 41 Cf GOMES Joaquim B Barbosa Ação afirmativa princípio constitucional da igualdade o direito como instrumento de transformação social A experiência dos EUA p65 42 CONSTITUCIONAL TRABALHO PRINCÍPIO DA IGUALDADE TRABALHADOR BRASILEIRO EMPREGADO DE EMPRESA ESTRANGEIRA ESTATUTOS DO PESSOAL DESTA APLICABILIDADE AO TRABALHADOR ESTRANGEIRO E AO TRABALHADOR BRASILEIRO CF 1967 ART 153 1º CF 1988 ART 5º CAPUT I AO RECORRENTE POR NÃO SER FRANCÊS NÃO OBSTANTE TRABALHAR PARA A EMPRESA FRANCESA NO BRASIL NÃO FOI APLICADO O ESTATUTO DO PESSOAL DA EMPRESA QUE CONCEDE VANTAGENS AOS EMPREGADOS CUJA APLICABILIDADE SERIA RESTRITA AO EMPREGADO DE NACIONALIDADE FRANCESA OFENSA AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE CF 1967 ART 153 1º CF 1988 ART 5º CAPUT II A DISCRIMINAÇÃO QUE SE BASEIA EM ATRIBUTO QUALIDADE NOTA INTRÍNSECA OU EXTRÍNSECA DO INDIVÍDUO COMO O SEXO A RAÇA A NACIONALIDADE O CREDO RELIGIOSO ETC É INCONSTITUCIONAL PRECEDENTE DO STF AG 110846AGRGPR CÉLIO BORJA RTJ 119465 III FATORES QUE AUTORIZARIAM A DESIGUALIZAÇÃO NÃO OCORRENTES NO CASO IV RE CONHECIDO E PROVIDO RE 161243 RELATORA MIN CARLOS VELLOSO SEGUNDA TURMA JULGADO EM 29101996 DJ 19121997 PP00057 EMENT VOL0189604 PP00756 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 243 alunos em termos de mérito e competência acadêmicas os das cotas reservadas e os que ingressam sem reserva de cotas o que não só diminui a eficiência da reconhecida qualidade do ensino superior público uma vez que os primeiros tendem a permanecer por mais tempo nos cursos de graduação dadas as consequências inerentes à facilitação do acesso centradas basicamente no déficit de aprendizagem Este mesmo fato considerado do ponto de vista do aluno ingressante pelo sistema de cotas produz efeito antissocial ante as possíveis repetências e dificuldades de acompanhamento normal dos cursos Não há outro caminho para a redução de desigualdades na área educacional senão o da melhoria de ensino fundamental e médio o que supõe tanto o investimento financeiro como a formação de professores devidamente capacitados para atuar nesses níveis de ensino 43 Deve existir uma reflexão no sentido de que se prevalecer a tese de que é possível criar um sistema em que defende uma concorrência apartada para os negros e índios tendo como justificativa que eles não teriam as mesmas capacidades que os brancos isso pode representar dois problemas graves de um lado a quebra do princípio da eficiência do ensino público ao se flexibilizar o acesso de alunos e por outro lado uma legalização do racismo ao invés de uma ação afirmativa Nesse sentido foi o entendimento da Desembargadora Vera Lúcia Lima do Tribunal Regional Federal da 2ª Região44 ao julgar o Agravo de Instrumento n200802010121621 ocasião em que ela decidiu que as cotas raciais não atendiam ao princípio da isonomia haja vista que o acesso ao ensino universitário deve sempre ser regulado de acordo com o critério meritório O que se tenta defender é que ao se criar um sistema diferenciado sob o pretexto de que há raças exploradas historicamente mas na verdade a exploração se deu por aspectos econômicos então a premissa adotada é falsa logo o sistema pode não funcionar da forma que se imagina Além da ação judicial acima citada existem várias outras discutindo a matéria de cotas raciais em universidades dentre elas uma representação de inconstitucionalidade no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro processo nº 200300700021 e uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal ADIN 2858 Ambas as 43 RANIERI Nina Beatriz Stocco A reserva de vagas nas universidades públicas BDA Boletim de Direito Administrativo São Paulo v17 n9 p699701 2001 44 CONSTITUCIONAL AGRAVO DE INSTRUMENTO ENSINO SUPERIOR SISTEMA DE COTAS RESOLUÇÃO Nº 332007 DA UFES RESERVA DE 40 DAS VAGAS DOS CURSOS OFERECIDOS PARA ESTUDANTES DE BAIXA RENDA EGRESSOS DE ESCOLAS PÚBLICAS ART 97 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL RESERVA DE PLENÁRIO DESNECESSIDADE IN CASU AFRONTA AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE INOBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE ACESSO QUE DEVE PAUTARSE DE ACORDO COM O MÉRITO DE CADA UM ART 208 V DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL INEXISTÊNCIA DE META PROGRAMÁTICA INSTITUÍDA PELO CONSTITUINTE ORIGINÁRIO EM PROL DA UNIVERSALIZAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR DECISÃO QUE NÃO MALFERE A AUTONOMIA DIDÁTICOCIENTÍFICA PREVISTA NO ART 207 DA CR88 RECURSO PROVIDO AGRAVO INTERNO PREJUDICADO TRF 2ª região AI 200802010121621 Julg 11032009 Rel Des Vera Lucia Lima Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 244 ações trazem questões como estas que foram levantadas neste trabalho e que merecem ser amadurecidas pela sociedade com muita clareza e objetividade Outro problema que se encontra no sistema de cotas raciais e que impede a legitimidade constitucional é a respeito de sua operacionalidade sendo que o aspecto racial depende de uma análise subjetiva Pois se já é difícil afirmar que raças existem como se fazer a confirmação de que alguém é negro índio ou branco E o mulato seria meio negro ou meio branco Então teria ele direito a meia cota Frente à interpretação extensiva admitida no direito constitucional como tratar aquele de cor branca mas filho de mãe e pai negros Acreditase que as cotas raciais poderão ocasionar mais distorções do que correção na sociedade brasileira pois a diferenciação a ser criada com base em raças além de possuir premissas falhas não admite um controle objetivo possibilitando por exemplo que negros ricos possuam privilégios e brancos pobres e marginalizados fiquem de fora do programa Observese um caso real que ocorreu na Universidade de Brasília relatada pelo procurador federal Élvio Gusmão História bizarra aconteceu com os gêmeos Alan e Alex No início de maio de 2007 o estudante Alan Teixeira da Cunha de 18 anos e seu irmão gêmeo Alex foram juntos à Universidade de Brasília UnB para se inscrever no vestibular Visto que têm pele morena eles optaram por disputar o concurso por meio do sistema de cotas raciais Desde 2004 a UnB e outras 33 universidades do país reservam 20 de suas vagas a alunos negros e pardos que conseguem a nota mínima no exame Alan e Alex são gêmeos univitelinos ou seja foram gerados no mesmo óvulo e genética e fisicamente são idênticos Eles se inscreveram no sistema de cotas por acreditar que se enquadram nas regras já que seu pai é negro e a mãe branca Seria de esperar que ambos recebessem igual tratamento Não foi o que aconteceu Os juízes da raça olharam as fotografias e decidiram Alex é branco e Alan não Alan que quer prestar vestibular para educação física foi classificado como preto na subcategoria dos pardos e pode se beneficiar do sistema de cotas Alex que pretende cursar nutrição foi recusado A decisão da banca da Universidade de Brasília que determina quem tem direito ao privilégio da cota mostra o perigo de classificar as pessoas pela cor da pele coisa que fizeram os nazistas e o apartheid sulafricano45 Para o americano John Rawls as desigualdades sociais atingem as possibilidades de vida dos seres humanos É sobre tais desigualdades que a teoria da justiça deve ser aplicada através da defesa da equidade Assim defende este autor que 45 SANTOS Élvio Gusmão Igualdade e raça O erro da política de cotas raciais Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 245 todas as pessoas têm igual direito a um projeto inteiramente satisfatório de direitos e liberdades básicas para todos projeto este compatível com todos os demais e nesse projeto as liberdades políticas e somente estas deverão ter seu valor equitativo garantido E também as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer dois requisitosa devem estar vinculadas a posições e cargos abertos a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades e b devem representar o maior benefício possível aos membros menos privilegiados da sociedade46 É possível defender que haja mecanismos de correções das desigualdades sociais com a finalidade de privilegiar os menos favorecidos O que não pode acontecer é simplesmente eleger a questão racial como premissa para a diferenciação social o que em si já é uma discriminação haja vista que no atual Estado Democrático de Direito todo e qualquer tratamento diferenciado deve atender ao princípio da isonomia afim de que aquilo que é identificado como vontade da Constituição deve ser honestamente preservado mesmo que para isso tenhamos de renunciar a alguns benefícios ou até a algumas vantagens justas47 conforme defende o doutrinador alemão Konrad Hesse Uma alternativa legitima que poderia ser criada seria a implementação definitiva de cotas para estudantes de escolas públicas ou cotas para pessoas sem condições financeiras Estas espécies de diferenciação aparentemente encontrariam fundamento constitucional pois se estaria combatendo a desigualdade social com um problema historicamente identificado e com mecanismos de caráter objetivo sem riscos de se privilegiar pessoas em situações iguais O princípio da igualdade conforme concebido pelo Estado Democrático de Direito moderno se traduz em uma técnica que visa o saneamento das desigualdades sociais Mas não pode ser tomado como fundamento para as cotas raciais pois nesse caso estaria aplicando a isonomia às avessas o que deslegitima os primados constitucionais 4 conSiDERAçõES finAiS A classificação de raças não tem caráter biológico mas sim tem um conceito carregado de ideologia esconde uma coisa não proclamada a relação de poder e de dominação É uma construção criada no imaginário social a partir das diferenças como a cor da pele e assim manter uma discriminação a certa pessoa ou grupo social A história brasileira demonstra que as desigualdades sociais possuem uma origem econômica no qual a questão racial foi elencada tão somente como uma justificativa de dominação 46 RAWLS John Uma Teoria da Justiça São Paulo Martins Fontes 2000 p4748 47 HESSE Konrad A força normativa da Constituição Trad Gilmar Ferreira Mendes Porto Alegre Sérgio Fabris Editor 1991 p22 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 246 Diante da existência das desigualdades sociais é que se percebeu o surgimento de movimentos sociais que vieram a exercer um papel importante nessa quebra de paradigma Junto com esses movimentos da sociedade também surgiram políticas públicas como forma de inserção social de grupos marginalizados denominadas de ações afirmativas O Brasil importou a ideia de cotas raciais para universidades dos Estados Unidos da América tentando trazer uma solução para desigualdade social mas que não guarda legitimidade com a carta constitucional brasileira de 1988 Ela parte da premissa de problemas de segregação racial o que na verdade a história brasileira comprova que seria socioeconômica O princípio da igualdade concebido pela Constituição Federal de 1988 se traduz numa técnica que visa o saneamento das desigualdades sociais e a adoção das cotas raciais em universidades não encontra legitimidade constitucional pois estaria legalizando uma espécie de discriminação Aparentemente as cotas raciais se apresentam a sociedade como uma medida de inclusão social mas podese verificar que além de não possuir uma legitimidade constitucional sua operacionalidade irá criar um antagonismo com o princípio da isonomia O critério verificador de raças ficará a cargo de uma análise subjetivista o que poderá criar verdadeiras distorções na finalidade dessa medida social REfERênciAS ALEXY Robert Colisão de direitos fundamentais e realização de direitos fundamentais no Estado de direito democrático In Revista de Direito Administrativo Rio de Janeiro Renovar n217 julset 1999 Teoria dos direitos fundamentais Trad Vergílio Afonso da Silva São Paulo Malheiros 2008 ATALIBA Geraldo República e Constituição 2ed São Paulo Malheiros 2004 ARAÚJO Luiz Alberto David Curso de direito constitucional 6ed São Paulo Saraiva 2002 BASTOS Celso Ribeiro MARTINS Ives Gandra Comentários à Constituição do Brasil São Paulo Saraiva 2000 BONAVIDES Paulo Curso de direito constitucional 9ed São Paulo Malheiros 2000 Teoria do Estado 6ed São Paulo Malheiros 2007 BARROSO Luís Roberto Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro pósmodernindade teoria crítica e póspositivismo In Revista Forense Rio de Janeiro v358 BOBBIO Norberto Dicionário da política 10ed Trad João Ferreira Brasília Editora Universidade de Brasília 1997 CANOTILHO Jose Joaquim Gomes Direito constitucional e teoria da constituição Coimbra Almedina 2000 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 247 CÁCERES Florival História do Brasil São Paulo Moderna 1997 CHALHOUB Sidney Visões da liberdade uma história das últimas décadas da escravidão na corte São Paulo Companhia das Letras 1990 COELHO Luis Fernando Teoria Critica do Direito 3ed Belo Horizonte Del Rey 2003 DWORKIN Ronald A virtude soberana a teoria e a prática da igualdade Trad Jussara Simões São Paulo Martins Fontes 2005 Uma questão de princípio Trad Luís Carlos Borges São Paulo Martis Fontes 2000 FERNANDES Florestan Mudanças sociais no Brasil São Paulo Difusão Europeia do livro 1960 A democratização do ensino In FERNANDES Florestan Educação sociedade no Brasil São Paulo DominusEDUSP 1966 FERREIRA Daniela Sanchez Ita CHICANATTO Dionísio Ações afirmativas e a política de cotas raciais dentro do sistema educacional brasileiro Disponível na internet httpwwwfaimiedubr Acesso em 01062009 GEARY Patrick J O mito das nações Trad Fábio Pinto São Paulo Conrad Editora do Brasil 2005 GOMES Joaquim B Barbosa Ação afirmativa princípio constitucional da igualdade o direito como instrumento de transformação social A experiência dos EUA Rio de Janeiro Renovar 2001 GUIMARÃES Antonio Sérgio Alfredo Classes raças e democracia São Paulo Editora 34 2002 HABERLE Peter Hermenêutica Constitucional a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição Trad Gilmar Ferreira Mendes Porto Alegre Sergio Antonio Fabris Editor 1997 HABERMAS Jurgen Direito e Democracia entre faticidade e validade Trad Flávio Beno Siebeneichler 2ed Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 2003 HAYEK Friedrich August Von Os fundamentos da liberdade Brasília Ed UnB São Paulo Visão 1983 HESPANHA António Manuel Panorama histórico da cultura jurídica europeia Lisboa Publicações 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Vinicius Fernandes Andrade da A separação dos poderes as concepções mecanicistas e normativas das Constituições e seus métodos interpretativos Jus Navegandi Disponível em wwwjusnavegandicombr Acesso em 06 jul 2005 SILVA José Afonso da Curso de Direito Constitucional Positivo 16ed São Paulo Malheiros 1999 SUNFELD Carlos Ari Fundamentos de Direito Público 4ed São Paulo Malheiros 2000 TODOROV Tzvetan Nós e os outros a reflexão francesa sobre a diversidade humana Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1993 TEMER Michel Elementos de direito Constitucional 18ed São Paulo Malheiros 2002 WOLKMER Antonio Carlos Pluralismo jurídico fundamentos de uma nova cultura do direito São Paulo Alfa Omega 2001 Direito e Democracia v10 n2 p250266 juldez 2009 Canoas o compromisso de compra e venda e a vigência das Súmulas 84 e 239 do Stj Gerson luiz carlos Branco RESumo O compromisso de compra e venda é um contrato disciplinado por diversas leis editadas de forma fragmentada ao longo de quase setenta anos tendo os efeitos do seu registro no álbum imobiliário sido disciplinados pelo Código Civil vigente O advento do Código Civil lei nova sobre o entendimento jurisprudencial sumulado precisa ser estudado e entendido para que o contrato e seus efeitos possam ser executados O propósito deste artigo é fazer a distinção entre o regime dos efeitos do compromisso de compra e venda registrado com eficácia real e com possibilidade de propositura de ações reais do não registrado com eficácia obrigacional e possibilidade de propositura de ações para execução das obrigações Palavraschave Liberdade contratual Compromisso de compra e venda Adjudicação compulsória Embargos de terceiro the agreement to sale and the force of the dockets 84 and 239 from the Stj ABStRAct The agreement to sale is a contract disciplined by various laws edited in a fragmented way over nearly seventy years and the effects of its inscription on the public records are governed by the new Civil Code The effects of new Civil Code over the precedent need to be studied and understood to that the contract and its effects can be executed The purpose of this paper is to distinguish between the effects of the agreement to sale recorded with real effectiveness and possibility of bringing real actions of nonrecorded with the obligatory efficacy and possibility of bringing actions to implement the obligations Keywords Freedom of contract Agreement to sale Compulsory award Embargoes third 1 intRoDução Desde 1937 quando da edição do DecretoLei 58 tem sido travado um contínuo debate pela jurisprudência e doutrina a respeito da forma de execução de algumas das obrigações do Compromisso de Compra e Venda em especial a execução da obrigação de transferir a propriedade do bem imóvel pelo vendedor e a proteção da posse do comprador perante terceiros quando o contrato não está registrado Com a edição do Gerson Luiz Carlos Branco é Doutor em Direito Civil professor de Direito Civil da ULBRA Canoas e advogado Email gersongersonbrancocombr Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 251 Código Civil vigente no ano de 2003 tais dúvidas foram ampliadas em razão de ter sido reforçada a importância do registro do contrato pela criação do direito real do promitente comprador em um contexto de pacificação jurisprudencial provocado pelas Súmulas 841 e 2392 do Superior Tribunal de Justiça Tais súmulas foram editadas respectivamente em 02 de julho de 1993 e 30 de agosto de 2000 e portanto é preciso entender os efeitos da lei posterior aos referidos entendimentos jurisprudenciais pois se fossem disposições legais trariam o debate a respeito de sua vigência É evidente que as normas cristalizadas pelo entendimento jurisprudencial também ficam sujeitas aos efeitos da nova lei mas como no caso do conflito das leis no tempo é necessário analisar como o modelo jurídico3 foi influenciado ou alterado já que há um conjunto de diferentes leis e normas que regulam essa modalidade de contrato de compra e venda Em outras palavras somente se pode identificar o regime do cumprimento das obrigações derivadas de tal tipo contratual a partir da interpretação do contexto da formação do modelo jurídico que o tipo representa4 É preciso verificar os efeitos da vigência do Código Civil sobre o regime dos efeitos dos contratos em especial no que se refere aos mecanismos para tutela de tais efeitos seja no plano obrigacional seja no plano do Direito Real Sob o ponto de vista prático será necessário examinar se houve alteração das hipóteses em que será possível a propositura da ação de embargos de terceiro da adjudicação compulsória e da ação de nunciação de obra nova propostos com fundamento no compromisso de compra e venda Embora a investigação proposta neste artigo seja predominantemente pragmática e dogmática é pressuposto do mesmo a indispensabilidade de qualquer estudo do Direito 1 Súmula 84 É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel ainda que desprovido do registro publicada no DJ 02071993 p13283 2 Súmula 239 O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis publicada no DJ 30082000 p118 3 A concepção de modelo jurídico utilizada neste artigo segue a proposição de Miguel Reale segundo quem os modelos são estruturas postas em razão dos fins que devem ser realizados expressando o conteúdo normativo das fontes do direito Por isso os modelos desvinculamse da pessoa do legislador de seus motivos iniciais para que possam atender prospectivamente a fatos e valores supervenientes suscetíveis de serem situados no âmbito de validez das regras em vigor tãosomente mediante seu novo entendimento hermenêutico A lei é mais sábia do que o legislador reale M Fontes do direito para um novo paradigma hermenêutico p31 4 Partes dos pressupostos deste artigo já foram apresentadas em dois outros estudos sobre os efeitos da unificação das obrigações civis e mercantis sobre o regime da compra e venda e também sobre a técnica legislativa da legislação aditiva BRANCO Gerson Luiz Carlos e MARTINSCOSTA Judith Diretrizes Teóricas do novo Código Civil São Paulo Saraiva 2002 e BRANCO Gerson Luiz Carlos O regime obrigacional unificado do Código Civil brasileiro e seus efeitos sobre a liberdade contratual A compra e venda como modelo jurídico multifuncional Revista dos Tribunais São Paulo v 872 p4378 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 252 Privado a partir de sua perspectiva histórica5 bem como do estudo dos contratos e seus efeitos a partir da experiência social já que o próprio conceito de contrato é indissociável dos fatos sociais e das exigências valorativas de um determinado momento histórico Ou seja a compreensão do modelo jurídico do compromisso de compra e venda somente pode se dar a partir da leitura de um conjunto de elementos de ordem histórica social valorativa e normativa que determinam a sua estrutura e funcionalidade6 A análise das leis necessárias à compreensão da matéria editadas ao longo de oito décadas exige a visualização do Código Civil vigente como um eixo do Direito Privado Nessa perspectiva também é integrado o estudo da eficácia e da efetividade pois em modelos jurídicos como o compromisso de compra e venda não há como separar e compartimentar o Direito Privado e o Direito Processual Civil em áreas estanques É preciso compreender as diferenças principiológicas mas não se pode esquecer que na vida de relação o destinatário da norma é o cidadão comum cuja preocupação é fundamentalmente com a efetividade Embora ditadas ao longo de oito décadas as leis que regulamentaram o compromisso de compra e venda estão alinhadas sob o ponto de vista principiológico pois a socialidade e a funcionalidade foram uma marca comum que pode ser vista tanto no DecretoLei 5837 às reformas processuais das últimas duas décadas para facilitar a execução das obrigações de fazer Por isso não se pode deixar de acentuar que o tipo legal nasceu com o Decreto 5 Adotase como conceito de História do Direito aquele fornecido por Paolo Grossi segundo o qual é compreendida como disciplina jurídica que tem por objeto a inserção das regras jurídicas no processo cultural que se desenvolve no curso do tempo GROSSI Paolo Pensiero Giuridico Appunti per una voce enciclopedica Separata da Revista Quaderni Fiorentini n 17 1988 GROSSI Paulo El punto y la línea História del derecho y derecho positivo em la formación del jurista de nuestro tiempo Revista del Instituto de la Judicatura Federal México n 06 2000 e GROSSI Paolo Scienza giuridica italiana Un profilo storico 1860 1950 Milano Giuffrè Editore 2000 Também tem grande influência nessa concepção a obra de HESPANHA António Manuel Panorama histórico da cultura jurídica europeia Lisboa EuropaAmérica 1997 6 Conforme diz AMARAL Francisco Direito Civil introdução Rio de Janeiro Renovar p08 o Direito Civil é antes de tudo um fenômeno cultural em que predominam as notas da historicidade e da continuidade Historicidade no sentido de que se veio formando gradativamente desde os primórdios da civilização ocidental até se transformar em um dos mais importantes ramos da ciência Continuidade pelo fato de terse mantido como processo constante e de certo modo uniforme na maneira de solucionar os problemas jurídicos que lhe são próprios revelando a existência de princípios fundamentais a orientar a gênese e a aplicação de suas instituições Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 253 Lei n 58 de 10 de dezembro de 19377 editado para conter parte das consequências sociais e econômicas da industrialização e do êxodo rural8 Na época havia um processo de transformação da realidade econômica brasileira na qual o país deixava de ser predominantemente agrário para ter nas cidades a maior concentração das populações e também de sua atividade econômica O desenho da vida agrária e da vida urbana foi alterado substancialmente durante essa época cujo marco pode ser a revolução de 1930 Enquanto no meio rural começa a surgir o problema do êxodo e o agravamento dos conflitos pela terra nas periferias das cidades a terra começa a ser dividida pelos especuladores imobiliários O contrato de compra e venda na forma como estava regulado no Código Civil de 1916 não tutelava os interesses dos que não eram proprietários ou não tinham condições de comprar um imóvel à vista Os trabalhadores e a classe média urbana e todos aqueles que só poderiam adquirir algum bem mediante pagamento parcelado eram excluídos da possibilidade de comprar ou ficavam nas mãos dos especuladores que recebiam as parcelas do preço e depois se negavam a transmitir o imóvel usando como fundamento jurídico a regra do art 10889 do Código Civil vigente na época que facultava o arrependimento cabendo à parte apenas devolver o que havia recebido sem que houvesse uma reparação integral No máximo havia a restituição do preço pago com juros O exercício do arrependimento pelo comprador não era ilícito mas exercício de um direito potestativo de escolha numa espécie de obrigação com faculdade de substituição ou obrigações com faculdade alternativa10 Como bem mencionam os considerandos do DecretoLei 5837 multiplicavamse as fraudes deixando os adquirentes desamparados 7 O compromisso de compra e venda teve origem em Projeto de lei apresentado pelo Prof Waldemar Ferreira em 961936 tendo sido editado por Getúlio Vargas em 10121937 como medida governamental de proteção dos adquirentes de imóveis loteados Na época a expressão não era usada mas tratouse de verdadeira lei de proteção ao consumidor MARCONDES Sylvio Professor Waldemar Ferreira Revista da Faculdade de Direito de São Paulo v LX 1965 p4767 8 Vejase a exposição de motivos do DecretoLei 58 de 10 de dezembro de 1937 O Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil usando da atribuição que lhe confere o artigo 180 da Constituição Considerando o crescente desenvolvimento da loteação de terrenos para venda mediante o pagamento do preço em prestações Considerando que as transações assim realizadas não transferem o domínio ao comprador uma vez que o art 1088 do Código Civil permite a qualquer das partes arrependerse antes de assinada a escritura da compra e venda Considerando que êsse dispositivo deixa pràticamente sem amparo numerosos compradores de lotes que têm assim por exclusiva garantia a seriedade a boa fé e a solvabilidade das emprêsas vendedoras Considerando que para segurança das transações realizadas mediante contrato de compromisso de compra e venda de lotes cumpre acautelar o compromissário contra futuras alienações ou onerações dos lotes comprometidos Considerando ainda que a loteação e venda de terrenos urbanos e rurais se opera frequentemente sem que aos compradores seja possível a verificação dos títulos de propriedade dos vendedores 9 Art 1088 Quando o instrumento público for exigido como prova do contrato qualquer das partes pode arrependerse antes de o assinar ressarcindo à outra as perdas e danos resultantes do arrependimento sem prejuízo do estatuído nos arts 1095 a 1097 10 VARELA JM Antunes Direito das Obrigações Rio de Janeiro Forense 1977 p338 e 339 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 254 O DecretoLei 5837 regrou a venda de lotes exigindo uma série de providências prévias para o vendedor aprovação do plano e planta do loteamento pelas autoridades públicas regras rigorosas sobre a publicidade dos lotes etc podendo ser definido como uma das primeiras normas de proteção ao consumidor assim como uma das primeiras leis que veio a proteger o compromisso de compra e venda Evidentemente que houve um salto expressivo no tratamento da matéria desde 1937 até os dias de hoje salto que pode ser observado na regulamentação da matéria pelo Código Civil É nesse espírito de consolidação dos avanços normativos e consolidação cultural do modelo jurídico do compromisso de compra e venda que se pode dizer o quão equivocados estão aqueles que afirmam ter o Código Civil de 2003 provocado retrocesso no regulamento da matéria em especial em razão do que dispõe o art 463 parágrafo único e art 1417 que trata da exigência de registro do compromisso de compra e venda11 2 DAS AltERAçõES lEGiSlAtiVAS no REGimE Do comPRomiSSo DE comPRA E VEnDA REAliZADAS PElo cÓDiGo ciVil ViGEntE O tradicional conceito do contrato de compromisso de compra e venda construído a partir do regime delineado no DecretoLei 5837 é o de um contrato pelo qual uma das partes se compromete a transferir a propriedade de um bem mediante uma nova declaração de vontade a ser realizada no futuro e a outra a efetuar o pagamento do preço Ambas as partes comprometemse a firmar um contrato translativo do direito de propriedade identificado costumeiramente como sendo o contrato de compra e venda Tratase de contrato autônomo ou pelo menos de uma das modalidades da compra e venda segundo o que já lecionava Darcy Bessone em 1960 quando da primeira edição da monografia intitulada Da compra e venda promessa e reserva de domínio que tanto lhe notabilizou12 Nesse aspecto devese observar que a feição atual adotada pelo contrato reflete uma das diversas escolhas que o legislador teve tendo em vista a vasta polêmica existente a respeito da eficácia de dito contrato assim como sua aderência à vida real e aos problemas do cotidiano entre os quais se pode inserir a questão apresentada num clássico estudo sobre a matéria que questionava sobre qual a razão para se percorrer 11 Para o conceito de modelo adotase a concepção de Miguel Reale que de forma sintética Reale define modelo jurídico como estrutura normativa de atos e fatos pertinentes unitariamente a dado campo da experiência social prescrevendo a atualização racional e garantida dos valores que lhe são próprios REALE Miguel Fontes e modelos do direito para um novo paradigma hermenêutico São Paulo Saraiva 1999 p46 A esse respeito tratamos no livro MARTINSCOSTA Judith e BRANCO Gerson Luiz Carlos Diretrizes Teóricas do novo Código Civil São Paulo Saraiva 2002 12 BESSONE Darcy Compra e venda Promessa e Reserva de Domínio 3ª ed São Paulo Saraiva 1988 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 255 um caminho tão longo se o motivo da negociação entre as partes foi a vontade de vender e comprar13 Evidentemente que o questionamento foi meramente provocativo pois o compromisso é um dos instrumentos mais ágeis e úteis da realidade atual pois evita a incidência excessiva de tributos na data da contratação custos com escritura pública dando segurança ao adquirente bem como fornece a devida garantia ao alienante no caso de venda a prestações Assim com a cessação dos impedimentos fáticos ou legais podem as partes firmar a escritura pública hábil a transladar a propriedade com base no regulamento já estabelecido Em outras palavras o compromisso de compra e venda além de conter um mecanismo eficaz para permitir que as partes atinjam o fim típico da compra e venda também é um excelente instrumento de concessão de crédito com garantia Como a proposta deste artigo é verificar os efeitos das alterações legislativas iniciase pelo estudo do contrato no processo legislativo que resultou no Código Civil vigente A análise dos trabalhos legislativos do Código Civil demonstra que na exposição de motivos não houve referências expressas ao compromisso de compra e venda servindo para tal fim as discussões ocorridas na Câmara dos Deputados onde foram apresentadas emendas para tratar da matéria pois a mesma foi objeto de discussão unicamente quando se tratou do contrato preliminar atualmente regulado nos arts 462 a 466 do Código Civil 21 Artigos 462 a 466 do código civil O art 462 do Código Civil foi objeto de duas emendas durante o processo legislativo as de n 38114 e 38215 com o objetivo de exigir que o contrato preliminar também cumprisse a forma do contrato a ser celebrado Ambas as emendas foram rejeitadas tendo sido mantida a redação original Além de tais manifestações o próprio Agostinho Alvim jurista encarregado de elaborar o Capítulo do Direito das Obrigações manifestouse no sentido de que a emenda fosse acolhida argumentando que a forma em matéria de contrato preliminar segundo o Código Civil Italiano deve ser a mesma do contrato A lei ressalvará os casos em que a forma do contrato preliminar como sói acontecer no caso de compromisso de venda de imóvel deva ser outra16 13 FERREIRA Geraldo Sobral Promessa Bilateral de Venda e Compromisso de Compra e Venda Revista de Direito Civil N 7 p144 14 NEVES Tancredo Justificação da emenda n 381 Diário do Congresso Nacional Seção I Suplemento 14091983 p258 justificação elaborada pela Advogada Maria Angélica Rezende em nome da OAB do Estado do Sergipe 15 COELHO Fernando Justificação da emenda n 379 Diário do Congresso Nacional Seção I Suplemento 14091983 p259 16 ALVIM Agostinho Pareceres In ABIACKEL Ibrahim e REALE Miguel Emendas ao projeto de Código Civil Pareceres da Comissão Elaboradora e revisora Brasília Ministério da Justiça 1984 p84 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 256 Nessa citação fica clara a manifestação de Agostinho Alvim no sentido de que o compromisso de compra e venda de imóvel deve obedecer à lei especial que ressalvará a questão da forma De qualquer maneira a Câmara acolheu o projeto original para que todos os contratos preliminares prescindam quanto à forma do contrato principal A esse respeito devese observar que a redação original apresentada por Agostinho Alvim tinha texto distinto na linha do Código Civil Italiano Porém na primeira versão do projeto há manuscrito de Miguel Reale alterando a redação do referido artigo assim como de praticamente todo o capítulo relativo ao contrato preliminar determinando a redação do projeto que atualmente é a redação do Código17 Por incrível que pareça esse foi o único debate ocorrido a respeito do contrato para afirmar a não incidência das regras do contrato preliminar ao compromisso de compra e venda Por isso afastase o equívoco de considerar o contrato preliminar de que tratam os arts 462 a 466 do Código Civil como sendo o compromisso de compra e venda cujos efeitos reais são regulados no art 1417 e art 1418 do mesmo diploma legal18 O contrato preliminar de que tratam os arts 462 a 466 do Código Civil não diz respeito ao compromisso de compra e venda O contrato preliminar é um tipo contratual em que as obrigações das partes são de celebrar um contrato no futuro uma promessa de contrato19 Tratase de um contrato pelo qual as partes se obrigam a celebrar um contrato que irá regulamentar determinada relação econômica Por isso chamase preliminar précontrato ou contrato promessa já que o preceito que irá disciplinar o relacionamento das partes e que definirá o que cada um deverá fazer dar ou não fazer dependendo de uma nova declaração volitiva Em outras palavras a única obrigação válida é a obrigação de contratar As obrigações do contrato a ser celebrado dependem ou da nova declaração de vontade ou da execução coativa do contrato preliminar20 17 REALE Miguel Código Civil Anteprojetos com minhas revisões correções substitutivos e acréscimos Texto inédito não publicado parcialmente manuscrito sem data 18 No mesmo sentido temse a opinião de GOMES Orlando Direitos Reais 19 ed Rio de Janeiro Forense 2007 p361 O compromisso de venda não é verdadeiramente um contrato preliminar 19 Embora a própria lei se utilize da expressão promessa em vez de compromisso não havendo qualquer distinção prática na utilização de uma ou outra expressão optase pela denominação compromisso de compra e venda pelas razões que justificaram a própria edição do DecretoLei 5837 e toda a legislação posterior que foi a de criar um tipo contratual diferente do que até então existia que era a de um contrato promessa Além disso é possível a promessa de compromisso de compra e venda conforme previsto expressamente para os casos de reserva de lote ou de outras modalidades de contratos preliminares segundo a melhor lição de ALMEIDA COSTA Mário Júlio Contrato Promessa Uma síntese do regime vigente 9 ed Coimbra Almedina 2007 20 Uma das polêmicas mais vivas do contrato preliminar diz respeito a aplicação de astreintes no caso de inadimplemento conforme sustenta CATALAN Marcos Jorge Considerações sobre o contrato preliminar em busca da superação de seus aspectos polêmicos In DELGADO Mário Luiz e outro Novo Código Civil Questões Controvertidas v 4 São Paulo Método Editora 2005 p319341 Tal possibilidade é discutível no regime do contrato preliminar em razão de que a lei é clara ao determinar ao Juiz que considere como definitivo o contrato preliminar Ou seja o legislador considerou que sendo personalíssima a obrigação de declarar vontade a execução dessa obrigação se dá pelo suprimento da declaração e não pela aplicação de astreintes para que a declaração seja feita coativamente Nada obsta é claro que o Juiz antecipe os efeitos da tutela para considerar que o contrato preliminar tenha os efeitos do contrato definitivo e sendo este de obrigações de fazer na execução do mesmo sejam aplicadas astreintes Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 257 Tratase de um contrato cuja problematicidade não é privilégio do direito brasileiro sendo instituto jurídico que nos mais diversos ordenamentos gera controvérsias a respeito do seu regime de execução21 O compromisso de compra e venda seja no regime do DL 5837 no regime da Lei 67667922 assim como na Lei n 45916523 consiste em um contrato definitivo um contrato pelo qual as partes disciplinam o seu comportamento para o futuro estabelecem o preceito que irá disciplinar sua relação intersubjetiva Nesse ponto acentuase que o contrato ou o nascimento de qualquer obrigação independente de nova declaração de vontade Porém no conteúdo do preceito está entre outros deveres a obrigação de fazer declaração de vontade que é a obrigação de firmar escritura pública para translação do direito real de propriedade a fim de cumprir o disposto no artigo 134 I do Código Civil de 1916 reproduzido agora no art 108 do Código Civil Porém a escritura pública que é necessária para a translação do direito de propriedade não é contrato definitivo que antecede um contrato preliminar Tratase de mero negócio jurídico de adimplemento cujo objetivo é a translação do direito real de propriedade que permaneceu nas mãos do vendedor como garantia do pagamento do preço e não verdadeiramente um contrato24 Sob o ponto de vista estrutural o contrato é um preceito que tem como gênese um acordo de vontades emanadas por duas partes identificadas pela existência de dois núcleos de interesses contrapostos com o objetivo de criar direitos e obrigações Caracterizase portanto pela obrigatória eficácia obrigacional sem a qual não se pode tecnicamente falar em contrato Diferentemente nos negócios dispositivos não há um preceito pois celebrado o negócio sua eficácia é constitutiva de título cujo registro é hábil à translação da propriedade sem efeitos obrigacionais Quando a compra e venda é celebrada por meio de escritura pública no mesmo ato está reunido o contrato e também o negócio jurídico dispositivo Quando alguém celebra um compromisso de compra e venda esses dois negócios jurídicos são separados sob o ponto de vista cronológico O compromisso de compra e 21 A esse respeito vejase no Direito Português RIBEIRO Joaquim de Sousa O campo de aplicação do regime indemnizatório do artigo 442º do Código Civil incumprimento definitivo ou mora In Direito dos Contratos Estudos Coimbra Coimbra Editora 2007 p283306 Não obstante o labor interpretativo a que não se tem furtado a nossa melhor civilística permanecem vivas controvérsias e divergências de interpretação que se repercutem em decisões judiciais amiúde contrastantes E se quanto a certas questões foi possível chegar a um consenso estável nalguns casos consagrado na lei ou em assento outras questões inicialmente ocultas irromperam entretanto alimentando novos debates ainda inconclusivos 22 Nova lei do loteamento imobiliário Está lei substitui no que não foi revogado expressamente o DecretoLei 5837 em matéria de direito urbanístico o que atualmente também é regulado pelo Estatuto da Cidade 23 A lei de Condomínio e Incorporação atualmente regula unicamente a incorporação imobiliária em suas diversas modalidades tendo em vista que a regulamentação do Condomínio Edilício foi regulado por inteiro no Código Civil Embora não tenha havido revogação expressa a revogação se deu por força do art 2º 1º da Lei de Introdução ao Código Civil 24 A respeito dos negócios jurídicos dispositivos ver clássico estudo de COUTO E SILVA Clóvis Negócios Jurídicos e Negócios Jurídicos de Disposição Revista do Grêmio Universitário Tobhias Barreto UFRGS p2939 1958 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 258 venda é uma modalidade de compra e venda um contrato definitivo cujo adimplemento deverá ser feito no futuro25 mediante uma declaração de vontade que será mero negócio jurídico dispositivo realizado plenamente no âmbito dos direitos reais para execução do preceito inicial e definitivo Observese que o contrato preliminar de compra e venda pode ser celebrado Basta para tanto que o preceito do contrato não seja o compromisso de compra e venda segundo os termos do DecretoLei 5837 mas um contrato preliminar em que as partes simplesmente se comprometem a no futuro celebrar contrato de compra e venda que poderá ser de bens móveis ou imóveis Tal contrato preliminar poderá ser executado na forma do artigo 27 da Lei 6766 de 19121979 se for promessa de celebrar compromisso de compra e venda que tem por objeto imóvel loteado aplicandose as regras do Código Civil para os demais casos26 Quando alguém celebra um compromisso de compra e venda por instrumento particular estabelecendo a obrigação de transferir a coisa de pagar o preço e de no futuro ser transferido o direito de propriedade é a própria compra e venda que está sendo celebrada sem que haja possibilidade de incidência dos dispositivos relativos ao contrato preliminar em razão do que dispõe o próprio artigo 1225 VII do Código Civil assim como o art 22 do DecretoLei 5837 22 Artigos 1417 e 1418 As disposições dos arts 1417 e 1418 que criaram o direito real do promitente comprador passaram incólumes durante todo o processo legislativo tendo como conteúdo o direito real à aquisição da propriedade imobiliária Isso significa que o conceito tradicional acima apresentado sofreu pequena modificação em função da ausência de qualquer disposição legal a incidir sobre os requisitos de validade de forma de prova ou mesmo sobre quais são as obrigações que cabem às partes Não havendo qualquer alteração no regime obrigacional permanece em vigor o DecretoLei n 58 de 10 de dezembro de 1937 bem como das disposições da Lei n 4591 de 16 de dezembro de 1964 e as disposições da Lei n 6766 de 19 de dezembro de 1979 que tratam do mesmo contrato em suas diferentes modalidades 25 A expressão futuro é relevante no caso concreto pois na compra e venda manual embora o contrato logicamente seja antecedente do adimplemento a separação entre contrato e adimplemento é puramente lógica já que cronologicamente não se pode separálos Já o compromisso de compra e venda somente tem sentido de existir pela separação cronológica entre o ato do nascimento do contrato e o adimplemento elemento essencial de sua funcionalidade plena já que a razão objetiva de sua celebração está na ausência de elementos econômicos ou jurídicos para a translação da propriedade no ato da contratação Por essa razão é nulo o contrato de compromisso de compra e venda com pacto de retrovenda já que sua funcionalidade é incompatível com os elementos do tipo Nada obsta a cessão do compromisso de compra e venda submetida a determinada condição resolutiva o que é muito diferente de uma prática comum porém ilícita um claro desvio socialmente típico que é o pacto de retrovenda no compromisso de compra e venda 26 Um dos poucos autores que trata sobre o regime de execução do précontrato de promessa de compra e venda é RIZZARDO Arnaldo Direito das Coisas 2 ed Rio de Janeiro Forense 2006 p986 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 259 Porém agregouse ao regime uma eficácia específica que até então não existia que era o direito real de aquisição da propriedade imobiliária criando uma nova gama de efeitos cujo regime do cumprimento foi alterado para criar uma dualidade que deixou de ser teórica para ser prática A dualidade teórica consistente no debate entre os defensores dos efeitos pessoais e efeitos reais cedeu lugar a uma dualidade de eficácia pessoal e real 3 DA DifEREnçA DE REGimES EntRE o contRAto REGiStRADo E o não REGiStRADo Outra questão vinculada com a eficácia do compromisso de compra e venda é a verificação da obrigatoriedade do registro do contrato no Registro de Imóveis como condição para a execução da obrigação do vendedor de transferir a propriedade do imóvel e também para a proteção dos direitos do compromitente comprador27 Ocorre que o contrato compromisso de compra e venda como se pode ver de uma simples leitura do Código Civil não foi objeto de regulamentação geral pela nova lei E não tendo sido objeto de regulamentação geral mas somente especial no que respeita a alguns de seus efeitos artigos 1225 VII 1417 e 1418 devese aplicar a regra do artigo 2º 2º da Lei de Introdução ao Código Civil segundo o qual a lei nova que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes não revoga nem modifica a lei anterior Isso tem por consequência a plena e completa vigência do DecretoLei 5837 bem como todo o seu regime eficacial conforme determinado no seu texto e pela própria jurisprudência Porém o registro do compromisso de compra e venda a partir do advento do Código Civil atribuirá um direito que até então o adquirente do imóvel não tinha que é o direito real à aquisição da propriedade28 Tal direito real é novo e consiste na outorga ao adquirente de vários efeitos específicos e próprios do direito das coisas como são as ações reais A título exemplificativo o titular do direito real à aquisição da propriedade passa a ter embargos de terceiro com fundamento no direito real ainda que não tenha posse a teor do que dispõe o art 1046 do Código de Processo Civil e passa a ter ação de nunciação de obra nova ainda que não tenha a posse do imóvel bem como terá direito de sequela e o próprio direito real à aquisição da própria propriedade 27 Posição contrária a deste artigo esta é apresentada por KRAEMER Eduardo Algumas anotações sobre os direitos reais no novo Código Civil In SARLET Ingo Wolfgang Org O novo Código Civil e a Constituição Porto Alegre Livraria do Advogado 2003 p210 que afirma ser necessário o registro do contrato na forma do art 463 do Código Civil 28 O debate a respeito da existência de eficácia real existente no regime anterior será tratado adiante mas desde já afirmase que os efeitos do Registro do contrato até o advento do Código vigente não tinha outro efeito que a outorga de eficácia perante terceiros o que é diferente da eficácia real Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 260 Ao contrário o adquirente de uma unidade imobiliária como por exemplo um apartamento a construir venda na planta em que a posse do imóvel é do construtor a ausência do registro do contrato não permitirá ao adquirente a oposição de embargos de terceiro ou a propositura de ação de nunciação de obra nova etc direitos que terá se tiver o registro ou a posse O comprador sem posse e cujo compromisso de compra e venda não foi registrado não está protegido pela Súmula 84 do Superior Tribunal de Justiça A edição da Súmula 84 visou a proteger a posse e não aos direitos obrigacionais derivados do contrato considerouse que a posse que tem como causa um compromisso de compra e venda pelo seu caráter de definitividade deve ser protegida da constrição judicial que visa a atingir o patrimônio do vendedor O direito real à aquisição da propriedade tratase de um mecanismo concedido pelo legislador para que o adquirente deixe de ter um direito à coisa para ter um direito sobre a coisa Este direito sobre a coisa modifica substancialmente a ação de adjudicação compulsória A ação de adjudicação compulsória de que tratam os artigos 16 e 22 do DL 581937 somente tinha o apelido de adjudicação compulsória pois sempre foi tratada pela doutrina e pela jurisprudência obedecendo ao comando dos dois artigos acima como ação de execução de obrigação de fazer diferentemente da verdadeira ação real de adjudicação compulsória que tem por exemplo o condômino preterido no seu direito de preferência para aquisição da propriedade na forma do art 1139 do Código Civil de 1916 e art 504 do atual Código Civil A partir do advento do Código Civil a ação de adjudicação compulsória proposta com fundamento no compromisso de compra e venda tem um só nome e um duplo regime de eficácia29 No caso do compromisso registrado o comprador tem ação real pela qual será concedida a propriedade ao adquirente do bem devendo ser objeto de prova no seio da demanda todos os requisitos relativos às ações reais inclusive aqueles que dizem respeito aos princípios registrais previstos na Lei n 601573 Tratase de verdadeira ação reivindicatória30 da propriedade e não mera ação de cumprimento de contrato31 29 RIZZARDO Arnaldo Direito das Coisas 2 ed Rio de Janeiro Forense 2006 p1008 é mais enfático ao afirmar que a falta do registro não concede o direito a ação de adjudicação compulsória mas a uma ação condenatória ao cumprimento da obrigação de contratar produzindo a sentença o mesmo efeito do contrato prometido o de venda 30 No mesmo sentido RIZZARDO Arnaldo Direito das Coisas 2 ed Rio de Janeiro Forense 2006 p992 que sustentava a possibilidade de ação reivindicatória proposta pelo titular de compromisso de compra e venda registrado mesmo no regime anterior Barbosa Lima Sobrinho aprofundou mais o problema defendendo que pelo contrato o direito de usar gozar e dispor do imóvel e de reavêlo de quem o ocupa indevidamente passa do proprietário para o promitente comprador Assinado o compromisso irretratável e registrado transferindose ao compromissário o direito de dispor ele tornase parte legítima para propor a lide em questão 31 A esse respeito da forma de cumprimento da obrigação vejase a seguinte decisão E mais embora a sentença não tenha especificado o seu cumprimento pelo art 466A do CPC perfeitamente cabível à hipótese e que autoriza a transferência da propriedade por força da sentença dispensandose as partes destinatárias do comando judicial aqui autores e réu respectivamente de firmarem negócio bilateral escritura de compra e venda sem embargo por óbvio de cada uma delas arcarem com as respectivas despesas de seu título carta de adjudicação é Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 261 Isso significa que finda a ação judicial com trânsito em julgado de uma sentença de procedência na primeira hipótese o autor será proprietário do imóvel O registro da sentença terá eficácia declaratória não obstante o art 1418 afirme que o réu será condenado a emitir a declaração de vontade o efeito declaratório da sentença acrescido aos efeitos do direito real a aquisição da propriedade produzido pelo registro do compromisso de compra e venda atribui o direito à propriedade ao autor Vejase não se está dizendo que nasce um direito à coisa Declarase que há o direito à propriedade e o registro da sentença no registro de imóveis produz efeito similar que o registro de uma sentença de uma ação de usucapião cuja carga constitutiva existe mas é secundária em relação à carga declaratória Poderseia opor a esse raciocínio o argumento de que o artigo 5º e art 22 do DecretoLei 5837 já haviam concedido direito real ao adquirente de imóvel Nada mais equivocado do que isso pois tais dispositivos legais nada mais diziam que o comprador tinha direito real oponível a terceiros não atribuindo qualquer conteúdo ou efeito a tal direito real O art 167 I 9 da Lei dos Registros Públicos tornava o compromisso de compra e venda suscetível de registro e não simplesmente de averbação como diz o artigo 5 O registro implica sempre a criação modificação ou extinção de um direito sobre a própria coisa A averbação diz respeito às pessoas que são titulares de direitos reais ou à própria coisa Assim são averbáveis todas as modificações no estado das pessoas e também as modificações sobre a coisa Se modificar o direito deverá ser registrado exceto se for averbação para cancelamento Fora deste critério seguese a casuística do art 167 da Lei dos Registros Públicos Há direitos reais como o de propriedade adquirida pela usucapião que mesmo sem o registro possui eficácia erga omnes e confere ao proprietário as ações reais Há casos em que há o registro como por exemplo o do contrato de locação que não gera direito real32 Em outras palavras o registro pode ser constitutivo de Direito Real o que somente ocorrerá se a Lei Civil outorgar tal eficácia No regime anterior o domínio continuava integralmente com o vendedor razão pela qual não se reivindicava o bem do vendedor que não quer outorgar o título translativo ajuizavase ação para o cumprimento do contrato O contrato gera um direito à coisa e não um direito sobre a coisa O registro servia para que a publicidade produzisse efeitos erga omnes33 e não conferia qualquer direito ou pretensão mas apenas oponibilidade contra terceiros34 caso de ser a sentença declarada ao efeito de o seu cumprimento darse através do predito dispositivo legal expedindose oportunamente as competentes cartas de adjudicaçãoTJRS Ap Civ 70033242520 17ª CCiv Rel Desembargadora Elaine Harzheim Macedo j 03122009 publicado no site wwwtjrsjusbr 32 Pontes v13 1465 p116 33 Pontes v 13 1465 p116 34 Pontes 1469 p123 A averbação confere eficácia quanto a terceiros no que concerte às alienações e Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 262 Ademais diante da tipicidade estrita dos direitos reais e da interpretação teleológica de tal registro a partir dos próprios considerandos do DecretoLei 5837 fica evidente que o registro foi um expediente para proteger o adquirente da venda do bem para terceiros Nada além disso Embora o legislador de 1937 estivesse preocupado com uma boa regulamentação do contrato o sistema dos direitos reais estava integralmente regulado no Código Civil diferentemente dos contratos e das obrigações que foram disciplinados na lei esparsa É evidente que esse debate sempre admitiu argumentação em contrário tendo sido ultrapassado e não merecendo maiores considerações nesta seara pela superação do mesmo pelo fato legislativo No caso do compromisso não registrado o comprador tem ação pessoal e terá direito de propor a ação de adjudicação compulsória de que tratam os artigos 16 e 22 do DecretoLei 5837 que nada mais é do que uma demanda cujo objetivo é a condenação da parte a emissão de uma declaração de vontade que é suprida pelo juiz servindo a sentença como título para ser registrado conforme os comandos dos artigos 466 B e C do Código de Processo Civil35 Evidentemente os dispositivos legais supramencionados trataram de consolidar o que a jurisprudência vinha fazendo que era criar mecanismos para melhorar a efetividade dos mecanismos de execução disciplinando de maneira clara o que já estava parcialmente regulamentado nos artigos 639 a 641 do Código de Processo Civil que tratavam da execução das obrigações de fazer quando o objeto da obrigação de fazer fosse fazer declaração de vontade36 Embora sendo diploma adjetivo o Código de Processo Civil estabeleceu regras de direito material e não somente procedimento Nesse sentido devese observar que a doutrina e jurisprudência após muito debate assentaram que os dispositivos revogados do Código de Processo Civil inseridos no procedimento executivo somente poderiam ser alcançados após a obtenção prévia de uma sentença em um onerações futuras O próprio art 5 é que o enuncia Faltoulhe apenas terminologia técnica A pretensão ou o direito que emanou do précontrato é que tem estendida a terceiro pela averbação a sua eficácia 35 TJRS Ap Civ 70023729536 17ª CCiv Rel Desembargadora Elaine Harzheim Macedo j 03122009 publicado no site wwwtjrsjusbr A ação interposta ainda que equivocadamente identificada como execução veio acompanhada dos documentos essenciais para a adjudicação compulsória quais sejam o contrato particular de promessa de compra e venda a prova da quitação do preço e a certidão do registro imobiliário dando conta da legitimação para alienação do contratante vendedor E além disso o disposto nos artigos 466B e 466C ambos do CPC autorizam o prosseguimento da ação que tem sim conteúdo de ação de conhecimento viabilizando se a ampla defesa e contraditório da parte ré seja ela o próprio promitente vendedor sejam seus herdeiros ou sucessores 36 Os dispositivos foram revogados pela reforma processual realizada por meio da Lei n 11232 de 22 de dezembro de 2005 sendo substituídos pelos atuais arts 466 A B e C do Código de Processo Civil art 466A Condenado o devedor a emitir declaração de vontade a sentença uma vez transitada em julgado produzirá todos os efeitos da declaração não emitida art 466B Se aquele que se comprometeu a concluir um contrato não cumprir a obrigação a outra parte sendo isso possível e não excluído pelo título poderá obter uma sentença que produza o mesmo efeito do contrato a ser firmado art 466C Tratandose de contrato que tenha por objeto a transferência da propriedade de coisa determinada ou de outro direito a ação não será acolhida se a parte que a intentou não cumprir a sua prestação nem a oferecer nos casos e formas legais salvo se ainda não exigível Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 263 processo de conhecimento não podendo tal execução ser aparelhada com um título executivo extrajudicial Isso ficou indubitável com a edição da Lei n 11232 de 22 de dezembro de 2005 A reforma processual promovida pela Lei n 12322005 veio sanar uma contradição lógica que existiu durante cerca de 30 anos de vigência do Código de Processo Civil pois eram disposições que regem processo nitidamente de cognição com previsão de julgamento sentença condenação categorias estranhas ao processo expropriatório e que no particular culminam com um pronunciamento tipicamente substitutivo da emanação de vontade do devedor que a tanto se nega ou simplesmente não pode fazêlo37 Isso significa que o registro do contrato adicionou ao ordenamento um regime eficacial e que continua íntegra a Súmula 239 do Superior Tribunal de Justiça A propósito o fundamento da edição da súmula foi justamente de que a adjudicação compulsória de que trata o art 22 do DecretoLei 5837 é de caráter pessoal restrito aos contratantes não se condicionando a obligatio faciendi à inscrição no Registro de Imóveis38 Da mesma forma continua plenamente em vigor a Súmula 84 do Superior Tribunal de Justiça já que as disposições do art 1417 e 1418 vieram acrescentar hipóteses de embargos de terceiro de senhor que não é possuidor pois o titular de direito real à aquisição da propriedade tenha ele a posse ou não terá acesso às ações reais É claro que faltando posse e faltando o registro não haverá oponibilidade contra terceiros assim como não haverá o direito de sequela sobre o bem39 4 concluSão Embora a Lei Complementar 95 de 06 de fevereiro de 1998 estabeleça a obrigatoriedade de o legislador consolidar a legislação sempre que disciplinar uma matéria a teor do que determinou o art 59 da Constituição Federal a realidade legislativa brasileira demonstra que isso não acontece A maior prova disso é o emaranhado legislativo que disciplina um dos contratos mais importantes para o mercado que é o compromisso de compra e venda Por isso a indispensabilidade do estudo a partir da perspectiva histórica e do estudo dos contratos e seus efeitos a partir da experiência social indissociável dos fatos sociais e das exigências valorativas que demonstram a necessidade de interpretação das normas consoante a finalidade social do modelo jurídico e firme observação da dinâmica negocial que consagrou o compromisso de compra e venda como um dos principais instrumentos do mercado imobiliário 37 MACEDO Elaine Harzheim A sentença condenatória no movimento do sincretismo do processo Direito e Democracia Canoas Editora da Ulbra v 7 n 1 2006 p207222 38 STJ REsp n 247344MG Relator o Ministro Waldemar Zveiter DJ de 16401 REsp n 12613MT Relator o Ministro Eduardo Ribeiro DJ de 30991 RESP n 00400623030 DJ 23042007 wwwstjjusbr 39 VIANA Marco Aurélio Comentários ao novo Código Civil Dos Direitos Reais Rio de Janeiro Forense 2003 p697 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 264 E mesmo sob a perspectiva normativa é preciso resgatar a ideia de que a estrutura de eixo do Direito Privado do atual Código Civil exige uma mudança de visão em relação ao fenômeno dos microssistemas pois seu surgimento deveuse a critérios lógicos do processo histórico fazendo nascer uma nova ordem conceitual e categorias interpretativas que extrapolam o conceito de lei extravagante Como já foi mencionado por Natalino Irti a técnica legislativa em que consistem os microssistemas não reduz a racionalidade sistemática mas promovea para as leis especiais40 E no exame da legislação especial vêse que as regras a respeito da validade e da eficácia obrigacional estão reguladas na lei especial e que o Código Civil regulou os efeitos reais do registro O registro por sua vez continua regulado na Lei 601573 Por isso é equivocada a afirmação segundo a qual o compromisso de compra e venda precisará ser registrado para que haja a oposição de embargos de terceiro para proteção dos direitos do comprador que seja possuidor Em síntese o compromisso de compra e venda não foi objeto de regulamentação pela nova lei o Código Civil disciplinou os efeitos do registro do contrato atribuindo a ele o direito real a aquisição da propriedade Isso tem por consequência a plena e completa vigência do DecretoLei 5837 bem como todo o seu regime eficacial conforme determinado no seu texto e pela própria jurisprudência Além disso os princípios que norteiam o modelo jurídico forjado pela realidade brasileira são comandados pelos ditames da socialidade no caso pela cláusula geral da função social dos contratos cuja integração com os contratos regulados em lei especial é possível tendo em vista o caráter de eixo que foi atribuído ao Código Civil o que dá a devida unidade à colcha de retalhos legislativa que regulamenta a eficácia normativa do contrato Para concluir devese deixar claro que tanto a Súmula 84 quanto a Súmula 239 do STJ estão em pleno vigor obedecidas as condições acima já explicitadas REfERênciAS AGUIAR JÚNIOR Ruy Rosado do Projeto do Código Civil As obrigações e os contratos Revista dos Tribunais n775 maio de 2000 ano 89 p1831 ALMEIDA COSTA Mário Júlio Contrato Promessa Uma síntese do regime vigente 9ed Coimbra Almedina 2007 ALVIM Agostinho Pareceres In ABIACKEL Ibrahim REALE Miguel Emendas ao projeto de Código Civil Pareceres da Comissão Elaboradora e Revisora Brasília Ministério da Justiça 1984 BESSONE Darcy Compra e venda Promessa e Reserva de Domínio 3ed São Paulo Saraiva 1988 40 IRTI Natalino Letà della decodificazione ventanni dopo 4ª ed Milano Dot A Giuffrè Editore 1999 p08 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 265 BESSONE Darcy Do Contrato 4ed São Paulo Saraiva 1997 BRANCO Gerson Luiz Carlos MARTINSCOSTA Judith Diretrizes Teóricas do novo Código Civil São Paulo Saraiva 2002 BRANCO Gerson Luiz Carlos O regime obrigacional unificado do Código Civil Brasileiro e seus efeitos sobre a liberdade contratual A compra e venda como modelo jurídico multifuncional Revista dos Tribunais São Paulo v 872 p4378 CATALAN Marcos Jorge Considerações sobre o contrato preliminar em busca da superação de seus aspectos polêmicos In DELGADO Mário Luiz et al Novo Código Civil Questões Controvertidas v 4 São Paulo Método 2005 p319341 COELHO Fernando Justificação da emenda n379 Diário do Congresso Nacional Seção I Suplemento 14091983 p259 COUTO E SILVA Clóvis Negócios Jurídicos e Negócios Jurídicos de Disposição Revista do Grêmio Universitário Tobhias Barreto UFRGS p2939 1958 CREDIE Ricardo Arcoverde Adjudicação Compulsória 5ed São Paulo Revista dos Tribunais 1991 GOMES Orlando Direitos Reais 19ed Rio de Janeiro Forense 2007 atualização por Atualizado por FACHIN Luiz Edson FERREIRA Geraldo Sobral Promessa Bilateral de Venda e Compromisso de compra e Venda Revista de Direito Civil n7 Revista dos Tribunais GOMES Orlando Contratos 18ed Rio de Janeiro Forense 1998 GOMES Orlando Venda Real e Venda Obrigacional Estudo comparativo no direito português e brasileiro Novos Temas de Direito Civil Rio de Janeiro Forense 1983 IRTI Natalino Letà della decodificazione ventanni dopo 4ed Milano Dot A Giuffrè Editore 1999 KRAEMER Eduardo Algumas anotações sobre os direitos reais no novo Código Civil In SARLET Ingo Wolfgang Org O novo Código Civil e a Constituição Porto Alegre Livraria do Advogado 2003 MACEDO Elaine Harzheim A sentença condenatória no movimento do sincretismo do processo Direito e Democracia Canoas Editora da ULBRA v7 n1 2006 p207222 MARCONDES Sylvio Professor Waldemar Ferreira Revista da Faculdade de Direito de São Paulo v LX 1965 p4767 NEVES Tancredo Justificação da emenda n381 Diário do Congresso Nacional Seção I Suplemento 14091983 REALE Miguel et al Anteprojeto de Código Civil Rio de Janeiro Ministério da Justiça Comissão de Estudos Legislativos 1972 REALE Miguel Código Civil Anteprojetos com minhas revisões correções substitutivos e acréscimos Texto inédito não publicado parcialmente manuscrito sem data REALE Miguel Fontes e modelos do direito para um novo paradigma hermenêutico São Paulo Saraiva 1999 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 266 RIBEIRO Joaquim de Sousa O campo de aplicação do regime indemnizatório do artigo 442º do Código Civil incumprimento definitivo ou mora In Direito dos Contratos Estudos Coimbra Coimbra Editora 2007 p283306 RIZZARDO Arnaldo Direito das Coisas 2ed Rio de Janeiro Forense 2006 VIANA Marco Aurélio Comentários ao Novo Código Civil Dos Direitos Reais Rio de Janeiro Forense 2003 p697 Direito e Democracia v10 n2 p267285 juldez 2009 Canoas A utilização do Sistema de Registro de Preços por órgãos que não participaram da licitação uma análise do art 8º do Decreto federal nº 3931 de 19 de setembro de 2001 thiago Dellazari melo RESumo O presente artigo traduz uma análise do Art 8º do Decreto Federal nº 3931 de 19 de setembro de 2001 o qual estabelece a possibilidade de adesão à Ata de Registro de Preços por órgãos ou entidades da Administração que não participaram da licitação a qual deu origem aos preços registrados Inicialmente será destacada a importância do estudo das licitações públicas em seguida serão delineados os princípios jurídicos a serem estudados os quais orientam toda a Administração Pública Feito isso será apresentado o Sistema de Registros de Preços SRP regulamentado pelo Decreto Federal nº 393101 destacando as vantagens da implantação do referido sistema na gestão de recursos públicos apresentando ainda a previsão de utilização dos preços registrados por quaisquer órgãos ou entidades da Administração Pública Dando continuidade ao estudo será conceituado o instituto da licitação pública traçandose um paralelo entre os princípios constitucionais da Administração Pública e das licitações públicas em confronto com a aplicação do Art 8º do Decreto Federal nº 393101 Diante das reflexões a serem apresentadas o estudo buscará discutir a adequada utilização do Sistema de Registro de Preços pela Administração Pública com vistas a preservação e manutenção dos princípios jurídicos que fundamentam o ordenamento jurídico Palavraschave Licitação Sistema de Registro de Preços Ata de Registro de Preços the use of the System of Registration of Prices for organs that didnt participate in the auction An analysis of art 8th of the ordinance federal nº 3931 of 19 September of 2001 ABStRAct The present article translates an analysis of Art 8th of the Ordinance Federal no 3931 of September 19 2001 which establishes the adhesion possibility to the Record of Registration of Prices for organs or entities of the Administration that didnt participate in the auction which created the registered prices Initially it will be outstanding the importance of the study of the Thiago Dellazari Melo é bacharel em Direito pela UFPE Mestrando em Direito pela UFPE Professor substituto da UFPE Gestor de Licitações do Comando da Aeronáutica em RecifePE Email tdellazaribolcombr Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 268 public auctions soon afterwards the juridical beginnings will be delineated they be studied which guide all the Public Administration Made that the System of Registrations of Prices will be presented SRP regulated by the Ordinance Federal no 393101 detaching the advantages of the implantation of the referred system in the administration of public resources still presenting the forecast of use of the prices registered by any organs or entities of the Public Administration Giving continuity to the study the institute of the public auction will be considered being drawn a parallel one among the constitutional beginnings of the Public Administration and of the public auctions in confrontation with the application of Art 8th of the Ordinance Federal no 393101 Before the reflections to be presented the study will look for to discuss the appropriate use of the System of Registration of Prices for the Public Administration with views the preservation and maintenance of the juridical beginnings that youthey base the juridical order Keywords Auction System of Registration of Prices Record of Registration of Prices 1 intRoDução O Estado está presente na sociedade nas mais diversas áreas segurança saúde educação saneamento básico defesa da soberania atividades legislativas e judiciárias dentre tantas outras em que atua direta ou indiretamente O objetivo desta presença é proporcionar à população a prestação dos serviços públicos e assegurar o bem estar de todos que convivem harmonicamente em seu território Com vistas a bem desempenhar a função estatal o Estado necessita recorrer a iniciativa privada constantemente a fim de contratar bens que não produz serviços que não executa e obras que não possui estrutura para construir tais contratações em sede de despesas públicas ganham significativa importância em face da vultosa soma que representam no orçamento público A execução das despesas públicas com a contratação de particulares foi objeto de preocupação do legislador constituinte notadamente em face da magnitude dos recursos públicos envolvidos de modo que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 instituiu no Inc XXI do Art 37 o processo de licitação pública como procedimento administrativo obrigatório a ser precedido em toda contratação de bens serviços obras e alienações ficando apenas a ressalva da não realização de certame licitatório nas hipóteses de dispensa de licitação e inexigibilidade previstas em legislação específica Dentre os aspectos gerais das licitações e dos contratos administrativos a Lei Federal nº 8666 de 21 de junho de 1993 veio a criar o Sistema de Registro de Preços no inciso II de seu art 15 porém a matéria permaneceu sem regulamentação por vários anos vindo a ser regulamentada somente em 2001 ou seja 08 oito anos após a promulgação da Lei Geral de Licitações por intermédio do Decreto nº 3931 de 19 de setembro de 2001 Atualmente a utilização do Sistema de Registro de Preços vem se tornando prática muito comum pelos gestores públicos principalmente pelas vantagens Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 269 proporcionadas por tal sistema as quais serão abordadas no presente estudo dentre elas a não obrigatoriedade do órgão detentor do Registro de Preços de realizar as aquisições a diminuição de certames licitatórios a economia de recursos despendidos para a realização de licitações dentre outras O estudo pretende abordar a utilização do Sistema de Registro de Preços pela Administração Pública notadamente no que tange à utilização da Ata de Registro de Preços por órgãos que não participaram do certame licitatório que deu origem aos preços registrados Analisase assim a contratação efetuada por órgãos que não participaram da licitação e contratam diretamente com a empresa detentora da Ata de Registro de Preços oriunda da licitação promovida por determinado órgão da Administração Dessa forma será traçado um paralelo com os princípios que norteiam o processo licitatório e a Administração Pública de modo a demonstrar se o Sistema de Registro de Preços apresentase como uma alternativa eficaz para a Administração Pública em busca de contratações vantajosas que resguardem o interesse público preservando a igualdade de condições a todos os concorrentes que desejam participar de licitações públicas promovidas pelo Poder Público 2 PRincíPioS como funDAmEntoS Do SiStEmA juRíDico Para melhor compreensão da importância dos princípios no âmbito jurídico destacase a definição do constitucionalista Celso Ribeiro Bastos1 segundo o qual Princípio é por definição o mandamento nuclear de um sistema ou se preferir o verdadeiro alicerce dele Tratase de disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondolhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência O princípio ao definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo acaba por lhe conferir a tônica e lhe dar sentido harmônico Observase que a relevância da compreensão dos princípios é fundamental posto que estruturam e identificam todo o sistema normativo Este mesmo sistema deverá ser composto por normas que serão editadas seguindo as diretrizes traçadas pelos princípios gerais que alicerçam a matéria sob pena de quebra da harmonia existente no ordenamento jurídico Os princípios fundamentam o sistema jurídico servindo de ideias básicas para a formação das regras do direito positivo e ocupam três funções relevantes fundamentação base de interpretação e fonte de supressão de lacunas Com isso podese afirmar que todo o Direito Administrativo deverá guardar estreita consonância com os princípios constitucionais dos quais este ramo do Direito é 1 BASTOS Celso Ribeiro Curso de Direito Constitucional São Paulo Celso Bastos 2002 p80 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 270 originado haja vista que toda a construção jurídica e doutrinária deverá estar pautada nas disposições constitucionais que fundamentam o sistema Da mesma forma as licitações públicas além de seguirem as diretrizes constitucionais ainda deverão estar submetidas aos princípios específicos que orientarão a realização dos processos licitatórios 21 Princípios gerais da Administração Pública e das licitações públicas A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 fixou em seu art 37 os princípios gerais que norteiam a Administração Pública conforme se pode observar Art 37 A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União dos Estados do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade impessoalidade moralidade publicidade e eficiência e também ao seguinte Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19 de 1998 Em seguida o legislador originário descreveu nos demais incisos uma série de disposições gerais acerca da Administração Pública dentre as quais destacamos o inciso XXI que reza a utilização de processo de licitação pública como regra geral para as contratações de obras serviços compras e alienações XXI ressalvados os casos específicos na legislação as obras serviços compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento mantidas as condições efetivas da proposta nos termos da lei o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações A Lei Federal nº 866693 ainda acrescentou aos princípios constitucionais da Administração Pública quais sejam o da legalidade da impessoalidade da moralidade da publicidade e da eficiência todos previstos no caput do art 37 da Constituição Federal os princípios gerais das licitações públicas elencados no seu art 3º Art 3º A licitação destinase a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade da impessoalidade da moralidade da igualdade da publicidade da probidade administrativa da vinculação ao instrumento convocatório do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 271 Assim além dos princípios constitucionais da Administração Pública citados anteriormente a Lei Geral de Licitações também lançou novos princípios que deverão fundamentar as licitações públicas e ao final do art 3º a Lei ainda ampliou sobremaneira este rol deixando aberto à doutrina a possibilidade de definição de outros princípios posto que o artigo encerra com a seguinte frase e dos demais que lhe são correlatos Diante da amplitude de princípios que regem a Administração Pública e as licitações públicas e da falta de consenso na doutrina acerca da fixação de tais princípios este estudo enfrentará apenas os princípios constitucionais previstos no caput do art 37 da Constituição da República Federativa do Brasil acrescentando ainda os princípios específicos das licitações públicas que gozam de certo consenso entre a doutrina fixando a análise utilizando os seguintes princípios a Princípio da legalidade b Princípio da impessoalidade c Princípio da moralidade d Princípio da publicidade e Princípio da eficiência f Princípio da isonomia entre os licitantes g Princípio da vinculação ao instrumento convocatório e h Princípio da proposta mais vantajosa 3 o SiStEmA DE REGiStRo DE PREçoS Definidos os princípios que balizam o presente estudo bem como a importância da análise principiológica na sistematização das normas de Direito Administrativo a serem utilizadas na gestão dos recursos públicos notadamente através da realização de certames licitatórios podese então avançar a discussão trazendo a lume o que vem a ser o Sistema de Registro de Preços A Lei Geral de Licitações previu o instituto no inciso II do seu art 15 verbis Art 15 As compras sempre que possível deverão II ser processadas através de sistema de registro de preços Apesar da previsão da Lei nº 866693 o Sistema de Registro de Preços somente veio a ser regulamentado por intermédio do Decreto Federal nº 3931 de 19 de setembro de 2001 e a definição do seu conceito se deu através da redação acrescida pelo Decreto Federal nº 4342 de 23 de agosto de 2002 transcrita a seguir Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 272 Art 1º Parágrafo único Para os efeitos deste Decreto são adotadas as seguintes definições I Sistema de Registro de Preços SRP conjunto de procedimentos para registro formal de preços relativos à prestação de serviços e aquisição de bens para contratações futuras Redação dada pelo Decreto nº 4342 de 23082002 Do exposto verificase que o Sistema de Registro de Preços é um conjunto de procedimentos formais com o objetivo de registrar preços para contratações futuras Este conjunto de procedimentos formais consiste na realização de certame licitatório por intermédio do respectivo processo administrativo Dentre os processos licitatórios para que o órgão possa proceder o Registro de Preços o Decreto nº 393101 prevê exclusivamente a utilização das modalidades de licitação Concorrência e Pregão sendo que este último poderá ser utilizado tanto na forma presencial na qual os fornecedores estão presentes no local da licitação para oferta de lances verbais ou na forma eletrônica na qual os fornecedores utilizamse da internet para a propositura de lances durante a realização do certame licitatório que é feito online pela Internet Importante lembrar que um dos pioneiros a conceituar o Sistema de Registro de Preços foi Hely Lopes Meirelles2 ensinando O sistema de compras pelo qual os interessados em fornecer materiais equipamentos ou gêneros ao Poder Público concordam em manter os valores registrados no órgão competente corrigidos ou não por um determinado período e a fornecer as quantidades solicitadas pela Administração no prazo previamente estabelecido Assim verificamos que o Sistema de Registro de Preços diferenciase das licitações tradicionais principalmente pela peculiaridade que o distingue qual seja a não obrigatoriedade da contratação pela Administração posto que se destina a registrar preços por um determinado lapso de tempo para aquisições eventuais e futuras 31 A utilização da Ata de Registro de Preços por órgãos não participantes da licitação O Sistema de Registro de Preços será precedido de licitação na modalidade Concorrência ou Pregão porém será concretizado através da assinatura da Ata de Registro de Preços que é o documento vinculativo de caráter obrigacional com 2 MEIRELLES Helly Lopes Licitação e contrato administrativo São Paulo RT 1991 p62 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 273 característica de compromisso para futura contratação no qual estarão registrados os valores registrados os fornecedores os órgãos participantes as condições a serem praticadas conforme as disposições contidas no edital da licitação e nas propostas apresentadas Vale ressaltar que todo o processo licitatório será conduzido pelo chamado Órgão Gerenciador que conduzirá o processo administrativo cumprindo todas as etapas previstas na legislação correspondente assim como o faria em uma licitação convencional O Decreto Federal nº 393101 estabeleceu a seguinte definição Art 1º Parágrafo único Para os efeitos deste Decreto são adotadas as seguintes definições III Órgão Gerenciador órgão ou entidade da Administração Pública responsável pela condução do conjunto de procedimentos do certame para registro de preços e gerenciamento da Ata de Registro de Preços dele decorrente Além do órgão gerenciador poderão ser convidados outros órgãos a participar do certame licitatório para Registro de Preços e que serão denominados órgãos participantes Os órgãos participantes integrarão o procedimento licitatório desde o seu início devendo manifestar o interesse perante o órgão gerenciador em participar do certame através da remessa da estimativa de consumo da expectativa do cronograma de consumo e das especificações do objeto Tal previsão do Decreto Federal nº 393101 é muito bem sucedida haja vista proporcionar flagrante racionalidade na execução de um certame licitatório composto por diversos órgãos em conjunto ensejando economia de recursos materiais e humanos pelo esforço único desenvolvido em prol de todos proporcionando a centralização de um processo licitatório para atendimento das necessidades comuns de vários órgãos independentes Até este ponto andou bem o Decreto Federal nº 393101 No entanto a inovação se deu com a instituição da possibilidade de utilização do Sistema de Registro de Preços por qualquer órgão ou entidade da Administração que não tenha participado do certame licitatório que deu origem à Ata de Registro de Preços os chamados caronas conforme previsão contida no art 8º e seus parágrafos abaixo transcritos Tais dispositivos representam inúmeras consequências para a Administração Pública e para as empresas Vejase Art 8º A Ata de Registro de Preço durante a sua vigência poderá ser utlizada por qualquer órgão ou entidade que não tenha participado do certame licitatório mediante prévia consulta ao órgão gerenciador desde que devidamente comprovada a vantagem Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 274 1º Os órgãos e entidades que não participaram do registro de preços quando desejarem fazer uso da Ata de Registro de Preços deverão manifestar seu interesse junto ao órgão gerenciador da Ata para que este indique os possíveis fornecedores e respectivos preços a serem praticados obedecida a ordem de classificação 2º Caberá ao fornecedor beneficiário da Ata de Registro de Preços observadas as condições nela estabelecidas optar pela aceitação ou não do fornecimento independentemente dos quantitativos registrados em Ata desde que este fornecimento não prejudique as obrigações anteriormente assumidas O instituto ainda veio a provocar uma verdadeira celeuma pela ausência de limites às aquisições realizadas por órgãos não participantes caronas de modo que o Governo Federal editou o Decreto nº 4342 em 23 de agosto de 2002 acrescentado ao art 8º do Decreto nº 3931 de 19 de setembro de 200 o parágrafo abaixo 3º As aquisições ou contratações adicionais a que se refere este artigo não poderão exceder por órgão ou entidade a cem por cento dos quantitativos registrados na Ata de Registro de Preços Continua Jorge Ulisses Jacoby3 Fernandes sobre o tema Por intermédio do Decreto nº 3931 de 19 de setembro de 2001 alterada a regulamentação do Sistema de Registro de Preços e instituída no país a possibilidade de a proposta mais vantajosa numa licitação ser aproveitada por outros órgãos e entidades Esse procedimento vulgarizouse sob a denominação de carona que traduz em linguagem coloquial a ideia de aproveitar o percurso que alguém está desenvolvendo para concluir o próprio trajeto sem custos Desta forma a utilização da Ata de Registro de Preços foi estendida a qualquer órgão ou entidade da Administração que não tenha participado do certame licitatório Exemplificando uma empresa A participa de um certame licitatório para registro de preços de resma de papel A4 na quantidade de 1000mil resmas assinando a Ata de Registro de Preços perante determinada Secretaria de Educação Em seguida a Secretaria de Fazenda manifesta interesse em aderir à Ata de Registro de Preços realizando então como carona a contratação do fornecimento de 1000mil resmas de papel A4 também da empresa A Após isso o IBAMA também manifesta interesse em aderir à citada Ata de Registro de Preços vindo a contratar novamente como carona o fornecimento de mais 1000mil resmas de papel A4 da mesma empresa 3 FERNANDES Jorge Ulisses Jacoby Carona em sistema de registro de preços uma opção inteligente para redução de custos e controle Disponível na Internet httpwwwjacobyprobrutilpubCAC58T8Ndoc Acesso em 17 dez 2008 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 275 A e assim sucessivamente outros órgãos aderem à utilização da Ata de Registro de Preços firmada pela Secretaria de Educação utilizandose da prerrogativa de caronas de forma que rapidamente a empresa A multiplicou consideravelmente suas vendas para outros órgãos e entidades sem que para isso necessitasse novamente sujeitarse a novos procedimentos licitatórios Tal quadro motiva uma análise um pouco mais detalhada acerca da situação estabelecida pelas adesões às Atas de Registro de Preços por órgãos e entidades que não participaram do certame licitatório que ensejou o registro dos preços o que será feito a seguir a luz dos princípios que norteiam a Administração Pública e as licitações públicas 4 A licitAção PúBlicA A fim de que se possa dar continuidade à análise da utilização da Ata de Registro de Preços por órgãos não participantes da licitação que deu origem aos preços registrados fazse necessário esclarecer que o processo licitatório é um procedimento administrativo composto por uma série de atos previstos na Lei Geral de Licitações que tem como principal e único objetivo selecionar a proposta mais vantajosa para a contratação pretendida pela Administração Pública guardadas as condições isonômicas entre todos os participantes condições estas que estarão previamente estabelecidas no instrumento convocatório Edital A definição de Bandeira de Mello4 é a seguinte Licitação é o procedimento administrativo pelo qual uma pessoa governamental pretendendo alienar adquirir ou locar bens realizar obras e serviços outorgar concessões permissões de obra serviço ou de uso exclusivo de bem público segundo condições por ela estipuladas previamente convoca interessados na apresentação de propostas a fim de selecionar a que se revele mais conveniente em função de parâmetros antecipadamente estabelecidos e divulgados Observase que o entendimento da doutrina é no sentido de a licitação ser um procedimento administrativo cujo objetivo é buscar a proposta mais vantajosa na iniciativa privada para celebração do contrato de interesse da Administração Pública respeitando a isonomia entre quaisquer interessados Fixado o conceito e o objetivo do procedimento licitatório passase à análise da utilização da Ata de Registro de Preços por órgãos e entidades que não participaram do certame licitatório que originou os preços registrados em consonância com os princípios que regem a Administração Pública e as licitações públicas 4 BANDEIRA DE MELLO Celso Antônio Curso de direito administrativo São Paulo Malheiros 2002 p468 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 276 41 o princípio da legalidade A supremacia da lei como manifestação da vontade popular reveste a sociedade de garantias de certezas e da delimitação de direitos e deveres No tocante ao Direito Administrativo o princípio da legalidade ganha especial destaque por submeter a Administração Pública à vontade da lei limitando poderes e estabelecendo condutas dos gestores públicos A Administração portanto no desempenho de suas atividades tem a obrigação de observar e cumprir todas as normas do ordenamento jurídico que o próprio Estado editou nas palavras de Caio Tácito5 Ao contrário da pessoa de direito privado que como regra tem a liberdade de fazer aquilo que a lei não proíbe o administrador público somente pode fazer aquilo que a lei autoriza expressa ou implicitamente Trazendo à tona o entendimento defendido por Joel de Menezes Niebuhr6 a possibilidade de utilização da Ata de Registro de Preços por órgãos não participantes do processo licitatório instituiu a figura do carona em licitações públicas para o Sistema de Registro de Preços Ocorre que tal instituto foi criação do Decreto Federal nº 393101 haja vista a figura do carona não encontrar qualquer menção na legislação ou seja a lei não faz referência ao carona Com isso sustenta o doutrinador que o Presidente da República ao criar o carona agiu excedendo suas competências constitucionais posto que o Decreto Federal nº 393101 como regulamento administrativo que é objetiva tão somente a dizer como a lei deve ser cumprida pela Administração Pública não se presta portanto a criar direitos e obrigações nem tampouco novos instrumentos jurídicos que não possuem amparo legal Assim como o Decreto Federal nº 393101 deveria assegurar a fiel execução da lei e acabou por criar um instituto novo qual seja o carona verificase a afronta ao princípio da legalidade pelo fato de o Decreto haver extrapolado a competência constitucional inovando a ordem jurídica A competência para criação do carona é do Poder Legislativo posto que no Estado Democrático de Direito se deve governar por lei e não por decreto 42 os princípios da impessoalidade e da moralidade Os princípios da impessoalidade e da moralidade encontramse intrinsecamente ligados O princípio da impessoalidade afasta da Administração Pública a vontade 5 TÁCITO Caio O princípio da legalidade ponto e contraponto Revista de Direito Administrativo V206 Rio de Janeiro Renovar 1996 p2 6 NIEBUHR Joel de Menezes Carona em Ata de Registro de Preços atentado veemente aos princípios de direito administrativo Revista Zênite de Licitações e Contratos ILC Ano XIII Nº 143 Curitiba Zênite 2006 p13 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 277 pessoal dos gestores públicos bem como a gestão da res publica em interesse pessoal Os administradores devem pautar suas atitudes sob o manto da imparcialidade da impessoalidade não sendo relevantes portanto na gestão pública as preferências pessoais as opiniões pessoais nem tampouco as vontades pessoais daqueles que administram Já o princípio da moralidade exige da Administração comportamento consoante com a moral com os bons costumes com a justiça com a equidade com a honestidade com a idoneidade ou seja com as regras da boa administração buscando o melhor e o mais útil ao interesse público Notase a estreita ligação entre a impessoalidade e a moralidade de forma que a crítica feita por Joel de Menezes Niebuhr7 ao carona em Atas de Registro de Preços reside no fato de a adesão de órgãos não participantes à determinada Ata de Registro de Preços expor de maneira excessiva e desnecessária os dois princípios ou seja enseja na Administração todo o tipo de lobby tráfico de influência e favorecimento pessoal Ora em um país como o Brasil em que prevalece a cultura do jeitinho8 somandose ao fato da má remuneração dos servidores públicos e tantos outros elementos complexos que envolvem a Administração Pública podese pensar que a empresa A poderá oferecer algum tipo de vantagem aos administradores públicos de outros órgãos em troca da adesão a Ata de Registro de Preços que favorece a empresa A multiplicando ilimitadamente as contratações posto que cada órgão que aderir à Ata de Registro de Preços poderá contratar 100 cem por cento dos quantitativos registrados conforme Parágrafo 3º do Art 8º do Decreto Federal nº 393101 Diante de tais observações não se pode duvidar que a utilização da Ata de Registro de Preços por quaisquer órgãos ou entidades da Administração que não participaram da licitação que deu origem aos preços registrados coloca em risco despropositado os princípios da impessoalidade e da moralidade administrativa de modo que fechar os olhos para a realidade brasileira significa tolerar e incentivar a má gestão de recursos públicos 43 o princípio da publicidade O tema da transparência das contas públicas tão em voga no Brasil traduzse em um espelho do princípio da publicidade Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro9 Diz respeito não apenas à divulgação do procedimento para conhecimento de todos os interessados como também aos atos da Administração praticados nas várias fases do procedimento que podem e devem ser abertas aos interessados para assegurar a todos a possibilidade de fiscalizar sua legalidade 7 NIEBUHR Joel de Menezes Carona em Ata de Registro de Preços atentado veemente aos princípios de direito administrativo Revista Zênite de Licitações e Contratos ILC Ano XIII Nº 143 Curitiba Zênite 2006 p13 8 KELLEMEN Peter Brasil para principiantes venturas e desventuras de um brasileiro naturalizado Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1964 p9 9 DI PIETRO Maria Sylvia Zanella Direito Administrativo São Paulo Atlas 2005 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 278 A mácula ao princípio da publicidade ocasionada pela utilização da Ata de Registro de Preços por quaisquer órgãos ou entidades que não participaram da licitação consiste no fato de o quantitativo a ser contratado não estar expressamente definido no objeto da licitação definido no Edital Neste caso há uma licitação sem a delimitação do quantitativo do objeto a ser contratado que deve ser considerada nula posto que dificulta a apresentação de propostas pelos licitantes comprometendo o julgamento objetivo e a execução do contrato que dela será resultado Por exemplo a licitação destinase a registrar preços para o fornecimento de 1000 mil resmas de papel A4 A empresa A vence a licitação e assina a Ata de Registro de Preços Já a empresa B toma conhecimento da licitação porém resolve não participar em face de o quantitativo de resmas de papel A4 ser de apenas 1000mil quando para a empresa B seria viável registrar preços para o fornecimento acima de 5000cinco mil resmas de papel A4 A empresa C participa do certame e perde a licitação em face de somente poder oferecer um melhor preço se a quantidade registrada fosse acima de 3000três mil resmas de papel A4 Ocorre que posteriormente 05cinco órgãos da Administração resolvem aderir à Ata de Registro de Preços detida pela empresa A Logo o quantitativo contratado é acrescido de 5000cinco mil resmas de papel A4 beneficiando a empresa A em detrimento das empresas B e C Nesta situação verificase que a clareza do Edital é fundamental para que não haja restrição ao caráter competitivo da licitação A definição dos quantitativos a serem contratados é um dos aspectos mais relevantes para a apresentação das propostas pelos licitantes por influir diretamente nos custos das empresas ensejando inclusive que empresas deixem de participar da licitação por não haver interesse numa contratação de valores pouco expressivos Da mesma forma o licitante que participa do certame tem o direito de conhecer o quantitativo a ser registrado e possivelmente contratado A ausência de tal informação configura crucial desrespeito ao princípio constitucional da publicidade Nas palavras de José Cretella Júnior10 Com efeito a mais ampla publicidade é pressuposto indispensável a um instituto que se destina a colocar diante do público as condições preliminares para a concretização de contratos de que participa a Administração 44 o princípio da eficiência Acrescida pela reforma administrativa realizada através da Emenda Constitucional nº 1998 a eficiência somouse aos demais princípios já consagrados no caput do art 37 10 CRETELLA JÚNIOR José Curso de direito administrativo Rio de Janeiro Forense 2003 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 279 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 com o intuito de modernizar a Administração Pública Desse modo a Administração objetivando atingir a eficiência deverá agir de maneira ágil precisa perfeita visando sempre maximizar os resultados positivos e a satisfação das necessidades da população Condenase portanto a morosidade a inércia o descaso a negligência e a omissão Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro11 O princípio da eficiência apresenta na realidade dois aspectos pode ser considerado em relação ao modo de atuação do agente público do qual se espera o melhor desempenho possível de suas atribuições para lograr os melhores resultados e em relação ao modo de organizar estruturar disciplinar a Administração Pública também com o mesmo objetivo de alcançar os melhores resultados na prestação do serviço público Neste ponto observase uma dicotomia interessante A utilização do Sistema de Registro de Preços visando à aquisição de bens ou a contratação de serviços para o atendimento a mais de um órgão ou entidade representa notória consagração da eficiência administrativa Afinal o órgão gerenciador coordena juntamente com os órgãos participantes a realização de uma única licitação que irá suprir a demanda de contratação de todos unemse esforços para o alcance do objetivo comum destacando o planejamento e a organização da Administração Por outro lado a simples adesão à Ata de Registro de Preços por órgãos que não participaram da licitação os chamados caronas prestigia a inércia e o comodismo administrativo haja vista que os órgãos poderão esconder a ausência de planejamento nas contratações buscando sempre a adesão às Atas de Registro de Preços de outros órgãos que implantaram o Sistema de Registro de Preços Vale ressaltar o antagonismo da utilização do Sistema de Registro de Preços De um lado os órgãos unem esforços e realizam uma licitação conjunta de interesse de todos enaltecendo a eficiência administrativa de outro os órgãos permanecem inertes aguardando a realização do certame sem sequer precisarem levantar suas necessidades de contratação agindo como verdadeiros parasitas daqueles que após longa jornada conseguem celebrar a assinatura da Ata de Registro de Preços Em face dos argumentos apresentados é inconteste o flagrante desrespeito à eficiência administrativa almejada pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 por órgãos e entidades que não participam das licitações para Registro de Preços e passam a aderir às Atas de Registro de Preços de outros órgãos 11 DI PIETRO Maria Sylvia Zanella Direito Administrativo São Paulo Atlas 2005 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 280 45 o princípio da isonomia entre os licitantes A isonomia entre os licitantes diz respeito à oportunidade de todos os interessados em contratar com a Administração Pública poderem competir em condições iguais isonômicas Todos devem receber da Administração Pública igual tratamento Nas licitações públicas as regras do certame devem ser previamente definidas no Edital e serão impostas a todos os concorrentes em igualdade de condições A adesão à Ata de Registro de Preços realizada por órgãos não participantes da licitação acaba por quebrar a isonomia que foi imposta aos concorrentes no certame haja vista que o acréscimo no quantitativo a ser contratado era desconhecido na licitação em que todos participaram em igualdade de condições O desconhecimento de condição relevante no certame licitatório qual seja o quantitativo a ser contratado acaba por frustrar todo o procedimento ao conceder vantagem à empresa que assina a Ata de Registro de Preços em detrimento dos demais licitantes Conclui Joel de Menezes Niebuhr12 A figura do carona é ilegítima porquanto por meio dela procedese à contratação direta sem licitação fora das hipóteses legais e sem qualquer justificativa vulnerando o princípio da isonomia que é o fundamento da exigência constitucional que faz obrigatória a licitação pública 46 o princípio da vinculação ao instrumento convocatório O instrumento convocatório também conhecido como Edital é o documento no qual a Administração Pública fixará as normas e condições a serem observadas por todos os interessados para participação na licitação daí o porquê de o Edital ser taxado como Lei Interna da Licitação13 Tanto a Administração Pública licitante como os interessados na licitação estarão submetidos à rigorosa observância das normas e condições estabelecidas no Edital conforme previsão do art 3º da Lei Federal nº 866693 reafirmado pelo art 41 do mesmo diploma legal verbis Art 41 A Administração não pode descumprir as normas e condições do edital ao qual se acha estritamente vinculada 12 NIEBUHR Joel de Menezes Carona em Ata de Registro de Preços atentado veemente aos princípios de direito administrativo Revista Zênite de Licitações e Contratos ILC Ano XIII Nº 143 Curitiba Zênite 2006 13 GASPARINI Diógenes Direito Administrativo São Paulo Saraiva 2002 p400 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 281 Assim a adesão de órgãos não participantes à Ata de Registro de Preços é condição não prevista no Edital Ainda que haja a previsão do Art 8º do Decreto Federal nº 393101 não é possível para os proponentes saber quantos órgãos irão efetuar a adesão a posteriori e com isso também não é possível conhecer o quantitativo que será efetivamente contratado prejudicando a elaboração das propostas pelos concorrentes Adilson Abreu Dallari14 esclarece O edital há de ser completo de molde a fornecer uma antivisão de tudo que possa vir a ocorrer no decurso das fases subsequentes da licitação Nenhum dos licitantes pode vir a ser surpreendido com coisas exigências transigências critérios ou atitudes da Administração que caso conhecidas anteriormente poderiam afetar a formulação de suas propostas Devese frisar que o Edital não só estabelece os