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493 A tecnologia como problema filosófico três enfoques scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 A tecnologia como problema filosófico três enfoques Alberto Cupani resumo O estudo filosófico da tecnologia é relativamente recente e diversificado conforme diferentes orienta ções teóricas e suas correspondentes atitudes sociais Apesar dessa heterogeneidade ou precisamente graças a ela a filosofia da tecnologia nos ajuda a reconhecer a tecnologia como dimensão da vida huma na e não apenas como um evento histórico É o que pretendo mostrar apresentando três modos de in vestigar filosoficamente a tecnologia os de Mario Bunge Albert Borgmann e Andrew Feenberg que re presentam respectivamente uma perspectiva analítica uma abordagem fenomenológica e um exame inspirado na Escola de Frankfurt O intuito principal deste artigo é a divulgação dessas investigações pouco conhecidas entre nós No entanto ele inclui uma breve apreciação crítica das mesmas Palavraschave Filosofia da tecnologia Mario Bunge Albert Borgmann Andrew Feenberg Introdução A filosofia da tecnologia é uma disciplina relativamente recente se comparada com as restantes disciplinas filosóficas incluída a filosofia da ciência1 Tratase de um campo de estudos mais heterogêneo do que sua denominação faria supor pois a própria defi nição do seu objeto não é unânime Por outra parte embora não seja possível ignorar a relação da tecnologia contemporânea com a técnica de épocas e culturas anteriores e a diferença entre ambas seja devida em grande medida à presença da ciência experimen tal na tecnologia nem todos os estudiosos concebem a tecnologia como mera ciência aplicada e nem todos admitem uma continuidade de propósitos entre a técnica e a tecnologia Além disso a reflexão filosófica que recai sobre a tecnologia corresponde a scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 1 Embora não faltem antecedentes no século xix e na primeira metade do xx seu desenvolvimento institucional incluindo revistas e congressos específicos data das últimas décadas do século xx Cf Mitcham 1994 cap 1 494 Alberto Cupani scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 diferentes estilos de pensamento2 Apesar dessa heterogeneidade a disciplina encontra a sua unidade na preocupação por um aspecto ou dimensão da vida humana impossível de ignorar e particularmente marcado na sociedade contemporânea a atividade eficien te racionalmente regrada no que diz respeito às suas motivações desenvolvimento alcance e conseqüências A compreensão dessa dimensão da vida levanos a lembrar que a técnica como capacidade humana de modificar deliberadamente materiais objetos e eventos che gando a produzir elementos novos não existentes na natureza define o ser humano como homo faber3 O fazer ou melhor o saber fazer difere de outras capacidades huma nas como a de contemplar a realidade literal ou mentalmente agir no sentido de adotar decisões responsáveis experimentar sentimentos que chegam a ser muito sofistica dos como o fascínio de uma obra de arte e expressarse sobretudo manifestar a pró pria identidade as próprias idéias os próprios anseios mediante uma linguagem ar ticulada particularmente a enunciativa Esse caráter da técnica deve ser levado em consideração ao entender a tecnologia como modo de vida sobretudo na medida em que esse modo de vida afeta outros modos em que podem prevalecer aquelas outras capacidades humanas antes mencionadas A seguir apresentarei três enfoques da tecnologia cada um dos quais represen ta uma corrente filosófica contemporânea relevante O primeiro deles é o enfoque ana lítico de Mario Bunge reconhecido como um dos fundadores da disciplina Bunge não é certamente um filósofo analítico em sentido próprio do termo mas a sua classifi cação aqui corresponde ao fato de que a análise conceitual tem um papel preponde rante na sua filosofia O segundo enfoque escolhido é o da fenomenologia aqui repre sentada pelo livro Technology and the character of contemporary life 1984 de Albert Borgmann Finalmente apresentarei o enfoque de Andrew Feenberg que analisa a tecnologia a partir da filosofia crítica da Escola de Frankfurt em sua obra Transforming technology 2002 A minha exposição dos enfoques mencionados será seguida por al gumas considerações críticas 2 Mitcham registra também a polarização entre a filosofia da tecnologia dos engenheiros vale dizer dos autores de formação científica ou tecnológica como Bunge e a filosofia da tecnologia dos humanistas filósofos ou escritores de cultura clássica como Heidegger ou Mumford cf Mitcham 1994 cap 1 e 2 Os primeiros são geralmente defensores e os segundos críticos da tecnologia 3 Ortega y Gasset um dos primeiros autores a refletir sobre a técnica observou que o homem não se limita a ade quarse à natureza mas adapta a natureza a suas necessidades ou propósitos criando o supérfluo cf Ortega y Gasset 1965 De resto a técnica talvez responda a uma inclinação do organismo a poupar esforços desnecessários cf Ladrière 1979 p 84 495 A tecnologia como problema filosófico três enfoques scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 1 A perspectiva analítica de Mario Bunge4 Adotando uma distinção do historiador Lewis Mumford Bunge entende por técnica o controle ou a transformação da natureza pelo homem o qual faz uso de conhecimentos précientíficos A tecnologia por sua vez consiste na técnica de base científica num sentido que precisaremos mais adiante Quer se trate de técnica quer de tecnologia o que está em jogo é uma atividade consistente na produção de algo artificial de um artefato O artefato não precisa ser todavia uma coisa por exemplo uma bicicleta ou um remédio podendo tratarse também da modificação do estado de um sistema natural por exemplo desviar ou re presar o curso de um rio ou bem da transformação de um sistema por exemplo en sinar alguém a ler Em todos os casos a ação técnica uma forma de trabalho para Bunge opera utilizando recursos naturais como empregar o cérebro próprio para resolver um problema de maneira metódica usar troncos de árvore para construir uma cabana etc transformandoos produzir tecidos com base no linho domesticar ani mais etc ou bem reunindo elementos naturais para dar origem a algo inédito sinte tizar moléculas organizar pessoas numa firma comercial etc Algo artificial é segundo Bunge toda coisa estado ou processo controlado ou feito deliberadamente com ajuda de algum conhecimento aprendido e utilizável por outros Bunge 1985a p 334 Ou também pode dizerse que Um sistema concreto material é um artefato se e somente se cada um dos seus estados depende de estados prévios ou concomitantes de algum ser racional Bunge 1985b p 223 Cabe observar que o artefato pode eventualmente ser algo social como quan do se organiza uma equipe esportiva pode tratarse do resultado de um serviço por exemplo a cura de pacientes e finalmente pode consistir em algo julgado como ne gativo como as armas atômicas Além da noção de artefato a técnica e a tecnologia caracterizamse pela existên cia de uma planificação ainda que mínima Técnica e tecnologia supõem um objetivo preciso O artefato é concebido antecipado e se procura sistematicamente os meios de produzilo Para tanto a técnica como a tecnologia supõem conhecimentos já dis poníveis ou novos A técnica servese do saber vulgar tradicional eventualmente im pregnado de saber científico que não é reconhecido como tal A tecnologia recorre expli citamente ao saber científico dados leis teorias de um modo que ainda iremos especificar Para a produção técnica ou tecnológica os elementos são vistos como recur 4 Bunge é bem conhecido como filósofo da ciência Ensinou na McGill University Canadá Na sua vasta produção destacase o Treatise on basic philosophy em 8 volumes 496 Alberto Cupani scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 sos não sendo apreciados apenas pelas suas qualidades inerentes5 Técnica e tecnologia implicam portanto valores na forma genérica de que tal coisa é útil ou adequada para tal outra Finalmente a produção técnica ou tecnológica contém regras ou seja ins truções para realizar um número finito de atos numa ordem dada e com um objetivo também dado constituindo assim normas estáveis do comportamento humano com sucesso Bunge 1969 p 694 Sem elas nenhum artefato funcionaria ou seria utili zável por outros como estabelece a sua definição No entanto as regras são necessá rias sobretudo porque o objeto artificial deve ser eficiente desempenhando a sua fun ção da maneira mais econômica possível6 Por conseguinte o esquema geral da ação técnica é Se há de se conseguir y no momento t com probabilidade p então deve fazerse x no momento t Bunge 1969 p 703 Assim analisada a ação técnica é essencialmente ação racional orientada a ga rantir poderseia dizer seu próprio sucesso Se a técnica acompanhou e possibilitou o desenvolvimento da humanidade ao longo da maior parte da história o surgimento da tecnologia foi condição de uma ace leração do progresso humano Isso se deve a que a inovação é dentro da técnica pré científica um processo dificultado pela inércia da vida tradicional Comenta Bunge A práxis a menos que seja guiada pela pesquisa científica é extremadamente limita da e conservadora Bunge 1985b p 311 Desde um ponto de vista sistemático a tecnologia surge na medida em que ou bem se indaga a fundamentação teórica das regras técnicas ou bem se busca aplicar conhecimentos científicos à solução de pro blemas práticos A tecnologia pode assim ser definida como O campo de conhecimento relativo ao desenho de artefatos e à planificação da sua realização operação ajuste manutenção e monitoramento à luz do conheci mento científico Ou resumidamente o estudo científico do artificial Bunge 1985b p 231 5 Para o olhar tecnológico afirma Bunge os objetos processos e eventos reais se classificam em recursos produtos artefatos e o resto ou seja o conjunto das coisas inúteis abrangendo os produtos residuais não recicláveis Cf Bunge 1980 p 199 6 Ao interesse na eficiência e na economia vinculamse outras propriedades desejadas do produto técnico e par ticularmente do tecnológico tais como a padronização a segurança a confiabilidade e a rapidez 497 A tecnologia como problema filosófico três enfoques scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 A caracterização da tecnologia como campo de conhecimento obedece a que para Bunge não existe tecnologia onde o homem se limita a aplicar um saberfazer ou a servirse de artefatos sem se perguntar pela sua base teórica nem procurar o seu aper feiçoamento Em todo caso essa é a conduta do mero técnico contemporâneo mas não do tecnólogo sendo o engenheiro seu protótipo cuja atividade é sempre em alguma medida teórica e criativa Isso se adverte melhor considerando o aspecto que assu mem no caso da tecnologia as caraterísticas gerais da técnica antes mencionadas O caráter deliberado da invenção técnica é reforçado na tecnologia que supõe o desenho e a planificação metódicos do artefato a ser produzido O desenho ou projeto tecnológico é a representação antecipada de um artefato com o auxílio de algum co nhecimento científico O seu propósito é criar sistemas funcionais sistemas que de sempenhem efetiva e eficientemente certas funções úteis para determinadas pessoas Bunge 1985b p 226 Entre esses sistemas destacamse as máquinas sistemas não viventes projetados para auxiliar em algum tipo de trabalho Já a planificação consiste em articular uma seqüência de tarefas ou subrotinas destinadas a alcançar o obje tivo proposto que pode ser visto como a modificação introduzida num determinado estado de um sistema para que alcance outro estado desejado Em todo caso o desenho e a planificação tecnológicos repousam no conhecimen to científico Tratase de leis ou fragmentos de teorias que devem ser traduzidas em enunciados nomopragmáticos que fundamentam por sua vez as regras práticas Num exemplo simples a lei enunciado nomológico que afirma A água ferve a 100 celsius fundamenta o enunciado nomopragmático Se a água é esquentada a 100 C então ela ferve o qual por sua vez fundamenta regras tecnológicas tais como Para ferver água esquentea até 100 C Para evitar que a água ferva mantenhase sua temperatura abaixo de 100 C etc Todavia a tecnologia não se reduz para Bunge à utilização do conhecimento científico mas implica na busca de um conhecimento específico o que dá origem a teorias tecnológicas que podem ser de dois tipos substantivas vale dizer aquelas que fornecem conhecimento sobre os objetos da ação por exemplo uma teoria sobre o vôo ou ainda operativas isto é aquelas que versam sobre as ações de que depende o funcionamento dos artefatos por exemplo uma teoria das decisões ótimas sobre a distribuição do trânsito aéreo numa região As teorias substantivas são aplicações de teorias científicas a situações reais a teoria do vôo resulta de aplicar a dinâmica dos fluidos As teorias operativas são por assim dizer mais diretamente tecnológicas pois enfocam desde o início a ação que se tem em vista por exemplo o complexo homem máquina em situações aproximadamente reais Em tais casos a tecnologia pode com binar conhecimento ordinário elementos das ciências formais e certos conhecimen tos especializados não científicos por exemplo práticas de pilotagem com algumas 498 Alberto Cupani scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 das tecnologias que Bunge denomina gerais como a teoria da decisão Mas em con junto a tecnologia comparte com a ciência o método ou seja a estratégia geral da pes quisa7 Por outra parte a distinção entre dois tipos de tecnologia não é uma dicotomia as tecnologias são predominantemente substantivas ou operativas conforme o caso Quando uma teoria científica é aplicada tecnologicamente ou transformada em teoria tecnológica por exemplo a hidrodinâmica transformada em hidráulica re sulta ao mesmo tempo mais rica e mais pobre que quando funciona dentro da ciência pura explica Bunge Ela é mais rica desde um ponto de vista prático porque em vez de limitarse a prever o que poderá ocorrer em determinadas circunstâncias a teoria ave rigua o que se deve fazer para modificar o curso dos eventos Simultaneamente desde o ponto de vista conceitual são teorias mais pobres no sentido de que são menos pro fundas Geralmente o tecnólogo se conforma com teorias fenomenológicas vale di zer aquelas que não penetram ou não penetram demasiado no funcionamento in terno dos sistemas que se pretende modificar limitandose a levar em consideração as variáveis externas cf Bunge 1969 p 685 Com outras palavras dáse um empo brecimento conceitual das teorias científicas no seu uso tecnológico pois em função do seu propósito eminentemente prático o tecnólogo geralmente esquematiza e sim plifica o domínio de que se ocupa8 Pela razão antes apontada entre outras a tecnologia para Bunge não deve ser exaltada às custas da ciência pura Não obstante a tecnologia tem um grande valor pois se a técnica encarna a ação racional endereçada a garantir seu próprio sucesso a tecnologia pode ser vista como a concretização da ação plenamente racional cf Bunge 1969 p 684 1985b p 2399 E quanto mais racionais forem o pensamento e a ação humanos melhor poderá ser em princípio a sua vida sustenta Bunge conhecido defensor da tradição iluminista Essa convicção explica que ele possa classificar como tecnologias atividades tais como a medicina a administração ou a pedagogia confian do em que todos os problemas práticos humanos possam ser formulados tecnologica mente ou ter uma solução adequada que se fundamente na ciência e na tecnologia Nesse sentido o otimismo bungeano chega a supor possível uma engenharia social10 7 Bunge defende a existência de uma estratégia ou disciplina geral de toda pesquisa que corresponde ao método hipotéticodedutivo descrito em forma mais detalhada em Bunge 1969 Cap 1 1980 Cap 2 8 Não obstante Bunge adverte que o autêntico tecnólogo não evitará as teorias profundas e complexas quando prometam sucesso Por exemplo utilizará a teoria quântica dos sólidos para projetar componentes de equipamen tos de rádio ou de computadores e a genética para obter variedades de milho de maior rendimento Bunge 1980 p 194 9 Por tal razão a filosofia da tecnologia deve prolongarse numa tecnopraxiologia ramo da reflexão filosófica pos tulado por Bunge para estudar sistematicamente a ação guiada pela tecnologia cf Bunge 1980 p 205 10 A expressão como é notório foi usada já por K Popper 499 A tecnologia como problema filosófico três enfoques scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 base de políticas sociais progressistas Uma tal engenharia consistiria em colocar to dos os recursos científicos possíveis principalmente é óbvio científicosociais ao serviço de problemas tais como a escassez de recursos a fome a superpopulação a criminalidade o militarismo etc cf Bunge 1985b p 286 A engenharia social para ser efetiva deveria ser sistêmica e não fragmentária11 produzida por equipes inter disciplinares e discutida democraticamente O que acaba de ser dito não significa que Bunge acredite que a tecnologia seja ou tenha sido sempre benéfica Indiscutivelmente o desenvolvimento tecnológico tem causado inúmeros males e problemas posto que até as invenções vistas como positivas comportam circunstancialmente conseqüências negativas12 Como depende em sua produção e controle dos seres humanos Bunge rejeita a idéia de que seja autônoma a tecnologia está assim sujeita aos mais variados interesses e propósitos Muitos dos ex cessos e extravios da tecnologia são para ele derivados do código moral nela implícito Tratase de um código que separa o homem do resto da natureza autorizandoo a sub metêla e isentandoo de responsabilidades cf Bunge 1980 p 203 Ele considera particularmente nefasta a noção tão difundida de que a tecnologia seja axiologica mente neutra Para combatêla Bunge defende uma ética que aponte as responsabili dades naturais e sociais da inovação tecnológica E sobretudo defende a necessidade de uma democracia integral participativa e cooperativa holotecnodemocracia em que o desenvolvimento tecnológico pudesse estar