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Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 257 1 Uma parte do presente texto assinada por LCF integrou uma resenha publi cada na Revista ide outra parte escrita por MM que agradece a interlocução de Cintia Buschinelli foi publicada em coautoria com Giuliana Gouveia responsável pela realização da entre vista no livro Adolescência e violên cia organizado por David Léo Levisky Ambas foram transformadas para com por o presente trabalho e a elas se acres centaram partes novas escritas a quatro mãos Psicanalista professor da PUCSP e da USP Psicanalista Membro Efetivo e Ana lista Didata da SBPSP PESQUISA EM PSICANÁLISE ALGUMAS IDÉIAS E UM EXEMPLO1 Luís Claudio Figueiredo e Marion Minerbo RESUMO Inicialmente os autores diferenciam pesquisa em psicanálise de pesquisa com o método psicanalítico No primeiro caso a psicanálise é o objeto da pesquisa e o pesquisador não precisa ser um psicanalista atuante Pode ser um filósofo um historiador um sociólogo ou um crítico literário No segundo caso requerse um psicanalista Após a pesquisa o objeto o sujeito o pesquisador e seus meios de investigação conceitos técnicas são transformados Em seguida o procedimento é minuciosamente exemplificado pela análise de uma entrevista Nas considerações finais considerase ao lado da dimensão investigativa a dimensão terapêutica da pesquisa bem como o seu campo de validade Palavraschave Pesquisa em psicanálise Pesquisa com o método psicanalítico Análise psicanalítica de entrevista Introdução Todos nos lembramos das palavras de Freud a psicanálise simultaneamente é 1 um procedimento para a investigação de processos mentais inconscientes inacessíveis a outras for mas de pesquisa 2 um procedimento terapêu tico e 3 um conjunto de conhecimentos em contínua expansão e reformulação sobre seu ob jeto Sabemos também da preocupação freudiana em não subordinar as atividades clínicas terapêu ticas em seu livre curso a metas especificamente científicas procura obstinada de conhecimen to embora tais processos estejam e precisem estar bem articulados Muito do que conhecemos da clínica freudiana vem dos seus historiais em que a dimensão de pesquisa e comunicação fre Luís Claudio Figueiredo e Marion Minerbo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 258 qüentemente colorida por razões políti cas e polêmicas era dominante e elabo rada após o término do tratamento Pouco sabemos na verdade das centenas de casos clínicos conduzidos por ele Ou não parecem ter despertado sua maior atenção científica ou não lhe serviam para a afirmação ou confirmação de suas posições no campo psicanalítico Assim não vieram a se tornar peças ilustrativas nem de sua técnica nem de suas idéias nem de suas descobertas ou invenções conceituais O que sugere que uma certa distinção entre o Freud clínico e terapeu ta e o Freud produtor de conhecimento deve ser mantida mesmo com a ressalva de que na psicanálise pesquisa prática clínica e teoria caminham juntas Dito isso o que ele poderia pensar ao ver a pesquisa em psicanálise o que inclui mas não se confunde com a pesquisa com o método psicanalítico ganhar a extensão que veio conquis tando no mundo e em especial no Bra sil É bem provável que ao dizer que a psicanálise é ao mesmo tempo as três ordens de processos e fenômenos acima mencionados não lhe passasse pela ca beça a produção em grande escala de pesquisas tais como observamos por exemplo em diversos cursos de pósgra duação no país e no exterior França Estados Unidos e até Inglaterra Mesmo ao sugerir uma certa distância entre pes quisa e clínica talvez não lhe ocorresse a possibilidade de existência de sistemas de produção em série de pesquisas em que a dimensão terapêutica está à mar gem ou ausente não sendo levada em conta por exemplo nos momentos de avaliação podese dar 10 a uma tese de doutorado sem considerar se o candidato é um bom clínico se é que exerce a clínica de forma significativa e minima mente satisfatória Um doutor em teoria psicanalítica pode muito bem ser um zero à esquerda em psicanálise ou nem isso um mero letrado curioso Não há nenhum critério universitário que permita discri minar entre um psicanalista e um interes sado em psicanálise Ambos podem tirar 10 ou ser reprovados diante de uma banca Cabe perguntar diante de tanta pesquisa em psicanálise será que isso existe Ou ao menos existe como algo merecedor de uma atenção tão concen trada Será que nesta estranha segrega ção de uma das três facetas da psicanálise de forma a que isolada das demais venha a receber um grande investimento de tanta gente e de parcelas ponderáveis de nossos dispositivos educacionais ainda há psicanálise viva Será que a psicaná lise tem algo a ganhar com tais aparente mente aberrantes e desgarradas ativida des O que se faz quando se pretende estar fazendo pesquisa em psicanálise e mais especificamente quando se está pes quisando com o método psicanalítico Chamemos de pesquisa em psi canálise no sentido amplo um conjun to de atividades voltadas para a produção de conhecimento que podem manter com a psicanálise propriamente dita relações muito diferentes Em certas circunstânci as por exemplo observase uma respei Pesquisa em psicanálise algumas idéias e um exemplo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 259 tosa distância ora as teorias da psicaná lise tornamse objeto de estudos siste máticos ora de estudos históricos ora de reflexões epistemológicas outras vezes alguns conceitos psicanalíticos são mo bilizados como instrumentos para a in vestigação e compreensão de variados fenômenos sociais e subjetivos Em ne nhuma destas modalidades de pesquisa em psicanálise requerse um psicanalista atuante Estudos do primeiro tipo podem muito bem ser realizados por filósofos ou historiadores trabalhos do segundo tipo podem ser feitos por críticos literários teóricos da cultura sociólogos pessoas bemintencionadas em geral etc Num caso algum aspecto da psicanálise em geral suas idéias mas eventualmente suas práticas é objeto de exame no outro caso a psicanálise é usada como um arsenal de idéias e conceitos que mal ou bem manejados muitas vezes na verdade bastante mal dada a distância existente entre eles e os pesquisadores deveriam lançar alguma luz sobre fenô menos e processos da cultura Algumas vezes mas não sempre tais pesquisas em psicanálise são divertidas úteis e de inte resse para um vasto público letrado Quan do isso acontece expandese e reforçase a cultura psi no campo social o que não deixa de ser bom ao menos em termos mercadológicos Às vezes tais trabalhos chegam a ser úteis até mesmo para psica nalistas embora raramente sejam indis pensáveis na formação de um profissio nal do ramo Muitas pesquisas acadêmi cas ilustram bem estas modalidades de investigação e aqui entre nós repousa rão para sempre na paz das bibliotecas universitárias passada a festa da aprova ção garantido o diploma Disso se diferenciam as pesqui sas em psicanálise com o método psica nalítico em que a exigência de presença do psicanalista enquanto psicanalista é incontornável embora seus temas e al cances possam ser bastante amplos Pes quisas em psicanálise com o método psi canalítico podem ter como alvo entre outros processos socioculturais eou fe nômenos psíquicos transcorridos e con templados fora de uma situação analítica no sentido estrito embora também aí se constate uma dimensão clínica e se ob servem efeitos terapêuticos como se verá no caso da análise da entrevista que será apresentada a seguir Aqui desaparece a respeitosa dis tância entre pesquisador e referencial teórico para dar lugar a um corpoa corpo do qual a psicanálise Deus seja louvado não sairá tal como entrou Isso é aliás digno de nota na academia ou fora dela uma pesquisa com o método psicanalítico é sempre obra de psicana lista e capaz de trazer novidades à própria psicanálise A especificidade da pesquisa com o método psicanalítico esta que requer o psicanalista em atividade analítica é marcada por diversas características a que aludiremos em seguida A relação sujeito e objeto em uma pesquisa tal como concebida nas ciências naturais e nas ciências sociais ou huma Luís Claudio Figueiredo e Marion Minerbo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 260 nas implica um sujeito ativo debruçado metodicamente sobre seu objeto munido de conceitos instrumentos e técnicas de descoberta e de verificação ou refuta ção de suas hipóteses Não é bem assim nas relações entre o psicanalista suas teorias e seus objetos A entrega do pesquisador ao objeto o deixar se fazer por ele e em contrapartida cons truílo à medida que avançam suas elabo rações e descobertas faz desta pesquisa um momento na história de uma relação que não deixa nenhum dos termos tal como era antes de a própria pesquisa ser iniciada Isso é mais óbvio em uma situ ação terapêutica mas a atitude clínica pode se manifestar em outras condições e sempre terá como efeito a transformação das partes em jogo o objeto e o sujei to da pesquisa tal como se verá no exemplo de investigação psicanalítica apresentado a seguir uma análise de en trevista Mas qual a natureza da transfor mação do objeto Interpretar significa olhar para o fenômeno investigado fora de seu campo habitual O olhar do psica nalista é um olhar fora da rotina que desopacifica o objeto Ele ressurge dife rente desconstruído transformado O sujeito também se transforma na medida em que se torna capaz de ver coisas que não via antes Como sublinha reiteradamente Renato Mezan em sua tese de doutorado Mezan 1985 uma magistral pesquisa com o método psicanalítico que tanto se diferencia de sua pesquisa em psicanáli se realizada na condição de filósofo e que fora seu mestrado Mezan 1985 p 638 de me fabula narratur esta história fala de mim pode ser o mote do pesquisa dor psicanalista em todas as etapas de seu trabalho que o vai alterando lentamente e às vezes abruptamente Aliás o con fronto entre o mestrado e o doutorado de Renato Mezan ambos excelentes serve para diferenciar os estatutos de dois tipos de trabalho com o texto freudiano no mestrado obra de filósofo ou teólogo o texto de Freud sagrado é verdadeira mente objeto de exegese e pode ser útil ao estudioso da teoria freudiana sem che gar a ser indispensável na formação do psicanalista no doutorado as relações se complicam e se instala o aludido corpoa corpo em que Renato Freud e a cultura ocidental se engalfinham com efeitos bem mais interessantes e muito mais formati vos Pois também o objeto e a própria teoria passam pelo mesmo processo de transformação sofrido pelo pesquisador ao longo da pesquisa com o método psi canalítico Indo além a pesquisa com o método psicanalítico é tanto um momen to na história do objeto no caso do exemplo abaixo um momento para a entrevistada poder se sentir escutada e cuidada embora não se estivesse prati cando com ela uma psicanálise clínica quanto na história do pesquisador a intérprete da entrevista vai claramente deixandose embalar no processo e ga nhando uma desenvoltura de escuta e interpretação inexistentes no início e as transformações que a pesquisa engendra Pesquisa em psicanálise algumas idéias e um exemplo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 261 vão além das relações específicas que estes elementos entretêm ao longo da pesquisa O objeto seja um paci ente uma comunidade uma formação da cultura um texto não sai incólume quando submetido a uma atividade de pesquisa deste tipo que por outro lado ele mesmo convocou Que um paciente forme seu próprio analista e a escuta analítica que o acolhe e reflete não nos espanta Mas o mesmo pode ser dito de uma obra pictórica de um filme de um padrão sociocultural de uma pessoa sim plesmente entrevistada e realmente ou vida ou de um texto realmente lido e isso faz com que a atividade cognitiva e afeti va que tais objetos produzem e indu zem faça parte de suas potencialidades de realização expressão e autoconhecimen to O leitor de um texto por exemplo responde ao apelo de leitura que tal peça constitui e ao responder seriamente a tal demanda ao ler com devoção cuidado e liberdade o texto dá a ele novo fôlego novas possibilidades interpretati vas novo futuro Um texto ao ser bem lido renovase e sai da experiência de leitura em direção a um porvir que por outro lado fazia parte como possibilida de do que o texto já era mas a que não acederia sem o concurso do leitor que responde do seu modo a tal apelo Passa a existir assim a cada boa leitura na condição de texto descoberto e inventa do como na lógica do paradoxo que Winnicott elabora para tratar dos fenô menos transicionais O mesmo podese dizer do depoimento colhido em uma boa entrevista descoberto e inventado pela e na interpretação analítica Ou seja o objeto do psicanalista goza deste mesmo estatuto ambíguo objetivosubjetivo próprio do que é humano Mas em contrapartida o inte resse e os pressupostos ideológicos e principalmente teóricos e simbólicos com que o pesquisador entregase e diri gese a tais objetos fazem da pesquisa que enceta também uma parte de suas transformações possíveis A história do pesquisador psicanalista não seria a mes ma sem estas passagens e desvios pelos seus objetos e pelas interpretações que suscitam Estamos nos referindo natural mente às relações transferenciais e seus equivalentes2 e contratransferenciais que dão a marca da singularidade ao que se descobre e ao que se inventa e cria em uma pesquisa com o método psicanalíti 2 Nas relações entre o texto e seus leitores há transferência a partir dos dois lados o leitor atribui saber ao texto a que se dedica e o escritor atribui antecipadamente o poder de leitura e decifração aos leitores que eventualmente ainda nem existem vindo a ser criados e inventados pelo próprio escritor através dos textos que oferece No caso da entrevista apresentada a seguir nos termos de André Green Green 2002 é nítida a transferência da depoente sobre as palavras e sobre o objeto a entrevistadora profundamente afetada pelo que vê e ouve A transferência sobre as palavras é a condição precisa da análise