·

História ·

História

Send your question to AI and receive an answer instantly

Ask Question

Preview text

ISBN 8522502773 Copyright José Carlos Reis Direitos desta edição reservados à EDITORA FGV Praia de Botafogo 190 I4fi andar 22253900 Rio de Janeiro RJ Brasil Tels 0800217777 OXX2125595543 Fax OXX21 25595532 email editorafgvbr web site wwweditorafgvbr Impresso no Brasil Printed in Brazil Todos os direitos reservados A reprodução não autorizada desta publicação no todo ou em parte constitui violação do copyright Lei n9 5988 1 edição 1999 4 edição 2001 5a edição 2002 6 edição 2003 Revisão de O riginais Waldivia Marchiori Portinho E ditoração EletrOnicA Denilza da Silva Oliveira e Jayr Ferreira Vaz RevisãO Aleidis de Beltran e Fatima Caroni Capa Tira linhas studio Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Mario Flenrique SimonsenFGV Reis José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC José Carlos Reis 6 ed Rio de Janeiro Editora FGV 2003 280p Inclui bibliografia 1 Brasil Historiografia 1 Fundação Getulio Vargas II Título C D D 981 Sumário Introdução 7 Parte I O Descobrimento do Brasil 21 Anos 1850 Varnhagen O elogio da colonização portuguesa 23 Anos 1930 Gilberto Freyre O reelogio da colonização portuguesa 51 Parte II O Redescobrimento do Brasil 83 Anos 1900 Capistrano de Abreu O surgimento de um povo novo o brasileiro 85 Anos 1930 Sérgio Buarque de Holanda A superação das raízes ibéricas 115 Anos 1950 Nelson Werneck Sodré O sonho da emancipação e da autonomia nacionais 145 Anos 1960 Caio Prado Jr A reconstrução crítica do sonho de emancipação e autonomia nacional 173 A n o s 1930 G ilberto Freyre O reelogio da colonização portuguesa G Freyre Neovarnhageniano Conservador e Genial Gilberto de Mello Freyre autor de Casa grande senzala publi cado em 1933 e de uma obra vasta e volumosa na qual se destacam ainda Sobrados mocambos 1936 e Ordem progresso 1959 per nambucano nasceu em 1900 e faleceu em 1987 Casa grande senza la a obra de interpretação do Brasil mais conhecida no país e mais tra duzida e editada no exterior Freyre possui todos os títulos prêmios e honras acadêmicas de quase todas as grandes universidades do mundo o que ele não se cansa de lembrar e recitar Aliás ele tem toda razão de se orgulhar desse fato pois as grandes universidades do mundo não dis tribuem as suas bênçãos irresponsavelmente sem rigorosos critérios E censurálo por ser tão bemsucedido e se orgulhar de sêlo como é co mum não é muito simpático e elegante Sua obra é reconhecida como uma referência superior da ciência social pelos mais importantes cientis tas sociais do mundo L Febvre F Braudel R Barthes e outros Entre tanto ele jamais aceitou ser classificado como um especialista das ciên cias sociais antropólogo sociólogo ou historiador e sempre se apresen tou como escritor ou ensaísta Freyre 1968 O que não limitou no interior das ciências sociais a repercussão e o alcance da sua obra que são enormes pelas inovações metodológicas pela flexibilidade e beleza do tex to algo original reunindo literatura e ciência social Motta 1981 Briggs 1981 Faremos uma compilação dos comentários de alguns dos seus mais ilustres analistas a fim de oferecer uma idéia da dimensão da sua repercussão no interior das ciências sociais Para a maioria deles Freyre introduz na análise racionalmente conduzida uma forte quantidade de afetividade e subjetividade É um texto de ciência social qualitativo que 52 AS ID EN T ID AD ES D O BRASIL incomoda a ciência social preocupada com a quantificação ele conclui muito além dos dados que oferece dados que para Leite já são mal medidos e mal controlados Leite 1983 O que ele produziu foi uma espécie de autoantropologia da cultura na qual nasceu a nordestino brasileira Como um romancista não se colocou fora do seu próprio ob jeto já que este objeto faz parte da sua vida e consciência Sua escrita é encarnada comprometida ela traz à expressão uma grande margem da história até então muda não refletida e explicitada Seu texto é científi co e político O seu estilo é oral coloquial como uma conversa infor mal entre o presente e o passado Ele fala do Brasil a partir de dentro e não como de um objeto natural Seu pertencimento ao seu objeto dá ao seu texto uma impressão de autenticidade de verdade imediata e inte rior Ele parece ter uma visão do passado Freyre parece experimentar o vivido que descreve Seus analistas comparam o seu estilo ao de Proust uma introspecção meticulosa e emocionada do passado uma visita rea lista ao vivido passado Ele próprio declarou inspirarse em Proust O misterioso por ser familiar o indizível por ser íntimo Freyre o revela e expressa O Brasil colonial aparece vivo revivido e em toda a sua com plexa contradjtoriedade Merquior 1981 Duvignaud 1981 Talvez o que mais inquiete os leitores mais resistentes ao fascí nio de Casa grande senzala afirma Motta seja essa percepção do vivido de forma poliédrica sem nenhuma determinação em última ins tância Motta 1981 Casa grande é como um livroonírico atra vessado de associações de deslocamentos condensações e tropos diver sos fruto de uma profunda intuiçãoimaginação do Brasil Freyre quis demonstrar que houve uma solução brasileira para um acordo entre di ferentes tipos de vivência diferentes padrões culturais No Brasil teria havido um bemsucedido ajustamento para um profundo desajusta mento Freyre é um autor criativo sensível ao cheiro à cor ao ruído ao amor e ao ódio ao riso e ao choro O passado colonial brasileiro é percebido com o seu cheiro e prazer de viver Ele penetrou no seu te cido social e expressou o inconsciente da vida coletiva a sua cotidiani dade afetiva Ele produziu uma radiografia do passado interno brasilei ro afirma Merquior Contudo radiografia talvez seja uma metáfo ra naturalista demais O que ele produziu foi uma revivência uma recriação do nosso passado em seu espírito e no espírito do leitor Para A N O S 1930 GILBERTO FREYRE 53 Merquior a sua obra representou um avanço colossal em nosso conhe cimento de nós mesmos brasileiros Por ser sobretudo um poeta do Brasil a discussão metodológica ligada ao lado de ciência social da sua obra não é uma discussão sim ples Quais são as suas referências teóricometodológicas Onde e com quem de se formou A sua formação é basicamente norteamericana no colégio americano batista de Recife onde se tornou protestante na Uni versidade de Baylor no Texas 191820 e na Universidade de Colôm bia Nova York orientado por Franz Boas Chacon 1993 Costa Lima considera entretanto que Casa grande levou a pesquisa histórica brasi leira a uma problemática nova e alemã a do historicismo de Dilthey Simmel e Weber apesar de Freyre pouco citar fontes alemãs Segundo Barbu Freyre encontrou grandes afinidades com a sociologia compreensi va de Weber com a abordagem empática A este núdeo weberiano fo ram agregadas noções de variável importância metodológica como as de personalidade e desdobramento consciente da personalidade Com es sas noções ele procurou apreender os estados de espírito ibéricos as expe riências vividas Barbu 1981 Entretanto a sua formação americana é só indiretamente alemã através da presença de Franz Boas Este dava ênfase ao conceito de cultura combatendo o evolucionismo biológico racial Boas não acreditava que a pobreza estaria reservada aos mestiços ditos biologicamente inferiores A raça não seria determinante sobre o meio cultural Grupos de uma mesma raça respondem diferentemente aos de safios geográficos econômicos é sociais e políticos criando culturas dis tintas Como os meios antropológicos estavam marcados pelo determinis mo geográfico e racial essa ênfase na cultura trará uma mudança signi ficativa na pesquisa social Os fenômenos culturais são complexos e para eles não há leis Boas negava o determinismo o evolucionismo o cientifi cismo e se aproximava do historicismo alemão com sua ênfase na cultura e na relatividade dos valores Lima 1989 Freyre seria historicista portanto não no sentido de Popper mas no de Dilthey Ele propõe uma abordagem empática da realidade social que lhe permitiu desenvolver uma história sociológica Seu ob jetivo é alcançar a subjetividade é apreender a vida em seu interior Uma história política psicológica vitalista dionisíaca e não intelectua lista Ele criou tipos reunindo elementos inconciliáveis A interpene 54 A S ID E N T ID A D E S D O BRASIL tração de seus tipos inconciliáveis se faz pelo símbolo Casa grande senzala Sobrados dr mocambos Ordem progresso Ao formular ti pos ideais ele se aproxima de Weber ao interpenetrálos aproximase de Simmel Para apreender a interconexão dos tipos ele estudou o co tidiano um campo de pesquisa social então original inovador De senvolveu uma sociologia genética ou uma sociologia histórica que mostra as instituições em suas formas de convivência e em seu desenvolvi mento no tempo Bastos 1986 Sua abordagem é histórica nãoevolucio nista nãoprogressista ele é antiiluminista como os neokantistas alemães A história não é linear e não realiza a razão a história se revela em for mas particulares em mundos históricos específicos Alguns analistas de Freyre entusiasmamse quando fazem o seu elogio ele é descrito então como um místico sensual um espírito encar nado Marias 1981 Os místicos castos o consideram obsceno porno gráfico e queimaram a sua obra em praça pública Em nome da sua cas tidade Chacon 1993 Para F H Cardoso Freyre é mais do que um cientista ou mesmo um escritor é um verdadeiro criador Os resultados que alcançou estão além do instrumental metodológico de que dispu nha Cardoso 1993 Alguns se referem à idéia de uma radiografia do Brasil já mencionada acima que nos parece