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Apresentação

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Apresentação

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22 1 A Matemática no período 18501930 O que seria da verdade de nosso saber da existência e o progresso da ciência se não existisse ao menos na matemática uma verdade sólida David Hilbert 23 11 Considerações iniciais Este capítulo tratará das questões que levaram alguns filósofos e matemáticos a refletirem sobre os fundamentos da matemática Veremos então que o debate sobre os fundamentos culmina no Teorema de Gödel Este é o contexto histórico do qual emergiu o teorema da incompletude Entender este contexto significa compreender que a interação que o saber provoca entre sujeitos e objeto é mediada pelas relações históricas sociais e culturais presentes Neste sentido é necessário especificar uma referência metodológica para compreender em linhas gerais a dinâmica das comunidades científicas enquanto organismos sociais formados em função de sua atividade a ciência Esperamos que esta referência nos mostre os diversos elementos sujeitos às variações provocadas pela teia histórica da matemática o estilo cognitivo geral da matemática a estrutura de associações relações usos analogias e implicações metafísicas atribuídas a esta ciência os significados atribuídos nos cálculos e manipulações simbólicas o rigor e o tipo de racionalidade que estão implícitos ao provar uma tese e a negociação da lógica utilizada17 Recorremos então à historiografia de Fleck enredada principalmente pela obra Entstehung und Entwicklung einer wissenschaftlichen Tatsache Gênese e Desenvolvimento do Fato Científico 193518 Um dos seus conceitos centrais é o pensamento coletivo Para Fleck um pensamento coletivo é um grupo de indivíduos que compartilham conhecimentos e práticas ou seja é Uma comunidade de pessoas trocando idéias mutuamente ou mantendo interação intelectual também veremos por implicação que esta também provê o suporte especial para o desenvolvimento histórico de qualquer campo do pensamento bem como do nível de cultura e conhecimento dados FLECK 1979 p 39 A idéia de pensamento coletivo de Fleck é melhor compreendida pelo segundo conceito fundamental o estilo de pensamento19 17 Estas variações foram descritas assim por David Bloor 1991 18 FLECK 1979 19 Fleck referese ao conceito de estilo de pensamento várias vezes e em certos pontos características novas são acrescidas em relação ao conceito inicial tornandoo cada vez mais complexo Para uma discussão sobre o assunto cf PARREIRAS 2006 24 Nós podemos portanto definir estilo de pensamento como o perceber orientado com correspondência mental e assimilação factual do que foi percebido Ele é constituído por características comuns nos problemas de interesse do pensamento coletivo pelos julgamentos que o pensamento coletivo considera evidente e pelos métodos que ele aplica como meios de cognição O estilo de pensamento pode também ser acompanhado por um estilo técnico e literário característico do sistema de conhecimento dado FLECK 1979 p 130 O estilo de pensamento não é uma adoção voluntária mas uma imposição conseqüente do próprio processo de socialização construído pelo pensamento coletivo O sujeito interage com o objeto através de relações mediadas pelo estilo de pensamento O perceber direcionado que Fleck se refere significa direcionar o modo de pensar ver agir se comunicar Este processo tende à manutenção de opiniões No entanto o estilo de pensamento tem caráter transitório Os fatos científicos são contextualizados e as verdades são contaminadas por ele O certo e o errado tornamse conceitos relativos pois dependem de condições históricosociais A transição de estilos de pensamento é contínua sem rupturas evidenciando o caráter evolucionário do processo Estes conceitos iniciais possibilitamnos falar do processo histórico da matemática utilizando uma linguagem adequada à forma dada20 No entanto a partir deste ponto em diante utilizaremos a terminologia comunidade científica21 em lugar de pensamento coletivo pelo fato da primeira ser mais comum na literatura de história da ciência do que a segunda Em outras palavras para nossos fins definimos comunidade científica como um grupo de indivíduos que compartilham um estilo de pensamento 22 20 Algumas questões adicionais de Fleck como a profusão do conhecimento entre pensamentos coletivos serão retomadas no capítulo três 21 A terminologia comunidade científica teve maior impacto com a historiografia de Kuhn 1977 O conceito central desta historiografia no entanto é o de paradigma realizações científicas universalmente reconhecidas que durante algum tempo fornecem problemas e soluções modeladoras para uma comunidade de praticantes KUHN 1977 p 58 O paradigma de Kuhn equivale até certo ponto ao estilo de pensamento de Fleck Todavia o caráter evolucionista proposto por Fleck na transição de estilos de pensamento é substituído por Kuhn pela revolução científica Kuhn nos ensina que a revolução científica é uma ruptura de paradigmas de uma comunidade científica de tal forma que estes paradigmas sejam incomensuráveis Cientistas baseados em paradigmas incomensuráveis enxergam mundos completamente distintos A incomensurabilidade é um dos conceitos mais polêmicos do trabalho de Kuhn sobre o qual retomaremos na seção 45 e rendeu críticas réplicas e reformulações KUHN 2006b Para nossos propósitos ele limita a compreensão das metáforas e modelos como meios de comunicação entre comunidades ponto fundamental nesse trabalho 22 O fato de usarmos a terminologia comunidade científica no lugar de pensamento coletivo não deve ser remetida de forma alguma à historiografia de Kuhn Tampouco devese interpretar que os dois conceitos 25 Mostraremos neste capítulo portanto como um problema próprio de uma comunidade científica a matemática conduziu a ascensão de outra comunidade a de filósofos e lógicos da matemática Estilos de pensamento comuns às duas comunidades deram ao campo matemático os alicerces da teoria de conjuntos e estes por sua vez o ergueram através de uma construção axiomática No entanto a crise decorrente dos paradoxos na teoriabase de conjuntos implicou um movimento dentro da comunidade dos lógicos matemáticos provocando a cisão desta comunidade em diversas correntes filosóficas Finalmente o debate se orientou para a necessidade de formalização completa da matemática e busca das provas de consistência dos sistemas formais Neste ponto acreditamos que a importância do Teorema de Gödel para o círculo lógicomatemático será visível dentro de todo o contexto citado Como foi dito Gödel lançou uma pedra que caiu numa piscina e provocou ondas movimento que simboliza o impacto do teorema da incompletude Trataremos neste capítulo portanto das condições iniciais da piscina antes de Gödel lançar a pedra 12 A queda da supremacia de Euclides A partir da segunda metade do século XIX uma série de mudanças drásticas no pensamento científico interferiu profundamente na história do conhecimento As principais concepções que caracterizavam a ciência desde a antiguidade helênica essencialismo certeza determinismo verdade seriam colocados em xeque por novas teorias que impetraram o pensamento ocidental A teoria da evolução das espécies a relatividade a termodinâmica e a psicanálise são bons exemplos de mudanças estruturais do pensamento filosófico e científico Com isso o sonho iluminista da razão universal que levou à a busca da unidade de diversos campos como a física e a matemática se viu profundamente abalado Neste dados por seus respectivos proponentes são completamente equivalentes Cremos que nossa opção não deve prejudicar o entendimento de nossa linha historiográfica porque a terminologia comunidade científica não é exclusiva de Kuhn apenas tornouse mais comum devido ao impacto da obra deste autor Portanto o que fazemos aqui é utilizar um termo mais freqüente da história da ciência com um significado dado pela historiografia de Fleck Para um estudo comparativo das duas historiografias confira em CONDÉ 2005 26 ambiente cultural ocorreram mutações23 de estilos de pensamento importantes na matemática O cuidado com o rigor a consolidação da linguagem simbólica a axiomatização e aritmetização das teorias e a relação entre lógica e conjuntos foram pontos importantes mutuamente influentes que costuraram a rede matemática do século XX Até a Idade Moderna a matemática era sustentada epistemologicamente pelo tripé geometriaintuiçãovariável24 mas esta base foi gradativamente substituída por conjuntosaxiomáticaaritmética25 A mudança não foi fácil e envolveu pequenas e grandes crises epistemológicas Afinal o poder da geometria e da intuição era tão forte para os gregos que estes elementos se mantiveram como base para o desenvolvimento das teorias matemáticas até o século XVIII A geometria era o melhor exemplo de rigor e sobre ela os pilares do cálculo e da álgebra seriam erguidos com solidez No entanto alguns eventos tais como a crise do cálculo e a criação de geometrias não euclidianas contribuíram para a desconstrução do altar sobre o qual a geometria e a intuição reinavam26 Até os eventos do século XIX não se usava por exemplo a expressão geometria euclidiana tendo em vista que aquela geometria construída pelos gregos era o único modelo teórico de representação visual do espaço apesar dos esforços renascentistas em criar bases para a geometria das perspectivas A geometria de Euclides era uma síntese do pensamento científico grego A matemática grega é assim descrita por Bertrand Russell A Matemática é um estudo que quando iniciado de suas partes mais familiares pode ser levado a efeito em duas direções opostas A mais comum é construtiva no sentido da complexidade gradativamente crescente A 23 As mutações nos estilos de pensamento são transformações ocorridas gradualmente por força da dificuldade em resolver certos problemas produzidos pelas teorias das comunidades científicas Daremos mais atenção a este conceito na seção 42 24 A idéia da variável colocada aqui diz respeito ao momento da história da matemática em que o uso dos símbolos tornouse indispensável em quase todos os campos Nesta ocasião as grandezas não assumiram somente o valor de constantes como ocorria predominantemente na matemática grega O simbolismo adotado permitiu também declarar letras como variáveis e este processo foi fundamental para o desenvolvimento da álgebra do cálculo e da física 25 Este é um ponto re grande relevância histórica pois as raízes das concepções sobre os fundamentos da matemática de Gödel e seus contemporâneos estão neste tripé 26 Houve uma ruptura quanto ao lugar que a geometria ocupava no conjunto de pressupostos epistemológicos da matemática porém a geometria dos gregos não foi abandonada em razão dos eventos citados o que vem confirmar o caráter evolucionista proposto por Fleck 27 outra direção que é menos familiar avança pela análise para a abstração e a simplicidade lógica sempre maiores em vez de indagar o que pode ser definido e deduzido daquilo que se admita para começar indagase que mais idéias e princípios gerais podem ser encontrados em função dos quais o que fora o ponto de partida possa ser definido ou deduzido Os geômetras gregos antigos ao passarem das regras de agrimensura empíricas egípcias para as proposições gerais pelas quais se constatou estarem aquelas regras justificadas estavam praticando a Filosofia da Matemática RUSSELL 1966 p 9 A busca grega pelos elementos é comprovada pelas filosofias de Tales e Pitágoras e em obras como Os Elementos de Euclides e os Elementos de Cônicas de Apolônio com extensões fora do círculo matemático no Corpus Hippocraticum e em Da Arquitetura do romano Vitrúvio Em sua obra27 Euclides inicia a construção da geometria com uma lista de 23 definições seguida com uma lista de 5 postulados e 5 axiomas28 Os postulados são afirmações indubitáveis no que tange à intuição e à relação com o mundo físico A formulação dos postulados sugere uma aplicação imediata no desenho com régua e compasso como podem ser observados a seguir i traçar uma reta de qualquer ponto a qualquer ponto ii prolongar uma reta finita continuamente em uma linha reta iii descrever um círculo com centro e raio dados iv que todos os ângulos retos são iguais e v que se uma reta cortando duas retas faz os ângulos interiores de um mesmo lado menores que dois ângulos retos as retas se prolongadas indefinidamente se encontram desse lado em que os ângulos são menores que dois ângulos retos Os teoremas são afirmações que devem ser provadas por meio da combinação lógica de dois ou mais postulados Cada teorema provado é admitido como uma 27 Os Elementos consistem em 13 livros dos quais os de números I a VI versam sobre geometria plana VII a XIX sobre teoria de números X sobre incomensuráveis e XI a XIII sobre geometria no espaço Ao contrário do que se costuma pregar a obra de Euclides não é uma reunião do conhecimento matemático da época mas um compêndio introdutório que exclui diversos estudos mais avançados como por exemplo o estudo de cônicas HEATH 1956 28 Os dois termos postulado e axioma são sinônimos na matemática moderna mas para os gregos postulado era uma evidência própria de uma teoria específica e axioma uma evidência para qualquer teoria matemática 28 verdade29 que combinada com os postulados gera novos teoremas Assim o método axiomático desenvolvido pelos gregos funciona como uma máquina produtora de teoremas Assim como toda obra de impacto na história das ciências os elogios aos Elementos dividiram espaço com críticas principalmente quanto ao caráter intuitivo de seus conceitos fundamentais Mas a maior polêmica da obra de Euclides recai sobre o quinto postulado conhecido como postulado das paralelas30 Durante muito tempo foi levantada a hipótese de que a afirmativa postulada deveria ser um teorema De fato algumas questões são relevantes para tal desconfiança Em primeiro lugar a asserção como enunciada por Euclides parece mesmo com o enunciado de um teorema31 Em segundo lugar partindo da exigência de que o enunciado de um postulado deve corresponder a sua aplicação no mundo físico como é possível através da experiência sensível estender duas retas até se encontrarem se a soma dos ângulos que formarem com a transversal for muito próxima de dois retos A extensão indefinida como sugere o postulado é muito superficial32 29 Platão argumentava que conhecemos verdades da geometria que não aprendemos nem através da educação e nem da experiência Este conhecimento é um exemplo das verdades imutáveis Assim deve existir um reino da verdade absoluta e eterna a fonte e a base do nosso conhecimento Esta idéia predominou no estilo de pensamento matemático ocidental por mais de dois mil anos 30 A mesma geometria euclidiana pode ser construída se trocarmos o quinto postulado de Euclides citado acima por um equivalente por um ponto fora de uma reta passa uma e somente uma reta paralela à reta dada É possível mostrar que as duas construções são equivalentes Para tanto basta provar que os 5 postulados originais provam o postulado equivalente e que reciprocamente os quatro primeiros juntos com o postulado equivalente provam o quinto postulado original Há ainda outras formas equivalentes ao quinto postulado mas a versão que perdura até hoje nos manuais didáticos é esta enunciada pelo matemático e físico escocês John Playfair 17481819 31 É curioso observarmos que ao longo de Os Elementos Euclides usou pela primeira vez o quinto postulado como hipótese somente na demonstração do 29º teorema do livro I Antes deste Euclides ainda demonstrou um teorema que é exatamente a recíproca do quinto postulado usando somente os quatro primeiros postulados Esta observação motivou alguns historiadores a conjeturar que o próprio Euclides não estaria totalmente convencido de que o quinto postulado não poderia ser provado com uso dos outros quatro postulados No entanto não há documento histórico que possa corroborar tal conjectura 32 Proclus 410485 aC criticou o quinto postulado apontando a superficialidade da idéia de uma reta se encontrando com outra quando prolongadas indefinidamente Como a definição de reta dada por Euclides não deixa claro que este postulado seja óbvio poderseia imaginar como exemplo uma hipérbole que se aproxima tanto quanto se queira de sua assíntota sem encostarse a ela As retas paralelas do quinto postulado poderiam ter este comportamento GREENBERG 1994 pp 119120 29 Após séculos de tentativas malogradas de demonstração do quinto postulado por meio dos outros quatro33 trabalhos realizados principalmente por Gauss Bolyai e Lobachevsky em meados do século XIX mostraram que o postulado das paralelas era independente dos demais ou seja o postulado das paralelas e a sua negação não podem ser demonstrados Esta conclusão permitiu a construção de dois sistemas axiomáticos que negam o postulado das paralelas de Euclides34 o que abriu caminhos antes desconhecidos pela comunidade