verdadeiramente a serviço de todos cf Bunge 1989 2 A abordagem fenomenológica de Albert Borgmann Para Borgmann13 tecnologia não designa uma forma de técnica mais evoluída e po tente graças à sua associação com a ciência como no caso de Bunge mas um modo de vida próprio da Modernidade A tecnologia é o modo tipicamente moderno de o ho mem lidar com o mundo um paradigma ou padrão caraterístico e limitador da existência intrínseco à vida quotidiana Tão intrínseco que ele passa por isso mesmo despercebido No entanto o surgimento e o poder desse padrão constituem para Borg mann o evento de maiores conseqüências do período moderno estando seu livro 11 Bunge é um notório defensor do enfoque sistêmico em ciência e filosofia 12 O automóvel aumentou enormemente a poluição ambiental e reforçou o individualismo a revolução verde ampliou a distância entre pobres e ricos a televisão torna as crianças passivas etc os exemplos são de Bunge 13 Borgmann é professor da Universidade de Montana EUA e autor de outras obras como Crossing the postmodern divide 1992 e Holding on to reality the nature of information and the turn of the millennium 1999 500 Alberto Cupani scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 dedicado a explorálo fenomenologicamente bem como a propor um princípio de so lução para o problema que a tecnologia representa cf Borgmann 1984 p 1 A escolha do enfoque fenomenológico lato sensu por parte de Borgmann deve se à sua convicção de que outros enfoques perdem de vista ou não reconhecem a espe cificidade da tecnologia As teorias instrumentais isto é aquelas que vêem a tecnologia como um meio ao serviço dos propósitos humanos são para Borgmann superficiais e as teorias substancialistas as que acreditam que a tecnologia seja autônoma deixam obscuro na sua opinião o caráter da tecnologia Existem ainda teorias pluralistas que insistem na multiplicidade de fatores a que responde a tecnologia porém a aten ção para essa multiplicidade faz que percam de vista o esquema básico que dá sentido ao conjunto A análise da tecnologia por parte das ciências sociais por sua vez lhe pa rece inconclusiva pois a complexidade dos fenômenos sociais em que a tecnologia está inserida faz que toda teoria seja apesar de precisa e justamente por isso ambí gua O estudo fenomenológico destinado a mostrar o seu objeto deve no entanto ser testado e elaborado contra o trabalho pertinente em filosofia e especialmente em ciências sociais Borgmann 1984 p 514 Para Borgmann a tecnologia e os seus problemas nunca serão compreendidos enquanto forem considerados como conseqüências de fatores sociais políticos ou eco lógicos Devese reconhecer na tecnologia um fenômeno básico que tem sua chave na existência dos dispositivos devices que nos fornecem produtos commodities ou seja bens e serviços quer se trate do aquecedor elétrico que nos dá calor do automóvel que nos permite deslocamento rápido e relativamente livre ou do aparelho de televi são que põe ao nosso alcance informação e diversão Como veremos à noção de dis positivo se opõe a noção de coisa sendo os dispositivos e as coisas os paradigmas de duas formas diferentes de vida humana contraste através do qual Borgmann aspira a mostrar a verdadeira índole da tecnologia Os dispositivos são essencialmente um meio algopara15 sendo necessário dis tinguir ainda entre a maquinaria do dispositivio e a sua função Ao passo que esta últi ma é conhecida do usuário a primeira é geralmente incompreendida e até incom preensível para ele pensemos por exemplo na ignorância com relação à maquinaria 14 Explicar afirma Borgmann é fornecer compreensão As ciências naturais explicam apoditicamente isto é a partir de leis e condições iniciais ou de contorno Também o fazem as ciências sociais Ambas no entanto carecem de poder para determinar o que é relevante para ser explicado Isto deve ser explicado de outra maneira dêitica mostrativa Uma terceira forma de explicação é a paradigmática isto é a que revela um padrão que dá sentido a um determinado âmbito de objetos e eventos O enfoque escolhido por Borgmann para tratar da tecnologia combina o segundo e o terceiro modos de explicação Cf Borgmann 1984 cap 12 15 A influência de Heidegger Sein und Zeit 1967 nesta análise de Borgmann é evidente 501 A tecnologia como problema filosófico três enfoques scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 de um computador ainda que saibamos usálo bem Mediante a sua função um dis positivo nos alivia disburdens de um esforço nos liberta de um peso resolve al guma dificuldade Por outra parte diferentes dispositivos podem nos fornecer o mes mo produto podemos nos aquecer mediante diversos tipos de sistemas vale dizer que os dispositivos têm equivalentes funcionais Sobretudo o dispositivo caracteriza se por tornar disponível o produto correspondente Essa disponibilidade significa que os produtos podem ser consumidos de maneira instantânea ubíqua segura e fácil Basta lembrar o alívio de satisfazer qualquer necessidade de luz de música de informação apenas apertando um botão de aparelhos que estão sempre à mão A disponibilidade encerra ainda outras caraterísticas como se pode apreciar na seguinte citação Uma forma de tornar disponíveis os produtos é tornálos descartáveis Não é ape nas desnecessário mas impossível manter e reparar guardanapos de papel latas de conserva canetas esferográficas ou qualquer outro produto destinado a ser usado uma vez Outro modo da disponibilidade é tornar desnecessário o cuidado dos produtos Os talheres de aço inoxidável não requerem polimento os pratos de plástico não precisam ser manipulados com cuidado Em outros casos a ma nutenção e a reparação tornamse impossíveis por causa da sofisticação do pro duto os microcomputadores estão sendo usados cada vez mais porque vão se tornando amigáveis isto é fáceis de operar e compreender Mas esse caráter amigável é precisamente o sinal do quanto se tem tornado grande o hiato entre a função acessível a todos e a maquinaria conhecida por quase ninguém Borgmann 1984 p 47 Os produtos e seu consumo constituem a meta declarada do empreendimento tecnológico assegura Borgmann Essa meta foi proposta pela primeira vez no início da Modernidade como expectativa de que o homem poderia dominar a natureza No entanto essa expectativa convertida em programa anunciado por pensadores como Descartes e Bacon e impulsionado pelo Iluminismo não surgiu de um prazer de po der de um mero imperialismo humano mas da aspiração de libertar o homem da fome da insegurança da dor da labuta e de enriquecer sua vida física e culturalmente Sem levar em consideração esse afã de libertação não se pode entender o padrão da tecnologia que à maneira de um molde foi dando forma à sociedade humana nos países industrialmente desenvolvidos Não basta portanto para entender a tecnologia atentar para o seu aspecto de natureza dominada nem à sua associação com a ciência O avanço científico e a sua aplicação a finalidades práticas são imprescindíveis para que exista a maioria das invenções tecnológicas mas a ciência por si mesma não pode fornecer lhe um rumo nem explicar por que a tecnologia tem chegado a ser um modo de vida 502 Alberto Cupani scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 Esse modo de vida implica a tendência a reduzir todo e qualquer problema a uma questão de relação entre meios e fins Reciprocamente o mundo dos dispositivos é um mundo de meros meios sem fins últimos o que constitui uma novidade na história humana Isto é muito importante para se entender segundo Borgmann a diferença entre a técnica tradicional e a tecnologia Ao passo que na técnica toda relação meio fim estava inserida em um contexto social cultural ecológico na tecnologia a relação meiofim vale universalmente com independência dos contextos concretos Enquanto a lareira tradicional ainda que sendo um meio para aquecer o lar estava inserida na trama de relações entre os membros da família supunha o trabalho necessário para acendêla e mantêla e incentivava a reunião da família e o cultivo dos costumes o aquecedor moderno se reduz à sua função de fornecer calor não importa para quem nem em quais circunstâncias Os dispositivos carecem de contexto podendo ser usa dos para relativamente diversos fins e combinados entre si sem muitas restrições Os dispositivos são assim ambíguos Em correspondência com essas propriedades dos dispositivos a nossa relação para com eles é de falta de compromisso engagement16 Em nenhum aspecto da nossa vida é tudo isso mais evidente comenta Borgmann do que na propaganda ou seja no apelo constante e sistemático ao consumo de dis positivos Estes últimos aparecem na propaganda nas mais insólitas combinações car ros associados a obras de arte paisagens acompanhadas de músicas símbolos religio sos misturados a figuras sensuais etc o que acentua a superficialidade dos dispositivos Na propaganda eles como que se escondem deixandonos face aos produtos de que são veículos e com os quais somos continuamente tentados De resto para Borgmann a propaganda não cria a cultura de consumidores mas a regula e a põe de relevo o universo da propaganda é inteiramente um universo de produtos e consu mo Ela destila o aspecto frontal da tecnologia em forma ideal e assim apresenta o lado técnico e distintivo da nossa época Deste modo ela superou a arte como a apresentação arquetípica daquilo de que trata a nossa época Na propaganda a promessa da tecnologia é apresentada ao mesmo tempo em pureza e concreta mente e portanto da maneira mais atraente Problemas e ameaças entram ape nas como pano de fundo para destacar as benções da tecnologia Assim nos en contramos definidos arquetipicamente nas propagandas Elas fornecem uma força estabilizadora e orientadora na complexidade da sociedade tecnológica ainda em desenvolvimento Borgmann 1984 p 55 16 Essa falta de compromisso se evidencia por exemplo na facilidade com que substituímos um artifício que não mais funciona ou não mais está na moda por um outro equivalente ou melhor 503 A tecnologia como problema filosófico três enfoques scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 Mas e isto é o decisivo o consumo universal de produtos é a realização da promessa da tecnologia O sonho de uma vida humana menos penosa e mais rica temse transformado numa cultura que visa apenas o lazer derivado de consumir cada vez mais produtos tecnológicos A vida dentro do paradigma da tecnologia resulta sem rumo e no entanto impositiva Todas as caraterísticas antes descritas da vida no paradigma do dispositivo de vice paradigm ressaltam quando consideramos por contraste o que são as coisas que podem focar ou centrar a nossa existência as coisas e práticas focais A palavra latina focus significa a lareira o lugar do fogo numa casa pré tecnológica a lareira constituía um centro de calor de luz de práticas diárias Para os romanos o focus era sagrado o lugar onde residiam os deuses do lar Na Grécia antiga um bebê era verdadeiramente incorporado à família e à casa quan do era transportado em torno da lareira e colocado diante dela A união de um matrimônio romano era santificada na lareira E ao menos nas épocas primiti vas os mortos eram enterrados junto à lareira A família comia junto à lareira e fazia sacrifícios aos deuses do lar antes e depois da comida A lareira sustentava ordenava e centrava a casa e a família hoje a lareira amiúde tem uma loca lização central na casa Seu fogo é agora simbólico dado que raramente fornece suficiente calor Mas a irradiação os sons e a fragrância do fogo vivo consumindo lenhos que são quebrados amontoados e sentidos nas suas veias têm retido a sua força Não há mais imagens dos deuses ancestrais situadas junto ao fogo mas há amiúde fotografias de entes queridos sobre a lareira coisas preciosas da história da família ou um relógio medindo o tempo Borgmann 1984 p 196 De maneira análoga tocar um instrumento musical melhor se for em compa nhia de outras pessoas caminhar em contato com a natureza relativamente virgem comer em família ou pescar por esporte constituem outros tantos exemplos de práti cas focais que dirigem a nossa atenção para coisas a mesa familiar o instrumento musical a natureza que não são meros meios para determinados fins senão fins em si mesmos Que não são elementos que podem ser colocados ao serviço de qualquer propósito mas que reservam um propósito próprio São coisas com que nos com prometemos e que remetem a um contexto social cultural e ecológico São coisas pro fundas vale dizer coisas cujos traços são todos ou na sua maioria significativos E são em resumo coisas que reconhecemos e respeitamos em seu próprio direito cf Borgmann 1984 p 193 504 Alberto Cupani scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 Certamente sempre é possível tratar algumas dessas coisas como meros meios Quando olhamos tecnologicamente para uma lareira prétecnológica separamos da plenitude dos seus traços a função de fornecer calor como a única e finalmente significativa Todos os outros traços são considerados então como parte da ma quinaria e estando sujeitos à lei da eficiência tornamse dependentes e indefi nidamente mutáveis A visão tecnológica de uma comida revela um agregado de sabores texturas e caraterísticas nutritivas Só elas retêm significação estável Analogamente quando olhamos para uma árvore vemos certa quantidade de ma deira ou fibra de celulose os espinhos os ramos a cortiça e as raízes são resídu os Uma rocha é 5 por cento de metal e o resto é lixo Um animal é visto como uma máquina que produz tanto de carne Qualquer uma das suas funções que não ser ve para esse propósito é indiferente ou incômoda Borgmann 1984 p 192 E nisso consiste precisamente a atitude tecnológica em que o universo huma no perde cada vez mais coisas e práticas focais para passar a ser constituído apenas por dispositivos que se produzem que se usam ou se consomem Um universo em que não apenas os objetos naturais como uma planta ou artificiais como um ventilador mas também os objetos sociais e culturais como o governo ou a educação são levados em consideração tão somente como meios para fins circunstanciais Esse universo está dividido em dois âmbitos o do labor labor e o do lazer uma divisão que espelha aque la entre a maquinaria do artifício e o produto que ele fornece À diferença do trabalho work tradicional que estava inserido numa rede social e cultural e que dava sentido à vida do homem trabalhador orientandoo na natureza na cultura e na sociedade o labor tecnológico se reduz à produção e manutenção das maquinarias que fornecem os artifícios Ou então à produção de artifícios como meios de lazer Este último à diferença do prazer que eleva refina ou enobrece a vida huma na quer se trate de uma leitura do prazer de uma refeição entre amigos ou da contem plação de uma bela paisagem se reduz ao consumo indefinido de produtos tecnoló gicos ficando cada vez mais dissociado de qualquer preocupação com a excelência da vida pessoal A vida conforme o paradigma tecnológico continua Borgmann tem um glamour que explica em parte a sua propagação A tecnologia como já foi lembrado promete nos alívio de tarefas penosas esperança de termos uma relação mais rica com o mundo graças à afluência de dispositivos ela responde à nossa impaciência com coisas que exigem cuidado e reparação ao nosso desejo de fornecer a nossos filhos o melhor de senvolvimento e à vontade de nos afirmarmos na existência adquirindo bens que ins piram respeito Mas tudo isso vai acompanhado de sentimentos de perda de pena e 505 A tecnologia como problema filosófico três enfoques scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 uma espécie de traição a um outro tipo de vida pois as realizações que representa vam libertação parecem ser contínuas com a procura de frívola comodidade Dáse inclusive uma sensação de impotência pois tudo ocorre como se os instrumentos ti vessem acabado por definir os fins Fins gerais abstratos saúde segurança comodidade nutrição abrigo mobili dade felicidade e assim por diante tornamse altamente relativos a instru mentos O desejo de se locomover tornase desejo de possuir um automóvel a necessidade de se comunicar tornase necessidade de se possuir serviço telefô nico a necessidade de comer tornase necessidade de uma geladeira um fogão e um adequado supermercado Winner apud Borgmann 1984 p 62 Embora a sensação do ser humano seja a de estar sutilmente preso ao mundo tecnológico ainda que não pareça mais imaginável viver sem seus produtos Borgmann não acha que o homem seja simplesmente arrastado pela tecnologia Já foi menciona do que Borgmann rejeita as teorias substancialistas Para ele o que existe é uma certa cumplicidade ou implicação do homem com a tecnologia Borgmann 1984 p 105 Com outras palavras temos responsabilidade pela manutenção do modo de vida tecno lógico que nos fascina em razão do glamour antes mencionado É verdade que as cir cunstâncias sociais favorecem a manutenção e o progresso da tecnologia como para digma a desigualdade social os favorece porque cada um aspira a ter o que outros já têm Mas é verdade aponta Borgmann que nem sequer a riqueza dá ao homem poder sobre a tecnologia pois esta constitui uma cultura um horizonte em função do qual são tomadas todas as decisões e nesse sentido os mais abastados estão tão sujeitos a seu padrão quanto os mais pobres Nada disso implica para Borgmann a crença de que a tecnologia constitua uma fatalidade As tentativas de diagnosticar e corrigir o rumo da sociedade tecnológica sofrem para nosso autor do defeito de pressupor aquilo que querem emendar Para começar a promessa da tecnologia está em consonância com os ideais de liberdade igualdade e autorealização próprios da democracia liberal a qual foi sendo conquistada de acor do com o paradigma tecnológico A política funciona para Borgmann como meta dispositivo metadevice da sociedade tecnológica E as teorias filosóficas sobre a so ciedade justa como as de J Rawls e J Habermas ao deixarem de lado a questão da vida boa para limitaremse a fundamentar a justiça subestimam a singularidade da relação meiosfins no paradigma tecnológico e ignoram o quanto dependem dele cf Borgmann 1984 p 