quantitativos do objeto a ser registrado o preço mas também uma série de outros componentes que influenciam diretamente na elaboração da proposta tais como frete prazo de entrega condições de pagamento dentre outras Observase que o carona enseja contratação não prevista inicialmente no Edital ferindo a competitividade do processo licitatório bem como estabelecendo privilégios para a empresa detentora da Ata de Registro de Preços Tal situação contraria de forma veemente mais um dos princípios das licitações públicas 47 o princípio da proposta mais vantajosa Conforme visto anteriormente a obtenção da proposta mais vantajosa para a contratação a ser realizada pela Administração Pública constitui o principal objetivo de toda e qualquer licitação pública A discussão da vantajosidade na utilização da Ata de Registro de Preços por órgãos não participantes da licitação alcançou o Tribunal de Contas da União No Acórdão 4342005 Plenário15 o ministrorelator Augusto Sherman Cavalcanti em seu voto apresentou a seguinte preocupação com o assunto Não se tem como garantir que o preço vencedor seja o mais vantajoso ou seja compatível com a faixa etária dos beneficiários do órgão que venha a aproveitarse da licitação já realizada Assim o preço ofertado para o Ministério da Cultura dificilmente será o adequado para qualquer outro órgão da Administração tendo 14 DALLARI Adilson Abreu Aspectos jurídicos da licitação São Paulo Saraiva 1997 p32 15 Tribunal de Contas da União Processo TC 00470920053 Relator Augusto Sherman Cavalcanti Brasília 20 de abril de 2005 Diário Oficial da União Brasília 29 de abril de 2005 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 282 em vista as diferenças nos diversos componentes do custo dos serviços entre os quais destaco a abrangência territorial ou área geográfica a rede credenciada e o grupo de beneficiários O caso concreto referiase à utilização do Sistema de Registro de Preços para contratação de operadora de planos de saúde pelo Ministério da Cultura A Corte de Contas considerou ser possível a contratação pelo Sistema de Registro de Preços porém o Edital deveria vedar a possibilidade da utilização da Ata de Registro de Preços por órgãos que não participaram do certame No caso em tela a recomendação foi pela anulação do procedimento licitatório conforme voto do ministrorelator proferido no Acórdão 668200516 A anulação do certame em análise tem o potencial de impedir futuras contratações baseadas na Ata de Registro de Preços pelos demais órgãos e entidades da Administração sem que haja certeza quanto à razoabilidade dos preços em cada situação específica Os ensinamentos do Ministro Sherman do Tribunal de Contas da União apesar da peculiaridade da contratação analisada contratação de operadora de planos de saúde implicam no despertar para a questão haja vista que as necessidades de contratações dos órgãos são diversas assim como todas as demais condições envolvidas na licitação tais como frete condições de pagamento quantitativos a serem contratados qualidade da contratação etc Diante disso estender a utilização de Atas de Registro de Preços para órgãos não participantes é fator de risco para a Administração por não significar a contratação mais vantajosa a satisfazer o interesse público 5 A ADEQuADA utiliZAção Do SiStEmA DE REGiStRo DE PREçoS O Sistema de Registro de Preços vem a ser um instrumento de considerável avanço na gestão de recurso públicos as vantagens obtidas são inúmeras porém não se pode admitir a distorção do instituto de forma a romper com os princípios constitucionais da Administração Pública nem tampouco os princípios gerais das licitações públicas O Sistema de Registro de Preços não deve ser transformado num estímulo à formação de monopólios por empresas detentoras de Atas de Registro de Preços Tais empresas se especializam em potencializar contratações e multiplicar lucros às custas 16 Tribunal de Contas da União Processo TC 00470920053 Relator Augusto Sherman Cavalcanti Brasília 25 de maio de 2005 Diário Oficial da União Brasília 03 de junho de 2005 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 283 de lobby perante órgãos e entidades da Administração Pública para adesão à Atas de Registro de Preços resultando em desrespeito à supremacia do interesse público Devese ressaltar no entanto que o Sistema de Registro de Preços pode e deve continuar a ser utilizado pelos gestores públicos como ferramenta de gestão Para tanto basta a limitação da utilização da Ata de Registro de Preços apenas pelos órgãos que efetivamente participaram desde o início da licitação coordenada pelo órgão gerenciador Aliás essa é a previsão do próprio Decreto Federal nº 393101 em seu art 2º Inc III verbis Art 2º Será adotado preferencialmente o SRP nas seguintes hipóteses III quando for conveniente a aquisição de bens ou a contratação de serviços para atendimento a mais de um órgão ou entidade ou a programas de governo A realização de uma única licitação composta por necessidades de órgãos diversos através do SRP preserva e mantém a aplicação de todos os princípios da Administração Pública bem como reforça os princípios das licitações públicas Dando especial destaque a obtenção da eficiência administrativa por intermédio da racionalização dos processos administrativos de contratações O entendimento da Corte de Contas deve ser acatado pelos gestores públicos para correta aplicação das normais gerais de licitação17 Nesse sentido bem atuou o ministro Augusto Sherman Cavalcanti ao demonstrar a relevância das consequências advindas da utilização da Ata de Registro de Preços por órgãos não participantes da licitação que deu origem aos preços registrados Destacase que o descompasso existe apenas na utilização das Atas de Registro de Preços por órgãos não participantes de modo que para os órgãos participantes verificamse claramente as vantagens a serem alcançadas com a utilização do Sistema de Registro de Preços de forma que sua aplicação na Administração Pública deve ser amplamente divulgada e incentivada não só na esfera federal como também nas esferas estadual e municipal 6 conSiDERAçõES finAiS A importância do estudo das licitações públicas no Brasil decorre principalmente da necessidade do Estado em recorrer à iniciativa privada para realizar as mais diversas 17 Súmula 222 do Tribunal de Contas da União As decisões do Tribunal de Contas da União relativas à aplicação de normas gerais de licitação sobre as quais cabe privativamente à União legislar devem ser acatadas pelos administradores dos Poderes da União dos Estados do Distrito Federal e dos Municípios Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 284 contratações em decorrência disso vultosos recursos financeiros são gastos e o procedimento administrativo para realização de tais despesas é o processo licitatório conforme regra estabelecida pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 O presente estudo destacou que a licitação pública tem como objetivo principal selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração Pública guardando igualdade de condições entre todos aqueles interessados em contratar com o Poder Público Tal objetivo não pode ser afastado pelo gestor público sob pena de contrariedade às disposições constitucionais e consequente não realização do interesse público A discussão principal acerca da utilização do Sistema de Registro de Preços foi focada na celeuma provocada pela utilização de Atas de Registro de Preços por órgãos não participantes da licitação a qual deu origem aos preços registrados O problema originado pelos órgãos caronas consiste no desrespeito aos princípios gerais da Administração Pública e das licitações públicas Ficou demonstrado que o Art 8º do Decreto Federal nº 393101 ao instituir a figura do carona contrariou princípios que fundamentam o ordenamento jurídico vigente no país sobretudo àqueles que alicerçam a Administração Pública quais sejam a legalidade a impessoalidade a moralidade a publicidade e a eficiência Conforme o estudo que ora se finda a frequente adesão de órgãos à Atas de Registro de Preços acaba por multiplicar as quantidades contratadas proporcionando fantástico ganho de escala às empresas detentoras de preços registrados sem que tais quantitativos estivessem claramente definidos no Edital do certame licitatório que deu origem ao registro de preços Por outro lado a Administração Pública não realiza certames licitatórios não oferecendo oportunidade a potenciais interessados em celebrar os contratos bem como dá ensejo que uma licitação para contratação de um quantitativo previamente estabelecido se torne uma contratação muito superior Tal ofensa aos princípios jurídicos poderá ser contornada de maneira simples através da correta utilização do Sistema de Registro de Preços pela Administração Pública Para tanto fazse necessário à vedação da utilização de Atas de Registro de Preços por órgãos que não participaram da licitação ou seja defendese a utilização das Atas de Registro de Preços apenas pelos órgãos participantes a fim de consagrar a dupla finalidade do processo licitatório qual seja a seleção da proposta mais vantajosa para o Poder Público e o oferecimento de igual oportunidade a todos os interessados em celebrar o contrato Somente dessa forma estará consagrada a transparência de um certame licitatório no qual todos os licitantes conhecem a magnitude da potencial contratação bem como com quais órgãos tais contratos poderão ser firmados A clareza de tais disposições no Edital certamente ensejará uma competição mais isonômica e justa proporcionando a seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública alcançando por fim o principal objetivo de todo processo licitatório Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 285 REfERênciAS ARAÚJO Geisa Maria Teixeira de Licitações e Contratos Públicos teoria e prática Fortaleza Premius 2001 BANDEIRA DE MELLO Celso Antônio Curso de Direito Administrativo São Paulo Malheiros 2002 BASTOS Celso Ribeiro Curso de Direito Constitucional São Paulo Celso Bastos 2002 BOSELLI Paulo Simplificando as licitações São Paulo Edicta 2001 DALLARI Adilson Abreu Aspectos jurídicos da licitação São Paulo Saraiva 1997 DI PIETRO Maria Sylvia Zanella Direito Administrativo São Paulo Atlas 2005 FERNANDES Jorge Ulisses Jacoby Carona em sistema de registro de preços uma opção inteligente para redução de custos e controle Disponível na Internet httpwww jacobyprobrutilpubCAC58T8Ndoc Acesso em 17 dez 2008 Sistema de registro de preços e pregão presencial e eletrônico Belo Horizonte Fórum 2006 GASPARINI Diógenes Direito Administrativo São Paulo Saraiva 2002 JUSTEN FILHO Marçal Comentários à lei de licitações e contratos administrativos São Paulo Dialética 2002 KELLEMEN Peter Brasil para principiantes venturas e desventuras de um brasileiro naturalizado Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1964 MEIRELLES Helly Lopes Licitação e contrato administrativo São Paulo RT 1991 Direito Administrativo Brasileiro São Paulo Malheiros 2001 Direito Administrativo Brasileiro São Paulo Malheiros 2002 MORAES Alexandre de Direito Constitucional São Paulo Atlas 2003 MOTTA Carlos Pinto Coelho Eficácia nas licitações e contratos Belo Horizonte Del Rey 2002 NIEBUHR Joel de Menezes Carona em Ata de Registro de Preços atentado veemente aos princípios de direito administrativo Revista Zênite de Licitações e Contratos ILC Ano XIII Nº 143 Curitiba Zênite 2006 PEREIRA JUNIOR Jessé Torres Comentários à lei das licitações e contratações da administração pública Rio de Janeiro Renovar 1997 SILVA José Afonso da Curso de Direito Constitucional Positivo São Paulo Malheiros 2002 SUNDFELD Carlos Ari Fundamentos de direito público São Paulo Malheiros 2000 TÁCITO Caio O princípio da legalidade ponto e contraponto Revista de Direito Administrativo v206 Rio de Janeiro Renovar 1996 Direito e Democracia v10 n2 p286294 juldez 2009 Canoas o monumento bárbaro desconcertando o sistema penal entre violência crime e logos Alexandre costi Pandolfo RESumo O artigo apresenta uma desconstrução do poder punitivo afiliando o seu discurso com o esclarecimento mito do pensamento ocidental Aproximando Walter Benjamin Giorgio Agamben e Robert Musil é possível concluir que direito estado e história assim como o próprio sistema penal são monumentos bárbaros na medida mesma da sua civilidade O texto pretende assim questionar o fundamento do poder punitivo a partir da racionalização que encobre toda a sua barbaridade a violência intrínseca ao próprio logos Palavraschave Sistema Penal Monumento Barbárie Violência Logos the Barbarian monument disconcerting the penal system between violence crime and logos ABStRAct The paper presents a deconstruction of punitive power affiliating its speech with the Illuminism the myth of Western thought Approaching Walter Benjamin Giorgio Agamben and Robert Musil is possible to conclude that the law the state and history as well as the criminal justice system are barbaric monuments in the same measure as its civility The text aims to question the punitive powers basis since the rationalization that covers all its barbarity the violence inherent to the own logos Keywords PenalSistem Monument Barbarism Violence Logos 1 SiStEmA PEnAl DESlEGitimAção DA RAZão PEnAl Desde o imperativo interpolitransdisciplinar1 é possível dizer que diante de um leve toque com as ciências sociais o saberpoder jurídicopenal está como nas palavras de Eugenio Raúl Zaffaroni deslegitimado Assim na construção deste autor só se pode evitar o autismo e o preconceito indo ao encontro das hipóteses de trabalho interdisciplinar o que não implica que o respectivo saber perca seu horizonte nem sua função apenas tornase interdisciplinar a construção de seu sistema de compreensão2 A importância das ciências sociais não se qualifica meramente em uma pretensa posição Alexandre Costi Pandolfo é Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul FADIRPUCRS vinculado à linha de pesquisa em Criminologia e Controle Social Bolsista CAPES Professor Email xandipandolfohotmailcom 1 MORIN Edgar A Cabeça BemFeita repensar a reforma reformar o pensamento Trad Eloá Jacobina RJ Bertrand Brasil 2000 p111 2 ZAFFARONI Eugênio Raul BATISTA Nilo et al Direito Penal Brasileiro RJ Revan 2ª ed 2003 p271 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 287 de auxiliaridade deste saber Todo o delírio de grandeza do saber jurídico penal em sua arrogância retórica sempre consumiu após evidentes processos de apropriação os discursos alienígenas impondolhes a etiqueta da auxiliaridade Sempre imputou aos saberes que ousaram adentrar no seu objeto de estudo crime rótulo de saberes subordinados3 Desse panorama decorre o evidente narcisismo infantil do direito penal que não tomando em consideração os dados sociais das ciências sociais acaba por inventar4 um saber no qual o dado social só interessa ao jurista à medida que o legislador o tenha previamente incorporado5 De uma maneira geral las ciencias sociales nos están mostrando que el discurso jurídicopenal se elabora sobre ilusiones y alucinaciones que estas ciencias desmientem rotundamente Esto significa que las discusiones jurídicopenales se deserollan sobre la base de argumentos que en el plano de la realidad social son falsos6 Isso quer dizer que a realidade social não obstante a verdade apresentarse sempre problemática7 demonstra que o poder punitivo opera de modo exatamente inverso ao descrito pelo discurso penal tradicional A lesão que essa constatação provoca no narcisismo teórico do direito penal faz com que o discurso jurídicopenal tenha de inventar uma realidade condizente com o saberpoder que exerce Assim é que a partir de metáforas8 justificase o exercício de poder dos sistemas penais Ora pelo menos desde a reformulação moderna do século dezoito o discurso jurídicopenal sempre se baseou em ficções e metáforas ou seja em elementos inventados ou trazidos de fora sem nunca operar com dados concretos da realidade social9 O velho fantasma do bellum omnium contra omnes que el proprio Hobbes como no sabia el modo de eludir su falta de realidad histórica nos lo atribuía a los americanos é um importante exemplo do panorama de viejas ficciones y metáforas con las que siempre se trato de justificar el ejercicio de poder del sistema penal10 Nesse sentido as ciências sociais mormente a sociologia e a antropologia provocam uma deslegitimação do 3 CARVALHO Salo de A Ferida Narcísica do Direito Penal primeiras observações sobre as disfunções do controle penal na sociedade contemporânea In GAUER Ruth org A Qualidade do Tempo Para Além das Aparências Históricas RJ Lumen Juris 2004 p181 4 Invenção é sempre uma relação de poder desde a leitura foucaultiana de Nietzsche apresentada no livro A verdade e as formas jurídicas 5 Cf ZAFFARONI BATISTA Ob cit p66 6 ZAFFARONI Eugenio Raúl Hacia un Realismo Jurídico Penal Marginal Caracas Monte Ávila Latinoamericana Editores 1993 p91 7 O próprio Zaffaroni também aponta esta questão Cf ZAFFARONI Eugenio Raúl Em Busca das Penas Perdidas a perda da legitimidade do sistema penal Trad Vânia Pedrosa e Almir Conceição RJ Revan 1991 p163 8 Perceba que como assevera Zaffaroni uma coisa é afirmar que é muito melhor expressar o saber por metáforas por nunca podermos alcançar a realidade em razão da enorme interrelação de tudo perspectiva holística com o que o saber se faz muito mais prudente e menos autoritário e outra coisa muito diferente é usar a metáfora combinada com ficções invenções para extrair consequências assertivas e definitivas sobre uma realidade à qual não se presta a menor atenção ZAFFARONI Em Busca das Penas Perdidas p48 9 Idem Ibidem p48 10 ZAFFARONI Hacia un Realismo Jurídico Penal Marginal p17 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 288 discurso jurídicopenal do qual não mais poderá se recuperar a não ser apelando a estes delírios sociais Por esses trilhos é que o jurista argentino Engenio Raúl Zaffaroni elaborou teoricamente o Realismo Marginal uma construção científica transdisciplinar que se caracteriza pela búsqueda de una dogmática jurídicopenal liberal de garantias realista no distanciada das ciencias sociales no legitimante del poder primitivo que no ejercemos los juristas y adaptada al momento actual de nuestra región latinoamericana11 Essa construção dogmática não é o que permite tirar o véu da atuação dos nossos sistemas penais que caracterizam um genocídio em andamento12 senão que é construída a partir da retirada deste véu Em outras palavras o realismo jurídicopenal marginal propõe la renovación de la dogmática penal desde la deslegitimación del sistema penal orientada instrumentalmente hacia la limitación y reducción de su âmbito y violencia en camino a una utopia abolicionista del sistema penal Su resultado más cercano es una renovación más limitativa del derecho penal de garantias con base realista y sin apelar a la ficción del contrato ni a sus reformulaciones13 Zaffaroni parte da constatação do assustador nível de violência da operatividade das agências do sistema penal o que em suas palavras configura uma deslegitimação pelos próprios fatos tendo em vista que el número de muertes que causan sus agencias en forma directa sumando a las omisiones que encubre con su aparente capacidad de solución de conflictos y que ocultan fenómenos que superan en mucho las muertes que directamente provocan además de los deterioros físicos y psíquicos de muchísimas personas no solo criminalizadas sino también entre los operadores de sus propias agencias arroja un saldo letal incalificable14 O Realismo Marginal então é solidificado faticamente a partir desta crença constataçãoalucinação empírica que designa os procedimentos pelos quais os povos atrasados são enxertados compulsivamente em sistemas tecnologicamente mais evoluídos Ou seja significa também constatar que a região latinoamericana e seu controle social são produtos de uma transculturação protagonizada pelas revoluções mercantil e industrial Desse modo quando questionado acerca da relação entre América Latina e marginalização Zaffaroni firmemente responde que si alguna definición tiene América Latina ella coincide con la de marginalización Somos el resultado de un gran proceso de marginalización planetaria llevado a cabo por el avance histórico de la 11 Idem Ibidem p9 12 ZAFFARONI Em Busca das Penas Perdidas p123 13 ZAFFARONI Hacia un Realismo Jurídico Penal Marginal p15 14 Idem Ibidem p19 Cf ZAFFARONI Em Busca das Penas Perdidas pp124125 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 289 sociedad industrial15 O Realismo Marginal é outra perspectiva teórica elaborada a partir de outro ponto do poder16 que enxerga o horizonte de projeção da realidade penal vinculado a uma realidade social somente relegada com vistas a justificarlegitimar o que é irracionalizávelilegitimável isto é a violência do sistema penal 2 ViolênciA DiREito EStADo E hiStÓRiA como monumEntoS Ora isso significa que para além das possíveis e eventuais construções dogmáticas decorrentes do pensamento marginal há uma radicalização crítica que ataca os próprios fundamentos da edificação do pensamento ocidental Tal como aponta José Saramago ao afirmar dentro de nós há uma coisa que não tem nome essa coisa é o que somos17 é possível dizer que há algo que tem fundamentado essa condição de pensamento que é de difícil tato de difícil audição percepção mas que talvez seja uma cegueira uma cegueira branca clara resplandecente e esclarecedora como o logos Algo que não se consubstancia como civilizado em oposição ao que bárbaro representa mas que dá origem à própria possibilidade de crer que aquele importa numa evolução em relação a este em outros termos ao tachar de complicação obscura e de preferência de alienígena o pensamento que se aplica negativamente aos fatos bem como às formas de pensar dominantes e ao colocar assim um tabu sobre ele esse conceito mantém o espírito sob o domínio da mais profunda cegueira18 É nesse sentido que Walter Benjamin radicaliza na sétima Tese Sobre o Conceito de História a violência do logos ao afirmar que nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie19 Não parece à toa então que Giorgio Agamben baseiese nessas Teses para indo à raiz da sua questão assinalar o significado imediatamente biopolítico do estado de exceção como estrutura original em que o direito inclui em si o vivente por meio de sua própria suspensão20 ou seja o estado de exceção que não é uma prerrogativa da modernidade ou do estado moderno visto que está presente propriamente na lógica jurídica no fundamento mesmo desse pensamento como marca característica da alucinação racional do direito é a representação fática da violência do logos e da qual o logos é capaz Isso pode significar no mínimo que qualquer pretensão de evolução social e jurídica como desenvolvimento racional não pode fugir à metafísica genocida que representa pensamento ocidental moderno e as suas consequências hodiernas visto que a ideia mesma de evolução não pode furtarse à monumental alucinação de que o antes é sempre pior do que o depois 15 ELBERT Carlos Dir TESSIO Griselda BERROS Noemi coords Encuentro con las Penas Perdidas Santa Fe ed de la Universidad Nacional Del Litoral 1993 p72 16 ZAFFARONI Em Busca das Penas Perdidas p174 17 SARAMAGO José Ensaio Sobre a Cegueira SP Companhia das Letras 1995 p262 18 ADORNO Theodor W HORKHEIMER Max Dialética do Esclarecimento fragmentos filosóficos Trad Guido de Almeida RJ Jorge Zahar Ed 1985 p13 19 BENJAMIN Walter Teses Sobre o Conceito de História Em BENJAMIN Walter Obras Escolhidas volume 1 Magia e Técnica Arte e Política ensaios sobre literatura e história da cultura Trad Sérgio Rouanet 7ª Ed SP Brasiliense 1994 p225 20 AGAMBEN Giorgio Estado de Exceção Trad Iraci Poleti SP Boitempo 2004 p14 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 290 Parece que Agamben toca incisivamente nesse ponto não se trata de remeter o estado de exceção a seus limites temporal e especialmente definidos para reafirmar o primado de uma norma e de direitos que em última instância têm nele o próprio fundamento O retorno do estado de exceção efetivo em que vivemos ao estado de direito não é possível pois o que está em questão agora são os próprios conceitos de estado e de direito21 Esses dois grandes monumentos direito e estado assim como a própria história erguidos como celebração vitoriosa tal como a irônica expressão machadiana em Quincas Borba ao vencedor as batatas respeitam à catastrófica constatação benjaminiana segundo a qual todos os que até hoje venceram participaram do cortejo triunfal em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão22 Paradoxalmente o ofício de grande parte dos monumentos comuns é sem dúvida o de invocar uma lembrança ou chamar a atenção imprimindo aos sentimentos um rumo piedoso na crença de que eles são de alguma forma necessários e é nesse seu ofício principal que os monumentos vivem fracassando23 É inevitável que se apresentem solidificados fortes corretos na mesma medida em que não escapam à sua própria falácia afugentam precisamente aquilo que deveriam atrair Impossível dizer isto sim que nos passam despercebidos que nos escapam aos nossos sentidos é uma qualidade totalmente positiva que tende para o ato de violência24 Enquanto marca do progresso é sempre impossível dizer que os monumentos passam desapercebidos da mesma forma que seria kafkianamente risível esquecer que o precedente nesse caso já é agressivo25 que eles representam de qualquer maneira a empatia com o vencedor26 que o movimento de contar e articular a história significa não mais que a tentativa de apropriarse de uma imagem que relampeja para manter a metáfora benjaminiana cuja cadeia de acontecimentos não é outra coisa que uma catástrofe única Metáfora também utilizada por Machado de Assis em Memórias Póstumas de Brás Cubas quando narra o delírio que permitia a Brás Cubas contemplar a história do homem e da Terra e que dada a intensidade para descrevêla seria preciso fixar o relâmpago visto que a rapidez da marcha era tal que escapava a toda compreensão27 Diante desse delírio da origem como falar em estágios de desenvolvimento subjetivo individual ou estatal Como propor uma moral do discurso que não seja filha da sua 21 AGAMBEN Estado de Exceção p131 22 BENJAMIN Teses Sobre o Conceito de História p225 23 MUSIL Robert Monumentos Em MUSIL R O Melro e outros escritos de obra póstuma publicada em vida Trad Nicolino de Simone Neto SP Nova Alexandria 1996 p49 24 MUSIL Monumentos p49 25 MUSIL Monumentos p50 26 BENJAMIN Teses Sobre o Conceito de História p225 27 ASSIS Machado de Memórias Póstumas de Brás Cubas POA LPM 1997 pp28 e 29 Cito A história do homem e da Terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga enquanto o que eu ali via era a condensação vida de todos os tempos Para descrevêla seria preciso fixar um relâmpago Os séculos desfilavam num turbilhão e não obstante porque os olhos do delírio são outros eu via tudo o que passava diante de mim p28 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 291 mãe a própria violência Será que não soa nem um pouco alucinatório esse pensamento dialético que fundamenta todo o estagio o Estado e o Direito Será que não parece ser apenas um eterno passatempo para que as vozes emudecidas continuem caladas pelo venerado logos O que significa dividir a história da humanidade em estágios evolutivos senão edificar propriamente monumentos maiusculamente Históricos Como ainda dizer que isso não tem relação com as atrocidades cometidas pela negação das possibilidades outras que o pensamento Chega a ser risível chamar tudo isso de pensamento No mínimo tão risível quanto cogitar que a história seja mesmo a História contada e esfacelada Na quinta Tese Benjamin escreve que a verdadeira imagem do passado perpassa veloz O passado só se deixa fixar como imagem que relampeja irreversivelmente no momento em que é reconhecido Pois irrecuperável é cada imagem do presente que se dirige ao presente sem que esse presente se sinta visado por ela28 Musil no seu conto sobre os Monumentos parece dialogar com Benjamin se as pessoas não tivessem o espírito cego para os monumentos e fossem capazes de perceber o que ocorre ali no alto haveriam de sentir ao passar por eles o mesmo pavor que sentem ao passar pelos muros de um manicômio29 Ora parece que há uma inversão consubstanciada aqui nas palavras de Benjamin expressadas na segunda Tese não existem nas vozes que escutamos ecos das vozes que emudeceram30 Seria preciso ainda perguntar trabalhando com Agamben se a violência existe para além do desejo do direito de dominála A exceção não seria então como regra e violência puras filha do próprio logos esclarecidamente violento Os monumentos civilizatórios o direito o estado a história não são já eles mesmos fetiches violentos cuja construção emudece vozes que outrora ressoaram Não são como aqueles monumentos nos quais o general ou o príncipe apesar de montado sobre o cavalo e com a espada desembainhada já não provocam tremor à sua visão31 quando justamente ainda poderiam e deveriam provocálo 3 Logos o monumEnto BáRBARo Entre bárbaros e civilizados os monumentos pretendem sempre assinalar a reconciliação o momento em que o tempo é paralisado para que no lugar da multiplicidade se edifique o ponto estático da unidade o marco desde o qual a história é contada como história dos vencedores da lógica vencedora e autoveneradora Se é possível dizer que a violência assume propriamente a posição de uma categoria compreensivointerpretativa da realidade32 é porque toda a forma de pensamento ocidental está ancorada na pretensão de dominar a natureza e negar a diferença e o esclarecimento é a própria representação desse mito ou antes o 28 BENJAMIN Teses Sobre o Conceito de História p224 29 MUSIL Monumentos p51 30 BENJAMIN Teses Sobre o Conceito de História p223 31 Alusão expressa ao conto Monumentos de Musil 32 SOUZA Ricardo Timm de Três Teses Sobre a Violência Violência e Alteridade no Contexto Contemporâneo algumas considerações filosóficas Em SOUZA R T Em Torno à Diferença aventuras da alteridade na complexidade da cultura contemporânea RJ Lumen Juris 2007 p32 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 292 esclarecimento é o próprio mito Nas palavras de Adorno e Horkheimer o sistema visado pelo esclarecimento é a forma de conhecimento que lida melhor com os fatos e mais eficazmente apoia o sujeito na dominação da natureza Seu princípio é o da autoconservação33 para o qual é necessário que se aniquile quaisquer possibilidades críticas sugandoas por uma espécie de máquina letal kafkiana34 da dialética de forma que a maior das violências consiste em velar os vínculos profundos que qualquer ato violento tem com qualquer outro ato violento35 Ora só uma pretensão logicamente narcísica pode pretender se reconciliar com a natureza Nem a civilização tampouco a barbárie podem indicála pois fundadas naquilo que é justamente um dos contrários do que se lhe apresenta isto é a multiplicidade Quero dizer a negação do múltiplo em nome do colossal movimento de agregação é a forma alucinatória de funcionamento do esclarecimento que opera inconscientemente pela necessidade de negar realmente as diferenças esquematismo do entendimento puro Assim se chama o funcionamento inconsciente do mecanismo intelectual que já estrutura a percepção em correspondência com o entendimento36 A reconstrução da lógica pelo próprio logos seria algo muito diferente dessa correspondência de que falam Adorno e Horkheimer O pensamento vergonhoso de si mesmo continua acontecendo como se a sua autojubilação bastasse para reconstruir ele mesmo o pensamento Será que é à toa o questionamento sobre quem vendou a justiça37 Aliás por que será que em algum momento alguém vendou a justiça Usando Saramago mais uma vez porque será que os santos estão com uma venda nos olhos Porque será que a venda é branca Ora quem é o louco38 que vendou a justiça Será que ele mesmo não foi Justiçado após esse ato bárbaro Que belo monumento não representa a reconstrução da Justiça pelo pensamento genocida que a todo o momento trabalha na exceção da justiça para utilizar novamente Agamben Que belo monumento o Estado Democrático de Direito entoado como se modelo fosse de bondade beleza e justeza Talvez seja realmente uma pena que os monumentos não possuam suas formas próprias caricaturas Como a caricatura circense do pensamento elaborada por Franz Kafka no conto Na Galeria39 escrito no início do século dezenove Sugada pelo movimento agregador dos círculos que a amazona deve fazer ao redor do picadeiro diante de um público infatigável ela mesma se confunde com o circo que representa e do qual não pode fugir tampouco extrapolar porque venerados o circo e o seu diretor representam a própria legitimação e daqueles que riem sem notar violência assim com daquele que chora sem o saber em meio às fanfarras da orquestra sempre pronta a se ajustar às situações mais estranhas O monumento do pensamento como um circo fechase em 33 ADORNO HORKHEIMER Dialética do Esclarecimento p72 34 Alusão expressão à novela Na Colônia Penal de Franz Kafka e à máquina de tortura que ali é apresentada narrativamente como um mecanismo já esfacelado de compreensão do mundo 35 SOUZA Três Teses Sobre a Violência p32 36 ADORNO HORKHEIMER Dialética do Esclarecimento p72 37 MESSUTI Ana Desconstruyendo la Imagen de la Justicia In VÁRIOS AUTORES Escritos em Homenagem a Alberto Silva Franco SP RT 2003 38 MESSUTI Op Cit p111 39 KAFKA Franz Na Galeria Em KAFKA F Um Médico Rural pequenas narrativas Trad Modesto Carone SP Cia das Letras 1999 pp22 e23 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 293 sua própria mania representacional de maneira a legitimar eternamente suas próprias manifestações por mais bizarras que sejam O fetiche desse movimento já é ele mesmo a expressão das fanfarronices que legitima autolegitimação autoveneração autojubilação Circularidade do pensamento e da violência em que também se consubstanciam monumentos tais como estado direito e logos Então por que se erguem monumentos aos grandes homens se as coisas são como são40 é o que pergunta Musil ao final do seu conto Os sacros representantes do pensamento jurídicopenal diriam talvez que apesar de tudo são necessários são vitais de suma importância para a deusa Justiça Assim como eram os soberanos para seus súditos e assim como é a soberania para a ordem mundial ou para a paz perpétua utilizando a metáfora kantiana Já Agamben41 responderia talvez afirmando que assim como os monumentos jurídicos tratase apenas de uma máscara irresistível uma fantasia da real violência que miticamente se pretende exercer e controlar Razão identificante que é já o monumento do logos Do qual como boa filha da civilização moderna para usar a imagem de Adorno e Horkheimer a racionalização criminológica não pôde furtarse paralisando ao lado na barra da saia pelo temor da verdade42 Por que é mesmo que se erguem monumentos Zaffaroni argumentaria talvez que a ficção da realização da modernidade esquece o quadro real de genocídio que representa poder punitivo principalmente na realidade marginal da América Latina O poder punitivo é pelo menos hoje um produto da razão instrumental que se difunde e se amplia43 em outras palavras um monumento que se assemelha à guerra44 e que encobre com seu universal fulcro esclarecedor a real violência do seu exercício iluminado REfERênciAS ADORNO Theodor W HORKHEIMER Max Dialética do Esclarecimento fragmentos filosóficos Trad Guido de Almeida RJ Jorge Zahar Ed 1985 AGAMBEN Giorgio Estado de Exceção Trad Iraci Poleti SP Boitempo 2004 ASSIS Machado de Memórias Póstumas de Brás Cubas POA LPM 1997 BECKER Howard Métodos de Pesquisa em Ciências Sociais 3ª ed Trad Marco Estevão e Renato Aguiar SP Editora Hucitec 1997 BENJAMIN Walter Teses Sobre o Conceito de História Em BENJAMIN Walter Obras Escolhidas volume 1 Magia e Técnica Arte e Política ensaios sobre literatura e história da cultura Trad Sérgio Rouanet 7ª Ed SP Brasiliense 1994 CARVALHO Salo de A Ferida Narcísica do Direito Penal primeiras observações sobre as disfunções do controle penal na sociedade contemporânea In GAUER Ruth org A Qualidade do Tempo Para Além das Aparências Históricas RJ Lumen Juris 2004 40 MUSIL Monumentos p51 41 AGAMBEN Estado de Exceção Conferir cap6 42 ADORNO HORKHEIMER Dialética do Esclarecimento p13 43 ZAFFARONI BATTISTA Direito Penal Brasileiro p644 44 Interessante atentar à construção que Zaffaroni faz desde a leitura do jurista brasileiro Tobias Barreto acerca da aproximação entre poder punitivo e guerra Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 294 ELBERT Carlos Dir TESSIO Griselda BERROS Noemi coords Encuentro con las Penas Perdidas Santa Fe ed de la Universidad Nacional Del Litoral 1993 KAFKA Franz Na Galeria In KAFKA F Um Médico Rural pequenas narrativas Trad Modesto Carone SP Cia das Letras 1999 MESSUTI Ana Desconstryuendo la Imagen de la Justicia In SUANNES A et al Escritos em Homenagem a Alberto Silva Franco SP RT 2003 MORIN Edgar A Cabeça BemFeita repensar a reforma reformar o pensamento Trad Eloá Jacobina RJ Bertrand Brasil 2000 Introdução ao Pensamento Complexo Trad Eliane Lisboa Porto Alegre Sulina 2005 MUSIL Robert Monumentos In MUSIL R O Melro e outros escritos de obra póstuma publicada em vida Trad Nicolino de Simone Neto SP Nova Alexandria 1996 p49 PORTUGAL Carta da Transdisciplinaridade Adotada no I Congresso Mundial da Transdisciplinaridade Convento de Arrábida Portugal 2 a 6 de novembro de 1994 SARAMAGO José Ensaio sobre a Cegueira SP Companhia das Letras 1995 SOUZA Ricardo Timm de Ainda além do Medo filosofia e antropologia do preconceito POA Dacasa 2002 SOUZA Ricardo Timm de Três Teses Sobre a Violência Violência e Alteridade no Contexto Contemporâneo algumas considerações filosóficas In SOUZA R T Em Torno à Diferença aventuras da alteridade na complexidade da cultura contemporânea RJ Lumen Juris 2007 ZAFFARONI Eugenio Raúl Em Busca das Penas Perdidas a perda da legitimidade do sistema penal Trad Vânia Pedrosa e Almir Conceição RJ Revan 1991 Hacia un Realismo Jurídico Penal Marginal Caracas Monte Ávila Latinoamericana Editores 1993 ZAFFARONI Eugenio Raúl et al Direito Penal Brasileiro RJ Revan 2ed 2003 Direito e Democracia v10 n2 p295310 juldez 2009 Canoas Discurso poder e ética na decisão penal1 Gabriel Antinolfi Divan RESumo O presente artigo aborda a necessidade constitucional de controle das manifestações jurisdicionais decisórias na esfera penal no que diz respeito ao linguajar por elas adotado Há uma inegável confluência de fatores sobretudo simbólicos que fazem com que uma decisão penal possua um caráter constitutivo influente perturbador e mesmo criador no que diz para com a subjetividade do réu jurisdicionado Assim o trato ético deve prevalecer no discurso adotado inclusive contando com previsão legal a ser criada nesse sentido para que não seja infligida ao acusado uma pena que ultrapasse os ditames legais através de uma manifestação judicial atécnica vulgarmente passional e exageradamente estigmatizante Palavraschave Decisão penal Discurso judicial Ética Reforma processual Discourse power and ethics on criminal judgments ABStRAct The current paper approaches the constitutional necessity of control the language used in judicial resolutions on criminal sphere There are a lot of grounds mostly symbolic which give a constitutive an influential a disturbing and even a creation character to criminal judgments when we are thinking about defendant subjectivity Considering that this paper defends a legal foresights reaction to guarantee an ethical treatment in this judicial discourse This idea intents to avoid a punishment based on a nontechnical passionate and stigmatizing judicial resolution Keywords Criminal sentencing Judgment discourse Ethics Criminal procedures reform Um homem dos vinhedos falou em agonia ao ouvido de Marcela Antes de morrer reveloulhe seu segredo A uva sussurrou é feita de vinho Marcela PérezSilva me contou isso e eu pensei se a uva é feita de vinho talvez nós sejamos as palavras que contam o que somos Eduardo Galeano A uva e o vinho2 Gabriel Antinolfi Divan é professor de Processo Penal e Criminologia da Universidade de Passo Fundo RS Mestre em Ciências Criminais e Especialista em Ciências Penais pela PUCRS Advogado Email gabrimailyahoocom 1 O presente artigo é uma atualização e ampliação do paper Decisão Penal discurso e ética sobre poderes e responsabilidades publicado originalmente em Justiça do Direito Universidade de Passo Fundo v21 p122138 2009 e é fruto de pesquisas e mesas de discussão promovidas pelo Instituto de Criminologia e Alteridade ICA httpwwwcriminologiaealteridadecom e de intenso debate com os membros do Grupo de Estudos e Pesquisas Criminais GEPEC httpwwwportalgepecorgbr do Estado de Goiás 2 In O Livro dos Abraços Trad Eric Nepumoceno Porto Alegre LPM Editores 2002 9ed p16 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 296 1 A DEciSão juDiciAl PEnAl sobrEtudo como luGAR DA tEnSão O exercício da jurisdição penal se apresenta sempre imantado de um caráter procedimental particularmente tenso e de um envolvimento subjetivo incomparável dentre o âmbito das práticas judiciárias Aqui falamos tanto do desespero presumível que pode acometer o acusado submetido ao jugo estatal quanto daquele traiçoeiro que pode capturar o próprio julgador3 É o que pode vir a fazer com que o rigor técnico e a suposta vocação para a proporcionalidade decisória se transformem mais do que em outras áreas e momentos de exercício de jurisdição subrepticiamente em mero apelo caótico do cidadão comum que ali veste a toga e que lhe fala ao ouvido sob as vestes inconscientes ideológicas passionais ou sob o baixo espectro de um senso comum que inesperadamente ganha eco no momento da decisão4 Do mesmo modo ao estudarmos de maneira mais aprofundada a manifestação jurisdicional decisória no âmbito penal não é preciso muito para perceber que o objeto em questão o conteúdo decisório e suas consequências puramente técnicoprocessuais dispostas sistematicamente em nosso corpo legislativo convive lado a lado com elementos agregados plenamente alheios à lógica jurídica que vão sempre acoplados a qualquer prática estatal em que estejam em jogo ordem controle restrição em vários níveis e principalmente necessidade de sujeição a um comando A princípio é impossível conceber a existência de um mecanismo essencialmente dogmático que cuide de prever conter ou disciplinar à totalidade os dramas inerentes ao exercício da manifestação jurisdicional por excelência além da carga de desgaste e potencial sofrimento latente que se choca com todos envolvidos mesmo que receptores mediatos da declaração prolatada Sumamente quanto ao efeito primordial de uma decisão condenatória que conduz o receptor este imediato réu à capitulação de seus direitos eou à perda temporária do maior deles a liberdade Com ela embora sem previsão expressa legal e quem opera nos meios forenses e conhece a realidade prisional hodierna sabe muito bem resta na prática igualmente confiscada uma série extensa de direitos e bens juridicamente em tese tutelados pelo Estado que vão desde a honra em um sentido amplo até as efetivas possibilidades de reinserção social e mesmo a integridade sexual do apenado em muitos casos Concebemos pois a manifestação jurisdicional decisória em matéria penal como um terreno inóspito dados entre outras coisas a a insegurança generalizada 3 Como em outra oportunidade pudemos estudar DIVAN Gabriel Antinolfi Decisão Judicial nos Crimes Sexuais O julgador e o réu interior Porto Alegre Livraria do Advogado 2009 especialmente o Capítulo III 4 A análise do problema do senso comum da experiência e da ciência no raciocínio do juiz pode partir de uma proposição ao mesmo tempo surpreendente e banal a saber a de eu em grande parte o raciocínio do juiz não é regido por normas nem determinado por critérios ou fatores de caráter jurídico TARUFFO Michele Senso comum Experiência e Ciência no raciocínio do juiz Trad Cândido Rangel Dinamarco Curitiba IBEJ 2001 p7 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 297 intrínseca à mesma que assola quaisquer potenciais envolvidos com o caso penal em debate sobretudo e de maneira visceral o próprio julgador e b a suposição para nós evidência de que ela representa muito mais do que um mero comando que põe fim a um conflito jurisdicionalizado e penalmente relevante carregando sempre consigo uma carga elementar de efeitos nãolegalmente prescritos tão nefastos quanto o mais insalubre dos cárceres 2 DuAS REAliDADES A existência de uma eficácia corpórea e bastante táctil dos preceitos e determinações da decisão penal seus efeitos na esfera eminentemente jurídica e administrativa de fatores envolvidos possibilidade de exercício punitivotutelar pelo Estado ou determinações sobre o status libertatis de um modo geral do acusado fundamentalmente caminha junto a um feixe de poderio puramente imagético e sua força simbólica adjacente principalmente representada pelo sentido prescritivo de personalidade e de modus vivendi adequados que as normas penais adquirem quando prolatadas pelo julgador Geralmente as abordagens do tema aqui sugerido são carentes de algum real efeito prático uma vez que terminam ou perdidas entre elucubrações que se caracterizam ou por estarem localizadas exclusivamente no campo da crítica e do pleito eterno de opções de lege ferenda ou por um falso pragmatismo que não passa de uma análise pobre e epidermicamente dogmática do problema contribuindo para o nocivo apartheid entre um pensamento doutrinário de cunho crítico e a praxe do cotidiano dos tribunais O que propomos nesse instante é um exercício reflexivo sobre a faceta mundana da manifestação jurisdicional decisória sem dividir os efeitos eminentemente jurídicos pertencentes à esfera sistemática da ordem jurídica de uma decisão penal daqueles identificados pelo estudo crítico como resíduo simbólico metajurídico geralmente estigmatizantes da mesma pensamos que o núcleo da questão se não habita inteiramente em muito pertence ao discurso que corporifica a manifestação do Magistrado sendo daí a fonte de onde pode brotar um princípio de amortização para o quadro Afinal se é fato lamentável que a consciência diuturna de um senso comum teórico dos juristas5 é deficitária quanto à necessidade de um policiamento tal um despir constante da veste teatralmitológica da prática judiciária para enxergar os conflitos de carne e osso que ali estão submetidos e fundamentalmente as figuras humanas por traz dos atores de falas demarcadas em todas suas dimensões6 também é fato que a 5 WARAT Luis Alberto Introdução Geral ao Direito II A epistemologia jurídica da Modernidade Porto Alegre Sérgio Fabris 1995Reimpressão 2002 pp 9899 6 Come ogni rito il processo appartiene a una sfera artificiale separata dal flusso microstorico quotidiano Max Weber discrive queste discontinuitá com laggetivo ausseralltäglich anzi la genera gli spettatori se ne accorgono avengono cosi fuori dal solito mondo Ma è illusione scenica parti giudice testimoni sono persone di carne ed Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 298 própria existência da função jurisdicional por si retroalimenta de maneira inescapável a força do símbolo Críticos militantes e combativos de algumas chagas evidentes da dinâmica punitiva estatal ou não não podemos deixar de admitir o fato de que as normas penais existem de que sua aplicação realmente ocorre ainda que na base de incidência sobre micropartículas sociais desprezada para o contexto exclusivo desse artigo uma explicação mais detalhada acerca dos fenômenos de seletividade denunciados especialmente pela crítica criminológica7 Não podemos também deixar de admitir que o processo de forma particularizada é real e tem alguma eficácia não se discutindo nessa sintaxe ventilada se o termo eficácia vai conjecturado dentro dos propósitos constitucionais que lhe dão guarida ou não E mais que sua voz gutural ecoa em uma decisão que escorada na carga cogente dos mandamentos estatais do Estado se faz escutar por um ato que muda o mundo no instante em que diz o direito Se algo precisa ser modificado a realidade que a nós é oferecida no cotidiano é o mais evidente ponto de partida e meio onde podemos fazer contato e operar faticamente Acompanhamos na esteira de Duclerc o pensamento de que a mera desconstrução da lógica da prestação jurisdicionalpenal estatal através da denúncia de suas misérias contorna de modo fictício o problema paulatinamente subvertido ou não pela crítica científica pela superveniência de novas lógicas legislativas e pelo próprio tempo que a tudo corrói o modelo penal de resolução de conflitos delitivos do qual dispomos segue vigente e é preciso não apenas ideias sobre como virálo do avesso mas principalmente estratégias de convivência com o mesmo8 3 PoDER E DiScuRSo Nossa proposta pensa um modelo de reforma emergencial de alguns pontos nevrálgicos na estrutura processual penal a partir de uma revigoração da esfera de atuação daquele que dentre todos os operadores jurídicos é ao nosso ver o personagem que repousa sobre o elo mais crítico de toda a cadeia o julgador Mais ainda o seu discurso ossa legate al tessuto profano locale carichi delle rispettive storie private le toghe equivalenti a maschere non aboliscono lo spaziotempo profani CORDERO Franco Procedura Penale Milano Giufré 2000 5ed p152 7 Na literatura criminológica sulamericana especialmente ninguém discorre com mais autoridade sobre a temática do que ZAFFARONI Eugenio Raul para onde remetemos o leitor In Criminología Aproximación desde un margen Bogotá Editorial Temis 2003 Tercera reimpressión e de forma mais incisiva Em busca das penas perdidas a perda de legitimidade do sistema penal Trad Vania Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição Rio de Janeiro Revan 1991 8 De pouco serve todavia simplesmente desconstruir a teoria da jurisdição denunciando fragilidades pelo menos até que se modifique a atual configuração das relações de hegemonia nas sociedades ocidentais capitalistas e possa surgir assim algum modelo realmente democrático de solução de conflitos penais DUCLERC Elmir Direito Processual Penal Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 p194 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 299 Afinal como frisa pragmaticamente a incontornável obra carneluttiana O juízo do juiz não o das partes facit ius o que quer dizer vincula ou seja determina através do mecanismo de direito a conduta alheia Depois que o acusador conclui que o imputado é culpado e o defensor que ele é inocente o mundo segue como antes mas quando pelo contrário uma ou outra coisa é o juiz quem diz o mundo muda porque entre outras coisas o imputado se era livre é capturado ou viceversa se estava detido é posto em liberdade9 Tomamos como ponto de partida a hipótese de que há um princípio de mescla quase inevitável ocorrida no terreno do imaginário de quem exerce a função jurisdicional Ela atenta para uma assustadora na mesma medida em que natural confusão entre a esfera de atuação eminentemente jurídica e um catalisador típico do exercício de um local de fala poderoso e como tal repleto de armadilhas Uma verdadeira possessão pelo exercício funcional não raro distorce a concepção que o próprio julgador tem de seu papel e mesmo a consciência leve quanto à distorção por vezes vai suplantada por uma acomodação conformada10 A suposição acima lançada ganha contornos explosivos quando ainda em sede de hipótese vai unida à aliança incorruptível representada pelo binômio saberpoder Tal como fora investigado por Foucault o binômio e seus meandros discursivos em torno das verdades possui um fecundo lastro de implicação no estudo jurídico na medida em que é molde no qual muito perfeitamente se encaixa a prática jurisdicional decisória Afinal desde a capitulação fática típica operada em contornos rebuscados pela atividade das polícias repressiva e judiciária passando pelo corpo da denúncia ou da manifestação acusatória legada pelo ofendido até o dispositivo decisório exarado por Magistrado o âmbito processualpenal do Estado lida com classificações Isto é com definições que bailam entre a disposição fria da terminologia legal e os elementos escolhidos para representar um dado caso fazendo com que haja adequação entre discursoopção enquadramento legal ou não e conduta do acusado Não se pode ignorar solenemente a tese de que quando se trata de interpretação textual e de possível aferição para classificar uma conduta como incursa em ou em outro ou em nenhum tipo legal nunca há pura definição em primeira mão mas sempre redefinição dos caracteres 9 CARNELUTTI Francesco Lições sobre o Processo Penal Volume 4 Trad Francisco José Galvão Bruno Campinas Bookseller 2004 p66 10 Na relação com a comunidade o juiz representa no inconsciente das pessoas a figura do pai Evidente que o juiz enquanto regra aceitaassume esta figura Ele é aquele que pune repreende autoriza o casamento determina a separação conjugal distribui os bens A comunidade quando não consegue resolver seus problemas busca socorro na figura do paijulgador A relação familiar é tão forte que há até controle da sexualidade do juiz pela própria sociedade além é óbvio de controles menores na maneira de vestir de se portar em relação aos seus amigos É algo forte presente marcante CARVALHO Amilton Bueno de O Juiz e a Jurisprudência um desabafo crítico In Garantias Constitucionais e Processo Penal BONATO Gilson Org Rio de Janeiro Lumen Juris 2002 p9 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 300 A escolha de um ou outro viés classificatório de uma ou outra ênfase de um grupo de características dadas ou outro pode alterar toda a definição de um termo que ao cabo daquele caso será decantada e assim implica em um leque de opções que no contexto jurídicopenal escancara perigosamente as portas para uma espécie aberta de conceito e para uma fuga frente à taxatividade equivocadamente presumida dos termos legais11 Não se pode olvidar da responsabilidade tremenda que repousa sobre o prolator da decisão jurídicopenal por entre outras tantas coisas o escândalo semântico costumeiramente imperceptível onde por vezes penetra a falha nãoidentificável e mais difícil de ser combatida um argumento decisório que não é nem de mérito nem da superfície dos conceitos postos à mesa mas sim das profundezas da classificação que implica nas redefinições colocadas Nada mais pertinente no momento que a opinião de Taruffo para quem O verdadeiro problema portanto não é o de demonstrar ou negar que o juiz vá além do direito Que isso acontece é óbvio e além do mais o direito não pode ser concebido como algo autônomo e destacado da realidade social e da cultura em cujo seio o juiz atua Na realidade o verdadeiro problema consiste em compreender o que acontece quando o raciocínio do juiz vai além dos confins daquilo que convencionalmente se entende por direito e em individualizar as garantias de racionalidade e razoabilidade de confiabilidade de aceitabilidade e de controlabilidade dos numerosos aspectos da decisão judiciária que verdadeiramente não são nem direta nem indiretamente controlados ou determinados pelo direito12 Afinal se nos dizeres de Foucault As práticas discursivas não são puramente modos de fabricação de discursos Ganham corpo em conjuntos técnicos em instituições em esquemas de comportamento em tipos de transmissão e de difusão em formas pedagógicas que ao mesmo tempo as impõem e as mantêm13 11 Mas o caráter impreciso das expressões legais nem sempre é manifesto Muitas vezes seus destinatários não percebem as mudanças de sentido propostas pelo emissor Deste modo os defeitos endêmicos das palavras da lei cumprem importante função retórica em relação às práticas tribunalícias Constituem algumas linhas argumentativas utilizadas pelos juízes para alterar os critérios decisórios predominantes sob a aparência de estarem aplicando conteúdos fixados pelo legislador Generalizando é possível afirmar ao se estabelecer que A e não B é característica definitória de um termo contido na norma estáse alterando as consequências jurídicas da mesma Noutra perspectiva constatase que nas definições jurídicas toda característica definitória é também uma característica decisória isto é forma parte da decisão WARAT Luis Alberto Introdução Geral ao Direito I Interpretação da Lei Temas para uma reformulação Porto Alegre Sergio Antonio Fabris Editor 1994 pp3839 12 TARUFFO op cit p8 13 FOUCAULT Michel A vontade de saber In Resumo dos Cursos do Collège de France 19701982 Trad Andrea Daher Rio de Janeiro Jorge Zahar 1997 p12 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 301 maior ainda o cuidado fiscalizador que temos de ter em relação ao discurso exercido em meio à atividade jurisdicional decisória A palavra do julgador não precisa fazer esforço algum para se manter por si só uma vez que o exercício da jurisdicionalidade é conditio sine qua non constitucional no Estado de Direito sob a égide do qual vivemos E se sua função precípua é justamente se impor eis que age substitutivamente sobre a vontade dos jurisdicionados a inevitabilidade de seu poder deve ser filtrada de forma razoável justa democrática tributária da principiologia que serve de pilar à vida social sobretudo quanto ao respeito inegociável à dignidade da pessoa humana e principalmente ética 4 PoDER E RESPonSABiliDADE Há que se controlar o bom uso da espada que divide o mundo em antes e depois empunhada por esse julgador mitologicamente apreendido que Carnelutti no entanto tratou de demonstrar que é bem real Como frisou o maestro italiano a opinião do julgador não só faz aderir como gera o direito e assim dá maior vazão ao que FOUCAULT aqui também citado diria sobre a produção da realidade por uma discursividade que jamais é meramente descritiva Seria alienado e tolo de modo alarmista dizer que toda a violência que toma cor em meio ao texto de uma decisão judicial é inteiramente produzida no ventre de seu próprio discurso e que a mesma quando vem à luz nunca é reflexo da realidade já posta A decisão não pinta os fatos integralmente mas sim os colore Os fatos postos à pauta da decisão judicial ou aqueles que longinquamente inspiraram os fatos postos em regra ocorreram e são portadores de algumas peculiaridades que o discurso não vai criar simplesmente nem vai vergar ou alterar Seria porém exageradamente otimista qualquer diagnóstico que não considere digna de valor a propositura de que o discurso jurídicopenal manifestado na decisão judicial em alguns casos implementa suplementa e complementa a realidade dada e constitui sobre o sujeitoacusado uma nova realidade que vai operar posteriormente à chancela do trânsito em julgado do decisum A sabedoria da corrente sociológica do interacionismo simbólico14 e os estudos foucaultianos sobre constituição de uma própria essência do sujeito a partir dos aparelhos e mecanismos de poder sobre ele atuantes nascentes nas quais toda a vertente crítica da Criminologia pósAnos 60 bebeu teve como principal mérito justamente esse o de demonstrar que a questão do Direito Penal do Processo Penal em última análise deve necessariamente levar em consideração a quota de realidade que é produzida em meio ao discurso oficial e a ela deve exclusivamente ser creditada O discurso principalmente o discurso jurisdicionaldecisório pois é dispositivo 14 Teóricos como Goffman estavam profundamente atentos ao modo como o eu é apresentado em diferentes situações sociais e como os conflitos entre estes diferentes papéis sociais são negociados Em um nível mais macrossociológico Parsons estudou o ajuste ou complementaridade entre o eu e o sistema social HALL Stuart A Identidade cultural na pósmodernidade Trad Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro Rio de Janeiro DPA 2001 p35 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 302 que possui eficácia nas relações de poder verificadas e em sua relação com a verdade modificaa e a produz podendo ao mesmo tempo ocultála15 O momento relacional em que se verifica o poder oriundo do discurso e sua atuação tem o condão de em determinados níveis e em determinados casos constituir um grau tão espesso de realidade que torna pouco importante a realidade primeira dos fatos anterior ao seu agir Exemplo mais típico o poder discursivo que emerge com a decisão judicial dentro do universo que gravita na órbita do Estado Democrático de Direito a decisão judicial penal muda de fato a realidade jurídica do indivíduo e com ela geralmente de forma drástica a situação de seus direitos pouco importando ao final se a nova realidade constituída tem legitimidade de ser ou não ao final da ciranda processual quantos culpados não se livram soltos e mais grave quantos inocentes não amargam punição injusta nos nossos cárceres Na verdade os fatos objetivos não são um reles mito bobo fruto de uma imaginação inteiramente falsaria Admitir isso como premissa é ser engolfado por engodos metodológicos new age sem caráter nenhum de confiabilidade Porém o pior dos cegos é o que não quer enxergar e de nada adianta trabalharmos única e exclusivamente com elementos exclusivos de apreensão fática como se eles fossem sempre pétreos e como se a verdade fosse um mero dado à disposição Como já sabemos há muito a verdade real é epistemologicamente inapreensível em sua totalidade e qualquer tentativa humana recognitiva de qualquer coisa vem sempre em golfadas mnemônicas batizadas com um ou vários quês de tempero emotivo imaginativo afetivo e ideológico ainda que imperceptível que o diga Damásio e seu famoso trabalho16 Por isso somos obrigados a aceitar entre outras coisas que a verdade ou uma verdade nunca vai nos aparecer nua e integral Devemos partir para o raciocínio e a ponderação sobre os elementos que vão sempre atuar para delineála ou mesmo distorcêla completamente em alguns casos patológicos Assumimos pois que não existe verdade pelo menos não verdade com força de implemento fora do poder saberdiscurso que a constitui e lhe apara arestas Não existe verdade enquanto valor maior ou místico A verdade é construída e não atingida É por vezes imposta e não descoberta ou revelada O discurso técnicocientífico jurídico principalmente e seus limites e possibilidades é peça de altíssima tensão na medida em que é não raro o artesão modelador da própria ou de alguma verdade 15 TESHAINER Marcus Psicanálise e Biopolítica Contribuição para a ética e a política em Michel Foucault Porto Alegre Zouk 2006 p47 16 Os níveis mais baixos do edifício neurológico da razão são os mesmos que regulam o processamento das emoções e dos sentimentos e ainda as funções do corpo necessárias para a sobrevivência do organismo Por sua vez esses níveis mais baixos mantêm relações diretas e mútuas com praticamente todos os órgãos do corpo colocandoo assim diretamente na cadeia de operações que dá origem aos desempenhos de mais alto nível da razão da tomada de decisão e por extensão do comportamento social e da capacidade criadora Todos esses aspectos emoção sentimento e regulação biológica desempenham um papel na razão humana As ordens de nível inferior do nosso organismo fazem parte do mesmo circuito que assegura o nível superior da razão DAMÁSIO António R O Erro de Descartes Emoção razão e o cérebro humano Trad Dora Vicente e Georgina Segurado São Paulo Companhia das Letras 1996 p13 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 303 O importante creio é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder não é não obstante um mito de que seria necessário esclarecer a história e as funções a recompensa dos espíritos livres o filho das longas solidões o privilégio daqueles que souberam se libertar A verdade é deste mundo ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder Cada sociedade tem o seu regime de verdade sua política geral de verdade isto é os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros17 Por isso nossa preocupação no mister reside basicamente em exemplos de manifestações judiciais manifestações jurisdicionais decisórias em todas instâncias que parecem não atentar para o índice de construção da realidade da discursividade que uma manifestação como a decisão penal possui Nossa preocupação é mais especificamente com a por vezes irrestrita ausência de maiores filtros éticos verificada em certos textos decisórios na seara criminal onde comumente se identifica um ao nosso ver preocupante fenômeno de transmutação do julgador de agente estribado no ofício constitucional de prover o Estado da chancela jurisdicional e de ser garante da aplicação da Lei Maior em todas suas dimensões18 passa a ser o justiceiro19 um vingativo imponderado representante de anseios midiáticos e pautado por uma agenda de suprir o gosto de sangue que o amedrontado corpo social por vezes deixa à mostra Isso constitui tudo o que não se espera em se tratando de um operador jurídico estatal supostamente empenhado em ser fiador de uma prestação jurisdicional que sirva para gerir os conflitos sociais de forma racional e organizada sistemática e justa na promoção irrefreável do bem comum caracterespadrão de um conceito doutrinário de Jurisdição que de fato no Brasil tem soado como pilhéria20 Nos dizeres de Lopes Jr esse modelo falho de julgador acima descrito representa para o due process e para tudo o que esse princípio ostenta em termos democráticos um perigo tão assombroso quanto o das ditas atrocidades cometidas pelos réus submetidos ao seu julgamento esse Magistrado é aquele que incorpora o discurso de fiscal sanitarista da sociedade sem freios ou limitações e municiado pela violência autorizada que seu lugar de fala ostenta crê em si mesmo enquanto 17 FOUCAULT Michel Verdade e Poder In Microfísica do Poder Trad Roberto Machado Rio de Janeiro Graal 2004 20ed p12 18 Sobre a função de defesa ostensiva dos preceitos constitucionais exercida pelo Magistrado inclusive por um juízo de controle difuso descriminalizador manifestado na própria decisão indispensável conferir CARVALHO Salo de A sentença criminal como instrumento de descriminalização o comprometimento ético do operador do direito na efetivação da Constituição In Revista da Ajuris Ano XXXIII n102 Porto Alegre AJURIS jun 2006 pp327348 19 MORAIS DA ROSA Alexandre O Processo Penal como Procedimento em Contraditório Diálogo com Elio Fazzalari In Novos Estudos Jurídicos V11 n2 Itajaí Univali Editora 2006 p223 20 DUCLERC op cit p193 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 304 uma espécie de salvador da pátria solapando a necessidade de um devido processo e todas as exigências a ele atinentes e acreditando piamente que à sua discursividade não se pode opor barreiras21 5 A EfEtiVAção DA rEsponsabiLidadE PRoPoStAS De nada servem ao Estado Democrático Constitucional de Direito decisões em matéria penal que fujam ao tecnicismo necessário e à ponderação proporcional recomendável e passem a tecer elucubrações fantásticas que demonstram que a visão que o Magistrado por vezes tem de si mesmo e de sua função é absolutamente perturbada e perturbadora Desde decisões que tecem profundas considerações moralistas inteiramente descabidas frente à questão posta invertendo diametralmente o enfrentamento necessário da questão passando a punir a vítima de abuso sexual dado seu desavergonhamento como se a suposta promiscuidade fosse autorização tácita para a pessoa sofrer quaisquer tipo de violência erótica sem poder reclamar como no memorável Acórdão do bacanal22 passando por julgados que fixam e confirmam estereótipos baixos aceitando passivamente probabilidades mesmo as altas como se fossem regras gerais vinculantes23 e como se jamais pudesse haver dignidade em meios sociais pouco saudáveis configurandose a exceção à regra tal uma surpresa digna de figurar em um zoológico vemos uma série de inobservâncias de alguns cuidados no trato das palavras que consideramos importantes demais para passarem sem o devido prestígio Sem falar nas típicas decisões judiciais que espelham e deixam emergir um não só um apaixonado sentimento de vingança como um perigoso e desaconselhado exercício de futurologia a mescla perfeita para não simplesmente condenar como 21 Esse juiz representa uma das maiores ameaças ao processo penal e à própria administração da justiça pois é presa fácil dos juízos apriorísticos de inverossimilitude das teses defensivas é adepto da banalização das prisões cautelares da eficiência antigarantista do processo penal dos poderes investigatóriosinstrutórios do juiz do atropelo de direitos e garantias fundamentais especialmente daquela tal presunção de inocência da relativização das nulidades pro societate é adorador do rótulo crime hediondo pois a partir dele pode tomar as mais duras decisões sem qualquer esforço discursivo ou mesmo fundamentação introjeta com facilidade os discursos de combate ao crime como paleopositivista acredita no dogma da completude do sistema jurídico não sentindo o menor constrangimento em dizer que algo é injusto mas é a lei e como tal não lhe cabe questionar sentese à vontade no manejo dos conceitos vagos imprecisos e indeterminados do estilo prisão para garantia da ordem pública homem médio crimes de perigo abstrato etc pois lhe permitem ampla manipulação etc LOPES JR Aury Introdução Crítica ao Processo Penal Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional Rio de Janeiro Lumen Juris 2006 pp 8182 22 BRASIL Tribunal de Justiça do Estado de Goiás Acórdão em Apelação Criminal N 252202213 200400100163 Relator Des Paulo Teles Goiânia 29 de Junho de 2004 23 A presunção de violência como é aceita hoje não é tida como absoluta pois cede diante de prova de que a vítima no caso concreto e não em considerações genéricas levava vida dissoluta desregrada era ela corrompida e afeita aos prazeres do sexo ou seja já experiente Mas não é esta a realidade dos autos Nada foi provado neste sentido em desfavor da menor Diane É bem verdade que o conjunto probante revela que a menina Diane estava inserida num meio social pouco saudável para fins de formação de sua personalidade já que sua mãe Leila trabalhava como prostituta em casa noturna BRASIL Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul Acórdão em Apelação Criminal N 70009840273 Relatora Desa Lúcia de Fátima Cerveira Porto Alegre 29 nov 2006 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 305 também divagar sobre possíveis sequelas irreparáveis que por ventura marcarão a fogo a esfera sentimental da vítima24 Quando um Magistrado afirma categoricamente que é certo que o crime provocará traumatismo eterno e incurável à alma da vítima e que o acusado é um monstro deveria ter a exata noção de que mais do que artifício retórico condoreiro seu discurso adorna a realidade quando não chega às raias de produzir realidade No momento em que decide um caso penal um Magistrado responde ao réu jurisdicionalizado à vítima do crime e a todo corpo social de certa forma e é para isso e não por outro motivo que a Publicidade dos atos jurisdicionais vai erigida enquanto norma constitucional basilar Constituição Federal Artigo 93 IX A decisão judicial é uma resposta não qualquer resposta mas a resposta oficial e necessariamente qualificada que o Estado fornece ao caso jurisdicionalizado pelo processo optando por uma solução jurídica em detrimento de outras possíveis na gestão do conflito posto25 Assim tendose o discurso tipicamente enquanto auxiliar na produção da realidade não se pode excluir uma certa parcela de responsabilidade do julgador se a profecia se confirmar ao se reportar à sociedade e aos envolvidos em especial o discurso oficial para ficar com o exemplo já ilustrado termina em certa escala por estabelecer que a vítima deverá ficar traumatizada de forma jamais superável e que o condenado é uma espécie de demônio contemporâneo e assim deve ser visto por todos sumamente por si mesmo quando se confrontar com o espelho Goffman já nos ensinou que a subjetividade do sujeito se constitui em grande parte somando ao que ele genuinamente é ou pensa ser aquilo que a esfera de relação social com os outros o faz crer que é eou o estimula a ser26 Nenhum outro no contexto presente é mais poderoso na impostura de subjetividades do que o Estado enquanto decisor criminal pela figura do Magistrado Falando mais uma vez em termos criminológicos sabemos assim que há um enorme contingente de pessoas cuja origem criminosa já se perdeu entre o ser ou ter sido criminoso efetivamente e o ser etiquetado como tal pelo sistema27 É por essa razão que um dos pilares da função jurisdicionalconstitucional deve ser o trato ético na condução da própria jurisdição Estamos cientes de que a lógica jurídica não pode abarcar um tamanho grau de variáveis a ponto de se desestruturar enquanto meio organizado de controle e mecanismo binário escolhido para a gestão dos conflitos penais Algo sempre ficará para trás e a 24 Certo é que o evento monstruoso brutal e desumano reservará indefinidamente péssimas incômodas e traumáticas lembranças àquela então menor de 14 anos BRASIL Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais Acórdão em Apelação Criminal N 100240160418240011 Relator Des Armando Freire Belo Horizonte 31 e mar 2005 25 Neste quadro a decisão é um procedimento cujo momento culminante é um ato de resposta Com ela podemos pretender uma satisfação imediata para o conflito no sentido de que propostas incompatíveis são acomodadas ou superadas FERRAZ JR Tércio Sampaio A Ciência do Direito São Paulo Atlas 1980 2ed p89 26 GOFFMAN Erving A representação do Eu na Vida Cotidiana Trad Maria Célia Santos Raposo Petrópolis Vozes 1999 8ed especialmente p 230 e seguintes 27 ZAFFARONI Em busca das penas perdidas pp123147 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 306 opção por tutelar os conflitos exclusivamente com base em um número específico de regramentos e ditames procedimentaislegais a organização jurídica cogente típica jamais se vai deixar penetrar em nossa opinião por uma avalanche filosófica de possibilidades de escuta eis que a própria existência da ordem jurídica prevê que em um dado momento uma versão mais verdadeira prevaleça e a partir dela e tão somente se pensem os efeitos e consequências aceitáveis dentro do sistema A inteligibilidade do sistema jurisdicional é outra e não há lugar dentro dela por hora para uma apreensão ética integral das dimensões da alteridade28 Isso contudo não significa que não seja imperativa nossa necessidade de trabalhar ou tentar trabalhar a ética nos limites esgarçados de sua possibilidade de implementação dentro do processo e de considerar que a tarefa da decisão judicial máxime na esfera penal precisa ser encarada como um momento de relação humana que implica em um ato de responsabilidade radical da pessoa do julgador para com o a pessoa do julgado29 Assim os requisitos de uma decisão penal precisam ser imantados por essa consciência uma decisão justa não excessivamente benevolente nem despudoradamente draconiana começa pelo tratamento devido a ser dado aos a ela submetidos pessoas Pessoas humanas No afã de não precisar de rédeas na manifestação vingativa a condição de pessoa parece sempre ser a primeira a cair e o acusado vai reclassificado e reetiquetado como qualquer outra coisa diversa da categoria dos homens normalmente assentidos como tais30 A jurisprudência de nossas Cortes Superiores já vem há muito registrando um número elogiável de decisões que pugnam pela nulidade processual reconhecida no simples excesso de linguagem em certos momentos de manifestação do Julgador sentença de pronúncia por exemplo onde a verborragia se mostra descabida evidenciadas as decisões paradigmáticas proferidas pelo STF HC 68606DF Min Celso de Mello HC 72113RJ Min Francisco Rezek e HC 79489PE Min Nelson Jobim bem como recentes entendimentos do STJ no mister HC 78104RJ Min Arnaldo Esteves Lima HC 49187RJ Min Laurita Vaz Temos do mesmo modo disponíveis no repertório do ordenamento mecanismos legais específicos para coibir a inversão tumultuária de atos processuais proveniente 28 O prérequisito para qualquer ética verdadeira não credora da chancela ontológicaneutralizante para existir e que não necessita assim hipotecar suas consequências mais radicais constituise dessa forma no estabelecimento prévio de uma base ética de inteligibilidade da realidade como já sugerido A ética como filosofia primeira significa todo o contato com a realidade toda interpretação desta realidade e todas as possíveis interpretações desta realidade se dão eticamente onde o contato e a ação éticos substituem o conhecimento classificador tradicional e podem vir a fundamentar um conhecimento sobre bases absolutamente novas com outro sentido TIMM DE SOUZA Ricardo Totalidade Desagregação Sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas Porto Alegre Edipucrs 1996 pp123124 29 TIMM DE SOUZA Ricardo Uma introdução à ética contemporânea São Leopoldo Nova Harmonia 2004 p103 30 FIGUEIREDO Débora de Carvalho Vítimas e vilãs monstros e desesperados Como o discurso judicial representa os participantes de um crime de estupro In Linguagem em Discurso V3 n1 Tubarão Unisul 2002 p146 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 307 de erros ou abusos praticados pelo julgador31 bem como um extenso rol de proibições32 e restrições33 ao exercício do ofício jurisdicional para tentar afastar a possibilidade de um julgamento maculado pela parcialidade Nada mais justo que se pense de forma idêntica para a questão do discurso proferido na motivação sentencial e assim seja vedado ou processualmente punível com a nulificação qualquer resquício identificável de argumentação excessiva manifestamente atécnica que sirva para exercer a jurisdição de modo desumano e nãoético Não custa lembrar que preceito fundamental do ordenamento pátrio Constituição Federal Artigo 5 inc XLVII alínea e impõe à nossa prática jurisdicional a inexistência de penas cruéis Em um Estado Democrático de Direito deveria ser pauta constante a vedação de uma decisão processual penal se constituir além de um meio de infligir penas legalmente cominadas em um palco para humilhações considerações particulares por parte do Magistrado ou mesmo alvo de descarregos psicológicos ofensivos manifestados pelo linguajar Certamente a pena cruel de aplicação proibida pela Lei Maior se constrói pelo menos em nossa visão desde uma decisão oficial que promove ofensas injuriosas ao jurisdicionado representando uma inacreditável baixeza do Estado ao nível do bate boca privado algo que a própria existência de jurisdição trata de solapar Sem falar que a ofensa no caso vem com a grife e a definitividade da chancela judiciária Confortável local de fala o do Magistrado ausente de possibilidade de responsabilização pode injuriar e difamar ao seu bel prazer por vias transversas ou por vezes diretas extrapolando toda e qualquer competência legitimada para regular judicialmente os conflitos penais que lhe são postos Propõese para quem sabe o novo Código de Processo Penal brasileiro vindouro a substituir o arcaico e potencialmente inquisitório aparato da década de 40 que hoje exerce a função o tornar passível de anulação a decisão que angariar adjetivação impertinente e destoante do texto dos tipos legalmente previstos aplicados à espécie como presunção de parcialidade nãoprocessual Ou mesmo que haja a inclusão de uma hipótese de vedação ao uso desmedido do linguajar ao longo do texto decisional e seus adjacentes sobre os elementos da decisão condenatória Ou mesmo ainda talvez a categorização do caso como hipótese configuradora da Suspeição tornando o fato como fértil para o ensejo do pleito do afastamento do Magistrado para o proferir da decisão válida para a demanda34 31 Vejase a medida de Correição Parcial no caso do Estado do Rio Grande do Sul regulada pelos dispositivos do Art 195 e parágrafos do Código de Organização Judiciária do Estado Lei n 7356 de 1 de Fevereiro de 1980 32 As hipóteses em que o Magistrado incorre em Impedimento processual para operar no julgamento do caso são coroadas constitucionalmente pelos incisos do parágrafo único do Art 95 da Carta Magna sendo que já vinham perfeitamente delineadas pelo texto do nosso Código de Processo Civil nos incisos do Art 134 e no Código de Processo Penal nos incisos do Art 252 33 Definidas igualmente pelo Código de Processo Civil incisos do Art 135 com similar menção nos Arts 254 a 256 do Código de Processo Penal estabelecida para o Processo Penal em seu respectivo diploma a possibilidade de configurar motivo para arguição de Suspeição pela via processual da Oposição de Exceção Art 96 a 107 34 Ansiosos também esperamos uma atuação rigorosa das Corregedorias e sua tão necessária atividade de Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 308 Não vemos qualquer dificuldade em lançar mão de ideia como a apresentada mesmo cientes das imensas dificuldades práticas e da acalorada discussão processual e tribunalícia que se iniciaria a partir dela e mesmo da disparidade jurisprudencial que poderia estar fundada Melhor alguma forma positivada de controle ainda que de taxatividade admitidamente nãosolidificada do que uma derrocada na esfera dos argumentos onde sempre há quem diga e pense que o Direito é exclusivamente o que está na lei e que o Magistrado só faz adequála à realidade 6 conSiDERAçõES finAiS Aos que necessitam de doses contumazes de pragmatismo necessário o lembrete de que em termos de manifestação jurisdicional penal conceituar o réu nos moldes de um inimigo serve apenas para trazer à baila a indesejável ideia bélica similar às doutrinas espúrias de Segurança Nacional vigorantes em tempos ditatoriais definitivamente incondizentes com a atual situação ao menos em tese democrática do nosso país e consequentemente do nosso Processo Penal35 Muito mais por essa figura tão emblemática e essencial como a do Magistrado o uso prudente da palavra deve estar sempre atrelado ao cuidado quanto ao manejo desmedido de sua capacidade imanente de modificar o mundo e amplificar simbologias Tarefa nada simples Constante impulso energético que por nem todos consegue ser devidamente contido Reação trivial o dar de ombros e a esquiva quanto à obrigação de impor uma mínima contenção a esse impulso A negação de toda a dificuldade que reina sobre o Magistrado e sua nobilíssima função no momento de mover sua espada aquela que redesenha a vida e a imensa responsabilidade incutida nesse ato é a própria fuga do peso de uma necessidade de mínimo controle passional de uma apuração ética rigorosa e de um olhar calculado como convém a um bom julgador É o que faz da decisão penal desvairada um terreno fértil para a assunção onírica de que não se está simplesmente julgando mas expurgando bestasferas exorcizando diabos perdidos no mundo eliminando impurezas e combatendo monstros36 fiscalização nesse sentido recomendações e advertências constantes deveriam fazer parte da rotina do julgador que afasta de lado a técnica e a culta ponderação nos seus julgados exarados para se entregar ao desvario da cólera e do abandono antiético no texto da decisão humilhando simplesmente os desafortunados submetidos ao seu julgamento inclusive como forma de promoção pessoal e cessão indevida aos anseios de clamores populares que nada devem interferir no exercício jurisdicional Cientes estamos no entanto de que nem esse nem qualquer outro aspecto deva nem possa se configurar em escopo para que a atividade do Corregedor se transforme em uma verdadeira autorização inquisitória para perseguir e coibir sem limites munida da mesma impertinência ora combatida 35 BIZZOTTO Alexandre O MalEstar do juiz criminal e a ética da alteridade In Revista da Ajuris Ano XXXIV n108 Porto Alegre AJURIS dez 2007 p15 Sobre o tema Direito Penal do Inimigo e as implicações filosóficas e biopolíticas de sua base epistemológica indispensável Cf PINTO NETO Moysés da Fontoura A Farmácia dos Direitos Humanos algumas observações sobre a prisão de Guantánamo In Panóptica Ed 132008 Revista Eletrônica httpwwwpanopticaorg acesso em jan 2009 36 É muito fácil etiquetar bandido monstro ladrão estelionatário vagabundo Tais não passam de adjetivos de impacto Essas pessoas não são mais do que eu O outro sou eu O encarcerado se traduz na negação de meu lado humano destrutivo BIZZOTTO op cit p17 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 309 Fica por tudo a lição fundamental de Nietzsche Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro E se você olhar longamente para um abismo o abismo também olha para dentro de você37 Todo o cuidado é pouco REfERênciAS BIZZOTTO Alexandre O MalEstar do juiz criminal e a ética da alteridade In Revista da Ajuris Ano XXXIV n108 Porto Alegre AJURIS dez 2007 BRASIL Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais Acórdão em Apelação Criminal N 100240160418240011 Relator Des Armando Freire Belo Horizonte 31 e mar 2005 BRASIL Tribunal de Justiça do Estado de Goiás Acórdão em Apelação Criminal N 252202213 200400100163 Relator Des Paulo Teles Goiânia 29 jun 2004 BRASIL Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul Acórdão em Apelação Criminal N 70009840273 Relatora Desa Lúcia de Fátima Cerveira Porto Alegre 29 nov 2006 CARNELUTTI Francesco Lições sobre o Processo Penal Volume 4 Trad Francisco José Galvão Bruno Campinas Bookseller 2004 CARVALHO Amilton Bueno de O Juiz e a Jurisprudência um desabafo crítico In Garantias Constitucionais e Processo Penal BONATO Gilson Org Rio de Janeiro Lumen Juris 2002 CARVALHO Salo de A sentença criminal como instrumento de descriminalização o comprometimento ético do operador do direito na efetivação da Constituição In Revista da Ajuris Ano XXXIII n102 Porto Alegre AJURIS jun 2006 CORDERO Franco Procedura Penale Milano Giufré 2000 5ed DAMÁSIO António R O Erro de Descartes Emoção razão e o cérebro humano Trad Dora Vicente e Georgina Segurado São Paulo Companhia das Letras 1996 DIVAN Gabriel Antinolfi Decisão Judicial nos Crimes Sexuais O julgador e o réu interior Porto Alegre Livraria do Advogado 2009 DUCLERC Elmir Direito Processual Penal Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 FERRAZ JR Tércio Sampaio A Ciência do Direito São Paulo Atlas 1980 FIGUEIREDO Débora de Carvalho Vítimas e vilãs monstros e desesperados Como o discurso judicial representa os participantes de um crime de estupro In Linguagem em Discurso Vol 3 n1 Tubarão Unisul 2002 FOUCAULT Michel A vontade de saber In Resumo dos Cursos do Collège de France 19701982 Trad Andrea Daher Rio de Janeiro Jorge Zahar 1997 Verdade e Poder In Microfísica do Poder 20ed Trad Roberto Machado Rio de Janeiro Graal 2004 GALEANO Eduardo O Livro dos Abraços 9ed Trad Eric Nepumoceno Porto Alegre LPM Editores 2002 37 NIETZSCHE Friedrich Além do Bem e do Mal São Paulo Companhia das Letras 2005 p70 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 310 GOFFMAN Erving A representação do Eu na vida cotidiana 8ed Trad Maria Célia Santos Raposo Petrópolis Vozes 1999 HALL Stuart A identidade cultural na pósmodernidade Trad Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro Rio de Janeiro DPA 2001 LOPES JR Aury Introdução Crítica ao Processo Penal Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional Rio de Janeiro Lumen Juris 2006 MORAIS DA ROSA Alexandre O Processo Penal como Procedimento em Contraditório Diálogo com Elio Fazzalari In Novos Estudos Jurídicos V11 n2 Itajaí Univali 2006 NIETZSCHE Friedrich Além do Bem e do Mal São Paulo Companhia das Letras 2005 PINTO NETO Moysés da Fontoura A Farmácia dos Direitos Humanos algumas observações sobre a prisão de Guantánamo In Panóptica Ed 132008 Revista Eletrônica httpwwwpanopticaorg acesso em jan 2009 TARUFFO Michele Senso comum experiência e ciência no raciocínio do juiz Trad Cândido Rangel Dinamarco Curitiba IBEJ 2001 TESHAINER Marcus Psicanálise e Biopolítica Contribuição para a ética e a política em Michel Foucault Porto Alegre Zouk 2006 TIMM DE SOUZA Ricardo Totalidade Desagregação Sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas Porto Alegre Edipucrs 1996 Uma introdução à ética contemporânea São Leopoldo Nova Harmonia 2004 WARAT Luis Alberto Introdução Geral ao Direito I Interpretação da Lei Temas para uma reformulação Porto Alegre Sergio Antonio Fabris Editor 1994 Introdução Geral ao Direito II A epistemologia jurídica da Modernidade Porto Alegre Sérgio Fabris 1995Reimpressão 2002 ZAFFARONI Eugenio Raul Criminología Aproximación desde un margen Bogotá Editorial Temis 2003 Tercera reimpressión Em busca das penas perdidas a perda de legitimidade do sistema penal Trad Vania Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição Rio de Janeiro Revan 1991 Direito e Democracia v10 n2 p311330 juldez 2009 Canoas o ensino do Direito Penal da legitimação da violência à luta pela vida marília Denardin Budó RESumo Diante da deslegitimação teórica e fática do sistema penal o objetivo do texto é o de abordar o descompasso dessa constatação com o ensino do Direito Penal no Brasil Para tanto a primeira parte buscará apresentar o marco teórico do qual se parte o da Criminologia crítica especificamente no que tange aos argumentos que levam à deslegitimação do sistema penal No segundo ponto é traçada brevemente a história do ensino jurídico no Brasil salientandose as suas principais características em especial o papel das universidades segundo a forma de ensino atual como fábricas ideológicas que não questionam o real exercício de poder e violência dos sistemas penais auxiliando em sua relegitimação O artigo é encerrado com a constatação de que se na América Latina os sistemas penais são marcados pela morte tratar o Direito Penal de uma maneira crítica significa de certa forma evitála poupando vidas Palavraschave Ensino Direito Penal Sistema penal Criminologia crítica Violência teaching criminal law from legitimation of violence to life defense ABStRAct Considering the factual and theoretical nonlegitimation of the criminal system this paper aims to approach the unsteadiness of this evidence with the criminal law teaching in Brazil Thus firstly this work will present the theoretical background from where it descends the Critical Criminology specifically related to the arguments which lead to the relegitimation of the criminal system Secondly the history of the legal teaching in Brazil is outlined briefly emphasizing its main characteristics specially the role of the universities regarding the current teaching methods like ideological factories which do not question the real exercise of power and violence of the criminal systems supporting its relegitimation This paper concludes by discussing the evidence that if in Latin America the criminal systems are determined by death approaching the criminal law critically means in a certain way avoiding it saving lives Keywords Teaching Criminal law Criminal system Critical criminology Violence 1 intRoDução Discutir o ensino do Direito no Brasil significa trazer à tona as funções que ele cumpre Sabese que historicamente a formação de juristas se deu de maneira a constituir uma elite encarregada de construir a ordem nacional Marília Denardin Budó é Mestre em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina Bacharel em Direito e em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria UFSM Especialista em Pensamento Político Brasileiro pela UFSM Professora do Centro Universitário Franciscano UNIFRA em Santa MariaRS Email mariliadbyahoocombr Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 312 Para trazer tal discussão ao campo do Direito Penal é necessário perceber que a função do seu ensino da maneira como é realizada na maior parte das faculdades de direito é a de legitimar um sistema penal já deslegitimado teórica e empiricamente Ou seja manter o exercício de poder do sistema a despeito de seu excesso de violência e déficit de proteção ao ser humano1 O objetivo do texto é o de abordar a questão do ensino do Direito Penal no Brasil Para tanto a primeira parte buscará apresentar o marco teórico do qual se parte o da criminologia crítica especificamente no que tange aos argumentos que levam à deslegitimação do sistema penal No segundo ponto será traçada brevemente a história do ensino jurídico no Brasil salientandose as suas principais características O terceiro ponto tratará do papel das universidades segundo a forma de ensino atual como fábricas ideológicas que levam à legitimação do sistema penal O texto é finalizado com a relação entre o ensino jurídico crítico e a preservação da vida 2 A DESlEGitimAção Do SiStEmA PEnAl E o PAPEl RElEGitimADoR DAS uniVERSiDADES O Direito Penal liberal tem como origem o surgimento do Estado Moderno Os primeiros pensadores desse marco tinham suas ideias arraigadas ao contratualismo formando a Escola Clássica Enquanto a unidade metodológica desses teóricos implicava a utilização do método racionaldedutivo em voga na época a sua unidade ideológica tratou principalmente do problema dos limites do poder de punir do Estado em contraponto à liberdade dos indivíduos2 Isso porque a tradição prémoderna trazia um sistema inquisitório de processo onde as mais simples garantias de defesa do acusado eram inexistentes o que tornava a acusação completamente obscura ao indivíduo e atentava contra a certeza do Direito e a segurança jurídica3 Em função de mudanças nos contextos político econômico e social o século XIX já trouxe teorias sobre o crime bastante diversas Foi o auge da Escola Positiva cujo paradigma de ciência já não era mais o racionalismo e sim o evolucionismo sendo o método característico do período o empíricoexperimental Ao invés de justificar a liberdade do indivíduo a partir de uma ordem natural universal e então limitar o poder de punir do Estado a Escola Positiva deslocou o foco de atenção para o homem criminoso buscando nele as causas do crime Assim de limite ao poder de punir do Estado o indivíduo criminoso visto como um anormal biológica antropológica e sociologicamente determinado a cometer crimes passa a ser o objeto de intervenção do Estado na busca pelo seu tratamento e reinserção no polo normal da sociedade4 1 ANDRADE Vera Regina Pereira de A ilusão de segurança jurídica do controle da violência à violência do controle penal 2 ed Porto Alegre Livraria do Advogado 2003 2 ibid p47 3 BECCARIA Cesare Dos delitos e das penas São Paulo Martins Fontes 1997 4 BARATTA Alessandro Criminologia crítica e crítica do direito penal 3 ed Rio de Janeiro Ed RevanICC 2002 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 313 Tendo esses pressupostos sido relegados com o surgimento e consolidação da Escola TécnicoJurídica a criminologia passou a ser tratada como ciência auxiliar sendo a dogmática penal erigida a ciência do direito por excelência A dogmática jurídicopenal foi o paradigma científico que emergiu na modernidade com uma função essencialmente prática de racionalizar a aplicação judicial do Direito Penal5 Criminologia e dogmática ao mesmo tempo em que mantiveram a sua autonomia em relação à metodologia formaram uma unidade funcional na luta contra o crime6 Assim as funções racionalizadora e garantidora da dogmática penal declaradas no meio jurídico se viabilizariam através da previsibilidade e uniformização das decisões judiciais além de uma aplicação igualitária do Direito Penal garantindo segurança jurídica7 A dogmática jurídica em sua autoimagem seria uma ciência do deverser que tem por objeto o Direito Penal positivo vigente em dado tempo e espaço e por tarefa metódica técnicojurídica lógicoabstrata a construção de um sistema de conceitos elaborados a partir da interpretação do material normativo tendo por finalidade ser útil à vida isto é à aplicação do Direito8 Apesar de em grande parte os postulados da Escola Positiva terem sido deixados de lado com o surgimento da Escola tecnicista a qual buscava a exclusão de todo e qualquer elemento jusnaturalista biológico sociológico ou psicológico do Direito Penal podese dizer que Escola Clássica e Escola Positiva acabaram complementando se nas legislações do século XX A dogmática penal nesse sentido veio a assumir um caráter bifronte ao mesmo em que traz em si a ideologia liberal de proteção ao indivíduo traz a ideologia da defesa social que tem no indivíduo o objeto do tratamento para reinserção na sociedade Essa ideologia é identificada por Baratta como presente no senso comum jurídico mas também do lado de fora da academia relacionando alguns princípios que a constituem9 Muito embora o Direito Penal tenha se fechado no estudo das normas penais dentro de uma perspectiva de dominação da dogmática vista como ciência do direito por excelência a sociologia seguiu os estudos relativos ao crime e à sociedade na Europa e nos Estados Unidos Assim as novas teorias sociológicas relacionadas ao crime vieram possibilitar a crítica à ideologia penal dominante expondo a deslegitimação do sistema penal com a consequência de se buscar alternativas políticocriminais 5 ANDRADE Vera Regina Pereira de op cit 6 ANDRADE Vera Regina Pereira de Andrade op cit p99 7 Ibid p27 8 Ibid p117 9 A ideologia da defesa social é especificada por Baratta como sendo a ideologia que une tanto Escola Clássica como Escola Positiva sendo constituída por alguns princípios princípio da legitimidade princípio do bem e do mal princípio do interesse social e do delito natural princípio da igualdade princípio da culpabilidade princípio da finalidade ou da prevenção BARATTA Alessandro op cit p42 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 314 Destacase dentre estes estudos sociológicos a teoria do etiquetamento ou labelling approach uma vez que faz a ruptura epistemológica em criminologia ao retirar o foco das causas do crime no criminoso para visualizálo no fenômeno da criminalização A teoria do etiquetamento chega à percepção do desvio como sendo uma construção social a partir de interações ocorridas na sociedade fazendo com que em alguns momentos se definam situações e pessoas como desviantes Essa teoria também é conhecida por criminologia da reação social por identificar na reação da sociedade ao desvio um fundamental elemento para que o comportamento seja assim rotulado Considerado o fundador da teoria do etiquetamento Becker é a maior referência no estudo da reação social e dos efeitos da estigmatização do etiquetamento na formação do status social de desviante Central nessa teoria é a ideia de que os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui o desvio e por aplicar ditas regras a certas pessoas em particular e qualificálas como outsiders10 Dessa maneira o processo de criminalização se inicia com a definição do que é a conduta desviada através do processo legislativo Mas anteriormente a isso ocorre o processo de definição no senso comum do que é o comportamento normal sendo que a normalidade é representada por um comportamento predeterminado pelas próprias estruturas segundo certos modelos de comportamento e correspondente ao papel e à posição de quem atua11 Ao atribuir a etiqueta de desviante a algumas pessoas em função do descumprimento a tais normas realizase a criminalização secundária O desviante é uma pessoa a quem se pode aplicar com êxito aquela etiqueta o comportamento desviante é o comportamento assim etiquetado pelas pessoas12 A importância da reação social na definição de um fato como criminoso é demonstrada por Lemert através do quociente de tolerância através do qual é possível manipular o desvio e a reação social através de uma fração matemática medida com uma quantidade de condutas desaprovadas em uma localidade no numerador e no denominador o grau de tolerância para o comportamento em questão13 Assim se em duas cidades diferentes mas de tamanho comparável uma tem um alto índice de ocorrência de determinado comportamento desviante e outra tem um baixo índice caso na primeira a tolerância seja maior e na segunda menor ou seja na segunda haja maior reação social o resultado será o mesmo Isso demonstra que para que um comportamento seja desviante ou criminoso não basta que esteja assim definido em lei mas que haja uma reação social frente à sua prática É também consequência dessa teoria a percepção de que dentro de um quadro geral de delitos ocorridos diariamente apenas a alguns a sociedade e o sistema penal reagem demonstrando a existência de uma seletividade Essa seletividade é encontrada 10 BECKER Howard Outsiders Studies in the sociology of deviance New York The Free Press 1996 p9 Tradução livre Grifos no original 11 BARATTA Alessandro op cit p95 12 BECKER Howard op cit p9 Tradução livre 13 LEMERT Edwin M Social pathology A systematic approach to the theory of sociopathic behavior New York McGrawHill Book Company 1951 p57 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 315 tanto na definição do ato desviante quanto na atribuição do rótulo de desviante a alguém A seletividade deve ser percebida também a partir da existência de muitos fatos definidos como crimes que ocorrem diariamente mas de que sequer se tem notícia ao que autores posteriores denominaram cifra negra da criminalidade A consequência dessa percepção é de que como nota Zaffaroni se o sistema penal processasse e punisse todos os fatos tipificados como crimes toda a população já teria sido criminalizada várias vezes Diante da absurda suposição não desejada por ninguém de criminalizar reiteradamente toda a população tornase óbvio que o sistema penal está estruturalmente montado para que a legalidade processual não opere e sim para que exerça seu poder com altíssimo grau de arbitrariedade seletiva dirigida naturalmente aos setores vulneráveis14 Essa questão traz à tona a operacionalização dos estereótipos tanto de autores como de vítimas que estão ligados ao senso comum criados através da interação social São eles sistemas de representações que orientam a vida quotidiana15 e se constituem em mecanismos de seleção na medida em que permitem a definição da desconformidade como desvio sendo ligada a um certo número de sinais exteriores a cor da pele a origem étnica o corte de cabelo ou de barba o estilo do vestuário os locais frequentados e as horas de frequência bem como a toda uma série de atitudes simbólicas próprias de um delinquente de um louco de um drogado ou de um ébrio de um homossexual de uma prostituta16 Tendo em vista que os estereótipos constituem um mecanismo de seleção explicase porque os mesmos tipos se encontrem na prisão O estereótipo alimenta se das características gerais dos setores majoritários mais despossuídos e embora a seleção seja preparada desde cedo na vida do sujeito é ela mais ou menos arbitrária17 Isso demonstra que os estereótipos se constituem não somente em um mecanismo de seleção mas de reprodução tendo em vista que possuem um efeito de feedback sobre 14 ZAFFARONI Eugenio Raúl Em busca das penas perdidas A perda de legitimidade do sistema penal Rio de Janeiro Revan 1991 p125 Em consequência disso passase a perceber que as estatísticas criminais não dizem respeito à criminalidade e sim à criminalização tendo em vista que elas são feitas com base apenas nos casos que são registrados O que as estatísticas refletem são as contingências organizativas que