naturalista demais e talvez inadequada Como historiador o que Freyre fez foi uma transposição uma transferência de si mesmo ao passado brasileiro para revivêlo em paticamente em sua intimidade em seu espírito Sua história criativa do Brasil despreza tudo da história políticoadministrativomilitar por uma vida rotineira onde se sente melhor o caráter de um povo Sua obra é uma aventura de sensibilidade O passado é reposto no presente como uma realidade viva que sustenta e contrasta com o presente Duvig naud 1981 Kujawski 1981 Ele descobriu junto com os franceses dos Annales a história do co tidjano a história das mentalidades coletivas a renovação das fontes da pesquisa histórica receitas culinárias livros de etiquetas fotografias fes tas expressões religiosas brinquedos e brincadeiras infantis cantigas de roda histórias infantis relatos de viajantes estrangeiros autobiografias con fissões individuais diários íntimos lendas folclore periódicos E sem negligenciar ou dipensar as fontes instituicionais oficiais estatais Seu uso da documentação era sem preconceito e exclusões Barbu 1981 Cha con 1993 Skidmore 1994 Nas novas fontes e no novo olhar lançado A N O S 1930 G IIB E R T O FREYRE 55 por Freyre sobre o Brasil colonial o imaginário se mistura à realidade e a realidade social ganha toda a sua densidade Freyre vê a história pelos seus inúmeros lados e o conhecimento do Brasil se torna quase mediúnico Motta 1981 Ele incorpora o passado q sujeito que conhece coincide com o objeto conhecido Para Barbu Freyre possui o dom de ver os dois lados da lua ao mesmo tempo o lado aparente e o lado oculto percebe o todo em sua complexidade unifica e harmoniza a divergência e a tensão Febvre afirma prefaciando a tradução francesa que Casa grande não é um livro simples é um enorme painel do passado nascido de uma medi tação sobre o futuro Ele não oferece respostas fortes mas nos convida a refletir sobre a questão maior do século XX é possível uma única civiliza ção na qual todos possam encontrar a sua pátria cultural Para Braudel prefaciando a tradução italiana o estilo de Freyre é o de uma sereia ele nos dá um prazer concreto físico levandonos a viajar com a sua lingua gem musical irresistível por luxuriantes paisagens tropicais4 Enfim se se leva em conta todas essas avaliações apologéticas feitas por seus ilustres analistas Casa grande senzala pode ser considerada a obra de um brasi leiromestiço genial Freyre e Varnhagen Entretanto Casa grande senzala é uma obra neovarnhagenia na é um reelogio da colonização portuguesa é uma justificação da conquista e ocupação portuguesa do Brasil O Brasil é visto como uma sociedade original e multirracial nos trópicos obra do gênio português Skidmore 1994 Na sua história patriarcal cujo palco é a casa gran de onde se exprimiu melhor o caráter brasileiro ele enfatizará tam bém a nossa continuidade da colônia à nação O livro genial de Freyre renovou a visão do Brasil das elites em crise Ele revigorou o mundo que as elites lusobrasileiras criaram no passado e confirmou o elogio e a legitimação que lhe havia feito Varnhagen nos anos 1850 É claro nos anos 1930 Freyre o fará em outro ambiente histórico e intelectual com outras palavras com uma nòva metodologia com uma nova es tratégia política Ele confirmava Varnhagen Tenhamos a honestidade de reconhecer que só a colonização latifundiária e escravocrata teria sido capaz de resistir aos obstáculos enormes que se levantaram à civili 4 Apud Chacon 1993 56 A S ID E N T ID A D E S D O B RA SIl zação do Brasil pelo europeu só a casa grande e a senzala O se nhor de engenho rico e o escravo capaz de esforço agrícola e a ele obrigado pelo regime do trabalho escravo Freyre 1933 Freyre até supera Varnhagen nesse elogio Seu reelogio do passa do é uma exaltação uma idealização Tara ele é injusto acusar os por tugueses de terem manchado com a escravidão a sua obra grandiosa de colonização tropical O meio e as circunstâncias exigiram o escravo A princípio o índio Quando este por incapaz e molengo não corres pondeu mais às exigências da agricultura colonial veio o negro Deixe monos de lirismo em relação ao índio ele se exalta a sua substitui ção não se deu por razões morais altivez espírito livre o índio fa lhou no trabalho sedentário Teria sido mesmo um crime transplan tar e escravizar o negro Para alguns ele responde e inclusive Varnhagen mencionado por ele foi um erro c enorme Mas e Freyre continua em defesa dos colonizadores portugueses ninguém nos disse até hoje que outro método de suprir as necessidades do trabalho poderia ter adota do o colonizador português no Brasil Só Varnhagen ele reconhece criticando o caráter escravista e latifundiário dessa colonização lamen ta não se ter adotado o sistema de doações de terras a agricultores eu ropeus Com doações pequenas o Brasil teria atraído mais gente e constituído uma população mais homogênea Varnhagen também pro pôs a servidão com o negro sugerindo ter uma resistência maior à es cravidão do que ao próprio negro Varnhagen portanto mesmo sendo um dos primeiros grandes defensores da colonização portuguesa lamentava que ela tivesse tido de ser latifundiária e escravista Mas essa discordância não separa Freyre e Varnhagen Se este não aceitava a escravidão era sobretudo porque ela implicava a presença negra no Brasil em miscigenação em desprestí gio para a raça brasileira que ele desejava que fosse branca pura Para ele a colonização portuguesa teria sido ainda mais bemsucedida se não tivesse tido que contar com a presença negra Varnhagen lamen ta o que a escravidão representou em termos raciais a presença africa na no Brasil O latifúndio e a escravidão seriam mais toleráveis se o es cravo fosse o índio que a pseudofilantropia jesuítica impediu O que ele não aprecia é a negreria que enche as cidades e engenhos brasilei ros Freyre t mais radical em seu apoio às opções pelo latifúndio e pela escravidão porque ele aceitou e valorizou a presença negra no Brasil Se o negro só trouxe vantagens se sua cultura é riquíssima se sua compa A N O S 1930 GILBERTO FREYRE 57 nhia é alegre e terna se as negras e mulatas são tão lindas e sensuais se a miscigenação não é o grande problema do Brasil o latifúndio e a escravidão não foram erros obstáculos problemas foram opções corre tas que tornaram possível o sucesso do português nos trópicos Freyre portanto vai mais longe e fundo na defesa da coloniza ção portuguesa no Brasil Mesmo com a presença negra e muito gra ças a ela a colonização portuguesa foi um sucesso total Ele a aceita integralmente sem reservas É como se o seu elogio fosse feito plena mente pela primeira vez Diferente de Varnhagen ele não pensava mais o Brasil em termos raciais mas em termos culturais Nessa perspectiva não há que censurar a presença africana Pelo contrário essa presença enriqueceu fertilizou abrilhantou a obra portuguesa A mestiçagem talvez tenha sido o grande feito português e o que tornou possível a colonização européia nos trópicos Nos anos 1850 quando Varnhagen fez seu balanço e legitimação da colonização o Brasil passava de colô nia a nação e ele defendeu a continuidade colonial da nação que se projetava e se queria consolidar Foi mais brando em seu elogio se é que se pode considerálo brando Em relação a Freyre ele pode ser mais crítico pois o futuro estava aberto a essa continuidade colonial Freyre nos anos 1930 faz o seu reelogio na passagem da naçãocolo niál à naçãomoderna transição que ele recusa Ele opta pelo passado e não vê em sua ânsia de descrevêlo como o melhor tempo do Bra sil nenhuma contradição tensão problemas obstáculo dificuldade Quando Varnhagen fez a sua defesa da colonização portuguesa e da continuidade da sua obra pelo Brasil ele não tinha opositores concre tos eficazes poderosos pois a dinastia que governava o Brasilcolônia era a mesma que governava o Brasilnação Ele descreve e defende um Brasil que continuava que superou rebeliões separatismos e que se unificou e se consolidou A defesa de Freyre foi feita no momento de crise ele vê aquele mundo que o português criou naufragando con testado por todo lado e o surgimento de um novo Brasil Ele então vira as costas ao novo e se lembra com deleite com paixão sem censu ras e reservas do Brasil das elites patriarcais Freyre e Capistrano Entretanto alguns analistas o colocam na mesma linha de inter pretação do Brasil de Capistrano de Abreu Para Astrogildo Pereira lí A S ID E N T ID A D E S D O B R A SH 58 der comunista Freyre tomava por protagonistas da história não os he róis oficiais mas a massa anónima na linha de Capistrano de Abreu um dos autores mais citados por ele Também em Capistrano o con ceito de cultura substituiu o de raça seus estudos indígenas renova ram a nossa etnografia Em seus Capítulos de história colonial ele deu importância à história social e dos costumese pela primeira vez apare ceu á cãsãgrande e a senzala Rodrigues 1965 Capistrano teria ante cipado alguns temas de Freyre a escravidão doméstica com ã amade leite e a mucama o caráter carinhoso doce e alegre do negro ameni zando as relações senhor e escravo Capistrano era entretanto mais crítico em relação à tese da de mocracia racial de Freyre o mestiço tinha vida difícil era visto com aversão e estava impossibilitado de ocupar certos postos Os mulatos não podiam receber ordens sacras por exemplo Ter um padre na fa mília era a prova de um sangue limpo Mas retorna à tese de Freyre com o tempo os mulatos souberam melhorar a sua condição social Quando tinham talento e audácia iam longe Mas a difícil mobilida de social se restringia aos mulatos Os negros permaneciam excluídos o Brasil era o seu inferno No entanto com a