psicanalítica deste material mas a transferência sobre o objeto é o que abriu na forma de uma contratransferência o horizonte da interpretação Luís Claudio Figueiredo e Marion Minerbo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 262 co Chamaríamos assim de pesquisa com o método psicanalítico uma ativi dade em que se constituem e se transfor mam objetos pesquisadores e mei os ou instrumentos de investigação conceitos técnicas etc Em acréscimo nestas atividades operam necessariamente e de forma su plementar as duas lógicas ou duas for mas de ser a que se refere MatteBlanco a lógica dos processos secundários a da consciência e da razão e a lógica do inconsciente a dos processos primários e emoções interligadas e não apenas mas ao invés disso incomensuráveis Isso será verdadeiro provavelmente em toda ati vidade criativa e no caso de uma pesqui sa dá conta da dimensão criativa do descobrir e principalmente do inventar Contudo nas pesquisas ditas acadêmi cas o momento da demonstração tende a predominar preferese uma idéia idiota desde que bem demonstrada a uma idéia ousada e fecunda sem a devida demons tração Daí imperar na pesquisa universi tária a exigência da verificação eou da refutação o que quase sempre deixa o psicanalista em palpos de aranha Daí igualmente ser tão fácil no caso daquelas pesquisas convencionais anunciarse cla ramente o quê e o como do que vai ser feito apresentandose antecipadamente o material na forma de projetos de pes quisa muito bem alinhavados e de fácil compreensão por qualquer assessor dos chamados órgãos de fomento Em psi canálise ao contrário o segmento de monstrativo é bem pobre e quando dá o ar de sua graça é sempre ilusório Já os momentos de descoberta e invenção cri ativa predominam na psicanálise e neles o entrejogo das duas lógicas em regime de suplementaridade é decisivo não há descoberta do inesperado e invenção do novo sem as irrupções inspiradas dos nossos subterrâneos anímicos e corpo rais Na análise da entrevista que se se gue nem o material analisado fundamen ta e justifica cabalmente as interpreta ções nem estas explicam de forma indis cutível o depoimento tratase de um traba lho de descobertainvenção que se ali menta do depoimento e em contraparti da o enriquece e abre para dimensões psíquicas individuais e sociais inespe radas Pois bem as duas características até aqui apontadas se articulam é porque as duas lógicas se mesclam sob a forma da suplementaridade que sujeito de pes quisa objeto de pesquisa e meios de investigação podem se constituir e se deixar transformar perdendo cada um a sua identidade monolítica e empedernida e existindo no regime do paradoxo des cobertos e inventados simultaneamente Mas será que isso em que o método psicanalítico opera com tamanha inci dência e tanta insistência deve ainda ser chamado de pesquisa Não se prestaria isso à confusão entre duas coisas total mente distintas De um lado temos a pesquisa planejada e racional das ciênci as modernas e de outro uma atividade de descoberta e invenção característica da atividade psicanalítica Por que não assu Pesquisa em psicanálise algumas idéias e um exemplo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 263 mirmos enfim que a psicanálise com porta em seu pleno exercício a dominância da descoberta e da invenção criativas e que a idéia de pesquisa veste muito melhor as atividades em que descoberta e invenção podem até existir mas subordinadas ao momento da demonstração da verificação ou da refutação de hipóteses e teses Indo além será que a noção de método é a que mais se afina com a mútua constituição e transformações de objeto sujeito e meios e com a primordi al entrega não mediada ao objeto sem a qual não se exerce a psicanálise Não seria a psicanálise ela mesma uma matriz de estratégias de investigação Minerbo 2000 mais do que um método de pes quisa considerandose o quanto a no ção de método está desde Descartes comprometida com a pretensão do ho mem da modernidade de exercer um ple no controle sobre seus próprios proces sos volitivos e cognitivos Já as estraté gias vão se formando e transformando engendrando táticas e propiciando sa cadas em função das condições atuais em que são efetivadas estratégias dei xam uma larga margem para o improviso e para os processos primários para as descobertas e para as invenções A me nos que se desconstrua a acepção corren te de método forjada em muitos sécu los da cultura ocidental para retomar uma acepção mais arcaica e original do termo deixando de lado suas ressonânci as modernas e científicas A estas questões poderemos retor nar nas considerações finais sem que nos sintamos obrigados a dar a elas uma res posta unívoca Passemos ao exemplo A entrevista e sua interpretação originalmente fizeram parte de uma monografia apresentada ao fim do curso de especialização em psicanálise da Uni versidade Federal de Uberlândia3 que um de nós MM teve a oportunidade de orientar A autora partia da observação de um fenômeno que a intrigava por que mesmo tendo as informações necessárias à prevenção da AIDS uma alta porcenta gem de mulheres se deixa contaminar pelo HIV Sua hipótese era de que há outros fatores quais que tornam a informação insuficiente Optou então por entrevistar uma mulher nestas condi ções tinha as informações e estava con taminada pelo vírus A entrevista trans correu livremente Conteme sua vida foi a única instrução dada à paciente Depois de transcrita a entrevista foi interpretada seguindo os mesmos pro cedimentos usados na clínica psicanalíti ca uma escuta flutuante isto é des centrada do tema central intencionado um recorte do texto privilegiando temas expressões brechas palavras ou quais quer elementos que sirvam como cunha para desconstruir o texto uma reconstru ção deste texto que permita ao analista criar ali um sentido novo inesperado produzindo uma outra verdade sobre o texto A escuta é informada pela contra 3 Giuliana Gouveia Luís Claudio Figueiredo e Marion Minerbo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 264 transferência ou seja pela maneira como a entrevista e depois o texto interpelam o intérprete4 Acompanharemos este pro cesso o pulo do gato detalhadamente Antecipamos o que a interpreta ção da entrevista revelou O processo de contaminação neste caso se iniciou muito antes da relação sexual em que a mulher contraiu a doença A causa da doença foi o ambiente familiar e social que deixou esta paciente totalmente desprotegida e vulnerável A AIDS pode ser entendida também como uma metáfora do modo de vida de certas meninasadolescentes mulheres transmitido de mãe para filha Desde o berço esta mulher foi exposta sem qualquer tipo de proteção a uma situação social altamente contaminada Não houve em seu cotidiano uma matriz simbólica para que se construísse a noção de proteção Os significantes prote ger e ser protegida permaneceram vazios de experiência e de significação Tal como o corpo sem imunidade ela começou a vida como uma lutadora com a esperança de vencer o destino Foi perdendo as batalhas uma após a outra até desistir É quando se descuidou con taminandose Sua história de vida pe dia um final precoce e trágico A AIDS chegou sem surpresa revolta ou ressenti mento Desta perspectiva a doença faz mais sentido como desfecho desta vida como os acordes finais de uma sinfo nia já esperados do que qualquer desfecho feliz Na transcrição da entrevista a fala da paciente aparece em itálico A trans crição da entrevista é tanto quanto possí vel literal mantendose o estilo e voca bulário da paciente A entrevista A história de minha mãe com meu pai Para levála ao lugar em que deve ria entrevistála a entrevistadora foi bus car a paciente em sua casa esta se despe de da filha pequena com um beijinho na boca Ao ligar o gravador a entrevistada recebe apenas a instrução de contar sua história de vida Antes eu sabia contar minha vida inteirinha dava até um livro Agora você não sabe Agora estou meio tontinha Você quer saber de quando eu era mocinha ou quando eu era criança Eu quero saber tudo da sua história você vai contando o que quiser A história de minha mãe com meu pai vem lá do sul Eu nasci lá e vim para cá com quatro anos de idade Minha mãe se casou com quinze anos e teve quatro filhos Teve quatro não teve seis porque dois gêmeos ela perdeu Ela separou do meu pai depois de doze anos Era teste 4 No caso como se verá algo que a entrevistadora observou antes de começar a entrevista a afetou profundamente Esta forte impressão passou à intérprete e instalou o horizonte antecipado de interpre tação em que os recortes do material foram sendo efetuados e as novas costuras foram ocorrendo Pesquisa em psicanálise algumas idéias e um exemplo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 265 munhadejeová e fugiu para cá com a gente Largou casa e tudo porque meu pai era violento bebia e batia nela Aqui por incrível que pareça mi nha mãe trabalhava muito era só ela que trabalhava Meus irmãos mais velhos ficavam levando turminha em casa fa zendo festinha tudo quando minha mãe não estava Usavam droga maconha e tudo na frente das crianças que era eu e minha outra irmã mais novinha Menina direita igual a minha mãe Quando eu tinha treze anos um rapaz malquerido me roubou e eu fugi com ele Roubou Mas você quis ir com ele Ah eu quis né Dali uma semana meu irmão foi me buscar e eu não quis ir quis ficar com ele mas aí eu era mocinha ainda né mas fiquei mas minha mãe fez os papéis do casamento fez eu passar pelo médico mas os papéis caducou nós não casamos Eu tenho uma filha com este homem Ele é dez anos mais velho do que eu Quando eu fugi com ele eu tinha treze anos e ele tinha vinte e três Aí a gente se separou quando eu tinha dezes seis anos foi pouco tempo eu estava grávida de uns três meses de vida ele foi preso e larguei dele eu já não gostava muito dele eu queria largar dele pois eu não gostava de drogas destas coisas né Inclusive nesta época eu fumei até maco nha com ele mas quando fiquei grávida da minha filha eu comecei a passar mal e parei e eu falei esta vida não é para mim Eu sou menina direita igual a mi nha mãe porque só eu puxei para minha mãe Aí quando minha filha nasceu com dois meses de vida eu fui na cadeia mostrei para ele e peguei os documentos dele para registrar e disse que nunca mais ia querer ele Olha para você ver ele roubava e levava para casa da mãe a mãe dele escondia droga escondia rou bo dele mexia com macumba esta coisa horrível Eu não eu já gosto de Deus eu sempre rezava eu me escondia dela todo dia lá fora no banheiro para rezar de tanto medo que eu tinha daquela mulher de alguma macumba que ela pudesse fazer para mim E parece que foi mesmo quando eu vim embora para cá ela rogou mil e uma pragas disse que eu não ia dar certo que eu não ia passar de uma prostituta que se eu não ficasse com o filho dela eu não ia ficar com mais ninguém Eu fiquei com medo Eu não fiquei assim com medo eu falei Deus é mais forte sabe Eu sempre fui assim uma venced uma lutadora Eu sempre fui assim desde peque nininha fui uma venced uma lutadora Igual minha mãe Quando eu vim pra cá com a criança aquela mulher sogra me roubou a minha filha Hoje minha filha mora lá com ela ela tem doze anos Mas como roubou Eu tenho seis processos de seis anos que eu lutei pela minha filha agora eu desisti tem três anos Eu mora va sozinha minha mãe quando eu vim com minha filha disse que eu poderia Luís Claudio Figueiredo e Marion Minerbo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 266 ficar dois três meses com ela depois arrumar uma casa e cuidar de minha filha pois ela não queria mais criança lá Eu teria que me virar foi o que minha mãe disse para mim No prazo de três meses arrumei um emprego arrumei uma casa e fui morar sozinha com dezes sete anos eu e minha filhinha mas aí eu tinha que deixar ela com os vizinhos para poder trabalhar A sogra veio de lá e pegou a meni na para levar e para eu pegar nas mi nhas folgas E foi assim eu deixei ela levar e pegava a menina de sábado e domingo trazia para cá ficava comigo e na segunda ela vinha buscar a menina e levava para lá para eu poder trabalhar Um fim de semana eu cheguei lá e ela não quis mais me entregar a menina que já tinha quatro anos e meio Aí eu fui no fórum conversei com uma juíza e a juíza falou para mim que eu deveria pegar a menina e vir embora mas aí eles não deixavam Aí a mãe dele falou que eu só levaria a criança da casa dela com ordem do juiz mas eu perguntei que ordem do juiz ela tinha para estar com minha filha Não deixaram trazer a menina nunca mais e disseram que eu só posso ir lá ver Eu lutei todos estes anos mas todos os advogados que eu pegava largavam a causa Agora eu não vou mais lá porque da última vez que fui elas queriam me bater Não o pai dela pois ele sumiu de casa sumiu do mundo Aí eu falei ela ganhou a causa Ela quer levar a menina para lá ganhou levou Eu não perdi nem ganhei não teve audiência eu tenho seis advogados que trabalhavam para mim e não faziam nada todos desistiram da causa É macumba que a velha fez E ele desistiu de mim Minha filha tem três anos e meio que eu tenho esta Eu estava cansada de trabalhar e morar sozinha e disse para minha mãe que ia arrumar um homem e casar aí arrumei este namorado que é muito bom não fuma não usa droga não bebe muito porque eu odeio homem que usa droga peguei trauma por causa dos meus irmãos Este Juliano é um amor de pessoa ele tinha um irmão aí tudo bem comecei namorar ele e com três meses de namoro engravidei e olha que faz tempo que eu tinha a outra menina a outra tinha seis anos quando engravidei desta E eu lu tando aí eu disse que estava no meio de um processo e disse a ele que era melhor a gente se casar logo porque aí ele me dava uma força para eu entrar na justiça porque casada talvez era melhor do que mãe solteira por causa da condição de vida Aí ele aceitou De repente eu fiquei grávida e ele veio morar junto só que a gente não deu certo por causa do proces so aí o irmão dele morreu de acidente morreu esmagado numa ponte aí ele muito triste e eu grávida lutando para ter a outra menina e ele desistiu de mim