95 e ss A análise da tecnologia está no livro de Borgmann em função de uma proposta de reforma que não deve ser entendida como reforma na tecnologia mas como reforma 506 Alberto Cupani scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 da tecnologia Uma reforma que parta do reconhecimento do paradigma da tecnolo gia e da importância daquilo que ele vai nos fazendo perder coisas e práticas focais A argumentação em favor de uma tal reforma não pode ser demonstrativa à maneira das ciências nem tampouco paradigmática como o foi a descrição do paradigma tec nológico mas dêitica ou mostrativa baseada naquelas experiências de coisas que possuem valor e direito de existir em si mesmas e não como meros meios e no teste munho que se pode dar delas A explicação dêitica não é concludente cogent mas ape lativa e pode ser sempre contestada cf Borgmann 1984 cap 21 Conforme a tradi ção fenomenológica17 Borgmann espera que as suas palavras despertem no leitor a experiência a lembrança e o desejo daquelas coisas e práticas que podem centrar e orientar a vida humana convencendose assim da necessidade e possibilidade de se contrapor à tendência do universo tecnológico A reforma proposta apela expressamente para restabelecer a importância da questão da vida boa aparentemente eliminada na tecnologia ou melhor resolvida a seu modo e contornada pelas teorias éticas liberais Sem considerar o que pode dar nobreza dignidade excelência à vida humana não há segundo Borgmann possibili dade de justificar qualquer ação face ao império da tecnologia Se este último é o âmbi to da extensão indefinida dos meros meios do labor que conduz ao consumo da rela ção não engajada com os artifícios a reforma deve orientarse pelo restabelecimento daquelas experiências que podem constituirse em fins em si mesmas para as pessoas e comunidades A cultura da mesa o caminhar a pesca a prática da música as festas a vivência da natureza ainda intocada etc são exemplos de interesses focais focal concerns a serem recuperados Essa recuperação não significa rejeitar de forma gené rica a tecnologia coisa por outro lado impossível mas reduzila à condição das prá ticas focais Uma prática focal gera uma atitude inteligente e seletiva para com a tecnologia Ela conduz a uma simplificação e perfeição da tecnologia contra o pano de fundo do interesse focal da pessoa e a um uso reflexivo dos produtos tecnológicos no centro da prática da pessoa Assim um homem pode gostar de correr mas ele não vai correndo a todo lugar aonde quer ir Para ir trabalhar ele dirige um carro Ele depende desse artefato tecnológico e de toda a correspon dente maquinaria de produção serviço recursos e estradas Certamente irá querer que o carro seja um artefato tecnológico tão perfeito quanto seja possível seguro confiável fácil de operar livre de manutenção Dado que os corredores 17 O fenomenólogo Max Scheler disse em algum lugar que um escrito fenomenológico é um convite a olhar numa certa direção a fim de enxergar o que o autor descreve 507 A tecnologia como problema filosófico três enfoques scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 desfrutam profundamente do ar das árvores e dos espaços abertos que tornam agradável sua corrida e dado que o vigor e a saúde humanos são essenciais para seu empreendimento seria coerente da parte deles querer um carro benigno para o ambiente que seja livre de poluição e que requeira um mínimo de recursos para a sua produção e operação Dado que os corredores se expressam mediante a corrida eles não iriam necessitar do brilho do tamanho ou da novidade em seus veículos Os corredores apreciam calçados que sejam leves firmes e que ab sorvam o impacto Este tipo de calçado permite que a pessoa se mova mais rapi damente que vá mais longe e mais fluidamente Mas os corredores não iriam querer ter esses movimentos mediante uma motocicleta nem iriam querer tampouco meramente obter o benefício fisiológico de tal movimento corporal mediante uma esteira rolante Borgmann 1984 p 221 De maneira análoga é possível conceber uma utilização da tecnologia e dos seus aperfeiçoamentos na medida em que permita e favoreça qualquer prática focal que tenhamos escolhido Vista assim a tecnologia realça o caráter de tais práticas em vez de soterrálas como acontece quando se vive em cumplicidade com ela O princípio da reforma proposta por Borgmann consiste pois em elevar os as suntos de interesse focal a fins em relação aos quais todos os recursos tecnológicos são meios Isso pode e deve fazerse não apenas em nível pessoal e familiar mas também em nível da comunidade nacional e em função de conceber a vida boa como uma vida de excelência definida não pela posse de dispositivos ou o consumo de produtos em resumo pelo padrão de vida mas pela qualidade de vida Esta última não se mede pela afluência material mas pela riqueza de engajamento de que os seres humanos sejam capazes Em nível social a proposta de Borgmann inclui sugestões de reformas econômicas que fomentem a indústria de pequeno porte laborintensiva a qual permitiria recuperar a função dignificadora do trabalho remodelação das cidades resgatando espaços para usos focais bem como a expectativa de que se a sua mensa gem for compreendida os cidadãos irão se sensibilizar para a questão da justiça social Isto significa que a redução do consumo por parte daqueles empenhados em levar uma vida orientada pelas coisas e não pelos artifícios tecnológicos iria acompanhada pela vontade de que a situação material da classe baixa e dos povos mais pobres fosse me lhorada a fim de que todos pudessem ter a oportunidade de viver uma vida com senti do cf Borgmann 1984 p 244 e ss 508 Alberto Cupani scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 3 A perspectiva crítica de Abdrew Feenberg Um terceiro enfoque da tecnologia está representado pela obra de Feenberg Transfor ming technology 200218 O autor propõe uma interpretação da tecnologia que como a de Borgmann porém por diferentes razões rejeita tanto a visão instrumentalista quanto a substancialista Tratase de um enfoque que prolonga as análises da Escola de Frank furt em particular Marcuse aspirando a reconstruir a idéia de socialismo com base numa radical filosofia da tecnologia A tecnologia concorda Feenberg é um fenômeno tipicamente moderno Mais ainda ela constitui a estrutura material da Modernidade Mas a tecnologia no argu mento do autor não é um mero instrumento neutro pois ela encarna valores anti democráticos provenientes da sua vinculação com o capitalismo e manifestos numa cultura de empresários que enxerga o mundo em termos de controle eficiência me dida pelo proveito alcançado e recursos Os valores e interesses das classes dominan tes estão inscritos no próprio desenho dos procedimentos e máquinas bem como nas decisões que os originam e mantêm Por outro lado a tecnologia não constitui uma entidade autônoma nem um destino19 A conquista da natureza que ela encarna não é um evento metafísico como quer Heidegger 1997 1954 mas começa como do minação social O controle da natureza é indissociável do controle de seres humanos por outros o que se traduz em fenômenos também típicos da nossa época como a de gradação do trabalho da educação e do meio ambiente Por ser a manifestação de uma racionalidade política a tecnologia não pode ser modificada mediante reformas morais ou atitudes espirituais como quer Borgmann por exemplo O que se requer é uma modificação cultural proveniente de avanços democráticos Feenberg defende uma po sição não determinista cujas teses básicas seriam 1 O desenvolvimento tecnológico está sobredeterminado tanto por critérios téc nicos quanto sociais de progresso podendo por conseguinte bifurcarse em qualquer uma de diversas direções conforme a hegemonia que prevalecer 2 Enquanto as instituições sociais se adaptam ao desenvolvimento tecnológico o processo de adaptação é recíproco e a tecnologia muda em resposta às condi ções em que se encontra tanto quanto ela as influencia Feenberg 2002 p 143 18 Edição revisada de Critical theory of technology 1991 Feenberg é professor da Universidade de São Diego EUA e autor de Alternative modernity the technical turn in philosophy and social science 1995 e estudos sobre Marcuse e Heidegger 19 Ela é antes um processo ambivalente de desenvolvimento suspenso entre diferentes possibilidades e um cenário de luta Feenberg 2002 p 15 509 A tecnologia como problema filosófico três enfoques scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 Um elemento crucial para se empreender a modificação da tecnologia consiste em reconhecer a distinção básica entre os que comandam e os que obedecem nesta civilização tecnológica em que o poder tecnológico tornouse a principal forma de po der substituindo as formas baseadas antigamente em outras justificações como o nas cimento ou a religião20 O poder é por sua vez exercido em forma de administração e de controle estratégico das atividades sociais e pessoais Feenberg destaca desde o iní cio de sua análise a autonomia operacional dos administradores capitalistas e tecno cratas isto é a sua liberdade para tomar decisões independentes sem considerar os interesses dos agentes subordinados nem da comunidade ignorando também as con seqüências ambientais Para além dos objetivos circunstanciais a autonomia opera cional tem como metaobjetivo a sua indefinida preservação o que é garantido pela racionalidade intrínseca à tecnologia uma racionalidade que se ampara no caráter apa rentemente absoluto da justificação pela eficiência Com efeito as decisões tecnológicas parecem adotadas em função da eficiên cia que é o valor característico dessa dimensão da vida humana No entanto o critério de eficiência não basta para determinar o desenvolvimento tecnológico pois a própria eficiência pode ser diferentemente definida conforme diversos interesses sociais Os objetos técnicos são também objetos sociais e o desenvolvimento tecnológico é um cenário de luta social Comparando o desenvolvimento tecnológico com o uso da linguagem em que a gramática condiciona o significado mas não decide o propósito Feenberg afirma que existe um código social da tecnologia que associa eficiência e propósito21 Naturalmente as partes de uma invenção tal como a linha de montagem têm uma coerência técnica própria que não depende em absoluto da política ou de relações de classe A tecnologia não se reduz neste exemplo a relações de pro dução nem o conhecimento técnico a ideologia O primeiro termo em cada um desses pares tem a sua própria lógica a tecnologia deve realmente funcionar Mas não é meramente porque um artefato funciona que é escolhido para o desenvol vimento em vez de outras configurações igualmente coerentes de elementos 20 Na sua análise do poder social Feenberg combina idéias de Certeau Marcuse e Foucault 21 Reciprocamente podese falar do código técnico de um sistema social como o capitalismo O código ou seja os padrões de organização dos elementos responde ao imperativo de hegemonia do capitalismo Tratarseia de um caso do que Feenberg denomina distorção formal formal bias vale dizer aquela que não se reconhece nos ele mentos combinados mas na sua combinação No caso das realizações tecnológicas a distorção que apresenta como neutro o que é ideológico só pode ser denunciada revelando o contexto e a evolução histórica Esse é o propósito da Teoria Crítica Cf Feenberg 2002 p 82 510 Alberto Cupani scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 técnicos O caráter social da tecnologia reside não na lógica do seu funcionamen to interno mas na relação dessa lógica com um contexto social A linha de montagem tão somente aparece como um progresso técnico porque estende a classe de racionalidade administrativa de que o capitalismo já depende Poderia não ser percebida como um avanço no contexto de uma economia baseada em cooperativas de operários em que a disciplina de trabalho fosse autoimposta em vez de imposta desde cima Feenberg 2002 p 79 Sob o código técnico do capitalismo a eficiência tem como mais importante medida o lucro que se realiza por meio da venda de mercadorias A ele se subordina toda outra consideração e por ele são ignoradas outras preocupações como a qualida de de vida a educação a justiça social ou a proteção do meio ambiente reduzidas a meras externalidades22 Mas a eficiência poderia ser diferentemente concebida num outro código social que respondesse a exigências da vida humana hoje não realizadas e que aparecem em forma de reivindicações econômicas e morais igualdade de oportu nidades proteção aos descapacitados satisfação no trabalho direito ao lazer Pro cedimentos e artefatos eficientes não precisam fazer abstração de tudo quanto não se refira ao lucro ao poder ao consumo e ao padrão de vida O capitalismo e o socialismo burocrático sustenta Feenberg fomenta realiza ções tecnológicas que reforçam as estruturas sociais hierárquicas e centralizadas e de modo geral o controle desde cima em todos os setores da vida humana trabalho educação medicina lei esportes meios de comunicação etc Existe em resumo uma mediação técnica generalizada ao serviço de interesses privilegiados que reduz em todas as partes em nome da eficiência as possibilidades humanas impondo em todo lugar como medidas óbvias a disciplina a vigilância a padronização Reciprocamente a mediação de determinados interesses sociais faz que as realizações tecnológicas sejam atualmente abstratas e descontextualizadas Tratase de objetos e procedimentos que não parecem pertencer a nenhum mundo cultural em especial e de sujeitos que se compreendem a si mesmos pela sua função e se acreditam livres de responsabilidade quanto às conseqüências das suas atividades São esses argumenta Feenberg momen tos típicos da reificação social que a tecnologia representa cf Feenberg 2002 p 178 No entanto na opinião de Feenberg é precisamente a percepção sempre possí vel dessas limitações e deformações e as correspondentes potencialidades suprimidas 22 O acréscimo de eficiência nos moldes atuais não raramente exige a descapacitação do operário reduzido a apêndice de máquinas ou processos ou até mesmo a sua absoluta substituição pelas maquinarias automatizadas A educação reduzse a um investimento conforme as exigências do mercado e assim por diante 511 A tecnologia como problema filosófico três enfoques scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 o que pode estimular movimentos políticos transformadores Essa esperança do autor fundamentase no fato de que a hegemonia do código técnico do capitalismo não pode impedir que haja iniciativas contrárias Feenberg afirma que a sociedade pode ser comparada não apenas a uma máquina mas a um jogo e que desde este ponto de vista as estratégias de domínio que preservam a autonomia operacional são contes tadas por táticas dos dominados que aproveitam suas margens de manobra Assim como a autonomia operacional serve como a base estrutural da domina ção um diferente tipo de autonomia é conquistado pelos dominados uma auto nomia que opera com o jogo no sistema para redefinir e modificar suas formas ritmos e propósitos Denomino margem de manobra essa autonomia reativa Pode ser usada para uma diversidade de propósitos em organizações tecnicamente mediadas incluindo controlar a marcha do trabalho proteger colegas improvi sações produtivas não autorizadas inovações e racionalizações informais e as sim por diante Feenberg 2002 p 84 Do mesmo modo como as táticas contestadoras são possíveis porque a evolução da tecnologia não pode ser absolutamente controlada o resultado da contestação tampouco pode ser previsto Às vezes os resultados das táticas dos dominados são reabsorvidos pela lógica dominante Outras vezes no entanto as modificações podem se estabelecer23 A contestação do rumo autoritário da tecnologia não seria possível no entanto se a tecnologia não fosse ambivalente podendo ser instrumentalizada em função de diferentes projetos políticos Como argumenta Feenberg a tecnologia é em grande medida um produto cultural e assim toda ordem tecnológica é um ponto de partida potencial para desenvolvimentos divergentes conforme o ambiente cultural que lhe dá forma Mais ainda para ele é possível perceber na tecnologia uma dupla instrumentalização que sugere a possibilidade de que ela venha a ter um diferente rumo A tecnologia constitui basicamente uma atitude ou orientação com relação à rea lidade instrumentalização primária No entanto ela é também um modo de ação ou realização no mundo social A essência da tecnologia reside na união dialética en tre ambos níveis de instrumentalização cf Feenberg 2002 p 17524 23 Feenberg exemplifica as possibilidades de um outro desenvolvimento da tecnologia analisando o computador instrumento de controle ou de comunicação e propondo a cidade lugar do diálogo e não a fábrica servida pela automação como modelos de uma educação estimulada pelos avanços tecnológicos Cf Feenberg 2002 cap 4 e 5 24 Um serrote como instrumento técnico não existe sem a atividade de serrar ou a carpintaria como atitude hu mana No entanto a forma concreta de um serrote particular sem valor simbólico etc não se compreende apenas pela sua função considerada em abstrato mas pelo contexto sociocultural Cf Feenberg 2002 cap 4 e 5 512 Alberto Cupani scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 A mudança social sugerida necessita certamente de critérios de progresso em direção da realização humana Feenberg os resgata da tradição humanista enten dendo que a sociedade progride na medida em que aumenta a capacidade das pessoas para assumir responsabilidade política em que se fomenta a universalidade do ser humano contra toda forma de discriminação em que se permite a liberdade de pen samento em que se respeita a individualidade e se estimula a criatividade cf Feenberg 2002 p 1920 Ora essa transformação orientarseia para que tipo de sociedade Assumindo a lição histórica representada pelo fracasso dos sistemas comunistas especialmente em termos de eficiência econômica assim como em promover a democracia mas aten to também à desconfiança de economistas como J Stiglitz com relação à economia de mercado Feenberg propõe uma nova noção de