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José Carlos Reis As Identidades do BRASIL 1 De Varnhagen a FHC 9ª edição ampliada FGV EDITORA José Carlos Reis As Identidades do BRASIL 1 De Varnhagen a FHC 9ª edição ampliada FGV EDITORA ISBN 9788522509096 Copyright 2007 José Carlos Reis Direitos desta edição reservados à EDITORA FGV Rua Jornalista Orlando Dantas 37 22231010 Rio de Janeiro RJ Brasil Tels 08000217777 2137994427 Fax 2137994430 email editorafgvbr pedidoseditorafgvbr web site wwwfgvbreditora Impresso no Brasil Printed in Brazil Todos os direitos reservados A reprodução não autorizada desta publicação no todo ou em parte constitui violação do copyright Lei no 961098 Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade do autor 1a edição 1999 4a edição 2001 5a edição 2002 6a edição 2003 7a edição 2005 8a edição 2006 9a edição ampliada 2007 1a reimpressão 2008 2a e 3a reimpressões 2009 4a reimpressão 2010 5a reimpressão 2011 REVISÃO DE ORIGINAIS Waldivia Marchiori Portinho REVISÃO Aleidis de Beltran e Fatima Caroni CAPA aspectodesign Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique SimonsenFGV Reis José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC José Carlos Reis 9 ed ampl Rio de Janeiro Editora FGV 2007 Inclui bibliografia 1 Brasil Historiografia I Fundação Getulio Vargas II Título CDD 981 Edição digital julho 2012 Arquivo ePub produzido pela Simplíssimo Livros Sumário Prefácio Uma sociedade nacionaldependente Luiz Carlos BresserPereira Vivas Representações do Brasil Introdução à 9a Edição Vera Alice Cardoso Silva Introdução Parte I O Descobrimento do Brasil Anos 1850 Varnhagen O elogio da colonização portuguesa Anos 1930 Gilberto Freyre O reelogio da colonização portuguesa Parte II O Redescobrimento do Brasil Anos 1900 Capistrano de Abreu O surgimento de um povo novo o brasileiro Anos 1930 Sérgio Buarque de Holanda A superação das raízes ibéricas Anos 1950 Nelson Werneck Sodré O sonho da emancipação e da autonomia nacionais Anos 1960 Caio Prado Jr A reconstrução crítica do sonho de emancipação e autonomia nacional Anos 196070 Florestan Fernandes Os limites reais históricos à emancipação e à autonomia nacionais a dependência sempre renovada e revigorada Anos 196070 Fernando Henrique Cardoso Limites e possibilidades históricas de emancipação e autonomia nacional no interior da estrutura capitalista internacional dependência desenvolvimento PREFÁCIO Uma sociedade nacionaldependente A rigor este belo livro de José Carlos Reis não precisa de um prefácio Quando foi publicado em 1999 talvez isso fizesse sentido já que o autor era desconhecido Desde então porém o livro se impôs por si mesmo Ainda que aborde um tema amplamente tratado as interpretações clássicas do Brasil o livro o discute usando um estilo claro e uma abordagem sem preconceitos aberta a essas mesmas interpretações de forma que o resultado é uma visão ampla dos autores escolhidos e do Brasil José Carlos Reis entretanto convidoume para escrever um prefácio para esta 9a edição talvez porque saiba que eu me interesso pelo tema talvez porque acredite que um prefácio ainda que breve possa de alguma forma enriquecer seu livro oferecer algum ângulo novo aos leitores Na introdução José Carlos afirma que cada geração em seu presente específico une passado e presente de maneira original elaborando uma visão particular do processo histórico O presente exige a interpretação do passado para se representar se localizar e projetar o seu futuro Sou contemporâneo de alguns dos autores principalmente de Florestan Fernandes e mais especificamente de Fernando Henrique Cardoso de forma que talvez possa falar com mais propriedade sobre eles porque minha formação coincidiu no tempo ou sobre aquilo que eles não falaram porque suas obras fundamentais são dos anos 1960 e 1970 e depois disso a sociedade brasileira enfrentou novos desafios passou por novas experiências vitórias e frustrações que não foram por eles analisadas Se a função da história social é como diz José Carlos citando Lucien Febvre organizar o passado em função do presente se a história é reescrita porque o conhecimento dela mesma muda e porque o presente onde esse reescrever se dá é sempre novo à medida que passa o tempo é preciso sempre rever as interpretações com os olhos novos do presente Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso são membros da escola de sociologia de São Paulo o primeiro foi seu fundador o segundo seu principal representante Essa escola tem recebido uma atenção especial porque teria introduzido a sociologia científica no país Suas pesquisas científicas porém embora relevantes eram necessariamente tópicas e pouco contribuíram para a visão geral que esses dois autores tiveram do Brasil Mais importante foi o fato de a Universidade de São Paulo ter sido fundada em 1934 pelas elites locais logo após sua derrota na Revolução de 1932 foi a competição acadêmica em que seus membros se dedicaram com a sociologia de Gilberto Freyre e a visão geral do Brasil dos intelectuais do Iseb e principalmente de seu sociólogo maior Guerreiro Ramos em busca do que Bourdieu chamou de monopólio do saber legítimo foi a associação que essa escola fez com outros dois ilustres intelectuais paulistas de geração anterior Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr e foi a influência marxista que sofreu nos anos 1960 e 1970 principalmente depois do golpe militar de 1964 Em consequência não foram obras que relataram pesquisas científicas mas grandes ensaios que marcaram mais profundamente sua visão da identidade do Brasil Embora Florestan tenha sido mestre de Fernando Henrique a obra fundamental da interpretação do Brasil produzida pela escola de sociologia de São Paulo foi escrita pelo segundo Dependência e desenvolvimento na América Latina 1970 em associação com o sociólogo chileno Enzo Faletto Com esse ensaio a teoria da dependência que fora iniciada em 1965 com André Gunder Frank e Ruy Mauro Marini perdeu o caráter radical e a possibilidade de compatibilizar desenvolvimento com dependência ganhou estatuto de teoria sociológica e de teoria do desenvolvimento econômico Ambas as visões da dependência tinham base marxista e compartilhavam a tese de que não haveria possibilidade de uma burguesia nacional no Brasil ou na América Latina mas enquanto a corrente da superexploração capitalista de Frank concluía da sua análise a necessidade da revolução socialista a corrente da dependência associada que seria chefiada por Fernando Henrique via a possibilidade de combinar a dependência com o desenvolvimento em associação com o império Florestan Fernandes escreveu depois na fase mais negra do autoritarismo militar seu livro principal de interpretação do Brasil A revolução burguesa 1974 Ele compartilhava com a teoria da dependência a tese da impossibilidade de uma burguesia nacional uma tese que havia se tornado absolutamente dominante nas esquerdas latinoamericanas nos anos 1970 mas seria antes um membro da teoria da superexploração imperialista do que um defensor da dependência associada Havia no próprio título do livro uma contradição já que revolução burguesa que estava no título de seu ensaio não ocorrera nem ocorreria no Brasil pelo menos não ocorreria uma revolução burguesa clássica pois todas elas foram sempre revoluções nacionais Florestan advertia que não pretendia explicar o presente do Brasil pelo passado dos europeus mas a sua revolução burguesa era afinal uma contrarrevolução autodefensiva uma nova forma de submissão ao imperialismo1 Além disso seguindo aqui outra faceta da teoria da dependência que teve em Guillermo ODonnell e no modelo burocráticoautoritário seu representante mais conhecido Florestan Fernandes afirmava o caráter necessariamente autoritário da burguesia brasileira A teoria da dependência que marcou todo o pensamento da esquerda a partir de meados dos anos 1960 ao radicalizar a tese da impossibilidade de uma burguesia nacional inviabilizava também a possibilidade de uma nação no Brasil Uma nação é historicamente uma sociedade que compartilha um destino comum e usa o Estado como seu instrumento de ação coletiva As nações nascem com o capitalismo e o Estado moderno e dão origem ao Estadonação Uma nação não impede o conflito interno entre as classes sociais mas implica um grande acordo de classes quando se trata de competir com as demais nações Implica portanto uma solidariedade nacional no quadro competitivo da sociedade capitalista mundial A teoria da dependência não compreendeu esse fato sua versão da superexploração radicalizou a impossibilidade de uma burguesia nacional porque via a revolução socialista no horizonte e a teoria da dependência associada fez o mesmo porque supunha que a falta de nação era compatível com o desenvolvimento em associação com os países centrais associação que nos anos 1950 a Cepal e o Iseb fiéis à sua vinculação com a teoria do imperialismo haviam declarado impossível A teoria da dependência associada nega a própria existência do imperialismo ou a subestima e concentra sua crítica nas distorções que essa dependência provoca principalmente o aumento da desigualdade e o autoritarismo A rejeição da possibilidade de uma burguesia nacional era em grande parte a consequência de um ressentimento o fato de nos anos 1960 no Cone Sul da América Latina as burguesias terem se associado aos militares e aos americanos em uma sucessão de golpes autoritários que refletiam principalmente o quadro da Guerra Fria e o medo da repetição da Revolução Cubana 1959 A tendência necessária dessa burguesia a ser não apenas dependente mas autoritária derivava dos próprios regimes militares a que esses golpes deram origem Em um trabalho de 1982 eu distingui três interpretações de esquerda pós 1964 e situei Fernando Henrique na interpretação da nova dependência distinguindoa da interpretação funcional capitalista defendida por quase todos os seus mais próximos colaboradores2 Creio porém que me enganei Essas duas interpretações estavam no mesmo barco da dependência associada mas havia outra condicionante fundamental dessa teoria Ela é formulada no momento em que a economia brasileira está em pleno milagre econômico 196873 Dessa forma seus autores de esquerda e democráticos pressupuseram que o desenvolvimento econômico estava assegurado não obstante a dependência Tomaram o crescimento econômico que então ocorria como algo sólido duradouro como um problema resolvido ignoraram que o desenvolvimento econômico sustentado só é possível quando há por trás uma estratégia nacional de desenvolvimento e trataram de enfrentar dois outros problemas centrais o da desigualdade e o da falta de liberdade ou de democracia Esses problemas eram de fato fundamentais e a crítica firme da esquerda seja ao autoritarismo seja à concentração de renda colocouos na agenda nacional Enquanto a tese do caráter dependente da burguesia nacional até hoje não pode ser refutada porque apesar de sua ambiguidade a burguesia brasileira como as demais classes é fortemente dependente da hegemonia ideológica vinda do Norte a tese do seu caráter autoritário foi negada pouco depois em 1977 quando o pacote de abril um conjunto de medidas autoritárias tomadas pelo presidente Ernesto Geisel provocou uma reação indignada da burguesia a ruptura de sua associação com a tecnoburocracia militar e sua gradual aliança com as forças democráticas aliança que levaria à formação de um pacto nacionaldemocrático à campanha das Diretas Já e à transição democrática no final de 19843 A adesão da burguesia nacional às forças democráticas foi o fato histórico novo que viabilizou a transição democrática afinal completada em 1985 A tese da inexistência de uma burguesia nacional era assim falseada pouco depois de haver sido formulada Por outro lado principalmente a partir da transição democrática a luta pela distribuição de renda ganhou corpo tendo sido usada para isto a estratégia de aumentar o gasto social do Estado Esta luta dos representantes da teoria da dependência foi até certo ponto bemsucedida Em relação ao desenvolvimento econômico porém os resultados foram negativos o que não é surpreendente já que na globalização marcada por rivalidades nacionais não existe desenvolvimento econômico sem que haja por trás uma nação e uma estratégia nacional de desenvolvimento Em vez disso a teoria da dependência associada a partir da observação correta de que a partir dos anos 1950 as empresas industriais dos países ricos passaram a investir em países em desenvolvimento como o Brasil e diante da crise econômica do início dos anos 1960 inferiu que a continuidade do desenvolvimento da região dependeria de aportes de poupança externa tese esta que não se sustentava nem historicamente já que todos os países sempre se desenvolveram usando recursos internos nem teoricamente já que déficits em conta corrente inerentes à estratégia de crescimento com poupança externa não são sustentáveis quando não provocam crise de balanço de pagamentos implicam fragilização financeira do país apreciação do câmbio e elevada taxa de substituição da poupança interna pela externa Nos anos 1970 porém o Brasil como quase toda a América Latina adotou sem restrições a estratégia de crescimento com poupança externa se endividou e em consequência enfrentou profunda crise nos anos 1980 Dessa forma o desenvolvimento econômico que essa teoria julgava assegurado revelouse frágil e a partir da crise que teve início em 1980 o país entrou em quase estagnação depois de crescer a quase 4 per capita ao ano entre 1950 e 1980 passou a crescer a uma taxa na média inferior a 1 O desenvolvimento econômico revelouse tão frágil como frágil se mostrou a nação brasileira minada pelo golpe militar que afastou os trabalhadores e amplos setores médios da vida política e enfraquecida pela teoria da dependência que negava a possibilidade de um acordo nacional quando se tratava de competir internacionalmente não encontrou até hoje o caminho do desenvolvimento econômico Por isso depois da grande crise da dívida externa dos anos 1980 que logo se transformou em uma crise fiscal do Estado o Brasil se viu presa fácil da onda ideológica neoliberal e globalista que vinha do Norte Entre 1930 e 1980 o país se desenvolvera com base em uma estratégia nacional de desenvolvimento o nacional desenvolvimentismo que a teoria da dependência nunca aceitou Quando essa estratégia se esgotou ou se tornou superada porque o Brasil já não tinha mais uma indústria infante que precisasse tanto de proteção nem dispunha de uma capacidade de acumulação privada tão débil que tornasse a acumulação estatal fundamental em vez de a sociedade brasileira definir uma nova estratégia nacional de desenvolvimento aceitou a partir de 1990 o diagnóstico e o receituário vindo do Norte a ortodoxia convencional Em consequência o desenvolvimento econômico não foi retomado e a crise dos anos 1980 se prolonga até hoje desde 1990 sob a égide da hegemonia externa Hoje o que vemos é um país em que a democracia é forte e alguns ganhos foram alcançados na distribuição de renda mas cuja economia se encontra semiestagnada desde 1980 A nação brasileira que ganhara força com o pacto nacional democrático de 197786 entrou em profunda crise a partir de 1987 em função do fracasso do Plano Cruzado o qual foi também o fracasso da burguesia nacional que assumiu o comando da transição em estabilizar a economia brasileira A partir de 1990 as elites brasileiras se entregam como nunca tinham feito antes à hegemonia externa Existe uma profunda ambiguidade na sociedade brasileira e em suas elites não apenas burguesas mas também intelectuais Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto reconheciam esse fato em seu livro clássico Desde o momento que se coloca como objetivo instaurar uma nação como no caso das lutas anticolonialistas o centro político da ação das forças sociais tenta ganhar certa autonomia ao sobreporse à situação do mercado as vinculações econômicas externas entretanto continuam sendo definidas objetivamente em função do mercado externo e limitam as possibilidades de decisão e ação autônomas4 A questão é saber se essa ambiguidade afinal se resolve necessariamente pela subordinação aos países ricos e hegemônicos ou se nessa ambiguidade existe a potencialidade da independência que em certos momentos aflora e se afirma Minha própria interpretação do Brasil foi sempre a da segunda alternativa O que define o Brasil não é simplesmente a dependência mas a nacionaldependência Sei bem que esta expressão é um oximoro que uma palavra contradiz a outra mas a uso de forma deliberada para exprimir a contradição intrínseca em que vive uma sociedade como a brasileira na periferia do império hegemônico Diferentemente do que aconteceu nas sociedades asiáticas algumas das quais se revelaram incrivelmente dinâmicas na segunda metade do século XX a dependência brasileira começou pela nossa constituição como sociedade em consequência de uma colonização de exploração mercantil latifundiária em que o componente branco europeu se revelou dominante entre as elites Isto levou as elites latinoamericanas a uma identificação com as dos Estados Unidos e da Europa que somada ao poder econômico e à hegemonia ideológica ou cultural do centro lhes roubou a identidade nacional Não obstante é preciso não subestimar os interesses nacionais que uma nação forma ao ter o controle de um Estado e de um território As nações o Estado moderno e sua junção no Estadonação são o produto da revolução capitalista Os povos se transformam em nações no momento em que a revolução capitalista acontece porque percebem que se tiverem como instrumento o Estado terão uma condição muito melhor de lograr seus objetivos políticos de liberdade bemestar e justiça Ainda que Marx tenha dito que o Estado é o comitê executivo da classe dominante ele principalmente nas sociedades democráticas é o instrumento de ação coletiva por excelência da nação Em torno do Estado e no respectivo território os participantes da nação os empresários os trabalhadores a burocracia do Estado os intelectuais as classes médias profissionais em geral desenvolvem interesses que só podem ser atendidos dentro do quadro do Estadonação Este fato foi subestimado ou ignorado pela teoria da dependência enquanto é afirmado pela teoria do desenvolvimento nacionaldependente Ao se reconhecer a ligação intrínseca entre nação Estado e desenvolvimento ao se salientarem os interesses nacionais de ordem econômica e política que ligam os membros da nação a dependência não desaparece mas se revela superável porque fica aparente seu caráter ambíguo e contraditório O nacionalismo que existe em um país não é apenas uma emoção ou um sentimento ele é a ideologia da formação do Estadonação porque traz consigo os interesses reais da nação Nos países ricos a palavra nacionalismo tornouse pejorativa uma forma de neutralizar a ideia de nação nos países em desenvolvimento que com eles competem com sua mão de obra barata porque eles não mais necessitam dela para distinguir seus cidadãos ao contrário do que acontece em países nacionaldependentes como o Brasil todos os americanos ou todos os franceses sabem que é dever do seu governo defender o trabalho o conhecimento e o capital nacionais Não é esta a situação dos países da periferia do capitalismo cujas elites estão sendo insistentemente convidadas a colaborar com o centro hegemônico A Guerra Fria facilitou esse convite durante muito tempo Quando ela terminou a hegemonia ideológica do Norte desenvolvido encarregouse de dar substância ao convite à colaboração sempre necessária para qualquer império Essa era uma hegemonia cultural baseada nas realizações concretas do capitalismo nos Estados Unidos e apoiada em um sistema de aparelhos ideológicos poderosos como a universidade a mídia internacional e o cinema Tornarase de tal forma poderosa que parecia incontrastável indicando aos países em desenvolvimento como o Brasil um único caminho a seguir o do desenvolvimento recomendado por Washington e Nova York Entretanto passados 20 anos do começo da aplicação do receituário da ortodoxia convencional na América Latina o que se verifica é que o desenvolvimento não foi retomado e se alguma distribuição de renda ainda que muito limitada foi obtida isto se deveu à democracia desafiar aquela ortodoxia e aumentar os gastos sociais do Estado Quando as medidas de focalização das despesas sociais não neutralizaram o caráter excludente das reformas propostas principalmente a abertura financeira e a estratégia de crescimento com poupança externa essas reformas além de neutralizar o desenvolvimento econômico se revelaram causadoras de exclusão social Enquanto isso acontecia na América Latina os países dinâmicos da Ásia demonstravam como já tinham demonstrado os países europeus que havia outros caminhos para o desenvolvimento capitalista caminhos nacionais resultado de acordos que produzem estratégias nacionais de desenvolvimento Será que o fracasso da ortodoxia convencional e o êxito do desenvolvimentismo asiático ensinarão algo à nação brasileira Será que a nação que entrou em processo de desconstrução e de desorganização desde 1980 terá condições de se reconstituir Uma nação não existe independentemente da solidariedade do sentimento de pertencimento e de destino comum que une seus membros Ernest Renan disse que a nação é uma construção de todos os dias Se a nação brasileira não é simplesmente uma nação dependente ou uma não nação mas uma nação nacional dependente e se ela sabe aprender com a experiência o enfraquecimento da hegemonia ideológica do Norte que ocorre nos anos 2000 representa uma oportunidade a ser aproveitada assim como o enfraquecimento daquela hegemonia nos anos 1930 significou uma oportunidade que o Brasil utilizou para se desenvolver Voltando a José Carlos Reis e a seu livro se as interpretações do Brasil são os reflexos dos desafios que a sociedade brasileira enfrenta o desafio hoje é o de voltar a se constituir em nação e em retornar ao desenvolvimento Nos anos 1970 a sociedade brasileira se constituiu em sociedade civil e lutou pela liberdade e pela justiça Através da democracia a liberdade foi basicamente alcançada e alguns avanços foram realizados no campo da justiça social Mas está claro hoje que a estratégia utilizada o aumento do gasto social está esgotada já que não é mais possível continuar a aumentar a carga tributária Tornase então evidente que só se alcançará maior justiça social no Brasil se melhor distribuição de renda for lograda através do aumento dos salários e não do gasto social Os salários entretanto só acompanharão o aumento da produtividade e a renda poderá começar a ser distribuída com um pouco mais de justiça quando se esgotar a oferta ilimitada de mão de obra que caracteriza uma economia ainda subdesenvolvida como a brasileira O desenvolvimento econômico é a única maneira de atingir esse resultado Só através dele o Brasil poderá deixar de ser um país de alto desemprego e de emigração só através do desenvolvimento econômico o mercado de trabalho poderá favorecer os trabalhadores que somando a esta melhor condição sua própria luta passarão a realmente partilhar os frutos do desenvolvimento Não existe desenvolvimento sem nação e sem estratégia nacional de desenvolvimento Não existe mercado forte que favoreça a atividade econômica sem Estado forte que regule essa atividade e a torne coerente com os interesses nacionais No processo de reconstruir a nação e retomar o desenvolvimento que deve ser econômico social e político a contradição nacionaldependente deverá ser superada pelo nacional Definitivamente Não creio nada há de definitivo na vida social A sociedade brasileira está hoje profundamente confusa porque as certezas ou quase certezas neoliberais que adquiriu nos anos 1990 foram por terra mas não está claro o que poderá substituílas A confusão porém é sinal de crise e a crise uma oportunidade de repensar o Brasil uma oportunidade na qual um número cada vez maior de brasileiros está pensando Luiz Carlos BresserPereira Professor de economia e teoria política na FGV exministro da Fazenda da Administração Federal e Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia VIVAS REPRESENTAÇÕES DO BRASIL1 O problema que este livro propõe ao debate é como se deu a formação do Brasilnação Não há resposta única sistemática para esta questão Esta história pode ser relatada de muitas formas O Brasil é um país vasto complexo contraditório e extremamente dinâmico o que impede que se possa ter uma representação consensual homogênea estável de sua identidade nacional Quem somos o que fomos e o que queremos ser O que significa a afirmação sou brasileiro Qual é o conteúdo empírico dessa emoção A resposta depende do sujeito histórico brasileiro que toma a palavra Podese pensar o Brasil de múltiplos modos e todos sustentáveis com uma argumentação coerente e reconhecível Há versões do Brasil de origem senhorial burguesa proletária classe média camponesa semterra paulista mineira nordestina gaúcha negra indígena feminina gay imigrante migrante caipira urbana suburbana litorânea sertaneja oficial marginal militar civil etc A maioria delas ainda não foi formulada pois o povo brasileiro foi silenciado e não efetivamente representado na vida intelectual e política ao longo dos seus cinco séculos de vida Contudo cada um desses personagens se sente brasileiro de um modo particular e conta suas experiências de forma diferenciada por meio de festas poemas quadros músicas tradições orais Quem são os heróis da história brasileira Quais são os grandes eventos as datas mais fortes Em que direção o Brasil se encaminha Que juízo de valor elaborar sobre as experiências brasileiras Qual seria a síntese mais global que juízo sinótico se pode fazer sobre as experiências brasileiras A resposta revelará a identidade social e histórica de quem toma a palavra Há representações da identidade brasileira que são hegemônicas oficiais mas revelam apenas a força do sujeito que as articula Não falam de uma identidade brasileira em si de uma brasilidade enquanto tal essencial Quando se discutem as identidades nacionais do Brasil há discursos representações que emergem de sujeitos brasileiros particulares e que pretendem valer para todos os brasileiros Estes discursos e representações usam a história dita científica para legitimar seus interesses e paixões Imaginários mitologias ideologias e reabertura de arquivos se confundem Seria possível produzir um discurso sobre o Brasil desapaixonado científico verdadeiro Dificilmente É por isso que todas as representações do Brasil são relevantes pois juntas revelam uma ideia do Brasil complexa poliédrica uma ideia composta de ideias de projetos um polígono de múltiplas faces ao mesmo tempo opostas e interligadas em uma mesma figura Pensar o Brasil como um todo é pôr junto confrontadas contrastadas as múltiplas representações que os diversos sujeitos históricos produziram para se localizar na trajetória brasileira e escolher uma direção para a construção do futuro A identidade nacional não é uma ontologia que só seria o congelamento do passado em uma homogeneidade artificial A identidade nacional brasileira é histórica isto é reconstruída em cada presente em uma relação de recepção e recusa de passados e de abertura e fechamento aos futuros E cada brasileiro continua a reconhecer em sua diferença a identidade histórica brasileira apesar de reconstruída heterogênea contraditória plural e múltipla O Brasil é ainda um enigma Poucos autores conseguiram tocar em seus nervos e coração Talvez a literatura a poesia as artes plásticas a música tenham se aproximado mais da alma brasileira Nós escolhemos como fonte para pensar o Brasil os clássicos do pensamento histórico brasileiro Este livro procura rememorar o que já se pensou sobre o Brasil para repensar sua trajetória o que se fez o que se faz e o que faremos Ele talvez possa ser comparado a uma galeria de arte exibe alguns dos mais importantes quadros do Brasil alguns retratos pintados por seus melhores historiadores e sociólogos em datas cruciais da história brasileira São representações do Brasil que em sua diversidade e oposição recíprocas revelam uma identidade reconhecível do Brasil oferecendolhe um passado um futuro e uma localização no presente Este livro reúne oito interpretações do Brasil elaboradas ao longo dos últimos 120 anos Varnhagen 1850 Capistrano de Abreu 1900 Gilberto Freyre 1930 Sérgio Buarque de Holanda 1930 Nelson Werneck Sodré 1950 Caio Prado Jr 1960 Florestan Fernandes 1960 e Fernando Henrique Cardoso 1970 Por que oito e por que estes autores Ora e por que não Este não é considerado o panteão da historiografia brasileira É claro que estão faltando muitos outros autores mas foi preciso selecionar Este é o primeiro gesto de toda pesquisa recortar selecionar escolher construir Neste livrogaleria os quadros estão dispostos em uma certa ordem Aqui a ordem cronológica coincide com uma certa ordem lógica Uma lógica do Brasil aparece na disposição cronológica dada de 1850 a 1970 É claro estas interpretações podem ser lidas separadamente cada quadro é um quadro único e pode ser apreciado isoladamente O leitor pode estabelecer o roteiro que quiser para a sua visita pois o livro já é seu Mas se o leitor permitir o autor gostaria de dar uma sugestão ler cada interpretação separadamente não é o modo mais recomendável para se ler este livro Ele possui uma intriga virtual uma lógica interna e se lido do início ao fim tornase um romance do Brasil Cada capítulo dá continuidade aos anteriores uma continuidade indireta que só aparece no espírito do leitor O capítulo sobre FHC por exemplo que talvez chame mais a sua atenção só é plenamente compreensível se situado em relação aos anteriores ele emerge do longo e tenso debate sobre o Brasil que o precede Ele recebe sua iluminação de trás de Freyre Holanda Sodré Prado Jr e Florestan Isoladamente ele tem um sentido apenas parcial ou talvez nem tenha sentido nenhum É como se você afoito abrisse um romance policial nas últimas páginas e conhecesse logo o nome do assassino Mas ele não significa nada para você pois você não tomou conhecimento da situação do drama do alcance do problema cuja resposta você até já tem mas que não responde a nada pois não faz nenhum sentido Se você ler As identidades do Brasil do início ao fim poderá também fazer em seu espírito o caminho inverso do fim ao início o que potencializará ao máximo a inteligibilidade do Brasil que este livro quer oferecer Se você o ler assim para frente e retrospectivamente compreenderá a lógica do Brasil que a ordem sucessiva das obras por décadas pressupõe e esconde ao mesmo tempo Este livrogaleria expõe seus quadros do Brasil em duas paredes Em uma parede as teses conservadoras dos intérpretes do descobrimento do Brasil que veem o futuro do país como a melhoria do seu passado não havendo necessidade de mudança profunda ruptura revolução Esses intérpretes em vez de tomar a colonização portuguesa como um problema fazem o seu elogio Para Varnhagen nos anos 1850 fazendo uma leitura ultraconservadora lusitana do projeto de história do Brasil que Von Martius escreveu para o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 184344 o Brasil era um país brancoembranquecido monárquico cristão neoportuguês neoeuropeu centralizado no imperador em direção a um futuro grandioso O Brasil vinha de um passado de glórias e será uma nação poderosa Não havia nada a mudar Os portugueses fizeram tudo muito bemfeito O imperador Pedro II deveria fazer o mesmo que a Coroa portuguesa já fizera no período colonial O legado português era precioso e deveria ser acolhido e continuado O Brasilnação será uma continuidade do Brasilcolônia O Brasil será outro Portugal um império colonial Esse era o ideal de Varnhagen Ele olhava o Brasil com o olhar dos reis portugueses e propôs a Pedro II que continuasse a sua obra Varnhagen fez o elogio da conquista e colonização portuguesas e esperava que o Brasil não pagasse muito caro por ter em sua identidade brancoeuropeia a mancha das alteridades indígena negra e mestiça O problema é que esta alteridade reunia quase 90 da população do tal império colonial A própria população brasileira deveria ser excluída ou então embranquecida para ser integrada a essa autoritaríssima identidade imperial Seguindo esta mesma orientação conservadora ou seja do elogio da conquista e colonização portuguesas para Gilberto Freyre o Brasil era o único país do mundo em que a democracia racial se realizou era um país culturalmente miscigenado democrático livre sem ódios raciais ou sociais que vivia em um tempo tranquilo sem pressa feliz O Brasil era o maior feito da colonização portuguesa que foi eficiente competente democrática e por isso inesquecível O país deveria continuar a se mirar no espelho da ação colonial dos portugueses para produzir o seu futuro pois aqueles foram superiores inexcedíveis na conquista e colonização dos trópicos Freyre reconstruiu o Brasil colonial em cores vivas brilhantes integrando negros e índios no mundo profundamente democrático que o português criou nos trópicos O Brasil era moreno sim e a miscigenação não tornou o brasileiro uma subraça mas criou o tipo físico ideal para os trópicos Entretanto apesar de ser politicamente muito conservador um descobridor do Brasil Gilberto Freyre tornouse um interlocutor eterno seja para ser atacado seja para ser admirado Os historiadores atuais transformam parágrafos seus em pesquisas essenciais sobre o Brasil Toda discussão atual sobre o escravismo nas Américas a vida familiar afetiva e sexual a infância as culturas indígena e negra e a religiosidade colonial precisa levar em consideração suas teses Sua obra é um seminal work da história cultural Casagrande senzala é uma catedral do pensamento histórico brasileiro Em outra parede as teses revolucionárias sustentam que no futuro o Brasil deverá romper seja acelerada seja gradualmente com a herança colonial ibérica e buscando conhecer seus próprios ritmos mudar profundamente a estrutura econômicosocialmentalpolítica que herdou do passado Os redescobridores do Brasil problematizam a conquista e colonização portuguesas e as veem como o grande mal a ser superado Capistrano de Abreu foi um dos primeiros a enfatizar a recusa do nosso passado colonial e a propor o redescobrimento do Brasil Para ele o Brasil desde o início do período colonial quis romper com o domínio português A rebelião brasileira o descontentamento com a dominação portuguesa teria existido desde a fundação de Piratininga atual São Paulo desde os primeiros bandeirantes e cresceu e se fortaleceu nos sertões Uma genuína identidade brasileira formouse ao longo do período colonial pelos rios e caminhos de gado que levaram os brasileiros ao Brasil mais profundo para longe do rei e da sua espoliação fiscal distante do litoral e da sua administração O brasileiro formou e reconheceu sua identidade opondose aos invasores reinóis e aos seus interesses Desde o início da colonização os brasileiros foram conquistando o sertão e foram se consolidando seu sentimento e projeto de fundar uma nação autônoma independente soberana Sérgio Buarque de Holanda dará continuidade a este redescobrimento do Brasil Para Holanda o país tinha se alimentado de valores e ideias que não lhe eram adequados O modo de ação dos portugueses foi eficaz para os portugueses que só queriam se apoderar das nossas riquezas e arruinar nosso território Ao contrário aqui os brasileiros querem fundar uma nação e para isso deverão reconhecer os ritmos particulares dos tempos brasileiros e produzir uma representação adequada do Brasil criar valores e instituições que o façam funcionar O Brasil precisa romper com o seu passado colonial superar as suas raízes ibéricas e criar um projeto próprio de sociedade moderna realmente democrática O futuro nacional democrático livre e soberano deverá ser o oposto do que foi o passado colonial Raízes do Brasil é ainda extremamente atual e profundamente revolucionário Sérgio Buarque por descrever de forma mais evasiva a revolução brasileira sem definir claramente sujeitos datas e limites criou uma obra menos datada Ele deu ênfase aos novos valores que conduziriam os brasileiros na fundação da sua nação Defendeu valores que atendiam às exigências de liberais utópicos e socialistas racionalidade na administração pública separação nítida entre o público e o privado a lei contra o privilégio a integração da população excluída à cidadania a superação de nossas raízes ibéricas mas não de forma mecânica e autoritária O Brasil deverá encontrar seu próprio estilo de autoorganização preservando superando suas raízes ibéricas Raízes do Brasil é outro templo do pensamento históricosociológico brasileiro Sérgio Buarque de Holanda é atualíssimo pois nos anos 1930 defendeu a ordem democrática no auge do sucesso dos diversos projetos autoritários Com as interpretações marxistas a partir de 1950 sobretudo com as teses do PCB formuladas entre outros por Nelson Werneck Sodré a revolução brasileira era iminente A população brasileira oprimida e escravizada queria a mudança rápida acelerada contra um passado de conquista e espoliação O futuro será uma produção das classes oprimidas e não mais das elites lusobrasileiras Para Sodré os brasileiros sonhavam com uma produção de riquezas voltada para dentro sonhavam com o socialismo e com a ruptura com o imperialismo Desejavam um país soberano produtivo e socialista O povo unido jamais seria vencido incluindo a burguesia nacional e romperia com o passado agráriofeudal que oprimia de dentro e com o presente imperialista que oprimia de fora E para chegar a este fim emancipador era preciso não só tolerar mas utilizar os meios autoritários Entretanto Caio Prado Jr veio dar um choque de realidade nesse sonho revolucionário Com ele começamos a perceber os limites estruturais dessa mudança profunda Para ele a revolução brasileira precisava ser redefinida em termos brasileiros considerando as especificidades da realidade brasileira o seu cristalizado presentepassado Não se podia realizála aplicando ao Brasil receitas feitas para funcionar em outros lugares O