Por isso que sou mãe solteira Pesquisa em psicanálise algumas idéias e um exemplo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 267 A pior coisa que fiz na minha vida Agora arrumei outro estes tempos atrás De novo falei para minha mãe disse que arrumaria um homem porque minha filhinha estava crescendo e queria arrumar um pai para ela da outra eu desisti de lutar Aí minha mãe disse tá você é quem sabe Aí conheci um rapaz que não fumava nem usava droga mas bebia pinga Foi a pior coisa que eu fiz na minha vida Este homem se instalou na minha vida morou comigo uns seis me ses e eu tentei largar largar largar resultado de tudo quando eu tentei mes mo largar dele além de ele me tomar geladeira fogão que compramos juntos ele mandou eu ir na Marginal buscar um dinheiro e mandou uma mulher me ma tar verdade e ela me trancou no quarto e me deu um monte de garrafada queria me matar por isso eu tenho estas marcas Acho que foi ele que me passou a doença AIDS Eu peguei até gonorréia dele tive que tomar dez injeções dolorosas Deu positivo duas vezes Este homem ficava atrás de mim interessado em meu dinheiro Quando eu recebia pensão da minha filha ele toma va de mim gastava tudo me dava só alguns reais para fazer compra eu tive que misturar leite com água Pede para desligar e começa a chorar Aí eu estava desnutrida e com sa pinho na boca diarréia aí achei que fosse falta de vitamina Aí o otorrino disse que eu estava com AIDS porque ou é neném ou idosos que tem sapinhos na boca Fiz exame HIV em Ribeirão deu positivo duas vezes estava muito carre gado eles tentaram me ajudar de todas as maneiras mas demorou um pouco minha internação eu comecei a tomar o coquetel no mesmo dia que deu positivo Em agosto eu já tomava 15 de agosto Eu vim embora para cá e passei junho e julho com ele ele não queria me levar no médico não queria que eu fosse em Ri beirão ele queria que eu morresse você acha Eu vim para Jaboticabal e pedi à minha mãe para pôr meus móveis na varanda da casa dela até eu arrumar uma casa e um serviço aí falei que estava doente da barriga ela achava estranho aquele tanto de remédio Aí recebi oito centos reais de seguro e desemprego atrasado quatro meses eu recebi de uma só vez Aí fui no Córrego Rico aluguei uma casinha lá eu e minha mãe Fui em Guariba e limpei a casa pois tudo ali era meu Aí eu trabalhava na roça e deixava minha menina com minha irmã que mora lá Ela ia na escolinha Não sou depressiva sou feliz Com umas três semanas na roça eu fui em Ribeirão e fui internada O médico disse que eu não podia trabalhar em uma roça nem em um sol e falou do meu peso eu estava dez quilos abaixo do normal e tinha febre de quarenta e oito graus Aí deixei minha menina com a Luís Claudio Figueiredo e Marion Minerbo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 268 minha mãe e me internaram disse que já era para terem me internado eu estava com octoplasmose era manchas pretas Aí fiquei dezoito dias lá e eles não quise ram me deixar ocupando um quarto a doença é no sangue e com o HIV então a pessoa morre mesmo Aí pedi para uma enfermeira amiga minha para contar para minha mãe Meus irmãos dizem que sou de pressiva mas não sou sou feliz em vista do que eu estava com aquele monstro porque estou melhor Eles dizem para eu sair de casa mas eu gosto de assistir televisão de ficar em casa com a minha filha eu me sinto bem não sou depressi va Para mim me divertir não é sair e beber é ir a um churrasco em um aniver sário Eu não tenho só o vírus da AIDS eu tenho a AIDS Se eu não tomar cuida do tomar chuva eu passo mal Se eu beber eu fico só vomitando Seu companheiro não fez o exa me Ele não quer fazer ele diz se tiver o vírus ele morre logo ou vai para a Bahia e toma um chá olha o que ele pensa Ele diz que não tem que não pegou Mas ele tem sim porque ninguém escapa desta doença se tiver relação com quem tem a doença pega mesmo Depois que eu ar rumei este homem minha vida acabou eu me arrependi até o último fio de cabelo O único apoio que tive foi você Percebi que você fala em Deus você tem religião Sou evangélica mas agora vou para a católica só que tenho vergonha de ir porque não tenho roupa para pôr e as pessoas reparam Eu tenho muita fé em Deus e o médico até se espantou com o tanto que eu melhorei A carga viral abaixou de 3800 para 800 O vírus está dormindo Eu fico com a boca amarga com vontade de deitar cansada se eu traba lhar é capaz de me dar um trem não posso forçar meu corpo nem para an dar Não consigo mais trabalhar do jeito que eu trabalhava antes Nem na padaria da esquina eu não vou Só quando estou animadinha vou comer lanche com mi nha filha Sua filha fez o exame Fez e acabou de dar negativo demorou um mês para dar o resultado Com a graça de Jesus O que mudou depois da doença foi que voltei a ser a menininha que eu era antes dos treze anos Minha mãe agora me trata com o mesmo carinho de quan do eu era criança Minha mãe trabalha va e quando estava em casa fazia o que gostávamos de comer Hoje se estou dormindo ela nem abre a porta do quarto para não me incomodar Sintome prote gida com a minha mãe Para minha mãe também foi bom ela estava perdida eu ajudei ela dando força para ela psicolo gicamente Ela me ajuda financeiramen te e estou sendo mais forte que ela porque meus irmãos deram muito trabalho para ela O mais velho esteve preso Minha irmã mais velha ficou semvergonha Bebe de bar em bar e é casada ainda hein Ela dá dor de cabeça para minha Pesquisa em psicanálise algumas idéias e um exemplo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 269 mãe Eu dei uns cacetes nela Ela tem problemas e procura minha mãe E ainda diz que não é alcoólatra Ao fim de três entrevistas ela diz à entrevistadora O único apoio que tive foi você O processo de interpretação o pulo do gato Como dissemos o texto original será desconstruído desmontado recor tado e reconstruído segundo certas li nhas de força tal como o faríamos na clínica de consultório Começamos nos so trabalho de leitura recortando um tre cho do início do material uma observa ção que a entrevistadora registra antes mesmo de iniciar a entrevista Diz respei to à sua própria reação emocional ao que observara A paciente estava no portão com a filha pequena e deulhe um beijinho na boca O beijo na boca chama a atenção da entrevistadora Ela imagina que este bei jo poderia ser perigoso Sem querer a mãe poderia estar fazendo mal à filha Esta fantasia da entrevistadora sem querer a mãe poderia estar fazendo mal à filha vai operar como eixo norteador da escuta de toda a entrevista Funciona como os primeiros acordes de uma sinfonia o tema nos é apresentado e reaparece com variações ao longo da obra Na atividade interpretativa uma fantasia de forte conteúdo emocional dá o clima e o rumo ao que irá sendo descortinado O intérprete já está em pro cesso de transformação afetado pelo que encontrou no material ele já começa a se pôr em sintonia para empreender sua tarefa Embora a entrevistadora soubesse que a AIDS não se transmite pelo beijo ficou alarmada com a idéia de que a mãe estaria fazendo mal à filha Em lugar de descartar esta idéia resolvemos tomála em consideração não no campo da medi cina em que não faz sentido mas em outro Em que outro campo a idéia de um beijo perigoso faria sentido Como vere mos as mães transmitem pelo beijo às filhas não a doença mas um modo de vida completamente contaminado o que torna as filhas realmente vulneráveis a todo tipo de perigo A história dramática que acabamos de ouvir tende a se repetir de geração em geração porque este modo de vida ultrapassa aquela mãe e aquela filha Portanto é no campo sociocultural que a apreensão da entrevistadora faz sentido é o meio em que nascem cres cem e vivem estas mulheres que as torna tão vulneráveis Continuamos recortando a entre vista Antes eu sabia contar minha vida inteirinha dava até um livro Agora es tou meio tontinha A vida é dividida entre antes e agora agora que tenho a doença Mas podemos dividila também entre antes e agora agora quando toma consciência de que já ter transmitido à filha um modo de vida contaminado Antes o beijinho é dado inocentemente sem qualquer cons Luís Claudio Figueiredo e Marion Minerbo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 270 ciência deste fato Agora quando conta à entrevistadora que precisou colocar água na mamadeira da filha ela chora Chora porque sabe que transmitiu desde a mama deira a desproteção o leite aguado Chora porque percebe que não tinha como evitar isto Chora porque sabe que esta desproteção tornará sua filha tão vulnerável aos perigos da vida quanto ela mesma foi A menção ao livro revela o desejo de registrar sua experiência A entrevis ta como ela sabe irá para um livro a monografia Seu testemunho está sendo gravado E o testemunho mostra justa mente como antes ela era tontinha An tes ela não tinha consciência de sua condi ção Agora graças à AIDS sem a qual ela não estaria sendo entrevistada sua vida seu sofrimento anônimo tem um sentido Ela poderá legar à filha e às outras mulheres não um leite ralo mas algo que poderá fortalecêlas o co nhecimento de como se transmite a vul nerabilidade feminina Neste sentido sua última frase o único apoio que tive foi você é curiosa Que apoio teria recebido da entrevistadora À primeira vista apoio é sinônimo de ser escutada por outra mulher pela primeira vez na vida Mas podemos entender este ser escutada como a construção de uma ponte com outras mulheres como um apoio à sua causa as mulheres precisam lutar con tra a mamadeira rala que a sociedade lhes oferece5 Retornando ao beijinho na boca além do amor vimos que ele simboliza a transmissão de certo modo de ser mulher no meio sociocultural em que vive de samparada frágil vulnerável cumpridora passiva e solitária de um destino terrível Sua história portanto começa com a história de sua mãe A história de minha mãe com meu pai vem lá do sul Sua história vem de longe lá do sul perdese na noite dos tempos Estas mulheres tentam fugir minha mãe fugiu largou casa e tudo Fugiu de um marido alcoólatra que batia nela Mas não há para onde fugir A própria pacien te em sua terceira tentativa de recons truir a vida acabou com um marido alco ólatra a pior coisa que fiz na minha vida da qual me arrependi até o último fio de cabelo É este homem que a contaminou com o HIV Eu sempre fui assim desde peque nininha fui uma venced uma lutadora Igual a minha mãe A mãe fugiu do pai na esperança de ser uma vencedora de conseguir driblar seu destino O máximo que con seguiu foi ser uma lutadora Coubelhe criar sozinha quatro filhos sendo que os filhos tornaramse drogados ou ban didos uma das filhas ficou semver gonha e ela mesma que sempre foi direita igual a minha mãe está com AIDS 5 Mais adiante retornaremos a esta mesma passagem da entrevista agregando novos elementos Pesquisa em psicanálise algumas idéias e um exemplo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 271 Era só ela minha mãe que traba lhava Meus irmãos mais velhos que podiam ajudar ficavam fazendo festi nha É sua primeira experiência de vio lência social da exploração da mulher pelo homem dentro de casa A garotinha é testemunha do esforço hercúleo e soli tário da mãe e começa a internalizar as representações do que significa ser mu lher e ser homem neste meio social Homem segundo sua própria experiên cia é aquele que pode se divertir de maneira egoísta e irresponsável Para ela os filhos homens herdam do pai uma atitude de desprezo e de exploração da mulher E eles usavam droga tudo na fren te das crianças Vaise delineando um cenário te nebroso em lugar de proteger o homem expõe a mulher ainda criança ao perigo A idéia a própria noção de proteção não tem como se formar porque a experi ência cotidiana não contém uma matriz simbólica para este significado O signi ficante proteger permanece vazio de experiência e de significação Assim não há como internalizar uma atitude de pro teção e de autoproteção diante da vida resultando numa vulnerabilidade que ela irá carregar para sempre Com mais rigor podese dizer que a representação de proteção que ela traz é ambígua Em outra entrevista que não está transcrita neste texto ela diz que segundo a mãe pois ela mesma não se recorda o pai tanto a protegeu quanto a expôs ao perigo Ele gostava mais de mim do que dos outros porém era muito vio lento quando ficava bêbado O mesmo irmão que usava drogas diante dela e da irmã menor esboça um frágil gesto de proteção quando aos treze anos ela é roubada por um rapaz malquerido Enfim a idéia de proteção está atravessada pela ambigüidade quando ela conta que rezava para Deus trancada no banheiro para escapar à sogra Ela está restrita a ocupar um único lugar no mun do o banheiro É ali que ela se sente a salvo no lugar onde os seres humanos deixam seus dejetos no lugar do sujo e do contaminado É com os dejetos que ela se identifica e enquanto tal sentese a sal vo pois nem a sogra atacaria um dejeto humano Ainda assim espera que Deus a ajude mas será que ele ouviria os apelos vindos de um banheiro Como vemos a imagem paterna Deus geralmente associada à proteção se constitui a partir da idealização o puro o sagrado do sujo e contaminado banheiro e do persecutório a sogra Com relação à figura materna há a mes ma indistinção entre proteção e persegui ção a sogra começa por ajudála mas acaba roubando sua filha Esta confusão impede que se forme a idéia de proteção o que exigiria uma cisão bem demarcada entre o limpo e o sujo Embora não fosse nossa intenção no processo interpretati vo deste material identificar a forma da constituição psíquica da entrevistada parece claro que a ausência de uma noção de proteção ou a ambigüidade da noção Luís Claudio Figueiredo e Marion Minerbo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 272 existente são indícios de uma organiza ção subjetiva extremamente precária e vulnerável Poderíamos vislumbrar uma configuração egóica muito frágil o que justifica a hipótese de que ser escutada e ser levada a contar sua história regis trandoa em um gravador para inclusão em um livro possa ter o sentido de receber um