catequizada com o modelo sacrossanto de Euclides A matemática parecia então livre para modificar postulados antes canonizados mas a resistência à ampliação do campo geométrico persistiu afinal a geometria de Euclides arrancaria do conhecimento humano duas crenças o primeiro que não seria mais a representação visual do espaço físico mas uma possível representação e o segundo que não seria também uma garantia de verdade já que esta verdade deverá ser relativizada em cada contexto uma geometria deverá ser mais conveniente do que outra Este é o primeiro choque sofrido pela epistemologia herdada dos gregos que postula a verdade como entidade absoluta e descontextualizada Este choque colocaria as geometrias nãoeuclidianas à margem da comunidade matemática durante algumas décadas até que no final do século XIX Berhnard Riemann desenvolveu uma teoria unificadora das geometrias euclidiana e nãoeuclidianas Ele propôs um estudo para 33 Vejamos algumas das tentativas mais conhecidas Proclus procurou demonstrar o quinto postulado utilizando idéias de continuidade mas não foi bem sucedido pois tratou o termo indefinido como sinônimo de sem limites o que não é verdade Wallis 16161703 provou o quinto postulado a partir dos demais mas utilizou um novo axioma que para todo triângulo dado existe um semelhante Todavia os cinco postulados de Euclides são equivalentes aos cinco de Wallis logo o trabalho de Wallis não resolveu o problema proposto por Proclus apenas o transferiu de um sistema de postulados para o outro Saccheri 16671733 assumiu a negação do quinto postulado e procurou encontrar um absurdo Chegou em um quadrilátero com dois ângulos adjacentes retos e deduziu que soma dos outros dois não poderia ser maior que dois retos mas não conseguiu provar que não poderia ser menor que dois retos A partir disto deduziu várias propriedades geométricas estranhas mas não conseguiu aceitálas o seu estilo de pensamento não permitiu Saccheri havia desenvolvido uma Geometria não Euclidiana Id pp 121 127 34 Com efeito existem duas sentenças que negam o quinto postulado por um ponto fora de uma reta passa uma única reta paralela São elas por um ponto fora de uma reta passa mais de uma reta paralela geometria hiperbólica e por um ponto fora de uma reta não passa nenhuma reta paralela geometria esférica Esta foi a primeira vez na história da matemática que uma proposição foi rotulada como indecidível De fato o postulado das paralelas e suas negações poderiam então ser admitidos como verdades em diferentes sistemas axiomáticos Veremos no final deste capítulo e com mais detalhes no próximo capítulo que o Teorema de Gödel afirma a existência de proposições indecidíveis em diversos sistemas axiomáticos 30 geometria com uma abstração tal que as construções de Gauss e seus contemporâneos seriam casos particulares daquelas propostas por Riemann35 Outra questão que merece atenção por exercer forte influência para a constituição do estilo de pensamento de Gödel e seus contemporâneos é a idéia da aritmetização que emergiu junto com a de axiomatização de campos matemáticos As reflexões sobre o infinito evitadas pelos gregos voltaram ao foco dos estudos matemáticos devido à adoração divina que os escolásticos dedicavam a este objeto No entanto os matemáticos renascentistas viam o rigor grego no uso do sistema axiomático como um dos maiores obstáculos para o trato do infinito e para dominálo eles deixaram um pouco as exigências axiomáticas de lado e se debruçaram em resolver os problemas de quadraturas e tangência Sobre o tripé geometriaintuição variável nasceram então as técnicas infinitesimais de Newton e Leibniz mas toda a construção deste campo era imprecisa obscura e tautológica Por exemplo no monumental Philosophiae Naturalis Principia Mathematica Princípios Matemáticos de Filosofia Natural 1687 Newton abre a seção I do livro I com um Lema que pretende definir o limite de uma função Quantidades e as razões de quantidades que em qualquer tempo finito convergem continuamente para a igualdade e antes do fim daquele tempo aproximamse mais de uma da outra que por qualquer diferença dada se tornam finalmente iguais NEWTON 2002 p 71 A matemática de Newton carecia de uma estruturação axiomática e com o passar dos anos esta falta criou outro problema a disparidade entre os teoremas e as suas aplicações físicas A esta altura não era adequado ter a geometria como base epistemológica para toda a matemática não era seguro construir uma teoria matemática fora dos moldes euclidianos Tecnicamente a deficiência em axiomatizar o cálculo parecia jazer em dois conceitos que a geometria não era capaz de construir função e número real O primeiro destes conceitos a função era tratada até o final do século XIX sempre como expressão matemática às vezes como curva mas Lejeune Dirichlet percebeu que era necessário formular o conceito de forma abstrata envolvendo apenas 35 A proposta de Riemann nos mostra uma característica do estilo de pensamento desta época a tentativa de unificação de áreas de conhecimento Veremos que a teoria de conjuntos fornecerá uma importante ferramenta para esta proposta 31 a correspondência entre grandezas sem o apego à geometria ou às expressões matemáticas Sua definição se aproxima da moderna36 cuja formulação é mais abrangente Por via da teoria de conjuntos a definição moderna de função pressupõe conjuntos arbitrários enquanto a de Dirichlet se restringe aos conjuntos numéricos37 Então para Dirichlet e seus contemporâneos compreenderem o que era função era necessário compreender antes o que era conjunto e o que era número real Algumas tentativas de construção do sistema dos números reais o continuum linear procuravam desvencilhar a análise da geometria e aproximála da aritmética O sucesso desta empreitada deveuse ao alemão Richard Dedekind no livro Stetigkeit und die Irrationalzahlen A Continuidade e os Números Irracionais 1872 Para definir um número real Dedekind postulou a correspondência biunívoca entre os números reais e os pontos da reta para então definir um número real através de cortes a exata cisão do conjunto dos racionais em duas classes dispostas de tal modo que os elementos de uma majoram os de outra A formulação de Dedekind dada em termos puramente aritméticos foi a chave para a extensão do campo racional no continuum campo real Logo a definição de número real dependeria dos racionais estes por sua vez de uma relação de equivalência de inteiros e estes últimos dos naturais Percebeuse assim na aritmética e na teoria de conjuntos infinitos os suportes necessários para a fundamentação do cálculo análise matemática Enfim a aritmetização da análise consistiria em trocar a linguagem baseada numa intuição geométrica que dominava as técnicas processos infinitesimais pela linguagem lógica da aritmética processo brilhantemente explorado por Weierstrass Sua definição do limite de uma função é a que encontramos nos atuais manuais didáticos de matemática sejam fx uma função definida em um intervalo real a b e ca b Dizemos que o limite de fx quando x tende a c é o número real L se para todo 0 dado podese encontrar 0 de modo que se x a b e 0 x c então fx L Vemos claramente a exclusão de qualquer apelo intuitivo 36 Dirichlet definiu função como a relação entre duas variáveis x e y em que sempre que for atribuído um valor numérico a x existirá uma regra segundo a qual um único y fica também determinado 37 Segundo a definição moderna uma função f é uma relação binária entre dois conjuntos A e B nesta ordem isto é um conjunto de pares ordenados a b sendo a A e b B que goza das seguintes propriedades i para todo a A existe b B tal que ab f ii se a1 b1 f a2 b2 f e a1 a2 então b1 b2 32 metafísico ou sensitivo as únicas entidades envolvidas são aquelas da aritmética elementar números e relação de ordem O poder da aritmetização foi influente em praticamente toda a matemática Por exemplo os avanços da geometria projetiva realizados principalmente por Plücker colocaram a geometria analítica38 em um processo de aritmetização além de construir com rigor uma interpretação geométrica para o infinito A álgebra também soltava suas amarras renascentistas na medida em que os estudos de equações com variáveis davam lugar às estruturas algébricas Neste sentido a aritmetização e a axiomatização foram ingredientes fundamentais para a mudança de estilo de pensamento da comunidade matemática após 1850 Conforme veremos a seguir estes processos conduziram a matemática deste período para o seu terceiro tentáculo do novo tripé epistemológico a teoria de conjuntos Lugar de onde brotarão paradoxos responsáveis por uma crise na matemática O maior fruto desta crise será o Teorema de Gödel 13 A crise dos fundamentos Uma reforma matemática é desenhada no início do século XX e este esboço tem um cunho essencialista muito forte As tendências dominantes foram a crescente abstração distanciamento das ciências naturais aritmetização e axiomatização A natureza da matemática mudou percorrendo uma grande distância desde as caracterizações antigas como ciência da quantidade Euler ou ciência dos fatos gerais sobre as relações entre magnitudes Gauss Boole na tradição dos algebristas ingleses redefine a matemática como um cálculo simbólico e mais recentemente Cantor enfatiza em alternativa à representação simbólica a utilização de conceitos abstratos independentemente da eventual adequação ou aplicabilidade às outras ciências Para alguns como Gottlob Frege Giuseppe Peano e Russell a rota apontava para a grande matemática unificação geral e fundamentação para outros como Kronecker Brouwer e Poincaré apontam para a fragmentação falência dos 38 A geometria analítica consiste em substituir as técnicas da geometria grega baseada nas construções com régua e compasso por técnicas algébricas que tratam de relações entre grandezas Este processo foi desenvolvido no século XVII principalmente por Fermat e Descartes 33 fundamentos e crise de sérias conseqüências epistemológicas Estes últimos argumentavam que as teorias desenvolvidas empobreciam as componentes de cálculo dada a ênfase fundacional e operativa dos processos infinitos Duas linhas filosóficas se constituíram portanto a primeira denominada logicista priorizava o raciocínio conceitual sobre estruturas abstratas e a segunda denominada construtivista ou intucionista preferia a visão simbólica e computacional A oposição entre os dois pontos de vista tem uma importância para a matemática além do interesse filosófico quando referidos à abordagem do infinito matemático Para os construtivistas só é válido lidar com noções infinitárias se a representação simbólica for explícita e desde que as operações e relações sejam de natureza algorítmica Do outro lado do abismo os logicistas defendem que os objetos matemáticos infinitos podem ser caracterizados abstratamente e considerados no seu valor nominal apenas restringido aos requisitos mínimos de determinação e consistência O tratamento de conjuntos infinitos foi dado no final do século XIX por Cantor ao ressuscitar questões sobre o infinito como a de Galileu Galilei da correspondência biunívoca entre os números naturais e os pares39 Cantor desenvolveu a teoria dos números transfinitos e deduziu diversas propriedades acerca da cardinalidade de conjuntos infinitos O exemplo clássico é a correspondência biunívoca entre os racionais e os naturais e a demonstração de que os reais não podem ser colocados em correspondência biunívoca com os naturais Cantor definiu que o primeiro conjunto tem a potência40 dos naturais e o segundo não Percebeu então que há pelo menos dois tipos de infinito classificados como enumerável que é caso dos naturais e o continuum os reais No entanto Cantor não sabia se existia uma classe de infinito compreendida entre as duas classes conhecidas Conjeturou que não existia tal classe afirmação que ficou conhecida como hipótese do continuum A questão só foi resolvida em 1963 como veremos mais adiante Cantor sofreu duras críticas principalmente por 39 Galileu observou que o axioma de Euclides o todo é maior que qualquer de suas partes não vale quando os conjuntos são infinitos Como exemplo mostrou a correspondência entre naturais e pares 40 A potência é um conceito que estende para o caso infinito a idéia de número de elementos de um conjunto finito Mais tarde definiuse como cardinalidade de um conjunto a idéia que abrange os casos finito e infinito Convencionouse assim como א0 a cardinalidade dos naturais e сс a cardinalidade dos reais o continuum 34 Kronecker e Poincaré que denunciaram o aspecto vago da idéia geral de conjunto41 bem como o caráter não construtivo das provas indiretas usadas por Cantor em seus teoremas Apesar destas críticas a teoria de conjuntos parecia ser a pedra fundamental para o desenvolvimento de toda a matemática42 Até a aritmética poderia ter seu status modificado dentro do conhecimento matemático de estrutura primária para secundária Peano percebeu isto e formulou os axiomas que reduziriam a aritmética à lógica matemática por meio de um simbolismo relacionando lógica e conjuntos que expressa os teoremas matemáticos mais complicados em cálculo formal Para tanto definiu as noções básicas ser um número natural ser sucessor de e ser igual a e postulou i 0 é um número natural ii 0 não é sucessor de nenhum número natural iii todo sucessor de um número natural é um número natural iv cada número natural tem somente um sucessor e v um conjunto que contém o 0 e contem o sucessor de cada número natural pertencente a ele contém todos os números naturais43 Se os números carregam o peso de toda a matemática então os axiomas de Peano formariam o menor conjunto de premissas que definiriam os números naturais e portanto a base de toda a matemática Os métodos de Peano foram bem sucedidos na 41 Cantor 1915 p 85 definiu conjunto como qualquer coleção reunida numa totalidade de objetos definidos e distintos de nossa intuição ou pensamento 42 As questões que seguem a partir de então extrapolam a comunidade matemática e têm lugar na comunidade dos filósofos da matemática Os matemáticos propriamente não vêem problemas no uso da teoria de conjuntos pelo contrário utilizam a teoria de conjuntos como base para todas as construções teóricas São criadas portanto as estruturas grupos espaços vetoriais espaços topológicos variedades diferenciais etc O conjunto assume um status tal que em meados do século XX reformas educacionais apontaram a teoria de conjuntos como conteúdo fundamental na escola básica 43 Em Arithmetics principia nova methodo exposita 1889 Peano definiu Noções primitivas I As variáveis x y z e estas mesmas letras subscritas de índices II Uma constante 0 III Uma variável predicativa Φ IV Um predicado de um argumento ser natural V Dois predicados de dois argumentos é sucessor de e é igual a Axiomas I 0 tem a propriedade ser m número natural II Não existe natural x tal que x tem a propriedade ser natural e 0 é sucessor de x III Se x tem a propriedade ser natural e y é sucessor de x então y tem a propriedade ser natural IV Se x y e z1 é sucessor de x e z2 é sucessor de y então z1 z2 V Se 0 tem a propriedade Φ e se x tem a propriedade Φ e y é sucessor de x então y tem a propriedade Φ então qualquer natural z tem a propriedade Φ Confira em LADRIÈRE 1969 pp 3536 ou HEIJENOORT 1967 pp 8397 35 aritmetização da análise e da álgebra mas sua intenção em reduzir a aritmética em lógica matemática não escapou posteriormente de críticas Vejamos o exemplo de Russell44 Para o filósofo britânico os axiomas de Peano não caracterizam exclusivamente os números naturais Com efeito o fato de 0 ser um número natural e ser sucessor de serem conceitos primitivos quaisquer funções que eles assumissem deveriam produzir a seqüência de números naturais No entanto se tais conceitos significarem por exemplo 1 ser uma fração unitária e a metade a seqüência produzida será 1 12 14 18 116 etc e não 0 1 2 3 4 etc Um sistema de axiomas poderoso como o de Peano que caracterizasse exclusivamente o conjunto dos naturais era uma tarefa árdua sobre a qual Frege se dedicou boa parte de sua vida acadêmica Conseguiu nos dois volumes de Grundgesetse der Arithmetik Os Fundamentos da Aritmética 18901903 um sistema de axiomas que constrói o conjunto dos números cardinais em termos de conjuntos Após definir conjunto universo e conjunto vazio ele define 0 como o sucessor de um número e o conjunto dos números naturais Em seguida Frege prova os cinco postulados de Peano por meio de seu sistema de axiomas A construção de Frege parecia ser o passo decisivo para a redução da aritmética e portanto de toda a matemática ao binômio lógicaconjunto No entanto em 1902 em uma carta enviada a Frege antes de este terminar o segundo e último volume de Grundgesetse der Arithmetik Russell enunciou um paradoxo que fere a própria noção de conjunto45 Russell sugere dividirmos os conjuntos em duas classes a dos que são membros de si próprios e a dos que não são membros de si próprios que será representada