sonho continuava o mesmo democracia política a distribuição justa da riqueza a autonomia nacional Mas a dependência insuperável condenava o país ao subdesenvolvimento como romper com a dependência e promover o desenvolvimento com autonomia nacional Eis a questão das esquerdas nos anos 195060 e atuais Como produzir a mudança em uma realidade dependente estruturada de modo quase inquebrável Para Florestan Fernandes a mudança exigia uma competente análise históricosociológica científica do passadopresente do Brasil Não se muda a golpes de teoriaficção Mudar é um trabalho difícil que envolve teoria adequada e ação eficiente e não se faz apenas com sentimentos nacionalistas sinceros Era preciso tomar conhecimento da realidade de sua história na qual predominava a continuidade e reconhecer os limites e margens da mudança A mudança significaria democracia política participação popular crescimento econômico e soberania nacional Contudo o impasse parecia insuperável a soberania nacional seria compatível com a dependência duradoura e inquebrável Fernando Henrique Cardoso o sociólogo dos anos 1970 pretendeu dar uma solução a este enigma ao sugerir um novo caminho para as esquerdas Para ele o problema maior era o conceito de soberania nacional das esquerdas que precisava ser redefinido A soberania nacional não podia ser definida abstratamente Era preciso vêla como formas históricas diferenciadas dependendo do que decidiam as elites no poder em cada país e em cada presente No Brasil ela não significou ruptura com a dependência nem isolamento do país mas negociação das elites internas quanto à sua margem de decisão em relação às forças externas Uma elite competente poderia produzir o desenvolvimento mesmo na dependência A ruptura com o externo não era condição essencial ao desenvolvimento pelo contrário seria preciso atrair os capitais externos e tornálos mobilizadores das energias brasileiras A solução para o crescimento econômico associado à democracia política e à distribuição justa da riqueza seria a internacionalização do mercado interno a abertura do Brasil ao mundo e não seu afastamento e isolamento O Brasil deveria se integrar mais ainda e não romper com o capitalismo Dependência para Fernando Henrique Cardoso não queria dizer necessariamente submissão mas articulação interação negociação integração E sobretudo desenvolvimento Qual país o mais soberano não é dependente FHC de certa forma antecipava a tese de Francis Fukuyama sobre o fim da história a democracia liberal derrotou historicamente os projetos concorrentes os fascismos e comunismos e não só militarmente pois foi o único modelo de organização social que conseguiu produzir sociedades ricas e democráticas O problema do Brasil portanto não era a exploração capitalista mas a falta de maiores investimentos de capitais na estrutura produtiva interna o que exigiria não a nossa resistência mas a nossa capacidade de uma máxima integração ao capitalismo global Comentando a Visita ao Livrogaleria Eis aí algumas ideias do Brasil que continuam muito vivas fazendo a história do Brasil Esses retratos do Brasil não estão pendurados em uma parede externa exterior aos brasileiros Eles estão nas paredes da nossa memória e nas paredes da nossa vida cotidiana Eles definem as relações de cada brasileiro com o Estado os negros os índios as mulheres os filhos a religião o passado o futuro o trabalho o capital a arte a ciência a tecnologia o estrangeiro a América Latina os EUA a Europa o rural o urbano o litoral o sertão a República o Império a guerra a paz a opressão a utopia E sobretudo de cada brasileiro consigo mesmo Eles estão infiltrados na vida escolar familiar política cultural religiosa empresarial sindical afetiva Na vida pessoal e social Eles orientam a ação a avaliação do passado do presente e do futuro Eles sustentam e formulam os valores brasileiros pois emergiram dos diversos sujeitos históricos brasileiros e constroem e representam suas diversas identidades Dessas interpretações as que tiveram mais influência sobre a realidade brasileira foram as de Varnhagen e de Freyre que são as das elites A de Varnhagen é ainda hoje ensinada na escola fundamental heróis lusobrasileiros brancos guerras contra índios e negros e invasores estrangeiros o elogio da conquista da escravidão do Brasil grande potência outro Portugal Até hoje esta representação do Brasil é viva e forte Freyre representou um abrandamento dessa interpretação ao aceitar a presença negra ao recusar o branqueamento e admitir a morenidade brasileira Freyre tornouse cartilha das elites pós1945 foi distribuído em quadrinhos e santinhos na escola fundamental depois de 1964 Freyre renovou e revigorou Varnhagen As elites ganharam um perfil simpático democrático brando afável para continuar dominando A rebelião brasileira contra estas elites de Varnhagen e Freyre começou com a interpretação nacionalista mais democrática e emancipacionista mais próxima dos ideais republicanos que é a de Capistrano de Abreu Capistrano foi um dos primeiros autores a dar ênfase à rebelião brasileira contra o autoritarismo da Coroa portuguesa Ele inaugurou uma corrente de interpretação do Brasil antielitista antiescravista Ele representou os exaltados e jacobinos da República Mais tarde as diversas interpretações apoiadas nas análises marxistas da luta de classes radicalizaram o espírito rebelde de Capistrano e influenciaram os diferentes grupos de esquerda em épocas diferentes Mas nenhuma delas venceu Vencerá alguma um dia Por que falharam as interpretações revolucionárias As teses revolucionárias falharam talvez por excesso de voluntarismo idealismo utopismo mimetismo cultural elitismo e pouca análise sóciohistórica concreta As esquerdas mantinham um certo estilo autoritário que era também o das elites Eram múltiplos os grupos de esquerda e eles não se entendiam Falavam mal ouviam mal analisavam mal e se organizavam pior Talvez a mudança devesse começar por aí se ainda houvesse partidos de esquerda no Brasil Entretanto curiosamente apareceu uma tese revolucionária pelo menos era vista assim nos anos 1970 que venceu A teoria da dependência que significou a opção pela produção da mudança ainda no interior da estrutura capitalista internacional a opção pela tomada do Estado pelo voto e sua aproximação da sociedade a opção pela abertura do mercado interno aos investimentos externos e não a sua proteção ou isolamento a opção pelo diálogo com o passado não sem tensões e não pela ruptura acelerada e violenta em tese tomou o poder Depois da derrota de 1964 as esquerdas se perguntavam o que fazer Uns preferiram as armas outro fazer a mudança dentro da ordem burguesa autoritária Esta segunda opção quem a formulou teoricamente e no interior das esquerdas e a testou no poder foi o sociólogo Fernando Henrique FHC Cardoso junto com o chileno Enzo Falleto Seu projeto de produção da mudança era brando reconhecia o passado incrustado no presente admitia o capital externo mergulhado no interior do processo produtivo interno reconhecia as regras do jogo parlamentar como dados estruturais Para ele a opção que sobrava às esquerdas era a de negociar mudanças conjunturais e pontuais O passado era ainda muito forte e a burguesia externa era voraz e asfixiava as forças internas mas o caminho possível era negociar posições vantajosas dentro da estrutura capitalista internacional Contudo seria possível negociar mudanças com poderes tão fortes inabaláveis E determinados até a crueldade na defesa dos seus interesses As antigas esquerdas não acreditavam nessa possibilidade preferiam a radicalização a aceleração da mudança com o uso da força da moratória do isolamento Não era este o projeto de Fernando Henrique Cardoso e nem é mais o do próprio PT que vieram das esquerdas e se querem de esquerda mas se renderam à nova ordem neoliberal A interpretação do Brasil que foi mais caricaturada pelos críticos e considerada um equívoco um delírio total foi a de Sodré que era a do PCB entre 1922 e 1964 e que parece viva até hoje no interior dos remanescentes grupos dos exPCs Sodré sonhava com a emancipação nacional total que seria feita pela aliança da burguesia nacional com o proletariado e o campesinato contra as forças do atraso o latifúndio feudal aliado ao imperialismo e à burguesia mercantil A revolução democráticoburguesa teria a burguesia nacional na liderança pois democrática e nacionalista Seus críticos acharam isto um delírio mas os estudantes de historiografia brasileira os que ainda não foram dominados pela chamada história cultural a discutem com entusiasmo e devoção Eles parecem ter saudade do discurso nacionalista revolucionário e querem ainda dar um pau linguagem deles no imperialismo Afinal os críticos são justos quando se referem à interpretação nacional burguesa dos anos 1950 ou a deturpam e a manipulam É um debate aberto uns a consideram plausível acham que era adequada sim aos anos 1950 outros a veem como um equívoco teórico total um delírio uma perigosa teoriaficção do Brasil As outras interpretações não foram deturpadas ou manipuladas pois vieram inequivocamente de sujeitos históricos precisos Talvez Freyre permita uma leitura revolucionária apesar de ter sido apropriado pela direita Seu pensamento é complexo Freyre é um autoresfinge indecifrável impossível de ser posto em termos transparentes É contestável e tão admirável é impreciso e tão genial é conservador e tão revolucionário Os próprios intérpretes e os sujeitos históricos que se apossaram de suas interpretações se deturparam e se manipularam reciprocamente para se legitimar E é claro quando os sujeitos históricos escolhem decidem agem eles manipulam os outros sujeitos que vão sofrer sua escolha e ação impondo lhes sua visão do Brasil como a única possibilidade de interpretálo Para não sofrer esta manipulação é necessário conhecer os vários modos e sentidos em que o Brasil pôde ser representado O cidadão brasileiro então se localiza e descobre com quais sujeitos com que interesses e projetos está lidando e se sentirá capaz de formular seu próprio interesse e projeto tornandoo para si e tomando uma posição de sujeito Para Hegel o ponto mais alto do desenvolvimento de um povo é a consciência racional de sua vida e da sua condição Nessa unidade íntima da realidade objetiva com a autoconsciência o espírito do povo consegue integrarse e estar consigo mesmo Ele se tem como objeto ao pensar em si e tornase para si Os gregos tiveram esta representação geral de sua vida nas obras de Sófocles Tucídides Platão e muitos outros Nestes indivíduos o espírito grego apreendiase em pensamento e esta era a sua mais profunda satisfação As narrativas em que o espírito de um povo se apreende têm um caráter sintético sinótico Na síntese a compreensão narrativa é obtida por meio de conexões pela articulação de acontecimentos vividos separadamente em uma totalidade Uma visão global das experiências vividas por este povo é apreendida num ato de juízo que põe juntos os acontecimentos heterogêneos Essa visão global é um juízo reflexivo O pensamento histórico é um juízo sinótico A narrativa histórica realiza uma síntese compreensiva feita após a ocorrência dos eventos e oferece uma máxima visão sintética quando após a sua leitura se retorna reflexivamente do fim ao início em uma inteligibilidade retrospectiva As narrativas são retomadas e refeitas incessantemente e à medida que são articuladas produzem uma síntese profunda no espírito do povonação que passa a ter uma imagem de si e se reconhece Para nós podese potencializar ainda mais a inteligibilidade da experiência histórica reunindo pondo juntas em um mesmo volume narrativas feitas em épocas diferentes por narradores que partiram de pontos de vista diversos e em conflito Obtémse assim um juízo sinótico uma síntese uma visão global construída com várias sínteses uma síntese de sínteses Este livro quer servir assim à formação da cidadania brasileira ao revelar um polígono de visões do Brasil que orientam as opções e ações dos diferentes sujeitos brasileiros Ele interessa a todo brasileiro capaz de ler aos estudantes e profissionais de história e das diversas ciências humanas e sociais da filosofia e da literatura aos múltiplos profissionais liberais que se interessam em pensar e discutir o Brasil E não só a estes setores médios digamos assim mas a todos os brasileiros de todas as áreas que se interessem em pensar e repensar o Brasil Ele foi redigido de forma clara e densa para ser acessível a todos os portadores das diversas identidades brasileiras Estes intérpretes do Brasil entre outras coisas disseram do brasileiro é mestiço doente racialmente inferior e incapaz de fazer a história um jecatatu é um mestiço eugênico democrático feliz com uma vida tropical exuberante é proletário e camponês em luta pela reconquista do território e da sociedade que o oprime e exclui é um homem cordial afetivo familiar incapaz de se submeter a hierarquias e de se associar por motivos racionais é um homem triste melancólico que perdeu todas as suas energias em excessos sexuais é um mameluco rejeitado pelos pais brancos que não o reconhecem como descendente e pela tribo da mãe que só valoriza a ascendência paterna é um subdesenvolvido espoliado pelos países centrais através de trocas econômicas desiguais que o condenam eternamente ao subdesenvolvimento Somos um povo vencido Aos que insistem em dizer que Deus é brasileiro o filho de Sérgio Buarque de Holanda respondeu enfático Deus me fez um cara fraco desdentado e feio pele e osso simplesmente quase sem recheio Deus achou muito engraçado me deixar cabreiro na barriga da miséria nasci brasileiro É claro esta descrição não assenta nas mulheres brasileiras que são maravilhosas garotas de Ipanema Iaras Iracemas excelentes produtos para fomentar o turismo e a exportação sexual Ou será um imperdoável exagero O exagero é uma estratégia cognitiva das ciências humanas Weber afirmava que a função do historiadorsociólogo é exagerar Enfim o brasileiro foi abordado de múltiplos modos pelos seus mais ilustres intérpretes cada um mais exagerado do que outro Veja ainda o que disseram os intérpretes do Brasil do livrogaleria 2 Pedro Calmon Afonso Arinos Oliveira Vianna e Manoel Bomfim2 Eles estão falando de nós de você e de mim Você se identifica com alguma das descrições que fizeram de nós Para você abrindo as cortinas do passado a história brasileira seria motivo de ódio ou de ode você a amaldiçoaria ou a cantaria em seus versos Como você se representaria então INTRODUÇÃO À 9a EDIÇÃO No Brasil quando um livro que não é romance nem é de autoajuda chega a sucessivas edições já tem demonstrado o seu mérito Tem um público que não é estritamente acadêmico alcançando portanto aquele tipo de leitor genericamente identificado como cidadão médio beminformado No caso de As identidades do Brasil este cidadão médio é o brasileiro letrado cada vez mais desejoso de entender o enigma representado pelo seu próprio país que avança em tantos aspectos sem sair do lugar em outros justificando a tese defendida por José Carlos Reis a decifração do que é o Brasil como sociedade e como forma de civilização pede uma visão poliédrica ou seja a iluminação de diferentes princípios constitutivos desta formação social que não se explica por uma lógica de formação única e coerente A contribuição essencial deste livro é justamente focalizar o desafio da compreensão do Brasil para os brasileiros a partir de diferentes visões que pensadores brasileiros propuseram em momentos históricos distintos como referência para o diagnóstico do que é o país como construção de um povo e de uma economia A meu ver o sucesso editorial de As identidades do Brasil pode ser explicado por duas razões Por um lado colocou o debate sobre o sentido histórico do país na perspectiva propriamente ideológica que julga o percurso das instituições e da cultura pelo prisma de sua positividade ou negatividade para o grande projeto liberal e progressista de realização da modernidade Por outro ao selecionar pensadores tidos como relevantes para entender o enigma do Brasil destacou de modo muito inovador e perspicaz o que cada ângulo do poliedro interpretativo pode oferecer para a compreensão abrangente do país tanto na sua formação como sociedade quanto na dimensão propriamente política que teve a ver com a constituição do Estado e com o processo de internalização do capitalismo José Carlos Reis contrapõe para a apreciação crítica do leitor pensadores que se distinguem por terem destacado diferentes princípios fundacionais da civilização brasileira o que tem consequências para a visão do que é positivo ou negativo na constituição do país como unidade histórica Escolheu apresentar primeiro pensadores que valorizaram a ação colonizadora dos portugueses quer como construtores de impérios Varnhagen quer como instauradores de um povo novo e de uma nova forma de civilização a civilização dos trópicos Gilberto Freyre Como contraponto à visão positiva do passado colonial introduz a tese da herança maldita que vê nas orientações administrativas e éticas do colonizador português que persistiram nas instituições e formas de relações sociais do período nacional o empecilho que retarda no limite impede o advento da modernidade realizada na mentalidade secularizada competitiva consumista do cidadão que é próprio da ordem liberal congruente com a sociedade de mercado Sérgio Buarque de Holanda Está aí apresentada a abordagem culturalista que força o leitor de José Carlos Reis a refletir sobre os valores éticos e morais que fundamentam as instituições sociais e políticas brasileiras e o levam a pensar sobre o sentido do liberalismo e da democracia na construção de uma sociedade marcada pelas contradições da democracia racial e pela crença persistente na eficácia das relações de favor e do compadrio que é parte do universo mental do homem cordial este neoportuguês que não tem vocação nem motivação para implantar a ordem racionallegal própria das sociedades completamente modernas Para descortinar outro tipo de olhar sobre o Brasil José Carlos Reis escolheu apresentar a inovação que foi para a interpretação da história do país a recepção do marxismo a partir da qual se buscou testar em que medida esta história repetia a de outros países e sociedades berços do capitalismo originário Na perspectiva da história das ideias o leitor é levado a acompanhar tanto as mudanças estruturais que ocorrem no país desde o início da fase nacional quanto o reflexo de tais mudanças no campo interpretativo construído com as categorias analíticas do materialismo histórico Acompanha o processo de refinamento intelectual que evolui desde o determinismo das explicações de Nelson Werneck Sodré passando pela sofisticada tese da revolução burguesa no Brasil como um complexo processo de mudanças institucionais e de mentalidades concebida por Florestan Fernandes até a novidade latinoamericana da teoria da dependência formulada por Fernando Henrique Cardoso discípulo de Florestan Fernandes com a colaboração do chileno Enzo Faletto Três gerações de marxistas destaca José Carlos Reis tratando de mostrar como variou ao longo do século XX o modo de os intelectuais introduzirem e explorarem a abordagem institucionalistaestruturalista na interpretação do Brasil para demonstrar quer a positividade quer a negatividade do capitalismo dependenteperiférico como contexto de efetivação da transformação de um povo novo mas atrasadosubdesenvolvido em sociedade moderna Aprofundando a análise sobre a apropriação do marxismo por pensadores brasileiros José Carlos Reis ressaltou o impacto do marxismo dogmático na formação da esquerda nacional Chamou Caio Prado Jr ao debate não como historiador da evolução econômica do Brasil mas como crítico de uma visão partidária da crise institucional que resultou no fim do regime de 1946 visão esta que pelos seus equívocos teria levado os esquerdistas brasileiros a análises e estratégias políticas destituídas de realismo do que resultou o fechamento da opção de uma solução reformista mais liberal da crise da ordem capitalista no Brasil do pósguerra Nesta perspectiva Caio Prado Jr é apresentado como um analista inteligente da política brasileira não vendo na forma como se configuram as forças sociais e os conflitos em que se envolvem condições para uma revolução nacionalburguesa menos ainda para uma revolução socialista Na visão de José Carlos Reis Caio Prado Jr impõe a dura reflexão sobre os caminhos possíveis para a transformação do Brasil capitalista em uma sociedade mais igualitária e mais justa dado que o caminho revolucionário não existe no país como possibilidade real Se há lugar para relativo otimismo sobre o futuro do Brasil entre os culturalistas tal atitude fica muito mais difícil quando o ângulo destacado do poliedro inclui a reflexão sobre as desigualdades sociais como resultado de determinações estruturais da economia extremamente resistentes à mudança inercial que resultasse por exemplo do aumento da escolaridade ou da diminuição dos traços arcaicos da vida social como o familismo Passase da tese da necessidade e inevitabilidade da revolução social e política como única forma de redenção do povo brasileiro à da melhoria social que pode provir da liderança política inteligente que por meio de governo liberaldemocrático eficiente apoiado no dinamismo do mercado promova o progresso nacional Como resultado os brasileiros adquirirão as qualidades próprias do homem moderno e se comportarão cada vez mais como cidadãos esclarecidos Nesta forma de ver o Brasil e seus problemas fica muito distante a visão culturalista do povo lúdico que não se relaciona por meio de hierarquias rígidas que aceita a autoridade de modo leve porque pode passar acima ou ao largo dela em muitas circunstâncias No entanto podese perguntar o que há de coesão social numa sociedade tão desigual como a brasileira resultado do modo de internalização do capitalismo posto em prática por elites que se pretendem esclarecidas no controle do Estado não seria justamente resultado deste modo de ser dos brasileiros dessa persistência dos traços neoportugueses na cultura nacional Se o Brasil pode ser visto assim isto é como resultante da colonização portuguesa e do avanço dependente incompleto periférico do capitalismo nacional então José Carlos Reis está mais que coberto de razão ao provocar o debate sobre o elemento propriamente ideológico que permeia a escolha do ângulo a partir do qual explicar a identidade do Brasil É muito rica a tese da qual parte na empreitada de exploração das várias visões sobre esta identidade que pode ser assim resumida o Brasil não se explica por um princípio só não se resolve numa equação simples mas se nos dedicarmos a entender as razões e os contextos em que cada grande pensador do Brasil selecionou o princípio para falar do que é faltoso ou do que é promissor então será possível ter uma visão completa do que é o Brasil como ideal e como realidade histórica As identidades do Brasil valoriza o ensaísmo como forma de produção de conhecimento especialmente válida para fundamentar o debate sobre os projetos de nação que se confrontam no plano das opções políticas e que se realizam por meio das escolhas e decisões das elites dirigentes do país Nessa perspectiva o livro não é obra puramente acadêmica já que expressa uma visão do autor relativa ao universo intelectual que faz sentido desvendar quando se trata de pensar o resultado prático de concepções ideológicas na formação e conformação de um povo como moderno Estado nacional A separação dos pensadores entre os que descobrem e os que redescobrem o Brasil constitui recurso heurístico que permite a José Carlos Reis ressaltar a diferença que existe entre dois olhares o do pensador que está interessado em apreender o que houve de único e de inovador numa portentosa empreitada civilizatória e o do pensador que prefere destacar as constrições que se impuseram a tal empreitada dado que esta ocorre num universo de determinações econômicas e culturais já existentes e consolidadas como modelos institucionais e éticos superiores ou mais avançados ou mais modernos Escolhida a abordagem fica o pensador obrigado a tirar de sua interpretação os elementos de avaliação sobre o resultado da empreitada olhada em algum momento de sua evolução Os descobridores do Brasil a veem sob uma ótica positiva mesmo identificando pontos negativos Varnhagen preferiria que a grande construção dos portugueses no Brasil não tivesse sido manchada com a importação de africanos Gilberto Freyre preferiria que a civilização tropical não tivesse dado origem à pobreza da qual proveio a desnutrição e tantas doenças terríveis que enfraqueceram e enfearam parte da população brasileira Já os redescobridores do Brasil avaliaram a herança colonial como fardo a ser descartado a fim de que o país se liberte para um futuro moderno Sob este olhar o futuro não é necessariamente promissor e otimista pois pode exigir transformações dolorosas para se impor uma revolução no limite extremo mas não a revolução passiva de que fala Luís Werneck Vianna ou a decisão de aceitar posição secundária complementar no grande cenário externo dos paísespotência conforme propõe a opção do desenvolvimento dependente Em qualquer perspectiva o Brasil continua a colocar aos brasileiros a dramática pergunta qual é a identidade que deve valer para conduzir as escolhas políticas para fixar os termos de um projeto de nação Pergunta que não se esgota no tempo que ainda é tão pertinente hoje quando se discutem uma política de cotas para negros em instituições diversas e o quanto da lógica do mercado deve sobreporse às responsabilidades sociais do Estado quanto o foi no início do século XX quando se debatiam o recrutamento militar obrigatório como forma de melhorar a qualidade física e educacional dos jovens brasileiros pobres e a necessidade de um projeto de industrialização para diminuir a vulnerabilidade do país praticamente sustentado pela exportação de um produto de sobremesa como se referiu Celso Furtado ao café ao tratar da drástica queda da receita nacional durante a I Guerra Mundial e nos anos que se seguiram à grande crise de 1929 O leitor atento vai concluir que José Carlos Reis não quer resolver o enigma do Brasil simplesmente por meio da dicotomia entre descobridores e redescobridores do Brasil pois deu um passo metodológico interessante e arriscado ao introduzir entre os redescobridores um estudioso dos processos históricos de ocupação territorial do país que deram origem a tipos sociais especificamente brasileiros o caboclo o gaúcho o homem do interior De fato ao incluir Capistrano de Abreu na sua lista de intérpretes do Brasil José Carlos Reis destaca o tipo de estudo que busca revelar o modo concreto de constituição das formas de vida econômica e social que focaliza o olhar sobre o homem comum cujas soluções para os desafios práticos enfrentados dão origem a padrões culturais diferenciados compondo um mosaico variado da vida nacional no limite a alma nacional nas suas múltiplas expressões Deste tipo de olhar podem emergir visões críticas ou ufanistas mas é dele que provém a possibilidade de interpretar um país como identidade coletiva que não se resume às fronteiras definidas politicamente ou ao conjunto das instituições formais Para Capistrano o brasileiro verdadeiro é o homem do interior não é o citadino amoldado pelo português que ficou nas cidades do litoral apegado às mordomias sustentadas pela receita da agroexportação Para ele então o Brasil do início do século XX ainda era um projeto muito inconcluso de ocupação da terra e de exploração de suas potencialidades Esta exploração não resultaria de imposições ou induções políticas mas de certo espírito de aventura que não era no entanto o ianquismo dos ideólogos do pioneirismo paulista Capistrano é um ensaísta um crítico do padrão da colonização portuguesa ou um estudioso dos modos de desbravamento de territórios amplos abertos ainda à conquista por parte de indivíduos simultaneamente aventureiros e sedentários pois desejosos de se fixarem numa terra sua Este Brasil que podia ser conquistado independentemente da indução portuguesa pode ser visto como o Brasil dos paulistas que se opuseram aos portugueses e deram origem a formas mais autônomas de exploração das riquezas do país Este é o Brasil verdadeiro o que procurou escapar da exploração imperialista e das limitações do domínio colonial Na perspectiva de outros pensadores do Brasil como projeto nacional que são Olavo Bilac e Manoel Bomfim o Brasil são todas as regiões todos os tipos sociais e todas as culturas que o compõem de norte a sul lição que procuraram levar para as crianças brasileiras com o encantador Através do Brasil de 1910 Eis então as razões do sucesso e da perenidade deste livro de José Carlos Reis é uma seleção instigante de pensadores do Brasil apresentados de modo inteligente que por causa da competência do autor na exploração de suas teses e ideias induzem o leitor a refletir sobre a identidade do país e sobre sua própria identidade como brasileiro Boa notícia para todos os leitores de As identidades do Brasil é a publicação de As identidades do Brasil 2 também pela Editora FGV Nela se acharão mais elementos para o aprofundamento da reflexão sobre o complexo amalgamento de nosso passado e nosso futuro de nossas condições materiais e culturais de nossa unidade e de nossa diversidade Vera Alice Cardoso Silva Professora titular do Departamento de Ciência Política da UFMG doutora em história pela Universidade de Illinois UrbanaChampaign EUA INTRODUÇÃO1 Os historiadores reescrevem continuamente a história E o fazem talvez por duas razões principais Em primeiro lugar pela especificidade mesma do objeto do conhecimento histórico os homens e as sociedades humanas no tempo O sentido dos processos e eventos humanos que são temporais não é conhecível imediatamente Os homens e as sociedades humanas por serem temporais não permitem um conhecimento imediato total absoluto e definitivo A história só se torna visível e apreensível com a sucessão temporal A reescrita contínua da história tornase então uma necessidade Os contemporâneos estão imersos no tempo vivido e têm dificuldade para ascender a um tempo pensado à reflexão sobre o seu próprio vivido A história não é transparente e não se deixa interpretar imediatamente enquanto é vivida embora o contemporâneo não esteja impedido de fazer reflexões imediatas ainda em seu tempo quente No entanto o olhar do contemporâneo se deixa iludir pelo brilho e barulho de personalidades gestos ações e discursos É somente com algum distanciamento apenas no final do dia vivido que o seu sentido pode ser interpretado O passado é o dia vivido o presente é a noite reflexão O presente é ambíguo em relação a si próprio é sonhador noturno em relação ao passado assume uma posição reflexiva interrogadora procurando lançar indiretamente luzes sobre ele próprio O passado é uma referência de realidade sem a qual o presente é pura irreflexão Assim o historiador é também um pássaro de minerva passa a noite reexaminando o dia Por outro lado não tem certeza de que pode conhecer o passadodia pois a noitepresente em que ele está é o lugar do sonho Ao tematizar o dia ele o conhece ou o imagina Sempre estará dominado por essa dúvida Talvez seja exagerado afirmar com a tradição que quanto mais afastado no tempo o historiador se encontra mais vasta e profunda é a sua percepção do passado Mas esta não é uma tese sem peso teórico É do alto da montanha é dos ombros do gigantetempo que se contempla um horizonte mais amplo Na verdade é de madrugada tarde da noite que o dia anterior é melhor pensado e organizado e também imaginado Algumas possibilidades objetivas são consideradas para uma melhor compreensão do que de fato se passou E se tivesse sido diferente O tempo não se revela de uma só vez portanto O sentido dos eventos não é conhecível enquanto eles ocorrem A história é sucessão processual os acontecimentos emergem submergem explodem adormecem dependendo do seu ritmo próprio O evento pode ser anódino no presente e ser decisivo no futuro o que era secundário e nem percebido pelo contemporâneo emerge no futuro com grande importância o que era visível e importantíssimo vai perdendo eficácia histórica com o passar do tempo As obras históricas são também históricas temporais e têm uma duração determinada que às vezes é bem curta Elas envelhecem e exigem uma revisão uma reelaboração uma reescritura Schaff 1978 Para Koselleck conhecer um mundo histórico é responder a esta questão maior como em cada presente as dimensões temporais do passado e do futuro foram postas em relação Para ele se se determina em um presente a diferença entre passado e futuro entre campo da experiência e horizonte de espera tornase possível apreender alguma coisa que seria chamada de tempo histórico Quem realiza esta operação cognitiva é a história que torna visível e dizível a experiência temporal A história é a reconstrução narrativa conceitual e documental em um presente da assimetria entre passado e futuro Passado e futuro reenviamse um ao outro e são assimétricos diferentes e esta sua relação é que dá sentido à ideia de temporalização O presente muda e nesta sua mudança o passado e o futuro são constantemente rearticulados obrigando à reescrita da história Na experiência individual por exemplo o envelhecimento modifica a relação entre espera e experiência Quando se é mais jovem ou mais velho o passado e o futuro significam diferentemente e sua relação se altera Assim também na experiência históricosocial As sociedades existem em uma data determinada e ao historiador interessa conhecer a sua idade interna ou seja a relação que em seu presente que muda sempre cada sociedade estabelece com o seu passado e o seu futuro Koselleck 1990 Dominada pela temporalização portanto a imagem da história vivida muda constantemente como em um holograma Os acontecimentos históricos exigem a sucessão precisam do tempo para revelar o seu sentido A sensibilidade historiadora se ancora no tempo na interrelação sempre mutante entre passado presente e futuro As mudanças no processo histórico alteram as interpretações da história Toda interpretação que é uma atribuição de sentido ao vivido se assenta sobre um mirante temporal um ponto de vista em um presente vêse a partir de um lugar social e um tempo específicos O desdobramento do tempo pode mudar a qualidade da história interpretações inovadoras emergem com a sua passagem Não há um passado fixo idêntico a ser esgotado pela história As esperas futuras e vivências presentes alteram a compreensão do passado Cada geração em seu presente específico une passado e presente de maneira original elaborando uma visão particular do processo histórico O presente exige a reinterpretação do passado para se representar se localizar e projetar o seu futuro Cada presente seleciona um passado que deseja e lhe interessa conhecer A história é necessariamente escrita e reescrita a partir das posições do presente lugar da problemática da pesquisa e do sujeito que a realiza Febvre considera que a função social da história é organizar o passado em função do presente Febvre 1992 Um novo olhar sobre o passado e o futuro se elabora sob as pressões do presente vivido A partir do presente a visão do passado se altera e age sobre a visão e a produção do futuro Em segundo lugar a história é reescrita porque o conhecimento histórico muda acompanhando as mudanças da história Novas fontes novas técnicas novos conceitos e teorias novos pontos de vista levam à reavaliação do passado e das suas interpretações estabelecidas Há uma transposição para essa nova linguagem do patrimônio do passado O passado é então repensado e ressignificado de forma renovada e fecunda Além disso dessas razões teóricas e técnicas aparecem novos historiadores indivíduos talentosos formados na leitura dos clássicos e na história presente que formulam novas questões ou reformulam questões clássicas oferecendolhes respostas surpreendentes que influenciarão a representação que a sociedade em que vivem tem dela própria e do seu passado Novos historiadores ligados organicamente a novos sujeitos históricos reinterpretam a história segundo as suas necessidades e a sua forma particular de relacionar o passado e o futuro Schaff 1978 As novas questões apoiadas em uma teoria e metodologia renovadas e em grupos sociais e intelectuais inovadores alteram as relações das dimensões temporais entre elas Uns historiadores articulam as dimensões temporais enfatizando o passado outros o futuro outros ainda o presente Criamse visões da história regressivas conservadoras e modernizadoras A renovação teóricometodológica não abole o condicionamento da produção histórica em um presente e lugar social Não cria um efeito de neutralidade imparcialidade que aboliria a condição temporal do objeto e da pesquisa com o seu sujeito Para Koselleck a tomada de posição é inevitável e favorável à pesquisa é uma tentativa de salvar a objetividade ao não se pretender um impossível ponto de vista suprahistórico Koselleck 1990 Entretanto o conceito filosófico de verdade é complexo e suas relações com a históriatempo o são ainda mais Domingues 1996 Ricoeur 1968 Não poderemos nos estender em sua teorização embora seja o núcleo que conecta as diversas visões do Brasil aqui apresentadas Pensamos a verdade histórica com os conceitos de interpretação e de compreensão que implicam reconstruções temporais parciais múltiplas relativas não definitivas e ao mesmo tempo racionais não subjetivistas e não relativistas Interpretar é atribuir sentido a um mundo histórico determinado em uma época determinada compreender é a partir dessa atribuição de sentido autolocalizarse no tempo retendo articulando e integrando suas próprias dimensões temporais Cada mundo histórico é dominado pelo tempo e muda As suas interpretações e autocompreensões também mudam sem deixar de se referir a ele em um de seus momentos Portanto por essas duas razões o objeto temporal e a renovação teóricometodológica e de quadros humanos entre outras o conhecimento histórico se faz sob o signo da mudança