condicionam a aplicação de determinadas leis a determinada conduta por meio da interpretação decisões e atuações do pessoal encarregado de aplicar a lei KITSUSE CICOUREL apud CID MOLINÉ José LARRAURI PIJOAN Elena Teorías criminológicas Explicación y prevención de la delincuencia Barcelona Bosch 2001 p210 15 DIAS Jorge de Figueiredo ANDRADE Manuel da Costa Criminologia O homem delinquente e a sociedade criminógena Coimbra Coimbra 1997 p389 16 ibid 17 ZAFFARONI Eugenio Raúl op cit p134 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 316 a realidade racionalizando e potenciando as razões que geram os estereótipos e as diferenças e oportunidades que eles exprimem18 Em função da insuficiente relação da operacionalidade dos sistemas penais na construção social da criminalidade com a estrutura econômica social e política a Criminologia crítica surge na década de setenta para somar aos resultados da teoria do etiquetamento uma abordagem marxista gerando uma teoria materialista do desvio Dos resultados das pesquisas em Criminologia crítica destacase a demonstração de que o princípio da seletividade identificado pela teoria do etiquetamento está orientado conforme a desigualdade social sendo que as classes inferiores são as efetivamente perseguidas Assim o sistema punitivo se apresenta como um subsistema funcional da produção material e ideológica legitimação do sistema social global isto é das relações de poder e de propriedade existentes19 A relação entre prisão e capitalismo gerada pela crítica historiográfica também auxiliaram no que concerne ao chamado impulso desestruturador20 na deslegitimação teórica dos sistemas penais Os primeiros teóricos a adentrarem nesse tema foram Rusche e Kirchheimer ao buscarem compreender a modificação dos sistemas penais ao longo da história Concluem que a transformação em sistemas penais não pode ser explicada somente pelas mudanças das demandas das lutas contra o crime embora esta luta faça parte do jogo Todo sistema de produção tende a descobrir formas punitivas que correspondem às suas relações de produção 21 Também através da leitura de Foucault se permite observar que ao contrário da ideia difundida de que a prisão não cumpre com seus objetivos declarados ela cumpre com objetivos reais Não há então natureza criminosa mas jogos de força que segundo a classe a que pertencem os indivíduos os conduzirão ao poder ou à prisão pobres os magistrados de hoje sem dúvida povoariam os campos de trabalhos forçados e os forçados se fossem bem nascidos tomariam assento nos tribunais e aí distribuiriam justiça22 18 DIAS Jorge de Figueiredo ANDRADE Manuel da Costa op cit p389 19 BARATTA Alessandro Principios del derecho penal mínimo In ELBERT Carlos Alberto BELLOQUI Laura orgs Criminología y sistema penal Compilación in memorian p299333 Buenos Aires Julio César Faira 2004 p301 20 COHEN Stanley Visiones del control social Delitos castigos y clasificaciones Barcelona PPU 1988 21 RUSCHE Georg KIRCHHEIMER Otto Punição e estrutura social 2 ed Rio de Janeiro Ed Revan ICC 2004 p20 Para exemplificar os autores referem que É evidente que a escravidão como forma de punição é impossível sem uma economia escravista que a prisão com trabalho forçado é impossível sem a manufatura ou a indústria que fianças para todas as classes da sociedade são impossíveis sem uma economia monetária De outro lado o desaparecimento de um dado sistema de produção faz com que a pena correspondente fique inaplicável Ibid p2021 22 FOUCAULT Michel Vigiar e punir História da violência nas prisões 3 ed Petrópolis Vozes 1984 p254 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 317 A delinquência seria segundo o autor fabricada para propiciar a vigilância da sociedade e ao mesmo tempo possibilitar a imunidade das ilegalidades dos grupos dominantes Nisso residiria o sucesso real da prisão a despeito de seu fracasso declarado ao produzir uma ilegalidade fechada separada e útil23 A prisão contribui assim no sentido de que desenha isola e sublinha uma forma de ilegalidade que permite deixar na sombra as que se quer ou se deve tolerar Essa é a delinquência propriamente dita ela é antes um efeito da penalidade e da penalidade de detenção que permite diferenciar arrumar e controlar as ilegalidades24 A tese da seletividade é portanto essencial para a compreensão da tática de neutralização dos pobres contida nas ideologias que buscam inflar a repressão penal através da propagação do medo A criminalização secundária ou seja aquela que decorre da atuação das agências executivas e judiciária do sistema penal polícia justiça é ainda mais seletiva Mesmo quando previstos na lei crimes típicos das classes dominantes dificilmente pessoas que dela fazem parte são criminalizadas A imunidade dos crimes mais graves é cada vez mais elevada à medida em que cresce a violência estrutural e a prepotência das minorias privilegiadas que pretendem satisfazer as suas necessidades em detrimento das necessidades dos demais e reprimir com violência física as exigências de progresso e justiça assim como as pessoas os grupos sociais e movimentos que são seus intérpretes25 A constatação da seletividade do sistema penal traz diversas consequências A principal delas é o descrédito para com o princípio de igualdade perante a lei Conforme conclui Andrade ao invés de assegurar a igualdade e a generalização no exercício da função punitiva a dogmática penal trouxe para o sistema penal a reprodução da seletividade e da desigualdade percebida na sociedade26 Isto leva à conclusão de que a definição de alguém como criminoso depende menos da prática de um ato tipificado na lei penal do que de seu status social A ideia de que o sistema penal deveria significar segurança jurídica tanto no sentido de que o indivíduo deve ser protegido do poder de punir do Estado como em relação ao atributo do Estado moderno de monopólio da coerção física de forma a evitar a luta de todos contra todos fica completamente distorcida diante dessa realidade Isso porque ao realizar tal seleção entre as pessoas criminalizáveis mostrase um excesso de arbítrio afora o fato de que as garantias penais são diariamente violadas pelas agências do sistema penal 23 Ibid p244 24 Ibid p243244 25 BARATTA Alessandro Direitos Humanos entre a violência estrutural e a violência penal Fascículos de Ciências Penais Porto Alegre vol 6 n 2 p4461 abrilmaiojunho p52 26 ANDRADE Vera Regina Pereira de op cit p311 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 318 Entretanto quando se percebe que o sistema penal não cumpre com as suas funções prometidas questionase então qual seria a sua função atual Ocorre que na atualidade o sistema penal cumpre uma função simbólica O objetivo do uso simbólico do Direito Penal seria produzir uma dupla legitimação segundo Santos a legitimação do poder político facilmente conversível em votos o que explica por exemplo o açodado apoio de partidos populares a legislações repressivas no Brasil b legitimação do direito penal cada vez mais um programa desigual e seletivo de controle social das periferias urbanas e da força de trabalho marginalizada do mercado com as vantagens da redução ou mesmo da exclusão das garantias constitucionais como a liberdade a igualdade a presunção de inocência etc cuja supressão ameaça converter o Estado Democrático de direito em Estado policial27 A constatação teórica de que o sistema penal age de forma a reprimir seletivamente parcelas da população é somada à constatação empírica proposta por Zaffaroni da deslegitimação do sistema penal Após discorrer sobre as várias teorias de autores europeus e norte americanos o autor conclui que na região latino americana as consequências dessa deslegitimação são muito mais dramáticas Afora o fato de que a história do continente tem como principais características o genocídio e o etnocídio decorrentes das duas revoluções tecnológicas ocorridas na Europa o período atual marca a passagem para a revolução tecnocientífica no contexto da globalização neoliberal que tem consequências imprevisíveis28 Todo o sistema penal latino americano é marcado pela morte Desde as comuns execuções sumárias29 por agentes da lei ou por grupos de extermínio até a situação dramática das prisões o problema do aumento da repressão penal não é o da neutralização de parcelas cada vez maiores da população em especial da mais fraca mas sim a do extermínio do genocídio Ao contrário dos Estados Unidos ou mesmo da Europa que têm uma economia que permite a utilização das prisões como fonte de economia terciária a economia dos países latino americanos não comportam tal situação Assim os excluídos do mundo do trabalho e vítimas do desmantelamento do Estado sobram e por isso entram para o rol dos executáveis Assim para o autor a deslegitimação do sistema penal se dá antes de tudo pelos próprios fatos sendo o principal deles a morte Buscando manter o sistema penal legitimado apesar de sua evidente deslegitimação atuam diversas instituições Dentre elas as instituições de ensino do Direito As universidades são chamadas por Zaffaroni de fábricas ideológicas na medida em que mantêm o discurso dogmático asséptico em relação à vida real e à sociedade buscando não ver o que ocorre por trás dos códigos empoeirados 27 SANTOS Juarez Cirino dos Política criminal realidades e ilusões do discurso penal Discursos Sediciosos crime direito e sociedade Rio de Janeiro ano 7 n12 p5357 julhodezembro 2002 p56 28 ZAFFARONI Eugenio Raúl op cit 29 A respeito do tema cf LIMA JR Jayme Benvenuto org Execuções sumárias arbitrárias ou extrajudiciais Uma aproximação da realidade brasileira Recife 2001 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 319 O dogmatismo30 e o conservadorismo são características apontadas de forma unânime pelos autores que escrevem sobre o ensino do Direito Diante disso buscar seá destacar algumas características do ensino jurídico no Brasil antes de expor possibilidades ao mesmo como forma de confrontar o individualismo exacerbado com o papel social do jurista de forma a evitar a morte 3 o EnSino juRíDico no BRASil DoGmAtiSmo E conSERVADoRiSmo Apesar de a primeira matriz teórica a partir da qual se desenvolveram os primeiros cursos de Direito no Brasil ter sido jusnaturalista logo no final do século XIX passou a imperar o paradigma positivista Essa perspectiva se caracteriza no direito pela escolha da lei do ordenamento jurídico positivo como objeto e uma ruptura com o senso comum tanto no sentido de ruptura com o direito consuetudinário quanto com a eliminação dos juízes leigos e sua substituição por juízes letrados31 Assim o gênero literário correspondente a essa fase do ensino jurídico é o manual ou compêndio tendo ao seu lado os comentários de leis32 O ensino do direito no Brasil absorveu o caráter conservador da Universidade de Coimbra que durante o período imperial nomeava os seus diretores e determinava o seu currículo e método didático com suas aulasconferência ensino dogmático acrítico mentalidade ortodoxa do corpo docente e discente a serviço da manutenção da ordem estabelecida e transplantada da exmetrópole oportunizando aos profissionais por ele formados o prestígio local33 As origens do ensino do Direito no Brasil dizem muito sobre o seu contexto atual Como forma de possibilitar a formação de uma burocracia do novo Estado nacional que teve sua independência proclamada em 1822 e sua primeira Constituição outorgada em 1824 foram criados os primeiros cursos de Direito no Brasil em São Paulo e Olinda em 182734 Burocracia é a palavra que resume o papel desses bacharéis devendo construir a nova ordem nacional sem modificar o estado das coisas Os bacharéis serão o tipoideal do burocrata nascido em sociedade escravista e clientelista subindo 30 Dogmatismo quer dizer pois uma atitude de acatamento e submetimento do jurista ao estabelecido como Direito Positivo que independentemente do seu conteúdo material mutável desempenha sempre a função de dogma ANDRADE Vera Regina Pereira de Dogmática jurídica Escorço de sua configuração e identidade Porto Alegre Livraria do Advogado 1996 p74 31 LOPES José Reinaldo de Lima O direito na história Lições introdutórias São Paulo Max Limonad 2000 p223224 32 Ibid p225 33 COLAÇO Thais Luzia O ensino do direito no Brasil e a elite nacional Congresso de História das Universidades da Europa e da América Cartagena Colômbia nov 2004 34 Sobre os debates que antecederam a criação desses cursos inclusive no que concerne à formação curricular dos mesmos cf BASTOS Aurélio Wander O ensino jurídico no Brasil 2 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2000 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 320 na carreira por indicação por favor por aliança política com os donos do poder local provincial ou nacional35 Durante o período imperial é a educação superior que distingue a elite política brasileira Na época havia um verdadeiro abismo entre essa elite e o grosso da população em termos educacionais36 Os cursos de Direito criados após a Independência foram dedicados explicitamente segundo Carvalho à formação da elite política brasileira37 Segundo o autor a unidade ideológica da elite política imperial de formação jurídica possibilitou a construção da ordem nacional38 A metodologia do ensino jurídico no Brasil era reflexo da adoção de um paradigma o positivista que tinha como pressuposto o destaque à figura do legislador e a inquestionabilidade das normas criadas em tese segundo a vontade geral39 No final do século XIX o excesso de bacharéis gerou o fenômeno repetidas vezes mencionado na época da busca desesperada do emprego público por esses letrados sem ocupação o que iria reforçar também o caráter clientelístico da burocracia imperial40 A proclamação da República não trouxe grandes modificações à estrutura social e institucional brasileira A separação entre Igreja e Estado talvez seja a mudança mais aparente inclusive no currículo dos Cursos de Direito Com a República o curso começou realmente a destinarse à formação de bacharéisadvogados mas continuava com sua marca indelével um curso que forma advogados mas também destinado a formar a elite institucional e política brasileira e a nossa elite do pensamento humanístico Estes foram por conseguinte os compromissos do Curso de Direito formar advogados e formar a elite administrativa brasileira dentro do pensamento humanístico41 A partir de 1930 com a modernização e início do processo de industrialização o campo de trabalho dos bacharéis assume novas características além de se ampliar para outras áreas onde ainda não havia profissionais especializados como administradores 35 LOPES José Reinaldo de Lima op cit p226 36 CARVALHO José Murilo de Carvalho A construção da ordem A elite política imperial Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2003 p79 37 Uma abordagem aprofundada sobre a elite política imperial cf CARVALHO José Murilo de op cit p74 Sobre o papel dos bacharéis cf também ADORNO Sérgio Os aprendizes do poder O bacharelismo na política brasileira Rio de Janeiro Paz e Terra 1988 38 O Brasil dispunha ao tornarse independente de uma elite ideologicamente homogênea devido a sua formação jurídica em Portugal a seu treinamento no funcionalismo público e ao isolamento ideológico em relação a doutrinas revolucionárias Essa elite se reproduziu em condições muito semelhantes após a Independência ao concentrar a formação de seus futuros membros em duas escolas de direito ao fazêlos passar ela magistratura ao circulálos por vários cargos políticos e por várias províncias CARVALHO José Murilo de Carvalho op cit p39 39 LOPES José Reinaldo de Lima op cit p227 40 CARVALHO José Murilo de Carvalho op cit p87 41 BASTOS Aurélio Wander O ensino jurídico no Brasil e as suas personalidades históricas uma recuperação de seu passado para reconhecer seu futuro In Ensino jurídico OAB 170 anos de cursos jurídicos no Brasil p35 55 Brasília OAB Conselho Federal 1997 p37 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 321 economistas etc42 Nessa década proliferamse as faculdades de direito aumentando o acesso à classe média43 Segundo Arruda Jr a partir de 1950 passase a falar em uma crise da formação jurídica já que os campos de trabalho criados aos bacharéis após 1930 passaram a ser tomados pelos novos profissionais especializados Restaram assim aos bacharéis cargos burocráticos menores no Estado ou em empresas privadas Quanto ao ensino do Direito propriamente houve algumas mudanças tendo ocorrido reformas curriculares em 1962 1972 1994 e atualmente em 200444 Apesar de as diretrizes curriculares em vigor serem flexíveis e expressarem a preocupação com a formação dos estudantes de direito também nas relações com outras áreas das ciências humanas além da relação com a prática efetivamente não traz mudanças estruturais no perfil do formando em direito O ensino dogmático ainda é a base da educação jurídica entendida como atividade que pretende estudar o direito positivo vigente sem construir sobre o mesmo qualquer juízo de valor a partir de uma aceitação acrítica que tenta explicar a coerência do ordenamento45 Apesar de já superadas no ramo da pedagogia as pedagogias diretivas46 são as mais comumente utilizadas nas salas de aula das faculdades de Direito Perceber o aluno como tabula rasa é o único pressuposto do qual pode partir um professor que passa os períodos de aula expondo o que está na lei e tecendo seus comentários sem o estímulo à participação dos alunos bem como à crítica do atual estado das coisas É também a chamada educação bancária aquela onde o educador aparece como seu indiscutível agente como o seu real sujeito cuja tarefa indeclinável é encher os educandos dos conteúdos de sua narração Conteúdos que são retalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engendram e em cuja visão ganhariam significação47 O perfil de egresso que se deseja deve estar estritamente relacionado à forma como os professores tratarão os alunos anteriormente em sala de aula O mais comum de se ver são conformistas conservadores exegetas donos da verdade buscando seu sucesso profissional individual Isso é reflexo da adoção de uma pedagogia que parte desses pressupostos Os cursos de Direito continuam a formar agentes do sistema reprodutores da ideologia da classe dominante profissionais conservadores e ortodoxos distantes da realidade da vida sem nenhum compromisso social48 42 ARRUDA JR Edmundo Lima de Bacharéis em Direito e crise de Mercado de Trabalho Algumas Reflexões Sequência Estudos jurídicos e políticos Florianópolis n 6 dez 1981 p2940 43 COLAÇO Thais Luzia op cit sp 44 Para uma análise das modificações curriculares dessas reformas cf COLAÇO Thais Luzia op cit 45 Ibid sp 46 O diretivismo segundo Becker parte do pressuposto epistemológico empirista ou seja que o aluno nasce uma tabula rasa a ser preenchida a partir da transferência do conhecimento do professor para o aluno O professor acredita no mito da transferência de do conhecimentoo que ele sabe não importa o nível de abstração ou de formalização pode ser transferido ou transmitido para o aluno Tudo o que o aluno tem a fazer é submeterse à fala do professor ficar em silêncio prestar atenção ficar quieto e repetir tantas vezes quantas forem necessárias escrevendo lendo etc até aderir em sua mente o que o professor deu BECKER Fernando Modelos pedagógicos e modelos epistemológicos Educação e realidade Porto Alegre UFRGS v 19 n 1 janjun 1993 p90 47 FREIRE Paulo Pedagogia do oprimido 43 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 2005 p65 48 COLAÇO Thais Luzia op cit sp Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 322 Ocorre que buscar a formação de bacharéis com outro perfil exige aulas diferentes E isso não significa a mera adoção de técnicas de aula diferentes para substituir a aula conferência mas pressupõe uma epistemologia diferente e além disso um conteúdo abordado de maneira diversa O ensino das disciplinas jurídicas no Brasil está basicamente dominado por duas tendências de um lado o ensino excessivamente dogmático desvinculado das outras dimensões do conhecimento que fazem referência ao homem e à sociedade do outro o ensino teórico do Direito que está cada vez mais desvinculado da realidade social49 O Direito Penal se insere nesse contexto como uma disciplina extremamente dogmática Em geral as aulas de Direito Penal se resumem à leitura e explicação dos artigos do Código Penal frequentemente com a adoção de um manual por parte do professor Diante disso é comum verificar a utilização de exemplos com os famosos Caio Tício e Mévio em que nenhum tipo de crítica é realizado Assim a leitura e o ensino dos códigos de modo acrítico e reflexivo completamente desvinculada de suas condicionantes sociais e econômicas acaba mesmo por reproduzir no plano jurídico uma certa lógica de controle e dominação social 50 Situando os problemas atuais do ensino jurídico no Brasil Bastos menciona a existência de uma crise da didática Isso porque com as salas de aula superlotadas o professor sucumbe e se sobrepõe à transmissão do saber comparado à leitura dos códigos muitas vezes desvinculados dos problemas da vida e do cotidiano51 Quando se estuda um tipo penal apenas como está exposto na lei sem qualquer menção à política criminal que baseou a sua introdução no ordenamento bem como aos possíveis fatos sociais que geraram a demanda pela tipificação ou pela determinação da pena dificilmente se compreende a função que o próprio Direito Penal e de forma mais ampla o sistema penal cumpre na sociedade Ocorre que o Direito Penal não dialogou com as diversas teorias que ancoraram a revolução de paradigma trazida em outros campos do saber como na sociologia O surgimento da teoria do etiquetamento e da criminologia crítica por exemplo se deram à margem do Direito Penal Então ao mesmo tempo em que existem estudos demonstrando a deslegitimação do sistema penal e o papel legitimador do extermínio contido no ensino da dogmática penal dentro de suas funções declaradas o ensino se mantém da mesma maneira Da mesma forma os currículos não permitem uma visão crítica do Direito Penal posto que a disciplina de criminologia está contida em poucos deles como disciplina obrigatória e 49 BASTOS Aurélio Wander Ensino jurídico tópicos para estudo e análise Sequência Estudos jurídicos e políticos Florianópolis v 4 dez 1981 p5972 p61 50 MACHADO Antônio Alberto Ensino jurídico e mudança social Franca UNESPFHDSS 2005 p146 51 BASTOS Aurélio Wander O ensino jurídico no Brasil op cit p362 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 323 quando está prevista frequentemente apresenta um programa ligado ao paradigma etiológico em especial o positivista52 Outras disciplinas que permitiriam essas críticas e um outro olhar sobre o Direito Penal como a sociologia jurídica a filosofia jurídica a história do direito e mesmo a ciência política são pouco valorizadas por alunos e professores53 Assim de forma recorrente se vê a passagem por essas disciplinas como um fardo que os alunos são obrigados a carregar por um ou dois semestres de curso e do qual assim que se libertam dificilmente conseguem reconhecer a utilidade bem como fazer as ligações com as demais disciplinas do curso Nesse sentido há ainda o problema de que a inclusão de disciplinas propedêuticas nos currículos frequentemente induz por sua manipulação equivocada a reedição de uma injustificável dicotomia entre teoria e prática54 É nesse sentido que deve ser salientada a inutilidade da simples modificação da estrutura curricular dos cursos de direito quando os professores e alunos mantêm a mesma visão compartimentada Além disso uma disciplina não é por si própria crítica e portadora de um germe de transformação pronto a ser desenvolvido ao simples contato Assim devese convir que O Direito admite várias abordagens e o erro está em imaginar que o discurso feito sobre uma delas abrange o fenômeno em sua totalidade Assim de nada serve acrescentar o estudo da Sociologia Jurídica da Antropologia Jurídica ou da Economia ao currículo se as disciplinas dogmáticas permanecem dogmáticas55 A mesma observação deve ser feita em relação à modificação das técnicas de ensino passandose da aula apenas expositiva à aula dialogada ou através de seminários que de nada adianta se o conteúdo continua sendo orientado de forma dogmática Dessa maneira os conteúdos também devem ser trabalhados de maneira crítica Ocorre também que os alunos em geral estão preocupados em seguir uma carreira jurídica em função dos ganhos e da estabilidade que proporcionam sem qualquer menção ao sentido social que possa ter a sua atuação 52 Escrevendo no final da década de setenta sendo porém uma realidade atual Del Olmo observa que na América Latina a docência da criminologia em geral é ministrada por professores formados em direito mas em alguns casos médicos também a lecionam Quanto ao conteúdo aduz que na grande maioria são cursos de criminologia clínica que continuam difundindo hoje o objeto da criminologia como tratamento dos delinquentes e portanto sua atenção está dirigida ao indivíduo delinquente DEL OLMO Rosa A América Latina e sua criminologia Rio de Janeiro RevanICC 2004 p275 É interessante de notar ainda a observação da autora a respeito das obras utilizadas no ensino da criminologia na sua maioria com a utilização de manuais estrangeiros com perfil biologicista Ibid p279280 53 Sobre os desafios do ensino interdisciplinar cf ALVES Elizete Lanzoni A docência e a interdisciplinariedade um desafio pedagógico In COLAÇO Thais Luzia Org Aprendendo a ensinar direito o Direito Florianópolis OABSC 2006 p118144 54 VENTURA Deisy Ensinar direito Barueri Manole 2004 p10 55 LYRA FILHO Roberto apud RODRIGUES Horácio Wanderley O ensino jurídico de graduação no Brasil contemporâneo Análise e perspectivas a partir da proposta alternativa de Roberto Lyra Filho 193 f Dissertação Mestrado em Direito Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis 1987 p117 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 324 Se o ensino jurídico está pautado pelo paradigma epistemológico normativo positivista e a prática pedagógica vazada no método lógicoformal ambos proporcionando ao jurista um conhecimento meramente descritivo da ordem jurídica e uma desumanizada aplicação tecnoburocrática do direito tais atitudes teóricas só poderiam resultar mesmo numa completa despolitização do saber jurídico e no esvaziamento do seu sentido ético56 No que tange ao Direito Penal despolitizálo e desprovêlo do conteúdo ético significa ocultar o fato de que o sistema penal é uma forma de exercício de poder extremamente violenta e deslegitimada que se mantém principalmente pela reprodução por parte de seus operadores As universidades têm portanto um papel fundamental na reprodução e legitimação do sistema penal Nesse sentido de forma a diminuir a violência e a dor causadas por um sistema penal que tem como sua operacionalidade real o genocídio em marcha estaria implicada uma mudança na formação de seus operadores O sistema penal é como observa Zaffaroni uma máquina de violação de direitos humanos que não atinge apenas a sua clientela os criminalizados mas também os seus operadores57 Por isso há a necessidade de uma resposta marginal a esta realidade58 Nesse raciocínio Zaffaroni nota que as várias pessoas implicadas no sistema penal passam por treinamentos que levam à sua deterioração Além da criminalização59 da prisionização60 e da policização61 destacase a burocratização como o processo de 56 MACHADO Antônio Alberto op cit p144145 57 Para isso demonstra a sua operacionalidade real o genocídio em ato o seu poder configurador a importância dos aparelhos de propaganda como fábricas da realidade as fábricas ideológicas que seriam as universidades a criminalização a partir da seletividade em função da estigmatização as cadeias como máquinas de deteriorar as agências executivas como máquinas de policiar as agências judiciais como máquinas de burocratizar concluindo com a deterioração e antagonismos como produtos da operacionalidade dos sistemas penais e a destruição dos vínculos comunitários 58 Com a designação marginal para a região latino americana Zaffaroni quer significar a nossa localização na periferia do poder planetário em cujo vértice encontramse os chamados países centrais b demonstrar a necessidade de se adotar a perspectiva de nossos fatos de poder na relação de dependência com o poder central sem pretender identificar esses fatos com os processos originários desse poder c assinalar a grande maioria da população latinoamericana marginalizada do poder mas objeto da violência do sistema penal ZAFFARONI Eugenio Raúl op cit p164165 E o faz no sentido de que nada pode ser compreendido sobre nossa região marginal se não a assumirmos e por conseguinte se não assumirmos nossa marginalização da história etnocentrista da civilização industrial ibid p169 59 O processo de criminalização se orienta pelo condicionamento a estigmatização e a morte segundo Zaffaroni Nossos sistemas penais reproduzem sua clientela por um processo de seleção e condicionamento criminalizante que se orienta por estereótipos proporcionados pelos meios de comunicação de massa Ibid p133 Assim não se pode falar em criminoso e sim em criminalizado para designar aquele que foi selecionado pelo sistema penal 60 A prisionização seria um fenômeno resultante da deterioração ocorrida no indivíduo em função de sua inserção na instituição total chamada prisão Sua principal característica é a regressão o preso é privado de tudo o que um adulto pode fazer normalmente Também a perda da privacidade da autoestima do seu espaço além de outras características como a superpopulação alimentação paupérrima falta de higiene e assistência sanitária etc Ibid p125126 Nesse sentido a prisão é uma máquina de deterioração ao provocar o desenrolar do processo de prisionização 61 O pessoal policizado além de ser selecionado na mesma faixa etária masculina dos criminalizados de acordo também com um estereótipo é introduzido em uma prática corrupta em razão do poder incontrolado a agência da qual passa a fazer parte e é treinado em um discurso externo moralizante e com uma prática interna corrupta Ibid p138 Grifos no original Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 325 deterioração pelo qual passam os futuros operadores das agências judiciais do sistema penal A burocratização como forma de deterioração da pessoa que opera no órgão judicial do sistema penal se inicia por vezes dentro da própria universidade Seu processo de treinamento realizase mediante uma paciente internalização de sinais de falso poder solenidades tratamentos monárquicos placas especiais ou automóveis com insígnias saudações militarizadas do pessoal de tropa de outras agências etc62 Esses sinais de poder iniciam na própria forma como se relacionam alunos e professores De uma maneira geral podese dizer que em muitos casos a postura do docente da área jurídica é um poço de narcisismo egocentrismo e autossuficiência Essa situação gera uma relação autoritária e vertical um verdadeiro monólogo que logo é assimilada também pelo corpo discente63 Tal postura pode ser identificada nos diversos operadores jurídicos o que parece lógico tendo em vista que todos passaram pela mesma formação Após o processo de treinamento burocratizante o indivíduo já deve responder às exigências do papel que lhe for atribuído segundo as características de assepsia ideológica certa neutralidade valorativa sobriedade em tudo suficiência e segurança de resposta e em geral um certo modelo de executivo sênior com discurso moralizante e paternalista ou uma imagem de que na devida idade responderá a este modelo64 O processo de formação do jurista tornase em verdade uma deformação Concluise assim que perante os diversos sujeitos implicados na operacionalidade do sistema penal é ele um complexo aparelho de deterioração regressiva humana que condiciona falsas identidades e papéis negativos65 Ao reproduzir os papéis a academia se torna também uma agência do sistema penal e da mesma forma pratica reiteradamente a violação de direitos humanos daqueles que por ela passam 4 o PAPEl Do EnSino cRítico Do DiREito PEnAl E o imPERAtiVo ético DE EVitAR A moRtE As alternativas ao ensino do Direito Penal dogmático passam pela compreensão de que o próprio sistema penal que o discurso dogmático legitima já não pode ser considerado de acordo com suas promessas Sabese que o mesmo exerce função oposta à declarada posto que ao invés de garantia ao indivíduo e racionalização das penas legitima a arbitrariedade seletiva inerente à operacionalidade do sistema penal Dessa maneira ensinar um Direito Penal crítico ciente das funções reais cumpridas tornase uma forma de diminuição da violência seja em relação aos operadores que sofrem uma deterioração de sua personalidade seja das mortes que caracterizam a sua operacionalidade Nesse sentido Batista traz em uma das obras que buscam propor um estudo do 62 Ibid p133 63 RODRIGUES Horácio Wanderlei Ensino jurídico e direito alternativo São Paulo Acadêmica 1993 p79 64 ZAFFARONI Eugenio Raúl p141 65 Ibid p143 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 326 Direito Penal de maneira crítica a percepção de que apesar de o Direito Penal ter como missão a proteção dos bens jurídicos é necessário que se saiba que numa sociedade dividida em classes o direito penal estará protegendo relações sociais ou interesses ou estados sociais ou valores escolhidos pela classe dominante ainda que aparentem certa universalidade e contribuindo para a reprodução dessas relações Efeitos sociais não declarados da pena também configuram nessas sociedades uma espécie de missão secreta do direito penal 66 A crítica aos paradigmas atuais deve ser conciliada à reconstrução de novas formas de se fazer o direito de maneira que se possa avançar Cumpre verificar de acordo com a evolução dos direitos humanos no mundo que a vida em geral e a dignidade da pessoa humana em especial são os maiores valores e devem ser preservadas dos efeitos destrutivos do sistema penal Tal visão está juridicamente ancorada ainda na Constituição Federal de 1988 a qual expõe como um dos fundamentos da República a dignidade da pessoa humana art 1 III além de prever vários direitos e garantias individuais para preservála67 Além disso prevê direitos sociais econômicos e culturais para sua efetivação Através dessa percepção ao invés de auxiliar a reprodução do positivismo do formalismo e do conservadorismo como tem ocorrido desde a sua fundação no Brasil o ensino jurídico deve buscar a construção de uma sociedade mais justa e democrática mais fraterna e solidária Sua função deve ser formar agentes sociais críticos competentes e comprometidos com as mudanças emergentes com o novo Profissionais do Direito que possuam uma qualificação técnica de alto nível acompanhada de uma consciência de seu papel social da importância estratégica que possuem todas as atividades jurídicas no mundo contemporâneo e portanto da responsabilidade que lhes compete nessa caminhada Em resumo que os cursos jurídicos sejam instrumentos de construção da verdadeira cidadania68 A resposta a ser dada por parte dos operadores do direito às consequências do exercício do Direito Penal deslegitimado está fundamentada também para Zaffaroni 66 BATISTA Nilo Introdução crítica ao direito penal Rio de Janeiro Revan 1990 p116 É necessário observar que existem já manuais de direito penal no Brasil que possibilitam uma perspectiva mais crítica sobre a dogmática Alguns exemplos são SANTOS Juarez Cirino dos Direito penal parte geral Curitiba Lúmen Júris 2006 ZAFFARONI Eugenio Raúl BATISTA Nilo et al Direito penal brasileiro v I 2 ed Rio de Janeiro Revan 2003 ZAFFARONI Eugenio Raúl PIERANGELI José Henrique Manual de direito penal brasileiro 6 ed São Paulo Revista dos Tribunais 2006 67 BRASIL Constituição 1988 Emenda constitucional nº 32 de 11 de setembro de 2001 Constituição Federal Código Penal Código de Processo Penal 5 ed São Paulo Revista dos Tribunais 2005 68 RODRIGUES Horácio Wanderlei Ensino jurídico e direito alternativo op cit p109 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 327 em um imperativo ético Tal imperativo ético se constituiria no fato de que a posição daqueles que hoje operam as agências o sistema penal seria um milagre no sentido etimológico do termo uma maravilha resultante de o indivíduo ter passado por todos os riscos que prendem a muitos no caminho podendo chegar enfim a um elevado grau de saber com as consequências que isso gera Pondo a nu o desprezo pela vida humana praticado no exercício de poder no qual o juiz ou catedrático erigese como operador cria um imperativo de consciência iniludível um compromisso com todos aqueles que não puderam ser beneficiados pelo milagre69 Assim a resposta marginal deve se dar com perspectivas otimistas em relação às possibilidades de redução da violência com a priorização da pessoa como base e o desvalor da destruição da vida humana70 Esta fundamentação encontra hoje uma reafirmação positivada nos instrumentos internacionais dos direitos humanos como anseio da comunidade internacional71 A partir disso parece ser necessário se colocar em colaboração criminologia crítica e Direito Penal que também será crítico de forma a vincular ao discurso jurídico penal o ideal de proteção dos direitos humanos Como nota Aniyar de Castro o garantismo ou respeito vigilância e garantia dos direitos humanos se converteria assim na zona de intersecção de ambos os círculos e no objetivo de alto nível na escala de prioridades de ambas as disciplinas72 Dessa forma o papel da universidade seria justamente o de criação de um discurso jurídicopenal aberto e garantidor Em primeiro lugar é necessário introduzir um discurso diferente e não violento nas fábricas reprodutoras da ideologia do sistema penal ou seja nas universidades e centros de terceiro grau73 Sabendose que o direito em geral e o Direito Penal de maneira específica dentro de uma perspectiva sociológica conflitual são mecanismos de opressão no sentido de que são impostos pelos grupos dominantes e destinados a manter os opressores e oprimidos nos mesmos lugares em que se encontram um Direito Penal crítico deve justamente pôr no centro da reflexão a própria lógica de dominação e de opressão Caso contrário os novos profissionais do direito serão mais braços opressores e não haverá a diminuição a violência Assim a libertação deve ser o objetivo daqueles que lutam por um Direito Penal crítico pela destituição de poder do sistema penal de maneira que a violência e as mortes que o caracterizam possam deixar de existir A partir daí acreditando na possibilidade de mudança da realidade em função de um estudo aprofundado dos efeitos da operacionalidade do sistema penal partese da consciência ingênua que caracteriza a assepsia do dogmatismo para uma consciência crítica que busca se 69 ZAFFARONI Eugenio Raúl op cit p154 Grifos no original 70 Ibid p171 71 Ibid Grifos no original 72 ANIYAR DE CASTRO Lola Criminologia da libertação Rio de Janeiro RevanICC 2005 p125 73 ZAFFARONI Eugenio Raúl op cit p175 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 328 livrar de preconceitos repele posições quietistas é indagadora investiga força choca74 5 concluSão A realidade dos sistemas penais latino americanos tem como principal característica a violência e a morte Diante dos argumentos dos criminólogos críticos que estabelecem a deslegitimação do sistema penal e consequentemente do discurso jurídicopenal devese questionar porque o Direito Penal ainda é ensinado de maneira dogmática E qual função é cumprida pela universidade nesse contexto Percebese então que tal função é a de relegitimar continuamente o sistema penal gerando bacharéis alheios à realidade preocupados apenas com a codificação com a manualística Para fazer frente à violência profunda que assola toda a região marginal latino americana é necessário partir para a mudança das várias instituições que a perpetuam Por isso modificar o ensino do Direito Penal para gerar bacharéis diferentes críticos serve para modificar a base operacional do sistema penal Dessa maneira podese agir de maneira a diminuir a dor a violência e a morte que caracterizam essa operacionalidade A construção de um discurso jurídicopenal condizente com o objetivo principal de salvar vidas humanas passa necessariamente pela universidade Reduzir os níveis de violência significa salvar vidas e isso no atual contexto genocida é revolucionário é parte de uma revolução pela vida indispensável à nossa subsistência75 Perceber o problema da segurança pública como destacada das questões sociais das mudanças no sistema econômico e da ascensão do neoliberalismo é esquecer da realidade por trás dos códigos e legitimar a violência e a morte Evitar a morte é o resultado portanto de se formar operadores do direito críticos e cientes da necessidade de mudança e de abandono da repressão penal REfERênciAS ADORNO Sérgio Os aprendizes do poder o bacharelismo na política brasileira Rio de Janeiro Paz e Terra 1988 ALVES Elizete Lanzoni A docência e a interdisciplinaridade um desafio pedagógico In COLAÇO Thais Luzia Org Aprendendo a ensinar direito o Direito Florianópolis OABSC 2006 ANDRADE Vera Regina Pereira de A ilusão de segurança jurídica do controle da 74 FREIRE Paulo Educação e mudança 10 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 1983 75 ZAFFARONI Eugenio Raúl op cit 218 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 329 violência à violência do controle penal 2ed Porto Alegre Livraria do Advogado 2003 Dogmática jurídica escorço de sua configuração e identidade Porto Alegre Livraria do Advogado 1996 ANIYAR DE CASTRO Lola Criminologia da libertação Rio de Janeiro RevanICC 2005 ARRUDA JR Edmundo Lima de Bacharéis em Direito e crise de Mercado de Trabalho algumas reflexões Sequência estudos jurídicos e políticos Florianópolis n6 dez 1981 BARATTA Alessandro Criminologia crítica e crítica do direito penal 3ed Rio de Janeiro RevanICC 2002 Direitos Humanos entre a violência estrutural e a violência penal Fascículos de Ciências Penais Porto Alegre v6 n2 p4461 abrmaiojun Principios del derecho penal mínimo In ELBERT Carlos Alberto BELLOQUI Laura orgs Criminología y sistema penal Compilación in memorian p299333 Buenos Aires Julio César Faira 2004 BASTOS Aurélio Wander Ensino jurídico tópicos para estudo e análise Sequência estudos jurídicos e políticos Florianópolis v4 dez 1981 p5972 O ensino jurídico no Brasil e as suas personalidades históricas uma recuperação de seu passado para reconhecer seu futuro In Ensino jurídico OAB 170 anos de cursos jurídicos no Brasil p3555 Brasília OAB Conselho Federal 1997 O ensino jurídico no Brasil 2ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2000 BATISTA Nilo Introdução crítica ao direito penal Rio de Janeiro Revan 1990 BECCARIA Cesare Dos delitos e das penas São Paulo Martins Fontes 1997 BECKER Fernando Modelos pedagógicos e modelos epistemológicos Educação e realidade Porto Alegre UFRGS v19 n1 janjun 1993 BECKER Howard Outsiders Studies in the sociology of deviance New York The Free Press 1996 BRASIL Constituição 1988 Emenda constitucional nº 32 de 11 de setembro de 2001 Constituição Federal Código Penal Código de Processo Penal 5ed São Paulo Revista dos Tribunais 2005 CARVALHO José Murilo de Carvalho A construção da ordem a elite política imperial Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2003 COHEN Stanley Visiones del control social delitos castigos y clasificaciones Barcelona PPU 1988 COLAÇO Thais Luzia O ensino do direito no Brasil e a elite nacional Congresso de História das Universidades da Europa e da América Cartagena Colômbia nov 2004 DEL OLMO Rosa A América Latina e sua criminologia Rio de Janeiro RevanICC 2004 DIAS Jorge de Figueiredo ANDRADE Manuel da Costa Criminologia O homem delinquente e a sociedade criminógena Coimbra Coimbra 1997 FOUCAULT Michel Vigiar e punir história da violência nas prisões 3ed Petrópolis Vozes 1984 FREIRE Paulo Educação e mudança 10ed Rio de Janeiro Paz e Terra 1983 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 330 Pedagogia do oprimido 43ed Rio de Janeiro Paz e Terra 2005 CID MOLINÉ José LARRAURI PIJOAN Elena Teorías criminológicas Explicación y prevención de la delincuencia Barcelona Bosch 2001 LEMERT Edwin M Social pathology A systematic approach to the theory of sociopathic behavior New York McGrawHill Book Company 1951 LIMA JR Jayme Benvenuto org Execuções sumárias arbitrárias ou extrajudiciais Uma aproximação da realidade brasileira Recife 2001 LOPES José Reinaldo de Lima O direito na história lições introdutórias São Paulo Max Limonad 2000 MACHADO Antônio Alberto Ensino jurídico e mudança social Franca UNESP FHDSS 2005 RODRIGUES Horácio Wanderlei Ensino jurídico e direito alternativo São Paulo Acadêmica 1993 O ensino jurídico de graduação no Brasil contemporâneo análise e perspectivas a partir da proposta alternativa de Roberto Lyra Filho 193 f Dissertação Mestrado em Direito Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis 1987 RUSCHE Georg KIRCHHEIMER Otto Punição e estrutura social 2ed Rio de Janeiro Revan ICC 2004 SANTOS Juarez Cirino dos Direito penal parte geral Curitiba Lumen Juris 2006 Política criminal realidades e ilusões do discurso penal Discursos Sediciosos crime direito e sociedade Rio de Janeiro ano 7 n12 p5357 julhodezembro 2002 VENTURA Deisy Ensinar direito Barueri Manole 2004 ZAFFARONI Eugenio Raúl Em busca das penas perdidas a perda de legitimidade do sistema penal Rio de Janeiro Revan 1991 ZAFFARONI Eugenio Raúl BATISTA Nilo et al Direito penal brasileiro vol I 2ed Rio de Janeiro Revan 2003 ZAFFARONI Eugenio Raúl PIERANGELI José Henrique Manual de direito penal brasileiro 6ed São Paulo Revista dos Tribunais 2006 Direito e Democracia v10 n2 p331343 juldez 2009 Canoas Giorgio Agamben e o garantismo razões de um desencontro moysés da fontoura Pinto neto RESumo No presente artigo traço uma crítica às apropriações do pensamento do filósofo Giorgio Agamben por grande parte dos juristas nas quais sua crítica ao estado de exceção é vinculada a uma reafirmação do garantismo do Estado de Direito e dos direitos humanos Sustento em sentido contrário que as instituições liberais para Agamben são apenas formas de encobrimento da matriz oculta arcanum imperii do Poder Soberano o poder de vida e morte sobre o homo sacer estrutura que a secularização não eliminou Por isso na pouco conhecida parte propositiva do pensamento de Agamben a ênfase é para uma política que vem na qual conceitos hoje centrais como soberania direitos humanos e contrato social perdem seu papel Palavraschave Agamben Garantismo Soberania Exceção Direito Profanação Agamben and guarantism Reasons of a misencounter ABStRAct In this paper Im tracing a critic of the philosopher Giorgio Agambens thinking appropriations by the majority of jurists in what they relate his critique of the state of exception to a reaffirmation of guarantism Rule of Law and human rights I affirm in an opposite way that the liberal institutions for Agamben are just forms of hiding the occult matrix arcanum imperii of Sovereign Power the power of life and death on the homo sacer structure which the secularization didnt eliminate Because of this in the notwellknown propositional part of the Agambens thinking the emphasis is to an incoming politics in what todays central concepts like sovereign human rights and social contract lose their relevance Keywords Agamben Guarantism Sovereign Exception Right Profanation 1 AGAmBEn cRítico Do EStADo DE ExcEção A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é na verdade a regra geral Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade Nesse momento perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção com isso nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo Walter Benjamin Oitava Tese sobre a História Moysés da Fontoura Pinto Neto é professor de Criminologia e Direito Penal da Universidade Luterana do Brasil Doutorando em Filosofia PUCRS Mestre e especialista em Ciências Criminais pela PUCRS Conselheiro e pesquisador do ICA Instituto de Criminologia e Alteridade Email moysespintonetoyahoocombr Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 332 Não pode haver frustração maior ao estudioso do pensamento de Michel Foucault do que saber que no campo jurídico o francês que redefiniu a filosofia política moderna e elaborou um pensamento microfísico do poder estendido em redes de saberpoder com seus respectivos regimes de verdade é reduzido a um crítico da pena de prisão Certamente o Direito não é a única área que não levou ao extremo o pensamento de Foucault ou simplesmente não o entendeu mas reduzir o complexo e poderoso pensamento do autor a Vigiar a Punir é uma falta tão grande quanto reduzir esse livro teorizador do poder exercido na sua nervura concreta do seu caráter positivo e das estruturas disciplinares da sociedade moderna a uma crítica da pena de prisão Ao que parece o pensamento filosófico de Giorgio Agamben que rapidamente vai entrando no campo jurídico e se tornando a nova moda segue o mesmo caminho É verdade que a prosa de Agamben não é exatamente generosa com o leitor ao aproximar se facilmente da poesia no seu estilo bastante direto e às vezes crítico No entanto a recepção desse pensador que questionou as bases da filosofia política contemporânea colocando em xeque conceitos centrais como soberania e direitos humanos não deve reduzilo apenas a um crítico do estado de exceção A riqueza das proposições que Agamben põe na linhagem que remete à crítica devastadora da Modernidade efetuada pela Escola de Frankfurt especialmente na figura de Walter Benjamin complementada com a reflexão sobre a biopolítica iniciada por Michel Foucault não pode ser reduzida à defesa do Estado de Direito e das garantias individuais ou da extensão dos direitos humanos à vida nua Esse trabalho foi feito e muito bem pelo também italiano Luigi Ferrajoli por exemplo que rechaça com propriedade todas as intervenções do Estado Policial e reitera a crença nos valores liberais ainda que agora com maior feição socialdemocrata na defesa da implementação dos direitos sociais dando origem ao que hoje se chama de garantismo O problema de Giorgio Agamben é definitivamente outro1 O presente artigo tem a finalidade de familiarizar o leitor com alguns conceitos desse filósofo que contra todas as suposições mantém um caráter relativamente sistemático no seu pensamento estruturando conceitos como meios puros infância brinquedo vida nua estado de exceção profanação e política que vem ao longo da sua extensa bibliografia Assim o leitor jurista que se aproxima do autor a partir de Estado de Exceção sua penúltima obra pode perder parte fundamental da discussão posta em jogo 2 A SAlA DE ESPElhoS filoSÓficA Os textos de Giorgio Agamben têm uma estrutura verdadeiramente especular ou seja entrar em um ensaio de Agamben significa mergulhar em conceitos pressupostos que remetem a outros trabalhos do autor É como se estivéssemos ingressando em uma 1 Isso não significa não serem possíveis tais conjugações apenas se está sinalando que do ponto de vista das teses de Agamben o recurso ao garantismo não tem consistência e é preciso pensar saídas muito mais radicais para as aporias que propõe Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 333 sala de espelhos na qual a história da filosofia e a admiração de Agamben pela filosofia clássica parece evidente vai sendo projetada mediante uma série de referências que são tecidas conjuntamente ao longo da sua prosa Nesse sentido é possível identificar influências que vão de Aristóteles conceitos de potência e gesto Platão as ideias Spinoza ética e felicidade imanência absoluta Hegel negatividade até mais recentes como Heidegger Hannah Arendt Michel Foucault Gilles Deleuze e principalmente Walter Benjamin Além desses é constante a interlocução com Antonio Negri Jacques Derrida Emmanuel Levinas Hans Jonas Georges Bataille JeanLuc Nancy e Karl OttoApel muitas vezes em sentido crítico e linguistas como Sausurre Benveniste e Jakobson Poderíamos dizer que a filosofia de Agamben é continuação das obras de Michel Foucault na filosofia política e tentativa de resposta aos dilemas apontados por Hannah Arendt como limites da política ocidental em especial o problema dos campos de concentração Mas o autor recupera ao mesmo tempo categorias do pensamento de Walter Benjamin que confrontam a tradição a partir de conceitos teológicos messianismo tempo que resta redenção e profanação dos resíduos sagrados que persistem mesmo nos laicos Estados de Direito ocidentais Esse pequeno mapa da sala de espelhos que é a filosofia de Agamben2 já mostra sua descontinuidade com propostas que se limitariam a afirmar os direitos humanos e a democracia liberal em contraponto ao uso cada vez mais constante da figura genérica do estado de exceção Não se trata em absoluto disso Embora os Estados contemporâneos cada vez mais recorram a técnicas de Estado de Emergência configurando a situação em que a exceção vira regra podemos dizer que para Agamben essa banalização da estratégia do estado de exceção é apenas sintoma não o mal em si a ser atacado que é mais profundo 3 filoSofiA PolíticA E fActiciDADE A questão tradicional da filosofia política poderia ser esquematicamente formulada nesses termos como pode o discurso da verdade ou simplesmente a filosofia entendida como discurso da verdade por excelência fixar os limites de direito do poder Eu preferiria colocar uma outra mais elementar e muito mais concreta em relação a esta pergunta tradicional nobre e filosófica de que regras de direito as relações de poder lançam mão para produzir discursos de verdade Michel Foucault em Soberania e Disciplina A ideia de contrato social que subjaz à maior parte das teorias constitucionalistas e de filosofia política em geral é inegavelmente herança metafísica herdada dospelos 2 Uma exata delimitação do campo intelectual em que se insere Giorgio Agamben é realizada pelo próprio autor no texto A Imanência Absoluta 2005a p481522 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 334 teóricos liberais do século XVIII Apoiar a política sobre a ideia de contrato social significa em outros termos basearse em um fundamento pressuposto porém jamais ocorrido na sua facticidade3 Todo o discurso dos direitos humanos ou fundamentais e da supremacia constitucional depende dessa premissa do contrato social articulador dos direitos e deveres do cidadão um sujeito abstrato igual e livre no Estado de Direito Sem esse suporte metafísico o discurso tornase puramente dogmático É justamente sob esse prisma que devemos perceber o tecido sobre o qual se constrói a filosofia de Giorgio Agamben Aqui sem dúvida alguma há uma inequívoca remissão a Martin Heidegger cuja crítica à ontoteologia é feita justamente apoiada na facticidade A tentativa do pensamento ontoteológico de escapar à finitude entendendo a realidade em caráter absoluto seria justamente a maior fraqueza da tradição que deixou de perceber a finitude no seu caráter positivo Partindose da facticidade percebese que a essência da presença Dasein está em sua existência e que o que onticamente é conhecido e constitui o mais próximo é ontologicamente o mais distante o desconhecido e o que constantemente se desconsidera em seu significado ontológico HEIDEGGER 2006 p87 Ou seja a ontoteologia salta por cima desses pressupostos em direção à metafísica tradicional A facticidade será o único ponto de partida legítimo de uma filosofia que destrói a tradição BORNHEIM 1972 p139 STEIN 2004 p113121 LEVINAS 2005 p22 VATTIMO 1996 p724 CAPUTO 1993 p6593 AGAMBEN 2005a p390 e 2002a p157 Tratase então de uma espécie de encurtamento do campo de indagação filosófico desconectandoa da teologia e da necessidade de encontrar um ponto de vista fora da condição de ser nomundo Porém se o território típico de Heidegger é a ontologia será Michel Foucault o pensador que irá se apropriar do pensamento da facticidade para entender as relações de poder4 Foucault irá pensar a política para aquém da ideia de sujeito normativo típica da Modernidade e ainda presente mesmo naqueles pensadores que reivindicam se integrar à era pósmetafísica por exemplo Habermas Para isso terá de se deslocar da metafísica do contrato social e seu conceito de homem para as relações concretas de poder que se dão a partir dos aparatos disciplinares e das estratégias de saberpoder 3 A concepção de metafísica aqui adotada é a heideggeriana que remete à ontoteologia Deixase de lado por hora a questão do construcionismo de John Rawls que pretende uma concepção política nãometafísica do contrato social OLIVEIRA 1999 p56 É interessante observar que todas as descrições constitucionalistas põem o contrato social como premissa ainda que por vezes a construir Quer dizer mesmo aqueles que admitem a Constituição como processo em construção têm como premissa a ideia de que está constituída a sociedade ou mesmo em versões ainda mais duvidosas a comunidade como se um documento normativo fosse capaz de transformar uma estrutura social profundamente enraizada na faticidade do seu acontecimento em algo distinto como verdadeira fictio juris Sobre o tema ver o paralelo exato que Agamben traça entre o Direito e seu fora e simultaneamente a ontoteologia o logos e sua relação com o ser AGAMBEN 2004 p923 Ver também Agamben 2002a p98 4 Assim embora Foucault afirme em sua última entrevista que foi Nietzsche que preponderou na sua trajetória é certo que também afirma ter sido sua leitura de Heidegger que determinou sua formação Ver Oliveira 1999 p152 Duarte 2006 Iríamos mais longe para afirmar que é simplesmente impossível compreender o pensamento de Foucault sem o prévio solo formado por Heidegger sob pena de se cair em um esteticismo apolítico ou relativismo insípido É bom se anotar no entanto que o Nietzsche da Genealogia da Moral não por acaso uma das obras centrais para Foucault está muito próximo da facticidade e das relações efetivas de poder OLIVEIRA 2004 p151 E que de certa forma Nietzsche foi o primeiro a encurtar o horizonte filosófico ao propor a morte de Deus Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 335 Das grandes discussões sobre os fundamentos do contrato gerações de direitos e garantias do cidadão Foucault irá se deslocar até as extremidades do controle social do poder exercido de forma quase invisível pequena ou insignificante nos sistemas prêmiocastigo das instituições típicas da Modernidade fábrica manicômio prisão etc Da discussão sobre a atuação dos principais agentes do Estado o soberano o juiz o legislador deslocase para os especialistas que submetem indivíduos de forma dispersa sem precisar da exibição expressionista típica dos monarcas absolutos Assim aquilo que o discurso moderno caracteriza como uma racionalização do poder inspirada nas luzes é para Foucault apenas uma mudança na estratégia de controle que em vez de se exercer de forma repressiva e expressiva ex suplício passa a se efetivar de forma positiva econômica e dispersa especialmente por meio da estratégia disciplinar ex prisão 1999 p1085 Essa dispersão coloca ainda em xeque a suposta centralização do poder típica premissa pressuposta no discurso jurídicoliberal a partir da figura do Estado Para Michel Foucault ao contrário e nesse ponto lembrando bastante Norbert Elias o poder é sobretudo uma relação e por isso está disperso ao longo de todas as relações sociais inclusive as de conhecimento que se pretendem neutras O gesto de Foucault permite romper com o obstáculo jurídico que impunha a concepção abstrata e metafísica do sujeito normativo como primeira figura da filosofia política6 Removendo esse obstáculo Foucault permitenos vislumbrar o poder incidindo no próprio corpo dos sujeitos abrindo a reflexão para além de critérios metafísiconormativos Como diz o próprio Agamben sobre Foucault uma das orientações mais constantes do trabalho de Foucault é o decidido abandono da abordagem tradicional do problema do poder baseada em modelos jurídicoinstitucionais a definição da soberania a teoria do Estado na direção de uma análise sem preconceito dos modos concretos com que o poder penetra no próprio corpo de seus sujeitos e em suas formas de vida 2002a p13 5 Em outras palavras Foucault compreendeu que a partir do momento em que a vida passou a se constituir no elemento político por excelência o qual tem de ser administrado calculado gerido regrado e normalizado o que se observa não é um decréscimo da violência muito pelo contrário pois tal cuidado da vida traz consigo de maneira necessária a exigência contínua e crescente da morte em massa visto que é apenas no contraponto da violência depuradora que se podem garantir mais e melhores meios de sobrevivência a uma dada população Não há portanto contradição entre biopolítica e tanatopolítica isto é entre o poder de gerência e incremento da vida e o poder de matar aos milhões para garantir as melhores condições vitais possíveis A descoberta da importância política do racismo como forma privilegiada de atuação estatal fartamente empregada ao longo do surto imperialista europeu do século XIX e radicalizada cotidianamente ao longo do século XX tendo no nazismo e no stalinismo seu ápice tem de ser compreendida segundo os termos daquela mutação operada na própria natureza do exercício do poder soberano Para Foucault num contexto histórico biopolítico não há Estado que não se valha de formas amplas e variadas de racismo como justificativa para exercer seu direito de matar em nome da preservação da intensificação e da purificação da vida DUARTE 2006 6 E poderíamos afirmar as teorias jurídicas em geral Não é coincidência que a maioria dos manuais jurídicos comece por uma história abstrata do Direito não obstante o contrasenso que fica evidente no próprio conceito de história abstrata Ou por exemplo que os livros de Direito Constitucional estejam todos amparados na ideia de Constituição enquanto um pacto social a par do fato de que a maioria delas não foi feita sob esses auspícios Daí que as descrições remetam às abstrações dos jusnaturalistas do século XVIII baseadas no indivíduo livre e racional Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 336 Dessa forma a política até então reflexão baseada em uma teoria aprisionada pelo jurídico é pensada enquanto biopolítica na medida em que os saberes modernos colocam o corpo como objeto central do poder mediante uma estratégia disciplinar levada a cabo por especialistas de diversas ordens psiquiatras psicólogos juristas criminólogos policiais etc FOUCAULT 2007 p146158 2006 p179191 Agamben define seu próprio trabalho especificamente na obra ainda inacabada Homo Sacer como uma continuação da investigação foucaultiana7 interrompida pela morte deste Seu foco é a interface entre a biopolítica trazida à luz e os modelos jurídicoinstitucionais Como se dão essas conexões 4 A GEnEAloGiA Do homo SAcER Somente em um horizonte biopolítico de fato será possível decidir se as categorias sobre cujas oposições fundouse a política moderna direitaesquerda privado público absolutismodemocracia etc e que foram progressivamente esfumando a ponto de entrarem hoje numa verdadeira e própria zona de indiscernibilidade deverão ser definitivamente abandonadas ou poderão eventualmente reencontrar o significado que naquele próprio horizonte haviam perdido Giorgio Agamben em Homo Sacer É mais uma vez Walter Benjamin que inspira Agamben nas suas reflexões presentes no primeiro volume de Homo Sacer O Poder Soberano e a Vida Nua O trabalho explicitador das afirmações elípticas de Benjamin em expressões como vida nua o estado de emergência é a regra linguagem pura etc revela a profunda admiração de Agamben pelo filósofo que se suicida pouco antes da II Guerra Mundial após descobrir que ele judeu seria capturado pelas tropas alemãs Benjamin certa vez coloca sob suspeição o dogma da sacralidade da vida e afirma ser necessária uma detida investigação sobre ele AGAMBEN 2002a p74 É essa a tarefa que Agamben realiza Efetuando uma genealogia que remete ao termo homo sacer figura do direito romano que a um só tempo poderia ser morta por qualquer um mas jamais sacrificada aos deuses ele identifica aqui uma figuralimite que marca o poder soberano O homo sacer fica submetido à morte por qualquer um sem que sua eliminação consista em um sacrifício ou um homicídio Essa dúplice exclusão do mundo profano do homicídio e do mundo sagrado do sacrifício marca uma estrutura de violência que é o verso do corpo soberano Kantorowicz estudara em Os Dois Corpos do Rei essa figura análoga ao homo sacer pois sobrevive mesmo após a morte incompatível com o mundo 7 Não se pode desprezar jamais no entanto a herança de Walter Benjamin que Agamben sempre faz questão de referir e que pode ser equacionada em termos metodológicos a partir do materialismo histórico destituído de todo seu caráter economicista Ver Agamben 1993 p109123 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 337 humano que é O excedente de poder do soberano é precisamente aquilo que pode ser definido como a capacidade de constituir a si e aos outros como vida matável e insacrificável8 AGAMBEN 2002a p1078 FOUCAULT 2007 p147 A figura da vida sacra ou nua remetida genealogicamente para o direito romano no homo sacer esteve desde sempre presente e permanece na política ocidental Agamben está de acordo com Carl Schmitt em considerar as categorias jurídicopolíticas como secularizações de conceitos teológicos mantendo as estruturas intactas ainda que alterados os atores AGAMBEN 2002b p6870 2005b p110 Como consta na epígrafe logo acima é somente sob o pano de fundo biopolítico que as questões da Modernidade podem ser equacionadas e resolvidas Como antecipa o filósofo já no prólogo de Homo Sacer a implicação da vida nua na esfera política constitui o núcleo originário ainda que encoberto do poder soberano Podese dizer aliás que a produção de um corpo biopolítico seja a contribuição original do poder soberano A biopolítica é nesse sentido pelo menos tão antiga quanto a exceção soberana AGAMBEN 2002a p15 Por isso na era biopolítica contemporânea o judeu no campo de concentração desempenha o mesmo papel do homo sacer do direito romano sendo matável por qualquer um sem que com isso exista homicídio O que pode parecer acidente para Agamben é um destino9 natural da política ocidental que apenas torna visível a estrutura que corre subterrânea no rio da biopolítica Apenas a persistência da figura do homo sacer é capaz de explicar a capacidade de fácil permuta entre os regimes totalitários e as democracias liberais sem que a maioria dos conceitos e instituições sofra mudanças drásticas Nesse sentido é preciso entender que certos eventos tal como a Shoah não devem ser compreendidos como desvios do projeto moderno mas como o trazer à visibilidade o que por vezes está oculto e apesar disso é o fundamento do poder soberano O homo sacer está portanto aquém de qualquer direito a que faça jus o cidadão lacuna que Hannah Arendt já havia identificado nas suas análises dos regimes totalitários Essa ambiguidade extremada no próprio título da Declaração dos direitos do homem e do cidadão revela que é a cobertura soberana que garante os direitos humanos pretensamente universais mas sempre produtores de um resíduo sem cobertura denominado vida nua Sua relação com o Estado é de abandono ou seja uma espécie de exclusão inclusiva como na exceção em que a figura é incluída apenas para ser excluída ficando capturada fora excapere AGAMBEN 2002a p2810 8 Vale referir mais um trecho de Homo Sacer o espaço político da soberania terseia constituído portanto através de uma dúplice exceção como uma excrescência do profano no religioso e do religioso no profano que configura uma zona de indiferença entre sacrifício e homicídio Soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício e sacra isto é matável e insacrificável é a vida que foi captura nesta esfera AGAMBEN 2002a p91 9 Para uma explicitação do que é destino ver Agamben 2006 p122 10 Percebase que a tese de Agamben abre novo campo para observação da relação da vida nua com o Estado que ao contrário do que se convencionalmente coloca não é de exclusão mas de captura fora ou seja uma exclusão inclusiva na qual a relação se mantém em forma de bando A ideia de excluído típica das ciências humanas e da filosofia da libertação por isso deveria ganhar mais rigor técnico e ser substituída pela de abandonado ou capturado fora na medida em que a relação com o soberano permanece ainda que o indivíduo esteja fora da lei Percebase que essa é a única explicação razoável para o fato de que é precisamente a vida nua os habitantes dos morros cariocas pex que sente a força do Estado na sua nervura mais intensa da tortura ao extermínio apesar de estar do lado de fora dela em relação pex aos direitos sociais Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 338 Por sua vez o estado de exceção na outra ponta da estrutura que cria o homo sacer é o poder de o soberano suspender as regras jurídicas sem revogálas criando uma figura híbrida que permanece na fronteira entre jurídico e político O estado de exceção consiste na norma que é aplicada na sua desaplicação Seu signo não é o excesso de poderes mas precisamente o vazio que é preenchido por uma decisão soberana A estrutura antes de manifestar uma confusão de poderes é antes uma substituição da lei por decisões com força de lei ou melhor força de lei11 A lei nesse caso não é substituída por outra que proibiria ou permitiria determinadas condutas mas apenas suspensa criando um vazio onde se infiltraria o estado de exceção E o campo é precisamente o lugar onde esse vazio jurídico se espacializa atuando o poder soberano diretamente sobre os corpos sem qualquer mediação da norma O correspondente topológico dessa estrutura segundo o próprio Agamben é o direito de resistência 2004 p23 Assim como o estado de exceção a resistência é inapreensível pelo Direito à medida que mesmo a sua previsão não é capaz de elidir o surgimento de novas formas de descumprimento legal Da mesma maneira o estado de exceção não pode ser reduzido às figuras do estado de sítio ou do estado de necessidade Mais uma vez a relação de captura fora se processa nos dois fenômenos o Direito só pode manter relação mediante uma inclusão para excluir Sua estrutura permanece inacessível ao Direito à medida que está na sua base como potência invisível sempre à disposição do soberano Que as grandes potências mundiais utilizem essa estratégia explicitamente e à exaustão não custa reafirmar é apenas sintoma do enfraquecimento dos mitos filosóficometafísicos que sustentam a democracia liberal12 5 A PRofAnAção Humanidade é o nome respeitoso dado a essa economia e a seus cálculos minuciosos Michel Foucault em Vigiar e Punir Mostrar o direito em sua nãorelação com a vida e a vida em sua nãorelação com o direito significa abrir entre eles um espaço para a ação humana que há algum tempo reivindicava para si o nome de política Giorgio Agamben em Estado de Exceção 11 Riscada 12 Que recentemente uma sólida democracia liberal tenha recorrido aos campos para combater inimigos é sintoma de que Agamben em 1995 não exagerava Sobre o tema conferir Pinto Neto 2008 Por outro lado impossível não pensar por exemplo nas constantes execuções em caráter de extermínio promovidas pelas polícias brasileiras figurando uma espécie de estado de exceção permanente no qual estão jogados os habitantes desses locais análogos aos campos Os juristas brasileiros no entanto negamse a explicitar positivamente essa estrutura preferindo apenas sinalizar um déficit de Constituição Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 339 Podemos dizer assim que Giorgio Agamben defende uma ampliação dos direitos humanos para atingir também ao homo sacer nos nossos dias miseráveis imigrantes ilegais combatentesinimigos etc que está aquém do Direito É justamente essa interpretação que modo geral tem prevalecido entre os juristas No entanto podemos dizer com certeza que não é a solução proposta pelo autor Primeiro pela razão óbvia que o próprio Agamben é oriundo do Direito sendo evidente que alguém com sua erudição não desconhece essas soluções constitucionalistas13 Mas esse não é o motivo mais importante Em contraponto à política ocidental enredada eternamente nos mesmos dilemas por não perceber a radicalidade das questões que se põem Agamben vislumbra uma política que vem Essa política não trabalhará mais com os conceitos jurídicopolíticos típicos da nossa sociedade como soberania direitos humanos nacionalidade cidadania Para o autor todos esses conceitos estão cingidos à lógica teológica e metafísica que não evitou os desastres da II Guerra Mundial e nem evita a repetição constante de Auschwitz que continua ocorrendo enquanto jogamos futebol AGAMBEN 2002b p2614 A metafísica do contrato social sempre pressupõe o sujeito normativo o cidadão fazendo permanentemente o jogo da captura fora em relação à vida nua A humanidade do vivente fica dependendo de uma máquina antropológica AGAMBEN 2002c p6976 2005a p4168 Mas por que não encampar simplesmente a ideia de progresso ou civilização e admitir como faz por exemplo Habermas a Modernidade como tarefa ainda a cumprir Porque para Agamben a estrutura do estado de exceção sempre permaneceu oculta e subterrânea sobre ela repousando o sistema político mesmo na Modernidade 2002a p17 A forma como a teoria do contrato social lidou com essa parcela de poder é precisamente na figura hobbesiana do estado de natureza O estado de natureza diz ele é na verdade estado de exceção em que a cidade se apresenta por um instante que é ao mesmo tempo intervalo cronológico e átimo intemporal tanquam dissoluta A fundação não é portanto um evento que se cumpre de uma vez por todas in illo tempore mas é continuamente operante no estado civil na forma da decisão soberana 2002a p115 Não é necessário muito esforço para perceber que o poder soberano mesmo nesses tempos de fim da história reivindica seguidamente a utilização do estado de exceção contra seus homines sacri sejam eles terroristas presos em Guantánamo párias sociais exterminados pela polícia brasileira ou imigrantes presos na zona de exceção de um aeroporto francês Quer dizer a estrutura da exceção não é corrigível pelo Direito ou pela Constituição mas pressuposta por ambos e necessária enquanto essência do poder soberano que lhes dá força Esse é ponto em que precisamente as leituras jurídicas de Agamben mostramse extremamente inapropriadas o estado de exceção não é o contrário do Estado de Direito antes é o que o sustenta As relações entre estado de exceção e Estado de Direito não são de antítese A exceção é aquilo que possibilita a visibilidade do Estado de Direito por vezes se tornando explícita em situações em que é ameaçada 13 O que por óbvio abrange o garantismo E se o garantismo trabalha para relegitimar o sistema punitivo ainda que admitindo deficiências e ilegitimidades inarredáveis parece óbvio que essa não é a intenção de Agamben que ataca todo quadro jurídicoconstitucional contemporâneo e quiçá o sistema penal seu ponto mais deficitário e doentio 14 Sob esse pressuposto Agamben recusa qualquer caráter místico ao extermínio dos judeus nos campos de concentração Why confer on extermination the prestige of the mystical AGAMBEN 2002b p32 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 340 Ao reduzir Agamben a um crítico das técnicas de emergência adotadas por vários Estados contemporâneos os juristas desperdiçam a nova leitura das relações entre direito e política proposta pelo filósofo italiano e tributária de Michel Foucault na qual o estado de exceção aparece como matriz oculta em toda teorização do Estado de Direito produzindo seus efeitos sobre aqueles que estão capturados fora do ordenamento jurídico Em um gesto heideggeriano Agamben possibilita aos juristas explicar positivamente a completa anomia em determinadas situações apesar da Constituição15 sem que se reduzam ao típico gesto metafísico da exclusão de tudo que não é logos lá apenas falta Constituição16 É aqui precisamente que entram particularidades pouco conhecidas das teses de Agamben O ensaio Elogio da Profanação por exemplo elucida algumas delas O filósofo italiano afirma que os juristas romanos sabiam o que significa propriamente profanar quer dizer restituir ao uso o que estava separado aos deuses na esfera do sacro Contestando a etimologia que ficou célebre em Durkheim e até hoje permanece por exemplo em Michel Maffesoli o autor afirma que religio não vem de religare mas de relegere ou seja colocar em uma esfera separada Profanar tecnicamente significa devolver ao uso comum o que foi separado na esfera sagrada sem ignorar que um dia aquilo pertenceu ao sacro mas provocando novo uso AGAMBEN 2007a p65 617 Se Agamben se dedica a analisar o potencial da profanação em relação ao que Benjamin chamara de a religião capitalista crêse que é também possível transplantar o gesto para a esfera dos modelos jurídicoinstitucionais Aquilo que outrora foi sagrado deve ser profanado A secularização apenas troca as peças sem mexer nas respectivas posições É a profanação que permite um novo uso desfazendo o jogo teológico político que até hoje ilumina o poder soberano e seu verso o homo sacer Somente nos desfazendo do sagrado num esforço que pode parecer paradoxal a muitos moderno18 é que seremos capazes de desativar a máquina que repete Auschwitz a todos os momentos Tudo oposto ao discurso constitucionalista que sacraliza a Constituição tornandoa indisponível aos viventes19 15 Percebase nesse sentido a inconsistência da teoria constitucionalista que sem facticidade sinala o déficit de direitos de segunda geração ou dimensão na população marginalizada Ora não é apenas a falta de prestações estatais que está em jogo O Estado Liberal no Brasil sequer se implementou na integralidade Habitantes de favelas morros e palafitas não veem respeitados sequer os direitos individuais sendo alvo preferencial de intervenções policiais sem qualquer limite Não se trata pois apenas de cidadãos que veem sonegadas prestações estatais mas estão em paridade na igualdade diante da lei tratase antes de uma estrutura hierárquica de sociedade em que alguns estão simplesmente aquém da lei 16 E imediatamente todos aqueles familiarizados com a desconstrução podem enxergar a possibilidade ventilada pelo próprio Derrida em Força de Lei da imediata desconstrução da teoria moderna do Direito que se estrutura a vontade de sistema é uma obsessão no mundo jurídico justamente a partir da marginalização e exclusão arbitrária de tudo aquilo sobre o qual não incide 17 O exemplo usado por Agamben é a discordância dos franciscanos em relação à interpretação do Papa João XXII sobre o consumo das coisas Os franciscanos reivindicavam uma relação com a coisa não que apagasse ou substituísse as normativas mas que desativasse qualquer direito sobre o item restringindoo ao puro uso AGAMBEN 2007 p72 18 Conferir nesse aspecto o brilhante artigo de Vladimir Safatle sobre Walter Benjamin que posiciona Agamben justamente nesse sentido 200832 Ver também Agamben 2006 p125 19 É a razão pela qual Catherine Mills define Agamben e Derrida como autores de um espaço pósjurídico MILLS 2008 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 341 É nesse sentido que devem ser compreendidas afirmações como a que encerra parte de Estado de Exceção quando afirma que um dia a humanidade brincará com o direito como as crianças brincam com os objetos fora de uso não para devolvêlos ao seu uso canônico e sim para libertálos definitivamente dele O que se encontra depois do direito não é um valor de uso mais próprio e original e que precederia o direito mas um novo uso que só nasce depois dele AGAMBEN 2004 p9820 Os brinquedos inicialmente objetos tão sérios que deviam ser depositados nos túmulos para acompanhar os defuntos no outro mundo permitem acessar uma terceira área que não está nem dentro nem fora do mundo mas que precisamente abre o dentro e o fora compreendida no topos outopos em que se situa nossa experiência de sernomundo Por essa razão não são simples objetos antes nos permitem acessar essa dimensão a que estão familiarizados fetichistas e crianças selvagens e poetas AGAMBEN 2007b p98 1993 p71 É nessa região do brincar mais originária que a dimensão sujeitoobjeto que se permite criar um novo uso para o direito desvinculado da soberania O conceito de cidadão é deixado de lado em nome de uma política que seja capaz de responder ao desafio da vida nua hoje ameaçador de miseráveis san papiers e outros sem que a democracia liberal possa dar respostas consistentes O vínculo com a cidade deve ser perfurado e articulado topologicamente por uma fita de Möbius na qual exterior e interior de codeterminam As cidades europeias nesse caso retomariam sua vocação de se relacionar por recíproca extraterritorialidade Seríamos todos nós os refugiados only in a world in which the spaces and states have been thus perforated and topologically deformed and in which the citizen has been able to recognize the refugee that he or she is only in such a world is the political survival of humankind today thinkable AGAMBEN 2000 p256 A proposta de Agamben certamente se distancia a léguas do garantismo que é mais uma sistematização jurídicoanalítica do programa da democracia liberal formulado a partir das gerações de direitos e suas garantias não por acaso um dos seus principais temas é o princípio da secularização Enquanto os direitos humanos servem apenas para sinalar a decadência da cultura jurídica que aprisionou o político na Modernidade da qual a área humanitária separada da política é a principal testemunha como advertia Hannah Arendt os direitos do homem falham sempre exatamente onde são 20 Parcos comentários têm sido dedicados à parte final e decisiva da luta de gigantes entre Schmitt e Benjamin narrada no quarto capítulo de Estado de Exceção Isso porque a conclusão é simplesmente incompreensível sem uma visão conjunta da obra de Agamben ou de Benjamin uma vez que povoada por conceitos técnicos que permeiam a obra do autor Um desenvolvimento das ideias ali previstas está em Agamben 2005b p113 137 nos comentários à expressão paulina eis euaggelion theou Uma pista está na própria interpretação de Diante da Lei de Kafka por Agamben na qual a porta da lei ao final é fechada porque essa lei é consumada Ver também Souza 2006 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 342 necessários a política que vem precisa de novas categorias para profanar os símbolos sagrados da tradição e construir uma nova felicidade AGAMBEN 2007a p67 2002b p24 2002a p140 Por trás desse projeto está a recuperação da vida que foi apropriada pela lei tornandose dessa indiscernível como na aldeia que fica ao pé do Castelo de Kafka 2002a p6121 Nesse mundo futuro anunciado pelo messianismo que se apropria do tempo que resta22 cumprindo a tese sobre a história de Benjamin quando afirma que o estado de exceção deve ser tornado real a máquina antropológica é desativada e o homem se comunica por gestos que são chamados por Agamben de meios puros Nestes a própria distinção entre o animal humano e o nãohumano é desativada configurando uma linguagem pura que apenas comunica a si mesma 2002c p1648 2005a p401 2006 p126 Recuperar o sentido da ação política desconectada da violência do Direito que institui ou conserva parece ser a tarefa fundamental proposta por esse pensamento cortando o nexo entre o Direito e a vida Da discussão tradicional sobre quais fins justificam a violência sobram apenas os meios sem fins A política que vem nesse sentido é precisamente o terreno dos meios puros 2000 p118 REfERênciAS AGAMBEN Giorgio Infancy and History LondonNew York Verso 1993 Means without end Notes on politics Minneapolis Minnesota University Press 2000 Homo Sacer o poder soberano e a vida nua I Belo Horizonte Editora UFMG 2002a Remnants of Auschwitz The witness and the archive New York Zone Books 2002b Lo abierto el hombre y el animal Buenos Aires Adriana Hidalgo 2002c Estado de exceção São Paulo Boitempo 2004 La potencia del pensamiento Buenos Aires Adriana Hidalgo 2005a The time that remains A commentary on the Letter to the Romans Stanford Stanford University Press 2005b A linguagem e a morte um seminário sobre o lugar na negatividade Belo Horizonte UFMG 2006 21 Ver nesse sentido a semelhança da proposta de Souza 2004 embora lastreada em outra trilha filosófica Ver também Flickinger 2004 22 A estrutura desse tempo messiânico está exposta no comentário à Carta aos Romanos de Paulo no qual Agamben define a relação com a lei em sentido simetricamente oposto a Carl Schmitt o pensador antimessiânico por excelência enquanto a relação com o fora da lei inexiste no estado de exceção à medida que as normas são aplicáveis na sua inaplicação formando um espaço vazio kenomatico que é preenchido pela decisão com força de lei no tempo messiânico a lei é cumprida esgotada chegase à sua consumação a partir da justiça que a realiza um pleroma ao invés do espaço vazio da exceção ver AGAMBEN 2005b p107 Diz ele que the messianic pleroma of the law is an Aufhebung of the state of exception an absolutizing of katargesis 108 Com essa formulação Agamben dá ênfase sobretudo à parte final da Oitava Tese de Benjamin evidentemente deixada de lado pelos seus comentaristas juristas que posiciona a necessidade do estado de exceção tornarse real Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 343 Estâncias a palavra e o fantasma na cultura ocidental Belo Horizonte UFMG 2007a Profanações São Paulo Boitempo 2007b BENJAMIN Walter Magia e técnica arte e política obras escolhidas vol 1 São Paulo Brasiliense 1994 CAPUTO John Desmitificando Heidegger Lisboa Piaget 1993 FOUCAULT Michel Vigiar e punir Petrópolis Vozes 1999 Microfísica do poder Rio de Janeiro Graal 2006 História da sexualidade 1 a vontade de saber Rio de Janeiro Graal 2007 FLICKINGER HansGeorge A juridificação da liberdade os direitos humanos no processo de globalização Veritas 54 2004 HEIDEGGER Martin Ser e tempo Petrópolis Vozes 2006 LEVINAS Emmanuel Entre nós ensaios sobre a alteridade 2ed Petrópolis Vozes 2005 MILLS Catherine Playing with law Derrida and Agamben on postjuridical space South Atlantic Quarterly 107I 2008 OLIVEIRA Nythamar Fernandes de Tractatus ethicopoliticus genealogia do ethos moderno Porto Alegre EDIPUCRS 1999 OLIVER Kelly Stopping the antropological machine Agamben with Heidegger and MerleauPonty PhaenEX 2 n2 2007 PINTO NETO Moysés da F A farmácia dos Direitos Humanos algumas observações sobre a prisão de Guantánamo Panóptica 13 2008 SAFATLE Vladimir Atravessar a Modernidade dobrando os joelhos In Escola de Frankfurt São Paulo Bregantini 2008 Dossiê CULT SOUZA Ricardo Timm de A racionalidade ética como fundamento de uma sociedade variável reflexos sobre suas condições de possibilidade desde a crítica filosófica do fenômeno da corrupção In A Qualidade do Tempo para além das aparências históricas Org Ruth Gauer Rio de Janeiro Lumen Juris 2004 Por uma estética antropológica desde a ética da alteridade do estado de exceção da violência sem memória ao estado de exceção da excepcionalidade do concreto Veritas 51 2006 STEIN Ernildo Mundo vivido Porto Alegre EDIPUCRS 2004 VATTIMO Gianni Introdução a Heidegger Lisboa Piaget 1996 Direito e Democracia v10 n2 p344360 juldez 2009 Canoas a carta de Pero Vaz de caminha1 Edição de base carta a El Rei D manuel Dominus São Paulo 19632 Senhor posto que o Capitãomor desta Vossa frota e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a notícia do achamento desta Vossa terra nova que se agora nesta navegação achou não deixarei de também dar disso minha conta a Vossa Alteza assim como eu melhor puder ainda que para o bem contar e falar o saiba pior que todos fazer Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância por boa vontade a qual bem certo creia que para aformosentar nem afear aqui não há de pôr mais do que aquilo que vi e me pareceu Da marinhagem e das singraduras do caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza porque o não saberei fazer e os pilotos devem ter este cuidado E portanto Senhor do que hei de falar começo E digo quê A partida de Belém foi como Vossa Alteza sabe segundafeira 9 de março E sábado 14 do dito mês entre as 8 e 9 horas nos achamos entre as Canárias mais perto da Grande Canária E ali andamos todo aquele dia em calma à vista delas obra de três a quatro léguas E domingo 22 do dito mês às dez horas mais ou menos houvemos vista das ilhas de Cabo Verde a saber da ilha de São Nicolau segundo o dito de Pero Escolar piloto Na noite seguinte à segundafeira amanheceu se perdeu da frota Vasco de Ataíde com a sua nau sem haver tempo forte ou contrário para poder ser 1 Conforme a Revista da Universidade de Coimbra Vol XI Coimbra Impprensa da Universidade 1933 p1000 A Carta de Pero Vaz de Caminha a D Manuel narrativa incomparável da viagem de Pedro Álvares Cabral como disse Capistrano de Abreu foi publicada pela primeira vez na Corografia Brasílica do Padre Manuel Aires de Casal considerado o patriarca da geografia no Brasil Classificada como importante documento histórico e geográfico pouco valor jurídico lhe tem sido reconhecido Não obstante tratase de um documento que reproduz com fidelidade os primeiros atos jurídicos da civilização europeia nas terras brasileiras a merecer atenção dos estudiosos do Direito a tomada e exercício de posse com a simbólica fixação da cruz na terra para ser rezada a primeira missa as transações mediante permuta de produtos locais com quinquilharias trazidas do além mar o exercício de poder traduzido pelo confessado desiderato de impor costumes e religião e explorar a riqueza da terra entre outros são fatores que justificam a sua reedição Nota da Editora 2 NUPILL Núcleo de Pesquisas em Informática Literatura e Lingüística LCC Publicações Eletrônicas wwwculturabrasilorgzipcartapdf Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 345 Fez o capitão suas diligências para o achar em umas e outras partes Mas não apareceu mais E assim seguimos nosso caminho por este mar de longo até que terçafeira das Oitavas de Páscoa que foram 21 dias de abril topamos alguns sinais de terra estando da dita Ilha segundo os pilotos diziam obra de 660 ou 670 léguas os quais eram muita quantidade de ervas compridas a que os mareantes chamam botelho e assim mesmo outras a que dão o nome de rabodeasno E quartafeira seguinte pela manhã topamos aves a que chamam furabuchos Neste mesmo dia a horas de véspera houvemos vista de terra A saber primeiramente de um grande monte muito alto e redondo e de outras serras mais baixas ao sul dele e de terra chã com grandes arvoredos ao qual monte alto o capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra A Terra de Vera Cruz Mandou lançar o prumo Acharam vinte e cinco braças E ao solposto umas seis léguas da terra lançamos ancoras em dezenove braças ancoragem limpa Ali ficamonos toda aquela noite E quintafeira pela manhã fizemos vela e seguimos em direitura à terra indo os navios pequenos diante por dezessete dezesseis quinze catorze doze nove braças até meia légua da terra onde todos lançamos ancoras em frente da boca de um rio E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas pouco mais ou menos E dali avistamos homens que andavam pela praia uns sete ou oito segundo disseram os navios pequenos que chegaram primeiro Então lançamos fora os batéis e esquifes E logo vieram todos os capitães das naus a esta nau do Capitãomor E ali falaram E o Capitão mandou em terra a Nicolau Coelho para ver aquele rio E tanto que ele começou a irse para lá acudiram pela praia homens aos dois e aos três de maneira que quando o batel chegou à boca do rio já lá estavam dezoito ou vinte Pardos nus sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas Traziam arcos nas mãos e suas setas Vinham todos rijamente em direção ao batel E Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos E eles os depuseram Mas não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse por o mar quebrar na costa Somente arremessou lhe um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro preto E um deles lhe arremessou um sombreiro de penas de ave compridas com uma copazinha de penas vermelhas e pardas como de papagaio E outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas miúdas que querem parecer de aljôfar as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza E com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala por causa do mar Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 346 À noite seguinte ventou tanto sueste com chuvaceiros que fez caçar as naus E especialmente a Capitaina E sexta pela manhã às oito horas pouco mais ou menos por conselho dos pilotos mandou o Capitão levantar ancoras e fazer vela E fomos de longo da costa com os batéis e esquifes amarrados na popa em direção norte para ver se achávamos alguma abrigada e bom pouso onde nós ficássemos para tomar água e lenha Não por nos já minguar mas por nos prevenirmos aqui E quando fizemos vela estariam já na praia assentados perto do rio obra de sessenta ou setenta homens que se haviam juntado ali aos poucos Fomos ao longo e mandou o Capitão aos navios pequenos que fossem mais chegados à terra e se achassem pouso seguro para as naus que amainassem E velejando nós pela costa na distância de dez léguas do sítio onde tínhamos levantado ferro acharam os ditos navios pequenos um recife com um porto dentro muito bom e muito seguro com uma mui larga entrada E meteramse dentro e amainaram E as naus foramse chegando atrás deles E um pouco antes de solpôsto amainaram também talvez a uma légua do recife e ancoraram a onze braças E estando Afonso Lopez nosso piloto em um daqueles navios pequenos foi por mandado do Capitão por ser homem vivo e destro para isso meterse logo no esquife a sondar o porto dentro E tomou dois daqueles homens da terra que estavam numa almadia mancebos e de bons corpos Um deles trazia um arco e seis ou sete setas E na praia andavam muitos com seus arcos e setas mas não os aproveitou Logo já de noite levouos à Capitaina onde foram recebidos com muito prazer e festa A feição deles é serem pardos um tanto avermelhados de bons rostos e bons narizes bem feitos Andam nus sem cobertura alguma Nem fazem mais caso de encobrir ou deixa de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara Acerca disso são de grande inocência Ambos traziam o beiço de baixo furado e metido nele um osso verdadeiro de comprimento de uma mão travessa e da grossura de um fuso de algodão agudo na ponta como um furador Metemnos pela parte de dentro do beiço e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita a modo de roque de xadrez E trazemno ali encaixado de sorte que não os magoa nem lhes põe estorvo no falar nem no comer e beber Os cabelos deles são corredios E andavam tosquiados de tosquia alta antes do que sobrepente de boa grandeza rapados todavia por cima das orelhas E um deles trazia por baixo da solapa de fonte a fonte na parte detrás uma espécie de cabeleira de penas de ave amarela que seria do comprimento de um coto mui basta e mui cerrada que lhe cobria o toutiço e as orelhas E andava pegada aos cabelos pena por pena com uma confeição branda como de maneira tal que a cabeleira era mui redonda e mui basta e mui igual e não fazia míngua mais lavagem para a levantar Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 347 O Capitão quando eles vieram estava sentado em uma cadeira aos pés uma alcatifa por estrado e bem vestido com um colar de ouro mui grande ao pescoço E Sancho de Tovar e Simão de Miranda e Nicolau Coelho e Aires Corrêa e nós outros que aqui na nau com ele íamos sentados no chão nessa alcatifa Acenderamse tochas E eles entraram Mas nem sinal de cortesia fizeram nem de falar ao Capitão nem a alguém Todavia um deles fitou o colar do Capitão e começou a fazer acenos com a mão em direção à terra e depois para o colar como se quisesse dizernos que havia ouro na terra E também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal como se lá também houvesse prata Mostraramlhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo tomaramno logo na mão e acenaram para a terra como se os houvesse ali Mostraramlhes um carneiro não fizeram caso dele Mostraramlhes uma galinha quase tiveram medo dela e não lhe queriam pôr a mão Depois lhe pegaram mas como espantados Deramlhes ali de comer pão e peixe cozido confeitos fartéis mel figos passados Não quiseram comer daquilo quase nada e se provavam alguma coisa logo a lançavam fora Trouxeramlhes vinho em uma taça mal lhe puseram a boca não gostaram dele nada nem quiseram mais Trouxeramlhes água em uma albarrada provaram cada um o seu bochecho mas não beberam apenas lavaram as bocas e lançaramna fora Viu um deles umas contas de rosário brancas fez sinal que lhas dessem e folgou muito com elas e lançouas ao pescoço e depois tirouas e meteuas em volta do braço e acenava para a terra e novamente para as contas e para o colar do Capitão como se dariam ouro por aquilo Isto tomávamos nós nesse sentido por assim o desejarmos Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar isto não queríamos nós entender por que lho não havíamos de dar E depois tornou as contas a quem lhas dera E então estiraramse de costas na alcatifa a dormir sem procurarem maneiras de encobrir suas vergonhas as quais não eram fanadas e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas O Capitão mandou pôr por baixo da cabeça de cada um seu coxim e o da cabeleira esforçavase por não a estragar E deitaram um manto por cima deles e consentindo aconchegaramse e adormeceram Sábado pela manhã mandou o Capitão fazer vela fomos demandar a entrada a qual era mui larga e tinha seis a sete braças de fundo E entraram todas as naus dentro e ancoraram em cinco ou seis braças ancoradouro que é tão grande e tão formoso de Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 348 dentro e tão seguro que podem ficar nele mais de duzentos navios e naus E tanto que as naus foram distribuídas e ancoradas vieram os capitães todos a esta nau do Capitão mor E daqui mandou o Capitão que Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias fossem em terra e levassem aqueles dois homens e os deixassem ir com seu arco e setas aos quais mandou dar a cada um uma camisa nova e uma carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de osso que foram levando nos braços e um cascavel e uma campainha E mandou com eles para lá ficar um mancebo degredado criado de dom João Telo de nome Afonso Ribeiro para lá andar com eles e saber de seu viver e maneiras E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho Fomos assim de frecha direitos à praia Ali acudiram logo perto de duzentos homens todos nus com arcos e setas nas mãos Aqueles que nós levamos acenaramlhes que se afastassem e depusessem os arcos E eles os depuseram Mas não se afastaram muito E mal tinham pousado seus arcos quando saíram os que nós levávamos e o mancebo degredado com eles E saídos não pararam mais nem esperavam um pelo outro mas antes corriam a quem mais correria E passaram um rio que aí corre de água doce de muita água que lhes dava pela braga E muitos outros com eles E foram assim correndo para além do rio entre umas moitas de palmeiras onde estavam outros E ali pararam E naquilo tinha ido o degredado com um homem que logo ao sair do batel o agasalhou e levou até lá Mas logo o tornaram a nós E com ele vieram os outros que nós leváramos os quais vinham já nus e sem carapuças E então se começaram de chegar muitos e entravam pela beira do mar para os batéis até que mais não podiam E traziam cabaças dágua e tomavam alguns barris que nós levávamos e enchiamnos de água e traziamnos aos batéis Não que eles de todo chegassem a bordo do batel Mas junto a ele lançavamnos da mão E nós tomávamo los E pediam que lhes dessem alguma coisa Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas E a uns dava um cascavel e a outros uma manilha de maneira que com aquela encarna quase que nos queriam dar a mão Davamnos daqueles arcos e setas em troca de sombreiros e carapuças de linho e de qualquer coisa que a gente lhes queria dar Dali se partiram os outros dois mancebos que não os vimos mais Dos que ali andavam muitos quase a maior parte traziam aqueles bicos de osso nos beiços E alguns que andavam sem eles traziam os beiços furados e nos buracos traziam uns espelhos de pau que pareciam espelhos de borracha E alguns deles traziam três daqueles bicos a saber um no meio e os dois nos cabos E andavam lá outros quartejados de cores a saber metade deles da sua própria cor e metade de tintura preta um tanto azulada e outros quartejados descaques Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 349 Ali andavam entre eles três ou quatro moças bem novinhas e gentis com cabelos muito pretos e compridos pelas costas e suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que de as nós muito bem olharmos não se envergonhavam Ali por então não houve mais fala ou entendimento com eles por a barbana deles ser tamanha que se não entendia nem ouvia ninguém Acenamoslhes que se fossem E assim o fizeram e passaramse para além do rio E saíram três ou quatro homens nossos dos batéis e encheram não sei quantos barris dágua que nós levávamos E tornamo nos às naus E quando assim vínhamos acenaramnos que voltássemos Voltamos e eles mandaram o degredado e não quiseram que ficasse lá com eles o qual levava uma bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas para lá as dar ao senhor se o lá houvesse Não trataram de lhe tirar coisa alguma antes mandaramno com tudo Mas então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar que lhe desse aquilo E ele tornou e deu aquilo em vista de nós a aquele que o da primeira agasalhara E então veiose e nós levamolo Esse que o agasalhou era já de idade e andava por galanteria cheio de penas pegadas pelo corpo que parecia seteado como São Sebastião Outros traziam carapuças de penas amarelas e outros de vermelhas e outros de verdes E uma daquelas moças era toda tingida de baixo a cima daquela tintura e certo era tão bem feita e tão redonda e sua vergonha tão graciosa que a muitas mulheres de nossa terra vendolhe tais feições envergonhara por não terem as suas como ela Nenhum deles era fanado mas todos assim como nós E com isto nos tornamos e eles foramse À tarde saiu o Capitãomor em seu batel com todos nós outros capitães das naus em seus batéis a folgar pela baía perto da praia Mas ninguém saiu em terra por o Capitão o não querer apesar de ninguém estar nela Apenas saiu ele com todos nós em um ilhéu grande que está na baía o qual aquando baixamar fica mui vazio Com tudo está de todas as partes cercado de água de sorte que ninguém lá pode ir a não ser de barco ou a nado Ali folgou ele e todos nós bem uma hora e meia E pescaram lá andando alguns marinheiros com um chinchorro e mataram peixe miúdo não muito E depois volvemonos às naus já bem noite Ao domingo de Pascoela pela manhã determinou o Capitão ir ouvir missa e sermão naquele ilhéu E mandou a todos os capitães que