por C A questão é C é um membro de si próprio46 Qualquer resposta leva a uma contradição Com efeito se C é um membro de si próprio não pode pertencer à classe representada 44 RUSSELL 1966 pp 1417 45 No apêndice do segundo volume de Grundgesetse der Arithmetik Frege responde à carta de Russell de uma forma melancólica Nada pior praticamente pode acontecer a um autor científico do que ver uma das fundações de seu edifício ser abalada depois de terminada a obra Fui colocado nessa posição por uma carta contendo o paradoxo de Mr Bertrand Rusell exatamente quando a impressão deste segundo volume estava quase pronta HEIJENOORT 1967 pp 8397 Existe também uma tradução inglesa do Grundgesetse der Arithmetik FREGE 1950 46 Em símbolos o paradoxo de Russel é assim enunciado seja C o conjunto descrito pela relação XCXX No caso em que C assume o valor de X temse CC CC O paradoxo de Russell ganhou do seu criador uma versão popular o barbeiro de uma cidade seguia uma regra segundo a qual ele barbeava todas as pessoas da cidade e somente elas que não se barbeavam a si mesmas Quem barbeava o barbeiro 36 por C que é a dos conjuntos que não são membros de si próprios Mas esta última frase equivale a dizer que C não é um membro de si próprio Isto é uma contradição Supondo reciprocamente que C não é um membro de si próprio chegamos analogamente a uma contradição A partir de então paradoxos pipocaram na teoria de conjuntos o que deu origem à terceira crise dos fundamentos da matemática47 A existência de paradoxos na teoria de conjuntos abrira a ferida da inconsistência de todo o edifício matemático48 A consistência de uma teoria significa a impossibilidade de se provar ao longo de toda a sua construção axiomática dois teoremas contraditórios ou seja provar uma proposição P e sua negação nãoP Russell e Poincaré indicaram que o cerne dos paradoxos estava nas definições impredicativas envolvidas na teoria de conjuntos Dito de outro modo um conjunto se define pelos seus elementos se desejarmos destacar um elemento cuja definição depende do conjunto então entramos em um círculo vicioso Mas as concordâncias entre Russell e Poincaré param por aqui Representantes de correntes filosóficas distintas o primeiro era logicista e o segundo construtivista Russell acreditava que era possível resolver a questão das definições impredicativas reduzindo toda a matemática à lógica Poincaré observou que fundamentando a matemática por processos construtivos evitarseia os círculos viciosos Foi portanto na linha de pensamento de Frege e Peano que o trabalho de Russell e Whitehead se formou Na obra monumental Principia Mathematica foi 47 A primeira crise ocorreu com a descoberta grega da incomensurabilidade e a segunda foi a crise do cálculo diferencial e integral mencionada neste texto Destas crises porém podese dizer que as duas primeiras realmente abalaram o estilo de pensamento da comunidade matemática pois colocaram em xeque a concepção de número e toda construção teórica conseqüente desta concepção Na primeira crise a idéia grega de número como quantidade não era capaz de explicar a existência de incomensuráveis e na segunda crise não havia uma concepção formalizada de número real capaz de dar suporte para a definição de limite A terceira crise no entanto não afetou os matemáticos pois ao contrário das duas anteriores ela não surgiu como um impedimento para o desenvolvimento de teorias matemáticas emergiu de uma discussão própria de filósofos da matemática 48 Os paradoxos lógicos ressuscitaram uma discussão acerca dos paradoxos semânticos gregos que antes destes eventos interessavam apenas aos filósofos mas agora estavam sob ao olhar crítico dos lógicos matemáticos Um paradoxo semântico que remonta os gregos é o seguinte Protágoras ensinou Euathlos a argumentar Combinaram o pagamento da metade da quantia no fim do curso e a outra metade quando Euathlos ganhasse a sua primeira causa Como o pagamento da segunda metade demorou Protágoras processou Euathlos Argumentos de Protágoras se ele ganhar terá que me pagar já que ele ganhou a sua primeira causa se ele perder terá que me pagar já que eu ganhei a causa contra ele Argumento de Euathlos se eu ganhar nada terei que pagar já que ganhei a causa se eu perder nada terei que pagar já que não ganhei ainda nenhuma causa Qual dos dois está com a razão 37 desenvolvido o novo método que de fato derivou a aritmética de axiomas e conceitos lógicos O objetivo geral de Russell e Whitehead no entanto avançava para fora das fronteiras da aritmética Eles queriam desenvolver um programa para provar que toda a matemática pode ser construída a partir de alguns axiomas lógicos Seu objetivo específico era eliminar as definições impredicativas que dão origem aos paradoxos O fio condutor do Principia Mathematica é a teoria ramificada dos tipos O pressuposto é a idéia de que toda classe ou conjunto corresponde um tipo e uma classe pode conter apenas elementos de menor tipo Assim as classes devem possuir tipo maior que o tipo de cada um de seus membros evitando o círculo vicioso das definições impredicativas e portanto os paradoxos como o de Russell Os números naturais por exemplo são construídos como segue 0 representa o que tem de comum as classes sem elementos 1 o que tem de comum nas classes com um elemento 2 nas duplas e assim por diante Russell definiu portanto o número de uma classe como a classe de todas as classes similares a ela sendo a similaridade uma relação biunívoca entre as duas classes Em seguida definiu o número como qualquer coisa que seja o número de uma classe Esta definição parece tautológica mas não é pois a definição de número de classe não usa a noção de número em geral A teoria dos tipos não produz os indesejáveis paradoxos conhecidos No entanto um grande problema seria gerado por uma teoria que excluísse as definições impredicativas da matemática49 Conceitos fundamentais seriam banidos da matemática como por exemplo o de supremo de um conjunto de números reais50 básico para a construção de todo o campo da análise Era um preço muito alto para a consistência da teoria dos conjuntos Outra proposta seria a de Poincaré e os demais intucionistas Eles justificaram que o paradoxo de Russell ocorreu devido ao uso do princípio do terceiro excluído que deveria ser banido da matemática A explicação para esta exigência é que segundo os intucionistas a matemática é uma ciência desenvolvida segundo o nosso sentido temporal portanto devese utilizar somente os métodos construtivos finitos Com efeito 49 Havia também uma questão lógica apontada por Wittgenstein O erro de Russell mostrase no fato de ter precisado falar da significação dos sinais ao estabelecer as regras notacionais Nenhuma proposição pode enunciar algo de si mesma porque o sinal proposicional não pode estar contido em si mesmo isso é toda a Teoria dos Tipos WITTGENSTEIN 1995 3331 3332 50 O supremo de um conjunto de números reais limitado superiormente é definido como a menor das cotas superiores deste conjunto 38 o terceiro excluído permite demonstrar asserções embaraçosas como a seguinte Existem sete 7s consecutivos na representação decimal do numero Vejamos a demonstração do fato por ter infinitas casas decimais e como ainda ninguém conseguiu verificar se na representação decimal de o número 7 aparece sete vezes seguida não se pode dizer que isto não ocorre Logo não faz sentido também negar o teorema pelo princípio do terceiro excluído O cerne desta questão está segundo os intucionistas no envolvimento do infinito Ou seja muito provavelmente provar o teorema acima significa testar todas as infinitas possibilidades Como o princípio do terceiro excluído é a base para do raciocínio reductio ad absurdum todas as provas deste tipo eram também repudiadas pelos intucionistas Tais idéias não deixam de ser particularmente interessantes pois dão um sentido histórico para a construção do pensamento matemático mas na prática exigiriam a reconstrução de quase toda a rede de conhecimento matemático empreendimento que não angariou simpatias e acabou por ser abandonado A esta altura parecia não haver um remédio para curar o mal da inconsistência sem que os efeitos colaterais fossem tão nocivos como eram os que as escolas logicista e intucionista apresentaram a mutilação de uma grande parte da rede matemática arduamente tecida desde a Antigüidade grega até o século XX 14 Consistência e formalização A questão da inconsistência tem relevância em nosso trabalho porque é o núcleo do Teorema de Gödel Conforme já mencionamos anteriormente Gödel mostrará sob certas hipóteses que nenhuma teoria matemática pode ser construída com a pretensão de evitar simultaneamente a inconsistência e a incompletude51 Esta segunda anomalia a incompletude era até então algo impensável Até a década de 1930 todos os esforços da comunidade matemática estavam concentrados em resolver o primeiro mal a inconsistência Como vimos nos parágrafos anteriores quase todos os sistemas 51 Estes conceitos já foram mencionados em diversas vezes neste trabalho mas vale a pena relembrar para distinguílos A inconsistência significa a existência dentro de um sistema axiomático de proposições que se contradizem mutuamente e a incompletude significa a existência de afirmações sobre objetos de um sistema axiomático que não são nem teoremas e nem negações de teoremas isto é são indecidíveis 39 axiomáticos da matemática foram fundamentados na teoria de conjuntos Como esta produz paradoxos então todo o edifício matemático corria o risco da inconsistência Uma possível solução para o problema foi sugerida por Zermelo em 1908 Se a inconsistência do edifício matemático é gerada pela base a teoria de conjuntos por que não construir uma teoria axiomática para a teoria de conjuntos e encontrar assim uma solução para os paradoxos produzidos por ela A questão é pertinente e a empreitada inicialmente executada por Zermelo teve a colaboração de Fraenkel 1922 e von Neumann 192452 A axiomática de conjuntos seria uma boa saída para desvendar o paradoxo de Russell e ainda resolver a hipótese do continuum mencionada na seção anterior Na teoria axiomática dos conjuntos as noções primitivas como conjunto e ser subconjunto de obedeciam a axiomas que lhes tirava o caráter aleatório que Cantor deixou escapar Em suas reflexões sobre os paradoxos Zermelo percebeu que na sua construção axiomática não havia lugar comum para duas asserções a consideração livre de conjuntos como o conjunto universal e a caracterização de um conjunto por uma propriedade de seus elementos Por considerar muito natural a segunda consideração Zermelo descartou a primeira e por conseguinte o conjunto de todos os conjuntos ou o conjunto de todos os conjuntos que não pertencem a si mesmos Para Zermelo os paradoxos surgem quando admitimos agregados excessivamente grandes No entanto afirmou que era possível definir conjuntos infinitos desde que construídos a partir de algum conjunto preexistente Por exemplo a partir do conjunto dos números naturais construímos os inteiros usando relações de equivalência de pares ordenados de naturais dos inteiros construímos os racionais pela mesma técnica algébrica dos racionais construímos os reais como mostrou Dedekind e finalmente os complexos como pares ordenados de reais Conjuntos cada vez maiores em termos de cardinalidade podem ser formados a partir de qualquer conjunto Nesta linha Zermelo formulou o axioma da especificação53 dados um conjunto A e uma propriedade P existe um conjunto M cujos elementos são os elementos de A que satisfazem a propriedade P 52 E mais recentemente Paul Bernays 1963 53 Em símbolos MxAPx 40 Os axiomas de Zermelo54 evitaram os paradoxos sobre conjuntos mas em nenhum momento sua teoria discute tais antinomias e nem dá garantias de que não haverá lugar para outras Mas um deles denominado axioma da escolha acendeu os mais intensos debates Seu enunciado é se for uma coleção de conjuntos e nenhum dos conjuntos de for vazio então existe um conjunto Z que contem exatamente um elemento de cada conjunto de A questão que incomodou uma parcela de matemáticos diz respeito à abrangência de cuja magnitude pode não garantir a possibilidade de escolha de elementos como sugerido no axioma55 O incômodo provocado pelo axioma da escolha foi similar ao do postulado das paralelas da geometria euclidiana56 mas o ambiente histórico que envolveu o episódio das geometrias não euclidianas foi mais incisivo pois a natureza das dúvidas suscitadas era uma novidade os sistemas axiomáticos correspondentes às duas teorias geradas pelos postulados alternativos ao quinto seriam consistentes 54Além do axioma da especificação a teoria comporta outros nove axiomas ii axioma da extensionalidade xyxyAxxAxy iii axioma de separação wyxxyπxxw iv axioma dos pares xyzxzyz v axioma da união xyzwwxzwzy vi axioma das partes xyzzxzy vii axioma do Infinito xxyyxyyx viii axioma da fundação xyyx yyxzzyzx ix axioma da escolha x yyx Em 1922 Thoralf Skolem e Abraham Fraenkel independentemente propuseram um novo axioma esquema denominado Axioma esquema da substituição wxwyφxyzyyzx wφx y 55 Russell 1966 p 123 nos mostra com um exemplo lúdico a dificuldade que o axioma da escolha pode nos proporcionar Conta a história de um milionário que comprava um par de meias sempre que comprava um par de botas e nunca em qualquer outra ocasião até obter um numero infinito mas enumerável de pares de sapatos assim como de meias Parece obvio que existe uma bijeção entre os sapatos e os números naturais e uma bijeção entre as meias e os números naturais A bijeção dos sapatos não é difícil de ver cada pé esquerdo corresponde a um número ímpar e cada pé direito corresponde a um número par No entanto o mesmo não pode ser feito com as meias já que os pés de meias são indistinguíveis Ou seja para que o mesmo procedimento funcione nesse caso é necessário que as meias de todos os pares sejam diferentes e esta diferença deve seguir algum critério por exemplo um pé de uma cor e outro de outra cor O fato de que não existe um modo sistemático de escolher uma meia de um par significa que precisamos de uma função de escolha mesmo que não possamos apresentála explicitamente 56 Ainda assim predominou entre os matemáticos a aceitação do axioma da escolha De fato durante as décadas que seguiram ele foi fundamental para a demonstração de teoremas importantes tais como Princıpio de tricotomia em todo par de números cardinais um é menor que o outro ou eles são iguais Lema de KuratowskiZorn qualquer conjunto não vazio no qual todo subconjunto ordenado possui um limite superior possui um elemento maximal Teorema de Tychonov o produto de qualquer família de espaços topológicos compactos é compacto e Teorema de HamelBanach todo espaço vetorial possui uma base 41 Provar que uma teoria matemática é consistente não é uma empreitada fácil Para tanto devese garantir que o conjunto de postulados de sua teia axiomático nunca poderá gerar dois teoremas contraditórios entre si Na outra mão para afirmar que uma teoria é inconsistente devese exibir tais teoremas57 Nosso olhar para a questão nos mostra que a priori a segunda tarefa parece ser muito complicada e a primeira impossível Com efeito podemos analisar todos os teoremas já demonstrados pela teoria em questão mas como garantir que não surja no futuro nenhum par de teoremas contraditórios As primeiras provas conhecidas sobre consistência foram apresentadas ainda no século XIX e vieram exatamente com o advento das geometrias não euclidianas A compreensão visual das geometrias não euclidianas dependia de modelos interpretativos Riemann Cayley Klein e Beltrami se encarregaram da empreitada e a partir dos modelos criados por eles foi possível provar a consistência das geometrias não euclidianas Vejamos o caso da geometria riemanniana cujo correspondente do quinto postulado reza que por um ponto fora de uma reta não passa nenhuma paralela Riemann determinou que a esfera seria o plano desta geometria as retas seriam circunferências máximas com raio igual ao da esfera e cada ponto corresponderia a um par de pontos antípodas desta esfera Não é difícil ver que os quatro postulados de Euclides são válidos para este modelo bem como a negação do quinto descrito acima58 Logo a estrutura definida serve como modelo para a geometria riemanniana Como o modelo é construído com entes da geometria euclidiana tridimensional então a consistência da geometria riemanniana segue imediatamente da 57 Esta tarefa nunca foi executada pelos críticos das geometrias nãoeuclidianas 58 Com efeito o primeiro postulado traçar uma reta de qualquer ponto a qualquer ponto equivale a dois pares de antípodas determinam uma circunferência máxima o segundo prolongar uma reta finita continuamente em uma linha reta equivale a prolongar um arco de circunferência máxima ao longo da circunferência máxima que o contém continuamente o terceiro descrever uma circunferência com centro e raio dados não precisa de interpretações equivalentes pois qualquer circunferência