sua alegria nativa seu otimismo persistente sua sensualidade animal sofriam bem o cativei ro afirma Capistrano Cantavam e dançavam para aliviar o peso do trabalho duro e alegrar o coração Sobretudo no I I s capítulo de Capí tulos de história colonial intitulado Três séculos depois Casa grande senzala é antecipada em sua temática múltipla e original nada polí ticoadministrativa ou biográfica mas cultural e psicológica uma abor dagem íntima da vida das mulheres negros mestiços paulistas minei ros gaúchos Este capítulo final é um esboço de história cultural uma espécie talvez de préprojeto de Casa grande senzala Consideramos sustentável esta leitura que associa Freyre e Capis trano mas somente em alguns aspectos temáticos e metodológicos To dos os argumentos precedentes que os colocam em uma mesma linha de interpretação do Brasil parecemnos corretos Entretanto entre os dois vislumbramos um abismo Freyre prossegue o caminho inaugura do por Varnhagen na defesa do passado colonial brasileiro sua inter pretação do Brasil é continuísta conservadora passeísta lusófila pa triarcalista escravista colonizadora Seu olhar é um olhar branco 5 Apud Chacon 1993 A N O S 1930 G llB ER T O FREYRE 59 aristocrático elitista embora muito sofisticado Capistrano romperá com a linha varnhageniana de interpretação do Brasil e iniciará uma corrente nãoaristocrática lusófoba antiescravista anticolonizadora an tipatriarcal emancipacionista mestiçapopular nacionalista Freyre liga se à orientação de Capistrano Sim mas não quanto ao essencial Quanto ao essencial Freyre é ainda um descobridor do Brasil File esteve identificado às forças conservadoras da política brasileira Seus temas prediletos a nobreza da vida dos senhores de engenho a alegria dos escravos a delícia da cozinha tradicional os males e decadências do progresso do século XX Ele dispõe de uma teoria inovadora mas usaa para conservar a realidade brasileira Leite o define como um in telectual de direita aceito pelos grupos dò poder que se veem enobre cidos e legitimados pelas suas teses apresentadas de forma sedutora envolvente Leite 1983 Freyre e os Marxistas O pensamento social marxista brasileiro vai se opor vigorosamen te a Freyre por essa razão F Fernandes e sua equipe de pesquisado res que produzirão nos anos 396070 pensarão o Brasil com os con ceitos de classe social e luta de classes e vão se opor à visão idílica do Brasil colonial produzida por Freyre Mota compilou as principais críti cas marxistas a ele Estes o consideram um intelectual orgânico das oli garquias dominantes em crise Freyre teria elaborado uma visão senho rial do Brasil relatando a saga da oligarquia rural desnudando lirica mente a sua vida íntima Em sua visão do Brasil as elites luso brasileiras são apresentadas como civilizadoras produtoras do progres so detentoras da razão histórica brasileira Para apresentálas assim Freyre apagaria as tensões as agudas contradições reais que caracteriza ram as relações sociais entre senhores e escravos O mundo que o por tuguês criou é apresentado como harmônico equilibrado democráti co Raças e classes diferentes e em luta viviam harmonizadas em uma cultura genuinamente brasileira Casa grande seria uma obra de um filho da República Velha um esforço de compreensão da realidade bra sileira realizado por uma elite que vinha perdendo poder É uma bus ca do tempo perdido uma volta às raízes para reencontrar o poder e a glória perdidos O tom é de perda de nostalgia de saudade Construin 60 A S ID E N T ID A D E S D O B R A Stl do uma história do Brasil em termos de continuidade Freyre valoriza a ação dos colonizadores que se prolongou da colônia ao século X X nos seus sucessores as oligarquias regionais As relações de dominação no Brasil são ocultadas quando foram violentas cruéis Freyre atingiria o cinismo ao falar de democracia racial para se referir à realidade brasi leira escravista Mota 1978 Sua valorização da cultura negra não levou em consideração a condição econômicosocial de escravo do negro Ou pelo menos não até às últimas conseqüências Assim Freyre se tornou o pensador da cri se das oligarquias e o seu escamoteador Seu perfil é ao mesmo tempo revolucionário e conservador Como conservador ignorou os movi mentos sociais da Colônia e do Império esvaziou as contradições so ciais ao criar um efeito global ncutralizante uma verdade poliédrica que tudo vê tudo integra e tudo conserva A história perde dinamis mo pois suas tensões são harmonizadas Freyre se coloca no lugar do heróicolonizador Mota 1978 Conservador ele é otimista em relação ao passado e pessimista em relação ao futuro Varnhagen era otimista em relação ao passado e ao futuro seu elogio foi enfático porém mais sereno e crítico pois feito em uma fase de consolidação do poder oligárquico Freyre fará o seu reelogio em plena crise sua opção pelo passado se radicaliza e ele se torna menos crítico Só é crítico em relação ao futuro que se anuncia e que ele de finitivamente recusa Ao ser menos crítico em relação ao passado tor nase paradoxalmente revolucionário ele integra os excluídos do passa do em sua visão do Brasil Os negros os índios a miscigenação os brancos pobres a cultura popular que integrar de fato à sociedade bra sileira será uma tarefa do futuro ele os integra idealisticamente no pas sado O olhar conservador em crise tem saudade até dos seus males e os vê mais harmoniosamente A experiência da finitude torna os po derosos de ontem mais brandos e os seus oprimidos de então eles os vêem agora com doçura com amizade e ternura Nessa polêmica FreyreF Fernandespesquisadores do Cebrap aparecem duas disputas uma teórica e outra política A primeira opõe marxistas e historicistas o motor da história não são as idéias não são as mentalidades coletivas mas a luta de classes as classes em luta na esfera da produção A visão culturalista é vista como ínterclassista rea cionária pois harmonízadora das contradições reais É uma teoria so A N O S 1930 GILBERTO FREYRE 61 ciai que leva água ao moinho das elites Mota 1978 Os marxistas querem discutir a ação que constrói o futuro uma ação que se define na luta das classes na esfera das relações sociais de produção O que é preciso então pesquisar sobre o Brasil é a especificidade do seu modo de produção a especificidade das suas lutas de classes a especificidade da sua mudança social A segunda disputa opõe duas regiões do Bra sil o Nordeste cujas oligarquias locais perdiam poder desde a aboli ção do tráfico negreiro e a ascensão do café paulista exatamente nos anos 1850 de Varnhagen e os paulistas que ganhavam poder na mes ma proporção em que os primeiros perdiam o seu Nos anos 1930 o Brasil nordestino está chegando definitivamen te ao seu fim e o Brasil industrial moderno paulista começa a se consolidar Nesse combate intelectual é toda a história do Brasil que se revela V Chacon assume a defesa incondicional de Freyre e do Nor deste contra F FernandesCebrap e os paulistas Chacon parece mobili zado por um artigo escrito contra o Nordeste identificado à provín cia à aldeia e à sua maior expressão intelectual Freyre Tratase do ar tigo publicado na revista do Cebrap Novos Estudos n9 27 de jul 1990 de Luis A de Castro Santos intitulado O espírito de aldeia orgulho ferido e vaidade na trajetória intelectual de G Freyre que opõe Caio Prado e S B de Holanda paulistas intelectuais orgulho sos com uma produção de alta qualidade homogênea sem pretensões internacionais a Freyre pernambucano provinciano intelectual orgu lhoso nos anos 1930 e depois vaidoso decadente instalado na provín cia e repetindo incansavelmente o que já havia realizado nos anos 1930 Freyre nordestino e provinciano teria uma tola ambição internacional e uma obra volumosa e heterogênea em sua qualidade Contra este ar tigo antifreyriano Chacon afirmará que muitos marxistas elogiaram Casa grande senzala Astrogildo Pereira Genovese e que Freyre nunca teve uma visão emoliente da sociedade brasileira era contra a escravidão e denunciou o sadismo dos senhores de escravos Quem falou em cordialidade brasileira foi um paulista e não Freyre Este era um agitador de idéias enfrentando preconceitos e a modorra nacional Tinha repulsa pelo universitarismo Gostava da polêmica era controvertido e pagou caro por isso Além de enfrentar a inquisição paulistamarxista teve a sua casa invadida por policiais durante o Esta 62 A S ID E N T ID A D E S D O BRASIl do Novo por ter defendido os negros e segundo a ditadura ter esti mulado o ódio racial Chacon 1993 Entretanto Casa grande senzala talvez seja mais importante pelo intenso debate que provocou em torno do passado presente e fu turo do Brasil do que pelo que andou afirmando e elogiando Os que combatem Freyre só fazem revelar todo o vigor da sua análise do Bra sil Nenhum desses seus combatentes marxistas ou padres teriam cora gem de lançar hoje sua obra no fundo de uma gaveta Sua obra é inesquecível seminal paradigmática apesar de inimitável É um mode lo de eficiência abrangência e competência na abordagem da socieda de brasileira A historiografia norteamericana sobre a escravidão parte de Freyre a historiografia brasileira sobre a escravidão também tem como referência Casa grande senzala Queiroz 1987 Graham 1979 Nos anos 1960 Roger Bastide F Fernandes e sua equipe trataram do tema contra a perspectiva de Freyre mas tendoo como referência nos anos 198090 historiadores brasileiros resgataram a sua visão da escravi dão Katia Matoso eHTstoriadores de Campinas recuperaram um es çravo sujeito dentro de rima ordem social escravista consensual Nos anos 196070 argumentouse contra a tese freyriana da suavidade da es cravidão brasileira com relação à