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Docmentário Terra pra rose httpsyoutube1ZlqjK4K10 O snho de Rose httpsyoutubexP2Jm23RJ9Y 97 MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível JOSÉ DE SOUZA MARTINS O UNITERMOS reforma agrária questão agrária movimentos sociais governabilidade Fernando Henrique Cardoso RESUMO Os desencontros entre o governo de um lado e o MST a Igreja e as oposições de outro quanto à política de reforma agrária só podem ser compre endidos se tivermos em conta o que vem a ser a questão agrária no Brasil Num país em que o grande capital se tornou proprietário de terras a concepção clássi ca da questão agrária e das reformas que ela pede fica substancialmente altera da São essas alterações que propõem as condições e os limites da reforma agrária no país São elas também que apontam o desenrolar possível da história brasileira a partir dessa referência estrutural A reforma agrária se tornou uma reforma cíclica em virtude da de certo modo contínua entrada e reentrada em cena de clientes potenciais dessa medida O fato de que o MST e os semterra tenham assumido a iniciativa das ocupações atuando o governo como suplente para fazer a reforma não indica a debilidade do Estado democrático para realizá la Apenas indica que a sociedade civil através de organizações e movimentos populares passou a ter um papel na nova estrutura do Estado brasileiro A conjuntura histórica e o tempo da questão agrária tema da reforma agrária é seguramente um dos mais equivocados nos embates políticos e partidários deste momento no Brasil Equivocado pelo modo como é comumente proposto em diferentes meios equi vocado pela enorme carga de subinformação que o acompanha pelas descabidas paixões que desperta pela real ignorância do tema que se manifesta em muitas das opiniões a respeito todos parecem ter um palpite a dar DOSSIÊ FHC 1o GOVERNO Professor do Departa mento de Sociologia da FFLCH USP MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 98 sobre o assunto da apresentadora de televisão ao dirigente estudantil e acham que sua ocupação já os qualifica para opinar e opinar de maneira contundente e defini tiva Todos parecem ter respostas o que inclui não poucos especialistas São ra ros porém os que tem o fundamental na produção do conhecimento e das propos tas necessárias à solução dos problemas sociais as perguntas base da indagação séria e conseqüente e ponto de partida da reflexão objetiva Mesmo nos meios acadêmicos intérpretes tardios desinformados e estranhos ao tema e à área com a afoita sede de quem chegou fora de hora lançamse no que chamam de sociologia militante na esperança de participar de um confronto que poderá fazer história Misturam ciência e ideologia marxismo panfletário senso comum e descabidas raivas pessoais Prestam um grave desserviço aos próprios trabalhadores rurais que não raro arriscando a vida optam pelo enfrentamento e pelas ocupações como última alternativa para sair da pobreza e viver com dignidade Minha análise neste texto vai deixar de lado essas intervenções e interpretações oportunistas e deformantes Um balanço do estado atual do problema esbarra desde o início nesse muro pichado de intervenções gratuitas e passionais derivadas de motivações inteiramente estranhas ao problema em si e à realidade de seus protagonistas mais autênticos Em meio a um grande número de estudos qualificados alguns de gran de qualidade baseados em pesquisas sérias e objetivas há uma maçaroca de tex tos panfletários que nada acrescentam no conhecimento e na solução do problema Essa espécie de baderna interpretativa tem prejudicado seriamente a ação dos protagonistas do drama agrário no país tanto aqueles que na socieda de civil com razão histórica pedem profunda e ampla intervenção na questão agrária quanto aqueles que no governo agem no sentido de concretizar tal intervenção O panfletarismo se junta ao clima de comício que reduz o problema a simplificações que o desfiguram que lhe retiram a complexidade e a gravida de e que portanto vão progressivamente tornandoo um tema banal Uma reflexão sociológica sobre o estado atual do problema pede inicialmente portanto uma demarcação do território da reflexão a ser feita O tema proposto do artigo é o da questão agrária o modo como ela se propõe na conjuntura atual que seria a conjuntura do governo de Fernando Henrique Cardoso Seria um erro óbvio imaginar que a questão agrária se confunde com as supostamente diferentes propostas de reforma agrária que estão presentes no cenário do embate partidário atual e que tudo se resume a optar por uma delas Como seria um erro imaginar que a questão agrária foi criada pelo atual presidente da República ou pelo atual ministro de Política Fundiária e que se resume ao discutível da ação administrativa no âmbito do problema fundiário Como seria um erro ainda supor que a questão agrária não tem uma história gênese e desdobramentos históricos sociais e políticos que marcam e demar cam seu lugar na história do presente O ponto essencial e problemático raramente considerado mesmo por quem é sério e competente é o de que a questão agrária tem a sua própria temporalidade que não é o tempo de um governo Ela não é uma questão monolítica e invariante em diferentes sociedades e na nossa também surge em 99 MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 circunstâncias históricas determinadas e passa a integrar o elenco de contradi ções dilemas e tensões que mediatizam a dinâmica social e nela a dinâmica política É por isso mesmo alcançada continuamente pelas condições cambian tes do fazer história O próprio ato de intervir na questão de um modo ou de outro numa perspectiva ideológica ou noutra já altera a questão agrária Não só a atenua ou a agrava como também mudaa qualitativamente define as pos sibilidades de nela se continuar intervindo as condições em que tal intervenção pode ser feita A questão é portanto essencialmente uma questão histórica Embora ela possa se tornar uma questão partidária e política há cir cunstâncias em que nem mesmo se expressa partidariamente perdida nas miu dezas de pequenos confrontos muito mediatizados por outras questões ou então no caráter difuso que grandes confrontos históricos podem às vezes ter No Bra sil não raro durante quase um século a questão agrária se expressou por meio de tensões religiosas de confrontos sangrentos entre o catolicismo popular e o catolicismo institucional ancorado no aparelho de estado mesmo com a separa ção entre a Igreja e o Estado da era republicana Portanto uma questão agrária que se torna questão religiosa que se torna questão política que se torna ques tão policial que se torna questão militar como aconteceu em Canudos no Con testado e em vários outros episódios das lutas sociais no campo incluindo epi sódios relativamente recentes do tempo da ditadura Um balanço apropriado do conflito fundiário nas últimas décadas nos revelaria que ele é apenas um subtema de conflito maior e mal definido entre o Estado oficialmente laico e a Igreja É nessa perspectiva que o pesquisador deve preferencialmente traba lhar para ter a segurança de lidar com a dimensão apropriada de tempo dos processos sociais que examina Por isso o tempo de referência destas conside rações é o tempo da conjuntura histórica diferente da conjuntura política e eleitoral na qual se movem os partidos e os chamados militantes mesmo mui tas vezes os militantes de causas humanitárias Quando se diz em relação a um tema como este que um partido não tem proposta alternativa o que se está dizendo na verdade é que esse partido não consegue ter uma consciência de sua ação na perspectiva histórica a perspectiva do tempo longo das grandes trans formações sociais e políticas Ter proposta alternativa não é o mesmo que ter um propósito proclamado num panfleto ou num programa partidário O tempo da conjuntura histórica implica menos julgar ações e opiniões de pessoas e ser contrário ao que são ou parecem ser e fazem Implica isso sim considerar as condições e conseqüências estruturais e históricas do que pensam e dizem o alcance das decisões que tomam os limites dessas ações e as possibilidades de seu alcance definidas pela circunstância histórica É esse o ponto de vista que me permite compreender que uma política de reforma agrária depende de se conhecer a questão agrária para a qual ela é uma resposta A questão agrária é em termos clássicos o bloqueio que a pro priedade da terra representa ao desenvolvimento do capital à reprodução ampli ada do capital Esse bloqueio pode se manifestar de vários modos Ele pode se manifestar como redução da taxa média de lucro motivada pela importância quantitativa que a renda fundiária possa ter na distribuição da maisvalia e no MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 100 parasitismo de uma classe de rentistas Não é manifestamente o caso brasileiro ou não o é especialmente embora também o seja de um modo indireto Aqui o grande capital se tornou proprietário de terra especialmente com os incentivos fiscais durante a ditadura militar Antes disso em muitas regiões do Brasil grandes proprietários de terra haviam se tornado empresários capitalistas tanto na região canavieira do Nordeste quanto na região cafeeira do Sudeste Não se pode explicar a industrialização brasileira a partir do século passado se não se leva em conta essa competência de grandes fazendeiros para acompanhar as possibilidades históricas de seu tempo Por outro lado já na ditadura militar com a política de incentivos fiscais o capital personificado pelo capitalista por aquele que pode tomar consciência das contradições que perturbam a reprodução ampliada do capital foi compensado das irracionalidades da propriedade da terra como titular de renda fundiária Essas situações que são as do nosso país são aquelas em que o capital personificado não se libertou da propriedade da terra como aconteceu em outros na extensão necessária a que a contradição entre capital e terra se manifestasse à consciência das diferentes classes sociais como oposição de interesses e irracionalidade que bloqueia o desenvolvimento econômico e social e político Um segundo modo como o que ocorreu nos Estados Unidos e ou tros países é a necessidade de um mercado interno para o capital industrial Esse mercado pode crescer com o crescimento da população economicamente ativa que receba salários e possa comprar Se as condições de vida dos traba lhadores em geral e dos pequenos agricultores são ruins é necessário que elas melhorem para que eles ampliem sua entrada no mercado com seu trabalho ou seus produtos Se eles entram no mercado de produtos ou no mercado de for çadetrabalho de modo restrito reduzem as possibilidades da reprodução ampliada do capital em seu conjunto Por isso em princípio a modernização das relações de trabalho e a melhora das condições de vida dos trabalhadores interessa em primeiro lugar ao próprio capitalista Este é um ponto que pede discussão estamos falando da pobreza como empecilho ao desenvolvimento do capital e por extensão ao desenvolvimento da sociedade ainda que nos limites do capitalismo Podem ocorrer desvios significativos nessa possibili dade histórica Numa economia que está se tornando cada vez mais dependen te de exportação a redução dos preços dos produtos agrícolas é essencial na concorrência internacional Na exportação de produtos industriais o mesmo ocorre na redução dos custos de reprodução da força de trabalho representa dos não só pela alimentação que em grande parte vem da agricultura Portanto até mesmo a grave anomalia de uma massa de miseráveis vivendo em condições subhumanas não compromete o desenvolvimento capi talista A exclusão se tornou parte integrante da reprodução do capital mas se tornou ao mesmo tempo uma anormalidade social cf Martins 1998 Mesmo assim sobretudo entre técnicos há quem fale numa espécie de auxílio estatal à pobreza que dispensaria a reforma agrária custosa e asseguraria a sobrevivên cia dos pobres em condições mínimas sem necessidade de pagar o custo de grandes transformações econômicas e sociais como a reforma agrária1 1 É o que nos diz o in fluente Francisco Gra ziano que foi presi dente do INCRA Ins tituto Nacional de Co lonização e Reforma Agrária nada com prova que dar um pe daço de terra para es sas famílias margina lizadas seja a única nem a melhor solução do ponto de vista do interesse público Tal vez um bom emprego seja preferível ao as sentamento Ou então tratálas com mecanis mos de política social assistindoas devida mente garantindolhes alimentação e saúde Graziano 1996 p 19 Graziano Neto 1998 p 168 Graziano se esquece como é co mum entre os que se preocupam com a questão social do cam po de um ponto de vis ta meramente econô mico que a luta pela terra da qual deriva a luta pela reforma agrá ria é também uma luta pela inclusão pela in serção social ativa pro dutiva participante e criativa na sociedade é luta por dignidade e respeito e não por aqui lo que na consciência popular é tido como esmola 101 MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 Nesse âmbito mais amplo os sujeitos das contendas relativas à ques tão agrária não são obviamente pessoas determinadas com nome e endereço mas sim personificações dos dilemas e possibilidades de cada momento e da situação social da pessoa A conflitividade polarizada no tema da reforma agrária propõe que se evite esse território gelatinoso do conflito de opiniões e dos antagonismos partidários e freqüentemente eleitorais para considerar o tema tendo como referência não o governo e menos ainda o governante ou o ministro mas o Estado A questão agrária está no centro do processo constitutivo do Estado republicano e oligárquico no Brasil assim como a ques tão da escravidão estava nas próprias raízes do Estado monárquico no Brasil imperial Tanto que o término da escravidão negra em grande parte decretou o término da monarquia O tempo da questão agrária é o tempo longo dos blo queios dificuldades e possibilidades a que o Estado faça uma revisão agrária de alcance histórico e estrutural mais contida ou mais ousada Convém não esquecer de que sendo a questão agrária mais do que a questão dos antagonismos de classes sociais é também uma questão estrutu ral maior do que a das questões econômicas a questão da pobreza a questão das injustiças sociais Uma reforma desse tipo interessa não apenas aos po bres como freqüentemente se supõe A principal frente de luta e as principais lideranças da luta pela reforma agrária vêm da classe média ainda que de uma classe média recente e não raro de intelectuais que não têm nenhum vínculo com a terra ou a agricultura razão aliás das muitas distorções que tem alcan çado o debate político sobre o tema Estamos em face de um processo histórico em que claramente inte resses contraditórios se combinam e forças contrárias se empenham numa certa mesma direção básica Não só grupos populares estão querendo mais do que