riemanniana é uma circunferência euclidiana sobre uma esfera o quarto que todos os ângulos retos são iguais também pode ser interpretado da mesma forma bastando definir corretamente o ângulo reto sobre a esfera o que pode ser feito de maneira similar a de Euclides quando uma reta levantada sobre outra forma ângulos adjacentes iguais cada um dos ângulos iguais tem o nome de ângulo reto e a que se eleva sobre a outra se chama perpendicular a esta outra Definição 10 Livro I O equivalente do quinto também é válido porque duas circunferências máximas sempre se interceptam em dois antípodas ou seja em um ponto riemanniano 42 consistência da geometria euclidiana59 Todavia a própria consistência da geometria euclidiana foi contestada durante a crise dos fundamentos Neste caso objetarseia que a prova de consistência dada acima não é absoluta mas relativa pois ela pressupõe como hipótese a consistência da geometria euclidiana Mas esta contenda só ocorreria no século XX e o seu principal crítico foi Hilbert Na tentativa de mostrar a consistência da geometria euclidiana Hilbert mostrou que é possível reescrever todos os postulados da geometria euclidiana em termos dos objetos da álgebra elementar trocando ponto por par ordenado reta por equação linear de duas variáveis etc Assim por exemplo a expressão por dois pontos passa uma e somente um reta da geometria grega sintética é traduzida como dois pares ordenados são soluções de uma e somente uma equação linear de duas variáveis da geometria cartesiana analítica Entretanto Hilbert obteve desta forma mais uma prova relativa pois a consistência da geometria euclidiana dependeria agora da consistência da álgebra elementar Uma prova relativa não responde diretamente uma questão mas a transfere de sistema axiomático para outro Neste caso ainda fica a tese como dar uma prova absoluta de que um sistema axiomático na matemática é consistente 60 59 A outra vertente de geometria euclidiana tem a sua demonstração de consistência similar Os dois modelos mais conhecidos para esta geometria são o de Klein que considera como plano um círculo as retas são cordas e os pontos são os pontos euclidianos habituais e o de Beltrami que considera como plano a pseudoesfera e como pontos os pontos euclidianos habituais sobre esta superfície as retas não são de mesma natureza como nos demais modelos citados e sua explanação foge dos nossos propósitos GRENNBERG 1994 60 As provas relativas de consistência também povoaram a teoria axiomática de conjuntos durante muitas décadas e elas contribuíram para diminuir o abismo filosófico entre construtivistas e logicistas provocado pelo axioma da escolha Os primeiros admitiam como teoria axiomática de conjuntos aquela que não contém o axioma da escolha indicada por ZF e denominada teoria dos conjuntos restrita enquanto os segundos admitiam o axioma da escolha e por isso indicamos a teoria axiomática correspondente por ZFC e denominamos teoria dos conjuntos standartizada Após a divulgação do seu teorema Gödel focalizou suas pesquisas na teoria de conjuntos Nesta área desenvolveu o que chamamos de método dos modelos internos conjuntos construtíveis e em 1938 provou que se ZF for consistente então ZFC também será Isto acalmou os ânimos dos construtivistas afinal se algum par de teoremas contraditórios germinarem de ZFC então o culpado provavelmente não será o axioma da escolha pois esta inconsistência certamente já existia em ZF E Gödel foi ainda mais longe usando o mesmo método debruçouse sobre a hipótese do continuum e provou que se ZF for consistente então ZF mais a hipótese do continuum também será GÖDEL 1977b Em 1964 um brilhante método foi inventado por Paul Cohen o que lhe valeu uma medalha Fields em 1966 O método de Cohen permitiu mostrar a independência relativa da hipótese do continuum e do axioma da escolha COHEN 1977 Isto é a hipótese do continuum e o axioma da escolha estão para a teoria de conjuntos assim como o postulado das paralelas está para a geometria euclidiana 43 Esta questão era o tema central das investigações de Hilbert no campo da filosofia da matemática Sua linha representava a vertente dos pensadores que viam a matemática como um campo do conhecimento que trata de sistemas simbólicos formais o que deu ao programa de Hilbert a denominação formalista O programa formalista de Hilbert é uma continuação muito clara das concepções que os matemáticos vinham tecendo no século XIX de destituir da matemática qualquer subjetividade Neste sentido a matemática passaria a ser um conjunto de símbolos munidos de regras de operacionalização necessárias para produzir fórmulas que na linguagem corrente se traduzem como teoremas O projeto de Hilbert parece se assemelhar com o de Russell no entanto Hilbert não utilizou um formalismo reducionista como o de Russell Ele acreditava que a lógica era uma importante ferramenta para a matemática e não a base fundamental da matemática Para Russell a matemática se reduz à lógica e para Hilbert existe uma grande matemática pronta e consistente para a qual a lógica é o meio de acessála Hilbert percebeu a certa altura que a dificuldade para encontrar uma prova absoluta de consistência residia no fato de que os postulados dos mais importantes sistemas axiomáticos na matemática versam sobre uma quantidade infinita de elementos e o trato com conjuntos infinitos não dá garantias de consistência interna61 A única forma de argumentar em sistemas deste tipo seria mencionando os elementos envolvidos em sua forma geral processo estudado dentro do programa formalista A tradução de teoremas matemáticos em fórmulas dentro de um sistema formal era para Hilbert a chave para a demonstração absoluta da consistência e o sucesso de seu empreendimento seria alcançado se evitasse técnicas que envolvessem o infinito ou 61 Nagel e Newman 1973 pp 2324 dão um exemplo muito engenhoso de uma prova absoluta de consistência Definem os seguintes postulados acerca de duas classes K e L arbitrárias i quaisquer dois membros de K estão contidos em apenas um membro de L ii nenhum membro de K está contido em mais do que dois membros de L iii os membros de K não estão todos contidos em um único membro de L iv quaisquer dois membros de L contem apenas um único membro de K e v nenhum membro de L contém mais do que dois membros de K A consistência deste sistema pode ser provada através da interpretação do mesmo em um modelo da geometria euclidiana o triângulo Neste modelo L seria a classe dos lados e K dos pontos Não é difícil ver que os postulados se aplicam a este modelo o que prova que ele serve de fato para interpretar o sistema Como as expressões equivalentes do sistema no triângulo são imediatamente verdadeiras pois seguem da definição de triângulo então o sistema é consistente Nesta prova fica claro como a finitude do número de elementos foi crucial para a demonstração da consistência 44 seja propriedades estruturais fórmulas e operações deveriam todos ser utilizados em quantidades finitas processo denominado como finitário A partir das provas relativas de consistência Hilbert conjeturou que a matemática não era capaz de provar proposições sobre ela mesma e deduziu que não havia como provar matematicamente que um sistema matemático é consistente O método a ser desenvolvido para provar esta consistência portanto deveria consistir em uma meta teoria para a matemática62 As contribuições de Peano Frege e Russell já mencionadas foram importantes para o desenvolvimento desta metateoria mas o formalismo de Hilbert foi fundamental e seguindo uma filosofia da matemática realista ele desenvolveu a teoria da demonstração ou metamatemática63 A correspondência entre lógica e conjuntos foi vital para aproximar a axiomática de sua formalização mas a transformação em processamento estritamente mecânico se daria apenas com o sistema formal puro Nele a linguagem simbólica é rigorosamente definida e os procedimentos de dedução são explicitados Para compreendermos o poder de um sistema formal puro vejamos um exemplo na teoria formalizada de grupos definimos o grupo como um conjunto munido de uma operação binária denominada produto para a qual se verificam os axiomas i o produto de dois elementos do conjunto é um elemento do conjunto ii o produto goza da propriedade associativa iii o conjunto possui um elemento unidade que preserva todo elemento pela operação produto iv todo elemento do conjunto corresponde a outro denominado inverso sendo a unidade o resultado do produto destes dois elementos 62 O desenvolvimento desta metateoria não germinou com o programa formalista ocorreu gradativamente na medida em que o sonho idealista da Characteristica Universalis de Leibniz parecia ser a primeira possibilidade de se efetivar com o inglês George Boole 18151864 que tratou a lógica pela primeira vez como um cálculo de símbolos algébricos em Mathematical Analysis of Logic Análise Matemática da Lógica publicada em 1847 Este pensamento alimentado pelo essencialismo grego e sua versão iluminista transformaram gradualmente a matemática moderna em linguagem simbólica eliminando conceitos carregados de estilos de pensamento 63 O programa hilbertiano de fundamentação da Matemática encontra seu paralelo no programa dos empiristas lógicos Círculo de Viena Carnap e seus pares buscavam a justificação das ciências naturais através da construção de uma lógica indutiva Nos dois casos tratavase de justificar a linguagem objeto de estudo Para Hilbert era a matemática e para Carnap eram as ciências naturais Em ambos os casos isto seria possível se utilizarmos uma metalinguagem absolutamente confiável 45 A teoria formalizada no entanto seria da seguinte maneira64 Noções primitivas 1 As variáveis x y z e estas mesmas letras subscritas de índices 2 Uma constante U 3 Uma função de dois argumentos 4 Um predicado de dois argumentos 5 Dois operadores proposicionais de um argumento x e x 6 Um operador proposicional de um argumento 7 Dois operadores proposicionais de dois argumentos e Variáveis sintáticas 8 Toda variável é um termo 9 A constante U é um termo 10 Se α1 e α2 são termos então α1 α2 também é um termo 11 Se α1 e α2 são termos então α1 α2 é uma proposição 12 Se A for uma proposição contendo a variável x então são proposições xA e xA 13 Se A for uma proposição então A é também uma proposição 14 Se A e B são proposições então são proposições A B e A B Axiomas 15 x yz x y z 16 x x U x 17 xy x y U 18 x y z x y z x y z 19 A A A 20 A A B 21 A B B A 22 A B Γ A Γ B 23 x A x α A 24 A x α x A 64 LADRIÈRE 1969 pp 3952 46 Regras de derivação 25 A A B B 26 A B A xB 27 A B xA B A teoria consiste portanto em axiomas 15 a 18 que caracterizam um grupo axiomas 19 a 22 e uma regra 25 que correspondem a uma lógica de proposições e axiomas 23 e 24 e regras 26 e 27 que determinam como podemos utilizar os quantificadores Para Hilbert formalização de uma teoria matemática transforma esta teoria em um processo mecânico similar a um jogo de símbolos sem nenhum sentido Deste modo a garantia da consistência seria alcançada pela metamatemática cuja força daria a ele a segurança de que a matemática é a ciência da certeza A crença arraigada na préexistência da matemática platonismo era o motor que impulsionava esta convicção No entanto as publicações do Teorema de Gödel em 1931 mostraram que é impossível alcançar os objetivos do programa de Hilbert Com efeito um sistema formal como proposto por Hilbert é segundo o Teorema de Gödel incapaz de provar a sua própria consistência E ainda caso o sistema em causa seja consistente ele necessariamente produzirá indecidíveis Isto é conforme já mencionamos anteriormente o Teorema de Gödel mostra que consistência e completude são dois conceitos que não cabem dentro de um mesmo sistema formal nos moldes pretendidos por Hilbert Este foi um golpe do qual os fundacionistas nunca se recuperaram como veremos com mais detalhes no próximo capítulo 15 Considerações finais Vimos neste capítulo um quadro geral das mudanças conceituais da matemática entre as décadas de 1850 e 1930 Sinteticamente podese caracterizar estas 47 mudanças como uma mudança de uma base geometriaintuiçãovariável para conjuntosaxiomáticaaritmética A primeira base foi constituída pela extensa aplicação da idéia de variável na matemática que contribuiu dentre os vários progressos para o desenvolvimento do cálculo diferencial e integral Outro ingrediente foi a força metodológica da geometria axiomática grega conhecida como exemplo de pureza do raciocínio lógico humano Todavia a excessiva carga de intuição destinada ao pensamento matemático até o século XVIII foi um fator que trouxe a estes campos lacunas epistemológicas responsáveis por uma reavaliação do estilo de pensamento matemático Como resultado foram desenvolvidas novas geometrias e a visão geométrica do cálculo foi trocada pela visão aritmética da análise Neste caminho conjuntosaxiomática aritmética passaria a ser a nova base da matemática A teoria de conjuntos teria um papel fundamental para os processos de axiomatização e aritmetização da matemática O seu poder motivou matemáticos e filósofos se preocuparem cada vez mais com o rigor lógico desta ciência até que os paradoxos surgiram no caminho Em um contexto onde as teorias matemáticas devem ser todas conduzidas pela teoria de conjuntos a existência de contradições nesta teoria seria a ruína de todo um estilo de pensamento A matemática não produziria apenas um novo problema mas uma nova família de problemas os problemas de consistência de teorias matemáticas Neste sentido a aritmetização e a axiomatização sugeriram uma transferência dos problemas de consistência de teorias matemáticas para uma única tese a consistência da aritmética Dela resultaria a consistência dos demais campos A importância deste problema para a matemática do século XX o colocou na famosa lista dos 23 problemas do século XX formulada por Hilbert Como demonstrar a consistência da aritmética Gödel mostrou que nenhuma teoria contendo a aritmética pode provar sua própria consistência Mostrou ainda que caso esta teoria seja consistente ela necessariamente produzirá sentenças indecidíveis Observe que Gödel não deu uma resposta negativa ao problema de Hilbert mas certamente apagou a chama que acendia o projeto formalista Deixemos no entanto para o próximo capítulo análises deste tipo 48 O que podemos sintetizar nos parágrafos anteriores é a ocorrência no período de 1850 a 1930 de um movimento de mudanças conceituais técnicas filosóficas e dos pressupostos teóricos e metafísicos em relação à matemática Enfim este período caracterizase como um período de mutações do estilo de pensamento da comunidade matemática de uma intensidade comparável a alguns poucos momentos na história da matemática Podemos mencionar as mudanças gregas na Antiguidade ou as ocorridas no Renascimento Esta mudança não foi repentina nem linear mas gradual e descontínua Por exemplo vimos o advento das geometrias nãoeuclidianas como um gérmen destas transformações conceituais mas devemos nos lembrar que a discussão sobre as geometrias nãoeuclidianas não começou no século XIX O mesmo poderia ser dito com a aritmetização da análise ou outros fatos do período Estas observações evidenciam o caráter transitório dos estilos de pensamento pressuposto historiográfico defendido por Fleck Todo estilo de pensamento contém descendentes do desenvolvimento histórico de vários elementos de outros estilos Provavelmente muito poucos conceitos completamente novos são formados sem relação qualquer a um estilo de pensamento anterior Normalmente apenas muda seu colorido como o conceito científico de força originou do conceito cotidiano de força também o novo conceito de sífilis origina do místico Desse modo nasce uma conexão histórica entre os estilos de pensamento FLECK 1979 p 75 Os conceitos e técnicas não são rígidos e suas transformações mostram que não há necessariamente acúmulo de conhecimento mas uma mutação do estilo de pensamento O termo é apropriado da biologia por Fleck e parece estar de acordo com o movimento histórico que observamos As mutações gradativas preparam o ambiente social e epistemológico da comunidade para grandes descobertas como sugere Fleck essa mudança no estilo de pensamento isto é mudança na disposição para a percepção dirigida oferece novas possibilidades para descobrir e criar novos fatos FLECK 1979 p 144 Como exemplo podemos citar o desenvolvimento da metamatemática decorrente às questões dos fundamentos como parte de um estilo de pensamento que propiciou uma linguagem e um conjunto de técnicas fundamentais para Gödel demonstrar o seu teorema Nosso trabalho consiste em mostrar que o Teorema de Gödel é responsável por uma mutação do estilo de pensamento fora do círculo lógico matemático É possível um 49 teorema abstrato como este provocar um impacto tão grande em teorias que falam de objetos não matemáticos Veremos que sim mas antes devemos nos ocupar no próximo capítulo sobre como foi o impacto dentro do círculo lógico matemático