americana Nova tese o escravoclasse luta contra a sua coisificação social e até subjetiva Nos anos 198090 voltase a Freyre a escravidão era consensual o escravo mantinha a sua subjetividade autônoma e agia estrategicamente acomodandose ao siste ma procurando obter vantagens individuais Sua forma de resistir é uma ação adaptadora O escravo é aparentemente dócil ou é dócil maliciosamente e resiste encontrando meios de manipular as regras do sistema social a seu favor Gorender 1990 Queiroz 1987 Enfim com relação não só ao tema da escravidão mas aos mais importantes temas do Brasil Casa grande senzala é comumente con siderado um dos três mais importantes livros produzidos na década de 1930 os outros dois são Evolução política do Brasil 1933 de Caio Prado Jr e Raízes do Brasil 1936 de Sérgio Buarque de Holanda Cândido 1976 Mota curiosamente o situa entre os redescobridores do Brasil Na sua periodização até faz sentido Na nossa perspectiva ele representa ao contrário uma continuidade da visão dos descobri dores do Brasil isto é ele faz um reelogio da colonização portugue sa Freyre é neovarnhageniano neste aspecto Quanto ao aspecto teórj A N O S 1930 GILBERTO FREYRE cometodológico ele é outra coisa outra linguagem outra história Mas quanto ao essencial isto é ao projeto de história do Brasil que ele revela à visão do passado brasileiro seus sujeitos e motivações à sua percepção e reconstrução do tempo histórico brasileiro ele é a mesma coisa renovada revigorada a legitimação entusiasmada e agora acrítica idealizadora e nostálgica do mundo que o português criou nos trópicos Casa Grande 6 Senzala Pressupostos e Teses Consideramos que Casa grande senzala poderia ser um livro mais conciso e mais preciso menos repetitivo Outros analistas são mais indulgentes e até justificam e com alguma razão esta sua caracte rística repetitiva Para Motta ele teve uma intuição fundamental do Brasil que não poderia ser descrita de forma clara e distinta acabada Ele teve necessidade de retornos repetições que não são só repetições mas ritmos a retomada de motivos como numa sinfonia A multiplici dade de ritmos formas cores estilo manifesta uma mesma intuição central profunda unificadora de toda a estrutura Assim Casa gran de não é uma obra de ciências sociais no sentido estrito É obra po lítica uma espécie de composição musical uma partitura com um rit mo contínuo fundamental mas que inclui ritornelos estribilhos co ros solos Sua interpretação histórica se confunde com seu estilo ou dele é inseparável Freyre parece escrever para si mesmo para dizerse o que compreendeu Parece um livro produzido de um só jato possuin do todas as vantagens da intuição criadora mas sofrendo da falta de uma elaboração mais sóbria e estruturante Motta 1981 Motta tem razão e portanto não façamos mais muitas reservas ao estilo e à arte de Freyre Sua obra tem na verdade uma estrutura clara e sólida o primeiro capítulo Características gerais da coloniza ção portuguesa do Brasil formação de uma sociedade agrária escra vocrata e híbrida expõe de forma sintética as suas teses sobre o Bra sil os quatro capítulos restantes desenvolverão essas teses quanto ao ín dio quanto ao português e quanto ao negro que aliás mereceu dois longos capítulos quando em Varnhagen foi mencionado rapidamente e a contragosto Freyre referese à sua participação na história do Brasil longamente e com muito gosto Àquela pergunta de Von Martius a história do Brasil teria sido melhor ou pior com a presença dos ne 63 64 A S ID E N T ID A D E S D O BRASIL gros Freyre responde sem hesitar a presença negra não comprome teu em nada a criação portuguesa pelo contrário foi um esteio indis pensável Eles deram uma contribuição excepcional à colonização por tuguesa e foram também civilizadores do Brasil Procuraremos encontrar em suas centenas de páginas pelo me nos cinco teses que deem conta de toda a sua idéiaintuiçãomensagem interpretaçãocompreensão do Brasil Com essas teses articuladas entre si todas as outras páginas serão ou repetição ou episódios reveladores confirmadores das teses Os episódios sem essas teses têm seu sabor mas são anedóticos e não encontram o seu sentido As teses sobrevi vem sem os episódios e oferecem a estrutura do pensamento de Freyre sobre o passado colonial brasileiro Ao destacarmos cinco teses além do esforço de síntese faremos também um esforço de análise pois es taremos destacando e detalhando o que consideramos mais relevante na estrutura da sua obra Não nos preocuparemos em citar as páginas de Casa grande senzala pois aceitamos o risco de combinar dezenas delas em alguns parágrafos Antes porém de passarmos às teses convém lembrar três pon tos importantes para a sua compreensão O primeiro tema a visão do Brasil que Freyre teve revelada no prefácio à 1 edição através de ma rinheiros brasileiros em Nova York mulatos e cafuzos que deram a ele a impressão de serem caricaturas de homens Foi uma visão do tipo brasileiro depois de três anos fora do Brasil ou seja foi uma visão de fora exterior nãofamiliar que lhe revelou pela primeira vez a figura do brasileiro Nada melhor para se conhecer a identidade brasileira e se reconhecer como brasileiro do que três anos maciços no exterior A fi gura que ele viu foi a do homem miscigenado A imagem causoulhe desgosto a figura brasileira pareceulhe revelar algo de inferior e doen tio Teria sido a miscigenação o mal que condenaria definitivamente a raça brasileira Eis a indagação dos intelectuais brasileiros e de Freyre entre os anos 18501920 Tinha a miscigenação causado irreparável dano eugênico ao Brasil O atraso do Brasil não teria sido causado pela influência debilitante do negro A sexualidade exacerbada o peca do sem punição não teriam enfraquecido a raça brasileira Este será o problemafio condutor da bela demonstração do teorema que é Casa grande dr senzala A hipótese de Freyre para tal questão será um alívio para as elites brasileiras e a sua demonstração exigirá um mergulho de 65 A N O S 1930 GILBERTO FREYRE longo fôlego no passado brasileiro Casa grande senzala é a pesquisa que testa algumas hipóteses sobre essas questões O segundo tema preliminar importante é o ponto de vista teórico metodológico de Freyre exposto com lucidez ainda no prefácio à 1 edi ção Ele concorda com o marxismo quanto à importância considerável embora não preponderante da técnica da produção econômica sobre a estrutura das sociedades na definição da sua fisionomia moral É uma influência poderosa mas sujeita à reação de outras As condições econô micas explicam muitos aspectos do desenvolvimento humano O que Freyre pretende não é se opor a uma abordagem econômicosocial do Brasil nem desvalorizála O que ele pretende porque assim escolheu é não fazer uma abordagem econômicosocial do Brasil O que ele decla ra querer fazer não é substituir a abordagem marxista mas acrescentar lhe um sentido psicológico ou psicofisiológico na análise do Brasil as pectos que atuam sobre as sociedades independentemente das pressões econômicas Forças psicológicas atuam sobre a sociedade dor raiva me do ao lado das emoções de fome sede sexo forças que têm uma gran de intensidade de repercussão O português representa uma especializa ção psicológica racismo o negro outra os índios e mestiços outras O terceiro tema preliminar importante é o ponto de vista social de Freyre também exposto com franqueza e lucidez revelando uma adesão incondicional ao projeto português para o Brasil O seu olhar sobre o Brasil é senhorial e portanto ele o olha da janela da sala de visitas do alpendre da casa grande A casa grande não é só do enge nho ou só nordestina segundo ele mas expressão da monocultura es cravista e latifundiária em geral O café do sul ceve a sua casa grande tão brasileira quanto a do açúcar do norte Apesar das diferenças im postas pelo clima e geografia o terraço de onde com a vista o fazen deiro abarcava todo o organismo da vida rural o terraço hospitaleiro patriarcal e bom é o mesmo Freyre olha o Brasil do terraço da casa grande do alto e viu que o Brasil mudava que o domínio das elites não era mais incontestável Então ele criou um olhar abrangente mais longínquo temporalmente e com os olhos da intuição lembrase do mundo consolidado hospitaleiro patriarcal e bom cuja visão aquele terraço antes oferecia O olhar do senhor tornase histórico pois o pre sente é problemático Ele precisa se representar se localizar na histó ria e voltase para o passado glorioso Freyre abrelhe as cortinas do 66 A S ID EN T ID A D ES D O ER A S IL passado e mostralhe o espetáculo da sua façanha dos seus feitos he róicos que só ele tinha condições de realizar por ter uma especializa ção psicológica histórica e até racial favorável àquela realização Postos estes três temas preliminares a motivação os problemas que produziram a pesquisa que chegou à obra Casa grande senzala os pontos de vista teóricometodológico e social passemos às teses de Freyre sobre o passado colonial brasileiro que são as respostas hipotéti cas àquela motivação e problemática dentro de um ponto de vista teóri co bem definido e de um lugar social também bem delineado A primeira tese responderá à pergunta Como se deu o encontro entre as três raças constituidoras do povo brasileiro Para Freyre foi um encontro fraterno solidário generoso demo crático viabilizado pela miscigenação Vencedores militar e tecnicamente de indígenas e negros os portugueses tiveram no entanto de transigir com eles quanto à vida familiar e social A vitória militar foi o fato ini cial da relação foi o que a consdtuiu Uma vez estabelecida à força a relação desenvolveuse entre conquistadores e conquistados uma confra ternização