uma reforma agrária Querem uma revisão do direito de propriedade ao contes tarem na prática a sua legitimidade Também o Estado e mesmo setores das elites como os intelectuais a classe média setores das forças armadas as igre jas estão empenhados nessa revisão ainda que de diferentes modos mesmo que se desentendam em relação àquilo em que de fato pensam da mesma maneira A questão agrária hoje é um conjunto de pontas desatadas desse longo e inacabado processo histórico É nessa perspectiva que pretendo situar a política de reforma agrária do governo atual em função justamente das mudanças acentuadas que atingem sua definição na quadra histórica presente É nessa perspectiva tam bém que pretendo situar as posições e antagonismos dos contestadores da atual política de reforma agrária Num caso e noutro o objetivo é confrontar posi ções orientações decisões e ações com o que sociologicamente é o conjunto de possibilidades históricas para concretizar uma reforma agrária no Brasil Não só estão ocorrendo substanciais e significativas mudanças na ori entação do Estado brasileiro quanto a isso como também a sociedade e nela os grupos mais ativamente interessados numa reforma agrária está passando por um período muito rico e muito criativo no que se refere a inovações sociais O fato de que as inovações estejam sendo praticadas por grupos e sujeitos que aparentemen te se combatem não exclui evidências muito claras de encontro e cooperação cri MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 102 ativa entre Estado e sociedade para realizar o que pode ser uma importante expe riência de reinvenção social na história contemporânea do Brasil As ciladas da História na fragilização da questão agrária É evidente que há no Brasil uma questão agrária Mas uma questão agrária que parece distanciada das condições históricas de sua solução definitiva porque esta sociedade perdeu as poucas oportunidades históricas que teve para resolvêla Temos uma questão agrária administrada sob controle em grande par te porque mesmo na máxima exacerbação da luta dos que reivindicam a reforma agrária ela não se revela comprometedora para o funcionamento dos diferentes níveis do sistema econômico e do sistema político Ela tende a aparecer residual mente como um problema social não referido a uma questão estrutural Para compreender a real natureza dos impasses atuais é preciso re montar à gênese da luta pela reforma agrária e às peculiaridades de seus pro tagonistas Com a questão agrária ocorreu algo parecido ao que ocorrera com o problema da escravidão O fim da legalidade da escravidão no Brasil não foi fundamentalmente resultado de uma luta dos escravos e sim de uma luta das classes dominantes sobretudo dos chamados liberais exaltados para que os grandes proprietários de terra fossem eles sim libertados do ônus econômico e das irracionalidades econômicas do cativeiro Houve sim lutas pessoais e grupais de escravos pela própria liberdade Mas essas lutas nunca confluíram para um projeto coletivo e nacional de libertação dos negros escravizados É significativo que a promulgação da Lei Áurea tenha ocorrido durante o gover no de um gabinete Conservador constituído por bacharéis e grandes proprie tários de terra O modo como se deu o fim da escravidão foi aliás o responsá vel pela institucionalização de um direito fundiário que impossibilita desde então uma reformulação radical da nossa estrutura agrária A reivindicação da reforma agrária do mesmo modo nasceu nos anos cinqüenta como reivindicação dos setores esclarecidos da classe média urbana de setores católicos conservadores e familistas marcados por moderado e cau teloso empenho de alguns setores católicos de esquerda e de uma fração das esquerdas laicas Portanto mais por um impulso ideológico e por motivação humanitária voltada para a solução das injustiças sociais do que propriamente por ser expressão de uma inadiável necessidade de mudança Geralmente as transições sociais lentas como as nossas tendem a chegar fora de hora à cons ciência dos setores médios desenraizados que se sentem impelidos não raro tardiamente a radicalizar as mudanças para acelerálas Em parte a luta pelas reformas de base entre as quais a agrária teve essas características Minha im pressão aliás é a de que dois grandes problemas nacionais o da violência con tra os posseiros da Amazônia e o do trabalho escravo na mesma região cujo momento agudo ocorreu nos anos setenta e nos anos oitenta só agora chega com um ímpeto defasado à consciência de alguns setores da classe média urba na que deles não tomaram ampla consciência no devido tempo Justamente essa origem fora de lugar na classe média revestiu a 103 MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 luta pela reforma agrária entre nós de uma intensa ambigüidade da qual não se libertou até hoje Basta ter em conta que sob o mesmo rótulo de reforma agrária havia desencontrados projetos de intervenção no direito de proprieda de sempre em nome de terceiros os trabalhadores rurais Grupos mais do que antagônicos inimigos preconizavam a reforma agrária Uns em nome do conservadorismo Outros em nome da revolução Sem contar que as esquer das estavam a respeito radicalmente divididas De um lado havia uma pro posta de reforma agrária claramente conservadora sobretudo a mal definida reforma católica De outro havia uma proposta de reforma agrária radical a das Ligas Camponesas também ela não muito clara A Igreja estava preocupada com a questão social do campo mais do que com a questão agrária em posição oposta à do Partido Comunista e por oposição a ele Na linha do conhecido documento pioneiro de Dom Inocêncio bispo de Campanha MG de 1950 a Igreja reconhecia o risco político das migrações do êxodo rural e do desenraizamento que supostamente lançariam os pobres do campo nos braços dos comunistas nas cidades de destino como Rio e São Paulo A Igreja passava a pensar alternativas no sentido da preserva ção da unidade familiar de produção do trabalho familiar e da família trabalho familiar que incluía o trabalho não autônomo dos colonos das fazendas de café no Sudeste e dos moradores das fazendas de cana de açúcar no Nordeste cuja continuidade era comprometida pelas migrações para o meio urbano A reforma agrária ainda sem qualquer definição passava a ser um objetivo para ela porém contido e limitado pelo temor de questionar o direito de propriedade e os direitos da classe de proprietários de terra Era uma motivação conservadora e de direita menos construída em cima de uma práxis social que ainda não tinha lugar uma espécie de antecipação preventiva e muito mais deri vada de um claro antagonismo ideológico em relação às esquerdas Justamente por isso Dom Inocêncio reuniu fazendeiros para produzir sua carta pastoral a favor de uma reforma agrária com base numa posição claramente anticomunista Uma exceção anômala nas esquerdas que poderia ter representado a alternativa de esquerda para a questão fundiária foi a postura das Ligas Camponesas O socialista Francisco Julião também em oposição ao Partido Comunista e por ele hostilizado mas igualmente hostilizado pelos católicos procurado pelos trabalhadores de um engenho propôs que o problema se re solvesse pela Lei do Inquilinato que já existia na qual se enquadravam os direitos de parceiros arrendatários e moradores Era apenas o preâmbulo da reforma agrária radical por ele preconizada Mesmo assim um radicalismo aquém do que entendiam alguns ser o necessário Do que decorreu o extremis mo de Clodomir Moraes e seu grupo seu afastamento das Ligas e a fracassa da tentativa da guerrilha em Dianópolis GO Na base portanto uma pro posta conservadora campesinista e a inquietação camponesa como base de um radicalismo político na superestrutura Algo muito parecido com o que ocorre atualmente E na mesma linha mais adiante a ação do Partido Comu nista do Brasil secessão filochinesa do Partido Comunista Brasileiro que preconizava uma via camponesa para o socialismo MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 104 Em geral os autores de hoje se esquecem de que antes do golpe os que se inquietavam com os problemas do campo não estavam articulados por uma interpretação unânime de causas e por unânime proposição de projetos sociais Os que se identificavam com as idéias do Partido Comunista Brasilei ro entendiam que tinha precedência em relação à reforma agrária e a ela se sobrepunha a regulamentação das relações de trabalho no campo A reforma poderia fortalecer um campesinato cuja condição de classe o levaria para po sições conservadoras e de direita Para esse grupo estávamos no limiar de uma etapa de desenvolvimento capitalista que pedia modernização das rela ções de produção viabilização do trabalho assalariado e transformação dos trabalhadores rurais numa classe operária do campo Essas concepções per duraram fortemente entre militantes e intelectuais de esquerda e ainda perdu ram e foi um dos fatores da contestação surda mais tarde do trabalho da Pastoral da Terra e até mesmo um dos fatores do aparelhismo que o atingiu Hoje estamos em face de uma espécie de esquizofrenia política derivada de uma prática apoiada na realidade do trabalho familiar e de uma ideologia refe rida a uma classe operária teórica que raramente se confirma na realidade Dessa visão do problema rural resultou antes do golpe de 1964 uma aliança parlamentar entre a esquerda os trabalhistas e o que se poderia definir como liberais e nacionalistas para viabilizar a lei de regulamentação das relações de trabalho Que se consumou com o que na prática foi a exten são das leis trabalhistas aos trabalhadores rurais supondose que isso trans formaria as atrasadas relações do colonato no café da moradia na canade açúcar do arrendamento em espécie e em trabalho e da parceria em relações contratuais e assalariadas Era a reivindicação das esquerdas que raciocina vam a partir de uma concepção de história por etapas Aí se proclamava a suposta superioridade histórica do trabalho assalariado sobre o trabalho cam ponês e familiar Foi assim aprovado o Estatuto do Trabalhador Rural em 1962 durante o governo de João Goulart que viabilizava a interpretação le gal dos conflitos não como conflitos fundiários embora muitas vezes o fos sem mas como conflitos trabalhistas embora nem sempre o fossem Essa vitória das esquerdas cindiu a luta no campo esvaziando sig nificativamente o empenho dos que lutavam pela terra ou cuja luta tinha mais sentido como luta pela reforma agrária do que por direitos trabalhistas cf Gnaccarini 1980 p 177 Furtado 1964 p 150151 De certo modo am plos setores da esquerda institucional esvaziaram ou ao menos enfraqueceram definitivamente a luta pela reforma agrária Quando nos anos recentes em face das óbvias evidências de radicalismo agrário esses grupos todos com variados graus de relutância e incerteza aceitaram finalmente a evidência da força política do trabalho familiar nas singularidades próprias da sociedade brasileira acabaram se defrontando com um impasse criado por eles próprios A ação das esquerdas já antes do golpe de 1964 dividiu e enfraqueceu a massa dos trabalhadores rurais segmentandoa em dois grupos com interes ses desencontrados os que lutam pelo salário e pelos direitos trabalhistas de um lado e os que lutam pela terra de outro Mesmo aglutinados numa única 105 MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 corporação sindical a Contag Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura foram raros os momentos de coincidência de propósitos e de táticas dos dois grupos Com freqüência aliás tem se falado na conveniência de separar os dois grupos em organizações distintas Ficava pois em grande parte inviável o projeto muito pouco ela borado aliás de uma reforma agrária que transformasse as relações atrasadas do campo em autonomia camponesa e numa economia familiar moderna A Igreja cometeu sérios erros e relutou comprometedoramente em assumir em tempo a reforma agrária como meio apropriado de política social que assegu rasse às suas bases camponesas o direito sobre a terra pois essa reforma a colocaria numa relação conflitiva com os grandes proprietários de terra dos quais era uma aliada histórica Antes que a Igreja firmasse um ponto de vista oficial e uma posição doutrinária a favor da reforma agrária o que só se daria em 1980 com o documento Igreja e Problemas da Terra depois de um lento amadurecimento de sua experiência de pastoral da terra a ditadura teve dezesseis anos para desmantelar os quadros das esquerdas que atuavam no campo E sobretudo para concretizar a própria intervenção do Estado no sentido de promover e alicerçar uma aliança entre terra e capital que reduzia o alcance de qualquer reforma agrária porque retirava do capital a necessidade de incluir em seus propósitos políticos o interesse por ela Aliança cimentada também no plano político mediante a repressão policial e militar que promoveria uma limitada reforma agrária dentro da ordem instituída pela ditadura Aliança garantida pela política de incentivos fiscais e de subsídios para a conversão das empre sas urbanas indústrias bancos empresas comerciais em proprietárias de terra Essencialmente o golpe de Estado assegurara que a propriedade da terra isto é a renda fundiária continuaria sendo um dos fundamentos da acumulação e do modelo capitalista de desenvolvimento no Brasil Portanto um capitalis mo discrepante em relação ao modelo dominante nos países hegemônicos Desde 1964 justamente em face dos impasses políticos resultantes da questão agrária que levaram ao golpe o Estado brasileiro criou um apara to institucional para administrar a questão fundiária de modo a que ela não comprometesse e não comprometa os planos nacionais de desenvolvimento que a têm como um dado secundário Não houve reforma agrária em lugar algum em que ela não se apre sentasse no centro dos impasses históricos E estar no centro dos impasses históricos depende da própria história e das contradições sociais e não do voluntarismo político de grupos partidos ou pessoas Mesmo em 1964 o problema fundiário não respondia sozinho nem principalmente pela crise po lítica No Brasil de hoje a questão agrária é certamente uma das fontes mediatas dos problemas sociais mas não a fonte imediata Este não tem se mostrado como o momento histórico de uma reforma agrária que ponha radi calmente em questão as origens das nossas injustiças sociais e que propicie uma revisão radical dos nossos rumos históricos As circunstâncias históricas e as composições políticas mesmo e sobretudo das oposições não apontam MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 106 nessa direção Não o é justamente porque os protagonistas de uma eventual revisão de curso histórico se dividiram num passado não muito distante como mencionei As facções atualmente em contenda ideológica e partidária não se deram conta disso e continuam atuando especialmente as oposições como se lá atrás os termos da