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Apresentação

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22 1 A Matemática no período 18501930 O que seria da verdade de nosso saber da existência e o progresso da ciência se não existisse ao menos na matemática uma verdade sólida David Hilbert 23 11 Considerações iniciais Este capítulo tratará das questões que levaram alguns filósofos e matemáticos a refletirem sobre os fundamentos da matemática Veremos então que o debate sobre os fundamentos culmina no Teorema de Gödel Este é o contexto histórico do qual emergiu o teorema da incompletude Entender este contexto significa compreender que a interação que o saber provoca entre sujeitos e objeto é mediada pelas relações históricas sociais e culturais presentes Neste sentido é necessário especificar uma referência metodológica para compreender em linhas gerais a dinâmica das comunidades científicas enquanto organismos sociais formados em função de sua atividade a ciência Esperamos que esta referência nos mostre os diversos elementos sujeitos às variações provocadas pela teia histórica da matemática o estilo cognitivo geral da matemática a estrutura de associações relações usos analogias e implicações metafísicas atribuídas a esta ciência os significados atribuídos nos cálculos e manipulações simbólicas o rigor e o tipo de racionalidade que estão implícitos ao provar uma tese e a negociação da lógica utilizada17 Recorremos então à historiografia de Fleck enredada principalmente pela obra Entstehung und Entwicklung einer wissenschaftlichen Tatsache Gênese e Desenvolvimento do Fato Científico 193518 Um dos seus conceitos centrais é o pensamento coletivo Para Fleck um pensamento coletivo é um grupo de indivíduos que compartilham conhecimentos e práticas ou seja é Uma comunidade de pessoas trocando idéias mutuamente ou mantendo interação intelectual também veremos por implicação que esta também provê o suporte especial para o desenvolvimento histórico de qualquer campo do pensamento bem como do nível de cultura e conhecimento dados FLECK 1979 p 39 A idéia de pensamento coletivo de Fleck é melhor compreendida pelo segundo conceito fundamental o estilo de pensamento19 17 Estas variações foram descritas assim por David Bloor 1991 18 FLECK 1979 19 Fleck referese ao conceito de estilo de pensamento várias vezes e em certos pontos características novas são acrescidas em relação ao conceito inicial tornandoo cada vez mais complexo Para uma discussão sobre o assunto cf PARREIRAS 2006 24 Nós podemos portanto definir estilo de pensamento como o perceber orientado com correspondência mental e assimilação factual do que foi percebido Ele é constituído por características comuns nos problemas de interesse do pensamento coletivo pelos julgamentos que o pensamento coletivo considera evidente e pelos métodos que ele aplica como meios de cognição O estilo de pensamento pode também ser acompanhado por um estilo técnico e literário característico do sistema de conhecimento dado FLECK 1979 p 130 O estilo de pensamento não é uma adoção voluntária mas uma imposição conseqüente do próprio processo de socialização construído pelo pensamento coletivo O sujeito interage com o objeto através de relações mediadas pelo estilo de pensamento O perceber direcionado que Fleck se refere significa direcionar o modo de pensar ver agir se comunicar Este processo tende à manutenção de opiniões No entanto o estilo de pensamento tem caráter transitório Os fatos científicos são contextualizados e as verdades são contaminadas por ele O certo e o errado tornamse conceitos relativos pois dependem de condições históricosociais A transição de estilos de pensamento é contínua sem rupturas evidenciando o caráter evolucionário do processo Estes conceitos iniciais possibilitamnos falar do processo histórico da matemática utilizando uma linguagem adequada à forma dada20 No entanto a partir deste ponto em diante utilizaremos a terminologia comunidade científica21 em lugar de pensamento coletivo pelo fato da primeira ser mais comum na literatura de história da ciência do que a segunda Em outras palavras para nossos fins definimos comunidade científica como um grupo de indivíduos que compartilham um estilo de pensamento 22 20 Algumas questões adicionais de Fleck como a profusão do conhecimento entre pensamentos coletivos serão retomadas no capítulo três 21 A terminologia comunidade científica teve maior impacto com a historiografia de Kuhn 1977 O conceito central desta historiografia no entanto é o de paradigma realizações científicas universalmente reconhecidas que durante algum tempo fornecem problemas e soluções modeladoras para uma comunidade de praticantes KUHN 1977 p 58 O paradigma de Kuhn equivale até certo ponto ao estilo de pensamento de Fleck Todavia o caráter evolucionista proposto por Fleck na transição de estilos de pensamento é substituído por Kuhn pela revolução científica Kuhn nos ensina que a revolução científica é uma ruptura de paradigmas de uma comunidade científica de tal forma que estes paradigmas sejam incomensuráveis Cientistas baseados em paradigmas incomensuráveis enxergam mundos completamente distintos A incomensurabilidade é um dos conceitos mais polêmicos do trabalho de Kuhn sobre o qual retomaremos na seção 45 e rendeu críticas réplicas e reformulações KUHN 2006b Para nossos propósitos ele limita a compreensão das metáforas e modelos como meios de comunicação entre comunidades ponto fundamental nesse trabalho 22 O fato de usarmos a terminologia comunidade científica no lugar de pensamento coletivo não deve ser remetida de forma alguma à historiografia de Kuhn Tampouco devese interpretar que os dois conceitos 25 Mostraremos neste capítulo portanto como um problema próprio de uma comunidade científica a matemática conduziu a ascensão de outra comunidade a de filósofos e lógicos da matemática Estilos de pensamento comuns às duas comunidades deram ao campo matemático os alicerces da teoria de conjuntos e estes por sua vez o ergueram através de uma construção axiomática No entanto a crise decorrente dos paradoxos na teoriabase de conjuntos implicou um movimento dentro da comunidade dos lógicos matemáticos provocando a cisão desta comunidade em diversas correntes filosóficas Finalmente o debate se orientou para a necessidade de formalização completa da matemática e busca das provas de consistência dos sistemas formais Neste ponto acreditamos que a importância do Teorema de Gödel para o círculo lógicomatemático será visível dentro de todo o contexto citado Como foi dito Gödel lançou uma pedra que caiu numa piscina e provocou ondas movimento que simboliza o impacto do teorema da incompletude Trataremos neste capítulo portanto das condições iniciais da piscina antes de Gödel lançar a pedra 12 A queda da supremacia de Euclides A partir da segunda metade do século XIX uma série de mudanças drásticas no pensamento científico interferiu profundamente na história do conhecimento As principais concepções que caracterizavam a ciência desde a antiguidade helênica essencialismo certeza determinismo verdade seriam colocados em xeque por novas teorias que impetraram o pensamento ocidental A teoria da evolução das espécies a relatividade a termodinâmica e a psicanálise são bons exemplos de mudanças estruturais do pensamento filosófico e científico Com isso o sonho iluminista da razão universal que levou à a busca da unidade de diversos campos como a física e a matemática se viu profundamente abalado Neste dados por seus respectivos proponentes são completamente equivalentes Cremos que nossa opção não deve prejudicar o entendimento de nossa linha historiográfica porque a terminologia comunidade científica não é exclusiva de Kuhn apenas tornouse mais comum devido ao impacto da obra deste autor Portanto o que fazemos aqui é utilizar um termo mais freqüente da história da ciência com um significado dado pela historiografia de Fleck Para um estudo comparativo das duas historiografias confira em CONDÉ 2005 26 ambiente cultural ocorreram mutações23 de estilos de pensamento importantes na matemática O cuidado com o rigor a consolidação da linguagem simbólica a axiomatização e aritmetização das teorias e a relação entre lógica e conjuntos foram pontos importantes mutuamente influentes que costuraram a rede matemática do século XX Até a Idade Moderna a matemática era sustentada epistemologicamente pelo tripé geometriaintuiçãovariável24 mas esta base foi gradativamente substituída por conjuntosaxiomáticaaritmética25 A mudança não foi fácil e envolveu pequenas e grandes crises epistemológicas Afinal o poder da geometria e da intuição era tão forte para os gregos que estes elementos se mantiveram como base para o desenvolvimento das teorias matemáticas até o século XVIII A geometria era o melhor exemplo de rigor e sobre ela os pilares do cálculo e da álgebra seriam erguidos com solidez No entanto alguns eventos tais como a crise do cálculo e a criação de geometrias não euclidianas contribuíram para a desconstrução do altar sobre o qual a geometria e a intuição reinavam26 Até os eventos do século XIX não se usava por exemplo a expressão geometria euclidiana tendo em vista que aquela geometria construída pelos gregos era o único modelo teórico de representação visual do espaço apesar dos esforços renascentistas em criar bases para a geometria das perspectivas A geometria de Euclides era uma síntese do pensamento científico grego A matemática grega é assim descrita por Bertrand Russell A Matemática é um estudo que quando iniciado de suas partes mais familiares pode ser levado a efeito em duas direções opostas A mais comum é construtiva no sentido da complexidade gradativamente crescente A 23 As mutações nos estilos de pensamento são transformações ocorridas gradualmente por força da dificuldade em resolver certos problemas produzidos pelas teorias das comunidades científicas Daremos mais atenção a este conceito na seção 42 24 A idéia da variável colocada aqui diz respeito ao momento da história da matemática em que o uso dos símbolos tornouse indispensável em quase todos os campos Nesta ocasião as grandezas não assumiram somente o valor de constantes como ocorria predominantemente na matemática grega O simbolismo adotado permitiu também declarar letras como variáveis e este processo foi fundamental para o desenvolvimento da álgebra do cálculo e da física 25 Este é um ponto re grande relevância histórica pois as raízes das concepções sobre os fundamentos da matemática de Gödel e seus contemporâneos estão neste tripé 26 Houve uma ruptura quanto ao lugar que a geometria ocupava no conjunto de pressupostos epistemológicos da matemática porém a geometria dos gregos não foi abandonada em razão dos eventos citados o que vem confirmar o caráter evolucionista proposto por Fleck 27 outra direção que é menos familiar avança pela análise para a abstração e a simplicidade lógica sempre maiores em vez de indagar o que pode ser definido e deduzido daquilo que se admita para começar indagase que mais idéias e princípios gerais podem ser encontrados em função dos quais o que fora o ponto de partida possa ser definido ou deduzido Os geômetras gregos antigos ao passarem das regras de agrimensura empíricas egípcias para as proposições gerais pelas quais se constatou estarem aquelas regras justificadas estavam praticando a Filosofia da Matemática RUSSELL 1966 p 9 A busca grega pelos elementos é comprovada pelas filosofias de Tales e Pitágoras e em obras como Os Elementos de Euclides e os Elementos de Cônicas de Apolônio com extensões fora do círculo matemático no Corpus Hippocraticum e em Da Arquitetura do romano Vitrúvio Em sua obra27 Euclides inicia a construção da geometria com uma lista de 23 definições seguida com uma lista de 5 postulados e 5 axiomas28 Os postulados são afirmações indubitáveis no que tange à intuição e à relação com o mundo físico A formulação dos postulados sugere uma aplicação imediata no desenho com régua e compasso como podem ser observados a seguir i traçar uma reta de qualquer ponto a qualquer ponto ii prolongar uma reta finita continuamente em uma linha reta iii descrever um círculo com centro e raio dados iv que todos os ângulos retos são iguais e v que se uma reta cortando duas retas faz os ângulos interiores de um mesmo lado menores que dois ângulos retos as retas se prolongadas indefinidamente se encontram desse lado em que os ângulos são menores que dois ângulos retos Os teoremas são afirmações que devem ser provadas por meio da combinação lógica de dois ou mais postulados Cada teorema provado é admitido como uma 27 Os Elementos consistem em 13 livros dos quais os de números I a VI versam sobre geometria plana VII a XIX sobre teoria de números X sobre incomensuráveis e XI a XIII sobre geometria no espaço Ao contrário do que se costuma pregar a obra de Euclides não é uma reunião do conhecimento matemático da época mas um compêndio introdutório que exclui diversos estudos mais avançados como por exemplo o estudo de cônicas HEATH 1956 28 Os dois termos postulado e axioma são sinônimos na matemática moderna mas para os gregos postulado era uma evidência própria de uma teoria específica e axioma uma evidência para qualquer teoria matemática 28 verdade29 que combinada com os postulados gera novos teoremas Assim o método axiomático desenvolvido pelos gregos funciona como uma máquina produtora de teoremas Assim como toda obra de impacto na história das ciências os elogios aos Elementos dividiram espaço com críticas principalmente quanto ao caráter intuitivo de seus conceitos fundamentais Mas a maior polêmica da obra de Euclides recai sobre o quinto postulado conhecido como postulado das paralelas30 Durante muito tempo foi levantada a hipótese de que a afirmativa postulada deveria ser um teorema De fato algumas questões são relevantes para tal desconfiança Em primeiro lugar a asserção como enunciada por Euclides parece mesmo com o enunciado de um teorema31 Em segundo lugar partindo da exigência de que o enunciado de um postulado deve corresponder a sua aplicação no mundo físico como é possível através da experiência sensível estender duas retas até se encontrarem se a soma dos ângulos que formarem com a transversal for muito próxima de dois retos A extensão indefinida como sugere o postulado é muito superficial32 29 Platão argumentava que conhecemos verdades da geometria que não aprendemos nem através da educação e nem da experiência Este conhecimento é um exemplo das verdades imutáveis Assim deve existir um reino da verdade absoluta e eterna a fonte e a base do nosso conhecimento Esta idéia predominou no estilo de pensamento matemático ocidental por mais de dois mil anos 30 A mesma geometria euclidiana pode ser construída se trocarmos o quinto postulado de Euclides citado acima por um equivalente por um ponto fora de uma reta passa uma e somente uma reta paralela à reta dada É possível mostrar que as duas construções são equivalentes Para tanto basta provar que os 5 postulados originais provam o postulado equivalente e que reciprocamente os quatro primeiros juntos com o postulado equivalente provam o quinto postulado original Há ainda outras formas equivalentes ao quinto postulado mas a versão que perdura até hoje nos manuais didáticos é esta enunciada pelo matemático e físico escocês John Playfair 17481819 31 É curioso observarmos que ao longo de Os Elementos Euclides usou pela primeira vez o quinto postulado como hipótese somente na demonstração do 29º teorema do livro I Antes deste Euclides ainda demonstrou um teorema que é exatamente a recíproca do quinto postulado usando somente os quatro primeiros postulados Esta observação motivou alguns historiadores a conjeturar que o próprio Euclides não estaria totalmente convencido de que o quinto postulado não poderia ser provado com uso dos outros quatro postulados No entanto não há documento histórico que possa corroborar tal conjectura 32 Proclus 410485 aC criticou o quinto postulado apontando a superficialidade da idéia de uma reta se encontrando com outra quando prolongadas indefinidamente Como a definição de reta dada por Euclides não deixa claro que este postulado seja óbvio poderseia imaginar como exemplo uma hipérbole que se aproxima tanto quanto se queira de sua assíntota sem encostarse a ela As retas paralelas do quinto postulado poderiam ter este comportamento GREENBERG 1994 pp 119120 29 Após séculos de tentativas malogradas de demonstração do quinto postulado por meio dos outros quatro33 trabalhos realizados principalmente por Gauss Bolyai e Lobachevsky em meados do século XIX mostraram que o postulado das paralelas era independente dos demais ou seja o postulado das paralelas e a sua negação não podem ser demonstrados Esta conclusão permitiu a construção de dois sistemas axiomáticos que negam o postulado das paralelas de Euclides34 o que abriu caminhos antes desconhecidos pela comunidade catequizada com o modelo sacrossanto de Euclides A matemática