Esta não aboliu a vitória militar anterior é uma confraterni zação tensa sadomasoquista que não tornou iguais senhores e escravos Mas tudo isso não impediu a confraternização sexual e social As rela ções entre vencedor e vencido se adoçaram com a necessidade dos colo nos de constituir família Não havia brancas e a vida sexual e afetiva não podia ser nutrida somente por estupros contínuos A necessidade de família transcende a necessidade da satisfação sexual Para os colonos aliás a satisfação sexual era fácil O problema era a solidão a carência de relações paternaisfiiiais a necessidade da companheira no sexo na vida cotidiana e na dor Na ausência de brancas os colonizadores se enamo raram de negras e índias A miscigenação assim entendida corrigiu por tanto a distância social entre a casa grande e a senzala A agricultura es cravista aristocratizava antagonizava senhores e escravos a miscigenação contrariou este efeito separador ao reunir em famílias as índias e as ne gras aos brancos A índia a negramina a mulata a cabrocha tornaram se concubinas e até esposas legítimas dos brancos o que agiu no senti do da democratização social no Brasil Entre os filhos legítimos e ilegíti mos subdividiuse parte considerável das grandes propriedades Embora militarmente vencedor escravista e sádico Freyre não omite esses dados mas acrescenta outros e contraditórios que tornam a A N O S 1930 GILBERTO FREYRE 67 realidade vivida mais complexa o branco tratou o escravo com bondade suavidade e ternura Nas relações entre Portugal e África an teriormente j á tinha havido esta relação contraditória guerra escravi zação e miscigenação étnica e cultural Para o sexo o branco passou até a preferir a negra na verdade o verdadeiro objeto original do dese jo seio cuidados cantigas para fazer dormir colo e aconchego en fim maternidade real A negra o iniciava na vida sexual quando ado lescente Na hora da vida sexual madura era quase impossível desviar o desejo para uma mulher socialmente recomendável a branca Quan to ao negro ele o teve como companheiro em brincadeiras infantis Sobre ele exercerá toda a sua polimorfa perversidade E desenvolveu em relação a ele um inconsciente e profundo afeto pois crianças que brincam juntas criam elos profundos de amizade e ternura Para que um regime social de apartheid seja eficaz é preciso manter as crianças brancas e negras separadas em colégios creches festas e nas brincadei ras Não foi o caso brasileiro Se a vitória militar é afrodisíaca logo se estupram as mulhe res se ela perdura em uma relação senhorescravo esse desejo exa cerbado da conquista violenta poderá evoluir sem eliminação da vio lência original para uma exacerbação da afeição pelo vencido Freyre acredita nisso Esse mundo humano violentoafetuoso terá como palco a casa grande que é brasileirinha da silva isto é uma arquitetura original adaptada aos trópicos Na casa grande palco dessas relações complexas de crueldade e desejoamor estaria depositada a alma brasi leira O tempo brasileiro é observado e medido na moradia brasileira na sua vida familiar Ali se concentravam as principais atividades brasi leiras nos séculos XVIXVIII Além de moradia ela era fortaleza ca pela escola oficina santa casa convento de moças banco Ela não era um mundo à parte aristocrático distante Ela integrava todas as atividades e tipos humanos do mundo colonial D português foi ini gualável em sua miscibilidade onde chegava misturavase gostosamen te com as nativas Eram poucos e por causa desse seu modo democrá tico de ser puderam povoar terras vastíssimas Em suas guerras com os mouros eles cultivaram a fantasia eróti ca da moura encantada ligada às mulheres mouras que estupraram em suas vitórias Essa sua fantasia encaixouse bem na índia e na mulata As índias aliás eram o próprio encantamento a fantasia encarnada A S ID E N T ID A D E S D O BR A SIl 68 L gordas nuas pintadas de vermelho doidas por um banho de rio quando penteavam cuidadosamente os cabelos admirandose no espe lho presentes do branco com quem gostavam de fazer sexo Tinham aliás outra escolha Além da violência poderiam resistir a tais presen tes A mulher morena e não a loura ou branca era a preferida dos portugueses para o amor físico Suas investidas pela África e Ásia os tor naram especialmente atraídos por mulheres nãobrancas Graças à sua miscibilidade a colonização portuguesa foi a primeira européia a cons tituir uma sociedade moderna nos trópicos com características nacio nais e permanentes Os outros europeus amoleciam em contato com os trópicos E não se misturavam com as mulheres de cor O português não venceu o clima o solo e miscigenouse criando uma população mestiça plenamente adaptada ao clima e à geografia Aqui houve o en contro a intercomunicação e a fusão harmoniosa de tradições diversas de cultura A cultura européia se pôs em contato com a indígena con tato amaciado pelo óleo lubrificante da mediação africana à invasão escravização e estupro de negras e índias pelos portugueses não foi se ca foram lubrificados pela doçura africana pela forte excitação da mulher indígena pelos presentes e novidades dos brancos pela adapta bilidade aclimatabilidade miscibilidade plasticidade e falta de orgu lho de raça do português A segunda tese responderá à questão Por que vitoriosos militar mente os portugueses não se isolaram orgulhosa e aristocraticamente ape nas extraindo trabalho dos escravos e estuprando yiegras e índias Por que foi possível a miscigenação com relação ao português A democracia racial descrita acima foi possível porque segun do Freyre a predisposição psícofisiológica do português o seu passado étnico e cultural a favoreciam Do ponto de vista étnico o português não era um branco puro e do ponto de vista cultural não era um euro peu puro Assim impuro étnica e culturalmente ele estava predispos to à colonização híbrida e escravocrata dos trópicos Etnicamente o por tuguês já era um miscigenado O povo português é ao mesmo tempo europeu e africano A influência africana ferve sob a européia na vida se xual na alimentação na religião É uma população branca com sangue negro mouro e judeu É uma população já mestiça Não há um tipo unificado de português A raça não tem em Portugal um papel profun do É um povo bicontinental Culturalmente o ar da África amolece as instituições européias desossando o cristianismo o feudalismo o direi to a lfngua o caráter do povo A Europa reina mas a África governa A mistura étnica e a indefinição cultural tornam o caráter português um vago impreciso O caráter português é bambo flexível flutuante frou xo plástico fortemente sexuado imprevidente fatalista Esta imprecisão lhes permitiu reunir em si tantos contrastes Eles passam de um estado psicológico a outro rápida e subitamente Místicos políticos aventurei ros vivem em uma indolência oriental Por ser assim o português foi p melhor dos colonizadores europeus Freyre tem uma grande admiração pelo português colonizador Segundo ele essa origem deve encher de orgulho os brasileiros Eles ti nham criado uma civilização original tropical miscigenada cujos ví cios podem ser atribuídos à monocultura escravista Foi esta que des virtuou a miscigenação e não a mistura de raças em si A relação se nhorescravo é doentia sadomasoquista e trouxe más conseqüências para a miscigenação Mas esta em si é só um bem Essa avaliação otimista que Freyre faz da miscigenação represen tou um alívio para as elites brasileiras Ele lhes devolveu a autoconfian ça que as teorias racistas do final do século XIX lhes tinham tirado Essa nova representação mudou a atitude do Brasil em relação ao mundo exterior Desde 1822 as elites brasileiras esforçavamse por es conder dos estrangeiros e de si mesmas a impureza da história nacio nal Até 1930 pensouse que a miscigenação tinha comprometido defi nitivamente o futuro do Brasil Freyre trouxe uma nova interpretação da miscigenação que se tornará até uma referência para o mundo pós1945 que vivera uma guerra com motivações raciais declaradas Pós1945 os americanos acabaram com o seu apartheid e olharam junto com os eu ropeus para o Brasil mais seriamente como uma história bemsuce dida de assimilação racial Skidmore 1994 Ortiz 1985 Esta socie dade multirracial foi possível portanto pelas predisposições psicológi cas históricas e raciais do português Este foi um colonizador ao mesmo tempo europeu africano e semita móvel adaptável sem orgu lho de raça Sua mobilidade era tão espantosa quanto a sua miscibili dade e plasticidade uns poucos homens circularam pelos continentes transplantando populações inteiras e dominando vastos territórios O seu caráter vago e impreciso foi o segredo da sua vitória Se não não se explicaria como um país faminto doente e sem gente poderia coloni A E IO S 1930 GILBERTO fREYRE 69 70 A S IDENTIDADES OO BRASIi zar o Brasil a África e a Ásia Foi este seu caráter democrático que permitiu a confraternização das três raças constituidoras do Brasil Eles foram os homens ideais para a colonização tropical E criaram o ho mem ideal pata viver nos trópicos o mestiçobrasileiro um homem branco com sangue negro e índio A terceira tese responderá à pergunta Qual será o palco a sede o lugar central em que se dará este encontro feliz entre as três raças sob a liderança do português Esta confraternização ocorrerá na casa grande que não se separa da senzala mas a inclui Ela é uma construção tipicamente brasileira correspondendo ao novo ambiente físico e à nova atividade portuguesa a monocultura escravista O português então tornouse lusobrasileiro o fundador de uma nova ordem econômicosocial o criador de um novo tipo de habitação que seria o símbolo da nova civilização