Todo historiador quer escrever uma nova história quer oferecer um ponto de vista mais abrangente e mais seguro As escolas históricas no entanto se iludem ao pensar que o seu novo ponto de vista é único e definitivo que descobriram a verdade da história que estabeleceram o conhecimento histórico em bases objetivas científicas Em defesa da sua nova interpretação definitiva cada uma delas desvaloriza os historiadores e as interpretações anteriores em geral com os mesmos adjetivos empregados pelos novos anteriores para desautorizar os seus predecessores ultrapassados equivocados positivistas ideológicos reacionários ignorando a condição temporal de toda elaboração histórica A verdade histórica ela é fundamentalmente histórica Não há métodos e histórias definitivas que levem ou tragam à verdade absoluta no tempo Em cada presente o que se tem é uma visão parcial uma articulação original do passado e do futuro A história é visada segundo perspectivas diversas e com o avanço do tempo as proposições históricas mudam Todo historiador é marcado por seu lugar social por sua data e por sua pessoa Veemse sempre aparecer obras novas sobre o mesmo assunto À medida que o tempo passa novas experiências são acrescentadas às precedentes e novas esperas são desenhadas O passado é assaltado por interrogações novas que oferecem respostas diferentes das anteriores Em cada presente há um esforço de compreensão de autolocalização pela rearticulação de passado e futuro São essas autolocalização e organização temporais originais em cada presente que possibilitam as estratégias de ação E são múltiplas as representações e respectivas estratégias de ação que cada presente se oferece Para se conhecer uma interpretação histórica esclarece Koselleck é sempre preciso saber quem a formulou um nativo ou um estrangeiro um amigo ou inimigo um erudito ou um cortesão um burguês ou um camponês um rebelde ou um súdito dócil As narrativas podem se contradizer e paradoxalmente ser verdadeiras Podese olhar sobre o mesmo tempo e representálo diferentemente mas coerente e corretamente A verdade histórica talvez possa ser comparada a um caleidoscópio os historiadores diversos e sucessivos escolhem e sintetizam servemse de metáforas formulam perguntas específicas servemse de fontes e técnicas diferentes Ela é um sentido atribuído ao vivido atribuição carregada de influências sociais técnicas e pessoais Portanto o conhecimento histórico está atravessado pela temporalização e não se fixa em verdades absolutas em um conhecimento científico no sentido naturalista do termo A necessidade da reescrita da história não seria também uma condenação do conhecimento histórico ao subjetivismo ao relativismo ao ceticismo Ela revela a sua especificidade a sua condição singular o caráter particular da objetividade que pode produzir O historiador para se diferenciar de mentirosos e falsários deve buscar oferecer uma interpretação controlável racionalmente e para isso deve apoiarse em problemas conceitos e documentos Mas a sua interpretação histórica não abole as anteriores e não evitará outras que se sucederão Por isso para Koselleck o conhecimento histórico exige do historiador o exame crítico da historiografia anterior De maneira mais geral afirma ele podese dizer que o conhecimento histórico é também e ao mesmo tempo história da historiografia Koselleck 1990174 Essa conclusão de Koselleck revela o espírito deste trabalho o conhecimento histórico é ao mesmo tempo história da história Na nossa perspectiva os intérpretes do Brasil e não os explicadores do Brasil como os denomina pejorativamente C G Mota 1978 que se sucedem não se eliminam os autores posteriores podem até ser melhores do que os anteriores do ponto de vista teóricometodológico na abrangência e profundidade de sua análise mas não os substituem nem os tornam descartáveis Koselleck se refere à ideia de um progresso do conhecimento histórico as interpretações coincidiriam crescentemente com os eventos e processos eventos e processos e interpretações convergiriam progressivamente As interpretações seriam cada vez mais seguras retificando os erros passados baseadas no próprio desdobramento da história A ideia por trás desta tese do progresso do conhecimento histórico é a de que o passado se presta tanto mais à interpretação quanto mais tarde é apreendido pois podese vêlo melhor embora não integralmente em suas possibilidades já explicitadas Esta tese pode parecer talvez correta se for acrescentado que se trata de um progresso dialético e não linear Por progresso dialético prentendese dizer que as interpretações posteriores superam conservando as anteriores sem diluir a sua diferença ao contrário de um progresso linear onde só haveria superação sem conservação Em um progresso dialético as interpretações posteriores podem até ser mais seguras e reunir melhor as dimensões temporais mas não eliminam o valor e a necessidade das anteriores Criase então uma verdade histórica caleidoscópica O Brasil por exemplo é conhecível não através de uma ou outra interpretação em particular e isolada mas pelo conjunto delas pelo confronto e diálogo entre as várias interpretações feitas em épocas distintas A síntese não seria uma integração de todas as interpretações em uma única e superinterpretação A síntese seria um diálogo entre todas que se esclarecem pelo reconhecimento e contrastação recíprocas Em cada presente os historiadores articulam diferentemente passado e futuro experiência e espera articulação esta que revela o fundamento temporal da sua interpretação Nas interpretações sucessivas percebemse as concepções diferenciadas do tempo histórico brasileiro que em cada momento da história do Brasil puderam ser formuladas E estas representações históricas retornam à realidade social reproduzindoa ou alterandoa Cada interpretação do Brasil revela o que podia ser visto do passado e vislumbrado do futuro naquela posição temporal específica As interpretações atuais são mais amplas e abrangentes e se enriquecem ao incluírem as anteriores mesmo na divergência Referindose à filosofia Ortega y Gasset afirma que nenhum filósofo pode ignorar os seus predecessores o que talvez valha também para a história O progresso consiste em absorver o predecessor sem diluílo mas preservandoo em sua diferença e apoiarse nele toda superação é negação e toda verdadeira negação é uma conservação Um filósofo e um historiador retomam os seus antecessores com uma dupla finalidade partir deles e negálos conservandoos Assim o conhecimento histórico teria também a estrutura da reflexão um retorno que se apoia e vai além em que a história da história desempenha um precioso papel Ortega y Gasset 1958 O que se propõe neste trabalho é a reposição de alguns intérpretes do Brasil em sua época em sua data com a sua problemática específica e com as suas específicas avaliações do passado e projeção do futuro A data de uma obra diz muito sobre ela é a sua definição pois revela o mundo histórico em que foi produzida Ortega y Gasset 1958 Ler Varnhagen é ouvir o pensamento brasileiro e a história brasileira dos anos 1850 Por um lado retirálo de 1850 e comparálo com as interpretações marxistas dos anos 196070 é injustamente asfixiálo Por outro é extremamente rico o que este contraste revela o Brasil dos anos 196070 representa uma enorme mudançacontinuidade em relação ao de 1850 Nossa hipótese é a de que não há autores superados desde que lidos em sua época Dentro dela são insuperáveis Se o conhecimento histórico é também e ao mesmo tempo história da história o conhecimento da história do Brasil pressupõe a leitura e a confrontação dos intérpretes do Brasil no decorrer da sua história Surge uma verdade histórica do Brasil produzida ao longo do tempo uma verdade poliédrica caleidoscópica O que se pretende oferecer é uma visão do Brasil construída por uma multiplicidade de visões parciais Eis a tese fundamental que orienta a nossa leitura e o confronto entre esses autores o que os diferencia e aproxima o que os separa e agrupa é uma representação particular do tempo histórico brasileiro As duas categorias fundamentais que permitem a inteligibilidade e diferenciação desses discursos sobre o Brasil são categorias temporais mudança e continuidade Esses autores realizaram fundamentalmente uma articulação de mudança processo modernização progresso revolução na direção da independência e autonomia e continuidade estrutura permanência tradição resistência conservadorismo que significam dependência e heteronomia O conhecimento histórico é o conhecimento das durações humanas que podem ser medidas em sua maior ou menor intensidade com os conceitos de mudança e de continuidade este será o eixo de articulação do trabalho Mudança para o Brasil significa a identificação das forças que produzem a autonomia e a emancipação nacional continuidade a identificação das forças que reproduzem e renovam a dependência Por ser a história o conhecimento das durações humanas dos homens no tempo a articulação de mudança e continuidade de independência e dependência em cada presente levou os historiadores brasileiros a reescreverem continuamente a história do Brasil As interpretações do Brasil que estudamos são sínteses produzidas em datas específicas que reúnem de forma original uma apreensão do passado dependência uma localização do presente e um projeto para o futuro independência Tais sínteses têm um duplo objetivo criar uma representação global do Brasil uma configuração que dê conta dos seus eventos e personagens das suas mentalidades das suas elites e da sua população em geral suas classes e lutas seus escravos índios e mestiços do passado e a partir dessa representação global refigurar o presente e imaginar um futuro possível uma utopia realizável O que o Brasil foi está sendo e o que se tornará Eis a questão fundamental que formulamos aos oito intérpretes que estudamos Cada síntese pertence a um presente e esse presente vivido do Brasil refletiuse em cada uma das interpretações do Brasil Esses presentes vividos foram épocas marcantes que levaram os seus historiadores a se debruçarem sobre todo o tempo histórico brasileiro Cada interpretação produzida é nova É uma reafirmação ou uma recusa das anteriores Alguns recriam teses tradicionais outros rompem com a tradição criando uma nova tradição Uns valorizam a continuidade outros a mudança Não há continuidade pura sem mudanças e também não há mudança pura sem continuidades O tempo não se deixa cortar como o espaço pondo de um lado o passado e de outro o futuro O passado continua agindo depois da mudança por mais radical que essa tenha sido mas a mudança pode alterar bastante o passado dependendo da sua profundidade Ora os intérpretes do Brasil valorizam o espaço da experiência brasileira o que o Brasil já foi e ainda é ora valorizam o horizonte de espera o que o Brasil quer ser e ainda não é As ideias passadas influem sobre as presentes a originalidade não é pura O conhecimento histórico é sempre um debate uma retomada dos pontos de vista do interlocutor seja para reformulálo apoiandoo seja para rejeitálo A partir de certas crises rupturas mudanças bruscas as interpretações conhecidas envelhecem e são ou substituídas por outras ou recriadas As forças sociais predominantes em cada época são levadas a repensar toda a história do país e a criar uma nova imagem histórica reconhecível Estas sínteses são reconstruções racionais do Brasil reconstruções do tempo histórico brasileiro em sua especificidade oferecendolhe uma coerência um sentido É um esforço de unificação da multiplicidade de organização da dispersão O resultado deste esforço é uma contemplação os eventos múltiplos e dispersos se integram em uma totalidade O discurso e a realidade social se orientam reciprocamente Alguns historiadores consideram este esforço inútil e perigoso pensam que se chega sempre a uma abstração esvaziada de conteúdo concreto Para eles um discurso totalizante não se refere à realidade e perdeu o contato com a mudança eliminando a multiplicidade suspendendo as contradições E os historiadores preferem o concreto a mudança a multiplicidade as pesquisas monográficas Não se pode reconstruir um mundo histórico integralmente de forma racional A pesquisa histórica eles afirmam para ser racional e atingir o real tem de se particularizar e se formalizar Entretanto a pesquisa particular e conceitual precisa de alguma orientação mais global de uma síntese anterior Esta não precisa ser um sistema fechado e abstrato Ela pode ser simplesmente uma organização da multiplicidade uma representação racional mas aberta e flexível Se se toma a síntese neste sentido fraco uma representação racional e aberta uma interpretação histórica do Brasil e não um sistema abstrato global e fechado uma explicação atemporal do Brasil ela é indispensável às pesquisas particulares como orientação e indispensável sobretudo aos indivíduos que agem que precisam se situar em relação ao passado e ao futuro Tais sínteses globais ligamse diretamente à prática histórica de sujeitos específicos Na verdade elas elaboram as visões do Brasil desses sujeitos e os tornam eficientes em relação ao futuro Dividimos estas sínteses do Brasil em duas correntes a do descobrimento do Brasil 18501930 aqui representada por Varnhagen e Gilberto Freyre que priorizam a continuidade em relação à mudança que preferem o passado brasileiro ao futuro preferem o Brasil português ao Brasil brasileiro o Brasil tradicional ao Brasil moderno Desde essa perspectiva o futuro do Brasil deverá ser ou o mesmo passado ou a melhoria do passado A tese do progresso linear e gradual é interpretada de modo conservador é o mesmo que se aperfeiçoa O passado resolverá os seus problemas sem necessidade de ruptura mudança brusca revolução A crítica documental serve para resgatar a verdade da tradição para tornála mais viva e mais vigorosa contra a mudança A história é mestra da vida a assimetria passadofuturo é quase reduzida a zero o futuro será no máximo o passado resolvido Koselleck 1990 Varnhagen escreveu em 1850 momento da ascensão e consolidação do Estado nacional sob a Monarquia ele pôde até ser mais crítico do passado do que Freyre pois não havia ameaça real à continuidade do passado colonial no presentefuturo nacional Freyre escreveu em 1930 momento da crise do Brasil das elites lusobrasileiras que se consolidaram em 1850 Para legitimar o seu poder em crise Freyre fecha os olhos a todas as dificuldades e tensões do passado Ele o idealiza e o aceita integralmente como modelo e referência para o futuro As interpretações que constituem a corrente do redescobrimento do Brasil 1900 a 196070 representadas aqui neste estudo pelos historicistas Capistrano de Abreu e Sérgio Buarque de Holanda e pelos marxistas Nelson Werneck Sodré Caio Prado Jr Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso priorizam a mudança em relação à continuidade variando a ênfase preferem a ruptura com o passado preferem o brasileiro ao português o Brasil moderno ao tradicional colonial Capistrano de Abreu foi um dos primeiros a ver o futuro da sociedade brasileira como assimetria profunda em relação ao passado colonial O Brasil futuro deveria continuar acelerando e aprofundando a ruptura que se desenhava desde o início da colonização O futuro não será lusobrasileiro mas brasileiro uma nação livre soberana autônoma habitada por um povo novo com interesses e sentimentos singulares S B Holanda em 1936 ao recusar as nossas raízes ibéricas aprofundou a reflexão de Capistrano sobre a ruptura do futuro brasileiro com o seu passado colonial ibérico Nos anos 1950 com a visão marxista pioneira do Brasil de N W Sodré já se formula claramente a ideia e até se planeja a revolução brasileira Sodré e o PCB fazem planos para um Brasil livre do latifúndio e da dependência imperialista A história os decepcionou em 1964 Em 1966 Caio Prado Jr com a mesma ambição de mudança profunda refaz os seus planos revolucionários Ambos Sodré e Prado Jr cada um à sua maneira pensam a radicalização da mudança Mas já em Caio Prado Jr começam a aparecer as dificuldades postas pela mudança A sua pesquisa históricosociológica mais objetiva menos voluntarista dogmática e idealista mais atenta e sensível à temporalidade interna e específica do Brasil revelou que a história brasileira é mais marcada pela continuidade do que pela ruptura Os estudos de Caio Prado Jr apontaram para os limites históricos e estruturais à iniciativa revolucionária Assim como Caio Prado e de modo teóricometodológico mais consistente Florestan Fernandes revelou a mesma ambiguidade se o seu lado cientista social constata objetivamente os limites estruturais que limitam a iniciativa revolucionária o seu lado cidadão clama apaixonadamente pela ruptura com o passado colonial e dependente e protesta diante da imobilidade e ineficiência dos sujeitos da mudança Em F H Cardoso a estrutura já pesa muito sobre a mudança A mudança não poderá ser pensada sem se levar em consideração a duradoura realidade da dependência que tende mais a permanecer do que a mudar Ele então procura pensar a produção do máximo de mudança interna possível no interior e na direção da estrutura capitalista internacional Essas duas correntes reúnem diferentemente o passado ao futuro brasileiros pensam diferentemente a identidade brasileira divergem quanto aos verdadeiros sujeitos da história do Brasil e quanto aos ritmos e sentido do seu desdobramento Todas as oito interpretações são legítimas ou seja informam sobre o Brasil e o representam de forma válida e eficaz desde que consideradas em sua época perspectiva e circunstância O diálogo entre os membros das duas correntes é áspero é em tom de luta Aqui sem apagarmos a diferença e a luta nosso interesse é o de conhecer as diversas posições que constituem a verdade poliédrica do Brasil Foi essa portanto a periodização que levou à seleção daquelas obras e autores além do seu valor reconhecido e incontestado É uma solução artificial e discutível sem dúvida pois elimina muitas outras obras e autores que poderiam também representar aqueles momentos históricos Mas como é consabido toda e qualquer periodização e seleção é artificial e contestável pois é só uma entre muitas estratégias de abordagem e de atribuição de sentido Essa é uma limitação no entanto intrínseca à reflexão teóricohistoriográfica mas que não invalida o esforço intelectual e cognitivo que representa Para reconhecerlhe o valor e o vigor e quem sabe até o rigor o leitor terá de se limitar também a extrair dela aquilo que ela quis e pôde oferecer Nossa disposição é a da escuta ora atenta ora flutuante ora interrogativa ora duvidosa ora simpática ora resistente e em alguns momentos amigavelmente irônica dos intérpretes do Brasil Mas uma escuta paciente um estudo sereno de alguns discursos que inventaram a imagem temporal do Brasil Vamos manternos bem próximos do texto original e dos seus comentadores imitando suas linguagens fazendoos falar e se interrogarem reciprocamente A paráfrase será onipresente ideias e palavras saltarão dos textos originais para este pois queremos compartilhar os seus modos de ver e estilos Do ponto de vista formal seremos deliberadamente pouco formais as citações serão ágeis autor e data da publicação não faremos citações de pé de página pois quando relevantes foram incluídas no próprio texto não cotejaremos edições diversas de cada obra pois da primeira edição o que nos interessou foi somente a data e as circunstâncias históricas do país e pessoais do autor não seremos exaustivos em relação aos comentadores pois não temos a ingênua ambição de produzir um texto completo embora suficientemente documentado não abordaremos toda a obra de cada autor e não tematizaremos as mudanças em seu pensamento pois escolhemos no conjunto da sua obra a sua síntese a sua representação global do Brasil no quadro de uma época determinada Nosso esforço é o de compreender de dialogar e mediar o diálogo com a sensibilidade da origem social da formação intelectual do temperamento pessoal enfim do lugar social e da data dos interlocutores Nossa intenção é comparar e compartilhar promovendo um impossível encontro entre intérpretes não só adversários mas distantes no tempo Mas a nossa ambição maior é através dos seus intérpretes postos justapostos superpostos e contrapostos contrastados e articulados alcançar uma compreensão mais ampla do Brasil através dos momentos mais críticos da sua trajetória histórica As várias interpretações do Brasil se sucedem sem se suprimirem desde o contemporâneo até o historiador mais distanterecente Ricoeur compara o contemporâneo e o historiador com o sonhador e o narrador do sonho O contemporâneo ele afirma é como o sonhador seu vivido é como o sonho Ele vive à noite entre eventos desconexos desarticulados é pura emoção e desejo Adormecido vive em um espetáculo desconhecido misterioso que é a sua própria vida Ele próprio é a sua expressão O historiador é como o sonhador no dia seguinte um narrador do seu sonho Acordado esse sonhador se torna historiador ele se lembrará do que sonhou e fará uma narrativa do sonho Este o sonho assim como o vivido é noturno desconhecido repleto de camadas profundas do passado A narrativa se dá no dia seguinte e será a organização do sonhovivido A narrativa não é o próprio sonhovivido é um esforço de organização e atribuição de sentido O sonho e o vivido são inabordáveis em si deixam vestígios lembranças com as quais se tece uma narrativa totalizante Tal narrativa é um esforço de interpretação do sonhovivido de decifração de reconstrução e compreensão Ela será tentada a cada dia todos os dias A narrativa será sempre refeita reescrita reelaborada ressignificada A narrativa visa ao vividosonho mas jamais coincidirá com ele Ela evita as tensões ou as ressignifica gerenciandoas O narradorhistoriador resiste ao que há de ameaçador no sonhovivido A narrativa é contemporizadora tranquilizadora tanto mais quanto maior é o conflito É equívoca polissêmica metafórica Há narrativas de narrativas metanarrativas retrospectivas interpretações de interpretações textos sobre textos Nenhum texto aparece saturado de sentido transparente e exige sempre uma decifração contínua Não há leitores definitivos de um texto não há decifração conclusiva do sonho não há narrativas esgotadoras do vivido histórico Por isso a história é sempre reescrita Não há narrador que reproduza o seu sonho tal qual foi sonhado não há historiador que reproduza o vivido tal qual foi vivido Entre narraçãoconhecimento e sonhovivido há um abismo intransponível sobre o qual se estende a ponte frágil e oscilante das interpretações Ricoeur 1965 Nossa disposição é portanto a de quem abre o ouvido e escuta a de quem abre o espírito e recebe narrativas diferentes cruzadas lacunares tendenciosas suspeitas mas que são a representação sincera de sujeitos que buscam se conhecer se apreender e tomar a sua história em suas mãos Os sujeitos históricos brasileiros viveramsonharam seus intérpretes organizaram esse seu vividosonho de formas distintas em épocas distintas Em sua própria época cada interpretação é ainda meio sonhadora pois ainda muito próxima do sonho Ela ainda está próxima do vivido faz ainda parte dele e é também sonhovivido E se narração e sonhovivido não coincidem isto não quer dizer que as narrações sejam inúteis A narração toca indiretamente o sonhador que se emociona toma consciência e muda a interpretação histórica toca indiretamente em sua vida os homens que passam a se compreender melhor e mudam Assim os sujeitos históricos informados pelas interpretações localizados quando sonharem com o futuro e o passado terão menos pesadelos e quando viverem no presente encontrarão os melhores meios e termos para expressar seus interesses e realizar os seus projetos PARTE 1 O DESCOBRIMENTO DO BRASIL ANOS 1850 VARNHAGEN O elogio da colonização portuguesa Varnhagen Heródoto do Brasil Francisco Adolfo de Varnhagen 181678 é considerado o Heródoto brasileiro portanto o fundador da história do Brasil mesmo se antes dele entre outros Pero de Magalhães Gândavo frei Vicente do Salvador Sebastião da Rocha Pita Robert Southey escreveram respectivamente História da província de Santa Cruz 1576 História do Brasil 1627 História da América portuguesa 1730 História do Brasil 1810 Southey disputa com Varnhagen sem nunca ter estado no Brasil aquele título historiográfico Ele pintou em sua História do Brasil um quadro sombrio quanto às possibilidades futuras da colonização comercial portuguesa no Brasil degeneração dos costumes da religião e da moral causada pela escravidão e pela falta de agricultura miséria fome turbulências crimes doenças Varnhagen e os nativistas do IHGB se revoltaram contra esta apreciação negativa de Southey em relação à colonização portuguesa e ao futuro da jovem nação Para estes a colonização portuguesa teria sido um enorme feito e o futuro estava aberto ao sucesso da nova nação Dias 1974237 Foi somente nos anos 1850 com Varnhagen que surgiu a obra de história do Brasil independente mais completa confiável documentada crítica com posições explícitas a História geral do Brasil que superou as obras mencionadas anteriormente sem no entanto tornálas descartáveis A sua História geral do Brasil refletia uma preocupação nova no Brasil com a história com a documentação sobre o passado brasileiro que o recémfundado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro representava A História geral do Brasil foi possível porque as condições históricas do Brasil o processo da independência política e a constituição do Estado nacional amadureceram nos anos 1850 E foi no interior desse processo histórico que ocorreu a outra condição favorável ao surgimento da obra de Varnhagen a institucionalização da reflexão e da pesquisa históricas no IHGB A independência política consolidada e reprimidas as lutas internas geradas por ela o Brasil possuía um perfil do qual ainda não tomara conhecimento Nos anos 1850 Varnhagen desenhará o perfil do Brasil independente oferecerá à nova nação um passado a partir do qual elaborará um futuro Varnhagen era filho de um oficial alemão engenheiro metalúrgico que trabalhara no Brasil e de uma portuguesa Em sua obra ele faz acompanhar o seu nome das credenciais visconde do Porto Seguro e natural de Sorocaba Entretanto este paulista nobre morou pouco no Brasil Ele residiu em Portugal desde os seis anos de idade Sua formação em Lisboa foi mais militar técnica e matemática Mas estudou também paleografia diplomática e economia política Conhecese pouco no entanto da sua formação intelectual O que se sabe é que apreciava frequentar os arquivos dos lugares por onde passava os arquivos públicos essa novidade do século XIX Capistrano de Abreu afirma no Necrológio de Varnhagen que o desconhecido o atraía Diante de documentos corroídos esquecidos desorganizados ele se sentia desafiado Parecia um bandeirante em busca da verdade bravo destemido persistente vigoroso Embora tenha tido alguma formação em paleografia e em diplomática quanto à história ele era sobretudo um autodidata Raramente cita autores estrangeiros em sua correspondência afirma A Canabrava mas a sua preocupação com a exegese documental parece revelar a influência de Ranke A influência alemã sobre o seu pensamento deve ser forte também em virtude de sua origem paterna Ele estava bem adaptado à produção histórica de sua época Não só estava atualizado com o que se fazia na Europa como foi um dos pioneiros da pesquisa arquivística e do método crítico que o século XIX redescobriu e aprimorou Tanto quanto Ranke Varnhagen é um historiador típico do século XIX Canabrava 1971 Odália 1979 Ele pode ser considerado de fato o Heródoto do Brasil pois foi o iniciador da pesquisa metódica nos arquivos estrangeiros onde encontrou e elaborou inúmeros documentos relativos ao Brasil Tendo morado sempre no exterior se sentia um exilado dominado que sempre esteve pela saudade do Brasil Capistrano ainda no Necrológio o considera movido por um patriotismo profundo quando se empenhou obstinadamente na escrita da história pátria uma história completa e apaixonada Em todo lugar em que esteve fosse como embaixador ou turista deixou declarações de amor ao Brasil e de crença em seu futuro como nação Em 1841 adotou a nacionalidade brasileira logo após a confirmação antecipada de d Pedro II no trono brasileiro Ele quis assessorar o jovem imperador na construção da identidade do seu império que lhe garantiria unidade e longevidade Aristocrata o visconde nutria sentimentos de profunda fidelidade à família real portuguesa Em Portugal defendera até às armas d Pedro IV I contra d Miguel Seu amor pelo Brasil se confundia portanto com a sua fidelidade à família real portuguesa Defendia um Brasil português com o imperador Sua adesão à Coroa era total e a representou em diversos países da América Latina e da Europa Portugal Espanha Áustria Colômbia Equador Venezuela Peru Chile Casouse com uma chilena e após a sua morte foi enterrado no Chile Atualmente os seus restos mortais encontramse em Sorocaba Odália 1979 Varnhagen o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro IHGB e Karl Philipp von Martius O imperador foi o protetor de Varnhagen oferecendolhe os recursos para a sua obra O jovem imperador aliás precisava muito da história e dos historiadores Em 183839 pouco antes de ocupar antecipadamente o trono fora criado o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro que foi de uma importância capital para a constituição da história brasileira Até 193133 o IHGB exercerá uma grande influência e será o único centro de estudos históricos do Brasil O imperador precisava dos historiadores para legitimarse no poder Guimarães 1988 A nação recémindependente precisava de um passado do qual pudesse se orgulhar e que lhe permitisse avançar com confiança para o futuro Era preciso encontrar no passado referências lusobrasileiras os grandes vultos os varões preclaros as efemérides do país os filhos distintos pelo saber e brilhantes qualidades enfim os lusobrasileiros exemplares cujas ações pudessem tornarse modelos para as futuras gerações O IHGB produziu uma história biográfica constituindo uma galeria de vidas exemplares que iluminavam a ação futura Stein Stein 1964 O novo país precisava reconhecerse geográfica e historicamente O projeto do IHGB era geográfico e histórico Geográfico teria a tarefa de situar as cidades vilas rios serras portos planícies de conhecer e engrandecer a natureza brasileira seu céu clima matas riquezas minerais flora e fauna de definir os limites do território Histórico deveria eternizar os fatos memoráveis da pátria e salvar do esquecimento os nomes dos seus melhores filhos Para isso deveria coletar e publicar os documentos relevantes para a história do Brasil incentivar os estudos históricos manter relações com as instituições congêneres do exterior especialmente com a instituição que foi o seu modelo o Institut Historique de Paris Desde então o Brasil procurou os franceses como referência intelectual O IHGB será o lugar privilegiado da produção histórica durante o século XIX lugar que condicionará as reconstruções históricas as interpretações as visões do Brasil e da questão nacional2 O Brasil independente portanto precisava da história e dos historiadores para se oferecer um passado e abrirse um futuro O primeiro passo e fundamental cuja ideia surgiu no seio da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional Sain criada em 1827 marcada pelo espírito iluminista e que se propunha a incentivar o progresso e o desenvolvimento brasileiros foi a fundação do IHGB3 A partir daí multiplicaramse os projetos para o Brasil baseados nas interpretações do passado brasileiro O IHGB em 1840 estabeleceu um prêmio para quem elaborasse o melhor plano para a escrita da história do Brasil O texto premiado foi o do botânico e viajante alemão Karl Philipp von Martius Na sua monografia intitulada Como se deve escrever a história do Brasil publicada na Revista do IHGB em 1845 Von Martius definiu as linhas mestras de um projeto histórico capaz de garantir uma identidade ao Brasil Surgiu do seu projeto a interpretação do Brasil do primeiro Brasilnação que se entranhou profundamente nas elites e na população brasileira Von Martius lançou os alicerces do mito da democracia racial brasileira Para ele a identidade brasileira deveria ser buscada no que mais singulariza o Brasil a mescla de raças Barata 1974 No essencial a história do Brasil será a história de um ramo dos portugueses pois o português foi o conquistador e senhor ele deu as garantias morais e físicas ao Brasil O português foi o inventor e motor essencial do Brasil Aventureiro no Brasil se sentiu livre da sua obediência ao rei sentiu que nada tinha acima de si e avançou para a conquista do interior O historiador deverá transportar o leitor à casa dos colonos e mostrar como viviam como se relacionavam com seus vizinhos escravos e família Deverá mostrar a ação da Igreja e da escola como chegavam as plantas e árvores como era a construção naval e a navegação a vida militar e o comércio Mostrar ainda como chegavam as ideias e as letras da Europa Enfim mostrar fundamentalmente a vida portuguesa no Brasil Quanto às demais raças o historiador filantrópico humano e profundo cristão não poderá deixar de abordálas Deverá defender essas raças desamparadas Se o português é a raça mais importante as raças etiópica e indígena reagiram positivamente Von Martius dará alguma ênfase à história dos indígenas Quanto ao negro ele será breve oferecendo poucos dados e propondo algumas poucas questões A questão principal quanto ao negro segundo ele seria esta o Brasil teria tido um desenvolvimento diferente sem a introdução dos negros escravos Ao historiador de responder se teria sido para melhor ou para pior Essa pergunta atormentará os historiadores brasileiros que darão a ela uma resposta negativa isto é foi pior até a chegada de Casagrande senzala em 1933 Gilberto Freyre responderá à pergunta de Von Martius de forma diferente dos historiadores que o antecederam Mas será uma resposta ainda ligada à pergunta de Von Martius e aos historiadores do IHGB De certa forma ele pertence a esse grupo pois partirá da mesma questão embora sua resposta tenha sido inovadora Von Martius além de enfatizar a mescla de raças que singularizava o Brasil embora privilegiando a raça branca considera que o historiador do Brasil deverá fazer uma história da unidade brasileira A história do Brasil deverá ser centralizada no imperador Apesar da variedade de usos e costumes dos climas das atividades econômicas das raças e da extensão territorial o historiador deverá enfatizar a unidade À diferença ele deverá dar um tratamento comum Como a extensão territorial dificulta essa unificação ele propõe que se façam histórias regionais que garantam uma direção à centralização Por exemplo as histórias de São Paulo Minas Gerais Goiás são convergentes as histórias do Maranhão Pará Amazonas também convergem as histórias da Bahia Pernambuco Ceará convergem igualmente Assim as histórias regionais mais amplas diminuiriam as diferenças locais e se tenderia progressivamente a uma história nacional Para escrever essa história do Brasilnação o historiador deverá fazer o que Von Martius provou que era possível fazer viajar pelo Brasil conhecer as províncias para melhor aconselhar a administração e ter uma melhor visão global do Brasil Em cada província ele encontrará outra natureza outros homens outras paixões outras necessidades que tratará de conectar reunir As províncias criam estereótipos umas das outras alimentando antipatias recíprocas afastandose pelo preconceito Ao historiador de conhecêlas melhor e reunilas Seu texto deverá ser patriótico despertando o amor ao Brasil Em sua defesa do Brasil unido monárquico cristão precisará lutar contra a desconfiança entre as províncias contra a fragmentação do território e a agitação republicana Eis a história de que o Brasil recémindependente precisava ou seja de que as elites brasileiras precisavam para levar adiante a nova nação nos anos 184060 Uma história que realizasse um elogio do Brasil dos seus heróis portugueses do passado distante e recente que expressasse uma confiança incondicional em seus descendentes Uma história que não falasse de tensões separações contradições exclusões conflitos rebeliões insatisfações pois uma história assim levaria o Brasil à guerra civil e à fragmentação isto é abortaria o Brasil que lutava para se constituir como poderosa nação O que Von Martius tinha elaborado não era uma tal história ainda mas somente o seu projeto que ele próprio se recusara a levar adiante Com certeza após avaliar a enormidade do trabalho a fazer Faltava portanto o historiador brasileiro que poderia realizar tal projeto de história do Brasil Varnhagen tomará para si esta tarefa e se tornará o primeiro grande inventor do Brasil As sínteses anteriores sobre o Brasil foram válidas em sua época e continuavam e continuarão ainda válidas Mas a grande síntese do Brasil do século XIX será a de Varnhagen Varnhagen e seus Críticos As avaliações feitas posteriormente sobre a sua História geral do Brasil publicada entre 1854 e 1857 são discordantes J H Rodrigues o considera o maior historiador da sua época e ainda hoje incomparável pela vastidão da obra pelos fatos que revelou pela publicação de inéditos pelo seu enorme esforço e determinação Ele foi incomparável na história geral e parcial Antes dele o Brasil não tinha consciência de sua história Rodrigues é enfático ninguém pode graduarse em história do Brasil sem ter lido Varnhagen Em 1854 ele se pôs sob o ponto de vista nacional e o seu grande tema foi a obra da colonização portuguesa no Brasil Rodrigues 1967 Para A Canabrava a sua obra é o monumento da história brasileira do século XIX Sua nova história como ele a chamava com orgulho abasteceuse de valioso material inédito que lhe deu uma consistência nunca antes alcançada Canabrava 1971 P M Campos o considera o principal historiador brasileiro do século XIX Seu pensamento era ao mesmo tempo ligado ao pensamento do IHGB e diverso Nele as tendências nativistas do IHGB não eram tão