parecia então livre para modificar postulados antes canonizados mas a resistência à ampliação do campo geométrico persistiu afinal a geometria de Euclides arrancaria do conhecimento humano duas crenças o primeiro que não seria mais a representação visual do espaço físico mas uma possível representação e o segundo que não seria também uma garantia de verdade já que esta verdade deverá ser relativizada em cada contexto uma geometria deverá ser mais conveniente do que outra Este é o primeiro choque sofrido pela epistemologia herdada dos gregos que postula a verdade como entidade absoluta e descontextualizada Este choque colocaria as geometrias nãoeuclidianas à margem da comunidade matemática durante algumas décadas até que no final do século XIX Berhnard Riemann desenvolveu uma teoria unificadora das geometrias euclidiana e nãoeuclidianas Ele propôs um estudo para 33 Vejamos algumas das tentativas mais conhecidas Proclus procurou demonstrar o quinto postulado utilizando idéias de continuidade mas não foi bem sucedido pois tratou o termo indefinido como sinônimo de sem limites o que não é verdade Wallis 16161703 provou o quinto postulado a partir dos demais mas utilizou um novo axioma que para todo triângulo dado existe um semelhante Todavia os cinco postulados de Euclides são equivalentes aos cinco de Wallis logo o trabalho de Wallis não resolveu o problema proposto por Proclus apenas o transferiu de um sistema de postulados para o outro Saccheri 16671733 assumiu a negação do quinto postulado e procurou encontrar um absurdo Chegou em um quadrilátero com dois ângulos adjacentes retos e deduziu que soma dos outros dois não poderia ser maior que dois retos mas não conseguiu provar que não poderia ser menor que dois retos A partir disto deduziu várias propriedades geométricas estranhas mas não conseguiu aceitálas o seu estilo de pensamento não permitiu Saccheri havia desenvolvido uma Geometria não Euclidiana Id pp 121 127 34 Com efeito existem duas sentenças que negam o quinto postulado por um ponto fora de uma reta passa uma única reta paralela São elas por um ponto fora de uma reta passa mais de uma reta paralela geometria hiperbólica e por um ponto fora de uma reta não passa nenhuma reta paralela geometria esférica Esta foi a primeira vez na história da matemática que uma proposição foi rotulada como indecidível De fato o postulado das paralelas e suas negações poderiam então ser admitidos como verdades em diferentes sistemas axiomáticos Veremos no final deste capítulo e com mais detalhes no próximo capítulo que o Teorema de Gödel afirma a existência de proposições indecidíveis em diversos sistemas axiomáticos 30 geometria com uma abstração tal que as construções de Gauss e seus contemporâneos seriam casos particulares daquelas propostas por Riemann35 Outra questão que merece atenção por exercer forte influência para a constituição do estilo de pensamento de Gödel e seus contemporâneos é a idéia da aritmetização que emergiu junto com a de axiomatização de campos matemáticos As reflexões sobre o infinito evitadas pelos gregos voltaram ao foco dos estudos matemáticos devido à adoração divina que os escolásticos dedicavam a este objeto No entanto os matemáticos renascentistas viam o rigor grego no uso do sistema axiomático como um dos maiores obstáculos para o trato do infinito e para dominálo eles deixaram um pouco as exigências axiomáticas de lado e se debruçaram em resolver os problemas de quadraturas e tangência Sobre o tripé geometriaintuição variável nasceram então as técnicas infinitesimais de Newton e Leibniz mas toda a construção deste campo era imprecisa obscura e tautológica Por exemplo no monumental Philosophiae Naturalis Principia Mathematica Princípios Matemáticos de Filosofia Natural 1687 Newton abre a seção I do livro I com um Lema que pretende definir o limite de uma função Quantidades e as razões de quantidades que em qualquer tempo finito convergem continuamente para a igualdade e antes do fim daquele tempo aproximamse mais de uma da outra que por qualquer diferença dada se tornam finalmente iguais NEWTON 2002 p 71 A matemática de Newton carecia de uma estruturação axiomática e com o passar dos anos esta falta criou outro problema a disparidade entre os teoremas e as suas aplicações físicas A esta altura não era adequado ter a geometria como base epistemológica para toda a matemática não era seguro construir uma teoria matemática fora dos moldes euclidianos Tecnicamente a deficiência em axiomatizar o cálculo parecia jazer em dois conceitos que a geometria não era capaz de construir função e número real O primeiro destes conceitos a função era tratada até o final do século XIX sempre como expressão matemática às vezes como curva mas Lejeune Dirichlet percebeu que era necessário formular o conceito de forma abstrata envolvendo apenas 35 A proposta de Riemann nos mostra uma característica do estilo de pensamento desta época a tentativa de unificação de áreas de conhecimento Veremos que a teoria de conjuntos fornecerá uma importante ferramenta para esta proposta 31 a correspondência entre grandezas sem o apego à geometria ou às expressões matemáticas Sua definição se aproxima da moderna36 cuja formulação é mais abrangente Por via da teoria de conjuntos a definição moderna de função pressupõe conjuntos arbitrários enquanto a de Dirichlet se restringe aos conjuntos numéricos37 Então para Dirichlet e seus contemporâneos compreenderem o que era função era necessário compreender antes o que era conjunto e o que era número real Algumas tentativas de construção do sistema dos números reais o continuum linear procuravam desvencilhar a análise da geometria e aproximála da aritmética O sucesso desta empreitada deveuse ao alemão Richard Dedekind no livro Stetigkeit und die Irrationalzahlen A Continuidade e os Números Irracionais 1872 Para definir um número real Dedekind postulou a correspondência biunívoca entre os números reais e os pontos da reta para então definir um número real através de cortes a exata cisão do conjunto dos racionais em duas classes dispostas de tal modo que os elementos de uma majoram os de outra A formulação de Dedekind dada em termos puramente aritméticos foi a chave para a extensão do campo racional no continuum campo real Logo a definição de número real dependeria dos racionais estes por sua vez de uma relação de equivalência de inteiros e estes últimos dos naturais Percebeuse assim na aritmética e na teoria de conjuntos infinitos os suportes necessários para a fundamentação do cálculo análise matemática Enfim a aritmetização da análise consistiria em trocar a linguagem baseada numa intuição geométrica que dominava as técnicas processos infinitesimais pela linguagem lógica da aritmética processo brilhantemente explorado por Weierstrass Sua definição do limite de uma função é a que encontramos nos atuais manuais didáticos de matemática sejam fx uma função definida em um intervalo real a b e ca b Dizemos que o limite de fx quando x tende a c é o número real L se para todo 0 dado podese encontrar 0 de modo que se x a b e 0 x c então fx L Vemos claramente a exclusão de qualquer apelo intuitivo 36 Dirichlet definiu função como a relação entre duas variáveis x e y em que sempre que for atribuído um valor numérico a x existirá uma regra segundo a qual um único y fica também determinado 37 Segundo a definição moderna uma função f é uma relação binária entre dois conjuntos A e B nesta ordem isto é um conjunto de pares ordenados a b sendo a A e b B que goza das seguintes propriedades i para todo a A existe b B tal que ab f ii se a1 b1 f a2 b2 f e a1 a2 então b1 b2 32 metafísico ou sensitivo as únicas entidades envolvidas são aquelas da aritmética elementar números e relação de ordem O poder da aritmetização foi influente em praticamente toda a matemática Por exemplo os avanços da geometria projetiva realizados principalmente por Plücker colocaram a geometria analítica38 em um processo de aritmetização além de construir com rigor uma interpretação geométrica para o infinito A álgebra também soltava suas amarras renascentistas na medida em que os estudos de equações com variáveis davam lugar às estruturas algébricas Neste sentido a aritmetização e a axiomatização foram ingredientes fundamentais para a mudança de estilo de pensamento da comunidade matemática após 1850 Conforme veremos a seguir estes processos conduziram a matemática deste período para o seu terceiro tentáculo do novo tripé epistemológico a teoria de conjuntos Lugar de onde brotarão paradoxos responsáveis por uma crise na matemática O maior fruto desta crise será o Teorema de Gödel 13 A crise dos fundamentos Uma reforma matemática é desenhada no início do século XX e este esboço tem um cunho essencialista muito forte As tendências dominantes foram a crescente abstração distanciamento das ciências naturais aritmetização e axiomatização A natureza da matemática mudou percorrendo uma grande distância desde as caracterizações antigas como ciência da quantidade Euler ou ciência dos fatos gerais sobre as relações entre magnitudes Gauss Boole na tradição dos algebristas ingleses redefine a matemática como um cálculo simbólico e mais recentemente Cantor enfatiza em alternativa à representação simbólica a utilização de conceitos abstratos independentemente da eventual adequação ou aplicabilidade às outras ciências Para alguns como Gottlob Frege Giuseppe Peano e Russell a rota apontava para a grande matemática unificação geral e fundamentação para outros como Kronecker Brouwer e Poincaré apontam para a fragmentação falência dos 38 A geometria analítica consiste em substituir as técnicas da geometria grega baseada nas construções com régua e compasso por técnicas algébricas que tratam de relações entre grandezas Este processo foi desenvolvido no século XVII principalmente por Fermat e Descartes 33 fundamentos e crise de sérias conseqüências epistemológicas Estes últimos argumentavam que as teorias desenvolvidas empobreciam as componentes de cálculo dada a ênfase fundacional e operativa dos processos infinitos Duas linhas filosóficas se constituíram portanto a primeira denominada logicista priorizava o raciocínio conceitual sobre estruturas abstratas e a segunda denominada construtivista ou intucionista preferia a visão simbólica e computacional A oposição entre os dois pontos de vista tem uma importância para a matemática além do interesse filosófico quando referidos à abordagem do infinito matemático Para os construtivistas só é válido lidar com noções infinitárias se a representação simbólica for explícita e desde que as operações e relações sejam de natureza algorítmica Do outro lado do abismo os logicistas defendem que os objetos matemáticos infinitos podem ser caracterizados abstratamente e considerados no seu valor nominal apenas restringido aos requisitos mínimos de determinação e consistência O tratamento de conjuntos infinitos foi dado no final do século XIX por Cantor ao ressuscitar questões sobre o infinito como a de Galileu Galilei da correspondência biunívoca entre os números naturais e os pares39 Cantor desenvolveu a teoria dos números transfinitos e deduziu diversas propriedades acerca da cardinalidade de conjuntos infinitos O exemplo clássico é a correspondência biunívoca entre os racionais e os naturais e a demonstração de que os reais não podem ser colocados em correspondência biunívoca com os naturais Cantor definiu que o primeiro conjunto tem a potência40 dos naturais e o segundo não Percebeu então que há pelo menos dois tipos de infinito classificados como enumerável que é caso dos naturais e o continuum os reais No entanto Cantor não sabia se existia uma classe de infinito compreendida entre as duas classes conhecidas Conjeturou que não existia tal classe afirmação que ficou conhecida como hipótese do continuum A questão só foi resolvida em 1963 como veremos mais adiante Cantor sofreu duras críticas principalmente por 39 Galileu observou que o axioma de Euclides o todo é maior que qualquer de suas partes não vale quando os conjuntos são infinitos Como exemplo mostrou a correspondência entre naturais e pares 40 A potência é um conceito que estende para o caso infinito a idéia de número de elementos de um conjunto finito Mais tarde definiuse como cardinalidade de um conjunto a idéia que abrange os casos finito e infinito Convencionouse assim como א0 a cardinalidade dos naturais e сс a cardinalidade dos reais o continuum 34 Kronecker e Poincaré que denunciaram o aspecto vago da idéia geral de conjunto41 bem como o caráter não construtivo das provas indiretas usadas por Cantor em seus teoremas Apesar destas críticas a teoria de conjuntos parecia ser a pedra fundamental para o desenvolvimento de toda a matemática42 Até a aritmética poderia ter seu status modificado dentro do conhecimento matemático de estrutura primária para secundária Peano percebeu isto e formulou os axiomas que reduziriam a aritmética à lógica matemática por meio de um simbolismo relacionando lógica e conjuntos que expressa os teoremas matemáticos mais complicados em cálculo formal Para tanto definiu as noções básicas ser um número natural ser sucessor de e ser igual a e postulou i 0 é um número natural ii 0 não é sucessor de nenhum número natural iii todo sucessor de um número natural é um número natural iv cada número natural tem somente um sucessor e v um conjunto que contém o 0 e contem o sucessor de cada número natural pertencente a ele contém todos os números naturais43 Se os números carregam o peso de toda a matemática então os axiomas de Peano formariam o menor conjunto de premissas que definiriam os números naturais e portanto a base de toda a matemática Os métodos de Peano foram bem sucedidos na 41 Cantor 1915 p 85 definiu conjunto como qualquer coleção reunida numa totalidade de objetos definidos e distintos de nossa intuição ou pensamento 42 As questões que seguem a partir de então extrapolam a comunidade matemática e têm lugar na comunidade dos filósofos da matemática Os matemáticos propriamente não vêem problemas no uso da teoria de conjuntos pelo contrário utilizam a teoria de conjuntos como base para todas as construções teóricas São criadas portanto as estruturas grupos espaços vetoriais espaços topológicos variedades diferenciais etc O conjunto assume um status tal que em meados do século XX reformas educacionais apontaram a teoria de conjuntos como conteúdo fundamental na escola básica 43 Em Arithmetics principia nova methodo exposita 1889 Peano definiu Noções primitivas I As variáveis x y z e estas mesmas letras subscritas de índices II Uma constante 0 III Uma variável predicativa Φ IV Um predicado de um argumento ser natural V Dois predicados de dois argumentos é sucessor de e é igual a Axiomas I 0 tem a propriedade ser m número natural II Não existe natural x tal que x tem a propriedade ser natural e 0 é sucessor de x III Se x tem a propriedade ser natural e y é sucessor de x então y tem a propriedade ser natural IV Se x y e z1 é sucessor de x e z2 é sucessor de y então z1 z2 V Se 0 tem a propriedade Φ e se x tem a propriedade Φ e y é sucessor de x então y tem a propriedade Φ então qualquer natural z tem a propriedade Φ Confira em LADRIÈRE 1969 pp 3536 ou HEIJENOORT 1967 pp 8397 35 aritmetização da análise e da álgebra mas sua intenção em reduzir a aritmética em lógica matemática não escapou posteriormente de críticas Vejamos o exemplo de Russell44 Para o filósofo britânico os axiomas de Peano não caracterizam exclusivamente os números naturais Com efeito o fato de 0 ser um número natural e ser sucessor de serem conceitos primitivos quaisquer funções que eles assumissem deveriam produzir a seqüência de números naturais No entanto se tais conceitos significarem por exemplo 1 ser uma fração unitária e a metade a seqüência produzida será 1 12 14 18 116 etc e não 0 1 2 3 4 etc Um sistema de axiomas poderoso como o de Peano que caracterizasse exclusivamente o conjunto dos naturais era uma tarefa árdua sobre a qual Frege se dedicou boa parte de sua vida acadêmica Conseguiu nos dois volumes de Grundgesetse der Arithmetik Os Fundamentos da Aritmética 18901903 um sistema de axiomas que constrói o conjunto dos números cardinais em termos de conjuntos Após definir conjunto universo e conjunto vazio ele define 0 como o sucessor de um número e o conjunto dos números naturais Em seguida Frege prova os cinco postulados de Peano por meio de seu sistema de axiomas A construção de Frege parecia ser o passo decisivo para a redução da aritmética e portanto de toda a matemática ao binômio lógicaconjunto No entanto em 1902 em uma carta enviada a Frege antes de este terminar o segundo e último volume de Grundgesetse der Arithmetik Russell enunciou um paradoxo que fere a própria noção de conjunto45 Russell sugere dividirmos os conjuntos em duas classes a dos que são membros de si próprios e a dos que não são membros de si próprios que será representada por C A questão é C é um membro de si próprio46 Qualquer