A casa grande completada pela senzala representa todo um sistema econômi cosocial e político a monocultura escravista o patriarcalismo católico e polígamo Foi ali que se estabeleceu o novo dono do Brasil Apesar de suas predisposições favoráveis o português sofreu com as dificuldades impostas pelo novo ambiente No Brasil selvagem tudo era desequilí brio excessos e deficiências O solo excelente ou péssimo os rios cheios ou secos A América tropical não oferece uma vida fácil Nas sementes casas animais livros papéis obras de arte em tudo se metem larvas vermes insetos roendo esfuracando corrompendo Foi em tais condi ções tão desfavoráveis que se exerceu o esforço colonizador dos portu gueses nos trópicos Foi uma vitória Antes dessa vitória o domínio eu ropeu nos trópicos só se realizava por feitorias e extração da riqueza mi neral O colonizador português foi o primeiro a criar uma civilização baseada na exploração local da riqueza Criouse uma colônia de plan tação caracterizada pela base agrícola e pela permanência do colono na terra Os portugueses iniciaram uma colonização nova a exploração da riqueza vegetal pelo capital e esforço do particular e com o aproveita mento dos nativos sobretudo da mulher para o trabalho e a formação da família A sociedade colonial desenvolveuse patriarcal e aristocraticamen te à sombra das plantações de canadeaçúcar em casas grandes de tai pa e cal Não foram aventureiros Vieram venceram ficaram e coloni zaram Sérgio Buarque de Holanda logo depois em 1936 terá uma A N O S 1930 GILBERTO FREYRE 71 visão diferente da colonização portuguesa feita por aventureiros que vieram venceram e arruinaram a terra em busca de riqueza fácil e rá pida Não é o ponto de vista de Freyre A colonização portuguesa não foi obra do Estado da Coroa da família real mas da corajosa família rural particular Aqui aparece uma distância significativa entre Freyre e Varnhagen este defendia a colonização promovida pela família real sua fidelidade era ao rei Freyre vê como sujeito da história colonial brasi leira não a família real mas a família rural portuguesa que enfrentou com os seus parcos capitais e vigor físico as dificuldades da terra tropi cal virgem e distante Os portugueses foram os primeiros europeus que se estabeleceram de fato em colônias vendendo o que possuíam na metrópole e transplantandose com família e cabedais para os trópi cos Aqui tinham liberdade de ação A organização colonial oficial não precedeu mas sucedeu o desenvolvimento da colonização feita pelo particular Foi a iniciativa particular e não a oficial que promoveu a mistura de raças a agricultura latifundiária a escravidão tornando possível so bre tais alicerces a fundação e o desenvolvimento de uma grande e está vel colônia agrícola nos trópicos Além de ter alargado o território para o Oeste o que seria impossível para a iniciativa oficial A colonização por tuguesa feita caracterizase pelo domínio exclusivo da família rural O su jeito da colonização portuguesa foi o indivíduo e a sua família em sua unidade produtiva semeando o solo e desbravando o território A força social que se desdobrou em política constituindose na aristocracia rural mais poderosa da América Sobre ela o rei reina sem governar A casa grande é o seu palácio rural Ela venceu a Igreja em seus impulsos de ser dona da terra Vencido o jesuíta o senhor de engenho ficou dominando o Brasil quase sozinho Ele é o verdadeiro dono do Brasil mais do que os vicereis e bispos Era o dono das terras e da população A diferença entre Varnhagen e Freyre nesse aspecto talvez se expli que pelas datas das suas obras em 1850 Varnhagen formulava uma vi são ainda portuguesa do Brasil enfatizando a ação da família real Freyre em 1930 enfatizando a ação da família rural formula uma vi são lusobrasileira do Brasil a visão das elites descendentes dos descobri dores que admiram e reverenciam a memória daqueles que criaram este mundo nos trópicos para elas Há também uma diferença teóricometo dológica essencial nos anos 1850 predominava uma história políticoad 72 A S i d e n t i d a d e s d o BRASU ministratíva e biográfica valorizando as ações e documentos oficiais nos anos 1930 aparece uma história nova econômicosocialmental que valoriza as iniciativas coletivas anônimas inconscientes nãooficiais re veladas por uma documentação maciça múltipla interdisciplinar Freyre é um dos pioneiros dessa nova história Burke 1991 Para Freyre o estudo da vida doméstica da família rural lusobrasi leira como que nos completa a nós lusobrasileiros é um meio de pro curar o tempo perdido um meio de nos sentirmos nos outros nos que vieram antes de nós O passado familiar do colonizador português é um passado que se estuda tocando em nervos um passado que emenda com a vida de cada um uma aventura da sensibilidade e não somente um esforço de pesquisa em arquivos Não é fácil penetrar na intimidade do passado surpreendêlo em suas tendências no seu àvontade caseiro em sua espontaneidade e expressões mais sinceras Não há muitas fontes As melhores o confessionário as tornou desnecessárias e as engoliu Freyre nao se deixará limitar no entanto pela falta de fontes Ele tomará como fonte tudo o que o homem colonial brasileiro produziu acreditou pen sou cantou rezou pintou brincou falou construiu comeu adoeceu lutou defendeu expulsou plantou escravizou A Casa grande senza la foi portanto o centro da história colonial brasileira foi um verdadei ro palácio rural aíi morou o seu verdadeiro sujeito o senhor pa triarcal cercado de sua família extensa legítima e ilegítima seus escravos domésticos seus agregados sua capela sua plantação e escravos sobre os quais exercia um poder absoluto sem apelo A quarta tese responderá à pergunta A miscigenação que está na origem da colonização portuguesa do Brasil graças às predisposições psico lógicas étnicas e históricas do português foi um bem ou um mal A misci genação degenerou os brasileiros tornandoos inferiores inaptos doentes ou não Se ela trouxe a democracia racial a confraternização entre as ra ças ela trouxe também o debilitamento da raça brasileira Para Freyre os males profundos que têm comprometido a robus tez e a eficiência da população brasileira que são atribuídos à miscige nação na verdade devemse à monocultura latifundiária Faltou o su primento de víveres frescos que tornou a população mal nutrida co mendo somente peixe seco e farinha de mandioca A híponutrição tem çomo conseqüência problemas de decadência ou inferioridade de ra ças diminuição da estatura do peso do tórax insuficiências endócri A N O S 1930 GRERTO fSESRE 73 nas Alem da hiponutrição outro mal que afetou a saúde brasileira foi a sífilis A colonização patriarcal do Brasil explicase menos em termos de raça e religião e mais em termos econômicos culturais e afetivos A sociologia que fala de manchas da mestiçagem e dos efeitos amolecedo res do clima nlo vê a escassez de alimentos a pobreza nutritiva da ali mentação disponível há cinco séculos a irregularidade no abastecimen to e a falta de higiene na conservação e distribuição Aiém da desnutri ção o alcoolismo e a falta de infraestrutura que adoecem Senhores e escravos ainda comem embora mal Mas matutos caipiras caboclos sertanejos pobres que são milhões comerão algo A dieta precária po bre os jejuns religiosos enfraquecem e adoecem a população O Bra sil dos três séculos coloniais dominado pela monocultura latifundiá ria foi terra de alimentação incerta e vida difícil O povo brasileiro é um dos povos mais desprestigiados na sua eugenia e mais comprometi dos na sua capacidade econômica pela deficiência de alimento É um povo perturbado em seu vigor físico e na sua higiene por um pernicio so conjunto de influências econômicosociais Quanto à miscigenação que formou o brasileiro ela foi vantajo sa Criou o tipo ideal do homem moderno para os trópicos um euro peu com sangue de negro ou índio Mas ela teve um efeito colateral que deteriorou a raça brasileira e que por estar ligado a ela é atribuí do a ela esta deterioração À vantagem da miscigenação associase a desvantagem da sifilização A miscigenação não é culpada pela sifiliza ção Ela pelo contrário produziu belos exemplares humanos Depois da má nutrição talvez a sífilis tenha sido a influência social mais de formadora da plástica do mestiço brasileiro Portanto se o brasileiro sofre de uma inferioridade física não se deve atribuíla à raça ou à mistura de raças mas à desnutrição e à sífilis além de outros vícios alcoolismo comer terra São razões históricas portanto corrigíveis e não razões biológicas irrecorríveis Entretanto apesar de recusar o conceito de raça e o determi nismo racial diferentemente de Boas para quem o conceito de cultu ra aboliu o de raça Freyre continuou usando o conceito de raça mes mo privilegiando o de cultura Costa Lima apontou para essa ambigüi dade de Freyre que o torna ainda mais próximo do pensamento brasileiro tradicional de Varnhagen apesar das suas inovações Afinal branco é uma etnia ou uma cultura ou ambas Freyre mistura meioL 74 AS IDEN TID AD ES D O BRASIL raça e cultura Seu regime de causalidade é impreciso afirma Costa Li ma Ora é o fator étnico a mestiçagem ora é a posição geográfica de Portugal ora é a convivênciaguerra entre portugueses e muçulmanos que são apresentados como responsáveis pelo caráter vagoimpreciso do português O sucesso português no Brasil ora se deveu à sua etnia ora ao clima ora à tolerância cultural O português tem sangue mouro se mita Há até quem encontre em Freyre teses racistas antisemitas por exemplo Enfim Freyre não descartou o conceito de raça embora declare têlo feito Em Casa grande senzala as raças apresentam