se arranjassem nos batéis e fossem com ele E assim foi feito Mandou armar um pavilhão naquele ilhéu e dentro levantar um altar mui bem arranjado E ali com todos nós outros fez dizer missa a qual disse o padre frei Henrique em voz entoada e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes que todos assistiram a qual missa segundo meu parecer foi ouvida por todos com muito prazer e devoção Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 350 Ali estava com o Capitão a bandeira de Cristo com que saíra de Belém a qual esteve sempre bem alta da parte do Evangelho Acabada a missa desvestiuse o padre e subiu a uma cadeira alta e nós todos lançados por essa areia E pregou uma solene e proveitosa pregação da história evangélica e no fim tratou da nossa vida e do achamento desta terra referindose à Cruz sob cuja obediência viemos que veio muito a propósito e fez muita devoção Enquanto assistimos à missa e ao sermão estaria na praia outra tanta gente pouco mais ou menos como a de ontem com seus arcos e setas e andava folgando E olhandonos sentaram E depois de acabada a missa quando nós sentados atendíamos a pregação levantaramse muitos deles e tangeram corno ou buzina e começaram a saltar e dançar um pedaço E alguns deles se metiam em almadias duas ou três que lá tinham as quais não são feitas como as que eu vi apenas são três traves atadas juntas E ali se metiam quatro ou cinco ou esses que queriam não se afastando quase nada da terra só até onde podiam tomar pé Acabada a pregação encaminhouse o Capitão com todos nós para os batéis com nossa bandeira alta Embarcamos e fomos indo todos em direção à terra para passarmos ao longo por onde eles estavam indo na dianteira por ordem do Capitão Bartolomeu Dias em seu esquife com um pau de uma almadia que lhes o mar levara para o entregar a eles E nós todos trás dele a distância de um tiro de pedra Como viram o esquife de Bartolomeu Dias chegaramse logo todos à água metendose nela até onde mais podiam Acenaramlhes que pousassem os arcos e muitos deles os iam logo pôr em terra e outros não os punham Andava lá um que falava muito aos outros que se afastassem Mas não já que a mim me parecesse que lhe tinham respeito ou medo Este que os assim andava afastando trazia seu arco e setas Estava tinto de tintura vermelha pelos peitos e costas e pelos quadris coxas e pernas até baixo mas os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria cor E a tintura era tão vermelha que a água lha não comia nem desfazia Antes quando saía da água era mais vermelho Saiu um homem do esquife de Bartolomeu Dias e andava no meio deles sem implicarem nada com ele e muito menos ainda pensavam em fazerlhe mal Apenas lhe davam cabaças dágua e acenavam aos do esquife que saíssem em terra Com isto se volveu Bartolomeu Dias ao Capitão E viemonos às naus a comer tangendo trombetas e gaitas sem os mais constranger E eles tornaramse a sentar na praia e assim por então ficaram Neste ilhéu onde fomos ouvir missa e sermão espraia muito a água e descobre muita areia e muito cascalho Enquanto lá estávamos foram alguns buscar marisco e não Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 351 no acharam Mas acharam alguns camarões grossos e curtos entre os quais vinha um muito grande e muito grosso que em nenhum tempo o vi tamanho Também acharam cascas de berbigões e de amêijoas mas não toparam com nenhuma peça inteira E depois de termos comido vieram logo todos os capitães a esta nau por ordem do Capitãomor com os quais ele se aportou e eu na companhia E perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos para a melhor mandar descobrir e saber dela mais do que nós podíamos saber por irmos na nossa viagem E entre muitas falas que sobre o caso se fizeram foi dito por todos ou a maior parte que seria muito bem E nisto concordaram E logo que a resolução foi tomada perguntou mais se seria bem tomar aqui por força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza deixando aqui em lugar deles outros dois destes degredados E concordaram em que não era necessário tomar por força homens porque costume era dos que assim à força levavam para alguma parte dizerem que há de tudo quanto lhes perguntam e que melhor e muito melhor informação da terra dariam dois homens desses degredados que aqui deixássemos do que eles dariam se os levassem por ser gente que ninguém entende Nem eles cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor estoutros o não digam quando cá Vossa Alteza mandar E que portanto não cuidássemos de aqui por força tomar ninguém nem fazer escândalo mas sim para os de todo amansar e apaziguar unicamente de deixar aqui os dois degredados quando daqui partíssemos E assim ficou determinado por parecer melhor a todos Acabado isto disse o Capitão que fôssemos nos batéis em terra E verseia bem quejando era o rio Mas também para folgarmos Fomos todos nos batéis em terra armados e a bandeira conosco Eles andavam ali na praia à boca do rio para onde nós íamos e antes que chegássemos pelo ensino que dantes tinham puseram todos os arcos e acenaram que saíssemos Mas tanto que os batéis puseram as proas em terra passaramse logo todos além do rio o qual não é mais ancho que um jogo de mancal E tanto que desembarcamos alguns dos nossos passaram logo o rio e meteramse entre eles E alguns aguardavam e outros se afastavam Com tudo a coisa era de maneira que todos andavam misturados Eles davam desses arcos com suas setas por sombreiros e carapuças de linho e por qualquer coisa que lhes davam Passaram além tantos dos nossos e andaram assim misturados com eles que eles se esquivavam e afastavamse e iam alguns para cima onde outros estavam E então o Capitão fez que o tomassem ao colo dois homens e passou o rio e fez tornar a todos A gente que ali estava não seria mais que aquela do costume Mas logo que o Capitão chamou todos para trás alguns se chegaram a ele não por o Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 352 reconhecerem por Senhor mas porque a gente nossa já passava para aquém do rio Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas daquelas já ditas e resgatavamnas por qualquer coisa de tal maneira que os nossos levavam dali para as naus muitos arcos e setas e contas E então tornouse o Capitão para aquém do rio E logo acudiram muitos à beira dele Ali veríeis galantes pintados de preto e vermelho e quartejados assim pelos corpos como pelas pernas que certo assim pareciam bem Também andavam entre eles quatro ou cinco mulheres novas que assim nuas não pareciam mal Entre elas andava uma com uma coxa do joelho até o quadril e a nádega toda tingida daquela tintura preta e todo o resto da sua cor natural Outra trazia ambos os joelhos com as curvas assim tintas e também os colos dos pés e suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência assim descobertas que não havia nisso desvergonha nenhuma Também andava lá outra mulher nova com um menino ou menina atado com um pano aos peitos de modo que não se lhe viam senão as perninhas Mas nas pernas da mãe e no resto não havia pano algum Em seguida o Capitão foi subindo ao longo do rio que corre rente à praia E ali esperou por um velho que trazia na mão uma pá de almadia Falou enquanto o Capitão estava com ele na presença de todos nós mas ninguém o entendia nem ele a nós por mais coisas que a gente lhe perguntava com respeito a ouro porque desejávamos saber se o havia na terra Trazia este velho o beiço tão furado que lhe cabia pelo buraco um grosso dedo polegar E trazia metido no buraco uma pedra verde de nenhum valor que fechava por fora aquele buraco E o Capitão lha fez tirar E ele não sei que diabo falava e ia com ela para a boca do Capitão para lha meter Estivemos rindo um pouco e dizendo chalaças sobre isso E então enfadouse o Capitão e deixouo E um dos nossos deulhe pela pedra um sombreiro velho não por ela valer alguma coisa mas para amostra E depois houvea o Capitão creio para mandar com as outras coisas a Vossa Alteza Andamos por aí vendo o ribeiro o qual é de muita água e muito boa Ao longo dele há muitas palmeiras não muito altas e muito bons palmitos Colhemos e comemos muitos deles Depois tornouse o Capitão para baixo para a boca do rio onde tínhamos desembarcado E além do rio andavam muitos deles dançando e folgando uns diante os outros sem se tomarem pelas mãos E faziamno bem Passouse então para a outra banda do rio Diogo Dias que fora almoxarife de Sacavém o qual é homem gracioso e de prazer E levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita E meteuse a dançar com eles tomandoos pelas mãos e eles folgavam e riam e andavam com ele muito bem ao som Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 353 da gaita Depois de dançarem fez ali muitas voltas ligeiras andando no chão e salto real de que se eles espantavam e riam e folgavam muito E conquanto com aquilo os segurou e afagou muito tomavam logo uma esquiveza como de animais montezes e foramse para cima E então passou o rio o Capitão com todos nós e fomos pela praia de longo ao passo que os batéis iam rentes à terra E chegamos a uma grande lagoa de água doce que está perto da praia porque toda aquela ribeira do mar é apaulada por cima e sai a água por muitos lugares E depois de passarmos o rio foram uns sete ou oito deles meterse entre os marinheiros que se recolhiam aos batéis E levaram dali um tubarão que Bartolomeu Dias matou E levavamlho e lançouo na praia Bastará que até aqui como quer que se lhes em alguma parte amansassem logo de uma mão para outra se esquivavam como pardais do cevadouro Ninguém não lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem mais E tudo se passa como eles querem para os bem amansarmos Ao velho com quem o Capitão havia falado deulhe uma carapuça vermelha E com toda a conversa que com ele houve e com a carapuça que lhe deu tanto que se despediu e começou a passar o rio foise logo recatando E não quis mais tornar do rio para aquém Os outros dois o Capitão teve nas naus aos quais deu o que já ficou dito nunca mais aqui apareceram fatos de que deduzo que é gente bestial e de pouco saber e por isso tão esquiva Mas apesar de tudo isso andam bem curados e muito limpos E naquilo ainda mais me convenço que são como aves ou alimárias montezinhas as quais o ar faz melhores penas e melhor cabelo que às mansas porque os seus corpos são tão limpos e tão gordos e tão formosos que não pode ser mais E isto me faz presumir que não tem casas nem moradias em que se recolham e o ar em que se criam os faz tais Nós pelo menos não vimos até agora nenhumas casas nem coisa que se pareça com elas Mandou o Capitão aquele degredado Afonso Ribeiro que se fosse outra vez com eles E foi e andou lá um bom pedaço mas a tarde regressou que o fizeram eles vir e não o quiseram lá consentir E deramlhe arcos e setas e não lhe tomaram nada do seu Antes disse ele que lhe tomara um deles umas continhas amarelas que levava e fugia com elas e ele se queixou e os outros foram logo após ele e lhas tomaram e tornaramlhas a dar e então mandaramno vir Disse que não vira lá entre eles senão umas choupaninhas de rama verde e de feteiras muito grandes como as de Entre Douro e Minho E assim nos tornamos às naus já quase noite a dormir Segundafeira depois de comer saímos todos em terra a tomar água Ali vieram então muitos mas não tantos como as outras vezes E traziam já muito poucos arcos E estiveram um pouco afastados de nós mas depois pouco a pouco misturaramse Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 354 conosco e abraçavamnos e folgavam mas alguns deles se esquivavam logo Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha e por qualquer coisa E de tal maneira se passou a coisa que bem vinte ou trinta pessoas das nossas se foram com eles para onde outros muitos deles estavam com moças e mulheres E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas de aves uns verdes outros amarelos dos quais creio que o Capitão há de mandar uma amostra a Vossa Alteza E segundo diziam esses que lá tinham ido brincaram com eles Neste dia os vimos mais de perto e mais à nossa vontade por andarmos quase todos misturados uns andavam quartejados daquelas tinturas outros de metades outros de tanta feição como em pano de ras e todos com os beiços furados muitos com os ossos neles e bastantes sem ossos Alguns traziam uns ouriços verdes de árvores que na cor queriam parecer de castanheiras embora fossem muito mais pequenos E estavam cheios de uns grãos vermelhos pequeninos que esmagandose entre os dedos se desfaziam na tinta muito vermelha de que andavam tingidos E quanto mais se molhavam tanto mais vermelhos ficavam Todos andam rapados até por cima das orelhas assim mesmo de sobrancelhas e pestanas Trazem todos as testas de fonte a fonte tintas de tintura preta que parece uma fita preta da largura de dois dedos E o Capitão mandou aquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados que fossem meterse entre eles e assim mesmo a Diogo Dias por ser homem alegre com que eles folgavam E aos degredados ordenou que ficassem lá esta noite Foramse lá todos e andaram entre eles E segundo depois diziam foram bem uma légua e meia a uma povoação em que haveria nove ou dez casas as quais diziam que eram tão compridas cada uma como esta nau Capitaina E eram de madeira e das ilhargas de tábuas e cobertas de palha de razoável altura e todas de um só espaço sem repartição alguma tinham de dentro muitos esteios e de esteio a esteio uma rede atada com cabos em cada esteio altas em que dormiam E de baixo para se aquentarem faziam seus fogos E tinha cada casa duas portas pequenas uma numa extremidade e outra na oposta E diziam que em cada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas e que assim os encontraram e que lhes deram de comer dos alimentos que tinham a saber muito inhame e outras sementes que na terra dá que eles comem E como se fazia tarde fizeramnos logo todos tornar e não quiseram que lá ficasse nenhum E ainda segundo diziam queriam vir com eles Resgataram lá por cascavéis e outras coisinhas de pouco valor que levavam papagaios vermelhos muito grandes e formosos e dois verdes pequeninos e carapuças de penas verdes e um pano de penas de muitas cores espécie de tecido assaz belo Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 355 segundo Vossa Alteza todas estas coisas verá porque o Capitão volas há de mandar segundo ele disse E com isto vieram e nós tornamonos às naus Terçafeira depois de comer fomos em terra fazer lenha e para lavar roupa Estavam na praia quando chegamos uns sessenta ou setenta sem arcos e sem nada Tanto que chegamos vieram logo para nós sem se esquivarem E depois acudiram muitos que seriam bem duzentos todos sem arcos E misturaramse todos tanto conosco que uns nos ajudavam a acarretar lenha e metêlas nos batéis E lutavam com os nossos e tomavam com prazer E enquanto fazíamos a lenha construíam dois carpinteiros uma grande cruz de um pau que se ontem para isso cortara Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros E creio que o faziam mais para verem a ferramenta de ferro com que a faziam do que para verem a cruz porque eles não tem coisa que de ferro seja e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas metidas em um pau entre duas talas mui bem atadas e por tal maneira que andam fortes porque lhas viram lá Era já a conversação deles conosco tanta que quase nos estorvavam no que havíamos de fazer E o Capitão mandou a dois degredados e a Diogo Dias que fossem lá à aldeia e que de modo algum viessem a dormir às naus ainda que os mandassem embora E assim se foram Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha atravessavam alguns papagaios essas árvores verdes uns e pardos outros grandes e pequenos de sorte que me parece que haverá muitos nesta terra Todavia os que vi não seriam mais que nove ou dez quando muito Outras aves não vimos então a não ser algumas pombasseixeiras e pareceramme maiores bastante do que as de Portugal Vários diziam que viram rolas mas eu não as vi Todavia segundo os arvoredos são mui muitos e grandes e de infinitas espécies não duvido que por esse sertão haja muitas aves E cerca da noite nós volvemos para as naus com nossa lenha Eu creio Senhor que não dei ainda conta aqui a Vossa Alteza do feitio de seus arcos e setas Os arcos são pretos e compridos e as setas compridas e os ferros delas são canas aparadas conforme Vossa Alteza verá alguns que creio que o Capitão a Ela há de enviar Quartafeira não fomos em terra porque o Capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a despejálo e fazer levar às naus isso que cada um podia levar Eles acudiram à praia muitos segundo das naus vimos Seriam perto de trezentos segundo Sancho de Tovar que para lá foi Diogo Dias e Afonso Ribeiro o degredado aos quais o Capitão ontem ordenara que de toda maneira lá dormissem tinham voltado já de noite por eles não quererem que lá ficassem E traziam papagaios verdes e outras aves pretas quase como pegas com a diferença de terem o bico branco e rabos curtos E quando Sancho de Tovar recolheu à nau queriam vir com ele alguns mas ele não Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 356 admitiu senão dois mancebos bem dispostos e homens de prol Mandou pensar e curá los mui bem essa noite E comeram toda a ração que lhes deram e mandou darlhes cama de lençóis segundo ele disse E dormiram e folgaram aquela noite E não houve mais este dia que para escrever seja Quintafeira derradeiro de abril comemos logo quase pela manhã e fomos em terra por mais lenha e água E em querendo o Capitão sair desta nau chegou Sancho de Tovar com seus dois hóspedes E por ele ainda não ter comido puseramlhe toalhas e veiolhe comida E comeu Os hóspedes sentaramno cada um em sua cadeira E de tudo quanto lhes deram comeram mui bem especialmente lacão cozido frio e arroz Não lhes deram vinho por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem Acabado o comer metemonos todos no batel e eles conosco Deu um grumete a um deles uma armadura grande de porco montês bem revolta E logo que a tomou meteua no beiço e porque se lhe não queria segurar deramlhe uma pouca de cera vermelha E ele ajeitoulhe seu adereço da parte de trás de sorte que segurasse e meteua no beiço assim revolta para cima e ia tão contente com ela como se tivesse uma grande jóia E tanto que saímos em terra foise logo com ela E não tornou a aparecer lá Andariam na praia quando saímos oito ou dez deles e de aí a pouco começaram a vir E pareceme que viriam este dia a praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta Alguns deles traziam arcos e setas e deram tudo em troca de carapuças e por qualquer coisa que lhes davam Comiam conosco do que lhes dávamos e alguns deles bebiam vinho ao passo que outros o não podiam beber Mas querme parecer que se os acostumarem o hão de beber de boa vontade Andavam todos tão bem dispostos e tão bem feitos e galantes com suas pinturas que agradavam Acarretavam dessa lenha quanta podiam com mil boas vontades e levavamna aos batéis E estavam já mais mansos e seguros entre nós do que nós estávamos entre eles Foi o Capitão com alguns de nós um pedaço por este arvoredo até um ribeiro grande e de muita água que ao nosso parecer é o mesmo que vem ter à praia em que nós tomamos água Ali descansamos um pedaço bebendo e folgando ao longo dele entre esse arvoredo que é tanto e tamanho e tão basto e de tanta qualidade de folhagem que não se pode calcular Há lá muitas palmeiras de que colhemos muitos e bons palmitos Ao sairmos do batel disse o Capitão que seria bom irmos em direitura à cruz que estava encostada a uma árvore junto ao rio a fim de ser colocada amanhã sextafeira e que nos puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos E assim fizemos E a esses dez ou doze que lá estavam acenaram lhes que fizessem o mesmo e logo foram todos beijála Pareceme gente de tal inocência que se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa seriam logo cristãos visto que não têm nem entendem crença alguma segundo Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 357 as aparências E portanto se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem não duvido que eles segundo a santa tenção de Vossa Alteza se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé à qual praza a Nosso Senhor que os traga porque certamente esta gente é boa e de bela simplicidade E imprimirseá facilmente neles qualquer cunho que lhe quiserem dar uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos como a homens bons E o Ele nos para aqui trazer creio que não foi sem causa E portanto Vossa Alteza pois tanto deseja acrescentar a santa fé católica deve cuidar da salvação deles E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim Eles não lavram nem criam Nem há aqui boi ou vaca cabra ovelha ou galinha ou qualquer outro animal que esteja acostumado ao viver do homem E não comem senão deste inhame de que aqui há muito e dessas sementes e frutos que a terra e as árvores de si deitam E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto com quanto trigo e legumes comemos Nesse dia enquanto ali andavam dançaram e bailaram sempre com os nossos ao som de um tamboril nosso como se fossem mais amigos nossos do que nós seus Se lhes a gente acenava se queriam vir às naus aprontavamse logo para isso de modo tal que se os convidáramos a todos todos vieram Porém não levamos esta noite às naus senão quatro ou cinco a saber o Capitãomor dois e Simão de Miranda um que já trazia por pagem e Aires Gomes a outro pagem também Os que o Capitão trazia era um deles um dos seus hóspedes que lhe haviam trazido a primeira vez quando aqui chegamos o qual veio hoje aqui vestido na sua camisa e com ele um seu irmão e foram esta noite mui bem agasalhados tanto de comida como de cama de colchões e lençóis para os mais amansar E hoje que é sextafeira primeiro dia de maio pela manhã saímos em terra com nossa bandeira e fomos desembarcar acima do rio contra o sul onde nos pareceu que seria melhor arvorar a cruz para melhor ser vista E ali marcou o Capitão o sítio onde haviam de fazer a cova para a fincar E enquanto a iam abrindo ele com todos nós outros fomos pela cruz rio abaixo onde ela estava E com os religiosos e sacerdotes que cantavam à frente fomos trazendoa dali a modo de procissão Eram já aí quantidade deles uns setenta ou oitenta e quando nos assim viram chegar alguns se foram meter debaixo dela ajudarnos Passamos o rio ao longo da praia e fomos colocála onde havia de ficar que será obra de dois tiros de besta do rio Andandose ali nisto viriam bem cento cinqüenta ou mais Plantada a cruz com as armas e a divisa de Vossa Alteza que primeiro lhe haviam pregado armaram altar ao pé dela Ali disse missa o padre frei Henrique a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos Ali estiveram conosco a ela perto de cinqüenta ou sessenta deles assentados todos de joelho assim como nós E quando se veio ao Evangelho que nos erguemos todos em pé com as mãos levantadas eles se levantaram conosco e alçaram as mãos estando assim até se chegar ao fim e então tornaramse a assentar como nós E quando levantaram a Deus que nos pusemos Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 358 de joelhos eles se puseram assim como nós estávamos com as mãos levantadas e em tal maneira sossegados que certifico a Vossa Alteza que nos fez muita devoção Estiveram assim conosco até acabada a comunhão e depois da comunhão comungaram esses religiosos e sacerdotes e o Capitão com alguns de nós outros E alguns deles por o Sol ser grande levantaramse enquanto estávamos comungando e outros estiveram e ficaram Um deles homem de cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos se conservou ali com aqueles que ficaram Esse enquanto assim estávamos juntava aqueles que ali tinham ficado e ainda chamava outros E andando assim entre eles falandolhes acenou com o dedo para o altar e depois mostrou com o dedo para o céu como se lhes dissesse alguma coisa de bem e nós assim o tomamos Acabada a missa tirou o padre a vestimenta de cima e ficou na alva e assim se subiu junto ao altar em uma cadeira e ali nos pregou o Evangelho e dos Apóstolos cujo é o dia tratando no fim da pregação desse vosso prosseguimento tão santo e virtuoso que nos causou mais devoção Esses que estiveram sempre à pregação estavam assim como nós olhando para ele E aquele que digo chamava alguns que viessem ali Alguns vinham e outros iamse e acabada a pregação trazia Nicolau Coelho muitas cruzes de estanho com crucifixos que lhe ficaram ainda da outra vinda E houveram por bem que lançassem a cada um sua ao pescoço Por essa causa se assentou o padre frei Henrique ao pé da cruz e ali lançava a sua a todos um a um ao pescoço atada em um fio fazendolha primeiro beijar e levantar as mãos Vinham a isso muitos e lançavamnas todas que seriam obra de quarenta ou cinqüenta E isto acabado era já bem uma hora depois do meio dia viemos às naus a comer onde o Capitão trouxe consigo aquele mesmo que fez aos outros aquele gesto para o altar e para o céu e um seu irmão com ele A aquele fez muita honra e deulhe uma camisa mourisca e ao outro uma camisa destoutras E segundo o que a mim e a todos pareceu esta gente não lhes falece outra coisa para ser toda cristã do que entenderemnos porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer como nós mesmos por onde pareceu a todos que nenhuma idolatria nem adoração têm E bem creio que se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande que todos serão tornados e convertidos ao desejo de Vossa Alteza E por isso se alguém vier não deixe logo de vir clérigo para os batizar porque já então terão mais conhecimentos de nossa fé pelos dois degredados que aqui entre eles ficam os quais hoje também comungaram Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 359 Entre todos estes que hoje vieram não veio mais que uma mulher moça a qual esteve sempre à missa à qual deram um pano com que se cobrisse e puseramlho em volta dela Todavia ao sentarse não se lembrava de o estender muito para se cobrir Assim Senhor a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior com respeito ao pudor Ora veja Vossa Alteza quem em tal inocência vive se se convertera ou não se lhe ensinarem o que pertence à sua salvação Acabado isto fomos perante eles beijar a cruz E despedimonos e fomos comer Creio Senhor que com estes dois degredados que aqui ficam ficarão mais dois grumetes que esta noite se saíram em terra desta nau no esquife fugidos os quais não vieram mais E cremos que ficarão aqui porque de manhã prazendo a Deus fazemos nossa partida daqui Esta terra Senhor pareceme que da ponta que mais contra o sul vimos até à outra ponta que contra o norte vem de que nós deste porto houvemos vista será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas de costa Traz ao longo do mar em algumas partes grandes barreiras umas vermelhas e outras brancas e a terra de cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos De ponta a ponta é toda praia muito chã e muito formosa Pelo sertão nos pareceu vista do mar muito grande porque a estender olhos não podíamos ver senão terra e arvoredos terra que nos parecia muito extensa Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela ou outra coisa de metal ou ferro nem lha vimos Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de EntreDouroeMinho porque neste tempo dagora assim os achávamos como os de lá Águas são muitas infinitas Em tal maneira é graciosa que querendoa aproveitar darseá nela tudo por causa das águas que tem Contudo o melhor fruto que dela se pode tirar pareceme que será salvar esta gente E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar E que não houvesse mais do que ter Vossa Alteza aqui esta pousada para essa navegação de Calicute bastava Quanto mais disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja a saber acrescentamento da nossa fé E desta maneira dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta Vossa terra vi E se a um pouco alonguei Ela me perdoe Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 360 Porque o desejo que tinha de Vos tudo dizer mo fez pôr assim pelo miúdo E pois que Senhor é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de Vosso serviço for Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida a Ela peço que por me fazer singular mercê mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório meu genro o que dEla receberei em muita mercê Beijo as mãos de Vossa Alteza Deste Porto Seguro da Vossa Ilha de Vera Cruz hoje sextafeira primeiro dia de maio de 1500 Pero Vaz de Caminha
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Revista de Ciéncias Juridicas ULBRA Vol 10 N 2 JulDez 2009 ISSN 15181685 oom EVANGELICA LUTERANA SAO PAULO Joaquin Herrera Flores Universidad Pablo OlavideEspanha j Luigi Ferrajoli Roma TreItalia President Delmar Stahnke Wanda Capeller ToulouseFranga j j Membros nacionais externos ooh Vicepresidente S 4 5 Aldacy Rachid Coutinho UFPR Joseida Elizabete Ti By oseraa Eiizapere 1m Claudio Brandao UFPE oe Claudio Muradas Homercher Uidign UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL Cisse Muras Homers Reitor elbo Marcus Lobo de Souza UNISINOS Marcos Fernando Ziemer Jacinto Nelson de Miranda Coutinho UFPR ViceReitor J0S Maria Rosa Tesheiner PUCRS Valter Kuchenbecker Luis Afonso Heck UFRGS Miguel Reale Jr USP ProReitor de Administragao Nereu José Giacomolli PUCRS Ricardo Miller Vadimir Passos de Freitas UFPR 5 7 Membros nacionais internos ProReitor de Grad a Ricardos Prates Marto Angelo Roberto Iiha da Silva ULBRACanoas ProReitor Adjunto de Graduagado Gerson Luiz Carlos Branco ULBRA Canoas Pedro Antonio Gonzalez Hernandez Leonel Pires Ohlweiler ULBRACanoas Pr6Reitor de Pesquisa e PosGraduagao Wilson Anténio Steinmetz ULBRACanoas Erwin Francisco Tochtrop Junior ProéReitor de Extensao e Assuntos Comunitarios EDITORA DA ULBRA Ricardo Willy Rieth Diretor Astomiro Romais Coordenador de periddicos Roger Kessler Gomes Capelao Geral Capa Everaldo Manica Ficanha Gerhard Grasel Editoragao Rodrigo Saldanha de Abreu Email editoraulbrabr DIREITOE DEMOCRACIA Solicitase permuta We request exchange On demande Iéchange Indexador LATINDEX naexacor Wir erbitten Austausch Editora Enderego para permuta Elaine Harzheim Maced aine Naraneim Maceo Universidade Luterana do Brasil Conselho Editorial Biblioteca Martinho Lutero Membros internacionais Setor de aquisigao AndréJean Arnaud Paris XNanterre AV Farroupilha 8001 Prédio 05 Etienne Picard Université de Paris Franga 92425900 CanoasRS Email bibpermutaulbrabr O conteudo e estilo linguistico sao de responsabilidade exclusiva dos autores Direitos autorais reservados Citagao parcial permitida com referéncia a fonte Dados Internacionais de Catalogacao na Publicagao CIP D598 Direito e Democracia revista do Centro de Ciéncias Juridicas Universidade Luterana do Brasil Vol 1 n 1 2000 CanoasEdULBRA2000 v 23 cm Semestral A partir do vol 1 n 2 2000 o subtitulo foi modificado para Revista de Ciéncias Juridicas ISSN 15181685 1 Direito periddicos 2 Ciéncias juridicas Universidade Luterana do Brasil CDU 3405 Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero Sumário 187 Editorial 189 Breves considerações sobre o olhar ouvir e escrever enquanto passos constitutivos da pesquisa qualitativa no âmbito jurídico aproximações entre antropologia e direito Vinícius Gil Braga 200 Estado social brasileiro e equilíbrio financeiro Paulo Sergio Rosso 212 O desenvolvimento dos direitos humanos fundamentais numa perspectiva histórica Alberto de Magalhães Franco Filho 228 O princípio da igualdade na sociedade brasileira pluralista a questão das cotas raciais em universidades Helton Kramer Lustoza 250 O compromisso de compra e venda e a vigência das Súmulas 84 e 239 do STJ Gerson Luiz Carlos Branco 267 A utilização do Sistema de Registro de Preços por órgãos que não participaram da licitação uma análise do art 8º do Decreto Federal nº 3931 de 19 de setembro de 2001 Thiago Dellazari Melo 286 O monumento bárbaro desconcertando o sistema penal entre violência crime e logos Alexandre Costi Pandolfo 295 Discurso poder e ética na decisão penal Gabriel Antinolfi Divan Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 186 311 O ensino do Direito Penal da legitimação da violência à luta pela vida Marília Denardin Budó 331 Giorgio Agamben e o garantismo razões de um desencontro Moysés da Fontoura Pinto Neto 344 Documento histórico A carta de Pero Vaz de Caminha Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 187 Editorial É de Edgar Morin a crítica de que o progresso não se resume ao enunciado de que o amanhã será melhor que o ontem embora tenha sido essa uma verdade vendida aos quatro ventos A ambivalência se faz presente no progresso afirma o sociólogo produzindo ao mesmo tempo curas milagrosas para doenças que muito atormentaram o homem e armas de destruição em massa a economia se divide entre a concentração de riquezas e os guetos de miserabilidade a cultura se dissipa entre a massificação e a retomada da tradição e do pluralismo Nessa bipolarização também o direito se defronta com novas e velhas probabilidades desafiando o jurista a encontrar o seu mister porque ao mesmo tempo é partícipe e destinatário diretamente comprometido desse constante renascer não lhe cabendo abdicar do seu próprio destino E é nesse espaço que vem a lume a Direito e Democracia em seu volume 10 número 2 orgulhosa em veicular os trabalhos de seus articulistas juristas conscientes de seu papel e de seu lugar neste universo A indispensabilidade da necessária pesquisa qualitativa do direito através de um diálogo atento à epistemologia e à antropologia estabelecendo novos olhares sobre a realidade experimentada transformandoa a partir do olhar do ouvir e do escrever faculdades a serem estimuladas no entendimento sociocultural é enfrentada por Vinícius Gil Braga De Paulo Sergio Rosso vem a contribuição sobre o estudo do equilíbrio financeiro entre as exigências do estabelecimento do Estado social e o seu poder de arrecadação assentando a melhor adequação dos serviços prestados porque vedado o retrocesso dos direitos sociais como única alternativa jurídica sobejante O desenvolvimento dos direitos humanos e a mudança de paradigmas dos direitos individuais para os transindividuais é objeto do trabalho que leva a autoria de Alberto de Magalhães Franco Filho tema que sempre merece atenção de todo estudioso do direito Helton Kramer Lustoza aborda a polêmica da questão das cotas raciais em universidades situada entre os extremos de uma política de discriminação positiva e da ausência de legitimação perante o princípio da igualdade A distinção entre o regime dos efeitos do compromisso de compra e venda registrado com eficácia real e o não registrado com eficácia obrigacional gerando respectivamente ações reais e ações obrigacionais diante das novas disposições do CCB de 2002 e a jurisprudência pretérita consolidada pelas Súmulas 84 e 239 do STJ ganha corpo no artigo da lavra de Gerson Luiz Carlos Branco No âmbito das licitações recebe de Thiago Dellazari Melo estudo o Sistema de Registro de Preços por órgãos não participantes da chamada pública com vistas à preservação e manutenção dos princípios jurídicos que fundamentam o respectivo ordenamento de regência Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 188 A desconstrução do poder punitivo a partir da análise do pensamento de Walter Benjamin Giorgio Agamben e Robert Musil é o foco do artigo firmado por Alexandre Costi Pandolfo a apontar que o sistema penal e bem assim o direito estado e história representam monumentos bárbaros retratando a violência intrínseca ao próprio logos De Gabriel Antinolfi Divan vem o estudo sobre o discurso o poder e a ética nas decisões penais com vistas a não ser infligida ao acusado pena que ultrapasse a devida cominação sob o equívoco de manifestação atécnica passional e exageradamente estigmatizante Diante da deslegitimação teórica e fática do sistema penal Marília Denardin Budó esgrima o descompasso dessa constatação com o ensino do direito penal no Brasil onde ainda não se questionam o real exercício de poder e a violência que vigora no próprio sistema a marcálo pela morte denunciando a articulista que o tratamento de tais questões de forma crítica significa de certa forma poupar vidas Moysés da Fontoura Pinto Neto critica as apropriações do pensamento do filósofo Giorgio Agamben por grande parte dos juristas propondo uma leitura diversa ao resgatar de seus textos a ênfase de uma política que vem na qual conceitos atuais como soberania direitos humanos e contrato social perdem seu papel No espaço documento histórico a Direito e Democracia oferece aos seus leitores versão oficial de A Carta de Pero Vaz de Caminha que não apenas retrata descrições geográficas da terra descoberta mas também assinala os primeiros atos jurídicos da civilização europeia nas terras brasileiras Aos nossos consumidores que aproveitem a leitura Elaine Harzheim Macedo Editora Breves considerações sobre o olhar ouvir e escrever enquanto passos constitutivos da pesquisa qualitativa no âmbito jurídico aproximações entre antropologia e direito1 Vinícius Gil Braga RESumo O presente escrito tem por finalidade a proposição de novas possibilidades à pesquisa qualitativa no direito Nesse sentido estabelece um diálogo atento à epistemologia e à antropologia sugerindo ao juristadiscente do direito a realização de um exercício de observação capaz de instigar o estabelecimento de novos olhares sobre a realidade experienciada transformandoa Para tanto estimulase o desenvolvimento de três faculdades de entendimento sociocultural inerentes ao modo de conhecer das ciências sociais o olhar o ouvir e o escrever Palavraschave Direito Antropologia Epistemologia Pesquisa qualitativa Short contributions about watching listening and writing as constitutives steps of qualitative research in the juridical space Approaches between anthropology and law ABStRAct The present work aims at the proposition of new possibilities for qualitative law research Therefore an attentive dialogue is established in relation to epistemology and anthropology Such dialogue suggests to juristlaw students the performance of an observation exercise capable of providing the viable establishment of new perspectives about an experienced reality modifying it Thus the development of three sociocultural understanding senses is stimulated those inserted into the social sciences pattern of acquiring knowledge watching listening and writing Keywords Law Anthropology Epistemology Qualitative research Vinícius Gil Braga é Mestre em Ciências Criminais PUCRS Professor de Direito na Faculdade Cenecista de Osório CNECOsório e American College of Brazilian Studies AMBRA Email viniciusgilbragahotmailcom 1 O presente artigo se constitui em fragmento de um trabalho de maior fôlego ainda inédito voltado ao exame e proposição de novas possibilidades à pesquisa qualitativa no direito ademais esse escrito segue como fonte de estímulo e orientação o artigo intitulado O trabalho do antropólogo olhar ouvir escrever de autoria de Roberto Cardoso de Oliveira CARDOSO DE OLIVEIRA Roberto O trabalho do antropólogo olhar ouvir escrever Revista de Antropologia USP vol 39 nº 1 São Paulo 1996 p1337 Direito e Democracia v10 n2 p189199 juldez 2009 Canoas Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 190 a procura das coisas perdidas é dificultada pelos hábitos rotineiros e é por isso que dá tanto trabalho encontrálas Gabriel García Márquez Cem anos de solidão 1 conSiDERAçõES iniciAiS ou DA nEcESSiDADE DE um PEnSAmEnto comPlExo Je travaille les idées qui me travaillent2 Edgar Morin Não falamos todos do mesmo lugar Ter posições claras a respeito de condições e circunstâncias históricas culturais sociais psicológicas particulares importa na assunção de uma posição particular a nossa posição enquanto sujeitos do conhecimento a partir da qual falamos e direcionamos nossos esforços para a construção do conhecimento através de um exercício reflexivo pessoal e compartilhado Nesse particular atentese à formação sutil da palavra conviver necessário viver com o outro em aberto respeito à sua dignidade e diferença3 Somos sobreviventes de nossa história4 O conhecimento produzido traz consigo nossa carga de historicidade vivências relações angústias limites etc Encontra se portanto sujeito às nossas ideias experiências e faltas persistindo sempre a inextricável relação entre o saber próprio ao pesquisador e o conhecimento por ele produzido ou da influência do observador no resultado de sua observação Ditas contingências delineiam nossos conceitos e concepções importando nessa esteira que um ponto de vista seja tão somente a vista de um ponto ou em melhor expressão a consciência de que o olhar lançado dirigese sobre uma perspectiva apenas uma no seio de tantas outras possíveis As duas assertivas acima traduzem a sensível necessidade de refletir as questões inerentes ao conhecer isto é que o embasam e fundamentam e a partir das quais são informadas e legitimadas suas formas de construção Tão somente a partir desse horizonte compreensivo uma base metodológica qualitativa e suas técnicas de pesquisa passam a auferir sentido isto é tratase fundamentalmente da conscientização crítica sobre os modos de expressão do processo científico necessariamente marcados pela indagação e pelo questionamento de seus limites e possibilidades 2 Trabalho as ideias que me trabalham tradução livre do francês Entretien avec Edgar Morin MARS Le Monde Arabe dans la Recherche Scientifique nº 6 Paris 1996 p59 3 SOUZA Ricardo Timm de Sobre a construção do sentido o pensar e o agir entre a vida e a filosofia São Paulo Perspectiva 2004 p1516 4 Esse breve escrito é tributário do convívio e dos ensinamentos do filósofo e professor Ricardo Timm de Souza exemplo de serhumano que levaremos sempre conosco como fonte de incentivo e inspiração Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 191 Como bem refere Edgar Morin até a metade do século XX a maior parte das ciências tinha a redução como método do conhecimento isto é do conhecimento de um todo para o conhecimento das partes que o compõem e o determinismo como conceito principal ou seja a ocultaçãodesconsideração do acaso do novo das invenções e a aplicação da lógica mecânica da máquina artificial aos problemas vivos humanos e sociais Interessante perceber em contraponto que a cultura humana geral sempre admitiu a possibilidade de se buscar a contextualização de toda informação ou ideia Ao passo que a cultura técnica e científica como referido em nome do seu caráter disciplinar especializado optou por seguir um modelo de racionalidade responsável por separar e compartimentar os conhecimentos prejudicando ainda mais a contextualização dos mesmos5 Com propriedade assevera o epistemólogo francês Deveríamos portanto ser animados por um princípio de pensamento que nos permitisse ligar as coisas que nos parecem separadas umas em relação às outras Ora nosso sistema educativo privilegia a separação em vez de praticar a ligação A organização do conhecimento sob a forma de disciplinas seria útil se estas não estivessem fechadas em si mesmas compartimentadas umas em relação às outras assim o conhecimento de um conjunto global o homem é um conhecimento parcelado Se quisermos conhecer o espírito humano podemos fazêlo através das ciências humanas como a psicologia mas o outro aspecto do espírito humano o cérebro órgão biológico será estudado pela biologia Vivemos numa sociedade multidimensional simultaneamente econômica psicológica mitológica sociológica mas estudamos estas dimensões separadamente e não umas em relação com as outras O princípio de separação tornanos talvez mais lúcidos sobre uma pequena parte separada do seu contexto mas nos torna cegos ou míopes sobre a relação entre a parte e o seu contexto6 destaque nosso Acreditamos que a leitura jurídica do corrente Século XXI somente apresenta sentido de realidade se tomar o direito como uma ciência aberta ao seu tempo Um modo de pensar aberto disposto a explorar os sentidos plurais pertencentes às interfaces entre direito e sociedade qual seja disposto à reflexão e à problematização com vistas a desenvolver nova consistência e tratamento legitimidade e fundamentação Em outras palavras voltado à configuração de uma dogmática jurídica renovada que vislumbra no direito um mecanismo renovado de regulação social o que todavia não se confunde com engessamento da realidade mais próximo e adequado à realidade social a qual se destina O referido modelo reflexivo enseja a assunção de um compromisso com a arte de 5 MORIN Edgar A necessidade de um pensamento complexo In Representação e complexidade MENDES Candido organizador Rio de Janeiro Garamond 2003 6 MORIN Edgar Da necessidade de um pensamento complexo In Para navegar no século 21 Tecnologias do imaginário e cibercultura MARTINS Francisco Menezes SILVA Juremir Machado da organizadores 2ª ed Porto Alegre Sulina 2000 p20 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 192 saberviver em espaço aberto plural e de respeito à diferença Isto é uma cultura de protagonistas cujos diferentes projetos oriundos da diversidade possam ser respeitados e valorizados na medida e riqueza de cada experiência As recentes percepções em torno ao Estado democrático de direito já caminham nessa direção muito embora demasiado resta ao que se aprenderdiscutirreformular um projeto vivo no tempo Para tanto fazse necessário estabelecer novas relações quer dizer dar azo ao diálogo para com outras dimensões do conhecimento inclusive à arte Nesse sentido a partir deste escrito gostaríamos de ensejar a percepção de que o aprender exigenos um remanejamento do olhar reaprender a olhar não raro importando em certas circunstâncias desaprender qual seja estarmos abertos a novas experiências e possibilidades reconstrutivas Legitimamente experimentar Extrair do conhecimento todo o seu sabor O sabor de conhecer7 Isto se aplica diretamente às chamadas metodologias qualitativas marcadas por privilegiar de modo geral a análise de microprocessos através do estudo das ações sociais individuais e grupais realizando um exame intensivo dos dados tanto em amplitude quanto em profundidade caracterizada consoante se depreende do exposto pela heterodoxia no momento da análise8 As páginas que seguem visam a estabelecer um exercício de observação capaz de instigar o discente do direito ao estabelecimento de novos olhares sobre a realidade experienciada transformandoa Sobretudo quando se reconhece o fato do quão adstrita está a pesquisa jurídica ao uso de fontes bibliográficas eou jurisprudenciais bem como do consequente imobilismo que essa postura tem acarretado 7 GOLDENBERG Mirian A arte de pesquisar como fazer pesquisa qualitativa em Ciências Sociais 10ª ed Rio de Janeiro Record 2007 8 MARTINS Heloísa Metodologia qualitativa de pesquisa Educação e pesquisa v 30 nº 2 São Paulo 2004 p292 Nas palavras da autora Outra característica importante da metodologia qualitativa consiste na heterodoxia no momento da análise dos dados A variedade de material obtido qualitativamente exige do pesquisador uma capacidade integrativa e analítica que por sua vez depende do desenvolvimento de uma capacidade criadora e intuitiva A maior dificuldade da disciplina de métodos e técnicas de pesquisa está na dificuldade de ensinar como se analisa os dados isto é como se atribui a eles significados sendo mais fácil ensinar a coletálos ou a realizar trabalho de campo A intuição aqui mencionada não é um dom mas uma resultante da formação teórica e dos exercícios práticos do pesquisador Já no desenvolvimento do emprego de metodologias quantitativas o que se procura é justamente o contrário isto é controlar o exercício da intuição e da imaginação mediante a adoção de procedimentos bem delimitados que permitam restringir a ingerência e a expressão da subjetividade do pesquisador O uso de uma metodologia ou de outra dependerá muito do tipo de problema colocado e dos objetivos da pesquisa no que se refere especificamente à metodologia qualitativa é que com ela a pesquisa depende fundamentalmente da competência teórica e metodológica do cientista social Tratase de um trabalho que só pode ser realizado com o uso da intuição da imaginação e da experiência do sociólogo o que não significa que no caso da metodologia quantitativa também não seja requerida a competência é que neste caso a formalização técnica acaba dominando o pesquisador p292293 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 193 2 PoR um REmAnEjo Do olhAR BREVE ExERcício DE AnáliSE com ViStAS à PRomoção DE noVAS PoSSiBiliDADES REflExiVAS Ao EStuDo Do DiREito A metodologia qualitativa trabalha sempre com unidades sociais privilegia os estudos de caso entendendose como caso o indivíduo a comunidade o grupo a instituição9 Em seu seio estão presentes três faculdades de entendimento sociocultural isto é inerentes ao modo de conhecer das ciências sociais e do direito enquanto modalidade de ciência social aplicada a saber o olhar o ouvir e o escrever10 Notoriamente quando aludimos ao reaprender a olhar está se fazendo referência à postura epistemológica do conhecer conformadora de uma visão de mundo e igualmente do estudo escolhido envolvendo por conseguinte as três faculdades de entendimento nomeadas O olhar em sentido estrito é no mais das vezes a primeira experiência do pesquisador em sua situação de pesquisa marcado sobremaneira por sua domesticação teórica Consoante adverte Roberto Cardoso de Oliveira a partir do momento em que nos sentimos preparados para a investigação empírica o objeto sobre o qual dirigimos o nosso olhar já foi previamente alterado pelo próprio modo de visualizálo Em outras palavras seja qual for esse objeto ele não escapa de ser apreendido pelo esquema conceitual da disciplina formadora de nossa maneira de ver a realidade11 Nas palavras de Cardoso de Oliveira Esse esquema conceitual disciplinadamente apreendido durante o nosso itinerário acadêmico daí o termo disciplina para as matérias que estudamos funciona como uma espécie de prisma por meio do qual a realidade observada sofre um processo de refração É certo que isso não é exclusivo do Olhar uma vez que está presente em todo processo de conhecimento envolvendo portanto todos aqueles atos cognitivos em seu conjunto Mas é certamente no Olhar que essa refração pode ser mais bem compreendida A própria imagem óptica refração chama a atenção para isso12 9 MARTINS Heloísa Metodologia qualitativa de pesquisa Educação e pesquisa v 30 nº 2 São Paulo 2004 p294 10 CARDOSO DE OLIVEIRA opcit p14 e seguintes 11 Idem p15 12 Idem p16 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 194 Imaginemos a situação de um estudante de direito que se dirige ao Fórum de sua cidade com vistas a observar o Juizado Especial Criminal13 em sua ritualística dinâmicas e procedimentos Claro está que a sua condição de estudante de direito não pode ser desconsiderada no processo de seu exercício de observação Ao ingressar no ambiente do Fórum perceberá os olhares que a ele são dirigidos de parte dos funcionários de segurança servidores dos cartórios e demais transeuntes A sua postura vestimenta e empatia poderão levar um simples pedido de informações a diferentes possibilidades Olhares e posturas que poderão encetar ou não alguma significação Com o passar do tempo vaise desenvolvendo uma espécie de sensibilidade no trato dessas questões uma sorte de conhecimento produzido a partir de acertos e equívocos responsáveis por ao longo desse processo conduzirnos a uma gradativa sensação de segurança e colocação diante destas situações Retomando o argumento Não obstante além da sua vivência junto à prática jurídica de igual modo serão os seus conhecimentos de direito material e processual responsáveis por balizar as suas percepções primeiras Ao adentrar na sala de audiência o observador identificará a disposição dos atores jurídicos juiz de direito defesa e acusação tal qual estudou em disciplinas e manuais de direito penal processo penal e organização judiciária Observará ainda as características arquitetônicas da sala de audiência e suas similitudes eou diferenças em relação às outras que por ventura tenha presenciado ou assistido em filmes ou demais fontes de informação Todavia em seguida chegará à conclusão de que para dar conta da natureza das relações sociojurídicas estabelecidas nesse ambiente somente o Olhar não seria suficiente Como alcançar o significado dessas relações sem se valer concomitantemente de outro recurso para obtenção dos dados o Ouvir Se o Olhar possui uma significação específica para um cientista social o Ouvir também o tem Ao observador de uma audiência do Juizado Especial Criminal os discursos terão como liame comum o desenvolvimento de argumentos pautados por essa esfera do direito penal e processual penal Entretanto o mesmo poderá reparar em certos equívocos ou imprecisões no uso dessa linguagem e inclusive dos próprios termos e institutos do direito Ninguém está livre de falhas Poderá perceber ainda uma ampla gama de nãoditos por vezes ensurdecedores e inclusive posturas violadoras ao sentimento de justiça O Olhar aliado ao Ouvir poderá portanto informar ao estudante uma série de circunstâncias imponderáveis imprevistas que não estavam presentes no repertório legislativo e doutrinário de seu aprendizado em uma disciplina acadêmica Outro aspecto o pesquisador poderá avançar em seu entendimento desde que atento à globalidade de informações que se entrecruzam naquele campo a exemplo dos ditosnãoditos olhares etc presentes no próprio intervalo entre as audiências da pauta de julgamentos em questão ou ainda no perfil das partes envolvidas e suas dinâmicas entre outros Em suma tratase 13 Os Juizados Especiais Criminais tiveram sua origem por ocasião da Lei 909995 responsável por estabelecer a informalização dos procedimentos judiciais civil e criminal no âmbito da administração da justiça Sob esse prisma a esfera criminal do dispositivo passou a se ocupar das chamadas infrações de menor potencial ofensivo isto é contravenções penais e demais crimes cuja pena máxima não excede dois anos de prisão Lei 1025101 Para tanto compreende um amplo rol de pequenos delitos que com o passar dos anos encontravamse afastados da justiça criminal tradicional em nome do princípio da insignificância ou bagatela assim regressando ao sistema penal e às agências oficiais de controle Para uma rápida referência aos juizados especiais criminais princípios e regras gerais vide GONÇALVES Victor Eduardo Rios Juizados especiais criminais doutrina e jurisprudência atualizadas São Paulo Saraiva 1998 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 195 de um repertório amplo de possibilidades que podem fazerse presentes nas situações de pesquisa experienciadas delineadas de acordo com o recorte da pesquisa em particular seu problema de estudo e seus objetivos anteriormente delimitados orientando inclusive para novos rumos e eventuais correções de adequação da pesquisa Todavia fazse relevante esclarecer que o Ouvir não se restringe à sua manifestação passiva isto é um observador mergulhado no curso de um ritual judiciário não pode se manifestar interromper a audiência eou retirar suas dúvidas com as partes envolvidas Imaginemos por conseguinte um momento posterior em que o mesmo tem a oportunidade de realizar entrevistas Mas para isso há de se saber Ouvir Acompanhando Roberto Cardoso de Oliveira entendemos que esse exercício se apresenta como delicado problemático ínsito à própria natureza da relação estabelecida entre entrevistador e entrevistado O observadorentrevistador deve estar aberto às situações a ele colocadas consoante referimos anteriormente o aprender exigenos um remanejamento do olhar reaprender a olhar aqui compreendido como olhar em sentido estrito ouvir e escrever não raro importando em certas circunstâncias desaprender qual seja estarmos abertos a novas experiências e possibilidades reconstrutivas Legitimamente experimentar Extrair do conhecimento todo o seu sabor O sabor de conhecer Pois bem percebase que caso essa atitude não seja espontaneamente assumida teremos tão somente perguntas feitas em busca de respostas pontuais criando um campo ilusório de interação Em outras palavras não se pode perguntar com vistas a orientar a resposta que se quer ouvir Isto porque a rigor não há verdadeira interação entre entrevistador e entrevistado se não se cria condições de efetivo diálogo Portanto estamos falando de dois níveis de importância a saber a primeira atinente ao próprio sujeito do conhecimento que deve se mostrar aberto crítico e positivamente inquieto no curso do processo de pesquisa e ainda uma segunda que diz respeito à necessidade de se perceber no informante um interlocutor qual seja edificar uma relação em que o pesquisador tenha a habilidade de ouvir o entrevistado e por ele ser igualmente ouvido construir pontes cognitivas encetando um diálogo teoricamente de iguais sem receio de estar assim contaminando o discurso do informante com elementos de seu próprio discurso pesquisador Portanto sabendose não ser possível a neutralidade idealizada pelos defensores da objetividade absoluta é tão somente no diálogo marcado pela fusão de horizontes que o Ouvir ganha em qualidade e altera uma relação qual estrada de mão única numa outra de mão dupla constituindo assim uma verdadeira interação14 De outra sorte é oportuno referir que uma relação em tal nível envolve um exercício mais aprofundado de pesquisa mais intenso o que em antropologia convencionouse chamar de observação participante Nas palavras de Cardoso de Oliveira 14 Idem p21 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 196 o que significa dizer que o pesquisador assume um papel perfeitamente digerível pela sociedade ou situação de pesquisa observada a ponto de viabilizar uma aceitação senão ótima pelos membros daquela sociedade ou situação pelo menos afável de modo a não impedir a necessária interação Entendo que tal modalidade de observação realiza um inegável ato cognitivo desde que a compreensão Verstehen que lhe é subjacente capta aquilo que um hermeneuta chamaria de excedente de sentido i e aquelas significações por conseguinte dados que escapam a quaisquer metodologias de pretensão nomológica Portanto por meio do qual o pesquisador busca interpretar melhor dizendo compreender a sociedade e a cultura do Outro de dentro em sua verdadeira interioridade Tentando penetrar nas formas de vida que lhe são estranhas a vivência que delas passa a ter cumpre uma função estratégica no ato de elaboração do texto uma vez que essa vivência só assegurada pela observação participante estando lá passa a ser evocada durante toda a interpretação do material etnográfico no processo de sua inscrição no discurso da disciplina15 Assim para que a pesquisa se realize é necessário que o pesquisado aceite o pesquisador disponhase a falar sobre sua vida introduza o pesquisador no seu grupo e dêlhe liberdade de observação Esse mergulho na vida de grupos e culturas aos quais o pesquisador não pertence exige uma aproximação baseada na simpatia confiança afeto amizade empatia etc16 Entretanto há de se ter prudência na escolha dos informantes sobretudo quando se restringe a pesquisa tão somente a um informante privilegiado Sobre a questão adverte Heloísa Martins O recurso ao depoimento oral como forma de construção do documento tem levado várias questões e objeções que dizem respeito à memória A referência às peças que a memória prega baseiase na compreensão de que entre o tempo do acontecimento e o tempo presente do relato o informante cuja memória se apela viveu um conjunto de experiências que de certa forma orientam a visão que ele tem do passado Seu olhar presente para o já vivido sofre a interferência daquelas experiências muitas vezes ele não espelha a verdade sobre a vida passada mas se limita a lembrar aquilo que ele quer ou pode recordar à luz das vivências mais recentes Nesse sentido o informante estaria fazendo interpretações e não expondo a verdade Essa é uma questão que frequentemente preocupa os historiadores que sempre recomendaram que se fizesse a crítica do dado da fonte do documento para averiguar sua veracidade Daí a constante desconfiança acerca da confiabilidade de certos relatos17 15 Idem p2122 31 16 MARTINS opcit p294 17 Idem p295 Interessante referir em contraponto o relato presente no texto O grande mentiroso tradição veracidade e imaginação em história oral de autoria de Janaína Amado AMADO Janaína O grande mentiroso tradição veracidade e imaginação em história oral História nº 14 São Paulo 1995 p125136 A autora com base na análise de uma entrevista explora a questão da mentira na história oral para tanto defende a ideia de que depoimentos desprezados por historiadores por serem mentirosos isto é por não promoverem reconstituições históricas fidedignas dos fatos pesquisados podem conter dimensões simbólicas extremamente importantes O exemplo utilizado demonstra como tradição imaginação e cultura erudita e popular combinaramse para produzir um depoimento mentiroso que entretanto se revelou o mais rico e fértil para a análise histórica Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 197 Retomando o argumento se o Olhar etnográfico tanto quanto o Ouvir cumpre sua função elementar na pesquisa empírica é o Escrever momento posterior e particular que se revela como o passo mais fecundo da interpretação e é por meio dele quando se textualiza a realidade sociocultural que o pensamento se manifesta em sua plena criatividade18 Desse modo o Escrever é a etapa seguinte à observação olhar e ouvir cumprindo a mais alta função cognitiva Em outros termos envolve o processo de textualização dos fenômenos socioculturais observados estando lá trazendo ao texto os fatos observados vistos e ouvidos para o plano do discurso Tratase de um empreendimento bastante complexo que não se confunde com as anotações eou rabiscos que por ventura tenham sido feitos na primeira fase da pesquisa É portanto necessariamente recursivo19 cíclico um processo de idas e vindas aliando o conhecimento teórico em compasso com as circunstâncias experienciadas mediadas permanentemente pela reflexão Como bem pondera Roberto Cardoso de Oliveira Pelo menos minha experiência indica que o ato de escrever e o de pensar são de tal forma solidários entre si que juntos formam praticamente um mesmo ato cognitivo Isso significa que nesse caso o texto não espera que o seu autor tenha primeiro todas as respostas para só então poder ser iniciado Entendo que ocorra na elaboração de uma boa narrativa que o pesquisador de posse de suas observações devidamente organizadas já inicie o processo de textualização uma vez que esta não é apenas uma forma escrita de simples exposição uma vez que há também a forma oral porém é a produção do texto também produção de conhecimento Não obstante sendo o ato de escrever um ato igualmente cognitivo esse ato tende a ser repetido quantas vezes for necessário portanto ele é escrito e reescrito repetidamente não apenas para aperfeiçoar o texto do ponto de vista formal mas também para melhorar a veracidade das descrições e da narrativa aprofundar a análise e consolidar argumentos20 Desse modo concluindo o exemplo mencionado imaginemos que o nosso observador poderia textualizar em sua síntese final de que o exercício de pesquisa realizado permitiulhe estranhar um descompasso entre a previsão abstrata da lei e o âmbito das práticas rituais ou seja do exercício do poder emanado da lei e sua imbricação com as dinâmicas estabelecidas ilustrado a partir da corporalidade e demais expressões performáticas olhares posturas atos de fala brincadeiras sutis repreensões violências explícitas e simbólicas entre outros dos atores nas diferenciadas relações envolvidas Portanto depreendese do exposto que o olhar 18 CARDOSO DE OLIVEIRA op cit p13 19 A respeito do caráter recursivo da construção do conhecimento no âmbito das ciências humanas vide DESHAIES Bruno Metodologia da investigação em ciências humanas Lisboa Instituto Piaget 1992 p213215 20 CARDOSO DE OLIVEIRA op cit p29 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 198 o ouvir e o escrever podem e devem ser questionados em si mesmos embora num primeiro momento possam nos parecer tão familiares e por isso tão triviais a ponto de nos sentirmos dispensados de problematizálos todavia num segundo momento marcado por nossa inserção nas ciências sociais essas faculdades ou melhor dizendo esses atos cognitivos delas decorrentes assumem um sentido todo particular de natureza epistêmica uma vez que é com tais atos que logramos construir o nosso saber21 3 conSiDERAçõES finAiS Este breve escrito objetivou informar ao discente do direito sobre a análise e reflexão dos atos inerentes ao processo cognitivo orientandoo à realização de exercícios de pesquisa de cunho qualitativo Notoriamente o exposto não pode ser desvinculado de outras ideias centrais vinculadas a um conjunto mínimo de decisões e práticas que devem necessariamente acompanhar o desenho de qualquer pesquisa conduzindo a mesma a diferentes possibilidades a saber a decisões relativas à construção do objeto ou delimitação do problema a ser investigado b decisões relativas à seleção dos dados e suas especificidades pessoas locais documentos entre outros c decisões relativas à coleta dos dados e seus corolários os meios necessários para a obtenção da informação indispensável para fins de investigação questionários entrevistas dentre outros d decisões concernentes à análise dos dados e demais elementos da pesquisa técnicas e ferramentas empregadas para ordenar resumir dar sentido às informações coletadas22 Considerando portanto o processo de conhecimento em toda sua complexidade REfERênciAS AMADO Janaína O grande mentiroso tradição veracidade e imaginação em história oral História n14 São Paulo 1995 CARDOSO DE OLIVEIRA Roberto O trabalho do antropólogo olhar ouvir escrever Revista de Antropologia USP v39 n1 São Paulo 1996 DESHAIES Bruno Metodologia da investigação em ciências humanas Lisboa Instituto Piaget 1992 ENTRETIEN AVEC EDGAR MORIN MARS Le Monde Arabe dans la Recherche Scientifique n6 Paris 1996 GOLDENBERG Mirian A arte de pesquisar como fazer pesquisa qualitativa em Ciências Sociais 10ed Rio de Janeiro Record 2007 GONÇALVES Victor Eduardo Rios Juizados especiais criminais doutrina e jurisprudência atualizadas São Paulo Saraiva 1998 21 Idem p15 22 MARRADI Alberto ARCHENTI Nélida PIOVANI Juan Metodología de las ciencias sociales Buenos Aires Emecé 2007 p7185 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 199 MARTINS Heloísa Metodologia qualitativa de pesquisa Educação e pesquisa v30 n2 São Paulo 2004 SOUZA Ricardo Timm de Sobre a construção do sentido o pensar e o agir entre a vida e a filosofia São Paulo Perspectiva 2004 Direito e Democracia v10 n2 p200211 juldez 2009 Canoas Estado social brasileiro e equilíbrio financeiro Paulo Sergio Rosso RESumo Procura encontrar solução para o problema decorrente das exigências do Estado social e os poucos recursos financeiros disponíveis Delineia as características históricas do Estado liberal e do Estado social Rememora implantação do Estado social no Brasil Aponta os graves problemas decorrentes das limitações orçamentárias a que está submetido o moderno Estado social brasileiro em razão das imensas responsabilidades que lhe são impostas constitucionalmente Indica as principais possibilidades de conduta dos governantes visando a atender as responsabilidades impostas pela Constituição Conclui pela impossibilidade de aumento da carga tributária em razão da existência do princípio da vedação ao confisco bem como pela impossibilidade de redução dos investimentos sociais do Estado em face ao princípio da impossibilidade de retrocesso dos direitos sociais Sugere a melhor adequação dos serviços prestados pelo Estado não apenas como solução administrativa mas como única alternativa jurídica sobejante Palavraschave Estado social Estado liberal Crise financeira Despesas públicas Brazilian social State and financial balance ABStRAct The aim of this paper is to find the solution to problems having recourse from the demands of the social State and also of the scarce financial resources available It outlines the historical characteristics of the liberal State and of the social State It goes on to review the implementation of the Social State in Brazil It also highlights severe problems recurring from the budget limitations to which Brazilian modern social State is submitted to due to the huge responsibilities constitutionally imposed on in It shows the main behavioral possibilities of the governors aiming to attend to the responsibilities imposed by the Constitution It ends by outlining the impossibility of increasing the taxation burden due to the existence of a confiscation breach principle as well as the impossibility of reducing the social investments of the State in face of the impossibility of receding social rights principle It also suggests a better adaptation of the services provided by the State not only as an administrative solution but also as the only exceeding legal alternative Keywords Social state Liberal state Financial crisis Public expenditure Paulo Sergio Rosso é procurador do Estado do Paraná Professor de Direito Tributário e Sociologia Jurídica na UENPFUNDINOPI e FANORPI Mestrando em Ciência Jurídica Email paulosrpgeprgovbr Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 201 1 intRoDução A Constituição brasileira caracterizase por sua clara preocupação social Indubitavelmente a conformação atribuída ao Estado brasileiro tem por escopo uma atuação bastante presente do Estado na vida dos cidadãos não se limitando a fazer às vezes de mediador das relações mero tutor das liberdades como ocorria no Estado liberal Inúmeros são os direitos sociais previstos pela lei mas limitados são os recursos dos quais o Estado dispõe visando à solução dos problemas sociais cada vez mais amplos Ao atender os reclamos da sociedade os governos democráticos veemse balizados por duas possíveis soluções aumentar a carga tributária ou reduzir as despesas estatais A primeira solução é em regra a eleita mas a carga tributária brasileira é tida pelos setores produtivos como excessiva fato que diminui a competitividade do país e atravanca o crescimento econômico enquanto a segunda solução redução de despesas pode esbarrar no risco de se minimizarem ainda mais os investimentos públicos no setor social O presente artigo procura analisar o problema situandoo especialmente sob o ângulo jurídico e não apenas administrativo como sói acontecer nos estudos existentes sobre o tema No âmbito do direito há que se questionar se os governos ainda que democraticamente eleitos podem ampliar a arrecadação do Estado mediante incrementos na tributação ao seu talante ou se o próprio Poder Constituinte originário previu limites para tanto Da mesma forma devese indagar se a redução de despesas com a consequente decadência da qualidade dos serviços públicos não significaria da mesma forma uma conduta inconstitucional face às obrigações impostas ao Estado brasileiro pela Constituição de 1988 Há que se destacar com maior rigor a importantíssima missão do Poder Judiciário que pode e deve interferir neste processo não avocando indevidamente para si as funções do administrador mas impedindo que a administração descumpra por excessos ou omissões os ordenamentos constitucionalmente inscritos Num primeiro momento este trabalho faz breves reminiscências sobre a história da implantação do Estado social no Brasil bem como as razões que ocasionaram as crises econômicas verificadas a partir da década de 70 Ao final analisa como deve ser pautada a atuação do administrador público em respeito à Constituição Federal de 1988 2 EStADo SociAl E EStADo liBERAl O Estado social nasceu das novas demandas surgidas com a ascensão política de classes antes renegadas e alijadas do poder Enquanto o Estado liberal representava o modelo ideal para a classe burguesa abraçando a ideia do Estado mínimo não intervencionista o Estado social advém do desejo das classes economicamente desfavorecidas de ao lado do seu crescente poderio político obterem também progressos sociais Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 202 No Estado liberal a atuação estatal era preponderantemente negativa limitando se a proteger os cidadãos da possível violência decorrente da relação de convivência no Estado social os objetivos a serem alcançados são muito mais ousados pretendese garantir ao cidadão condições materiais de sobrevivência digna Problemas atinentes à desigualdade econômica educação saúde e outros direitos recentemente nascidos são encarados como problemas de todos obrigação e prioridade do Estado BONAVIDES 1994 p344 O Estado aparece doravante como o aliado o protetor dos novos valores ao passo que a Sociedade figura como o reino da injustiça o estuário das desigualdades De tudo isso se pode inferir conforme disse Huber que o Estado de Direito foi um produto da Revolução burguesa enquanto o Estado social é um produto da sociedade industrial BONAVIDES 1994 p345 O grande problema que exsurge das promessas feitas pelo Estado social é que diante do aumento de demandas cada vez mais numerosas e complexas as despesas decorrentes de suas crescentes funções tornamse tão amplas que os desequilíbrios financeiros daí decorrentes passam a ser cada vez mais graves e frequentes ocasionando crises minando governos e democracias fazendo nascer a sensação de que o projeto de Estado como instrumento para o alcance do bem comum fracassou Nos anos 70 houve uma melhor compreensão mundial acerca das dificuldades de se manter um Estado gigante interessado em todos os aspectos da vida social Cai por terra a expectativa de que por meio do Estado todos os problemas sociais possam ser solucionados A crise do petróleo agravou a situação brasileira levando o país a uma situação de insolvência no final da década prenunciandose a enorme explosão inflacionária vivenciada na década de 80 Os anos 1970 irão aprofundar esse desequilíbrio econômico na medida em que o aumento da atividade e das demandas em face do Estado e a crise econômica mundial explicitada a partir da crise da matriz energética de base petroquímica com os reflexos inexoráveis sobre o cotidiano das pessoas impondolhes necessidades e retirandolhes a capacidade de suportálas implicam um acréscimo ainda maior de despesas públicas o que redundará no crescimento do déficit público na medida em que o jogo de tensões sociais sugere uma menor incidência tributária ou estratégias de fugas seja via sonegação seja via administração tributária projetando uma menor arrecadação fiscal por um lado e de outro as necessidades sociais muitas delas inerentes a um momento de crise econômica e das atividades produtivas avolumamse formando um círculo vicioso entre crise econômica debilidade pública e necessidades sociais MORAIS 2002 p41 O caso da política brasileira é especialmente didático Analisando o século XX podemos perceber que a visão governamental sempre esteve ligada ao Estado provedor Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 203 ao Estado como primeiro e maior responsável pelo progresso do país como se pode verificar em Getúlio Vargas figura política mais marcante do século que chefiou um primeiro governo bastante longo 19301945 caracterizado pelo autoritarismo e pelos avanços sociais No que pertine à positivação dos direitos sociais a Constituição de 1934 representa um marco para o constitucionalismo brasileiro Em 1934 demos o grande salto constitucional que nos conduziria ao Estado social já efetivado em parte depois da Revolução de 30 por obra de algumas medidas tomadas pela ditadura do Governo Provisório Os novos governantes fizeram dos princípios políticos e formais do liberalismo uma bandeira de combate mas em verdade estavam mais empenhados em legitimar seu movimento com a concretização de medidas sociais atendendo assim a um anseio reformista patenteado de modo inconsciente desde a década de 20 por influxo talvez das pressões ideológicas sopradas do velho mundo e que traziam para o País o rumor inquietante da questão social BONAVIDES 2002 p331 A Constituição de 1934 foi diretamente influenciada pela Constituição mexicana de 1917 e a chamada Constituição de Weimar de 1919 BRENDLER 2005 Também nos momentos posteriores como na Constituição de 1946 esta visão constitucional foi mantida o Estado tomando para si a responsabilidade pelo avanço social e econômico do país BONAVIDES 1994 p335 Nos vinte anos de ditadura militar 19641985 verificouse uma mesma orientação nacionalista e estatizante características suportadas pelo poderio internacional que preferia esta linha de atuação ao risco de tomada de poder pelas linhas de pensamento socialistas Enfim a história constitucional brasileira no Século XX está profundamente marcada pela Constituição de Weimar culminando com o texto de 1988 De último prosseguiu com não menos força na mais recente das Constituições brasileiras a de 5 de outubro de 1988 conforme podemos averiguar examinando lhe alguns capítulos ou artigos Na técnica na forma e na substância da matéria pertinente a direitos fundamentais a derradeira Constituição do Brasil se acerca da Lei Fundamental alemã de 1949 e até ultrapassa em alguns pontos BONAVIDES 1994 p335 A Constituição inspirada na ideia de um Estado social é marcantemente distinta daquela construída sob a égide do Estado liberal Esta é uma Constituição antigoverno e antiEstado enquanto a Constituição social contém a ideologia antiabsolutista e antiindividualista mas com claras preocupações sociais buscando garantir a todos um mínimo material BONAVIDES 1994 p336 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 204 Especificamente no caso brasileiro a demanda pelo cumprimento das grandiosas funções atribuídas ao Estado está em plena consonância com os princípios insculpidos pela Constituição de 1988 segundo os quais não há democracia nem liberdade sem o reconhecimento de que o indivíduo depende das prestações do Estado BONAVIDES 1994 p343 Entretanto o pensamento otimista sobre o Estado do bem estar social começa a naufragar em meados da década de 60 Os primeiros sintomas da crise fiscal ou financeira começaram a surgir em meados dos anos 60 através da constatação de que estava havendo um desequilíbrio na balança fiscal no sentido de que os gastos em políticas sociais estavam sendo maiores do que a receita arrecadada pelo Estado A situação começou a agravarse no final dos anos 70 quando iniciou um crescimento descontrolado da inflação ao mesmo tempo em que há um quadro de intensa estagnação econômica Desta forma todo o estímulo ou desestímulo da demanda que haviam sido as alternativas características deste modelo Estatal mostrouse ineficiente frente ao aumento daqueles dois indicadores BRENDLER 2005 Nos anos 80 e 90 o Estado brasileiro viuse obrigado a adotar medidas contingenciais visando à redução de gastos até em razão das fortes pressões internacionais A própria Lei de Responsabilidade Fiscal Lei Complementar nº 101 de 040500 que fixou limites de gastos com pessoal responsabilizando pessoalmente o administrador público quanto ao respeito de tais limites tem caráter emblemático para a época marcada pela intensa pressão em prol do controle dos gastos públicos A gravíssima crise financeira vivida pelo país logo após o retorno ao regime democrático a partir de 1985 trouxe à baila o discurso neoliberal antiestatizante o qual foi seguido pelo Governo Collor 19901993 e em menor grau por Fernando Henrique Cardoso 19942002 Enquanto no breve governo Collor a intenção era reduzir ao máximo o tamanho do Estado com Fernando Henrique Cardoso a intenção era manter o Estado na condição de fiscalizador e mediador outorgando à iniciativa privada a responsabilidade pelos investimentos públicos Com base nesse raciocínio justificase a criação e a tentativa de estruturação das Agências Reguladoras que fariam o papel regulador e fiscalizador missão originária do Estado Difícil dizer até que ponto tratouse efetivamente de uma mudança de mentalidade ou apenas de uma situação insuperável inevitável diante da realidade econômica interna das pressões internacionais e das exigências da sociedade cada vez mais complexa e cheia de necessidades desatendidas Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 205 3 limitES finAncEiRoS E PoSSíVEiS SoluçõES Diante da imensa gama de esperanças depositadas sobre o Estado social e aos limitados recursos disponíveis em países com economias relativamente frágeis como a brasileira vislumbramse duas opções viáveis a Ampliar a arrecadação ou b Reduzir despesas 31 Ampliar a arrecadação Para os governantes a opção de aumentar tributos é sempre preferível Na origem a tributação é uma relação de poder Ainda que essa visão tenha evoluído para o conceito de relação jurídica os governos não parecem preocupados com a capacidade de pagamento dos cidadãos nem demonstram sensibilidade diante do fato de que a carga tributária no Brasil hoje atinge o alarmante e crescente percentual de 377 RIBEIRO 2006 on line Nenhuma empresa ou cidadão comum tem a faculdade de ao sofrer restrições financeiras aumentar sua arrecadação sem maiores esforços Ao governo basta negociar e legislar Realidade insofismável é que os limites razoáveis da carga tributária brasileira foram há muito superados de forma que parece ser insuportável uma adicional ampliação dessa carga embora isso não possa ser descartado ante a histórica falta de visão governamental acerca dos limites de tributação e a relativa timidez do Poder Judiciário em coibir essa prática Não parece estar sendo respeitado o princípio de vedação ao confisco insculpido no art 150 inc III alínea d da Constituição Federal Segundo Ives Gandra Martins 2001 p23 há desatendimento ao princípio sempre que a tributação agregada retire a capacidade de o contribuinte se sustentar e se desenvolver ganhos para suas necessidades essenciais e ganhos a mais do que essas necessidades para reinvestir ou se desenvolver Muito embora o princípio constitucional de vedação ao confisco seja realmente fluído já que os limites daquilo que equivaleria a confisco deixando de ser mera tributação são de difícil definição verdade é que o problema sempre haverá de ser resolvido tendose em vista o princípio da razoabilidade AMARO 2005 p144 Considerase pois que se a tributação é por sua grande magnitude não razoável em virtude da exagerada carga imposta ao cidadão também haverá de ser considerada por consequência inconstitucional Infelizmente como princípio que é o conceito de vedação ao confisco deveria ser aplicado pelo legislador respeitado pelo administrador público e salvaguardado pelo Poder Judiciário de forma mais específica e ousada do que vem sendo O princípio da vedação ao confisco ainda não apresenta contornos suficientemente definidos cabendo dentre outras dúvidas o questionamento referirseia apenas a algum tributo singularmente considerado ou representaria mais que isso uma limitação geral à carga tributária imposta aos cidadãos Segundo Ives Gandra Martins o princípio de vedação ao confisco pode ser considerado em relação à totalidade dos tributos incidentes e não apenas a um tributo isoladamente Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 206 Na minha especial maneira de ver o confisco não posso examinálo a partir de cada tributo mas da universalidade de toda a carga tributária incidente sobre um único contribuinte Se a soma dos diversos tributos incidentes representa carga que impeça o pagador de tributos de viver e se desenvolver estarseá perante carga geral confiscatória razão pela qual todo o sistema terá de ser revisto mas principalmente aquele tributo que quando criado ultrapasse o limite da capacidade contributiva do cidadão MARTINS 2001 p23 Parece óbvio que a atual carga tributária pode ser tomada como não razoável e consequentemente inconstitucional especialmente considerandose o fato de que o retorno em serviços concedido pelo Estado ao cidadão é confessadamente insignificante Infelizmente há uma inexplicável timidez por parte dos operadores jurídicos que diante da real dificuldade de estabelecimento de critérios mais objetivos para estabelecimento de limites à chamada sanha arrecadatória do Estado terminam por fazer letra morta um princípio tão caro ao Direito Constitucional Tributário Seguindo este raciocínio desprezado pelos tribunais e pela sociedade como um todo qualquer intenção de aumento da carga tributária no estágio atual poderia ser visto como atentado à Constituição fato que levaria à inviabilidade jurídica da ampliação da carga tributária brasileira graças a uma necessária e desejável atuação do Judiciário À parte do aspecto meramente jurídico o senso geral é que a carga tributária atingiu patamares insuportáveis sendo pouco recomendável sua ampliação em razão dos funestos resultados que disso adviriam sobrecarga do setor produtivo aumento da sonegação fiscal redução da capacidade de investimentos redução da competitividade internacional e outros Afastase portanto a ideia de ampliação da carga tributária tanto por questões administrativas quanto jurídicas 32 Reduzir despesas Restringido o caminho da ampliação da carga tributária remanesceria a outra possível solução reduzir os gastos Na visão liberal este seria o caminho recomendável o que passaria invariavelmente pela minimização estrutural do Estado Obviamente a supressão de órgãos estatais ou estruturas que não estejam adequadas a dar retorno útil à sociedade é sempre recomendável seja qual for a ideologia adotada muito embora na prática tal solução encontre inesperados percalços visto implicar no desatendimento a interesses de grupos burocráticos alguns deles extremamente influentes Ocorre porém que na maioria dos casos a redução de estruturas ocasiona também decadência na qualidade dos serviços prestados Em suma o Estado hoje tão criticado por sua omissão em casos tais ousa recuar ainda mais afastandose de sua missão constitucional Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 207 Entretanto uma coisa é a ideologia liberal do Estado mínimo outra bastante diversa é a ideologia abraçada pela Constituição Num Estado de direito não cabe ao governante que é efêmero modificar limitar ou desatender os princípios constitucionais que ao menos tencionam ser eternos Trabalhar continuamente pelo atendimento aos direitos sociais não é uma opção do administrador público tratase de obrigação imposta pelo Estado de direito instaurado no Brasil a partir da Constituição de 1988 Segundo Moraes 1999 p184 os direitos sociais são fundamentos do próprio Estado democrático Direitos sociais são direitos fundamentais do homem caracterizandose como verdadeiras liberdades positivas de observância obrigatória em um Estado Social de Direito tendo por finalidade a melhoria de condições de vida aos hipossuficientes visando à concretização da igualdade social e são consagrados como fundamentos do Estado democrático pelo art 1º IV da Constituição Federal Sendo assim afigurase que a fuga do Estado de campos nos quais está obrigado a atuar representaria no caso brasileiro verdadeiro desatendimento à Constituição já que esta lhe impõe a obrigação de atender seus cidadãos em inúmeros aspectos zelando pela consecução de padrões consideráveis de qualidade de vida Partindose do pressuposto de que a redução de despesas pode ser efetuada sem qualquer prejuízo à qualidade dos serviços públicos nada poderia se opor Como se afirmou anteriormente a realidade demonstra que esta solução aparentemente simples apresenta dificuldades razão pela qual geralmente é disfarçada em atos que na prática não atingem os objetivos anunciados como a extinção de órgãos mas a manutenção das estruturas passandoas à responsabilidade de outros órgãos sobreexistentes sem nenhuma efetiva melhoria administrativa Ao reduzir estruturas o governante deve estar cônscio de que qualquer tipo de atentado aos direitos sociais já conquistados esbarraria na discussão sobre a constitucionalidade desse ato Há que se concluir pela impossibilidade de supressão de direitos sociais seja por modificações legislativas seja pela omissão ou desinteresse do Estado em trazer os direitos constantes do ordenamento legal ao mundo fático em muitos casos mantémse o direito na previsão legal e nada se faz para efetiválo Tratase do princípio da proibição de retrocesso que Sarlet 2004 p147 assim conceitua Em linhas gerais o que se percebe é que a noção de proibição de retrocesso tem sido por muitos reconduzida à noção que José Afonso da Silva apresenta como sendo de um direito subjetivo negativo no sentido de que é possível impugnar judicialmente toda e qualquer medida que se encontre em conflito com o teor Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 208 da Constituição inclusive com os objetivos estabelecidos nas normas de cunho programático bem como rechaçar medidas legislativas que venham pura e simplesmente subtrair supervenientemente a uma norma constitucional o grau de concretização anterior que lhe foi outorgado pelo legislador Como se não bastasse o mencionado princípio implícito constitucional o Brasil é signatário do Pacto de São Salvador integrado ao sistema legal pátrio pelo Decreto Legislativo nº 56 de 19 de Abril de 1995 que assim dispõe em seu art 1º Artigo 1 Obrigação de adotar Medidas Os estadospartes neste Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos comprometem se a adotar as medidas necessárias tanto de ordem interna como por meio da cooperação entre os estados especialmente econômica e técnica até o máximo dos recursos disponíveis e levando em conta seu grau de desenvolvimento a fim de conseguir progressivamente e de acordo com a legislação interna a plena efetividade dos direitos reconhecidos neste Protocolo Pontifiquese que discussões de cunho puramente ideológico sobre a conveniência ou não recomendabilidade da atuação estatal de forma tão ampla devem ser reservadas ao âmbito legislativo político o que não significa dizer que a ideologia não participe do mundo do direito Há que se reconhecer entretanto que no Estado democrático e pluralista há um lócus especificamente destinado às lutas ideológicas que é o campo político A existência de uma Constituição positivada serve justamente para minimizar este tipo de debate no âmbito da administração pública que já sofre muito pelo excesso de discussões vazias de pragmatismo Nossa opção constitucional voltouse para uma forte participação estatal na área social respeitandose a propriedade privada e a economia de mercado e esta opção do constituinte representante popular deve ser respeitada mesmo por aqueles que dela discordam Em suma reduzir despesas quase sempre redunda em malefícios à qualidade dos serviços estatais o que se afigura também conduta inconstitucional passível portanto de controle jurisdicional muita embora há que se reconhecer a intervenção do Judiciário seja extremamente tímida nessa questão Sobre a atuação do Judiciário Streck 2006 p121 comenta O problema é que o judiciário sempre se encontra diante de um dilema se assume postura intervencionista imiscuindose até mesmo no controle de políticas públicas é acusado de ativista quando não de utilizar a jurisprudência dos valores se assume uma postura self restreinting vejase o caso do mandado de injunção e a discussão sobre a cassação das liminares durante a grande Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 209 privatização ocorrida no governo Fernando Henrique é criticado pela sua timidez ou conservadorismo Ainda que tais atos sejam de difícil detecção por parte do Judiciário e mesmo da sociedade há que se compreender que o administrador público está obrigado a atender a Constituição mesmo que sua eventual desobediência possa passar impune isto é mesmo inexistindo efetivo controle jurisdicional sobre tais comportamentos governamentais o administrador público tem a obrigação de atender os ditames constitucionais que não são dirigidos exclusivamente ao Poder Judiciário Muito embora essa visão seja rara nos governantes nem por isso deixa de ser desejável cabendo ao cidadão exigir da classe política respeito aos balizamentos impostos pela ordem constitucional 4 concluSão Por um aspecto não se pode cogitar em ampliação da carga tributária tendo em vista o grande sacrifício já imposto à coletividade que talvez possa ver no princípio constitucional da vedação ao confisco um válido e legítimo instrumento de defesa contra o irrefreável vício estatal de ampliar cada vez mais a arrecadação tributária Por outro aspecto reduzir os gastos estatais atingindo a qualidade ou amplitude dos serviços prestados pelo Estado também pode ser tomado como atentado ao princípio da vedação de retrocesso das conquistas sociais encampadas por nossa Constituição salvo quando tais reduções decorram de readequações administrativas que preservem a atuação estatal Frente a tantas exigências e tão parcos recursos estaria o Estado brasileiro diante de um impasse insuperável Obviamente a solução não poderá ser encontrada em condutas tradicionais Mais do que nunca está em jogo a capacidade administrativa do administrador eleito pelo povo em antever soluções que não impliquem nem em ampliação da carga tributária nem em redução da atuação ou da qualidade dos serviços públicos tão deficientemente prestados pelo Estado brasileiro O governante está constitucionalmente impossibilitado de recuar nos serviços públicos já prestados e também obrigado dentro do possível a envidar esforços pelo avanço na efetivação de tais direitos tendo em vista ser este o fim e a razão de existência do Estado social Reorganizar a administração pública realocando recursos financeiros e humanos parece ser a única solução viável Melhorar o desempenho dos servidores públicos buscando a melhoria da produtividade enfim reduzir despesas sem reduzir a capacidade do Estado em atender aos primordiais anseios do povo As parcerias com o setor privado ou a retirada do Estado de setores econômicos nos quais não está vocacionado a atuar Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 210 são decisões positivas desde que não representem simples abdicação dos interesses públicos em prol do setor privado Especialmente complexo é o enfrentamento a setores burocráticos cujo poderio hipertrofiou juntamente com o Estado enfrentar essa situação é causa de extremo desgaste para o político que muitas vezes prefere o caminho da omissão ao invés do enfrentamento Entretanto o Estado existe para a sociedade não o inverso As poucas soluções apontadas neste estudo consistentes na readequação do modelo administrativo do Estado não são meras opções consistem nas únicas alternativas juridicamente viáveis neste momento tendo em vista que os demais caminhos estão cerrados ao administrador público não por questões de inconveniência ou impraticabilidade administrativa mas em razão dos próprios mandamentos insculpidos na Constituição Não é em suma questão meramente administrativa mas também jurídica REfERênciAS AMARO Luciano Direito tributário brasileiro 11ed São Paulo Saraiva 2005 BONAVIDES Paulo Curso de direito constitucional 5ed São Paulo Malheiros 1994 BONAVIDES Paulo História Constitucional do Brasil 4ed Brasília OAB Editora 2002 BRASIL Constituição da República Federativa do Brasil Disponível em http wwwplanaltogovbrccivil03ConstituicaoConstituiE7aohtm Acesso em 25 set 2007 Decreto Legislativo nº 56 de 19 de abril de 1995 Pacto de São Salvador Disponível em httpwwwaidsgovbrlegislacaovol15htm Acesso em 07 set 2006 BRENDLER Karina Meneghetti A panaceia do estado social e a crise fiscal CDROM Juris Síntese nº 53 MaioJun 2005 CANOTILHO José Joaquim Gomes Direito constitucional e teoria da constituição 6ed Coimbra Almedina 2002 MARTINS Ives Gandra da Silva Curso de direito tributário 8ed São Paulo Saraiva 2001 MORAES Alexandre de Direito constitucional 5ed São Paulo Atlas 1999 MORAIS José Luis Bolzan de As crises do Estado e da Constituição e transformação espacial dos direitos humanos Porto Alegre Livraria do Advogado 2002 RIBEIRO Ana Paula Orçamento deixa de fora corte de gasto público e prevê mínimo de R 375 Folha Online Disponível em httpwww1folhauolcombrfolhadinheiro ult91u110686shtml Acesso em 07 set 2006 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 211 SARLET Ingo Wolfgang Direitos fundamentais sociais e proibição de retrocesso algumas notas sobre o desafio da sobrevivência dos direitos sociais num contexto de crise In Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica Porto Alegre 2004 STRECK Lenio Luiz Verdade e consenso constituição hermenêutica e teorias discursivas Rio de Janeiro Lumen Juris 2006 Direito e Democracia v10 n2 p212227 juldez 2009 Canoas o desenvolvimento dos direitos humanos fundamentais numa perspectiva histórica Alberto de magalhães franco filho RESumo Costumase fracionar o desenvolvimento dos direitos humanos em eras ou dimensões A primeira geração de direitos fundamentais surge no século XIX e é composta dos direitos de liberdade correspondentes aos direitos civis e políticos relativos à primeira fase do constitucionalismo A segunda geração que dominou o século XX compõese dos direitos sociais culturais e econômicos inseridos nas constituições das diversas formas de Estados sociais Já a terceira geração de direitos é fruto da alteração da sociedade por mudanças na comunidade internacional sociedade de massa crescente desenvolvimento tecnológico que fazem surgir novos problemas e preocupações mundiais como a preservação do meio ambiente proteção dos consumidores etc Em nosso trabalho pretendemos comentar o desenvolvimento dos direitos humanos e a mudança de paradigmas dos direitos individuais para os transindividuais Palavraschave Direitos fundamentais Direitos humanos Gerações Dimensões Eras de direitos the development of the basic human rights in a historical perspective ABStRAct It is custom if to divide the development of the human rights in ages or dimensions The first generation of basic rights appears in century XIX and is composed of the rights of freedom correspondents to the civil laws and politicians relative the first phase of the constitutionalism The second generation that dominated century XX is composed in social cultural and economic inserted the rights in the constitutions of the diverse forms of social States Already the third generation of rights is fruit of the alteration of the society for changes in the international community mass society increasing technological development that they make to appear new problems and worldwide concerns as the preservation of the environment protection of the consumers etc In our work we intend to comment the development of the human rights and the change of paradigms of the individual rights for the transindividuais Keywords Basic rights Human rights Generations Dimensions Ages of rights Alberto de Magalhães Franco Filho é especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário de Patos de Minas UNIPAM Mestrando em Direito Coletivo e Função Social do Direito pela Universidade de Ribeirão Preto UNAERP Bolsista da CAPES pelo programa PROSUP Advogado Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 213 1 intRoDução No presente trabalho pretendemos analisar a evolução e o desenvolvimento dos direitos humanos fundamentais Inicialmente iremos buscar uma terminologia adequada para os direitos que terão sua trajetória evolutiva estudada Em um segundo momento traçaremos um esboço histórico do surgimento das chamadas declarações de direitos marco inicial do estudo dos direitos humanos fundamentais Posteriormente trataremos da evolução dos direitos fundamentais sob a perspectiva das eras de direitos com o estudo das ondas geracionais ou dimensionais dos direitos humanos fundamentais Por fim analisaremos a mudança de paradigmas entre os direitos individuais e os interesses transindividuais 2 A tERminoloGiA ADEQuADA Como bem salienta José Adércio Leite Sampaio Qualquer estudo que se faça de um instituto ou categoria jurídicos como quase tudo nessa vida não prescinde do exame da terminologia apropriada e das perspectivas conceituais que se apresentam na doutrina como forma de encontro de uma semântica comum ou pelo menos de maneira de evitar confusões1 O estudo dos direitos do homem revestese de grande importância e relevância não só para o mundo jurídico talvez por isso tantos estudiosos de diversas áreas do conhecimento tenham se debruçado sobre ele dando ensejo a um grande número de expressões tidas como sinônimas e consequentemente a uma grande imprecisão terminológica A doutrina2 tem apontado diversas expressões para designar tais direitos entre elas podemos citar direitos naturais direitos inatos direitos originários direitos humanos direitos do homem direitos fundamentais direitos humanos fundamentais direitos individuais direitos civis direitos políticos direitos públicos subjetivos direitos morais direitos sociais direitos econômicos sociais e culturais direitos do 1 SAMPAIO Direitos fundamentais retórica e historicidade 2004 p5 2 Cf SILVA Curso de direito constitucional positivo 2001 p179 CANOTILHO Direito constitucional e teoria da constituição 2006 p393398 MIRANDA Manual de direito constitucional tomo 4 1988 p4872 PÉREZ LUÑO Los derechos fundamentales 1998 p23 TAVARES André Ramos Direitos fundamentais definição In DIMOULIS Dimitri coord Dicionário de direito constitucional 2007 p124 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 214 cidadão direitos de personalidade direitos dos povos interesses difusos liberdades fundamentais liberdades públicas garantias e deveres fundamentais etc Esse grande número de expressões empregadas atesta a confusão3 teórica e normativa envolta sobre o tema Tais expressões efetivamente não são sinônimas4 porém muitas vezes erroneamente empregadas como tal Vejamos a crítica de Paulo Bonavides quanto ao emprego descompassado destas expressões Temos visto nesse tocante o uso promíscuo de tais denominações na literatura jurídica ocorrendo porém o emprego mais frequente de direitos humanos e direitos do homem entre autores angloamericanos e latinos em coerência aliás com a tradição histórica enquanto a expressão direitos fundamentais parece ficar circunscrita á preferência dos publicistas alemães5 Em outro sentido e com relação á dimensão empregada na expressão Canotilho afirma que Segundo sua origem e significado poderiamos distinguilas da seguinte maneira direitos do homem são direitos validos para todos os povos em todos os tempos dimensão jusnaturalistauniversalista direitos fundamentais são os direitos são os direitos do homem jurídicoinstitucionalmente garantidos e limitados espacio temporalmente Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável intemporal e universal os direitos fundamentais seriam os direitos objectivamente vigentes numa ordem jurídica concreta6 Então qual expressão seria a mais adequada Tal questionamento é importante pois a expressão utilizada deverá refletir o real significado da complexidade do tema ora tratado Neste sentido é a lição de Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior que asseveram qualquer opção terminológica deve guardar o objetivo de melhor refletir a relação de correspondência sígnica entre a expressão eleita e a realidade que por ela se pretende produzir7 Uadi Lamego Bulos sugere o uso da expressão liberdades públicas em sentido amplo que designariam um conjunto de normas constitucionais que consagram 3 Em um capítulo intitulado Um eterno problema de nomes José Adércio Leite Sampaio analisa com pormenor a confusão teórica e normativa destes termos atribuindo grande parte desta confusão à história dos usos e costumes linguísticos da França e dos Estados Unidos da América que são os países de destaques em todo o exame retrospectivo destes direitos SAMPAIO Direitos fundamentais retórica e historicidade 2004 p522 4 Para um maior aprofundamento sobre o significado de cada uma das expressões mencionadas e a confrontação entre elas consultar as obras dos constitucionalistas portugueses José Joaquim Gomes Canotilho CANOTILHO Direito constitucional e teoria da constituição 2006 p393398 e Jorge Miranda MIRANDA Manual de direito constitucional tomo 4 1988 p4872 5 BONAVIDES Curso de direito constitucional 2002 514 6 CANOTILHO Ob cit p393 7 ARAUJO NUNES JÚNIOR Curso de direito constitucional 2006 p107 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 215 limitações jurídicas aos Poderes Públicos8 Nesse sentido também é o magistério de Maria Garcia que opta por liberdades públicas9 somente Porém como alerta Jorge Miranda10 a expressão direitos fundamentais tem sido a preferida pela doutrina e pelos textos constitucionais Araújo e Nunes Júnior afirmam que este termo é o único apto a exprimir a realidade jurídica precipitada11 Já José Afonso da Silva esclarece que direitos fundamentais do homem constituía a expressão mais adequada a este estudo no qualificativo fundamentais achase a indicação de que não se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza não convive e as vezes nem mesmo sobrevive fundamentais do homem no sentido de que a todos por igual devem ser não apenas formalmente reconhecidos mas concreta e materialmente efetivados Do homem não como o macho da espécie mas no sentido de pessoa humana destaques do autor12 Não obstante a interessante justificativa do autor julgamos ser mais pertinente a expressão direitos humanos fundamentais utilizada por e Manoel Gonçalves Ferreira Filho13 e Alexandre de Moraes14 por entendermos que esses direitos inicialmente pertencem às pessoas humanas e justamente por isso são qualificados como fundamentais Alexandre de Moraes define direitos humanos fundamentais como o conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana15 Por fim entendemos ser também adequado o emprego da expressão direitos fundamentais adotada pela maioria dos doutrinadores e dos textos constitucionais 8 BULOS Curso de direito constitucional 2007 401 9 GARCIA Desobediência civil direito fundamental 2004 10 MIRANDA Ob cit 1988 p48 11 ARAUJO NUNES JÚNIOR Ob cit p109 12 SILVA Ob cit p182 13 FERREIRA FILHO Direitos humanos fundamentais 2008 14 MORAES Direitos Humanos fundamentais teoria geral comentários aos arts 1º a 5º da Constituição da Republica Federativa do Brasil doutrina e jurisprudência 1998 15 Idem p39 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 216 3 hiStÓRico DoS DiREitoS humAnoS funDAmEntAiS Segundo a lição de Norberto Bobbio os direitos do homem por mais fundamentais que sejam são direitos históricos ou seja nascidos em certas circunstancias caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes e nascidos de modo gradual não todos de uma vez e nem de uma vez por todas16 Assim como os direitos do homem tem origem histórica se quisermos compreender a fase atual do desenvolvimento destes direitos é preciso lançarmos um olhar sobre a história Alexandre de Moraes comenta que a origem dos direitos individuais do homem pode ser encontrada no antigo Egito e Mesopotâmia no terceiro milênio a C onde já existiam alguns mecanismos de proteção individual em face do Estado A primeira codificação a consagrar direitos comuns a todos os homens seria o Código de Hamurabi 1690 a C O autor salienta também a influência filosóficoreligiosa dos direitos do homem com a propagação das ideias de Buda 500 a C 17 Grécia e Roma antigas são consideradas para alguns18 como a protohistória dos direitos humanos fundamentais Contudo conforme Oscar de Carvalho o mundo antigo não conheceu o primado da liberdade individual e por via de consequência nele não se fizeram presentes as condições históricas necessárias ao desenvolvimento dos direitos humanos19 Há também a contribuição do Cristianismo que trouxe uma mudança de paradigmas do paganismo grego e romano Ferreira Filho aponta como remoto ancestral da doutrina dos direitos fundamentais a antiguidade onde existia um direito superior não estabelecido pelos homens mas dado a este pelos deuses com referência a Antígona de Sófocles ao diálogo De Legibus de Cícero até a Suma teológica de São Tomás de Aquino Porém afirma o autor que foi com a escola do direito natural e das gentes que se formulou a doutrina adotada pelo pensamento iluminista que seria expressado mais á frente nas declarações de direitos20 Sintetizando a origem histórica dos direitos fundamentais José Adércio Leite Sampaio salienta que 16 BOBBIO A era dos direitos 2004 p25 17 MORAES Ob cit 1998 p2425 18 ACCIOLI apud PUHL Breve histórico sobre a evolução dos direitos fundamentais in Revista Jurídica UNIGRAN p10 19 CARVALHO Gênese e evolução dos direitos fundamentais in Revista Instituto de Pesquisas e Estudos Divisão Jurídica p32 20 FERREIRA FILHO Ob cit 2008 p910 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 217 temos dispostas assim três grandes matrizes do sistema de direitos humanos religião processo e propriedade Ou mais precisamente a liberdade religiosa as garantias processuais e o direito de propriedade Essas matrizes tiveram raízes e desdobramentos nos três grandes modelos de desenvolvimento dos direitos humanos Inglaterra Estados Unidos e França21 Não obstante a menção destes momentos históricos como sendo a gênese dos direitos humanos fundamentais o certo é que somente a partir do momento em que limites foram colocados ao poder incontrastável do Estado é que o conceito de direitos humanos formouse na história22 Diante desta constatação somente a partir da elaboração de declarações de direitos é que podemos afirmar o surgimento efetivo dos direitos fundamentais Dalmo de Abreu Dallari anota que O exame dos documentos legislativos da antiguidade revela já uma preocupação com a afirmação de direitos fundamentais que nascem com o homem e cujo respeito se impõe por motivos que estão acima da vontade de qualquer governante Observase porém que nos documentos antigos mesclavamse preceitos jurídicos morais e religiosos não se dissociando a recomendação de regras morais da imposição coercitiva de certos comportamentos Durante a Idade média também não se encontravam documentos que tenham o caráter de declarações abstratas de direitos havendo apenas documentos legislativos como a legislação dos povos germânicos que contém regras de vida social nas quais está implícita a existência dos direitos fundamentais Foi na Inglaterra já na ultima fase da Idade Média que teve a iniciativa de afirmações que podem ser consideradas precursoras das futuras declarações de direitos23 Segundo Manoel G Ferreira Filho o registro de direitos num documento escrito é pratica que se difundiu na segunda metade da Idade Média24 Sendo manifestada inicialmente por meio de pactos forais ou cartas de franquia25 O primeiro registro escrito de direitos foi a Magna Charta Libertatum outorgado por João SemTerra em 15 de junho de 1215 onde foram consagrados direitos dos barões e prelados ingleses restringindo o poder absoluto do monarca Vejamos seus dois artigos iniciais 21 SAMPAIO Ob cit p141 22 Cf CARVALHO Idem p31 23 DALARI Elementos da teoria geral do estado 2007 p206 24 FERREIRA FILHO Ob cit 2008 p11 25 FERREIRA FILHO Curso de direito constitucional 2007 p45 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 218 1 A Igreja de Inglaterra será livre e serão invioláveis todos os seus direitos e liberdades e queremos que assim seja observado em tudo e por isso de novo asseguramos a liberdade de eleição principal e indispensável liberdade da Igreja de Inglaterra a qual já tínhamos reconhecido antes da desavença entre nós e os nossos barões 2 Concedemos também a todos os homens livres do reino por nós e por nossos herdeiros para todo o sempre todas as liberdades abaixo remuneradas para serem gozadas e usufruídas por eles e seus herdeiros para todo o sempre 26 Gomes Canotilho faz menção à Carta inglesa de 1215 afirmando que embora contivesse fundamentalmente direitos estamentais já fornecia aberturas para a transformação dos direitos corporativos em diretos dos homens27 Após foram editados também na Inglaterra o Petition of Right em 7 de junho de 1628 o Habeas Corpus Act de 1679 o Bill of Right em 13 de fevereiro de 1689 e o Act of Settlement de 12 de junho de 1701 Muito embora os referidos documentos sirvam de precedentes históricos nas palavras de José Afonso da Silva a primeira declaração de direitos fundamentais em sentido moderno foi a Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia Esta declaração foi feita em 16 de junho de 1776 e consubstanciava as bases dos direitos do homem vejamos alguns de seus dispositivos I Todos os homens são por natureza igualmente livres e independentes e têm certos direitos inatos de que quando entram no estado de sociedade não podem por nenhuma forma privar ou despojar a sua posteridade nomeadamente o gozo da vida e da liberdade com os meios de adquirir e de possuir a propriedade e de buscar e obter felicidade e segurança II Todo poder reside no povo e por consequência deriva do povo os magistrados são seus mandatários e servidores e responsáveis a todo tempo perante ele III O governo existe e deve existir para o bem comum proteção e segurança do povo nação ou comunidade de todos os modos e formas de governo o melhor é o que é capaz de produzir o maior grau de felicidade e segurança e está mais eficazmente organizado contra o perigo de má administração e sempre que qualquer governo se mostre inadequado ou contrário a estes fins a maioria da comunidade tem o direito incontestável inalienável e irrevogável de o reformar modificar ou abolir da maneira que for julgada mais conducente à felicidade geral28 26 Cf MIRANDA Textos históricos do direito constitucional 1990 p13 27 CANOTILHO Ob cit p382383 28 Cf MIRANDA Idem 1990 p3132 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 219 Em segundo lugar de precedente histórico porém ocupando o destaque entre as declarações de direitos está a Déclaration dês Droits de lHomme et du Citoyen de 26 de agosto de 1789 Ela se encontra em vigor até os dias atuais na França e foi por um século e meio o modelo por excelência das declarações29 José Afonso da Silva comenta que a Declaração Francesa é mais importante tendo em vista seu caráter abstrato e universalizante enquanto a Declaração Americana era mais concreta preocupada com a situação particular que afligia aquelas comunidades seus três caracteres fundamentais eram o intelectualismo o mundialismo e o individualismo30 Vejamos seu preâmbulo e art 1º Os representantes do povo francês reunidos em Assembleia Nacional considerando que a ignorância o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos governos resolveram em declaração solene os direitos naturais inalienáveis e sagrados do Homem a fim de que esta declaração constantemente presente em todos os membros do corpo social lhes lembre sem cessar os seus direitos e seus deveres a fim de que os actos do Poder Legislativo e do Poder Executivo podendo ser em cada momento comparados com a finalidade de toda a instituição política sejam por isso mais respeitados a fim de que as reclamações dos cidadãos doravante fundadas em princípios simples e incontestáveis se dirijam sempre à conservação da Constituição e à felicidade geral Por consequência a Assembleia Nacional reconhece e declara na presença e sob os auspícios do Ser Supremo os seguintes direitos do homem e do cidadão Art1º Os homens nascem e são livres e iguais em direitos As distinções sociais só podem fundamentarse na utilidade comum31 Raul Machado Horta assevera que com a declaração de direitos de 1789 arquétipo constitucional de documentos dessa natureza fezse na verdade a catalogação mais famosa dos direitos individuais de resistência ao Estado e ao Poder32 Notese que as duas declarações de direitos de Virginia 1776 e francesa 1789 precedem as Constituições Americana 1787 e Francesa 1791 tal fato é explicado por Ferreira Filho no sentido de que primeiro formalizouse em um documento escrito o pacto social declaração de direitos contendo os direitos naturais e os limites destes e somente posteriormente com a garantia destes formalizouse o pacto político Constituição Somente mais adiante na era do constitucionalismo por economia de tempo e trabalho que se passou a estabelecer num mesmo documento a declaração de Direitos e a Constituição33 29 FERREIRA FILHO Ob cit 2008 p19 30 SILVA Ob cit p161162 31 Cf MIRANDA Ibidem p57 32 HORTA Estudos de direito constitucional 1995 p244 33 FERREIRA FILHO Idem p56 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 220 4 A EVolução DoS DiREitoS funDAmEntAiS A PARtiR DAS onDAS GERAcionAiS ou DimEnSionAiS Em 1979 proferindo a aula inaugural no Curso do Instituto Internacional dos Direitos do Homem em Estraburgo o jurista francês Karel Vazak utilizou pela primeira vez a expressão gerações de direitos do homem buscando metaforicamente demonstrar a evolução dos direitos humanos com base no lema da revolução francesa liberdade igualdade e fraternidade Vejamos o comentário de Paulo Bonavides o lema revolucionário do século XVIII esculpido pelo gênio político francês exprimiu em três princípios cardeais todo o conteúdo possível dos direitos fundamentais profetizando até mesmo a sequência histórica de sua gradativa institucionalização liberdade igualdade e fraternidade Com efeito descoberta a fórmula de generalização e universalização restava doravante seguir os caminhos que consentissem inserir na ordem jurídica positiva de cada ordenamento político os direitos e conteúdos matériais referentes àqueles postulados Os direitos fundamentais passaram na ordem institucional a manifestarse em três gerações sucessivas que traduzem sem dúvida um processo cumulativo e qualitativo o qual segundo tudo faz prever tem por bússola uma nova universalidade a universalidade material e concreta em substituição da universalidade abstrata e de certo modo metafísica daqueles direitos contida no jus naturalismo do século XVIII Existem outros autores como o alemão Konrad Hesse34 o português Canotilho35 e entre nós Ingo Wolfgang Sarlet36 e Leonardo Martins37 que preferem a utilização do termo dimensões pois o vocábulo gerações daria a ideia de substituição de uma geração por outra Há ainda quem critique tanto a ideia de gerações quanto dimensões como Antônio Augusto Cançado Trindade38 e George Marmelstein Lima39 Passemos então ao estudo das eras dos direitos40 humanos fundamentais que sem dúvida historicamente passaram por um processo expansivo de acumulação de níveis de proteção de esferas da dignidade da pessoa humana41 34 HESSE Estudos de direito constitucional da republica federal da Alemanha 1998 35 CANOTILHO Ob cit p386387 36 SARLET Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988 2004 37 MARTINS Direitos fundamentais história liberdade In DIMOULIS Dimitri coord Dicionário de direito constitucional 2007 p127128 38 Palestra proferida durante o Seminário Direitos Humanos das Mulheres A Proteção Internacional Disponível online httpwwwdhnetorgbrdireitosmilitantescancadotrindadeCancadoBobhtm 39 LIMA Crítica à teoria das gerações ou mesmo dimensões dos direitos fundamentais in Revista Opinião Jurídica Fortaleza v 2 n 3 p171182 2004 40 Expressão cunhada pelo italiano Norberto Bobbio 41 ARAUJO NUNES JÚNIOR Ob cit p115 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 221 Os primeiros direitos abrangem aqueles referidos nas declarações de Direitos das Revoluções americana e francesa são os primeiros a serem positivados e por isso são chamados de primeira geração ou dimensão eles se fundam numa separação entre Estado e sociedade que permeia o contratualismo individualista dos Séculos XVIII e XIX42 São os direitos de liberdade que se dividem em civis e políticos José A L Sampaio afirma que os direitos ou liberdade civis são aqueles que mediante garantias mínimas de integridade física e moral bem assim de correção procedimental nas relações judicantes entre indivíduos e o Estado asseguram uma esfera de autonomia individual de modo a possibilitar o desenvolvimento de cada um Já os políticos são de inspiração democrática seu núcleo se encontra no direito de votar e ser votado43 Os direitos de primeira geração têm como titular o indivíduo singularmente considerado Eles surgem após o absolutismo no Estado de Direito Liberal e representam um nãoagir do Estado44 basicamente traduzemse em postulados de abstenção dos governantes criando obrigações de não fazer de não intervir sobre aspectos da vida pessoal de cada individuo45 Parafraseando Paulo Bonavides estes direitos apresentamse como faculdade ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico enfim são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado46 Como alerta Gilmar Mendes o descaso para com os problemas sociais que veio a caracterizar o État Gendarme associado ás pressões decorrentes da industrialização em marcha o impacto do crescimento demográfico e o agravamento das disparidades no interior da sociedade tudo isso gerou novas reivindicações impondo ao Estado um papel ativo na realização da justiça social O ideal absenteísta do Estado liberal não respondia satisfatoriamente ás exigências do momento Uma nova compreensão do relacionamento Estadosociedade levou os Poderes Públicos a assumir o dever de operar para que a sociedade lograsse superar as angústias estruturais Daí o progressivo estabelecimento pelos Estados de seguros sociais das ações estatais por objetivos de justiça social destaques do autor47 42 SAMPAIO Ob cit p260 43 SAMPAIO Idem p260 44 BOBBIO Ob cit p26 45 MENDES et al Curso de direito constitucional 2007 p223 46 BONAVIDES Ob cit 2002 p517 47 MENDES et al Idem p223 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 222 Os direitos de segunda geração da mesma forma que a primeira foram inicialmente objeto de formulação especulativa em campos políticos e filosóficos que possuíam grande cunho ideológico Dominaram o século XX assim como os de primeira geração dominaram o século XIX Tiveram seu nascedouro nas reflexões ideológicas e no pensamento antiliberal desse século 48 A segunda geração de direitos está ligada ao principio da igualdade na visão de Karel Vazak e são enquadrados como direitos prestacionais ou seja aqueles relativos à exigência de participação do Estado na realização da justiça social através de medidas efetivas para garantir o mínimo necessário à vida digna do ser humano Estes direitos são chamados também de direitos sociais culturais e econômicos Essa trilogia normalmente é apresentada sob o rótulo geral de direitos sociais porém há quem trace distinções internas É o magistério de José Adércio Leite Sampaio Os direitos sociais propriamente ditos seriam aqueles necessários á participação plena na vida da sociedade incluindo o direito á educação a instituir e manter uma família á proteção da maternidade e da infância bem como para permitir o gozo efetivo dos direitos de primeira geração como o reconhecimento do direito ao lazer e o direito a não haver discriminação Já os direitos econômicos se destinam a garantir um nível mínimo de vida e segurança materiais de modo que a cada pessoa desenvolva suas potencialidades Estão nesta lista os direitos trabalhistas a exemplo do direito ao trabalho e a um salário mínimo digno e previdenciários direitos de assistência social do direito á saúde á alimentação ao vestuário e o direito á moradia Por fim os direitos culturais dizem respeito ao resgate estímulo e a preservação das forma de preservação cultural das comunidades bom como se destinam a possibilitar a participação de todos nas riqueza esperituais comunitárias49 Vale ressaltar que segundo Gilmar Mendes os direitos sociais recebem esta denominação não por que sejam direitos de coletividades mas pelo fato de estarem ligados às reivindicações de justiça social50 É imperioso esclarecer também que estes direitos diferentemente dos primeiros possuem um aspecto objetivo qual seja a garantia de valores e princípios de proteção com que escudar e proteger as instituições dando vezo ao surgimento das garantias institucionais51 A terceira geração de direitos é fruto da desigualdade entre as nações Para Norberto Bobbio os direitos de terceira geração ou novos direitos são marcados pela alteração da sociedade por mudanças na comunidade internacional sociedade de massa crescente desenvolvimento tecnológico que fazem surgir novos problemas 48 BONAVIDES Idem p518 49 SAMPAIO Ididem p262263 50 MENDES et al Ibidem p224 51 BONAVIDES Ibidem p519 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 223 e preocupações mundiais como a preservação do meio ambiente proteção dos consumidores etc52 Paulo Bonavides comenta que A consciência de um mundo partido entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas ou em fase de precário desenvolvimento deu lugar em seguida a que se buscasse uma outra dimensão dos direitos fundamentais até então desconhecida Tratase daquela que se assenta sobre a fraternidade conforme assinala Karel Vasak53 Assim esses direitos assumem o caráter coletivo o que não estava presente nas duas dimensões anteriores porquanto visam à proteção do direito ao desenvolvimento à paz ao meio ambiente de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e à comunicação54 Nesse sentido55 também se posiciona Gilmar Ferreira Mendes afirmando que os direitos de terceira geração peculiarizamse pela titularidade difusa ou coletiva uma vez que são concebidos para a proteção não do homem isoladamente mas de coletividades de grupos56 No Brasil o órgão superior do poder judiciário e guardião da Constituição Federal Supremo Tribunal Federal STF reconhece expressamente a existência de três gerações de direitos 57 58 Os direitos de terceira geração surgem portanto num momento em que a sociedade experimenta profundas transformações trazendo uma nova realidade social econômica e jurídica É o comentário pertinente Marcus Vinícius Rios Gonçalvez 52 BOBBIO Idem p2527 53 BONAVIDES Ibidem p522 54 BONAVIDES Ibidem p523 55 Registrese que existem outros autores como por exemplo Etiene R Mbaya que apresentam um sentido de solidariedade que representaria a busca da cooperação internacional entre os povos Tal sentido não representa a mesma noção que nos apresentamos e julgamos ser a mais precisa muito embora não discordemos destas ponderações simplesmente a consideramos como um dos sentidos da terceira onda geracional de direitos MBAYA apud BONAVIDES Ibidem p523524 56 MENDES et al Ibidem p224 57 Enquanto os direitos de primeira geração direitos civis e políticos que compreendem as liberdades clássicas negativas ou formais realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração direitos econômicos sociais e culturais que se identificam com as liberdades positivas reais ou concretas acentuam o princípio da igualdade os de terceira geração que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento expansão e reconhecimento dos direitos humanos caracterizados como valores fundamentais indisponíveis pela nota de uma essencial inexauribilidade STF Pleno Mandado de Segurança n 22164SP Relator Ministro Celso Melo Diário da Justiça Seção I 17 novembro 1995 p39206 58 É importante mencionar que existem doutrinadores que ainda apresentam uma quarta geração de direitos e até mesmo uma quinta geração contudo não iremos fazer nenhuma observação sobre esta gerações ou dimensões pois já atingimos a evolução dos direitos individuais aos interesses transindividuais que é o objeto de nosso estudo Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 224 A realidade sócioeconômica modificouse com rapidez e o século XX assistiu ao desenvolvimento incessante das economias de massa Os sistemas de produção desenvolveramse com repercussão evidente na oferta de bens para a satisfação das necessidades humanas O individualismo do século XIX cedeu lugar à massificação em velocidade acelerada59 Neste cenário perdem os interesses puramente individuais o lugar de destaque para dar lugar aos interesses metaindividuais ou supraindividuais cujos titulares não são mais pessoas consideradas individualmente mas grupos de pessoas 5 concluSão À guisa das considerações finais podemos afirmar que o estudo dos direitos humanos fundamentais é tema bastante complexo porém desafiador A começar pela infinidade de termos empregados para simbolizálos e a confusão teórica e normativa causada por isso Também devemos ressaltar que os direitos humanos fundamentais são direitos essencialmente históricos e demandam um olhar criterioso para a história contudo percebemos sua gênese está ligada diretamente às Declarações de Direitos da Inglaterra dos Estados Unidos e da França Não podemos deixar de mencionar que estes direitos após sua formalização e positivação sofreram um processo histórico evolutivo dividido em gerações ou dimensões comumente chamado de Era dos Direitos Nestas ondas geracionais ou dimensionais percebemos a clara evolução cumulativa e qualitativa dos direitos pertencentes a indivíduos isolados direitos individuais até direitos pertencentes a grupos ou coletividades de pessoas interesses transindividuais ou metaindividuais Assim vislumbramos na evolução dos direitos humanos fundamentais não só o nascimento de novos direitos oriundos da sociedade de massas mas também o surgimento de uma nova visão que rompe o axioma individualista da sociedade moderna para dar vezo á um novo paradigma o da coletividade 59 GONÇALVES Tutela de interesses difusos e coletivos 2007 p1 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 225 REfERênciAS BONAVIDES Paulo Curso de direito constitucional 12ed rev e atual São Paulo Malheiros 2002 Do estado liberal ao estado social 8ed São Paulo Malheiros 2007 BULOS Uadi Lammêgo Curso de direito constitucional São Paulo Saraiva 2007 BOBBIO Norberto A era dos direitos trad Carlos Nelson Coutinho Rio de Janeiro Elsevier 2004 CANOTILHO José Joaquim Gomes Direito constitucional e teoria da constituição 7ed Coimbra Almedina 2006 CARVALHO Oscar de Gênese e evolução dos direitos fundamentais In Revista Instituto de Pesquisas e Estudos Divisão Jurídica Bauru edição 34 p3152 abrjul 2002 CEZNE Andrea Nárriman A teoria dos direitos fundamentais uma analise comparativa das perspectivas de Ronald Dworkin e Robert Alexy In Revista de Direito Constitucional e Internacional São Paulo Revista dos Tribunais ano 13 n52 p5167 julset 2005 DALLARI Dalmo de Abreu Elementos da teoria geral do estado 26ed São Paulo Saraiva 2007 DIMOULIS Dimitri org Dicionário brasileiro de direito constitucional São Paulo Saraiva 2007 FESTER Antonio Carlos Ribeiro org Direitos humanos e São Paulo Brasiliense 1989 FERREIRA FILHO Manoel Gonçalves Curso de direito constitucional 33ed rev e atual São Paulo Saraiva 2007 Direitos humanos fundamentais 10ª ed São Paulo Saraiva 2008 O estado e os direitos fundamentais em face da globalização In Arquivo de direitos humanos Rio de Janeiro Renovar v2 2000 GARCIA Gustavo Filipe Barbosa O futuro dos direitos humanos fundamentais In Revista Jurídica Consulex Brasília ano X n232 p6062 15 set 2006 GARCIA Maria Desobediência civil direito fundamental 2ed rev atual e ampl São Paulo Revista dos Tribunais 2004 GONÇALVES Marcos Vinícius Rios Tutela de interesses difusos e coletivos 3ed rev São Paulo Saraiva 2007 HESSE Konrad Estudos de direito constitucional da República Federal da Alemanha 20ed Trad Luís Afonso Heck Porto Alegre Sergio Antonio Fabris 1998 HORTA Raul Machado Estudos de direito constitucional Belo Horizonte Del Rey 1995 LALAGUNA Paloma Duran Manual de derechos humanos Granada Comares Editorial 1993 LIMA George Marmelstein Crítica à teoria das gerações ou mesmo dimensões dos direitos fundamentais In Revista Opinião Jurídica Fortaleza v2 n3 p171182 2004 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 226 MARTINS Ives Gandra da Silva CAMPOS Diogo Leite de coords O direito contemporâneo em Portugal e no Brasil São Paulo Saraiva 2004 MENDES Gilmar Ferreira COELHO Inocêncio Martirez BRANCO Paulo Gustavo Gonet Curso de direito constitucional São Paulo Saraiva 2007 MIRANDA Jorge Manual de direito constitucional direitos fundamentais tomo IV Coimbra Coimbra 1988 Textos históricos de direito constitucional 2ed Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 1990 MORAES Alexandre de Direito constitucional 23ed São Paulo Atlas 2008 Direitos Humanos fundamentais teoria geral comentários aos arts 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil doutrina e jurisprudência 2ed São Paulo Atlas 1998 MORAIS José Luiz Bolzan de Do direito social aos interesses transindividuais o estado e o direito na ordem contemporânea Porto Alegre Livraria do Advogado 1996 OLIVEIRA JUNIOR José Alcebíades de LEITE José Rubens Morato coords Cidadania coletiva Florianópolis Paralelo 27 1996 PÉREZ LUÑO AntonioEnrique Los derechos fundamentales 7ed Madrid Tecnos 1998 PINILLA Ignácio Ara Las transformaciones de los derechos humanos Madrid Tecnos 1994 PUHL Adilson Josemar Breve histórico sobre a evolução dos direitos fundamentais In Revista Jurídica UNIGRAN Dourados v5 n9 p925 janjun 2003 SAMPAIO José Adércio Leite Sampaio Direitos fundamentais retórica e historicidade Belo Horizonte Del Rey 2004 SARLET Ingo Wolfgang Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988 3ed rev atual ampl Porto Alegre Livraria do Advogado 2004 SLAIB FILHO Nagib Direito constitucional 2ed Rio de Janeiro Forense 2006 SIDOU J M Othon As garantias ativas dos direitos coletivos habeas corpus ação popular mandado de segurança estrutura constitucional e diretivas processuais Rio de Janeiro Forense 1977 Proteção ao consumidor quadro jurídico universal responsabilidade do produtor no direito convencional clausulas contratuais abusivas problemática brasileira esboço de lei Rio de Janeiro Forense 1977 SILVA Alexandre Vitorino da et al Estudos de direito público direitos fundamentais e estado democrático do direito Porto Alegre Síntese 2003 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 227 SILVA José Afonso Curso de direito constitucional positivo 19ed rev atual e ampl São Paulo Malheiros 2001 TRINDADE Antonio Augusto Cançado SANTIAGO Jaime Ruiz de La nueva dimension de las necessidades de proteccíon de ser humano em el inicio del siglo XXI San José Impressora Gossestra Internacional 2001 VASAK Karel Las dimensiones internacionales de los derechos humanos Vol 1 Barcelona SerbalUNESCO 1984 Direito e Democracia v10 n2 p228249 juldez 2009 Canoas o princípio da igualdade na sociedade brasileira pluralista a questão das cotas raciais em universidades helton Kramer lustoza RESumo A presente pesquisa vem avaliar a questão das cotas raciais em universidades no contexto da sociedade brasileira trazendo uma reflexão objetiva sobre pontos fundamentais sob o prisma do direito constitucional contemporâneo Primeiramente se faz uma analise do significado e da origem das diferenças raciais existentes no país para se encontrar a razão das medidas de legitimação de diferenças raciais Por fim se identifica a política de cotas raciais em universidades como uma provável ação afirmativa política de discriminação positiva no direito brasileiro mas que neste caso não encontra legitimação perante o princípio da igualdade Palavraschave Igualdade Política e discriminação the principle of equality in pluralist Brazilian society the question of racial quotas in universities ABStRAct This research looks for evaluating the issue of racial quotas in Brazilians universities bringing an objective discussion about contemporary themes of constitutional law First the analysis will be focus in the meaning and origin of racial differences in the country to find the right measures of legitimization of racial differences Finally to identify the policy of racial quotas in universities as a possible affirmative action positive discrimination policy under Brazilian law but in this case without legitimacy because of equality principle Keywords Equality Political and discrimination 1 A DominAção BASEADA no ASPEcto RAciAl no BRASil Este trabalho visa a abordar a questão específica das cotas raciais em universidades no contexto da sociedade brasileira de um modo desapaixonado à causa buscando trazer a reflexão pontos e situações fundamentais sob o prisma do direito constitucional moderno Helton Kramer Lustoza é especialista em Direito Tributário pelo IBPEX em CuritibaPR Mestrando em Direito Constitucional pela Unibrasil Membro do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário IBPT Pesquisador integrante do Grupo Justiça Tributária e Atividade Econômica da PUCPR Membro da comissão de Direito Tributário da OABPR Professor Universitário Email heltonkramerhotmailcom Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 229 Para tornar mais objetiva a reflexão tomase como foco de análise inicial a busca de um significado e origem das diferenças raciais existentes no país de modo que venha a legitimar mecanismos de inclusão social Pois é com a análise dos problemas do passado que se pode ter noção da eficácia de soluções do futuro Um dos principais problemas enfrentados pelo Brasil é a questão da desigualdade social Se por um lado a Constituição Federal de 1988 determina que todos são iguais perante a lei sem discriminação de qualquer natureza algumas pessoas ainda se utilizam de uma espécie de classificação por raça para justificar algum ato de segregação ou dominação O desafio do direito contemporâneo é dar respostas à questão de ambiguidades que se apresentam na seara racial permitindo uma garantia frente à pluralidade étnica existente no Brasil Para se iniciar um estudo sobre cotas raciais é essencial analisarse em que se baseou a formação do povo brasileiro para entender a origem das diferenças sociais existentes Desde a chegada dos europeus em terras tupiniquins observouse a exploração de mão de obra humana na qual a escravidão sempre foi a base da produção econômica brasileira1 sendo baseada inicialmente com a obtenção de escravos indígenas e posteriormente com escravos africanos A dificuldade enfrentada pelos exploradores foi na dominação dos índios que rejeitavam explicitamente a aceitar aqueles mandos do homem branco o que fez com que houvesse uma expansão da importação de negros para trabalharem nas lavouras Mas o que se deve observar é que a escravidão foi tomada como mão de obra fundamental para a economia nascente no país no qual a dominação foi baseada em critérios estritamente econômicos O professor Darcy Ribeiro leciona que o processo de formação do povo brasileiro que se fez pelo entrechoque de seus contingentes índios negros e brancos foi por conseguinte altamente conflitivo Podese afirmar mesmo que vivemos praticamente em estado de guerra latente que por vezes e com frequência se torna cruento sangrento2 Isso demonstra que desde o início havia um conflito entre povos de modo que o europeu impunha sua dominação sob a base de uma macroetnia expansionista O branco precisava se impor frente a população dita inferior e a justificativa utilizada para a dominação foi através de uma hierarquia racial Após a abolição da escravatura o Brasil passou por um grande período de 1 Cf HOLANDA Sergio Buarque de Raízes do Brasil 26ed São Paulo Companhia das Letras 1995 p48 2 RIBEIRO Darcy O povo brasileiro a formação e o sentido do Brasil São Paulo Companhia das Letras 1995 p168 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 230 contradições e dilemas de uma sociedade rural em fase de transição para uma sociedade urbana recém industrializada mas que não conseguia libertarse de suas estruturas do passado A substituição da mão de obra escravocrata por uma mão de obra livre inviabilizava a industrialização do país que teimou em manter os padrões patriarcais A falta de uma racionalidade econômica e espírito competitivo fez com que o país pósescravatura meados século XX passasse por uma incontrolável migração do meio rural para o urbano transformando as áreas marginais às cidades em grandes favelas E um dos principais problemas enfrentados pelo Brasil diz respeito às diferenças sociais criadas pela imensa massa inserida nas cidades após a tentativa de industrialização do país o que fez com que se constatasse um fato no Brasil as classes ricas e as pobres se separam umas das outras por distâncias sociais e culturais quase tão grandes quanto as que medeiam entre povos distintos3 Observase que a tese de hierarquia de raças foi utilizada como justificativa para se manter a dicotomia entre pobres e ricos Assim percebese como o conceito de raça pura foi transportado da Botânica e da Zoologia para legitimar as relações de dominação e de sujeição entre as classes sociais Nobreza e Plebe sem que houvesse diferenças morfobiológicas notáveis entre os indivíduos pertencentes a ambas as classes4 Os povos dominadores se utilizaram de uma comparação biológica de determinadas raças para fixarem justificativas para legitimar diversos sistemas de dominação racial Observese o que o filósofo francês Voltaire escreveu em uma de suas obras A raça negra é uma espécie humana tão diferente da nossa quanto a raça de cachorros spainel dos galgos A lã negra nas suas cabeças e em outras partes do corpo não se parece em nada com o nosso cabelo e podese dizer que a sua compreensão mesmo que não seja de natureza diferente da nossa é pelo menos muito inferior5 Isso deixa claro que o critério de classificação de raças sempre foi utilizado na história para justificar as diferenças entres pessoas em uma sociedade mas não uma diferença que seria biológica Essa diferença é cultural criada pelo próprio homem para justificar uma dominação social o que serviu de embasamento para muitas discriminações 3 RIBEIRO Darcy O povo brasileiro a formação e o sentido do Brasil p210 4 MUNANGA Kabengele Uma abordagem conceitual das noções de raça racismo identidade e etnia Palestra proferida no 3º Seminário Nacional de Relações Raciais e Educação PENESBRJ em 05 de jan 2003 Disponível em httpwwwacaoeducativaorgbrdownloads09abordagempdf Acesso em 15 de dez de 2008 5 Voltaire citado por PENA Sérgio DJ Humanidade sem raças São Paulo Publi Folha 2008 p14 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 231 Segundo o professor Kabengele Munanga6 a classificação de raças tem fundamento histórico No século XVIII os filósofos iluministas contestavam o conhecimento da Igreja e se recusam a aceitar a explicação até então dada à história da humanidade consequentemente buscavam uma explicação baseada na razão Esses filósofos colocaram em debate se os povos recém descobertos por exemplo na América integravam à antiga humanidade como raças diferentes Para esse docente da USP levando em conta que as classificações são instrumentos que ajudam a operacionalizar o conhecimento foi essa técnica utilizada para explicar a diversidade humana O que não se poderia imaginar é que esse método de conhecimento acabou servindo de base para justificação de uma espécie de hierarquização o que pavimentou o caminho do racismo Assim Kabengele Munanga contesta a existência de raça como elemento biológico mas acredita ser um elemento cultural Combinando todos esses desencontros com os progressos realizados na própria ciência biológica genética humana biologia molecular bioquímica os estudiosos desse campo de conhecimento chegaram a conclusão de que a raça não é uma realidade biológica mas sim apenas um conceito alias cientificamente inoperante para explicar a diversidade humana e para dividila em raças estancas Ou seja biológica e cientificamente as raças não existem7 Isso não significa que todos os indivíduos são geneticamente idênticos ao contrário são diferentes mas essas diferenças não podem servir de suporte para se defender uma classificação em raças O grande problema histórico foi de se criar uma escala de valores entre as denominadas raças o que deu azo a enormes distorções na sociedade sendo utilizado como fundamento de grandes atrocidades como por exemplo o nazismo que defendia a existência de uma raça ariana superior O tipo físico como pele ou cabelo não pode ser utilizado como mecanismos de distinção muito menos de classificação de pessoas pois não há raças biológicas ou seja na espécie humana nada que possa ser classificado a partir de critérios científicos e corresponda ao que comumente chamamos de raça tem existência real segundo o que chamamos raça tem existência nominal efetiva e eficaz apenas no mundo social e portanto somente no mundo social pode ter realidade plena8 O que deixa claro que o conceito de raça tal como o empregamos hoje nada tem de biológico É um conceito carregado de ideologia pois como todas as ideologias ele 6 Cf MUNANGA Kabengele Uma abordagem conceitual das noções de raça racismo identidade e etnia hhtp wwwacaoeducativaorgbr acesso em 151208 7 MUNANGA Kabengele Uma abordagem conceitual das noções de raça racismo identidade e etnia idem 8 GUIMARÃES Antonio Sérgio Alfredo Classes Raças e Democracia São Paulo Editora 34 2002 p50 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 232 esconde uma coisa não proclamada a relação de poder e de dominação9 ou seja são construções fantasiosas criadas no imaginário social a partir das diferenças como a cor da pele e assim manter uma discriminação a certa pessoa ou grupo social Podese encontrar até mesmo uma explicação da origem da dominação na doutrina contratualista como Rousseau10 que defende que o homem viveu no estado de natureza de forma simples solitária e inocente preocupandose apenas com sua conservação Nessa época o homem não possuía a ideia do teu e do meu inexistia a ideia de propriedade Com a passagem da ordem natural para a formação da sociedade civil veio a instituição da noção de propriedade e assim que os homens antes livres se tornam escravos uns dos outros A partir desse momento o homem desenvolveu a ambição de ficar num status acima dos outros homens e não se contentava de produzir frutos somente para suas necessidades básicas mas para ganhar à custa do trabalho dos outros É nesse sentido que se observa o surgimento de um sentimento de dominação sobre outros homens o que denota que o fundamento seria econômico propriedade Nesse diapasão qualquer tipo de discriminação tomada com base no critério de classificação racial não encontrará um embasamento biológico Isso mostra o grande equívoco de muitas pessoas tomam apenas a raça ou traços culturais linguísticos religiosos para considerar que um determinado grupo social seria inferior a outro Fica claro que o aspecto raça é um conceito criado pela sociedade sem valor biológico e científico ou seja as raças não existem em nossa mente porque são reais mas são reais porque existem em nossa mente11 Tanto é assim que o juiz americano Warren no julgamento de um processo que tratava sobre o racismo expressou que não vejo como no dia e na época de hoje podemos separar um grupo do restante e dizer que eles não têm direito ao mesmo tratamento de todos os outros Fazer isso isto seria contrário às Décima Terceira Décima Quarta e Décima Quinta Emendas Elas visavam tornar os escravos iguais a todos os outros Pessoalmente não consigo ver de que forma podemos hoje justificar a segregação unicamente com base na raça12 Com essa mesma linha de pensamento o antropólogo Ralph Linton também defende que a utilização de superioridade de raças é uma questão de ideologia da dominação 9 MUNANGA Kabengele Uma abordagem conceitual das noções de raça racismo identidade e etnia idem 10 Cf ROUSSEAU JeanJacques Do contrato social ensaio sobre a origens das línguas discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens discurso sobre as ciencias e as artes Trad Lourdes Santos Machado 2ed São Paulo Abril Cultural 1978 p266 11 KAUFMAN Jay S citado por PENA Sérgio DJ Humanidade sem raças São Paulo Publi Folha 2008 p05 12 MENEZES Paulo Lucena de A ação afirmativa affirmative action no direito norteamericano 1ed São Paulo Revista dos Tribunais 2001 p82 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 233 Desde que os brancos eram mais bemsucedidos que as outras raças deviam ser em si mesmos superiores aos outros A falta de uma perspectiva mundial do europeu médio obstava que ele verificasse quão recente era esse domínio e o levava a complicadas tentativas para provar que as outras raças estavam realmente mais baixo na escala da evolução física13 Ainda que a classificação raça tenha sido desbancada pelas pesquisas contemporâneas com DNA ainda permanecem muitas mentalidades que defendem teses racistas não respeitando as diferenças culturais e étnicas É nesse cenário que se buscou a construção de uma política multiculturalista que garantisse a cada grupo social um espaço dentro da sociedade Mas o que se pode perceber é que o critério de diferenciação de raças possui uma origem econômica utilizado com o fim de criar escalonamento na sociedade Esse debate se mostra de extrema importância para resolver o dilema educacional da sociedade brasileira que oficialmente se diz democrática e postula a educação como sendo um mecanismo de ascensão social mas que de fato mostrase seletiva e pouco atraente para a classe desprestigiada O que se deve compreender é que a desigualdade social no Brasil partese de um problema econômico devendo as políticas públicas serem direcionadas nesse viés e não numa questão racial propriamente dita 2 AçõES AfiRmAtiVAS como PolíticAS DE comBAtE A DiScRiminAção RAciAl E A influênciA Do PluRAliSmo juRíDico A passagem do Estado liberal para o Estado social frente a uma discussão epistemológica contemporânea pode ser compreendida como uma quebra de paradigma14 uma passagem no plano do pensamento jurídico e estatal Na égide do Estado liberal de Direito a atuação estatal absorveu as bases teóricas de Locke e Monstequieu o que propiciou a difusão da ideia de direitos fundamentais e separação de poderes Os primados da legalidade e da liberdade foram elevados como matriz do Estado de modo que esses dois direitos foram os pilares do Estado liberal O Estado de Direito abandonou os elementos materiais para se reduzir a um esquema formal a partir disso já não interessa indagar o que o Estado pode querer basta verificar se quer na via do direito15 Essa legalidade construída perde cada vez 13 LINTON Ralph O homem uma introdução a antropologia Trad Lavínia Vilela 11ed São Paulo Martins Fontes 1981 p57 14 Um paradigma segundo Kuhn é um modelo ou padrão aceito que na dimensão científica raramente é suscetível de reprodução porque assim como decisões judiciais o paradigma é um objeto a ser mais bem articulado e precisado em condições novas ou mais rigorosas KUHN Thomas s A estrutura das revoluções científicas São Paulo Perspectiva 2000 p4344 15 NOVAIS Jorge Reis Contributo para uma teoria do Estado de direito do estado de direito liberal ao Estado social e democrático de direito Coimbra Coimbra 1987 p112 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 234 mais referência com o objetivo das liberdades e direitos individuais o que se verifica uma neutralidade do puro Estado de legalidade e consequente manipulação autoritária do conceito O Estado liberal se mostrou incapaz de responder as necessidades sociais a partir da mera separação das instancias política e social Assim entende Jorge Reis Novaes que ao lado dos direitos e liberdades clássicos moldados e comprimidos particularmente no que se refere ao direito de propriedade à medida das novas exigências de socialidade avultam agora os chamados direitos sociais indissociáveis das correspondentes prestações do Estado16 Assume o Estado Social o encargo de buscar uma reconfiguração da atuação estatal na sociedade atendendo as mais variadas áreas até então deixa a cargo dos particulares Diante da passagem de um modelo liberal para um modelo social de Estado Ronald Dworkin17 identifica um aparente conflito entre o princípio da liberdade e o princípio da igualdade distributiva haja vista que a liberdade concebida com sua natureza negativa nega a possibilidade de concessões de privilégios somente a uma parcela da sociedade Frente a esse dilema responde Dworkin que Faço essa afirmação ousada porque acredito estarmos hoje unidos na aceitação do princípio igualitário abstrato o governo deve agir para tornar melhor a vida daqueles a quem governa e deve demonstrar igual consideração pela vida de todos18 Na égide do atual Estado social não se pode estabelecer um sistema em que a liberdade irá prevalecer sobre a igualdade pois o pensamento jurídico contemporâneo é a favor de um Estado solidário um Estado que intervém na sociedade para garantir a igualdade de oportunidades É por isso que nesse novo cenário o princípio da igualdade surge como uma técnica de saneamento de diferenças isto é um instrumento de combate as desigualdades sociais existentes na sociedade 16 NOVAIS Jorge Reis Contributo para uma teoria do Estado de direito do estado de direito liberal ao Estado social e democrático de direito p197 17 Cf DWORKIN Ronald A virtude soberana a teoria e a prática da igualdade Trad Jussara Simões São Paulo Martins Fontes 2005 p168 18 DWORKIN Ronald A virtude soberana a teoria e a prática da igualdade Trad Jussara Simões São Paulo Martins Fontes 2005 p169 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 235 No Brasil o sistema multicultural aliado a má distribuição de renda desviando os interesses estatais sempre em favor de uma classe hegemônica baseado numa decisão da maioria sistema democrático acabou culminando na marginalização política jurídica e social de uma classe na sociedade Essa classe por muitos denominados como marginalizados não tinham voz ativa nos rumos desta sociedade sendo deixados às margens de qualquer beneficio que uma civilização possa proporcionar Essa classe não possui uma denominação racial mas sim sociológica são os pobres sem condições financeiras para obter participação digna na sociedade Frente a estes aspectos o campo foi propício para que os movimentos sociais assumissem um papel importante na defesa das minorias19 em busca de soluções a problemas que até então as outras classes sociais não levaram em conta já que a defesa não seria de seu interesse O Estado social transformou a conotação dos direitos individuais de índole formal em material Celso Bastos descreve essa passagem como os principais elementos componentes deste alargamento das funções públicas foram à promoção do bem comum e da justiça social20 Com o intuito de minimizar os problemas sociais os governantes propuseram uma séria de reformas estruturais haja vista que a legitimidade do Estado vem a anos sendo comprometida pois como se observa o Estado nunca agiu em prol do interesse das classes marginalizadas Sempre a maioria fundamento da democracia que decidia os rumos da nação nunca decidia em prol de todas as classes A busca para que a camada marginalizada de uma sociedade fosse resgatada para participação social desencadeou reflexões em todos os campos das ciências em especial no Direito Diante de uma crise dos instrumentos legais no campo de inclusão social a teoria crítica do direito aparece como um instrumento de conscientização Começase a perceber que o direito legal era apenas um elemento componente dentro do Direito21 havendo enumeras outras formas de regulação social que tinham aceitação dentro de uma determinada comunidade mas que não estavam abrangidos pelo direito legal É diante desse cenário que o pluralismo jurídico vem a estudar essas mudanças da realidade social oferecendo formas alternativas de realização das necessidades esquecidas pelo poder público Antonio Carlos Wolkmer assim define o pluralismo jurídico o pluralismo enquanto novo referencial do político e do jurídico necessita contemplar a questão do Estado suas transformações e desdobramentos mais recentes principalmente de um Estado limitado a reconhecer e garantir Direitos 19 Minoria não no sentido de quantitativo mas sim no sentido de poder político e jurídico 20 BASTOS Celso Ribeiro Curso de Teoria do Estado e Ciência Política São Paulo Saraiva 1986 p41 21 Cf COELHO Luis Fernando Teoria Critica do Direito 3ed Belo Horizonte Del Rey 2003 p442 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 236 emergentes Por outro lado há de se sublinhar a especificidade do pluralismo como projeção de um paradigma interdiciplinar do político e do jurídico22 Os movimentos sociais tiveram um papel importante nessa quebra de paradigma estão eles contribuindo para o impulso de uma nova cultura política participativa calcados no direito da diversidade Para Wolkmer os movimentos sociais devem ser entendidos como sujeitos coletivos transformadores advindos de diversos estratos sociais e integrantes de uma prática política cotidiana com reduzido grau de institucionalização imbuída de princípios valorativos comuns e objetivando a realização de necessidades humanas fundamentais23 Para o professor Marcos Augusto Maliska24 a implementação de processos autônomos de participação irá ajudar na modelação das políticas publicas do Estado conforme reivindicações realizadas Assim o direito pode ser compreendido como um instrumento de transformação social através do qual a sociedade deve lutar através de suas formas associativas para implementar os direitos previstos no texto legal Ante a necessidade de se resgatar a classe marginalizada e propulsionada pelas correntes do pluralismo jurídico o Estado inaugurou uma série de políticas públicas de inclusão social denominadas de ações positivas que poderiam ser definidas como um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório facultativo ou voluntário concebidas com vistas ao combate à discriminação racial de gênero e de origem nacional bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego25 Como representante do Direito Público Carmem Lucia Antunes defende que a ação afirmativa é então uma forma jurídica para se superar o isolamento ou a diminuição social a que se acham sujeitos as minorias26 Em outras palavras ações afirmativas podem ser compreendidas como mecanismos que promovem o princípio da igualdade de oportunidades trazendo ao seio social 22 WOLKMER Antonio Carlos Citado por MALISKA Marcos Antonio Pluralismo jurídico e Direito moderno Curitiba Juruá 2000 p65 23 WOLKMER Antonio Carlos Pluralismo Jurídico fundamentos de uma nova cultura do direito São Paulo Alfa Omega 2001 p125 24 Cf MALISKA Marcos Antonio Pluralismo jurídico e Direito moderno Curitiba Juruá 2000 p7582 25 GOMES Joaquim B Barbosa Ação afirmativa princípio constitucional da igualdade o direito como instrumento de transformação social A experiência dos EUA Rio de Janeiro Renovar 2001 p40 26 ROCHA Carmem Lucia Antunes Ação afirmativa o conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica In Revista Trimestral de Direito Público n1585 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 237 aqueles que foram marginalizados em uma dada sociedade Essa transformação visa atingir uma maior representatividade dos grupos minoritários nas atividades públicas e privadas As ações afirmativas tiveram origem nos Estados Unidos com o fim da Guerra civil americana e a escravidão diversas medidas jurídicas e políticas foram tomadas para combater a discriminação racial como por exemplo a Décima Terceira Emenda em 1865 que proibiu a escravidão Décima Quarta Emenda que trouxe o princípio do devido processo legal proibindo a discriminação racial e considerando cidadãos americanos todos aqueles nascidos nos EUA e a Décima Quinta Emenda em 1870 que impede o cerceamento do voto por motivo de raça Ocorre que todas as medidas tomadas pelos americanos não foram suficientes para evitar que os estados que compõe os EUA adotassem medidas segregacionistas sobretudo os do sul que lutaram na Guerra Civil em favor da manutenção da escravidão27 Entende Ronald Dworkin que o objetivo das ações afirmativas é implementar uma verdadeira discriminação positiva Muitas vezes se diz que os programas de ação afirmativa têm como objetivo alcançar uma sociedade racialmente consciente dividida em grupos raciais e étnicos cada um deles como grupo com direito a uma parcela proporcional de recursos carreiras ou oportunidades Essa é uma análise incorreta A sociedade norteamericana hoje é uma sociedade racialmente consciente essa é a consequência inevitável e evidente de uma história de escravidão repressão e preconceito Os programas de ação afirmativa usam critérios racialmente explícitos porque seu objetivo imediato é aumentar o número de membros de certas raças nessas profissões Mas almejam a longo prazo reduzir o grau em que a sociedade norteamericana como um todo é racialmente consciente28 O Brasil importou as ações afirmativas americanas tentando adotar políticas de combate à segregação com o intuito de fazer valer o princípio da igualdade material cristalizada no artigo 5º I da Constituição Federal de 1988 Assim com o efeito de combater os efeitos do passado escravocrata brasileiro o governo acaba implementando políticas concretas de inclusão social o que traz à baila a discussão acerca da necessidade e constitucionalidade da adoção de medidas compensatórias dessa magnitude como a reserva de cotas para ingresso em universidades públicas O assunto tomou destaque na mídia uma vez que a questão é extremamente polêmica Se de um lado se envolve questões históricas como a desigualdade social 27 Cf SANTOS Élvio Gusmão Igualdade e raça O erro da política de cotas raciais 28 DWORKIN Ronald Uma Questão de Princípio Trad Luís Carlos Borges São Paulo Martis Fontes 2000 p439 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 238 diferenças raciais por outro se tem que analisar os primados do princípio da igualdade para o fim de se averiguar se a finalidade da medida possui respaldo e validade constitucional O procurador federal Élvio Gusmão entende que a importação do sistema de cotas em universidades que funciona nos Estados Unidos é uma tentativa equivocada de solucionar um problema brasileiro com uma solução não compatível argumenta que A finalidade da importação da ideia de cotas dos Estados Unidos da América é trazer uma solução para um racismo que lá era institucionalizado a fim de resolver um problema que é mais de natureza econômica que ideológica ou institucional pois a maior discriminação como será demonstrado se dá mais em virtude da posição social e econômica da pessoa do que em relação a sua cor no Brasil Aqui após a abolição nunca houve lei alguma que promovesse barreira institucional a negros ou qualquer outra etnia29 No Brasil de forma diversa que nos EUA não existe uma discriminação institucionalizada embora possam ocorrer preconceitos de forma isolada mas o que não pode ocorrer é o fato de se aceitar como legítima toda e qualquer política pública importada sem realizar reflexões sobre as consequências da medida adotada É temerário admitir uma ação afirmativa discriminação positiva com base racial haja vista que a adoção de políticas de cotas poderá ocasionar uma série de consequências distorcidas pelo simples fato de inexistir uma verdadeira diferença biológica de raças discutidas no primeiro tópico Se a questão da desigualdade social existente no Brasil se deve a relação socioeconômica pois a história demonstra que a escravidão ocorreu por conta do uso do poderio econômico em prol de um modelo econômico nascente a solução das cotas raciais seria falha Entende Elvio Gusmão que O negro não foi escravizado por ser negro embora tenham sido utilizadas razões teológicas e pseudocientíficas para justificar a escravidão mas pelo fato de a África fornecer a mão de obra necessária mais abundante e de fácil captura bem como possuir civilizações e culturas menos avançadas tecnologicamente o que facilitou o seu domínio por parte do explorador europeu30 Essa situação coloca em dúvida se as cotas raciais em universidades seria a medida correta ou adequada para solucionar um problema social brasileiro Com isso a criação de cotas como forma de inserção social de grupos marginalizados via criação de vagas exclusivas para grupos em universidades 29 SANTOS Élvio Gusmão Igualdade e raça O erro da política de cotas raciais 30 SANTOS Élvio Gusmão Igualdade e raça O erro da política de cotas raciais Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 239 denominada de ação afirmativa parte da premissa de problemas de segregação racial o que na verdade a história brasileira comprova que seria socioeconômica Isso exige que o sistema de cota deve ser melhor refletido para que deva funcionar de uma forma diferente 3 o PRimADo conStitucionAl DA iGuAlDADE E A QuEStão DAS cotAS RAciAiS no EnSino SuPERioR mEDiDA PolíticA DE DESlEGitimAção conStitucionAl A intenção deste trabalho é pesquisar a questão da política de cotas raciais em universidades como ação afirmativa política de discriminação positiva no direito brasileiro levandose em conta as diretrizes constitucionais sobre o princípio da igualdade e sobre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil A constituição Federal de 1998 denota em seu art 5º I que as leis devem ser executadas sem consideração pessoais o que exige que toda norma jurídica seja aplicada a todos os casos que sejam abrangidos por seu suporte fático e a nenhum caso que não o seja31 Isso remete a máxima aristotélica de que consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais Mas a indagação que involuntariamente se apresenta é quem são os iguais e quem são os desiguais Devese perceber que a discriminação pode ocorrer em dois sentidos quando se trata como iguais pessoas em situações diferentes e também quando se trata de forma diferente pessoas em situações iguais Em outras palavras o ordenamento jurídico brasileiro deve buscar um tratamento semelhante em termos de direitos e obrigações para todos os cidadãos o que não impede por via do princípio da igualdade que determinada situação tenha tratamento diferenciado de outra É possível que determinada situação por apresentarse como uma especialidade possa receber um tratamento diferenciado desde que diante de uma justificativa legitimada Essa diferenciação não pode ser feita de maneira indiscriminada sob pena de violar o próprio postulado da igualdade conforme alerta Pimenta Bueno a lei deve ser uma e a mesma para todos qualquer especialidade ou prerrogativa que não for fundada só e unicamente em uma razão muito valiosa do bem público será uma injustiça e poderá ser uma tirania32 31 ALEXY Robert Teoria dos direitos fundamentais Trad Vergílio Afonso da Silva São Paulo Malheiros 2008 p394 32 BUENO Pimenta citado por MELLO Celso Antonio B de Conteúdo jurídico do princípio da igualdade 3ed São Paulo Malheiros 1999 p18 Também é o entendimento de Robert Alexy Se o enunciado geral de igualdade se limitasse ao postulado de uma práxis decisória universalizante o legislador poderia sem violálo realizar qualquer discriminação desde que sob a forma de uma norma universal o que é sempre possível A partir dessa interpretação a legislação nazista sobre judeus não violaria o enunciado os iguais devem ser tratados igualmente ALEXY Robert Teoria dos direitos fundamentais Trad Vergílio Afonso da Silva São Paulo Malheiros 2008 p398 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 240 Frente a essas premissas é possível trazer o entendimento de Robert Alexy onde ele defende que o direito de igualdade definitivo abstrato desdobrase no direito de ser tratado igualmente se não houver justificativa para o tratamento desigual e o direito de ser tratado desigualmente se tal justificativa estiver presente33 Este ainda compreende com base em uma jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão que o enunciado da igualdade é violado se não é possível encontrar um fundamento razoável que decorra da natureza das coisas ou uma razão objetivamente evidente para a diferenciação ou para o tratamento igual feitos pela lei34 sendo que promover determinados grupos já significa tratar os outros de forma desigual35 Fica claro que o princípio da igualdade se apresenta com caráter dúplice que de um lado obriga o Estado a não conceder privilégios injustificados mas também seria utilizado para a correção das injustiças sociais localizadas e pontuais técnica de saneamento de desigualdades Mas esse tratamento diferenciado deve ser aplicado com muita cautela haja vista o perigo em estar criando um novo tipo de discriminação com base em uma aparência de justiça Diante de uma dada situação entende Celso Antonio B Mello36 que primeiramente se deve identificar aquela situação que é erigida em critério discriminatório para depois se descobrir se existe alguma razão racional para atribuir um tratamento jurídico diferenciado Verificado qual o fato social que se mostre discriminado mecanismos legislativos e administrativos compensatórios poderiam ser adotados para buscar a solucionar o problema Nesse processo de identificação do fato discriminen devese ter o cuidado para que a situação analisada seja efetivamente especial ou seja possua característica ou traço diferenciado Para numa segunda etapa encontrar uma correlação lógica entre os fatores diferenciais do fato analisado com a diferenciação do regime jurídico estabelecida na legislação sendo que essa diferenciação somente poderá ser levada a efeito se o presente tratamento jurídico esteja fundado em razão valiosa protegida pela carta constitucional37 Frente à perspectiva doutrinária acima delineada as políticas públicas precisam ser avaliadas a partir de um fundamento sociológico e constitucional buscando a promoção da pessoa sanando as reais desigualdades existentes na sociedade A questão tormentosa que o Estado contemporâneo tem que lidar é o fato de encontrar razões para justificar 33 Cf ALEXY Robert Teoria dos direitos fundamentais p429 34 ALEXY Robert Teoria dos direitos fundamentais p403 35 ALEXY Robert Teoria dos direitos fundamentais p417 36 Cf Celso Antonio B de Conteúdo jurídico do princípio da igualdade 3ed São Paulo Malheiros 1999 p38 37 Cf Celso Antonio B de Conteúdo jurídico do princípio da igualdade p41 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 241 as discriminações positivas isto é de que determinada situação é realmente especial e merece guarida pelo Direito É nessa discussão que se insere a questão das cotas raciais em universidades no qual o Estado brasileiro elegeu como situação a merecer um tratamento diferenciado art 3º III da CF38 elencado como uma ação afirmativa destinada a promover a igualdade de acesso à educação Mas o problema é de responder as críticas que se embasam na tese de que as cotas raciais não encontrariam uma legitimidade constitucional bem como estaria criando ao invés de uma inclusão social uma nova forma de discriminação Sabese que o postulado da igualdade busca a concretização da justiça social visando um tratamento isonômico entre situações semelhantes Pela justificativa política da criação de cotas raciais em universidades ela estaria atrelada a concretização de uma justiça compensatória na qual a melhor forma de correção e de reparação desse estado de coisas consistiria em aumentar via ações afirmativas as chances dessas vítimas históricas de obterem os empregos e as posições de prestigio que elas naturalmente obteriam caso não houvesse discriminação39 Observase que a ideia central da política de cotas é a concretização da igualdade material entre os povos sejam eles brancos negros ou índios O que se buscou com essa ação afirmativa foi diminuir as desigualdades sociais ou tratar os desiguais na medida da sua desigualdade através de uma reparação de injustiças cometidas no passado o que deveria proporcionar uma correção social mediante a criação de um sistema diverso de recepção de acadêmicos pela via racial Ainda que a intenção seja moralmente significativa e de grande valia o problema é justificar as cotas raciais diante do postulado constitucional da igualdade Pois não se poderia remediar um suposto problema do passado criando um novo problema para o futuro haja vista que se estaria criando um novo fato discriminador assim o Estado brasileiro copiando uma solução dos Estados Unidos da América para um problema norteamericano deu início a uma política de pretensa inclusão social e econômica das populações negras e aborígenes com o fim de diminuir as desigualdades vigentes entre estes e os de cor branca incentivando todavia a discriminação racial40 38 Art 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil III erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais 39 GOMES Joaquim B Barbosa Ação afirmativa princípio constitucional da igualdade o direito como instrumento de transformação social A experiência dos EUA p6364 40 SANTOS Élvio Gusmão Igualdade e raça O erro da política de cotas raciais Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 242 Se a justificativa utilizada para a implantação da cotas raciais for de justiça compensatória existem pesadas críticas acerca de sua aceitação haja vista que em matéria de reparação de danos somente quem sofreu o dano teria legitimidade de receber a respectiva reparação bem como somente quem praticou o ato danoso tem o dever de arcar com a sanção não sendo permitido repassar o encargo e benefícios para terceiros Essas críticas tendem a enfraquecer a tese compensatória das ações afirmativas segundo entendimento de Joaquim Barbosa41 O sistema de cotas raciais foi uma opção política do Estado brasileiro como solução a fim de resolver um problema que é mais de natureza econômica do que ideológica ou racista ao contrário da história dos EUA A história brasileira comprova que a maior discriminação existente ocorre em virtude da posição social e econômica do que em relação à cor de pele Se a questão de raça sempre foi utilizada como um meio para a justificação de dominação de povos podese compreender que a instituição de uma forma diferenciada com base em raças seria falha ou pior discriminatória Além disso o artigo 208 inciso V da Constituição Federal determina que haverá o acesso aos níveis mais elevados do ensino da pesquisa e da criação artística segundo a capacidade de cada um o que impõe um caráter meritório na admissão de acadêmicos pelo ensino superior ao contrário do que ocorre no ensino fundamental e médio que se orientam pelo princípio da universalização Assim é vedada qualquer eleição de fator de discriminação que se baseia em nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo como o sexo a raça a nacionalidade religião conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal42 em casos semelhantes Defende Nina Beatriz Stocco Ranieri que as cotas raciais em universidades irá criar uma distorção extremamente prejudicial na sociedade realizando pesadas críticas a este sistema A reserva de vagas não resolve o problema da desigualdade educacional cujas raízes encontramse nas condições de acesso qualidade e permanência no ensino fundamental e médio Pelo contrário além de não o solucionar agrava a desigualdade assim produzida de forma perversa Cria duas categorias de 41 Cf GOMES Joaquim B Barbosa Ação afirmativa princípio constitucional da igualdade o direito como instrumento de transformação social A experiência dos EUA p65 42 CONSTITUCIONAL TRABALHO PRINCÍPIO DA IGUALDADE TRABALHADOR BRASILEIRO EMPREGADO DE EMPRESA ESTRANGEIRA ESTATUTOS DO PESSOAL DESTA APLICABILIDADE AO TRABALHADOR ESTRANGEIRO E AO TRABALHADOR BRASILEIRO CF 1967 ART 153 1º CF 1988 ART 5º CAPUT I AO RECORRENTE POR NÃO SER FRANCÊS NÃO OBSTANTE TRABALHAR PARA A EMPRESA FRANCESA NO BRASIL NÃO FOI APLICADO O ESTATUTO DO PESSOAL DA EMPRESA QUE CONCEDE VANTAGENS AOS EMPREGADOS CUJA APLICABILIDADE SERIA RESTRITA AO EMPREGADO DE NACIONALIDADE FRANCESA OFENSA AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE CF 1967 ART 153 1º CF 1988 ART 5º CAPUT II A DISCRIMINAÇÃO QUE SE BASEIA EM ATRIBUTO QUALIDADE NOTA INTRÍNSECA OU EXTRÍNSECA DO INDIVÍDUO COMO O SEXO A RAÇA A NACIONALIDADE O CREDO RELIGIOSO ETC É INCONSTITUCIONAL PRECEDENTE DO STF AG 110846AGRGPR CÉLIO BORJA RTJ 119465 III FATORES QUE AUTORIZARIAM A DESIGUALIZAÇÃO NÃO OCORRENTES NO CASO IV RE CONHECIDO E PROVIDO RE 161243 RELATORA MIN CARLOS VELLOSO SEGUNDA TURMA JULGADO EM 29101996 DJ 19121997 PP00057 EMENT VOL0189604 PP00756 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 243 alunos em termos de mérito e competência acadêmicas os das cotas reservadas e os que ingressam sem reserva de cotas o que não só diminui a eficiência da reconhecida qualidade do ensino superior público uma vez que os primeiros tendem a permanecer por mais tempo nos cursos de graduação dadas as consequências inerentes à facilitação do acesso centradas basicamente no déficit de aprendizagem Este mesmo fato considerado do ponto de vista do aluno ingressante pelo sistema de cotas produz efeito antissocial ante as possíveis repetências e dificuldades de acompanhamento normal dos cursos Não há outro caminho para a redução de desigualdades na área educacional senão o da melhoria de ensino fundamental e médio o que supõe tanto o investimento financeiro como a formação de professores devidamente capacitados para atuar nesses níveis de ensino 43 Deve existir uma reflexão no sentido de que se prevalecer a tese de que é possível criar um sistema em que defende uma concorrência apartada para os negros e índios tendo como justificativa que eles não teriam as mesmas capacidades que os brancos isso pode representar dois problemas graves de um lado a quebra do princípio da eficiência do ensino público ao se flexibilizar o acesso de alunos e por outro lado uma legalização do racismo ao invés de uma ação afirmativa Nesse sentido foi o entendimento da Desembargadora Vera Lúcia Lima do Tribunal Regional Federal da 2ª Região44 ao julgar o Agravo de Instrumento n200802010121621 ocasião em que ela decidiu que as cotas raciais não atendiam ao princípio da isonomia haja vista que o acesso ao ensino universitário deve sempre ser regulado de acordo com o critério meritório O que se tenta defender é que ao se criar um sistema diferenciado sob o pretexto de que há raças exploradas historicamente mas na verdade a exploração se deu por aspectos econômicos então a premissa adotada é falsa logo o sistema pode não funcionar da forma que se imagina Além da ação judicial acima citada existem várias outras discutindo a matéria de cotas raciais em universidades dentre elas uma representação de inconstitucionalidade no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro processo nº 200300700021 e uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal ADIN 2858 Ambas as 43 RANIERI Nina Beatriz Stocco A reserva de vagas nas universidades públicas BDA Boletim de Direito Administrativo São Paulo v17 n9 p699701 2001 44 CONSTITUCIONAL AGRAVO DE INSTRUMENTO ENSINO SUPERIOR SISTEMA DE COTAS RESOLUÇÃO Nº 332007 DA UFES RESERVA DE 40 DAS VAGAS DOS CURSOS OFERECIDOS PARA ESTUDANTES DE BAIXA RENDA EGRESSOS DE ESCOLAS PÚBLICAS ART 97 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL RESERVA DE PLENÁRIO DESNECESSIDADE IN CASU AFRONTA AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE INOBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE ACESSO QUE DEVE PAUTARSE DE ACORDO COM O MÉRITO DE CADA UM ART 208 V DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL INEXISTÊNCIA DE META PROGRAMÁTICA INSTITUÍDA PELO CONSTITUINTE ORIGINÁRIO EM PROL DA UNIVERSALIZAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR DECISÃO QUE NÃO MALFERE A AUTONOMIA DIDÁTICOCIENTÍFICA PREVISTA NO ART 207 DA CR88 RECURSO PROVIDO AGRAVO INTERNO PREJUDICADO TRF 2ª região AI 200802010121621 Julg 11032009 Rel Des Vera Lucia Lima Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 244 ações trazem questões como estas que foram levantadas neste trabalho e que merecem ser amadurecidas pela sociedade com muita clareza e objetividade Outro problema que se encontra no sistema de cotas raciais e que impede a legitimidade constitucional é a respeito de sua operacionalidade sendo que o aspecto racial depende de uma análise subjetiva Pois se já é difícil afirmar que raças existem como se fazer a confirmação de que alguém é negro índio ou branco E o mulato seria meio negro ou meio branco Então teria ele direito a meia cota Frente à interpretação extensiva admitida no direito constitucional como tratar aquele de cor branca mas filho de mãe e pai negros Acreditase que as cotas raciais poderão ocasionar mais distorções do que correção na sociedade brasileira pois a diferenciação a ser criada com base em raças além de possuir premissas falhas não admite um controle objetivo possibilitando por exemplo que negros ricos possuam privilégios e brancos pobres e marginalizados fiquem de fora do programa Observese um caso real que ocorreu na Universidade de Brasília relatada pelo procurador federal Élvio Gusmão História bizarra aconteceu com os gêmeos Alan e Alex No início de maio de 2007 o estudante Alan Teixeira da Cunha de 18 anos e seu irmão gêmeo Alex foram juntos à Universidade de Brasília UnB para se inscrever no vestibular Visto que têm pele morena eles optaram por disputar o concurso por meio do sistema de cotas raciais Desde 2004 a UnB e outras 33 universidades do país reservam 20 de suas vagas a alunos negros e pardos que conseguem a nota mínima no exame Alan e Alex são gêmeos univitelinos ou seja foram gerados no mesmo óvulo e genética e fisicamente são idênticos Eles se inscreveram no sistema de cotas por acreditar que se enquadram nas regras já que seu pai é negro e a mãe branca Seria de esperar que ambos recebessem igual tratamento Não foi o que aconteceu Os juízes da raça olharam as fotografias e decidiram Alex é branco e Alan não Alan que quer prestar vestibular para educação física foi classificado como preto na subcategoria dos pardos e pode se beneficiar do sistema de cotas Alex que pretende cursar nutrição foi recusado A decisão da banca da Universidade de Brasília que determina quem tem direito ao privilégio da cota mostra o perigo de classificar as pessoas pela cor da pele coisa que fizeram os nazistas e o apartheid sulafricano45 Para o americano John Rawls as desigualdades sociais atingem as possibilidades de vida dos seres humanos É sobre tais desigualdades que a teoria da justiça deve ser aplicada através da defesa da equidade Assim defende este autor que 45 SANTOS Élvio Gusmão Igualdade e raça O erro da política de cotas raciais Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 245 todas as pessoas têm igual direito a um projeto inteiramente satisfatório de direitos e liberdades básicas para todos projeto este compatível com todos os demais e nesse projeto as liberdades políticas e somente estas deverão ter seu valor equitativo garantido E também as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer dois requisitosa devem estar vinculadas a posições e cargos abertos a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades e b devem representar o maior benefício possível aos membros menos privilegiados da sociedade46 É possível defender que haja mecanismos de correções das desigualdades sociais com a finalidade de privilegiar os menos favorecidos O que não pode acontecer é simplesmente eleger a questão racial como premissa para a diferenciação social o que em si já é uma discriminação haja vista que no atual Estado Democrático de Direito todo e qualquer tratamento diferenciado deve atender ao princípio da isonomia afim de que aquilo que é identificado como vontade da Constituição deve ser honestamente preservado mesmo que para isso tenhamos de renunciar a alguns benefícios ou até a algumas vantagens justas47 conforme defende o doutrinador alemão Konrad Hesse Uma alternativa legitima que poderia ser criada seria a implementação definitiva de cotas para estudantes de escolas públicas ou cotas para pessoas sem condições financeiras Estas espécies de diferenciação aparentemente encontrariam fundamento constitucional pois se estaria combatendo a desigualdade social com um problema historicamente identificado e com mecanismos de caráter objetivo sem riscos de se privilegiar pessoas em situações iguais O princípio da igualdade conforme concebido pelo Estado Democrático de Direito moderno se traduz em uma técnica que visa o saneamento das desigualdades sociais Mas não pode ser tomado como fundamento para as cotas raciais pois nesse caso estaria aplicando a isonomia às avessas o que deslegitima os primados constitucionais 4 conSiDERAçõES finAiS A classificação de raças não tem caráter biológico mas sim tem um conceito carregado de ideologia esconde uma coisa não proclamada a relação de poder e de dominação É uma construção criada no imaginário social a partir das diferenças como a cor da pele e assim manter uma discriminação a certa pessoa ou grupo social A história brasileira demonstra que as desigualdades sociais possuem uma origem econômica no qual a questão racial foi elencada tão somente como uma justificativa de dominação 46 RAWLS John Uma Teoria da Justiça São Paulo Martins Fontes 2000 p4748 47 HESSE Konrad A força normativa da Constituição Trad Gilmar Ferreira Mendes Porto Alegre Sérgio Fabris Editor 1991 p22 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 246 Diante da existência das desigualdades sociais é que se percebeu o surgimento de movimentos sociais que vieram a exercer um papel importante nessa quebra de paradigma Junto com esses movimentos da sociedade também surgiram políticas públicas como forma de inserção social de grupos marginalizados denominadas de ações afirmativas O Brasil importou a ideia de cotas raciais para universidades dos Estados Unidos da América tentando trazer uma solução para desigualdade social mas que não guarda legitimidade com a carta constitucional brasileira de 1988 Ela parte da premissa de problemas de segregação racial o que na verdade a história brasileira comprova que seria socioeconômica O princípio da igualdade concebido pela Constituição Federal de 1988 se traduz numa técnica que visa o saneamento das desigualdades sociais e a adoção das cotas raciais em universidades não encontra legitimidade constitucional pois estaria legalizando uma espécie de discriminação Aparentemente as cotas raciais se apresentam a sociedade como uma medida de inclusão social mas podese verificar que além de não possuir uma legitimidade constitucional sua operacionalidade irá criar um antagonismo com o princípio da isonomia O critério verificador de raças ficará a cargo de uma análise subjetivista o que poderá criar verdadeiras distorções na finalidade dessa medida social REfERênciAS ALEXY Robert Colisão de direitos fundamentais e realização de direitos fundamentais no Estado de direito democrático In Revista de Direito Administrativo Rio de Janeiro Renovar n217 julset 1999 Teoria dos direitos fundamentais Trad Vergílio Afonso da Silva São Paulo Malheiros 2008 ATALIBA Geraldo República e Constituição 2ed São Paulo Malheiros 2004 ARAÚJO Luiz Alberto David Curso de direito constitucional 6ed São Paulo Saraiva 2002 BASTOS Celso Ribeiro MARTINS Ives Gandra Comentários à Constituição do Brasil São Paulo Saraiva 2000 BONAVIDES Paulo Curso de direito constitucional 9ed São Paulo Malheiros 2000 Teoria do Estado 6ed São Paulo Malheiros 2007 BARROSO Luís Roberto Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro pósmodernindade teoria crítica e póspositivismo In Revista Forense Rio de Janeiro v358 BOBBIO Norberto Dicionário da política 10ed Trad João Ferreira Brasília Editora Universidade de Brasília 1997 CANOTILHO Jose Joaquim Gomes Direito constitucional e teoria da constituição Coimbra Almedina 2000 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 247 CÁCERES Florival História do Brasil São Paulo Moderna 1997 CHALHOUB Sidney Visões da liberdade uma história das últimas décadas da escravidão na corte São Paulo Companhia das Letras 1990 COELHO Luis Fernando Teoria Critica do Direito 3ed Belo Horizonte Del Rey 2003 DWORKIN Ronald A virtude soberana a teoria e a prática da igualdade Trad Jussara Simões São Paulo Martins Fontes 2005 Uma questão de princípio Trad Luís Carlos Borges São Paulo Martis Fontes 2000 FERNANDES Florestan Mudanças sociais no Brasil São Paulo Difusão Europeia do livro 1960 A democratização do ensino In FERNANDES Florestan Educação sociedade no Brasil São Paulo DominusEDUSP 1966 FERREIRA Daniela Sanchez Ita CHICANATTO Dionísio Ações afirmativas e a política de cotas raciais dentro do sistema educacional brasileiro Disponível na internet httpwwwfaimiedubr Acesso em 01062009 GEARY Patrick J O mito das nações Trad Fábio Pinto São Paulo Conrad Editora do Brasil 2005 GOMES Joaquim B Barbosa Ação afirmativa princípio constitucional da igualdade o direito como instrumento de transformação social A experiência dos EUA Rio de Janeiro Renovar 2001 GUIMARÃES Antonio Sérgio Alfredo Classes raças e democracia São Paulo Editora 34 2002 HABERLE Peter Hermenêutica Constitucional a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição Trad Gilmar Ferreira Mendes Porto Alegre Sergio Antonio Fabris Editor 1997 HABERMAS Jurgen Direito e Democracia entre faticidade e validade Trad Flávio Beno Siebeneichler 2ed Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 2003 HAYEK Friedrich August Von Os fundamentos da liberdade Brasília Ed UnB São Paulo Visão 1983 HESPANHA António Manuel Panorama histórico da cultura jurídica europeia Lisboa Publicações EuropaAmérica 1997 HESSE Konrad Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha Trad Gilmar Ferreira Mendes Porto Alegre Sergio Antonio Fabris Editor 1991 HOLANDA Sergio Buarque de Raízes do Brasil 26ed São Paulo Companhia das Letras 1995 LINTON Ralph O homem uma introdução à antropologia Trad Lavínia Vilela 11ed São Paulo Martins Fontes 1981 MALISKA Marcos Antonio O direito à educação e a Constituição Porto Alegre Sergio Antonio Fabris Editor 2001 Pluralismo jurídico e direito moderno Curitiba Juruá 2000 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 248 MARQUESE Rafael de Bivar A dinâmica da escravidão no Brasil resistência tráfico negreiro e alforrias séculos XVII a XIX Disponível na Internet httpwwwscielobr Acesso em 22052009 MELLO Celso Antonio B de Curso de Direito Administrativo 17ed São Paulo Malheiros 2004 Conteúdo jurídico do princípio da igualdade 3ed São Paulo Malheiros 1999 MENEZES Paulo Lucena de A ação afirmativa affirmative action no direito norte americano São Paulo Revista dos Tribunais 2001 MONTELLATO Andrea CABRINI Conceição CATELLI Junior Roberto História temática o mundo dos cidadãos Scipione 2000 MORAES Alexandre Direito Constitucional 15ed São Paulo Atlas 2004 Direitos humanos fundamentais teoria geral comentários aos arts 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil doutrina e jurisprudência 5ed São Paulo Atlas 2003 MUNANGA Kabengele Uma abordagem conceitual das noções de raça racismo identidade e etnia Palestra proferida no 3º Seminário Nacional de Relações Raciais e Educação PENESBRJ em 05 de jan 2003 Disponível em httpwwwacaoeducativa orgbrdownloads09abordagempdf Acesso em 15 dez 2008 Estratégias e políticas de combate à discriminação racial São Paulo Editora da Universidade de São Paulo 1996 NOVAIS Jorge Reis Contributo para uma teoria do Estado de direito do Estado de direito liberal ao Estado social e democrático de direito Coimbra Coimbra 1987 PENA Sérgio D J Humanidade sem raças São Paulo Publi Folha 2008 PETTIT Philip Republicanismo uma teoria sobre la libertad y el gobierno Barcelona Paidós 1999 RANIERI Nina Beatriz Stocco A reserva de vagas nas universidades públicas BDA Boletim de Direito Administrativo São Paulo v17 n9 p699701 2001 RAWLS John Uma teoria da Justiça São Paulo Martins Fontes 2000 RIBEIRO Darcy O povo brasileiro a formação e o sentido do Brasil São Paulo Companhia das Letras 1995 ROUSSEAU JeanJacques Do contrato social ensaio sobre a origen das linguas discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens discurso sobre as ciências e as artes 2ed Trad Lourdes Santos Machado São Paulo Abril Cultural 1978 ROTHENBURG Walter Claudius Princípios constitucionais Porto Alegre Sergio Antonio Fabris Editor 1999 SARLET Ingo Wolfgang A eficácia dos direitos fundamentais 3ed Porto Alegre Livraria do Advogado 2003 SCHWARCZ Lilia Moritz O espetáculo das raças São Paulo Companhia das Letras 2002 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 249 SILVA Marcus Vinicius Fernandes Andrade da A separação dos poderes as concepções mecanicistas e normativas das Constituições e seus métodos interpretativos Jus Navegandi Disponível em wwwjusnavegandicombr Acesso em 06 jul 2005 SILVA José Afonso da Curso de Direito Constitucional Positivo 16ed São Paulo Malheiros 1999 SUNFELD Carlos Ari Fundamentos de Direito Público 4ed São Paulo Malheiros 2000 TODOROV Tzvetan Nós e os outros a reflexão francesa sobre a diversidade humana Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1993 TEMER Michel Elementos de direito Constitucional 18ed São Paulo Malheiros 2002 WOLKMER Antonio Carlos Pluralismo jurídico fundamentos de uma nova cultura do direito São Paulo Alfa Omega 2001 Direito e Democracia v10 n2 p250266 juldez 2009 Canoas o compromisso de compra e venda e a vigência das Súmulas 84 e 239 do Stj Gerson luiz carlos Branco RESumo O compromisso de compra e venda é um contrato disciplinado por diversas leis editadas de forma fragmentada ao longo de quase setenta anos tendo os efeitos do seu registro no álbum imobiliário sido disciplinados pelo Código Civil vigente O advento do Código Civil lei nova sobre o entendimento jurisprudencial sumulado precisa ser estudado e entendido para que o contrato e seus efeitos possam ser executados O propósito deste artigo é fazer a distinção entre o regime dos efeitos do compromisso de compra e venda registrado com eficácia real e com possibilidade de propositura de ações reais do não registrado com eficácia obrigacional e possibilidade de propositura de ações para execução das obrigações Palavraschave Liberdade contratual Compromisso de compra e venda Adjudicação compulsória Embargos de terceiro the agreement to sale and the force of the dockets 84 and 239 from the Stj ABStRAct The agreement to sale is a contract disciplined by various laws edited in a fragmented way over nearly seventy years and the effects of its inscription on the public records are governed by the new Civil Code The effects of new Civil Code over the precedent need to be studied and understood to that the contract and its effects can be executed The purpose of this paper is to distinguish between the effects of the agreement to sale recorded with real effectiveness and possibility of bringing real actions of nonrecorded with the obligatory efficacy and possibility of bringing actions to implement the obligations Keywords Freedom of contract Agreement to sale Compulsory award Embargoes third 1 intRoDução Desde 1937 quando da edição do DecretoLei 58 tem sido travado um contínuo debate pela jurisprudência e doutrina a respeito da forma de execução de algumas das obrigações do Compromisso de Compra e Venda em especial a execução da obrigação de transferir a propriedade do bem imóvel pelo vendedor e a proteção da posse do comprador perante terceiros quando o contrato não está registrado Com a edição do Gerson Luiz Carlos Branco é Doutor em Direito Civil professor de Direito Civil da ULBRA Canoas e advogado Email gersongersonbrancocombr Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 251 Código Civil vigente no ano de 2003 tais dúvidas foram ampliadas em razão de ter sido reforçada a importância do registro do contrato pela criação do direito real do promitente comprador em um contexto de pacificação jurisprudencial provocado pelas Súmulas 841 e 2392 do Superior Tribunal de Justiça Tais súmulas foram editadas respectivamente em 02 de julho de 1993 e 30 de agosto de 2000 e portanto é preciso entender os efeitos da lei posterior aos referidos entendimentos jurisprudenciais pois se fossem disposições legais trariam o debate a respeito de sua vigência É evidente que as normas cristalizadas pelo entendimento jurisprudencial também ficam sujeitas aos efeitos da nova lei mas como no caso do conflito das leis no tempo é necessário analisar como o modelo jurídico3 foi influenciado ou alterado já que há um conjunto de diferentes leis e normas que regulam essa modalidade de contrato de compra e venda Em outras palavras somente se pode identificar o regime do cumprimento das obrigações derivadas de tal tipo contratual a partir da interpretação do contexto da formação do modelo jurídico que o tipo representa4 É preciso verificar os efeitos da vigência do Código Civil sobre o regime dos efeitos dos contratos em especial no que se refere aos mecanismos para tutela de tais efeitos seja no plano obrigacional seja no plano do Direito Real Sob o ponto de vista prático será necessário examinar se houve alteração das hipóteses em que será possível a propositura da ação de embargos de terceiro da adjudicação compulsória e da ação de nunciação de obra nova propostos com fundamento no compromisso de compra e venda Embora a investigação proposta neste artigo seja predominantemente pragmática e dogmática é pressuposto do mesmo a indispensabilidade de qualquer estudo do Direito 1 Súmula 84 É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel ainda que desprovido do registro publicada no DJ 02071993 p13283 2 Súmula 239 O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis publicada no DJ 30082000 p118 3 A concepção de modelo jurídico utilizada neste artigo segue a proposição de Miguel Reale segundo quem os modelos são estruturas postas em razão dos fins que devem ser realizados expressando o conteúdo normativo das fontes do direito Por isso os modelos desvinculamse da pessoa do legislador de seus motivos iniciais para que possam atender prospectivamente a fatos e valores supervenientes suscetíveis de serem situados no âmbito de validez das regras em vigor tãosomente mediante seu novo entendimento hermenêutico A lei é mais sábia do que o legislador reale M Fontes do direito para um novo paradigma hermenêutico p31 4 Partes dos pressupostos deste artigo já foram apresentadas em dois outros estudos sobre os efeitos da unificação das obrigações civis e mercantis sobre o regime da compra e venda e também sobre a técnica legislativa da legislação aditiva BRANCO Gerson Luiz Carlos e MARTINSCOSTA Judith Diretrizes Teóricas do novo Código Civil São Paulo Saraiva 2002 e BRANCO Gerson Luiz Carlos O regime obrigacional unificado do Código Civil brasileiro e seus efeitos sobre a liberdade contratual A compra e venda como modelo jurídico multifuncional Revista dos Tribunais São Paulo v 872 p4378 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 252 Privado a partir de sua perspectiva histórica5 bem como do estudo dos contratos e seus efeitos a partir da experiência social já que o próprio conceito de contrato é indissociável dos fatos sociais e das exigências valorativas de um determinado momento histórico Ou seja a compreensão do modelo jurídico do compromisso de compra e venda somente pode se dar a partir da leitura de um conjunto de elementos de ordem histórica social valorativa e normativa que determinam a sua estrutura e funcionalidade6 A análise das leis necessárias à compreensão da matéria editadas ao longo de oito décadas exige a visualização do Código Civil vigente como um eixo do Direito Privado Nessa perspectiva também é integrado o estudo da eficácia e da efetividade pois em modelos jurídicos como o compromisso de compra e venda não há como separar e compartimentar o Direito Privado e o Direito Processual Civil em áreas estanques É preciso compreender as diferenças principiológicas mas não se pode esquecer que na vida de relação o destinatário da norma é o cidadão comum cuja preocupação é fundamentalmente com a efetividade Embora ditadas ao longo de oito décadas as leis que regulamentaram o compromisso de compra e venda estão alinhadas sob o ponto de vista principiológico pois a socialidade e a funcionalidade foram uma marca comum que pode ser vista tanto no DecretoLei 5837 às reformas processuais das últimas duas décadas para facilitar a execução das obrigações de fazer Por isso não se pode deixar de acentuar que o tipo legal nasceu com o Decreto 5 Adotase como conceito de História do Direito aquele fornecido por Paolo Grossi segundo o qual é compreendida como disciplina jurídica que tem por objeto a inserção das regras jurídicas no processo cultural que se desenvolve no curso do tempo GROSSI Paolo Pensiero Giuridico Appunti per una voce enciclopedica Separata da Revista Quaderni Fiorentini n 17 1988 GROSSI Paulo El punto y la línea História del derecho y derecho positivo em la formación del jurista de nuestro tiempo Revista del Instituto de la Judicatura Federal México n 06 2000 e GROSSI Paolo Scienza giuridica italiana Un profilo storico 1860 1950 Milano Giuffrè Editore 2000 Também tem grande influência nessa concepção a obra de HESPANHA António Manuel Panorama histórico da cultura jurídica europeia Lisboa EuropaAmérica 1997 6 Conforme diz AMARAL Francisco Direito Civil introdução Rio de Janeiro Renovar p08 o Direito Civil é antes de tudo um fenômeno cultural em que predominam as notas da historicidade e da continuidade Historicidade no sentido de que se veio formando gradativamente desde os primórdios da civilização ocidental até se transformar em um dos mais importantes ramos da ciência Continuidade pelo fato de terse mantido como processo constante e de certo modo uniforme na maneira de solucionar os problemas jurídicos que lhe são próprios revelando a existência de princípios fundamentais a orientar a gênese e a aplicação de suas instituições Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 253 Lei n 58 de 10 de dezembro de 19377 editado para conter parte das consequências sociais e econômicas da industrialização e do êxodo rural8 Na época havia um processo de transformação da realidade econômica brasileira na qual o país deixava de ser predominantemente agrário para ter nas cidades a maior concentração das populações e também de sua atividade econômica O desenho da vida agrária e da vida urbana foi alterado substancialmente durante essa época cujo marco pode ser a revolução de 1930 Enquanto no meio rural começa a surgir o problema do êxodo e o agravamento dos conflitos pela terra nas periferias das cidades a terra começa a ser dividida pelos especuladores imobiliários O contrato de compra e venda na forma como estava regulado no Código Civil de 1916 não tutelava os interesses dos que não eram proprietários ou não tinham condições de comprar um imóvel à vista Os trabalhadores e a classe média urbana e todos aqueles que só poderiam adquirir algum bem mediante pagamento parcelado eram excluídos da possibilidade de comprar ou ficavam nas mãos dos especuladores que recebiam as parcelas do preço e depois se negavam a transmitir o imóvel usando como fundamento jurídico a regra do art 10889 do Código Civil vigente na época que facultava o arrependimento cabendo à parte apenas devolver o que havia recebido sem que houvesse uma reparação integral No máximo havia a restituição do preço pago com juros O exercício do arrependimento pelo comprador não era ilícito mas exercício de um direito potestativo de escolha numa espécie de obrigação com faculdade de substituição ou obrigações com faculdade alternativa10 Como bem mencionam os considerandos do DecretoLei 5837 multiplicavamse as fraudes deixando os adquirentes desamparados 7 O compromisso de compra e venda teve origem em Projeto de lei apresentado pelo Prof Waldemar Ferreira em 961936 tendo sido editado por Getúlio Vargas em 10121937 como medida governamental de proteção dos adquirentes de imóveis loteados Na época a expressão não era usada mas tratouse de verdadeira lei de proteção ao consumidor MARCONDES Sylvio Professor Waldemar Ferreira Revista da Faculdade de Direito de São Paulo v LX 1965 p4767 8 Vejase a exposição de motivos do DecretoLei 58 de 10 de dezembro de 1937 O Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil usando da atribuição que lhe confere o artigo 180 da Constituição Considerando o crescente desenvolvimento da loteação de terrenos para venda mediante o pagamento do preço em prestações Considerando que as transações assim realizadas não transferem o domínio ao comprador uma vez que o art 1088 do Código Civil permite a qualquer das partes arrependerse antes de assinada a escritura da compra e venda Considerando que êsse dispositivo deixa pràticamente sem amparo numerosos compradores de lotes que têm assim por exclusiva garantia a seriedade a boa fé e a solvabilidade das emprêsas vendedoras Considerando que para segurança das transações realizadas mediante contrato de compromisso de compra e venda de lotes cumpre acautelar o compromissário contra futuras alienações ou onerações dos lotes comprometidos Considerando ainda que a loteação e venda de terrenos urbanos e rurais se opera frequentemente sem que aos compradores seja possível a verificação dos títulos de propriedade dos vendedores 9 Art 1088 Quando o instrumento público for exigido como prova do contrato qualquer das partes pode arrependerse antes de o assinar ressarcindo à outra as perdas e danos resultantes do arrependimento sem prejuízo do estatuído nos arts 1095 a 1097 10 VARELA JM Antunes Direito das Obrigações Rio de Janeiro Forense 1977 p338 e 339 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 254 O DecretoLei 5837 regrou a venda de lotes exigindo uma série de providências prévias para o vendedor aprovação do plano e planta do loteamento pelas autoridades públicas regras rigorosas sobre a publicidade dos lotes etc podendo ser definido como uma das primeiras normas de proteção ao consumidor assim como uma das primeiras leis que veio a proteger o compromisso de compra e venda Evidentemente que houve um salto expressivo no tratamento da matéria desde 1937 até os dias de hoje salto que pode ser observado na regulamentação da matéria pelo Código Civil É nesse espírito de consolidação dos avanços normativos e consolidação cultural do modelo jurídico do compromisso de compra e venda que se pode dizer o quão equivocados estão aqueles que afirmam ter o Código Civil de 2003 provocado retrocesso no regulamento da matéria em especial em razão do que dispõe o art 463 parágrafo único e art 1417 que trata da exigência de registro do compromisso de compra e venda11 2 DAS AltERAçõES lEGiSlAtiVAS no REGimE Do comPRomiSSo