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Direito ·
Direitos Humanos
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Igualdade, Diferença e Direitos Humanos: Perspectivas Global e Regional* Flávia Piovesan** 1. Introdução Como revisitar a concepção da igualdade à luz do direito à diferença e do direito ao reconhecimento de identidades? De que modo os sistemas global e regionais, cada qual ao seu modo, têm enfrentado a temática da igualdade e da diferença? Qual é o alcance do direito à igualdade e da cláusula da não discriminação considerando as especificidades de cada sistema? A partir de um diálogo global e inter-regional, quais são as perspectivas para avançar na proteção do direito à igualdade e à diferença? São estas as questões centrais a inspirar o presente estudo, que tem por objetivo maior enfocar os direitos à igualdade e à diferença sob as perspectivas global e regional, fomentando um diálogo emancipatório nas arenas global e regional sob a ótica dos direitos humanos, no marco do multiculturalismo contemporâneo. 2. Revisitando a Concepção da Igualdade à Luz do Direito à Diferença A ética dos direitos humanos é a ética que vê no outro um ser merecedor de igual consideração e profundo respeito, dotado do direito de desenvolver as * Um especial agradecimento é feito ao Max Planck Institute for Comparative Public Law and International Law pela fellowship que tornou possível este estudo. Expresso também minha gratidão à Akemi Kamimura, pela primorosa pesquisa que colaborou para este artigo. ** Professora doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Professora de Direitos Humanos dos Programas de Pós Graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e da Universidade Pablo de Olavide (Sevilha, Espanha); visiting fellow do Human Rights Program da Harvard Law School (1995 e 2000), visiting fellow do Centre for Brazilian Studies da University of Oxford (2005), visiting fellow do Max Planck Institute for Comparative Public Law and International Law (Heidelberg – 2007), procuradora do Estado de São Paulo, membro do CLADEM (Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher), membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e membro da SUR – Human Rights University Network. 47 Flávia Piovesan potencialidades humanas, de forma livre, autônoma e plena. É a ética orientada pela afirmação da dignidade e pela prevenção ao sofrimento humano. Os direitos humanos refletem um construído axiológico, a partir de um espaço simbólico de luta e ação social. No dizer de Joaquin Herrera Flores,1 compõem uma racionalidade de resistência, na medida em que traduzem processos que abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade humana. Invocam uma plataforma emancipatória voltada à proteção da dignidade humana. No mesmo sentido, Celso Lafer,2 lembrando Danièle Lochak, realça que os direitos humanos não traduzem uma história linear, não compõem a história de uma marcha triunfal, nem a história de uma causa perdida de ante mão, mas a história de um combate. Para Micheline R. Ishay,3 a história dos direitos humanos pode ser pensada como uma viagem guiada por luzes que atravessam ruínas deixadas por tempestades devastadoras e intermitentes, como a eloquente descrição feita por Walter Benjamin da pintura Angelus Novus (The angel of history) de Paul Klee. Ao longo da história as mais graves violações aos direitos humanos tiveram como fundamento a dicotomia do “eu versus o outro”, em que a diversidade era captada como elemento para aniquilar direitos. Vale dizer, a diferença era visibilizada para conceber o “outro” como um ser menor em dignidade e direito, ou, em situações limites, um ser esvaziado mesmo de qualquer dignidade, um ser descartável, um ser supérfluo, objeto de compra e venda (como na escravidão) ou de campos de extermínio (como no nazismo). Nesta direção, merecem destaque as violações de escravidão, do nazismo, do sexismo, do racismo, da homofobia, da xenofobia e de outras práticas de intolerância. Como leciona Amartya Sen, “identity can be a source of richness and warmth as well as of violence and terror”.4 O autor ainda tece aguda crítica ao que 1 Joaquin Herrera Flores, Direitos Humanos, Interculturalidade e Racionalidade de Resistência, mimeo, p. 7. 2 Celso Lafer, prefácio ao livro Direitos Humanos e Justiça Internacional, Flávia Piovesan, São Paulo, ed. Saraiva, 2006, p. XXII. 3 Na interpretação de Walter Benjamin: “A face do anjo da história é virada para o passado. Ainda que nós vejamos uma cadeia de eventos, ele vê apenas uma catástrofe (...). O anjo gostaria de lá permanecer, para ser despertado pela morte, atestando tudo o que teria sido violentamente destruído. Mas uma tempestade se propaga do paraíso; alcança suas asas com tamanha violência que o anjo não mais pode fechá-las. Esta tempestade o compela ao futuro, para o qual suas costas estavam viradas (...). Esta tempestade é o que nos chamamos de progresso” (Walter Benjamin, Theses on the Philosophy of History, apud Micheline R. Ishay, The History of Human Rights, Berkeley/Los Angeles/London, University of California Press, 2004, p. 3). 4 Amartya Sen, Identity and Violence: The illusion of destiny, New York/London, W. W. Norton & Company, 2006, p. 4. 48 Igualdade, Diferença e Direitos Humanos: Perspectivas Global e Regional denomina como “serious miniaturization of human beings”, quando é negado o reconhecimento da pluralidade de identidades humanas, na medida em que as pessoas são “diversity different”.5 O temor à diferença é fator que permite compreender a primeira fase de proteção dos direitos humanos, marcada pela tônica da proteção geral e abstrata, com base na igualdade formal — eis que o legado do nazismo pautou-se na diferença como base para as políticas de extermínio, sob o lema da prevalência e da superioridade da raça pura ariana e da eliminação das demais. Torna-se, contudo, insuficiente tratar o indivíduo de forma genérica, geral e abstrata. Faz-se necessária a especificação do sujeito de direito, que passa a ser visto em sua peculiaridade e particularidade. Nesta ótica, determinados sujeitos de direitos, ou determinadas violações de direitos, exigem uma resposta específica e diferenciada. Neste cenário as mulheres, as crianças, as populações afro-descendentes, os migrantes, as pessoas com deficiência, dentre outras categorias vulneráveis, devem ser vistas nas especificidades e peculiaridades de sua condição social. Ao lado do direito à igualdade, surge, também como direito fundamental, o direito à diferença. Importa o respeito à diferença e à diversidade, o que lhes assegura um tratamento especial. Destacam-se, assim, três vertentes no que tange à concepção da igualdade: a) a igualdade formal, reduzida à fórmula “todos são iguais perante a lei” — que, ao seu tempo, foi crucial para a abolição de privilégios e a queda dos estamentos; b) a igualdade material, correspondente ao ideal de justiça social e distributiva (igualdade orientada