apoio mesmo que nada mais lhe seja oferecido Passemos adiante Um rapaz malquerido me roubou e eu fugi com ele Meu irmão foi me buscar e eu não quis ir Nesta frase temos uma adolescen te que já se acostumou a desejar no sentido psicanalítico ser malquerida Há também uma ambigüidade em ele me roubou e eu fugi com ele Foi roubada ou fugiu Gostava do rapaz ou ele era malquerido Se antes ela era uma vítima passiva da falta de proteção agora ela já a recusa abertamente o irmão foi buscá la mas ela não quis ir A mãe ainda tenta protegêla fez os papéis do casamento fála passar pelo médico mas os papéis caducou Não adianta mais Ela já está no mundo sozinha vulnerável exposta aos perigos O pai de sua filha está na cadeia a sogra macumbeira acoberta os crimes do filho a mãe diz lhe diz que tem que se virar sozinha É na adolescência aos tre ze anos que começa a cumprir seu desti no de vítima Ela imagina que pode ser uma venced logo se corrige é uma lutadora e quando as forças se esgota rem sua vulnerabilidade fará dela uma perdedora Nunca mais ia querer ele Não existe nunca mais uma vez entrando nesta vida que se passa no ba nheiro do mundo ninguém sai limpo ou ileso Seu destino está selado aos dezes sete anos quando volta para casa com a filha no colo Ao perder a filha para a sogra tendo lutado durante anos na justiça seis advogados que trabalhavam para mim e não faziam nada todos desistiram da causa É macumba que a velha fez temos a primeira metáfora para a AIDS Os advogados e a justiça que funcionam como sistema imunológico da sociedade desistiram corrompidos pela macumba Ela lutou lutou e morreu na praia A filha não a quis maisela desistiu da filha É como um corpo esgotado que aceita frá gil e vulnerável as infecções da vida Estamos falando aqui de cidadania Eu sou menina direita igual a minha mãe De nada lhe vale ser direita O mundo de seu ponto de vista é injusto e quando ela se vê de fato abandonada pela justiça fica claro que para ela não existe prote ção Os direitos básicos do cidadão da mulher educação saúde emprego creche etc não são nem jamais serão para ela Já temos aqui plenamente cons tituída uma adolescente sem qualquer imunidade contra a vida sem camisinha sem abrigo sem proteção sem residên cia própria Ainda assim não se entrega à do ença social e tenta recomeçar Agora apesar de jovem já tem experiência de vida e pode escolher melhor seu parceiro Pesquisa em psicanálise algumas idéias e um exemplo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 273 Este Juliano é um amor de pessoa É muito bom não fuma não usa droga não bebe muito Pode inclusive ter outra fi lha E por um tempo parece que a vida lhe sorri Mas a sensação de fragilidade persiste como um mau presságio Eu disse que era melhor a gente se casar logo Logo quer dizer imediatamente antes que o destino acorde e que outra desgraça lhe aconteça E acontece O irmão de Juliano morre esmagado numa ponte Um acontecimento tão absurdo como um aidético morrer de gripe uma bobagem que coloca a vida a perder O marido bom que ela poderia ter seu pri meiro protetor também desiste dela E ele desistiu por isto sou mãe solteira Ela solta no mundo perdida sua segunda batalha Terceira tentativa Este homem se instalou na minha vida A idéia que esta fala nos transmite é de algo ruim que se instala para sempre como uma doença fatal como o HIV Desta vez o furo da camisinha estava num lugar novo para ela ele não fumava nem usava droga mas bebia pinga Foi a pior coisa que eu fiz na minha vida O homem lhe tirava todo o dinheiro dei xandoa e à filha desvalidas O relato desta vida nos encaminha como os acor des finais de uma sinfonia para um des fecho precoce e trágico A AIDS é quase uma decorrência natural da vida Aliás a morte entra em cena bem antes da doen ça Ele mandou uma mulher me matar Por isto tenho estas marcas De fato ela é uma mulher marcada sobretudo por sua condição social que lhe fecha todas as saídas Esta condição social se inscreve no plano intrapsíquico como uma ausên cia de recursos próprios e de espaços internos protegidos Finalmente este homem lhe trans mite a doença Isto nos é dito sem grandes emoções tanto ela como nós já o esperá vamos Há duas frases que passam quase despercebidas mas quando nos damos conta do que significam são terríveis Uma é a que mencionamos logo no início desta interpretação ela pede que a entre vistadora desligue o gravador e chora quando conta que teve que misturar água no leite da mamadeira E a outra é Tive que tomar dez injeções dolorosas Nestas duas frases ela parece en trar em contato pela primeira vez com a dor Quando o corpo sente dor adota uma posição antálgica que protege o local dolorido Sua vida é do começo ao fim uma dor só Mas é na ponta da agulha que entra na carne que se condensam todas as dores A dor psíquica e a doença lhe trazem paradoxalmente um alívio para as dores da vida Meus irmãos dizem que sou depressiva mas não sou sou feliz em vista do que eu estava com aquele monstro Os pequenos prazeres são mencio nados pela primeira vez nesta longa en trevista Para mim me divertir é ir a churrasco em um aniversário Foi preci so que ela chegasse ao fundo do poço para que seu pedido de ajuda fosse escu tado Ela relata que recebe atenção dos médicos e remédios recebeu segurosaú Luís Claudio Figueiredo e Marion Minerbo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 274 de e passou a ter sua própria roça a irmã cuida da filha a mãe agora a trata com carinho Se estou dormindo ela nem abre a porta do quarto para não me incomo dar Sintome protegida com a minha mãe Deus está cuidando dela a carga viral baixou de 3800 para 800 o vírus está dormindo e sua filha não foi conta minada com a graça de Jesus Concluin do graças à doença a idéia de proteção antes um significante vazio ganha um sentido nesta história de vida Em contra partida é apenas no processo da entrevis ta que uma história de vida chega a se constituir Considerações finais A conclusão a interpretação psicanalítica da transcrição da entrevista foi apresentada no início do trabalho interpretativo para que agora possamos discutir a idéia de pesquisa em psicanálise Como ficou ilustrado o que pode ser apresentado como método psicana lítico guardadas as ressalvas já esboçadas consiste em efetuar certos recortes que não são arbitrários pois vão sendo solicitados pela própria análise em andamento e se transformam à medida que a análise transcorre No caso foi a contratransferência da entrevistadora di ante do beijo da mãe aidética na boca da filha uma sensação forte de perigo e falta de proteção que instalou o hori zonte e o espaço por onde os recortes e costuras interpretativos caminharam A partir daí eram os achados que determi navam os rumos das invenções e vice versa Ou seja é a própria interpretação à medida que tramita que funciona como eixo para a escutarecorte de novos frag mentos os quais quando interpretados terão a mesma função com relação ao material que virá O primeiro recorte como vimos foi efetuado a partir da sensação contra transferencial de beijo perigoso Mes mo sabendo que AIDS não se transmite por beijos o psicanalista toma em consi deração o impacto emocional experimen tado diante da cena sabendo que há de fazer sentido em algum outro campo É então que se abre em uma espécie de lance antecipatório o campo da inter pretação Cabem algumas considerações sobre o alcance do método psicanalíti co Este pode ser usado para interpretar qualquer fenômeno que faça parte do universo simbólico do homem sessões de psicoterapia entrevistas qualquer tipo de material apresentativoexpressivo projetivo fenômenos sociais ou insti tucionais material clínico colhido de gru pos de pacientes colostomizados fóbicos etc Por outro lado não é adequado para descobrir relações de causa e efeito nem para transpor descobertas feitas num cam po para outro Nem é preciso dizer que investigações feitas por meio deste pro cedimento não se prestam para tratamen to estatístico Com relação à verdade da interpretação ela é sempre relativa ao processo que a produziu e este processo como qualquer estratégia é Pesquisa em psicanálise algumas idéias e um exemplo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 275 irrepetível e singular No caso ele teve início com a escuta do beijo perigoso Mas pode haver outra interpretação igual mente verdadeira e uma pode ser mais útil do que a outra dependendo do con texto e do uso que se venha a fazer dela De qualquer modo a verdade de uma interpretação não pode ser tomada como definitiva mas sempre provisória Nem como totalizante pois é sempre uma ver dade parcial uma perspectiva seleciona da do seu objeto Ainda com relação ao alcance des te método é importante enfatizar que toda investigação psicanalítica tem al gum efeito terapêutico no sentido ampli ado do termo Recordemos que esta in vestigação partiu da observação de uma mulher que apesar de ter todas as infor mações sobre prevenção da AIDS era HIV positivo Ora o efeito terapêutico da investigação deste fragmento da realida de só pode incidir diretamente sobre ele e não sobre a moça entrevistada Daí a idéia de efeito terapêutico no sentido ampliado do termo pois neste caso o efeito terapêutico se dá compela desco berta de que uma campanha meramente informativa tem seus limites de que es tes limites se relacionam com a ausência de certas matrizes simbólicas tornando a informação inoperante e de que as estra tégias em saúde pública não podem fazer a economia da construção destas matri zes simbólicas Instrumentandose o efei to terapêutico obtido o ideal seria que estas informações fossem passadas aos poucos em grupos terapêuticos Estes grupos ofereceriam no aquieagora do campo transferencial criado entre agen tes de saúde e participantes a experiên cia emocional de serem cuidados fun dandose assim esta matriz simbólica compartilhada Esperase que por meio deste processo as informações técni cas possam vir a se tornar realmente operantes Nada impede porém que saindo do campo próprio a esta investigação pensemos no efeito terapêutico de que se beneficiou a moça entrevistada Em certo momento ela diz O único apoio que tive foi você Ao sentirse escutada e prin cipalmente sabendo que sua narrativa dará um livro ela está expressando à sua maneira que a sua vida e a sucessão de seus sofrimentos passaram a ter um sentido passaram a se constituir em acontecimentos de sua história Nesta condição podem vir inclusive a benefici ar outras mulheres que como ela não puderam contar com um ambiente sufici entemente bom Poderíamos ainda dizer avançando para a dimensão intrapsíquica da moça entrevistada que a incapacidade de conceber um espaço protegido desfal cara este psiquismo de uma função egói ca fundamental e assim privara o eu desta pessoa da capacidade de se apropriar de recursos e usar em seu proveito informa ções cruciais Uma certa dimensão destas falhas de constituição subjetiva parece ter sido tocada na entrevista o que se expressa no agradecimento pelo apoio De todo modo em termos de pes quisa psicanalítica convém que o inves Luís Claudio Figueiredo e Marion Minerbo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 276 tigador não pretenda mais do que sua investigação permite Quando investiga na clínica suas conclusões valem para a clínica Quando investiga um fragmento da realidade suas conclusões valem para o fragmento estudado E isto já é o bas tante para tornar a atividade de pesquisa em psicanálise perfeitamente respeitável REFERÊNCIAS Green A 2002 Idées directrices de la psychanalyse contemporaine Paris PUF Mezan R 1979 A trama dos concei tos São Paulo Perspectiva Mezan R 1985 Freud pensador da cultura São Paulo Brasiliense Minerbo M 2000 Estratégias de inves tigação em psicanálise São Paulo Casa do Psicólogo Pesquisa em psicanálise algumas idéias e um exemplo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 277 SUMMARY Research in psychoanalysis some ideas and an example Initially the authors differentiate research in psychoanalysis and research with the use of the psychoanalytic method In the first case psychoanalysis is the object of research The researcher does not need to be an active psychoanalyst He may be a philosopher a historian a sociologist or a literary critic In the second case a psychoanalyst is required In this case the object the subject the researcher and his means of investigation technical concepts are transformed in the end of the research The procedure is then minutely exemplified by the analysis of an interview In the final considerations the therapeutic dimension and its field of validity are considered along with the investigative dimension Key words Research in psychoanalysis Research with the psychoanalytic method Psychoanalytic analysis of an interview RESUMEN Investigación en psicoanálisis algunas ideas y un ejemplo Inicialmente los autores presentan una diferenciación entre la investigación en psicoanálisis y la investigación que usa el método psicoanalítico En el primer caso el psicoanálisis es el objeto de la investigación y el investigador no necesita ser un psicoanalista actuante Puede ser un filósofo un historiador un sociólogo o un crítico literario En el segundo caso se requiere un psicoanalista Después de la investigación el objeto el sujeto el investigador y sus medios de investigación conceptos técnicas sufren transformaciones Enseguida el procedimiento es minuciosamente ejemplificado con el análisis de una entrevista En las consideraciones finales se coloca al lado de la dimensión investigativa la dimensión terapéutica de la investigación así como su campo de validad Palabrasllave Investigación en psicoanálisis Investigación con el método psicoanalítico Análisis psicoanalítico de entrevista Luís Claudio Figueiredo e Marion Minerbo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 278 Luís Claudio Figueiredo Rua Alcides Pertiga 65 05413100 São Paulo SP Fone 30864016 Email lclaudionetpointcombr Marion Minerbo Rua João Moura 647 cj 152 05412911 São Paulo SP Fone 38980074 Email marionminerboterracombr Recebido em 110406 Aceito em 110506