resposta leva a uma contradição Com efeito se C é um membro de si próprio não pode pertencer à classe representada 44 RUSSELL 1966 pp 1417 45 No apêndice do segundo volume de Grundgesetse der Arithmetik Frege responde à carta de Russell de uma forma melancólica Nada pior praticamente pode acontecer a um autor científico do que ver uma das fundações de seu edifício ser abalada depois de terminada a obra Fui colocado nessa posição por uma carta contendo o paradoxo de Mr Bertrand Rusell exatamente quando a impressão deste segundo volume estava quase pronta HEIJENOORT 1967 pp 8397 Existe também uma tradução inglesa do Grundgesetse der Arithmetik FREGE 1950 46 Em símbolos o paradoxo de Russel é assim enunciado seja C o conjunto descrito pela relação XCXX No caso em que C assume o valor de X temse CC CC O paradoxo de Russell ganhou do seu criador uma versão popular o barbeiro de uma cidade seguia uma regra segundo a qual ele barbeava todas as pessoas da cidade e somente elas que não se barbeavam a si mesmas Quem barbeava o barbeiro 36 por C que é a dos conjuntos que não são membros de si próprios Mas esta última frase equivale a dizer que C não é um membro de si próprio Isto é uma contradição Supondo reciprocamente que C não é um membro de si próprio chegamos analogamente a uma contradição A partir de então paradoxos pipocaram na teoria de conjuntos o que deu origem à terceira crise dos fundamentos da matemática47 A existência de paradoxos na teoria de conjuntos abrira a ferida da inconsistência de todo o edifício matemático48 A consistência de uma teoria significa a impossibilidade de se provar ao longo de toda a sua construção axiomática dois teoremas contraditórios ou seja provar uma proposição P e sua negação nãoP Russell e Poincaré indicaram que o cerne dos paradoxos estava nas definições impredicativas envolvidas na teoria de conjuntos Dito de outro modo um conjunto se define pelos seus elementos se desejarmos destacar um elemento cuja definição depende do conjunto então entramos em um círculo vicioso Mas as concordâncias entre Russell e Poincaré param por aqui Representantes de correntes filosóficas distintas o primeiro era logicista e o segundo construtivista Russell acreditava que era possível resolver a questão das definições impredicativas reduzindo toda a matemática à lógica Poincaré observou que fundamentando a matemática por processos construtivos evitarseia os círculos viciosos Foi portanto na linha de pensamento de Frege e Peano que o trabalho de Russell e Whitehead se formou Na obra monumental Principia Mathematica foi 47 A primeira crise ocorreu com a descoberta grega da incomensurabilidade e a segunda foi a crise do cálculo diferencial e integral mencionada neste texto Destas crises porém podese dizer que as duas primeiras realmente abalaram o estilo de pensamento da comunidade matemática pois colocaram em xeque a concepção de número e toda construção teórica conseqüente desta concepção Na primeira crise a idéia grega de número como quantidade não era capaz de explicar a existência de incomensuráveis e na segunda crise não havia uma concepção formalizada de número real capaz de dar suporte para a definição de limite A terceira crise no entanto não afetou os matemáticos pois ao contrário das duas anteriores ela não surgiu como um impedimento para o desenvolvimento de teorias matemáticas emergiu de uma discussão própria de filósofos da matemática 48 Os paradoxos lógicos ressuscitaram uma discussão acerca dos paradoxos semânticos gregos que antes destes eventos interessavam apenas aos filósofos mas agora estavam sob ao olhar crítico dos lógicos matemáticos Um paradoxo semântico que remonta os gregos é o seguinte Protágoras ensinou Euathlos a argumentar Combinaram o pagamento da metade da quantia no fim do curso e a outra metade quando Euathlos ganhasse a sua primeira causa Como o pagamento da segunda metade demorou Protágoras processou Euathlos Argumentos de Protágoras se ele ganhar terá que me pagar já que ele ganhou a sua primeira causa se ele perder terá que me pagar já que eu ganhei a causa contra ele Argumento de Euathlos se eu ganhar nada terei que pagar já que ganhei a causa se eu perder nada terei que pagar já que não ganhei ainda nenhuma causa Qual dos dois está com a razão 37 desenvolvido o novo método que de fato derivou a aritmética de axiomas e conceitos lógicos O objetivo geral de Russell e Whitehead no entanto avançava para fora das fronteiras da aritmética Eles queriam desenvolver um programa para provar que toda a matemática pode ser construída a partir de alguns axiomas lógicos Seu objetivo específico era eliminar as definições impredicativas que dão origem aos paradoxos O fio condutor do Principia Mathematica é a teoria ramificada dos tipos O pressuposto é a idéia de que toda classe ou conjunto corresponde um tipo e uma classe pode conter apenas elementos de menor tipo Assim as classes devem possuir tipo maior que o tipo de cada um de seus membros evitando o círculo vicioso das definições impredicativas e portanto os paradoxos como o de Russell Os números naturais por exemplo são construídos como segue 0 representa o que tem de comum as classes sem elementos 1 o que tem de comum nas classes com um elemento 2 nas duplas e assim por diante Russell definiu portanto o número de uma classe como a classe de todas as classes similares a ela sendo a similaridade uma relação biunívoca entre as duas classes Em seguida definiu o número como qualquer coisa que seja o número de uma classe Esta definição parece tautológica mas não é pois a definição de número de classe não usa a noção de número em geral A teoria dos tipos não produz os indesejáveis paradoxos conhecidos No entanto um grande problema seria gerado por uma teoria que excluísse as definições impredicativas da matemática49 Conceitos fundamentais seriam banidos da matemática como por exemplo o de supremo de um conjunto de números reais50 básico para a construção de todo o campo da análise Era um preço muito alto para a consistência da teoria dos conjuntos Outra proposta seria a de Poincaré e os demais intucionistas Eles justificaram que o paradoxo de Russell ocorreu devido ao uso do princípio do terceiro excluído que deveria ser banido da matemática A explicação para esta exigência é que segundo os intucionistas a matemática é uma ciência desenvolvida segundo o nosso sentido temporal portanto devese utilizar somente os métodos construtivos finitos Com efeito 49 Havia também uma questão lógica apontada por Wittgenstein O erro de Russell mostrase no fato de ter precisado falar da significação dos sinais ao estabelecer as regras notacionais Nenhuma proposição pode enunciar algo de si mesma porque o sinal proposicional não pode estar contido em si mesmo isso é toda a Teoria dos Tipos WITTGENSTEIN 1995 3331 3332 50 O supremo de um conjunto de números reais limitado superiormente é definido como a menor das cotas superiores deste conjunto 38 o terceiro excluído permite demonstrar asserções embaraçosas como a seguinte Existem sete 7s consecutivos na representação decimal do numero Vejamos a demonstração do fato por ter infinitas casas decimais e como ainda ninguém conseguiu verificar se na representação decimal de o número 7 aparece sete vezes seguida não se pode dizer que isto não ocorre Logo não faz sentido também negar o teorema pelo princípio do terceiro excluído O cerne desta questão está segundo os intucionistas no envolvimento do infinito Ou seja muito provavelmente provar o teorema acima significa testar todas as infinitas possibilidades Como o princípio do terceiro excluído é a base para do raciocínio reductio ad absurdum todas as provas deste tipo eram também repudiadas pelos intucionistas Tais idéias não deixam de ser particularmente interessantes pois dão um sentido histórico para a construção do pensamento matemático mas na prática exigiriam a reconstrução de quase toda a rede de conhecimento matemático empreendimento que não angariou simpatias e acabou por ser abandonado A esta altura parecia não haver um remédio para curar o mal da inconsistência sem que os efeitos colaterais fossem tão nocivos como eram os que as escolas logicista e intucionista apresentaram a mutilação de uma grande parte da rede matemática arduamente tecida desde a Antigüidade grega até o século XX 14 Consistência e formalização A questão da inconsistência tem relevância em nosso trabalho porque é o núcleo do Teorema de Gödel Conforme já mencionamos anteriormente Gödel mostrará sob certas hipóteses que nenhuma teoria matemática pode ser construída com a pretensão de evitar simultaneamente a inconsistência e a incompletude51 Esta segunda anomalia a incompletude era até então algo impensável Até a década de 1930 todos os esforços da comunidade matemática estavam concentrados em resolver o primeiro mal a inconsistência Como vimos nos parágrafos anteriores quase todos os sistemas 51 Estes conceitos já foram mencionados em diversas vezes neste trabalho mas vale a pena relembrar para distinguílos A inconsistência significa a existência dentro de um sistema axiomático de proposições que se contradizem mutuamente e a incompletude significa a existência de afirmações sobre objetos de um sistema axiomático que não são nem teoremas e nem negações de teoremas isto é são indecidíveis 39 axiomáticos da matemática foram fundamentados na teoria de conjuntos Como esta produz paradoxos então todo o edifício matemático corria o risco da inconsistência Uma possível solução para o problema foi sugerida por Zermelo em 1908 Se a inconsistência do edifício matemático é gerada pela base a teoria de conjuntos por que não construir uma teoria axiomática para a teoria de conjuntos e encontrar assim uma solução para os paradoxos produzidos por ela A questão é pertinente e a empreitada inicialmente executada por Zermelo teve a colaboração de Fraenkel 1922 e von Neumann 192452 A axiomática de conjuntos seria uma boa saída para desvendar o paradoxo de Russell e ainda resolver a hipótese do continuum mencionada na seção anterior Na teoria axiomática dos conjuntos as noções primitivas como conjunto e ser subconjunto de obedeciam a axiomas que lhes tirava o caráter aleatório que Cantor deixou escapar Em suas reflexões sobre os paradoxos Zermelo percebeu que na sua construção axiomática não havia lugar comum para duas asserções a consideração livre de conjuntos como o conjunto universal e a caracterização de um conjunto por uma propriedade de seus elementos Por considerar muito natural a segunda consideração Zermelo descartou a primeira e por conseguinte o conjunto de todos os conjuntos ou o conjunto de todos os conjuntos que não pertencem a si mesmos Para Zermelo os paradoxos surgem quando admitimos agregados excessivamente grandes No entanto afirmou que era possível definir conjuntos infinitos desde que construídos a partir de algum conjunto preexistente Por exemplo a partir do conjunto dos números naturais construímos os inteiros usando relações de equivalência de pares ordenados de naturais dos inteiros construímos os racionais pela mesma técnica algébrica dos racionais construímos os reais como mostrou Dedekind e finalmente os complexos como pares ordenados de reais Conjuntos cada vez maiores em termos de cardinalidade podem ser formados a partir de qualquer conjunto Nesta linha Zermelo formulou o axioma da especificação53 dados um conjunto A e uma propriedade P existe um conjunto M cujos elementos são os elementos de A que satisfazem a propriedade P 52 E mais recentemente Paul Bernays 1963 53 Em símbolos MxAPx 40 Os axiomas de Zermelo54 evitaram os paradoxos sobre conjuntos mas em nenhum momento sua teoria discute tais antinomias e nem dá garantias de que não haverá lugar para outras Mas um deles denominado axioma da escolha acendeu os mais intensos debates Seu enunciado é se for uma coleção de conjuntos e nenhum dos conjuntos de for vazio então existe um conjunto Z que contem exatamente um elemento de cada conjunto de A questão que incomodou uma parcela de matemáticos diz respeito à abrangência de cuja magnitude pode não garantir a possibilidade de escolha de elementos como sugerido no axioma55 O incômodo provocado pelo axioma da escolha foi similar ao do postulado das paralelas da geometria euclidiana56 mas o ambiente histórico que envolveu o episódio das geometrias não euclidianas foi mais incisivo pois a natureza das dúvidas suscitadas era uma novidade os sistemas axiomáticos correspondentes às duas teorias geradas pelos postulados alternativos ao quinto seriam consistentes 54Além do axioma da especificação a teoria comporta outros nove axiomas ii axioma da extensionalidade xyxyAxxAxy iii axioma de separação wyxxyπxxw iv axioma dos pares xyzxzyz v axioma da união xyzwwxzwzy vi axioma das partes xyzzxzy vii axioma do Infinito xxyyxyyx viii axioma da fundação xyyx yyxzzyzx ix axioma da escolha x yyx Em 1922 Thoralf Skolem e Abraham Fraenkel independentemente propuseram um novo axioma esquema denominado Axioma esquema da substituição wxwyφxyzyyzx wφx y 55 Russell 1966 p 123 nos mostra com um exemplo lúdico a dificuldade que o axioma da escolha pode nos proporcionar Conta a história de um milionário que comprava um par de meias sempre que comprava um par de botas e nunca em qualquer outra ocasião até obter um numero infinito mas enumerável de pares de sapatos assim como de meias Parece obvio que existe uma bijeção entre os sapatos e os números naturais e uma bijeção entre as meias e os números naturais A bijeção dos sapatos não é difícil de ver cada pé esquerdo corresponde a um número ímpar e cada pé direito corresponde a um número par No entanto o mesmo não pode ser feito com as meias já que os pés de meias são indistinguíveis Ou seja para que o mesmo procedimento funcione nesse caso é necessário que as meias de todos os pares sejam diferentes e esta diferença deve seguir algum critério por exemplo um pé de uma cor e outro de outra cor O fato de que não existe um modo sistemático de escolher uma meia de um par significa que precisamos de uma função de escolha mesmo que não possamos apresentála explicitamente 56 Ainda assim predominou entre os matemáticos a aceitação do axioma da escolha De fato durante as décadas que seguiram ele foi fundamental para a demonstração de teoremas importantes tais como Princıpio de tricotomia em todo par de números cardinais um é menor que o outro ou eles são iguais Lema de KuratowskiZorn qualquer conjunto não vazio no qual todo subconjunto ordenado possui um limite superior possui um elemento maximal Teorema de Tychonov o produto de qualquer família de espaços topológicos compactos é compacto e Teorema de HamelBanach todo espaço vetorial possui uma base 41 Provar que uma teoria matemática é consistente não é uma empreitada fácil Para tanto devese garantir que o conjunto de postulados de sua teia axiomático nunca poderá gerar dois teoremas contraditórios entre si Na outra mão para afirmar que uma teoria é inconsistente devese exibir tais teoremas57 Nosso olhar para a questão nos mostra que a priori a segunda tarefa parece ser muito complicada e a primeira impossível Com efeito podemos analisar todos os teoremas já demonstrados pela teoria em questão mas como garantir que não surja no futuro nenhum par de teoremas contraditórios As primeiras provas conhecidas sobre consistência foram apresentadas ainda no século XIX e vieram exatamente com o advento das geometrias não euclidianas A compreensão visual das geometrias não euclidianas dependia de modelos interpretativos Riemann Cayley Klein e Beltrami se encarregaram da empreitada e a partir dos modelos criados por eles foi possível provar a consistência das geometrias não euclidianas Vejamos o caso da geometria riemanniana cujo correspondente do quinto postulado reza que por um ponto fora de uma reta não passa nenhuma paralela Riemann determinou que a esfera seria o plano desta geometria as retas seriam circunferências máximas com raio igual ao da esfera e cada ponto corresponderia a um par de pontos antípodas desta esfera Não é difícil ver que os quatro postulados de Euclides são válidos para este modelo bem como a negação do quinto descrito acima58 Logo a estrutura definida serve como modelo para a geometria riemanniana Como o modelo é construído com entes da geometria euclidiana tridimensional então a consistência da geometria riemanniana segue imediatamente da 57 Esta tarefa nunca foi executada pelos críticos das geometrias nãoeuclidianas 58 Com efeito o primeiro postulado traçar uma reta de qualquer ponto a qualquer ponto equivale a dois pares de antípodas determinam uma circunferência máxima o segundo prolongar uma reta finita continuamente em uma linha reta equivale a prolongar um arco de circunferência máxima ao longo da circunferência máxima que o contém continuamente o terceiro descrever uma circunferência com centro e raio dados não precisa de interpretações equivalentes pois qualquer circunferência riemanniana é uma circunferência euclidiana sobre uma