socialismo como meta de uma transfor mação cultural Retomando criticamente as idéias de Marx e da Escola de Frankfurt nosso autor propõe interpretar o socialismo como não apenas uma questão política ou uma etapa a ser alcançada mediante uma revolução entendida como episódio históri co mas como uma transição gradual para outro tipo de civilização em que se desenvol vam determinadas potencialidades humanas hoje negadas O socialismo significaria uma sociedade que privilegia bens específicos que não são de mercado e emprega uma regulação e uma propriedade públicas substancialmente mais extensas que as existentes nas sociedades capitalistas para obtêlos Um tal so cialismo não estaria em imediata oposição ao capitalismo mas representaria uma possível evolução a partir dos atuais estados de bemestar social A transição para o socialismo pode ser identificada pela presença de fenômenos que tomados separadamente parecem economicamente irracionais ou admi nistrativamente não efetivos desde o ponto de vista da racionalidade tecnológica capitalista mas que juntos iniciam um processo de mudança civilizatória Feenberg 2002 p 148 Feenberg cita como exemplos de medidas que poderiam pôr em movimento um tal processo a extensão da propriedade pública a democratização da administra ção a ampliação do tempo de vida dedicado à aprendizagem para além das necessida des imediatas da economia e a transformação das técnicas e do treinamento profissio nal para incluir um leque cada vez maior de necessidades humanas no código técnico A adoção dessas medidas poderia servir como índice de avanço social para além do atual capitalismo 513 A tecnologia como problema filosófico três enfoques scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 De resto Feenberg admite antecipadamente que não está esboçando um pro cesso de implementação fácil nem sequer provável Se alguém considerasse que esse exercício de imaginação é inútil o autor revidaria Estas reflexões são estritamente condicionais É impossível predizer o futuro mas podese tratar de esboçar uma senda coerente de desenvolvimento que con duziria a um resultado propriamente socialista em circunstâncias favoráveis A discussão está assim endereçada não à probabilidade de um tal resultado mas à sua possibilidade estabelecer essa possibilidade não é apenas um ato de fé política tem também uma função heurística é um modo de quebrar a ilusão de necessidade de que o mundo quotidiano está revestido Feenberg 2002 p 150 4 Reflexões Finais A filosofia é notoriamente difícil de ser definida Estou convencido de que se deve entendêla como uma atitude consistente em pensar de maneira crítica e rigorosa para viver mais responsavelmente Como tal a filosofia é suscitada por tudo aquilo diante o que precisamos saber ao quê nos atermos como dizia Ortega y Gasset 1965 Qual é a contribuição dos três enfoques da tecnologia para saber ao quê nos atermos em relação a ela Bunge representa de maneira talvez insuperável pela clareza e amplitude de tra tamento a confiança na tecnologia como forma de aprimorar a existência humana Embora não acredite na sua neutralidade e precisamente por isso deposita na tecno logia a esperança de superar tanto os modos de vida atrasados ou deficientes como os problemas causados pelos procedimentos e artefatos nocivos Isso depende é claro da política que impulsiona a tecnologia e da ética que deveria inspirála para as quais Bunge como foi mencionado tem propostas cf Bunge 1989 Frente a outros trata mentos da tecnologia o de Bunge destacase pela riqueza do exame sempre rigoroso que abrange desde os detalhes do raciocínio tecnológico até o discernimento dos di versos tipos de tecnologia incluída a crítica do que considera pseudotecnologia cf Bunge 1985a cap 5 e 6 Tratase em seu conjunto de uma filosofia otimista her deira declarada dos ideais do Iluminismo e do liberalismo clássico formulada com uma nitidez que a torna convincente É claro que seus méritos não excluem motivos de dúvida ou preocupação Sua caracterização como tecnológica de atividades tais como a medicina a pedagogia ou a administração pode provocar certo malestar porém é mister lembrar que Bunge está querendo frisar a necessidade de que elas sejam executadas com base no conhecimento 514 Alberto Cupani scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 científico sem eliminar no entanto certa dose de saber vulgar nem negar o papel da capacidade do talento ou da experiência como ele ocasionalmente tem esclarecido Mais problemática ainda pode resultar a proposta de ver na tecnologia a ação racional por excelência se levarmos em consideração as críticas de Hannah Arendt 1983 e de Habermas 1968 à identificação da ação com a fabricação ðñÜôôåéí e ðïéåúí na sua denominação grega identificação em que aqueles autores viam uma ameaça ao reco nhecimento da especificidade da ação ética e política Não obstante a oposição de Bunge à tecnocracia e sua insistência em que os cidadãos não devam consultar cientistas e expertos nas questões políticas porém decidir por si mesmos leva a pensar que não pretende negar aquela especificidade Cabe contudo criticar no otimismo bungeano a sua falta de percepção da capaci dade que tem a tecnologia de desestruturar as culturas em que se introduz Bunge parte da pressuposição típica do Iluminismo de que toda tradição equivale a atraso e de que toda cultura não científica é de algum modo defeituosa A absoluta confiança nos ide ais iluministas impede Bunge ao que parece de apreciar ou de imaginar aspectos po sitivos nas culturas não científicas assim como de perceber limitações do Iluminismo Nesse sentido são úteis trabalhos como os de Ladrière 1979 e Lacey 1999 A interpretação de Albert Borgmann tem os méritos e as dificuldades típicos da fenomenologia A descrição da maneira em que a tecnologia perpassa define e dirige a nossa existência é por demais reveladora o que constitui como foi dito o propósito declarado do autor25 A abordagem dêitica praticada por Borgmann transmite ao leitor a vivência não apenas do que pode ser conceitualizado na tecnologia mas também daquilo que nela resulta inefável e que toda teoria parece dissipar Segundo ele todas as teorias deixam de detectar o fato da nossa cumplicidade com a tecnologia uma implicação que faz com que sejamos no fundo responsáveis pelo seu aparente do mínio sobre nós É importante notar que Borgmann é consciente de que a sua análise vale sobretudo para a maneira como a tecnologia modela os países altamente indus trializados como o seu os Estados Unidos e que não aborda por serem demasiado complexos casos ou aspectos do avanço tecnológico como o poderio bélico a explo ração do espaço ou a fome no Terceiro Mundo cf Borgmann 1984 p 114 De qual quer modo Borgmann está convencido de que a abordagem fenomenológica exibe conforme a sua índole a verdadeira essência da vida tecnológica 25 A noção de paradigma do dispositivo device paradigm que permite ver como uma unidade uma série de fenômenos aparentemente heterogêneos desde um aparelho de televisão até a política é um verdadeiro achado conforme comenta M Stanley Cf Stanley 1988 p 15 515 A tecnologia como problema filosófico três enfoques scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 Ora é difícil evitar a impressão de que a interpretação de Borgmann subestima o peso dos fatores e circunstâncias sociais particularmente quando rejeita a visão mar xista da tecnologia por considerar que ela desculpa as pessoas por entregarse à vida tecnológica Um crítico de resto admirador da sua obra observa que Borgmann pare ce pensar apenas no marxismo vulgar26 Nosso autor defendese alegando que mes mo nas suas versões mais sofisticadas é sempre possível optar por uma leitura mais científica ou mais moral da doutrina de Marx ou seja pela ênfase na força das estruturas sociais ou pelo apelo à possibilidade humana de modificálas Borgmann acredita que até mesmo os marxistas mais sensíveis à problemática da liberdade hu mana ele menciona nomes como os de Marcuse Leiss e Habermas acabam apresen tando um quadro de dominação social em que os sujeitos dominados nem sequer po dem advertir a sua capacidade de produzir mudanças A essa perspectiva Borgmann contrapõe sua tese de que se na superfície todos parecemos presos à tecnologia a um nível profundo nos sabemos livres para adotarmos uma atitude diferente para com ela Isso se manifestaria em sua opinião na ambivalência com que enfrentamos a tecnologia oscilando entre o fascínio e a desconfiança cf Borgmann 1988 p 35 Por conseguinte se o homem não é um joguete da tecnologia nem das estruturas so ciais deve ser possível mobilizálo para que reaja ao que o prejudica E a explicação marxista de que os oprimidos não reagem por causa do peso irresistível do sistema capitalista é para Borgmann insuficiente A verdadeira razão reside para ele na uni versal cumplicidade para com a tecnologia e a oportunidade de uma saída para essa situação está em mobilizar as pessoas A isso apontam o discurso dêitico e a força do exemplo ao cultivar os interesses focais A defesa de Borgmann não é convincente e a sua fraqueza se torna ainda mais nítida quando se faz a leitura da sua obra como em nosso caso desde países em que os benefícios e prejuízos da tecnologia estão mais claramente que no Primeiro Mundo vinculados à desigualdade social e onde a possibilidade de boa parte da população al terar sua relação com a tecnologia de que chega a dispor é nula27 Por outra parte é em nossos países que os interesses focais são ainda mais cultivados do que nos países industrializados28 Em certo modo a exortação de Borgmann é supérflua para nós e 26 S Carpenter 1988 p 9 e ss Para este crítico mais importante que a tecnologia como elemento modelador da vida moderna foi a economia de mercado e a monetarização da sociedade a vida estabelecida numa base de commodities e a dissociação entre a vida cívica e o âmbito dos negócios Compartilho dessa opinião 27 Borgmann reconhece que suas propostas supõem uma vida próspera Cf Borgmann 1988 p 223 28 Penso por exemplo que em um país como o Brasil a comida familiar em vez do apressado fast food individual é ainda o hábito da maior parte da população assim como a tendência e o gosto das festas e da música em grupos 516 Alberto Cupani scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 temo inócua para os países como o dele Somos levados a pensar que há uma boa dose de ingenuidade em sua expectativa de que o cultivo de interesses focais e o entusias mo dos que o façam irá propagarse pelo resto de uma sociedade próspera como a dele provocando inclusive o desejo de que a igualdade social se realize nas outras regiões do mundo Borgmann comete o erro de esperar de um enfoque o fenomenológico desti nado a permitir compreender as vivências que sirva para explicálas e para mudar as estruturas sociais de que derivam Por princípio isso não é possível29 O reconhecimento do caráter sociopolítico da tecnologia é como vimos o as pecto característico da análise de Feenberg que deve compartilhar imagino os receios frente ao otimismo liberal de Bunge embora não se refira a ele30 e critica Borgmann entre outras coisas por afirmar que a tecnologia contemporânea é perfeita a seu modo cf Feenberg 2002 p 9 A contribuição mais importante de sua análise pareceme ser a crítica ao argumento de eficiência como justificativa do caráter e das modalidades da tecnologia existente Perceber que os produtos os mecanismos e as soluções tecnológicas não respondem a uma eficiência a eles inerente mas a uma eficiência constituída parcialmente por interesses sociais é menos fácil do que se pensa numa sociedade em que a mera preferência pela eficiência alcançou o caráter de obviedade É também relevante no meu entender que Feenberg não permaneça numa denúncia genérica das realizações tecnológicas possibilitadas pela economia capitalista mas aponte para a sua possível instrumentalização em direção a um modo de vida diferente Tal é o caso do capítulo em que mostra a possibilidade de que o computador e a internet não sejam necessariamente fatores de descapacitação automatismo e alienação hu manos mas se convertam em meio de iniciativa inteligência e comunicação Não ra ramente as análises inspiradas pelo marxismo alimentam atitudes genericamente negativas com relação à tecnologia originada pela atual estrutura social mundial Já quanto às iniciativas sociais que Feenberg sugere para promover uma transi ção ao socialismo31 o autor é consciente como foi comentado de que se trata de pos sibilidades cuja implementação está longe de ser fácil Feenberg conjectura que a sua viabilidade pode ser alcançada conseguindo a colaboração das elites técnicas perten centes aos estratos médios da sociedade Com efeito boa parte das reformas por ele 29 Talvez a confiança de Borgmann na força das práticas focais e do discurso dêitico como fatores de mobilização repouse nas suas convicções religiosas ele se assume como católico mais do que na força dos seus argumentos 30 Por outro lado há uma coincidência entre Bunge e Feenberg no que diz respeito a que para ambos a tecnologia não é neutra mas dependente de decisões políticas 31 Naturalmente excede os propósitos deste trabalho apreciar os méritos da tese de Feenberg de que a passagem para o socialismo não deve ser entendida necessariamente como uma revolução política mas como um projeto de nova civilização 517 A tecnologia como problema filosófico três enfoques scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 reivindicadas tem a ver com a democratização da administração em todas as ordens da vida e a supressão da diferença social entre trabalho manual e intelectual As refor mas implicam um ataque geral à hegemonia tecnocrática pois todas as instituições estão hoje tecnologicamente mediadas e conduzidas autoritariamente A modificação mesmo que paulatina da situação atual só poderá ocorrer caso as elites profissionais acedam a colaborar o que não pode ser conseguido pela violência ou por decisão ad ministrativa Embora as elites técnicas e culturais não tenham sido consistentemente solidárias das revoluções francesa e russa comenta Fenberg a sua atitude em maio de 1968 na França sugere que podem circunstancialmente apoiar uma transição ao socialismo Por conseguinte a idéia de uma aliança para reorganizar o trabalho cole tivo não é meramente uma vã especulação mas ressoa como uma importante experiên cia histórica Feenberg 2002 p 160 De qualquer modo a análise da tecnologia re alizada por Feenberg tem sem dúvida o caráter que o autor lhe atribui ou seja possui a função heurística de quebrar a ilusão de necessidade de que o mundo quotidiano está recoberto A última afirmação talvez caiba aos três autores apresentados Pode parecer pou co face aos desafios que a tecnologia nos coloca porém é indispensável para buscar mos um mundo melhor Alberto Cupani Professor Titular do Departamento de Filosofia do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina Pesquisador do CNPq cupanicfhufscbr abstract The philosophical study of technology is rather recent and diversified according to different theoretical orientations and their corresponding social stances This heterogeneity notwithstanding or perhaps due to it philosophy of technology helps us to acknowledge technology as a dimension of human life not merely as a historical event This is what I want to show here by means of presenting three modes of philosophical investigation of technology Mario Bunges Albert Borgmanns and Andrew Feenbergs They illustrate respectively an analytical point of view a phenomenological approach and an examina tion inspired by the School of Frankfurt The main purpose of this article is to divulge those investiga tions which are not very well known among us Nevertheless the article also contains a brief critical judgment of them Keywords Philosophy of technology Mario Bunge Albert Borgmann Andrew Feenberg 518 Alberto Cupani scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 referências bibliográficas Arendt H A condição humana Rio de Janeiro Forense 1983 1958 Borgmann A Technology and the character of contemporary life A philosophical inquiry ChicagoLondres The University of Chicago Press 1984 Reply In Durbin P T Ed Technology and contemporary life Dordrecht Reidel 1988 p 2944 Bunge M La investigación científica Barcelona Ariel 1969 Treatise on basic philosophy Dordrecht Reidel 19841989 8 v Epistemologia São Paulo T A QueirosEdusp 1980 Seudociencia e ideología Madri Alianza 1985a Treatise on basic philosophy Dordrecht Reidel 1985b Tomo 7 Philosophy of science and technology Dordrecht Reidel 1989 Tomo 8 The good and the right Carpenter S R A discussion In Durbin P T Ed Technology and contemporary life Dordrecht Reidel 1988 p 112 Durbin P T Ed Technology and contemporary life Dordrecht Reidel 1988 Feenberg A Transforming technology A critical theory revisited Oxford Oxford University Press 2002 Habermas J Theorie und Praxis Frankfurt Suhrkamp 1968 Heidegger M Sein und Zeit Tübingen Max Niemeyer 1967 A questão da técnica Cadernos de tradução n 2 Departamento de FilosofiaUSP 1997 1954 Lacey H Is science value free Londres Routledge 1999 Ladrière J Os desafios da racionalidade Petrópolis Vozes 1979 Mitcham C Thinking through technology The path between engineering and philosophy ChicagoLondres The University of Chicago Press 1994 Ortega y Gasset J Meditación de la técnica Madri EspasaCalpe 1965 Stanley M A critical appreciation In Durbin P T Ed Technology and contemporary life Dordrecht Reidel 1988 p 1328 A perspectiva analítica de Mario Bunge Responsabilidade Politicas sociais concretização da ação plenamente racional Tencnologia para todos Tecnologi a Positiva Desiguald ade Social sistemas funcionais Negativo Artefatos Planificação Efetiva e eficientemente Campo de conhecimento sequências de tarefas A perspectiva analítica de Mario Bunge Tecnologia Fenômeno Social Valores e intresses Desenvolviment o Positivo Ambivalente Negativo Democratizar Racionalização democratica sustentavel Beneficios Sociais Bem estar social Processo Mudança Social Politicas éticas Metafisico Impacto Tecnologico