pelo critério sócio-econômico); e c) a igualdade material, correspondente ao ideal de justiça enquanto reconhecimento de identidades (igualdade orientada pelos critérios de gênero, orientação sexual, idade, raça, etnia e demais critérios). Para Nancy Fraser, a justiça exige, simultaneamente, redistribuição e reconhecimento de identidades. Como atenta a autora: “O reconhecimento não pode se reduzir à distribuição, porque o status na sociedade não decorre simplesmente em função da classe. (...) Reciprocamente, a distribuição não pode se reduzir ao reconhecimento, porque o acesso aos recursos não decorre simplesmente em função de status.”6 Há, assim, o caráter bidimensional da 5 Amartya Sen, op. cit., pp. XIII e XIV. 6 Afirma Nancy Fraser: “O reconhecimento não pode se reduzir à distribuição, porque o status na sociedade não decorre simplesmente em função da classe. Tomemos o exemplo de um banqueiro afro-americano de Wall Street, que não consegue tomar um táxi. Neste caso, a injustiça da falta de reconhecimento tem pouco a ver com a má distribuição. (...) Reciprocamente, a distribuição não pode se reduzir ao reconhecimento, porque o acesso aos recursos não decorre simplesmente em função de status. Tomemos, como exemplo, um trabalhador industrial especializado, que fica desem- 49 justiça: redistribuição somada ao reconhecimento. No mesmo sentido, Boaventura de Souza Santos afirma que apenas a exigência do reconhecimento e da redistribuição permite a realização da igualdade.7 Atente-se que esta feição bidimensional da justiça mantém uma relação dinâmica e dialética, ou seja, os dois termos relacionam-se e interagem mutuamente, na medida em que a discriminação implica pobreza e a pobreza implica discriminação. Ainda Boaventura acrescenta: "temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e é uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades".8 Se, para a concepção formal de igualdade, esta é tomada como pressuposto, como um dado e um ponto de partida abstrato, para a concepção material de igualdade, esta é tomada como um resultado ao qual se pretende chegar, tendo como ponto de partida a visibilidade das diferenças. Isto é, essencial mostra-se distinguir a diferença e a desigualdade. A ótica material objetiva construir e afirmar a igualdade com respeito à diversidade. O reconhecimento de identidades e o direito à diferença é que conduzirão a uma plataforma emancipatória e igualitária. A emergência conceitual do direito à diferença e do reconhecimento de identidades é capaz de refletir e crescer frente aos movi- pracmp9erado em virtude do fechamento da fábrica em que trabalha, em vista de uma fusão corporativa especulativa. Neste caso, a injustiça da má distribuição tem pouco a ver com a falta de riconhecimento. (...) Proponho desenvolver o que chamo concepção bidimensional da justiça. Esta concepção trata da redistribuição e do reconhecimento como perspectivas e dimensões distintas da justiça. Sem reduzir uma à outra, abarca ambas em um único marco mais amplo". (Nancy Fraser, Redistribution, recognition y participación: hacia un concepto integrado de la justicia, In: Unesco, Informe Mundial sobre la Cultura, 2000-2001, pp. 55-56). Ver ainda da mesma autora o artigo From Redistribution to Recognition? Dilemmas of Justice in a Postsocialist age em seu livro Justice Interrupts. Critical reflections on the “Postsocialist” condition, NY/London, Routledge, 1997. Sobre a matéria, consultar Axel Honneth, The Struggle for Recognition: The moral grammar of social conflicts. Cambridge/Massachusetts, MIT Press, 1996; Nancy Fraser e Axel Honneth, Redistribution or Recognition? A political-philosophical exchange, London/NY, Verso, 2003; Charles Taylor, The politics of recognition, In: Charles Taylor et. al., Multiculturalism – Examining the politics of recognition, Princeton, Princeton University Press, 1994; Iris Young, Justice and the politics of difference, Princeton, Princeton University Press, 1990; Amy Gutmann, Multiculturalism: examining the politics of recognition, Princeton, Princeton University Press, 1994. 7 A respeito, ver Boaventura de Sousa Santos, Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. In: Reconhecer para Libertar: Os caminhos do cosmopolitismo multicultural, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003, p.56. Ver ainda do mesmo autor Por uma Concepção Multicultural de Direitos Humanos, op. cit., pp. 429-461. 8 Ver Boaventura de Sousa Santos, op. cit. mentos sociais e o surgimento de uma sociedade civil plural e diversa no marco do multiculturalismo.9 Este estudo permitirá analisar o modo pelo qual o sistema global e os diversos sistemas regionais de proteção dos direitos humanos incorporam o valor da diversidade, bem como adotam instrumentos protetivos específicos voltados à proteção dos grupos socialmente mais vulneráveis. 3. Proteção dos Direitos à Igualdade e à Diferença no Sistema Global Considerando a historicidade dos direitos humanos, destaca-se já na visão chamanızda da concepção contemporânea de direitos humanos, que veio a ser introduzida pela Declaração Universal de 1948 e reiterada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993. Esta concepção é fruto do movimento de internacionalização dos direitos humanos, que surge, no pós-guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. É neste cenário que se vislumbra o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional. A barbárie do totalitarismo significou o ruptura do paradigma dos direitos humanos, por meio da negação do valor da pessoa humana como valor fundador do Direito. Se a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o Pós-Guerra deveria significar a sua reconstrução. Nas palavras de Thomas Buergenthal: “O moderno Direito Internacional dos Direitos Humanos é um fenômeno do pós-guerra. Seu desenvolvimento pode ser atribuído às monstruosas violações de direitos humanos da era Hitler e à crença de que parte destas violações poderiam ser prevenidas se um eficiente sistema de proteção internacional de direitos humanos existisse”.10 9 A título exemplificativo, se em 1948 apenas 41 ONGs tinham status consultivo junto ao Conselho Econômico e Social da ONU, em 2004 este número alcançava aproximadamente 2350 ONGs com status consultivo. Consultar Gay J. McDougall, Decade for NGO Struggle, In: Human Rights Brief – 10th Anniversary, American University Washington College of Law, Center for Human Rights and Humanitarian Law, v. 11, issue 3 (spring 2004), p. 13. 