emergência política da questão agrária não tivessem sido definidos demarcando assim o seu lugar histórico limitado nos tempos que se seguiram e em nossos dias A inquietação no campo produziu portanto em âmbitos antagônicos já a partir dos anos cinqüenta e início dos anos sessenta essas duas intervenções no processo político que redefiniram profundamente os rumos históricos da socie dade brasileira e a possibilidade de mudanças a partir do campo e da questão agrária o enquadramento legal diferençado da questão da terra e da questão do trabalho que de fato desde a Lei de Terras eram uma única e inseparável ques tão por iniciativa das esquerdas e a conversão maciça do grande capital em proprietário de terra por iniciativa da direita Essas duas grandes transformações históricas das últimas décadas bloquearam talvez para sempre a possibilidade de uma reforma agrária referida à dimensão clássica da questão agrária a do impasse histórico que inviabiliza o desenvolvimento do capitalismo O impasse histórico a contradição entre terra e capital que susten tava a luta remanescente pela reforma agrária se resolveria pelo caminho ines perado e pelo antimodelo de um capitalismo rentista Para administrar e con trolar os problemas sociais e políticos que pudessem advir dessa opção o regime militar editou o Estatuto da Terra e promoveu a reforma constitucional que tornaria aquela reforma agrária possível O próprio golpe de Estado sela ra de vez não só a modalidade de reforma agrária politicamente tolerável mas também seu lugar limitado nas transformações históricas futuras o que a Constituição de 1988 editada com livre e clara participação das esquerdas e contra sua vontade limitou mais ainda2 Não é portanto por acaso que o confronto atual entre as oposições e o governo esteja profundamente marcado por questões inessenciais Uma delas é o empenho do MST da CPT e de vários intelectuais de esquerda na reinvenção da reforma agrária Uma boa parte do discurso dessas agências de mediação é hoje dedicada ao conceito de reforma agrária e praticamente nada é dedicado à questão agrária embora muito se fale na reforma agrária pro priamente dita3 O que é a questão agrária no Brasil de hoje afinal de contas que justificaria a necessidade de uma reforma agrária e qual reforma agrária O empenho é muito mais acentuado na resposta a um problema que se supõe definido do que na pergunta que poderia definir o problema a ser resolvido Qualquer ato do governo em relação à reforma agrária é questionado em nome do fato de que não se trata de reforma agrária Autores e militantes dizem com freqüência que a regularização fundiária da situação dos posseiros na extensa e complicada região amazônica e no centrooeste não é reforma agrá ria e não deveria entrar nas estatísticas oficiais da reforma Estranhíssima inter pretação Todo o atual aparato institucional das oposições para lutar pela refor ma agrária nasceu floresceu e se consolidou com as sangrentas lutas dos possei 2 Praticamente a única derrota social que ocor reu na Constituinte foi na questão agrária pois em todos os outros itens houve avanços Stedile Fernandes 1999 p 67 3 A necessidade de ao falar de reforma agrá ria ter que conceituá la ao mesmo tempo como ocorre com mi litantes e especialistas já é em si mesma uma indicação do terreno impreciso em que me dram antagonismos e contestações que não se fundam na própria questão agrária e que se deslocam para o terreno mais comple xo do questionamento de legitimidades cf Stedile Fernandes 1999 p 157 e ss Fernandes 1998 p 2 Abelém Hébette 1998 p 246 Carnei ro et alii 1998 p 267 Convém ter em conta que para ques tionar legitimidades e afirmar a própria su posta legitimidade é necessário ganhar elei ções majoritariamente e com margem sufici ente para propor alte rações radicais na or dem legal e política 107 MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 ros sobretudo da Amazônia Legal para terem seu direito à terra de trabalho reconhecido e legalizado As grandes lutas pela terra nos anos sessenta e setenta e ainda nos anos seguintes foram fundamentalmente lutas pela regularização fundiária Então as oposições à ditadura a Igreja e não só a CPT e a Contag definiam essas regularizações como reforma agrária e clamavam por ela com base no Estatuto da Terra outorgado pela ditadura militar De fato a regularização fundiária no Brasil é na maioria dos casos legítimo ato de reforma agrária Apenas quem não conhece a realidade social do campo pode supor que a regularização é mero ato administrativo sem mai or alcance A sofrida e sangrenta resistência dos posseiros à sua expulsão violenta da terra para beneficiar grileiros e latifundiários e viabilizar a política de consolidação da aliança da terra com o capital fator de esvaziamento da reforma impôs ao Estado brasileiro nos anos mais difíceis e repressivos da ditadura a necessidade de atenuar e redefinir parcialmente o seu projeto fundiário Foi o que salvou o país de se transformar num território de enclaves do poder absoluto do capital latifundista Esquecer disso ou não saber disso desqualifica qualquer análise pretensamente crítica da reforma agrária em andamento A regularização da situação fundiária dos posseiros de extensas regiões do país foi e é um legítimo ato de reforma agrária porque impõe limi tes ao processo expropriatório que daria ao país uma estrutura fundiária mui to mais concentrada e latifundista do que a atual Chamo a atenção para a proliferação de municípios e cidades onde essa resistência ocorreu conse qüência de ações que impuseram limites ao enclavismo do latifúndio Um segundo questionamento da ação governamental é o da impugnação da política de assentamentos sob o pretexto de que assentamento não é reforma agrária Ora assentamento é a forma da redistribuição da terra que é em que consiste no essencial qualquer reforma agrária Reforma agrá ria é todo ato tendente a desconcentrar a propriedade da terra quando esta representa ou cria um impasse histórico ao desenvolvimento social baseado nos interesses pactados da sociedade Pacto que só se torna eficaz através da mediação dos partidos políticos e no âmbito do possível Isto é no âmbito das concessões que as forças em confronto possam fazer para viabilizar uma trans formação institucional e social necessária e inadiável em favor do bem co mum E não em favor dos interesses particularistas de uma classe ou fração de classe ainda que beneficiandoa de algum modo seja ela de pobres ou de ricos Quando os partidos não conseguem chegar a um acordo em nome da sociedade para viabilizar uma reforma desse alcance abrese o caminho para a revolução Mas a revolução não depende de irritações pessoais Também ela depende de um consenso básico a respeito do que é necessário mas se tornou inviável pela via da negociação Quem se recusa à negociação desde o início da proposição de um problema político não só não viabiliza seu proje to por caminhos institucionais como não o viabiliza por caminhos revolucio nários É o que se chama de voluntarismo Um terceiro questionamento da ação do governo diz respeito aos números da reforma agrária O bateboca em torno desse tema é uma clara MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 108 expressão do desenraziamento do tema da reforma agrária Considerar assen tamentos todos os casos em que a família se credenciou para receber um título de propriedade de terra inflaciona os números do êxito governamental sem evidenciar como é necessário a diversidade de situações problemáticas que pedem ao governo uma ação de política fundiária A explicitação dessa diver sidade aliás já obrigaria o MST e a Igreja a melhorarem os seus números e revelaria âmbitos de atuação diversificada das agências de mediação em que a qualidade da sua ação é claramente desigual e até insatisfatória Os números de outras agências de mediação também têm fragilida des que em nada ajudam na luta em favor dos injustiçados do campo Utili zam um modo de calcular a clientela potencial da reforma agrária que repete os erros de procedimento similar adotado pela Contag durante toda a ditadu ra O modo como a Contag utilizava os dados do censo introduzia um viés óbvio no número de vítimas do regime fundiário somava o número de assala riados ao de posseiros arrendatários e parceiros e ao de proprietários minifundistas No cálculo dos assalariados usava os dados do censo agropecuário sem levar em conta a rotatividade da mãodeobra agrícola e o fato de que cada trabalhador é provavelmente nesse censo contado várias vezes Chegava a um número fantástico de mais de uma dezena de milhões de pessoas que supostamente precisavam e pediam uma reforma agrária O fato de que os números de assentamentos e regularizações no governo de Fernando Henrique Cardoso ultrapassem os trezentos mil não mede satisfatoriamente a demanda de terra por parte do agricultor familiar pois o número de semterra nas ocupações não diminui De qualquer modo há um único número realista que é o do próprio MST muito aquém desses números todos Em termos reais a efetiva demanda por reforma agrária é constituída pelos sessenta mil semterra acampados nas ocupações É evidente que isso não quer dizer que o problema social da terra se limite a eles Mas são eles que expressam acima de qualquer dúvida uma demanda por reforma agrária urgente É inútil dizer que há 45 milhões de famílias semterra em todo o Brasil se apenas cerca de sessenta mil assumem essa identidade Isso é o que conta politicamente No mínimo estamos diante de uma demanda diversificada de reforma agrária que reflete as diversidades regionais do país o que pode explicar a também diversificação das agências de mediação e o aparecimento de várias delas que preferem encaminhar suas reivindicações por dentro das possibilidades institucionais Apesar dos assentamentos e regularizações crescentemente reali zados há também uma renovação cíclica crescente da clientela de reforma agrária Portanto essa clientela não procede exclusivamente daquilo que pode ser indicado por estatísticas que se referem excetuadas a dos assentamentos recentes e a dos acampados a um passado em que esse problema cambiante era diverso do que é atualmente Raramente os dados estatísticos de referên cia para considerações sobre o presente tem menos de dez anos quando as coisas eram bem diversas do que são hoje e quando a ação do Estado era bem modesta em comparação com a atual 109 MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 A reforma agrária é um tema político que se propõe em termos qualitativos e não em termos quantitativos Não é o número de desapropria ções ou o número de assentamentos em terras desapropriadas ou compradas que definem o perfil da reforma agrária brasileira sua justeza ou não O es sencial é que haja um setor ponderável da sociedade reivindicando a amplia ção do lugar da agricultura familiar no sistema econômico e que em parte essa agricultura familiar esteja nas mãos de pessoas que se ressocializaram na luta pela reforma agrária e nela se politizaram É o que assegura no campo e no interior a diversificação das oportunidades de trabalho e a modernização não só econômica como também das mentalidades e das relações sociais Mesmo que a referência ideológica seja equivocada e insubsistente posta além da realidade histórica de quem luta pela reforma ou é por ela alcançado É uma descabida perda de tempo essa querela sobre números que tanto num lado como no outro representam algo diverso do que está sendo discutido É evidente que o MST com apoio da Igreja tem uma proposta de reforma agrária em que a sua forma difere profundamente da forma que lhe dá o Estado brasileiro desde o Estatuto da Terra e podese dizer desde a Lei de Terras de 1850 A reforma preconizada pelo Estado esteve longamente subjugada e não só agora pelo princípio jurídico de que a propriedade da terra neste país é propriedade individual ou de uma associação de indivíduos Passa portanto por um direito individual e não por direitos coletivos ou co munitários que são os que dão sentido às propostas do MST e da Igreja mais naquele do que nesta Foi somente em 1980 que a CNBB em seu documento Igreja e Problemas da Terra reconheceu e pediu o reconhecimento de um direito costumeiro muito presente entre os pobres de amplas regiões brasilei ras que conflitava com o direito dominante e os desfavorecia nos confrontos com a justiça oficial A Constituição de 1988 de algum modo incorporou esse reconhecimento Abriu caminho para um reparo parcial embora tardio das injustiças fundiárias que decorreram do direito absoluto de propriedade im plantado pela Lei de Terras Esse direito anulara o direito costumeiro fundado no anterior regime de sesmarias um direito baseado na justa concepção de que o trabalho e a obra do trabalho têm precedência moral em relação aos privilégios de um direito de propriedade fundado no poder ou na compra e na venda Ao menos abriu um leque de alternativas para uso social do solo A eficácia das intervenções do MST e sua extraordinária prática de reinvenção social nos assentamentos em que está presente tem se beneficiado amplamente dessa conquista embora seus dirigentes e seus militantes não o saibam A que se junta a abertura de canais de cooperação do Estado que a reforçam ainda mais nesta conjuntura histórica de fortalecimento da socieda de civil e seu protagonismo Além do extenso número de assentamentos e regularizações a cooperação técnica e creditícia mesmo que na oscilante e até insuficiente disponibilidade de créditos O que ao mesmo tempo mostra que essas alternativas são inúteis se a reforma agrária ficar exclusivamente nas mãos de técnicos e burocratas públicos pois são alternativas que depen dem de uma ação direta da sociedade e de uma mística de inovação que o MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 110 empregado do Estado raramente tem Nos assentamentos o trabalhador fami liar movido por essa mística pode ousar além do imaginável pelo racionalismo formal e burocrático de técnicos e funcionários governamentais Portanto qualquer que seja o número de famílias assentadas ou cuja posse de terra foi regularizada que ultrapasse o número dos acampados representa um ganho histórico na luta pela reforma agrária pois representa inclusão de pessoas no âmbito do direito e do contrato social inclusão de excluídos Representa também inclusão na alternativa da agricultura famili ar com apoio institucional do Estado e a criação de uma situação social que torna amplamente viáveis as inovações sociais propostas pelos beneficiários em nome da mística acima referida e com base no protagonismo histórico da própria sociedade civil Nesse plano o governo se situa adiante da reivindica ção popular ativa Ao mesmo tempo a estabilidade do número de acampados que reivindicam assentamento denuncia insuficiências da política fundiária pois nos fala de uma contínua recriação de uma forma perversa de pobreza que é a exclusão e a