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Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 257 1 Uma parte do presente texto assinada por LCF integrou uma resenha publi cada na Revista ide outra parte escrita por MM que agradece a interlocução de Cintia Buschinelli foi publicada em coautoria com Giuliana Gouveia responsável pela realização da entre vista no livro Adolescência e violên cia organizado por David Léo Levisky Ambas foram transformadas para com por o presente trabalho e a elas se acres centaram partes novas escritas a quatro mãos Psicanalista professor da PUCSP e da USP Psicanalista Membro Efetivo e Ana lista Didata da SBPSP PESQUISA EM PSICANÁLISE ALGUMAS IDÉIAS E UM EXEMPLO1 Luís Claudio Figueiredo e Marion Minerbo RESUMO Inicialmente os autores diferenciam pesquisa em psicanálise de pesquisa com o método psicanalítico No primeiro caso a psicanálise é o objeto da pesquisa e o pesquisador não precisa ser um psicanalista atuante Pode ser um filósofo um historiador um sociólogo ou um crítico literário No segundo caso requerse um psicanalista Após a pesquisa o objeto o sujeito o pesquisador e seus meios de investigação conceitos técnicas são transformados Em seguida o procedimento é minuciosamente exemplificado pela análise de uma entrevista Nas considerações finais considerase ao lado da dimensão investigativa a dimensão terapêutica da pesquisa bem como o seu campo de validade Palavraschave Pesquisa em psicanálise Pesquisa com o método psicanalítico Análise psicanalítica de entrevista Introdução Todos nos lembramos das palavras de Freud a psicanálise simultaneamente é 1 um procedimento para a investigação de processos mentais inconscientes inacessíveis a outras for mas de pesquisa 2 um procedimento terapêu tico e 3 um conjunto de conhecimentos em contínua expansão e reformulação sobre seu ob jeto Sabemos também da preocupação freudiana em não subordinar as atividades clínicas terapêu ticas em seu livre curso a metas especificamente científicas procura obstinada de conhecimen to embora tais processos estejam e precisem estar bem articulados Muito do que conhecemos da clínica freudiana vem dos seus historiais em que a dimensão de pesquisa e comunicação fre Luís Claudio Figueiredo e Marion Minerbo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 258 qüentemente colorida por razões políti cas e polêmicas era dominante e elabo rada após o término do tratamento Pouco sabemos na verdade das centenas de casos clínicos conduzidos por ele Ou não parecem ter despertado sua maior atenção científica ou não lhe serviam para a afirmação ou confirmação de suas posições no campo psicanalítico Assim não vieram a se tornar peças ilustrativas nem de sua técnica nem de suas idéias nem de suas descobertas ou invenções conceituais O que sugere que uma certa distinção entre o Freud clínico e terapeu ta e o Freud produtor de conhecimento deve ser mantida mesmo com a ressalva de que na psicanálise pesquisa prática clínica e teoria caminham juntas Dito isso o que ele poderia pensar ao ver a pesquisa em psicanálise o que inclui mas não se confunde com a pesquisa com o método psicanalítico ganhar a extensão que veio conquis tando no mundo e em especial no Bra sil É bem provável que ao dizer que a psicanálise é ao mesmo tempo as três ordens de processos e fenômenos acima mencionados não lhe passasse pela ca beça a produção em grande escala de pesquisas tais como observamos por exemplo em diversos cursos de pósgra duação no país e no exterior França Estados Unidos e até Inglaterra Mesmo ao sugerir uma certa distância entre pes quisa e clínica talvez não lhe ocorresse a possibilidade de existência de sistemas de produção em série de pesquisas em que a dimensão terapêutica está à mar gem ou ausente não sendo levada em conta por exemplo nos momentos de avaliação podese dar 10 a uma tese de doutorado sem considerar se o candidato é um bom clínico se é que exerce a clínica de forma significativa e minima mente satisfatória Um doutor em teoria psicanalítica pode muito bem ser um zero à esquerda em psicanálise ou nem isso um mero letrado curioso Não há nenhum critério universitário que permita discri minar entre um psicanalista e um interes sado em psicanálise Ambos podem tirar 10 ou ser reprovados diante de uma banca Cabe perguntar diante de tanta pesquisa em psicanálise será que isso existe Ou ao menos existe como algo merecedor de uma atenção tão concen trada Será que nesta estranha segrega ção de uma das três facetas da psicanálise de forma a que isolada das demais venha a receber um grande investimento de tanta gente e de parcelas ponderáveis de nossos dispositivos educacionais ainda há psicanálise viva Será que a psicaná lise tem algo a ganhar com tais aparente mente aberrantes e desgarradas ativida des O que se faz quando se pretende estar fazendo pesquisa em psicanálise e mais especificamente quando se está pes quisando com o método psicanalítico Chamemos de pesquisa em psi canálise no sentido amplo um conjun to de atividades voltadas para a produção de conhecimento que podem manter com a psicanálise propriamente dita relações muito diferentes Em certas circunstânci as por exemplo observase uma respei Pesquisa em psicanálise algumas idéias e um exemplo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 259 tosa distância ora as teorias da psicaná lise tornamse objeto de estudos siste máticos ora de estudos históricos ora de reflexões epistemológicas outras vezes alguns conceitos psicanalíticos são mo bilizados como instrumentos para a in vestigação e compreensão de variados fenômenos sociais e subjetivos Em ne nhuma destas modalidades de pesquisa em psicanálise requerse um psicanalista atuante Estudos do primeiro tipo podem muito bem ser realizados por filósofos ou historiadores trabalhos do segundo tipo podem ser feitos por críticos literários teóricos da cultura sociólogos pessoas bemintencionadas em geral etc Num caso algum aspecto da psicanálise em geral suas idéias mas eventualmente suas práticas é objeto de exame no outro caso a psicanálise é usada como um arsenal de idéias e conceitos que mal ou bem manejados muitas vezes na verdade bastante mal dada a distância existente entre eles e os pesquisadores deveriam lançar alguma luz sobre fenô menos e processos da cultura Algumas vezes mas não sempre tais pesquisas em psicanálise são divertidas úteis e de inte resse para um vasto público letrado Quan do isso acontece expandese e reforçase a cultura psi no campo social o que não deixa de ser bom ao menos em termos mercadológicos Às vezes tais trabalhos chegam a ser úteis até mesmo para psica nalistas embora raramente sejam indis pensáveis na formação de um profissio nal do ramo Muitas pesquisas acadêmi cas ilustram bem estas modalidades de investigação e aqui entre nós repousa rão para sempre na paz das bibliotecas universitárias passada a festa da aprova ção garantido o diploma Disso se diferenciam as pesqui sas em psicanálise com o método psica nalítico em que a exigência de presença do psicanalista enquanto psicanalista é incontornável embora seus temas e al cances possam ser bastante amplos Pes quisas em psicanálise com o método psi canalítico podem ter como alvo entre outros processos socioculturais eou fe nômenos psíquicos transcorridos e con templados fora de uma situação analítica no sentido estrito embora também aí se constate uma dimensão clínica e se ob servem efeitos terapêuticos como se verá no caso da análise da entrevista que será apresentada a seguir Aqui desaparece a respeitosa dis tância entre pesquisador e referencial teórico para dar lugar a um corpoa corpo do qual a psicanálise Deus seja louvado não sairá tal como entrou Isso é aliás digno de nota na academia ou fora dela uma pesquisa com o método psicanalítico é sempre obra de psicana lista e capaz de trazer novidades à própria psicanálise A especificidade da pesquisa com o método psicanalítico esta que requer o psicanalista em atividade analítica é marcada por diversas características a que aludiremos em seguida A relação sujeito e objeto em uma pesquisa tal como concebida nas ciências naturais e nas ciências sociais ou huma Luís Claudio Figueiredo e Marion Minerbo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 260 nas implica um sujeito ativo debruçado metodicamente sobre seu objeto munido de conceitos instrumentos e técnicas de descoberta e de verificação ou refuta ção de suas hipóteses Não é bem assim nas relações entre o psicanalista suas teorias e seus objetos A entrega do pesquisador ao objeto o deixar se fazer por ele e em contrapartida cons truílo à medida que avançam suas elabo rações e descobertas faz desta pesquisa um momento na história de uma relação que não deixa nenhum dos termos tal como era antes de a própria pesquisa ser iniciada Isso é mais óbvio em uma situ ação terapêutica mas a atitude clínica pode se manifestar em outras condições e sempre terá como efeito a transformação das partes em jogo o objeto e o sujei to da pesquisa tal como se verá no exemplo de investigação psicanalítica apresentado a seguir uma análise de en trevista Mas qual a natureza da transfor mação do objeto Interpretar significa olhar para o fenômeno investigado fora de seu campo habitual O olhar do psica nalista é um olhar fora da rotina que desopacifica o objeto Ele ressurge dife rente desconstruído transformado O sujeito também se transforma na medida em que se torna capaz de ver coisas que não via antes Como sublinha reiteradamente Renato Mezan em sua tese de doutorado Mezan 1985 uma magistral pesquisa com o método psicanalítico que tanto se diferencia de sua pesquisa em psicanáli se realizada na condição de filósofo e que fora seu mestrado Mezan 1985 p 638 de me fabula narratur esta história fala de mim pode ser o mote do pesquisa dor psicanalista em todas as etapas de seu trabalho que o vai alterando lentamente e às vezes abruptamente Aliás o con fronto entre o mestrado e o doutorado de Renato Mezan ambos excelentes serve para diferenciar os estatutos de dois tipos de trabalho com o texto freudiano no mestrado obra de filósofo ou teólogo o texto de Freud sagrado é verdadeira mente objeto de exegese e pode ser útil ao estudioso da teoria freudiana sem che gar a ser indispensável na formação do psicanalista no doutorado as relações se complicam e se instala o aludido corpoa corpo em que Renato Freud e a cultura ocidental se engalfinham com efeitos bem mais interessantes e muito mais formati vos Pois também o objeto e a própria teoria passam pelo mesmo processo de transformação sofrido pelo pesquisador ao longo da pesquisa com o método psi canalítico Indo além a pesquisa com o método psicanalítico é tanto um momen to na história do objeto no caso do exemplo abaixo um momento para a entrevistada poder se sentir escutada e cuidada embora não se estivesse prati cando com ela uma psicanálise clínica quanto na história do pesquisador a intérprete da entrevista vai claramente deixandose embalar no processo e ga nhando uma desenvoltura de escuta e interpretação inexistentes no início e as transformações que a pesquisa engendra Pesquisa em psicanálise algumas idéias e um exemplo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 261 vão além das relações específicas que estes elementos entretêm ao longo da pesquisa O objeto seja um paci ente uma comunidade uma formação da cultura um texto não sai incólume quando submetido a uma atividade de pesquisa deste tipo que por outro lado ele mesmo convocou Que um paciente forme seu próprio analista e a escuta analítica que o acolhe e reflete não nos espanta Mas o mesmo pode ser dito de uma obra pictórica de um filme de um padrão sociocultural de uma pessoa sim plesmente entrevistada e realmente ou vida ou de um texto realmente lido e isso faz com que a atividade cognitiva e afeti va que tais objetos produzem e indu zem faça parte de suas potencialidades de realização expressão e autoconhecimen to O leitor de um texto por exemplo responde ao apelo de leitura que tal peça constitui e ao responder seriamente a tal demanda ao ler com devoção cuidado e liberdade o texto dá a ele novo fôlego novas possibilidades interpretati vas novo futuro Um texto ao ser bem lido renovase e sai da experiência de leitura em direção a um porvir que por outro lado fazia parte como possibilida de do que o texto já era mas a que não acederia sem o concurso do leitor que responde do seu modo a tal apelo Passa a existir assim a cada boa leitura na condição de texto descoberto e inventa do como na lógica do paradoxo que Winnicott elabora para tratar dos fenô menos transicionais O mesmo podese dizer do depoimento colhido em uma boa entrevista descoberto e inventado pela e na interpretação analítica Ou seja o objeto do psicanalista goza deste mesmo estatuto ambíguo objetivosubjetivo próprio do que é humano Mas em contrapartida o inte resse e os pressupostos ideológicos e principalmente teóricos e simbólicos com que o pesquisador entregase e diri gese a tais objetos fazem da pesquisa que enceta também uma parte de suas transformações possíveis A história do pesquisador psicanalista não seria a mes ma sem estas passagens e desvios pelos seus objetos e pelas interpretações que suscitam Estamos nos referindo natural mente às relações transferenciais e seus equivalentes2 e contratransferenciais que dão a marca da singularidade ao que se descobre e ao que se inventa e cria em uma pesquisa com o método psicanalíti 2 Nas relações entre o texto e seus leitores há transferência a partir dos dois lados o leitor atribui saber ao texto a que se dedica e o escritor atribui antecipadamente o poder de leitura e decifração aos leitores que eventualmente ainda nem existem vindo a ser criados e inventados pelo próprio escritor através dos textos que oferece No caso da entrevista apresentada a seguir nos termos de André Green Green 2002 é nítida a transferência da depoente sobre as palavras e sobre o objeto a entrevistadora profundamente afetada pelo que vê e ouve A transferência sobre as palavras é a condição precisa da análise