10. Thomas Buergenthal, International human rights, op. cit., p. 17. Para Henkin: “Por mais de meio século, o sistema internacional tem demonstrado comprometimento com valores que transcendem os valores puramente “estatais”, notadamente os direitos humanos, e tem desenvolvido um impressionante sistema normativo de proteção desses direitos”. (International law, op. cit., p. 2). Ainda sobre o processo de internacionalização dos direitos humanos, observo Celsa Laffer: “Configura-se como a primeira resposta jurídica da comunidade internacional ao fato de que o direito ex parte populi de todo ser humano à hospitalidade universal só começaria a viabilizar-se se o “direito a ter direitos”, para falar com Hannah Arendt, tivesse uma tutela internacional, homologadora do Fortalece-se a idéia de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao domínio reservado do Estado, porque revela tema de legítimo interesse internacional. Prenuncia-se, deste modo, o fim da era em que a forma pela qual o Estado tratava seus nacionais era concebida como um problema de jurisdição doméstica, decorrência de sua soberania. Para Andrew Hurrell: “O aumento significativo das ambições normativas da sociedade internacional é particularmente visível no campo dos direitos humanos e da democracia, com base na idéia de que as relações entre governantes e governados, Estados e cidadãos, passam a ser susceptíveis de legítima preocupação da comunidade internacional; de que os maus-tratos a cidadãos e a inexistência de regimes democráticos devem demandar ação internacional; e que a legitimidade internacional de um Estado passa crescentemente a depender do modo pelo qual as sociedades domésticas são politicamente ordenadas”.11 Neste contexto, a Declaração de 1948 vem a inovar a gramática dos direitos humanos, ao introduzir a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade e indivisibilidade destes direitos. Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano como um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta como valor intrínseco à condição humana. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o são. Os direitos humanos compõem, assim, uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos com o catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais. A partir da Declaração de 1948, começa a se desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de inúmeros instrumentos internacionais de proteção. A Declaração de 1948 confere lastro axiológico e unidade valorativa a este campo do Direito, com ênfase na universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos. posto o vista da humanidade. Foi assim que começou efetivamente a ser delimitada a “razão de estado” e corroída a competência reservada da soberania dos governantes, em matéria de direitos humanos, encetando-se a sua vinculação aos temas da democracia e da paz” (Prefácio ao livro Os direitos humanos como tema global, op. cit., p. XXVI). 11 Andrew Hurrell, Power, principles and prudence: protecting human rights in a deeply divided world, In: Tim Dunne e Nicholas J. Wheeler, Human Rights in Global Politics, Cambridge, Cambridge University Press, 1999, p. 277. Igualdade, Diferença e Direitos Humanos: Perspectivas Global e Regional O processo de universalização dos direitos humanos permitiu a forma- ção de um sistema internacional de proteção destes direitos. Este sistema é integrado por tratados internacionais de proteção que refletem, sobretudo, a consciência ética contemporânea compartilhada pelos Estados, na medida em que invocam o consenso internacional acerca de temas centrais aos direitos humanos, na busca da salvaguarda de parâmetros protetivos mínimos – do “mínimo ético irredutível”. Cabe destacar que, até junho de 2006, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos contava com 156 Estados-partes; o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais contava com 153 Estados-partes; a Convenção contra a Tortura contava com 141 Estados- partes; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial contava com 170 Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher contava com 183 Estados-partes e a Convenção sobre os Direitos da Criança apresentava a mais ampla adesão, com 192 Estados-partes.12 Ao lado do sistema normativo global, surgem os sistemas regionais de proteção, que buscam internacionalizar os direitos humanos nos planos regio- ais, particularmente na Europa, América e África. Consolida-se, assim, a convivência do sistema global da ONU com os sistemas regionais, por sua vez, integrados pelos sistemas interamericano, europeu e africano de proteção aos direitos humanos. Os sistemas global e regional não são dicotômicos, mas complementares. Inspirados pelos valores e princípios da Declaração Universal, compõem o universo instrumental de proteção dos direitos humanos, no plano internacio- nal. Nesta ótica, os diversos sistemas de proteção de direitos humanos intera- gem em benefício dos indivíduos protegidos. Ao adotar o valor da primazia da pessoa humana, estes sistemas se complementam, somando-se ao sistema nacional de proteção, a fim de proporcionar a maior efetividade possível na tutela e promoção de direitos fundamentais. Esta é inclusive a lógica e princi- piologia própria do Direito dos Direitos Humanos. Ressalte-se que a Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993, reitera a concepção da Declaração de 1948, quando, em seu parágrafo 5º, afir- ma: “Todos os direitos humanos são universais, interdependentes e inter-rela- cionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos global- mente de forma justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase.” 12 Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas, Status of Ratifications of the Principal International Human Rights Treaties, http://www.unhchr.ch/pdf/report.pdf. 53 Flávia Piovesan Sob o prisma do sistema global de proteção, constata-se que o direito à igualdade e a proibição da discriminação foram enfaticamente consagrados pela Declaração Universal de 1948, pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. A Declaração Universal de 1948, em seu artigo I, desde logo enuncia que "todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade". Prossegue, no artigo II, a endossar que "toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos na Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opi- nião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nasci- mento, ou qualquer outra condição. Estabelece o artigo VII a concepção da igualdade formal, prescrevendo que "todos são iguais perante a lei e têm direi- to, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei". Portanto, se o primeiro artigo da Declaração afirma o direito à igualdade, o segundo artigo adiciona a cláusula da proibição da discriminação de qualquer espécie, como corolário e consequência do princípio da igualdade. O binômio da igualdade e da não dis- criminação, assegurado pela Declaração, sob a inspiração da concepção formal de igualdade, impactará a feição de todo sistema normativo global de prote- ção dos direitos humanos. Com efeito, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, já em seu artigo 2º (1), consagra que “os Estados-partes no Pacto compromete- m-se a garantir a todos os indivíduos que se encontrem em seu território e que estejam sujeitos à sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente Pacto, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, reli- gião, opinião política ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação". Uma vez mais, afirma-se a cláusula da proibição da discriminação para o exercício dos direi- tos humanos. A relevância de tal cláusula é acentuada pelo artigo 4º do Pacto, ao prever um núcleo inderrogável de direitos, a ser preservado ainda que em situações excepcionais e ameaçadoras, admitindo-se, contudo, a adoção de medidas restritivas de direitos estritamente necessárias, “desde que tais medi- das não acarretem discriminação alguma apenas por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião ou origem social”. A concepção da igualdade formal, tal como na Declaração, é prevista pelo Pacto, em seu artigo 26, ao determinar que "todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem discriminação algu- ma, a igual proteção da lei. (...) a lei deverá proibir qualquer forma de discri- minação e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer 54 Igualdade, Diferença e Direitos Humanos: Perspectivas Global e Regional discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nasci- mento ou qualquer outra situação". O Comitê de Direitos Humanos, em sua Recomendação Geral nº 18, a respeito do artigo 26, entende que o princípio da não discriminação é um princípio fundamental previsto no próprio Pacto, con- dição e pressuposto para o pleno exercício dos direitos humanos nele enuncia- dos. No entender do Comitê: "A não discriminação, assim como a igualdade perante a lei e a igual proteção da lei sem nenhuma discriminação, constituem um princípio básico e geral, relacionado à proteção dos direitos humanos”.13 Quanto à proteção das minorias étnicas, religiosas ou linguísticas, asse- gura o Pacto às pessoas a elas pertencentes o direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua (artigo 27).14 Por sua vez, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, em seu artigo 20, estabelece que os Estados-partes compre- metem-se a garantir que os direitos nele previstos serão exercidos sem discri- minação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião polí- tica ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, situação econô- mica, nascimento ou qualquer outra situação. Uma vez mais, consagra-se a cláusula da proibição da discriminação. O Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em sua Recomendação Geral nº 16, adotada em 2005, real- ça que “guarantees of non-discrimination and equality in international human rights treaties mandate both de facto and de jure equality. De jure (or formal) equality and de facto (or substantive) equality are different but inter- connected concepts. Formal equality assumes that equality is achieved if a law or policy treats men and women in a neutral manner. Substantive equa- lity is concerned, in addition, with the effects of laws, policies and practices 13 No mesmo sentido, destaca a Recomendação Geral nº 14 do Comitê sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, adotada em 1993: “Non-discrimination, together with equality before the law and equal protection of the law without any discrimination, constitutes a basic prin- ciple in the protection of human rights”. 14 A Recomendação Geral nº 23 se refere ao artigo 27 do Pacto, com o objetivo de proteger as mino- rias étnicas. O Comitê faz uma diferenciação entre o direito protegido no artigo 27 e os direitos pro- tegidos nos artigos 2º e 26. Os artigos 2º e 26 tratam da não discriminação e da igualdade perante a lei, independentemente do indivíduo pertencer a uma minoria étnica ou não. As pessoas às quais se destina o artigo 27 são aquelas que pertencem a um grupo e têm uma cultura, religião e/ou lín- gua comum. Apesar dos direitos protegidos pelo artigo 27 serem individuais, eles dependem da existência de uma minoria étnica, ou seja, de uma coletividade. A Recomendação nº 23, assim como a nº 18, prevê a possibilidade de ações afirmativas que garantam a igualdade dessas minorias étnicas, respeitando o disposto nos artigos 2º e 26 do Pacto. 55 Flávia Piovesan and with ensuring that they do not maintain, but rather alleviate, the inher- ent disadvantage that particular groups experience. Substantive equality for men and women will not be achieved simply through the enactment of laws or the adoption of policies that are, prima facie, gender-neutral. In imple- menting article 3, States parties should take into account that such laws, poli- cies and practice can fail to address or even perpetuate inequality between men and women because they do not take account of existing economic, social and cultural inequalities, particularly those experienced by women”. Ao diferenciar a igualdade de direito e de fato, o Comitê prossegue distin- guindo a discriminação direta da denominada discriminação indireta, conside- rando a perspectiva de gênero, nos termos seguintes: “Direct discrimination occurs when a difference in treatment relies directly and explicitly on distinc- tions based exclusively on sex and characteristics of men or of women, which cannot be justified objectively. Indirect discrimination occurs when a law, policy or programme does not appear to be discriminatory, but has a discrim- inatory effect when implemented. This can occur, for example, when women are disadvantaged compared to men with respect to the enjoyment of a partic- ular opportunity or benefit due to pre-existing inequalities. Applying a gen- der-neutral law may leave the existing inequality in place, or exacerbate it”. A Recomendação Geral nº 16 ainda avança para a temática das ações afir- mativas, entendendo que: “the principles of equality and non-discrimination, by themselves, are not always sufficient to guarantee true equality. Temporary special measures may sometimes be needed in order to bring dis- advantaged or marginalized persons or groups of persons to the same substan- tive level as others. Temporary special measures aim at realizing not only de jure or formal equality, but also de facto or substantive equality for men and women. However, the application of the principle of equality will sometimes require that States parties take measures in favour of women in order to attenuate or suppress conditions that perpetuate discrimination. As long as these measures are necessary to redress de facto discrimination and are termi- nated when de facto equality is achieved, such differentiation is legitimate”. Merece destaque a atuação construtiva dos Comitês de Direitos Humanos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais em transcender os limites das cláusulas da igualdade formal e da proibição da discriminação enunciadas nos Pactos. A jurisprudência criativa destes Comitês, por meio da adoção de recomendações gerais, têm permitido delinear a concepção mate- rial de igualdade, com a distinção da igualdade de direito e de fato (de jure and de facto equality). É a partir desta distinção que é lançado o questionamento a respeito do papel do Estado, demandando-se, por vezes, se transite de uma 56