privação da inserção ativa nas possibilidades sociais e econômicas das novas tendências históricas Já o desencontro de opiniões quanto ao que deva e como deva ser a reforma agrária sobretudo entre os insatisfeitos com a reforma nos põe diante de uma pobreza de consciência histórica que decorre da desinteligência entre a prática e a teoria dessa prática Este último é sem dúvida o mais grave dos problemas pois em nome das paixões e dos interesses partidários e eleitorais de uma classe média profundamente dividida e amplamente desprovida de cons ciência histórica dificulta restringe ou mesmo inviabiliza um serviço aos po bres num momento dramático da economia mundial Uma classe média cujo antagonismo intransigente em relação ao que vem sendo feito no âmbito do possível é na história de nosso país muito mais expressão de uma postura já antiga de tutela iluminista dos pobres e desvalidos muito mais resquício de uma cultura de tutela gestada na casagrande muito mais expressão de uma mentali dade de culpa pena e caridade do que de uma mentalidade revolucionária A fabricação da História na disputa de legitimidades O desencontro de interpretações sobre os números da reforma agrá ria entre o entendimento que deles têm o MST a Igreja e o PT de um lado e o entendimento que deles tem o governo de outro revela um território de ficção de grande importância sociológica e política para a compreensão dos confrontos atuais em relação ao tema Essa é uma ficção reveladora do que é no conjunto o embate entre um lado e outro A compreensão desse conjunto é fundamental para situar e definir o estado da questão agrária e da reforma agrária possível nesta conjuntura histórica Como mostrei antes os números utilizados não nos indicam a natureza e o tamanho do problema Sobretudo não nos indicam quem são os verdadeiros sujeitos da luta pela reforma agrá ria Essa parece ser a grande dificuldade do MST e da Contag e dos que os apóiam e é ao mesmo tempo a grande dificuldade do governo Temo que aí 111 MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 resida um fator de afastamento potencial entre essas agências de mediação da luta pela terra e os reais protagonistas dessa luta Uma outra expressão do caráter ficcional dos números é a ficção da História fabricada em que agências ou grupos de mediação da luta dos traba lhadores rurais buscam legitimidade para sua justa intervenção na conversão da luta pela terra em luta pela reforma agrária Essas agências têm uma concepção difusa do processo histórico sobre o qual incide a sua prática Não é uma con cepção fundada diretamente em sua rica experiência nem é concepção fundada em boa teoria Antes é concepção que resulta de mediações ideológicas utiliza das como suporte de uma intervenção em que o protagonista real não tem condi ções históricas de se interpretar diretamente Esse é sempre um complicado tema na história das lutas camponesas Está relacionado com o fato de que as media ções interpretativas da luta pela terra são realizadas por agentes de classe média e a ação se apóia numa visão do processo histórico que é própria dos setores militantes e radicais dessa classe e não do campesinato4 No meu modo de ver os intelectuais orgânicos diretamente envol vidos na luta pela reforma agrária não só no geral partidarizaram sua visão do problema a partir de sua própria inserção de classe o que já é um complicador do entendimento dos confrontos atuais Mas também estão empenhados em criar um senso comum que promove radical revisão da histó ria da sociedade brasileira com o objetivo de legitimar a luta política de que participam Esperam com isso legitimar historicamente o pleito da reforma agrária e o resultado acaba sendo exatamente o oposto É fácil identificar em seu discurso categorias referidas à necessidade de uma revisão histórica que atribua aos pobres um lugar central na história social do país mesmo que à custa de distorções óbvias Esse revisionismo populista não se limita aos tra balhadores rurais Por conta das mesmas mediações de classe média ele se estende aos grupos étnicos e raciais como os índios e os negros e se estende a outras classes sociais como a classe operária Estou inteiramente de acordo com a necessidade epistemológica de uma revisão do que se sabe sobre o lugar social das diferentes categorias sociais no processo histórico Mas es tou inteiramente em desacordo com a ideologização dessa revisão que deve ser feita com critérios científicos rigorosos Os resultados da revisão ideológica são melancólicos Os militan tes negros fetichizam a história de Palmares e omitem informações importan tes para que se compreenda porque de fato as populações escravas neste país nunca conseguiram realizar uma insurgência que as tornasse ativas protago nistas de transformações sociais que as beneficiassem Omitem os conflitos entre etnias negras omitem as enormes diferenças culturais entre essas etnias omitem o envolvimento de etnias inimigas na captura escravização e venda de negros de outras etnias aos traficantes brancos omitem que em Palmares também havia escravidão e que por isso a longa luta ali desenvolvida nada tinha a ver com os princípios da cidadania proclamados mais de um século depois pela Revolução Francesa A concepção de liberdade que os palmarinos conheciam e praticavam não era muito diferente da relativa liberdade das con 4 Estou utilizando a pa lavra campesinato porque é designação incorporada pela via política ainda que indevidamente ao vocabulário corrente no trato da questão agrária MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 112 cepções dos senhores de escravos uma liberdade circunscrita aos limites de um estamento apoiada portanto em desigualdades sociais profundas O mesmo se pode dizer de Canudos Já ouvi um professor univer sitário afirmando num documentário que a luta de Canudos era uma luta socialista e igualitária pela socialização da propriedade da terra E ouvi também o professor José Calasans competente especialista na história de Canudos contrapondose a essa esdrúxula interpretação com ceticismo ci tando nominalmente moradores e participantes da guerra que eram comerci antes e proprietários Sem contar que a luta de Canudos foi em grande parte uma luta camponesa mas não foi diretamente uma luta pela terra que lá não tinha o menor sentido Canudos foi uma guerra religiosa em que os mora dores tiveram como inimigos e algozes o Estado e a Igreja Tanto um quanto outra de diferentes modos se envolveram no desencadeamento da guerra porque estavam divididos por suas próprias crises o Estado e seu republicanismo de cúpula recente e incerto a Igreja e os problemas inter nos derivados da romanização Sobretudo por um e por outra Canudos era considerado um perigo político e um perigo religioso Sem contar que os sertanejos de Canudos não declararam guerra a ninguém foram atacados como tem acontecido em todas as lutas camponesas deste país lutas passi vas e defensivas Canudos foi resultado do grande desencontro que separa ainda hoje neste país as elites do povo desencontro que aparece freqüentemente entre mentores e povo nas lutas recentes pela terra As eli tes políticas e sua massa a classe média não têm a menor compreensão dos códigos que explicam o mundo e regem a vida dos pobres no Brasil Indício do ainda forte caráter estamental de nossas classes sociais Isso vale tanto para os setores da elite que estão nos movimentos sociais quanto para os setores da elite que estão no outro lado no Estado5 Um dos resultados desse desencontro tem sido o da extemporânea tomada de consciência de que a história do país é uma história de injustiças sociais acumuladas de violências reais e simbólicas incorporadas na rotina de vida dos trabalhadores do campo e da cidade E outro resultado é a cons ciência maniqueísta desse processo particularmente clara nos confrontos relativos à questão agrária No meu modo de ver por essas razões os grupos de mediação concebem a questão agrária tardiamente como se ainda fosse predominan temente uma questão estrutural e histórica Essa concepção se baseia em vários deslocamentos que têm a ver com o método de leitura da realidade Usam um método que acumula que soma informações históricas À medi da em que mais informações são colhidas sobre a história dos pobres é como se elas se agregassem para constituir um tipo humano um pobre sempre igual e sempre o mesmo ao longo da história o que é uma abstração Esse pobre não existe não é real nem tem personalidade política Desse modo a história aparece como uma soma não como um movimento de tensões e desencontros um contraditório processo uma sucessão de momentos em que a bondade e a maldade se é que se pode falar assim 5 Marcelo Sampaio Car neiro et alii em seu estudo sobre a reforma agrária no Maranhão insistentemente cha mam a atenção para o grande desencontro cultural que há entre técnicos do governo e assentados sublinhan do que os técnicos são completamente igno rantes acerca do cálcu lo camponês no que toca à produção para autoconsumo e para comercialização Car neiro et alii 1998 p 275 Convém ter em conta o risco de igno rância semelhante do outro lado o dos inte lectuais que apoiam a luta pela terra e se em penham na causa da emancipação dos po bres da terra O proble ma mais comum é o do resgate etnográfico de categorias do pensa mento popular sem o correspondente resgate da lógica camponesa mediadora das possibi lidades do processo histórico o possível próprio da dialética sem o que caímos num reducionismo que com promete seriamente os propósitos do apoio e da identificação 113 MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 intercambiamse entre categorias sociais conforme a circunstância Isso nos impede de ver que no processo reprodutivo de uma sociedade profunda mente marcada por injustiças a reprodução só é possível com algum grau de conivência da vítima cooptada pelas circunstâncias e pelas próprias ur gências da vida A História não é apenas um contínuo processo de rupturas É também um processo de contínuas recriações e reiterações No camponês de hoje já não subsiste o camponês do passado senão como um conjunto de superações Quando se fala em 500 anos de injustiça criase um slogan vazio baseado nessa epistemologia da acumulação portanto baseado numa concepção estática da história Estática e quantitativa em que as quantidades são interpretadas ao contrário do que são o que é próprio do racio cínio conservador Não há aí uma história da práxis mas uma antihistória uma história que tem apenas vítimas e não agentes ativos da transformação social Mesmo silenciado e mesmo por vias indiretas o homem comum tem sido um protagonista da História Sem essa compreensão a luta política em nome dos pobres do campo se torna um equívoco e até um engodo Nesses grupos de mediação notase uma tentativa de transformar num corpo ideológico coerente o que é um conjunto de resíduos de consciên cia e de possibilidades próprios de diferentes momentos históricos em que tais possibilidades não se consumaram Uma petrificação ideológica que pre cisa ser explicada e superada se queremos de fato nos comprometer com o destino dos pobres A substancialização dessas sobrevivências só podem ser explicadas pela desconexão entre prática e teoria Elas se corporificam num extenso antagonismo maniqueísta o que talvez explique sua persistência sem a necessidade da verificação na práxis Estando postas em termos muito ge rais elas se confirmam tanto quando as reivindicações são atendidas quanto quando não o são na medida em que se propõem em termos de uma espécie de luta entre o bem e o mal Esse maniqueísmo cultural é bem característico do nosso senso comum e de nossa cultura popular uma cultura de excludência que ao mesmo tempo gera o conformismo maniqueísta e simplificador que justifica tanto os ganhos quanto as perdas A durabilidade em geral curta dos movimentos sociais e entre nós sua mais ou menos rápida conversão em organizações talvez se explique por essa dinâmica redutiva que não cobra da ideologia a necessidade de sua verifi cação contínua na práxis Portanto um discurso ideológico que a despeito de seu radicalismo se conforma com uma práxis aquém das metas ideológicas e portanto se dilui na dimensão propriamente reprodutiva e conformista dos processos sociais Tratase de um falso radicalismo Por isso comporta a congérie surrealista de orientações teóricas discrepantes antagônicas e desencontradas do personalismo católico de Mounier à pseudo dialética do estruturalismo tomista de Althusser um estruturalismo mecanicista e antidialético que busca coerênci as formais entre estrutura e superestrutura e não a incoerência revolucionária dos descompassos históricos que fecundam a práxis e a teoria Os que lutam pelos trabalhadores rurais querem uma reforma agrá ria confiscatória e punitiva para o latifúndio Esse é certamente o ponto que MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 114 de modo mais claro revela uma certa anulação da concepção de história No sentido de que os débitos do passado devem ser pagos agora O latifúndio do passado porém era outra coisa Como mostrou Caio Prado Jr a fazenda era um mundo uma comunidade de relações entre estamentos e entre etnias uma forma peculiar de autosuficiência de exploração e desigualdade permeada por uma violência singular Hoje o latifúndio é renda fundiária fonte de um tributo social ao proprietário privado de terra reserva de valor instrumento de intervenção especulativa na economia É o presente que justifica a reforma agrária e não o passado Li recentemente no título de um livro sobre o tema a expressão revanche camponesa Portanto uma certa idéia negativa de vin gança uma negação passiva e imobilista mas não a negação da negação pró pria da dialética das superações e da revolução Esse é o complicado débito teórico que informa o confronto entre MST e Estado um débito que não afir ma a positividade da sociedade contra o Estado mas apenas a particularidade de um grupo social circunscrito Isso aparece também na idéia de 500 anos de resistência em moda nestes dias como se não houvesse nenhuma diferença entre os momentos his tóricos como se os camponeses de hoje estivessem há quinhentos anos espe rando por justiça E os índios também Os injustiçados morreram e seus des cendentes já não têm condições nem de perdoar nem de receber a justa com pensação moral e material pelas injustiças sofridas das quais resulta a situa ção em que se encontram Mudou também a própria concepção de justiça sem contar que era outra a idéia que eles próprios tinham dela Em nenhum momento se leva em conta que os camponeses que hoje majoritariamente lide ram o MST são originários do Sul descendentes de imigrantes não raro no passado envolvidos no massacre das populações indígenas na disputa pela terra como aconteceu em Santa Catarina nas lutas de colonos contra os Xokleng6 As histórias recentes de Rondônia do confronto com os Suruí e os Urueuwauwau são