fortes A exaltação do indígena ele a considerava injusta para com os colonizadores No IHGB ele era visto com reservas Mas apesar de seus defeitos ele teria sido o maior expoente do próprio instituto Campos 1983 N Odália discorda das avaliações anteriores Para ele a História geral do Brasil foi escrita num estilo literário monótono sem mostrar o dramático das tensões e opções Varnhagen teria segundo Odália o estilo de um botânico descrevendo a flora árido e distante As análises anteriores ele as considera superficiais transformando Varnhagen em um modelo de patriota e seu trabalho de historiador é elogiado de forma oca Para Odália o interesse da leitura da sua obra hoje é muito restrito Seria um autor superado não só por suas limitações mas porque a história do Brasil é outra hoje Deverá ser lido somente como o testemunho valioso de uma época Ele revela a ideologia histórica que legitima o processo de dominação social inerente à jovem nação brasileira Odália 1979 Talvez se possa perguntar a Odália se as obras históricas que sucederam à de Varnhagen seriam também mais do que testemunhos de sua época e da história que se podia fazer então Como todas são marcadas pelo lugar e tempo da sua produção e por um inevitável e necessário projeto de poder e dominação são todas datadas todas teriam no futuro um interesse restrito Mas é exatamente por esta razão que a leitura de todas é interessante por revelarem a consciência histórica e a teoriametodologia da história da sua época Algumas são superiores por serem paradigmáticas modelos superiores da consciência e da história que então se fazia Varnhagen tem este valor de modelo Entretanto logo depois em seu texto introdutório a uma bem organizada compilação de Varnhagen Odália relativiza a avaliação que havia feito antes ao afirmar que os seus temas serão constantes na historiografia brasileira até os anos 1930 a organização do Estado seu papel na estrutura social a centralização do poder político a miscigenação Capistrano de Abreu mais próximo de Varnhagen no tempo e no tipo de história reconhece numerosos problemas na obra dele em sua história do século XVIII deixou a desejar seu estilo tende mais à crônica faltandolhe a intuição o espírito de conjunto perdendose em acontecimentos irrelevantes uniformizou a história do Brasil tornandoa sempre igual repetitiva não percebendo o ritmo específico de cada época era irascível matando moscas a pedradas não tinha o espírito plástico e simpático compreensivo que o tornasse confidente dos homens e dos acontecimentos de que tratava era resistente aos movimentos populares rebeliões e outros problemas maiores Mas apesar dessas fortes restrições Capistrano afirma que é difícil exagerar os serviços prestados por Varnhagen à história nacional assim como os esforços que fez para elevarlhe o tipo Apesar de tudo Capistrano considera que a sua obra se impõe ao nosso respeito exige a nossa gratidão e mostra um grande progresso na maneira de conceber a história pátria Capistrano lamenta que Varnhagen não tenha conhecido a sociologia que surgia então o que o impediu de ver o Brasil como um todo solidário e coerente Ele só pôde descobrir e dominar documentos reconstituir fatos mas não pôde produzir generalizações formular uma teoria que permitisse a sua compreensão Não pôde descobrir duas ou três leis basilares que oferecessem um Brasil integral total Capistrano cita Comte e Spencer e deseja que apareça este sociólogo que eleve o edifício da teoria do Brasil a partir dos elementos reunidos por Varnhagen oferecendo as leis de consenso que constituem a racionalidade da civilização brasileira Esse comentário de Capistrano é francamente positivista e ele próprio depois recuará e não proporá mais uma tal teoria do Brasil Capistrano conclui enfaticamente sua avaliação da História geral do Brasil mãos a bolos é preciso reconhecer nele o mestre da história do Brasil Abreu 1975a Dos analistas de Varnhagen somente Odália rejeita a sua obra quase integralmente e lamenta que ela tenha exercido a influência que exerceu por tanto tempo Os outros fazem sérias restrições mas concluem considerandoo mestre monumento grande expoente Odália rejeita a obra de Varnhagen sobretudo porque ela expressa uma visão de mundo política que não interessa mais ao Brasil e até mesmo ao conhecimento histórico Seu patriotismo é parcial unilateral ele formula e defende o Brasil das elites brancas e da família real Ele formulou uma teoria da miscigenação visando ao branqueamento que entranhou Em sua visão essencialmente política do Brasil reconstrói o seu passado dá sentido aos seus fatos e personagens e estabelece o seu futuro Os sujeitos da história do Brasil são o homem branco e o Estado imperial O passado colonial deve ser reconstruído como suporte de um Brasil branco e europeu O problema político que os historiadores brasileiros enfrentavam teoricamente nos anos 184050 era o da transformação da excolônia em uma nação A colônia tinha legado uma sociedade heterogênea incompatível social e etnicamente Parecia impossível estruturar uma nação a partir desse legado colonial Como transformar em cidadãos indivíduos que sempre mantiveram uma relação de exploração social e étnica Como organizar um país com tais dados Isto é sem população livre Era preciso criar uma ideia de homem brasileiro de povo brasileiro no interior de um projeto de nação brasileira Sobretudo era preciso perceber a nação como diferença e continuidade colonial e como continuidade da diferença colonial Pensouse o Brasil com o conceito de raça e a sociedade brasileira como uma mescla de raças A dominação branca se ocultava sob a tese da miscigenação democrática O que o Brasil queria ser Eis a primeira questão da identidade Guimarães 1988 A resposta de quem podia responder então isto é as elites brancas que fizeram a independência o Brasil queria continuar a história que os portugueses fizeram na colônia A identidade da nova nação não se assentaria sobre a ruptura com a civilização portuguesa a ruptura seria somente política Os portugueses são os representantes da Europa das Luzes do progresso da razão da civilização do cristianismo O Brasil queria continuar a ter uma identidade portuguesa a jovem nação queria prosseguir na defesa desses valores A outra questão suscitada pela busca da identidade o que o Brasil não quer ser A resposta das elites o Brasil não queria ser indígena negro republicano latinoamericano e não católico O que significa dizer o Brasil queria continuar a ser português e para isso não hesitará em recusar ou reprimir o seu lado brasileiro Esse Brasil português será defendido e produzido pelas elites brancas pelo Estado pela Coroa O novo país será uma continuação da colônia A diferença é que a Coroa não é mais exterior mas interior E é portuguesa ainda O Brasil independente queria portanto continuar a obra de Portugal pois a colonização portuguesa era vista como bem sucedida trouxera a civilização europeia a religião cristã e tornara produtiva uma região abandonada e desconhecida Portugal integrou o Brasil na rota da grande história O Brasil portanto foi é e deverá continuar a ser português Varnhagen será o mestre dessa história do Brasil que Odália rejeita até com legitimidade Aristocrata elitista sua história prioriza as ações dos heróis portugueses e brasileiros brancos Para ele a plebe índios negros caboclos mamelucos mulatos pobres em geral seria desequilibradora do Brasil grande atrasavao desordenavao entravava o seu progresso O Brasil quer ser outro Portugal uma grande nação imperial uma potência mundial A História geral do Brasil abrirá este futuro às elites brasileiras no poder nos anos 1850 E no passado todos os eventos e personagens que comprometeram este futuro receberiam uma severa avaliação Seus preconceitos elitistas são evidentes afirma Canabrava Os movimentos sociais anteriores à independência ele agradecia à providência a sua repressão A própria independência ele só a tolerava porque produzida por um príncipe português e porque mantivera internamente a monarquia Ele sempre defendia a Casa de Bragança era um cortesão lisonjeador de d João VI d Pedro I e de d Pedro II Foi um historiador oficial um adulador dos poderosos e juiz severo das revoltas populares A história para ele é feita pelos grandes homens por reis guerreiros e governadores bispos e não pelos homens incultos Foi a Casa de Bragança que construiu o Brasil íntegro uno e independente Varnhagen era portanto um historiador engajado militante apesar de pretender produzir uma história imparcial e objetiva Julgava sempre tudo e todos e justificou a dominação colonial a submissão do povo os direitos das elites Ele defenderá a sociedade escravista e uma sociedade com cidadania restrita Entretanto se se considerar que a sua História geral do Brasil foi escrita nos anos 1850 e é representativa do pensamento histórico brasileiro e internacional dominante de então se ele a escreveu naquelas circunstâncias históricas políticas culturais e outras naquele tempo naquela historicidade poderseia esperar algo de diferente Seria possível esperar um Varnhagen socialista Democrático Antiescravista Um Varnhagen fora da sua atmosfera temporal fora do leito da história Individualmente ele poderia ser socialista democrata e antiescravista e teria um interesse particular pioneiro mas sua obra não representaria o seu tempo não teria o valor coletivo e histórico que nos interessa ressaltar É preciso situar as obras e seus autores em suas condições históricas objetivas e subjetivas para que se possa realizar uma análise justa e produtiva Olhar a obra de Varnhagen com simpatia e compreensão é abrirse à sua contemporaneidade aceitar o diálogo com ele ouvilo com paciência apesar do desejo que se tem às vezes de fechar o volume como Capistrano afirma ter tido Abreu 1975b Varnhagen representa o pensamento brasileiro dominante durante o século XIX e ele o expõe com rara clareza com fartura de dados e datas nomes e fatos Deve ser lido como um grande depósito de informações sobre o Brasil um arquivo portátil e como a interpretação do Brasil mais elaborada e historicamente eficaz do século XIX Quando faz o elogio da colonização portuguesa e defende a continuidade lusobrasileira caminho pelo qual de fato optaram as elites brasileiras ele o faz com eloquência e vigor e tornase um grande interlocutor no grande debate sobre o Brasil que é a historiografia brasileira Para combater melhor o Brasil que ele formulou e defendeu é preciso tomálo como um grande historiador e mestre da história do Brasil É preciso conhecêlo O olhar de Varnhagen sobre a história do Brasil é portanto o olhar do colonizador português Ele inicia a corrente de interpretação do Brasil que articulará os sentimentos e interesses dos descobridores do Brasil Ele reconstrói o Brasil sintetiza os seus diversos ritmos temporais submetendoos à lógica do descobridor e conquistador O vencedor tem todos os direitos Vencedor o português impôs a sua superioridade étnica cultural e religiosa Aliás se o português venceu militarmente os seus adversários se conquistou seus territórios e os escravizou e exterminou é porque é superior Eis o seu silogismo ou sofisma básico A vitória confirma uma superioridade presumida E se na luta colonial os brancos venceram a jovem nação quer ser também vencedora e se identificar étnica social e culturalmente com o branco Foi este quem trouxe a civilização europeia superior a lei o rei a fé a razão Os brancos são portadores de tudo aquilo de que uma nação precisa para se constituir soberanamente Aos vencidos resta a exclusão a escravidão a repressão e a assimilação pela miscigenação isto é pelo branqueamento racial e cultural A conquista portuguesa foi feita com guerra e sangue Então vitoriosos os portugueses as terras indígenas serão legitimamente portuguesas A Obra História Geral do Brasil 185457 A Natureza Selvagem Brasileira A História geral do Brasil se inicia com uma descrição geral da natureza brasileira descrição feita por alguém que a descobre que a vê pela primeira vez Terra do Brasil foi o nome dado pelos portugueses à sua nova conquista em virtude da abundância de uma mercadoria nova um certo lenho de tinta vermelha um pau vermelho que os índios chamavam de ibirapitanga Brasileiro era o nome dado ao comerciante desse pau vermelho nome que se estendeu aos moradores do lugar A Terra do Brasil ou somente Brasil é um dos mais extensos territórios do planeta é quase metade do continente ao qual pertence Possui diversos tipos de solos não possui vulcões nele não ocorrem terremotos Possui vários climas e a ordem das estações não é a mesma da Europa ambiente do descobridorconquistador Só há duas estações a seca e a quente e úmida A vegetação é sempre verde não havendo inverno rigoroso A floresta é como um campo de batalha as plantas se entredevoram e lutam pelo sol Essas florestas têm um ar sombrio O coração do descobridor se aperta diante de sua imensidão e seus perigos Há plantas exóticas que poderão ser úteis à Europa e sustentarão o comércio paubrasil jacarandá cedros algodão baunilha urucum castanheiras sapucaias cacau tabaco cará mandioca frutas ananás caju sapoti maracujá mangaba araticum frutadoconde pitanga araçá guabiroba jabuticaba Se as plantas têm alguma afinidade com as africanas o mesmo não acontece com os animais São todos especificamente americanos Não são paquidermes enormes Os maiores são o tapir ou anta Há ainda tamanduá tatu preguiça gambá tartaruga aves variadas e belíssimas arara tucano papagaio periquito araponga bemtevi curió bicudo patativa A nova terra oferece também numerosas plantas medicinais copaíba guaraná mate e outras e venenos terríveis de plantas e répteis animais ferozes A natureza que o português descortina é intimidadora pela extensão pelo vigor pelo desconhecido e sobretudo pela pobreza em minerais preciosos Eis a natureza brasileira vista por Pedro Álvares Cabral do alto do monte Pascoal Uma imensa terra verde com muita novidade muito exotismo e alguma gente Selvagem como a natureza O português que vê tudo isso pela primeira vez esse o sentido da ideia de descoberta se enche de fascínio e ao mesmo tempo de receio e decepção Varnhagen empático e aliado vem em seu socorro solícito e solidário com palavras de estímulo Ânimo Tudo doma a indústria humana Cumpre à civilização aproveitar e aperfeiçoar o bem e prevenir e destruir o mal Os Indígenas Aqueles homens exóticos habitantes daquela natureza exuberante e sem riquezas fáceis Varnhagen os descreverá com interesse mas sem afeição Eram segundo ele uma gente nômade que vivia em cabildas morava em aldeias transitórias pouco numerosa em relação à extensão do território Violentos mantinham guerras de extermínio entre si bárbaros não nutriam os altos sentimentos de patriotismo Sem amor à pátria essas gentes vagabundas em guerra constante constituíam no entanto uma só raça falavam dialetos de uma só língua a geral ou tupi Era uma unidade de raça e língua que poderia têlos levado à constituição de uma única nação Mas mantiveramse fragmentados e hostis entre si Não aparecera um só chefe que estabelecesse um centro poderoso como havia no Peru cuja aristocracia livre de cuidar só em resguardarse das intempéries e em adquirir o sustento pudesse pensar no bem dos seus semelhantes apaziguando as suas contendas civilizandoos com o exemplo Os laços de família primeiro elemento da nossa organização social eram muito frouxos Os filhos não respeitavam as mães e só temiam os pais e tios No amor não havia sentimentos morais As delícias da verdadeira felicidade doméstica quase não podiam ser apreciadas e saboreadas pelo homem no estado selvagem Rodeado de feras e homensfera não podem nele desenvolverse a parte afetuosa da nossa natureza a amizade a gratidão a dedicação Se eram favorecidos nos dotes do corpo e nos sentidos o mesmo não ocorria com o espírito Eram falsos e infiéis inconstantes ingratos desconfiados impiedosos despudorados imorais insensíveis indecorosos Eram fleumaticamente brutais Monótona e tristemente passavam a vida habitual entrecortada pelos sobressaltos da guerra festas e pajelanças Aos 30 anos o bárbaro tinha uma expressão ou melancólica ou feroz Possuíam vários vícios a hostilidade a antropofagia a sodomia a vingança comiam terra e barro Como Von Martius havia recomendado Varnhagen faz um longo estudo sobre os indígenas língua usos armas indústria ideias religiosas organização social trabalho guerra medicina Mas interessanos aqui o seu ponto de vista o seu olhar sobre essas alcateias de selvagens Diante dos estudos que fez ele se surpreende que haja ainda poetas e filósofos que vejam o estado selvagem como feliz Os indígenas passam por privações fome não têm lei religião vivem na selvageria na ferocidade Divididos os tupis em cabildas insignificantes que se evitam e guerreiam apenas atendem aos interesses ditados pelo instinto da conservação vital A sorte da mulher era julgada tão inferior à do homem que muitas mães afogavam as filhas ao nascerem As mulheres quase não eram mais do que escravas Ele descreve os rituais de sacrifícios humanos a antropofagia E afirma que não dirá mais sobre os horrores que praticavam os selvagens para não arrepiar a carne dos leitores como os bárbaros as de suas vítimas Sua pena ele insiste se detém irresistivelmente ao escrever essas misérias da humanidade bestial Tais eram os alienígenas ou aborígines que percorriam havia mais de três séculos todo o atual território do Brasil e percorriam ainda em 1850 uma parte dele onde não havia entrado ainda a luz da civilização e do evangelho Ele repete à vista do perfil que traçou dos bárbaros sem carregar nas tintas aliás ele não entende como alguns poetas e filósofos ainda veem no estado selvagem a maior felicidade do homem Nesse estado sem o auxílio mútuo da sociedade sem o cultivo eficaz da terra há sempre privação e fome que torna canibais os mais civilizados Sem os vínculos da lei e da religião tendese à ferocidade As leis tornam feliz o homem que se sujeita a elas O direito a justiça e a razão são melhores do que o instinto o apetite e o capricho O selvagem cercado de perigos não sabe o que é tranquilidade dalma receia e teme tudo Ele é inábil para concorrer para a melhoria da situação da humanidade Varnhagen sustenta uma tese surpreendente sobre as origens dos tupis eles teriam vindo da Ásia Menor derrotados na guerra de Troia fugindo das crueldades que se cometiam então contra os derrotados Teriam navegado o Mediterrâneo permanecido no Egito por algum tempo e finalmente teriam enfrentado o oceano e chegado ao Brasil E cita pontos de convergência entre a cultura indígena e a egípcia Por exemplo o tupi se aproxima do antigo egípcio A Descoberta do Brasil Tais bárbaros e barbaridades terseiam perpetuado neste abençoado solo tal anarquia teria despovoado o território se a providência divina não tivesse acudido a dispor que o cristianismo viesse ter mão a tão triste e depravado estado Essas gentes errantes desfrutavam sem os benefícios da paz e da cultura do espírito do fértil e formoso solo do Brasil Esse é o passado do Brasil que deverá ser esquecido ou que não deverá influenciar na construção do futuro da nação brasileira se preservado Deverá até ser preservado como antimodelo como modelo daquilo que o Brasil não quer ser Aliás os capítulos dedicados ao indígena na História geral do Brasil teriam esta função mostrar que o futuro do Brasil não poderá ter nesse passado a sua raiz O presentefuturo do Brasil se assentaria em um outro passado naquele que veio do exterior para pôr fim a essa barbárie e selvageria interiores Com a chegada do cristianismo do rei da lei da razão da paz da cultura da civilização com a chegada dos europeus a este território o Brasil surgiu e integrouse no seio da providência Para descobrirem o Brasil para veremno pela primeira vez os portugueses tiveram duas motivações o comércio com o Oriente e o espírito evangelizador as guerras comercial e santa a primeira dos europeus entre si a segunda entre os europeus unidos contra os muçulmanos A descoberta do Brasil se deu no contexto destas duas guerras que tinham criado duas controvérsias na Europa A primeira controvérsia referese à estratégia de tomada da Terra Santa deviase atacar diretamente os lugares santos e libertálos como fizeram os cruzados ou se devia expulsar o infiel porto por porto fortaleza por fortaleza a partir da Europa descendo pela África até o Oriente Portugal preferiu essa segunda estratégia segundo as orientações de Luel ou Lúlio um sábio medieval Após a reconquista do sul do seu próprio território Portugal atacou o norte da África conquistando Ceuta e fazendo retroceder o mouro Passou então a explorar a África A segunda controvérsia referese à estratégia para se atingir diretamente as Índias evitandose os intermediários muçulmanos e outros europeus da rota terrestre tradicional Havia dois caminhos possíveis a via ocidental e a via meridional A primeira trouxe Colombo à América a segunda levou os portugueses às Índias O caminho português pelo cabo da Boa Esperança levou mais rapidamente ao objetivo às Índias o caminho de Colombo levouo a um lugar inesperado Esse é o contexto mais amplo da descoberta do Brasil segundo a reconstrução de Varnhagen Os portugueses começaram levando vantagem sobre os espanhóis atingiram o seu objetivo com menos custos e menos ousadia É verdade que perderam a prata americana pois não apostaram no plano de Colombo Varnhagen lamenta esse prejuízo enorme mas defende os cosmógrafos portugueses que levaram o rei a cometer esse erro a sua argumentação era de peso Chegados ao Brasil por essas razões e pela via meridional e depois dos espanhóis Varnhagen passa a apresentar o desfile dos heróis portugueses pela paisagem e pela história do Brasil A Vasco da Gama devese a descoberta do Brasil pois foi ele quem orientou a navegação de Cabral Vasco da Gama e Cabral são os primeiros heróis da numerosa galeria de Varnhagen A descoberta do Brasil no entanto não foi planejada foi um feliz acaso O objetivo de Cabral quando saiu de Lisboa com suas caravelas não era vir descobrir o Brasil mas consolidar o novo caminho das Índias Ao chegar aqui ele se deparou com aquela natureza e seu morador descritos acima Na verdade só então começava a história do Brasil Os capítulos anteriores eles só prepararam essa chegada descrevendo o cenário em que ela ocorreria Varnhagen Cabral em terra põe então retoricamente a questão da sua propriedade pertenceria aos portugueses E responde pertencia sim desde 1494 isto é antes de ter sido descoberta pelo Tratado de Tordesilhas assinado por portugueses e espanhóis diante do papa Varnhagen até reconhece que não foi Cabral o primeiro a ter chegado ao Brasil Ele foi precedido por alguns navegantes espanhóis Américo Vespúcio Vicente Pinzon Diogo de Lepe Entretanto a vinda desses não tivera consequências Como a História geral do Brasil começa de fato aqui Varnhagen explicita o seu programa Como e quando se inteirou Portugal da existência do legado do Tratado de Tordesilhas como o descuidou a princípio e o beneficiou e aproveitou depois e finalmente como através de muitas vicissitudes guerras veio a surgir um novo império a figurar na orbe entre as nações civilizadas regido por uma das primeiras dinastias de nossos tempos tal é o assunto da presente história Portugal tomou conhecimento de suas terras somente seis anos após o Tratado de Tordesilhas em 1500 Poucos imaginariam que nessa terra dentro de algumas gerações se havia de organizar uma nação mais rica e considerável do que a mãepátria HGB701 Após o descobrimento o Brasil ficou à mercê de qualquer navio que o procurasse Os esforços e capitais portugueses estavam voltados para a Ásia Em 1501 no entanto foi enviada uma expedição de três caravelas para o reconhecimento da terra descoberta Américo Vespúcio fazia parte dela e praticamente a conduzia Dois tripulantes desembarcaram no cabo de São Roque onde aportaram e foram comidos pelos indígenas Varnhagen perde a neutralidade assim a primeira ruptura e agressão entre os da terra e os futuros colonizadores não partiu destes os quais foram vítimas da traição e a deixaram impune HGB83 Descendo para o sul d Nuno Manuel seu chefe com o calendário religioso na mão ia batizando a costa Os nomes pegaram Bahia de Todos os Santos Salvador São Sebastião do Rio de Janeiro São Vicente Angra dos Reis Esculpiu se no litoral brasileiro o perfil do rei português Foi essa primeira expedição que levou a má notícia ao rei a terra não era extensa não tinha metais preciosos e nem mercadorias só paubrasil A Coroa abandonou as suas novas terras então à exploração de particulares Assim mesmo o rei ainda enviava esquadras guardacostas caras e que não asseguravam a sua posse A colônia deveria não só se sustentar com seus próprios recursos como oferecer recursos à mãepátria Começou a triunfar a ideia de fundar no Brasil uma colônia vigorosa Desde 1516 haviam sido tomadas algumas providências em favor da colonização e do cultivo do Brasil Decorriam porém os anos e o Brasil seguia com o seu imenso litoral à mercê de qualquer navio Varnhagen defende a Coroa Não há por que fazer censuras Os investimentos na Ásia ofereciam um retorno mais imediato Mas as pressões estrangeiras sobre o litoral brasileiro forçaram a execução da ideia de ocupação e colonização Em 1530 veio uma esquadra comandada por Martim Afonso de Sousa para fundar feitorias fortalezas e cidades Ele fundou Piratininga que viria a ser São Paulo Em 1532 o Brasil foi repartido em capitanias hereditárias O projeto de ocupação do território para garantir a sua posse e exploração exclusiva se tornava cada vez mais concreto Havia sempre o interesse do lucro e o da propagação do evangelho Os 12 donatários das 15 capitanias empenharamse em atrair moradores que trouxessem capitais e aceitassem sesmarias Na Europa a tendência era a concentração do poder real na colônia regrediuse ao feudalismo a descentralização do poder real entre lusobrasileiros foi um meio profícuo de colonização Na Europa o rei concentrava poderes na colônia cedia poderes O donatário tinha inúmeros direitos era um segundo rei Quase se pode dizer ele conclui que Portugal reconhecia a independência do Brasil antes de colonizálo Aqui os portugueses cristãos adotavam usos bárbaros fumar comer milho mandioca abóbora taioba cará inhame Construíam casas de cipó Caçavam e pescavam com armas indígenas Dormiam em redes e tomavam um banho diário As mulheres indígenas logo se acasalavam com os europeus Elas gostavam dos europeus tanto por razões fisiológicas o branco é mais forte no sexo do que o índio quanto para se livrar do cativeiro em que viviam com seus maridos Os portugueses tornaramse polígamos A mulher foi o elemento que mais concorreu para a fusão das nacionalidades tupi e portuguesa Nasceram os mamelucos e os curibocas Varnhagen defende como sempre o colonizador eles não matavam e escravizavam os índios É injusto afirmálo Não sejamos tão injustos com os nossos antepassados Eles não podem se defender Se houve excessos foram punidos Os donatários se comportaram bem com os indígenas Eles procuraram cooptálos defendêlos tutelálos cristianizálos A força só foi usada contra os mais ferozes O tipo índio na verdade ele afirma desapareceu mais em virtude de cruzamentos sucessivos do que do verdadeiro e cruel extermínio O bárbaro vaidoso e independente desconhecendo os direitos da razão e a supremacia da consciência não admitia admoestações do colono que vinham da caridade evangélica Dissimulados e sempre no ataque aproveitavamse da primeira ocasião para cometer um assassinato Foi preciso a força para aceitarem a nossa tutela para aceitarem o cristianismo e adotarem hábitos civilizados É filantrópico civilizar e evangelizar o índio não o deixando entregue à sua barbárie Varnhagen se excede nesses comentários oscilando entre a sincera ingenuidade e o cinismo A Vitória Portuguesa contra Franceses e Holandeses Entretanto franceses e holandeses não estavam muito convencidos de que o Brasil pertencia aos portugueses e desconsideravam tais esforços de ocupação e colonização Os franceses consideravam as terras brasileiras tão suas como os portugueses As capitanias hereditárias não estavam sendo eficazes no controle ocupação e exploração da colônia Decidiuse criar um poder central no Brasil e retirar alguns poderes dos donatários O Governo Geral foi sediado na Bahia por ser mais central em relação a todas as outras capitanias Tomé de Sousa foi escolhido o primeiro governadorgeral depois Duarte da Costa depois Mem de Sá Em todas as capitanias temiamse as invasões estrangeiras Varnhagen fará então uma apologia da guerra para garantir o domínio português sobre o Brasil A guerra ele afirma ergue um país do torpor une e confraterniza na ação comum aperta os laços com o sofrimento O Brasil esteve separado em partes durante anos e mal se explica como veio a soldarse O governo não era eficaz corrupto roubava e escandalizava Por pouco o Rio de Janeiro não se tornou uma Guiana Francesa A guerra entre portugueses e franceses foi intensa no Rio de Janeiro A luta contra o inimigo comum estreitará pelos laços do coração a futura união brasileira Os holandeses depois contribuíram para apertar ainda mais esses laços da nação Que Deus permita que esta nação possa continuar a ser a primeira deste continente e chegue a ser uma das maiores do planeta o que sem muita união não poderá ocorrer HGB313 Contra os holandeses a união brasileira se consolidará Eles atacaram Salvador e Pernambuco O perigo comum fez aproximar mais o escravo do senhor o soldado europeu do brasileiro o índio do branco O índio Camarão e o negro Henrique Dias foram libertados um da barbárie e o outro da escravidão Eles honraram todos os índios e negros Varnhagen nessa circunstância de vitória portuguesa até relativiza a sua avaliação das raças inferiores se não têm prestígio não é por causa de suas cores mas por falta de méritos para serem atendidos O perigo comum aumentou muito a tolerância dos povos e estabeleceu mais fraternidade Da guerra contra os holandeses data o espírito público mais generalizado por todo o Brasil Os católicos brasileiros ficaram ainda mais intolerantes em relação a protestantes e judeus As guerras também são civilizadoras pois trazem energia e atividade a povos entorpecidos pela preguiça e pelo ilhamento O sofrimento educa e robustece Após as tormentas da guerra o Brasil se apresentava mais crescido e respeitável e mais reconhecido na Europa Na luta contra os holandeses o que agradou a Varnhagen foi a vitória portuguesa com o apoio da população brasileira indígena e escrava Após essa luta o Brasil se tornara definitivamente português E os portugueses mostraram o seu vigor não só contra indígenas e negros mas também contra holandeses e franceses Um povo vitorioso O Brasil que ele vê integrarse nesse momento não é um Brasil popular mestiço índio e negro ele celebra o coroamento da dominação portuguesa com o consentimento e a colaboração da população nativa A vitória contra os holandeses confirmou e concluiu a vitória portuguesa contra indígenas e negros Este é o ponto de vista de Varnhagen aqui não surgia o Brasilbrasileiro antiportuguês que outros verão depois mas o Brasilportuguês a consolidação de fato do que o Tratado de Tordesilhas garantia como um direito de Portugal Os Negros e a Escravidão Aos negros Varnhagen dedica poucas páginas assim como Von Martius em seu projeto de história do Brasil Moura 1990 Para ele os traficantes negreiros fizeram um grande mal ao Brasil entulhando as suas cidades do litoral e engenhos de negrarias A colonização africana teve uma grande entrada no Brasil podendo ser considerada um dos elementos da sua população o que nos obriga a consagrar algumas linhas a essa gente de braço vigoroso Mas fazemos votos de que um dia as cores de tal modo se combinem que venham a desaparecer totalmente do nosso povo as características da origem africana e a acusação da procedência escrava de um dos troncos da população brasileira apesar da escravidão no Brasil ter sido mais suave do que em outro país da América onde o anátema acompanha não só a condição e a cor como todas as suas gradações HGB223 Ao passar tais gentes ao Brasil como escravos na verdade melhoraram de sorte A escravidão é injusta por não ser filantrópica é um insulto à humanidade por ser um ataque ao indivíduo à família e ao Estado de onde foram arrancados Mesmo assim os negros melhoraram de sorte ao entrar em contato com gente mais polida com a civilização e o cristianismo Por causa desse encontro os negros da América são melhores do que os africanos Eles se distinguem pela força física o gênio alegre para suportar a sua sorte pela capacidade de trabalho Com o seu canto sempre melodioso e afinado embora monótono disfarçavam as maiores penas Entretanto fizeram mal ao Brasil com os seus costumes pervertidos seus hábitos menos decorosos despudorados Escravos viviam alheios à ternura da família tinham o coração endurecido A escravidão trouxe graves inconvenientes abusos crueldades quanto ao vestuário comida e bebida À pergunta de Von Martius O Brasil teria tido um desenvolvimento diferente isto é para melhor sem a introdução dos negros escravos Varnhagen responde afirmativamente sim sem os negros o Brasil teria sido muito melhor Foi um erro a colonização africana do Brasil Perpetuouse no Brasil um trabalho servil que ele se abstinha de qualificar mas que não se pode mais dispensar sem grandes males para o país Para ele o índio é quem deveria ter sido usado para o trabalho E ataca os jesuítas e defende os bandeirantes Foi a pseudofilantropia dos jesuítas que impediu a escravidão do gentio Estes quanto mais mimados e protegidos mais insolentes Os bandeirantes paulistas que caçavam índios pelo sertão fizeram menos mal ao Brasil do que os traficantes negreiros e do que os jesuítas A filantropia jesuítica em relação ao indígena era mais palavra do que exemplo eles próprios usavam o índio como escravo Sua proteção ao indígena deixou a colônia à míngua de braços o que forçou a importação de africanos Varnhagen portanto não considera que a presença negra tenha sido boa favorável à colonização portuguesa do Brasil Talvez pudesse ter sido evitada ou com o abandono do cultivo da cana ou então com o trabalho de brancos e índios entre cinco e nove horas da manhã e das quatro às seis horas da tarde descansando ou empregando em casa as horas mais quentes do dia como faziam os índios antes da chegada dos europeus Esse teria sido o caminho ideal sem negros Mas se fosse indispensável mesmo a vinda dos africanos que viessem não na condição de escravos romanos como coisa venal bens móveis mas na condição de servos fixandose o negro com sua família e dandose o primeiro passo para a sua emancipação lenta Assim terseia evitado o embotamento no escravo dos sentimentos mais ternos da humanidade ao separar pais e filhos maridos e esposas amigos de infância Nessa condição não haveria como esperar deles nobres sentimentos sobretudo em relação à pátria Varnhagen nesse momento parece ser menos racista e mais antiescravista não é somente a presença negra no Brasil que o desagrada mas sobretudo a presença da escravidão Se a presença do negro fosse infelizmente inevitável que ocorresse em outra condição uma condição que o ligasse ao Brasil e o levasse a considerálo a sua pátria Como escravo ele não se sentia e não poderia ser considerado lusobrasileiro A Família Real e a Independência Sobre a guerra da independência Varnhagen não a vê como uma verdadeira guerra Para ele o Brasil não se esquecerá jamais do seu tutor na infância e Portugal não se esquecerá jamais dos socorros que o Brasil lhe prestou Nenhum deles é devedor do outro Ambos devem gratidão e louvores um ao outro Se a metrópole agiu às vezes com despotismo injustiça incoerência ignorância e governou mal não se deve condenála pois ela quis acertar sempre Não era o governo central que errava mas os governos locais com a sua excessiva liberdade verdadeiros senhores feudais A metrópole agiu com rigor contra os homens que se voltaram contra ela e se foi muito rigorosa as razões de Estado justificam Em Minas Gerais alguns planos aéreos de insurreição foram logo denunciados e severamente punidos Na verdade ele acusa só houve um verdadeiro rebelde Silva Xavier Uma figura antipática feia e espantada ambiciosa que se tinha dado mal no exército e na mineração e só era hábil dentista Era pobre sem respeito e louco Seu pensamento estava abrasado por patriotismo e independência O patíbulo deulhe a glória que jamais teria tido vivo Infeliz Seus companheiros não eram tão febris quanto ele Tomás Antônio Gonzaga não era um conspirador Varnhagen lamenta a violência da repressão mas a considerou necessária E se vencesse a revolução ele pergunta o Brasil estaria hoje em melhor estado Uma pequena república encravada no império teria sido um mal e outras nações logo se teriam aproveitado da quebra da unidade e voltado a lutar por outros territórios brasileiros Felizmente a providência veio em socorro do Brasil e o manteve unido resguardandoo na única situação em que podemos procurar ser felizes e fazernos respeitar como nação Varnhagen expressa as formas de pensamento ajustadas ao sistema colonial Ele vê o Brasil como o veem os seus administradores e demais representantes da mentalidade oficial e os não inquietos Estes veem qualquer ideia de revolução no Brasil no final do século XVIII como uma maldade um desrespeito ao rei Para os representantes da Coroa e Varnhagen será um depois a revolução não é boa O Estado precisa de homens bons honrados bons pagadores da Fazenda real A liberdade existe nos limites da fidelidade ao rei O colonizador é visto como um elemento natural na organização das coisas bom a quem se deve grande obrigação O sistema é imparcial O mundo social está consolidado e bem organizado e toda atitude de inovação seria um desrespeito à propriedade e à autoridade do rei e dos seus representantes Mota sd Nessa perspectiva Varnhagen agradecerá à providência por ter interferido e impedido o sucesso das rebeliões do final do século XVIII e início do