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Igualdade, Diferença e Direitos Humanos: Perspectivas Global e Regional* Flávia Piovesan** 1. Introdução Como revisitar a concepção da igualdade à luz do direito à diferença e do direito ao reconhecimento de identidades? De que modo os sistemas global e regionais, cada qual ao seu modo, têm enfrentado a temática da igualdade e da diferença? Qual é o alcance do direito à igualdade e da cláusula da não discriminação considerando as especificidades de cada sistema? A partir de um diálogo global e inter-regional, quais são as perspectivas para avançar na proteção do direito à igualdade e à diferença? São estas as questões centrais a inspirar o presente estudo, que tem por objetivo maior enfocar os direitos à igualdade e à diferença sob as perspectivas global e regional, fomentando um diálogo emancipatório nas arenas global e regional sob a ótica dos direitos humanos, no marco do multiculturalismo contemporâneo. 2. Revisitando a Concepção da Igualdade à Luz do Direito à Diferença A ética dos direitos humanos é a ética que vê no outro um ser merecedor de igual consideração e profundo respeito, dotado do direito de desenvolver as * Um especial agradecimento é feito ao Max Planck Institute for Comparative Public Law and International Law pela fellowship que tornou possível este estudo. Expresso também minha gratidão à Akemi Kamimura, pela primorosa pesquisa que colaborou para este artigo. ** Professora doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Professora de Direitos Humanos dos Programas de Pós Graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e da Universidade Pablo de Olavide (Sevilha, Espanha); visiting fellow do Human Rights Program da Harvard Law School (1995 e 2000), visiting fellow do Centre for Brazilian Studies da University of Oxford (2005), visiting fellow do Max Planck Institute for Comparative Public Law and International Law (Heidelberg – 2007), procuradora do Estado de São Paulo, membro do CLADEM (Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher), membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e membro da SUR – Human Rights University Network. 47 Flávia Piovesan potencialidades humanas, de forma livre, autônoma e plena. É a ética orientada pela afirmação da dignidade e pela prevenção ao sofrimento humano. Os direitos humanos refletem um construído axiológico, a partir de um espaço simbólico de luta e ação social. No dizer de Joaquin Herrera Flores,1 compõem uma racionalidade de resistência, na medida em que traduzem processos que abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade humana. Invocam uma plataforma emancipatória voltada à proteção da dignidade humana. No mesmo sentido, Celso Lafer,2 lembrando Danièle Lochak, realça que os direitos humanos não traduzem uma história linear, não compõem a história de uma marcha triunfal, nem a história de uma causa perdida de ante mão, mas a história de um combate. Para Micheline R. Ishay,3 a história dos direitos humanos pode ser pensada como uma viagem guiada por luzes que atravessam ruínas deixadas por tempestades devastadoras e intermitentes, como a eloquente descrição feita por Walter Benjamin da pintura Angelus Novus (The angel of history) de Paul Klee. Ao longo da história as mais graves violações aos direitos humanos tiveram como fundamento a dicotomia do “eu versus o outro”, em que a diversidade era captada como elemento para aniquilar direitos. Vale dizer, a diferença era visibilizada para conceber o “outro” como um ser menor em dignidade e direito, ou, em situações limites, um ser esvaziado mesmo de qualquer dignidade, um ser descartável, um ser supérfluo, objeto de compra e venda (como na escravidão) ou de campos de extermínio (como no nazismo). Nesta direção, merecem destaque as violações de escravidão, do nazismo, do sexismo, do racismo, da homofobia, da xenofobia e de outras práticas de intolerância. Como leciona Amartya Sen, “identity can be a source of richness and warmth as well as of violence and terror”.4 O autor ainda tece aguda crítica ao que 1 Joaquin Herrera Flores, Direitos Humanos, Interculturalidade e Racionalidade de Resistência, mimeo, p. 7. 2 Celso Lafer, prefácio ao livro Direitos Humanos e Justiça Internacional, Flávia Piovesan, São Paulo, ed. Saraiva, 2006, p. XXII. 3 Na interpretação de Walter Benjamin: “A face do anjo da história é virada para o passado. Ainda que nós vejamos uma cadeia de eventos, ele vê apenas uma catástrofe (...). O anjo gostaria de lá permanecer, para ser despertado pela morte, atestando tudo o que teria sido violentamente destruído. Mas uma tempestade se propaga do paraíso; alcança suas asas com tamanha violência que o anjo não mais pode fechá-las. Esta tempestade o compela ao futuro, para o qual suas costas estavam viradas (...). Esta tempestade é o que nos chamamos de progresso” (Walter Benjamin, Theses on the Philosophy of History, apud Micheline R. Ishay, The History of Human Rights, Berkeley/Los Angeles/London, University of California Press, 2004, p. 3). 4 Amartya Sen, Identity and Violence: The illusion of destiny, New York/London, W. W. Norton & Company, 2006, p. 4. 48 Igualdade, Diferença e Direitos Humanos: Perspectivas Global e Regional denomina como “serious miniaturization of human beings”, quando é negado o reconhecimento da pluralidade de identidades humanas, na medida em que as pessoas são “diversity different”.5 O temor à diferença é fator que permite compreender a primeira fase de proteção dos direitos humanos, marcada pela tônica da proteção geral e abstrata, com base na igualdade formal — eis que o legado do nazismo pautou-se na diferença como base para as políticas de extermínio, sob o lema da prevalência e da superioridade da raça pura ariana e da eliminação das demais. Torna-se, contudo, insuficiente tratar o indivíduo de forma genérica, geral e abstrata. Faz-se necessária a especificação do sujeito de direito, que passa a ser visto em sua peculiaridade e particularidade. Nesta ótica, determinados sujeitos de direitos, ou determinadas violações de direitos, exigem uma resposta específica e diferenciada. Neste cenário as mulheres, as crianças, as populações afro-descendentes, os migrantes, as pessoas com deficiência, dentre outras categorias vulneráveis, devem ser vistas nas especificidades e peculiaridades de sua condição social. Ao lado do direito à igualdade, surge, também como direito fundamental, o direito à diferença. Importa o respeito à diferença e à diversidade, o que lhes assegura um tratamento especial. Destacam-se, assim, três vertentes no que tange à concepção da igualdade: a) a igualdade formal, reduzida à fórmula “todos são iguais perante a lei” — que, ao seu tempo, foi crucial para a abolição de privilégios e a queda dos estamentos; b) a igualdade material, correspondente ao ideal de justiça social e distributiva (igualdade orientada pelo critério sócio-econômico); e c) a