histórias de conflitos entre colonos descendentes de imigrantes do sul e do sudeste e populações indígenas frágeis e desampara das E o próprio MST tem sua raiz imediata na expulsão dos colonos de as cendência européia pelos índios Kaingang de Nonoai cujas terras arrenda vam da Funai mediante pagamentos ínfimos que não redundavam no bem estar dos índios impedindo que os próprios índios as cultivassem É portanto necessário compreender a História como ela é como processo contraditório em que o negativo e o positivo se opõem se alternam se combinam e se superam na produção do novo novo momento nova situa ção novas possibilidades O campesinato do sul tanto produziu o colono que massacrou ou explorou índios até recentemente quanto no período relativa mente recente produziu os agentes da luta pela terra e pela reforma agrária quanto produziu ainda a intelectualidade orgânica em que se constituem os cleros brasileiros majoritariamente originários do sul e de famílias campone sas responsáveis pela admirável linha de pastoral social de católicos e luteranos Desconhecer essas contradições não ajuda nem um pouco a firmar uma legíti ma bandeira de reivindicação social Essas contradições são justamente 6 João Pedro Stedile em seu depoimento a Bernardo Mançano Fernandes sobre o MST relembra a im portância da expulsão de 1200 famílias de arrendatários brancos da reserva de Nonoai pelos índios Kaingang nos episódios precurso res do surgimento da organização E subli nha que os expulsos punham a culpa de sua situação nos índios cf Stedile Fernandes 1999 p 2526 Eles ocupavam as terras dos índios que viviam na miséria pagando à Funai um ínfimo arren damento 115 MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 indicativas de como as pessoas e os grupos sociais ao longo das gerações podem se transformar profundamente em direção a um ser humano crescentemente humanizado emancipado e dotado de grande senso de justiça No ambiente que dá sentido à atuação da CPT e do MST e ao seu oposicionismo tem havido uma busca de compensação para essas omissões nos chamados pedidos de perdão Como o da CNBB recentemente que pediu per dão pela complacência e conivência da Igreja com a escravização de índios e negros pedido que se materializará em cerimônias e rituais previstos para o ano 2000 o ano do Jubileu Podese compreender a importância do gesto simbólico Mas é justamente um gesto que anula o sentido da história que atribui aos protagonistas do passado o pecado do massacre e da escravização Mas alguém poderia dizer que a Igreja continua fazendo trabalho missionário entre os índios e que a anulação cultural do outro continua em muitos de seus setores Embora se deva reconhecer que com a Igreja ou sem a Igreja setores laicos da sociedade e do Estado também realizam seu trabalho missionário junto às populações indígenas e pobres Um trabalho que as violenta culturalmente sendo justo e necessário um missionarismo de contestação orientado pelo propósito da eman cipação do outro das injustiças que o degradam e da violência cultural que o aniquila como de certo modo fizeram os jesuítas no Território das Missões O pedido de perdão é generoso e do ponto de vista ético é pedagógico e educativo Mas anula o sentido da história porque apaga desse modo as formas concretas de inovação e de consciência na circunstância de cada época Na história da Igreja houve ações orientadas no sentido da emancipação das vítimas do cativeiro como houve deliberadas ações no sentido de desconhecer a humanidade dos cativos No pedido de perdão há a suposição historicamente equivocada de que tanto as pessoas como os grupos institucionais são culpados por não terem pensado adiante de sua época Convém lembrar que quem pensa va adiante de sua época nesses tempos recuados ia para a forca ou era queima do vivo O pedido de perdão se não for devidamente situado pelo magistério pastoral instrumentaliza a história contra a própria História para legitimar e justificar sem mediações os conflitos do presente Uma nulificação da história que anula a historicidade do presente e que justifica o confronto ideologicamen te maniqueísta entre MST CPT e Igreja de um lado e Estado do outro O que dá à luta pela reforma agrária características de uma guerra santa que como toda guerra santa é uma guerra sem alternativas e sem saídas políticas Essa tendência no meu modo de ver começou a tomar conta da ação dos agentes de pastoral a partir do final da ditadura momento em que os bispos se afastaram do que chamavam de pastoral de suplência Desse modo devolviam aos leigos a direção das grandes e significativas propostas da Pas toral da Terra e das outras pastorais sociais Esse afastamento aproximada mente coincidiu com a decisão de alguns agentes de pastoral de laicizarem a luta pela terra através da fundação do MST uma decisão apropriada num momento em que se lutava pela expansão das liberdades civis Mas os leigos por força das características da prática desses grupos de mediação radicalizaram suas concepções e sua atuação a partir de orienta MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 116 ções ideológicas que acentuavam o confronto e a polarização Deixaram em segundo plano o sistema de concepções referidos à idéia de pessoa do personalismo de Mounier e da doutrina social católica7 que até então fora a base da intervenção dos bispos na defesa das comunidades alcançadas pelos conflitos fundiários Em grande parte o recurso ao que pode ser chamado de marxismo vulgar substancialmente diverso do marxismo clássico8 foi uma ten tativa de encontrar uma definição concreta uma cara para os protagonistas dos conflitos que pareciam propor a emergência de um novo sujeito histórico Novo não por sua novidade Mas novo por sua consciência e sua luta enfim os traba lhadores da terra decidiam emergir das sombras e da passividade e reivindicar Obviamente na luta pela terra não havia a polarização ideológica que tenderia a aparecer na sua mediação pastoral sobretudo mais tarde A radicalidade cam ponesa é menos dicotômica mais rica e culturalmente muito complexa A medi ação pastoral laicizada tende a simplificar os conteúdos dessa luta uma luta que não se resume à luta pela terra como aliás indica a experiência do MST nos assentamentos mas que se estende à revitalização da família e seu mundo É evidente que se posseiros resistiam ou se queixavam estavam expressando um antagonismo objetivo com quem os expropriava e com quem os explorava Na conjuntura histórica da ditadura militar isso significava con fronto não só com os grandes proprietários de terra e grileiros mas confronto também com o Estado que a estes estimulava subsidiava e protegia com seu modelo militar de ocupação da Amazônia Para uma igreja missionária como a Igreja na Amazônia não havia qualquer outra alternativa Aceitar o progra ma oficial e suas conseqüências era o mesmo que renunciar ao trabalho missi onário É óbvio que houve muitas descobertas e muitos encontros nessa ad versidade Sobretudo a notável insurgência moral e religiosa de bispos pa dres freiras e leigos contra brutalidades e injustiças O confinamento das igrejas em relação à alternativa escolhida pelo Estado criou a circunstância própria para que valores fundamentais do catoli cismo e do cristianismo fossem revigorados e para que um certo humanismo de fundo religioso reafirmasse as opções evangélicas de bispos e agentes de pastoral Mas numa situação altamente politizada pelo Estado e repressiva as alternativas antagônicas que se abriam pediam a politização da visão de mundo católica sobretudo a necessidade de definir e compreender as catego rias sociais dos que eram vítimas da injustiça e pediam misericórdia A aproximação dos católicos de esquerda educados na tradição da Ação Católica com os grupos organizados de esquerda apoiados em corpos doutrinários fechados durante a ditadura militar permitiu que os católicos se apropriassem dessas doutrinas para alargar sua compreensão da realidade so cial com a qual lidavam A pobreza metodológica desse marxismo simplificado não lhes permitiu porém que se dessem conta do grande desencontro que havia entre a pobreza da teoria e a riqueza da prática no trabalho pastoral que se abriu inicialmente na região amazônica e depois no Brasil inteiro Esse é certamente o mais grave impasse do momento na atuação da CPT e claramente na atuação do MST Boa parte de seu projeto supostamente alternativo se perde no redutivismo 7 Esta frase de João Pedro Stedile indica os efeitos dessa inver são de referências O único debate que con seguimos nessa épo ca era pelo viés idea lista cristão Stedile Fernandes 1999 p 96 grifo meu 8 Discordo de Zander Navarro quando ele fala em atoleiro con ceitual do marxismo clássico para referir se ao marxismo que informa a ação do MST Não há nada de propriamente clássi co nesse marxismo reducionista que che ga até aos agentes de mediação da luta pela reforma agrária por meio de textos e de uma sofrível pedago gia de vulgarização de origem ou de ins piração althusseriana cf Navarro 1996 p 20 nota 117 MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 ideológico que anula justamente o que é de fato riqueza de possibilidades e possibilidade do alternativo em sua experiência de base Esse simplismo tem sido agravado por intelectuais comprometidos com partidos políticos identifica dos com uma tradição teóricoideológica laica e iluminista de raízes burguesas incapaz de lidar com as utopias com o simbólico e com as crenças Um materi alismo mambembe que se propõe a si mesmo como um substituto das religiões e retira da práxis dos trabalhadores rurais e dos militantes a mística que a anima e que a faz poderoso meio de inovação social O caráter cíclico da questão agrária e o historicamente possível A ditadura foi possivelmente o último episódio do movimento pendular que no regime republicano deu vazão às necessidades políticas centralizadoras do Estado nacional alternandoas com a força do poder local regional e oligárquico cf Leal 1975 Esse movimento pendular se manifes tou na alternância de ditadura e democracia ao longo deste pouco mais de século da República e expressa o momento inconciliável das contradições políticas presentes na constituição do Estado nacional Foi também o movi mento que condenou a democracia em nosso país e as ações cidadãs da socie dade civil a um confinamento restritivo no interior de uma estrutura política clientelista e oligárquica Sempre que aqui se lutou por um regime democráti co essa luta carregou consigo como aliado inevitável os partidos que repre sentam o poder pessoal e o oligarquismo Porque convém lembrar essa tem sido contraditoriamente a base do nosso federalismo e do nosso liberalismo cf Leal 1975 Martins 1994 São muitas as indicações de que esse casulo de contenção pode estar sendo rompido de modo a viabilizar a liberdade de manifestação da sociedade civil Já com base no direito à diferença e não com base em uniformidades totalitárias a partir de referências ideológicas outras que não as decorrentes das formas tradicionais de dominação É verdade que estamos também presos a um novo enredamento de contenção do ritmo das transformações sociais as alianças cruzadas Há no país partidos antioligárquicos eleitoralmente representativos o suficiente para constituir uma frente política que precipite o Brasil na modernidade política Mas que não se aliam entre si Antes são marcados por um confronto intolerante que torna essa via impossível Parece não restar outra alternativa senão a do que estou chamando de alianças cruzadas cada partido progressista se alia com a oligarquia que pode Assim como o PSDB se aliou ao PFL e a outros partidos que compõem o pacto de sustentação do governo atual o PT por sua vez neste mesmo ano de 1999 vem fazendo alianças táticas mais complicadas ainda de que destaco a aliança com o ex presidente Itamar Franco e sobretudo a aliança com a UDR na Comissão de Agricultura na votação da questão das dívidas dos produtores rurais Portan to o pacto que viabiliza o governo e o regime atinge a todos mesmo aqueles que se imaginam fora dele É verdade que na falta das alianças cruzadas os remanescentes do oligarquismo do populismo de direita e da própria ditadura MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 118 teriam condições de se juntar numa poderosa frente política capaz de pôr em risco o regime atual Mas também eles estão divididos De fato a Constituição de 1988 e a legislação decorrente e o pacto político que nela se confirmou apontam nos seguintes sentidos a modernização e empresarialização das oligarquias que ocorreu sobretudo durante a ditadura através da aliança entre o capital e a propriedade da terra b descentralização política com maiores destinações de recursos públicos aos estados e municípios o que em outras épocas significou o fortalecimento das oligarquias e a descentra lização do poder nacional c fortalecimento político do governo central com maiores poderes na definição das diretrizes no uso dos recursos públicos com formas e proporções de gastos definidos previamente pela Constituição federal ou em leis federais d possibilidade de atribuição de deveres federais aos governos locais como é o caso da reforma agrária da saúde e da educação pública Portanto no geral uma conciliação delicada entre poder local e poder nacional com atribuição de responsabilidades federais aos estados e municí pios e por extensão às comunidades locais O risco de repetirse o reavivamento do clientelismo político municipal e regional parece atenuado pela tutela das grandes diretrizes de política social econômica e educacional por parte do governo federal Atenuado mas não suprimido É possível pois que a transição e a Constituição de 1988 tenham inaugurado um longo período de estabilidade política na medida em que evitam que o federalismo e o localismo inviabilizem a nação Estamos em face de um pacto em que os conflitos sociais e políticos rotineiros numa democracia qual quer que seja ela já não podem alimentar essas polarizações estruturais e bási cas do nosso sistema político e levar à ingovernabilidade do país Uma saída conciliadora que evita os inconvenientes do presidencialismo através de um presidencialismo informalmente parlamentarista se é que se pode definilo as sim A presidência já não pode ser exercida como variante do poder pessoal com características monárquicas como está na expectativa popular e nos pres supostos do radicalismo pequenoburguês de vários grupos de esquerda envol vidos na luta pela reforma agrária A governação no novo ordenamento políti co pede a corresponsabilidade de todos os setores sociais e políticos do país sem que isso afete a liberdade de consciência e de filiação partidária Os muni cípios e os estados é que se tornam o território do alternativo cabendo à União propor e gestir as causas e processos supralocais supraregionais e até mesmo suprapartidários como é concretamente o caso da reforma