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493 A tecnologia como problema filosófico três enfoques scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 A tecnologia como problema filosófico três enfoques Alberto Cupani resumo O estudo filosófico da tecnologia é relativamente recente e diversificado conforme diferentes orienta ções teóricas e suas correspondentes atitudes sociais Apesar dessa heterogeneidade ou precisamente graças a ela a filosofia da tecnologia nos ajuda a reconhecer a tecnologia como dimensão da vida huma na e não apenas como um evento histórico É o que pretendo mostrar apresentando três modos de in vestigar filosoficamente a tecnologia os de Mario Bunge Albert Borgmann e Andrew Feenberg que re presentam respectivamente uma perspectiva analítica uma abordagem fenomenológica e um exame inspirado na Escola de Frankfurt O intuito principal deste artigo é a divulgação dessas investigações pouco conhecidas entre nós No entanto ele inclui uma breve apreciação crítica das mesmas Palavraschave Filosofia da tecnologia Mario Bunge Albert Borgmann Andrew Feenberg Introdução A filosofia da tecnologia é uma disciplina relativamente recente se comparada com as restantes disciplinas filosóficas incluída a filosofia da ciência1 Tratase de um campo de estudos mais heterogêneo do que sua denominação faria supor pois a própria defi nição do seu objeto não é unânime Por outra parte embora não seja possível ignorar a relação da tecnologia contemporânea com a técnica de épocas e culturas anteriores e a diferença entre ambas seja devida em grande medida à presença da ciência experimen tal na tecnologia nem todos os estudiosos concebem a tecnologia como mera ciência aplicada e nem todos admitem uma continuidade de propósitos entre a técnica e a tecnologia Além disso a reflexão filosófica que recai sobre a tecnologia corresponde a scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 1 Embora não faltem antecedentes no século xix e na primeira metade do xx seu desenvolvimento institucional incluindo revistas e congressos específicos data das últimas décadas do século xx Cf Mitcham 1994 cap 1 494 Alberto Cupani scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 diferentes estilos de pensamento2 Apesar dessa heterogeneidade a disciplina encontra a sua unidade na preocupação por um aspecto ou dimensão da vida humana impossível de ignorar e particularmente marcado na sociedade contemporânea a atividade eficien te racionalmente regrada no que diz respeito às suas motivações desenvolvimento alcance e conseqüências A compreensão dessa dimensão da vida levanos a lembrar que a técnica como capacidade humana de modificar deliberadamente materiais objetos e eventos che gando a produzir elementos novos não existentes na natureza define o ser humano como homo faber3 O fazer ou melhor o saber fazer difere de outras capacidades huma nas como a de contemplar a realidade literal ou mentalmente agir no sentido de adotar decisões responsáveis experimentar sentimentos que chegam a ser muito sofistica dos como o fascínio de uma obra de arte e expressarse sobretudo manifestar a pró pria identidade as próprias idéias os próprios anseios mediante uma linguagem ar ticulada particularmente a enunciativa Esse caráter da técnica deve ser levado em consideração ao entender a tecnologia como modo de vida sobretudo na medida em que esse modo de vida afeta outros modos em que podem prevalecer aquelas outras capacidades humanas antes mencionadas A seguir apresentarei três enfoques da tecnologia cada um dos quais represen ta uma corrente filosófica contemporânea relevante O primeiro deles é o enfoque ana lítico de Mario Bunge reconhecido como um dos fundadores da disciplina Bunge não é certamente um filósofo analítico em sentido próprio do termo mas a sua classifi cação aqui corresponde ao fato de que a análise conceitual tem um papel preponde rante na sua filosofia O segundo enfoque escolhido é o da fenomenologia aqui repre sentada pelo livro Technology and the character of contemporary life 1984 de Albert Borgmann Finalmente apresentarei o enfoque de Andrew Feenberg que analisa a tecnologia a partir da filosofia crítica da Escola de Frankfurt em sua obra Transforming technology 2002 A minha exposição dos enfoques mencionados será seguida por al gumas considerações críticas 2 Mitcham registra também a polarização entre a filosofia da tecnologia dos engenheiros vale dizer dos autores de formação científica ou tecnológica como Bunge e a filosofia da tecnologia dos humanistas filósofos ou escritores de cultura clássica como Heidegger ou Mumford cf Mitcham 1994 cap 1 e 2 Os primeiros são geralmente defensores e os segundos críticos da tecnologia 3 Ortega y Gasset um dos primeiros autores a refletir sobre a técnica observou que o homem não se limita a ade quarse à natureza mas adapta a natureza a suas necessidades ou propósitos criando o supérfluo cf Ortega y Gasset 1965 De resto a técnica talvez responda a uma inclinação do organismo a poupar esforços desnecessários cf Ladrière 1979 p 84 495 A tecnologia como problema filosófico três enfoques scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 1 A perspectiva analítica de Mario Bunge4 Adotando uma distinção do historiador Lewis Mumford Bunge entende por técnica o controle ou a transformação da natureza pelo homem o qual faz uso de conhecimentos précientíficos A tecnologia por sua vez consiste na técnica de base científica num sentido que precisaremos mais adiante Quer se trate de técnica quer de tecnologia o que está em jogo é uma atividade consistente na produção de algo artificial de um artefato O artefato não precisa ser todavia uma coisa por exemplo uma bicicleta ou um remédio podendo tratarse também da modificação do estado de um sistema natural por exemplo desviar ou re presar o curso de um rio ou bem da transformação de um sistema por exemplo en sinar alguém a ler Em todos os casos a ação técnica uma forma de trabalho para Bunge opera utilizando recursos naturais como empregar o cérebro próprio para resolver um problema de maneira metódica usar troncos de árvore para construir uma cabana etc transformandoos produzir tecidos com base no linho domesticar ani mais etc ou bem reunindo elementos naturais para dar origem a algo inédito sinte tizar moléculas organizar pessoas numa firma comercial etc Algo artificial é segundo Bunge toda coisa estado ou processo controlado ou feito deliberadamente com ajuda de algum conhecimento aprendido e utilizável por outros Bunge 1985a p 334 Ou também pode dizerse que Um sistema concreto material é um artefato se e somente se cada um dos seus estados depende de estados prévios ou concomitantes de algum ser racional Bunge 1985b p 223 Cabe observar que o artefato pode eventualmente ser algo social como quan do se organiza uma equipe esportiva pode tratarse do resultado de um serviço por exemplo a cura de pacientes e finalmente pode consistir em algo julgado como ne gativo como as armas atômicas Além da noção de artefato a técnica e a tecnologia caracterizamse pela existên cia de uma planificação ainda que mínima Técnica e tecnologia supõem um objetivo preciso O artefato é concebido antecipado e se procura sistematicamente os meios de produzilo Para tanto a técnica como a tecnologia supõem conhecimentos já dis poníveis ou novos A técnica servese do saber vulgar tradicional eventualmente im pregnado de saber científico que não é reconhecido como tal A tecnologia recorre expli citamente ao saber científico dados leis teorias de um modo que ainda iremos especificar Para a produção técnica ou tecnológica os elementos são vistos como recur 4 Bunge é bem conhecido como filósofo da ciência Ensinou na McGill University Canadá Na sua vasta produção destacase o Treatise on basic philosophy em 8 volumes 496 Alberto Cupani scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 sos não sendo apreciados apenas pelas suas qualidades inerentes5 Técnica e tecnologia implicam portanto valores na forma genérica de que tal coisa é útil ou adequada para tal outra Finalmente a produção técnica ou tecnológica contém regras ou seja ins truções para realizar um número finito de atos numa ordem dada e com um objetivo também dado constituindo assim normas estáveis do comportamento humano com sucesso Bunge 1969 p 694 Sem elas nenhum artefato funcionaria ou seria utili zável por outros como estabelece a sua definição No entanto as regras são necessá rias sobretudo porque o objeto artificial deve ser eficiente desempenhando a sua fun ção da maneira mais econômica possível6 Por conseguinte o esquema geral da ação técnica é Se há de se conseguir y no momento t com probabilidade p então deve fazerse x no momento t Bunge 1969 p 703 Assim analisada a ação técnica é essencialmente ação racional orientada a ga rantir poderseia dizer seu próprio sucesso Se a técnica acompanhou e possibilitou o desenvolvimento da humanidade ao longo da maior parte da história o surgimento da tecnologia foi condição de uma ace leração do progresso humano Isso se deve a que a inovação é dentro da técnica pré científica um processo dificultado pela inércia da vida tradicional Comenta Bunge A práxis a menos que seja guiada pela pesquisa científica é extremadamente limita da e conservadora Bunge 1985b p 311 Desde um ponto de vista sistemático a tecnologia surge na medida em que ou bem se indaga a fundamentação teórica das regras técnicas ou bem se busca aplicar conhecimentos científicos à solução de pro blemas práticos A tecnologia pode assim ser definida como O campo de conhecimento relativo ao desenho de artefatos e à planificação da sua realização operação ajuste manutenção e monitoramento à luz do conheci mento científico Ou resumidamente o estudo científico do artificial Bunge 1985b p 231 5 Para o olhar tecnológico afirma Bunge os objetos processos e eventos reais se classificam em recursos produtos artefatos e o resto ou seja o conjunto das coisas inúteis abrangendo os produtos residuais não recicláveis Cf Bunge 1980 p 199 6 Ao interesse na eficiência e na economia vinculamse outras propriedades desejadas do produto técnico e par ticularmente do tecnológico tais como a padronização a segurança a confiabilidade e a rapidez 497 A tecnologia como problema filosófico três enfoques scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 A caracterização da tecnologia como campo de conhecimento obedece a que para Bunge não existe tecnologia onde o homem se limita a aplicar um saberfazer ou a servirse de artefatos sem se perguntar pela sua base teórica nem procurar o seu aper feiçoamento Em todo caso essa é a conduta do mero técnico contemporâneo mas não do tecnólogo sendo o engenheiro seu protótipo cuja atividade é sempre em alguma medida teórica e criativa Isso se adverte melhor considerando o aspecto que assu mem no caso da tecnologia as caraterísticas gerais da técnica antes mencionadas O caráter deliberado da invenção técnica é reforçado na tecnologia que supõe o desenho e a planificação metódicos do artefato a ser produzido O desenho ou projeto tecnológico é a representação antecipada de um artefato com o auxílio de algum co nhecimento científico O seu propósito é criar sistemas funcionais sistemas que de sempenhem efetiva e eficientemente certas funções úteis para determinadas pessoas Bunge 1985b p 226 Entre esses sistemas destacamse as máquinas sistemas não viventes projetados para auxiliar em algum tipo de trabalho Já a planificação consiste em articular uma seqüência de tarefas ou subrotinas destinadas a alcançar o obje tivo proposto que pode ser visto como a modificação introduzida num determinado estado de um sistema para que alcance outro estado desejado Em todo caso o desenho e a planificação tecnológicos repousam no conhecimen to científico Tratase de leis ou fragmentos de teorias que devem ser traduzidas em enunciados nomopragmáticos que fundamentam por sua vez as regras práticas Num exemplo simples a lei enunciado nomológico que afirma A água ferve a 100 celsius fundamenta o enunciado nomopragmático Se a água é esquentada a 100 C então ela ferve o qual por sua vez fundamenta regras tecnológicas tais como Para ferver água esquentea até 100 C Para evitar que a água ferva mantenhase sua temperatura abaixo de 100 C etc Todavia a tecnologia não se reduz para Bunge à utilização do conhecimento científico mas implica na busca de um conhecimento específico o que dá origem a teorias tecnológicas que podem ser de dois tipos substantivas vale dizer aquelas que fornecem conhecimento sobre os objetos da ação por exemplo uma teoria sobre o vôo ou ainda operativas isto é aquelas que versam sobre as ações de que depende o funcionamento dos artefatos por exemplo uma teoria das decisões ótimas sobre a distribuição do trânsito aéreo numa região As teorias substantivas são aplicações de teorias científicas a situações reais a teoria do vôo resulta de aplicar a dinâmica dos fluidos As teorias operativas são por assim dizer mais diretamente tecnológicas pois enfocam desde o início a ação que se tem em vista por exemplo o complexo homem máquina em situações aproximadamente reais Em tais casos a tecnologia pode com binar conhecimento ordinário elementos das ciências formais e certos conhecimen tos especializados não científicos por exemplo práticas de pilotagem com algumas 498 Alberto Cupani scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 das tecnologias que Bunge denomina gerais como a teoria da decisão Mas em con junto a tecnologia comparte com a ciência o método ou seja a estratégia geral da pes quisa7 Por outra parte a distinção entre dois tipos de tecnologia não é uma dicotomia as tecnologias são predominantemente substantivas ou operativas conforme o caso Quando uma teoria científica é aplicada tecnologicamente ou transformada em teoria tecnológica por exemplo a hidrodinâmica transformada em hidráulica re sulta ao mesmo tempo mais rica e mais pobre que quando funciona dentro da ciência pura explica Bunge Ela é mais rica desde um ponto de vista prático porque em vez de limitarse a prever o que poderá ocorrer em determinadas circunstâncias a teoria ave rigua o que se deve fazer para modificar o curso dos eventos Simultaneamente desde o ponto de vista conceitual são teorias mais pobres no sentido de que são menos pro fundas Geralmente o tecnólogo se conforma com teorias fenomenológicas vale di zer aquelas que não penetram ou não penetram demasiado no funcionamento in terno dos sistemas que se pretende modificar limitandose a levar em consideração as variáveis externas cf Bunge 1969 p 685 Com outras palavras dáse um empo brecimento conceitual das teorias científicas no seu uso tecnológico pois em função do seu propósito eminentemente prático o tecnólogo geralmente esquematiza e sim plifica o domínio de que se ocupa8 Pela razão antes apontada entre outras a tecnologia para Bunge não deve ser exaltada às custas da ciência pura Não obstante a tecnologia tem um grande valor pois se a técnica encarna a ação racional endereçada a garantir seu próprio sucesso a tecnologia pode ser vista como a concretização da ação plenamente racional cf Bunge 1969 p 684 1985b p 2399 E quanto mais racionais forem o pensamento e a ação humanos melhor poderá ser em princípio a sua vida sustenta Bunge conhecido defensor da tradição iluminista Essa convicção explica que ele possa classificar como tecnologias atividades tais como a medicina a administração ou a pedagogia confian do em que todos os problemas práticos humanos possam ser formulados tecnologica mente ou ter uma solução adequada que se fundamente na ciência e na tecnologia Nesse sentido o otimismo bungeano chega a supor possível uma engenharia social10 7 Bunge defende a existência de uma estratégia ou disciplina geral de toda pesquisa que corresponde ao método hipotéticodedutivo descrito em forma mais detalhada em Bunge 1969 Cap 1 1980 Cap 2 8 Não obstante Bunge adverte que o autêntico tecnólogo não evitará as teorias profundas e complexas quando prometam sucesso Por exemplo utilizará a teoria quântica dos sólidos para projetar componentes de equipamen tos de rádio ou de computadores e a genética para obter variedades de milho de maior rendimento Bunge 1980 p 194 9 Por tal razão a filosofia da tecnologia deve prolongarse numa tecnopraxiologia ramo da reflexão filosófica pos tulado por Bunge para estudar sistematicamente a ação guiada pela tecnologia cf Bunge 1980 p 205 10 A expressão como é notório foi usada já por K Popper 499 A tecnologia como problema filosófico três enfoques scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 base de políticas sociais progressistas Uma tal engenharia consistiria em colocar to dos os recursos científicos possíveis principalmente é óbvio científicosociais ao serviço de problemas tais como a escassez de recursos a fome a superpopulação a criminalidade o militarismo etc cf Bunge 1985b p 286 A engenharia social para ser efetiva deveria ser sistêmica e não fragmentária11 produzida por equipes inter disciplinares e discutida democraticamente O que acaba de ser dito não significa que Bunge acredite que a tecnologia seja ou tenha sido sempre benéfica Indiscutivelmente o desenvolvimento tecnológico tem causado inúmeros males e problemas posto que até as invenções vistas como positivas comportam circunstancialmente conseqüências negativas12 Como depende em sua produção e controle dos seres humanos Bunge rejeita a idéia de que seja autônoma a tecnologia está assim sujeita aos mais variados interesses e propósitos Muitos dos ex cessos e extravios da tecnologia são para ele derivados do código moral nela implícito Tratase de um código que separa o homem do resto da natureza autorizandoo a sub metêla e isentandoo de responsabilidades cf Bunge 1980 p 203 Ele considera particularmente nefasta a noção tão difundida de que a tecnologia seja axiologica mente neutra Para combatêla Bunge defende uma ética que aponte as responsabili dades naturais e sociais da inovação tecnológica E sobretudo defende a necessidade de uma democracia integral participativa e cooperativa holotecnodemocracia em que o desenvolvimento tecnológico pudesse estar verdadeiramente a serviço