psicanalítica deste material mas a transferência sobre o objeto é o que abriu na forma de uma contratransferência o horizonte da interpretação Luís Claudio Figueiredo e Marion Minerbo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 262 co Chamaríamos assim de pesquisa com o método psicanalítico uma ativi dade em que se constituem e se transfor mam objetos pesquisadores e mei os ou instrumentos de investigação conceitos técnicas etc Em acréscimo nestas atividades operam necessariamente e de forma su plementar as duas lógicas ou duas for mas de ser a que se refere MatteBlanco a lógica dos processos secundários a da consciência e da razão e a lógica do inconsciente a dos processos primários e emoções interligadas e não apenas mas ao invés disso incomensuráveis Isso será verdadeiro provavelmente em toda ati vidade criativa e no caso de uma pesqui sa dá conta da dimensão criativa do descobrir e principalmente do inventar Contudo nas pesquisas ditas acadêmi cas o momento da demonstração tende a predominar preferese uma idéia idiota desde que bem demonstrada a uma idéia ousada e fecunda sem a devida demons tração Daí imperar na pesquisa universi tária a exigência da verificação eou da refutação o que quase sempre deixa o psicanalista em palpos de aranha Daí igualmente ser tão fácil no caso daquelas pesquisas convencionais anunciarse cla ramente o quê e o como do que vai ser feito apresentandose antecipadamente o material na forma de projetos de pes quisa muito bem alinhavados e de fácil compreensão por qualquer assessor dos chamados órgãos de fomento Em psi canálise ao contrário o segmento de monstrativo é bem pobre e quando dá o ar de sua graça é sempre ilusório Já os momentos de descoberta e invenção cri ativa predominam na psicanálise e neles o entrejogo das duas lógicas em regime de suplementaridade é decisivo não há descoberta do inesperado e invenção do novo sem as irrupções inspiradas dos nossos subterrâneos anímicos e corpo rais Na análise da entrevista que se se gue nem o material analisado fundamen ta e justifica cabalmente as interpreta ções nem estas explicam de forma indis cutível o depoimento tratase de um traba lho de descobertainvenção que se ali menta do depoimento e em contraparti da o enriquece e abre para dimensões psíquicas individuais e sociais inespe radas Pois bem as duas características até aqui apontadas se articulam é porque as duas lógicas se mesclam sob a forma da suplementaridade que sujeito de pes quisa objeto de pesquisa e meios de investigação podem se constituir e se deixar transformar perdendo cada um a sua identidade monolítica e empedernida e existindo no regime do paradoxo des cobertos e inventados simultaneamente Mas será que isso em que o método psicanalítico opera com tamanha inci dência e tanta insistência deve ainda ser chamado de pesquisa Não se prestaria isso à confusão entre duas coisas total mente distintas De um lado temos a pesquisa planejada e racional das ciênci as modernas e de outro uma atividade de descoberta e invenção característica da atividade psicanalítica Por que não assu Pesquisa em psicanálise algumas idéias e um exemplo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 263 mirmos enfim que a psicanálise com porta em seu pleno exercício a dominância da descoberta e da invenção criativas e que a idéia de pesquisa veste muito melhor as atividades em que descoberta e invenção podem até existir mas subordinadas ao momento da demonstração da verificação ou da refutação de hipóteses e teses Indo além será que a noção de método é a que mais se afina com a mútua constituição e transformações de objeto sujeito e meios e com a primordi al entrega não mediada ao objeto sem a qual não se exerce a psicanálise Não seria a psicanálise ela mesma uma matriz de estratégias de investigação Minerbo 2000 mais do que um método de pes quisa considerandose o quanto a no ção de método está desde Descartes comprometida com a pretensão do ho mem da modernidade de exercer um ple no controle sobre seus próprios proces sos volitivos e cognitivos Já as estraté gias vão se formando e transformando engendrando táticas e propiciando sa cadas em função das condições atuais em que são efetivadas estratégias dei xam uma larga margem para o improviso e para os processos primários para as descobertas e para as invenções A me nos que se desconstrua a acepção corren te de método forjada em muitos sécu los da cultura ocidental para retomar uma acepção mais arcaica e original do termo deixando de lado suas ressonânci as modernas e científicas A estas questões poderemos retor nar nas considerações finais sem que nos sintamos obrigados a dar a elas uma res posta unívoca Passemos ao exemplo A entrevista e sua interpretação originalmente fizeram parte de uma monografia apresentada ao fim do curso de especialização em psicanálise da Uni versidade Federal de Uberlândia3 que um de nós MM teve a oportunidade de orientar A autora partia da observação de um fenômeno que a intrigava por que mesmo tendo as informações necessárias à prevenção da AIDS uma alta porcenta gem de mulheres se deixa contaminar pelo HIV Sua hipótese era de que há outros fatores quais que tornam a informação insuficiente Optou então por entrevistar uma mulher nestas condi ções tinha as informações e estava con taminada pelo vírus A entrevista trans correu livremente Conteme sua vida foi a única instrução dada à paciente Depois de transcrita a entrevista foi interpretada seguindo os mesmos pro cedimentos usados na clínica psicanalíti ca uma escuta flutuante isto é des centrada do tema central intencionado um recorte do texto privilegiando temas expressões brechas palavras ou quais quer elementos que sirvam como cunha para desconstruir o texto uma reconstru ção deste texto que permita ao analista criar ali um sentido novo inesperado produzindo uma outra verdade sobre o texto A escuta é informada pela contra 3 Giuliana Gouveia Luís Claudio Figueiredo e Marion Minerbo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 264 transferência ou seja pela maneira como a entrevista e depois o texto interpelam o intérprete4 Acompanharemos este pro cesso o pulo do gato detalhadamente Antecipamos o que a interpreta ção da entrevista revelou O processo de contaminação neste caso se iniciou muito antes da relação sexual em que a mulher contraiu a doença A causa da doença foi o ambiente familiar e social que deixou esta paciente totalmente desprotegida e vulnerável A AIDS pode ser entendida também como uma metáfora do modo de vida de certas meninasadolescentes mulheres transmitido de mãe para filha Desde o berço esta mulher foi exposta sem qualquer tipo de proteção a uma situação social altamente contaminada Não houve em seu cotidiano uma matriz simbólica para que se construísse a noção de proteção Os significantes prote ger e ser protegida permaneceram vazios de experiência e de significação Tal como o corpo sem imunidade ela começou a vida como uma lutadora com a esperança de vencer o destino Foi perdendo as batalhas uma após a outra até desistir É quando se descuidou con taminandose Sua história de vida pe dia um final precoce e trágico A AIDS chegou sem surpresa revolta ou ressenti mento Desta perspectiva a doença faz mais sentido como desfecho desta vida como os acordes finais de uma sinfo nia já esperados do que qualquer desfecho feliz Na transcrição da entrevista a fala da paciente aparece em itálico A trans crição da entrevista é tanto quanto possí vel literal mantendose o estilo e voca bulário da paciente A entrevista A história de minha mãe com meu pai Para levála ao lugar em que deve ria entrevistála a entrevistadora foi bus car a paciente em sua casa esta se despe de da filha pequena com um beijinho na boca Ao ligar o gravador a entrevistada recebe apenas a instrução de contar sua história de vida Antes eu sabia contar minha vida inteirinha dava até um livro Agora você não sabe Agora estou meio tontinha Você quer saber de quando eu era mocinha ou quando eu era criança Eu quero saber tudo da sua história você vai contando o que quiser A história de minha mãe com meu pai vem lá do sul Eu nasci lá e vim para cá com quatro anos de idade Minha mãe se casou com quinze anos e teve quatro filhos Teve quatro não teve seis porque dois gêmeos ela perdeu Ela separou do meu pai depois de doze anos Era teste 4 No caso como se verá algo que a entrevistadora observou antes de começar a entrevista a afetou profundamente Esta forte impressão passou à intérprete e instalou o horizonte antecipado de interpre tação em que os recortes do material foram sendo efetuados e as novas costuras foram ocorrendo Pesquisa em psicanálise algumas idéias e um exemplo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 265 munhadejeová e fugiu para cá com a gente Largou casa e tudo porque meu pai era violento bebia e batia nela Aqui por incrível que pareça mi nha mãe trabalhava muito era só ela que trabalhava Meus irmãos mais velhos ficavam levando turminha em casa fa zendo festinha tudo quando minha mãe não estava Usavam droga maconha e tudo na frente das crianças que era eu e minha outra irmã mais novinha Menina direita igual a minha mãe Quando eu tinha treze anos um rapaz malquerido me roubou e eu fugi com ele Roubou Mas você quis ir com ele Ah eu quis né Dali uma semana meu irmão foi me buscar e eu não quis ir quis ficar com ele mas aí eu era mocinha ainda né mas fiquei mas minha mãe fez os papéis do casamento fez eu passar pelo médico mas os papéis caducou nós não casamos Eu tenho uma filha com este homem Ele é dez anos mais velho do que eu Quando eu fugi com ele eu tinha treze anos e ele tinha vinte e três Aí a gente se separou quando eu tinha dezes seis anos foi pouco tempo eu estava grávida de uns três meses de vida ele foi preso e larguei dele eu já não gostava muito dele eu queria largar dele pois eu não gostava de drogas destas coisas né Inclusive nesta época eu fumei até maco nha com ele mas quando fiquei grávida da minha filha eu comecei a passar mal e parei e eu falei esta vida não é para mim Eu sou menina direita igual a mi nha mãe porque só eu puxei para minha mãe Aí quando minha filha nasceu com dois meses de vida eu fui na cadeia mostrei para ele e peguei os documentos dele para registrar e disse que nunca mais ia querer ele Olha para você ver ele roubava e levava para casa da mãe a mãe dele escondia droga escondia rou bo dele mexia com macumba esta coisa horrível Eu não eu já gosto de Deus eu sempre rezava eu me escondia dela todo dia lá fora no banheiro para rezar de tanto medo que eu tinha daquela mulher de alguma macumba que ela pudesse fazer para mim E parece que foi mesmo quando eu vim embora para cá ela rogou mil e uma pragas disse que eu não ia dar certo que eu não ia passar de uma prostituta que se eu não ficasse com o filho dela eu não ia ficar com mais ninguém Eu fiquei com medo Eu não fiquei assim com medo eu falei Deus é mais forte sabe Eu sempre fui assim uma venced uma lutadora Eu sempre fui assim desde peque nininha fui uma venced uma lutadora Igual minha mãe Quando eu vim pra cá com a criança aquela mulher sogra me roubou a minha filha Hoje minha filha mora lá com ela ela tem doze anos Mas como roubou Eu tenho seis processos de seis anos que eu lutei pela minha filha agora eu desisti tem três anos Eu mora va sozinha minha mãe quando eu vim com minha filha disse que eu poderia Luís Claudio Figueiredo e Marion Minerbo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 266 ficar dois três meses com ela depois arrumar uma casa e cuidar de minha filha pois ela não queria mais criança lá Eu teria que me virar foi o que minha mãe disse para mim No prazo de três meses arrumei um emprego arrumei uma casa e fui morar sozinha com dezes sete anos eu e minha filhinha mas aí eu tinha que deixar ela com os vizinhos para poder trabalhar A sogra veio de lá e pegou a meni na para levar e para eu pegar nas mi nhas folgas E foi assim eu deixei ela levar e pegava a menina de sábado e domingo trazia para cá ficava comigo e na segunda ela vinha buscar a menina e levava para lá para eu poder trabalhar Um fim de semana eu cheguei lá e ela não quis mais me entregar a menina que já tinha quatro anos e meio Aí eu fui no fórum conversei com uma juíza e a juíza falou para mim que eu deveria pegar a menina e vir embora mas aí eles não deixavam Aí a mãe dele falou que eu só levaria a criança da casa dela com ordem do juiz mas eu perguntei que ordem do juiz ela tinha para estar com minha filha Não deixaram trazer a menina nunca mais e disseram que eu só posso ir lá ver Eu lutei todos estes anos mas todos os advogados que eu pegava largavam a causa Agora eu não vou mais lá porque da última vez que fui elas queriam me bater Não o pai dela pois ele sumiu de casa sumiu do mundo Aí eu falei ela ganhou a causa Ela quer levar a menina para lá ganhou levou Eu não perdi nem ganhei não teve audiência eu tenho seis advogados que trabalhavam para mim e não faziam nada todos desistiram da causa É macumba que a velha fez E ele desistiu de mim Minha filha tem três anos e meio que eu tenho esta Eu estava cansada de trabalhar e morar sozinha e disse para minha mãe que ia arrumar um homem e casar aí arrumei este namorado que é muito bom não fuma não usa droga não bebe muito porque eu odeio homem que usa droga peguei trauma por causa dos meus irmãos Este Juliano é um amor de pessoa ele tinha um irmão aí tudo bem comecei namorar ele e com três meses de namoro engravidei e olha que faz tempo que eu tinha a outra menina a outra tinha seis anos quando engravidei desta E eu lu tando aí eu disse que estava no meio de um processo e disse a ele que era melhor a gente se casar logo porque aí ele me dava uma força para eu entrar na justiça porque casada talvez era melhor do que mãe solteira por causa da condição de vida Aí ele aceitou De repente eu fiquei grávida e ele veio morar junto só que a gente não deu certo por causa do proces so aí o irmão dele morreu de acidente morreu esmagado numa ponte aí ele muito triste e eu grávida lutando para ter a outra menina e ele desistiu de mim