agrária Estamos provavelmente em face de uma redefinição prática das funções da presidência da República em face de sua especialização e de uma redefinição histórica das funções da União Esse é o ponto de compreensão mais difícil Em outras palavras o novo ordenamento propõe o fortalecimento da sociedade e dos movimentos sociais que se manifestam por ela em face do Estado e o recolhimento do Estado nacional a funções reduzidas e ordenadoras Em grande parte portanto o chamado estado mínimo tem entre nós as fun ções de desoligarquizar paulatinamente o Estado e de atribuir à sociedade civil ações e iniciativas que lhe deveriam ser próprias e que foram viabilizadas 119 MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 embora monopolizadas pelo Estado desde pelo menos a Revolução de 1930 Essa atribuição porém implica num novo pacto entre o Estado e a sociedade o pacto da ordem e da lei e nele o pacto da atualização e modernização da lei até mesmo por iniciativa popular A sociedade portanto passou a ter até mes mo funções legislativas diretas no caso em que a delegação de vontades atra vés do voto não dê conta de todas as demandas sociais No meu modo de ver as complicadas transformações que estão ocor rendo no país se explicam nesse quadro de referência e é por meio dele que estou procurando compreender os desencontros entre o MST e as oposições de um lado e o governo de outro Para no final procurar entender que rumos estão de fato abertos ou se abrindo como caminhos possíveis para ações e propostas de resolução dos problemas sociais dentre eles o problema da po breza no campo Tratase de saber qual é o possível que se abre diante de nós e em que medida as posições e ações do governo de um lado e dos que a ele se opõem de outro sobretudo no que se refere à reforma agrária correspondem a esse possível ou se colocam aquém ou adiante dele Tratase de uma refle xão sobre as mediações e as condições objetivas da práxis dos poderes gru pos classes e movimentos sociais que se crêem atuando em função das possi bilidades objetivas do momento histórico Tudo sugere que mesmo os grupos que se consideram dotados do mandato da História e até do mandato divino estão muito aquém dessas possibilidades A tortuosa via de demonizar o governante percorrida atualmente pelos que querem ações de governo diversas das atuais dentre eles os que lutam por uma supostamente outra reforma agrária vitimará mais adiante os atuais opositores Nesse quadro de referência como acontece num regime par lamentar o presidente personifica as contradições do Estado e do pacto que o sustenta Atua portanto nos limites de sua função pública e não na amplitude de sua vontade pessoal E nesse caso fica mais claro que o Estado não é a presidência da República e sim uma multiplicidade de funções em três pode res independentes entre si numa república federativa Essas mudanças afetam decisivamente a questão agrária e a políti ca fundiária do Estado brasileiro A propriedade da terra já na ditadura mili tar como mostrei antes associada ao capital e claramente submetida à lógica da reprodução capitalista ampliada se institucionaliza politicamente através do pacto como fundamento do nosso capitalismo rentista Porém o objetivo do governo e do partido nele hegemônico parece ser o de modernizar e desen volver conciliando Nesse sentido o rentismo apoiado na relevância da pro priedade da terra está em conflito com os propósitos governamentais e ao mesmo tempo está domesticado pela aliança política em que o governo se baseia A questão agrária está passando a ser provavelmente uma questão social e historicamente cíclica e deixando de ser uma questão que apareça em primeiro plano no processo político como questão estrutural Algumas das ações mais significativas do atual governo no âmbito da questão agrária tem sido justamente as de confinar o rentismo nos limites de uma legalidade es treita agindo dentro da lei e não contra ela Neste final de 1999 quando estou MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 120 escrevendo este artigo o ministro de Política Fundiária determinou a anula ção de todos os títulos de terra irregulares cancelando os respectivos regis tros Tratase de uma verdadeira desconstrução do regime fundiário que teve sua origem na Lei de Terras de 1850 e seu cume na ditadura militar na com placência para com formas irregulares de apossamento de terras por parte de grileiros e especuladores Uma atuação direta sobre os elementos propria mente históricos de nossa questão agrária Se assim for a política fundiária tem por objetivo reconhecer a institucionalidade do problema como problema social e o ministro tem aí a função de gestor de uma conflitividade administrável como de certo modo já se propunha no regime anterior Com a diferença de que agora devem prevalecer os mecanis mos da negociação e portanto os da lei e não os da repressão A política fundiária tem por objetivo atenuar e circunscrever o rentismo atenuado portanto pela pró pria reforma agrária gostem dela ou não os opositores do governo Quando se diz que a reforma agrária entrou na agenda política do Estado ainda que de modo limitado não é apenas e talvez nem fundamentalmente em conseqüência da ação do MST e das oposições ao governo Pois em termos de conflitividade ela já esta va proposta no regime militar No meu modo de ver entrou na agenda do Estado como recurso institucional para atenuar os efeitos politicamente conservadores da propriedade da terra que se manifestam nos problemas sociais e para acelerar a modernização da elite fundiária e das oligarquias Nesse sentido a ação modernizadora do governo por essa via tem um aliado fundamental no oposicionismo do MST da Igreja e do PT quanto à reforma agrária O pacto seria provavelmente inviável sem essa oposição É o que torna extremamente difícil para essas agências de mediação da luta pela terra sair da armadilha histórica em que aparentemente caíram em conseqüência dos conflitos e contradições entre as facções políticas anteriores à ditadura que fragmentaram a questão agrária e lhe retiraram força e prioridade históri cas Esse parece ser um dos efeitos da prática política baseada na concepção da história por etapas difundida entre nós como doutrina por alguns grupos de esquerda Com isso a amplitude da intervenção na questão agrária é hoje dominada por necessidades sociais e políticas que não são apenas as necessi dades dos trabalhadores rurais sem terra Essa frente de ação sobre o latifúndio e o clientelismo oligárquico foi aberta pelo Estado pósditatorial como forma de intervenção indireta nos estados e sobretudo nos municípios quanto ao uso dos recursos públicos quanto ao cumprimento local de obrigações constitucionais da União e quanto à trans ferência a grupos comunitários locais e aos municípios de funções públicas sob controle federal Como mencionei é o caso da reforma agrária e da gestão das condições de desenvolvimento e consolidação da agricultura familiar A municipalização das políticas relativas a temas sociais abre um amplo terreno de participação da sociedade civil por delegação do Estado9 A sociedade pode assim através de grupos comunitários e das administrações locais se tornar guardiã e gestora direta das questões relativas ao chamado bem comum Em boa parte funções que as câmaras municipais tiveram no período colonial 9 Zander Navarro numa perspectiva completa mente diferente da que adoto neste texto cha ma a atenção para o desinteresse do MST por essas novas possi bilidades de atuação decorrentes da des centralização política do país cf Navarro 1996 p 15 e 44 121 MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 agora porém muito ampliadas Tratase portanto de um revigoramento dos valores mais positivos do nosso municipalismo Ora esse tem sido o território do poder oligárquico em última ins tância beneficiário do capitalismo rentista e das formas de dominação propicia das pelo latifúndio Tais mudanças criam o aparato institucional que coloca o latifúndio e seu poder político em face dos clamores e dos direitos do povo da sociedade dos movimentos sociais e dos grupos comunitários Portanto estamos em face de uma transferência de poder que ao mesmo tempo em que assegura a funcionalidade do pacto político atual pode incorporar os descontentes e politi camente excluídos na coresponsabilidade da gestão da coisa pública Eu não subestimaria a enorme brecha à participação popular que se abre com essas mudanças Mas não subestimaria também a competência dos grupos políticos de tradição oligárquica para se aproveitarem dessas possibilidades mesmo ten do que disputálas com os grupos emergentes da sociedade pósditatorial Aliás em muitos lugares o MST tem se aproveitado larga e inteli gentemente dessas possibilidades e o mesmo se pode dizer de vários setores das igrejas Essas mudanças começaram por iniciativa popular durante a ditadura nos vários lugares da Amazônia em que as lutas populares em particular a luta pela terra deram lugar à luta pela criação dos novos municípios e à formação dos governos locais num espaço de participação aberto claramente pelo traba lho pastoral Processos similares têm acontecido em outros lugares do país após o fim da ditadura Quase que se pode dizer que na história do Brasil são essas iniciativas novas que invertem o processo característico que aqui fez do Estado o criador da sociedade civil10 Nesses casos é a sociedade civil que toma a inici ativa de estender a rede das instituições do Estado Tratase de uma inversão de rumos de importância fundamental no desenvolvimento social no combate ao oligarquismo e ao poder pessoal e na consolidação da democracia Essas mudanças abrem tais possibilidades de intervenção histórica nos rumos sociais e políticos do país por parte da sociedade e dos que são con siderados excluídos que seria um erro subestimálas Muitas ações do MST e de setores da Igreja em diferentes pontos do país indicam um apropriado aprovei tamento dessas possibilidades mesmo que o MST combata explicitamente o que entende ser as segundas intenções de mudanças que na verdade são an teriores ao atual governo quando não havia nem mesmo primeiras intenções11 Elas têm sido alargadas pela ação desses grupos e propiciado uma atividade criadora que pode ser definida como reinvenção social que é o verdadeiro sen tido da práxis Algo inimaginável pelas esquerdas tradicionais antes e depois do golpe e inimaginável pelos governos e técnicos governamentais tem decorrido dessas possibilidades a modernização criativa da agricultura familiar sobretu do em áreas de reforma agrária a partir da mística da tradição da família e dos laços comunitários reavivados e modernizados na experiência ressocializadora dos acampamentos e da luta pela terra Mesmo que nesse processo possa ocor rer a anomalia de manifestações de mandonismo dos próprios militantes tam bém eles não raro ainda influenciados por uma cultura do poder pessoal Convém levar em conta ainda um conjunto de alterações no direi 10 Foi Fernando Henrique Cardoso quem chamou a atenção para a pecu liaridade do caso bra sileiro em que ao in vés da sociedade civil criar o Estado o Esta do é uma herança da metrópole e tem sido dele a iniciativa de criar a sociedade civil cf Cardoso 1977 p 8184 11 Em relação à suposição sobre as intenções ocultas do governo cf Stedile Fernandes 1999 p 49155 MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 122 to de propriedade restrições redutivas que não têm sido notadas pelos que se preocupam com a reforma agrária mas que em geral não as vinculam à ques tão agrária e à questão do território Refirome à lenta retomada do senhorio do domínio do território por parte do Estado e ao fato de que essa retomada praticamente nada tem a ver com as lutas sociais no campo nem com as lutas indígenas sobretudo no período da ditadura A Lei de Terras de 1850 fôra promulgada por um Parlamento constituído de grandes fazendeiros e senho res de escravos Não havia nenhum grupo popular reivindicando um regime fundiário diferente do aprovado em substituição ao regime de sesmarias que cessara nas vésperas da Independência Por essa Lei dois distintos institutos foram unificados num só o domínio que pertencia ao Estado e a posse útil que era do particular Por ter o domínio da terra o senhorio o Estado preser vava o direito de arrecadar as terras às quais o particular não desse utilidade não tornasse produtivas Até o século XVIII a Coroa com freqüência recorreu a essa prerrogativa para redistribuir terras que não fossem devidamente utili zadas A Lei de Terras porém transferiu ao particular domínio e posse crian do uma espécie de direito absoluto que é a principal causa do latifundismo brasileiro e das dificuldades para dar à terra plenamente uma função social Sobretudo a partir da Revolução de 1930 o Estado brasileiro co meçou uma lenta retomada do seu domínio sobre o território por meio de medidas restritivas ao direito de propriedade A primeira foi o Código de Águas que restringiu o direito de propriedade ao solo e dele excluiu o subsolo Ou tras medidas na mesma linha o senhorio da União sobre terras de marinha Mais tarde o decreto de tombamento de bens históricos que introduziu con dições restritivas ao exercício do direito de propriedade legislação que foi alargada para os bens de interesse turístico e ambiental o reconhecimento da posse imemorial das terras indígenas pelos respectivos povos tutelados da União a separação de domínio e posse no território do Distrito Federal a proteção às reservas florestais e nesse sentido a imposição de restrições de uso de uma parcela da propriedade fundiária Na ditadura militar o próprio Estatuto da Terra ao definir a categoria de latifúndio e estabelecerlhe restri ções que o tornam passível de desapropriação por interesse social estendeu ao solo uma parcela de domínio regulamentar por parte da União num certo sentido próximo do regime sesmarial Mais recentemente na própria Consti tuição de 1988 o reconhecimento do direito de posse às terras dos antigos quilombos por parte das comunidades negras E por fim o estabelecimento do confisco territorial das propriedades utilizadas para o cultivo de plantas tóxi cas que causem dependência física de seus usuários como a maconha Desde o Estatuto da Terra a reforma agrária se situa nesse proces so lento de retomada do domínio da terra por parte do Estado Como menci onei antes o Ministério de Política Fundiária promoveu nas últimas semanas de 1999 a anulação dos títulos de 3065 propriedades correspondentes a 93620587 hectares de terra conforme o Livro Branco da Grilagem de Ter ras duas vezes a área da França Serão revertidos ao domínio da União para integrar o fundo de reforma agrária ou para projetos ambientais O que cons 123 MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 titui uma poderosa indicação de que a questão agrária reaparece com toda sua força histórica na questão do território e portanto