de todos cf Bunge 1989 2 A abordagem fenomenológica de Albert Borgmann Para Borgmann13 tecnologia não designa uma forma de técnica mais evoluída e po tente graças à sua associação com a ciência como no caso de Bunge mas um modo de vida próprio da Modernidade A tecnologia é o modo tipicamente moderno de o ho mem lidar com o mundo um paradigma ou padrão caraterístico e limitador da existência intrínseco à vida quotidiana Tão intrínseco que ele passa por isso mesmo despercebido No entanto o surgimento e o poder desse padrão constituem para Borg mann o evento de maiores conseqüências do período moderno estando seu livro 11 Bunge é um notório defensor do enfoque sistêmico em ciência e filosofia 12 O automóvel aumentou enormemente a poluição ambiental e reforçou o individualismo a revolução verde ampliou a distância entre pobres e ricos a televisão torna as crianças passivas etc os exemplos são de Bunge 13 Borgmann é professor da Universidade de Montana EUA e autor de outras obras como Crossing the postmodern divide 1992 e Holding on to reality the nature of information and the turn of the millennium 1999 500 Alberto Cupani scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 dedicado a explorálo fenomenologicamente bem como a propor um princípio de so lução para o problema que a tecnologia representa cf Borgmann 1984 p 1 A escolha do enfoque fenomenológico lato sensu por parte de Borgmann deve se à sua convicção de que outros enfoques perdem de vista ou não reconhecem a espe cificidade da tecnologia As teorias instrumentais isto é aquelas que vêem a tecnologia como um meio ao serviço dos propósitos humanos são para Borgmann superficiais e as teorias substancialistas as que acreditam que a tecnologia seja autônoma deixam obscuro na sua opinião o caráter da tecnologia Existem ainda teorias pluralistas que insistem na multiplicidade de fatores a que responde a tecnologia porém a aten ção para essa multiplicidade faz que percam de vista o esquema básico que dá sentido ao conjunto A análise da tecnologia por parte das ciências sociais por sua vez lhe pa rece inconclusiva pois a complexidade dos fenômenos sociais em que a tecnologia está inserida faz que toda teoria seja apesar de precisa e justamente por isso ambí gua O estudo fenomenológico destinado a mostrar o seu objeto deve no entanto ser testado e elaborado contra o trabalho pertinente em filosofia e especialmente em ciências sociais Borgmann 1984 p 514 Para Borgmann a tecnologia e os seus problemas nunca serão compreendidos enquanto forem considerados como conseqüências de fatores sociais políticos ou eco lógicos Devese reconhecer na tecnologia um fenômeno básico que tem sua chave na existência dos dispositivos devices que nos fornecem produtos commodities ou seja bens e serviços quer se trate do aquecedor elétrico que nos dá calor do automóvel que nos permite deslocamento rápido e relativamente livre ou do aparelho de televi são que põe ao nosso alcance informação e diversão Como veremos à noção de dis positivo se opõe a noção de coisa sendo os dispositivos e as coisas os paradigmas de duas formas diferentes de vida humana contraste através do qual Borgmann aspira a mostrar a verdadeira índole da tecnologia Os dispositivos são essencialmente um meio algopara15 sendo necessário dis tinguir ainda entre a maquinaria do dispositivio e a sua função Ao passo que esta últi ma é conhecida do usuário a primeira é geralmente incompreendida e até incom preensível para ele pensemos por exemplo na ignorância com relação à maquinaria 14 Explicar afirma Borgmann é fornecer compreensão As ciências naturais explicam apoditicamente isto é a partir de leis e condições iniciais ou de contorno Também o fazem as ciências sociais Ambas no entanto carecem de poder para determinar o que é relevante para ser explicado Isto deve ser explicado de outra maneira dêitica mostrativa Uma terceira forma de explicação é a paradigmática isto é a que revela um padrão que dá sentido a um determinado âmbito de objetos e eventos O enfoque escolhido por Borgmann para tratar da tecnologia combina o segundo e o terceiro modos de explicação Cf Borgmann 1984 cap 12 15 A influência de Heidegger Sein und Zeit 1967 nesta análise de Borgmann é evidente 501 A tecnologia como problema filosófico três enfoques scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 de um computador ainda que saibamos usálo bem Mediante a sua função um dis positivo nos alivia disburdens de um esforço nos liberta de um peso resolve al guma dificuldade Por outra parte diferentes dispositivos podem nos fornecer o mes mo produto podemos nos aquecer mediante diversos tipos de sistemas vale dizer que os dispositivos têm equivalentes funcionais Sobretudo o dispositivo caracteriza se por tornar disponível o produto correspondente Essa disponibilidade significa que os produtos podem ser consumidos de maneira instantânea ubíqua segura e fácil Basta lembrar o alívio de satisfazer qualquer necessidade de luz de música de informação apenas apertando um botão de aparelhos que estão sempre à mão A disponibilidade encerra ainda outras caraterísticas como se pode apreciar na seguinte citação Uma forma de tornar disponíveis os produtos é tornálos descartáveis Não é ape nas desnecessário mas impossível manter e reparar guardanapos de papel latas de conserva canetas esferográficas ou qualquer outro produto destinado a ser usado uma vez Outro modo da disponibilidade é tornar desnecessário o cuidado dos produtos Os talheres de aço inoxidável não requerem polimento os pratos de plástico não precisam ser manipulados com cuidado Em outros casos a ma nutenção e a reparação tornamse impossíveis por causa da sofisticação do pro duto os microcomputadores estão sendo usados cada vez mais porque vão se tornando amigáveis isto é fáceis de operar e compreender Mas esse caráter amigável é precisamente o sinal do quanto se tem tornado grande o hiato entre a função acessível a todos e a maquinaria conhecida por quase ninguém Borgmann 1984 p 47 Os produtos e seu consumo constituem a meta declarada do empreendimento tecnológico assegura Borgmann Essa meta foi proposta pela primeira vez no início da Modernidade como expectativa de que o homem poderia dominar a natureza No entanto essa expectativa convertida em programa anunciado por pensadores como Descartes e Bacon e impulsionado pelo Iluminismo não surgiu de um prazer de po der de um mero imperialismo humano mas da aspiração de libertar o homem da fome da insegurança da dor da labuta e de enriquecer sua vida física e culturalmente Sem levar em consideração esse afã de libertação não se pode entender o padrão da tecnologia que à maneira de um molde foi dando forma à sociedade humana nos países industrialmente desenvolvidos Não basta portanto para entender a tecnologia atentar para o seu aspecto de natureza dominada nem à sua associação com a ciência O avanço científico e a sua aplicação a finalidades práticas são imprescindíveis para que exista a maioria das invenções tecnológicas mas a ciência por si mesma não pode fornecer lhe um rumo nem explicar por que a tecnologia tem chegado a ser um modo de vida 502 Alberto Cupani scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 Esse modo de vida implica a tendência a reduzir todo e qualquer problema a uma questão de relação entre meios e fins Reciprocamente o mundo dos dispositivos é um mundo de meros meios sem fins últimos o que constitui uma novidade na história humana Isto é muito importante para se entender segundo Borgmann a diferença entre a técnica tradicional e a tecnologia Ao passo que na técnica toda relação meio fim estava inserida em um contexto social cultural ecológico na tecnologia a relação meiofim vale universalmente com independência dos contextos concretos Enquanto a lareira tradicional ainda que sendo um meio para aquecer o lar estava inserida na trama de relações entre os membros da família supunha o trabalho necessário para acendêla e mantêla e incentivava a reunião da família e o cultivo dos costumes o aquecedor moderno se reduz à sua função de fornecer calor não importa para quem nem em quais circunstâncias Os dispositivos carecem de contexto podendo ser usa dos para relativamente diversos fins e combinados entre si sem muitas restrições Os dispositivos são assim ambíguos Em correspondência com essas propriedades dos dispositivos a nossa relação para com eles é de falta de compromisso engagement16 Em nenhum aspecto da nossa vida é tudo isso mais evidente comenta Borgmann do que na propaganda ou seja no apelo constante e sistemático ao consumo de dis positivos Estes últimos aparecem na propaganda nas mais insólitas combinações car ros associados a obras de arte paisagens acompanhadas de músicas símbolos religio sos misturados a figuras sensuais etc o que acentua a superficialidade dos dispositivos Na propaganda eles como que se escondem deixandonos face aos produtos de que são veículos e com os quais somos continuamente tentados De resto para Borgmann a propaganda não cria a cultura de consumidores mas a regula e a põe de relevo o universo da propaganda é inteiramente um universo de produtos e consu mo Ela destila o aspecto frontal da tecnologia em forma ideal e assim apresenta o lado técnico e distintivo da nossa época Deste modo ela superou a arte como a apresentação arquetípica daquilo de que trata a nossa época Na propaganda a promessa da tecnologia é apresentada ao mesmo tempo em pureza e concreta mente e portanto da maneira mais atraente Problemas e ameaças entram ape nas como pano de fundo para destacar as benções da tecnologia Assim nos en contramos definidos arquetipicamente nas propagandas Elas fornecem uma força estabilizadora e orientadora na complexidade da sociedade tecnológica ainda em desenvolvimento Borgmann 1984 p 55 16 Essa falta de compromisso se evidencia por exemplo na facilidade com que substituímos um artifício que não mais funciona ou não mais está na moda por um outro equivalente ou melhor 503 A tecnologia como problema filosófico três enfoques scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 Mas e isto é o decisivo o consumo universal de produtos é a realização da promessa da tecnologia O sonho de uma vida humana menos penosa e mais rica temse transformado numa cultura que visa apenas o lazer derivado de consumir cada vez mais produtos tecnológicos A vida dentro do paradigma da tecnologia resulta sem rumo e no entanto impositiva Todas as caraterísticas antes descritas da vida no paradigma do dispositivo de vice paradigm ressaltam quando consideramos por contraste o que são as coisas que podem focar ou centrar a nossa existência as coisas e práticas focais A palavra latina focus significa a lareira o lugar do fogo numa casa pré tecnológica a lareira constituía um centro de calor de luz de práticas diárias Para os romanos o focus era sagrado o lugar onde residiam os deuses do lar Na Grécia antiga um bebê era verdadeiramente incorporado à família e à casa quan do era transportado em torno da lareira e colocado diante dela A união de um matrimônio romano era santificada na lareira E ao menos nas épocas primiti vas os mortos eram enterrados junto à lareira A família comia junto à lareira e fazia sacrifícios aos deuses do lar antes e depois da comida A lareira sustentava ordenava e centrava a casa e a família hoje a lareira amiúde tem uma loca lização central na casa Seu fogo é agora simbólico dado que raramente fornece suficiente calor Mas a irradiação os sons e a fragrância do fogo vivo consumindo lenhos que são quebrados amontoados e sentidos nas suas veias têm retido a sua força Não há mais imagens dos deuses ancestrais situadas junto ao fogo mas há amiúde fotografias de entes queridos sobre a lareira coisas preciosas da história da família ou um relógio medindo o tempo Borgmann 1984 p 196 De maneira análoga tocar um instrumento musical melhor se for em compa nhia de outras pessoas caminhar em contato com a natureza relativamente virgem comer em família ou pescar por esporte constituem outros tantos exemplos de práti cas focais que dirigem a nossa atenção para coisas a mesa familiar o instrumento musical a natureza que não são meros meios para determinados fins senão fins em si mesmos Que não são elementos que podem ser colocados ao serviço de qualquer propósito mas que reservam um propósito próprio São coisas com que nos com prometemos e que remetem a um contexto social cultural e ecológico São coisas pro fundas vale dizer coisas cujos traços são todos ou na sua maioria significativos E são em resumo coisas que reconhecemos e respeitamos em seu próprio direito cf Borgmann 1984 p 193 504 Alberto Cupani scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 Certamente sempre é possível tratar algumas dessas coisas como meros meios Quando olhamos tecnologicamente para uma lareira prétecnológica separamos da plenitude dos seus traços a função de fornecer calor como a única e finalmente significativa Todos os outros traços são considerados então como parte da ma quinaria e estando sujeitos à lei da eficiência tornamse dependentes e indefi nidamente mutáveis A visão tecnológica de uma comida revela um agregado de sabores texturas e caraterísticas nutritivas Só elas retêm significação estável Analogamente quando olhamos para uma árvore vemos certa quantidade de ma deira ou fibra de celulose os espinhos os ramos a cortiça e as raízes são resídu os Uma rocha é 5 por cento de metal e o resto é lixo Um animal é visto como uma máquina que produz tanto de carne Qualquer uma das suas funções que não ser ve para esse propósito é indiferente ou incômoda Borgmann 1984 p 192 E nisso consiste precisamente a atitude tecnológica em que o universo huma no perde cada vez mais coisas e práticas focais para passar a ser constituído apenas por dispositivos que se produzem que se usam ou se consomem Um universo em que não apenas os objetos naturais como uma planta ou artificiais como um ventilador mas também os objetos sociais e culturais como o governo ou a educação são levados em consideração tão somente como meios para fins circunstanciais Esse universo está dividido em dois âmbitos o do labor labor e o do lazer uma divisão que espelha aque la entre a maquinaria do artifício e o produto que ele fornece À diferença do trabalho work tradicional que estava inserido numa rede social e cultural e que dava sentido à vida do homem trabalhador orientandoo na natureza na cultura e na sociedade o labor tecnológico se reduz à produção e manutenção das maquinarias que fornecem os artifícios Ou então à produção de artifícios como meios de lazer Este último à diferença do prazer que eleva refina ou enobrece a vida huma na quer se trate de uma leitura do prazer de uma refeição entre amigos ou da contem plação de uma bela paisagem se reduz ao consumo indefinido de produtos tecnoló gicos ficando cada vez mais dissociado de qualquer preocupação com a excelência da vida pessoal A vida conforme o paradigma tecnológico continua Borgmann tem um glamour que explica em parte a sua propagação A tecnologia como já foi lembrado promete nos alívio de tarefas penosas esperança de termos uma relação mais rica com o mundo graças à afluência de dispositivos ela responde à nossa impaciência com coisas que exigem cuidado e reparação ao nosso desejo de fornecer a nossos filhos o melhor de senvolvimento e à vontade de nos afirmarmos na existência adquirindo bens que ins piram respeito Mas tudo isso vai acompanhado de sentimentos de perda de pena e 505 A tecnologia como problema filosófico três enfoques scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 uma espécie de traição a um outro tipo de vida pois as realizações que representa vam libertação parecem ser contínuas com a procura de frívola comodidade Dáse inclusive uma sensação de impotência pois tudo ocorre como se os instrumentos ti vessem acabado por definir os fins Fins gerais abstratos saúde segurança comodidade nutrição abrigo mobili dade felicidade e assim por diante tornamse altamente relativos a instru mentos O desejo de se locomover tornase desejo de possuir um automóvel a necessidade de se comunicar tornase necessidade de se possuir serviço telefô nico a necessidade de comer tornase necessidade de uma geladeira um fogão e um adequado supermercado Winner apud Borgmann 1984 p 62 Embora a sensação do ser humano seja a de estar sutilmente preso ao mundo tecnológico ainda que não pareça mais imaginável viver sem seus produtos Borgmann não acha que o homem seja simplesmente arrastado pela tecnologia Já foi menciona do que Borgmann rejeita as teorias substancialistas Para ele o que existe é uma certa cumplicidade ou implicação do homem com a tecnologia Borgmann 1984 p 105 Com outras palavras temos responsabilidade pela manutenção do modo de vida tecno lógico que nos fascina em razão do glamour antes mencionado É verdade que as cir cunstâncias sociais favorecem a manutenção e o progresso da tecnologia como para digma a desigualdade social os favorece porque cada um aspira a ter o que outros já têm Mas é verdade aponta Borgmann que nem sequer a riqueza dá ao homem poder sobre a tecnologia pois esta constitui uma cultura um horizonte em função do qual são tomadas todas as decisões e nesse sentido os mais abastados estão tão sujeitos a seu padrão quanto os mais pobres Nada disso implica para Borgmann a crença de que a tecnologia constitua uma fatalidade As tentativas de diagnosticar e corrigir o rumo da sociedade tecnológica sofrem para nosso autor do defeito de pressupor aquilo que querem emendar Para começar a promessa da tecnologia está em consonância com os ideais de liberdade igualdade e autorealização próprios da democracia liberal a qual foi sendo conquistada de acor do com o paradigma tecnológico A política funciona para Borgmann como meta dispositivo metadevice da sociedade tecnológica E as teorias filosóficas sobre a so ciedade justa como as de J Rawls e J Habermas ao deixarem de lado a questão da vida boa para limitaremse a fundamentar a justiça subestimam a singularidade da relação meiosfins no paradigma tecnológico e ignoram o quanto dependem dele cf Borgmann 1984 p 95 e ss A análise da