esfera o quarto que todos os ângulos retos são iguais também pode ser interpretado da mesma forma bastando definir corretamente o ângulo reto sobre a esfera o que pode ser feito de maneira similar a de Euclides quando uma reta levantada sobre outra forma ângulos adjacentes iguais cada um dos ângulos iguais tem o nome de ângulo reto e a que se eleva sobre a outra se chama perpendicular a esta outra Definição 10 Livro I O equivalente do quinto também é válido porque duas circunferências máximas sempre se interceptam em dois antípodas ou seja em um ponto riemanniano 42 consistência da geometria euclidiana59 Todavia a própria consistência da geometria euclidiana foi contestada durante a crise dos fundamentos Neste caso objetarseia que a prova de consistência dada acima não é absoluta mas relativa pois ela pressupõe como hipótese a consistência da geometria euclidiana Mas esta contenda só ocorreria no século XX e o seu principal crítico foi Hilbert Na tentativa de mostrar a consistência da geometria euclidiana Hilbert mostrou que é possível reescrever todos os postulados da geometria euclidiana em termos dos objetos da álgebra elementar trocando ponto por par ordenado reta por equação linear de duas variáveis etc Assim por exemplo a expressão por dois pontos passa uma e somente um reta da geometria grega sintética é traduzida como dois pares ordenados são soluções de uma e somente uma equação linear de duas variáveis da geometria cartesiana analítica Entretanto Hilbert obteve desta forma mais uma prova relativa pois a consistência da geometria euclidiana dependeria agora da consistência da álgebra elementar Uma prova relativa não responde diretamente uma questão mas a transfere de sistema axiomático para outro Neste caso ainda fica a tese como dar uma prova absoluta de que um sistema axiomático na matemática é consistente 60 59 A outra vertente de geometria euclidiana tem a sua demonstração de consistência similar Os dois modelos mais conhecidos para esta geometria são o de Klein que considera como plano um círculo as retas são cordas e os pontos são os pontos euclidianos habituais e o de Beltrami que considera como plano a pseudoesfera e como pontos os pontos euclidianos habituais sobre esta superfície as retas não são de mesma natureza como nos demais modelos citados e sua explanação foge dos nossos propósitos GRENNBERG 1994 60 As provas relativas de consistência também povoaram a teoria axiomática de conjuntos durante muitas décadas e elas contribuíram para diminuir o abismo filosófico entre construtivistas e logicistas provocado pelo axioma da escolha Os primeiros admitiam como teoria axiomática de conjuntos aquela que não contém o axioma da escolha indicada por ZF e denominada teoria dos conjuntos restrita enquanto os segundos admitiam o axioma da escolha e por isso indicamos a teoria axiomática correspondente por ZFC e denominamos teoria dos conjuntos standartizada Após a divulgação do seu teorema Gödel focalizou suas pesquisas na teoria de conjuntos Nesta área desenvolveu o que chamamos de método dos modelos internos conjuntos construtíveis e em 1938 provou que se ZF for consistente então ZFC também será Isto acalmou os ânimos dos construtivistas afinal se algum par de teoremas contraditórios germinarem de ZFC então o culpado provavelmente não será o axioma da escolha pois esta inconsistência certamente já existia em ZF E Gödel foi ainda mais longe usando o mesmo método debruçouse sobre a hipótese do continuum e provou que se ZF for consistente então ZF mais a hipótese do continuum também será GÖDEL 1977b Em 1964 um brilhante método foi inventado por Paul Cohen o que lhe valeu uma medalha Fields em 1966 O método de Cohen permitiu mostrar a independência relativa da hipótese do continuum e do axioma da escolha COHEN 1977 Isto é a hipótese do continuum e o axioma da escolha estão para a teoria de conjuntos assim como o postulado das paralelas está para a geometria euclidiana 43 Esta questão era o tema central das investigações de Hilbert no campo da filosofia da matemática Sua linha representava a vertente dos pensadores que viam a matemática como um campo do conhecimento que trata de sistemas simbólicos formais o que deu ao programa de Hilbert a denominação formalista O programa formalista de Hilbert é uma continuação muito clara das concepções que os matemáticos vinham tecendo no século XIX de destituir da matemática qualquer subjetividade Neste sentido a matemática passaria a ser um conjunto de símbolos munidos de regras de operacionalização necessárias para produzir fórmulas que na linguagem corrente se traduzem como teoremas O projeto de Hilbert parece se assemelhar com o de Russell no entanto Hilbert não utilizou um formalismo reducionista como o de Russell Ele acreditava que a lógica era uma importante ferramenta para a matemática e não a base fundamental da matemática Para Russell a matemática se reduz à lógica e para Hilbert existe uma grande matemática pronta e consistente para a qual a lógica é o meio de acessála Hilbert percebeu a certa altura que a dificuldade para encontrar uma prova absoluta de consistência residia no fato de que os postulados dos mais importantes sistemas axiomáticos na matemática versam sobre uma quantidade infinita de elementos e o trato com conjuntos infinitos não dá garantias de consistência interna61 A única forma de argumentar em sistemas deste tipo seria mencionando os elementos envolvidos em sua forma geral processo estudado dentro do programa formalista A tradução de teoremas matemáticos em fórmulas dentro de um sistema formal era para Hilbert a chave para a demonstração absoluta da consistência e o sucesso de seu empreendimento seria alcançado se evitasse técnicas que envolvessem o infinito ou 61 Nagel e Newman 1973 pp 2324 dão um exemplo muito engenhoso de uma prova absoluta de consistência Definem os seguintes postulados acerca de duas classes K e L arbitrárias i quaisquer dois membros de K estão contidos em apenas um membro de L ii nenhum membro de K está contido em mais do que dois membros de L iii os membros de K não estão todos contidos em um único membro de L iv quaisquer dois membros de L contem apenas um único membro de K e v nenhum membro de L contém mais do que dois membros de K A consistência deste sistema pode ser provada através da interpretação do mesmo em um modelo da geometria euclidiana o triângulo Neste modelo L seria a classe dos lados e K dos pontos Não é difícil ver que os postulados se aplicam a este modelo o que prova que ele serve de fato para interpretar o sistema Como as expressões equivalentes do sistema no triângulo são imediatamente verdadeiras pois seguem da definição de triângulo então o sistema é consistente Nesta prova fica claro como a finitude do número de elementos foi crucial para a demonstração da consistência 44 seja propriedades estruturais fórmulas e operações deveriam todos ser utilizados em quantidades finitas processo denominado como finitário A partir das provas relativas de consistência Hilbert conjeturou que a matemática não era capaz de provar proposições sobre ela mesma e deduziu que não havia como provar matematicamente que um sistema matemático é consistente O método a ser desenvolvido para provar esta consistência portanto deveria consistir em uma meta teoria para a matemática62 As contribuições de Peano Frege e Russell já mencionadas foram importantes para o desenvolvimento desta metateoria mas o formalismo de Hilbert foi fundamental e seguindo uma filosofia da matemática realista ele desenvolveu a teoria da demonstração ou metamatemática63 A correspondência entre lógica e conjuntos foi vital para aproximar a axiomática de sua formalização mas a transformação em processamento estritamente mecânico se daria apenas com o sistema formal puro Nele a linguagem simbólica é rigorosamente definida e os procedimentos de dedução são explicitados Para compreendermos o poder de um sistema formal puro vejamos um exemplo na teoria formalizada de grupos definimos o grupo como um conjunto munido de uma operação binária denominada produto para a qual se verificam os axiomas i o produto de dois elementos do conjunto é um elemento do conjunto ii o produto goza da propriedade associativa iii o conjunto possui um elemento unidade que preserva todo elemento pela operação produto iv todo elemento do conjunto corresponde a outro denominado inverso sendo a unidade o resultado do produto destes dois elementos 62 O desenvolvimento desta metateoria não germinou com o programa formalista ocorreu gradativamente na medida em que o sonho idealista da Characteristica Universalis de Leibniz parecia ser a primeira possibilidade de se efetivar com o inglês George Boole 18151864 que tratou a lógica pela primeira vez como um cálculo de símbolos algébricos em Mathematical Analysis of Logic Análise Matemática da Lógica publicada em 1847 Este pensamento alimentado pelo essencialismo grego e sua versão iluminista transformaram gradualmente a matemática moderna em linguagem simbólica eliminando conceitos carregados de estilos de pensamento 63 O programa hilbertiano de fundamentação da Matemática encontra seu paralelo no programa dos empiristas lógicos Círculo de Viena Carnap e seus pares buscavam a justificação das ciências naturais através da construção de uma lógica indutiva Nos dois casos tratavase de justificar a linguagem objeto de estudo Para Hilbert era a matemática e para Carnap eram as ciências naturais Em ambos os casos isto seria possível se utilizarmos uma metalinguagem absolutamente confiável 45 A teoria formalizada no entanto seria da seguinte maneira64 Noções primitivas 1 As variáveis x y z e estas mesmas letras subscritas de índices 2 Uma constante U 3 Uma função de dois argumentos 4 Um predicado de dois argumentos 5 Dois operadores proposicionais de um argumento x e x 6 Um operador proposicional de um argumento 7 Dois operadores proposicionais de dois argumentos e Variáveis sintáticas 8 Toda variável é um termo 9 A constante U é um termo 10 Se α1 e α2 são termos então α1 α2 também é um termo 11 Se α1 e α2 são termos então α1 α2 é uma proposição 12 Se A for uma proposição contendo a variável x então são proposições xA e xA 13 Se A for uma proposição então A é também uma proposição 14 Se A e B são proposições então são proposições A B e A B Axiomas 15 x yz x y z 16 x x U x 17 xy x y U 18 x y z x y z x y z 19 A A A 20 A A B 21 A B B A 22 A B Γ A Γ B 23 x A x α A 24 A x α x A 64 LADRIÈRE 1969 pp 3952 46 Regras de derivação 25 A A B B 26 A B A xB 27 A B xA B A teoria consiste portanto em axiomas 15 a 18 que caracterizam um grupo axiomas 19 a 22 e uma regra 25 que correspondem a uma lógica de proposições e axiomas 23 e 24 e regras 26 e 27 que determinam como podemos utilizar os quantificadores Para Hilbert formalização de uma teoria matemática transforma esta teoria em um processo mecânico similar a um jogo de símbolos sem nenhum sentido Deste modo a garantia da consistência seria alcançada pela metamatemática cuja força daria a ele a segurança de que a matemática é a ciência da certeza A crença arraigada na préexistência da matemática platonismo era o motor que impulsionava esta convicção No entanto as publicações do Teorema de Gödel em 1931 mostraram que é impossível alcançar os objetivos do programa de Hilbert Com efeito um sistema formal como proposto por Hilbert é segundo o Teorema de Gödel incapaz de provar a sua própria consistência E ainda caso o sistema em causa seja consistente ele necessariamente produzirá indecidíveis Isto é conforme já mencionamos anteriormente o Teorema de Gödel mostra que consistência e completude são dois conceitos que não cabem dentro de um mesmo sistema formal nos moldes pretendidos por Hilbert Este foi um golpe do qual os fundacionistas nunca se recuperaram como veremos com mais detalhes no próximo capítulo 15 Considerações finais Vimos neste capítulo um quadro geral das mudanças conceituais da matemática entre as décadas de 1850 e 1930 Sinteticamente podese caracterizar estas 47 mudanças como uma mudança de uma base geometriaintuiçãovariável para conjuntosaxiomáticaaritmética A primeira base foi constituída pela extensa aplicação da idéia de variável na matemática que contribuiu dentre os vários progressos para o desenvolvimento do cálculo diferencial e integral Outro ingrediente foi a força metodológica da geometria axiomática grega conhecida como exemplo de pureza do raciocínio lógico humano Todavia a excessiva carga de intuição destinada ao pensamento matemático até o século XVIII foi um fator que trouxe a estes campos lacunas epistemológicas responsáveis por uma reavaliação do estilo de pensamento matemático Como resultado foram desenvolvidas novas geometrias e a visão geométrica do cálculo foi trocada pela visão aritmética da análise Neste caminho conjuntosaxiomática aritmética passaria a ser a nova base da matemática A teoria de conjuntos teria um papel fundamental para os processos de axiomatização e aritmetização da matemática O seu poder motivou matemáticos e filósofos se preocuparem cada vez mais com o rigor lógico desta ciência até que os paradoxos surgiram no caminho Em um contexto onde as teorias matemáticas devem ser todas conduzidas pela teoria de conjuntos a existência de contradições nesta teoria seria a ruína de todo um estilo de pensamento A matemática não produziria apenas um novo problema mas uma nova família de problemas os problemas de consistência de teorias matemáticas Neste sentido a aritmetização e a axiomatização sugeriram uma transferência dos problemas de consistência de teorias matemáticas para uma única tese a consistência da aritmética Dela resultaria a consistência dos demais campos A importância deste problema para a matemática do século XX o colocou na famosa lista dos 23 problemas do século XX formulada por Hilbert Como demonstrar a consistência da aritmética Gödel mostrou que nenhuma teoria contendo a aritmética pode provar sua própria consistência Mostrou ainda que caso esta teoria seja consistente ela necessariamente produzirá sentenças indecidíveis Observe que Gödel não deu uma resposta negativa ao problema de Hilbert mas certamente apagou a chama que acendia o projeto formalista Deixemos no entanto para o próximo capítulo análises deste tipo 48 O que podemos sintetizar nos parágrafos anteriores é a ocorrência no período de 1850 a 1930 de um movimento de mudanças conceituais técnicas filosóficas e dos pressupostos teóricos e metafísicos em relação à matemática Enfim este período caracterizase como um período de mutações do estilo de pensamento da comunidade matemática de uma intensidade comparável a alguns poucos momentos na história da matemática Podemos mencionar as mudanças gregas na Antiguidade ou as ocorridas no Renascimento Esta mudança não foi repentina nem linear mas gradual e descontínua Por exemplo vimos o advento das geometrias nãoeuclidianas como um gérmen destas transformações conceituais mas devemos nos lembrar que a discussão sobre as geometrias nãoeuclidianas não começou no século XIX O mesmo poderia ser dito com a aritmetização da análise ou outros fatos do período Estas observações evidenciam o caráter transitório dos estilos de pensamento pressuposto historiográfico defendido por Fleck Todo estilo de pensamento contém descendentes do desenvolvimento histórico de vários elementos de outros estilos Provavelmente muito poucos conceitos completamente novos são formados sem relação qualquer a um estilo de pensamento anterior Normalmente apenas muda seu colorido como o conceito científico de força originou do conceito cotidiano de força também o novo conceito de sífilis origina do místico Desse modo nasce uma conexão histórica entre os estilos de pensamento FLECK 1979 p 75 Os conceitos e técnicas não são rígidos e suas transformações mostram que não há necessariamente acúmulo de conhecimento mas uma mutação do estilo de pensamento O termo é apropriado da biologia por Fleck e parece estar de acordo com o movimento histórico que observamos As mutações gradativas preparam o ambiente social e epistemológico da comunidade para grandes descobertas como sugere Fleck essa mudança no estilo de pensamento isto é mudança na disposição para a percepção dirigida oferece novas possibilidades para descobrir e criar novos fatos FLECK 1979 p 144 Como exemplo podemos citar o desenvolvimento da metamatemática decorrente às questões dos fundamentos como parte de um estilo de pensamento que propiciou uma linguagem e um conjunto de técnicas fundamentais para Gödel demonstrar o seu teorema Nosso trabalho consiste em mostrar que o Teorema de Gödel é responsável por uma mutação do estilo de pensamento fora do círculo lógico matemático É possível um 49 teorema abstrato como este provocar um impacto tão grande em teorias que falam de objetos não matemáticos Veremos que sim mas antes devemos nos ocupar no próximo capítulo sobre como foi o impacto dentro do círculo lógico matemático

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