XIX que teria comprometido a continuidade portuguesa na passagem da colônia a nação Quanto à revolução baiana de 1798 ele considera ainda mais feliz o seu aborto era um arremedo do horror da Revolução Francesa Seus líderes foram severa e justamente punidos Era ainda menos nobre e patriótica do que a Inconfidência Mineira Entretanto se a Revolução Francesa nos trouxe as rebeliões ela nos trouxe repercussões ainda mais importantes Trouxe nos a própria família real que os brasileiros esperaram no porto de braços abertos O Brasil tinha então segundo ele mais ou menos 3 milhões de habitantes dos quais um terço era escravo Os índios nada tinham aprendido e estavam nas florestas ou em aldeias sem nenhuma vantagem para a sociedade As mulheres sofriam com a tirania doméstica viviam reclusas escondendose das pessoas estranhas à família casandose sem conhecer os noivos Foi nesse Brasil colonial que o príncipe desembarcou em 1808 na Bahia e já foi emancipandoo da sua condição colonial A emancipação não foi gratuita Portugal invadido e em guerra a Coroa precisava se manter e arrecadar tributos A ideia da independência do Brasil foi trazida pelo próprio príncipe regente de Portugal Varnhagen solta a sua língua cortesã d João VI era bom religioso justo honrado fino sem ambições dotado de felicíssima memória apreciava os sermões o pregador e a sua retórica Para ele e Varnhagen assentia só a religião poderia sustentar os impérios e fortificar as constituições Foi um perfeito modelo de um soberano amante do povo Sua presença tornou o Brasil a sede de um império enorme europeu africano asiático Além disso a sua presença garantiu a integridade do Brasil A revolução pernambucana de 1817 Varnhagen tem enorme desgosto em tratála Não deveria ser catalogada entre as glórias do país Em 1817 a independência já estava madura pois já começara com a franquia dos portos em 1808 às nações amigas Inglaterra de Portugal O Brasil quanto à independência estava à frente de toda a América Latina A providência sempre amparou o Brasil contra a desunião e a fragmentação Hoje todos reconhecem as vantagens da integridade do Brasil Todos sabem que separar é fácil difícil é unir É ilusório pensar que as províncias separadas poderiam gastar consigo seus recursos não seriam suficientes E a separação do Brasil de Portugal quebrando a unidade do Império teria sido justa O Brasil conseguiria se manter com os seus próprios recursos Varnhagen seria certamente contra e uma vez mais pediria o socorro da providência se a ideia de independência não tivesse sido levada adiante pela própria família real A independência do Brasil foi muito estranha não foi feita contra a família real mas pela própria família real portuguesa É uma situação tão curiosa e inesperada que só a história pode fazer compreender D João VI defendia a ideia de um reino unido de Brasil e Portugal Os brasileiros moderados eram favoráveis a essa ideia também Varnhagen também preferia tal solução Mas as elites portuguesas queriam que o Brasil retornasse à condição de colônia Só então a ideia de independência se radicalizou E no interior da própria família real Foi um príncipe português que liderou o processo de emancipação política do Brasil lutando contra os seus próprios súditos portugueses por um outro povo um outro país um outro projeto de nação A essa independência Varnhagen não se opõe Sua fidelidade é ao rei à Monarquia que garantem a unidade e o cristianismo Divisão e separação só se for entre reis os únicos qualificados para o governo A um príncipe português o Brasil deve a liderança da sua independência e ao seu filho o Brasil deve a consolidação da sua unidade O patriotismo caboclo fonte do nacionalismo atual ele o considera prejudicial ao Brasil Varnhagen defende a presença portuguesa no Brasil ele faz o elogio da colonização portuguesa é compreensivo com os seus erros e despotismo A independência não foi prejudicial porque garantiu a continuidade do Brasil colonial no nacional um Brasil português A independência não interrompeu o passado melhorouo O Brasil continuava português imperial e ainda por cima independente A nação brasileira seria construída racionalmente pelo Estado imperial autoridade indiscutível absoluta A independência não foi problemática porque o Estado não foi comprometido continuava nas mãos da dinastia de Bragança O Estado brasileiro será construído sobre o modelo do Estado português A unidade deverá ser preservada a qualquer custo O Estado funcionará como um ímã da nação gigantesca assegurará a ordem a lei a religião a unidade Ele continuará a ação civilizadora da Europa branca O novo Estado nacional garantirá o conservantismo a continuidade O cristianismo sustentará o regime monárquico A uniformidade cultural e a unidade nacional se fizeram com lutas sangrentas Darci Ribeiro recentemente reconheceu sem perder seu grande vigor crítico que as velhas classes dirigentes brasileiras tiveram pelo menos este mérito evitaram a fragmentação A unificação foi um processo violento suprimindo toda discrepância discordância separatismo mas indispensável à consolidação da nação brasileira Varnhagen também considera a unidade nacional um valor sem preço Ele apaga as tensões e considera a violência do Estado necessária pois senão seria a fragmentação com uma violência ainda maior e o fim do Brasil Odália 1979 Ribeiro 1995 Varnhagen e a Verdade Histórica Varnhagen quis produzir a verdade histórica do Brasil com uma história científica isto é documentada conforme o método afastando o lendário e o maravilhoso e evitando os juízos de valor Sua história ele pretende que seja movida pelo amor à verdade e assim como Ranke ele quis narrar os eventos tal como se passaram A verdade afirma ele é alcançada ao se reunir o maior número de testemunhos acareandoos entre si e com certos fatos já estabelecidos Ele procurou restringirse aos documentos oficiais interpretandoos com o devido critério esmerandose em ser conciso e exato sem se emaranhar em pormenores que se contradigam que escapam após lidos e nada ensinam O bom critério é o que aprecia devidamente os fatos apurando deles a verdade Afirma enfaticamente que sempre há de dizer a verdade segundo a sua consciência mesmo que lhe cause dissabores O dissabor maior para o historiador é capitular covardemente contra as próprias convicções A verdade é só uma e há de triunfar em vista dos documentos A missão do historiador não é adular lisonjear a ninguém Ele afirma preferir desagradar publicando a verdade a ser aplaudido faltando a ela Talvez Varnhagen possua ainda uma concepção clássica da verdade histórica e do tempo histórico ou então ele usa a concepção moderna para salvar aquela Araújo 1988 Na medida em que defende e faz uso do método crítico em que reivindica a objetividade a imparcialidade ele é moderno Isto é desconfia da memória e da tradição Mas na medida em que é um historiador do império português e defensor da continuidade do passado colonial no futuro do Brasil é um defensor da tradição e da verdade clássica O futuro do Brasil deve ser ou o mesmo passado ou a melhoria do passado A linearidade não representaria uma ruptura com o passado e o predomínio do futuro sobre o presente A linearidade é só um melhoramento do passado A ideia de progresso é mais aplicável nesse contexto Varnhagen é um progressista gradualista um defensor da continuidade do passado no futuro Reivindica a verdade objetiva quando esse passado se vê ameaçado pela modernidade contra a linearidade como revolução Varnhagen seria um iluminista prérevolucionário progressista e gradualista O passado resolveria os seus problemas sem necessidade de ruptura A verdade moderna que se baseia na dúvida e na crítica documental tornase nele uma verdade clássica baseada em valores éticos A crítica documental moderna leva à ação segundo a tradição A crítica documental não se opõe à tradição resgataa livrandoa da mentira e da crise restaurandoa em seu vigor O espaço da experiência oferecerá exemplos a história clássica representava sempre a mesma coisa e por isso quando ameaçada pela mudança brusca precisa do método crítico para que o mesmo sempre representado seja fidedigno e o passado possa ter uma influência ética e pedagógica para que ele possa ser mestre da vida O horizonte de espera é orientado por exemplos representados pela história do espaço da experiência Sua verdade histórica é clássica e moderna Clássica o passado é mestre do futuro este imita aquele a verdade é ética moderna o método crítico garante a pureza do exemplo e revigora a tradição A História geral do Brasil é uma história sobretudo políticoadministrativa repleta de fatos nomes e datas individualista e psicológica Ela não abrange todos os aspectos da vida nacional Assemelhase a um nostálgico e prazeroso álbum de fotografias das ações dos heróis portugueses Cada descrição é minuciosa como se fosse um quadro ou uma foto Acima de cada uma o títulolegendacomentário e a data O enérgico governadorgeral Tomé de Sousa em Salvador 1549 O benemérito governadorgeral Mem de Sá expulsa os franceses do Rio de Janeiro 1560 O cristão d Nuno Manuel batizando a costa brasileira com o calendário religioso na mão 1501 O ilustre paulista pe Bartolomeu Lourenço revela os planos do aeróstato Passarola 1715 O bom religioso e justo d João VI desembarca na Bahia 1808 Sua narrativa é uma construção que tenta coincidir com o vivido uma reconstituição do que de fato se passou O tempo pensado é assimilado ao tempo vivido A sua marcação do tempo é a de um contemporâneo na noite de oito para nove desse mês de setembro à hora da missa em um domingo no princípio de setembro dois dias depois no dia 19 mas logo no dia 25 logo no dia imediato na noite de 5 de abril mês e meio antes no dia seguinte que era dia 19 domingo de Pascoela às 7 da manhã a ação durou de 3 a 4 horas O resultado cognitivo desse não distanciamento do tempo da reconstrução o pensado do tempo vivido é um conhecimento de contemporâneo muito vivo mas confuso pouco crítico Sem distanciamento o historiador se confunde com o contemporâneo que conhece o que vive mergulhado em brumas A imitação do vivido se faz com prejuízo da compreensão não se tem uma visão de conjunto Varnhagen parece não dominar aquilo que é o essencial da tarefa do historiador cortar e recortar o tempo periodizar criar ritmos que facilitem o domínio e a compreensão da vida social Alguns críticos concordam que essa falha na organização temporal da História geral do Brasil é a principal falha de Varnhagen Capistrano de Abreu por exemplo também considera a sua obra pobre na periodização Ele afirma que Varnhagen organiza a sua exposição cronologicamente e não tematicamente Quis privilegiar o tempo datado a cronologia miúda minuciosa mas o que conseguiu foi confundirse com o contemporâneo que também narra o que vive assim ontem anteontem no dia seguinte daqui a um mês no dia 1o de abril Capistrano afirma que Varnhagen não conseguiu por isso perceber o todo o que dificultou a sua interpretação do Brasil Capistrano considera a HGB um livro arisco fugidio detalhado mas incompleto e lacunar Faltoulhe a visão de conjunto que só uma periodização bemfeita pode oferecer Detevese em detalhes sem importância em acontecimentos e personagens esquecíveis Para tentar corrigir o defeito essencial da HGB Capistrano proporá uma periodização da história do Brasil que a cortará em seis períodos e oferecerá uma visão de conjunto Varnhagen não soube distinguir esses períodos e não propôs outra periodização sendo este para Capistrano o erro fundamental da sua obra Abreu 1975a Mesmo se todas as obras de história são inevitavelmente incompletas e lacunares o que não é um problema incontornável para o historiador que sabe disso a de Varnhagen talvez sejao mais ainda por ter ele ingenuamente pretendido produzila geral e completa ANOS 1930 GILBERTO FREYRE O reelogio da colonização portuguesa G Freyre Neovarnhageniano Conservador e Genial Gilberto de Mello Freyre autor de Casagrande senzala publicado em 1933 e de uma obra vasta e volumosa na qual se destacam ainda Sobrados mocambos 1936 e Ordem progresso 1959 pernambucano nasceu em 1900 e faleceu em 1987 Casagrande senzala é a obra de interpretação do Brasil mais conhecida no país e mais traduzida e editada no exterior Freyre possui todos os títulos prêmios e honras acadêmicas de quase todas as grandes universidades do mundo o que ele não se cansa de lembrar e recitar Aliás ele tem toda razão de se orgulhar desse fato pois as grandes universidades do mundo não distribuem as suas bênçãos irresponsavelmente sem rigorosos critérios E censurálo por ser tão bemsucedido e se orgulhar de sêlo como é comum não é muito simpático e elegante Sua obra é reconhecida como uma referência superior da ciência social pelos mais importantes cientistas sociais do mundo L Febvre F Braudel R Barthes e outros Entretanto ele jamais aceitou ser classificado como um especialista das ciências sociais antropólogo sociólogo ou historiador e sempre se apresentou como escritor ou ensaísta Freyre 1968 O que não limitou no interior das ciências sociais a repercussão e o alcance da sua obra que são enormes pelas inovações metodológicas pela flexibilidade e beleza do texto algo original reunindo literatura e ciência social Motta 1981 Briggs 1981 Faremos uma compilação dos comentários de alguns dos seus mais ilustres analistas a fim de oferecer uma ideia da dimensão da sua repercussão no interior das ciências sociais Para a maioria deles Freyre introduz na análise racionalmente conduzida uma forte quantidade de afetividade e subjetividade É um texto de ciência social qualitativo que incomoda a ciência social preocupada com a quantificação ele conclui muito além dos dados que oferece dados que para Leite já são mal medidos e mal controlados Leite 1983 O que ele produziu foi uma espécie de autoantropologia da cultura na qual nasceu a nordestinobrasileira Como um romancista não se colocou fora do seu próprio objeto já que este objeto faz parte da sua vida e consciência Sua escrita é encarnada comprometida ela traz à expressão uma grande margem da história até então muda não refletida e explicitada Seu texto é científico e político O seu estilo é oral coloquial como uma conversa informal entre o presente e o passado Ele fala do Brasil a partir de dentro e não como de um objeto natural Seu pertencimento ao seu objeto dá ao seu texto uma impressão de autenticidade de verdade imediata e interior Ele parece ter uma visão do passado Freyre parece experimentar o vivido que descreve Seus analistas comparam o seu estilo ao de Proust uma introspecção meticulosa e emocionada do passado uma visita realista ao vivido passado Ele próprio declarou inspirar se em Proust O misterioso por ser familiar o indizível por ser íntimo Freyre o revela e expressa O Brasil colonial aparece vivo revivido e em toda a sua complexa contraditoriedade Merquior 1981 Duvignaud 1981 Talvez o que mais inquiete os leitores mais resistentes ao fascínio de Casagrande senzala afirma Motta seja essa percepção do vivido de forma poliédrica sem nenhuma determinação em última instância Motta 1981 Casagrande é como um livroonírico atravessado de associações de deslocamentos condensações e tropos diversos fruto de uma profunda intuiçãoimaginação do Brasil Freyre quis demonstrar que houve uma solução brasileira para um acordo entre diferentes tipos de vivência diferentes padrões culturais No Brasil teria havido um bemsucedido ajustamento para um profundo desajustamento Freyre é um autor criativo sensível ao cheiro à cor ao ruído ao amor e ao ódio ao riso e ao choro O passado colonial brasileiro é percebido com o seu cheiro e prazer de viver Ele penetrou no seu tecido social e expressou o inconsciente da vida coletiva a sua cotidianidade afetiva Ele produziu uma radiografia do passado interno brasileiro afirma Merquior Contudo radiografia talvez seja uma metáfora naturalista demais O que ele produziu foi uma revivência uma recriação do nosso passado em seu espírito e no espírito do leitor Para Merquior a sua obra representou um avanço colossal em nosso conhecimento de nós mesmos brasileiros Por ser sobretudo um poeta do Brasil a discussão metodológica ligada ao lado de ciência social da sua obra não é uma discussão simples Quais são as suas referências teóricometodológicas Onde e com quem ele se formou A sua formação é basicamente norteamericana no colégio americano batista de Recife onde se tornou protestante na Universidade de Baylor no Texas 191820 e na Universidade de Colúmbia Nova York orientado por Franz Boas Chacon 1993 Costa Lima considera entretanto que Casagrande levou a pesquisa histórica brasileira a uma problemática nova e alemã a do historicismo de Dilthey Simmel e Weber apesar de Freyre pouco citar fontes alemãs Segundo Barbu Freyre encontrou grandes afinidades com a sociologia compreensiva de Weber com a abordagem empática A este núcleo weberiano foram agregadas noções de variável importância metodológica como as de personalidade e desdobramento consciente da personalidade Com essas noções ele procurou apreender os estados de espírito ibéricos as experiências vividas Barbu 1981 Entretanto a sua formação americana é só indiretamente alemã através da presença de Franz Boas Este dava ênfase ao conceito de cultura combatendo o evolucionismo biológico racial Boas não acreditava que a pobreza estaria reservada aos mestiços ditos biologicamente inferiores A raça não seria determinante sobre o meio cultural Grupos de uma mesma raça respondem diferentemente aos desafios geográficos econômicos e sociais e políticos criando culturas distintas Como os meios antropológicos estavam marcados pelo determinismo geográfico e racial essa ênfase na cultura trará uma mudança significativa na pesquisa social Os fenômenos culturais são complexos e para eles não há leis Boas negava o determinismo o evolucionismo o cientificismo e se aproximava do historicismo alemão com sua ênfase na cultura e na relatividade dos valores Lima 1989 Freyre seria historicista portanto não no sentido de Popper mas no de Dilthey Ele propõe uma abordagem empática da realidade social que lhe permitiu desenvolver uma história sociológica Seu objetivo é alcançar a subjetividade é apreender a vida em seu interior Uma história política psicológica vitalista dionisíaca e não intelectualista Ele criou tipos reunindo elementos inconciliáveis A interpenetração de seus tipos inconciliáveis se faz pelo símbolo Casagrande senzala Sobrados mocambos Ordem progresso Ao formular tipos ideais ele se aproxima de Weber ao interpenetrálos aproximase de Simmel Para apreender a interconexão dos tipos ele estudou o cotidiano um campo de pesquisa social então original inovador Desenvolveu uma sociologia genética ou uma sociologia histórica que mostra as instituições em suas formas de convivência e em seu desenvolvimento no tempo Bastos 1986 Sua abordagem é histórica não evolucionista não progressista ele é antiiluminista como os neokantistas alemães A história não é linear e não realiza a razão a história se revela em formas particulares em mundos históricos específicos Alguns analistas de Freyre entusiasmamse quando fazem o seu elogio ele é descrito então como um místico sensual um espírito encarnado Marias 1981 Os místicos castos o consideram obsceno pornográfico e queimaram a sua obra em praça pública Em nome da sua castidade Chacon 1993 Para F H Cardoso Freyre é mais do que um cientista ou mesmo um escritor é um verdadeiro criador Os resultados que alcançou estão além do instrumental metodológico de que dispunha Cardoso 1993 Alguns se referem à ideia de uma radiografia do Brasil já mencionada acima que nos parece naturalista demais e talvez inadequada Como historiador o que Freyre fez foi uma transposição uma transferência de si mesmo ao passado brasileiro para revivêlo empaticamente em sua intimidade em seu espírito Sua história criativa do Brasil despreza tudo da história políticoadministrativomilitar por uma vida rotineira onde se sente melhor o caráter de um povo Sua obra é uma aventura de sensibilidade O passado é reposto no presente como uma realidade viva que sustenta e contrasta com o presente Duvignaud 1981 Kujawski 1981 Ele descobriu junto com os franceses dos Annales a história do cotidiano a história das mentalidades coletivas a renovação das fontes da pesquisa histórica receitas culinárias livros de etiquetas fotografias festas expressões religiosas brinquedos e brincadeiras infantis cantigas de roda histórias infantis relatos de viajantes estrangeiros autobiografias confissões individuais diários íntimos lendas folclore periódicos E sem negligenciar ou dipensar as fontes instituicionais oficiais estatais Seu uso da documentação era sem preconceito e exclusões Barbu 1981 Chacon 1993 Skidmore 1994 Nas novas fontes e no novo olhar lançado por Freyre sobre o Brasil colonial o imaginário se mistura à realidade e a realidade social ganha toda a sua densidade Freyre vê a história pelos seus inúmeros lados e o conhecimento do Brasil se torna quase mediúnico Motta 1981 Ele incorpora o passado o sujeito que conhece coincide com o objeto conhecido Para Barbu Freyre possui o dom de ver os dois lados da lua ao mesmo tempo o lado aparente e o lado oculto percebe o todo em sua complexidade unifica e harmoniza a divergência e a tensão Febvre afirma prefaciando a tradução francesa que Casa grande não é um livro simples é um enorme painel do passado nascido de uma meditação sobre o futuro Ele não oferece respostas fortes mas nos convida a refletir sobre a questão maior do século XX é possível uma única civilização na qual todos possam encontrar a sua pátria cultural Para Braudel prefaciando a tradução italiana o estilo de Freyre é o de uma sereia ele nos dá um prazer concreto físico levandonos a viajar com a sua linguagem musical irresistível por luxuriantes paisagens tropicais4 Enfim se se leva em conta todas essas avaliações apologéticas feitas por seus ilustres analistas Casa grande senzala pode ser considerada a obra de um brasileiromestiço genial Freyre e Varnhagen Entretanto Casagrande senzala é uma obra neovarnhageniana é um reelogio da colonização portuguesa é uma justificação da conquista e ocupação portuguesa do Brasil O Brasil é visto como uma sociedade original e multirracial nos trópicos obra do gênio português Skidmore 1994 Na sua história patriarcal cujo palco é a casagrande onde se exprimiu melhor o caráter brasileiro ele enfatizará também a nossa continuidade da colônia à nação O livro genial de Freyre renovou a visão do Brasil das elites em crise Ele revigorou o mundo que as elites lusobrasileiras criaram no passado e confirmou o elogio e a legitimação que lhe havia feito Varnhagen nos anos 1850 É claro nos anos 1930 Freyre o fará em outro ambiente histórico e intelectual com outras palavras com uma nova metodologia com uma nova estratégia política Ele confirmava Varnhagen Tenhamos a honestidade de reconhecer que só a colonização latifundiária e escravocrata teria sido capaz de resistir aos obstáculos enormes que se levantaram à civilização do Brasil pelo europeu só a casagrande e a senzala O senhor de engenho rico e o escravo capaz de esforço agrícola e a ele obrigado pelo regime do trabalho escravo Freyre 1933 Freyre até supera Varnhagen nesse elogio Seu reelogio do passado é uma exaltação uma idealização Para ele é injusto acusar os portugueses de terem manchado com a escravidão a sua obra grandiosa de colonização tropical O meio e as circunstâncias exigiram o escravo A princípio o índio Quando este por incapaz e molengo não correspondeu mais às exigências da agricultura colonial veio o negro Deixemonos de lirismo em relação ao índio ele se exalta a sua substituição não se deu por razões morais altivez espírito livre o índio falhou no trabalho sedentário Teria sido mesmo um crime transplantar e escravizar o negro Para alguns ele responde e inclusive Varnhagen mencionado por ele foi um erro e enorme Mas e Freyre continua em defesa dos colonizadores portugueses ninguém nos disse até hoje que outro método de suprir as necessidades do trabalho poderia ter adotado o colonizador português no Brasil Só Varnhagen ele reconhece criticando o caráter escravista e latifundiário dessa colonização lamenta não se ter adotado o sistema de doações de terras a agricultores europeus Com doações pequenas o Brasil teria atraído mais gente e constituído uma população mais homogênea Varnhagen também propôs a servidão com o negro sugerindo ter uma resistência maior à escravidão do que ao próprio negro Varnhagen portanto mesmo sendo um dos primeiros grandes defensores da colonização portuguesa lamentava que ela tivesse tido de ser latifundiária e escravista Mas essa discordância não separa Freyre e Varnhagen Se este não aceitava a escravidão era sobretudo porque ela implicava a presença negra no Brasil em miscigenação em desprestígio para a raça brasileira que ele desejava que fosse branca pura Para ele a colonização portuguesa teria sido ainda mais bemsucedida se não tivesse tido que contar com a presença negra Varnhagen lamenta o que a escravidão representou em termos raciais a presença africana no Brasil O latifúndio e a escravidão seriam mais toleráveis se o escravo fosse o índio que a pseudofilantropia jesuítica impediu O que ele não aprecia é a negreria que enche as cidades e engenhos brasileiros Freyre é mais radical em seu apoio às opções pelo latifúndio e pela escravidão porque ele aceitou e valorizou a presença negra no Brasil Se o negro só trouxe vantagens se sua cultura é riquíssima se sua companhia é alegre e terna se as negras e mulatas são tão lindas e sensuais se a miscigenação não é o grande problema do Brasil o latifúndio e a escravidão não foram erros obstáculos problemas foram opções corretas que tornaram possível o sucesso do português nos trópicos Freyre portanto vai mais longe e fundo na defesa da colonização portuguesa no Brasil Mesmo com a presença negra e muito graças a ela a colonização portuguesa foi um sucesso total Ele a aceita integralmente sem reservas É como se o seu elogio fosse feito plenamente pela primeira vez Diferente de Varnhagen ele não pensava mais o Brasil em termos raciais mas em termos culturais Nessa perspectiva não há que censurar a presença africana Pelo contrário essa presença enriqueceu fertilizou abrilhantou a obra portuguesa A mestiçagem talvez tenha sido o grande feito português e o que tornou possível a colonização europeia nos trópicos Nos anos 1850 quando Varnhagen fez seu balanço e legitimação da colonização o Brasil passava de colônia a nação e ele defendeu a continuidade colonial da nação que se projetava e se queria consolidar Foi mais brando em seu elogio se é que se pode considerálo brando Em relação a Freyre ele pode ser mais crítico pois o futuro estava aberto a essa continuidade colonial Freyre nos anos 1930 faz o seu reelogio na passagem da naçãocolonial à naçãomoderna transição que ele recusa Ele opta pelo passado e não vê em sua ânsia de descrevêlo como o melhor tempo do Brasil nenhuma contradição tensão problemas obstáculo dificuldade Quando Varnhagen fez a sua defesa da colonização portuguesa e da continuidade da sua obra pelo Brasil ele não tinha opositores concretos eficazes poderosos pois a dinastia que governava o Brasilcolônia era a mesma que governava o Brasilnação Ele descreve e defende um Brasil que continuava que superou rebeliões separatismos e que se unificou e se consolidou A defesa de Freyre foi feita no momento de crise ele vê aquele mundo que o português criou naufragando contestado por todo lado e o surgimento de um novo Brasil Ele então vira as costas ao novo e se lembra com deleite com paixão sem censuras e reservas do Brasil das elites patriarcais Freyre e Capistrano Entretanto alguns analistas o colocam na mesma linha de interpretação do Brasil de Capistrano de Abreu Para Astrogildo Pereira líder comunista Freyre tomava por protagonistas da história não os heróis oficiais mas a massa anônima na linha de Capistrano de Abreu um dos autores mais citados por ele5 Também em Capistrano o conceito de cultura substituiu o de raça seus estudos indígenas renovaram a nossa etnografia Em seus Capítulos de história colonial ele deu importância à história social e dos costumes e pela primeira vez apareceu a casagrande e a senzala Rodrigues 1965 Capistrano teria antecipado alguns temas de Freyre a escravidão doméstica com a ama de leite e a mucama o caráter carinhoso doce e alegre do negro amenizando as relações senhor e escravo Capistrano era entretanto mais crítico em relação à tese da democracia racial de Freyre o mestiço tinha vida difícil era visto com aversão e estava impossibilitado de ocupar certos postos Os mulatos não podiam receber ordens sacras por exemplo Ter um padre na família era a prova de um sangue limpo Mas retorna à tese de Freyre com o tempo os mulatos souberam melhorar a sua condição social Quando tinham talento e audácia iam longe Mas a difícil mobilidade social se restringia aos mulatos Os negros permaneciam excluídos o Brasil era o seu inferno No entanto com a sua alegria nativa seu otimismo persistente sua sensualidade animal sofriam bem o cativeiro afirma Capistrano Cantavam e dançavam para aliviar o peso do trabalho duro e alegrar o coração Sobretudo no 11o capítulo de Capítulos de história colonial intitulado Três séculos depois Casagrande senzala é antecipada em sua temática múltipla e original nada políticoadministrativa ou biográfica mas cultural e psicológica uma abordagem íntima da vida das mulheres negros mestiços paulistas mineiros gaúchos Este capítulo final é um esboço de história cultural uma espécie talvez de préprojeto de Casagrande senzala Consideramos sustentável esta leitura que associa Freyre e Capistrano mas somente em alguns aspectos temáticos e metodológicos Todos os argumentos precedentes que os colocam em uma mesma linha de interpretação do Brasil parecem nos corretos Entretanto entre os dois vislumbramos um abismo Freyre prossegue o caminho inaugurado por Varnhagen na defesa do passado colonial brasileiro sua interpretação do Brasil é continuísta conservadora passeísta lusófila patriarcalista escravista colonizadora Seu olhar é um olhar branco aristocrático elitista embora muito sofisticado Capistrano romperá com a linha varnhageniana de interpretação do Brasil e iniciará uma corrente não aristocrática lusófoba antiescravista anticolonizadora antipatriarcal emancipacionista mestiçapopular nacionalista Freyre ligase à orientação de Capistrano Sim mas não quanto ao essencial Quanto ao essencial Freyre é ainda um descobridor do Brasil Ele esteve identificado às forças conservadoras da política brasileira Seus temas prediletos a nobreza da vida dos senhores de engenho a alegria dos escravos a delícia da cozinha tradicional os males e decadências do progresso do século XX Ele dispõe de uma teoria inovadora mas usaa para conservar a realidade brasileira Leite o define como um intelectual de direita aceito pelos grupos do poder que se veem enobrecidos e legitimados pelas suas teses apresentadas de forma sedutora envolvente Leite 1983 Freyre e os Marxistas O pensamento social marxista brasileiro vai se opor vigorosamente a Freyre por essa razão F Fernandes e sua equipe de pesquisadores que produzirão nos anos 196070 pensarão o Brasil com os conceitos de classe social e luta de classes e vão se opor à visão idílica do Brasil colonial produzida por Freyre Mota compilou as principais críticas marxistas a ele Estes o consideram um intelectual orgânico das oligarquias dominantes em crise Freyre teria elaborado uma visão senhorial do Brasil relatando a saga da oligarquia rural desnudando liricamente a sua vida íntima Em sua visão do Brasil as elites lusobrasileiras são apresentadas como civilizadoras produtoras do progresso detentoras da razão histórica brasileira Para apresentálas assim Freyre apagaria as tensões as agudas contradições reais que caracterizaram as relações sociais entre senhores e escravos O mundo que o português criou é apresentado como harmônico equilibrado democrático Raças e classes diferentes e em luta viviam harmonizadas em uma cultura genuinamente brasileira Casagrande seria uma obra de um filho da República Velha um esforço de compreensão da realidade brasileira realizado por uma elite que vinha perdendo poder É uma busca do tempo perdido uma volta às raízes para reencontrar o poder e a glória perdidos O tom é de perda de nostalgia de saudade Construindo uma história do Brasil em termos de continuidade Freyre valoriza a ação dos colonizadores que se prolongou da colônia ao século XX nos seus sucessores as oligarquias regionais As relações de dominação no Brasil são ocultadas quando foram violentas cruéis Freyre atingiria o cinismo ao falar de democracia racial para se referir à realidade brasileira escravista Mota 1978 Sua valorização da cultura negra não levou em consideração a condição econômicosocial de escravo do negro Ou pelo menos não até às últimas consequências Assim Freyre se tornou o pensador da crise das oligarquias e o seu escamoteador Seu perfil é ao mesmo tempo revolucionário e conservador Como conservador ignorou os movimentos sociais da Colônia e do Império esvaziou as contradições sociais ao criar um efeito global neutralizante uma verdade poliédrica que tudo vê tudo integra e tudo conserva A história perde dinamismo pois suas tensões são harmonizadas Freyre se coloca no lugar do heróicolonizador Mota 1978 Conservador ele é otimista em relação ao passado e pessimista em relação ao futuro Varnhagen era otimista em relação ao passado e ao futuro seu elogio foi enfático porém mais sereno e crítico pois feito em uma fase de consolidação do poder oligárquico Freyre fará o seu reelogio em plena crise sua opção pelo passado se radicaliza e ele se torna menos crítico Só é crítico em relação ao futuro que se anuncia e que ele definitivamente recusa Ao ser menos crítico em relação ao passado tornase paradoxalmente revolucionário ele integra os excluídos do passado em sua visão do Brasil Os negros os índios a miscigenação os brancos pobres a cultura popular que integrar de fato à sociedade brasileira será uma tarefa do futuro ele os integra idealisticamente no passado O olhar conservador em crise tem saudade até dos seus males e os vê mais harmoniosamente A experiência da finitude torna os poderosos de ontem mais brandos e os seus oprimidos de então eles os veem agora com doçura com amizade e ternura Nessa polêmica FreyreF Fernandespesquisadores do Cebrap aparecem duas disputas uma teórica e outra política A primeira opõe marxistas e historicistas o motor da história não são as ideias não são as mentalidades coletivas mas a luta de classes as classes em luta na esfera da produção A visão culturalista é vista como interclassista reacionária pois harmonizadora das contradições reais É uma teoria social que leva água ao moinho das elites Mota 1978 Os marxistas querem discutir a ação que constrói o futuro uma ação que se define na luta das classes na esfera das relações sociais de produção O que é preciso então pesquisar sobre o Brasil é a especificidade do seu modo de produção a especificidade das suas lutas de classes a especificidade da sua mudança social A segunda disputa opõe duas regiões do Brasil o Nordeste cujas oligarquias locais perdiam poder desde a abolição do tráfico negreiro e a ascensão do café paulista exatamente nos anos 1850 de Varnhagen e os paulistas que ganhavam poder na mesma proporção em que os primeiros perdiam o seu Nos anos 1930 o Brasil nordestino está chegando definitivamente ao seu fim e o Brasil industrial moderno paulista começa a se consolidar Nesse combate intelectual é toda a história do Brasil que se revela V Chacon assume a defesa incondicional de Freyre e do Nordeste contra F FernandesCebrap e os paulistas Chacon parece mobilizado por um artigo escrito contra o Nordeste identificado à província à aldeia e à sua maior expressão intelectual Freyre Tratase do artigo publicado na revista do Cebrap Novos Estudos no 27 de jul 1990 de Luis A de Castro Santos intitulado O espírito de aldeia orgulho ferido e vaidade na trajetória intelectual de G Freyre que opõe Caio Prado e S B de Holanda paulistas intelectuais orgulhosos com uma produção de alta qualidade homogênea sem pretensões internacionais a Freyre pernambucano provinciano intelectual orgulhoso nos anos 1930 e depois vaidoso decadente instalado na província e repetindo incansavelmente o que já havia realizado nos anos 1930 Freyre nordestino e provinciano teria uma tola ambição internacional e uma obra volumosa e heterogênea em sua qualidade Contra este artigo antifreyriano Chacon afirmará que muitos marxistas elogiaram Casagrande senzala Astrogildo Pereira Genovese e que Freyre nunca teve uma visão emoliente da sociedade brasileira era contra a escravidão e denunciou o sadismo dos senhores de escravos Quem falou em cordialidade brasileira foi um paulista e não Freyre Este era um agitador de ideias enfrentando preconceitos e a modorra nacional Tinha repulsa pelo universitarismo Gostava da polêmica era controvertido e pagou caro por isso Além de enfrentar a inquisição paulistamarxista teve a sua casa invadida por policiais durante o Estado Novo por ter defendido os negros e segundo a ditadura ter estimulado o ódio racial Chacon 1993 Entretanto Casagrande senzala talvez seja mais importante pelo intenso debate que provocou em torno do passado presente e futuro do Brasil do que pelo que andou afirmando e elogiando Os que combatem Freyre só fazem revelar todo o vigor da sua análise do Brasil Nenhum desses seus combatentes marxistas ou padres teriam coragem de lançar hoje sua obra no fundo de uma gaveta Sua obra é inesquecível seminal paradigmática apesar de inimitável É um modelo de eficiência abrangência e competência na abordagem da sociedade brasileira A historiografia norteamericana sobre a escravidão parte de Freyre a historiografia brasileira sobre a escravidão também tem como referência Casagrande senzala Queiroz 1987 Graham 1979 Nos anos 1960 Roger Bastide F Fernandes e sua equipe trataram do tema contra a perspectiva