tecnologia está no livro de Borgmann em função de uma proposta de reforma que não deve ser entendida como reforma na tecnologia mas como reforma 506 Alberto Cupani scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 da tecnologia Uma reforma que parta do reconhecimento do paradigma da tecnolo gia e da importância daquilo que ele vai nos fazendo perder coisas e práticas focais A argumentação em favor de uma tal reforma não pode ser demonstrativa à maneira das ciências nem tampouco paradigmática como o foi a descrição do paradigma tec nológico mas dêitica ou mostrativa baseada naquelas experiências de coisas que possuem valor e direito de existir em si mesmas e não como meros meios e no teste munho que se pode dar delas A explicação dêitica não é concludente cogent mas ape lativa e pode ser sempre contestada cf Borgmann 1984 cap 21 Conforme a tradi ção fenomenológica17 Borgmann espera que as suas palavras despertem no leitor a experiência a lembrança e o desejo daquelas coisas e práticas que podem centrar e orientar a vida humana convencendose assim da necessidade e possibilidade de se contrapor à tendência do universo tecnológico A reforma proposta apela expressamente para restabelecer a importância da questão da vida boa aparentemente eliminada na tecnologia ou melhor resolvida a seu modo e contornada pelas teorias éticas liberais Sem considerar o que pode dar nobreza dignidade excelência à vida humana não há segundo Borgmann possibili dade de justificar qualquer ação face ao império da tecnologia Se este último é o âmbi to da extensão indefinida dos meros meios do labor que conduz ao consumo da rela ção não engajada com os artifícios a reforma deve orientarse pelo restabelecimento daquelas experiências que podem constituirse em fins em si mesmas para as pessoas e comunidades A cultura da mesa o caminhar a pesca a prática da música as festas a vivência da natureza ainda intocada etc são exemplos de interesses focais focal concerns a serem recuperados Essa recuperação não significa rejeitar de forma gené rica a tecnologia coisa por outro lado impossível mas reduzila à condição das prá ticas focais Uma prática focal gera uma atitude inteligente e seletiva para com a tecnologia Ela conduz a uma simplificação e perfeição da tecnologia contra o pano de fundo do interesse focal da pessoa e a um uso reflexivo dos produtos tecnológicos no centro da prática da pessoa Assim um homem pode gostar de correr mas ele não vai correndo a todo lugar aonde quer ir Para ir trabalhar ele dirige um carro Ele depende desse artefato tecnológico e de toda a correspon dente maquinaria de produção serviço recursos e estradas Certamente irá querer que o carro seja um artefato tecnológico tão perfeito quanto seja possível seguro confiável fácil de operar livre de manutenção Dado que os corredores 17 O fenomenólogo Max Scheler disse em algum lugar que um escrito fenomenológico é um convite a olhar numa certa direção a fim de enxergar o que o autor descreve 507 A tecnologia como problema filosófico três enfoques scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 desfrutam profundamente do ar das árvores e dos espaços abertos que tornam agradável sua corrida e dado que o vigor e a saúde humanos são essenciais para seu empreendimento seria coerente da parte deles querer um carro benigno para o ambiente que seja livre de poluição e que requeira um mínimo de recursos para a sua produção e operação Dado que os corredores se expressam mediante a corrida eles não iriam necessitar do brilho do tamanho ou da novidade em seus veículos Os corredores apreciam calçados que sejam leves firmes e que ab sorvam o impacto Este tipo de calçado permite que a pessoa se mova mais rapi damente que vá mais longe e mais fluidamente Mas os corredores não iriam querer ter esses movimentos mediante uma motocicleta nem iriam querer tampouco meramente obter o benefício fisiológico de tal movimento corporal mediante uma esteira rolante Borgmann 1984 p 221 De maneira análoga é possível conceber uma utilização da tecnologia e dos seus aperfeiçoamentos na medida em que permita e favoreça qualquer prática focal que tenhamos escolhido Vista assim a tecnologia realça o caráter de tais práticas em vez de soterrálas como acontece quando se vive em cumplicidade com ela O princípio da reforma proposta por Borgmann consiste pois em elevar os as suntos de interesse focal a fins em relação aos quais todos os recursos tecnológicos são meios Isso pode e deve fazerse não apenas em nível pessoal e familiar mas também em nível da comunidade nacional e em função de conceber a vida boa como uma vida de excelência definida não pela posse de dispositivos ou o consumo de produtos em resumo pelo padrão de vida mas pela qualidade de vida Esta última não se mede pela afluência material mas pela riqueza de engajamento de que os seres humanos sejam capazes Em nível social a proposta de Borgmann inclui sugestões de reformas econômicas que fomentem a indústria de pequeno porte laborintensiva a qual permitiria recuperar a função dignificadora do trabalho remodelação das cidades resgatando espaços para usos focais bem como a expectativa de que se a sua mensa gem for compreendida os cidadãos irão se sensibilizar para a questão da justiça social Isto significa que a redução do consumo por parte daqueles empenhados em levar uma vida orientada pelas coisas e não pelos artifícios tecnológicos iria acompanhada pela vontade de que a situação material da classe baixa e dos povos mais pobres fosse me lhorada a fim de que todos pudessem ter a oportunidade de viver uma vida com senti do cf Borgmann 1984 p 244 e ss 508 Alberto Cupani scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 3 A perspectiva crítica de Abdrew Feenberg Um terceiro enfoque da tecnologia está representado pela obra de Feenberg Transfor ming technology 200218 O autor propõe uma interpretação da tecnologia que como a de Borgmann porém por diferentes razões rejeita tanto a visão instrumentalista quanto a substancialista Tratase de um enfoque que prolonga as análises da Escola de Frank furt em particular Marcuse aspirando a reconstruir a idéia de socialismo com base numa radical filosofia da tecnologia A tecnologia concorda Feenberg é um fenômeno tipicamente moderno Mais ainda ela constitui a estrutura material da Modernidade Mas a tecnologia no argu mento do autor não é um mero instrumento neutro pois ela encarna valores anti democráticos provenientes da sua vinculação com o capitalismo e manifestos numa cultura de empresários que enxerga o mundo em termos de controle eficiência me dida pelo proveito alcançado e recursos Os valores e interesses das classes dominan tes estão inscritos no próprio desenho dos procedimentos e máquinas bem como nas decisões que os originam e mantêm Por outro lado a tecnologia não constitui uma entidade autônoma nem um destino19 A conquista da natureza que ela encarna não é um evento metafísico como quer Heidegger 1997 1954 mas começa como do minação social O controle da natureza é indissociável do controle de seres humanos por outros o que se traduz em fenômenos também típicos da nossa época como a de gradação do trabalho da educação e do meio ambiente Por ser a manifestação de uma racionalidade política a tecnologia não pode ser modificada mediante reformas morais ou atitudes espirituais como quer Borgmann por exemplo O que se requer é uma modificação cultural proveniente de avanços democráticos Feenberg defende uma po sição não determinista cujas teses básicas seriam 1 O desenvolvimento tecnológico está sobredeterminado tanto por critérios téc nicos quanto sociais de progresso podendo por conseguinte bifurcarse em qualquer uma de diversas direções conforme a hegemonia que prevalecer 2 Enquanto as instituições sociais se adaptam ao desenvolvimento tecnológico o processo de adaptação é recíproco e a tecnologia muda em resposta às condi ções em que se encontra tanto quanto ela as influencia Feenberg 2002 p 143 18 Edição revisada de Critical theory of technology 1991 Feenberg é professor da Universidade de São Diego EUA e autor de Alternative modernity the technical turn in philosophy and social science 1995 e estudos sobre Marcuse e Heidegger 19 Ela é antes um processo ambivalente de desenvolvimento suspenso entre diferentes possibilidades e um cenário de luta Feenberg 2002 p 15 509 A tecnologia como problema filosófico três enfoques scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 Um elemento crucial para se empreender a modificação da tecnologia consiste em reconhecer a distinção básica entre os que comandam e os que obedecem nesta civilização tecnológica em que o poder tecnológico tornouse a principal forma de po der substituindo as formas baseadas antigamente em outras justificações como o nas cimento ou a religião20 O poder é por sua vez exercido em forma de administração e de controle estratégico das atividades sociais e pessoais Feenberg destaca desde o iní cio de sua análise a autonomia operacional dos administradores capitalistas e tecno cratas isto é a sua liberdade para tomar decisões independentes sem considerar os interesses dos agentes subordinados nem da comunidade ignorando também as con seqüências ambientais Para além dos objetivos circunstanciais a autonomia opera cional tem como metaobjetivo a sua indefinida preservação o que é garantido pela racionalidade intrínseca à tecnologia uma racionalidade que se ampara no caráter apa rentemente absoluto da justificação pela eficiência Com efeito as decisões tecnológicas parecem adotadas em função da eficiên cia que é o valor característico dessa dimensão da vida humana No entanto o critério de eficiência não basta para determinar o desenvolvimento tecnológico pois a própria eficiência pode ser diferentemente definida conforme diversos interesses sociais Os objetos técnicos são também objetos sociais e o desenvolvimento tecnológico é um cenário de luta social Comparando o desenvolvimento tecnológico com o uso da linguagem em que a gramática condiciona o significado mas não decide o propósito Feenberg afirma que existe um código social da tecnologia que associa eficiência e propósito21 Naturalmente as partes de uma invenção tal como a linha de montagem têm uma coerência técnica própria que não depende em absoluto da política ou de relações de classe A tecnologia não se reduz neste exemplo a relações de pro dução nem o conhecimento técnico a ideologia O primeiro termo em cada um desses pares tem a sua própria lógica a tecnologia deve realmente funcionar Mas não é meramente porque um artefato funciona que é escolhido para o desenvol vimento em vez de outras configurações igualmente coerentes de elementos 20 Na sua análise do poder social Feenberg combina idéias de Certeau Marcuse e Foucault 21 Reciprocamente podese falar do código técnico de um sistema social como o capitalismo O código ou seja os padrões de organização dos elementos responde ao imperativo de hegemonia do capitalismo Tratarseia de um caso do que Feenberg denomina distorção formal formal bias vale dizer aquela que não se reconhece nos ele mentos combinados mas na sua combinação No caso das realizações tecnológicas a distorção que apresenta como neutro o que é ideológico só pode ser denunciada revelando o contexto e a evolução histórica Esse é o propósito da Teoria Crítica Cf Feenberg 2002 p 82 510 Alberto Cupani scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 técnicos O caráter social da tecnologia reside não na lógica do seu funcionamen to interno mas na relação dessa lógica com um contexto social A linha de montagem tão somente aparece como um progresso técnico porque estende a classe de racionalidade administrativa de que o capitalismo já depende Poderia não ser percebida como um avanço no contexto de uma economia baseada em cooperativas de operários em que a disciplina de trabalho fosse autoimposta em vez de imposta desde cima Feenberg 2002 p 79 Sob o código técnico do capitalismo a eficiência tem como mais importante medida o lucro que se realiza por meio da venda de mercadorias A ele se subordina toda outra consideração e por ele são ignoradas outras preocupações como a qualida de de vida a educação a justiça social ou a proteção do meio ambiente reduzidas a meras externalidades22 Mas a eficiência poderia ser diferentemente concebida num outro código social que respondesse a exigências da vida humana hoje não realizadas e que aparecem em forma de reivindicações econômicas e morais igualdade de oportu nidades proteção aos descapacitados satisfação no trabalho direito ao lazer Pro cedimentos e artefatos eficientes não precisam fazer abstração de tudo quanto não se refira ao lucro ao poder ao consumo e ao padrão de vida O capitalismo e o socialismo burocrático sustenta Feenberg fomenta realiza ções tecnológicas que reforçam as estruturas sociais hierárquicas e centralizadas e de modo geral o controle desde cima em todos os setores da vida humana trabalho educação medicina lei esportes meios de comunicação etc Existe em resumo uma mediação técnica generalizada ao serviço de interesses privilegiados que reduz em todas as partes em nome da eficiência as possibilidades humanas impondo em todo lugar como medidas óbvias a disciplina a vigilância a padronização Reciprocamente a mediação de determinados interesses sociais faz que as realizações tecnológicas sejam atualmente abstratas e descontextualizadas Tratase de objetos e procedimentos que não parecem pertencer a nenhum mundo cultural em especial e de sujeitos que se compreendem a si mesmos pela sua função e se acreditam livres de responsabilidade quanto às conseqüências das suas atividades São esses argumenta Feenberg momen tos típicos da reificação social que a tecnologia representa cf Feenberg 2002 p 178 No entanto na opinião de Feenberg é precisamente a percepção sempre possí vel dessas limitações e deformações e as correspondentes potencialidades suprimidas 22 O acréscimo de eficiência nos moldes atuais não raramente exige a descapacitação do operário reduzido a apêndice de máquinas ou processos ou até mesmo a sua absoluta substituição pelas maquinarias automatizadas A educação reduzse a um investimento conforme as exigências do mercado e assim por diante 511 A tecnologia como problema filosófico três enfoques scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 o que pode estimular movimentos políticos transformadores Essa esperança do autor fundamentase no fato de que a hegemonia do código técnico do capitalismo não pode impedir que haja iniciativas contrárias Feenberg afirma que a sociedade pode ser comparada não apenas a uma máquina mas a um jogo e que desde este ponto de vista as estratégias de domínio que preservam a autonomia operacional são contes tadas por táticas dos dominados que aproveitam suas margens de manobra Assim como a autonomia operacional serve como a base estrutural da domina ção um diferente tipo de autonomia é conquistado pelos dominados uma auto nomia que opera com o jogo no sistema para redefinir e modificar suas formas ritmos e propósitos Denomino margem de manobra essa autonomia reativa Pode ser usada para uma diversidade de propósitos em organizações tecnicamente mediadas incluindo controlar a marcha do trabalho proteger colegas improvi sações produtivas não autorizadas inovações e racionalizações informais e as sim por diante Feenberg 2002 p 84 Do mesmo modo como as táticas contestadoras são possíveis porque a evolução da tecnologia não pode ser absolutamente controlada o resultado da contestação tampouco pode ser previsto Às vezes os resultados das táticas dos dominados são reabsorvidos pela lógica dominante Outras vezes no entanto as modificações podem se estabelecer23 A contestação do rumo autoritário da tecnologia não seria possível no entanto se a tecnologia não fosse ambivalente podendo ser instrumentalizada em função de diferentes projetos políticos Como argumenta Feenberg a tecnologia é em grande medida um produto cultural e assim toda ordem tecnológica é um ponto de partida potencial para desenvolvimentos divergentes conforme o ambiente cultural que lhe dá forma Mais ainda para ele é possível perceber na tecnologia uma dupla instrumentalização que sugere a possibilidade de que ela venha a ter um diferente rumo A tecnologia constitui basicamente uma atitude ou orientação com relação à rea lidade instrumentalização primária No entanto ela é também um modo de ação ou realização no mundo social A essência da tecnologia reside na união dialética en tre ambos níveis de instrumentalização cf Feenberg 2002 p 17524 23 Feenberg exemplifica as possibilidades de um outro desenvolvimento da tecnologia analisando o computador instrumento de controle ou de comunicação e propondo a cidade lugar do diálogo e não a fábrica servida pela automação como modelos de uma educação estimulada pelos avanços tecnológicos Cf Feenberg 2002 cap 4 e 5 24 Um serrote como instrumento técnico não existe sem a atividade de serrar ou a carpintaria como atitude hu mana No entanto a forma concreta de um serrote particular sem valor simbólico etc não se compreende apenas pela sua função considerada em abstrato mas pelo contexto sociocultural Cf Feenberg 2002 cap 4 e 5 512 Alberto Cupani scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 A mudança social sugerida necessita certamente de critérios de progresso em direção da realização humana Feenberg os resgata da tradição humanista enten dendo que a sociedade progride na medida em que aumenta a capacidade das pessoas para assumir responsabilidade política em que se fomenta a universalidade do ser humano contra toda forma de discriminação em que se permite a liberdade de pen samento em que se respeita a individualidade e se estimula a criatividade cf Feenberg 2002 p 1920 Ora essa transformação orientarseia para que tipo de sociedade Assumindo a lição histórica representada pelo fracasso dos sistemas comunistas especialmente em termos de eficiência econômica assim como em promover a democracia mas aten to também à desconfiança de economistas como J Stiglitz com relação à economia de mercado Feenberg propõe uma nova noção de socialismo como meta de uma