igualdade material, correspondente ao ideal de justiça enquanto reconhecimento de identidades (igualdade orientada pelos critérios de gênero, orientação sexual, idade, raça, etnia e demais critérios). Para Nancy Fraser, a justiça exige, simultaneamente, redistribuição e reconhecimento de identidades. Como atenta a autora: “O reconhecimento não pode se reduzir à distribuição, porque o status na sociedade não decorre simplesmente em função da classe. (...) Reciprocamente, a distribuição não pode se reduzir ao reconhecimento, porque o acesso aos recursos não decorre simplesmente em função de status.”6 Há, assim, o caráter bidimensional da 5 Amartya Sen, op. cit., pp. XIII e XIV. 6 Afirma Nancy Fraser: “O reconhecimento não pode se reduzir à distribuição, porque o status na sociedade não decorre simplesmente em função da classe. Tomemos o exemplo de um banqueiro afro-americano de Wall Street, que não consegue tomar um táxi. Neste caso, a injustiça da falta de reconhecimento tem pouco a ver com a má distribuição. (...) Reciprocamente, a distribuição não pode se reduzir ao reconhecimento, porque o acesso aos recursos não decorre simplesmente em função de status. Tomemos, como exemplo, um trabalhador industrial especializado, que fica desem- 49 justiça: redistribuição somada ao reconhecimento. No mesmo sentido, Boaventura de Souza Santos afirma que apenas a exigência do reconhecimento e da redistribuição permite a realização da igualdade.7 Atente-se que esta feição bidimensional da justiça mantém uma relação dinâmica e dialética, ou seja, os dois termos relacionam-se e interagem mutuamente, na medida em que a discriminação implica pobreza e a pobreza implica discriminação. Ainda Boaventura acrescenta: "temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e é uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades".8 Se, para a concepção formal de igualdade, esta é tomada como pressuposto, como um dado e um ponto de partida abstrato, para a concepção material de igualdade, esta é tomada como um resultado ao qual se pretende chegar, tendo como ponto de partida a visibilidade das diferenças. Isto é, essencial mostra-se distinguir a diferença e a desigualdade. A ótica material objetiva construir e afirmar a igualdade com respeito à diversidade. O reconhecimento de identidades e o direito à diferença é que conduzirão a uma plataforma emancipatória e igualitária. A emergência conceitual do direito à diferença e do reconhecimento de identidades é capaz de refletir e crescer frente aos movi- pracmp9erado em virtude do fechamento da fábrica em que trabalha, em vista de uma fusão corporativa especulativa. Neste caso, a injustiça da má distribuição tem pouco a ver com a falta de riconhecimento. (...) Proponho desenvolver o que chamo concepção bidimensional da justiça. Esta concepção trata da redistribuição e do reconhecimento como perspectivas e dimensões distintas da justiça. Sem reduzir uma à outra, abarca ambas em um único marco mais amplo". (Nancy Fraser, Redistribution, recognition y participación: hacia un concepto integrado de la justicia, In: Unesco, Informe Mundial sobre la Cultura, 2000-2001, pp. 55-56). Ver ainda da mesma autora o artigo From Redistribution to Recognition? Dilemmas of Justice in a Postsocialist age em seu livro Justice Interrupts. Critical reflections on the “Postsocialist” condition, NY/London, Routledge, 1997. Sobre a matéria, consultar Axel Honneth, The Struggle for Recognition: The moral grammar of social conflicts. Cambridge/Massachusetts, MIT Press, 1996; Nancy Fraser e Axel Honneth, Redistribution or Recognition? A political-philosophical exchange, London/NY, Verso, 2003; Charles Taylor, The politics of recognition, In: Charles Taylor et. al., Multiculturalism – Examining the politics of recognition, Princeton, Princeton University Press, 1994; Iris Young, Justice and the politics of difference, Princeton, Princeton University Press, 1990; Amy Gutmann, Multiculturalism: examining the politics of recognition, Princeton, Princeton University Press, 1994. 7 A respeito, ver Boaventura de Sousa Santos, Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. In: Reconhecer para Libertar: Os caminhos do cosmopolitismo multicultural, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003, p.56. Ver ainda do mesmo autor Por uma Concepção Multicultural de Direitos Humanos, op. cit., pp. 429-461. 8 Ver Boaventura de Sousa Santos, op. cit. mentos sociais e o surgimento de uma sociedade civil plural e diversa no marco do multiculturalismo.9 Este estudo permitirá analisar o modo pelo qual o sistema global e os diversos sistemas regionais de proteção dos direitos humanos incorporam o valor da diversidade, bem como adotam instrumentos protetivos específicos voltados à proteção dos grupos socialmente mais vulneráveis. 3. Proteção dos Direitos à Igualdade e à Diferença no Sistema Global Considerando a historicidade dos direitos humanos, destaca-se já na visão chamanızda da concepção contemporânea de direitos humanos, que veio a ser introduzida pela Declaração Universal de 1948 e reiterada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993. Esta concepção é fruto do movimento de internacionalização dos direitos humanos, que surge, no pós-guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. É neste cenário que se vislumbra o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional. A barbárie do totalitarismo significou o ruptura do paradigma dos direitos humanos, por meio da negação do valor da pessoa humana como valor fundador do Direito. Se a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o Pós-Guerra deveria significar a sua reconstrução. Nas palavras de Thomas Buergenthal: “O moderno Direito Internacional dos Direitos Humanos é um fenômeno do pós-guerra. Seu desenvolvimento pode ser atribuído às monstruosas violações de direitos humanos da era Hitler e à crença de que parte destas violações poderiam ser prevenidas se um eficiente sistema de proteção internacional de direitos humanos existisse”.10 9 A título exemplificativo, se em 1948 apenas 41 ONGs tinham status consultivo junto ao Conselho Econômico e Social da ONU, em 2004 este número alcançava aproximadamente 2350 ONGs com status consultivo. Consultar Gay J. McDougall, Decade for NGO Struggle, In: Human Rights Brief – 10th Anniversary, American University Washington College of Law, Center for Human Rights and Humanitarian Law, v. 11, issue 3 (spring 2004), p. 13. 