de Freyre mas tendoo como referência nos anos 198090 historiadores brasileiros resgataram a sua visão da escravidão Katia Matoso e historiadores de Campinas recuperaram um escravo sujeito dentro de uma ordem social escravista consensual Nos anos 196070 argumentouse contra a tese freyriana da suavidade da escravidão brasileira com relação à americana Nova tese o escravoclasse luta contra a sua coisificação social e até subjetiva Nos anos 198090 voltase a Freyre a escravidão era consensual o escravo mantinha a sua subjetividade autônoma e agia estrategicamente acomodandose ao sistema procurando obter vantagens individuais Sua forma de resistir é uma ação adaptadora O escravo é aparentemente dócil ou é dócil maliciosamente e resiste encontrando meios de manipular as regras do sistema social a seu favor Gorender 1990 Queiroz 1987 Enfim com relação não só ao tema da escravidão mas aos mais importantes temas do Brasil Casagrande senzala é comumente considerado um dos três mais importantes livros produzidos na década de 1930 os outros dois são Evolução política do Brasil 1933 de Caio Prado Jr e Raízes do Brasil 1936 de Sérgio Buarque de Holanda Cândido 1976 Mota curiosamente o situa entre os redescobridores do Brasil Na sua periodização até faz sentido Na nossa perspectiva ele representa ao contrário uma continuidade da visão dos descobridores do Brasil isto é ele faz um reelogio da colonização portuguesa Freyre é neovarnhageniano neste aspecto Quanto ao aspecto teóricometodológico ele é outra coisa outra linguagem outra história Mas quanto ao essencial isto é ao projeto de história do Brasil que ele revela à visão do passado brasileiro seus sujeitos e motivações à sua percepção e reconstrução do tempo histórico brasileiro ele é a mesma coisa renovada revigorada a legitimação entusiasmada e agora acrítica idealizadora e nostálgica do mundo que o português criou nos trópicos Casagrande Senzala Pressupostos e Teses Consideramos que Casagrande senzala poderia ser um livro mais conciso e mais preciso menos repetitivo Outros analistas são mais indulgentes e até justificam e com alguma razão esta sua característica repetitiva Para Motta ele teve uma intuição fundamental do Brasil que não poderia ser descrita de forma clara e distinta acabada Ele teve necessidade de retornos repetições que não são só repetições mas ritmos a retomada de motivos como numa sinfonia A multiplicidade de ritmos formas cores estilo manifesta uma mesma intuição central profunda unificadora de toda a estrutura Assim Casa grande não é uma obra de ciências sociais no sentido estrito É obra política uma espécie de composição musical uma partitura com um ritmo contínuo fundamental mas que inclui ritornelos estribilhos coros solos Sua interpretação histórica se confunde com seu estilo ou dele é inseparável Freyre parece escrever para si mesmo para dizerse o que compreendeu Parece um livro produzido de um só jato possuindo todas as vantagens da intuição criadora mas sofrendo da falta de uma elaboração mais sóbria e estruturante Motta 1981 Motta tem razão e portanto não façamos mais muitas reservas ao estilo e à arte de Freyre Sua obra tem na verdade uma estrutura clara e sólida o primeiro capítulo Características gerais da colonização portuguesa do Brasil formação de uma sociedade agrária escravocrata e híbrida expõe de forma sintética as suas teses sobre o Brasil os quatro capítulos restantes desenvolverão essas teses quanto ao índio quanto ao português e quanto ao negro que aliás mereceu dois longos capítulos quando em Varnhagen foi mencionado rapidamente e a contragosto Freyre referese à sua participação na história do Brasil longamente e com muito gosto Àquela pergunta de Von Martius a história do Brasil teria sido melhor ou pior com a presença dos negros Freyre responde sem hesitar a presença negra não comprometeu em nada a criação portuguesa pelo contrário foi um esteio indispensável Eles deram uma contribuição excepcional à colonização portuguesa e foram também civilizadores do Brasil Procuraremos encontrar em suas centenas de páginas pelo menos cinco teses que deem conta de toda a sua ideiaintuição mensageminterpretaçãocompreensão do Brasil Com essas teses articuladas entre si todas as outras páginas serão ou repetição ou episódios reveladoresconfirmadores das teses Os episódios sem essas teses têm seu sabor mas são anedóticos e não encontram o seu sentido As teses sobrevivem sem os episódios e oferecem a estrutura do pensamento de Freyre sobre o passado colonial brasileiro Ao destacarmos cinco teses além do esforço de síntese faremos também um esforço de análise pois estaremos destacando e detalhando o que consideramos mais relevante na estrutura da sua obra Não nos preocuparemos em citar as páginas de Casagrande senzala pois aceitamos o risco de combinar dezenas delas em alguns parágrafos Antes porém de passarmos às teses convém lembrar três pontos importantes para a sua compreensão O primeiro tema é a visão do Brasil que Freyre teve revelada no prefácio à 1a edição através de marinheiros brasileiros em Nova York mulatos e cafuzos que deram a ele a impressão de serem caricaturas de homens Foi uma visão do tipo brasileiro depois de três anos fora do Brasil ou seja foi uma visão de fora exterior não familiar que lhe revelou pela primeira vez a figura do brasileiro Nada melhor para se conhecer a identidade brasileira e se reconhecer como brasileiro do que três anos maciços no exterior A figura que ele viu foi a do homem miscigenado A imagem causoulhe desgosto a figura brasileira pareceulhe revelar algo de inferior e doentio Teria sido a miscigenação o mal que condenaria definitivamente a raça brasileira Eis a indagação dos intelectuais brasileiros e de Freyre entre os anos 18501920 Tinha a miscigenação causado irreparável dano eugênico ao Brasil O atraso do Brasil não teria sido causado pela influência debilitante do negro A sexualidade exacerbada o pecado sem punição não teriam enfraquecido a raça brasileira Este será o problemafio condutor da bela demonstração do teorema que é Casagrande senzala A hipótese de Freyre para tal questão será um alívio para as elites brasileiras e a sua demonstração exigirá um mergulho de longo fôlego no passado brasileiro Casagrande senzala é a pesquisa que testa algumas hipóteses sobre essas questões O segundo tema preliminar importante é o ponto de vista teóricometodológico de Freyre exposto com lucidez ainda no prefácio à 1a edição Ele concorda com o marxismo quanto à importância considerável embora não preponderante da técnica da produção econômica sobre a estrutura das sociedades na definição da sua fisionomia moral É uma influência poderosa mas sujeita à reação de outras As condições econômicas explicam muitos aspectos do desenvolvimento humano O que Freyre pretende não é se opor a uma abordagem econômicosocial do Brasil nem desvalorizála O que ele pretende porque assim escolheu é não fazer uma abordagem econômicosocial do Brasil O que ele declara querer fazer não é substituir a abordagem marxista mas acrescentarlhe um sentido psicológico ou psicofisiológico na análise do Brasil aspectos que atuam sobre as sociedades independentemente das pressões econômicas Forças psicológicas atuam sobre a sociedade dor raiva medo ao lado das emoções de fome sede sexo forças que têm uma grande intensidade de repercussão O português representa uma especialização psicológica racismo o negro outra os índios e mestiços outras O terceiro tema preliminar importante é o ponto de vista social de Freyre também exposto com franqueza e lucidez revelando uma adesão incondicional ao projeto português para o Brasil O seu olhar sobre o Brasil é senhorial e portanto ele o olha da janela da sala de visitas do alpendre da casagrande A casagrande não é só do engenho ou só nordestina segundo ele mas expressão da monocultura escravista e latifundiária em geral O café do sul teve a sua casagrande tão brasileira quanto a do açúcar do norte Apesar das diferenças impostas pelo clima e geografia o terraço de onde com a vista o fazendeiro abarcava todo o organismo da vida rural o terraço hospitaleiro patriarcal e bom é o mesmo Freyre olha o Brasil do terraço da casagrande do alto e viu que o Brasil mudava que o domínio das elites não era mais incontestável Então ele criou um olhar abrangente mais longínquo temporalmente e com os olhos da intuição lembrase do mundo consolidado hospitaleiro patriarcal e bom cuja visão aquele terraço antes oferecia O olhar do senhor tornase histórico pois o presente é problemático Ele precisa se representar se localizar na história e voltase para o passado glorioso Freyre abrelhe as cortinas do passado e mostralhe o espetáculo da sua façanha dos seus feitos heróicos que só ele tinha condições de realizar por ter uma especialização psicológica histórica e até racial favorável àquela realização Postos estes três temas preliminares a motivação os problemas que produziram a pesquisa que chegou à obra Casa grande senzala os pontos de vista teóricometodológico e social passemos às teses de Freyre sobre o passado colonial brasileiro que são as respostas hipotéticas àquela motivação e problemática dentro de um ponto de vista teórico bem definido e de um lugar social também bem delineado A primeira tese responderá à pergunta Como se deu o encontro entre as três raças constituidoras do povo brasileiro Para Freyre foi um encontro fraterno solidário generoso democrático viabilizado pela miscigenação Vencedores militar e tecnicamente de indígenas e negros os portugueses tiveram no entanto de transigir com eles quanto à vida familiar e social A vitória militar foi o fato inicial da relação foi o que a constituiu Uma vez estabelecida à força a relação desenvolveuse entre conquistadores e conquistados uma confraternização Esta não aboliu a vitória militar anterior é uma confraternização tensa sadomasoquista que não tornou iguais senhores e escravos Mas tudo isso não impediu a confraternização sexual e social As relações entre vencedor e vencido se adoçaram com a necessidade dos colonos de constituir família Não havia brancas e a vida sexual e afetiva não podia ser nutrida somente por estupros contínuos A necessidade de família transcende a necessidade da satisfação sexual Para os colonos aliás a satisfação sexual era fácil O problema era a solidão a carência de relações paternaisfiliais a necessidade da companheira no sexo na vida cotidiana e na dor Na ausência de brancas os colonizadores se enamoraram de negras e índias A miscigenação assim entendida corrigiu portanto a distância social entre a casagrande e a senzala A agricultura escravista aristocratizava antagonizava senhores e escravos a miscigenação contrariou este efeito separador ao reunir em famílias as índias e as negras aos brancos A índia a negramina a mulata a cabrocha tornaramse concubinas e até esposas legítimas dos brancos o que agiu no sentido da democratização social no Brasil Entre os filhos legítimos e ilegítimos subdividiuse parte considerável das grandes propriedades Embora militarmente vencedor escravista e sádico Freyre não omite esses dados mas acrescenta outros e contraditórios que tornam a realidade vivida mais complexa o branco tratou o escravo com bondade suavidade e ternura Nas relações entre Portugal e África anteriormente já tinha havido esta relação contraditória guerra escravização e miscigenação étnica e cultural Para o sexo o branco passou até a preferir a negra na verdade o verdadeiro objeto original do desejo seio cuidados cantigas para fazer dormir colo e aconchego enfim maternidade real A negra o iniciava na vida sexual quando adolescente Na hora da vida sexual madura era quase impossível desviar o desejo para uma mulher socialmente recomendável a branca Quanto ao negro ele o teve como companheiro em brincadeiras infantis Sobre ele exercerá toda a sua polimorfa perversidade E desenvolveu em relação a ele um inconsciente e profundo afeto pois crianças que brincam juntas criam elos profundos de amizade e ternura Para que um regime social de apartheid seja eficaz é preciso manter as crianças brancas e negras separadas em colégios creches festas e nas brincadeiras Não foi o caso brasileiro Se a vitória militar é afrodisíaca logo se estupram as mulheres se ela perdura em uma relação senhorescravo esse desejo exacerbado da conquista violenta poderá evoluir sem eliminação da violência original para uma exacerbação da afeição pelo vencido Freyre acredita nisso Esse mundo humano violentoafetuoso terá como palco a casagrande que é brasileirinha da silva isto é uma arquitetura original adaptada aos trópicos Na casagrande palco dessas relações complexas de crueldade e desejoamor estaria depositada a alma brasileira O tempo brasileiro é observado e medido na moradia brasileira na sua vida familiar Ali se concentravam as principais atividades brasileiras nos séculos XVIXVIII Além de moradia ela era fortaleza capela escola oficina santa casa convento de moças banco Ela não era um mundo à parte aristocrático distante Ela integrava todas as atividades e tipos humanos do mundo colonial O português foi inigualável em sua miscibilidade onde chegava misturavase gostosamente com as nativas Eram poucos e por causa desse seu modo democrático de ser puderam povoar terras vastíssimas Em suas guerras com os mouros eles cultivaram a fantasia erótica da moura encantada ligada às mulheres mouras que estupraram em suas vitórias Essa sua fantasia encaixouse bem na índia e na mulata As índias aliás eram o próprio encantamento a fantasia encarnada gordas nuas pintadas de vermelho doidas por um banho de rio quando penteavam cuidadosamente os cabelos admirandose no espelho presentes do branco com quem gostavam de fazer sexo Tinham aliás outra escolha Além da violência poderiam resistir a tais presentes A mulher morena e não a loura ou branca era a preferida dos portugueses para o amor físico Suas investidas pela África e Ásia os tornaram especialmente atraídos por mulheres não brancas Graças à sua miscibilidade a colonização portuguesa foi a primeira europeia a constituir uma sociedade moderna nos trópicos com características nacionais e permanentes Os outros europeus amoleciam em contato com os trópicos E não se misturavam com as mulheres de cor O português não venceu o clima o solo e miscigenouse criando uma população mestiça plenamente adaptada ao clima e à geografia Aqui houve o encontro a intercomunicação e a fusão harmoniosa de tradições diversas de cultura A cultura europeia se pôs em contato com a indígena contato amaciado pelo óleo lubrificante da mediação africana A invasão escravização e estupro de negras e índias pelos portugueses não foi seca foram lubrificados pela doçura africana pela forte excitação da mulher indígena pelos presentes e novidades dos brancos pela adaptabilidade aclimatabilidade miscibilidade plasticidade e falta de orgulho de raça do português A segunda tese responderá à questão Por que vitoriosos militarmente os portugueses não se isolaram orgulhosa e aristocraticamente apenas extraindo trabalho dos escravos e estuprando negras e índias Por que foi possível a miscigenação com relação ao português A democracia racial descrita acima foi possível porque segundo Freyre a predisposição psicofisiológica do português o seu passado étnico e cultural a favoreciam Do ponto de vista étnico o português não era um branco puro e do ponto de vista cultural não era um europeu puro Assim impuro étnica e culturalmente ele estava predisposto à colonização híbrida e escravocrata dos trópicos Etnicamente o português já era um miscigenado O povo português é ao mesmo tempo europeu e africano A influência africana ferve sob a europeia na vida sexual na alimentação na religião É uma população branca com sangue negro mouro e judeu É uma população já mestiça Não há um tipo unificado de português A raça não tem em Portugal um papel profundo É um povo bicontinental Culturalmente o ar da África amolece as instituições europeias desossando o cristianismo o feudalismo o direito a língua o caráter do povo A Europa reina mas a África governa A mistura étnica e a indefinição cultural tornam o caráter português um vago impreciso O caráter português é bambo flexível flutuante frouxo plástico fortemente sexuado imprevidente fatalista Esta imprecisão lhes permitiu reunir em si tantos contrastes Eles passam de um estado psicológico a outro rápida e subitamente Místicos políticos aventureiros vivem em uma indolência oriental Por ser assim o português foi o melhor dos colonizadores europeus Freyre tem uma grande admiração pelo português colonizador Segundo ele essa origem deve encher de orgulho os brasileiros Eles tinham criado uma civilização original tropical miscigenada cujos vícios podem ser atribuídos à monocultura escravista Foi esta que desvirtuou a miscigenação e não a mistura de raças em si A relação senhorescravo é doentia sadomasoquista e trouxe más consequências para a miscigenação Mas esta em si é só um bem Essa avaliação otimista que Freyre faz da miscigenação representou um alívio para as elites brasileiras Ele lhes devolveu a autoconfiança que as teorias racistas do final do século XIX lhes tinham tirado Essa nova representação mudou a atitude do Brasil em relação ao mundo exterior Desde 1822 as elites brasileiras esforçavamse por esconder dos estrangeiros e de si mesmas a impureza da história nacional Até 1930 pensouse que a miscigenação tinha comprometido definitivamente o futuro do Brasil Freyre trouxe uma nova interpretação da miscigenação que se tornará até uma referência para o mundo pós1945 que vivera uma guerra com motivações raciais declaradas Pós1945 os americanos acabaram com o seu apartheid e olharam junto com os europeus para o Brasil mais seriamente como uma história bemsucedida de assimilação racial Skidmore 1994 Ortiz 1985 Esta sociedade multirracial foi possível portanto pelas predisposições psicológicas históricas e raciais do português Este foi um colonizador ao mesmo tempo europeu africano e semita móvel adaptável sem orgulho de raça Sua mobilidade era tão espantosa quanto a sua miscibilidade e plasticidade uns poucos homens circularam pelos continentes transplantando populações inteiras e dominando vastos territórios O seu caráter vago e impreciso foi o segredo da sua vitória Se não não se explicaria como um país faminto doente e sem gente poderia colonizar o Brasil a África e a Ásia Foi este seu caráter democrático que permitiu a confraternização das três raças constituidoras do Brasil Eles foram os homens ideais para a colonização tropical E criaram o homem ideal para viver nos trópicos o mestiço brasileiro um homem branco com sangue negro e índio A terceira tese responderá à pergunta Qual será o palco a sede o lugar central em que se dará este encontro feliz entre as três raças sob a liderança do português Esta confraternização ocorrerá na casagrande que não se separa da senzala mas a inclui Ela é uma construção tipicamente brasileira correspondendo ao novo ambiente físico e à nova atividade portuguesa a monocultura escravista O português então tornouse lusobrasileiro o fundador de uma nova ordem econômicosocial o criador de um novo tipo de habitação que seria o símbolo da nova civilização A casagrande completada pela senzala representa todo um sistema econômicosocial e político a monocultura escravista o patriarcalismo católico e polígamo Foi ali que se estabeleceu o novo dono do Brasil Apesar de suas predisposições favoráveis o português sofreu com as dificuldades impostas pelo novo ambiente No Brasil selvagem tudo era desequilíbrio excessos e deficiências O solo excelente ou péssimo os rios cheios ou secos A América tropical não oferece uma vida fácil Nas sementes casas animais livros papéis obras de arte em tudo se metem larvas vermes insetos roendo esfuracando corrompendo Foi em tais condições tão desfavoráveis que se exerceu o esforço colonizador dos portugueses nos trópicos Foi uma vitória Antes dessa vitória o domínio europeu nos trópicos só se realizava por feitorias e extração da riqueza mineral O colonizador português foi o primeiro a criar uma civilização baseada na exploração local da riqueza Criouse uma colônia de plantação caracterizada pela base agrícola e pela permanência do colono na terra Os portugueses iniciaram uma colonização nova a exploração da riqueza vegetal pelo capital e esforço do particular e com o aproveitamento dos nativos sobretudo da mulher para o trabalho e a formação da família A sociedade colonial desenvolveuse patriarcal e aristocraticamente à sombra das plantações de canadeaçúcar em casas grandes de taipa e cal Não foram aventureiros Vieram venceram ficaram e colonizaram Sérgio Buarque de Holanda logo depois em 1936 terá uma visão diferente da colonização portuguesa feita por aventureiros que vieram venceram e arruinaram a terra em busca de riqueza fácil e rápida Não é o ponto de vista de Freyre A colonização portuguesa não foi obra do Estado da Coroa da família real mas da corajosa família rural particular Aqui aparece uma distância significativa entre Freyre e Varnhagen este defendia a colonização promovida pela família real sua fidelidade era ao rei Freyre vê como sujeito da história colonial brasileira não a família real mas a família rural portuguesa que enfrentou com os seus parcos capitais e vigor físico as dificuldades da terra tropical virgem e distante Os portugueses foram os primeiros europeus que se estabeleceram de fato em colônias vendendo o que possuíam na metrópole e transplantandose com família e cabedais para os trópicos Aqui tinham liberdade de ação A organização colonial oficial não precedeu mas sucedeu o desenvolvimento da colonização feita pelo particular Foi a iniciativa particular e não a oficial que promoveu a mistura de raças a agricultura latifundiária a escravidão tornando possível sobre tais alicerces a fundação e o desenvolvimento de uma grande e estável colônia agrícola nos trópicos Além de ter alargado o território para o Oeste o que seria impossível para a iniciativa oficial A colonização portuguesa feita caracterizase pelo domínio exclusivo da família rural O sujeito da colonização portuguesa foi o indivíduo e a sua família em sua unidade produtiva semeando o solo e desbravando o território A força social que se desdobrou em política constituindo se na aristocracia rural mais poderosa da América Sobre ela o rei reina sem governar A casagrande é o seu palácio rural Ela venceu a Igreja em seus impulsos de ser dona da terra Vencido o jesuíta o senhor de engenho ficou dominando o Brasil quase sozinho Ele é o verdadeiro dono do Brasil mais do que os vicereis e bispos Era o dono das terras e da população A diferença entre Varnhagen e Freyre nesse aspecto talvez se explique pelas datas das suas obras em 1850 Varnhagen formulava uma visão ainda portuguesa do Brasil enfatizando a ação da família real Freyre em 1930 enfatizando a ação da família rural formula uma visão lusobrasileira do Brasil a visão das elites descendentes dos descobridores que admiram e reverenciam a memória daqueles que criaram este mundo nos trópicos para elas Há também uma diferença teórico metodológica essencial nos anos 1850 predominava uma história políticoadministrativa e biográfica valorizando as ações e documentos oficiais nos anos 1930 aparece uma história nova econômicosocialmental que valoriza as iniciativas coletivas anônimas inconscientes não oficiais reveladas por uma documentação maciça múltipla interdisciplinar Freyre é um dos pioneiros dessa nova história Burke 1991 Para Freyre o estudo da vida doméstica da família rural lusobrasileira como que nos completa a nós lusobrasileiros é um meio de procurar o tempo perdido um meio de nos sentirmos nos outros nos que vieram antes de nós O passado familiar do colonizador português é um passado que se estuda tocando em nervos um passado que emenda com a vida de cada um uma aventura da sensibilidade e não somente um esforço de pesquisa em arquivos Não é fácil penetrar na intimidade do passado surpreendêlo em suas tendências no seu àvontade caseiro em sua espontaneidade e expressões mais sinceras Não há muitas fontes As melhores o confessionário as tornou desnecessárias e as engoliu Freyre não se deixará limitar no entanto pela falta de fontes Ele tomará como fonte tudo o que o homem colonial brasileiro produziu acreditou pensou cantou rezou pintou brincou falou construiu comeu adoeceu lutou defendeu expulsou plantou escravizou A Casagrande senzala foi portanto o centro da história colonial brasileira foi um verdadeiro palácio rural ali morou o seu verdadeiro sujeito o senhor patriarcal cercado de sua família extensa legítima e ilegítima seus escravos domésticos seus agregados sua capela sua plantação e escravos sobre os quais exercia um poder absoluto sem apelo A quarta tese responderá à pergunta A miscigenação que está na origem da colonização portuguesa do Brasil graças às predisposições psicológicas étnicas e históricas do português foi um bem ou um mal A miscigenação degenerou os brasileiros tornandoos inferiores inaptos doentes ou não Se ela trouxe a democracia racial a confraternização entre as raças ela trouxe também o debilitamento da raça brasileira Para Freyre os males profundos que têm comprometido a robustez e a eficiência da população brasileira que são atribuídos à miscigenação na verdade devemse à monocultura latifundiária Faltou o suprimento de víveres frescos que tornou a população mal nutrida comendo somente peixe seco e farinha de mandioca A hiponutrição tem como consequência problemas de decadência ou inferioridade de raças diminuição da estatura do peso do tórax insuficiências endócrinas Além da hiponutrição outro mal que afetou a saúde brasileira foi a sífilis A colonização patriarcal do Brasil explicase menos em termos de raça e religião e mais em termos econômicos culturais e afetivos A sociologia que fala de manchas da mestiçagem e dos efeitos amolecedores do clima não vê a escassez de alimentos a pobreza nutritiva da alimentação disponível há cinco séculos a irregularidade no abastecimento e a falta de higiene na conservação e distribuição Além da desnutrição o alcoolismo e a falta de infraestrutura que adoecem Senhores e escravos ainda comem embora mal Mas matutos caipiras caboclos sertanejos pobres que são milhões comerão algo A dieta precária pobre os jejuns religiosos enfraquecem e adoecem a população O Brasil dos três séculos coloniais dominado pela monocultura latifundiária foi terra de alimentação incerta e vida difícil O povo brasileiro é um dos povos mais desprestigiados na sua eugenia e mais comprometidos na sua capacidade econômica pela deficiência de alimento É um povo perturbado em seu vigor físico e na sua higiene por um pernicioso conjunto de influências econômicosociais Quanto à miscigenação que formou o brasileiro ela foi vantajosa Criou o tipo ideal do homem moderno para os trópicos um europeu com sangue de negro ou índio Mas ela teve um efeito colateral que deteriorou a raça brasileira e que por estar ligado a ela é atribuído a ela esta deterioração À vantagem da miscigenação associase a desvantagem da sifilização A miscigenação não é culpada pela sifilização Ela pelo contrário produziu belos exemplares humanos Depois da má nutrição talvez a sífilis tenha sido a influência social mais deformadora da plástica do mestiço brasileiro Portanto se o brasileiro sofre de uma inferioridade física não se deve atribuíla à raça ou à mistura de raças mas à desnutrição e à sífilis além de outros vícios alcoolismo comer terra São razões históricas portanto corrigíveis e não razões biológicas irrecorríveis Entretanto apesar de recusar o conceito de raça e o determinismo racial diferentemente de Boas para quem o conceito de cultura aboliu o de raça Freyre continuou usando o conceito de raça mesmo privilegiando o de cultura Costa Lima apontou para essa ambiguidade de Freyre que o torna ainda mais próximo do pensamento brasileiro tradicional de Varnhagen apesar das suas inovações Afinal branco é uma etnia ou uma cultura ou ambas Freyre mistura meio raça e cultura Seu regime de causalidade é impreciso afirma Costa Lima Ora é o fator étnico a mestiçagem ora é a posição geográfica de Portugal ora é a convivênciaguerra entre portugueses e muçulmanos que são apresentados como responsáveis pelo caráter vagoimpreciso do português O sucesso português no Brasil ora se deveu à sua etnia ora ao clima ora à tolerância cultural O português tem sangue mouro semita Há até quem encontre em Freyre teses racistas antissemitas por exemplo Enfim Freyre não descartou o conceito de raça embora declare têlo feito Em Casagrande senzala as raças apresentam especializações psicológicas e aptidões distintas Freyre não absorveu completamente Boas conclui Costa Lima Na medida em que ainda raciocina com o conceito de raça ele se insere de maneira limitada no historicismo alemão e se afasta bastante do historicismo de S B de Holanda Costa Lima diminui assim o alcance da renovação e originalidade da interpretação do Brasil de Freyre que se acreditava inteiramente culturalista e sem nenhuma referência à raça Costa Lima se espanta e com razão com o fato dos seus analistas não terem dado atenção a esse aspecto do pensamento de Freyre que aparece com muita evidência em seu texto Ele não estaria tão longe de Varnhagen e O Vianna afinal E quanto ao essencial é essa também a nossa visão de Freyre que sem desvalorizar as suas intuições e inovações geniais estamos tentando demonstrar Entretanto R Benzaquen de Araújo procura também valorizar e restaurar a originalidade de Freyre ao afirmar que ele usa o conceito de raça de forma peculiar Ele trabalharia com um conceito neolamarkiano de raça que se baseia na aptidão dos seres humanos para se adaptarem às mais diferentes condições ambientais e para incorporarem e transmitirem as características adquiridas na interação com o meio Nesta perspectiva o conceito de raça é histórico uma cultura é um corpo marcado pelo meio geográfico A raça é mais efeito do que causa Há uma diversidade cultural e racial marcada pelo meio Benzaquen de Araújo concorda com Costa Lima quando este afirma que a imprecisão no uso do conceito de raça revela o próprio estilo de Freyre ele não se submete a conceitos A denúncia de sua imprecisão deve ser mantida confirma Benzaquen mas quanto ao conceito de raça é preciso incluir este seu esforço de precisão Araújo 1994 Apesar disso Freyre se afasta e muito do pensamento tradicional brasileiro racista de Varnhagen a O Vianna quando estes propuseram a superação do problema racial pelo branqueamento da população Do ponto de vista norteamericano esta seria uma solução ingênua pois a raça não é definida pelo fenótipo mas pela ascendência do indivíduo Os brasileiros poderiam se tornar todos brancos isto não apagaria a sua ascendência negra e indígena Skidmore 1994 Freyre aceita a mestiçagem e a sua consequência fenotípica a morenidade O Brasil é moreno mestiço de branconegroíndio Este Brasil moreno longe de estar condenado ao insucesso por ser moreno tem o seu horizonte de espera aberto por esta sua originalidade A quinta tese responderá à pergunta Para este povo miscigenado confraternizado bem adaptado aos trópicos qual seria o regime político mais adequado À democracia racial brasileira poderia corresponder a democracia social e política Freyre oferece uma resposta ambígua a esta questão como é ambígua ou anfíbia toda a sua reflexão sobre o Brasil Por um lado a mestiçagem se fez entre senhor e escravo Se o brasileiro é mestiço e Freyre não omite esse dado essa mestiçagem não se realizou amorosamente O brasileiro mestiço não é fruto de uma relação humana entre etniasculturas diferentes Ele é filho de um estupro o senhor conquistador colonizador armado de espada e terço que invade e domina índios e negros exterminando e escravizando os homens e violentando as suas mulheres Freyre acredita que o próprio escravo se satisfaça nesta relação sadomasoquista sexual e pessoal O escravo preferia o senhor invasor e brutal isto é bem no seu papel pois é masoquista O senhor inebriado transtornado de desejo por todo o poder sobre a natureza e os homens que ele conquistou o senhor sádico é a este que prefere o escravo masoquista Ostentando o seu poder realizandoo sem restrições o senhor se torna o seu espelho a sua imagem invertida aquilo que ele gostaria de ser Como ele poderia se identificar com um senhor com características de escravo O senhor precisa ser um antiescravo um escravo invertido para satisfazer ao próprio escravo E como não há nada mais afrodisíaco do que o lazer e o poder o português se tornou um femeeiro possuía uma genesia violenta e incluía o escravo como parceiro em suas fantasias O papel do escravo na relação é passivo ele deve submeterse ao desejo sem limites do senhor e nesta submissão encontraria um inconfessado prazer A relação senhorescravo é uma relação sadomasoquista isto é uma relação de prazer sexual e até afetuosa com violência Nessa relação se desfaz o sonho da democracia política prometida pela miscigenação Essa relação teria passado à esfera política Freyre afirma que o chamado povo brasileiro o mestiço filho daquela relação sadomasoquista aprecia o mandonismo gosta do dono bravo do senhor completamente em seu papel No íntimo ele afirma o que o grosso do povo brasileiro ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente autocrático Até os mártires revolucionários brasileiros não querem de fato transformar o Brasil salvar a sua população daquela relação perversa Eles pertencem àquela relação e o que querem é ter o prazer de sofrer de ser vítimas de se sacrificar como Jesus Cristo o herói vítima que todo brasileiro quer imitar Portanto o regime político mais adequado a este povo nascido daquela relação é a ditadura vigorosa máscula e corajosa O ditador será aclamado idolatrado amado e quanto mais severo mais prazer trará a esta população filha do prazercomviolência Por outro lado o regime político mais adequado à população brasileira mestiça é o que já predomina desde o início da colonização a democracia racial e social A miscigenação se deu entre senhor e escravo o que ele considera uma demonstração da suavidade do escravismo brasileiro e até do espírito radicalmente democrático do português A colonização europeia não se deu somente no sentido da europeização A cultura europeia assimilou a indígena e a africana O português vencedor deixouse civilizar pelos vencidos como os turcos vitoriosos pelos gregos vencidos Por suas predisposições já mencionadas o português não se encastelou orgulhosa e aristocraticamente separandose das outras raças e culturas Ele não tinha nenhum orgulho de raça Os negros reagiram sobre a dominação branca e a sua cultura foi civilizadora do vencedor Do ponto de vista alimentar por exemplo a influência do africano foi a mais positiva Sua dieta era mais equilibrada era abundante em milho toucinho e feijão Foi o elemento mais bem nutrido em nossa sociedade patriarcal o escravo negro e por isso sua descendência é a mais sadia e bela O negro revelouse superior ao índio e ao próprio português em vários aspectos da vida material e moral técnica e artística O negro é alegre vivo loquaz vigoroso extrovertido plástico adaptável Ele foi o maior colaborador do branco na colonização Ele até influiu na europeização do índio difundindo a religião católica e a língua portuguesa Freyre distingue o negro do escravo O Brasil teve a influência do negro escravo e não a influência do negro puro O negro escravo não pode exercer toda a influência que o negro livre exerceria pois sua posição estava moralmente rebaixada Ele nos aparece deformado pela escravidão Esta não deixou que ele pudesse se revelar se expressar plenamente A sua influência não pode ser considerada deletéria enquanto negro mas enquanto escravo Não era o negro depravado imoral obsceno ele é até mais frio do que o branco precisando de danças eróticas para se excitar A sífilis não foi ele quem a trouxe mas o português O negro escravo transformou a língua portuguesa a religião cristã a dieta portuguesa o imaginário infantil A nossa língua nacional sofreu uma dupla influência a da casagrande e a da senzala No brasileiro não subsiste como nos Estados Unidos duas metades inimigas uma branca e outra negra Somos duas metades confraternizadas que se enriquecem mutuamente de valores e experiências diversas O todo brasileiro não se faz com o sacrifício de uma das partes Nossa personalidade mestiça se desenvolve sem a supressão de uma parte por outra A presença do negro na vida do branco é muito forte embora como escravo ama de leite molequebrinquedo negro velho macumbeiro mucama cozinheira Freyre não se demora sobre a influência negra no desenvolvimento econômico fala raramente do escravo do eito mas afirma em algumas passagens que ela foi imensa maior do que a do próprio português Enfim na casagrande os escravos domésticos foram tratados com doçura eram como familiares pessoas da casa como parentes pobres Sentavamse à mesa passeavam com os senhores como se fossem filhos As mães pretas tinham lugar de honra na família os nhonhôs as tratavam como verdadeiras mães Eles receberam dela uma bondade uma ternura que os europeus não conheciam Entre nós houve uma profunda confraternização de valores e sentimentos A religião católica foi um ponto de encontro entre as duas culturas e não uma intransponível barreira Um cristianismo mais ortodoxo seria incompatível com a liberdade religiosa dos negros Freyre distingue o escravo do eito do escravo doméstico este teve uma assistência moral e religiosa que faltou àquele Os da casa eram batizados alguns se casavam e mulheres brancas amamentavam filhos de negras mortas no parto Portanto a sociedade brasileira para Freyre foi desde o início a que mais harmoniosamente se constituiu quanto às relações de raça dentro de um ambiente de quase reciprocidade cultural de troca de valores no máximo de contemporização da cultura adventícia com a nativa do conquistador com o conquistado Quanto aos indígenas a mulher recémbatizada foi tomada como esposa e mãe de família e trouxe para a vida doméstica tradições