Por isso que sou mãe solteira Pesquisa em psicanálise algumas idéias e um exemplo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 267 A pior coisa que fiz na minha vida Agora arrumei outro estes tempos atrás De novo falei para minha mãe disse que arrumaria um homem porque minha filhinha estava crescendo e queria arrumar um pai para ela da outra eu desisti de lutar Aí minha mãe disse tá você é quem sabe Aí conheci um rapaz que não fumava nem usava droga mas bebia pinga Foi a pior coisa que eu fiz na minha vida Este homem se instalou na minha vida morou comigo uns seis me ses e eu tentei largar largar largar resultado de tudo quando eu tentei mes mo largar dele além de ele me tomar geladeira fogão que compramos juntos ele mandou eu ir na Marginal buscar um dinheiro e mandou uma mulher me ma tar verdade e ela me trancou no quarto e me deu um monte de garrafada queria me matar por isso eu tenho estas marcas Acho que foi ele que me passou a doença AIDS Eu peguei até gonorréia dele tive que tomar dez injeções dolorosas Deu positivo duas vezes Este homem ficava atrás de mim interessado em meu dinheiro Quando eu recebia pensão da minha filha ele toma va de mim gastava tudo me dava só alguns reais para fazer compra eu tive que misturar leite com água Pede para desligar e começa a chorar Aí eu estava desnutrida e com sa pinho na boca diarréia aí achei que fosse falta de vitamina Aí o otorrino disse que eu estava com AIDS porque ou é neném ou idosos que tem sapinhos na boca Fiz exame HIV em Ribeirão deu positivo duas vezes estava muito carre gado eles tentaram me ajudar de todas as maneiras mas demorou um pouco minha internação eu comecei a tomar o coquetel no mesmo dia que deu positivo Em agosto eu já tomava 15 de agosto Eu vim embora para cá e passei junho e julho com ele ele não queria me levar no médico não queria que eu fosse em Ri beirão ele queria que eu morresse você acha Eu vim para Jaboticabal e pedi à minha mãe para pôr meus móveis na varanda da casa dela até eu arrumar uma casa e um serviço aí falei que estava doente da barriga ela achava estranho aquele tanto de remédio Aí recebi oito centos reais de seguro e desemprego atrasado quatro meses eu recebi de uma só vez Aí fui no Córrego Rico aluguei uma casinha lá eu e minha mãe Fui em Guariba e limpei a casa pois tudo ali era meu Aí eu trabalhava na roça e deixava minha menina com minha irmã que mora lá Ela ia na escolinha Não sou depressiva sou feliz Com umas três semanas na roça eu fui em Ribeirão e fui internada O médico disse que eu não podia trabalhar em uma roça nem em um sol e falou do meu peso eu estava dez quilos abaixo do normal e tinha febre de quarenta e oito graus Aí deixei minha menina com a Luís Claudio Figueiredo e Marion Minerbo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 268 minha mãe e me internaram disse que já era para terem me internado eu estava com octoplasmose era manchas pretas Aí fiquei dezoito dias lá e eles não quise ram me deixar ocupando um quarto a doença é no sangue e com o HIV então a pessoa morre mesmo Aí pedi para uma enfermeira amiga minha para contar para minha mãe Meus irmãos dizem que sou de pressiva mas não sou sou feliz em vista do que eu estava com aquele monstro porque estou melhor Eles dizem para eu sair de casa mas eu gosto de assistir televisão de ficar em casa com a minha filha eu me sinto bem não sou depressi va Para mim me divertir não é sair e beber é ir a um churrasco em um aniver sário Eu não tenho só o vírus da AIDS eu tenho a AIDS Se eu não tomar cuida do tomar chuva eu passo mal Se eu beber eu fico só vomitando Seu companheiro não fez o exa me Ele não quer fazer ele diz se tiver o vírus ele morre logo ou vai para a Bahia e toma um chá olha o que ele pensa Ele diz que não tem que não pegou Mas ele tem sim porque ninguém escapa desta doença se tiver relação com quem tem a doença pega mesmo Depois que eu ar rumei este homem minha vida acabou eu me arrependi até o último fio de cabelo O único apoio que tive foi você Percebi que você fala em Deus você tem religião Sou evangélica mas agora vou para a católica só que tenho vergonha de ir porque não tenho roupa para pôr e as pessoas reparam Eu tenho muita fé em Deus e o médico até se espantou com o tanto que eu melhorei A carga viral abaixou de 3800 para 800 O vírus está dormindo Eu fico com a boca amarga com vontade de deitar cansada se eu traba lhar é capaz de me dar um trem não posso forçar meu corpo nem para an dar Não consigo mais trabalhar do jeito que eu trabalhava antes Nem na padaria da esquina eu não vou Só quando estou animadinha vou comer lanche com mi nha filha Sua filha fez o exame Fez e acabou de dar negativo demorou um mês para dar o resultado Com a graça de Jesus O que mudou depois da doença foi que voltei a ser a menininha que eu era antes dos treze anos Minha mãe agora me trata com o mesmo carinho de quan do eu era criança Minha mãe trabalha va e quando estava em casa fazia o que gostávamos de comer Hoje se estou dormindo ela nem abre a porta do quarto para não me incomodar Sintome prote gida com a minha mãe Para minha mãe também foi bom ela estava perdida eu ajudei ela dando força para ela psicolo gicamente Ela me ajuda financeiramen te e estou sendo mais forte que ela porque meus irmãos deram muito trabalho para ela O mais velho esteve preso Minha irmã mais velha ficou semvergonha Bebe de bar em bar e é casada ainda hein Ela dá dor de cabeça para minha Pesquisa em psicanálise algumas idéias e um exemplo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 269 mãe Eu dei uns cacetes nela Ela tem problemas e procura minha mãe E ainda diz que não é alcoólatra Ao fim de três entrevistas ela diz à entrevistadora O único apoio que tive foi você O processo de interpretação o pulo do gato Como dissemos o texto original será desconstruído desmontado recor tado e reconstruído segundo certas li nhas de força tal como o faríamos na clínica de consultório Começamos nos so trabalho de leitura recortando um tre cho do início do material uma observa ção que a entrevistadora registra antes mesmo de iniciar a entrevista Diz respei to à sua própria reação emocional ao que observara A paciente estava no portão com a filha pequena e deulhe um beijinho na boca O beijo na boca chama a atenção da entrevistadora Ela imagina que este bei jo poderia ser perigoso Sem querer a mãe poderia estar fazendo mal à filha Esta fantasia da entrevistadora sem querer a mãe poderia estar fazendo mal à filha vai operar como eixo norteador da escuta de toda a entrevista Funciona como os primeiros acordes de uma sinfonia o tema nos é apresentado e reaparece com variações ao longo da obra Na atividade interpretativa uma fantasia de forte conteúdo emocional dá o clima e o rumo ao que irá sendo descortinado O intérprete já está em pro cesso de transformação afetado pelo que encontrou no material ele já começa a se pôr em sintonia para empreender sua tarefa Embora a entrevistadora soubesse que a AIDS não se transmite pelo beijo ficou alarmada com a idéia de que a mãe estaria fazendo mal à filha Em lugar de descartar esta idéia resolvemos tomála em consideração não no campo da medi cina em que não faz sentido mas em outro Em que outro campo a idéia de um beijo perigoso faria sentido Como vere mos as mães transmitem pelo beijo às filhas não a doença mas um modo de vida completamente contaminado o que torna as filhas realmente vulneráveis a todo tipo de perigo A história dramática que acabamos de ouvir tende a se repetir de geração em geração porque este modo de vida ultrapassa aquela mãe e aquela filha Portanto é no campo sociocultural que a apreensão da entrevistadora faz sentido é o meio em que nascem cres cem e vivem estas mulheres que as torna tão vulneráveis Continuamos recortando a entre vista Antes eu sabia contar minha vida inteirinha dava até um livro Agora es tou meio tontinha A vida é dividida entre antes e agora agora que tenho a doença Mas podemos dividila também entre antes e agora agora quando toma consciência de que já ter transmitido à filha um modo de vida contaminado Antes o beijinho é dado inocentemente sem qualquer cons Luís Claudio Figueiredo e Marion Minerbo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 270 ciência deste fato Agora quando conta à entrevistadora que precisou colocar água na mamadeira da filha ela chora Chora porque sabe que transmitiu desde a mama deira a desproteção o leite aguado Chora porque percebe que não tinha como evitar isto Chora porque sabe que esta desproteção tornará sua filha tão vulnerável aos perigos da vida quanto ela mesma foi A menção ao livro revela o desejo de registrar sua experiência A entrevis ta como ela sabe irá para um livro a monografia Seu testemunho está sendo gravado E o testemunho mostra justa mente como antes ela era tontinha An tes ela não tinha consciência de sua condi ção Agora graças à AIDS sem a qual ela não estaria sendo entrevistada sua vida seu sofrimento anônimo tem um sentido Ela poderá legar à filha e às outras mulheres não um leite ralo mas algo que poderá fortalecêlas o co nhecimento de como se transmite a vul nerabilidade feminina Neste sentido sua última frase o único apoio que tive foi você é curiosa Que apoio teria recebido da entrevistadora À primeira vista apoio é sinônimo de ser escutada por outra mulher pela primeira vez na vida Mas podemos entender este ser escutada como a construção de uma ponte com outras mulheres como um apoio à sua causa as mulheres precisam lutar con tra a mamadeira rala que a sociedade lhes oferece5 Retornando ao beijinho na boca além do amor vimos que ele simboliza a transmissão de certo modo de ser mulher no meio sociocultural em que vive de samparada frágil vulnerável cumpridora passiva e solitária de um destino terrível Sua história portanto começa com a história de sua mãe A história de minha mãe com meu pai vem lá do sul Sua história vem de longe lá do sul perdese na noite dos tempos Estas mulheres tentam fugir minha mãe fugiu largou casa e tudo Fugiu de um marido alcoólatra que batia nela Mas não há para onde fugir A própria pacien te em sua terceira tentativa de recons truir a vida acabou com um marido alco ólatra a pior coisa que fiz na minha vida da qual me arrependi até o último fio de cabelo É este homem que a contaminou com o HIV Eu sempre fui assim desde peque nininha fui uma venced uma lutadora Igual a minha mãe A mãe fugiu do pai na esperança de ser uma vencedora de conseguir driblar seu destino O máximo que con seguiu foi ser uma lutadora Coubelhe criar sozinha quatro filhos sendo que os filhos tornaramse drogados ou ban didos uma das filhas ficou semver gonha e ela mesma que sempre foi direita igual a minha mãe está com AIDS 5 Mais adiante retornaremos a esta mesma passagem da entrevista agregando novos elementos Pesquisa em psicanálise algumas idéias e um exemplo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 271 Era só ela minha mãe que traba lhava Meus irmãos mais velhos que podiam ajudar ficavam fazendo festi nha É sua primeira experiência de vio lência social da exploração da mulher pelo homem dentro de casa A garotinha é testemunha do esforço hercúleo e soli tário da mãe e começa a internalizar as representações do que significa ser mu lher e ser homem neste meio social Homem segundo sua própria experiên cia é aquele que pode se divertir de maneira egoísta e irresponsável Para ela os filhos homens herdam do pai uma atitude de desprezo e de exploração da mulher E eles usavam droga tudo na fren te das crianças Vaise delineando um cenário te nebroso em lugar de proteger o homem expõe a mulher ainda criança ao perigo A idéia a própria noção de proteção não tem como se formar porque a experi ência cotidiana não contém uma matriz simbólica para este significado O signi ficante proteger permanece vazio de experiência e de significação Assim não há como internalizar uma atitude de pro teção e de autoproteção diante da vida resultando numa vulnerabilidade que ela irá carregar para sempre Com mais rigor podese dizer que a representação de proteção que ela traz é ambígua Em outra entrevista que não está transcrita neste texto ela diz que segundo a mãe pois ela mesma não se recorda o pai tanto a protegeu quanto a expôs ao perigo Ele gostava mais de mim do que dos outros porém era muito vio lento quando ficava bêbado O mesmo irmão que usava drogas diante dela e da irmã menor esboça um frágil gesto de proteção quando aos treze anos ela é roubada por um rapaz malquerido Enfim a idéia de proteção está atravessada pela ambigüidade quando ela conta que rezava para Deus trancada no banheiro para escapar à sogra Ela está restrita a ocupar um único lugar no mun do o banheiro É ali que ela se sente a salvo no lugar onde os seres humanos deixam seus dejetos no lugar do sujo e do contaminado É com os dejetos que ela se identifica e enquanto tal sentese a sal vo pois nem a sogra atacaria um dejeto humano Ainda assim espera que Deus a ajude mas será que ele ouviria os apelos vindos de um banheiro Como vemos a imagem paterna Deus geralmente associada à proteção se constitui a partir da idealização o puro o sagrado do sujo e contaminado banheiro e do persecutório a sogra Com relação à figura materna há a mes ma indistinção entre proteção e persegui ção a sogra começa por ajudála mas acaba roubando sua filha Esta confusão impede que se forme a idéia de proteção o que exigiria uma cisão bem demarcada entre o limpo e o sujo Embora não fosse nossa intenção no processo interpretati vo deste material identificar a forma da constituição psíquica da entrevistada parece claro que a ausência de uma noção de proteção ou a ambigüidade da noção Luís Claudio Figueiredo e Marion Minerbo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 272 existente são indícios de uma organiza ção subjetiva extremamente precária e vulnerável Poderíamos vislumbrar uma configuração egóica muito frágil o que justifica a hipótese de que ser escutada e ser levada a contar sua história regis trandoa em um gravador para inclusão em um livro possa ter o sentido de receber um