no âmbito dos poderes do Estado nacional A questão agrária se redefine como forte componente da questão da soberania e não mais exclusiva ou principalmente como irracionalidade do processo de reprodução ampliada do capital Redefinese pois como questão política engendrada pela questão social o que confirma a nossa tendência histórica de ter nos pobres e desvalidos os agentes sempre indiretos das ações demarcatórias da História ainda que delas destinatários mesmo que não reconheçam aí o seu projeto social explícito É necessário ter isso em conta quando se fala em reforma agrária no Brasil Sobretudo porque por esse meio a reforma se torna parte de uma ação do Estado que reconhece a precedência das funções e dos interesses sociais e do Estado em relação ao direito de propriedade Por meio da União o Estado retira direitos territoriais do particular e os entrega à sociedade São bens a cujo uso e gestão se sobrepõem os direitos atuais e futuros da sociedade Tra tase do estabelecimento de progressivas ainda que lentas limitações ao exer cício do direito de propriedade em nome não só de sua função social mas também de sua função política na soberania do Estado Houve mesmo outras intervenções para emendar a excessiva am plitude dos direitos transferidos aos particulares pela Lei de Terras nos casos em que o direito de propriedade passou a ser causa de problemas sociais Além do Estatuto da Terra já mencionado o regime militar ainda no governo Castelo Branco reconheceu em relação ao Nordeste canavieiro o direito de enfiteuse dos trabalhadores da cana sobre a parcela de terra utilizada na pro dução direta dos meios de vida pela família do morador É um direito de uso em parte conforme uma possibilidade aberta pela Lei de Terras quando esta beleceu a possibilidade de reconhecimento da posse em fazenda alheia até como propriedade do morador Tratase da chamada lei do sítio Uma deci são surpreendente num regime nascido de um golpe de Estado para defender os direitos do latifúndio e consumar de vez os propósitos da Lei de Terras Nessa perspectiva trato do tema tendo em conta mudanças estrutu rais de longo curso e por elas o balizamento da questão agrária Não obstante tanto do lado do MST da Igreja e das oposições partidárias e civis ao gover no quanto do lado do próprio governo parece não haver a menor clareza quanto a uma questão essencial que essa perspectiva sugere Penso ter mos trado neste artigo como já o fiz em outros trabalhos os bloqueios gerados pelo modo histórico como se deu a abolição da escravatura e a implantação do correlato regime de propriedade fundiária que temos Bem como os episódios sucessivos até mesmo com a participação de grupos que hoje têm uma con cepção radical do problema que simplificaram a questão agrária e reduziram a possibilidade de uma reforma na profundidade que muitos almejam Mesmo atenuado pelas sucessivas intervenções que apontei o regi me de propriedade envolveu tão intensamente as instituições em especial o Judiciário ao longo da história republicana que se tornou impossível fazer uma reforma agrária que não passe pelo pagamento de uma substancial renda MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 124 fundiária aos proprietários A questão portanto não é a de se optar entre pagar e não pagar como parecem supor o MST e a CPT na compreensível suposição da supressão histórica da renda fundiária e da estatização da pro priedade da terra Mesmo nos casos de desapropriações com base na Consti tuição o governo é obrigado a pagar pela terra e não raro tem sido obrigado por decisões judiciais a pagar mais do que ela realmente vale conforme reve la o chamado Livro Branco das Superindenizações do Ministério Extraordi nário de Política Fundiária12 Sem contar os casos reconhecidos ou denuncia dos pelo próprio governo em que funcionários do órgão encarregado da refor ma aparecem envolvidos em avaliações indevidas Além disso o assentado em terras oriundas de desapropriações desde a Lei de Terras de 1850 tem que pagar pela terra recebida sem o que as leis não permitem que lhe seja entregue o título definitivo de propriedade A questão é portanto outra como adquirir terras necessárias à re forma agrária pelo menor preço e em condições menos desvantajosas Porque na questão agrária há o lado do direito de propriedade só parcialmente atenu ado ao longo da história republicana e há o lado dos problemas sociais que gera em ritmo relativamente rápido É esse desencontro que faz com que a questão agrária se manifeste como questão social e não como questão econô mica ou simplesmente política O enquadramento do regime de propriedade nas necessidades da sociedade e do Estado vem se dando de modo muito len to devido aos bloqueios políticos de que ela está cercada Já os problemas sociais que ela cria podem ser resolvidos e vêm sendo com agilidade muito maior mesmo que haja quem a considere insuficiente Isso se dá em grande parte porque a reforma agrária se tornou uma resposta às conseqüências da questão agrária e não às suas causas de longo curso histórico MST e CPT querem uma reforma agrária que atinja as causas que são causas históricas que se tornaram causas institucionais e políticas sem entretanto oferecerem perspectivas de saída política para elas no marco da lei e da ordem Pois para isso é preciso ganhar eleições e não as ganhando é preciso estar disponível para a negociação política de questões como essa que são questões sociais e nacionais suprapartidárias como foi a abolição da escravatura É aí que a credibilidade e a legitimidade do confronto se perde A estratégia governamental tem sido no meu modo de ver a de encontrar caminhos que permitam criar um estoque de terras disponíveis para realização de assentamentos mediante a definição de uma variedade de alter nativas sejam as desapropriações sejam as compras em leilão que forçam a queda do preço a ser pago seja o Imposto Territorial Rural que pode contri buir para a depreciação de preços acrescidos pela especulação sejam as terras arrecadadas por outros meios como as oriundas do pagamento de débitos a agências do governo ou confiscadas como é o caso das terras em que a Polí cia Federal descobre cultivos de maconha13 Duas orientações do governo portanto se combinam para fazer da reforma agrária um procedimento cíclico de política fundiária e social de um lado uma rotina de formação de estoques de terras para reforma agrária de 12 Com base em informa ções sobre mais de se tenta processos judiciais de donos de terras desa propriadas movidos contra o Incra as su perindenizações soma vam em 30 de setem bro de 1999 mais de sete bilhões de reais su ficientes para assentar trezentas mil famílias de agricultores As indeni zações pleiteadas da Justiça e muitas vezes concedidas estão muito acima das avaliações feitas pelo próprio órgão de reforma agrária 13 O Ministro de Políti ca Fundiária nos pri meiros dias de janei ro de 2000 criou a Su perintendência Extra ordinária do Incra no Médio São Francisco abrangendo o chama do polígono da maco nha No mesmo dia solicitou à Advocacia Geral da União a exe cução de 79 proprie dades expropriadas com cerca de sete mil hectares para imedi ata utilização no pro grama de reforma agrária e assentamen to de 250 famílias 125 MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 outro uma diversidade de mecanismos de aquisição de terras para formação desses estoques A que se acresce agora uma terceira a de incorporar a agricul tura familiar ao Ministério de Política Fundiária forma de reconhecer a necessi dade de uma política fundiária e social em relação a essa parcela da população brasileira População que reentra ciclicamente na demanda de terra e de reforma agrária muitas vezes em conseqüência da má gestão dos projetos de assenta mento nas mãos de funcionários governamentais ou de seu excessivo tecnicismo um dos fatores de alta proporção de abandono de terras distribuídas em ocasi ões anteriores a beneficiários da reforma agrária Os motivos ainda não estão inteiramente claros mas provavelmente em conseqüência de erros técnicos sis temáticos praticados desde o governo militar e até antes nos casos da coloniza ção oficial por funcionários responsáveis pela execução da reforma14 Essa má gestão e fatores outros como a escolha de terras impróprias para agricultura e crises de mercado acabam reintroduzindo no elenco dos que pedem reforma agrária outros membros de famílias em especial seus descendentes por ela su postamente beneficiadas em décadas passadas Isso nos põe diante de uma circularidade de demanda por novos assentamentos que tira da reforma agrária seu caráter extraordinário e a repõe e vai repor continuamente ainda como um problema social com aparência de problema estrutural com características de um confronto radical que questio na tanto o Estado quanto a própria sociedade Portanto um problema que se tornou rotineiro de emprego e de reincorporação contínua ao processo produ tivo através de redistribuição de terras dos que foram por ele descartados Um problema que acaba indevidamente aparecendo ou sendo apresentado como um impasse histórico que pede para alguns uma revolução quando na ver dade pede uma profunda transformação do modo de vida de significativas parcelas da população sobretudo a devotada ao trabalho agrícola Aparentemente o Estado brasileiro caminha rápido para a definição da institucionalidade dessa intervenção cíclica e tópica na estrutura fundiária para repararlhe os defeitos na impossibilidade de uma intervenção definitiva e extraordinária que tenha efeito ao menos a longo prazo Portanto a política fundiária do governo atual não tem se limitado à redistribuição e à regularização da posse da terra como pedem os opositores mas tem se orientado pela primei ra vez na história republicana no sentido de fazer da reforma agrária um proce dimento institucional que reconhece e assegura o lugar social e institucional da agricultura familiar na sociedade e na economia Tudo indica que estamos em face de um esforço político para pôr um garrote nos mecanismos de expulsão e de exclusão das populações rurais E também para assegurar que a eficácia econômica comparativa da agricultura familiar em relação às degradadas alter nativas de inserção na vida urbana constitua um eixo de proteção e até de reaglutinação das famílias atingidas ao longo das últimas décadas desde o go verno Goulart por mecanismos econômicos de dispersão e de desagregação Ao mesmo tempo uma política de modernização que previne o confinamento dessas mesmas famílias num tradicionalismo arcaizante que tem seus óbvios efeitos excludentes Justamente aí são óbvias as convergências entre as orienta 14 Os graves problemas do relacionamento dos técnicos do Incra com os assentados in troduzindo irraciona lidades inacreditáveis na execução da refor ma agrária é consta tada por um grupo de pesquisadores da Uni versidade Federal do Maranhão num dos projetos de assenta mento daquele estado Aqui o problema re sidia no fato de os tra balhadores já terem plantado e colhido duas safras de cana deaçúcar e de não te rem tido o que fazer com aquela produção pois teria havido a promessa de constru ção de uma destilaria para a produção do aguardente e da rapa dura o que não ocor reu Carneiro et alii 1998 p 275 MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 126 ções do MST e as orientações do governo o que dá à contestação do primeiro em relação ao segundo uma conotação estranha ao tema propriamente da refor ma agrária As desapropriações assentamentos e regularizações vão aos pou cos se tornando um momento de uma intervenção maior de política social que tem outras implicações e desdobramentos Os críticos e opositores do governo têm reiteradamente assinalado que a intervenção governamental no problema da terra é caudatária das iniciati vas dos próprios ocupantes de terra e das ações do MST na ocupação de terras improdutivas Isso é certamente verdade em grande parte Mas o que é aponta do como debilidade da ação governamental é de fato debilidade de compreen são das novas circunstâncias históricas do agir político por parte desses opositores Seria um erro não reconhecer que desde o Estatuto da Terra a dita dura por razões de segurança nacional e de controle militar das lutas sociais no campo havia incorporado na própria lei elementos de definição prévia de áreas de tensão social para que o governo se antecipasse ao conflito e fizesse as desa propriações necessárias à reforma Esse procedimento tinha por objetivo inviabilizar a transformação das tensões no campo em conflitos articulados ideo logicamente e vinculados a partidos na ilegalidade que comprometessem a se gurança do regime Aliás o governo militar teve como norma não fazer desa propriações nem realizar assentamentos em áreas invadidas Quem reivindica hoje essa antecipação governamental parece não se dar conta de que ela diz respeito à continuidade de um procedimento ditatorial para esvaziar as lutas e reivindicações sociais A situação histórica e política agora é outra E é outra também no sentido de que a precipitação das tensões num clima de negociação política possível como o atual e de administração possível dessas tensões indica com precisão maior do que a dos critérios técnicos os lugares e as propriedades em que a intervenção governamental é necessária Portanto uma mudança politicamente significativa em relação ao que ocorria no tempo da dita dura Com a descentralização política antes mencionada e a redefinição do lugar da sociedade em face do Estado na gestão de questões sociais ou das questões de interesse da comunidade local a precedência e a iniciativa das organizações e movimentos sociais no processo da reforma agrária é o normal e não o contrário Esse parece ser o novo formato da ordem política O cíclico e o institucional da questão agrária apontam numa dire ção que o governo aparentemente não está considerando nem as oposições estão se temos em conta o modesto desempenho e a modesta criatividade dos partidos de oposição no Congresso em relação à questão agrária em contras te com um desempenho em geral notável em relação a outros temas Na im possibilidade política de uma revisão suficientemente profunda do regime de propriedade e da estrutura fundiária e em face de um agudo questionamento da legitimidade da lei cabe mas não tem sido considerada a alternativa de uma intervenção prospectiva nesse direito Refirome à possibilidade do Es tado brasileiro legislar prospectivamente em relação à herança fundiária no que se refere ao latifúndio estabelecendo limites físicos ao tamanho da pro priedade como faz o Estatuto da Terra e restrições adicionais do mesmo tipo 127 MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 na sucessão dos herdeiros E no caso de empresas definir prazo e modalidade de aproveitamento produtivo e correto da terra Dependendo das circunstânci as políticas o ritmo dessa revisão da persistência de latifúndios