experiências técnicas e utensílios O branco preferia sexualmente a índia e esta ao branco seja por razões sociais queriam ter filhos pertencendo à classe superior já que a ascendência que valorizavam era a paterna seja por razões priápicas pois o índio seria mais frio do que o branco No primeiro século por falta de brancas os portugueses se envolveram com as índias Freyre sonha o ambiente em que começou a vida brasileira foi quase de intoxicação sexual As índias se entregavam facilmente aos seus deuses por um espelho ou um pente Freyre nos convida a imaginar este primeiro Brasil sem Estado e sem jesuítas local de encontro de uma sociedade vestida com uma sociedade nua A mulher índia foi não só a base física da família brasileira mas também valioso elemento de cultura material A influência do homem índio foi também forte devastação e conquista do sertão guia canoeiro guerreiro caçador pescador Ele só não foi útil na plantação Mas lutou ao lado do português contra os invasores europeus O menino índio europeizou os pais e a tribo ensinando o português e o catecismo Enfim conclui Freyre a formação brasileira tem sido um processo de equilíbrio de antagonismos A mediação africana aproximou os extremos brancos e índios que sem ela dificilmente teriam se entendido tão bem As culturas europeia e ameríndia eram estranhas e antagônicas A sociedade brasileira é uma das mais democráticas flexíveis e plásticas Ela conseguiu equilibrar harmoniosamente antagonismos dificilmente superáveis culturas europeia e africana e indígena economia agrária e pastoril fazendeiro e jesuíta bandeirante e senhor de engenho E equilibrou o antagonismo maior senhor e escravo Estes antagonismos foram amortecidos confraternizados harmonizados pela miscigenação pela mobilidade social do ir e vir pelo cristianismo lírico pela tolerância moral pela geografia sem obstáculos No Brasil enfim reina a democracia social As mulheres estão em pé de igualdade com os homens são médicas professoras escritoras advogadas A tendência brasileira é dar oportunidade a todos No Império juízes e diplomatas eram morenos O regime imperial era uma felicíssima combinação de democracia e monarquia Freyre 1971 Afinal o regime político adequado a tal democracia racial seria a ditadura ou a democracia Freyre parece crer sinceramente na democracia social brasileira mesmo se o senhor detém o mando indiscutível e brutal Entretanto esse senhor sádico e autoritário ele o vê como também essencialmente democrático pois o seu poder é exercido em família É um poder legitimado por suas relações afetivas Na família domina essa ambiguidade o pátrio poder é absoluto mas os laços afetivos e de fidelidade recíprocas criam uma aliança inabalável verticalmente em relação ao senhor e horizontalmente entre os diversos membros da família A severidade do pai é apreciada suas decisões peremptórias temidas e legitimadas No Brasil colonial não existia o Brasilnação Havia uma multiplicidade de repúblicasfamiliares com os seus poderes particulares Freyre se refere ao poder familiar patriarcal íntimo e não ao poder público ao Estado Aquele poder privado no entanto se confundia com o poder público A população lusobrasileira era governada como uma família pelo poder absoluto do pai Darci Ribeiro expressa de forma esclarecedora essa ambiguidade apontada por Freyre no nosso modo doceviolento de ser Para ele o mestiço brasileiro é filho daquelas pretas e índias supliciadas e filho da mão possessa que as supliciou A doçura mais terna e a crueldade mais atroz se reuniram aqui para fazer de nós uma gente sofrida e ao mesmo tempo insensível e cruel Somos filhos de escravas e de senhores de escravos A autoridade brasileira assim como a colonial está predisposta a torturar a machucar o pobre que lhe cai às mãos e que como o escravo colonial se sente completamente à mercê dessa força o senhor ruralpai sem rei e sem lei sem limites que o oprime e quer bem Ribeiro 199512 O Tempo Histórico do Brasil em Freyre Freyre considera o brasileiro dominado por um tempo lento e lúdico preguiçoso O ritmo brasileiro de atividade é uma combinação de trabalho e lazer Os brasileiros não gostam do trabalho intelectual ou manual e não têm preconceito contra o lazer que não é visto como vício pecado Ele gosta mesmo é de tocar violão e cantar comer seu peixe temperado fumar o seu cachimbo beber seu café a pequenos goles Freyre 1971 Gosta de mandar fazer e de viver no ócio Eles apreciam também o luxo roupas rendadas e bordadas O seu sucesso ele o obteve com essa tolerância transigência vontade de não transformar e imporse racionalmente ao mundo e ao outro A natureza ele a aceita e se adapta o outro ele domina e se adapta Daí a sua relativa democracia étnica a ampla oportunidade dada a todos os homens independentemente de raça ou cor Os brasileiros se amam como irmãos mesmo se são tão diferentes Há preconceitos raciais mas não há apartheid Reina entre os brasileiros um forte espírito de fraternidade As relações entre negros e brancos sempre foram cordiais e a solução brasileira para as relações raciais foi a mais inteligente promissora e humana Ele acredita que exista uma certa felicidade brasileira Nossa situação de confraternização racial é a que mais se aproxima de um paraíso terrestre Há miséria doença tristeza opressão Mas não se pode deixar de falar de democracia social A interpretação de Freyre se apoia sobre uma concepção conciliadora do tempo histórico brasileiro Para Bastos ele propõe uma articulação do velho e do novo a união da tradição com a modernidade Bastos 1986 Barbu 1981 A história brasileira não é compreendida em termos de ruptura conflitos mudanças bruscas Ela é vista como uma história pacífica tranquila integradora das diferenças A narrativa de Freyre assim que percebe conflitos produz a sua dissipação Os conflitos são percebidos não são escamoteados mas administrados Freyre constata diferenças para englobálas uniformizá las observa Costa Lima Sua verdade histórica é ética o Brasil é um modelo para a humanidade ele dá ao mundo uma lição de moralidade Aqui o senhor é ameno com o escravo o branco com o negro e o índio Mas essa amenidade ao invés de apagar a diferença intensificaa Se o escravo se rebelar o senhor esquecerá as suas boas maneiras É uma interpretação do Brasil válida enquanto continuamos uma sociedade conservadora A plasticidade do senhor não corrige a assimetria do poder mas legitima a colonização e a escravidão é um mito uma máscara ideológica Lima 1989 Freyre produz um quadro excessivamente estático detecta constantes e ignora os ritmos de transformação Privilegia a continuidade em detrimento da mudança A obsessão com o progresso e com a chegada acelerada da razão com a integração do país na marcha da civilização ele a recusa substituindoa pela ênfase na tradição e singularidade brasileiras O Brasil ganha um passado se densifica para trás Freyre não fala quase de futuro ele fala mais de passado de identidade brasileira consolidada Nessa identidade ele integra índios e negros retrospectivamente a identidade singular brasileira é a da mistura de raças e culturas sob a liderança portuguesa O Brasil é complexo em sua temporalidade tão velho e tão novo tão conservador e tão liberal tão ligado ao seu passado e tão pouco resistente a experiências novas Por um lado superarcaico por outro um dos países mais modernos do mundo Freyre 1971 Freyre representa um momento importantíssimo para a reflexão histórica brasileira um momento de retorno de introspecção de viagem pelo interior Ele para o tempo da história brasileira e se delicia em sua contemplação O tempo de Freyre é ibérico sem pressa sem relógio sem preço sem dinheiro a ganhar Marias 1981 Solis 1981 Em sua ampulheta o que se tem não é areia ou água que descem rapidamente mas um meladomel que desce em um fio viscoso e lento marcando a duração doce e gozosa do mundo nordestino Kujawski 1981 Seu tempo é senhorial ocioso deitado na rede pés de menino e mãos de moça o pau viril e a voz imperiosa Dono de escravos o trabalho não é problema dele Seu tempo ele o tem todo à sua disposição para comer beber conversar e copular com negras e índias A vida boa dos aristocratas do açúcar foi lânguida morosa Na casagrande os dias se sucediam iguais a mesma modorra a mesma vida de rede sensual Sua visão do Brasil e do mundo é desacelerada a da lenta mudança dos séculos sem saltos revolucionários Marias 1981 Briggs 1981 Freyre prefere a continuidade à mudança ou a mudança dominada pela continuidade Seu olhar sobre o futuro do Brasil é pessimista nos anos 1930 a mudança se acelerava assustandoo pois comprometia a continuidade do passado patriarcal Com sua reflexão ele quer fazer uma defesa desse passado e impedir ou desacelerar a mudança Ele espera que as mudanças não se acelerem pois não há motivo O passado brasileiro foi bom as elites brasileiras são competentes e democráticas Quanto ao futuro ele é no máximo reformista e gradualista propõe o fim da monocultura o que melhoraria a dieta brasileira fazendo aparecer uma população sadia e uma inteligência mais vigorosa menos imitativa A população mestiça brasileira é eugênica pois os brancos escolheram as melhores negras e índias para amantes O mulato é um feliz meiotermo eugênico O Brasil tem o seu futuro aberto não há nada que o torne inviável que o ameace no horizonte desde que ele seja mais passado do que futuro mais continuidade do que mudança PARTE II O REDESCOBRIMENTO DO BRASIL ANOS 1900 CAPISTRANO DE ABREU O surgimento de um povo novo o brasileiro Capistrano de Abreu Heródoto do Povo Brasileiro João Capistrano de Abreu nasceu em Maranguape Ceará em 1853 no sítio de Columinjuba que seu pai herdara de seu avô que o havia recebido de presente de um reinol perseguido pelos ódios exacerbados do nativismo local do qual ele então o protegera Foi assim que a família saiu da pobreza e se tornou proprietária de um pequeno pedaço de terra Ali Capistrano foi criado com rigidez severidade e austeridade em um ambiente marcado pelo trabalho pesado e contínuo e pelo dogmatismo católico Seu pai depois de herdar a terra reconstruiu a casa e se tornou um dos homens bons homens de consideração da região pois tinha o suficiente para sustentar a família e gozar de algum prestígio social Ele pertencia à Guarda Nacional e à burocracia provincial tinha a patente de major No sítio ele plantava cana algodão mandioca feijão milho O trabalho era feito por escravos por agregados e pela própria família Seu avô e pai eram homens do tipo amansa negro homens de mão pesada e de alma dura Capistrano nasceu portanto em uma casagrande modesta mas abastecida A casa expressava o espírito místicoescravista dominante era cheia de imagens de santos rosários relíquias escapulários terços e orações e um dos seus cômodos era usado como sala de disciplina a sala do tronco com os instrumentos de suplício para os escravos rebeldes e que provavelmente o rebelde Capistrano também conheceu pois os filhos na sua época eram também amansados Ali reinava o espírito colonizador e inquisidor dos descobridores O sítio submergia no anonimato da vida sertaneja isolado embora Fortaleza não fosse tão longe Viviase ali uma vida rotineira silenciosa ritmada pela natureza pelo trabalho e pelas rezas Câmara 1969 Foi neste ambiente bem pouco aristocrático que Capistrano nasceu e viveu até a juventude Ele era psíquica e fisicamente um autêntico sertanejo um caboclo matuto feio agreste desagradável Um desconfiado tapuia transplantado para o meio civilizado alguém disse Os biógrafos descrevem a sua imagem de maneira bem desfavorável seboso malvestido sem higiene pessoal uma figura torta um olho pendido para o lado uma cor encardida que o banho só piorava Para logo desanuviarem a má impressão referindose à sua personalidade brilhante e envolvente Ao chegar ao ser apresentado a alguém ou ao se apresentar sua imagem causava desgosto ao sair seu espírito deixava encantamento Foi assim por exemplo no primeiro encontro com José de Alencar seu conterrâneo que tinha obtido grande sucesso nacional e a quem ele recorreu para introduzilo na Corte Capistrano não era vaidoso e silenciava sobre si mesmo Sabese que era próximo e afeiçoado aos escravos e que conhecia muitas canções africanas Câmara 1969 Sua formação intelectual considerando a sua origem modesta e rude foi outro milagre Foi sobretudo um autodidata um leitor apaixonado e desordenado Alfabetizado no próprio sítio depois estudou em um colégio pobre de Fortaleza o Ateneu Cearense e no seminário Como estudante sempre fracassou nos exames Talvez tivesse dificuldades psicológicas com a autoridade associada ao pai Seu retorno de Recife onde passou dois anos preparandose para entrar na Faculdade de Direito com o apoio financeiro de seu pai foi mais ou menos trágico ele fracassara em Recife Entre os 18 e 20 anos as perspectivas de Capistrano não eram as melhores Ele ficou no sítio escrevendo para jornais de Fortaleza dando aulas em colégios Precisava de um emprego e de um salário para viver Não era rico e não poderia mais depender do pai sem trabalhar no sítio Câmara 1969 Decidiu então ir para a Corte migrar para o Rio de Janeiro armado com uma carta de José de Alencar apresentandoo aos jornais do Rio e com 700 milréis que apurou com a venda de um escravo que herdara do avô Em 1875 esse nordestino feioso desceu para um mundo desconhecido incerto sozinho sozinho Chegou ao Rio com 21 anos Apesar da sua resistência ao bacharelismo tinha uma boa bagagem intelectual lia francês e inglês conhecia filosofia literatura história e geografia Assim dizem seus biógrafos mais exaltados E exageram lia até sueco Câmara 1969 Na Corte precisava de um emprego Trabalhou na Livraria Garnier foi professor no Colégio Aquino onde tinha casa e comida publicou vários artigos em jornais passou em concurso para o preenchimento de uma vaga na Biblioteca Nacional emprego público estável e seguro a âncora de que ele precisava para fixarse na Corte Em 1883 fez o famoso concurso para professor de corografia e história do Brasil do Colégio Pedro II Passou ocupou a vaga mas não ficaria muito tempo saindo em 1899 Sua cátedra história do Brasil foi extinta incluída na história universal Enquanto ensinou sem carisma teve alunos e nunca discípulos Ao sair do colégio sentiuse aliviado livrarase de alunos ignorantes e desatentos Contudo a razão da sua saída do Colégio Pedro II permanece mal explicada Alguma razão política Chacon afirma que Capistrano e O Lima acusados de germanofilia quando da I Guerra Mundial teriam sofrido perseguições Chacon 199392 Mas a sua saída do Pedro II foi em 1899 bem antes Qual terá sido a verdadeira razão Somente uma simples reforma do ensino que dissolvia uma cadeira de história do Brasil Capistrano morreu em 1927 aos 64 anos Câmara 1969 Sua biografia interessa muito quando se conhece o lugar inovador que ele teve na historiografia brasileira A biografia escrita por J S Câmara que utilizamos até aqui parecenos recomendável apesar de um excesso talvez de empatia embora compreensível Quem é afinal o autor de Capítulos de história colonial Num mundo social marcado profundamente pela bipolarização senhorescravo ele não fora nem uma coisa e nem outra Sua família era pequena proprietária de terra e produzia para o próprio sustento A maneira como conseguiu essa terra também é curiosa casualmente um presente de reinol A produção não se destinava ao mercado internacional mas era feita também com mão de obra escrava e de agregados que trabalhavam lado a lado com os membros da família proprietária Era um mundo social brasileiro voltado para dentro sem vínculos externos diretos A subsistência era retirada da terra parca e modesta à custa de um trabalho contínuo e braçal quase sem equipamentos O horizonte pessoal de Capistrano era prosseguir essa vida paterna e familiar horizonte que ele recusou contra o qual se rebelou porém com pouca coisa ou quase nada para substituir Refugiouse então talvez na leitura evadiuse o jovem Capistrano Criou um mundo de palavras frases citações confusas e em outras línguas apelando até para o sueco buscando diferenciarse do seu mundo do seu passado buscando o reconhecimento intelectual o prestígio de homem de letras devorador de livros mas pouco disciplinado para enfrentar exames No Rio quando não tinha mais terra e nem era mais proprietário de escravos passado que rejeitara ele só possuía a força física e seus olhos leitores como instrumento de trabalho Ali precisava sobreviver e mostrar o seu valor Tendo rompido com aquele passado rompeu também com o futuro previsível que ele prometia agora enfrentava um futuro desconhecido que teria de produzir com os próprios recursos Capistrano preferiu a mudança e a sua instabilidade à continuidade familiar e nordestina Sua história pessoal se parece com a interpretação que construiu do Brasil rebeldia e recusa do passado opção por um futuro novo mas qual O Necrológio de Varnhagen escrito em 1778 três anos depois da chegada ao Rio talvez tenha sido o grande trampolim para o futuro que ele queria realizar repercutiu tão intensamente dizem que até o insuperável Machado de Assis evitou publicar o seu Capistrano começou então a sentir o gosto da vitória e do sucesso depois de experimentar fracassos sucessivos no Nordeste Um horizonte novo se abria para ele e se ensolarava na Corte Câmara 1969 Viverá até 1927 com os seus únicos recursos postos públicos e a escrita concisa precisa e inovadora Entretanto a sua obra é pequena e constituída de textos curtos Contará na verdade mais com a renda de funcionário público bibliotecário e professor do que com seus escritos que ele próprio parecia não apreciar muito Quando terminados dizia sentir por eles alívio e nojo Câmara 1969 Talvez seja este também o sentimento de um operário diante da sua obra terminada alívio pois deu conta de fazêla e já podia ir para casa com o salário no bolso nojo pois a produzira sob pressão dominado pela necessidade Como um operário um migrante nordestino Capistrano é um homem humilde discreto tímido avesso a títulos e glórias e indiferente à audácia e perícia do trabalho que realiza Varnhagen e Capistrano Quando Capistrano nasceu em 1853 Varnhagen começava a publicar a sua História geral do Brasil Capistrano será o seu leitor mais atento e crítico Será em relação a Varnhagen que ele fará a sua grande inovação na interpretação do Brasil Essa inovação se explica não só em termos da sua origem social que é totalmente diversa da de Varnhagen mas também em razão da nova época intelectual vivida pelo Brasil nos anos posteriores a 1870 O desfecho da guerra francoprussiana abalara o prestígio da cultura francesa e os intelectuais brasileiros se abriram às influências inglesa e alemã Spencer Darwin Buckle Ranke Ratzel Os franceses ainda influenciavam Comte Taine Tarde Renan G Le Bon Pós1870 o ambiente intelectual brasileiro era mais complexo refletindo também a maior complexidade da vida brasileira que se inquietava depois do fim da Guerra do Paraguai Varnhagen escrevera quando a Monarquia se consolidava nos anos 1850 Capistrano construirá a sua interpretação do Brasil quando a Monarquia estava abalada em xeque assim como a escravidão e se buscavam novas bases econômicas sociais políticas e mentais para o Brasil Wehling 1994 Os intelectuais brasileiros do final do século XIX começaram a perceber a distância entre a realidade brasileira e o pensamento que eles próprios produziam Silvio Romero criticava o ambiente intelectual brasileiro vazio e banal e aspirava a ter contato com o verdadeiro Brasil Havia um esforço de todos para encarar de forma nova o passado brasileiro Tinham agora uma preocupação cientificista Comte Buckle Darwin Spencer serão as referências intelectuais predominantes Ortiz 1985 A preocupação cientificista de Capistrano era a de toda uma nova geração No pósGuerra do Paraguai essa geração quer reinterpretar a história brasileira privilegiando não mais o Estado imperial como Varnhagen mas o povo e a sua constituição étnica A formação intelectual de Capistrano se deu nesse ambiente determinista cientificista até racista Discutiase então o positivismo o determinismo climático o determinismo biológico o spencerismo o comtismo o darwinismo as teorias raciais Pensavase que a sociedade poderia ser estudada com a mesma objetividade com que se estudava a natureza pois também se submetia a leis gerais de desenvolvimento A história seria como o universo um mecanismo autorregulado submetido a leis passível de um conhecimento objetivo A ciência passava de método a visão de mundo desvalorizando as verdades trazidas pela tradição pela religião pela filosofia Euclides da Cunha O Vianna Silvio Romero Tobias Barreto enfim a geração de Capistrano de Abreu discutia darwinismo social luta pela vida seleção das espécies e defendia um conhecimento antimetafísico empírico histórico Chacon 1977 Wehling 1994 No entanto havia posições heterodoxas Tobias Barreto por exemplo opunhase ao cientificismo predominante opondo lhe o historicismo neokantista alemão Quando se trata do homem e da sociedade sustentava ele há sempre um resto que a mecânica não explica aliás esse resto mecanicamente inexplicável é quase tudo quando se trata do homem O que há então é um todo inexplicável Naquele ambiente spenceriano Tobias Barreto já era um culturalista um pioneiro historicista Não há leis para a história humana O pensamento brasileiro do final do século XIX portanto estava dividido A Escola de Recife mantinha a distinção entre natureza e cultura resistia ao cientificismo sociológico Este dominava a Escola Politécnica do Rio de Janeiro a Escola de Minas de Ouro Preto o Colégio Pedro II a Escola Normal o Colégio e a Escola Militares a Escola Naval as Faculdades de Medicina e Direito que formavam os profissionais liberais políticos intelectuais empresários impregnados de Comte Spencer e Darwin Chacon 1977 Wehling 1994 Capistrano Positivista ou Rankiano O pensamento de Capistrano revela essa divisão e confusão da discussão intelectual no Brasil no final do século XIX Qual era a sua tendência mais positivista ou mais historicista P M Campos afirma que Taine Buckle e Comte foram importantes na sua formação Chacon o considera um dos numerosos adeptos de Spencer da época Chacon 1977 Entretanto se a Escola de Recife era mais historicista fica um pouco difícil perceber a sua formação positivista em Recife Talvez quando foi para o Rio de Janeiro ele tenha tido um maior contato com os autores positivistas ingleses e franceses no Colégio Pedro II e ali também tenha sofrido a doutrinação dos debates positivistas Os analistas de Capistrano arrolados a seguir dizem mais ou menos o mesmo Campos 1983 Para Ricardo Benzaquen ele sempre se interessou teoricamente pelos sociólogos franceses ingleses e alemães A perspectiva sociológica influenciouo e ele lamenta que Varnhagen não a tivesse empregado ao não procurar leis na história do Brasil No Necrológio em 1878 já no Rio de Janeiro reafirmou a sua crença na possibilidade de se encontrarem leis para a história do Brasil Esperava um Spencer ou um Buckle da história do Brasil A sua obra é um ponto de referência da recepção da concepção moderna de história com o seu ideal objetivista de verdade apoiada em documentos inéditos testemunhas oculares autores identificados das fontes Para ele o distanciamento do historiador deve se dar quando manipula as fontes em um segundo momento quando as interpreta o quadro teórico das ciências sociais orientará a pesquisa com suas leis e teorias Araújo 1988 P M Campos afirma que ele se interessou por tudo o que saiu da Europa em particular pela bibliografia alemã assim como por economia política história da América e de Portugal psicologia que ele considerava indispensável ao historiador e geografia A influência alemã levouo ao estudo rigoroso dos documentos Capistrano quer também narrar o que de fato aconteceu Defendeu o realismo histórico alemão Entretanto esteve embebido pelas influências diversas não somente alemãs Aquelas características da sua obra estrita observação das fontes e pesquisa das relações do homem com o meio geográfico se partiram da Alemanha já pertenciam a todo o Ocidente Sua obra afirma Campos não permite uma avaliação do grau de influências recebidas Foram publicadas como artigos esparsamente e seus livros não possuem prefácios Só em sua correspondência se pode conhecer o que lia Essa correspondência aliás é um valioso material para a história das ideias no Brasil do final do século XIX e início do XX Nela Campos não percebeu nem preconceito nem exclusivismo cultural Capistrano nunca teria proposto uma explicação unilateral da história mas sempre percebeu a interdependência das diversas instâncias sociais Campos 1983 Para A Canabrava tal como em Varnhagen a exegese documental que ocupou muito do seu tempo parece inspirarse em Ranke Os dois se encontram na preocupação fundamental pelo documento pela busca da autenticidade pela verdade das fontes pelo esforço de análise objetiva Entretanto diferente de Varnhagen que não se interessou por teoria Capistrano que nunca saiu do Brasil tinha grande interesse pelas correntes do pensamento europeu no campo das ciências sociais Canabrava afirma ter encontrado em sua correspondência muitas referências a diversos teóricos europeus Taine Buckle Comte Ratzel Spencer Sombart Ranke Capistrano lia estudos empíricos e ensaios teóricos sobre assuntos variados Interessouse tanto pela história do clima e da Rússia como pela história do Brasil Foi um dos pioneiros da geografia humana Entretanto conclui Canabrava era teoricamente confuso não dominava vários conceitos que ao seu tempo as ciências sociais tinham formulado Faltoulhe uma problemática consistente que desse ao seu pensamento uma diretriz fundamental de interpretação faltoulhe enfim unidade teórica Ele apenas aflorou os grandes temas das ciências sociais sem dominálos Canabrava 1971 Para Wehling a influência cientificista é determinante na obra de Capistrano entre 1874 e 1880 A sua biografia intelectual começa no Ceará no círculo positivista formado por Rocha Lima Araripe Jr e Tomás Pompeu Filho entre outros O grupo atuava no sentido da educação do proletariado na linha comtista Escreviam em francês faziam conferências na escola popular que fundaram Capistrano escrevia artigos e pronunciava conferências sobre as influências positivistas de Spencer Buckle Comte e Taine Entre 1874 e 1883 enfim Capistrano rezava a cartilha cientificista unidade do real busca de leis deterministas evolucionismo cognoscibilidade e objetividade do conhecimento social unidade epistemológica das ciências sociais Wehling 1994 Entretanto Wehling considera que esse interesse pelas ideias positivistas se restringiu a uma fase inicial de sua formação Depois com o aprendizado do alemão ele teria passado do positivismo ao realismo histórico rankiano Optou pela pesquisa documental e pelo método crítico alemão que aliás ainda hoje é chamado impropriamente de positivista por causa da influência da escola dos Annales Reis 1996 Houve uma reviravolta em seu pensamento cuja data não é fixável A influência alemã o retirou do positivismo e o levou à hermenêutica Mas afirma Wehling não foram leituras teóricas que o retiraram do cientificismo como quer J H Rodrigues Para Wehling foi o estudo de documentos o primado do objeto que converteu Capistrano do cientificismo à ciência A rebeldia das fontes diante dos esquemas interpretativos fez com que ele os restringisse a hipóteses de trabalho O real era reconstruído a partir de sugestões científicas que conduziam ao levantamento dos fatos A composição e a interpretação desses fatos obedecem à lógica da situação histórica Capistrano tinha pouco interesse por problemas teóricos e metodológicos da história Na sua fase científica ele utilizou leituras europeias como sugestões temáticas como hipóteses de trabalho O seu interesse teórico na fase cientificista não teve consequências para a pesquisa que realizou e repercutiu na fase posterior Portanto para Wehling a resposta à questão sobre a orientação teórica de Capistrano é clara ele passou por duas fases uma primeira cientificista francoinglesa e outra científica alemã rankiana As suas grandes obras são da segunda fase Rodrigues considera que Capistrano fez uma reviravolta na historiografia brasileira por sua posição teórica atualizada seu conhecimento incomum dos fatos seu novo ideal de história do Brasil Os seus artigos de 1879 revelaram a influência positivista não só na investigação como na interpretação dos fatos da história do Brasil Ele era amigo de Teixeira Mendes e Miguel Lemos apóstolos comtistas no Rio de Janeiro Mas o convívio com autores alemães o faz ir à procura das realidades segundo ideais não positivistas Em suas obras mais importantes ele não deduz e generaliza tão facilmente Rodrigues precede Wehling em sua leitura da reviravolta no pensamento de Capistrano Sob as influências de Ranke Niebhur e Humboldt ele passará a dar ênfase aos documentos à sua crítica e interpretação sem buscar leis mas a compreensão Entretanto apesar da influência alemã sobrevive uma certa influência de Spencer Mas o positivismo ele passará a considerálo como uma camisa de força e a influência alemã será cada vez maior Ranke e Ratzel Ele recusa os determinismos geográfico climático e racial bem como o evolucionismo Historicista percebe que a vida em seu mistério pede um tratamento diferenciado da natureza Seus estudos sobre a história íntima festejos família procurando a diferença a individualidade as significações o afastam do que é típico regular constante A ação humana não se submete a regras e leis gerais Rodrigues 1963 e 1965 Deixando o positivismo passou a se interessar pelo método crítico que mais uma vez desde a Escola dos Annales é visto inadequadamente como a marca da história positivista Reis 1996 Mesmo se Spencer é forte e o será até os anos 1930 até G Freyre a influência alemã é que fundamentará as obras mais relevantes de Capistrano Historicista e não positivista o segundo Capistrano quer captar a interioridade dos testemunhos A história não é só fato é emoção sentimento e pensamento dos que viveram Mas se apreciava a metodologia de Ranke não seria capaz de se apagar para narrar os fatos tal como se passaram Rodrigues o considera a mais lúcida consciência da história do Brasil ele recriou o passado brasileiro enfrentando os seus males superandoos reabrindo o futuro do Brasil Rodrigues 1963 e 1965 Odália o vê como exemplar de uma interpretação do Brasil que por um lado privilegia o indígena por outro é mais um historiador brasileiro que importa teorias europeias e se dilacera para atender a essas teorias que condenavam o Brasil a um triste destino e para que este destino não se realizasse Por um ato de vontade e de contorcionismo teórico negase o destino prefixado pelos cientificistas europeus que afirmam a impossibilidade de uma nação civilizada nos trópicos e ainda por cima miscigenada Odália 1976 Capistrano no entanto será diferente da sua geração Ele reabrirá o futuro do Brasil vencerá o pessimismo existente entre os intelectuais brasileiros que olhavam o Brasil com as teorias deterministas europeias e nele não viam o que elas valorizavam embora ele também em uma primeira fase tivesse se impregnado de tais teorias e feito também algum contorcionismo teórico Finalmente ele optou pela teoria também europeia que valoriza a singularidade a historicidade de cada povo e formulou uma nova interpretação do Brasil que enfatizará o tempo histórico especificamente brasileiro Há atualmente uma tendência de se rever a sua posição pioneira na historiografia brasileira Alguns críticos reavaliam sua obra e consideram que teria havido em relação a ela uma sobrevalorização equivocada Para Laura de Mello e Souza Capistrano não teria sido tão renovador e fecundo como afirma a crítica historiográfica mais tradicional representada sobretudo por J H Rodrigues Era sem dúvida um erudito um desbravador com alguns momentos iluminados revelou novas fontes e fez uma leitura inovadora da história brasileira Mas tudo o que ele fez foi de raspão inacabado uma promessa não cumprida Eu ousaria dizer que Capistrano é um dos grandes mitos da historiografia brasileira Souza 19981121 Segundo ela mais importante para a redescoberta do Brasil teria sido a obra de Alcântara Machado Vida e morte do bandeirante uma obra realmente inovadora que já trabalhava com inventários e testamentos e que tratou do sertão melhor do que Capistrano E é uma obra genial apesar de obscura e injustamente desconhecida Mas os críticos da posição de Capistrano na historiografia brasileira fazem tais afirmações receosos conscientes de que estão cometendo algum tipo de heresia Sempre acrescentam e que fulano não me ouça afirmar isso Sabem que é uma avaliação polêmica não consensual Nossa posição é a da abertura a todas as avaliações e reavaliações Toda reavaliação crítica é fecunda pois possibilita o reexame e a rediscussão das obras clássicas Essa reavaliação da obra de Capistrano não é um despropósito um equívoco delirante Ela faz pensar Teria havido algo de realmente inovador em Capistrano Qual teria sido a sua verdadeira contribuição à historiografia brasileira Retomemos a sua obra Capítulos de história colonial Neste capítulo a nossa intenção é relêlo reavaliálo e redescobrilo A Redescoberta do Brasil Capistrano será um dos iniciadores da corrente do pensamento histórico brasileiro que redescobrirá o Brasil valorizando o seu povo as suas lutas os seus costumes a miscigenação o clima tropical e a natureza brasileira Atribuirá a este povo a condição de sujeito da sua própria história que não deveria vir mais nem de cima e nem de fora mas dele próprio O futuro do Brasil tornase tarefa do povo brasileiro e para melhor vislumbrálo Capistrano recupera o passado deste povo em suas lutas e vitórias Capistrano foi pioneiro na procura das identidades do povo brasileiro contra o português e o Estado imperial e as elites lusobrasileiras Seu papel na história do Brasil a significação da sua obra os caminhos novos que apontou os seus ideais e conceitos e sua contribuição à história colonial podem ser avaliados nos Capítulos de história colonial Ele não fez uma história exclusivamente políticoadministrativa ou biográfica mas procurou apreender a vida humana na multilateralidade de seus aspectos fundamentais Sua visão da história não atribui predominância a um fator sobre outros ele a vê como um conjunto complexo de fenômenos humanos Para ele como historicista o historiador deve recriar a vida integralmente realizar uma compreensão total e criadora do curso histórico O conceito de cultura substitui o de raça e nesse aspecto ele é precursor de G Freyre assim como de S B de Holanda Ele valoriza a presença indígena e pensa um Brasil mais mameluco do que mulato mais sertanejo do que litorâneo Nos Capítulos de história colonial aparecem os caminhos que levam ao sertão e o próprio sertão brasileiro Adentrando o Brasil o colonizador se alterou e se tornou uma personalidade distintamente brasileira Vivendo no interior do Brasil ilhado e sem vínculos contínuos com o litoral convivendo com os indígenas e a natureza brasileira foise constituindo um homem novo até então inexistente no mundo a história universal ganhava um novo personagem o brasileiro Mas enfatizando o sertanejo ele não perde de vista o nacional a unidade brasileira em suas diferenças regionais Ele não faz ainda uma história econômicosocial mas já trata do homem comum sobretudo nos capítulos finais do seu Capítulos de história colonial Seu grande tema foi o da ocupação do território a sua conquista pelo novo povo brasileiro O seu Capítulos de história colonial publicado em 1907 é uma nova história do Brasil embora muito parecida com Capistrano fisicamente modesta magra quase silenciosa Porém ao mesmo tempo extremamente eloquente É uma síntese que reúne muitos fatos esparsos encadeados em uma perspectiva inovadora Varnhagen escreveu uma obra de síntese também parecida com ele próprio isto é em cinco volumes Mas como síntese isto é como apreensão da totalidade como integração da multiplicidade sua obra é menos reveladora do que a de Capistrano Este escreveu uma obra magra a grandes traços e largas malhas contra os quadros de ferro de Varnhagen Seu interlocutor era Varnhagen a quem ele admirava e se opunha Capistrano escreveu o seu livro em um ano Seus analistas o consideram uma pequena obraprima da historiografia brasileira por sua linguagem simples por sua compreensão intuitiva da história do Brasil em seus fatos e em seu conjunto pela documentação segura e numerosa por seu interesse pelo povo durante séculos capado e recapado sangrado e ressangrado como afirma Rodrigues Ele pretendeu ensinar ao povo brasileiro o seu segredo ensinarlhe a sua história pátria numa época em que a história nacional era desprezada A sua cadeira de história do Brasil foi até extinta e ele posto em disponibilidade Enquanto a história de Varnhagen era uma conversa entre eruditos Capistrano divulgou com simplicidade o conhecimento da história do Brasil mais econômicosocial do que política liberta de datas nomes e eventos oficiais O Capítulos é uma história da luta dos brasileiros pela independência contra vicereis e governadores que os sufocavam Capistrano foi um homem de síntese uma síntese precedida de longas investigações Sua síntese toca em todos os pontos mais relevantes da vida brasileira é a mais viva e condensada história colonial do Brasil Tendo como personagem central o povo nela o indígena ganha um papel importante na formação do Brasil Para Capistrano o que houve de diverso entre o brasileiro e o europeu deveuse ao clima e ao indígena O brasileiro é o europeu que sofreu um processo de diferenciação graças ao clima e à miscigenação com o índio Interessalhe conhecer o que este povo sente e aspira Faz uma história social e econômica do povo sua vida alimentação tipos étnicos condições geográficas os caminhos povoamentos modos de viver formas psicológicas profissões divertimentos costumes crenças diferenças sociais comércio vida urbana e rural Sobretudo ele identifica este povo que no