es pecializações psicológicas e aptidões distintas Freyre não absorveu completamente Boas conclui Costa Lima Na medida em que ainda raciocina com o conceito de raça ele se insere de maneira limitada no historicismo alemão e se afasta bastante do historicismo de S B de Holanda Costa Lima diminui assim o alcance da renovação e origi nalidade da interpretação do Brasil de Freyre que se acreditava inteira mente culturalista e sem nenhuma referência à raça Costa Lima se es panta e com razão com o fato dos seus analistas não terem dado atenção a esse aspecto do pensamento de Freyre que aparece com multa evidência em seu texto Ele não estaria tão longe de Varnhagen e O Vianna afinal E quanto ao essencial é essa também a nossa vi são de Freyre que sem desvalorizar as suas intuições e inovações ge niais estamos tentando demonstrar Entretanto R Benzaquen de Araújo procura também valorizar e restaurar a originalidade de Freyre ao afirmar que ele usa o conceito de raça de forma peculiar Ele trabalharia com um conceito neolamarkia no de raça que se baseia na aptidão dos seres humanos para se adapta rem às mais diferentes condições ambientais e para incorporarem e transmitirem as características adquiridas na interação com o meio Nes ta perspectiva o conceito de raça é histórico uma cultura é um cor po marcado pelo meio geográfico A raça é mais efeito do que causa Há uma diversidade cultural e racial marcada pelo meio Benzaquen de Araújo concorda com Costa Lima quando este afirma que a imprecisão no uso do conceito de raça revela o próprio estilo de Freyre ele não se submete a conceitos A denúncia de sua imprecisão deve ser mantida confirma Benzaquen mas quanto ao conceito de raça é preciso incluir este seu esforço de precisão Araújo 1994 75 A N O S 1930 GILBERTO FREYRE Apesar disso Freyre se afasta e muito do pensamento tradicio nal brasileiro racista de Varnhagen a O Vianna quando estes propu seram a superação do problema racial pelo branqueamento da popula ção Do ponto de vista norteamericano esta seria uma solução ingê nua pois a raça não é definida pelo fenótipo mas pela ascendência do indivduo Os brasileiros poderiam se tornar todos brancos isto não apagaria a sua ascendência negra e indígena Skidmore 1994 Freyre aceita a mestiçagem e a sua conseqüência fenotípica a morenidade O Brasil é moreno mestiço de branconegroíndio Este Brasil more no longe de estar condenado ao insucesso por ser moreno tem o seu horizonte de espera aberto por esta sua originalidade A quinta tese responderá à pergunta Para este povo miscigenado confraternizado bem adaptado aos trópicos qual seria o regime político mais adequado A democracia racial brasileira poderia corresponder a de mocracia social e política Freyre oferece uma resposta ambígua a esta questão como é am bígua ou anfíbia toda a sua reflexão sobre o Brasil Por um lado a mestiçagem se fez entre senhor e escravo Se o brasileiro é mestiço e Freyre não omite esse dado essa mestiçagem não se realizou amorosa mente O brasileiro mestiço não é fruto de uma relação humana entre etniasculturas diferentes Ele é filho de um estupro o senhor conquis tador colonizador armado de espada e terço que invade e domina ín dios e negros exterminando e escravizando os homens e violentando as suas mulheres Freyre acredita que o próprio escravo se satisfaça nesta relação sadomasoquista sexual e pessoal O escravo preferia o senhor invasor e brutal isto é bem no seu papel pois é masoquista O se nhor inebriado transtornado de desejo por todo o poder sobre a natu reza e os homens que ele conquistou o senhor sádico é a este que pre fere o escravo masoquista Ostentando o seu poder realizandoo sem restrições o senhor se torna o seu espelho a sua imagem invertida aquilo que ele gostaria de ser Como ele poderia se identificar com um senhor com características de escravo O senhor precisa ser um anties cravo um escravo invertido para satisfazer ao próprio escravo E como não há nada mais afrodisíaco do que o lazer e o poder o português se tornou um femeeiro possuía uma genesia violenta e incluía o escra vo como parceiro em suas fantasias O papel do escravo na relação é passivo ele deve submeterse ao desejo sem limites do senhor e nesta 76 A S ID EN T ID AD ES D O BRASIl submissão encontraria um in confessado prazer A relação senhorescra vo é uma relação sadomasoquista isto é uma relação de prazer sexual e até afetuosa com violência Nessa relação se desfaz o sonho da democracia política prometi da pela miscigenação Essa relação teria passado à esfera política Freyre afirma que o chamado povo brasileiro o mestiço filho daquela rela ção sadomasoquista aprecia o mandonismo gosta do dono bravo do senhor completamente em seu papel No íntimo ele afirma o que o grosso do povo brasileiro ainda goza é a pressão sobre ele de um go verno másculo e corajosamente autocrático Até os mártires revolucio nários brasileiros não querem de fato transformar o Brasil salvar a sua população daquela relação perversa Eles pertencem àquela relação e o que querem é ter o prazer de sofrer de ser vítimas de se sacrificar como Jesus Cristo o heróivítima que todo brasileiro quer imitar Por tanto o regime político mais adequado a este povo nascido daquela re lação é a ditadura vigorosa máscula e corajosa O ditador será aclama do idolatrado amado e quanto mais severo mais prazer trará a esta população filha do prazercomviolência Por outro lado q regime político mais adequado à população bra sileira mestiça é o que já predomina desde o início da colonização a democracia racial e social A miscigenação se deu entre senhor e escra vo o que ele considera uma demonstração da suavidade do escravismo brasileiro e até do espírito radicalmente democrático do português A colonização européia não se deu somente no sentido da europeização A cultura européia assimilou a indígena e a africana O português vence dor deixouse civilizar pelos vencidos como os turcos vitoriosos pelos gregos vencidos Por suas predisposições já mencionadas o português não se encastelou orgulhosa e aristocraticamente separandose das ou tras raças e culturas Ele não tinha nenhum orgulho de raça Os negros reagiram sobre a dominação branca e a sua cultura foi civilízadora do vencedor Do ponto de vista alimentar por exemplo a influência do africano foi a mais positiva Sua dieta era mais equilibrada era abun dante em milho toucinho e feijão Foi o elemento mais bem nutrido em nossa sociedade patriarcal o escravo negro e por isso sua descen dência é a mais sadia e bela O negro revelouse superior ao índio e ao próprio português em vários aspectos da vida material e moral técnica e artística O negro é alegre vivo loquaz vigoroso extrovertido plásti A N O S 1930 GIIBERTO FREYRE 77 co adaptável Ele foi o maior colaborador do branco na colonização Ele ate influiu na europeização do índio difundindo a religião católica e a língua portuguesa Freyre distingue o negro do escravo O Brasil teve a influência do negro escravo e não a influência do negro puro O negro escravo não pode exercer toda a influência que o negro livre exerceria pois sua posi ção estava moralmente rebaixada Ele nos aparece deformado pela escra vidão Esta não deixou que ele pudesse se revelar se expressar plena mente A sua influência não pode ser considerada deletéria enquanto negro mas enquanto escravo Não era o negro depravado imoral obs ceno ele é até mais frio do que o branco precisando de danças eró ticas para se excitar A sífilis não foi ele quem a trouxe mas o portu guês O negro escravo transformou a língua portuguesa a religião cris tã a dieta portuguesa o imaginário infantil A nossa língua nacional sofreu uma dupla influência a da casa grande e a da senzala No brasi leiro não subsiste como nos Estados Unidos duas metades inimigas uma branca e outra negra Somos duas metades confraternizadas que se enriquecem mutuamente de valores e experiências diversas O todo bra sileiro não se faz com o sacrifício de uma das partes Nossa personalida de mestiça se desenvolve sem a supressão de uma parte por outra A presença do negro na vida do branco é muito forte embora como es cravo amadeleite molequebrinquedo negro velho macumbeiro mu cama cozinheira Freyre não se demora sobre a influência negra no desenvolvimento econômico fala raramente do escravo do eito mas afirma em algumas passagens que ela foi imensa maior do que a do próprio português Enfim na casa grande os escravos domésticos foram tratados com doçura eram como familiares pessoas da casa como parentes pobres Sentavamse à mesa passeavam com os senhores como se fos sem filhos As mães pretas tinham lugar de honra na família os nhonhôs as tratavam como verdadeiras mães Eles receberam dela uma bondade uma ternura que os europeus não conheciam Entre nós houve uma profunda confraternização de valores e sentimentos A reli gião católica foi um ponto de encontro entre as duas culturas e não uma intransponível barreira Um cristianismo mais ortodoxo seria in compatível com a liberdade religiosa dos negros Freyre distingue o es cravo do eito do escravo doméstico este teve uma assistência moral e 78 A S ID EN T ID AD ES D O BRASIL religiosq que faltou àquele Os da casa eram batizados alguns se casa vam e mulheres brancas amamentavam filhos de negras mortas no parto Portanto a sociedade brasileira para Freyre foi desde o início a que mais harmoniosamente se constituiu quanto às relações de raça dentro de um ambiente de quase reciprocidade cultural de troca de valores no máximo de contemporização da cultura adventícia com a nativa do conquistador com o conquistado Quanto aos indígenas a mulher recémbatizada foi tomada como esposa e mãe de