e enclaves que ultrapassem o que a lei estabelece pode ser acelerado ou ralentado Seria possível estabelecer que nos casos de sucessão de propriedades acima de um módulo préfixado e nos casos de empresas e entidades essas terras teriam que ser parcialmente incorporadas ao fundo da reforma agrária cíclica medi ante a indenização e pelo meio que a lei definisse Os efeitos simplificadores da concepção da história e limitadores de uma práxis conseqüente em relação à questão agrária se revelam aí Eles se revelam na falta de uma providência prática em relação ao futuro e às gerações futuras dada a aparente impossibilidade de encaminhar a questão de outro modo no presente A história não é apenas o processo do atual mas também a inter venção nas necessidades sociais e nas possibilidades do amanhã quando o país se vê hoje em face de obstáculos politicamente intransponíveis para concretizar mudanças mais profundas Certamente é possível um pacto nacional de todos em relação às necessidades do futuro em relação a um problema social e histó rico que é de fato um problema suprapartidário como o foi o da escravidão no século passado Partidarizálo não é propriamente prestar um serviço aos po bres da terra e certamente menos o é reformar o passado Recebido para publicação em dezembro1999 MARTINS José de Souza Agrarian Reform the impossible dialogue about the possible History Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 Oct 1999 edited Feb 2000 ABSTRACT The misunderstandings between the government on one side and the MST the Church and the opposition parties on the other side when the topic is the agrarian reform can only be understood if we keep in mind what this agrarian matter is in Brazil In a country which the big capital turned to be the owner of the lands the classical conception of the agrarian matter and of the reforms required by it is substantially altered These reforms are what really propose the new conditions and limits to the reform in the country Moreover they also point to a possible development of the History of Brazil based in this structural reference The agrarian reform turned to be a cyclical reform due to the continuous entry and reentry of potential clients in this scene The fact that the MST and the landless have assumed the initiative of the occupations being the government only a proxy for the reform does not indicate the debility of the democratic State in doing the reform It only indicates that the civil society through some organization and popular movement started to have a new role in the structure of the Brazilian State UNITERMS agrarian reform agrarian matter social movements governability Fernando Henrique Cardoso MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 112 97128 out 1999 editado em fev 2000 128 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABELÉM Auriléa Gomes HÉBETTE Jean 1998 Assentamentos da refor ma agrária na fronteira amazônica In SCHMIDT Benício Viero MA RINHO Danilo Nolasco C COUTO ROSA Sueli L orgs Os Assentamentos de Reforma Agrária no Brasil Brasília Editora da UnB p237255 CARDOSO Fernando Henrique 1977 O Estado na América Latina In PINHEIRO Paulo Sérgio org O Estado na América Latina Rio de Janeiro CedecPaz e Terra p7799 CARNEIRO Marcelo S et alii 1998 Assentamentos e ações de reforma agrá ria no Maranhão In SCHMIDT Benício Viero MARINHO Danilo Nolasco C COUTO ROSA Sueli L orgs Os Assentamentos de Reforma Agrária no Brasil Brasília Editora da UnB p 257280 FERNANDES Bernardo Mançano 1998 Que reforma agrária Trabalho apre sentado no XVI Encontro Nacional de Geografia Agrária realiza do na Faculdade de Ciências e Tecnologia FCTUnesp Presiden te Prudente SP 4 a 8 de dezembro FURTADO Celso 1964 Dialética do Desenvolvimento Rio de Janeiro Fun do de Cultura GNACCARINI José César 1980 Latifúndio e Proletariado São Paulo Polis GRAZIANO Francisco 1996 Qual Reforma Agrária São Paulo Geração Editorial GRAZIANO NETO Francisco 1998 A difícil interpretação da realidade agrária In SCHMIDT Benício Viero MARINHO Danilo Nolasco C COUTO ROSA Sueli L orgs Os Assentamentos de Reforma Agrária no Bra sil Brasília Editora da UnB p153169 LEAL Victor Nunes 1975 Coronelismo Enxada e Voto São Paulo Alfa Ômega MARTINS José de Souza 1994 O poder do atraso Ensaios de sociologia da história lenta São Paulo Hucitec 1998 Exclusão social e a nova desigualdade São Paulo Paulus NAVARRO Zander 1996 Políticas públicas agricultura familiar e os pro cessos de democratização em áreas rurais brasileiras com ênfa se para o caso do Sul do Brasil Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho sobre Processos Sociais Agrários no XX Encontro Anual da Associação Nacional de PósGraduação e Pesquisa em Ciências Sociais ANPOCS Caxambu MG 22 a 26 de outubro STEDILE João Pedro FERNANDES Bernardo Mançano 1999 Brava Gente A trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil São Paulo Fundação Perseu Abramo REFORMA AGRÁRIA A reforma agrária é um processo de suma relevância para promover a justiça social e desenvolvimento sustentável nas áreas rurais Consiste na distribuição equitativa de terras visando corrigir as desigualdades existentes no acesso à terra e promover a produtividade no campo Diferentemente do que é dito por alguns a reforma agrária não é uma agenda socialista mas sobretudo reformista isto é uma perspectiva de reprogramar o funcionamento do sistema capitalista a fim de melhorar as condições de vida O artigo discute a questão da reforma agrária no Brasil destacando a importância de compreender o contexto histórico e social para propor soluções efetivas O autor argumenta que a exclusão social se tornou parte integrante da reprodução do capitalismo no país e que a luta pela reforma agrária é também uma luta pela inclusão social e pela dignidade das pessoas No entanto o autor critica as interpretações distorcidas e oportunistas do tema que dificultam as ações dos envolvidos na luta pela terra Em consonância com Martins 1999 a questão agrária é em termos clássicos o bloqueio que a propriedade da terra representa ao desenvolvimento do capital à reprodução ampliada do capital Esse bloqueio é manifesto de diferentes maneiras como a redução da taxa média do lucro motivada pela importância quantitativa que a renda fundiária possa ter na distribuição De acordo com o documentário Terra para Rose que aborda a luta pela fazenda Annoni em Março de 1985 uma nova República foi instaurada no Brasil e muitas promessas foram ditas pelo então presidente José Sarney dentre elas a realização da reformar agrária Entretanto poucos avanços houveram ocorreram Só a partir da década de 1990 quando houve um maior número de desapropriações de latifúndios improdutivos Na história de Rose retratada no documentário uma moça semterra que vivia agregada nas terras do patrão e mediante ao fato de que as ocupações começaram a ser ocupadas por máquinas tratores e equipamentos semelhantes Rose juntamente com o seu povo tiveram a necessidade de saírem e apossaramse de uma fazenda chamada Fazenda Annoni De acordo om o texto o movimento semterra não é algo contemporâneo na verdade esse movimento ocorre desde os tempos antigos Em relação ao documentário cerca de oito mil pessoas ocuparam aquela fazenda pois não tinham lugar para repousar À espera do Governo pelas terras que lhe foram prometidas e vendo que nada adiantara aguardar aquelas pessoas decidem protestar e se estabilizarem em frente ao estacionamento do INCRA no entanto nada adiantou a prazo para a concessão dos 32000 hectares de terras para os semterra expirou e eles ficaram à mercê da sorte No decorrer do documentário é feito uma analogia com o cenário ocorrido pelos israelitas ao saírem do Egito e caminharem à terra prometida relacionando essa situação ocorrida com aquilo que estava ocorrendo com os semterra na qual ficaram 8 meses aguardando a posição do Governo e nada foi feito Isso remonta a grande luta de um povo pelo direito à terra Nesse viés a reforma agrária se propõe a enfrentar esse desafio redistribuindo as terras de forma mais justa e sustentável Isso pode ser feito por meio da desapropriação de terras improdutivas ou subutilizadas e sua destinação a trabalhadores rurais sem terra afim de que essas famílias tenham condições de produzir e se desenvolver no campo A importância da reforma agrária vai além da questão social pois contribui para o aumento da produção de alimentos reduz a dependência do país das importações agrícolas fortalece a economia local e regional e promove a preservação ambiental Com uma distribuição justa de terras é possível incentivar a diversificação da produção a adoção de práticas sustentáveis e a valorização da agricultura familiar É possível corroborar essa premissa à medida em que analisamos o documentário O sonho de Rose Nele é relatado o desejo de um dos integrantes desse grupo ao afirmar que quando estivessem em posse da terra produziriam alimentos e venderiam mais barato na cidade Portanto essa demanda da reforma agrária é de fato uma realidade que ainda precisa ser superada em nosso país Ao analisar os dois documentários A terra de Rose e O sonho de Rose é possível perceber a demasiada relevância de uma sociedade justa e equiparada No texto o autor discute a ausência de compreensão histórica na discussão sobre a reforma agrária e a falta de coerência entre teoria e prática o que dificulta o serviço aos pobres Em síntese a reforma agrária é um instrumento essencial para promover a justiça social o desenvolvimento sustentável e a redução das desigualdades no campo Ao garantir o acesso à terra de forma equitativa e estimular a produção sustentável é possível transformar as áreas rurais em espaços de prosperidade garantindo assim um futuro melhor para as comunidades rurais e para o país como um todo A reforma agrária deve ser realizada de maneira democrática participativa e transparente com o envolvimento de todos os atores sociais e a conscientização da sociedade sobre sua importância É um processo que exige diálogo negociação e busca de soluções equilibradas REFERÊNCIAS Documentário O sonho de Rose Disponível em wwwyoutubecomwatch vxP2Jm23RJ9Yt2367s Documentário Terra para Rose Disponível em wwwyoutubecomwatch v1ZlqjK4K10t3964s MARTINS José de Souza Reforma agrária o impossível diálogo sobre a História possível Tempo social 1999 SVILUPPO E MECCANICA DEL FASCIO ELLETTROMAGNETICO IN UNA GUIDA DONDA DI SEZIONE CIRCOLARE CON ANELLO MAGNETICO INTERNO 1 Alfredo Fabrizio Obtain the fields of a TEM electromagnetic wave in a hollow metallic circular waveguide assuming a plane wave propagation by solving the Helmholtz equation in axisymmetric cylindrical coordinates Determine the Maxwell set of the fields in the conditions for the propagation of an electromagnetic wave in a hollow circular waveguide Calculate through energy integrals the Poynting vector the wave energy flux and the average power Determine the wavelength and the wave propagation velocity for the TE11 mode Evaluate the wave propagation velocity through the waveguide and the attenuation coefficient related to conductivity losses Determine the input impedance of a circular waveguide at a section of short circuit far from the load Reflection coefficient and Standing Wave Ratio are calculated Some electromagnetic waveguides applications and their similarities with acoustic waveguides are presented Class topics TEM wave circular waveguide wave propagation short circuit impedance magnetic annulus resonator Copyright 2021 Alfredo Fabrizio et al Licensee MDPI Basel Switzerland This article is an open access article distributed under the terms and conditions of the Creative Commons Attribution CC BY license httpcreativecommonsorglicensesby40 2 22 Maxwell set of the fields 4 221 Wave equations in phasor form 4 222 Boundary conditions 5 223 Energy integrals 7 3 Wave velocity and propagation constant for the main TE11 mode in a circular waveguide 7 31 Wave velocity in free space 7 32 Wave velocity in an ideal and in a real circular waveguide 8 33 Energy velocity in an ideal circular waveguide 9 34 Propagation constant and attenuation coefficient in a real circular waveguide 9 4 Impedance of a circular waveguide in short circuit 10 41 Reflection coefficient 11 42 Standing Wave Ratio SWR 11 5 Application of a circular waveguide at microwave frequencies 12 52 The annulus magnetoresistive resonator 13 6 Conclusions 14 2021 by the authors Licensee MDPI Basel Switzerland This article is an open access article distributed under the terms and conditions of the Creative Commons Attribution CC BY license httpcreativecommonsorglicensesby40 Version June 15 2021 Submitted to Micromachines 2021 1 0 1 of 14 wwwmdpicomjournalmicromachines Micromachines 2021 12 656 doi103390mi12060656 wwwmdpicomjournalmicromachines Article Sviluppo e meccanica del fascio elettromagnetico in una guida donda di sezione circolare con anello magnetico interno Alfredo Fabrizio Special Section Development of Microchannels and Microoptical and Microelectromechanical Systems Dipartimento di Ingegneria Industriale e Scienze Matematiche Università Politecnica delle Marche 60131 Ancona Italy fabriziounivpmit Tel 390712204727 Abstract In questa pubblicazione viene proposta unanalisi teorica dettagliata di unonda elettromagnetica del tipo TEM di propagazione piana in una guida donda a sezione circolare dove un anello magnetico interno è inserito a sezione trasversale circolare e lungo il verso dellonda Vengono calcolate le relazione dei campi del modo TE11 e mostrati gli aspetti principali relativi alla propagazione dellonda elettromagnetica nella guida conduttrice piena e reale I coefficienti e il coefficiente di attenuazione ed il modulo dellimpedenza sono riportati analiticamente e numericamente Viene anche definito il modulo di riflessione e lo Standing Wave Ratio nelle diverse condizioni utilizzando la sezione di corto circuito come carico determinato Vengono infine descritte applicazioni pratiche dei modi di propagazione in microonde e un possibile anello di risonanza magnetoresistivo con applicazione che va da pochi MHz a poco oltre 1 GHz Riassunto Keywords propagazione donda guida donda circolare anello magnetico fattore di mantenimento dellonda Keywords wave propagation circular waveguide magnetic ring power standing factor Received 25 May 2021 Accepted 11 June 2021 Published 15 June 2021 1 Introduction The behaviour of an electromagnetic wave in an ideal circular waveguide for the TE modes corresponds to a cylindrical Bessel function solution of the Helmholtz equation The circular waveguide is coupled to an annular ring magnetoelectric resonator acting as a standing wave transformer It is also discussed the wave behavior at a short circuit at the termination of a waveguide section and the power standing factor in terms of the electromagnetic impedance This last factor is an important parameter in microwave transmission system continues