10. Thomas Buergenthal, International human rights, op. cit., p. 17. Para Henkin: “Por mais de meio século, o sistema internacional tem demonstrado comprometimento com valores que transcendem os valores puramente “estatais”, notadamente os direitos humanos, e tem desenvolvido um impressionante sistema normativo de proteção desses direitos”. (International law, op. cit., p. 2). Ainda sobre o processo de internacionalização dos direitos humanos, observo Celsa Laffer: “Configura-se como a primeira resposta jurídica da comunidade internacional ao fato de que o direito ex parte populi de todo ser humano à hospitalidade universal só começaria a viabilizar-se se o “direito a ter direitos”, para falar com Hannah Arendt, tivesse uma tutela internacional, homologadora do Fortalece-se a idéia de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao domínio reservado do Estado, porque revela tema de legítimo interesse internacional. Prenuncia-se, deste modo, o fim da era em que a forma pela qual o Estado tratava seus nacionais era concebida como um problema de jurisdição doméstica, decorrência de sua soberania. Para Andrew Hurrell: “O aumento significativo das ambições normativas da sociedade internacional é particularmente visível no campo dos direitos humanos e da democracia, com base na idéia de que as relações entre governantes e governados, Estados e cidadãos, passam a ser susceptíveis de legítima preocupação da comunidade internacional; de que os maus-tratos a cidadãos e a inexistência de regimes democráticos devem demandar ação internacional; e que a legitimidade internacional de um Estado passa crescentemente a depender do modo pelo qual as sociedades domésticas são politicamente ordenadas”.11 Neste contexto, a Declaração de 1948 vem a inovar a gramática dos direitos humanos, ao introduzir a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade e indivisibilidade destes direitos. Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano como um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta como valor intrínseco à condição humana. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o são. Os direitos humanos compõem, assim, uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos com o catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais. A partir da Declaração de 1948, começa a se desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de inúmeros instrumentos internacionais de proteção. A Declaração de 1948 confere lastro axiológico e unidade valorativa a este campo do Direito, com ênfase na universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos. posto o vista da humanidade. Foi assim que começou efetivamente a ser delimitada a “razão de estado” e corroída a competência reservada da soberania dos governantes, em matéria de direitos humanos, encetando-se a sua vinculação aos temas da democracia e da paz” (Prefácio ao livro Os direitos humanos como tema global, op. cit., p. XXVI). 11 Andrew Hurrell, Power, principles and prudence: protecting human rights in a deeply divided world, In: Tim Dunne e Nicholas J. Wheeler, Human Rights in Global Politics, Cambridge, Cambridge University Press, 1999, p. 277. Igualdade, Diferença e Direitos Humanos: Perspectivas Global e Regional O processo de universalização dos direitos humanos permitiu a forma- ção de um sistema internacional de proteção destes direitos. Este sistema é integrado por tratados internacionais de proteção que refletem, sobretudo, a consciência ética contemporânea compartilhada pelos Estados, na medida em que invocam o consenso internacional acerca de temas centrais aos direitos humanos, na busca da salvaguarda de parâmetros protetivos mínimos – do “mínimo ético irredutível”. Cabe destacar que, até junho de 2006, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos contava com 156 Estados-partes; o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais contava com 153 Estados-partes; a Convenção contra a Tortura contava com 141 Estados- partes; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial contava com 170 Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher contava com 183 Estados-partes e a Convenção sobre os Direitos da Criança apresentava a mais ampla adesão, com 192 Estados-partes.12 Ao lado do sistema normativo global, surgem os sistemas regionais de proteção, que buscam internacionalizar os direitos humanos nos planos regio- ais, particularmente na Europa, América e África. Consolida-se, assim, a convivência do sistema global da ONU com os sistemas regionais, por sua vez, integrados pelos sistemas interamericano, europeu e africano de proteção aos direitos humanos. Os sistemas global e regional não são dicotômicos, mas complementares. Inspirados pelos valores e princípios da Declaração Universal, compõem o universo instrumental de proteção dos direitos humanos, no plano internacio- nal. Nesta ótica, os diversos sistemas de proteção de direitos humanos intera- gem em benefício dos indivíduos protegidos. Ao adotar o valor da primazia da pessoa humana, estes sistemas se complementam, somando-se ao sistema nacional de proteção, a fim de proporcionar a maior efetividade possível na tutela e promoção de direitos fundamentais. Esta é inclusive a lógica e princi- piologia própria do Direito dos Direitos Humanos. Ressalte-se que a Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993, reitera a concepção da Declaração de 1948, quando, em seu parágrafo 5º, afir- ma: “Todos os direitos humanos são universais, interdependentes e inter-rela- cionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos global- mente de forma justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase.” 12 Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas, Status of Ratifications of the Principal International Human Rights Treaties, http://www.unhchr.ch/pdf/report.pdf. 53 Flávia Piovesan Sob o prisma do sistema global de proteção, constata-se que o direito à igualdade e a proibição da discriminação foram enfaticamente consagrados pela Declaração Universal de 1948, pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. A Declaração Universal de 1948, em seu artigo I, desde logo enuncia que "todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade". Prossegue, no artigo II, a endossar que "toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos na Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opi- nião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nasci- mento, ou qualquer outra condição. Estabelece o artigo VII a concepção da igualdade formal, prescrevendo que "todos são iguais perante a lei e têm direi- to, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei". Portanto, se o primeiro artigo da Declaração afirma o direito à igualdade, o segundo artigo adiciona a cláusula da proibição da discriminação de qualquer espécie, como corolário e consequência do princípio da igualdade. O binômio da igualdade e da não dis- criminação, assegurado pela Declaração, sob a inspiração da concepção formal de igualdade, impactará a feição de todo sistema normativo global de prote- ção dos direitos humanos. Com efeito, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, já em seu artigo 2º (1), consagra que “os Estados-partes no Pacto compromete- m-se a garantir a todos os indivíduos que se encontrem em seu território e que estejam sujeitos à sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente Pacto, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, reli- gião, opinião política ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação". Uma vez mais, afirma-se a cláusula da proibição da discriminação para o exercício dos direi- tos humanos. A relevância de tal cláusula é acentuada pelo artigo 4º do Pacto, ao prever um núcleo inderrogável de direitos, a ser preservado ainda que em situações excepcionais e ameaçadoras, admitindo-se, contudo, a adoção de medidas restritivas de direitos estritamente necessárias, “desde que tais medi- das não acarretem discriminação alguma apenas por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião ou origem social”. A concepção da igualdade formal, tal como na Declaração, é prevista pelo Pacto, em seu artigo 26, ao determinar que "todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem discriminação algu- ma, a igual proteção da lei. (...) a lei deverá proibir qualquer forma de discri- minação e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer 54 Igualdade, Diferença e Direitos Humanos: Perspectivas Global e Regional discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nasci- mento ou qualquer outra situação". O Comitê de Direitos Humanos, em sua Recomendação Geral nº 18, a respeito do artigo 26, entende que o princípio da não discriminação é um princípio fundamental previsto no próprio Pacto, con- dição e pressuposto para o pleno exercício dos direitos humanos nele enuncia- dos. No entender do Comitê: "A não discriminação, assim como a igualdade perante a lei e a igual proteção da lei sem nenhuma discriminação, constituem um princípio básico e geral, relacionado à proteção dos direitos humanos”.13 Quanto à proteção das minorias étnicas, religiosas ou linguísticas, asse- gura o Pacto às pessoas a elas pertencentes o direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua (artigo 27).14 Por sua vez, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, em seu artigo 20, estabelece que os Estados-partes compre- metem-se a garantir que os direitos nele previstos serão exercidos sem discri- minação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião polí- tica ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, situação econô- mica, nascimento ou qualquer outra situação. Uma vez mais, consagra-se a cláusula da proibição da discriminação. O Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em sua Recomendação Geral nº 16, adotada em 2005, real- ça que “guarantees of non-discrimination and equality in international human rights treaties mandate both de facto and de jure equality. De jure (or formal) equality and de facto (or substantive) equality are different but inter- connected concepts. Formal equality assumes that equality is achieved if a law or policy treats men and women in a neutral manner. Substantive equa- lity is concerned, in addition, with the effects of laws, policies and practices 13 No mesmo sentido, destaca a Recomendação Geral nº 14 do Comitê sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, adotada em 1993: “Non-discrimination, together with equality before the law and equal protection of the law without any discrimination, constitutes a basic prin- ciple in the protection of human rights”. 14 A Recomendação Geral nº 23 se refere ao artigo 27 do Pacto, com o objetivo de proteger as mino- rias étnicas. O Comitê faz uma diferenciação entre o direito protegido no artigo 27 e os direitos pro- tegidos nos artigos 2º e 26. Os artigos 2º e 26 tratam da não discriminação e da igualdade perante a lei, independentemente do indivíduo pertencer a uma minoria étnica ou não. As pessoas às quais se destina o artigo 27 são aquelas que pertencem a um grupo e têm uma cultura, religião e/ou lín- gua comum. Apesar dos direitos protegidos pelo artigo 27 serem individuais, eles dependem da existência de uma minoria étnica, ou seja, de uma coletividade. A Recomendação nº 23, assim como a nº 18, prevê a possibilidade de ações afirmativas que garantam a igualdade dessas minorias étnicas, respeitando o disposto nos artigos 2º e 26 do Pacto. 55 Flávia Piovesan and with ensuring that they do not maintain, but rather alleviate, the inher- ent disadvantage that particular groups experience. Substantive equality for men and women will not be achieved simply through the enactment of laws or the adoption of policies that are, prima facie, gender-neutral. In imple- menting article 3, States parties should take into account that such laws, poli- cies and practice can fail to address or even perpetuate inequality between men and women because they do not take account of existing economic, social and cultural inequalities, particularly those experienced by women”. Ao diferenciar a igualdade de direito e de fato, o Comitê prossegue distin- guindo a discriminação direta da denominada discriminação indireta, conside- rando a perspectiva de gênero, nos termos seguintes: “Direct discrimination occurs when a difference in treatment relies directly and explicitly on distinc- tions based exclusively on sex and characteristics of men or of women, which cannot be justified objectively. Indirect discrimination occurs when a law, policy or programme does not appear to be discriminatory, but has a discrim- inatory effect when implemented. This can occur, for example, when women are disadvantaged compared to men with respect to the enjoyment of a partic- ular opportunity or benefit due to pre-existing inequalities. Applying a gen- der-neutral law may leave the existing inequality in place, or exacerbate it”. A Recomendação Geral nº 16 ainda avança para a temática das ações afir- mativas, entendendo que: “the principles of equality and non-discrimination, by themselves, are not always sufficient to guarantee true equality. Temporary special measures may sometimes be needed in order to bring dis- advantaged or marginalized persons or groups of persons to the same substan- tive level as others. Temporary special measures aim at realizing not only de jure or formal equality, but also de facto or substantive equality for men and women. However, the application of the principle of equality will sometimes require that States parties take measures in favour of women in order to attenuate or suppress conditions that perpetuate discrimination. As long as these measures are necessary to redress de facto discrimination and are termi- nated when de facto equality is achieved, such differentiation is legitimate”. Merece destaque a atuação construtiva dos Comitês de Direitos Humanos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais em transcender os limites das cláusulas da igualdade formal e da proibição da discriminação enunciadas nos Pactos. A jurisprudência criativa destes Comitês, por meio da adoção de recomendações gerais, têm permitido delinear a concepção mate- rial de igualdade, com a distinção da igualdade de direito e de fato (de jure and de facto equality). É a partir desta distinção que é lançado o questionamento a respeito do papel do Estado, demandando-se, por vezes, se transite de uma 56