DE comPRA E VEnDA REAliZADAS PElo cÓDiGo ciVil ViGEntE O tradicional conceito do contrato de compromisso de compra e venda construído a partir do regime delineado no DecretoLei 5837 é o de um contrato pelo qual uma das partes se compromete a transferir a propriedade de um bem mediante uma nova declaração de vontade a ser realizada no futuro e a outra a efetuar o pagamento do preço Ambas as partes comprometemse a firmar um contrato translativo do direito de propriedade identificado costumeiramente como sendo o contrato de compra e venda Tratase de contrato autônomo ou pelo menos de uma das modalidades da compra e venda segundo o que já lecionava Darcy Bessone em 1960 quando da primeira edição da monografia intitulada Da compra e venda promessa e reserva de domínio que tanto lhe notabilizou12 Nesse aspecto devese observar que a feição atual adotada pelo contrato reflete uma das diversas escolhas que o legislador teve tendo em vista a vasta polêmica existente a respeito da eficácia de dito contrato assim como sua aderência à vida real e aos problemas do cotidiano entre os quais se pode inserir a questão apresentada num clássico estudo sobre a matéria que questionava sobre qual a razão para se percorrer 11 Para o conceito de modelo adotase a concepção de Miguel Reale que de forma sintética Reale define modelo jurídico como estrutura normativa de atos e fatos pertinentes unitariamente a dado campo da experiência social prescrevendo a atualização racional e garantida dos valores que lhe são próprios REALE Miguel Fontes e modelos do direito para um novo paradigma hermenêutico São Paulo Saraiva 1999 p46 A esse respeito tratamos no livro MARTINSCOSTA Judith e BRANCO Gerson Luiz Carlos Diretrizes Teóricas do novo Código Civil São Paulo Saraiva 2002 12 BESSONE Darcy Compra e venda Promessa e Reserva de Domínio 3ª ed São Paulo Saraiva 1988 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 255 um caminho tão longo se o motivo da negociação entre as partes foi a vontade de vender e comprar13 Evidentemente que o questionamento foi meramente provocativo pois o compromisso é um dos instrumentos mais ágeis e úteis da realidade atual pois evita a incidência excessiva de tributos na data da contratação custos com escritura pública dando segurança ao adquirente bem como fornece a devida garantia ao alienante no caso de venda a prestações Assim com a cessação dos impedimentos fáticos ou legais podem as partes firmar a escritura pública hábil a transladar a propriedade com base no regulamento já estabelecido Em outras palavras o compromisso de compra e venda além de conter um mecanismo eficaz para permitir que as partes atinjam o fim típico da compra e venda também é um excelente instrumento de concessão de crédito com garantia Como a proposta deste artigo é verificar os efeitos das alterações legislativas iniciase pelo estudo do contrato no processo legislativo que resultou no Código Civil vigente A análise dos trabalhos legislativos do Código Civil demonstra que na exposição de motivos não houve referências expressas ao compromisso de compra e venda servindo para tal fim as discussões ocorridas na Câmara dos Deputados onde foram apresentadas emendas para tratar da matéria pois a mesma foi objeto de discussão unicamente quando se tratou do contrato preliminar atualmente regulado nos arts 462 a 466 do Código Civil 21 Artigos 462 a 466 do código civil O art 462 do Código Civil foi objeto de duas emendas durante o processo legislativo as de n 38114 e 38215 com o objetivo de exigir que o contrato preliminar também cumprisse a forma do contrato a ser celebrado Ambas as emendas foram rejeitadas tendo sido mantida a redação original Além de tais manifestações o próprio Agostinho Alvim jurista encarregado de elaborar o Capítulo do Direito das Obrigações manifestouse no sentido de que a emenda fosse acolhida argumentando que a forma em matéria de contrato preliminar segundo o Código Civil Italiano deve ser a mesma do contrato A lei ressalvará os casos em que a forma do contrato preliminar como sói acontecer no caso de compromisso de venda de imóvel deva ser outra16 13 FERREIRA Geraldo Sobral Promessa Bilateral de Venda e Compromisso de Compra e Venda Revista de Direito Civil N 7 p144 14 NEVES Tancredo Justificação da emenda n 381 Diário do Congresso Nacional Seção I Suplemento 14091983 p258 justificação elaborada pela Advogada Maria Angélica Rezende em nome da OAB do Estado do Sergipe 15 COELHO Fernando Justificação da emenda n 379 Diário do Congresso Nacional Seção I Suplemento 14091983 p259 16 ALVIM Agostinho Pareceres In ABIACKEL Ibrahim e REALE Miguel Emendas ao projeto de Código Civil Pareceres da Comissão Elaboradora e revisora Brasília Ministério da Justiça 1984 p84 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 256 Nessa citação fica clara a manifestação de Agostinho Alvim no sentido de que o compromisso de compra e venda de imóvel deve obedecer à lei especial que ressalvará a questão da forma De qualquer maneira a Câmara acolheu o projeto original para que todos os contratos preliminares prescindam quanto à forma do contrato principal A esse respeito devese observar que a redação original apresentada por Agostinho Alvim tinha texto distinto na linha do Código Civil Italiano Porém na primeira versão do projeto há manuscrito de Miguel Reale alterando a redação do referido artigo assim como de praticamente todo o capítulo relativo ao contrato preliminar determinando a redação do projeto que atualmente é a redação do Código17 Por incrível que pareça esse foi o único debate ocorrido a respeito do contrato para afirmar a não incidência das regras do contrato preliminar ao compromisso de compra e venda Por isso afastase o equívoco de considerar o contrato preliminar de que tratam os arts 462 a 466 do Código Civil como sendo o compromisso de compra e venda cujos efeitos reais são regulados no art 1417 e art 1418 do mesmo diploma legal18 O contrato preliminar de que tratam os arts 462 a 466 do Código Civil não diz respeito ao compromisso de compra e venda O contrato preliminar é um tipo contratual em que as obrigações das partes são de celebrar um contrato no futuro uma promessa de contrato19 Tratase de um contrato pelo qual as partes se obrigam a celebrar um contrato que irá regulamentar determinada relação econômica Por isso chamase preliminar précontrato ou contrato promessa já que o preceito que irá disciplinar o relacionamento das partes e que definirá o que cada um deverá fazer dar ou não fazer dependendo de uma nova declaração volitiva Em outras palavras a única obrigação válida é a obrigação de contratar As obrigações do contrato a ser celebrado dependem ou da nova declaração de vontade ou da execução coativa do contrato preliminar20 17 REALE Miguel Código Civil Anteprojetos com minhas revisões correções substitutivos e acréscimos Texto inédito não publicado parcialmente manuscrito sem data 18 No mesmo sentido temse a opinião de GOMES Orlando Direitos Reais 19 ed Rio de Janeiro Forense 2007 p361 O compromisso de venda não é verdadeiramente um contrato preliminar 19 Embora a própria lei se utilize da expressão promessa em vez de compromisso não havendo qualquer distinção prática na utilização de uma ou outra expressão optase pela denominação compromisso de compra e venda pelas razões que justificaram a própria edição do DecretoLei 5837 e toda a legislação posterior que foi a de criar um tipo contratual diferente do que até então existia que era a de um contrato promessa Além disso é possível a promessa de compromisso de compra e venda conforme previsto expressamente para os casos de reserva de lote ou de outras modalidades de contratos preliminares segundo a melhor lição de ALMEIDA COSTA Mário Júlio Contrato Promessa Uma síntese do regime vigente 9 ed Coimbra Almedina 2007 20 Uma das polêmicas mais vivas do contrato preliminar diz respeito a aplicação de astreintes no caso de inadimplemento conforme sustenta CATALAN Marcos Jorge Considerações sobre o contrato preliminar em busca da superação de seus aspectos polêmicos In DELGADO Mário Luiz e outro Novo Código Civil Questões Controvertidas v 4 São Paulo Método Editora 2005 p319341 Tal possibilidade é discutível no regime do contrato preliminar em razão de que a lei é clara ao determinar ao Juiz que considere como definitivo o contrato preliminar Ou seja o legislador considerou que sendo personalíssima a obrigação de declarar vontade a execução dessa obrigação se dá pelo suprimento da declaração e não pela aplicação de astreintes para que a declaração seja feita coativamente Nada obsta é claro que o Juiz antecipe os efeitos da tutela para considerar que o contrato preliminar tenha os efeitos do contrato definitivo e sendo este de obrigações de fazer na execução do mesmo sejam aplicadas astreintes Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 257 Tratase de um contrato cuja problematicidade não é privilégio do direito brasileiro sendo instituto jurídico que nos mais diversos ordenamentos gera controvérsias a respeito do seu regime de execução21 O compromisso de compra e venda seja no regime do DL 5837 no regime da Lei 67667922 assim como na Lei n 45916523 consiste em um contrato definitivo um contrato pelo qual as partes disciplinam o seu comportamento para o futuro estabelecem o preceito que irá disciplinar sua relação intersubjetiva Nesse ponto acentuase que o contrato ou o nascimento de qualquer obrigação independente de nova declaração de vontade Porém no conteúdo do preceito está entre outros deveres a obrigação de fazer declaração de vontade que é a obrigação de firmar escritura pública para translação do direito real de propriedade a fim de cumprir o disposto no artigo 134 I do Código Civil de 1916 reproduzido agora no art 108 do Código Civil Porém a escritura pública que é necessária para a translação do direito de propriedade não é contrato definitivo que antecede um contrato preliminar Tratase de mero negócio jurídico de adimplemento cujo objetivo é a translação do direito real de propriedade que permaneceu nas mãos do vendedor como garantia do pagamento do preço e não verdadeiramente um contrato24 Sob o ponto de vista estrutural o contrato é um preceito que tem como gênese um acordo de vontades emanadas por duas partes identificadas pela existência de dois núcleos de interesses contrapostos com o objetivo de criar direitos e obrigações Caracterizase portanto pela obrigatória eficácia obrigacional sem a qual não se pode tecnicamente falar em contrato Diferentemente nos negócios dispositivos não há um preceito pois celebrado o negócio sua eficácia é constitutiva de título cujo registro é hábil à translação da propriedade sem efeitos obrigacionais Quando a compra e venda é celebrada por meio de escritura pública no mesmo ato está reunido o contrato e também o negócio jurídico dispositivo Quando alguém celebra um compromisso de compra e venda esses dois negócios jurídicos são separados sob o ponto de vista cronológico O compromisso de compra e 21 A esse respeito vejase no Direito Português RIBEIRO Joaquim de Sousa O campo de aplicação do regime indemnizatório do artigo 442º do Código Civil incumprimento definitivo ou mora In Direito dos Contratos Estudos Coimbra Coimbra Editora 2007 p283306 Não obstante o labor interpretativo a que não se tem furtado a nossa melhor civilística permanecem vivas controvérsias e divergências de interpretação que se repercutem em decisões judiciais amiúde contrastantes E se quanto a certas questões foi possível chegar a um consenso estável nalguns casos consagrado na lei ou em assento outras questões inicialmente ocultas irromperam entretanto alimentando novos debates ainda inconclusivos 22 Nova lei do loteamento imobiliário Está lei substitui no que não foi revogado expressamente o DecretoLei 5837 em matéria de direito urbanístico o que atualmente também é regulado pelo Estatuto da Cidade 23 A lei de Condomínio e Incorporação atualmente regula unicamente a incorporação imobiliária em suas diversas modalidades tendo em vista que a regulamentação do Condomínio Edilício foi regulado por inteiro no Código Civil Embora não tenha havido revogação expressa a revogação se deu por força do art 2º 1º da Lei de Introdução ao Código Civil 24 A respeito dos negócios jurídicos dispositivos ver clássico estudo de COUTO E SILVA Clóvis Negócios Jurídicos e Negócios Jurídicos de Disposição Revista do Grêmio Universitário Tobhias Barreto UFRGS p2939 1958 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 258 venda é uma modalidade de compra e venda um contrato definitivo cujo adimplemento deverá ser feito no futuro25 mediante uma declaração de vontade que será mero negócio jurídico dispositivo realizado plenamente no âmbito dos direitos reais para execução do preceito inicial e definitivo Observese que o contrato preliminar de compra e venda pode ser celebrado Basta para tanto que o preceito do contrato não seja o compromisso de compra e venda segundo os termos do DecretoLei 5837 mas um contrato preliminar em que as partes simplesmente se comprometem a no futuro celebrar contrato de compra e venda que poderá ser de bens móveis ou imóveis Tal contrato preliminar poderá ser executado na forma do artigo 27 da Lei 6766 de 19121979 se for promessa de celebrar compromisso de compra e venda que tem por objeto imóvel loteado aplicandose as regras do Código Civil para os demais casos26 Quando alguém celebra um compromisso de compra e venda por instrumento particular estabelecendo a obrigação de transferir a coisa de pagar o preço e de no futuro ser transferido o direito de propriedade é a própria compra e venda que está sendo celebrada sem que haja possibilidade de incidência dos dispositivos relativos ao contrato preliminar em razão do que dispõe o próprio artigo 1225 VII do Código Civil assim como o art 22 do DecretoLei 5837 22 Artigos 1417 e 1418 As disposições dos arts 1417 e 1418 que criaram o direito real do promitente comprador passaram incólumes durante todo o processo legislativo tendo como conteúdo o direito real à aquisição da propriedade imobiliária Isso significa que o conceito tradicional acima apresentado sofreu pequena modificação em função da ausência de qualquer disposição legal a incidir sobre os requisitos de validade de forma de prova ou mesmo sobre quais são as obrigações que cabem às partes Não havendo qualquer alteração no regime obrigacional permanece em vigor o DecretoLei n 58 de 10 de dezembro de 1937 bem como das disposições da Lei n 4591 de 16 de dezembro de 1964 e as disposições da Lei n 6766 de 19 de dezembro de 1979 que tratam do mesmo contrato em suas diferentes modalidades 25 A expressão futuro é relevante no caso concreto pois na compra e venda manual embora o contrato logicamente seja antecedente do adimplemento a separação entre contrato e adimplemento é puramente lógica já que cronologicamente não se pode separálos Já o compromisso de compra e venda somente tem sentido de existir pela separação cronológica entre o ato do nascimento do contrato e o adimplemento elemento essencial de sua funcionalidade plena já que a razão objetiva de sua celebração está na ausência de elementos econômicos ou jurídicos para a translação da propriedade no ato da contratação Por essa razão é nulo o contrato de compromisso de compra e venda com pacto de retrovenda já que sua funcionalidade é incompatível com os elementos do tipo Nada obsta a cessão do compromisso de compra e venda submetida a determinada condição resolutiva o que é muito diferente de uma prática comum porém ilícita um claro desvio socialmente típico que é o pacto de retrovenda no compromisso de compra e venda 26 Um dos poucos autores que trata sobre o regime de execução do précontrato de promessa de compra e venda é RIZZARDO Arnaldo Direito das Coisas 2 ed Rio de Janeiro Forense 2006 p986 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 259 Porém agregouse ao regime uma eficácia específica que até então não existia que era o direito real de aquisição da propriedade imobiliária criando uma nova gama de efeitos cujo regime do cumprimento foi alterado para criar uma dualidade que deixou de ser teórica para ser prática A dualidade teórica consistente no debate entre os defensores dos efeitos pessoais e efeitos reais cedeu lugar a uma dualidade de eficácia pessoal e real 3 DA DifEREnçA DE REGimES EntRE o contRAto REGiStRADo E o não REGiStRADo Outra questão vinculada com a eficácia do compromisso de compra e venda é a verificação da obrigatoriedade do registro do contrato no Registro de Imóveis como condição para a execução da obrigação do vendedor de transferir a propriedade do imóvel e também para a proteção dos direitos do compromitente comprador27 Ocorre que o contrato compromisso de compra e venda como se pode ver de uma simples leitura do Código Civil não foi objeto de regulamentação geral pela nova lei E não tendo sido objeto de regulamentação geral mas somente especial no que respeita a alguns de seus efeitos artigos 1225 VII 1417 e 1418 devese aplicar a regra do artigo 2º 2º da Lei de Introdução ao Código Civil segundo o qual a lei nova que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes não revoga nem modifica a lei anterior Isso tem por consequência a plena e completa vigência do DecretoLei 5837 bem como todo o seu regime eficacial conforme determinado no seu texto e pela própria jurisprudência Porém o registro do compromisso de compra e venda a partir do advento do Código Civil atribuirá um direito que até então o adquirente do imóvel não tinha que é o direito real à aquisição da propriedade28 Tal direito real é novo e consiste na outorga ao adquirente de vários efeitos específicos e próprios do direito das coisas como são as ações reais A título exemplificativo o titular do direito real à aquisição da propriedade passa a ter embargos de terceiro com fundamento no direito real ainda que não tenha posse a teor do que dispõe o art 1046 do Código de Processo Civil e passa a ter ação de nunciação de obra nova ainda que não tenha a posse do imóvel bem como terá direito de sequela e o próprio direito real à aquisição da própria propriedade 27 Posição contrária a deste artigo esta é apresentada por KRAEMER Eduardo Algumas anotações sobre os direitos reais no novo Código Civil In SARLET Ingo Wolfgang Org O novo Código Civil e a Constituição Porto Alegre Livraria do Advogado 2003 p210 que afirma ser necessário o registro do contrato na forma do art 463 do Código Civil 28 O debate a respeito da existência de eficácia real existente no regime anterior será tratado adiante mas desde já afirmase que os efeitos do Registro do contrato até o advento do Código vigente não tinha outro efeito que a outorga de eficácia perante terceiros o que é diferente da eficácia real Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 260 Ao contrário o adquirente de uma unidade imobiliária como por exemplo um apartamento a construir venda na planta em que a posse do imóvel é do construtor a ausência do registro do contrato não permitirá ao adquirente a oposição de embargos de terceiro ou a propositura de ação de nunciação de obra nova etc direitos que terá se tiver o registro ou a posse O comprador sem posse e cujo compromisso de compra e venda não foi registrado não está protegido pela Súmula 84 do Superior Tribunal de Justiça A edição da Súmula 84 visou a proteger a posse e não aos direitos obrigacionais derivados do contrato considerouse que a posse que tem como causa um compromisso de compra e venda pelo seu caráter de definitividade deve ser protegida da constrição judicial que visa a atingir o patrimônio do vendedor O direito real à aquisição da propriedade tratase de um mecanismo concedido pelo legislador para que o adquirente deixe de ter um direito à coisa para ter um direito sobre a coisa Este direito sobre a coisa modifica substancialmente a ação de adjudicação compulsória A ação de adjudicação compulsória de que tratam os artigos 16 e 22 do DL 581937 somente tinha o apelido de adjudicação compulsória pois sempre foi tratada pela doutrina e pela jurisprudência obedecendo ao comando dos dois artigos acima como ação de execução de obrigação de fazer diferentemente da verdadeira ação real de adjudicação compulsória que tem por exemplo o condômino preterido no seu direito de preferência para aquisição da propriedade na forma do art 1139 do Código Civil de 1916 e art 504 do atual Código Civil A partir do advento do Código Civil a ação de adjudicação compulsória proposta com fundamento no compromisso de compra e venda tem um só nome e um duplo regime de eficácia29 No caso do compromisso registrado o comprador tem ação real pela qual será concedida a propriedade ao adquirente do bem devendo ser objeto de prova no seio da demanda todos os requisitos relativos às ações reais inclusive aqueles que dizem respeito aos princípios registrais previstos na Lei n 601573 Tratase de verdadeira ação reivindicatória30 da propriedade e não mera ação de cumprimento de contrato31 29 RIZZARDO Arnaldo Direito das Coisas 2 ed Rio de Janeiro Forense 2006 p1008 é mais enfático ao afirmar que a falta do registro não concede o direito a ação de adjudicação compulsória mas a uma ação condenatória ao cumprimento da obrigação de contratar produzindo a sentença o mesmo efeito do contrato prometido o de venda 30 No mesmo sentido RIZZARDO Arnaldo Direito das Coisas 2 ed Rio de Janeiro Forense 2006 p992 que sustentava a possibilidade de ação reivindicatória proposta pelo titular de compromisso de compra e venda registrado mesmo no regime anterior Barbosa Lima Sobrinho aprofundou mais o problema defendendo que pelo contrato o direito de usar gozar e dispor do imóvel e de reavêlo de quem o ocupa indevidamente passa do proprietário para o promitente comprador Assinado o compromisso irretratável e registrado transferindose ao compromissário o direito de dispor ele tornase parte legítima para propor a lide em questão 31 A esse respeito da forma de cumprimento da obrigação vejase a seguinte decisão E mais embora a sentença não tenha especificado o seu cumprimento pelo art 466A do CPC perfeitamente cabível à hipótese e que autoriza a transferência da propriedade por força da sentença dispensandose as partes destinatárias do comando judicial aqui autores e réu respectivamente de firmarem negócio bilateral escritura de compra e venda sem embargo por óbvio de cada uma delas arcarem com as respectivas despesas de seu título carta de adjudicação é Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 261 Isso significa que finda a ação judicial com trânsito em julgado de uma sentença de procedência na primeira hipótese o autor será proprietário do imóvel O registro da sentença terá eficácia declaratória não obstante o art 1418 afirme que o réu será condenado a emitir a declaração de vontade o efeito declaratório da sentença acrescido aos efeitos do direito real a aquisição da propriedade produzido pelo registro do compromisso de compra e venda atribui o direito à propriedade ao autor Vejase não se está dizendo que nasce um direito à coisa Declarase que há o direito à propriedade e o registro da sentença no registro de imóveis produz efeito similar que o registro de uma sentença de uma ação de usucapião cuja carga constitutiva existe mas é secundária em relação à carga declaratória Poderseia opor a esse raciocínio o argumento de que o artigo 5º e art 22 do DecretoLei 5837 já haviam concedido direito real ao adquirente de imóvel Nada mais equivocado do que isso pois tais dispositivos legais nada mais diziam que o comprador tinha direito real oponível a terceiros não atribuindo qualquer conteúdo ou efeito a tal direito real O art 167 I 9 da Lei dos Registros Públicos tornava o compromisso de compra e venda suscetível de registro e não simplesmente de averbação como diz o artigo 5 O registro implica sempre a criação modificação ou extinção de um direito sobre a própria coisa A averbação diz respeito às pessoas que são titulares de direitos reais ou à própria coisa Assim são averbáveis todas as modificações no estado das pessoas e também as modificações sobre a coisa Se modificar o direito deverá ser registrado exceto se for averbação para cancelamento Fora deste critério seguese a casuística do art 167 da Lei dos Registros Públicos Há direitos reais como o de propriedade adquirida pela usucapião que mesmo sem o registro possui eficácia erga omnes e confere ao proprietário as ações reais Há casos em que há o registro como por exemplo o do contrato de locação que não gera direito real32 Em outras palavras o registro pode ser constitutivo de Direito Real o que somente ocorrerá se a Lei Civil outorgar tal eficácia No regime anterior o domínio continuava integralmente com o vendedor razão pela qual não se reivindicava o bem do vendedor que não quer outorgar o título translativo ajuizavase ação para o cumprimento do contrato O contrato gera um direito à coisa e não um direito sobre a coisa O registro servia para que a publicidade produzisse efeitos erga omnes33 e não conferia qualquer direito ou pretensão mas apenas oponibilidade contra terceiros34 caso de ser a sentença declarada ao efeito de o seu cumprimento darse através do predito dispositivo legal expedindose oportunamente as competentes cartas de adjudicaçãoTJRS Ap Civ 70033242520 17ª CCiv Rel Desembargadora Elaine Harzheim Macedo j 03122009 publicado no site wwwtjrsjusbr 32 Pontes v13 1465 p116 33 Pontes v 13 1465 p116 34 Pontes 1469 p123 A averbação confere eficácia quanto a terceiros no que concerte às alienações e Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 262 Ademais diante da tipicidade estrita dos direitos reais e da interpretação teleológica de tal registro a partir dos próprios considerandos do DecretoLei 5837 fica evidente que o registro foi um expediente para proteger o adquirente da venda do bem para terceiros Nada além disso Embora o legislador de 1937 estivesse preocupado com uma boa regulamentação do contrato o sistema dos direitos reais estava integralmente regulado no Código Civil diferentemente dos contratos e das obrigações que foram disciplinados na lei esparsa É evidente que esse debate sempre admitiu argumentação em contrário tendo sido ultrapassado e não merecendo maiores considerações nesta seara pela superação do mesmo pelo fato legislativo No caso do compromisso não registrado o comprador tem ação pessoal e terá direito de propor a ação de adjudicação compulsória de que tratam os artigos 16 e 22 do DecretoLei 5837 que nada mais é do que uma demanda cujo objetivo é a condenação da parte a emissão de uma declaração de vontade que é suprida pelo juiz servindo a sentença como título para ser registrado conforme os comandos dos artigos 466 B e C do Código de Processo Civil35 Evidentemente os dispositivos legais supramencionados trataram de consolidar o que a jurisprudência vinha fazendo que era criar mecanismos para melhorar a efetividade dos mecanismos de execução disciplinando de maneira clara o que já estava parcialmente regulamentado nos artigos 639 a 641 do Código de Processo Civil que tratavam da execução das obrigações de fazer quando o objeto da obrigação de fazer fosse fazer declaração de vontade36 Embora sendo diploma adjetivo o Código de Processo Civil estabeleceu regras de direito material e não somente procedimento Nesse sentido devese observar que a doutrina e jurisprudência após muito debate assentaram que os dispositivos revogados do Código de Processo Civil inseridos no procedimento executivo somente poderiam ser alcançados após a obtenção prévia de uma sentença em um onerações futuras O próprio art 5 é que o enuncia Faltoulhe apenas terminologia técnica A pretensão ou o direito que emanou do précontrato é que tem estendida a terceiro pela averbação a sua eficácia 35 TJRS Ap Civ 70023729536 17ª CCiv Rel Desembargadora Elaine Harzheim Macedo j 03122009 publicado no site wwwtjrsjusbr A ação interposta ainda que equivocadamente identificada como execução veio acompanhada dos documentos essenciais para a adjudicação compulsória quais sejam o contrato particular de promessa de compra e venda a prova da quitação do preço e a certidão do registro imobiliário dando conta da legitimação para alienação do contratante vendedor E além disso o disposto nos artigos 466B e 466C ambos do CPC autorizam o prosseguimento da ação que tem sim conteúdo de ação de conhecimento viabilizando se a ampla defesa e contraditório da parte ré seja ela o próprio promitente vendedor sejam seus herdeiros ou sucessores 36 Os dispositivos foram revogados pela reforma processual realizada por meio da Lei n 11232 de 22 de dezembro de 2005 sendo substituídos pelos atuais arts 466 A B e C do Código de Processo Civil art 466A Condenado o devedor a emitir declaração de vontade a sentença uma vez transitada em julgado produzirá todos os efeitos da declaração não emitida art 466B Se aquele que se comprometeu a concluir um contrato não cumprir a obrigação a outra parte sendo isso possível e não excluído pelo título poderá obter uma sentença que produza o mesmo efeito do contrato a ser firmado art 466C Tratandose de contrato que tenha por objeto a transferência da propriedade de coisa determinada ou de outro direito a ação não será acolhida se a parte que a intentou não cumprir a sua prestação nem a oferecer nos casos e formas legais salvo se ainda não exigível Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 263 processo de conhecimento não podendo tal execução ser aparelhada com um título executivo extrajudicial Isso ficou indubitável com a edição da Lei n 11232 de 22 de dezembro de 2005 A reforma processual promovida pela Lei n 12322005 veio sanar uma contradição lógica que existiu durante cerca de 30 anos de vigência do Código de Processo Civil pois eram disposições que regem processo nitidamente de cognição com previsão de julgamento sentença condenação categorias estranhas ao processo expropriatório e que no particular culminam com um pronunciamento tipicamente substitutivo da emanação de vontade do devedor que a tanto se nega ou simplesmente não pode fazêlo37 Isso significa que o registro do contrato adicionou ao ordenamento um regime eficacial e que continua íntegra a Súmula 239 do Superior Tribunal de Justiça A propósito o fundamento da edição da súmula foi justamente de que a adjudicação compulsória de que trata o art 22 do DecretoLei 5837 é de caráter pessoal restrito aos contratantes não se condicionando a obligatio faciendi à inscrição no Registro de Imóveis38 Da mesma forma continua plenamente em vigor a Súmula 84 do Superior Tribunal de Justiça já que as disposições do art 1417 e 1418 vieram acrescentar hipóteses de embargos de terceiro de senhor que não é possuidor pois o titular de direito real à aquisição da propriedade tenha ele a posse ou não terá acesso às ações reais É claro que faltando posse e faltando o registro não haverá oponibilidade contra terceiros assim como não haverá o direito de sequela sobre o bem39 4 concluSão Embora a Lei Complementar 95 de 06 de fevereiro de 1998 estabeleça a obrigatoriedade de o legislador consolidar a legislação sempre que disciplinar uma matéria a teor do que determinou o art 59 da Constituição Federal a realidade legislativa brasileira demonstra que isso não acontece A maior prova disso é o emaranhado legislativo que disciplina um dos contratos mais importantes para o mercado que é o compromisso de compra e venda Por isso a indispensabilidade do estudo a partir da perspectiva histórica e do estudo dos contratos e seus efeitos a partir da experiência social indissociável dos fatos sociais e das exigências valorativas que demonstram a necessidade de interpretação das normas consoante a finalidade social do modelo jurídico e firme observação da dinâmica negocial que consagrou o compromisso de compra e venda como um dos principais instrumentos do mercado imobiliário 37 MACEDO Elaine Harzheim A sentença condenatória no movimento do sincretismo do processo Direito e Democracia Canoas Editora da Ulbra v 7 n 1 2006 p207222 38 STJ REsp n 247344MG Relator o Ministro Waldemar Zveiter DJ de 16401 REsp n 12613MT Relator o Ministro Eduardo Ribeiro DJ de 30991 RESP n 00400623030 DJ 23042007 wwwstjjusbr 39 VIANA Marco Aurélio Comentários ao novo Código Civil Dos Direitos Reais Rio de Janeiro Forense 2003 p697 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 264 E mesmo sob a perspectiva normativa é preciso resgatar a ideia de que a estrutura de eixo do Direito Privado do atual Código Civil exige uma mudança de visão em relação ao fenômeno dos microssistemas pois seu surgimento deveuse a critérios lógicos do processo histórico fazendo nascer uma nova ordem conceitual e categorias interpretativas que extrapolam o conceito de lei extravagante Como já foi mencionado por Natalino Irti a técnica legislativa em que consistem os microssistemas não reduz a racionalidade sistemática mas promovea para as leis especiais40 E no exame da legislação especial vêse que as regras a respeito da validade e da eficácia obrigacional estão reguladas na lei especial e que o Código Civil regulou os efeitos reais do registro O registro por sua vez continua regulado na Lei 601573 Por isso é equivocada a afirmação segundo a qual o compromisso de compra e venda precisará ser registrado para que haja a oposição de embargos de terceiro para proteção dos direitos do comprador que seja possuidor Em síntese o compromisso de compra e venda não foi objeto de regulamentação pela nova lei o Código Civil disciplinou os efeitos do registro do contrato atribuindo a ele o direito real a aquisição da propriedade Isso tem por consequência a plena e completa vigência do DecretoLei 5837 bem como todo o seu regime eficacial conforme determinado no seu texto e pela própria jurisprudência Além disso os princípios que norteiam o modelo jurídico forjado pela realidade brasileira são comandados pelos ditames da socialidade no caso pela cláusula geral da função social dos contratos cuja integração com os contratos regulados em lei especial é possível tendo em vista o caráter de eixo que foi atribuído ao Código Civil o que dá a devida unidade à colcha de retalhos legislativa que regulamenta a eficácia normativa do contrato Para concluir devese deixar claro que tanto a Súmula 84 quanto a Súmula 239 do STJ estão em pleno vigor obedecidas as condições acima já explicitadas REfERênciAS AGUIAR JÚNIOR Ruy Rosado do Projeto do Código Civil As obrigações e os contratos Revista dos Tribunais n775 maio de 2000 ano 89 p1831 ALMEIDA COSTA Mário Júlio Contrato Promessa Uma síntese do regime vigente 9ed Coimbra Almedina 2007 ALVIM Agostinho Pareceres In ABIACKEL Ibrahim REALE Miguel Emendas ao projeto de Código Civil Pareceres da Comissão Elaboradora e Revisora Brasília Ministério da Justiça 1984 BESSONE Darcy Compra e venda Promessa e Reserva de Domínio 3ed São Paulo Saraiva 1988 40 IRTI Natalino Letà della decodificazione ventanni dopo 4ª ed Milano Dot A Giuffrè Editore 1999 p08 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 265 BESSONE Darcy Do Contrato 4ed São Paulo Saraiva 1997 BRANCO Gerson Luiz Carlos MARTINSCOSTA Judith Diretrizes Teóricas do novo Código Civil São Paulo Saraiva 2002 BRANCO Gerson Luiz Carlos O regime obrigacional unificado do Código Civil Brasileiro e seus efeitos sobre a liberdade contratual A compra e venda como modelo jurídico multifuncional Revista dos Tribunais São Paulo v 872 p4378 CATALAN Marcos Jorge Considerações sobre o contrato preliminar em busca da superação de seus aspectos polêmicos In DELGADO Mário Luiz et al Novo Código Civil Questões Controvertidas v 4 São Paulo Método 2005 p319341 COELHO Fernando Justificação da emenda n379 Diário do Congresso Nacional Seção I Suplemento 14091983 p259 COUTO E SILVA Clóvis Negócios Jurídicos e Negócios Jurídicos de Disposição Revista do Grêmio Universitário Tobhias Barreto UFRGS p2939 1958 CREDIE Ricardo Arcoverde Adjudicação Compulsória 5ed São Paulo Revista dos Tribunais 1991 GOMES Orlando Direitos Reais 19ed Rio de Janeiro Forense 2007 atualização por Atualizado por FACHIN Luiz Edson FERREIRA Geraldo Sobral Promessa Bilateral de Venda e Compromisso de compra e Venda Revista de Direito Civil n7 Revista dos Tribunais GOMES Orlando Contratos 18ed Rio de Janeiro Forense 1998 GOMES Orlando Venda Real e Venda Obrigacional Estudo comparativo no direito português e brasileiro Novos Temas de Direito Civil Rio de Janeiro Forense 1983 IRTI Natalino Letà della decodificazione ventanni dopo 4ed Milano Dot A Giuffrè Editore 1999 KRAEMER Eduardo Algumas anotações sobre os direitos reais no novo Código Civil In SARLET Ingo Wolfgang Org O novo Código Civil e a Constituição Porto Alegre Livraria do Advogado 2003 MACEDO Elaine Harzheim A sentença condenatória no movimento do sincretismo do processo Direito e Democracia Canoas Editora da ULBRA v7 n1 2006 p207222 MARCONDES Sylvio Professor Waldemar Ferreira Revista da Faculdade de Direito de São Paulo v LX 1965 p4767 NEVES Tancredo Justificação da emenda n381 Diário do Congresso Nacional Seção I Suplemento 14091983 REALE Miguel et al Anteprojeto de Código Civil Rio de Janeiro Ministério da Justiça Comissão de Estudos Legislativos 1972 REALE Miguel Código Civil Anteprojetos com minhas revisões correções substitutivos e acréscimos Texto inédito não publicado parcialmente manuscrito sem data REALE Miguel Fontes e modelos do direito para um novo paradigma hermenêutico São Paulo Saraiva 1999 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 266 RIBEIRO Joaquim de Sousa O campo de aplicação do regime indemnizatório do artigo 442º do Código Civil incumprimento definitivo ou mora In Direito dos Contratos Estudos Coimbra Coimbra Editora 2007 p283306 RIZZARDO Arnaldo Direito das Coisas 2ed Rio de Janeiro Forense 2006 VIANA Marco Aurélio Comentários ao Novo Código Civil Dos Direitos Reais Rio de Janeiro Forense 2003 p697 Direito e Democracia v10 n2 p267285 juldez 2009 Canoas A utilização do Sistema de Registro de Preços por órgãos que não participaram da licitação uma análise do art 8º do Decreto federal nº 3931 de 19 de setembro de 2001 thiago Dellazari melo RESumo O presente artigo traduz uma análise do Art 8º do Decreto Federal nº 3931 de 19 de setembro de 2001 o qual estabelece a possibilidade de adesão à Ata de Registro de Preços por órgãos ou entidades da Administração que não participaram da licitação a qual deu origem aos preços registrados Inicialmente será destacada a importância do estudo das licitações públicas em seguida serão delineados os princípios jurídicos a serem estudados os quais orientam toda a Administração Pública Feito isso será apresentado o Sistema de Registros de Preços SRP regulamentado pelo Decreto Federal nº 393101 destacando as vantagens da implantação do referido sistema na gestão de recursos públicos apresentando ainda a previsão de utilização dos preços registrados por quaisquer órgãos ou entidades da Administração Pública Dando continuidade ao estudo será conceituado o instituto da licitação pública traçandose um paralelo entre os princípios constitucionais da Administração Pública e das licitações públicas em confronto com a aplicação do Art 8º do Decreto Federal nº 393101 Diante das reflexões a serem apresentadas o estudo buscará discutir a adequada utilização do Sistema de Registro de Preços pela Administração Pública com vistas a preservação e manutenção dos princípios jurídicos que fundamentam o ordenamento jurídico Palavraschave Licitação Sistema de Registro de Preços Ata de Registro de Preços the use of the System of Registration of Prices for organs that didnt participate in the auction An analysis of art 8th of the ordinance federal nº 3931 of 19 September of 2001 ABStRAct The present article translates an analysis of Art 8th of the Ordinance Federal no 3931 of September 19 2001 which establishes the adhesion possibility to the Record of Registration of Prices for organs or entities of the Administration that didnt participate in the auction which created the registered prices Initially it will be outstanding the importance of the study of the Thiago Dellazari Melo é bacharel em Direito pela UFPE Mestrando em Direito pela UFPE Professor substituto da UFPE Gestor de Licitações do Comando da Aeronáutica em RecifePE Email tdellazaribolcombr Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 268 public auctions soon afterwards the juridical beginnings will be delineated they be studied which guide all the Public Administration Made that the System of Registrations of Prices will be presented SRP regulated by the Ordinance Federal no 393101 detaching the advantages of the implantation of the referred system in the administration of public resources still presenting the forecast of use of the prices registered by any organs or entities of the Public Administration Giving continuity to the study the institute of the public auction will be considered being drawn a parallel one among the constitutional beginnings of the Public Administration and of the public auctions in confrontation with the application of Art 8th of the Ordinance Federal no 393101 Before the reflections to be presented the study will look for to discuss the appropriate use of the System of Registration of Prices for the Public Administration with views the preservation and maintenance of the juridical beginnings that youthey base the juridical order Keywords Auction System of Registration of Prices Record of Registration of Prices 1 intRoDução O Estado está presente na sociedade nas mais diversas áreas segurança saúde educação saneamento básico defesa da soberania atividades legislativas e judiciárias dentre tantas outras em que atua direta ou indiretamente O objetivo desta presença é proporcionar à população a prestação dos serviços públicos e assegurar o bem estar de todos que convivem harmonicamente em seu território Com vistas a bem desempenhar a função estatal o Estado necessita recorrer a iniciativa privada constantemente a fim de contratar bens que não produz serviços que não executa e obras que não possui estrutura para construir tais contratações em sede de despesas públicas ganham significativa importância em face da vultosa soma que representam no orçamento público A execução das despesas públicas com a contratação de particulares foi objeto de preocupação do legislador constituinte notadamente em face da magnitude dos recursos públicos envolvidos de modo que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 instituiu no Inc XXI do Art 37 o processo de licitação pública como procedimento administrativo obrigatório a ser precedido em toda contratação de bens serviços obras e alienações ficando apenas a ressalva da não realização de certame licitatório nas hipóteses de dispensa de licitação e inexigibilidade previstas em legislação específica Dentre os aspectos gerais das licitações e dos contratos administrativos a Lei Federal nº 8666 de 21 de junho de 1993 veio a criar o Sistema de Registro de Preços no inciso II de seu art 15 porém a matéria permaneceu sem regulamentação por vários anos vindo a ser regulamentada somente em 2001 ou seja 08 oito anos após a promulgação da Lei Geral de Licitações por intermédio do Decreto nº 3931 de 19 de setembro de 2001 Atualmente a utilização do Sistema de Registro de Preços vem se tornando prática muito comum pelos gestores públicos principalmente pelas vantagens Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 269 proporcionadas por tal sistema as quais serão abordadas no presente estudo dentre elas a não obrigatoriedade do órgão detentor do Registro de Preços de realizar as aquisições a diminuição de certames licitatórios a economia de recursos despendidos para a realização de licitações dentre outras O estudo pretende abordar a utilização do Sistema de Registro de Preços pela Administração Pública notadamente no que tange à utilização da Ata de Registro de Preços por órgãos que não participaram do certame licitatório que deu origem aos preços registrados Analisase assim a contratação efetuada por órgãos que não participaram da licitação e contratam diretamente com a empresa detentora da Ata de Registro de Preços oriunda da licitação promovida por determinado órgão da Administração Dessa forma será traçado um paralelo com os princípios que norteiam o processo licitatório e a Administração Pública de modo a demonstrar se o Sistema de Registro de Preços apresentase como uma alternativa eficaz para a Administração Pública em busca de contratações vantajosas que resguardem o interesse público preservando a igualdade de condições a todos os concorrentes que desejam participar de licitações públicas promovidas pelo Poder Público 2 PRincíPioS como funDAmEntoS Do SiStEmA juRíDico Para melhor compreensão da importância dos princípios no âmbito jurídico destacase a definição do constitucionalista Celso Ribeiro Bastos1 segundo o qual Princípio é por definição o mandamento nuclear de um sistema ou se preferir o verdadeiro alicerce dele Tratase de disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondolhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência O princípio ao definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo acaba por lhe conferir a tônica e lhe dar sentido harmônico Observase que a relevância da compreensão dos princípios é fundamental posto que estruturam e identificam todo o sistema normativo Este mesmo sistema deverá ser composto por normas que serão editadas seguindo as diretrizes traçadas pelos princípios gerais que alicerçam a matéria sob pena de quebra da harmonia existente no ordenamento jurídico Os princípios fundamentam o sistema jurídico servindo de ideias básicas para a formação das regras do direito positivo e ocupam três funções relevantes fundamentação base de interpretação e fonte de supressão de lacunas Com isso podese afirmar que todo o Direito Administrativo deverá guardar estreita consonância com os princípios constitucionais dos quais este ramo do Direito é 1 BASTOS Celso Ribeiro Curso de Direito Constitucional São Paulo Celso Bastos 2002 p80 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 270 originado haja vista que toda a construção jurídica e doutrinária deverá estar pautada nas disposições constitucionais que fundamentam o sistema Da mesma forma as licitações públicas além de seguirem as diretrizes constitucionais ainda deverão estar submetidas aos princípios específicos que orientarão a realização dos processos licitatórios 21 Princípios gerais da Administração Pública e das licitações públicas A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 fixou em seu art 37 os princípios gerais que norteiam a Administração Pública conforme se pode observar Art 37 A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União dos Estados do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade impessoalidade moralidade publicidade e eficiência e também ao seguinte Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19 de 1998 Em seguida o legislador originário descreveu nos demais incisos uma série de disposições gerais acerca da Administração Pública dentre as quais destacamos o inciso XXI que reza a utilização de processo de licitação pública como regra geral para as contratações de obras serviços compras e alienações XXI ressalvados os casos específicos na legislação as obras serviços compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento mantidas as condições efetivas da proposta nos termos da lei o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações A Lei Federal nº 866693 ainda acrescentou aos princípios constitucionais da Administração Pública quais sejam o da legalidade da impessoalidade da moralidade da publicidade e da eficiência todos previstos no caput do art 37 da Constituição Federal os princípios gerais das licitações públicas elencados no seu art 3º Art 3º A licitação destinase a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade da impessoalidade da moralidade da igualdade da publicidade da probidade administrativa da vinculação ao instrumento convocatório do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 271 Assim além dos princípios constitucionais da Administração Pública citados anteriormente a Lei Geral de Licitações também lançou novos princípios que deverão fundamentar as licitações públicas e ao final do art 3º a Lei ainda ampliou sobremaneira este rol deixando aberto à doutrina a possibilidade de definição de outros princípios posto que o artigo encerra com a seguinte frase e dos demais que lhe são correlatos Diante da amplitude de princípios que regem a Administração Pública e as licitações públicas e da falta de consenso na doutrina acerca da fixação de tais princípios este estudo enfrentará apenas os princípios constitucionais previstos no caput do art 37 da Constituição da República Federativa do Brasil acrescentando ainda os princípios específicos das licitações públicas que gozam de certo consenso entre a doutrina fixando a análise utilizando os seguintes princípios a Princípio da legalidade b Princípio da impessoalidade c Princípio da moralidade d Princípio da publicidade e Princípio da eficiência f Princípio da isonomia entre os licitantes g Princípio da vinculação ao instrumento convocatório e h Princípio da proposta mais vantajosa 3 o SiStEmA DE REGiStRo DE PREçoS Definidos os princípios que balizam o presente estudo bem como a importância da análise principiológica na sistematização das normas de Direito Administrativo a serem utilizadas na gestão dos recursos públicos notadamente através da realização de certames licitatórios podese então avançar a discussão trazendo a lume o que vem a ser o Sistema de Registro de Preços A Lei Geral de Licitações previu o instituto no inciso II do seu art 15 verbis Art 15 As compras sempre que possível deverão II ser processadas através de sistema de registro de preços Apesar da previsão da Lei nº 866693 o Sistema de Registro de Preços somente veio a ser regulamentado por intermédio do Decreto Federal nº 3931 de 19 de setembro de 2001 e a definição do seu conceito se deu através da redação acrescida pelo Decreto Federal nº 4342 de 23 de agosto de 2002 transcrita a seguir Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 272 Art 1º Parágrafo único Para os efeitos deste Decreto são adotadas as seguintes definições I Sistema de Registro de Preços SRP conjunto de procedimentos para registro formal de preços relativos à prestação de serviços e aquisição de bens para contratações futuras Redação dada pelo Decreto nº 4342 de 23082002 Do exposto verificase que o Sistema de Registro de Preços é um conjunto de procedimentos formais com o objetivo de registrar preços para contratações futuras Este conjunto de procedimentos formais consiste na realização de certame licitatório por intermédio do respectivo processo administrativo Dentre os processos licitatórios para que o órgão possa proceder o Registro de Preços o Decreto nº 393101 prevê exclusivamente a utilização das modalidades de licitação Concorrência e Pregão sendo que este último poderá ser utilizado tanto na forma presencial na qual os fornecedores estão presentes no local da licitação para oferta de lances verbais ou na forma eletrônica na qual os fornecedores utilizamse da internet para a propositura de lances durante a realização do certame licitatório que é feito online pela Internet Importante lembrar que um dos pioneiros a conceituar o Sistema de Registro de Preços foi Hely Lopes Meirelles2 ensinando O sistema de compras pelo qual os interessados em fornecer materiais equipamentos ou gêneros ao Poder Público concordam em manter os valores registrados no órgão competente corrigidos ou não por um determinado período e a fornecer as quantidades solicitadas pela Administração no prazo previamente estabelecido Assim verificamos que o Sistema de Registro de Preços diferenciase das licitações tradicionais principalmente pela peculiaridade que o distingue qual seja a não obrigatoriedade da contratação pela Administração posto que se destina a registrar preços por um determinado lapso de tempo para aquisições eventuais e futuras 31 A utilização da Ata de Registro de Preços por órgãos não participantes da licitação O Sistema de Registro de Preços será precedido de licitação na modalidade Concorrência ou Pregão porém será concretizado através da assinatura da Ata de Registro de Preços que é o documento vinculativo de caráter obrigacional com 2 MEIRELLES Helly Lopes Licitação e contrato administrativo São Paulo RT 1991 p62 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 273 característica de compromisso para futura contratação no qual estarão registrados os valores registrados os fornecedores os órgãos participantes as condições a serem praticadas conforme as disposições contidas no edital da licitação e nas propostas apresentadas Vale ressaltar que todo o processo licitatório será conduzido pelo chamado Órgão Gerenciador que conduzirá o processo administrativo cumprindo todas as etapas previstas na legislação correspondente assim como o faria em uma licitação convencional O Decreto Federal nº 393101 estabeleceu a seguinte definição Art 1º Parágrafo único Para os efeitos deste Decreto são adotadas as seguintes definições III Órgão Gerenciador órgão ou entidade da Administração Pública responsável pela condução do conjunto de procedimentos do certame para registro de preços e gerenciamento da Ata de Registro de Preços dele decorrente Além do órgão gerenciador poderão ser convidados outros órgãos a participar do certame licitatório para Registro de Preços e que serão denominados órgãos participantes Os órgãos participantes integrarão o procedimento licitatório desde o seu início devendo manifestar o interesse perante o órgão gerenciador em participar do certame através da remessa da estimativa de consumo da expectativa do cronograma de consumo e das especificações do objeto Tal previsão do Decreto Federal nº 393101 é muito bem sucedida haja vista proporcionar flagrante racionalidade na execução de um certame licitatório composto por diversos órgãos em conjunto ensejando economia de recursos materiais e humanos pelo esforço único desenvolvido em prol de todos proporcionando a centralização de um processo licitatório para atendimento das necessidades comuns de vários órgãos independentes Até este ponto andou bem o Decreto Federal nº 393101 No entanto a inovação se deu com a instituição da possibilidade de utilização do Sistema de Registro de Preços por qualquer órgão ou entidade da Administração que não tenha participado do certame licitatório que deu origem à Ata de Registro de Preços os chamados caronas conforme previsão contida no art 8º e seus parágrafos abaixo transcritos Tais dispositivos representam inúmeras consequências para a Administração Pública e para as empresas Vejase Art 8º A Ata de Registro de Preço durante a sua vigência poderá ser utlizada por qualquer órgão ou entidade que não tenha participado do certame licitatório mediante prévia consulta ao órgão gerenciador desde que devidamente comprovada a vantagem Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 274 1º Os órgãos e entidades que não participaram do registro de preços quando desejarem fazer uso da Ata de Registro de Preços deverão manifestar seu interesse junto ao órgão gerenciador da Ata para que este indique os possíveis fornecedores e respectivos preços a serem praticados obedecida a ordem de classificação 2º Caberá ao fornecedor beneficiário da Ata de Registro de Preços observadas as condições nela estabelecidas optar pela aceitação ou não do fornecimento independentemente dos quantitativos registrados em Ata desde que este fornecimento não prejudique as obrigações anteriormente assumidas O instituto ainda veio a provocar uma verdadeira celeuma pela ausência de limites às aquisições realizadas por órgãos não participantes caronas de modo que o Governo Federal editou o Decreto nº 4342 em 23 de agosto de 2002 acrescentado ao art 8º do Decreto nº 3931 de 19 de setembro de 200 o parágrafo abaixo 3º As aquisições ou contratações adicionais a que se refere este artigo não poderão exceder por órgão ou entidade a cem por cento dos quantitativos registrados na Ata de Registro de Preços Continua Jorge Ulisses Jacoby3 Fernandes sobre o tema Por intermédio do Decreto nº 3931 de 19 de setembro de 2001 alterada a regulamentação do Sistema de Registro de Preços e instituída no país a possibilidade de a proposta mais vantajosa numa licitação ser aproveitada por outros órgãos e entidades Esse procedimento vulgarizouse sob a denominação de carona que traduz em linguagem coloquial a ideia de aproveitar o percurso que alguém está desenvolvendo para concluir o próprio trajeto sem custos Desta forma a utilização da Ata de Registro de Preços foi estendida a qualquer órgão ou entidade da Administração que não tenha participado do certame licitatório Exemplificando uma empresa A participa de um certame licitatório para registro de preços de resma de papel A4 na quantidade de 1000mil resmas assinando a Ata de Registro de Preços perante determinada Secretaria de Educação Em seguida a Secretaria de Fazenda manifesta interesse em aderir à Ata de Registro de Preços realizando então como carona a contratação do fornecimento de 1000mil resmas de papel A4 também da empresa A Após isso o IBAMA também manifesta interesse em aderir à citada Ata de Registro de Preços vindo a contratar novamente como carona o fornecimento de mais 1000mil resmas de papel A4 da mesma empresa 3 FERNANDES Jorge Ulisses Jacoby Carona em sistema de registro de preços uma opção inteligente para redução de custos e controle Disponível na Internet httpwwwjacobyprobrutilpubCAC58T8Ndoc Acesso em 17 dez 2008 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 275 A e assim sucessivamente outros órgãos aderem à utilização da Ata de Registro de Preços firmada pela Secretaria de Educação utilizandose da prerrogativa de caronas de forma que rapidamente a empresa A multiplicou consideravelmente suas vendas para outros órgãos e entidades sem que para isso necessitasse novamente sujeitarse a novos procedimentos licitatórios Tal quadro motiva uma análise um pouco mais detalhada acerca da situação estabelecida pelas adesões às Atas de Registro de Preços por órgãos e entidades que não participaram do certame licitatório que ensejou o registro dos preços o que será feito a seguir a luz dos princípios que norteiam a Administração Pública e as licitações públicas 4 A licitAção PúBlicA A fim de que se possa dar continuidade à análise da utilização da Ata de Registro de Preços por órgãos não participantes da licitação que deu origem aos preços registrados fazse necessário esclarecer que o processo licitatório é um procedimento administrativo composto por uma série de atos previstos na Lei Geral de Licitações que tem como principal e único objetivo selecionar a proposta mais vantajosa para a contratação pretendida pela Administração Pública guardadas as condições isonômicas entre todos os participantes condições estas que estarão previamente estabelecidas no instrumento convocatório Edital A definição de Bandeira de Mello4 é a seguinte Licitação é o procedimento administrativo pelo qual uma pessoa governamental pretendendo alienar adquirir ou locar bens realizar obras e serviços outorgar concessões permissões de obra serviço ou de uso exclusivo de bem público segundo condições por ela estipuladas previamente convoca interessados na apresentação de propostas a fim de selecionar a que se revele mais conveniente em função de parâmetros antecipadamente estabelecidos e divulgados Observase que o entendimento da doutrina é no sentido de a licitação ser um procedimento administrativo cujo objetivo é buscar a proposta mais vantajosa na iniciativa privada para celebração do contrato de interesse da Administração Pública respeitando a isonomia entre quaisquer interessados Fixado o conceito e o objetivo do procedimento licitatório passase à análise da utilização da Ata de Registro de Preços por órgãos e entidades que não participaram do certame licitatório que originou os preços registrados em consonância com os princípios que regem a Administração Pública e as licitações públicas 4 BANDEIRA DE MELLO Celso Antônio Curso de direito administrativo São Paulo Malheiros 2002 p468 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 276 41 o princípio da legalidade A supremacia da lei como manifestação da vontade popular reveste a sociedade de garantias de certezas e da delimitação de direitos e deveres No tocante ao Direito Administrativo o princípio da legalidade ganha especial destaque por submeter a Administração Pública à vontade da lei limitando poderes e estabelecendo condutas dos gestores públicos A Administração portanto no desempenho de suas atividades tem a obrigação de observar e cumprir todas as normas do ordenamento jurídico que o próprio Estado editou nas palavras de Caio Tácito5 Ao contrário da pessoa de direito privado que como regra tem a liberdade de fazer aquilo que a lei não proíbe o administrador público somente pode fazer aquilo que a lei autoriza expressa ou implicitamente Trazendo à tona o entendimento defendido por Joel de Menezes Niebuhr6 a possibilidade de utilização da Ata de Registro de Preços por órgãos não participantes do processo licitatório instituiu a figura do carona em licitações públicas para o Sistema de Registro de Preços Ocorre que tal instituto foi criação do Decreto Federal nº 393101 haja vista a figura do carona não encontrar qualquer menção na legislação ou seja a lei não faz referência ao carona Com isso sustenta o doutrinador que o Presidente da República ao criar o carona agiu excedendo suas competências constitucionais posto que o Decreto Federal nº 393101 como regulamento administrativo que é objetiva tão somente a dizer como a lei deve ser cumprida pela Administração Pública não se presta portanto a criar direitos e obrigações nem tampouco novos instrumentos jurídicos que não possuem amparo legal Assim como o Decreto Federal nº 393101 deveria assegurar a fiel execução da lei e acabou por criar um instituto novo qual seja o carona verificase a afronta ao princípio da legalidade pelo fato de o Decreto haver extrapolado a competência constitucional inovando a ordem jurídica A competência para criação do carona é do Poder Legislativo posto que no Estado Democrático de Direito se deve governar por lei e não por decreto 42 os princípios da impessoalidade e da moralidade Os princípios da impessoalidade e da moralidade encontramse intrinsecamente ligados O princípio da impessoalidade afasta da Administração Pública a vontade 5 TÁCITO Caio O princípio da legalidade ponto e contraponto Revista de Direito Administrativo V206 Rio de Janeiro Renovar 1996 p2 6 NIEBUHR Joel de Menezes Carona em Ata de Registro de Preços atentado veemente aos princípios de direito administrativo Revista Zênite de Licitações e Contratos ILC Ano XIII Nº 143 Curitiba Zênite 2006 p13 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 277 pessoal dos gestores públicos bem como a gestão da res publica em interesse pessoal Os administradores devem pautar suas atitudes sob o manto da imparcialidade da impessoalidade não sendo relevantes portanto na gestão pública as preferências pessoais as opiniões pessoais nem tampouco as vontades pessoais daqueles que administram Já o princípio da moralidade exige da Administração comportamento consoante com a moral com os bons costumes com a justiça com a equidade com a honestidade com a idoneidade ou seja com as regras da boa administração buscando o melhor e o mais útil ao interesse público Notase a estreita ligação entre a impessoalidade e a moralidade de forma que a crítica feita por Joel de Menezes Niebuhr7 ao carona em Atas de Registro de Preços reside no fato de a adesão de órgãos não participantes à determinada Ata de Registro de Preços expor de maneira excessiva e desnecessária os dois princípios ou seja enseja na Administração todo o tipo de lobby tráfico de influência e favorecimento pessoal Ora em um país como o Brasil em que prevalece a cultura do jeitinho8 somandose ao fato da má remuneração dos servidores públicos e tantos outros elementos complexos que envolvem a Administração Pública podese pensar que a empresa A poderá oferecer algum tipo de vantagem aos administradores públicos de outros órgãos em troca da adesão a Ata de Registro de Preços que favorece a empresa A multiplicando ilimitadamente as contratações posto que cada órgão que aderir à Ata de Registro de Preços poderá contratar 100 cem por cento dos quantitativos registrados conforme Parágrafo 3º do Art 8º do Decreto Federal nº 393101 Diante de tais observações não se pode duvidar que a utilização da Ata de Registro de Preços por quaisquer órgãos ou entidades da Administração que não participaram da licitação que deu origem aos preços registrados coloca em risco despropositado os princípios da impessoalidade e da moralidade administrativa de modo que fechar os olhos para a realidade brasileira significa tolerar e incentivar a má gestão de recursos públicos 43 o princípio da publicidade O tema da transparência das contas públicas tão em voga no Brasil traduzse em um espelho do princípio da publicidade Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro9 Diz respeito não apenas à divulgação do procedimento para conhecimento de todos os interessados como também aos atos da Administração praticados nas várias fases do procedimento que podem e devem ser abertas aos interessados para assegurar a todos a possibilidade de fiscalizar sua legalidade 7 NIEBUHR Joel de Menezes Carona em Ata de Registro de Preços atentado veemente aos princípios de direito administrativo Revista Zênite de Licitações e Contratos ILC Ano XIII Nº 143 Curitiba Zênite 2006 p13 8 KELLEMEN Peter Brasil para principiantes venturas e desventuras de um brasileiro naturalizado Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1964 p9 9 DI PIETRO Maria Sylvia Zanella Direito Administrativo São Paulo Atlas 2005 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 278 A mácula ao princípio da publicidade ocasionada pela utilização da Ata de Registro de Preços por quaisquer órgãos ou entidades que não participaram da licitação consiste no fato de o quantitativo a ser contratado não estar expressamente definido no objeto da licitação definido no Edital Neste caso há uma licitação sem a delimitação do quantitativo do objeto a ser contratado que deve ser considerada nula posto que dificulta a apresentação de propostas pelos licitantes comprometendo o julgamento objetivo e a execução do contrato que dela será resultado Por exemplo a licitação destinase a registrar preços para o fornecimento de 1000 mil resmas de papel A4 A empresa A vence a licitação e assina a Ata de Registro de Preços Já a empresa B toma conhecimento da licitação porém resolve não participar em face de o quantitativo de resmas de papel A4 ser de apenas 1000mil quando para a empresa B seria viável registrar preços para o fornecimento acima de 5000cinco mil resmas de papel A4 A empresa C participa do certame e perde a licitação em face de somente poder oferecer um melhor preço se a quantidade registrada fosse acima de 3000três mil resmas de papel A4 Ocorre que posteriormente 05cinco órgãos da Administração resolvem aderir à Ata de Registro de Preços detida pela empresa A Logo o quantitativo contratado é acrescido de 5000cinco mil resmas de papel A4 beneficiando a empresa A em detrimento das empresas B e C Nesta situação verificase que a clareza do Edital é fundamental para que não haja restrição ao caráter competitivo da licitação A definição dos quantitativos a serem contratados é um dos aspectos mais relevantes para a apresentação das propostas pelos licitantes por influir diretamente nos custos das empresas ensejando inclusive que empresas deixem de participar da licitação por não haver interesse numa contratação de valores pouco expressivos Da mesma forma o licitante que participa do certame tem o direito de conhecer o quantitativo a ser registrado e possivelmente contratado A ausência de tal informação configura crucial desrespeito ao princípio constitucional da publicidade Nas palavras de José Cretella Júnior10 Com efeito a mais ampla publicidade é pressuposto indispensável a um instituto que se destina a colocar diante do público as condições preliminares para a concretização de contratos de que participa a Administração 44 o princípio da eficiência Acrescida pela reforma administrativa realizada através da Emenda Constitucional nº 1998 a eficiência somouse aos demais princípios já consagrados no caput do art 37 10 CRETELLA JÚNIOR José Curso de direito administrativo Rio de Janeiro Forense 2003 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 279 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 com o intuito de modernizar a Administração Pública Desse modo a Administração objetivando atingir a eficiência deverá agir de maneira ágil precisa perfeita visando sempre maximizar os resultados positivos e a satisfação das necessidades da população Condenase portanto a morosidade a inércia o descaso a negligência e a omissão Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro11 O princípio da eficiência apresenta na realidade dois aspectos pode ser considerado em relação ao modo de atuação do agente público do qual se espera o melhor desempenho possível de suas atribuições para lograr os melhores resultados e em relação ao modo de organizar estruturar disciplinar a Administração Pública também com o mesmo objetivo de alcançar os melhores resultados na prestação do serviço público Neste ponto observase uma dicotomia interessante A utilização do Sistema de Registro de Preços visando à aquisição de bens ou a contratação de serviços para o atendimento a mais de um órgão ou entidade representa notória consagração da eficiência administrativa Afinal o órgão gerenciador coordena juntamente com os órgãos participantes a realização de uma única licitação que irá suprir a demanda de contratação de todos unemse esforços para o alcance do objetivo comum destacando o planejamento e a organização da Administração Por outro lado a simples adesão à Ata de Registro de Preços por órgãos que não participaram da licitação os chamados caronas prestigia a inércia e o comodismo administrativo haja vista que os órgãos poderão esconder a ausência de planejamento nas contratações buscando sempre a adesão às Atas de Registro de Preços de outros órgãos que implantaram o Sistema de Registro de Preços Vale ressaltar o antagonismo da utilização do Sistema de Registro de Preços De um lado os órgãos unem esforços e realizam uma licitação conjunta de interesse de todos enaltecendo a eficiência administrativa de outro os órgãos permanecem inertes aguardando a realização do certame sem sequer precisarem levantar suas necessidades de contratação agindo como verdadeiros parasitas daqueles que após longa jornada conseguem celebrar a assinatura da Ata de Registro de Preços Em face dos argumentos apresentados é inconteste o flagrante desrespeito à eficiência administrativa almejada pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 por órgãos e entidades que não participam das licitações para Registro de Preços e passam a aderir às Atas de Registro de Preços de outros órgãos 11 DI PIETRO Maria Sylvia Zanella Direito Administrativo São Paulo Atlas 2005 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 280 45 o princípio da isonomia entre os licitantes A isonomia entre os licitantes diz respeito à oportunidade de todos os interessados em contratar com a Administração Pública poderem competir em condições iguais isonômicas Todos devem receber da Administração Pública igual tratamento Nas licitações públicas as regras do certame devem ser previamente definidas no Edital e serão impostas a todos os concorrentes em igualdade de condições A adesão à Ata de Registro de Preços realizada por órgãos não participantes da licitação acaba por quebrar a isonomia que foi imposta aos concorrentes no certame haja vista que o acréscimo no quantitativo a ser contratado era desconhecido na licitação em que todos participaram em igualdade de condições O desconhecimento de condição relevante no certame licitatório qual seja o quantitativo a ser contratado acaba por frustrar todo o procedimento ao conceder vantagem à empresa que assina a Ata de Registro de Preços em detrimento dos demais licitantes Conclui Joel de Menezes Niebuhr12 A figura do carona é ilegítima porquanto por meio dela procedese à contratação direta sem licitação fora das hipóteses legais e sem qualquer justificativa vulnerando o princípio da isonomia que é o fundamento da exigência constitucional que faz obrigatória a licitação pública 46 o princípio da vinculação ao instrumento convocatório O instrumento convocatório também conhecido como Edital é o documento no qual a Administração Pública fixará as normas e condições a serem observadas por todos os interessados para participação na licitação daí o porquê de o Edital ser taxado como Lei Interna da Licitação13 Tanto a Administração Pública licitante como os interessados na licitação estarão submetidos à rigorosa observância das normas e condições estabelecidas no Edital conforme previsão do art 3º da Lei Federal nº 866693 reafirmado pelo art 41 do mesmo diploma legal verbis Art 41 A Administração não pode descumprir as normas e condições do edital ao qual se acha estritamente vinculada 12 NIEBUHR Joel de Menezes Carona em Ata de Registro de Preços atentado veemente aos princípios de direito administrativo Revista Zênite de Licitações e Contratos ILC Ano XIII Nº 143 Curitiba Zênite 2006 13 GASPARINI Diógenes Direito Administrativo São Paulo Saraiva 2002 p400 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 281 Assim a adesão de órgãos não participantes à Ata de Registro de Preços é condição não prevista no Edital Ainda que haja a previsão do Art 8º do Decreto Federal nº 393101 não é possível para os proponentes saber quantos órgãos irão efetuar a adesão a posteriori e com isso também não é possível conhecer o quantitativo que será efetivamente contratado prejudicando a elaboração das propostas pelos concorrentes Adilson Abreu Dallari14 esclarece O edital há de ser completo de molde a fornecer uma antivisão de tudo que possa vir a ocorrer no decurso das fases subsequentes da licitação Nenhum dos licitantes pode vir a ser surpreendido com coisas exigências transigências critérios ou atitudes da Administração que caso conhecidas anteriormente poderiam afetar a formulação de suas propostas Devese frisar que o Edital não só estabelece os quantitativos do objeto a ser registrado o preço mas também uma série de outros componentes que influenciam diretamente na elaboração da proposta tais como frete prazo de entrega condições de pagamento dentre outras Observase que o carona enseja contratação não prevista inicialmente no Edital ferindo a competitividade do processo licitatório bem como estabelecendo privilégios para a empresa detentora da Ata de Registro de Preços Tal situação contraria de forma veemente mais um dos princípios das licitações públicas 47 o princípio da proposta mais vantajosa Conforme visto anteriormente a obtenção da proposta mais vantajosa para a contratação a ser realizada pela Administração Pública constitui o principal objetivo de toda e qualquer licitação pública A discussão da vantajosidade na utilização da Ata de Registro de Preços por órgãos não participantes da licitação alcançou o Tribunal de Contas da União No Acórdão 4342005 Plenário15 o ministrorelator Augusto Sherman Cavalcanti em seu voto apresentou a seguinte preocupação com o assunto Não se tem como garantir que o preço vencedor seja o mais vantajoso ou seja compatível com a faixa etária dos beneficiários do órgão que venha a aproveitarse da licitação já realizada Assim o preço ofertado para o Ministério da Cultura dificilmente será o adequado para qualquer outro órgão da Administração tendo 14 DALLARI Adilson Abreu Aspectos jurídicos da licitação São Paulo Saraiva 1997 p32 15 Tribunal de Contas da União Processo TC 00470920053 Relator Augusto Sherman Cavalcanti Brasília 20 de abril de 2005 Diário Oficial da União Brasília 29 de abril de 2005 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 282 em vista as diferenças nos diversos componentes do custo dos serviços entre os quais destaco a abrangência territorial ou área geográfica a rede credenciada e o grupo de beneficiários O caso concreto referiase à utilização do Sistema de Registro de Preços para contratação de operadora de planos de saúde pelo Ministério da Cultura A Corte de Contas considerou ser possível a contratação pelo Sistema de Registro de Preços porém o Edital deveria vedar a possibilidade da utilização da Ata de Registro de Preços por órgãos que não participaram do certame No caso em tela a recomendação foi pela anulação do procedimento licitatório conforme voto do ministrorelator proferido no Acórdão 668200516 A anulação do certame em análise tem o potencial de impedir futuras contratações baseadas na Ata de Registro de Preços pelos demais órgãos e entidades da Administração sem que haja certeza quanto à razoabilidade dos preços em cada situação específica Os ensinamentos do Ministro Sherman do Tribunal de Contas da União apesar da peculiaridade da contratação analisada contratação de operadora de planos de saúde implicam no despertar para a questão haja vista que as necessidades de contratações dos órgãos são diversas assim como todas as demais condições envolvidas na licitação tais como frete condições de pagamento quantitativos a serem contratados qualidade da contratação etc Diante disso estender a utilização de Atas de Registro de Preços para órgãos não participantes é fator de risco para a Administração por não significar a contratação mais vantajosa a satisfazer o interesse público 5 A ADEQuADA utiliZAção Do SiStEmA DE REGiStRo DE PREçoS O Sistema de Registro de Preços vem a ser um instrumento de considerável avanço na gestão de recurso públicos as vantagens obtidas são inúmeras porém não se pode admitir a distorção do instituto de forma a romper com os princípios constitucionais da Administração Pública nem tampouco os princípios gerais das licitações públicas O Sistema de Registro de Preços não deve ser transformado num estímulo à formação de monopólios por empresas detentoras de Atas de Registro de Preços Tais empresas se especializam em potencializar contratações e multiplicar lucros às custas 16 Tribunal de Contas da União Processo TC 00470920053 Relator Augusto Sherman Cavalcanti Brasília 25 de maio de 2005 Diário Oficial da União Brasília 03 de junho de 2005 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 283 de lobby perante órgãos e entidades da Administração Pública para adesão à Atas de Registro de Preços resultando em desrespeito à supremacia do interesse público Devese ressaltar no entanto que o Sistema de Registro de Preços pode e deve continuar a ser utilizado pelos gestores públicos como ferramenta de gestão Para tanto basta a limitação da utilização da Ata de Registro de Preços apenas pelos órgãos que efetivamente participaram desde o início da licitação coordenada pelo órgão gerenciador Aliás essa é a previsão do próprio Decreto Federal nº 393101 em seu art 2º Inc III verbis Art 2º Será adotado preferencialmente o SRP nas seguintes hipóteses III quando for conveniente a aquisição de bens ou a contratação de serviços para atendimento a mais de um órgão ou entidade ou a programas de governo A realização de uma única licitação composta por necessidades de órgãos diversos através do SRP preserva e mantém a aplicação de todos os princípios da Administração Pública bem como reforça os princípios das licitações públicas Dando especial destaque a obtenção da eficiência administrativa por intermédio da racionalização dos processos administrativos de contratações O entendimento da Corte de Contas deve ser acatado pelos gestores públicos para correta aplicação das normais gerais de licitação17 Nesse sentido bem atuou o ministro Augusto Sherman Cavalcanti ao demonstrar a relevância das consequências advindas da utilização da Ata de Registro de Preços por órgãos não participantes da licitação que deu origem aos preços registrados Destacase que o descompasso existe apenas na utilização das Atas de Registro de Preços por órgãos não participantes de modo que para os órgãos participantes verificamse claramente as vantagens a serem alcançadas com a utilização do Sistema de Registro de Preços de forma que sua aplicação na Administração Pública deve ser amplamente divulgada e incentivada não só na esfera federal como também nas esferas estadual e municipal 6 conSiDERAçõES finAiS A importância do estudo das licitações públicas no Brasil decorre principalmente da necessidade do Estado em recorrer à iniciativa privada para realizar as mais diversas 17 Súmula 222 do Tribunal de Contas da União As decisões do Tribunal de Contas da União relativas à aplicação de normas gerais de licitação sobre as quais cabe privativamente à União legislar devem ser acatadas pelos administradores dos Poderes da União dos Estados do Distrito Federal e dos Municípios Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 284 contratações em decorrência disso vultosos recursos financeiros são gastos e o procedimento administrativo para realização de tais despesas é o processo licitatório conforme regra estabelecida pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 O presente estudo destacou que a licitação pública tem como objetivo principal selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração Pública guardando igualdade de condições entre todos aqueles interessados em contratar com o Poder Público Tal objetivo não pode ser afastado pelo gestor público sob pena de contrariedade às disposições constitucionais e consequente não realização do interesse público A discussão principal acerca da utilização do Sistema de Registro de Preços foi focada na celeuma provocada pela utilização de Atas de Registro de Preços por órgãos não participantes da licitação a qual deu origem aos preços registrados O problema originado pelos órgãos caronas consiste no desrespeito aos princípios gerais da Administração Pública e das licitações públicas Ficou demonstrado que o Art 8º do Decreto Federal nº 393101 ao instituir a figura do carona contrariou princípios que fundamentam o ordenamento jurídico vigente no país sobretudo àqueles que alicerçam a Administração Pública quais sejam a legalidade a impessoalidade a moralidade a publicidade e a eficiência Conforme o estudo que ora se finda a frequente adesão de órgãos à Atas de Registro de Preços acaba por multiplicar as quantidades contratadas proporcionando fantástico ganho de escala às empresas detentoras de preços registrados sem que tais quantitativos estivessem claramente definidos no Edital do certame licitatório que deu origem ao registro de preços Por outro lado a Administração Pública não realiza certames licitatórios não oferecendo oportunidade a potenciais interessados em celebrar os contratos bem como dá ensejo que uma licitação para contratação de um quantitativo previamente estabelecido se torne uma contratação muito superior Tal ofensa aos princípios jurídicos poderá ser contornada de maneira simples através da correta utilização do Sistema de Registro de Preços pela Administração Pública Para tanto fazse necessário à vedação da utilização de Atas de Registro de Preços por órgãos que não participaram da licitação ou seja defendese a utilização das Atas de Registro de Preços apenas pelos órgãos participantes a fim de consagrar a dupla finalidade do processo licitatório qual seja a seleção da proposta mais vantajosa para o Poder Público e o oferecimento de igual oportunidade a todos os interessados em celebrar o contrato Somente dessa forma estará consagrada a transparência de um certame licitatório no qual todos os licitantes conhecem a magnitude da potencial contratação bem como com quais órgãos tais contratos poderão ser firmados A clareza de tais disposições no Edital certamente ensejará uma competição mais isonômica e justa proporcionando a seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública alcançando por fim o principal objetivo de todo processo licitatório Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 285 REfERênciAS ARAÚJO Geisa Maria Teixeira de Licitações e Contratos Públicos teoria e prática Fortaleza Premius 2001 BANDEIRA DE MELLO Celso Antônio Curso de Direito Administrativo São Paulo Malheiros 2002 BASTOS Celso Ribeiro Curso de Direito Constitucional São Paulo Celso Bastos 2002 BOSELLI Paulo Simplificando as licitações São Paulo Edicta 2001 DALLARI Adilson Abreu Aspectos jurídicos da licitação São Paulo Saraiva 1997 DI PIETRO Maria Sylvia Zanella Direito Administrativo São Paulo Atlas 2005 FERNANDES Jorge Ulisses Jacoby Carona em sistema de registro de preços uma opção inteligente para redução de custos e controle Disponível na Internet httpwww jacobyprobrutilpubCAC58T8Ndoc Acesso em 17 dez 2008 Sistema de registro de preços e pregão presencial e eletrônico Belo Horizonte Fórum 2006 GASPARINI Diógenes Direito Administrativo São Paulo Saraiva 2002 JUSTEN FILHO Marçal Comentários à lei de licitações e contratos administrativos São Paulo Dialética 2002 KELLEMEN Peter Brasil para principiantes venturas e desventuras de um brasileiro naturalizado Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1964 MEIRELLES Helly Lopes Licitação e contrato administrativo São Paulo RT 1991 Direito Administrativo Brasileiro São Paulo Malheiros 2001 Direito Administrativo Brasileiro São Paulo Malheiros 2002 MORAES Alexandre de Direito Constitucional São Paulo Atlas 2003 MOTTA Carlos Pinto Coelho Eficácia nas licitações e contratos Belo Horizonte Del Rey 2002 NIEBUHR Joel de Menezes Carona em Ata de Registro de Preços atentado veemente aos princípios de direito administrativo Revista Zênite de Licitações e Contratos ILC Ano XIII Nº 143 Curitiba Zênite 2006 PEREIRA JUNIOR Jessé Torres Comentários à lei das licitações e contratações da administração pública Rio de Janeiro Renovar 1997 SILVA José Afonso da Curso de Direito Constitucional Positivo São Paulo Malheiros 2002 SUNDFELD Carlos Ari Fundamentos de direito público São Paulo Malheiros 2000 TÁCITO Caio O princípio da legalidade ponto e contraponto Revista de Direito Administrativo v206 Rio de Janeiro Renovar 1996 Direito e Democracia v10 n2 p286294 juldez 2009 Canoas o monumento bárbaro desconcertando o sistema penal entre violência crime e logos Alexandre costi Pandolfo RESumo O artigo apresenta uma desconstrução do poder punitivo afiliando o seu discurso com o esclarecimento mito do pensamento ocidental Aproximando Walter Benjamin Giorgio Agamben e Robert Musil é possível concluir que direito estado e história assim como o próprio sistema penal são monumentos bárbaros na medida mesma da sua civilidade O texto pretende assim questionar o fundamento do poder punitivo a partir da racionalização que encobre toda a sua barbaridade a violência intrínseca ao próprio logos Palavraschave Sistema Penal Monumento Barbárie Violência Logos the Barbarian monument disconcerting the penal system between violence crime and logos ABStRAct The paper presents a deconstruction of punitive power affiliating its speech with the Illuminism the myth of Western thought Approaching Walter Benjamin Giorgio Agamben and Robert Musil is possible to conclude that the law the state and history as well as the criminal justice system are barbaric monuments in the same measure as its civility The text aims to question the punitive powers basis since the rationalization that covers all its barbarity the violence inherent to the own logos Keywords PenalSistem Monument Barbarism Violence Logos 1 SiStEmA PEnAl DESlEGitimAção DA RAZão PEnAl Desde o imperativo interpolitransdisciplinar1 é possível dizer que diante de um leve toque com as ciências sociais o saberpoder jurídicopenal está como nas palavras de Eugenio Raúl Zaffaroni deslegitimado Assim na construção deste autor só se pode evitar o autismo e o preconceito indo ao encontro das hipóteses de trabalho interdisciplinar o que não implica que o respectivo saber perca seu horizonte nem sua função apenas tornase interdisciplinar a construção de seu sistema de compreensão2 A importância das ciências sociais não se qualifica meramente em uma pretensa posição Alexandre Costi Pandolfo é Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul FADIRPUCRS vinculado à linha de pesquisa em Criminologia e Controle Social Bolsista CAPES Professor Email xandipandolfohotmailcom 1 MORIN Edgar A Cabeça BemFeita repensar a reforma reformar o pensamento Trad Eloá Jacobina RJ Bertrand Brasil 2000 p111 2 ZAFFARONI Eugênio Raul BATISTA Nilo et al Direito Penal Brasileiro RJ Revan 2ª ed 2003 p271 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 287 de auxiliaridade deste saber Todo o delírio de grandeza do saber jurídico penal em sua arrogância retórica sempre consumiu após evidentes processos de apropriação os discursos alienígenas impondolhes a etiqueta da auxiliaridade Sempre imputou aos saberes que ousaram adentrar no seu objeto de estudo crime rótulo de saberes subordinados3 Desse panorama decorre o evidente narcisismo infantil do direito penal que não tomando em consideração os dados sociais das ciências sociais acaba por inventar4 um saber no qual o dado social só interessa ao jurista à medida que o legislador o tenha previamente incorporado5 De uma maneira geral las ciencias sociales nos están mostrando que el discurso jurídicopenal se elabora sobre ilusiones y alucinaciones que estas ciencias desmientem rotundamente Esto significa que las discusiones jurídicopenales se deserollan sobre la base de argumentos que en el plano de la realidad social son falsos6 Isso quer dizer que a realidade social não obstante a verdade apresentarse sempre problemática7 demonstra que o poder punitivo opera de modo exatamente inverso ao descrito pelo discurso penal tradicional A lesão que essa constatação provoca no narcisismo teórico do direito penal faz com que o discurso jurídicopenal tenha de inventar uma realidade condizente com o saberpoder que exerce Assim é que a partir de metáforas8 justificase o exercício de poder dos sistemas penais Ora pelo menos desde a reformulação moderna do século dezoito o discurso jurídicopenal sempre se baseou em ficções e metáforas ou seja em elementos inventados ou trazidos de fora sem nunca operar com dados concretos da realidade social9 O velho fantasma do bellum omnium contra omnes que el proprio Hobbes como no sabia el modo de eludir su falta de realidad histórica nos lo atribuía a los americanos é um importante exemplo do panorama de viejas ficciones y metáforas con las que siempre se trato de justificar el ejercicio de poder del sistema penal10 Nesse sentido as ciências sociais mormente a sociologia e a antropologia provocam uma deslegitimação do 3 CARVALHO Salo de A Ferida Narcísica do Direito Penal primeiras observações sobre as disfunções do controle penal na sociedade contemporânea In GAUER Ruth org A Qualidade do Tempo Para Além das Aparências Históricas RJ Lumen Juris 2004 p181 4 Invenção é sempre uma relação de poder desde a leitura foucaultiana de Nietzsche apresentada no livro A verdade e as formas jurídicas 5 Cf ZAFFARONI BATISTA Ob cit p66 6 ZAFFARONI Eugenio Raúl Hacia un Realismo Jurídico Penal Marginal Caracas Monte Ávila Latinoamericana Editores 1993 p91 7 O próprio Zaffaroni também aponta esta questão Cf ZAFFARONI Eugenio Raúl Em Busca das Penas Perdidas a perda da legitimidade do sistema penal Trad Vânia Pedrosa e Almir Conceição RJ Revan 1991 p163 8 Perceba que como assevera Zaffaroni uma coisa é afirmar que é muito melhor expressar o saber por metáforas por nunca podermos alcançar a realidade em razão da enorme interrelação de tudo perspectiva holística com o que o saber se faz muito mais prudente e menos autoritário e outra coisa muito diferente é usar a metáfora combinada com ficções invenções para extrair consequências assertivas e definitivas sobre uma realidade à qual não se presta a menor atenção ZAFFARONI Em Busca das Penas Perdidas p48 9 Idem Ibidem p48 10 ZAFFARONI Hacia un Realismo Jurídico Penal Marginal p17 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 288 discurso jurídicopenal do qual não mais poderá se recuperar a não ser apelando a estes delírios sociais Por esses trilhos é que o jurista argentino Engenio Raúl Zaffaroni elaborou teoricamente o Realismo Marginal uma construção científica transdisciplinar que se caracteriza pela búsqueda de una dogmática jurídicopenal liberal de garantias realista no distanciada das ciencias sociales no legitimante del poder primitivo que no ejercemos los juristas y adaptada al momento actual de nuestra región latinoamericana11 Essa construção dogmática não é o que permite tirar o véu da atuação dos nossos sistemas penais que caracterizam um genocídio em andamento12 senão que é construída a partir da retirada deste véu Em outras palavras o realismo jurídicopenal marginal propõe la renovación de la dogmática penal desde la deslegitimación del sistema penal orientada instrumentalmente hacia la limitación y reducción de su âmbito y violencia en camino a una utopia abolicionista del sistema penal Su resultado más cercano es una renovación más limitativa del derecho penal de garantias con base realista y sin apelar a la ficción del contrato ni a sus reformulaciones13 Zaffaroni parte da constatação do assustador nível de violência da operatividade das agências do sistema penal o que em suas palavras configura uma deslegitimação pelos próprios fatos tendo em vista que el número de muertes que causan sus agencias en forma directa sumando a las omisiones que encubre con su aparente capacidad de solución de conflictos y que ocultan fenómenos que superan en mucho las muertes que directamente provocan además de los deterioros físicos y psíquicos de muchísimas personas no solo criminalizadas sino también entre los operadores de sus propias agencias arroja un saldo letal incalificable14 O Realismo Marginal então é solidificado faticamente a partir desta crença constataçãoalucinação empírica que designa os procedimentos pelos quais os povos atrasados são enxertados compulsivamente em sistemas tecnologicamente mais evoluídos Ou seja significa também constatar que a região latinoamericana e seu controle social são produtos de uma transculturação protagonizada pelas revoluções mercantil e industrial Desse modo quando questionado acerca da relação entre América Latina e marginalização Zaffaroni firmemente responde que si alguna definición tiene América Latina ella coincide con la de marginalización Somos el resultado de un gran proceso de marginalización planetaria llevado a cabo por el avance histórico de la 11 Idem Ibidem p9 12 ZAFFARONI Em Busca das Penas Perdidas p123 13 ZAFFARONI Hacia un Realismo Jurídico Penal Marginal p15 14 Idem Ibidem p19 Cf ZAFFARONI Em Busca das Penas Perdidas pp124125 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 289 sociedad industrial15 O Realismo Marginal é outra perspectiva teórica elaborada a partir de outro ponto do poder16 que enxerga o horizonte de projeção da realidade penal vinculado a uma realidade social somente relegada com vistas a justificarlegitimar o que é irracionalizávelilegitimável isto é a violência do sistema penal 2 ViolênciA DiREito EStADo E hiStÓRiA como monumEntoS Ora isso significa que para além das possíveis e eventuais construções dogmáticas decorrentes do pensamento marginal há uma radicalização crítica que ataca os próprios fundamentos da edificação do pensamento ocidental Tal como aponta José Saramago ao afirmar dentro de nós há uma coisa que não tem nome essa coisa é o que somos17 é possível dizer que há algo que tem fundamentado essa condição de pensamento que é de difícil tato de difícil audição percepção mas que talvez seja uma cegueira uma cegueira branca clara resplandecente e esclarecedora como o logos Algo que não se consubstancia como civilizado em oposição ao que bárbaro representa mas que dá origem à própria possibilidade de crer que aquele importa numa evolução em relação a este em outros termos ao tachar de complicação obscura e de preferência de alienígena o pensamento que se aplica negativamente aos fatos bem como às formas de pensar dominantes e ao colocar assim um tabu sobre ele esse conceito mantém o espírito sob o domínio da mais profunda cegueira18 É nesse sentido que Walter Benjamin radicaliza na sétima Tese Sobre o Conceito de História a violência do logos ao afirmar que nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie19 Não parece à toa então que Giorgio Agamben baseiese nessas Teses para indo à raiz da sua questão assinalar o significado imediatamente biopolítico do estado de exceção como estrutura original em que o direito inclui em si o vivente por meio de sua própria suspensão20 ou seja o estado de exceção que não é uma prerrogativa da modernidade ou do estado moderno visto que está presente propriamente na lógica jurídica no fundamento mesmo desse pensamento como marca característica da alucinação racional do direito é a representação fática da violência do logos e da qual o logos é capaz Isso pode significar no mínimo que qualquer pretensão de evolução social e jurídica como desenvolvimento racional não pode fugir à metafísica genocida que representa pensamento ocidental moderno e as suas consequências hodiernas visto que a ideia mesma de evolução não pode furtarse à monumental alucinação de que o antes é sempre pior do que o depois 15 ELBERT Carlos Dir TESSIO Griselda BERROS Noemi coords Encuentro con las Penas Perdidas Santa Fe ed de la Universidad Nacional Del Litoral 1993 p72 16 ZAFFARONI Em Busca das Penas Perdidas p174 17 SARAMAGO José Ensaio Sobre a Cegueira SP Companhia das Letras 1995 p262 18 ADORNO Theodor W HORKHEIMER Max Dialética do Esclarecimento fragmentos filosóficos Trad Guido de Almeida RJ Jorge Zahar Ed 1985 p13 19 BENJAMIN Walter Teses Sobre o Conceito de História Em BENJAMIN Walter Obras Escolhidas volume 1 Magia e Técnica Arte e Política ensaios sobre literatura e história da cultura Trad Sérgio Rouanet 7ª Ed SP Brasiliense 1994 p225 20 AGAMBEN Giorgio Estado de Exceção Trad Iraci Poleti SP Boitempo 2004 p14 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 290 Parece que Agamben toca incisivamente nesse ponto não se trata de remeter o estado de exceção a seus limites temporal e especialmente definidos para reafirmar o primado de uma norma e de direitos que em última instância têm nele o próprio fundamento O retorno do estado de exceção efetivo em que vivemos ao estado de direito não é possível pois o que está em questão agora são os próprios conceitos de estado e de direito21 Esses dois grandes monumentos direito e estado assim como a própria história erguidos como celebração vitoriosa tal como a irônica expressão machadiana em Quincas Borba ao vencedor as batatas respeitam à catastrófica constatação benjaminiana segundo a qual todos os que até hoje venceram participaram do cortejo triunfal em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão22 Paradoxalmente o ofício de grande parte dos monumentos comuns é sem dúvida o de invocar uma lembrança ou chamar a atenção imprimindo aos sentimentos um rumo piedoso na crença de que eles são de alguma forma necessários e é nesse seu ofício principal que os monumentos vivem fracassando23 É inevitável que se apresentem solidificados fortes corretos na mesma medida em que não escapam à sua própria falácia afugentam precisamente aquilo que deveriam atrair Impossível dizer isto sim que nos passam despercebidos que nos escapam aos nossos sentidos é uma qualidade totalmente positiva que tende para o ato de violência24 Enquanto marca do progresso é sempre impossível dizer que os monumentos passam desapercebidos da mesma forma que seria kafkianamente risível esquecer que o precedente nesse caso já é agressivo25 que eles representam de qualquer maneira a empatia com o vencedor26 que o movimento de contar e articular a história significa não mais que a tentativa de apropriarse de uma imagem que relampeja para manter a metáfora benjaminiana cuja cadeia de acontecimentos não é outra coisa que uma catástrofe única Metáfora também utilizada por Machado de Assis em Memórias Póstumas de Brás Cubas quando narra o delírio que permitia a Brás Cubas contemplar a história do homem e da Terra e que dada a intensidade para descrevêla seria preciso fixar o relâmpago visto que a rapidez da marcha era tal que escapava a toda compreensão27 Diante desse delírio da origem como falar em estágios de desenvolvimento subjetivo individual ou estatal Como propor uma moral do discurso que não seja filha da sua 21 AGAMBEN Estado de Exceção p131 22 BENJAMIN Teses Sobre o Conceito de História p225 23 MUSIL Robert Monumentos Em MUSIL R O Melro e outros escritos de obra póstuma publicada em vida Trad Nicolino de Simone Neto SP Nova Alexandria 1996 p49 24 MUSIL Monumentos p49 25 MUSIL Monumentos p50 26 BENJAMIN Teses Sobre o Conceito de História p225 27 ASSIS Machado de Memórias Póstumas de Brás Cubas POA LPM 1997 pp28 e 29 Cito A história do homem e da Terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga enquanto o que eu ali via era a condensação vida de todos os tempos Para descrevêla seria preciso fixar um relâmpago Os séculos desfilavam num turbilhão e não obstante porque os olhos do delírio são outros eu via tudo o que passava diante de mim p28 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 291 mãe a própria violência Será que não soa nem um pouco alucinatório esse pensamento dialético que fundamenta todo o estagio o Estado e o Direito Será que não parece ser apenas um eterno passatempo para que as vozes emudecidas continuem caladas pelo venerado logos O que significa dividir a história da humanidade em estágios evolutivos senão edificar propriamente monumentos maiusculamente Históricos Como ainda dizer que isso não tem relação com as atrocidades cometidas pela negação das possibilidades outras que o pensamento Chega a ser risível chamar tudo isso de pensamento No mínimo tão risível quanto cogitar que a história seja mesmo a História contada e esfacelada Na quinta Tese Benjamin escreve que a verdadeira imagem do passado perpassa veloz O passado só se deixa fixar como imagem que relampeja irreversivelmente no momento em que é reconhecido Pois irrecuperável é cada imagem do presente que se dirige ao presente sem que esse presente se sinta visado por ela28 Musil no seu conto sobre os Monumentos parece dialogar com Benjamin se as pessoas não tivessem o espírito cego para os monumentos e fossem capazes de perceber o que ocorre ali no alto haveriam de sentir ao passar por eles o mesmo pavor que sentem ao passar pelos muros de um manicômio29 Ora parece que há uma inversão consubstanciada aqui nas palavras de Benjamin expressadas na segunda Tese não existem nas vozes que escutamos ecos das vozes que emudeceram30 Seria preciso