transfor mação cultural Retomando criticamente as idéias de Marx e da Escola de Frankfurt nosso autor propõe interpretar o socialismo como não apenas uma questão política ou uma etapa a ser alcançada mediante uma revolução entendida como episódio históri co mas como uma transição gradual para outro tipo de civilização em que se desenvol vam determinadas potencialidades humanas hoje negadas O socialismo significaria uma sociedade que privilegia bens específicos que não são de mercado e emprega uma regulação e uma propriedade públicas substancialmente mais extensas que as existentes nas sociedades capitalistas para obtêlos Um tal so cialismo não estaria em imediata oposição ao capitalismo mas representaria uma possível evolução a partir dos atuais estados de bemestar social A transição para o socialismo pode ser identificada pela presença de fenômenos que tomados separadamente parecem economicamente irracionais ou admi nistrativamente não efetivos desde o ponto de vista da racionalidade tecnológica capitalista mas que juntos iniciam um processo de mudança civilizatória Feenberg 2002 p 148 Feenberg cita como exemplos de medidas que poderiam pôr em movimento um tal processo a extensão da propriedade pública a democratização da administra ção a ampliação do tempo de vida dedicado à aprendizagem para além das necessida des imediatas da economia e a transformação das técnicas e do treinamento profissio nal para incluir um leque cada vez maior de necessidades humanas no código técnico A adoção dessas medidas poderia servir como índice de avanço social para além do atual capitalismo 513 A tecnologia como problema filosófico três enfoques scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 De resto Feenberg admite antecipadamente que não está esboçando um pro cesso de implementação fácil nem sequer provável Se alguém considerasse que esse exercício de imaginação é inútil o autor revidaria Estas reflexões são estritamente condicionais É impossível predizer o futuro mas podese tratar de esboçar uma senda coerente de desenvolvimento que con duziria a um resultado propriamente socialista em circunstâncias favoráveis A discussão está assim endereçada não à probabilidade de um tal resultado mas à sua possibilidade estabelecer essa possibilidade não é apenas um ato de fé política tem também uma função heurística é um modo de quebrar a ilusão de necessidade de que o mundo quotidiano está revestido Feenberg 2002 p 150 4 Reflexões Finais A filosofia é notoriamente difícil de ser definida Estou convencido de que se deve entendêla como uma atitude consistente em pensar de maneira crítica e rigorosa para viver mais responsavelmente Como tal a filosofia é suscitada por tudo aquilo diante o que precisamos saber ao quê nos atermos como dizia Ortega y Gasset 1965 Qual é a contribuição dos três enfoques da tecnologia para saber ao quê nos atermos em relação a ela Bunge representa de maneira talvez insuperável pela clareza e amplitude de tra tamento a confiança na tecnologia como forma de aprimorar a existência humana Embora não acredite na sua neutralidade e precisamente por isso deposita na tecno logia a esperança de superar tanto os modos de vida atrasados ou deficientes como os problemas causados pelos procedimentos e artefatos nocivos Isso depende é claro da política que impulsiona a tecnologia e da ética que deveria inspirála para as quais Bunge como foi mencionado tem propostas cf Bunge 1989 Frente a outros trata mentos da tecnologia o de Bunge destacase pela riqueza do exame sempre rigoroso que abrange desde os detalhes do raciocínio tecnológico até o discernimento dos di versos tipos de tecnologia incluída a crítica do que considera pseudotecnologia cf Bunge 1985a cap 5 e 6 Tratase em seu conjunto de uma filosofia otimista her deira declarada dos ideais do Iluminismo e do liberalismo clássico formulada com uma nitidez que a torna convincente É claro que seus méritos não excluem motivos de dúvida ou preocupação Sua caracterização como tecnológica de atividades tais como a medicina a pedagogia ou a administração pode provocar certo malestar porém é mister lembrar que Bunge está querendo frisar a necessidade de que elas sejam executadas com base no conhecimento 514 Alberto Cupani scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 científico sem eliminar no entanto certa dose de saber vulgar nem negar o papel da capacidade do talento ou da experiência como ele ocasionalmente tem esclarecido Mais problemática ainda pode resultar a proposta de ver na tecnologia a ação racional por excelência se levarmos em consideração as críticas de Hannah Arendt 1983 e de Habermas 1968 à identificação da ação com a fabricação ðñÜôôåéí e ðïéåúí na sua denominação grega identificação em que aqueles autores viam uma ameaça ao reco nhecimento da especificidade da ação ética e política Não obstante a oposição de Bunge à tecnocracia e sua insistência em que os cidadãos não devam consultar cientistas e expertos nas questões políticas porém decidir por si mesmos leva a pensar que não pretende negar aquela especificidade Cabe contudo criticar no otimismo bungeano a sua falta de percepção da capaci dade que tem a tecnologia de desestruturar as culturas em que se introduz Bunge parte da pressuposição típica do Iluminismo de que toda tradição equivale a atraso e de que toda cultura não científica é de algum modo defeituosa A absoluta confiança nos ide ais iluministas impede Bunge ao que parece de apreciar ou de imaginar aspectos po sitivos nas culturas não científicas assim como de perceber limitações do Iluminismo Nesse sentido são úteis trabalhos como os de Ladrière 1979 e Lacey 1999 A interpretação de Albert Borgmann tem os méritos e as dificuldades típicos da fenomenologia A descrição da maneira em que a tecnologia perpassa define e dirige a nossa existência é por demais reveladora o que constitui como foi dito o propósito declarado do autor25 A abordagem dêitica praticada por Borgmann transmite ao leitor a vivência não apenas do que pode ser conceitualizado na tecnologia mas também daquilo que nela resulta inefável e que toda teoria parece dissipar Segundo ele todas as teorias deixam de detectar o fato da nossa cumplicidade com a tecnologia uma implicação que faz com que sejamos no fundo responsáveis pelo seu aparente do mínio sobre nós É importante notar que Borgmann é consciente de que a sua análise vale sobretudo para a maneira como a tecnologia modela os países altamente indus trializados como o seu os Estados Unidos e que não aborda por serem demasiado complexos casos ou aspectos do avanço tecnológico como o poderio bélico a explo ração do espaço ou a fome no Terceiro Mundo cf Borgmann 1984 p 114 De qual quer modo Borgmann está convencido de que a abordagem fenomenológica exibe conforme a sua índole a verdadeira essência da vida tecnológica 25 A noção de paradigma do dispositivo device paradigm que permite ver como uma unidade uma série de fenômenos aparentemente heterogêneos desde um aparelho de televisão até a política é um verdadeiro achado conforme comenta M Stanley Cf Stanley 1988 p 15 515 A tecnologia como problema filosófico três enfoques scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 Ora é difícil evitar a impressão de que a interpretação de Borgmann subestima o peso dos fatores e circunstâncias sociais particularmente quando rejeita a visão mar xista da tecnologia por considerar que ela desculpa as pessoas por entregarse à vida tecnológica Um crítico de resto admirador da sua obra observa que Borgmann pare ce pensar apenas no marxismo vulgar26 Nosso autor defendese alegando que mes mo nas suas versões mais sofisticadas é sempre possível optar por uma leitura mais científica ou mais moral da doutrina de Marx ou seja pela ênfase na força das estruturas sociais ou pelo apelo à possibilidade humana de modificálas Borgmann acredita que até mesmo os marxistas mais sensíveis à problemática da liberdade hu mana ele menciona nomes como os de Marcuse Leiss e Habermas acabam apresen tando um quadro de dominação social em que os sujeitos dominados nem sequer po dem advertir a sua capacidade de produzir mudanças A essa perspectiva Borgmann contrapõe sua tese de que se na superfície todos parecemos presos à tecnologia a um nível profundo nos sabemos livres para adotarmos uma atitude diferente para com ela Isso se manifestaria em sua opinião na ambivalência com que enfrentamos a tecnologia oscilando entre o fascínio e a desconfiança cf Borgmann 1988 p 35 Por conseguinte se o homem não é um joguete da tecnologia nem das estruturas so ciais deve ser possível mobilizálo para que reaja ao que o prejudica E a explicação marxista de que os oprimidos não reagem por causa do peso irresistível do sistema capitalista é para Borgmann insuficiente A verdadeira razão reside para ele na uni versal cumplicidade para com a tecnologia e a oportunidade de uma saída para essa situação está em mobilizar as pessoas A isso apontam o discurso dêitico e a força do exemplo ao cultivar os interesses focais A defesa de Borgmann não é convincente e a sua fraqueza se torna ainda mais nítida quando se faz a leitura da sua obra como em nosso caso desde países em que os benefícios e prejuízos da tecnologia estão mais claramente que no Primeiro Mundo vinculados à desigualdade social e onde a possibilidade de boa parte da população al terar sua relação com a tecnologia de que chega a dispor é nula27 Por outra parte é em nossos países que os interesses focais são ainda mais cultivados do que nos países industrializados28 Em certo modo a exortação de Borgmann é supérflua para nós e 26 S Carpenter 1988 p 9 e ss Para este crítico mais importante que a tecnologia como elemento modelador da vida moderna foi a economia de mercado e a monetarização da sociedade a vida estabelecida numa base de commodities e a dissociação entre a vida cívica e o âmbito dos negócios Compartilho dessa opinião 27 Borgmann reconhece que suas propostas supõem uma vida próspera Cf Borgmann 1988 p 223 28 Penso por exemplo que em um país como o Brasil a comida familiar em vez do apressado fast food individual é ainda o hábito da maior parte da população assim como a tendência e o gosto das festas e da música em grupos 516 Alberto Cupani scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 temo inócua para os países como o dele Somos levados a pensar que há uma boa dose de ingenuidade em sua expectativa de que o cultivo de interesses focais e o entusias mo dos que o façam irá propagarse pelo resto de uma sociedade próspera como a dele provocando inclusive o desejo de que a igualdade social se realize nas outras regiões do mundo Borgmann comete o erro de esperar de um enfoque o fenomenológico desti nado a permitir compreender as vivências que sirva para explicálas e para mudar as estruturas sociais de que derivam Por princípio isso não é possível29 O reconhecimento do caráter sociopolítico da tecnologia é como vimos o as pecto característico da análise de Feenberg que deve compartilhar imagino os receios frente ao otimismo liberal de Bunge embora não se refira a ele30 e critica Borgmann entre outras coisas por afirmar que a tecnologia contemporânea é perfeita a seu modo cf Feenberg 2002 p 9 A contribuição mais importante de sua análise pareceme ser a crítica ao argumento de eficiência como justificativa do caráter e das modalidades da tecnologia existente Perceber que os produtos os mecanismos e as soluções tecnológicas não respondem a uma eficiência a eles inerente mas a uma eficiência constituída parcialmente por interesses sociais é menos fácil do que se pensa numa sociedade em que a mera preferência pela eficiência alcançou o caráter de obviedade É também relevante no meu entender que Feenberg não permaneça numa denúncia genérica das realizações tecnológicas possibilitadas pela economia capitalista mas aponte para a sua possível instrumentalização em direção a um modo de vida diferente Tal é o caso do capítulo em que mostra a possibilidade de que o computador e a internet não sejam necessariamente fatores de descapacitação automatismo e alienação hu manos mas se convertam em meio de iniciativa inteligência e comunicação Não ra ramente as análises inspiradas pelo marxismo alimentam atitudes genericamente negativas com relação à tecnologia originada pela atual estrutura social mundial Já quanto às iniciativas sociais que Feenberg sugere para promover uma transi ção ao socialismo31 o autor é consciente como foi comentado de que se trata de pos sibilidades cuja implementação está longe de ser fácil Feenberg conjectura que a sua viabilidade pode ser alcançada conseguindo a colaboração das elites técnicas perten centes aos estratos médios da sociedade Com efeito boa parte das reformas por ele 29 Talvez a confiança de Borgmann na força das práticas focais e do discurso dêitico como fatores de mobilização repouse nas suas convicções religiosas ele se assume como católico mais do que na força dos seus argumentos 30 Por outro lado há uma coincidência entre Bunge e Feenberg no que diz respeito a que para ambos a tecnologia não é neutra mas dependente de decisões políticas 31 Naturalmente excede os propósitos deste trabalho apreciar os méritos da tese de Feenberg de que a passagem para o socialismo não deve ser entendida necessariamente como uma revolução política mas como um projeto de nova civilização 517 A tecnologia como problema filosófico três enfoques scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 reivindicadas tem a ver com a democratização da administração em todas as ordens da vida e a supressão da diferença social entre trabalho manual e intelectual As refor mas implicam um ataque geral à hegemonia tecnocrática pois todas as instituições estão hoje tecnologicamente mediadas e conduzidas autoritariamente A modificação mesmo que paulatina da situação atual só poderá ocorrer caso as elites profissionais acedam a colaborar o que não pode ser conseguido pela violência ou por decisão ad ministrativa Embora as elites técnicas e culturais não tenham sido consistentemente solidárias das revoluções francesa e russa comenta Fenberg a sua atitude em maio de 1968 na França sugere que podem circunstancialmente apoiar uma transição ao socialismo Por conseguinte a idéia de uma aliança para reorganizar o trabalho cole tivo não é meramente uma vã especulação mas ressoa como uma importante experiên cia histórica Feenberg 2002 p 160 De qualquer modo a análise da tecnologia re alizada por Feenberg tem sem dúvida o caráter que o autor lhe atribui ou seja possui a função heurística de quebrar a ilusão de necessidade de que o mundo quotidiano está recoberto A última afirmação talvez caiba aos três autores apresentados Pode parecer pou co face aos desafios que a tecnologia nos coloca porém é indispensável para buscar mos um mundo melhor Alberto Cupani Professor Titular do Departamento de Filosofia do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina Pesquisador do CNPq cupanicfhufscbr abstract The philosophical study of technology is rather recent and diversified according to different theoretical orientations and their corresponding social stances This heterogeneity notwithstanding or perhaps due to it philosophy of technology helps us to acknowledge technology as a dimension of human life not merely as a historical event This is what I want to show here by means of presenting three modes of philosophical investigation of technology Mario Bunges Albert Borgmanns and Andrew Feenbergs They illustrate respectively an analytical point of view a phenomenological approach and an examina tion inspired by the School of Frankfurt The main purpose of this article is to divulge those investiga tions which are not very well known among us Nevertheless the article also contains a brief critical judgment of them Keywords Philosophy of technology Mario Bunge Albert Borgmann Andrew Feenberg 518 Alberto Cupani scientiæ zudia São Paulo v 2 n 4 p 493518 2004 referências bibliográficas Arendt H A condição humana Rio de Janeiro Forense 1983 1958 Borgmann A Technology and the character of contemporary life A philosophical inquiry ChicagoLondres The University of Chicago Press 1984 Reply In Durbin P T Ed Technology and contemporary life Dordrecht Reidel 1988 p 2944 Bunge M La investigación científica Barcelona Ariel 1969 Treatise on basic philosophy Dordrecht Reidel 19841989 8 v Epistemologia São Paulo T A QueirosEdusp 1980 Seudociencia e ideología Madri Alianza 1985a Treatise on basic philosophy Dordrecht Reidel 1985b Tomo 7 Philosophy of science and technology Dordrecht Reidel 1989 Tomo 8 The good and the right Carpenter S R A discussion In Durbin P T Ed Technology and contemporary life Dordrecht Reidel 1988 p 112 Durbin P T Ed Technology and contemporary life Dordrecht Reidel 1988 Feenberg A Transforming technology A critical theory revisited Oxford Oxford University Press 2002 Habermas J Theorie und Praxis Frankfurt Suhrkamp 1968 Heidegger M Sein und Zeit Tübingen Max Niemeyer 1967 A questão da técnica Cadernos de tradução n 2 Departamento de FilosofiaUSP 1997 1954 Lacey H Is science value free Londres Routledge 1999 Ladrière J Os desafios da racionalidade Petrópolis Vozes 1979 Mitcham C Thinking through technology The path between engineering and philosophy ChicagoLondres The University of Chicago Press 1994 Ortega y Gasset J Meditación de la técnica Madri EspasaCalpe 1965 Stanley M A critical appreciation In Durbin P T Ed Technology and contemporary life Dordrecht Reidel 1988 p 1328 A perspectiva analítica de Mario Bunge Responsabilidade Politicas sociais concretização da ação plenamente racional Tencnologia para todos Tecnologi a Positiva Desiguald ade Social sistemas funcionais Negativo Artefatos Planificação Efetiva e eficientemente Campo de conhecimento sequências de tarefas A perspectiva analítica de Mario Bunge Tecnologia Fenômeno Social Valores e intresses Desenvolviment o Positivo Ambivalente Negativo Democratizar Racionalização democratica sustentavel Beneficios Sociais Bem estar social Processo Mudança Social Politicas éticas Metafisico Impacto Tecnologico

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