família e trouxe para a vida doméstica tradições expe riências técnicas e utensílios O branco preferia sexualmente a índia e esta ao branco seja por razões sociais queriam ter filhos pertencendo à classe superior já que a ascendência que valorizavam era a paterna seja por razões priápicas pois o índio seria mais frio do que o branco No primeiro século por falta de brancas os portugueses se envolveram com as índias Freyre sonha o ambiente em que começou a vida brasi leira foi quase de intoxicação sexual As índias se entregavam facilmen te aos seus deuses por um espelho ou um pente Freyre nos convida a imaginar este primeiro Brasil sem Estado e sem jesuítas local de en contro de uma sociedade vestida com uma sociedade nua A mu lher índia foi não só a base física da família brasileira mas também va lioso elemento de cultura material A influência do homem índio foi também forte devastação e conquista do sertão guia canoeiro guerrei ro caçador pescador Ele só não foi útil na plantação Mas lutou ao lado do português contra os invasores europeus O menino índio euro peizou os pais e a tribo ensinando o português e o catecismo Enfim conclui Freyre a formação brasileira tem sido um proces so de equilíbrio de antagonismos A mediação africana aproximou os extremos brancos e índios que sem ela dificilmente teriam se entendi do tão bem As culturas européia e ameríndia eram estranhas e antagô nicas A sociedade brasileira é uma das mais democráticas flexíveis e plásticas Ela conseguiu equilibrar harmoniosamente antagonismos difi cilmente superáveis culturas européia e africana e indígena economia agrária e pastoril fazendeiro e jesuíta bandeirante e senhor de enge nho E equilibrou o antagonismo maior senhor e escravo Estes anta gonismos foram amortecidos confraternizados harmonizados pela mis cigenação pela mobilidade social do ir e vir pelo cristianismo lírico pela tolerância moral pela geografia sem obstáculos No Brasil enfim A N O S 1930 GILBERTO FREYRE 79 reina a democracia social As mulheres estão em pé de igualdade com os homens são médicas professoras escritoras advogadas A ten dência brasileira é dar oportunidade a todos No Império juízes e di plomatas eram morenos O regime imperial era uma felicíssima combi nação de democracia e monarquia Freyre 1971 Afinal o regime político adequado a tal democracia racial serja a ditadura ou ji democracia Freyre parece crer sinceramente na de mocracia social brasileira mesmo se o senhor detém o mando indis cutível e brutal Entretanto esse senhor sádico e autoritário ele o vê como também essencidmente democrático pois o seu poder é exer cido em família Ê um poder legitimado por suas relações afetivas Na família domina essa ambigüidade o pátrio poder é absoluto mas os laços afetivos e de fidelidade recíprocas criam uma aliança inabalável verticalmente em relação ao senhor e horízontalmente entre os di versos membros da família A severidade do pai é apreciada suas deci sões peremptórias temidas e legitimadas No Brasil colonial não existia o Brasilnação Havia uma multiplicidade de repúblicasfamiliares com os seus poderes particulares Freyre se refere ao poder familiar patriar cal íntimo e não ao poder público ào Estado Aquele poder privado ho entanto se confundia com o poder público A população lusobra sileira era governada como uma família pelo poder absoluto do pai Darci Ribeiro expressa de forma esclarecedora essa ambiguidade apon tada por Freyre no nosso modo doceviolento de ser Para ele o mesti ço brasileiro é filho daquelas pretas e índias supliciadas e filho da mão possessa que as supliciou A doçura mais terna e a crueldade mais atroz se reuniram aqui para fazer de nós uma gente sofrida e ao mes mo tempo insensível e cruel Somos filhos de escravas e de senhores de escravos A autoridade brasileira assim como a colonial está predispos ta a torturar a machucar o pobre que lhe cai às mãos e que como o escravo colonial se sente completamente à mercê dessa força o se nhor ruralpai sem rei e sem lei sem limites que o oprime e quer bem Ribeiro 199512 O Tempo Histórico do Brasil em Freyre Freyre considera o brasileiro dominado por um tempo lento e lúdico preguiçoso O ritmo brasileiro de atividade é uma combinação 80 AS ID EN T ID AD ES D O 6 R A SII de trabalho e lazer Os brasileiros não gostam do trabalho intelectual ou manual e não têm preconceito contra o lazer que não é visto como vício pecado Ele gosta mesmo é de tocar violão e cantar comer seu peixe temperado fumar o seu cachimbo beber seu café a pequenos goles Freyre 1971 Gosta de mandar fazer e de viver no ócio Eles apreciam também o luxo roupas rendadas e bordadas O seu sucesso ele o obteve com essa tolerância transigência vontade de não transfor mar e imporse racionalmente ao mundo e ao outro A natureza ele a aceita e se adapta o outro ele domina e se adapta Daí a sua relati va democracia étnica a ampla oportunidade dada a todos os homens independentemente de raça ou cor Os brasileiros se amam como ir mãos mesmo se são tão diferentes Há preconceitos raciais mas não há apartheid Reina entre os brasileiros um forte espírito de fraternida de As relações entre negros e brancos sempre foram cordiais e a solu ção brasileira para as relações raciais foi a mais inteligente promissora e humana Ele acredita que exista uma certa felicidade brasileira Nossa situação de confraternização racial é a que mais se aproxima de um paraíso terrestre Há miséria doença tristeza opressão Mas não se pode deixar de falar de democracia social A interpretação de Freyre se apoia sobre uma concepção conci liadora do tempo histórico brasileiro Para Bastos ele propõe uma arti culação do velho e do novo a união da tradição com a modernidade Bastos 1986 Barbu 1981 A história brasileira não é compreendi da em termos de ruptura conflitos mudanças bruscas Ela é vista como uma história pacífica tranqüila integradora das diferenças A narrativa de Freyre assim que percebe conflitos produz a sua dissipa ção Os conflitos são percebidos não são escamoteados mas adminis trados Freyre constata diferenças para englobálas uniformizálas ob serva Costa Lima Sua verdade histórica é ética o Brasil é um modelo para a humanidade ele dá ao mundo uma lição de moralidade Aqui o senhor é ameno com o escravo o branco com o negro e o índio Mas essa amenidade ao invés de apagar a diferença intensificaa Se o escravo se rebelar o senhor esquecerá as suas boas maneiras É uma interpretação do Brasil válida enquanto continuamos uma sociedade conservadora A plasticidade do senhor não corrige a assimetria do poder mas legitima a colonização e a escravidão é um mito uma máscara ideológica Lima 1989 Freyre produz um quadro excessiva A N O S 1930 GILBERTO FREYRE 81 mente estático detecta constantes e ignora os ritmos de transforma ção Privilegia a continuidade em detrimento da mudança A obsessão com o progresso e com a chegada acelerada da razão com a integra ção do país na marcha da civilização ele a recusa substituindoa pela ênfase na tradição e singularidade brasileiras O Brasil ganha um passa do se densifica para trás Freyre não fala quase de futuro ele fala mais de passado de identidade brasileira consolidada Nessa identidade ele integra índios e negros retrospectivamente a identidade singular brasileira é a da mistura de raças e culturas sob a liderança portugue sa O Brasil é complexo em sua temporalidade tão velho e tão novo tão conservador e tão liberal tão ligado ao seu passado e tão pouco re sistente a experiências novas Por um lado superarcaico por outro um dos países mais modernos do mundo Freyre 1971 Freyre representa um momento importantíssimo para a reflexão histórica brasileira um momento de retorno de íntrospecção de viagem pelo interior Ele pára o tempo da história brasileira e se deli cia em sua contemplação Õ tempo de Freyre é ibérico sem pressa sem relógio sem preço sem dinheiro a ganhar Marias 1981 Solis 1981 Em sua ampulheta o que se tem não é areia ou água que descem rapidamente mas um meladomel que desce em um fio visco so e lento marcando a duração doce e gozosa do mundo nordestino Kujawski 1981 Seu tempo é senhorial ocioso deitado na rede pés de menino e mãos de moça o pau viril e a voz imperiosa Dono de escravos o trabalho não é problema dele Seu tempo ele o tem todo à sua disposição para comer beber conversar e copular com negras e ín dias A vida boa dos aristocratas do açúcar foi lânguida morosa Na casa grande os dias se sucediam iguais a mesma modorra a mesma vida de rede sensual Sua visão do Brasil e do mundo é desacelerada a da lenta mudança dos séculos sem saltos revolucionários Marias 1981 Briggs 1981 Freyre prefere a continuidade à mudança ou a mudança domi nada pela continuidade Seu olhar sobre o futuro do Brasil é pessimis ta nos anos 30 a mudança se acelerava assustandoo pois comprome tia a continuidade do passado patriarcal Com sua reflexão ele quer fa zer uma defesa desse passado e impedir ou desacelerar a mudança Ele espera que as mudanças não se acelerem pois não há motivo O passa do brasileiro foi bom as elites brasileiras são competentes e democráti 82 AS IDENTIDADES D O RASIL cas Quanto ao futuro clc é no máximo reformista e gradualista pro põe o fim da monocultura o que melhoraria a dieta brasileira fazen do aparecer uma população sadia e uma inteligência mais vigorosa menos imitativa A população mestiça brasileira é eugêntca pois os brancos escolheram as melhores negras e índias para amantes O mula to é um feliz meiotermo eugênico O Brasil tem o seu futuro aberto não há nada que o torne inviável que o ameace no horizonte des de que ele seja mais passado do que futuro mais continuidade do que mudança