ainda perguntar trabalhando com Agamben se a violência existe para além do desejo do direito de dominála A exceção não seria então como regra e violência puras filha do próprio logos esclarecidamente violento Os monumentos civilizatórios o direito o estado a história não são já eles mesmos fetiches violentos cuja construção emudece vozes que outrora ressoaram Não são como aqueles monumentos nos quais o general ou o príncipe apesar de montado sobre o cavalo e com a espada desembainhada já não provocam tremor à sua visão31 quando justamente ainda poderiam e deveriam provocálo 3 Logos o monumEnto BáRBARo Entre bárbaros e civilizados os monumentos pretendem sempre assinalar a reconciliação o momento em que o tempo é paralisado para que no lugar da multiplicidade se edifique o ponto estático da unidade o marco desde o qual a história é contada como história dos vencedores da lógica vencedora e autoveneradora Se é possível dizer que a violência assume propriamente a posição de uma categoria compreensivointerpretativa da realidade32 é porque toda a forma de pensamento ocidental está ancorada na pretensão de dominar a natureza e negar a diferença e o esclarecimento é a própria representação desse mito ou antes o 28 BENJAMIN Teses Sobre o Conceito de História p224 29 MUSIL Monumentos p51 30 BENJAMIN Teses Sobre o Conceito de História p223 31 Alusão expressa ao conto Monumentos de Musil 32 SOUZA Ricardo Timm de Três Teses Sobre a Violência Violência e Alteridade no Contexto Contemporâneo algumas considerações filosóficas Em SOUZA R T Em Torno à Diferença aventuras da alteridade na complexidade da cultura contemporânea RJ Lumen Juris 2007 p32 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 292 esclarecimento é o próprio mito Nas palavras de Adorno e Horkheimer o sistema visado pelo esclarecimento é a forma de conhecimento que lida melhor com os fatos e mais eficazmente apoia o sujeito na dominação da natureza Seu princípio é o da autoconservação33 para o qual é necessário que se aniquile quaisquer possibilidades críticas sugandoas por uma espécie de máquina letal kafkiana34 da dialética de forma que a maior das violências consiste em velar os vínculos profundos que qualquer ato violento tem com qualquer outro ato violento35 Ora só uma pretensão logicamente narcísica pode pretender se reconciliar com a natureza Nem a civilização tampouco a barbárie podem indicála pois fundadas naquilo que é justamente um dos contrários do que se lhe apresenta isto é a multiplicidade Quero dizer a negação do múltiplo em nome do colossal movimento de agregação é a forma alucinatória de funcionamento do esclarecimento que opera inconscientemente pela necessidade de negar realmente as diferenças esquematismo do entendimento puro Assim se chama o funcionamento inconsciente do mecanismo intelectual que já estrutura a percepção em correspondência com o entendimento36 A reconstrução da lógica pelo próprio logos seria algo muito diferente dessa correspondência de que falam Adorno e Horkheimer O pensamento vergonhoso de si mesmo continua acontecendo como se a sua autojubilação bastasse para reconstruir ele mesmo o pensamento Será que é à toa o questionamento sobre quem vendou a justiça37 Aliás por que será que em algum momento alguém vendou a justiça Usando Saramago mais uma vez porque será que os santos estão com uma venda nos olhos Porque será que a venda é branca Ora quem é o louco38 que vendou a justiça Será que ele mesmo não foi Justiçado após esse ato bárbaro Que belo monumento não representa a reconstrução da Justiça pelo pensamento genocida que a todo o momento trabalha na exceção da justiça para utilizar novamente Agamben Que belo monumento o Estado Democrático de Direito entoado como se modelo fosse de bondade beleza e justeza Talvez seja realmente uma pena que os monumentos não possuam suas formas próprias caricaturas Como a caricatura circense do pensamento elaborada por Franz Kafka no conto Na Galeria39 escrito no início do século dezenove Sugada pelo movimento agregador dos círculos que a amazona deve fazer ao redor do picadeiro diante de um público infatigável ela mesma se confunde com o circo que representa e do qual não pode fugir tampouco extrapolar porque venerados o circo e o seu diretor representam a própria legitimação e daqueles que riem sem notar violência assim com daquele que chora sem o saber em meio às fanfarras da orquestra sempre pronta a se ajustar às situações mais estranhas O monumento do pensamento como um circo fechase em 33 ADORNO HORKHEIMER Dialética do Esclarecimento p72 34 Alusão expressão à novela Na Colônia Penal de Franz Kafka e à máquina de tortura que ali é apresentada narrativamente como um mecanismo já esfacelado de compreensão do mundo 35 SOUZA Três Teses Sobre a Violência p32 36 ADORNO HORKHEIMER Dialética do Esclarecimento p72 37 MESSUTI Ana Desconstruyendo la Imagen de la Justicia In VÁRIOS AUTORES Escritos em Homenagem a Alberto Silva Franco SP RT 2003 38 MESSUTI Op Cit p111 39 KAFKA Franz Na Galeria Em KAFKA F Um Médico Rural pequenas narrativas Trad Modesto Carone SP Cia das Letras 1999 pp22 e23 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 293 sua própria mania representacional de maneira a legitimar eternamente suas próprias manifestações por mais bizarras que sejam O fetiche desse movimento já é ele mesmo a expressão das fanfarronices que legitima autolegitimação autoveneração autojubilação Circularidade do pensamento e da violência em que também se consubstanciam monumentos tais como estado direito e logos Então por que se erguem monumentos aos grandes homens se as coisas são como são40 é o que pergunta Musil ao final do seu conto Os sacros representantes do pensamento jurídicopenal diriam talvez que apesar de tudo são necessários são vitais de suma importância para a deusa Justiça Assim como eram os soberanos para seus súditos e assim como é a soberania para a ordem mundial ou para a paz perpétua utilizando a metáfora kantiana Já Agamben41 responderia talvez afirmando que assim como os monumentos jurídicos tratase apenas de uma máscara irresistível uma fantasia da real violência que miticamente se pretende exercer e controlar Razão identificante que é já o monumento do logos Do qual como boa filha da civilização moderna para usar a imagem de Adorno e Horkheimer a racionalização criminológica não pôde furtarse paralisando ao lado na barra da saia pelo temor da verdade42 Por que é mesmo que se erguem monumentos Zaffaroni argumentaria talvez que a ficção da realização da modernidade esquece o quadro real de genocídio que representa poder punitivo principalmente na realidade marginal da América Latina O poder punitivo é pelo menos hoje um produto da razão instrumental que se difunde e se amplia43 em outras palavras um monumento que se assemelha à guerra44 e que encobre com seu universal fulcro esclarecedor a real violência do seu exercício iluminado REfERênciAS ADORNO Theodor W HORKHEIMER Max Dialética do Esclarecimento fragmentos filosóficos Trad Guido de Almeida RJ Jorge Zahar Ed 1985 AGAMBEN Giorgio Estado de Exceção Trad Iraci Poleti SP Boitempo 2004 ASSIS Machado de Memórias Póstumas de Brás Cubas POA LPM 1997 BECKER Howard Métodos de Pesquisa em Ciências Sociais 3ª ed Trad Marco Estevão e Renato Aguiar SP Editora Hucitec 1997 BENJAMIN Walter Teses Sobre o Conceito de História Em BENJAMIN Walter Obras Escolhidas volume 1 Magia e Técnica Arte e Política ensaios sobre literatura e história da cultura Trad Sérgio Rouanet 7ª Ed SP Brasiliense 1994 CARVALHO Salo de A Ferida Narcísica do Direito Penal primeiras observações sobre as disfunções do controle penal na sociedade contemporânea In GAUER Ruth org A Qualidade do Tempo Para Além das Aparências Históricas RJ Lumen Juris 2004 40 MUSIL Monumentos p51 41 AGAMBEN Estado de Exceção Conferir cap6 42 ADORNO HORKHEIMER Dialética do Esclarecimento p13 43 ZAFFARONI BATTISTA Direito Penal Brasileiro p644 44 Interessante atentar à construção que Zaffaroni faz desde a leitura do jurista brasileiro Tobias Barreto acerca da aproximação entre poder punitivo e guerra Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 294 ELBERT Carlos Dir TESSIO Griselda BERROS Noemi coords Encuentro con las Penas Perdidas Santa Fe ed de la Universidad Nacional Del Litoral 1993 KAFKA Franz Na Galeria In KAFKA F Um Médico Rural pequenas narrativas Trad Modesto Carone SP Cia das Letras 1999 MESSUTI Ana Desconstryuendo la Imagen de la Justicia In SUANNES A et al Escritos em Homenagem a Alberto Silva Franco SP RT 2003 MORIN Edgar A Cabeça BemFeita repensar a reforma reformar o pensamento Trad Eloá Jacobina RJ Bertrand Brasil 2000 Introdução ao Pensamento Complexo Trad Eliane Lisboa Porto Alegre Sulina 2005 MUSIL Robert Monumentos In MUSIL R O Melro e outros escritos de obra póstuma publicada em vida Trad Nicolino de Simone Neto SP Nova Alexandria 1996 p49 PORTUGAL Carta da Transdisciplinaridade Adotada no I Congresso Mundial da Transdisciplinaridade Convento de Arrábida Portugal 2 a 6 de novembro de 1994 SARAMAGO José Ensaio sobre a Cegueira SP Companhia das Letras 1995 SOUZA Ricardo Timm de Ainda além do Medo filosofia e antropologia do preconceito POA Dacasa 2002 SOUZA Ricardo Timm de Três Teses Sobre a Violência Violência e Alteridade no Contexto Contemporâneo algumas considerações filosóficas In SOUZA R T Em Torno à Diferença aventuras da alteridade na complexidade da cultura contemporânea RJ Lumen Juris 2007 ZAFFARONI Eugenio Raúl Em Busca das Penas Perdidas a perda da legitimidade do sistema penal Trad Vânia Pedrosa e Almir Conceição RJ Revan 1991 Hacia un Realismo Jurídico Penal Marginal Caracas Monte Ávila Latinoamericana Editores 1993 ZAFFARONI Eugenio Raúl et al Direito Penal Brasileiro RJ Revan 2ed 2003 Direito e Democracia v10 n2 p295310 juldez 2009 Canoas Discurso poder e ética na decisão penal1 Gabriel Antinolfi Divan RESumo O presente artigo aborda a necessidade constitucional de controle das manifestações jurisdicionais decisórias na esfera penal no que diz respeito ao linguajar por elas adotado Há uma inegável confluência de fatores sobretudo simbólicos que fazem com que uma decisão penal possua um caráter constitutivo influente perturbador e mesmo criador no que diz para com a subjetividade do réu jurisdicionado Assim o trato ético deve prevalecer no discurso adotado inclusive contando com previsão legal a ser criada nesse sentido para que não seja infligida ao acusado uma pena que ultrapasse os ditames legais através de uma manifestação judicial atécnica vulgarmente passional e exageradamente estigmatizante Palavraschave Decisão penal Discurso judicial Ética Reforma processual Discourse power and ethics on criminal judgments ABStRAct The current paper approaches the constitutional necessity of control the language used in judicial resolutions on criminal sphere There are a lot of grounds mostly symbolic which give a constitutive an influential a disturbing and even a creation character to criminal judgments when we are thinking about defendant subjectivity Considering that this paper defends a legal foresights reaction to guarantee an ethical treatment in this judicial discourse This idea intents to avoid a punishment based on a nontechnical passionate and stigmatizing judicial resolution Keywords Criminal sentencing Judgment discourse Ethics Criminal procedures reform Um homem dos vinhedos falou em agonia ao ouvido de Marcela Antes de morrer reveloulhe seu segredo A uva sussurrou é feita de vinho Marcela PérezSilva me contou isso e eu pensei se a uva é feita de vinho talvez nós sejamos as palavras que contam o que somos Eduardo Galeano A uva e o vinho2 Gabriel Antinolfi Divan é professor de Processo Penal e Criminologia da Universidade de Passo Fundo RS Mestre em Ciências Criminais e Especialista em Ciências Penais pela PUCRS Advogado Email gabrimailyahoocom 1 O presente artigo é uma atualização e ampliação do paper Decisão Penal discurso e ética sobre poderes e responsabilidades publicado originalmente em Justiça do Direito Universidade de Passo Fundo v21 p122138 2009 e é fruto de pesquisas e mesas de discussão promovidas pelo Instituto de Criminologia e Alteridade ICA httpwwwcriminologiaealteridadecom e de intenso debate com os membros do Grupo de Estudos e Pesquisas Criminais GEPEC httpwwwportalgepecorgbr do Estado de Goiás 2 In O Livro dos Abraços Trad Eric Nepumoceno Porto Alegre LPM Editores 2002 9ed p16 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 296 1 A DEciSão juDiciAl PEnAl sobrEtudo como luGAR DA tEnSão O exercício da jurisdição penal se apresenta sempre imantado de um caráter procedimental particularmente tenso e de um envolvimento subjetivo incomparável dentre o âmbito das práticas judiciárias Aqui falamos tanto do desespero presumível que pode acometer o acusado submetido ao jugo estatal quanto daquele traiçoeiro que pode capturar o próprio julgador3 É o que pode vir a fazer com que o rigor técnico e a suposta vocação para a proporcionalidade decisória se transformem mais do que em outras áreas e momentos de exercício de jurisdição subrepticiamente em mero apelo caótico do cidadão comum que ali veste a toga e que lhe fala ao ouvido sob as vestes inconscientes ideológicas passionais ou sob o baixo espectro de um senso comum que inesperadamente ganha eco no momento da decisão4 Do mesmo modo ao estudarmos de maneira mais aprofundada a manifestação jurisdicional decisória no âmbito penal não é preciso muito para perceber que o objeto em questão o conteúdo decisório e suas consequências puramente técnicoprocessuais dispostas sistematicamente em nosso corpo legislativo convive lado a lado com elementos agregados plenamente alheios à lógica jurídica que vão sempre acoplados a qualquer prática estatal em que estejam em jogo ordem controle restrição em vários níveis e principalmente necessidade de sujeição a um comando A princípio é impossível conceber a existência de um mecanismo essencialmente dogmático que cuide de prever conter ou disciplinar à totalidade os dramas inerentes ao exercício da manifestação jurisdicional por excelência além da carga de desgaste e potencial sofrimento latente que se choca com todos envolvidos mesmo que receptores mediatos da declaração prolatada Sumamente quanto ao efeito primordial de uma decisão condenatória que conduz o receptor este imediato réu à capitulação de seus direitos eou à perda temporária do maior deles a liberdade Com ela embora sem previsão expressa legal e quem opera nos meios forenses e conhece a realidade prisional hodierna sabe muito bem resta na prática igualmente confiscada uma série extensa de direitos e bens juridicamente em tese tutelados pelo Estado que vão desde a honra em um sentido amplo até as efetivas possibilidades de reinserção social e mesmo a integridade sexual do apenado em muitos casos Concebemos pois a manifestação jurisdicional decisória em matéria penal como um terreno inóspito dados entre outras coisas a a insegurança generalizada 3 Como em outra oportunidade pudemos estudar DIVAN Gabriel Antinolfi Decisão Judicial nos Crimes Sexuais O julgador e o réu interior Porto Alegre Livraria do Advogado 2009 especialmente o Capítulo III 4 A análise do problema do senso comum da experiência e da ciência no raciocínio do juiz pode partir de uma proposição ao mesmo tempo surpreendente e banal a saber a de eu em grande parte o raciocínio do juiz não é regido por normas nem determinado por critérios ou fatores de caráter jurídico TARUFFO Michele Senso comum Experiência e Ciência no raciocínio do juiz Trad Cândido Rangel Dinamarco Curitiba IBEJ 2001 p7 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 297 intrínseca à mesma que assola quaisquer potenciais envolvidos com o caso penal em debate sobretudo e de maneira visceral o próprio julgador e b a suposição para nós evidência de que ela representa muito mais do que um mero comando que põe fim a um conflito jurisdicionalizado e penalmente relevante carregando sempre consigo uma carga elementar de efeitos nãolegalmente prescritos tão nefastos quanto o mais insalubre dos cárceres 2 DuAS REAliDADES A existência de uma eficácia corpórea e bastante táctil dos preceitos e determinações da decisão penal seus efeitos na esfera eminentemente jurídica e administrativa de fatores envolvidos possibilidade de exercício punitivotutelar pelo Estado ou determinações sobre o status libertatis de um modo geral do acusado fundamentalmente caminha junto a um feixe de poderio puramente imagético e sua força simbólica adjacente principalmente representada pelo sentido prescritivo de personalidade e de modus vivendi adequados que as normas penais adquirem quando prolatadas pelo julgador Geralmente as abordagens do tema aqui sugerido são carentes de algum real efeito prático uma vez que terminam ou perdidas entre elucubrações que se caracterizam ou por estarem localizadas exclusivamente no campo da crítica e do pleito eterno de opções de lege ferenda ou por um falso pragmatismo que não passa de uma análise pobre e epidermicamente dogmática do problema contribuindo para o nocivo apartheid entre um pensamento doutrinário de cunho crítico e a praxe do cotidiano dos tribunais O que propomos nesse instante é um exercício reflexivo sobre a faceta mundana da manifestação jurisdicional decisória sem dividir os efeitos eminentemente jurídicos pertencentes à esfera sistemática da ordem jurídica de uma decisão penal daqueles identificados pelo estudo crítico como resíduo simbólico metajurídico geralmente estigmatizantes da mesma pensamos que o núcleo da questão se não habita inteiramente em muito pertence ao discurso que corporifica a manifestação do Magistrado sendo daí a fonte de onde pode brotar um princípio de amortização para o quadro Afinal se é fato lamentável que a consciência diuturna de um senso comum teórico dos juristas5 é deficitária quanto à necessidade de um policiamento tal um despir constante da veste teatralmitológica da prática judiciária para enxergar os conflitos de carne e osso que ali estão submetidos e fundamentalmente as figuras humanas por traz dos atores de falas demarcadas em todas suas dimensões6 também é fato que a 5 WARAT Luis Alberto Introdução Geral ao Direito II A epistemologia jurídica da Modernidade Porto Alegre Sérgio Fabris 1995Reimpressão 2002 pp 9899 6 Come ogni rito il processo appartiene a una sfera artificiale separata dal flusso microstorico quotidiano Max Weber discrive queste discontinuitá com laggetivo ausseralltäglich anzi la genera gli spettatori se ne accorgono avengono cosi fuori dal solito mondo Ma è illusione scenica parti giudice testimoni sono persone di carne ed Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 298 própria existência da função jurisdicional por si retroalimenta de maneira inescapável a força do símbolo Críticos militantes e combativos de algumas chagas evidentes da dinâmica punitiva estatal ou não não podemos deixar de admitir o fato de que as normas penais existem de que sua aplicação realmente ocorre ainda que na base de incidência sobre micropartículas sociais desprezada para o contexto exclusivo desse artigo uma explicação mais detalhada acerca dos fenômenos de seletividade denunciados especialmente pela crítica criminológica7 Não podemos também deixar de admitir que o processo de forma particularizada é real e tem alguma eficácia não se discutindo nessa sintaxe ventilada se o termo eficácia vai conjecturado dentro dos propósitos constitucionais que lhe dão guarida ou não E mais que sua voz gutural ecoa em uma decisão que escorada na carga cogente dos mandamentos estatais do Estado se faz escutar por um ato que muda o mundo no instante em que diz o direito Se algo precisa ser modificado a realidade que a nós é oferecida no cotidiano é o mais evidente ponto de partida e meio onde podemos fazer contato e operar faticamente Acompanhamos na esteira de Duclerc o pensamento de que a mera desconstrução da lógica da prestação jurisdicionalpenal estatal através da denúncia de suas misérias contorna de modo fictício o problema paulatinamente subvertido ou não pela crítica científica pela superveniência de novas lógicas legislativas e pelo próprio tempo que a tudo corrói o modelo penal de resolução de conflitos delitivos do qual dispomos segue vigente e é preciso não apenas ideias sobre como virálo do avesso mas principalmente estratégias de convivência com o mesmo8 3 PoDER E DiScuRSo Nossa proposta pensa um modelo de reforma emergencial de alguns pontos nevrálgicos na estrutura processual penal a partir de uma revigoração da esfera de atuação daquele que dentre todos os operadores jurídicos é ao nosso ver o personagem que repousa sobre o elo mais crítico de toda a cadeia o julgador Mais ainda o seu discurso ossa legate al tessuto profano locale carichi delle rispettive storie private le toghe equivalenti a maschere non aboliscono lo spaziotempo profani CORDERO Franco Procedura Penale Milano Giufré 2000 5ed p152 7 Na literatura criminológica sulamericana especialmente ninguém discorre com mais autoridade sobre a temática do que ZAFFARONI Eugenio Raul para onde remetemos o leitor In Criminología Aproximación desde un margen Bogotá Editorial Temis 2003 Tercera reimpressión e de forma mais incisiva Em busca das penas perdidas a perda de legitimidade do sistema penal Trad Vania Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição Rio de Janeiro Revan 1991 8 De pouco serve todavia simplesmente desconstruir a teoria da jurisdição denunciando fragilidades pelo menos até que se modifique a atual configuração das relações de hegemonia nas sociedades ocidentais capitalistas e possa surgir assim algum modelo realmente democrático de solução de conflitos penais DUCLERC Elmir Direito Processual Penal Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 p194 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 299 Afinal como frisa pragmaticamente a incontornável obra carneluttiana O juízo do juiz não o das partes facit ius o que quer dizer vincula ou seja determina através do mecanismo de direito a conduta alheia Depois que o acusador conclui que o imputado é culpado e o defensor que ele é inocente o mundo segue como antes mas quando pelo contrário uma ou outra coisa é o juiz quem diz o mundo muda porque entre outras coisas o imputado se era livre é capturado ou viceversa se estava detido é posto em liberdade9 Tomamos como ponto de partida a hipótese de que há um princípio de mescla quase inevitável ocorrida no terreno do imaginário de quem exerce a função jurisdicional Ela atenta para uma assustadora na mesma medida em que natural confusão entre a esfera de atuação eminentemente jurídica e um catalisador típico do exercício de um local de fala poderoso e como tal repleto de armadilhas Uma verdadeira possessão pelo exercício funcional não raro distorce a concepção que o próprio julgador tem de seu papel e mesmo a consciência leve quanto à distorção por vezes vai suplantada por uma acomodação conformada10 A suposição acima lançada ganha contornos explosivos quando ainda em sede de hipótese vai unida à aliança incorruptível representada pelo binômio saberpoder Tal como fora investigado por Foucault o binômio e seus meandros discursivos em torno das verdades possui um fecundo lastro de implicação no estudo jurídico na medida em que é molde no qual muito perfeitamente se encaixa a prática jurisdicional decisória Afinal desde a capitulação fática típica operada em contornos rebuscados pela atividade das polícias repressiva e judiciária passando pelo corpo da denúncia ou da manifestação acusatória legada pelo ofendido até o dispositivo decisório exarado por Magistrado o âmbito processualpenal do Estado lida com classificações Isto é com definições que bailam entre a disposição fria da terminologia legal e os elementos escolhidos para representar um dado caso fazendo com que haja adequação entre discursoopção enquadramento legal ou não e conduta do acusado Não se pode ignorar solenemente a tese de que quando se trata de interpretação textual e de possível aferição para classificar uma conduta como incursa em ou em outro ou em nenhum tipo legal nunca há pura definição em primeira mão mas sempre redefinição dos caracteres 9 CARNELUTTI Francesco Lições sobre o Processo Penal Volume 4 Trad Francisco José Galvão Bruno Campinas Bookseller 2004 p66 10 Na relação com a comunidade o juiz representa no inconsciente das pessoas a figura do pai Evidente que o juiz enquanto regra aceitaassume esta figura Ele é aquele que pune repreende autoriza o casamento determina a separação conjugal distribui os bens A comunidade quando não consegue resolver seus problemas busca socorro na figura do paijulgador A relação familiar é tão forte que há até controle da sexualidade do juiz pela própria sociedade além é óbvio de controles menores na maneira de vestir de se portar em relação aos seus amigos É algo forte presente marcante CARVALHO Amilton Bueno de O Juiz e a Jurisprudência um desabafo crítico In Garantias Constitucionais e Processo Penal BONATO Gilson Org Rio de Janeiro Lumen Juris 2002 p9 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 300 A escolha de um ou outro viés classificatório de uma ou outra ênfase de um grupo de características dadas ou outro pode alterar toda a definição de um termo que ao cabo daquele caso será decantada e assim implica em um leque de opções que no contexto jurídicopenal escancara perigosamente as portas para uma espécie aberta de conceito e para uma fuga frente à taxatividade equivocadamente presumida dos termos legais11 Não se pode olvidar da responsabilidade tremenda que repousa sobre o prolator da decisão jurídicopenal por entre outras tantas coisas o escândalo semântico costumeiramente imperceptível onde por vezes penetra a falha nãoidentificável e mais difícil de ser combatida um argumento decisório que não é nem de mérito nem da superfície dos conceitos postos à mesa mas sim das profundezas da classificação que implica nas redefinições colocadas Nada mais pertinente no momento que a opinião de Taruffo para quem O verdadeiro problema portanto não é o de demonstrar ou negar que o juiz vá além do direito Que isso acontece é óbvio e além do mais o direito não pode ser concebido como algo autônomo e destacado da realidade social e da cultura em cujo seio o juiz atua Na realidade o verdadeiro problema consiste em compreender o que acontece quando o raciocínio do juiz vai além dos confins daquilo que convencionalmente se entende por direito e em individualizar as garantias de racionalidade e razoabilidade de confiabilidade de aceitabilidade e de controlabilidade dos numerosos aspectos da decisão judiciária que verdadeiramente não são nem direta nem indiretamente controlados ou determinados pelo direito12 Afinal se nos dizeres de Foucault As práticas discursivas não são puramente modos de fabricação de discursos Ganham corpo em conjuntos técnicos em instituições em esquemas de comportamento em tipos de transmissão e de difusão em formas pedagógicas que ao mesmo tempo as impõem e as mantêm13 11 Mas o caráter impreciso das expressões legais nem sempre é manifesto Muitas vezes seus destinatários não percebem as mudanças de sentido propostas pelo emissor Deste modo os defeitos endêmicos das palavras da lei cumprem importante função retórica em relação às práticas tribunalícias Constituem algumas linhas argumentativas utilizadas pelos juízes para alterar os critérios decisórios predominantes sob a aparência de estarem aplicando conteúdos fixados pelo legislador Generalizando é possível afirmar ao se estabelecer que A e não B é característica definitória de um termo contido na norma estáse alterando as consequências jurídicas da mesma Noutra perspectiva constatase que nas definições jurídicas toda característica definitória é também uma característica decisória isto é forma parte da decisão WARAT Luis Alberto Introdução Geral ao Direito I Interpretação da Lei Temas para uma reformulação Porto Alegre Sergio Antonio Fabris Editor 1994 pp3839 12 TARUFFO op cit p8 13 FOUCAULT Michel A vontade de saber In Resumo dos Cursos do Collège de France 19701982 Trad Andrea Daher Rio de Janeiro Jorge Zahar 1997 p12 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 301 maior ainda o cuidado fiscalizador que temos de ter em relação ao discurso exercido em meio à atividade jurisdicional decisória A palavra do julgador não precisa fazer esforço algum para se manter por si só uma vez que o exercício da jurisdicionalidade é conditio sine qua non constitucional no Estado de Direito sob a égide do qual vivemos E se sua função precípua é justamente se impor eis que age substitutivamente sobre a vontade dos jurisdicionados a inevitabilidade de seu poder deve ser filtrada de forma razoável justa democrática tributária da principiologia que serve de pilar à vida social sobretudo quanto ao respeito inegociável à dignidade da pessoa humana e principalmente ética 4 PoDER E RESPonSABiliDADE Há que se controlar o bom uso da espada que divide o mundo em antes e depois empunhada por esse julgador mitologicamente apreendido que Carnelutti no entanto tratou de demonstrar que é bem real Como frisou o maestro italiano a opinião do julgador não só faz aderir como gera o direito e assim dá maior vazão ao que FOUCAULT aqui também citado diria sobre a produção da realidade por uma discursividade que jamais é meramente descritiva Seria alienado e tolo de modo alarmista dizer que toda a violência que toma cor em meio ao texto de uma decisão judicial é inteiramente produzida no ventre de seu próprio discurso e que a mesma quando vem à luz nunca é reflexo da realidade já posta A decisão não pinta os fatos integralmente mas sim os colore Os fatos postos à pauta da decisão judicial ou aqueles que longinquamente inspiraram os fatos postos em regra ocorreram e são portadores de algumas peculiaridades que o discurso não vai criar simplesmente nem vai vergar ou alterar Seria porém exageradamente otimista qualquer diagnóstico que não considere digna de valor a propositura de que o discurso jurídicopenal manifestado na decisão judicial em alguns casos implementa suplementa e complementa a realidade dada e constitui sobre o sujeitoacusado uma nova realidade que vai operar posteriormente à chancela do trânsito em julgado do decisum A sabedoria da corrente sociológica do interacionismo simbólico14 e os estudos foucaultianos sobre constituição de uma própria essência do sujeito a partir dos aparelhos e mecanismos de poder sobre ele atuantes nascentes nas quais toda a vertente crítica da Criminologia pósAnos 60 bebeu teve como principal mérito justamente esse o de demonstrar que a questão do Direito Penal do Processo Penal em última análise deve necessariamente levar em consideração a quota de realidade que é produzida em meio ao discurso oficial e a ela deve exclusivamente ser creditada O discurso principalmente o discurso jurisdicionaldecisório pois é dispositivo 14 Teóricos como Goffman estavam profundamente atentos ao modo como o eu é apresentado em diferentes situações sociais e como os conflitos entre estes diferentes papéis sociais são negociados Em um nível mais macrossociológico Parsons estudou o ajuste ou complementaridade entre o eu e o sistema social HALL Stuart A Identidade cultural na pósmodernidade Trad Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro Rio de Janeiro DPA 2001 p35 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 302 que possui eficácia nas relações de poder verificadas e em sua relação com a verdade modificaa e a produz podendo ao mesmo tempo ocultála15 O momento relacional em que se verifica o poder oriundo do discurso e sua atuação tem o condão de em determinados níveis e em determinados casos constituir um grau tão espesso de realidade que torna pouco importante a realidade primeira dos fatos anterior ao seu agir Exemplo mais típico o poder discursivo que emerge com a decisão judicial dentro do universo que gravita na órbita do Estado Democrático de Direito a decisão judicial penal muda de fato a realidade jurídica do indivíduo e com ela geralmente de forma drástica a situação de seus direitos pouco importando ao final se a nova realidade constituída tem legitimidade de ser ou não ao final da ciranda processual quantos culpados não se livram soltos e mais grave quantos inocentes não amargam punição injusta nos nossos cárceres Na verdade os fatos objetivos não são um reles mito bobo fruto de uma imaginação inteiramente falsaria Admitir isso como premissa é ser engolfado por engodos metodológicos new age sem caráter nenhum de confiabilidade Porém o pior dos cegos é o que não quer enxergar e de nada adianta trabalharmos única e exclusivamente com elementos exclusivos de apreensão fática como se eles fossem sempre pétreos e como se a verdade fosse um mero dado à disposição Como já sabemos há muito a verdade real é epistemologicamente inapreensível em sua totalidade e qualquer tentativa humana recognitiva de qualquer coisa vem sempre em golfadas mnemônicas batizadas com um ou vários quês de tempero emotivo imaginativo afetivo e ideológico ainda que imperceptível que o diga Damásio e seu famoso trabalho16 Por isso somos obrigados a aceitar entre outras coisas que a verdade ou uma verdade nunca vai nos aparecer nua e integral Devemos partir para o raciocínio e a ponderação sobre os elementos que vão sempre atuar para delineála ou mesmo distorcêla completamente em alguns casos patológicos Assumimos pois que não existe verdade pelo menos não verdade com força de implemento fora do poder saberdiscurso que a constitui e lhe apara arestas Não existe verdade enquanto valor maior ou místico A verdade é construída e não atingida É por vezes imposta e não descoberta ou revelada O discurso técnicocientífico jurídico principalmente e seus limites e possibilidades é peça de altíssima tensão na medida em que é não raro o artesão modelador da própria ou de alguma verdade 15 TESHAINER Marcus Psicanálise e Biopolítica Contribuição para a ética e a política em Michel Foucault Porto Alegre Zouk 2006 p47 16 Os níveis mais baixos do edifício neurológico da razão são os mesmos que regulam o processamento das emoções e dos sentimentos e ainda as funções do corpo necessárias para a sobrevivência do organismo Por sua vez esses níveis mais baixos mantêm relações diretas e mútuas com praticamente todos os órgãos do corpo colocandoo assim diretamente na cadeia de operações que dá origem aos desempenhos de mais alto nível da razão da tomada de decisão e por extensão do comportamento social e da capacidade criadora Todos esses aspectos emoção sentimento e regulação biológica desempenham um papel na razão humana As ordens de nível inferior do nosso organismo fazem parte do mesmo circuito que assegura o nível superior da razão DAMÁSIO António R O Erro de Descartes Emoção razão e o cérebro humano Trad Dora Vicente e Georgina Segurado São Paulo Companhia das Letras 1996 p13 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 303 O importante creio é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder não é não obstante um mito de que seria necessário esclarecer a história e as funções a recompensa dos espíritos livres o filho das longas solidões o privilégio daqueles que souberam se libertar A verdade é deste mundo ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder Cada sociedade tem o seu regime de verdade sua política geral de verdade isto é os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros17 Por isso nossa preocupação no mister reside basicamente em exemplos de manifestações judiciais manifestações jurisdicionais decisórias em todas instâncias que parecem não atentar para o índice de construção da realidade da discursividade que uma manifestação como a decisão penal possui Nossa preocupação é mais especificamente com a por vezes irrestrita ausência de maiores filtros éticos verificada em certos textos decisórios na seara criminal onde comumente se identifica um ao nosso ver preocupante fenômeno de transmutação do julgador de agente estribado no ofício constitucional de prover o Estado da chancela jurisdicional e de ser garante da aplicação da Lei Maior em todas suas dimensões18 passa a ser o justiceiro19 um vingativo imponderado representante de anseios midiáticos e pautado por uma agenda de suprir o gosto de sangue que o amedrontado corpo social por vezes deixa à mostra Isso constitui tudo o que não se espera em se tratando de um operador jurídico estatal supostamente empenhado em ser fiador de uma prestação jurisdicional que sirva para gerir os conflitos sociais de forma racional e organizada sistemática e justa na promoção irrefreável do bem comum caracterespadrão de um conceito doutrinário de Jurisdição que de fato no Brasil tem soado como pilhéria20 Nos dizeres de Lopes Jr esse modelo falho de julgador acima descrito representa para o due process e para tudo o que esse princípio ostenta em termos democráticos um perigo tão assombroso quanto o das ditas atrocidades cometidas pelos réus submetidos ao seu julgamento esse Magistrado é aquele que incorpora o discurso de fiscal sanitarista da sociedade sem freios ou limitações e municiado pela violência autorizada que seu lugar de fala ostenta crê em si mesmo enquanto 17 FOUCAULT Michel Verdade e Poder In Microfísica do Poder Trad Roberto Machado Rio de Janeiro Graal 2004 20ed p12 18 Sobre a função de defesa ostensiva dos preceitos constitucionais exercida pelo Magistrado inclusive por um juízo de controle difuso descriminalizador manifestado na própria decisão indispensável conferir CARVALHO Salo de A sentença criminal como instrumento de descriminalização o comprometimento ético do operador do direito na efetivação da Constituição In Revista da Ajuris Ano XXXIII n102 Porto Alegre AJURIS jun 2006 pp327348 19 MORAIS DA ROSA Alexandre O Processo Penal como Procedimento em Contraditório Diálogo com Elio Fazzalari In Novos Estudos Jurídicos V11 n2 Itajaí Univali Editora 2006 p223 20 DUCLERC op cit p193 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 304 uma espécie de salvador da pátria solapando a necessidade de um devido processo e todas as exigências a ele atinentes e acreditando piamente que à sua discursividade não se pode opor barreiras21 5 A EfEtiVAção DA rEsponsabiLidadE PRoPoStAS De nada servem ao Estado Democrático Constitucional de Direito decisões em matéria penal que fujam ao tecnicismo necessário e à ponderação proporcional recomendável e passem a tecer elucubrações fantásticas que demonstram que a visão que o Magistrado por vezes tem de si mesmo e de sua função é absolutamente perturbada e perturbadora Desde decisões que tecem profundas considerações moralistas inteiramente descabidas frente à questão posta invertendo diametralmente o enfrentamento necessário da questão passando a punir a vítima de abuso sexual dado seu desavergonhamento como se a suposta promiscuidade fosse autorização tácita para a pessoa sofrer quaisquer tipo de violência erótica sem poder reclamar como no memorável Acórdão do bacanal22 passando por julgados que fixam e confirmam estereótipos baixos aceitando passivamente probabilidades mesmo as altas como se fossem regras gerais vinculantes23 e como se jamais pudesse haver dignidade em meios sociais pouco saudáveis configurandose a exceção à regra tal uma surpresa digna de figurar em um zoológico vemos uma série de inobservâncias de alguns cuidados no trato das palavras que consideramos importantes demais para passarem sem o devido prestígio Sem falar nas típicas decisões judiciais que espelham e deixam emergir um não só um apaixonado sentimento de vingança como um perigoso e desaconselhado exercício de futurologia a mescla perfeita para não simplesmente condenar como 21 Esse juiz representa uma das maiores ameaças ao processo penal e à própria administração da justiça pois é presa fácil dos juízos apriorísticos de inverossimilitude das teses defensivas é adepto da banalização das prisões cautelares da eficiência antigarantista do processo penal dos poderes investigatóriosinstrutórios do juiz do atropelo de direitos e garantias fundamentais especialmente daquela tal presunção de inocência da relativização das nulidades pro societate é adorador do rótulo crime hediondo pois a partir dele pode tomar as mais duras decisões sem qualquer esforço discursivo ou mesmo fundamentação introjeta com facilidade os discursos de combate ao crime como paleopositivista acredita no dogma da completude do sistema jurídico não sentindo o menor constrangimento em dizer que algo é injusto mas é a lei e como tal não lhe cabe questionar sentese à vontade no manejo dos conceitos vagos imprecisos e indeterminados do estilo prisão para garantia da ordem pública homem médio crimes de perigo abstrato etc pois lhe permitem ampla manipulação etc LOPES JR Aury Introdução Crítica ao Processo Penal Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional Rio de Janeiro Lumen Juris 2006 pp 8182 22 BRASIL Tribunal de Justiça do Estado de Goiás Acórdão em Apelação Criminal N 252202213 200400100163 Relator Des Paulo Teles Goiânia 29 de Junho de 2004 23 A presunção de violência como é aceita hoje não é tida como absoluta pois cede diante de prova de que a vítima no caso concreto e não em considerações genéricas levava vida dissoluta desregrada era ela corrompida e afeita aos prazeres do sexo ou seja já experiente Mas não é esta a realidade dos autos Nada foi provado neste sentido em desfavor da menor Diane É bem verdade que o conjunto probante revela que a menina Diane estava inserida num meio social pouco saudável para fins de formação de sua personalidade já que sua mãe Leila trabalhava como prostituta em casa noturna BRASIL Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul Acórdão em Apelação Criminal N 70009840273 Relatora Desa Lúcia de Fátima Cerveira Porto Alegre 29 nov 2006 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 305 também divagar sobre possíveis sequelas irreparáveis que por ventura marcarão a fogo a esfera sentimental da vítima24 Quando um Magistrado afirma categoricamente que é certo que o crime provocará traumatismo eterno e incurável à alma da vítima e que o acusado é um monstro deveria ter a exata noção de que mais do que artifício retórico condoreiro seu discurso adorna a realidade quando não chega às raias de produzir realidade No momento em que decide um caso penal um Magistrado responde ao réu jurisdicionalizado à vítima do crime e a todo corpo social de certa forma e é para isso e não por outro motivo que a Publicidade dos atos jurisdicionais vai erigida enquanto norma constitucional basilar Constituição Federal Artigo 93 IX A decisão judicial é uma resposta não qualquer resposta mas a resposta oficial e necessariamente qualificada que o Estado fornece ao caso jurisdicionalizado pelo processo optando por uma solução jurídica em detrimento de outras possíveis na gestão do conflito posto25 Assim tendose o discurso tipicamente enquanto auxiliar na produção da realidade não se pode excluir uma certa parcela de responsabilidade do julgador se a profecia se confirmar ao se reportar à sociedade e aos envolvidos em especial o discurso oficial para ficar com o exemplo já ilustrado termina em certa escala por estabelecer que a vítima deverá ficar traumatizada de forma jamais superável e que o condenado é uma espécie de demônio contemporâneo e assim deve ser visto por todos sumamente por si mesmo quando se confrontar com o espelho Goffman já nos ensinou que a subjetividade do sujeito se constitui em grande parte somando ao que ele genuinamente é ou pensa ser aquilo que a esfera de relação social com os outros o faz crer que é eou o estimula a ser26 Nenhum outro no contexto presente é mais poderoso na impostura de subjetividades do que o Estado enquanto decisor criminal pela figura do Magistrado Falando mais uma vez em termos criminológicos sabemos assim que há um enorme contingente de pessoas cuja origem criminosa já se perdeu entre o ser ou ter sido criminoso efetivamente e o ser etiquetado como tal pelo sistema27 É por essa razão que um dos pilares da função jurisdicionalconstitucional deve ser o trato ético na condução da própria jurisdição Estamos cientes de que a lógica jurídica não pode abarcar um tamanho grau de variáveis a ponto de se desestruturar enquanto meio organizado de controle e mecanismo binário escolhido para a gestão dos conflitos penais Algo sempre ficará para trás e a 24 Certo é que o evento monstruoso brutal e desumano reservará indefinidamente péssimas incômodas e traumáticas lembranças àquela então menor de 14 anos BRASIL Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais Acórdão em Apelação Criminal N 100240160418240011 Relator Des Armando Freire Belo Horizonte 31 e mar 2005 25 Neste quadro a decisão é um procedimento cujo momento culminante é um ato de resposta Com ela podemos pretender uma satisfação imediata para o conflito no sentido de que propostas incompatíveis são acomodadas ou superadas FERRAZ JR Tércio Sampaio A Ciência do Direito São Paulo Atlas 1980 2ed p89 26 GOFFMAN Erving A representação do Eu na Vida Cotidiana Trad Maria Célia Santos Raposo Petrópolis Vozes 1999 8ed especialmente p 230 e seguintes 27 ZAFFARONI Em busca das penas perdidas pp123147 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 306 opção por tutelar os conflitos exclusivamente com base em um número específico de regramentos e ditames procedimentaislegais a organização jurídica cogente típica jamais se vai deixar penetrar em nossa opinião por uma avalanche filosófica de possibilidades de escuta eis que a própria existência da ordem jurídica prevê que em um dado momento uma versão mais verdadeira prevaleça e a partir dela e tão somente se pensem os efeitos e consequências aceitáveis dentro do sistema A inteligibilidade do sistema jurisdicional é outra e não há lugar dentro dela por hora para uma apreensão ética integral das dimensões da alteridade28 Isso contudo não significa que não seja imperativa nossa necessidade de trabalhar ou tentar trabalhar a ética nos limites esgarçados de sua possibilidade de implementação dentro do processo e de considerar que a tarefa da decisão judicial máxime na esfera penal precisa ser encarada como um momento de relação humana que implica em um ato de responsabilidade radical da pessoa do julgador para com o a pessoa do julgado29 Assim os requisitos de uma decisão penal precisam ser imantados por essa consciência uma decisão justa não excessivamente benevolente nem despudoradamente draconiana começa pelo tratamento devido a ser dado aos a ela submetidos pessoas Pessoas humanas No afã de não precisar de rédeas na manifestação vingativa a condição de pessoa parece sempre ser a primeira a cair e o acusado vai reclassificado e reetiquetado como qualquer outra coisa diversa da categoria dos homens normalmente assentidos como tais30 A jurisprudência de nossas Cortes Superiores já vem há muito registrando um número elogiável de decisões que pugnam pela nulidade processual reconhecida no simples excesso de linguagem em certos momentos de manifestação do Julgador sentença de pronúncia por exemplo onde a verborragia se mostra descabida evidenciadas as decisões paradigmáticas proferidas pelo STF HC 68606DF Min Celso de Mello HC 72113RJ Min Francisco Rezek e HC 79489PE Min Nelson Jobim bem como recentes entendimentos do STJ no mister HC 78104RJ Min Arnaldo Esteves Lima HC 49187RJ Min Laurita Vaz Temos do mesmo modo disponíveis no repertório do ordenamento mecanismos legais específicos para coibir a inversão tumultuária de atos processuais proveniente 28 O prérequisito para qualquer ética verdadeira não credora da chancela ontológicaneutralizante para existir e que não necessita assim hipotecar suas consequências mais radicais constituise dessa forma no estabelecimento prévio de uma base ética de inteligibilidade da realidade como já sugerido A ética como filosofia primeira significa todo o contato com a realidade toda interpretação desta realidade e todas as possíveis interpretações desta realidade se dão eticamente onde o contato e a ação éticos substituem o conhecimento classificador tradicional e podem vir a fundamentar um conhecimento sobre bases absolutamente novas com outro sentido TIMM DE SOUZA Ricardo Totalidade Desagregação Sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas Porto Alegre Edipucrs 1996 pp123124 29 TIMM DE SOUZA Ricardo Uma introdução à ética contemporânea São Leopoldo Nova Harmonia 2004 p103 30 FIGUEIREDO Débora de Carvalho Vítimas e vilãs monstros e desesperados Como o discurso judicial representa os participantes de um crime de estupro In Linguagem em Discurso V3 n1 Tubarão Unisul 2002 p146 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 307 de erros ou abusos praticados pelo julgador31 bem como um extenso rol de proibições32 e restrições33 ao exercício do ofício jurisdicional para tentar afastar a possibilidade de um julgamento maculado pela parcialidade Nada mais justo que se pense de forma idêntica para a questão do discurso proferido na motivação sentencial e assim seja vedado ou processualmente punível com a nulificação qualquer resquício identificável de argumentação excessiva manifestamente atécnica que sirva para exercer a jurisdição de modo desumano e nãoético Não custa lembrar que preceito fundamental do ordenamento pátrio Constituição Federal Artigo 5 inc XLVII alínea e impõe à nossa prática jurisdicional a inexistência de penas cruéis Em um Estado Democrático de Direito deveria ser pauta constante a vedação de uma decisão processual penal se constituir além de um meio de infligir penas legalmente cominadas em um palco para humilhações considerações particulares por parte do Magistrado ou mesmo alvo de descarregos psicológicos ofensivos manifestados pelo linguajar Certamente a pena cruel de aplicação proibida pela Lei Maior se constrói pelo menos em nossa visão desde uma decisão oficial que promove ofensas injuriosas ao jurisdicionado representando uma inacreditável baixeza do Estado ao nível do bate boca privado algo que a própria existência de jurisdição trata de solapar Sem falar que a ofensa no caso vem com a grife e a definitividade da chancela judiciária Confortável local de fala o do Magistrado ausente de possibilidade de responsabilização pode injuriar e difamar ao seu bel prazer por vias transversas ou por vezes diretas extrapolando toda e qualquer competência legitimada para regular judicialmente os conflitos penais que lhe são postos Propõese para quem sabe o novo Código de Processo Penal brasileiro vindouro a substituir o arcaico e potencialmente inquisitório aparato da década de 40 que hoje exerce a função o tornar passível de anulação a decisão que angariar adjetivação impertinente e destoante do texto dos tipos legalmente previstos aplicados à espécie como presunção de parcialidade nãoprocessual Ou mesmo que haja a inclusão de uma hipótese de vedação ao uso desmedido do linguajar ao longo do texto decisional e seus adjacentes sobre os elementos da decisão condenatória Ou mesmo ainda talvez a categorização do caso como hipótese configuradora da Suspeição tornando o fato como fértil para o ensejo do pleito do afastamento do Magistrado para o proferir da decisão válida para a demanda34 31 Vejase a medida de Correição Parcial no caso do Estado do Rio Grande do Sul regulada pelos dispositivos do Art 195 e parágrafos do Código de Organização Judiciária do Estado Lei n 7356 de 1 de Fevereiro de 1980 32 As hipóteses em que o Magistrado incorre em Impedimento processual para operar no julgamento do caso são coroadas constitucionalmente pelos incisos do parágrafo único do Art 95 da Carta Magna sendo que já vinham perfeitamente delineadas pelo texto do nosso Código de Processo Civil nos incisos do Art 134 e no Código de Processo Penal nos incisos do Art 252 33 Definidas igualmente pelo Código de Processo Civil incisos do Art 135 com similar menção nos Arts 254 a 256 do Código de Processo Penal estabelecida para o Processo Penal em seu respectivo diploma a possibilidade de configurar motivo para arguição de Suspeição pela via processual da Oposição de Exceção Art 96 a 107 34 Ansiosos também esperamos uma atuação rigorosa das Corregedorias e sua tão necessária atividade de Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 308 Não vemos qualquer dificuldade em lançar mão de ideia como a apresentada mesmo cientes das imensas dificuldades práticas e da acalorada discussão processual e tribunalícia que se iniciaria a partir dela e mesmo da disparidade jurisprudencial que poderia estar fundada Melhor alguma forma positivada de controle ainda que de taxatividade admitidamente nãosolidificada do que uma derrocada na esfera dos argumentos onde sempre há quem diga e pense que o Direito é exclusivamente o que está na lei e que o Magistrado só faz adequála à realidade 6 conSiDERAçõES finAiS Aos que necessitam de doses contumazes de pragmatismo necessário o lembrete de que em termos de manifestação jurisdicional penal conceituar o réu nos moldes de um inimigo serve apenas para trazer à baila a indesejável ideia bélica similar às doutrinas espúrias de Segurança Nacional vigorantes em tempos ditatoriais definitivamente incondizentes com a atual situação ao menos em tese democrática do nosso país e consequentemente do nosso Processo Penal35 Muito mais por essa figura tão emblemática e essencial como a do Magistrado o uso prudente da palavra deve estar sempre atrelado ao cuidado quanto ao manejo desmedido de sua capacidade imanente de modificar o mundo e amplificar simbologias Tarefa nada simples Constante impulso energético que por nem todos consegue ser devidamente contido Reação trivial o dar de ombros e a esquiva quanto à obrigação de impor uma mínima contenção a esse impulso A negação de toda a dificuldade que reina sobre o Magistrado e sua nobilíssima função no momento de mover sua espada aquela que redesenha a vida e a imensa responsabilidade incutida nesse ato é a própria fuga do peso de uma necessidade de mínimo controle passional de uma apuração ética rigorosa e de um olhar calculado como convém a um bom julgador É o que faz da decisão penal desvairada um terreno fértil para a assunção onírica de que não se está simplesmente julgando mas expurgando bestasferas exorcizando diabos perdidos no mundo eliminando impurezas e combatendo monstros36 fiscalização nesse sentido recomendações e advertências constantes deveriam fazer parte da rotina do julgador que afasta de lado a técnica e a culta ponderação nos seus julgados exarados para se entregar ao desvario da cólera e do abandono antiético no texto da decisão humilhando simplesmente os desafortunados submetidos ao seu julgamento inclusive como forma de promoção pessoal e cessão indevida aos anseios de clamores populares que nada devem interferir no exercício jurisdicional Cientes estamos no entanto de que nem esse nem qualquer outro aspecto deva nem possa se configurar em escopo para que a atividade do Corregedor se transforme em uma verdadeira autorização inquisitória para perseguir e coibir sem limites munida da mesma impertinência ora combatida 35 BIZZOTTO Alexandre O MalEstar do juiz criminal e a ética da alteridade In Revista da Ajuris Ano XXXIV n108 Porto Alegre AJURIS dez 2007 p15 Sobre o tema Direito Penal do Inimigo e as implicações filosóficas e biopolíticas de sua base epistemológica indispensável Cf PINTO NETO Moysés da Fontoura A Farmácia dos Direitos Humanos algumas observações sobre a prisão de Guantánamo In Panóptica Ed 132008 Revista Eletrônica httpwwwpanopticaorg acesso em jan 2009 36 É muito fácil etiquetar bandido monstro ladrão estelionatário vagabundo Tais não passam de adjetivos de impacto Essas pessoas não são mais do que eu O outro sou eu O encarcerado se traduz na negação de meu lado humano destrutivo BIZZOTTO op cit p17 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 309 Fica por tudo a lição fundamental de Nietzsche Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro E se você olhar longamente para um abismo o abismo também olha para dentro de você37 Todo o cuidado é pouco REfERênciAS BIZZOTTO Alexandre O MalEstar do juiz criminal e a ética da alteridade In Revista da Ajuris Ano XXXIV n108 Porto Alegre AJURIS dez 2007 BRASIL Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais Acórdão em Apelação Criminal N 100240160418240011 Relator Des Armando Freire Belo Horizonte 31 e mar 2005 BRASIL Tribunal de Justiça do Estado de Goiás Acórdão em Apelação Criminal N 252202213 200400100163 Relator Des Paulo Teles Goiânia 29 jun 2004 BRASIL Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul Acórdão em Apelação Criminal N 70009840273 Relatora Desa Lúcia de Fátima Cerveira Porto Alegre 29 nov 2006 CARNELUTTI Francesco Lições sobre o Processo Penal Volume 4 Trad Francisco José Galvão Bruno Campinas Bookseller 2004 CARVALHO Amilton Bueno de O Juiz e a Jurisprudência um desabafo crítico In Garantias Constitucionais e Processo Penal BONATO Gilson Org Rio de Janeiro Lumen Juris 2002 CARVALHO Salo de A sentença criminal como instrumento de descriminalização o comprometimento ético do operador do direito na efetivação da Constituição In Revista da Ajuris Ano XXXIII n102 Porto Alegre AJURIS jun 2006 CORDERO Franco Procedura Penale Milano Giufré 2000 5ed DAMÁSIO António R O Erro de Descartes Emoção razão e o cérebro humano Trad Dora Vicente e Georgina Segurado São Paulo Companhia das Letras 1996 DIVAN Gabriel Antinolfi Decisão Judicial nos Crimes Sexuais O julgador e o réu interior Porto Alegre Livraria do Advogado 2009 DUCLERC Elmir Direito Processual Penal Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 FERRAZ JR Tércio Sampaio A Ciência do Direito São Paulo Atlas 1980 FIGUEIREDO Débora de Carvalho Vítimas e vilãs monstros e desesperados Como o discurso judicial representa os participantes de um crime de estupro In Linguagem em Discurso Vol 3 n1 Tubarão Unisul 2002 FOUCAULT Michel A vontade de saber In Resumo dos Cursos do Collège de France 19701982 Trad Andrea Daher Rio de Janeiro Jorge Zahar 1997 Verdade e Poder In Microfísica do Poder 20ed Trad Roberto Machado Rio de Janeiro Graal 2004 GALEANO Eduardo O Livro dos Abraços 9ed Trad Eric Nepumoceno Porto Alegre LPM Editores 2002 37 NIETZSCHE Friedrich Além do Bem e do Mal São Paulo Companhia das Letras 2005 p70 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 310 GOFFMAN Erving A representação do Eu na vida cotidiana 8ed Trad Maria Célia Santos Raposo Petrópolis Vozes 1999 HALL Stuart A identidade cultural na pósmodernidade Trad Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro Rio de Janeiro DPA 2001 LOPES JR Aury Introdução Crítica ao Processo Penal Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional Rio de Janeiro Lumen Juris 2006 MORAIS DA ROSA Alexandre O Processo Penal como Procedimento em Contraditório Diálogo com Elio Fazzalari In Novos Estudos Jurídicos V11 n2 Itajaí Univali 2006 NIETZSCHE Friedrich Além do Bem e do Mal São Paulo Companhia das Letras 2005 PINTO NETO Moysés da Fontoura A Farmácia dos Direitos Humanos algumas observações sobre a prisão de Guantánamo In Panóptica Ed 132008 Revista Eletrônica httpwwwpanopticaorg acesso em jan 2009 TARUFFO Michele Senso comum experiência e ciência no raciocínio do juiz Trad Cândido Rangel Dinamarco Curitiba IBEJ 2001 TESHAINER Marcus Psicanálise e Biopolítica Contribuição para a ética e a política em Michel Foucault Porto Alegre Zouk 2006 TIMM DE SOUZA Ricardo Totalidade Desagregação Sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas Porto Alegre Edipucrs 1996 Uma introdução à ética contemporânea São Leopoldo Nova Harmonia 2004 WARAT Luis Alberto Introdução Geral ao Direito I Interpretação da Lei Temas para uma reformulação Porto Alegre Sergio Antonio Fabris Editor 1994 Introdução Geral ao Direito II A epistemologia jurídica da Modernidade Porto Alegre Sérgio Fabris 1995Reimpressão 2002 ZAFFARONI Eugenio Raul Criminología Aproximación desde un margen Bogotá Editorial Temis 2003 Tercera reimpressión Em busca das penas perdidas a perda de legitimidade do sistema penal Trad Vania Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição Rio de Janeiro Revan 1991 Direito e Democracia v10 n2 p311330 juldez 2009 Canoas o ensino do Direito Penal da legitimação da violência à luta pela vida marília Denardin Budó RESumo Diante da deslegitimação teórica e fática do sistema penal o objetivo do texto é o de abordar o descompasso dessa constatação com o ensino do Direito Penal no Brasil Para tanto a primeira parte buscará apresentar o marco teórico do qual se parte o da Criminologia crítica especificamente no que tange aos argumentos que levam à deslegitimação do sistema penal No segundo ponto é traçada brevemente a história do ensino jurídico no Brasil salientandose as suas principais características em especial o papel das universidades segundo a forma de ensino atual como fábricas ideológicas que não questionam o real exercício de poder e violência dos sistemas penais auxiliando em sua relegitimação O artigo é encerrado com a constatação de que se na América Latina os sistemas penais são marcados pela morte tratar o Direito Penal de uma maneira crítica significa de certa forma evitála poupando vidas Palavraschave Ensino Direito Penal Sistema penal Criminologia crítica Violência teaching criminal law from legitimation of violence to life defense ABStRAct Considering the factual and theoretical nonlegitimation of the criminal system this paper aims to approach the unsteadiness of this evidence with the criminal law teaching in Brazil Thus firstly this work will present the theoretical background from where it descends the Critical Criminology specifically related to the arguments which lead to the relegitimation of the criminal system Secondly the history of the legal teaching in Brazil is outlined briefly emphasizing its main characteristics specially the role of the universities regarding the current teaching methods like ideological factories which do not question the real exercise of power and violence of the criminal systems supporting its relegitimation This paper concludes by discussing the evidence that if in Latin America the criminal systems are determined by death approaching the criminal law critically means in a certain way avoiding it saving lives Keywords Teaching Criminal law Criminal system Critical criminology Violence 1 intRoDução Discutir o ensino do Direito no Brasil significa trazer à tona as funções que ele cumpre Sabese que historicamente a formação de juristas se deu de maneira a constituir uma elite encarregada de construir a ordem nacional Marília Denardin Budó é Mestre em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina Bacharel em Direito e em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria UFSM Especialista em Pensamento Político Brasileiro pela UFSM Professora do Centro Universitário Franciscano UNIFRA em Santa MariaRS Email mariliadbyahoocombr Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 312 Para trazer tal discussão ao campo do Direito Penal é necessário perceber que a função do seu ensino da maneira como é realizada na maior parte das faculdades de direito é a de legitimar um sistema penal já deslegitimado teórica e empiricamente Ou seja manter o exercício de poder do sistema a despeito de seu excesso de violência e déficit de proteção ao ser humano1 O objetivo do texto é o de abordar a questão do ensino do Direito Penal no Brasil Para tanto a primeira parte buscará apresentar o marco teórico do qual se parte o da criminologia crítica especificamente no que tange aos argumentos que levam à deslegitimação do sistema penal No segundo ponto será traçada brevemente a história do ensino jurídico no Brasil salientandose as suas principais características O terceiro ponto tratará do papel das universidades segundo a forma de ensino atual como fábricas ideológicas que levam à legitimação do sistema penal O texto é finalizado com a relação entre o ensino jurídico crítico e a preservação da vida 2 A DESlEGitimAção Do SiStEmA PEnAl E o PAPEl RElEGitimADoR DAS uniVERSiDADES O Direito Penal liberal tem como origem o surgimento do Estado Moderno Os primeiros pensadores desse marco tinham suas ideias arraigadas ao contratualismo formando a Escola Clássica Enquanto a unidade metodológica desses teóricos implicava a utilização do método racionaldedutivo em voga na época a sua unidade ideológica tratou principalmente do problema dos limites do poder de punir do Estado em contraponto à liberdade dos indivíduos2 Isso porque a tradição prémoderna trazia um sistema inquisitório de processo onde as mais simples garantias de defesa do acusado eram inexistentes o que tornava a acusação completamente obscura ao indivíduo e atentava contra a certeza do Direito e a segurança jurídica3 Em função de mudanças nos contextos político econômico e social o século XIX já trouxe teorias sobre o crime bastante diversas Foi o auge da Escola Positiva cujo paradigma de ciência já não era mais o racionalismo e sim o evolucionismo sendo o método característico do período o empíricoexperimental Ao invés de justificar a liberdade do indivíduo a partir de uma ordem natural universal e então limitar o poder de punir do Estado a Escola Positiva deslocou o foco de atenção para o homem criminoso buscando nele as causas do crime Assim de limite ao poder de punir do Estado o indivíduo criminoso visto como um anormal biológica antropológica e sociologicamente determinado a cometer crimes passa a ser o objeto de intervenção do Estado na busca pelo seu tratamento e reinserção no polo normal da sociedade4 1 ANDRADE Vera Regina Pereira de A ilusão de segurança jurídica do controle da violência à violência do controle penal 2 ed Porto Alegre Livraria do Advogado 2003 2 ibid p47 3 BECCARIA Cesare Dos delitos e das penas São Paulo Martins Fontes 1997 4 BARATTA Alessandro Criminologia crítica e crítica do direito penal 3 ed Rio de Janeiro Ed RevanICC 2002 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 313 Tendo esses pressupostos sido relegados com o surgimento e consolidação da Escola TécnicoJurídica a criminologia passou a ser tratada como ciência auxiliar sendo a dogmática penal erigida a ciência do direito por excelência A dogmática jurídicopenal foi o paradigma científico que emergiu na modernidade com uma função essencialmente prática de racionalizar a aplicação judicial do Direito Penal5 Criminologia e dogmática ao mesmo tempo em que mantiveram a sua autonomia em relação à metodologia formaram uma unidade funcional na luta contra o crime6 Assim as funções racionalizadora e garantidora da dogmática penal declaradas no meio jurídico se viabilizariam através da previsibilidade e uniformização das decisões judiciais além de uma aplicação igualitária do Direito Penal garantindo segurança jurídica7 A dogmática jurídica em sua autoimagem seria uma ciência do deverser que tem por objeto o Direito Penal positivo vigente em dado tempo e espaço e por tarefa metódica técnicojurídica lógicoabstrata a construção de um sistema de conceitos elaborados a partir da interpretação do material normativo tendo por finalidade ser útil à vida isto é à aplicação do Direito8 Apesar de em grande parte os postulados da Escola Positiva terem sido deixados de lado com o surgimento da Escola tecnicista a qual buscava a exclusão de todo e qualquer elemento jusnaturalista biológico sociológico ou psicológico do Direito Penal podese dizer que Escola Clássica e Escola Positiva acabaram complementando se nas legislações do século XX A dogmática penal nesse sentido veio a assumir um caráter bifronte ao mesmo em que traz em si a ideologia liberal de proteção ao indivíduo traz a ideologia da defesa social que tem no indivíduo o objeto do tratamento para reinserção na sociedade Essa ideologia é identificada por Baratta como presente no senso comum jurídico mas também do lado de fora da academia relacionando alguns princípios que a constituem9 Muito embora o Direito Penal tenha se fechado no estudo das normas penais dentro de uma perspectiva de dominação da dogmática vista como ciência do direito por excelência a sociologia seguiu os estudos relativos ao crime e à sociedade na Europa e nos Estados Unidos Assim as novas teorias sociológicas relacionadas ao crime vieram possibilitar a crítica à ideologia penal dominante expondo a deslegitimação do sistema penal com a consequência de se buscar alternativas políticocriminais 5 ANDRADE Vera Regina Pereira de op cit 6 ANDRADE Vera Regina Pereira de Andrade op cit p99 7 Ibid p27 8 Ibid p117 9 A ideologia da defesa social é especificada por Baratta como sendo a ideologia que une tanto Escola Clássica como Escola Positiva sendo constituída por alguns princípios princípio da legitimidade princípio do bem e do mal princípio do interesse social e do delito natural princípio da igualdade princípio da culpabilidade princípio da finalidade ou da prevenção BARATTA Alessandro op cit p42 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 314 Destacase dentre estes estudos sociológicos a teoria do etiquetamento ou labelling approach uma vez que faz a ruptura epistemológica em criminologia ao retirar o foco das causas do crime no criminoso para visualizálo no fenômeno da criminalização A teoria do etiquetamento chega à percepção do desvio como sendo uma construção social a partir de interações ocorridas na sociedade fazendo com que em alguns momentos se definam situações e pessoas como desviantes Essa teoria também é conhecida por criminologia da reação social por identificar na reação da sociedade ao desvio um fundamental elemento para que o comportamento seja assim rotulado Considerado o fundador da teoria do etiquetamento Becker é a maior referência no estudo da reação social e dos efeitos da estigmatização do etiquetamento na formação do status social de desviante Central nessa teoria é a ideia de que os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui o desvio e por aplicar ditas regras a certas pessoas em particular e qualificálas como outsiders10 Dessa maneira o processo de criminalização se inicia com a definição do que é a conduta desviada através do processo legislativo Mas anteriormente a isso ocorre o processo de definição no senso comum do que é o comportamento normal sendo que a normalidade é representada por um comportamento predeterminado pelas próprias estruturas segundo certos modelos de comportamento e correspondente ao papel e à posição de quem atua11 Ao atribuir a etiqueta de desviante a algumas pessoas em função do descumprimento a tais normas realizase a criminalização secundária O desviante é uma pessoa a quem se pode aplicar com êxito aquela etiqueta o comportamento desviante é o comportamento assim etiquetado pelas pessoas12 A importância da reação social na definição de um fato como criminoso é demonstrada por Lemert através do quociente de tolerância através do qual é possível manipular o desvio e a reação social através de uma fração matemática medida com uma quantidade de condutas desaprovadas em uma localidade no numerador e no denominador o grau de tolerância para o comportamento em questão13 Assim se em duas cidades diferentes mas de tamanho comparável uma tem um alto índice de ocorrência de determinado comportamento desviante e outra tem um baixo índice caso na primeira a tolerância seja maior e na segunda menor ou seja na segunda haja maior reação social o resultado será o mesmo Isso demonstra que para que um comportamento seja desviante ou criminoso não basta que esteja assim definido em lei mas que haja uma reação social frente à sua prática É também consequência dessa teoria a percepção de que dentro de um quadro geral de delitos ocorridos diariamente apenas a alguns a sociedade e o sistema penal reagem demonstrando a existência de uma seletividade Essa seletividade é encontrada 10 BECKER Howard Outsiders Studies in the sociology of deviance New York The Free Press 1996 p9 Tradução livre Grifos no original 11 BARATTA Alessandro op cit p95 12 BECKER Howard op cit p9 Tradução livre 13 LEMERT Edwin M Social pathology A systematic approach to the theory of sociopathic behavior New York McGrawHill Book Company 1951 p57 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 315 tanto na definição do ato desviante quanto na atribuição do rótulo de desviante a alguém A seletividade deve ser percebida também a partir da existência de muitos fatos definidos como crimes que ocorrem diariamente mas de que sequer se tem notícia ao que autores posteriores denominaram cifra negra da criminalidade A consequência dessa percepção é de que como nota Zaffaroni se o sistema penal processasse e punisse todos os fatos tipificados como crimes toda a população já teria sido criminalizada várias vezes Diante da absurda suposição não desejada por ninguém de criminalizar reiteradamente toda a população tornase óbvio que o sistema penal está estruturalmente montado para que a legalidade processual não opere e sim para que exerça seu poder com altíssimo grau de arbitrariedade seletiva dirigida naturalmente aos setores vulneráveis14 Essa questão traz à tona a operacionalização dos estereótipos tanto de autores como de vítimas que estão ligados ao senso comum criados através da interação social São eles sistemas de representações que orientam a vida quotidiana15 e se constituem em mecanismos de seleção na medida em que permitem a definição da desconformidade como desvio sendo ligada a um certo número de sinais exteriores a cor da pele a origem étnica o corte de cabelo ou de barba o estilo do vestuário os locais frequentados e as horas de frequência bem como a toda uma série de atitudes simbólicas próprias de um delinquente de um louco de um drogado ou de um ébrio de um homossexual de uma prostituta16 Tendo em vista que os estereótipos constituem um mecanismo de seleção explicase porque os mesmos tipos se encontrem na prisão O estereótipo alimenta se das características gerais dos setores majoritários mais despossuídos e embora a seleção seja preparada desde cedo na vida do sujeito é ela mais ou menos arbitrária17 Isso demonstra que os estereótipos se constituem não somente em um mecanismo de seleção mas de reprodução tendo em vista que possuem um efeito de feedback sobre 14 ZAFFARONI Eugenio Raúl Em busca das penas perdidas A perda de legitimidade do sistema penal Rio de Janeiro Revan 1991 p125 Em consequência disso passase a perceber que as estatísticas criminais não dizem respeito à criminalidade e sim à criminalização tendo em vista que elas são feitas com base apenas nos casos que são registrados O que as estatísticas refletem são as contingências organizativas que condicionam a aplicação de determinadas leis a determinada conduta por meio da interpretação decisões e atuações do pessoal encarregado de aplicar a lei KITSUSE CICOUREL apud CID MOLINÉ José LARRAURI PIJOAN Elena Teorías criminológicas Explicación y prevención de la delincuencia Barcelona Bosch 2001 p210 15 DIAS Jorge de Figueiredo ANDRADE Manuel da Costa Criminologia O homem delinquente e a sociedade criminógena Coimbra Coimbra 1997 p389 16 ibid 17 ZAFFARONI Eugenio Raúl op cit p134 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 316 a realidade racionalizando e potenciando as razões que geram os estereótipos e as diferenças e oportunidades que eles exprimem18 Em função da insuficiente relação da operacionalidade dos sistemas penais na construção social da criminalidade com a estrutura econômica social e política a Criminologia crítica surge na década de setenta para somar aos resultados da teoria do etiquetamento uma abordagem marxista gerando uma teoria materialista do desvio Dos resultados das pesquisas em Criminologia crítica destacase a demonstração de que o princípio da seletividade identificado pela teoria do etiquetamento está orientado conforme a desigualdade social sendo que as classes inferiores são as efetivamente perseguidas Assim o sistema punitivo se apresenta como um subsistema funcional da produção material e ideológica legitimação do sistema social global isto é das relações de poder e de propriedade existentes19 A relação entre prisão e capitalismo gerada pela crítica historiográfica também auxiliaram no que concerne ao chamado impulso desestruturador20 na deslegitimação teórica dos sistemas penais Os primeiros teóricos a adentrarem nesse tema foram Rusche e Kirchheimer ao buscarem compreender a modificação dos sistemas penais ao longo da história Concluem que a transformação em sistemas penais não pode ser explicada somente pelas mudanças das demandas das lutas contra o crime embora esta luta faça parte do jogo Todo sistema de produção tende a descobrir formas punitivas que correspondem às suas relações de produção 21 Também através da leitura de Foucault se permite observar que ao contrário da ideia difundida de que a prisão não cumpre com seus objetivos declarados ela cumpre com objetivos reais Não há então natureza criminosa mas jogos de força que segundo a classe a que pertencem os indivíduos os conduzirão ao poder ou à prisão pobres os magistrados de hoje sem dúvida povoariam os campos de trabalhos forçados e os forçados se fossem bem nascidos tomariam assento nos tribunais e aí distribuiriam justiça22 18 DIAS Jorge de Figueiredo ANDRADE Manuel da Costa op cit p389 19 BARATTA Alessandro Principios del derecho penal mínimo In ELBERT Carlos Alberto BELLOQUI Laura orgs Criminología y sistema penal Compilación in memorian p299333 Buenos Aires Julio César Faira 2004 p301 20 COHEN Stanley Visiones del control social Delitos castigos y clasificaciones Barcelona PPU 1988 21 RUSCHE Georg KIRCHHEIMER Otto Punição e estrutura social 2 ed Rio de Janeiro Ed Revan ICC 2004 p20 Para exemplificar os autores referem que É evidente que a escravidão como forma de punição é impossível sem uma economia escravista que a prisão com trabalho forçado é impossível sem a manufatura ou a indústria que fianças para todas as classes da sociedade são impossíveis sem uma economia monetária De outro lado o desaparecimento de um dado sistema de produção faz com que a pena correspondente fique inaplicável Ibid p2021 22 FOUCAULT Michel Vigiar e punir História da violência nas prisões 3 ed Petrópolis Vozes 1984 p254 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 317 A delinquência seria segundo o autor fabricada para propiciar a vigilância da sociedade e ao mesmo tempo possibilitar a imunidade das ilegalidades dos grupos dominantes Nisso residiria o sucesso real da prisão a despeito de seu fracasso declarado ao produzir uma ilegalidade fechada separada e útil23 A prisão contribui assim no sentido de que desenha isola e sublinha uma forma de ilegalidade que permite deixar na sombra as que se quer ou se deve tolerar Essa é a delinquência propriamente dita ela é antes um efeito da penalidade e da penalidade de detenção que permite diferenciar arrumar e controlar as ilegalidades24 A tese da seletividade é portanto essencial para a compreensão da tática de neutralização dos pobres contida nas ideologias que buscam inflar a repressão penal através da propagação do medo A criminalização secundária ou seja aquela que decorre da atuação das agências executivas e judiciária do sistema penal polícia justiça é ainda mais seletiva Mesmo quando previstos na lei crimes típicos das classes dominantes dificilmente pessoas que dela fazem parte são criminalizadas A imunidade dos crimes mais graves é cada vez mais elevada à medida em que cresce a violência estrutural e a prepotência das minorias privilegiadas que pretendem satisfazer as suas necessidades em detrimento das necessidades dos demais e reprimir com violência física as exigências de progresso e justiça assim como as pessoas os grupos sociais e movimentos que são seus intérpretes25 A constatação da seletividade do sistema penal traz diversas consequências A principal delas é o descrédito para com o princípio de igualdade perante a lei Conforme conclui Andrade ao invés de assegurar a igualdade e a generalização no exercício da função punitiva a dogmática penal trouxe para o sistema penal a reprodução da seletividade e da desigualdade percebida na sociedade26 Isto leva à conclusão de que a definição de alguém como criminoso depende menos da prática de um ato tipificado na lei penal do que de seu status social A ideia de que o sistema penal deveria significar segurança jurídica tanto no sentido de que o indivíduo deve ser protegido do poder de punir do Estado como em relação ao atributo do Estado moderno de monopólio da coerção física de forma a evitar a luta de todos contra todos fica completamente distorcida diante dessa realidade Isso porque ao realizar tal seleção entre as pessoas criminalizáveis mostrase um excesso de arbítrio afora o fato de que as garantias penais são diariamente violadas pelas agências do sistema penal 23 Ibid p244 24 Ibid p243244 25 BARATTA Alessandro Direitos Humanos entre a violência estrutural e a violência penal Fascículos de Ciências Penais Porto Alegre vol 6 n 2 p4461 abrilmaiojunho p52 26 ANDRADE Vera Regina Pereira de op cit p311 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 318 Entretanto quando se percebe que o sistema penal não cumpre com as suas funções prometidas questionase então qual seria a sua função atual Ocorre que na atualidade o sistema penal cumpre uma função simbólica O objetivo do uso simbólico do Direito Penal seria produzir uma dupla legitimação segundo Santos a legitimação do poder político facilmente conversível em votos o que explica por exemplo o açodado apoio de partidos populares a legislações repressivas no Brasil b legitimação do direito penal cada vez mais um programa desigual e seletivo de controle social das periferias urbanas e da força de trabalho marginalizada do mercado com as vantagens da redução ou mesmo da exclusão das garantias constitucionais como a liberdade a igualdade a presunção de inocência etc cuja supressão ameaça converter o Estado Democrático de direito em Estado policial27 A constatação teórica de que o sistema penal age de forma a reprimir seletivamente parcelas da população é somada à constatação empírica proposta por Zaffaroni da deslegitimação do sistema penal Após discorrer sobre as várias teorias de autores europeus e norte americanos o autor conclui que na região latino americana as consequências dessa deslegitimação são muito mais dramáticas Afora o fato de que a história do continente tem como principais características o genocídio e o etnocídio decorrentes das duas revoluções tecnológicas ocorridas na Europa o período atual marca a passagem para a revolução tecnocientífica no contexto da globalização neoliberal que tem consequências imprevisíveis28 Todo o sistema penal latino americano é marcado pela morte Desde as comuns execuções sumárias29 por agentes da lei ou por grupos de extermínio até a situação dramática das prisões o problema do aumento da repressão penal não é o da neutralização de parcelas cada vez maiores da população em especial da mais fraca mas sim a do extermínio do genocídio Ao contrário dos Estados Unidos ou mesmo da Europa que têm uma economia que permite a utilização das prisões como fonte de economia terciária a economia dos países latino americanos não comportam tal situação Assim os excluídos do mundo do trabalho e vítimas do desmantelamento do Estado sobram e por isso entram para o rol dos executáveis Assim para o autor a deslegitimação do sistema penal se dá antes de tudo pelos próprios fatos sendo o principal deles a morte Buscando manter o sistema penal legitimado apesar de sua evidente deslegitimação atuam diversas instituições Dentre elas as instituições de ensino do Direito As universidades são chamadas por Zaffaroni de fábricas ideológicas na medida em que mantêm o discurso dogmático asséptico em relação à vida real e à sociedade buscando não ver o que ocorre por trás dos códigos empoeirados 27 SANTOS Juarez Cirino dos Política criminal realidades e ilusões do discurso penal Discursos Sediciosos crime direito e sociedade Rio de Janeiro ano 7 n12 p5357 julhodezembro 2002 p56 28 ZAFFARONI Eugenio Raúl op cit 29 A respeito do tema cf LIMA JR Jayme Benvenuto org Execuções sumárias arbitrárias ou extrajudiciais Uma aproximação da realidade brasileira Recife 2001 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 319 O dogmatismo30 e o conservadorismo são características apontadas de forma unânime pelos autores que escrevem sobre o ensino do Direito Diante disso buscar seá destacar algumas características do ensino jurídico no Brasil antes de expor possibilidades ao mesmo como forma de confrontar o individualismo exacerbado com o papel social do jurista de forma a evitar a morte 3 o EnSino juRíDico no BRASil DoGmAtiSmo E conSERVADoRiSmo Apesar de a primeira matriz teórica a partir da qual se desenvolveram os primeiros cursos de Direito no Brasil ter sido jusnaturalista logo no final do século XIX passou a imperar o paradigma positivista Essa perspectiva se caracteriza no direito pela escolha da lei do ordenamento jurídico positivo como objeto e uma ruptura com o senso comum tanto no sentido de ruptura com o direito consuetudinário quanto com a eliminação dos juízes leigos e sua substituição por juízes letrados31 Assim o gênero literário correspondente a essa fase do ensino jurídico é o manual ou compêndio tendo ao seu lado os comentários de leis32 O ensino do direito no Brasil absorveu o caráter conservador da Universidade de Coimbra que durante o período imperial nomeava os seus diretores e determinava o seu currículo e método didático com suas aulasconferência ensino dogmático acrítico mentalidade ortodoxa do corpo docente e discente a serviço da manutenção da ordem estabelecida e transplantada da exmetrópole oportunizando aos profissionais por ele formados o prestígio local33 As origens do ensino do Direito no Brasil dizem muito sobre o seu contexto atual Como forma de possibilitar a formação de uma burocracia do novo Estado nacional que teve sua independência proclamada em 1822 e sua primeira Constituição outorgada em 1824 foram criados os primeiros cursos de Direito no Brasil em São Paulo e Olinda em 182734 Burocracia é a palavra que resume o papel desses bacharéis devendo construir a nova ordem nacional sem modificar o estado das coisas Os bacharéis serão o tipoideal do burocrata nascido em sociedade escravista e clientelista subindo 30 Dogmatismo quer dizer pois uma atitude de acatamento e submetimento do jurista ao estabelecido como Direito Positivo que independentemente do seu conteúdo material mutável desempenha sempre a função de dogma ANDRADE Vera Regina Pereira de Dogmática jurídica Escorço de sua configuração e identidade Porto Alegre Livraria do Advogado 1996 p74 31 LOPES José Reinaldo de Lima O direito na história Lições introdutórias São Paulo Max Limonad 2000 p223224 32 Ibid p225 33 COLAÇO Thais Luzia O ensino do direito no Brasil e a elite nacional Congresso de História das Universidades da Europa e da América Cartagena Colômbia nov 2004 34 Sobre os debates que antecederam a criação desses cursos inclusive no que concerne à formação curricular dos mesmos cf BASTOS Aurélio Wander O ensino jurídico no Brasil 2 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2000 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 320 na carreira por indicação por favor por aliança política com os donos do poder local provincial ou nacional35 Durante o período imperial é a educação superior que distingue a elite política brasileira Na época havia um verdadeiro abismo entre essa elite e o grosso da população em termos educacionais36 Os cursos de Direito criados após a Independência foram dedicados explicitamente segundo Carvalho à formação da elite política brasileira37 Segundo o autor a unidade ideológica da elite política imperial de formação jurídica possibilitou a construção da ordem nacional38 A metodologia do ensino jurídico no Brasil era reflexo da adoção de um paradigma o positivista que tinha como pressuposto o destaque à figura do legislador e a inquestionabilidade das normas criadas em tese segundo a vontade geral39 No final do século XIX o excesso de bacharéis gerou o fenômeno repetidas vezes mencionado na época da busca desesperada do emprego público por esses letrados sem ocupação o que iria reforçar também o caráter clientelístico da burocracia imperial40 A proclamação da República não trouxe grandes modificações à estrutura social e institucional brasileira A separação entre Igreja e Estado talvez seja a mudança mais aparente inclusive no currículo dos Cursos de Direito Com a República o curso começou realmente a destinarse à formação de bacharéisadvogados mas continuava com sua marca indelével um curso que forma advogados mas também destinado a formar a elite institucional e política brasileira e a nossa elite do pensamento humanístico Estes foram por conseguinte os compromissos do Curso de Direito formar advogados e formar a elite administrativa brasileira dentro do pensamento humanístico41 A partir de 1930 com a modernização e início do processo de industrialização o campo de trabalho dos bacharéis assume novas características além de se ampliar para outras áreas onde ainda não havia profissionais especializados como administradores 35 LOPES José Reinaldo de Lima op cit p226 36 CARVALHO José Murilo de Carvalho A construção da ordem A elite política imperial Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2003 p79 37 Uma abordagem aprofundada sobre a elite política imperial cf CARVALHO José Murilo de op cit p74 Sobre o papel dos bacharéis cf também ADORNO Sérgio Os aprendizes do poder O bacharelismo na política brasileira Rio de Janeiro Paz e Terra 1988 38 O Brasil dispunha ao tornarse independente de uma elite ideologicamente homogênea devido a sua formação jurídica em Portugal a seu treinamento no funcionalismo público e ao isolamento ideológico em relação a doutrinas revolucionárias Essa elite se reproduziu em condições muito semelhantes após a Independência ao concentrar a formação de seus futuros membros em duas escolas de direito ao fazêlos passar ela magistratura ao circulálos por vários cargos políticos e por várias províncias CARVALHO José Murilo de Carvalho op cit p39 39 LOPES José Reinaldo de Lima op cit p227 40 CARVALHO José Murilo de Carvalho op cit p87 41 BASTOS Aurélio Wander O ensino jurídico no Brasil e as suas personalidades históricas uma recuperação de seu passado para reconhecer seu futuro In Ensino jurídico OAB 170 anos de cursos jurídicos no Brasil p35 55 Brasília OAB Conselho Federal 1997 p37 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 321 economistas etc42 Nessa década proliferamse as faculdades de direito aumentando o acesso à classe média43 Segundo Arruda Jr a partir de 1950 passase a falar em uma crise da formação jurídica já que os campos de trabalho criados aos bacharéis após 1930 passaram a ser tomados pelos novos profissionais especializados Restaram assim aos bacharéis cargos burocráticos menores no Estado ou em empresas privadas Quanto ao ensino do Direito propriamente houve algumas mudanças tendo ocorrido reformas curriculares em 1962 1972 1994 e atualmente em 200444 Apesar de as diretrizes curriculares em vigor serem flexíveis e expressarem a preocupação com a formação dos estudantes de direito também nas relações com outras áreas das ciências humanas além da relação com a prática efetivamente não traz mudanças estruturais no perfil do formando em direito O ensino dogmático ainda é a base da educação jurídica entendida como atividade que pretende estudar o direito positivo vigente sem construir sobre o mesmo qualquer juízo de valor a partir de uma aceitação acrítica que tenta explicar a coerência do ordenamento45 Apesar de já superadas no ramo da pedagogia as pedagogias diretivas46 são as mais comumente utilizadas nas salas de aula das faculdades de Direito Perceber o aluno como tabula rasa é o único pressuposto do qual pode partir um professor que passa os períodos de aula expondo o que está na lei e tecendo seus comentários sem o estímulo à participação dos alunos bem como à crítica do atual estado das coisas É também a chamada educação bancária aquela onde o educador aparece como seu indiscutível agente como o seu real sujeito cuja tarefa indeclinável é encher os educandos dos conteúdos de sua narração Conteúdos que são retalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engendram e em cuja visão ganhariam significação47 O perfil de egresso que se deseja deve estar estritamente relacionado à forma como os professores tratarão os alunos anteriormente em sala de aula O mais comum de se ver são conformistas conservadores exegetas donos da verdade buscando seu sucesso profissional individual Isso é reflexo da adoção de uma pedagogia que parte desses pressupostos Os cursos de Direito continuam a formar agentes do sistema reprodutores da ideologia da classe dominante profissionais conservadores e ortodoxos distantes da realidade da vida sem nenhum compromisso social48 42 ARRUDA JR Edmundo Lima de Bacharéis em Direito e crise de Mercado de Trabalho Algumas Reflexões Sequência Estudos jurídicos e políticos Florianópolis n 6 dez 1981 p2940 43 COLAÇO Thais Luzia op cit sp 44 Para uma análise das modificações curriculares dessas reformas cf COLAÇO Thais Luzia op cit 45 Ibid sp 46 O diretivismo segundo Becker parte do pressuposto epistemológico empirista ou seja que o aluno nasce uma tabula rasa a ser preenchida a partir da transferência do conhecimento do professor para o aluno O professor acredita no mito da transferência de do conhecimentoo que ele sabe não importa o nível de abstração ou de formalização pode ser transferido ou transmitido para o aluno Tudo o que o aluno tem a fazer é submeterse à fala do professor ficar em silêncio prestar atenção ficar quieto e repetir tantas vezes quantas forem necessárias escrevendo lendo etc até aderir em sua mente o que o professor deu BECKER Fernando Modelos pedagógicos e modelos epistemológicos Educação e realidade Porto Alegre UFRGS v 19 n 1 janjun 1993 p90 47 FREIRE Paulo Pedagogia do oprimido 43 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 2005 p65 48 COLAÇO Thais Luzia op cit sp Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 322 Ocorre que buscar a formação de bacharéis com outro perfil exige aulas diferentes E isso não significa a mera adoção de técnicas de aula diferentes para substituir a aula conferência mas pressupõe uma epistemologia diferente e além disso um conteúdo abordado de maneira diversa O ensino das disciplinas jurídicas no Brasil está basicamente dominado por duas tendências de um lado o ensino excessivamente dogmático desvinculado das outras dimensões do conhecimento que fazem referência ao homem e à sociedade do outro o ensino teórico do Direito que está cada vez mais desvinculado da realidade social49 O Direito Penal se insere nesse contexto como uma disciplina extremamente dogmática Em geral as aulas de Direito Penal se resumem à leitura e explicação dos artigos do Código Penal frequentemente com a adoção de um manual por parte do professor Diante disso é comum verificar a utilização de exemplos com os famosos Caio Tício e Mévio em que nenhum tipo de crítica é realizado Assim a leitura e o ensino dos códigos de modo acrítico e reflexivo completamente desvinculada de suas condicionantes sociais e econômicas acaba mesmo por reproduzir no plano jurídico uma certa lógica de controle e dominação social 50 Situando os problemas atuais do ensino jurídico no Brasil Bastos menciona a existência de uma crise da didática Isso porque com as salas de aula superlotadas o professor sucumbe e se sobrepõe à transmissão do saber comparado à leitura dos códigos muitas vezes desvinculados dos problemas da vida e do cotidiano51 Quando se estuda um tipo penal apenas como está exposto na lei sem qualquer menção à política criminal que baseou a sua introdução no ordenamento bem como aos possíveis fatos sociais que geraram a demanda pela tipificação ou pela determinação da pena dificilmente se compreende a função que o próprio Direito Penal e de forma mais ampla o sistema penal cumpre na sociedade Ocorre que o Direito Penal não dialogou com as diversas teorias que ancoraram a revolução de paradigma trazida em outros campos do saber como na sociologia O surgimento da teoria do etiquetamento e da criminologia crítica por exemplo se deram à margem do Direito Penal Então ao mesmo tempo em que existem estudos demonstrando a deslegitimação do sistema penal e o papel legitimador do extermínio contido no ensino da dogmática penal dentro de suas funções declaradas o ensino se mantém da mesma maneira Da mesma forma os currículos não permitem uma visão crítica do Direito Penal posto que a disciplina de criminologia está contida em poucos deles como disciplina obrigatória e 49 BASTOS Aurélio Wander Ensino jurídico tópicos para estudo e análise Sequência Estudos jurídicos e políticos Florianópolis v 4 dez 1981 p5972 p61 50 MACHADO Antônio Alberto Ensino jurídico e mudança social Franca UNESPFHDSS 2005 p146 51 BASTOS Aurélio Wander O ensino jurídico no Brasil op cit p362 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 323 quando está prevista frequentemente apresenta um programa ligado ao paradigma etiológico em especial o positivista52 Outras disciplinas que permitiriam essas críticas e um outro olhar sobre o Direito Penal como a sociologia jurídica a filosofia jurídica a história do direito e mesmo a ciência política são pouco valorizadas por alunos e professores53 Assim de forma recorrente se vê a passagem por essas disciplinas como um fardo que os alunos são obrigados a carregar por um ou dois semestres de curso e do qual assim que se libertam dificilmente conseguem reconhecer a utilidade bem como fazer as ligações com as demais disciplinas do curso Nesse sentido há ainda o problema de que a inclusão de disciplinas propedêuticas nos currículos frequentemente induz por sua manipulação equivocada a reedição de uma injustificável dicotomia entre teoria e prática54 É nesse sentido que deve ser salientada a inutilidade da simples modificação da estrutura curricular dos cursos de direito quando os professores e alunos mantêm a mesma visão compartimentada Além disso uma disciplina não é por si própria crítica e portadora de um germe de transformação pronto a ser desenvolvido ao simples contato Assim devese convir que O Direito admite várias abordagens e o erro está em imaginar que o discurso feito sobre uma delas abrange o fenômeno em sua totalidade Assim de nada serve acrescentar o estudo da Sociologia Jurídica da Antropologia Jurídica ou da Economia ao currículo se as disciplinas dogmáticas permanecem dogmáticas55 A mesma observação deve ser feita em relação à modificação das técnicas de ensino passandose da aula apenas expositiva à aula dialogada ou através de seminários que de nada adianta se o conteúdo continua sendo orientado de forma dogmática Dessa maneira os conteúdos também devem ser trabalhados de maneira crítica Ocorre também que os alunos em geral estão preocupados em seguir uma carreira jurídica em função dos ganhos e da estabilidade que proporcionam sem qualquer menção ao sentido social que possa ter a sua atuação 52 Escrevendo no final da década de setenta sendo porém uma realidade atual Del Olmo observa que na América Latina a docência da criminologia em geral é ministrada por professores formados em direito mas em alguns casos médicos também a lecionam Quanto ao conteúdo aduz que na grande maioria são cursos de criminologia clínica que continuam difundindo hoje o objeto da criminologia como tratamento dos delinquentes e portanto sua atenção está dirigida ao indivíduo delinquente DEL OLMO Rosa A América Latina e sua criminologia Rio de Janeiro RevanICC 2004 p275 É interessante de notar ainda a observação da autora a respeito das obras utilizadas no ensino da criminologia na sua maioria com a utilização de manuais estrangeiros com perfil biologicista Ibid p279280 53 Sobre os desafios do ensino interdisciplinar cf ALVES Elizete Lanzoni A docência e a interdisciplinariedade um desafio pedagógico In COLAÇO Thais Luzia Org Aprendendo a ensinar direito o Direito Florianópolis OABSC 2006 p118144 54 VENTURA Deisy Ensinar direito Barueri Manole 2004 p10 55 LYRA FILHO Roberto apud RODRIGUES Horácio Wanderley O ensino jurídico de graduação no Brasil contemporâneo Análise e perspectivas a partir da proposta alternativa de Roberto Lyra Filho 193 f Dissertação Mestrado em Direito Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis 1987 p117 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 324 Se o ensino jurídico está pautado pelo paradigma epistemológico normativo positivista e a prática pedagógica vazada no método lógicoformal ambos proporcionando ao jurista um conhecimento meramente descritivo da ordem jurídica e uma desumanizada aplicação tecnoburocrática do direito tais atitudes teóricas só poderiam resultar mesmo numa completa despolitização do saber jurídico e no esvaziamento do seu sentido ético56 No que tange ao Direito Penal despolitizálo e desprovêlo do conteúdo ético significa ocultar o fato de que o sistema penal é uma forma de exercício de poder extremamente violenta e deslegitimada que se mantém principalmente pela reprodução por parte de seus operadores As universidades têm portanto um papel fundamental na reprodução e legitimação do sistema penal Nesse sentido de forma a diminuir a violência e a dor causadas por um sistema penal que tem como sua operacionalidade real o genocídio em marcha estaria implicada uma mudança na formação de seus operadores O sistema penal é como observa Zaffaroni uma máquina de violação de direitos humanos que não atinge apenas a sua clientela os criminalizados mas também os seus operadores57 Por isso há a necessidade de uma resposta marginal a esta realidade58 Nesse raciocínio Zaffaroni nota que as várias pessoas implicadas no sistema penal passam por treinamentos que levam à sua deterioração Além da criminalização59 da prisionização60 e da policização61 destacase a burocratização como o processo de 56 MACHADO Antônio Alberto op cit p144145 57 Para isso demonstra a sua operacionalidade real o genocídio em ato o seu poder configurador a importância dos aparelhos de propaganda como fábricas da realidade as fábricas ideológicas que seriam as universidades a criminalização a partir da seletividade em função da estigmatização as cadeias como máquinas de deteriorar as agências executivas como máquinas de policiar as agências judiciais como máquinas de burocratizar concluindo com a deterioração e antagonismos como produtos da operacionalidade dos sistemas penais e a destruição dos vínculos comunitários 58 Com a designação marginal para a região latino americana Zaffaroni quer significar a nossa localização na periferia do poder planetário em cujo vértice encontramse os chamados países centrais b demonstrar a necessidade de se adotar a perspectiva de nossos fatos de poder na relação de dependência com o poder central sem pretender identificar esses fatos com os processos originários desse poder c assinalar a grande maioria da população