apoio mesmo que nada mais lhe seja oferecido Passemos adiante Um rapaz malquerido me roubou e eu fugi com ele Meu irmão foi me buscar e eu não quis ir Nesta frase temos uma adolescen te que já se acostumou a desejar no sentido psicanalítico ser malquerida Há também uma ambigüidade em ele me roubou e eu fugi com ele Foi roubada ou fugiu Gostava do rapaz ou ele era malquerido Se antes ela era uma vítima passiva da falta de proteção agora ela já a recusa abertamente o irmão foi buscá la mas ela não quis ir A mãe ainda tenta protegêla fez os papéis do casamento fála passar pelo médico mas os papéis caducou Não adianta mais Ela já está no mundo sozinha vulnerável exposta aos perigos O pai de sua filha está na cadeia a sogra macumbeira acoberta os crimes do filho a mãe diz lhe diz que tem que se virar sozinha É na adolescência aos tre ze anos que começa a cumprir seu desti no de vítima Ela imagina que pode ser uma venced logo se corrige é uma lutadora e quando as forças se esgota rem sua vulnerabilidade fará dela uma perdedora Nunca mais ia querer ele Não existe nunca mais uma vez entrando nesta vida que se passa no ba nheiro do mundo ninguém sai limpo ou ileso Seu destino está selado aos dezes sete anos quando volta para casa com a filha no colo Ao perder a filha para a sogra tendo lutado durante anos na justiça seis advogados que trabalhavam para mim e não faziam nada todos desistiram da causa É macumba que a velha fez temos a primeira metáfora para a AIDS Os advogados e a justiça que funcionam como sistema imunológico da sociedade desistiram corrompidos pela macumba Ela lutou lutou e morreu na praia A filha não a quis maisela desistiu da filha É como um corpo esgotado que aceita frá gil e vulnerável as infecções da vida Estamos falando aqui de cidadania Eu sou menina direita igual a minha mãe De nada lhe vale ser direita O mundo de seu ponto de vista é injusto e quando ela se vê de fato abandonada pela justiça fica claro que para ela não existe prote ção Os direitos básicos do cidadão da mulher educação saúde emprego creche etc não são nem jamais serão para ela Já temos aqui plenamente cons tituída uma adolescente sem qualquer imunidade contra a vida sem camisinha sem abrigo sem proteção sem residên cia própria Ainda assim não se entrega à do ença social e tenta recomeçar Agora apesar de jovem já tem experiência de vida e pode escolher melhor seu parceiro Pesquisa em psicanálise algumas idéias e um exemplo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 273 Este Juliano é um amor de pessoa É muito bom não fuma não usa droga não bebe muito Pode inclusive ter outra fi lha E por um tempo parece que a vida lhe sorri Mas a sensação de fragilidade persiste como um mau presságio Eu disse que era melhor a gente se casar logo Logo quer dizer imediatamente antes que o destino acorde e que outra desgraça lhe aconteça E acontece O irmão de Juliano morre esmagado numa ponte Um acontecimento tão absurdo como um aidético morrer de gripe uma bobagem que coloca a vida a perder O marido bom que ela poderia ter seu pri meiro protetor também desiste dela E ele desistiu por isto sou mãe solteira Ela solta no mundo perdida sua segunda batalha Terceira tentativa Este homem se instalou na minha vida A idéia que esta fala nos transmite é de algo ruim que se instala para sempre como uma doença fatal como o HIV Desta vez o furo da camisinha estava num lugar novo para ela ele não fumava nem usava droga mas bebia pinga Foi a pior coisa que eu fiz na minha vida O homem lhe tirava todo o dinheiro dei xandoa e à filha desvalidas O relato desta vida nos encaminha como os acor des finais de uma sinfonia para um des fecho precoce e trágico A AIDS é quase uma decorrência natural da vida Aliás a morte entra em cena bem antes da doen ça Ele mandou uma mulher me matar Por isto tenho estas marcas De fato ela é uma mulher marcada sobretudo por sua condição social que lhe fecha todas as saídas Esta condição social se inscreve no plano intrapsíquico como uma ausên cia de recursos próprios e de espaços internos protegidos Finalmente este homem lhe trans mite a doença Isto nos é dito sem grandes emoções tanto ela como nós já o esperá vamos Há duas frases que passam quase despercebidas mas quando nos damos conta do que significam são terríveis Uma é a que mencionamos logo no início desta interpretação ela pede que a entre vistadora desligue o gravador e chora quando conta que teve que misturar água no leite da mamadeira E a outra é Tive que tomar dez injeções dolorosas Nestas duas frases ela parece en trar em contato pela primeira vez com a dor Quando o corpo sente dor adota uma posição antálgica que protege o local dolorido Sua vida é do começo ao fim uma dor só Mas é na ponta da agulha que entra na carne que se condensam todas as dores A dor psíquica e a doença lhe trazem paradoxalmente um alívio para as dores da vida Meus irmãos dizem que sou depressiva mas não sou sou feliz em vista do que eu estava com aquele monstro Os pequenos prazeres são mencio nados pela primeira vez nesta longa en trevista Para mim me divertir é ir a churrasco em um aniversário Foi preci so que ela chegasse ao fundo do poço para que seu pedido de ajuda fosse escu tado Ela relata que recebe atenção dos médicos e remédios recebeu segurosaú Luís Claudio Figueiredo e Marion Minerbo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 274 de e passou a ter sua própria roça a irmã cuida da filha a mãe agora a trata com carinho Se estou dormindo ela nem abre a porta do quarto para não me incomo dar Sintome protegida com a minha mãe Deus está cuidando dela a carga viral baixou de 3800 para 800 o vírus está dormindo e sua filha não foi conta minada com a graça de Jesus Concluin do graças à doença a idéia de proteção antes um significante vazio ganha um sentido nesta história de vida Em contra partida é apenas no processo da entrevis ta que uma história de vida chega a se constituir Considerações finais A conclusão a interpretação psicanalítica da transcrição da entrevista foi apresentada no início do trabalho interpretativo para que agora possamos discutir a idéia de pesquisa em psicanálise Como ficou ilustrado o que pode ser apresentado como método psicana lítico guardadas as ressalvas já esboçadas consiste em efetuar certos recortes que não são arbitrários pois vão sendo solicitados pela própria análise em andamento e se transformam à medida que a análise transcorre No caso foi a contratransferência da entrevistadora di ante do beijo da mãe aidética na boca da filha uma sensação forte de perigo e falta de proteção que instalou o hori zonte e o espaço por onde os recortes e costuras interpretativos caminharam A partir daí eram os achados que determi navam os rumos das invenções e vice versa Ou seja é a própria interpretação à medida que tramita que funciona como eixo para a escutarecorte de novos frag mentos os quais quando interpretados terão a mesma função com relação ao material que virá O primeiro recorte como vimos foi efetuado a partir da sensação contra transferencial de beijo perigoso Mes mo sabendo que AIDS não se transmite por beijos o psicanalista toma em consi deração o impacto emocional experimen tado diante da cena sabendo que há de fazer sentido em algum outro campo É então que se abre em uma espécie de lance antecipatório o campo da inter pretação Cabem algumas considerações sobre o alcance do método psicanalíti co Este pode ser usado para interpretar qualquer fenômeno que faça parte do universo simbólico do homem sessões de psicoterapia entrevistas qualquer tipo de material apresentativoexpressivo projetivo fenômenos sociais ou insti tucionais material clínico colhido de gru pos de pacientes colostomizados fóbicos etc Por outro lado não é adequado para descobrir relações de causa e efeito nem para transpor descobertas feitas num cam po para outro Nem é preciso dizer que investigações feitas por meio deste pro cedimento não se prestam para tratamen to estatístico Com relação à verdade da interpretação ela é sempre relativa ao processo que a produziu e este processo como qualquer estratégia é Pesquisa em psicanálise algumas idéias e um exemplo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 275 irrepetível e singular No caso ele teve início com a escuta do beijo perigoso Mas pode haver outra interpretação igual mente verdadeira e uma pode ser mais útil do que a outra dependendo do con texto e do uso que se venha a fazer dela De qualquer modo a verdade de uma interpretação não pode ser tomada como definitiva mas sempre provisória Nem como totalizante pois é sempre uma ver dade parcial uma perspectiva seleciona da do seu objeto Ainda com relação ao alcance des te método é importante enfatizar que toda investigação psicanalítica tem al gum efeito terapêutico no sentido ampli ado do termo Recordemos que esta in vestigação partiu da observação de uma mulher que apesar de ter todas as infor mações sobre prevenção da AIDS era HIV positivo Ora o efeito terapêutico da investigação deste fragmento da realida de só pode incidir diretamente sobre ele e não sobre a moça entrevistada Daí a idéia de efeito terapêutico no sentido ampliado do termo pois neste caso o efeito terapêutico se dá compela desco berta de que uma campanha meramente informativa tem seus limites de que es tes limites se relacionam com a ausência de certas matrizes simbólicas tornando a informação inoperante e de que as estra tégias em saúde pública não podem fazer a economia da construção destas matri zes simbólicas Instrumentandose o efei to terapêutico obtido o ideal seria que estas informações fossem passadas aos poucos em grupos terapêuticos Estes grupos ofereceriam no aquieagora do campo transferencial criado entre agen tes de saúde e participantes a experiên cia emocional de serem cuidados fun dandose assim esta matriz simbólica compartilhada Esperase que por meio deste processo as informações técni cas possam vir a se tornar realmente operantes Nada impede porém que saindo do campo próprio a esta investigação pensemos no efeito terapêutico de que se beneficiou a moça entrevistada Em certo momento ela diz O único apoio que tive foi você Ao sentirse escutada e prin cipalmente sabendo que sua narrativa dará um livro ela está expressando à sua maneira que a sua vida e a sucessão de seus sofrimentos passaram a ter um sentido passaram a se constituir em acontecimentos de sua história Nesta condição podem vir inclusive a benefici ar outras mulheres que como ela não puderam contar com um ambiente sufici entemente bom Poderíamos ainda dizer avançando para a dimensão intrapsíquica da moça entrevistada que a incapacidade de conceber um espaço protegido desfal cara este psiquismo de uma função egói ca fundamental e assim privara o eu desta pessoa da capacidade de se apropriar de recursos e usar em seu proveito informa ções cruciais Uma certa dimensão destas falhas de constituição subjetiva parece ter sido tocada na entrevista o que se expressa no agradecimento pelo apoio De todo modo em termos de pes quisa psicanalítica convém que o inves Luís Claudio Figueiredo e Marion Minerbo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 276 tigador não pretenda mais do que sua investigação permite Quando investiga na clínica suas conclusões valem para a clínica Quando investiga um fragmento da realidade suas conclusões valem para o fragmento estudado E isto já é o bas tante para tornar a atividade de pesquisa em psicanálise perfeitamente respeitável REFERÊNCIAS Green A 2002 Idées directrices de la psychanalyse contemporaine Paris PUF Mezan R 1979 A trama dos concei tos São Paulo Perspectiva Mezan R 1985 Freud pensador da cultura São Paulo Brasiliense Minerbo M 2000 Estratégias de inves tigação em psicanálise São Paulo Casa do Psicólogo Pesquisa em psicanálise algumas idéias e um exemplo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 277 SUMMARY Research in psychoanalysis some ideas and an example Initially the authors differentiate research in psychoanalysis and research with the use of the psychoanalytic method In the first case psychoanalysis is the object of research The researcher does not need to be an active psychoanalyst He may be a philosopher a historian a sociologist or a literary critic In the second case a psychoanalyst is required In this case the object the subject the researcher and his means of investigation technical concepts are transformed in the end of the research The procedure is then minutely exemplified by the analysis of an interview In the final considerations the therapeutic dimension and its field of validity are considered along with the investigative dimension Key words Research in psychoanalysis Research with the psychoanalytic method Psychoanalytic analysis of an interview RESUMEN Investigación en psicoanálisis algunas ideas y un ejemplo Inicialmente los autores presentan una diferenciación entre la investigación en psicoanálisis y la investigación que usa el método psicoanalítico En el primer caso el psicoanálisis es el objeto de la investigación y el investigador no necesita ser un psicoanalista actuante Puede ser un filósofo un historiador un sociólogo o un crítico literario En el segundo caso se requiere un psicoanalista Después de la investigación el objeto el sujeto el investigador y sus medios de investigación conceptos técnicas sufren transformaciones Enseguida el procedimiento es minuciosamente ejemplificado con el análisis de una entrevista En las consideraciones finales se coloca al lado de la dimensión investigativa la dimensión terapéutica de la investigación así como su campo de validad Palabrasllave Investigación en psicoanálisis Investigación con el método psicoanalítico Análisis psicoanalítico de entrevista Luís Claudio Figueiredo e Marion Minerbo Jornal de Psicanálise São Paulo 3970 257278 jun 2006 278 Luís Claudio Figueiredo Rua Alcides Pertiga 65 05413100 São Paulo SP Fone 30864016 Email lclaudionetpointcombr Marion Minerbo Rua João Moura 647 cj 152 05412911 São Paulo SP Fone 38980074 Email marionminerboterracombr Recebido em 110406 Aceito em 110506