latinoamericana marginalizada do poder mas objeto da violência do sistema penal ZAFFARONI Eugenio Raúl op cit p164165 E o faz no sentido de que nada pode ser compreendido sobre nossa região marginal se não a assumirmos e por conseguinte se não assumirmos nossa marginalização da história etnocentrista da civilização industrial ibid p169 59 O processo de criminalização se orienta pelo condicionamento a estigmatização e a morte segundo Zaffaroni Nossos sistemas penais reproduzem sua clientela por um processo de seleção e condicionamento criminalizante que se orienta por estereótipos proporcionados pelos meios de comunicação de massa Ibid p133 Assim não se pode falar em criminoso e sim em criminalizado para designar aquele que foi selecionado pelo sistema penal 60 A prisionização seria um fenômeno resultante da deterioração ocorrida no indivíduo em função de sua inserção na instituição total chamada prisão Sua principal característica é a regressão o preso é privado de tudo o que um adulto pode fazer normalmente Também a perda da privacidade da autoestima do seu espaço além de outras características como a superpopulação alimentação paupérrima falta de higiene e assistência sanitária etc Ibid p125126 Nesse sentido a prisão é uma máquina de deterioração ao provocar o desenrolar do processo de prisionização 61 O pessoal policizado além de ser selecionado na mesma faixa etária masculina dos criminalizados de acordo também com um estereótipo é introduzido em uma prática corrupta em razão do poder incontrolado a agência da qual passa a fazer parte e é treinado em um discurso externo moralizante e com uma prática interna corrupta Ibid p138 Grifos no original Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 325 deterioração pelo qual passam os futuros operadores das agências judiciais do sistema penal A burocratização como forma de deterioração da pessoa que opera no órgão judicial do sistema penal se inicia por vezes dentro da própria universidade Seu processo de treinamento realizase mediante uma paciente internalização de sinais de falso poder solenidades tratamentos monárquicos placas especiais ou automóveis com insígnias saudações militarizadas do pessoal de tropa de outras agências etc62 Esses sinais de poder iniciam na própria forma como se relacionam alunos e professores De uma maneira geral podese dizer que em muitos casos a postura do docente da área jurídica é um poço de narcisismo egocentrismo e autossuficiência Essa situação gera uma relação autoritária e vertical um verdadeiro monólogo que logo é assimilada também pelo corpo discente63 Tal postura pode ser identificada nos diversos operadores jurídicos o que parece lógico tendo em vista que todos passaram pela mesma formação Após o processo de treinamento burocratizante o indivíduo já deve responder às exigências do papel que lhe for atribuído segundo as características de assepsia ideológica certa neutralidade valorativa sobriedade em tudo suficiência e segurança de resposta e em geral um certo modelo de executivo sênior com discurso moralizante e paternalista ou uma imagem de que na devida idade responderá a este modelo64 O processo de formação do jurista tornase em verdade uma deformação Concluise assim que perante os diversos sujeitos implicados na operacionalidade do sistema penal é ele um complexo aparelho de deterioração regressiva humana que condiciona falsas identidades e papéis negativos65 Ao reproduzir os papéis a academia se torna também uma agência do sistema penal e da mesma forma pratica reiteradamente a violação de direitos humanos daqueles que por ela passam 4 o PAPEl Do EnSino cRítico Do DiREito PEnAl E o imPERAtiVo ético DE EVitAR A moRtE As alternativas ao ensino do Direito Penal dogmático passam pela compreensão de que o próprio sistema penal que o discurso dogmático legitima já não pode ser considerado de acordo com suas promessas Sabese que o mesmo exerce função oposta à declarada posto que ao invés de garantia ao indivíduo e racionalização das penas legitima a arbitrariedade seletiva inerente à operacionalidade do sistema penal Dessa maneira ensinar um Direito Penal crítico ciente das funções reais cumpridas tornase uma forma de diminuição da violência seja em relação aos operadores que sofrem uma deterioração de sua personalidade seja das mortes que caracterizam a sua operacionalidade Nesse sentido Batista traz em uma das obras que buscam propor um estudo do 62 Ibid p133 63 RODRIGUES Horácio Wanderlei Ensino jurídico e direito alternativo São Paulo Acadêmica 1993 p79 64 ZAFFARONI Eugenio Raúl p141 65 Ibid p143 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 326 Direito Penal de maneira crítica a percepção de que apesar de o Direito Penal ter como missão a proteção dos bens jurídicos é necessário que se saiba que numa sociedade dividida em classes o direito penal estará protegendo relações sociais ou interesses ou estados sociais ou valores escolhidos pela classe dominante ainda que aparentem certa universalidade e contribuindo para a reprodução dessas relações Efeitos sociais não declarados da pena também configuram nessas sociedades uma espécie de missão secreta do direito penal 66 A crítica aos paradigmas atuais deve ser conciliada à reconstrução de novas formas de se fazer o direito de maneira que se possa avançar Cumpre verificar de acordo com a evolução dos direitos humanos no mundo que a vida em geral e a dignidade da pessoa humana em especial são os maiores valores e devem ser preservadas dos efeitos destrutivos do sistema penal Tal visão está juridicamente ancorada ainda na Constituição Federal de 1988 a qual expõe como um dos fundamentos da República a dignidade da pessoa humana art 1 III além de prever vários direitos e garantias individuais para preservála67 Além disso prevê direitos sociais econômicos e culturais para sua efetivação Através dessa percepção ao invés de auxiliar a reprodução do positivismo do formalismo e do conservadorismo como tem ocorrido desde a sua fundação no Brasil o ensino jurídico deve buscar a construção de uma sociedade mais justa e democrática mais fraterna e solidária Sua função deve ser formar agentes sociais críticos competentes e comprometidos com as mudanças emergentes com o novo Profissionais do Direito que possuam uma qualificação técnica de alto nível acompanhada de uma consciência de seu papel social da importância estratégica que possuem todas as atividades jurídicas no mundo contemporâneo e portanto da responsabilidade que lhes compete nessa caminhada Em resumo que os cursos jurídicos sejam instrumentos de construção da verdadeira cidadania68 A resposta a ser dada por parte dos operadores do direito às consequências do exercício do Direito Penal deslegitimado está fundamentada também para Zaffaroni 66 BATISTA Nilo Introdução crítica ao direito penal Rio de Janeiro Revan 1990 p116 É necessário observar que existem já manuais de direito penal no Brasil que possibilitam uma perspectiva mais crítica sobre a dogmática Alguns exemplos são SANTOS Juarez Cirino dos Direito penal parte geral Curitiba Lúmen Júris 2006 ZAFFARONI Eugenio Raúl BATISTA Nilo et al Direito penal brasileiro v I 2 ed Rio de Janeiro Revan 2003 ZAFFARONI Eugenio Raúl PIERANGELI José Henrique Manual de direito penal brasileiro 6 ed São Paulo Revista dos Tribunais 2006 67 BRASIL Constituição 1988 Emenda constitucional nº 32 de 11 de setembro de 2001 Constituição Federal Código Penal Código de Processo Penal 5 ed São Paulo Revista dos Tribunais 2005 68 RODRIGUES Horácio Wanderlei Ensino jurídico e direito alternativo op cit p109 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 327 em um imperativo ético Tal imperativo ético se constituiria no fato de que a posição daqueles que hoje operam as agências o sistema penal seria um milagre no sentido etimológico do termo uma maravilha resultante de o indivíduo ter passado por todos os riscos que prendem a muitos no caminho podendo chegar enfim a um elevado grau de saber com as consequências que isso gera Pondo a nu o desprezo pela vida humana praticado no exercício de poder no qual o juiz ou catedrático erigese como operador cria um imperativo de consciência iniludível um compromisso com todos aqueles que não puderam ser beneficiados pelo milagre69 Assim a resposta marginal deve se dar com perspectivas otimistas em relação às possibilidades de redução da violência com a priorização da pessoa como base e o desvalor da destruição da vida humana70 Esta fundamentação encontra hoje uma reafirmação positivada nos instrumentos internacionais dos direitos humanos como anseio da comunidade internacional71 A partir disso parece ser necessário se colocar em colaboração criminologia crítica e Direito Penal que também será crítico de forma a vincular ao discurso jurídico penal o ideal de proteção dos direitos humanos Como nota Aniyar de Castro o garantismo ou respeito vigilância e garantia dos direitos humanos se converteria assim na zona de intersecção de ambos os círculos e no objetivo de alto nível na escala de prioridades de ambas as disciplinas72 Dessa forma o papel da universidade seria justamente o de criação de um discurso jurídicopenal aberto e garantidor Em primeiro lugar é necessário introduzir um discurso diferente e não violento nas fábricas reprodutoras da ideologia do sistema penal ou seja nas universidades e centros de terceiro grau73 Sabendose que o direito em geral e o Direito Penal de maneira específica dentro de uma perspectiva sociológica conflitual são mecanismos de opressão no sentido de que são impostos pelos grupos dominantes e destinados a manter os opressores e oprimidos nos mesmos lugares em que se encontram um Direito Penal crítico deve justamente pôr no centro da reflexão a própria lógica de dominação e de opressão Caso contrário os novos profissionais do direito serão mais braços opressores e não haverá a diminuição a violência Assim a libertação deve ser o objetivo daqueles que lutam por um Direito Penal crítico pela destituição de poder do sistema penal de maneira que a violência e as mortes que o caracterizam possam deixar de existir A partir daí acreditando na possibilidade de mudança da realidade em função de um estudo aprofundado dos efeitos da operacionalidade do sistema penal partese da consciência ingênua que caracteriza a assepsia do dogmatismo para uma consciência crítica que busca se 69 ZAFFARONI Eugenio Raúl op cit p154 Grifos no original 70 Ibid p171 71 Ibid Grifos no original 72 ANIYAR DE CASTRO Lola Criminologia da libertação Rio de Janeiro RevanICC 2005 p125 73 ZAFFARONI Eugenio Raúl op cit p175 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 328 livrar de preconceitos repele posições quietistas é indagadora investiga força choca74 5 concluSão A realidade dos sistemas penais latino americanos tem como principal característica a violência e a morte Diante dos argumentos dos criminólogos críticos que estabelecem a deslegitimação do sistema penal e consequentemente do discurso jurídicopenal devese questionar porque o Direito Penal ainda é ensinado de maneira dogmática E qual função é cumprida pela universidade nesse contexto Percebese então que tal função é a de relegitimar continuamente o sistema penal gerando bacharéis alheios à realidade preocupados apenas com a codificação com a manualística Para fazer frente à violência profunda que assola toda a região marginal latino americana é necessário partir para a mudança das várias instituições que a perpetuam Por isso modificar o ensino do Direito Penal para gerar bacharéis diferentes críticos serve para modificar a base operacional do sistema penal Dessa maneira podese agir de maneira a diminuir a dor a violência e a morte que caracterizam essa operacionalidade A construção de um discurso jurídicopenal condizente com o objetivo principal de salvar vidas humanas passa necessariamente pela universidade Reduzir os níveis de violência significa salvar vidas e isso no atual contexto genocida é revolucionário é parte de uma revolução pela vida indispensável à nossa subsistência75 Perceber o problema da segurança pública como destacada das questões sociais das mudanças no sistema econômico e da ascensão do neoliberalismo é esquecer da realidade por trás dos códigos e legitimar a violência e a morte Evitar a morte é o resultado portanto de se formar operadores do direito críticos e cientes da necessidade de mudança e de abandono da repressão penal REfERênciAS ADORNO Sérgio Os aprendizes do poder o bacharelismo na política brasileira Rio de Janeiro Paz e Terra 1988 ALVES Elizete Lanzoni A docência e a interdisciplinaridade um desafio pedagógico In COLAÇO Thais Luzia Org Aprendendo a ensinar direito o Direito Florianópolis OABSC 2006 ANDRADE Vera Regina Pereira de A ilusão de segurança jurídica do controle da 74 FREIRE Paulo Educação e mudança 10 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 1983 75 ZAFFARONI Eugenio Raúl op cit 218 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 329 violência à violência do controle penal 2ed Porto Alegre Livraria do Advogado 2003 Dogmática jurídica escorço de sua configuração e identidade Porto Alegre Livraria do Advogado 1996 ANIYAR DE CASTRO Lola Criminologia da libertação Rio de Janeiro RevanICC 2005 ARRUDA JR Edmundo Lima de Bacharéis em Direito e crise de Mercado de Trabalho algumas reflexões Sequência estudos jurídicos e políticos Florianópolis n6 dez 1981 BARATTA Alessandro Criminologia crítica e crítica do direito penal 3ed Rio de Janeiro RevanICC 2002 Direitos Humanos entre a violência estrutural e a violência penal Fascículos de Ciências Penais Porto Alegre v6 n2 p4461 abrmaiojun Principios del derecho penal mínimo In ELBERT Carlos Alberto BELLOQUI Laura orgs Criminología y sistema penal Compilación in memorian p299333 Buenos Aires Julio César Faira 2004 BASTOS Aurélio Wander Ensino jurídico tópicos para estudo e análise Sequência estudos jurídicos e políticos Florianópolis v4 dez 1981 p5972 O ensino jurídico no Brasil e as suas personalidades históricas uma recuperação de seu passado para reconhecer seu futuro In Ensino jurídico OAB 170 anos de cursos jurídicos no Brasil p3555 Brasília OAB Conselho Federal 1997 O ensino jurídico no Brasil 2ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2000 BATISTA Nilo Introdução crítica ao direito penal Rio de Janeiro Revan 1990 BECCARIA Cesare Dos delitos e das penas São Paulo Martins Fontes 1997 BECKER Fernando Modelos pedagógicos e modelos epistemológicos Educação e realidade Porto Alegre UFRGS v19 n1 janjun 1993 BECKER Howard Outsiders Studies in the sociology of deviance New York The Free Press 1996 BRASIL Constituição 1988 Emenda constitucional nº 32 de 11 de setembro de 2001 Constituição Federal Código Penal Código de Processo Penal 5ed São Paulo Revista dos Tribunais 2005 CARVALHO José Murilo de Carvalho A construção da ordem a elite política imperial Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2003 COHEN Stanley Visiones del control social delitos castigos y clasificaciones Barcelona PPU 1988 COLAÇO Thais Luzia O ensino do direito no Brasil e a elite nacional Congresso de História das Universidades da Europa e da América Cartagena Colômbia nov 2004 DEL OLMO Rosa A América Latina e sua criminologia Rio de Janeiro RevanICC 2004 DIAS Jorge de Figueiredo ANDRADE Manuel da Costa Criminologia O homem delinquente e a sociedade criminógena Coimbra Coimbra 1997 FOUCAULT Michel Vigiar e punir história da violência nas prisões 3ed Petrópolis Vozes 1984 FREIRE Paulo Educação e mudança 10ed Rio de Janeiro Paz e Terra 1983 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 330 Pedagogia do oprimido 43ed Rio de Janeiro Paz e Terra 2005 CID MOLINÉ José LARRAURI PIJOAN Elena Teorías criminológicas Explicación y prevención de la delincuencia Barcelona Bosch 2001 LEMERT Edwin M Social pathology A systematic approach to the theory of sociopathic behavior New York McGrawHill Book Company 1951 LIMA JR Jayme Benvenuto org Execuções sumárias arbitrárias ou extrajudiciais Uma aproximação da realidade brasileira Recife 2001 LOPES José Reinaldo de Lima O direito na história lições introdutórias São Paulo Max Limonad 2000 MACHADO Antônio Alberto Ensino jurídico e mudança social Franca UNESP FHDSS 2005 RODRIGUES Horácio Wanderlei Ensino jurídico e direito alternativo São Paulo Acadêmica 1993 O ensino jurídico de graduação no Brasil contemporâneo análise e perspectivas a partir da proposta alternativa de Roberto Lyra Filho 193 f Dissertação Mestrado em Direito Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis 1987 RUSCHE Georg KIRCHHEIMER Otto Punição e estrutura social 2ed Rio de Janeiro Revan ICC 2004 SANTOS Juarez Cirino dos Direito penal parte geral Curitiba Lumen Juris 2006 Política criminal realidades e ilusões do discurso penal Discursos Sediciosos crime direito e sociedade Rio de Janeiro ano 7 n12 p5357 julhodezembro 2002 VENTURA Deisy Ensinar direito Barueri Manole 2004 ZAFFARONI Eugenio Raúl Em busca das penas perdidas a perda de legitimidade do sistema penal Rio de Janeiro Revan 1991 ZAFFARONI Eugenio Raúl BATISTA Nilo et al Direito penal brasileiro vol I 2ed Rio de Janeiro Revan 2003 ZAFFARONI Eugenio Raúl PIERANGELI José Henrique Manual de direito penal brasileiro 6ed São Paulo Revista dos Tribunais 2006 Direito e Democracia v10 n2 p331343 juldez 2009 Canoas Giorgio Agamben e o garantismo razões de um desencontro moysés da fontoura Pinto neto RESumo No presente artigo traço uma crítica às apropriações do pensamento do filósofo Giorgio Agamben por grande parte dos juristas nas quais sua crítica ao estado de exceção é vinculada a uma reafirmação do garantismo do Estado de Direito e dos direitos humanos Sustento em sentido contrário que as instituições liberais para Agamben são apenas formas de encobrimento da matriz oculta arcanum imperii do Poder Soberano o poder de vida e morte sobre o homo sacer estrutura que a secularização não eliminou Por isso na pouco conhecida parte propositiva do pensamento de Agamben a ênfase é para uma política que vem na qual conceitos hoje centrais como soberania direitos humanos e contrato social perdem seu papel Palavraschave Agamben Garantismo Soberania Exceção Direito Profanação Agamben and guarantism Reasons of a misencounter ABStRAct In this paper Im tracing a critic of the philosopher Giorgio Agambens thinking appropriations by the majority of jurists in what they relate his critique of the state of exception to a reaffirmation of guarantism Rule of Law and human rights I affirm in an opposite way that the liberal institutions for Agamben are just forms of hiding the occult matrix arcanum imperii of Sovereign Power the power of life and death on the homo sacer structure which the secularization didnt eliminate Because of this in the notwellknown propositional part of the Agambens thinking the emphasis is to an incoming politics in what todays central concepts like sovereign human rights and social contract lose their relevance Keywords Agamben Guarantism Sovereign Exception Right Profanation 1 AGAmBEn cRítico Do EStADo DE ExcEção A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é na verdade a regra geral Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade Nesse momento perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção com isso nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo Walter Benjamin Oitava Tese sobre a História Moysés da Fontoura Pinto Neto é professor de Criminologia e Direito Penal da Universidade Luterana do Brasil Doutorando em Filosofia PUCRS Mestre e especialista em Ciências Criminais pela PUCRS Conselheiro e pesquisador do ICA Instituto de Criminologia e Alteridade Email moysespintonetoyahoocombr Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 332 Não pode haver frustração maior ao estudioso do pensamento de Michel Foucault do que saber que no campo jurídico o francês que redefiniu a filosofia política moderna e elaborou um pensamento microfísico do poder estendido em redes de saberpoder com seus respectivos regimes de verdade é reduzido a um crítico da pena de prisão Certamente o Direito não é a única área que não levou ao extremo o pensamento de Foucault ou simplesmente não o entendeu mas reduzir o complexo e poderoso pensamento do autor a Vigiar a Punir é uma falta tão grande quanto reduzir esse livro teorizador do poder exercido na sua nervura concreta do seu caráter positivo e das estruturas disciplinares da sociedade moderna a uma crítica da pena de prisão Ao que parece o pensamento filosófico de Giorgio Agamben que rapidamente vai entrando no campo jurídico e se tornando a nova moda segue o mesmo caminho É verdade que a prosa de Agamben não é exatamente generosa com o leitor ao aproximar se facilmente da poesia no seu estilo bastante direto e às vezes crítico No entanto a recepção desse pensador que questionou as bases da filosofia política contemporânea colocando em xeque conceitos centrais como soberania e direitos humanos não deve reduzilo apenas a um crítico do estado de exceção A riqueza das proposições que Agamben põe na linhagem que remete à crítica devastadora da Modernidade efetuada pela Escola de Frankfurt especialmente na figura de Walter Benjamin complementada com a reflexão sobre a biopolítica iniciada por Michel Foucault não pode ser reduzida à defesa do Estado de Direito e das garantias individuais ou da extensão dos direitos humanos à vida nua Esse trabalho foi feito e muito bem pelo também italiano Luigi Ferrajoli por exemplo que rechaça com propriedade todas as intervenções do Estado Policial e reitera a crença nos valores liberais ainda que agora com maior feição socialdemocrata na defesa da implementação dos direitos sociais dando origem ao que hoje se chama de garantismo O problema de Giorgio Agamben é definitivamente outro1 O presente artigo tem a finalidade de familiarizar o leitor com alguns conceitos desse filósofo que contra todas as suposições mantém um caráter relativamente sistemático no seu pensamento estruturando conceitos como meios puros infância brinquedo vida nua estado de exceção profanação e política que vem ao longo da sua extensa bibliografia Assim o leitor jurista que se aproxima do autor a partir de Estado de Exceção sua penúltima obra pode perder parte fundamental da discussão posta em jogo 2 A SAlA DE ESPElhoS filoSÓficA Os textos de Giorgio Agamben têm uma estrutura verdadeiramente especular ou seja entrar em um ensaio de Agamben significa mergulhar em conceitos pressupostos que remetem a outros trabalhos do autor É como se estivéssemos ingressando em uma 1 Isso não significa não serem possíveis tais conjugações apenas se está sinalando que do ponto de vista das teses de Agamben o recurso ao garantismo não tem consistência e é preciso pensar saídas muito mais radicais para as aporias que propõe Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 333 sala de espelhos na qual a história da filosofia e a admiração de Agamben pela filosofia clássica parece evidente vai sendo projetada mediante uma série de referências que são tecidas conjuntamente ao longo da sua prosa Nesse sentido é possível identificar influências que vão de Aristóteles conceitos de potência e gesto Platão as ideias Spinoza ética e felicidade imanência absoluta Hegel negatividade até mais recentes como Heidegger Hannah Arendt Michel Foucault Gilles Deleuze e principalmente Walter Benjamin Além desses é constante a interlocução com Antonio Negri Jacques Derrida Emmanuel Levinas Hans Jonas Georges Bataille JeanLuc Nancy e Karl OttoApel muitas vezes em sentido crítico e linguistas como Sausurre Benveniste e Jakobson Poderíamos dizer que a filosofia de Agamben é continuação das obras de Michel Foucault na filosofia política e tentativa de resposta aos dilemas apontados por Hannah Arendt como limites da política ocidental em especial o problema dos campos de concentração Mas o autor recupera ao mesmo tempo categorias do pensamento de Walter Benjamin que confrontam a tradição a partir de conceitos teológicos messianismo tempo que resta redenção e profanação dos resíduos sagrados que persistem mesmo nos laicos Estados de Direito ocidentais Esse pequeno mapa da sala de espelhos que é a filosofia de Agamben2 já mostra sua descontinuidade com propostas que se limitariam a afirmar os direitos humanos e a democracia liberal em contraponto ao uso cada vez mais constante da figura genérica do estado de exceção Não se trata em absoluto disso Embora os Estados contemporâneos cada vez mais recorram a técnicas de Estado de Emergência configurando a situação em que a exceção vira regra podemos dizer que para Agamben essa banalização da estratégia do estado de exceção é apenas sintoma não o mal em si a ser atacado que é mais profundo 3 filoSofiA PolíticA E fActiciDADE A questão tradicional da filosofia política poderia ser esquematicamente formulada nesses termos como pode o discurso da verdade ou simplesmente a filosofia entendida como discurso da verdade por excelência fixar os limites de direito do poder Eu preferiria colocar uma outra mais elementar e muito mais concreta em relação a esta pergunta tradicional nobre e filosófica de que regras de direito as relações de poder lançam mão para produzir discursos de verdade Michel Foucault em Soberania e Disciplina A ideia de contrato social que subjaz à maior parte das teorias constitucionalistas e de filosofia política em geral é inegavelmente herança metafísica herdada dospelos 2 Uma exata delimitação do campo intelectual em que se insere Giorgio Agamben é realizada pelo próprio autor no texto A Imanência Absoluta 2005a p481522 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 334 teóricos liberais do século XVIII Apoiar a política sobre a ideia de contrato social significa em outros termos basearse em um fundamento pressuposto porém jamais ocorrido na sua facticidade3 Todo o discurso dos direitos humanos ou fundamentais e da supremacia constitucional depende dessa premissa do contrato social articulador dos direitos e deveres do cidadão um sujeito abstrato igual e livre no Estado de Direito Sem esse suporte metafísico o discurso tornase puramente dogmático É justamente sob esse prisma que devemos perceber o tecido sobre o qual se constrói a filosofia de Giorgio Agamben Aqui sem dúvida alguma há uma inequívoca remissão a Martin Heidegger cuja crítica à ontoteologia é feita justamente apoiada na facticidade A tentativa do pensamento ontoteológico de escapar à finitude entendendo a realidade em caráter absoluto seria justamente a maior fraqueza da tradição que deixou de perceber a finitude no seu caráter positivo Partindose da facticidade percebese que a essência da presença Dasein está em sua existência e que o que onticamente é conhecido e constitui o mais próximo é ontologicamente o mais distante o desconhecido e o que constantemente se desconsidera em seu significado ontológico HEIDEGGER 2006 p87 Ou seja a ontoteologia salta por cima desses pressupostos em direção à metafísica tradicional A facticidade será o único ponto de partida legítimo de uma filosofia que destrói a tradição BORNHEIM 1972 p139 STEIN 2004 p113121 LEVINAS 2005 p22 VATTIMO 1996 p724 CAPUTO 1993 p6593 AGAMBEN 2005a p390 e 2002a p157 Tratase então de uma espécie de encurtamento do campo de indagação filosófico desconectandoa da teologia e da necessidade de encontrar um ponto de vista fora da condição de ser nomundo Porém se o território típico de Heidegger é a ontologia será Michel Foucault o pensador que irá se apropriar do pensamento da facticidade para entender as relações de poder4 Foucault irá pensar a política para aquém da ideia de sujeito normativo típica da Modernidade e ainda presente mesmo naqueles pensadores que reivindicam se integrar à era pósmetafísica por exemplo Habermas Para isso terá de se deslocar da metafísica do contrato social e seu conceito de homem para as relações concretas de poder que se dão a partir dos aparatos disciplinares e das estratégias de saberpoder 3 A concepção de metafísica aqui adotada é a heideggeriana que remete à ontoteologia Deixase de lado por hora a questão do construcionismo de John Rawls que pretende uma concepção política nãometafísica do contrato social OLIVEIRA 1999 p56 É interessante observar que todas as descrições constitucionalistas põem o contrato social como premissa ainda que por vezes a construir Quer dizer mesmo aqueles que admitem a Constituição como processo em construção têm como premissa a ideia de que está constituída a sociedade ou mesmo em versões ainda mais duvidosas a comunidade como se um documento normativo fosse capaz de transformar uma estrutura social profundamente enraizada na faticidade do seu acontecimento em algo distinto como verdadeira fictio juris Sobre o tema ver o paralelo exato que Agamben traça entre o Direito e seu fora e simultaneamente a ontoteologia o logos e sua relação com o ser AGAMBEN 2004 p923 Ver também Agamben 2002a p98 4 Assim embora Foucault afirme em sua última entrevista que foi Nietzsche que preponderou na sua trajetória é certo que também afirma ter sido sua leitura de Heidegger que determinou sua formação Ver Oliveira 1999 p152 Duarte 2006 Iríamos mais longe para afirmar que é simplesmente impossível compreender o pensamento de Foucault sem o prévio solo formado por Heidegger sob pena de se cair em um esteticismo apolítico ou relativismo insípido É bom se anotar no entanto que o Nietzsche da Genealogia da Moral não por acaso uma das obras centrais para Foucault está muito próximo da facticidade e das relações efetivas de poder OLIVEIRA 2004 p151 E que de certa forma Nietzsche foi o primeiro a encurtar o horizonte filosófico ao propor a morte de Deus Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 335 Das grandes discussões sobre os fundamentos do contrato gerações de direitos e garantias do cidadão Foucault irá se deslocar até as extremidades do controle social do poder exercido de forma quase invisível pequena ou insignificante nos sistemas prêmiocastigo das instituições típicas da Modernidade fábrica manicômio prisão etc Da discussão sobre a atuação dos principais agentes do Estado o soberano o juiz o legislador deslocase para os especialistas que submetem indivíduos de forma dispersa sem precisar da exibição expressionista típica dos monarcas absolutos Assim aquilo que o discurso moderno caracteriza como uma racionalização do poder inspirada nas luzes é para Foucault apenas uma mudança na estratégia de controle que em vez de se exercer de forma repressiva e expressiva ex suplício passa a se efetivar de forma positiva econômica e dispersa especialmente por meio da estratégia disciplinar ex prisão 1999 p1085 Essa dispersão coloca ainda em xeque a suposta centralização do poder típica premissa pressuposta no discurso jurídicoliberal a partir da figura do Estado Para Michel Foucault ao contrário e nesse ponto lembrando bastante Norbert Elias o poder é sobretudo uma relação e por isso está disperso ao longo de todas as relações sociais inclusive as de conhecimento que se pretendem neutras O gesto de Foucault permite romper com o obstáculo jurídico que impunha a concepção abstrata e metafísica do sujeito normativo como primeira figura da filosofia política6 Removendo esse obstáculo Foucault permitenos vislumbrar o poder incidindo no próprio corpo dos sujeitos abrindo a reflexão para além de critérios metafísiconormativos Como diz o próprio Agamben sobre Foucault uma das orientações mais constantes do trabalho de Foucault é o decidido abandono da abordagem tradicional do problema do poder baseada em modelos jurídicoinstitucionais a definição da soberania a teoria do Estado na direção de uma análise sem preconceito dos modos concretos com que o poder penetra no próprio corpo de seus sujeitos e em suas formas de vida 2002a p13 5 Em outras palavras Foucault compreendeu que a partir do momento em que a vida passou a se constituir no elemento político por excelência o qual tem de ser administrado calculado gerido regrado e normalizado o que se observa não é um decréscimo da violência muito pelo contrário pois tal cuidado da vida traz consigo de maneira necessária a exigência contínua e crescente da morte em massa visto que é apenas no contraponto da violência depuradora que se podem garantir mais e melhores meios de sobrevivência a uma dada população Não há portanto contradição entre biopolítica e tanatopolítica isto é entre o poder de gerência e incremento da vida e o poder de matar aos milhões para garantir as melhores condições vitais possíveis A descoberta da importância política do racismo como forma privilegiada de atuação estatal fartamente empregada ao longo do surto imperialista europeu do século XIX e radicalizada cotidianamente ao longo do século XX tendo no nazismo e no stalinismo seu ápice tem de ser compreendida segundo os termos daquela mutação operada na própria natureza do exercício do poder soberano Para Foucault num contexto histórico biopolítico não há Estado que não se valha de formas amplas e variadas de racismo como justificativa para exercer seu direito de matar em nome da preservação da intensificação e da purificação da vida DUARTE 2006 6 E poderíamos afirmar as teorias jurídicas em geral Não é coincidência que a maioria dos manuais jurídicos comece por uma história abstrata do Direito não obstante o contrasenso que fica evidente no próprio conceito de história abstrata Ou por exemplo que os livros de Direito Constitucional estejam todos amparados na ideia de Constituição enquanto um pacto social a par do fato de que a maioria delas não foi feita sob esses auspícios Daí que as descrições remetam às abstrações dos jusnaturalistas do século XVIII baseadas no indivíduo livre e racional Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 336 Dessa forma a política até então reflexão baseada em uma teoria aprisionada pelo jurídico é pensada enquanto biopolítica na medida em que os saberes modernos colocam o corpo como objeto central do poder mediante uma estratégia disciplinar levada a cabo por especialistas de diversas ordens psiquiatras psicólogos juristas criminólogos policiais etc FOUCAULT 2007 p146158 2006 p179191 Agamben define seu próprio trabalho especificamente na obra ainda inacabada Homo Sacer como uma continuação da investigação foucaultiana7 interrompida pela morte deste Seu foco é a interface entre a biopolítica trazida à luz e os modelos jurídicoinstitucionais Como se dão essas conexões 4 A GEnEAloGiA Do homo SAcER Somente em um horizonte biopolítico de fato será possível decidir se as categorias sobre cujas oposições fundouse a política moderna direitaesquerda privado público absolutismodemocracia etc e que foram progressivamente esfumando a ponto de entrarem hoje numa verdadeira e própria zona de indiscernibilidade deverão ser definitivamente abandonadas ou poderão eventualmente reencontrar o significado que naquele próprio horizonte haviam perdido Giorgio Agamben em Homo Sacer É mais uma vez Walter Benjamin que inspira Agamben nas suas reflexões presentes no primeiro volume de Homo Sacer O Poder Soberano e a Vida Nua O trabalho explicitador das afirmações elípticas de Benjamin em expressões como vida nua o estado de emergência é a regra linguagem pura etc revela a profunda admiração de Agamben pelo filósofo que se suicida pouco antes da II Guerra Mundial após descobrir que ele judeu seria capturado pelas tropas alemãs Benjamin certa vez coloca sob suspeição o dogma da sacralidade da vida e afirma ser necessária uma detida investigação sobre ele AGAMBEN 2002a p74 É essa a tarefa que Agamben realiza Efetuando uma genealogia que remete ao termo homo sacer figura do direito romano que a um só tempo poderia ser morta por qualquer um mas jamais sacrificada aos deuses ele identifica aqui uma figuralimite que marca o poder soberano O homo sacer fica submetido à morte por qualquer um sem que sua eliminação consista em um sacrifício ou um homicídio Essa dúplice exclusão do mundo profano do homicídio e do mundo sagrado do sacrifício marca uma estrutura de violência que é o verso do corpo soberano Kantorowicz estudara em Os Dois Corpos do Rei essa figura análoga ao homo sacer pois sobrevive mesmo após a morte incompatível com o mundo 7 Não se pode desprezar jamais no entanto a herança de Walter Benjamin que Agamben sempre faz questão de referir e que pode ser equacionada em termos metodológicos a partir do materialismo histórico destituído de todo seu caráter economicista Ver Agamben 1993 p109123 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 337 humano que é O excedente de poder do soberano é precisamente aquilo que pode ser definido como a capacidade de constituir a si e aos outros como vida matável e insacrificável8 AGAMBEN 2002a p1078 FOUCAULT 2007 p147 A figura da vida sacra ou nua remetida genealogicamente para o direito romano no homo sacer esteve desde sempre presente e permanece na política ocidental Agamben está de acordo com Carl Schmitt em considerar as categorias jurídicopolíticas como secularizações de conceitos teológicos mantendo as estruturas intactas ainda que alterados os atores AGAMBEN 2002b p6870 2005b p110 Como consta na epígrafe logo acima é somente sob o pano de fundo biopolítico que as questões da Modernidade podem ser equacionadas e resolvidas Como antecipa o filósofo já no prólogo de Homo Sacer a implicação da vida nua na esfera política constitui o núcleo originário ainda que encoberto do poder soberano Podese dizer aliás que a produção de um corpo biopolítico seja a contribuição original do poder soberano A biopolítica é nesse sentido pelo menos tão antiga quanto a exceção soberana AGAMBEN 2002a p15 Por isso na era biopolítica contemporânea o judeu no campo de concentração desempenha o mesmo papel do homo sacer do direito romano sendo matável por qualquer um sem que com isso exista homicídio O que pode parecer acidente para Agamben é um destino9 natural da política ocidental que apenas torna visível a estrutura que corre subterrânea no rio da biopolítica Apenas a persistência da figura do homo sacer é capaz de explicar a capacidade de fácil permuta entre os regimes totalitários e as democracias liberais sem que a maioria dos conceitos e instituições sofra mudanças drásticas Nesse sentido é preciso entender que certos eventos tal como a Shoah não devem ser compreendidos como desvios do projeto moderno mas como o trazer à visibilidade o que por vezes está oculto e apesar disso é o fundamento do poder soberano O homo sacer está portanto aquém de qualquer direito a que faça jus o cidadão lacuna que Hannah Arendt já havia identificado nas suas análises dos regimes totalitários Essa ambiguidade extremada no próprio título da Declaração dos direitos do homem e do cidadão revela que é a cobertura soberana que garante os direitos humanos pretensamente universais mas sempre produtores de um resíduo sem cobertura denominado vida nua Sua relação com o Estado é de abandono ou seja uma espécie de exclusão inclusiva como na exceção em que a figura é incluída apenas para ser excluída ficando capturada fora excapere AGAMBEN 2002a p2810 8 Vale referir mais um trecho de Homo Sacer o espaço político da soberania terseia constituído portanto através de uma dúplice exceção como uma excrescência do profano no religioso e do religioso no profano que configura uma zona de indiferença entre sacrifício e homicídio Soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício e sacra isto é matável e insacrificável é a vida que foi captura nesta esfera AGAMBEN 2002a p91 9 Para uma explicitação do que é destino ver Agamben 2006 p122 10 Percebase que a tese de Agamben abre novo campo para observação da relação da vida nua com o Estado que ao contrário do que se convencionalmente coloca não é de exclusão mas de captura fora ou seja uma exclusão inclusiva na qual a relação se mantém em forma de bando A ideia de excluído típica das ciências humanas e da filosofia da libertação por isso deveria ganhar mais rigor técnico e ser substituída pela de abandonado ou capturado fora na medida em que a relação com o soberano permanece ainda que o indivíduo esteja fora da lei Percebase que essa é a única explicação razoável para o fato de que é precisamente a vida nua os habitantes dos morros cariocas pex que sente a força do Estado na sua nervura mais intensa da tortura ao extermínio apesar de estar do lado de fora dela em relação pex aos direitos sociais Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 338 Por sua vez o estado de exceção na outra ponta da estrutura que cria o homo sacer é o poder de o soberano suspender as regras jurídicas sem revogálas criando uma figura híbrida que permanece na fronteira entre jurídico e político O estado de exceção consiste na norma que é aplicada na sua desaplicação Seu signo não é o excesso de poderes mas precisamente o vazio que é preenchido por uma decisão soberana A estrutura antes de manifestar uma confusão de poderes é antes uma substituição da lei por decisões com força de lei ou melhor força de lei11 A lei nesse caso não é substituída por outra que proibiria ou permitiria determinadas condutas mas apenas suspensa criando um vazio onde se infiltraria o estado de exceção E o campo é precisamente o lugar onde esse vazio jurídico se espacializa atuando o poder soberano diretamente sobre os corpos sem qualquer mediação da norma O correspondente topológico dessa estrutura segundo o próprio Agamben é o direito de resistência 2004 p23 Assim como o estado de exceção a resistência é inapreensível pelo Direito à medida que mesmo a sua previsão não é capaz de elidir o surgimento de novas formas de descumprimento legal Da mesma maneira o estado de exceção não pode ser reduzido às figuras do estado de sítio ou do estado de necessidade Mais uma vez a relação de captura fora se processa nos dois fenômenos o Direito só pode manter relação mediante uma inclusão para excluir Sua estrutura permanece inacessível ao Direito à medida que está na sua base como potência invisível sempre à disposição do soberano Que as grandes potências mundiais utilizem essa estratégia explicitamente e à exaustão não custa reafirmar é apenas sintoma do enfraquecimento dos mitos filosóficometafísicos que sustentam a democracia liberal12 5 A PRofAnAção Humanidade é o nome respeitoso dado a essa economia e a seus cálculos minuciosos Michel Foucault em Vigiar e Punir Mostrar o direito em sua nãorelação com a vida e a vida em sua nãorelação com o direito significa abrir entre eles um espaço para a ação humana que há algum tempo reivindicava para si o nome de política Giorgio Agamben em Estado de Exceção 11 Riscada 12 Que recentemente uma sólida democracia liberal tenha recorrido aos campos para combater inimigos é sintoma de que Agamben em 1995 não exagerava Sobre o tema conferir Pinto Neto 2008 Por outro lado impossível não pensar por exemplo nas constantes execuções em caráter de extermínio promovidas pelas polícias brasileiras figurando uma espécie de estado de exceção permanente no qual estão jogados os habitantes desses locais análogos aos campos Os juristas brasileiros no entanto negamse a explicitar positivamente essa estrutura preferindo apenas sinalizar um déficit de Constituição Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 339 Podemos dizer assim que Giorgio Agamben defende uma ampliação dos direitos humanos para atingir também ao homo sacer nos nossos dias miseráveis imigrantes ilegais combatentesinimigos etc que está aquém do Direito É justamente essa interpretação que modo geral tem prevalecido entre os juristas No entanto podemos dizer com certeza que não é a solução proposta pelo autor Primeiro pela razão óbvia que o próprio Agamben é oriundo do Direito sendo evidente que alguém com sua erudição não desconhece essas soluções constitucionalistas13 Mas esse não é o motivo mais importante Em contraponto à política ocidental enredada eternamente nos mesmos dilemas por não perceber a radicalidade das questões que se põem Agamben vislumbra uma política que vem Essa política não trabalhará mais com os conceitos jurídicopolíticos típicos da nossa sociedade como soberania direitos humanos nacionalidade cidadania Para o autor todos esses conceitos estão cingidos à lógica teológica e metafísica que não evitou os desastres da II Guerra Mundial e nem evita a repetição constante de Auschwitz que continua ocorrendo enquanto jogamos futebol AGAMBEN 2002b p2614 A metafísica do contrato social sempre pressupõe o sujeito normativo o cidadão fazendo permanentemente o jogo da captura fora em relação à vida nua A humanidade do vivente fica dependendo de uma máquina antropológica AGAMBEN 2002c p6976 2005a p4168 Mas por que não encampar simplesmente a ideia de progresso ou civilização e admitir como faz por exemplo Habermas a Modernidade como tarefa ainda a cumprir Porque para Agamben a estrutura do estado de exceção sempre permaneceu oculta e subterrânea sobre ela repousando o sistema político mesmo na Modernidade 2002a p17 A forma como a teoria do contrato social lidou com essa parcela de poder é precisamente na figura hobbesiana do estado de natureza O estado de natureza diz ele é na verdade estado de exceção em que a cidade se apresenta por um instante que é ao mesmo tempo intervalo cronológico e átimo intemporal tanquam dissoluta A fundação não é portanto um evento que se cumpre de uma vez por todas in illo tempore mas é continuamente operante no estado civil na forma da decisão soberana 2002a p115 Não é necessário muito esforço para perceber que o poder soberano mesmo nesses tempos de fim da história reivindica seguidamente a utilização do estado de exceção contra seus homines sacri sejam eles terroristas presos em Guantánamo párias sociais exterminados pela polícia brasileira ou imigrantes presos na zona de exceção de um aeroporto francês Quer dizer a estrutura da exceção não é corrigível pelo Direito ou pela Constituição mas pressuposta por ambos e necessária enquanto essência do poder soberano que lhes dá força Esse é ponto em que precisamente as leituras jurídicas de Agamben mostramse extremamente inapropriadas o estado de exceção não é o contrário do Estado de Direito antes é o que o sustenta As relações entre estado de exceção e Estado de Direito não são de antítese A exceção é aquilo que possibilita a visibilidade do Estado de Direito por vezes se tornando explícita em situações em que é ameaçada 13 O que por óbvio abrange o garantismo E se o garantismo trabalha para relegitimar o sistema punitivo ainda que admitindo deficiências e ilegitimidades inarredáveis parece óbvio que essa não é a intenção de Agamben que ataca todo quadro jurídicoconstitucional contemporâneo e quiçá o sistema penal seu ponto mais deficitário e doentio 14 Sob esse pressuposto Agamben recusa qualquer caráter místico ao extermínio dos judeus nos campos de concentração Why confer on extermination the prestige of the mystical AGAMBEN 2002b p32 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 340 Ao reduzir Agamben a um crítico das técnicas de emergência adotadas por vários Estados contemporâneos os juristas desperdiçam a nova leitura das relações entre direito e política proposta pelo filósofo italiano e tributária de Michel Foucault na qual o estado de exceção aparece como matriz oculta em toda teorização do Estado de Direito produzindo seus efeitos sobre aqueles que estão capturados fora do ordenamento jurídico Em um gesto heideggeriano Agamben possibilita aos juristas explicar positivamente a completa anomia em determinadas situações apesar da Constituição15 sem que se reduzam ao típico gesto metafísico da exclusão de tudo que não é logos lá apenas falta Constituição16 É aqui precisamente que entram particularidades pouco conhecidas das teses de Agamben O ensaio Elogio da Profanação por exemplo elucida algumas delas O filósofo italiano afirma que os juristas romanos sabiam o que significa propriamente profanar quer dizer restituir ao uso o que estava separado aos deuses na esfera do sacro Contestando a etimologia que ficou célebre em Durkheim e até hoje permanece por exemplo em Michel Maffesoli o autor afirma que religio não vem de religare mas de relegere ou seja colocar em uma esfera separada Profanar tecnicamente significa devolver ao uso comum o que foi separado na esfera sagrada sem ignorar que um dia aquilo pertenceu ao sacro mas provocando novo uso AGAMBEN 2007a p65 617 Se Agamben se dedica a analisar o potencial da profanação em relação ao que Benjamin chamara de a religião capitalista crêse que é também possível transplantar o gesto para a esfera dos modelos jurídicoinstitucionais Aquilo que outrora foi sagrado deve ser profanado A secularização apenas troca as peças sem mexer nas respectivas posições É a profanação que permite um novo uso desfazendo o jogo teológico político que até hoje ilumina o poder soberano e seu verso o homo sacer Somente nos desfazendo do sagrado num esforço que pode parecer paradoxal a muitos moderno18 é que seremos capazes de desativar a máquina que repete Auschwitz a todos os momentos Tudo oposto ao discurso constitucionalista que sacraliza a Constituição tornandoa indisponível aos viventes19 15 Percebase nesse sentido a inconsistência da teoria constitucionalista que sem facticidade sinala o déficit de direitos de segunda geração ou dimensão na população marginalizada Ora não é apenas a falta de prestações estatais que está em jogo O Estado Liberal no Brasil sequer se implementou na integralidade Habitantes de favelas morros e palafitas não veem respeitados sequer os direitos individuais sendo alvo preferencial de intervenções policiais sem qualquer limite Não se trata pois apenas de cidadãos que veem sonegadas prestações estatais mas estão em paridade na igualdade diante da lei tratase antes de uma estrutura hierárquica de sociedade em que alguns estão simplesmente aquém da lei 16 E imediatamente todos aqueles familiarizados com a desconstrução podem enxergar a possibilidade ventilada pelo próprio Derrida em Força de Lei da imediata desconstrução da teoria moderna do Direito que se estrutura a vontade de sistema é uma obsessão no mundo jurídico justamente a partir da marginalização e exclusão arbitrária de tudo aquilo sobre o qual não incide 17 O exemplo usado por Agamben é a discordância dos franciscanos em relação à interpretação do Papa João XXII sobre o consumo das coisas Os franciscanos reivindicavam uma relação com a coisa não que apagasse ou substituísse as normativas mas que desativasse qualquer direito sobre o item restringindoo ao puro uso AGAMBEN 2007 p72 18 Conferir nesse aspecto o brilhante artigo de Vladimir Safatle sobre Walter Benjamin que posiciona Agamben justamente nesse sentido 200832 Ver também Agamben 2006 p125 19 É a razão pela qual Catherine Mills define Agamben e Derrida como autores de um espaço pósjurídico MILLS 2008 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 341 É nesse sentido que devem ser compreendidas afirmações como a que encerra parte de Estado de Exceção quando afirma que um dia a humanidade brincará com o direito como as crianças brincam com os objetos fora de uso não para devolvêlos ao seu uso canônico e sim para libertálos definitivamente dele O que se encontra depois do direito não é um valor de uso mais próprio e original e que precederia o direito mas um novo uso que só nasce depois dele AGAMBEN 2004 p9820 Os brinquedos inicialmente objetos tão sérios que deviam ser depositados nos túmulos para acompanhar os defuntos no outro mundo permitem acessar uma terceira área que não está nem dentro nem fora do mundo mas que precisamente abre o dentro e o fora compreendida no topos outopos em que se situa nossa experiência de sernomundo Por essa razão não são simples objetos antes nos permitem acessar essa dimensão a que estão familiarizados fetichistas e crianças selvagens e poetas AGAMBEN 2007b p98 1993 p71 É nessa região do brincar mais originária que a dimensão sujeitoobjeto que se permite criar um novo uso para o direito desvinculado da soberania O conceito de cidadão é deixado de lado em nome de uma política que seja capaz de responder ao desafio da vida nua hoje ameaçador de miseráveis san papiers e outros sem que a democracia liberal possa dar respostas consistentes O vínculo com a cidade deve ser perfurado e articulado topologicamente por uma fita de Möbius na qual exterior e interior de codeterminam As cidades europeias nesse caso retomariam sua vocação de se relacionar por recíproca extraterritorialidade Seríamos todos nós os refugiados only in a world in which the spaces and states have been thus perforated and topologically deformed and in which the citizen has been able to recognize the refugee that he or she is only in such a world is the political survival of humankind today thinkable AGAMBEN 2000 p256 A proposta de Agamben certamente se distancia a léguas do garantismo que é mais uma sistematização jurídicoanalítica do programa da democracia liberal formulado a partir das gerações de direitos e suas garantias não por acaso um dos seus principais temas é o princípio da secularização Enquanto os direitos humanos servem apenas para sinalar a decadência da cultura jurídica que aprisionou o político na Modernidade da qual a área humanitária separada da política é a principal testemunha como advertia Hannah Arendt os direitos do homem falham sempre exatamente onde são 20 Parcos comentários têm sido dedicados à parte final e decisiva da luta de gigantes entre Schmitt e Benjamin narrada no quarto capítulo de Estado de Exceção Isso porque a conclusão é simplesmente incompreensível sem uma visão conjunta da obra de Agamben ou de Benjamin uma vez que povoada por conceitos técnicos que permeiam a obra do autor Um desenvolvimento das ideias ali previstas está em Agamben 2005b p113 137 nos comentários à expressão paulina eis euaggelion theou Uma pista está na própria interpretação de Diante da Lei de Kafka por Agamben na qual a porta da lei ao final é fechada porque essa lei é consumada Ver também Souza 2006 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 342 necessários a política que vem precisa de novas categorias para profanar os símbolos sagrados da tradição e construir uma nova felicidade AGAMBEN 2007a p67 2002b p24 2002a p140 Por trás desse projeto está a recuperação da vida que foi apropriada pela lei tornandose dessa indiscernível como na aldeia que fica ao pé do Castelo de Kafka 2002a p6121 Nesse mundo futuro anunciado pelo messianismo que se apropria do tempo que resta22 cumprindo a tese sobre a história de Benjamin quando afirma que o estado de exceção deve ser tornado real a máquina antropológica é desativada e o homem se comunica por gestos que são chamados por Agamben de meios puros Nestes a própria distinção entre o animal humano e o nãohumano é desativada configurando uma linguagem pura que apenas comunica a si mesma 2002c p1648 2005a p401 2006 p126 Recuperar o sentido da ação política desconectada da violência do Direito que institui ou conserva parece ser a tarefa fundamental proposta por esse pensamento cortando o nexo entre o Direito e a vida Da discussão tradicional sobre quais fins justificam a violência sobram apenas os meios sem fins A política que vem nesse sentido é precisamente o terreno dos meios puros 2000 p118 REfERênciAS AGAMBEN Giorgio Infancy and History LondonNew York Verso 1993 Means without end Notes on politics Minneapolis Minnesota University Press 2000 Homo Sacer o poder soberano e a vida nua I Belo Horizonte Editora UFMG 2002a Remnants of Auschwitz The witness and the archive New York Zone Books 2002b Lo abierto el hombre y el animal Buenos Aires Adriana Hidalgo 2002c Estado de exceção São Paulo Boitempo 2004 La potencia del pensamiento Buenos Aires Adriana Hidalgo 2005a The time that remains A commentary on the Letter to the Romans Stanford Stanford University Press 2005b A linguagem e a morte um seminário sobre o lugar na negatividade Belo Horizonte UFMG 2006 21 Ver nesse sentido a semelhança da proposta de Souza 2004 embora lastreada em outra trilha filosófica Ver também Flickinger 2004 22 A estrutura desse tempo messiânico está exposta no comentário à Carta aos Romanos de Paulo no qual Agamben define a relação com a lei em sentido simetricamente oposto a Carl Schmitt o pensador antimessiânico por excelência enquanto a relação com o fora da lei inexiste no estado de exceção à medida que as normas são aplicáveis na sua inaplicação formando um espaço vazio kenomatico que é preenchido pela decisão com força de lei no tempo messiânico a lei é cumprida esgotada chegase à sua consumação a partir da justiça que a realiza um pleroma ao invés do espaço vazio da exceção ver AGAMBEN 2005b p107 Diz ele que the messianic pleroma of the law is an Aufhebung of the state of exception an absolutizing of katargesis 108 Com essa formulação Agamben dá ênfase sobretudo à parte final da Oitava Tese de Benjamin evidentemente deixada de lado pelos seus comentaristas juristas que posiciona a necessidade do estado de exceção tornarse real Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 343 Estâncias a palavra e o fantasma na cultura ocidental Belo Horizonte UFMG 2007a Profanações São Paulo Boitempo 2007b BENJAMIN Walter Magia e técnica arte e política obras escolhidas vol 1 São Paulo Brasiliense 1994 CAPUTO John Desmitificando Heidegger Lisboa Piaget 1993 FOUCAULT Michel Vigiar e punir Petrópolis Vozes 1999 Microfísica do poder Rio de Janeiro Graal 2006 História da sexualidade 1 a vontade de saber Rio de Janeiro Graal 2007 FLICKINGER HansGeorge A juridificação da liberdade os direitos humanos no processo de globalização Veritas 54 2004 HEIDEGGER Martin Ser e tempo Petrópolis Vozes 2006 LEVINAS Emmanuel Entre nós ensaios sobre a alteridade 2ed Petrópolis Vozes 2005 MILLS Catherine Playing with law Derrida and Agamben on postjuridical space South Atlantic Quarterly 107I 2008 OLIVEIRA Nythamar Fernandes de Tractatus ethicopoliticus genealogia do ethos moderno Porto Alegre EDIPUCRS 1999 OLIVER Kelly Stopping the antropological machine Agamben with Heidegger and MerleauPonty PhaenEX 2 n2 2007 PINTO NETO Moysés da F A farmácia dos Direitos Humanos algumas observações sobre a prisão de Guantánamo Panóptica 13 2008 SAFATLE Vladimir Atravessar a Modernidade dobrando os joelhos In Escola de Frankfurt São Paulo Bregantini 2008 Dossiê CULT SOUZA Ricardo Timm de A racionalidade ética como fundamento de uma sociedade variável reflexos sobre suas condições de possibilidade desde a crítica filosófica do fenômeno da corrupção In A Qualidade do Tempo para além das aparências históricas Org Ruth Gauer Rio de Janeiro Lumen Juris 2004 Por uma estética antropológica desde a ética da alteridade do estado de exceção da violência sem memória ao estado de exceção da excepcionalidade do concreto Veritas 51 2006 STEIN Ernildo Mundo vivido Porto Alegre EDIPUCRS 2004 VATTIMO Gianni Introdução a Heidegger Lisboa Piaget 1996 Direito e Democracia v10 n2 p344360 juldez 2009 Canoas a carta de Pero Vaz de caminha1 Edição de base carta a El Rei D manuel Dominus São Paulo 19632 Senhor posto que o Capitãomor desta Vossa frota e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a notícia do achamento desta Vossa terra nova que se agora nesta navegação achou não deixarei de também dar disso minha conta a Vossa Alteza assim como eu melhor puder ainda que para o bem contar e falar o saiba pior que todos fazer Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância por boa vontade a qual bem certo creia que para aformosentar nem afear aqui não há de pôr mais do que aquilo que vi e me pareceu Da marinhagem e das singraduras do caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza porque o não saberei fazer e os pilotos devem ter este cuidado E portanto Senhor do que hei de falar começo E digo quê A partida de Belém foi como Vossa Alteza sabe segundafeira 9 de março E sábado 14 do dito mês entre as 8 e 9 horas nos achamos entre as Canárias mais perto da Grande Canária E ali andamos todo aquele dia em calma à vista delas obra de três a quatro léguas E domingo 22 do dito mês às dez horas mais ou menos houvemos vista das ilhas de Cabo Verde a saber da ilha de São Nicolau segundo o dito de Pero Escolar piloto Na noite seguinte à segundafeira amanheceu se perdeu da frota Vasco de Ataíde com a sua nau sem haver tempo forte ou contrário para poder ser 1 Conforme a Revista da Universidade de Coimbra Vol XI Coimbra Impprensa da Universidade 1933 p1000 A Carta de Pero Vaz de Caminha a D Manuel narrativa incomparável da viagem de Pedro Álvares Cabral como disse Capistrano de Abreu foi publicada pela primeira vez na Corografia Brasílica do Padre Manuel Aires de Casal considerado o patriarca da geografia no Brasil Classificada como importante documento histórico e geográfico pouco valor jurídico lhe tem sido reconhecido Não obstante tratase de um documento que reproduz com fidelidade os primeiros atos jurídicos da civilização europeia nas terras brasileiras a merecer atenção dos estudiosos do Direito a tomada e exercício de posse com a simbólica fixação da cruz na terra para ser rezada a primeira missa as transações mediante permuta de produtos locais com quinquilharias trazidas do além mar o exercício de poder traduzido pelo confessado desiderato de impor costumes e religião e explorar a riqueza da terra entre outros são fatores que justificam a sua reedição Nota da Editora 2 NUPILL Núcleo de Pesquisas em Informática Literatura e Lingüística LCC Publicações Eletrônicas wwwculturabrasilorgzipcartapdf Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 345 Fez o capitão suas diligências para o achar em umas e outras partes Mas não apareceu mais E assim seguimos nosso caminho por este mar de longo até que terçafeira das Oitavas de Páscoa que foram 21 dias de abril topamos alguns sinais de terra estando da dita Ilha segundo os pilotos diziam obra de 660 ou 670 léguas os quais eram muita quantidade de ervas compridas a que os mareantes chamam botelho e assim mesmo outras a que dão o nome de rabodeasno E quartafeira seguinte pela manhã topamos aves a que chamam furabuchos Neste mesmo dia a horas de véspera houvemos vista de terra A saber primeiramente de um grande monte muito alto e redondo e de outras serras mais baixas ao sul dele e de terra chã com grandes arvoredos ao qual monte alto o capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra A Terra de Vera Cruz Mandou lançar o prumo Acharam vinte e cinco braças E ao solposto umas seis léguas da terra lançamos ancoras em dezenove braças ancoragem limpa Ali ficamonos toda aquela noite E quintafeira pela manhã fizemos vela e seguimos em direitura à terra indo os navios pequenos diante por dezessete dezesseis quinze catorze doze nove braças até meia légua da terra onde todos lançamos ancoras em frente da boca de um rio E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas pouco mais ou menos E dali avistamos homens que andavam pela praia uns sete ou oito segundo disseram os navios pequenos que chegaram primeiro Então lançamos fora os batéis e esquifes E logo vieram todos os capitães das naus a esta nau do Capitãomor E ali falaram E o Capitão mandou em terra a Nicolau Coelho para ver aquele rio E tanto que ele começou a irse para lá acudiram pela praia homens aos dois e aos três de maneira que quando o batel chegou à boca do rio já lá estavam dezoito ou vinte Pardos nus sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas Traziam arcos nas mãos e suas setas Vinham todos rijamente em direção ao batel E Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos E eles os depuseram Mas não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse por o mar quebrar na costa Somente arremessou lhe um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro preto E um deles lhe arremessou um sombreiro de penas de ave compridas com uma copazinha de penas vermelhas e pardas como de papagaio E outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas miúdas que querem parecer de aljôfar as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza E com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala por causa do mar Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 346 À noite seguinte ventou tanto sueste com chuvaceiros que fez caçar as naus E especialmente a Capitaina E sexta pela manhã às oito horas pouco mais ou menos por conselho dos pilotos mandou o Capitão levantar ancoras e fazer vela E fomos de longo da costa com os batéis e esquifes amarrados na popa em direção norte para ver se achávamos alguma abrigada e bom pouso onde nós ficássemos para tomar água e lenha Não por nos já minguar mas por nos prevenirmos aqui E quando fizemos vela estariam já na praia assentados perto do rio obra de sessenta ou setenta homens que se haviam juntado ali aos poucos Fomos ao longo e mandou o Capitão aos navios pequenos que fossem mais chegados à terra e se achassem pouso seguro para as naus que amainassem E velejando nós pela costa na distância de dez léguas do sítio onde tínhamos levantado ferro acharam os ditos navios pequenos um recife com um porto dentro muito bom e muito seguro com uma mui larga entrada E meteramse dentro e amainaram E as naus foramse chegando atrás deles E um pouco antes de solpôsto amainaram também talvez a uma légua do recife e ancoraram a onze braças E estando Afonso Lopez nosso piloto em um daqueles navios pequenos foi por mandado do Capitão por ser homem vivo e destro para isso meterse logo no esquife a sondar o porto dentro E tomou dois daqueles homens da terra que estavam numa almadia mancebos e de bons corpos Um deles trazia um arco e seis ou sete setas E na praia andavam muitos com seus arcos e setas mas não os aproveitou Logo já de noite levouos à Capitaina onde foram recebidos com muito prazer e festa A feição deles é serem pardos um tanto avermelhados de bons rostos e bons narizes bem feitos Andam nus sem cobertura alguma Nem fazem mais caso de encobrir ou deixa de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara Acerca disso são de grande inocência Ambos traziam o beiço de baixo furado e metido nele um osso verdadeiro de comprimento de uma mão travessa e da grossura de um fuso de algodão agudo na ponta como um furador Metemnos pela parte de dentro do beiço e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita a modo de roque de xadrez E trazemno ali encaixado de sorte que não os magoa nem lhes põe estorvo no falar nem no comer e beber Os cabelos deles são corredios E andavam tosquiados de tosquia alta antes do que sobrepente de boa grandeza rapados todavia por cima das orelhas E um deles trazia por baixo da solapa de fonte a fonte na parte detrás uma espécie de cabeleira de penas de ave amarela que seria do comprimento de um coto mui basta e mui cerrada que lhe cobria o toutiço e as orelhas E andava pegada aos cabelos pena por pena com uma confeição branda como de maneira tal que a cabeleira era mui redonda e mui basta e mui igual e não fazia míngua mais lavagem para a levantar Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 347 O Capitão quando eles vieram estava sentado em uma cadeira aos pés uma alcatifa por estrado e bem vestido com um colar de ouro mui grande ao pescoço E Sancho de Tovar e Simão de Miranda e Nicolau Coelho e Aires Corrêa e nós outros que aqui na nau com ele íamos sentados no chão nessa alcatifa Acenderamse tochas E eles entraram Mas nem sinal de cortesia fizeram nem de falar ao Capitão nem a alguém Todavia um deles fitou o colar do Capitão e começou a fazer acenos com a mão em direção à terra e depois para o colar como se quisesse dizernos que havia ouro na terra E também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal como se lá também houvesse prata Mostraramlhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo tomaramno logo na mão e acenaram para a terra como se os houvesse ali Mostraramlhes um carneiro não fizeram caso dele Mostraramlhes uma galinha quase tiveram medo dela e não lhe queriam pôr a mão Depois lhe pegaram mas como espantados Deramlhes ali de comer pão e peixe cozido confeitos fartéis mel figos passados Não quiseram comer daquilo quase nada e se provavam alguma coisa logo a lançavam fora Trouxeramlhes vinho em uma taça mal lhe puseram a boca não gostaram dele nada nem quiseram mais Trouxeramlhes água em uma albarrada provaram cada um o seu bochecho mas não beberam apenas lavaram as bocas e lançaramna fora Viu um deles umas contas de rosário brancas fez sinal que lhas dessem e folgou muito com elas e lançouas ao pescoço e depois tirouas e meteuas em volta do braço e acenava para a terra e novamente para as contas e para o colar do Capitão como se dariam ouro por aquilo Isto tomávamos nós nesse sentido por assim o desejarmos Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar isto não queríamos nós entender por que lho não havíamos de dar E depois tornou as contas a quem lhas dera E então estiraramse de costas na alcatifa a dormir sem procurarem maneiras de encobrir suas vergonhas as quais não eram fanadas e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas O Capitão mandou pôr por baixo da cabeça de cada um seu coxim e o da cabeleira esforçavase por não a estragar E deitaram um manto por cima deles e consentindo aconchegaramse e adormeceram Sábado pela manhã mandou o Capitão fazer vela fomos demandar a entrada a qual era mui larga e tinha seis a sete braças de fundo E entraram todas as naus dentro e ancoraram em cinco ou seis braças ancoradouro que é tão grande e tão formoso de Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 348 dentro e tão seguro que podem ficar nele mais de duzentos navios e naus E tanto que as naus foram distribuídas e ancoradas vieram os capitães todos a esta nau do Capitão mor E daqui mandou o Capitão que Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias fossem em terra e levassem aqueles dois homens e os deixassem ir com seu arco e setas aos quais mandou dar a cada um uma camisa nova e uma carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de osso que foram levando nos braços e um cascavel e uma campainha E mandou com eles para lá ficar um mancebo degredado criado de dom João Telo de nome Afonso Ribeiro para lá andar com eles e saber de seu viver e maneiras E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho Fomos assim de frecha direitos à praia Ali acudiram logo perto de duzentos homens todos nus com arcos e setas nas mãos Aqueles que nós levamos acenaramlhes que se afastassem e depusessem os arcos E eles os depuseram Mas não se afastaram muito E mal tinham pousado seus arcos quando saíram os que nós levávamos e o mancebo degredado com eles E saídos não pararam mais nem esperavam um pelo outro mas antes corriam a quem mais correria E passaram um rio que aí corre de água doce de muita água que lhes dava pela braga E muitos outros com eles E foram assim correndo para além do rio entre umas moitas de palmeiras onde estavam outros E ali pararam E naquilo tinha ido o degredado com um homem que logo ao sair do batel o agasalhou e levou até lá Mas logo o tornaram a nós E com ele vieram os outros que nós leváramos os quais vinham já nus e sem carapuças E então se começaram de chegar muitos e entravam pela beira do mar para os batéis até que mais não podiam E traziam cabaças dágua e tomavam alguns barris que nós levávamos e enchiamnos de água e traziamnos aos batéis Não que eles de todo chegassem a bordo do batel Mas junto a ele lançavamnos da mão E nós tomávamo los E pediam que lhes dessem alguma coisa Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas E a uns dava um cascavel e a outros uma manilha de maneira que com aquela encarna quase que nos queriam dar a mão Davamnos daqueles arcos e setas em troca de sombreiros e carapuças de linho e de qualquer coisa que a gente lhes queria dar Dali se partiram os outros dois mancebos que não os vimos mais Dos que ali andavam muitos quase a maior parte traziam aqueles bicos de osso nos beiços E alguns que andavam sem eles traziam os beiços furados e nos buracos traziam uns espelhos de pau que pareciam espelhos de borracha E alguns deles traziam três daqueles bicos a saber um no meio e os dois nos cabos E andavam lá outros quartejados de cores a saber metade deles da sua própria cor e metade de tintura preta um tanto azulada e outros quartejados descaques Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 349 Ali andavam entre eles três ou quatro moças bem novinhas e gentis com cabelos muito pretos e compridos pelas costas e suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que de as nós muito bem olharmos não se envergonhavam Ali por então não houve mais fala ou entendimento com eles por a barbana deles ser tamanha que se não entendia nem ouvia ninguém Acenamoslhes que se fossem E assim o fizeram e passaramse para além do rio E saíram três ou quatro homens nossos dos batéis e encheram não sei quantos barris dágua que nós levávamos E tornamo nos às naus E quando assim vínhamos acenaramnos que voltássemos Voltamos e eles mandaram o degredado e não quiseram que ficasse lá com eles o qual levava uma bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas para lá as dar ao senhor se o lá houvesse Não trataram de lhe tirar coisa alguma antes mandaramno com tudo Mas então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar que lhe desse aquilo E ele tornou e deu aquilo em vista de nós a aquele que o da primeira agasalhara E então veiose e nós levamolo Esse que o agasalhou era já de idade e andava por galanteria cheio de penas pegadas pelo corpo que parecia seteado como São Sebastião Outros traziam carapuças de penas amarelas e outros de vermelhas e outros de verdes E uma daquelas moças era toda tingida de baixo a cima daquela tintura e certo era tão bem feita e tão redonda e sua vergonha tão graciosa que a muitas mulheres de nossa terra vendolhe tais feições envergonhara por não terem as suas como ela Nenhum deles era fanado mas todos assim como nós E com isto nos tornamos e eles foramse À tarde saiu o Capitãomor em seu batel com todos nós outros capitães das naus em seus batéis a folgar pela baía perto da praia Mas ninguém saiu em terra por o Capitão o não querer apesar de ninguém estar nela Apenas saiu ele com todos nós em um ilhéu grande que está na baía o qual aquando baixamar fica mui vazio Com tudo está de todas as partes cercado de água de sorte que ninguém lá pode ir a não ser de barco ou a nado Ali folgou ele e todos nós bem uma hora e meia E pescaram lá andando alguns marinheiros com um chinchorro e mataram peixe miúdo não muito E depois volvemonos às naus já bem noite Ao domingo de Pascoela pela manhã determinou o Capitão ir ouvir missa e sermão naquele ilhéu E mandou a todos os capitães que se arranjassem nos batéis e fossem com ele E assim foi feito Mandou armar um pavilhão naquele ilhéu e dentro levantar um altar mui bem arranjado E ali com todos nós outros fez dizer missa a qual disse o padre frei Henrique em voz entoada e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes que todos assistiram a qual missa segundo meu parecer foi ouvida por todos com muito prazer e devoção Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 350 Ali estava com o Capitão a bandeira de Cristo com que saíra de Belém a qual esteve sempre bem alta da parte do Evangelho Acabada a missa desvestiuse o padre e subiu a uma cadeira alta e nós todos lançados por essa areia E pregou uma solene e proveitosa pregação da história evangélica e no fim tratou da nossa vida e do achamento desta terra referindose à Cruz sob cuja obediência viemos que veio muito a propósito e fez muita devoção Enquanto assistimos à missa e ao sermão estaria na praia outra tanta gente pouco mais ou menos como a de ontem com seus arcos e setas e andava folgando E olhandonos sentaram E depois de acabada a missa quando nós sentados atendíamos a pregação levantaramse muitos deles e tangeram corno ou buzina e começaram a saltar e dançar um pedaço E alguns deles se metiam em almadias duas ou três que lá tinham as quais não são feitas como as que eu vi apenas são três traves atadas juntas E ali se metiam quatro ou cinco ou esses que queriam não se afastando quase nada da terra só até onde podiam tomar pé Acabada a pregação encaminhouse o Capitão com todos nós para os batéis com nossa bandeira alta Embarcamos e fomos indo todos em direção à terra para passarmos ao longo por onde eles estavam indo na dianteira por ordem do Capitão Bartolomeu Dias em seu esquife com um pau de uma almadia que lhes o mar levara para o entregar a eles E nós todos trás dele a distância de um tiro de pedra Como viram o esquife de Bartolomeu Dias chegaramse logo todos à água metendose nela até onde mais podiam Acenaramlhes que pousassem os arcos e muitos deles os iam logo pôr em terra e outros não os punham Andava lá um que falava muito aos outros que se afastassem Mas não já que a mim me parecesse que lhe tinham respeito ou medo Este que os assim andava afastando trazia seu arco e setas Estava tinto de tintura vermelha pelos peitos e costas e pelos quadris coxas e pernas até baixo mas os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria cor E a tintura era tão vermelha que a água lha não comia nem desfazia Antes quando saía da água era mais vermelho Saiu um homem do esquife de Bartolomeu Dias e andava no meio deles sem implicarem nada com ele e muito menos ainda pensavam em fazerlhe mal Apenas lhe davam cabaças dágua e acenavam aos do esquife que saíssem em terra Com isto se volveu Bartolomeu Dias ao Capitão E viemonos às naus a comer tangendo trombetas e gaitas sem os mais constranger E eles tornaramse a sentar na praia e assim por então ficaram Neste ilhéu onde fomos ouvir missa e sermão espraia muito a água e descobre muita areia e muito cascalho Enquanto lá estávamos foram alguns buscar marisco e não Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 351 no acharam Mas acharam alguns camarões grossos e curtos entre os quais vinha um muito grande e muito grosso que em nenhum tempo o vi tamanho Também acharam cascas de berbigões e de amêijoas mas não toparam com nenhuma peça inteira E depois de termos comido vieram logo todos os capitães a esta nau por ordem do Capitãomor com os quais ele se aportou e eu na companhia E perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos para a melhor mandar descobrir e saber dela mais do que nós podíamos saber por irmos na nossa viagem E entre muitas falas que sobre o caso se fizeram foi dito por todos ou a maior parte que seria muito bem E nisto concordaram E logo que a resolução foi tomada perguntou mais se seria bem tomar aqui por força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza deixando aqui em lugar deles outros dois destes degredados E concordaram em que não era necessário tomar por força homens porque costume era dos que assim à força levavam para alguma parte dizerem que há de tudo quanto lhes perguntam e que melhor e muito melhor informação da terra dariam dois homens desses degredados que aqui deixássemos do que eles dariam se os levassem por ser gente que ninguém entende Nem eles cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor estoutros o não digam quando cá Vossa Alteza mandar E que portanto não cuidássemos de aqui por força tomar ninguém nem fazer escândalo mas sim para os de todo amansar e apaziguar unicamente de deixar aqui os dois degredados quando daqui partíssemos E assim ficou determinado por parecer melhor a todos Acabado isto disse o Capitão que fôssemos nos batéis em terra E verseia bem quejando era o rio Mas também para folgarmos Fomos todos nos batéis em terra armados e a bandeira conosco Eles andavam ali na praia à boca do rio para onde nós íamos e antes que chegássemos pelo ensino que dantes tinham puseram todos os arcos e acenaram que saíssemos Mas tanto que os batéis puseram as proas em terra passaramse logo todos além do rio o qual não é mais ancho que um jogo de mancal E tanto que desembarcamos alguns dos nossos passaram logo o rio e meteramse entre eles E alguns aguardavam e outros se afastavam Com tudo a coisa era de maneira que todos andavam misturados Eles davam desses arcos com suas setas por sombreiros e carapuças de linho e por qualquer coisa que lhes davam Passaram além tantos dos nossos e andaram assim misturados com eles que eles se esquivavam e afastavamse e iam alguns para cima onde outros estavam E então o Capitão fez que o tomassem ao colo dois homens e passou o rio e fez tornar a todos A gente que ali estava não seria mais que aquela do costume Mas logo que o Capitão chamou todos para trás alguns se chegaram a ele não por o Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 352 reconhecerem por Senhor mas porque a gente nossa já passava para aquém do rio Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas daquelas já ditas e resgatavamnas por qualquer coisa de tal maneira que os nossos levavam dali para as naus muitos arcos e setas e contas E então tornouse o Capitão para aquém do rio E logo acudiram muitos à beira dele Ali veríeis galantes pintados de preto e vermelho e quartejados assim pelos corpos como pelas pernas que certo assim pareciam bem Também andavam entre eles quatro ou cinco mulheres novas que assim nuas não pareciam mal Entre elas andava uma com uma coxa do joelho até o quadril e a nádega toda tingida daquela tintura preta e todo o resto da sua cor natural Outra trazia ambos os joelhos com as curvas assim tintas e também os colos dos pés e suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência assim descobertas que não havia nisso desvergonha nenhuma Também andava lá outra mulher nova com um menino ou menina atado com um pano aos peitos de modo que não se lhe viam senão as perninhas Mas nas pernas da mãe e no resto não havia pano algum Em seguida o Capitão foi subindo ao longo do rio que corre rente à praia E ali esperou por um velho que trazia na mão uma pá de almadia Falou enquanto o Capitão estava com ele na presença de todos nós mas ninguém o entendia nem ele a nós por mais coisas que a gente lhe perguntava com respeito a ouro porque desejávamos saber se o havia na terra Trazia este velho o beiço tão furado que lhe cabia pelo buraco um grosso dedo polegar E trazia metido no buraco uma pedra verde de nenhum valor que fechava por fora aquele buraco E o Capitão lha fez tirar E ele não sei que diabo falava e ia com ela para a boca do Capitão para lha meter Estivemos rindo um pouco e dizendo chalaças sobre isso E então enfadouse o Capitão e deixouo E um dos nossos deulhe pela pedra um sombreiro velho não por ela valer alguma coisa mas para amostra E depois houvea o Capitão creio para mandar com as outras coisas a Vossa Alteza Andamos por aí vendo o ribeiro o qual é de muita água e muito boa Ao longo dele há muitas palmeiras não muito altas e muito bons palmitos Colhemos e comemos muitos deles Depois tornouse o Capitão para baixo para a boca do rio onde tínhamos desembarcado E além do rio andavam muitos deles dançando e folgando uns diante os outros sem se tomarem pelas mãos E faziamno bem Passouse então para a outra banda do rio Diogo Dias que fora almoxarife de Sacavém o qual é homem gracioso e de prazer E levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita E meteuse a dançar com eles tomandoos pelas mãos e eles folgavam e riam e andavam com ele muito bem ao som Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 353 da gaita Depois de dançarem fez ali muitas voltas ligeiras andando no chão e salto real de que se eles espantavam e riam e folgavam muito E conquanto com aquilo os segurou e afagou muito tomavam logo uma esquiveza como de animais montezes e foramse para cima E então passou o rio o Capitão com todos nós e fomos pela praia de longo ao passo que os batéis iam rentes à terra E chegamos a uma grande lagoa de água doce que está perto da praia porque toda aquela ribeira do mar é apaulada por cima e sai a água por muitos lugares E depois de passarmos o rio foram uns sete ou oito deles meterse entre os marinheiros que se recolhiam aos batéis E levaram dali um tubarão que Bartolomeu Dias matou E levavamlho e lançouo na praia Bastará que até aqui como quer que se lhes em alguma parte amansassem logo de uma mão para outra se esquivavam como pardais do cevadouro Ninguém não lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem mais E tudo se passa como eles querem para os bem amansarmos Ao velho com quem o Capitão havia falado deulhe uma carapuça vermelha E com toda a conversa que com ele houve e com a carapuça que lhe deu tanto que se despediu e começou a passar o rio foise logo recatando E não quis mais tornar do rio para aquém Os outros dois o Capitão teve nas naus aos quais deu o que já ficou dito nunca mais aqui apareceram fatos de que deduzo que é gente bestial e de pouco saber e por isso tão esquiva Mas apesar de tudo isso andam bem curados e muito limpos E naquilo ainda mais me convenço que são como aves ou alimárias montezinhas as quais o ar faz melhores penas e melhor cabelo que às mansas porque os seus corpos são tão limpos e tão gordos e tão formosos que não pode ser mais E isto me faz presumir que não tem casas nem moradias em que se recolham e o ar em que se criam os faz tais Nós pelo menos não vimos até agora nenhumas casas nem coisa que se pareça com elas Mandou o Capitão aquele degredado Afonso Ribeiro que se fosse outra vez com eles E foi e andou lá um bom pedaço mas a tarde regressou que o fizeram eles vir e não o quiseram lá consentir E deramlhe arcos e setas e não lhe tomaram nada do seu Antes disse ele que lhe tomara um deles umas continhas amarelas que levava e fugia com elas e ele se queixou e os outros foram logo após ele e lhas tomaram e tornaramlhas a dar e então mandaramno vir Disse que não vira lá entre eles senão umas choupaninhas de rama verde e de feteiras muito grandes como as de Entre Douro e Minho E assim nos tornamos às naus já quase noite a dormir Segundafeira depois de comer saímos todos em terra a tomar água Ali vieram então muitos mas não tantos como as outras vezes E traziam já muito poucos arcos E estiveram um pouco afastados de nós mas depois pouco a pouco misturaramse Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 354 conosco e abraçavamnos e folgavam mas alguns deles se esquivavam logo Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha e por qualquer coisa E de tal maneira se passou a coisa que bem vinte ou trinta pessoas das nossas se foram com eles para onde outros muitos deles estavam com moças e mulheres E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas de aves uns verdes outros amarelos dos quais creio que o Capitão há de mandar uma amostra a Vossa Alteza E segundo diziam esses que lá tinham ido brincaram com eles Neste dia os vimos mais de perto e mais à nossa vontade por andarmos quase todos misturados uns andavam quartejados daquelas tinturas outros de metades outros de tanta feição como em pano de ras e todos com os beiços furados muitos com os ossos neles e bastantes sem ossos Alguns traziam uns ouriços verdes de árvores que na cor queriam parecer de castanheiras embora fossem muito mais pequenos E estavam cheios de uns grãos vermelhos pequeninos que esmagandose entre os dedos se desfaziam na tinta muito vermelha de que andavam tingidos E quanto mais se molhavam tanto mais vermelhos ficavam Todos andam rapados até por cima das orelhas assim mesmo de sobrancelhas e pestanas Trazem todos as testas de fonte a fonte tintas de tintura preta que parece uma fita preta da largura de dois dedos E o Capitão mandou aquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados que fossem meterse entre eles e assim mesmo a Diogo Dias por ser homem alegre com que eles folgavam E aos degredados ordenou que ficassem lá esta noite Foramse lá todos e andaram entre eles E segundo depois diziam foram bem uma légua e meia a uma povoação em que haveria nove ou dez casas as quais diziam que eram tão compridas cada uma como esta nau Capitaina E eram de madeira e das ilhargas de tábuas e cobertas de palha de razoável altura e todas de um só espaço sem repartição alguma tinham de dentro muitos esteios e de esteio a esteio uma rede atada com cabos em cada esteio altas em que dormiam E de baixo para se aquentarem faziam seus fogos E tinha cada casa duas portas pequenas uma numa extremidade e outra na oposta E diziam que em cada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas e que assim os encontraram e que lhes deram de comer dos alimentos que tinham a saber muito inhame e outras sementes que na terra dá que eles comem E como se fazia tarde fizeramnos logo todos tornar e não quiseram que lá ficasse nenhum E ainda segundo diziam queriam vir com eles Resgataram lá por cascavéis e outras coisinhas de pouco valor que levavam papagaios vermelhos muito grandes e formosos e dois verdes pequeninos e carapuças de penas verdes e um pano de penas de muitas cores espécie de tecido assaz belo Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 355 segundo Vossa Alteza todas estas coisas verá porque o Capitão volas há de mandar segundo ele disse E com isto vieram e nós tornamonos às naus Terçafeira depois de comer fomos em terra fazer lenha e para lavar roupa Estavam na praia quando chegamos uns sessenta ou setenta sem arcos e sem nada Tanto que chegamos vieram logo para nós sem se esquivarem E depois acudiram muitos que seriam bem duzentos todos sem arcos E misturaramse todos tanto conosco que uns nos ajudavam a acarretar lenha e metêlas nos batéis E lutavam com os nossos e tomavam com prazer E enquanto fazíamos a lenha construíam dois carpinteiros uma grande cruz de um pau que se ontem para isso cortara Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros E creio que o faziam mais para verem a ferramenta de ferro com que a faziam do que para verem a cruz porque eles não tem coisa que de ferro seja e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas metidas em um pau entre duas talas mui bem atadas e por tal maneira que andam fortes porque lhas viram lá Era já a conversação deles conosco tanta que quase nos estorvavam no que havíamos de fazer E o Capitão mandou a dois degredados e a Diogo Dias que fossem lá à aldeia e que de modo algum viessem a dormir às naus ainda que os mandassem embora E assim se foram Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha atravessavam alguns papagaios essas árvores verdes uns e pardos outros grandes e pequenos de sorte que me parece que haverá muitos nesta terra Todavia os que vi não seriam mais que nove ou dez quando muito Outras aves não vimos então a não ser algumas pombasseixeiras e pareceramme maiores bastante do que as de Portugal Vários diziam que viram rolas mas eu não as vi Todavia segundo os arvoredos são mui muitos e grandes e de infinitas espécies não duvido que por esse sertão haja muitas aves E cerca da noite nós volvemos para as naus com nossa lenha Eu creio Senhor que não dei ainda conta aqui a Vossa Alteza do feitio de seus arcos e setas Os arcos são pretos e compridos e as setas compridas e os ferros delas são canas aparadas conforme Vossa Alteza verá alguns que creio que o Capitão a Ela há de enviar Quartafeira não fomos em terra porque o Capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a despejálo e fazer levar às naus isso que cada um podia levar Eles acudiram à praia muitos segundo das naus vimos Seriam perto de trezentos segundo Sancho de Tovar que para lá foi Diogo Dias e Afonso Ribeiro o degredado aos quais o Capitão ontem ordenara que de toda maneira lá dormissem tinham voltado já de noite por eles não quererem que lá ficassem E traziam papagaios verdes e outras aves pretas quase como pegas com a diferença de terem o bico branco e rabos curtos E quando Sancho de Tovar recolheu à nau queriam vir com ele alguns mas ele não Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 356 admitiu senão dois mancebos bem dispostos e homens de prol Mandou pensar e curá los mui bem essa noite E comeram toda a ração que lhes deram e mandou darlhes cama de lençóis segundo ele disse E dormiram e folgaram aquela noite E não houve mais este dia que para escrever seja Quintafeira derradeiro de abril comemos logo quase pela manhã e fomos em terra por mais lenha e água E em querendo o Capitão sair desta nau chegou Sancho de Tovar com seus dois hóspedes E por ele ainda não ter comido puseramlhe toalhas e veiolhe comida E comeu Os hóspedes sentaramno cada um em sua cadeira E de tudo quanto lhes deram comeram mui bem especialmente lacão cozido frio e arroz Não lhes deram vinho por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem Acabado o comer metemonos todos no batel e eles conosco Deu um grumete a um deles uma armadura grande de porco montês bem revolta E logo que a tomou meteua no beiço e porque se lhe não queria segurar deramlhe uma pouca de cera vermelha E ele ajeitoulhe seu adereço da parte de trás de sorte que segurasse e meteua no beiço assim revolta para cima e ia tão contente com ela como se tivesse uma grande jóia E tanto que saímos em terra foise logo com ela E não tornou a aparecer lá Andariam na praia quando saímos oito ou dez deles e de aí a pouco começaram a vir E pareceme que viriam este dia a praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta Alguns deles traziam arcos e setas e deram tudo em troca de carapuças e por qualquer coisa que lhes davam Comiam conosco do que lhes dávamos e alguns deles bebiam vinho ao passo que outros o não podiam beber Mas querme parecer que se os acostumarem o hão de beber de boa vontade Andavam todos tão bem dispostos e tão bem feitos e galantes com suas pinturas que agradavam Acarretavam dessa lenha quanta podiam com mil boas vontades e levavamna aos batéis E estavam já mais mansos e seguros entre nós do que nós estávamos entre eles Foi o Capitão com alguns de nós um pedaço por este arvoredo até um ribeiro grande e de muita água que ao nosso parecer é o mesmo que vem ter à praia em que nós tomamos água Ali descansamos um pedaço bebendo e folgando ao longo dele entre esse arvoredo que é tanto e tamanho e tão basto e de tanta qualidade de folhagem que não se pode calcular Há lá muitas palmeiras de que colhemos muitos e bons palmitos Ao sairmos do batel disse o Capitão que seria bom irmos em direitura à cruz que estava encostada a uma árvore junto ao rio a fim de ser colocada amanhã sextafeira e que nos puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos E assim fizemos E a esses dez ou doze que lá estavam acenaram lhes que fizessem o mesmo e logo foram todos beijála Pareceme gente de tal inocência que se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa seriam logo cristãos visto que não têm nem entendem crença alguma segundo Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 357 as aparências E portanto se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem não duvido que eles segundo a santa tenção de Vossa Alteza se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé à qual praza a Nosso Senhor que os traga porque certamente esta gente é boa e de bela simplicidade E imprimirseá facilmente neles qualquer cunho que lhe quiserem dar uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos como a homens bons E o Ele nos para aqui trazer creio que não foi sem causa E portanto Vossa Alteza pois tanto deseja acrescentar a santa fé católica deve cuidar da salvação deles E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim Eles não lavram nem criam Nem há aqui boi ou vaca cabra ovelha ou galinha ou qualquer outro animal que esteja acostumado ao viver do homem E não comem senão deste inhame de que aqui há muito e dessas sementes e frutos que a terra e as árvores de si deitam E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto com quanto trigo e legumes comemos Nesse dia enquanto ali andavam dançaram e bailaram sempre com os nossos ao som de um tamboril nosso como se fossem mais amigos nossos do que nós seus Se lhes a gente acenava se queriam vir às naus aprontavamse logo para isso de modo tal que se os convidáramos a todos todos vieram Porém não levamos esta noite às naus senão quatro ou cinco a saber o Capitãomor dois e Simão de Miranda um que já trazia por pagem e Aires Gomes a outro pagem também Os que o Capitão trazia era um deles um dos seus hóspedes que lhe haviam trazido a primeira vez quando aqui chegamos o qual veio hoje aqui vestido na sua camisa e com ele um seu irmão e foram esta noite mui bem agasalhados tanto de comida como de cama de colchões e lençóis para os mais amansar E hoje que é sextafeira primeiro dia de maio pela manhã saímos em terra com nossa bandeira e fomos desembarcar acima do rio contra o sul onde nos pareceu que seria melhor arvorar a cruz para melhor ser vista E ali marcou o Capitão o sítio onde haviam de fazer a cova para a fincar E enquanto a iam abrindo ele com todos nós outros fomos pela cruz rio abaixo onde ela estava E com os religiosos e sacerdotes que cantavam à frente fomos trazendoa dali a modo de procissão Eram já aí quantidade deles uns setenta ou oitenta e quando nos assim viram chegar alguns se foram meter debaixo dela ajudarnos Passamos o rio ao longo da praia e fomos colocála onde havia de ficar que será obra de dois tiros de besta do rio Andandose ali nisto viriam bem cento cinqüenta ou mais Plantada a cruz com as armas e a divisa de Vossa Alteza que primeiro lhe haviam pregado armaram altar ao pé dela Ali disse missa o padre frei Henrique a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos Ali estiveram conosco a ela perto de cinqüenta ou sessenta deles assentados todos de joelho assim como nós E quando se veio ao Evangelho que nos erguemos todos em pé com as mãos levantadas eles se levantaram conosco e alçaram as mãos estando assim até se chegar ao fim e então tornaramse a assentar como nós E quando levantaram a Deus que nos pusemos Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 358 de joelhos eles se puseram assim como nós estávamos com as mãos levantadas e em tal maneira sossegados que certifico a Vossa Alteza que nos fez muita devoção Estiveram assim conosco até acabada a comunhão e depois da comunhão comungaram esses religiosos e sacerdotes e o Capitão com alguns de nós outros E alguns deles por o Sol ser grande levantaramse enquanto estávamos comungando e outros estiveram e ficaram Um deles homem de cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos se conservou ali com aqueles que ficaram Esse enquanto assim estávamos juntava aqueles que ali tinham ficado e ainda chamava outros E andando assim entre eles falandolhes acenou com o dedo para o altar e depois mostrou com o dedo para o céu como se lhes dissesse alguma coisa de bem e nós assim o tomamos Acabada a missa tirou o padre a vestimenta de cima e ficou na alva e assim se subiu junto ao altar em uma cadeira e ali nos pregou o Evangelho e dos Apóstolos cujo é o dia tratando no fim da pregação desse vosso prosseguimento tão santo e virtuoso que nos causou mais devoção Esses que estiveram sempre à pregação estavam assim como nós olhando para ele E aquele que digo chamava alguns que viessem ali Alguns vinham e outros iamse e acabada a pregação trazia Nicolau Coelho muitas cruzes de estanho com crucifixos que lhe ficaram ainda da outra vinda E houveram por bem que lançassem a cada um sua ao pescoço Por essa causa se assentou o padre frei Henrique ao pé da cruz e ali lançava a sua a todos um a um ao pescoço atada em um fio fazendolha primeiro beijar e levantar as mãos Vinham a isso muitos e lançavamnas todas que seriam obra de quarenta ou cinqüenta E isto acabado era já bem uma hora depois do meio dia viemos às naus a comer onde o Capitão trouxe consigo aquele mesmo que fez aos outros aquele gesto para o altar e para o céu e um seu irmão com ele A aquele fez muita honra e deulhe uma camisa mourisca e ao outro uma camisa destoutras E segundo o que a mim e a todos pareceu esta gente não lhes falece outra coisa para ser toda cristã do que entenderemnos porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer como nós mesmos por onde pareceu a todos que nenhuma idolatria nem adoração têm E bem creio que se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande que todos serão tornados e convertidos ao desejo de Vossa Alteza E por isso se alguém vier não deixe logo de vir clérigo para os batizar porque já então terão mais conhecimentos de nossa fé pelos dois degredados que aqui entre eles ficam os quais hoje também comungaram Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 359 Entre todos estes que hoje vieram não veio mais que uma mulher moça a qual esteve sempre à missa à qual deram um pano com que se cobrisse e puseramlho em volta dela Todavia ao sentarse não se lembrava de o estender muito para se cobrir Assim Senhor a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior com respeito ao pudor Ora veja Vossa Alteza quem em tal inocência vive se se convertera ou não se lhe ensinarem o que pertence à sua salvação Acabado isto fomos perante eles beijar a cruz E despedimonos e fomos comer Creio Senhor que com estes dois degredados que aqui ficam ficarão mais dois grumetes que esta noite se saíram em terra desta nau no esquife fugidos os quais não vieram mais E cremos que ficarão aqui porque de manhã prazendo a Deus fazemos nossa partida daqui Esta terra Senhor pareceme que da ponta que mais contra o sul vimos até à outra ponta que contra o norte vem de que nós deste porto houvemos vista será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas de costa Traz ao longo do mar em algumas partes grandes barreiras umas vermelhas e outras brancas e a terra de cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos De ponta a ponta é toda praia muito chã e muito formosa Pelo sertão nos pareceu vista do mar muito grande porque a estender olhos não podíamos ver senão terra e arvoredos terra que nos parecia muito extensa Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela ou outra coisa de metal ou ferro nem lha vimos Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de EntreDouroeMinho porque neste tempo dagora assim os achávamos como os de lá Águas são muitas infinitas Em tal maneira é graciosa que querendoa aproveitar darseá nela tudo por causa das águas que tem Contudo o melhor fruto que dela se pode tirar pareceme que será salvar esta gente E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar E que não houvesse mais do que ter Vossa Alteza aqui esta pousada para essa navegação de Calicute bastava Quanto mais disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja a saber acrescentamento da nossa fé E desta maneira dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta Vossa terra vi E se a um pouco alonguei Ela me perdoe Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 360 Porque o desejo que tinha de Vos tudo dizer mo fez pôr assim pelo miúdo E pois que Senhor é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de Vosso serviço for Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida a Ela peço que por me fazer singular mercê mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório meu genro o que dEla receberei em muita mercê Beijo as mãos de Vossa Alteza Deste Porto Seguro da Vossa Ilha de Vera Cruz hoje sextafeira primeiro dia de maio de 1500 Pero Vaz de Caminha