período colonial e mesmo imperial não sabe bem o que é o que faz e deveria fazer Ele revela o processo de constituição da diferença entre o projeto colonizador e o novo interesse e sentimento que se formaram gradualmente o interesse e sentimento brasileiros Varnhagen fez o elogio da vitória dos portugueses defendeu os interesses e os sentimentos lusitanos no Brasil e não via com bons olhos a diferença que volta e meia explodia entre esses valores e poder europeus e os autóctones Capistrano escreverá uma outra história do Brasil antiportuguesa antirreinol antieuropeia antiEstado Imperial antipolíticoadministrativa Ele ecoará as vozes de Antonil e dos rebeldes de todo o período colonial Redescobrindo o Brasil Capistrano fará o elogio da rebelião brasileira A Obra Capítulos de História Colonial Capítulos de história colonial começa com dois capítulos estáticos ou seja capítulos que apenas oferecem os dados da história que ele vai narrar e interpretar No primeiro capítulo intitulado Antecedentes indígenas Capistrano realiza uma descrição geográfica do Brasil o palco sobre o qual se desenrolará a história que vai narrar a partir do terceiro capítulo Começa pelos dados iniciais os mais elementares é preciso situar o Brasil onde fica limites a leste oeste norte e sul as suas dimensões Faz considerações sobre o relevo os acidentes e singularidades geográficos realizando uma espécie de mapeamento do território Como alguém que olha em volta identificando onde está e o que possui Em sua Corografia do Brasil aparecem as serras baías baixadas rios climas florestas fauna com uma avaliação sobre cada serra cada rio cada floresta cada animal Habitando esse território há o indígena também descrito em seus hábitos comportamentos atividades técnicas guerras vida sexual trabalho educação religiosidade artes lendas língua E também com avaliações o indígena domestica somente animais de estimação e não para o uso na vida cotidiana possui uma agricultura incipiente depende do trabalho das mulheres consideradas inferiores ao homem é nômade antropófago tem os sentidos apurados cultua os antepassados Os indígenas têm uma língua comum e vivem infelizmente dispersos porque o meio dispensa e impede a cooperação A natureza e os índios são portanto os temas dos Antecedentes indígenas primeiro capítulo da história colonial brasileira Capistrano faz uma descrição geográfica do Brasil e uma apresentação dos seus primitivos moradores Esses são os dados iniciais da história do Brasil que foram encontrados aqui A esses dois dados Capistrano acrescentará outros dois que não eram daqui mas aqui vieram parar o europeu e o africano A esses dois ele denominará elementos exóticos os alienígenas que serão os temas do segundo capítulo Nesses dois primeiros capítulos ao apresentar os dados iniciais da história do Brasil o palco natural e os personagens que atuarão sobre ele indígenas e alienígenas Capistrano se aproxima de Varnhagen na descrição do primeiro Brasil e Varnhagen é até mais informativo minucioso Capistrano diferenciase de Varnhagen na perspectiva que terá de tais dados Para Capistrano alienígenas exóticos são os europeus e africanos e não o indígena e a terra do Brasil Para vêlos assim ele se coloca no ponto de vista do indígena e da terra do Brasil que veem chegar novos e desconhecidos elementos Ele olha da praia para o oceano cheio de caravelas enquanto Varnhagen olhava da caravela de Cabral para a praia e via uma terra exótica povoada por alienígenas No segundo capítulo portanto ele faz ainda uma descrição estática isto é neles próprios dos fatores exóticos que desembarcaram no Brasil Descreve então a situação de Portugal no século XVI a sua transição conciliada da Idade Média para Moderna a Igreja com poder mais limitado mas ainda influente as relações entre o Estado português e Igreja seus atritos e proteções recíprocas a sociedade secular emergente que luta para limitar os poderes da sociedade religiosa ainda dominante Descreve a hierarquia social portuguesa do século XVI o rei a quem tudo pertencia e que tudo podia abaixo dele a nobreza com seu poder agora limitado pela centralização do poder real e o clero abaixo o povo a grande massa sem direitos pessoais sem grande importância abaixo ainda os servos escravos que podiam passar à categoria superior pois as classes não eram castas A nobreza o clero e o povo constituíam as cortes que o rei absoluto desdenhava e só convocava quando precisava aumentar os impostos A população portuguesa em 1527 era de mais ou menos 1122112 almas E ele formula a questão que a todos espanta como esse pessoal exíguo que nem enchia Portugal direito pôde povoar o mundo Capistrano antecipase a G Freyre e a S B de Holanda na descrição do caráter português fragueiro abstêmio imaginação ardente místico independente antidisciplinar não convencional de fala livre sem eufemismos o coração duro Matava por quase nada e cuidava pessoalmente da defesa da sua propriedade Suportava melhor a dor física do que a dor moral o ser fisicamente forte era valorizado Capistrano antecipa também aqueles dois autores dos anos 1930 na resposta àquela questão por ser assim só esse povo foi capaz de se misturar com outras etnias e culturas O português é o primeiro elemento exótico o primeiro imigrante o invasor conquistador e colonizador O segundo elemento exótico é o negro Ao português estranho ao continente juntouse o negro também alienígena A importação deles começou cedo Eram robustos resistentes e substituíram o índio no trabalho rude Tinham uma índole carinhosa sobretudo os domésticos O negro trouxe alegria ao lado do português taciturno e sorumbático Suas danças lascivas suas feitiçarias e crenças propagaramse entre os brancos Mulatas tornaramse rainhas Em relação ao negro Capistrano é menos estático não se refere a eles somente no século XVI ao estado em que se encontravam ao chegar Tampouco se refere aos negros na África como aos portugueses em Portugal Já no segundo capítulo fala deles indo do século XVI até o século XIX 1850 e a abolição muito brevemente Mas o espírito é o mesmo o de uma apresentação do personagem negro e do papel que ele terá na história do Brasil Talvez menos estático em sua apresentação do negro porque ao longo da obra será muito reticente quase silencioso sobre ele Na apresentação já esgotou tudo o que queria dizer sobre o negro Este entrará em sua história em rápidos momentos sem qualquer peso histórico Vai interessarse mais pelas relações entre brancos e índios e pelo seu mestiço o mameluco sertanejo Finalmente no terceiro capítulo intitulado Os descobridores os elementos anteriormente estáticos se animam o português chega àquela geografia e encontra aquele índio Por que os portugueses vieram parar no Brasil Esta é a primeira questão posta por aquele que deseja compreender a história desenrolada no Brasil Os portugueses vieram porque a posição geográfica de Portugal destinavaos à vida marítima queriam encontrar o imperadorsacerdote PresteJoão para têlo como aliado na luta contra os infiéis as especiarias orientais davam altos lucros no mercado europeu Com essas motivações geográfica religiosa militar e comercial os portugueses atiraramse ao oceano ao longo da África procurando um caminho marítimo para as Índias que os levasse a obter os produtos diretamente evitando as rotas comerciais controladas pelos inimigos infiéis As teorias cosmográficas eram limitadas na época O périplo africano era tido como impossível e a via ocidental também Contra as autoridades e evidências portugueses e espanhóis tentaram a via meridional africana e a via ocidental Os portugueses chegaram às Índias e ao Brasil e os espanhóis à América Os espanhóis aliás estiveram no Brasil antes dos portugueses mas sua presença aqui não teve consequências Interessanos portanto afirma Capistrano Cabral e os portugueses já que o Brasil se tornou lusitano A presença espanhola inicial foi irrelevante para a história do Brasil Descreve então varnhagenianamente a aventura de Cabral partiu em 1500 com 13 caravelas chegou no dia 21 de abril Foram dias e espetáculos extraordinários Celebraram uma missa hastearam uma cruz Caminha escreveu a sua famosa carta Vieram depois novas expedições para explorar a Ilha de Vera Cruz Os naturais aparecem sob nova luz selvagens rancorosos antropófagos material mais de escravatura do que de conversão Capistrano põese no lugar do português que chega procura sentir suas expectativas e medos Mas não permanece nesse lugar ele o ocupará às vezes para melhor compreender a sua ação Com a exploração do paubrasil a terra passou a se chamar Brasil Havia outros nomes concorrentes Terra dos Papagaios Ilha de Vera Cruz Terra de Santa Cruz O comércio de paubrasil levou à fundação de feitorias O Pacífico foi descoberto ou seja visto pela primeira vez pelo europeu em 1520 E Colombo chegou finalmente às Índias Nesse primeiro Brasil o que havia era o pau homônimo papagaios escravos e mestiçagem As índias queriam a mestiçagem pois desejavam filhos da raça superior Só o pai conta para a descendência indígena E os presentes dos brancos e talvez esta seja a verdadeira razão do interesse das índias pelos brancos eram irresistíveis anzóis pentes facas tesouras espelhos Quanto aos portugueses não tinham outra escolha a não ser a índia pois branca não havia Os primeiros colonos do Brasil eram degredados desertores náufragos Uns se tornaram índios outros os combateram outros se indianizaram sem perder a identidade europeia Assim Capistrano descreve a chegada dos portugueses ao Brasil à Varnhagen fotografou os fatos mais miúdos descrevendoos detalhadamente Junto com eles outros personagens exóticos e alienígenas chegaram franceses holandeses ingleses que ameaçarão a descoberta portuguesa Portugal argumentava que a terra era sua por decisão papal Entretanto a presença dos outros alienígenas representava uma concorrência séria eles vendiam os mesmos produtos e mais baratos na Europa e incitavam os índios contra os portugueses Os tupinambás se aliaram aos franceses Durante décadas não se soube se o Brasil pertenceria aos portugueses ou aos franceses As armadas guardacostas eram caras e ineficientes Conversas diálogos embaixadas e tratados não adiantavam Só restava uma solução para afastar os outros invasores ocupar a terra Em 1531 Martim Afonso de Sousa veio fazer duas coisas povoar e guardar o litoral Fundou a primeira cidade São Vicente e uma segunda Piratininga Pressionados os portugueses tiveram de agir rapidamente criaram um sistema monumental de capitanias hereditárias estimularam a emigração para o Brasil A alta nobreza não aceitou o empreendimento que ficou com a pequena nobreza O rei cedeu parte do seu poder aos donatários Estes ficaram fortalecidos para enfrentar o estrangeiro e o sesmeiro A história do Brasil no século XVI se passou em trechos exíguos de Pernambuco Bahia São Paulo bem próximos do litoral A energia dos donatários continha a turbulência dos colonos Surgiram canaviais e engenhos lavouras de mantimentos pescavase fartamente na costa Entretanto se o sistema de capitanias hereditárias protegia ocupava e povoava a costa com a miscigenação ele levou alguns donatários à falência Além disso cada capitania era soberana estrangeira uma em relação à outra Não havia uma ação coletiva mas concorrência Os crimes cometidos em uma capitania não eram punidos em outra Havia uma anarquia intercapitanial além da anarquia intracapitanial O rei decidiu criar uma capitania real e enviou um representante seu Estabeleceuse em 1549 um governo central para o Brasil forte o bastante para garantir a ordem interna Vieram os primeiros jesuítas que depois dariam tanto trabalho A preocupação já no século XVI era com a unidade da colônia que o sistema de capitanias ameaçava O regime de Capitanias e Governo Geral significou o início da vitória portuguesa O Brasil seria português tudo indicava Entre 1580 e 1640 o trono português esteve sob o domínio espanhol por razões dinásticas Mas o domínio espanhol não comprometeu a vitória portuguesa no Brasil Pelo contrário favoreceua Com o apoio espanhol os portugueses ocuparam a Amazônia e expulsaram franceses e holandeses do Norte e Nordeste do Brasil Capistrano faz então um primeiro balanço dessa história chegando ao final do século XVI Nessa época o povo era constituído por três raças vindas de continentes diferentes e seus respectivos mestiços Eram desafetos Tanto entre elas quanto entre os mestiços entre si O negro ladino e crioulo desprezava o boçal o índio catequizado o nu o reinol o mazombo Forças dissolventes centrífugas dominavam a sociedade colonial do século XVI Só havia a percepção da diferença e não a da unidade Esta era garantida à força pelos portugueses que ocupavam povoavam miscigenavam e expulsavam Os índios os temiam ao mesmo tempo que eram fascinados pelos portugueses seus equipamentos de caça pesca guerra vestuário e objetos coloridos e brilhantes Mas faziamlhes guerra Os negros dominados oprimidos escravizados e estrangeiros viviam sob a hostilidade constante do português Hostilidade talvez atenuada pela solidão do branco que o forçava a aproximarse das negras assim como das índias Os índios fugiam para a floresta os negros chegavam algemados e humilhados Os brancos armados de espadas e terços humilhavam ofendiam estupravam escravizavam e exterminavam índios negros e mestiços de uns e outros além de expulsar brancos de outras nacionalidades e religiões Poderia sair uma nação daí Haveria alguma possibilidade de unificação de interesses e sentimentos tão diferentes de mentalidades separadas por um abismo abismo aprofundado progressivamente pela escravidão e pela guerra Capistrano oferece uma resposta otimista devagar ele afirma ao longo do século XVII essa dispersão geral foi cedendo lugar a uma possível união brasileira Para a constituição da unidade do povo brasileiro as guerras holandesas entre 1624 e 1654 foram decisivas Depois delas a história universal possuía um novo personagem um povo novo Os holandeses foram obrigados a invadir o Brasil porque antes da anexação do trono português ao espanhol em 1580 eram eles distribuidores dos produtos exóticos portugueses na Europa Mas inimigos da Espanha após 1580 eles foram impedidos de realizar esse comércio Decidiram então vir buscar os produtos diretamente no Brasil Quem sabe poderiam encontrar um jeito de chegar por via terrestre até o Peru isto é às riquezas espanholas Os holandeses atuavam através de duas companhias de comércio a das Índias Orientais que explorava o Oriente em detrimento dos interesses lusoespanhóis e a das Índias Ocidentais fundada em 1621 nessa circunstância da União Ibérica para explorar a África os Estados Unidos as Antilhas e o Brasil Para obter diretamente os produtos brasileiros essa companhia invadiu o território colonial ibérico Capistrano descreve os avanços e recuos da guerra contra os holandeses à Varnhagen detalhadamente com o ritmo de um contemporâneo de uma testemunha ocular Entretanto após 1640 com a separação dos tronos português e espanhol os holandeses já instalados em Pernambuco permaneceram Começou então o irredentismo brasileiro que exigiu a unificação das forças até então divergentes Um forte elemento de união foi a fé católica contra o herege O catolicismo nativo se exacerbou O ataque aos holandeses se fez em nome de Cristo Índios negros e mestiços diversos participaram vivamente da luta As vitórias lusobrasileiras se sucederam Os portugueses que havia muito estavam tendo prejuízo no Oriente finalmente optaram pelo Brasil e enviaram reforços Os patriotas expressão de Capistrano aceitaram os reforços portugueses p 118 Para ele a vitória contra os holandeses só foi portuguesa sob alguns aspectos Na verdade entre 1621 e 1654 quando Portugal optava pelo Brasil e o defendia mais vigorosamente dos ataques estrangeiros começava a perder o controle sobre o Brasil Um século e meio depois do seu descobrimento o Brasil era redescoberto por sua nova população Surgia o brasileiro depois de 1654 Essa guerra e esta vitória serviram para revelálo a si mesmo Havia um sentimento patriótico não português original novo brasileiro Vencia o espírito nacional Reinóis mazombos índios negros mamelucos mulatos curibocas mestiços de todos os matizes combateram pela divina liberdade Sob a pressão externa e apoiada na fé católica operouse uma solda superficial imperfeita mas um princípio de solda entre os diversos elementos étnicos vencedores dos flamengos Os combatentes de Pernambuco sentiamse um povo e um povo vencedor que já possuía os seus próprios heróis p 119 Passado o primeiro momento os reinóis tentarão reassumir a sua atitude de superioridade e proteção Entretanto data de meados do século XVII a irreparável e irreprimível separação entre pernambucanos brasileiros e portugueses Portanto se o século XVI terminara com uma tendência à dispersão e à fragmentação o século XVII terminou com uma tendência da população nativa não só à integração como à formação de uma nação independente A vitória contra os holandeses foi para os portugueses uma vitória de Pirro ganharam mas começaram a perder tudo Se os portugueses tinham conquistado o litoral os novos brasileiros conquistarão o sertão Os portugueses continuaram a viver no litoral e a controlar a vida ali os brasileiros adentraram o território conquistandoo ocupandoo povoandoo Capítulos de história colonial pode ser dividido em duas partes até as guerras flamengas oitavo capítulo Capistrano faz uma história do descobrimento do Brasil de tipo varnhageniano depois passa a fazer um novo tipo de história do Brasil Não só mudou o sujeito da história do Brasil Com a mudança do sujeito mudaram os temas alterouse o objeto e até mesmo a forma da história Até ali estávamos ainda na velha história políticoadministrativa metropolitana do descobrimento do Brasil Aqueles dados apresentados daquela forma já estavam em Varnhagen A primeira parte dos Capítulos de história colonial é quase uma síntese de Varnhagen embora o olhar não fosse mais da caravela sobre o litoral mas da praia em direção à frota Essa diferença na direção e posição do olhar presente na primeira parte liga esta à segunda impedindo que entre ambas haja uma ruptura O que não estava em Varnhagen e marca a originalidade de Capistrano é a percepção do surgimento do novo povo e a adesão ao seu sentimento e interesse ao seu projeto político Tal percepção foi possível porque desde as primeiras páginas do livro seu olhar já estava em outra posição e tinha outra direção As elites saem da história entra o povo brasileiro conquistando o sertão vivendo longe do rei O sertanejo é aquele que vive distante do rei autônomo soberano orgulhoso No nono capítulo intitulado O sertão Capistrano passa a analisar mais do que a descrever passa a fazer um esboço de história econômicosocialgeográficacultural da conquista do Brasil do seu interior pelos brasileiros A ocupação do interior não se deu somente após a vitória contra os holandeses Ela já vinha ocorrendo desde 1530 com a fundação de Piratininga e as entradas pelo Tietê em direção ao Prata A vitória contra os holandeses só revelou nitidamente essa nova identidade nacional Capistrano irá procurar perceber a sua formação longínqua muito anterior a esse episódio histórico litorâneo porém decisivo Aquela vitória foi como uma ponta de iceberg sinalizou a existência de um mundo histórico invisível mas que durava desde o século XVI Capistrano mergulhou perto dessa ponta de iceberg e desceu às bases dessa massa de gelo para descobrirlhe o início a profundidade a espessura a densidade De 1654 a ponta ele descerá até 1530 a base quando os paulistas começaram a entrar pelo interior do Brasil Bosi 1992 São Vicente e Piratininga foram um dos polos de onde partiram os brasileiros para a conquista do sertão Os bandeirantes iam caçar e escravizar índios Os paulistas são sobretudo mamelucos e Capistrano vê o povo brasileiro mais como um mestiço de índio e branco O mestiço de negro e branco é litorâneo e pertence ao mundo português Capistrano descreve os ataques bandeirantes aos indígenas e jesuítas e a resistência de uns e outros Os bandeirantes foram terríveis em suas caçadas A ação bandeirante já é uma ação da gente brasileira não é mais uma história portuguesa As primeiras ações brasileiras se destacaram pela violência e brutalidade contra os indígenas O brasileiro continuou a ação colonizadora e cristianizadora do português e usando os mesmos métodos Darci Ribeiro escreveu recentemente que os bandeirantes ou mamelucos paulistas foram vítimas de duas rejeições básicas A dos pais brancos com os quais queriam identificarse mas que os viam como impuros filhos da terra dos quais somente aproveitavam o trabalho e a do gentio materno que não valorizava a descendência da mãe Não podendo identificar se nem com brancos e nem com índios não tendo ancestrais portanto o mameluco cairá na terra de ninguém a partir da qual constrói a sua identidade brasileira Filho de índia ele se torna um caçador e escravizador de índios de sua gente Mameluco esclarece Ribeiro era o nome dado ao escravo árabe treinado para exercer o mando islâmico sobre a gente da qual tinha sido tirado Ribeiro 1995 Filhos de índias os paulistas agirão contra seus parentes com rara violência serão capitães do mato feitores de índios Invadirão as missões para prender os seus índios Capistrano não aprecia a história que conta analisa e se pergunta compensará tais horrores a consideração de que graças aos bandeirantes pertencem agora ao Brasil as terras por eles devastadas Eles voltavam a Piratininga com índios prisioneiros amarrados por coleiras uns aos outros Estes eram vendidos como escravos As mulheres índias eram estupradas conforme o costume Os jesuítas tentaram de tudo para que os índios fossem poupados Em vão Os jesuítas é que foram expulsos Os bandeirantes eram vistos como amansadores pacificadores de índios Circulavam por todo o Brasil levando a guerra ao povo de suas mães Entretanto alguns se fixaram e passaram de devastadores a colonizadores do interior do Brasil vivendo com o que o sertão lhes oferecia Outro polo foi o Maranhão de onde os brasileiros entraram pela Amazônia fazendo a mesma devastação do indígena Fundaramse engenhos plantaramse algodão e fumo Na Amazônia os brasileiros combateram holandeses ingleses e franceses A penetração da Amazônia foi lenta Era uma região com forte presença de jesuítas carmelitas e franciscanos Fundouse Belém do Pará Eram coletados os produtos florestais cravo canela cacau salsa A Amazônia teve uma prosperidade relativa com a cultura do arroz e do algodão e a introdução de escravos negros A população crescia lentamente O Maranhão estava no entanto muito longe do Sul do Brasil e foi preciso criar o estado do Maranhão em 1621 A comunicação com o Brasilsul era feita pelo Parnaíba mas foi preciso também construir estradas Portanto a partir de Piratininga os brasileiros desceram até o Prata e subiram até a Bahia passando por Minas Gerais foram ao Mato Grosso e Amazônia a partir do Maranhão os brasileiros entraram pela Amazônia e desceram pelo sertão nordestino A conquista do território se fez à custa da expulsão do extermínio e da escravização do indígena Os engenhos de açúcar o fumo e as roças de mantimentos só vingaram próximo de rios navegáveis Capistrano não aprecia esse início da história brasileira que lhe parece tão violento quanto a história que os portugueses faziam Em 1680 ele afirma a lei portuguesa proibia que os índios fossem escravizados única solução lógica e justa se houvesse gente bastante honesta e enérgica para fazêla respeitada p 141 Diferentemente de Varnhagen e G Freyre que viam os jesuítas como pseudofilantrópicos Capistrano se posiciona francamente ao lado deles na proteção ao indígena contra a guerra contra o seu extermínio e escravidão Um terceiro polo de ocupação do território brasileiro foi a agropecuária A criação de gado começou em torno de Salvador e ao longo do rio São Francisco Aos poucos foi se afastando das margens do rio e se adentrando pelos mais profundos sertões da Bahia Pernambuco Minas Gerais Há os sertões de dentro baianos e os sertões de fora pernambucanos Nas vastas regiões interiores dominadas pelo gado foi também o mameluco que predominou São regiões impróprias para o cultivo O gado prosperou ali exigindo pouco capital pouco pessoal fornecendo alimentos para as regiões exportadoras O conflito com os índios foi menor pois o fazendeiro não é nômade nem caçador de índios Desde que estes cedessem suas terras e não comessem do gado as relações entre eles e os brancos se estabilizavam Com o gado caminhos novos foram abertos levando ao mais fundo Brasil Os brasileiros da pecuária viviam com recursos escassos Só comiam carne leite frutas e mel Faziam tudo de couro portas camas cordas alforjes mochilas roupas malas O vaqueiro recebia uma cria de cada quatro crias depois de quatro a cinco anos de serviço Podia com o tempo fundar a sua própria fazenda Vaqueiro homem de fazenda criador são títulos honoríficos entre eles A fazenda tornouse aos poucos um centro familiar com grandes e confortáveis casas Nos caminhos do gado para a cidade onde ele era vendido populações se estabeleceram povoados surgiram Essa população distante era também muito católica e de vez em quando recebia padres Entretanto vivia entregue a si O Estado demorou a se instalar com juízes milícia e administração O mundo da pecuária era também um mundo de violências com bandoleiros onde era comum a vingança Era um mundo de liberdade sem escravos semipovoado vasto abundante familiar e violento Além dos polos de São Vicente Piratininga e de São Luís do Maranhão para ocupar o interior da Bahia Minas Goiás e o Nordeste com o gado outro polo de ocupação e povoamento do território brasileiro foram as minas Foi graças à pecuária por um lado e à caça do indígena por outro que as minas foram descobertas Não se pretendia achar ouro e pedras preciosas mas prata já que esta fora encontrada em Potosi E no Brasil deveria até ser mais abundante a prata se o Oriente for mais nobre do que o Ocidente como se acreditava que fosse O ouro foi encontrado sem ser muito procurado Os paulistas acabaram por encontrálo no final do século XVIII nas regiões de Minas Gerais e Mato Grosso Ouro Preto Mariana Rio das Mortes Rio das Velhas Paracatu e Cuiabá Os bandeirantes tornaramse então mineiros Pouco a pouco tudo era enviado para as minas vindo de todas as partes do Brasil e da Europa Houve uma corrida Com o crescimento das minas uma parte do sertão do Brasil tornouse português O rei voltou a controlar o Brasil Os tributos aumentaram a circulação da população foi controlada a exploração do ouro foi disciplinada em favor da Coroa Na Bahia por estar mais próxima do litoral a exploração do ouro foi proibida As minas se tornaram um sertão não brasileiro não mameluco mas português dominado pelo branco e pelo negro e o seu mestiço Nesse sertão mineiro o domínio português tornouse tão severo que os sentimentos patrióticos brasileiros se tornaram mais agudos Os brasileiros na expansão por seu território já estavam acostumados a ficar distantes do rei e tinham gostado A sua reaproximação foi tão opressiva que desencadeou os movimentos pela independência No final do século XVIII a solda que unia os diversos grupos da nação brasileira se consolidou A consciência patriótica brasileira se aprofundou O rei e sua lei opressora e repressiva foram contestados em diversos pontos do país exatamente naqueles pontos em que já existia uma população brasileira assentada com interesses e sentimentos próprios antilusitanos Maranhão Pernambuco Bahia Minas Gerais São Paulo Os triunfos contra os estrangeiros as proezas dos bandeirantes a abundância de gado animando os sertões as minas de ouro e diamantes e outras pedras preciosas as riquezas remetidas à metrópole o crescimento da população afirma Capistrano influíram sobre a psicologia dos colonos As descobertas auríferas foram a gota dágua vieram completar a obra Os brasileiros não se sentiam mais inferiores aos nascidos na metrópole não eram mais os humildes mazombos do século XVI Tal mudança os filhos da metrópole não reconheciam O reinol é visto então como um miserável que vinha enriquecer aqui Começaram os conflitos entre brasileiros e portugueses A consciência brasileira formouse lentamente durante três séculos No final do terceiro já era sólida o bastante para ser formulada e expressa e dar legitimidade à ação emancipacionista Os brasileiros se sentiam sustentadores da Coroa e espoliados por sua opressão Em Minas houve o conflito dos Emboabas 170709 em Pernambuco o conflito dos Mascates 170910 Capistrano descreve esses conflitos como se fosse uma testemunha ocular O século XVIII é o século do conflito aberto entre brasileiros e portugueses Entre as agitações sociais apareceu um livro que agitaria os brasileiros ainda mais ao oferecerlhes argumentos e força para continuar em sua luta independentista Tratase do livro Cultura e opulência no Brasil por suas drogas e minas do jesuíta André João Antonil que o próprio Capistrano descobriu tratarse do anagrama de João Antônio Andréoni L luquense estabelecendo a sua autoria O livro fala dos engenhos de açúcar da produção de fumo das minas e do gado Ele oferecia os primeiros números sobre o Brasil Logo foi confiscado pela metrópole pois estaria divulgando para os estrangeiros os segredos do Brasil Mas contesta Capistrano a verdade é outra o livro ensinava o segredo do Brasil aos brasileiros mostrando toda a sua pujança justificando as suas pretensões Confiscado proibido o segredo do Brasil chegou aos brasileiros por outras vias apareceram exaltações às riquezas do país exaltações à nobreza brasileira às suas elites exaltações do índio como superior aos portugueses e negros exaltações da natureza da fauna e flora do Brasil Por toda parte o segredo do Brasil era revelado A diferenciação em relação ao reinol antes gradual inconsciente e tímida aceleravase tornavase mais consciente resoluta e irresistível A vitória brasileira seria uma questão de tempo No décimo capítulo Capistrano trata dos limites do território brasileiro Um povo novo precisa de um território bem delimitado Serão ainda os portugueses que discutirão com os espanhóis e franceses e assinarão tratados instáveis que serão sempre rediscutidos Na região do Prata espanhóis e portugueses trocaram e destrocaram territórios segundo vários tratados A negociação do território dos seus limites foi feita ainda pelos portugueses Mas para defenderem tais territórios os portugueses tinham um argumento quase sempre irretorquível já tem gente brasileira instalada na Amazônia no Sul e Centro Oeste isto é o território já foi de fato conquistado ocupado e povoado por gente brasileira Os limites já estavam definidos concretamente e os tratados só reconhecerão o povoamento já realizado Será dentro desses limites agora legitimados pelo direito que se instalará o povo brasileiro No capítulo 11 Capistrano faz um balanço final e tenta uma definição geral do povo brasileiro do seu estado ao término do século XVIII Aqui Três séculos depois é o título do capítulo Capistrano fará um levantamento e a radiografia da população brasileira número tipos repartição caminhos atividades alimentações festas feiras roupas personalidades costumes infraestrutura urbana relações sociedadeEstado nível da consciência política Quanto ao número a população brasileira já era contada em milhões Ela se concentrava no litoral e nas margens dos rios que entravam pelo interior A maioria é mestiça variando a mestiçagem de região para região No interior predominava o mameluco no litoral e minas o mulato Os negros eram maioria no litoral e apesar das fugas e quilombos eram em menor número no sertão No Sul os brancos eram mais numerosos Capistrano referese às diferentes atividades regionais às diferentes dietas Na Amazônia extraíamse produtos florestais comiase peixe e se superexplorava a tartaruga a vaca amazônica o gado do rio Na zona pastoril muita carne e escassez de água que é salobra ótima para o gado Bebiase garapa comiase milho verde Havia festas sertanejas Capistrano descreve o vestuário doméstico e domingueiro a vida das mulheres solteiras e casadas Nas Minas havia abundância de padres irmandades havia o gosto pela música nas cidades As festas religiosas eram numerosas e teatrais luxuosas Capistrano compara o caráter dos brasileiros regionais O mineiro ele o descreve assim esbelto magro peito estreito pescoço comprido rosto alongado olhos negros e vivos orgulhoso e afável brando e cavalheiro não se apegam ao seu país são inteligentes sobrevivem em qualquer ambiente O paulista assim de pequena estatura cabelo louro face pálida olhos indígenas corajoso ágil incansável vingativo franco colérico amante do perigo Sua cor de pele varia dependendo do grau de mestiçagem indígenabranco Ele descreve ainda o baiano o goiano o matogrossense o gaúcho Quanto às cidades coloniais ele se refere às portuárias as mais importantes São Luís Recife Salvador Rio de Janeiro Nessas cidades litorâneas o mulato predominou Os negros eram numerosos com sua alegria nativa seu otimismo persistente sua sensualidade animal suportando bem o cativeiro Os negros ele afirma nunca ameaçaram a ordem de modo sério Trabalhavam cantando para aliviar o peso do trabalho e bandos de carregadores negros davam animação às ruas Os mulatos são mais rebeldes dentre eles saíam os capangas e assassinos Crescendo em número descoloriram extinguindose as distinções de raça Os brancos eram oprimidos pelo convencionalismo as crianças cedo perdiam toda vivacidade e espontaneidade Os reinóis tratavam com desdém a terra e os seus moradores eram grosseiros desonestos prepostos dos ingleses O capítulo 11 portanto é um balanço quase completo do Brasil no final do século XVIII Capistrano fala ainda da arquitetura urbana dos modos à mesa do comportamento das mulheres da vida social o ritual da visita das ruas e do inexistente saneamento básico cuidavam da limpeza urbana o sol as chuvas e os urubus da indústria cerceada pela metrópole etc O Brasil não é ainda independente mas se inquieta e aspira a sêlo Ele está prestes a tornarse independente Entretanto Capistrano surpreende o leitor no final da sua exaltação da vitória brasileira Depois de se mostrar entusiasmado com as expressões do sentimento patriótico entre os brasileiros termina a sua síntese cético em relação ao futuro deste novo povo Para ele a vida social não existia pois não havia sociedade As questões públicas não interessavam No máximo se sabia se havia guerra ou paz É duvidoso que tivessem uma consciência nacional e até mesmo capitanial Algum leitor de livros estrangeiros poderia falar de independência porque soubera do caso norteamericano e conhecia a pobreza e fraqueza lastimáveis de Portugal Não se procurava porém o meio de conseguir tal independência vagamente conhecida tão avessa era a índole do povo a questões práticas e concretas Divagavase sobre o que se faria depois de conquistála por um modo qualquer acontecimentos imprevistos o que afinal ocorreu Como em todas as revoltas anteriores não se sabia o que se faria com o poder na mão Enfim conclui ele no início do século XIX a população brasileira era constituída por cinco grupos étnicos ligados pela comunidade ativa da língua e passiva da religião moldados pelas condições geográficas de cinco regiões diferentes e tendo pelas riquezas materiais grande entusiasmo eis a que se reduzira a obra de três séculos Final paradoxal Ao longo do texto temse o elogio da expansão e conquista do território brasileiro pelos brasileiros Apesar de ser difícil distinguir os interesses e sentimentos dos brasileiros e dos portugueses no período colonial Capistrano esforçase por definir uma brasilidade apesar da dominação portuguesa e contra ela Brasilidade que começa com a fundação de São Vicente e Piratininga que cresceu com as bandeiras com a ocupação da Amazônia com o gado e as minas Brasilidade que se exaltou durante o século XVIII e se expressou através de rebeliões diversas sangrentas Brasilidade de uma população numerosa mestiça com os seus modos próprios de viver e pensar com as suas atividades econômicas específicas adaptadas a regiões diversas Apareceu até um livro que formulava precocemente esta brasilidade e que foi apreendido por esta razão E no final um ar de decepção de malogro patriotas incapazes de produzir a sua própria independência É como se a conclusão que ele apresentara para o século XVI um Brasil dominado por forças centrífugas divergentes valesse também para o final do XVIII Capistrano talvez esperasse mais desse povo que soube acompanhar ao longo de três séculos que ele fosse sujeito de fato da sua autonomia que ele fosse um sujeito historicamente eficaz O final revela uma expectativa não realizada um esforço frustrado A revolução brasileira não passou de um espírito e não se encarnou não deu nascimento a um novo mundo histórico Capistrano passa do elogio à vitória brasileira a um tom crítico em relação ao novo povo brasileiro que se constituía ele esperava mais ação mais vontade e determinação mais eficácia histórica Capistrano expressará melhor este seu ponto de vista em outro texto Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil Nele ele constata e pergunta no princípio do século XIX o Brasil já estava ligado por meio de vias terrestres e fluviais chegouse a formar um conjunto uma nacionalidade Para ele o sistema colonial produzia a divergência interna o particularismo O centro ficava alémmar Somente depois da independência é que começou o processo de unificação a convergência das partes Apesar das mudanças realizadas este processo se deu naturalmente em uma evolução gradual lentamente Após a independência a nação ficou tão cimentada em sua união que desafiou as crises da regência e se consolidou ainda mais no Segundo Reinado A ideia de uma nação brasileira realizouse finalmente mas ela esteve perto de esvairse como em um sonho Seu final paradoxal é no entanto lúcido os brasileiros e pelas razões por ele apontadas não se sentiam em condições de assumir o país plenamente isto é revolucionariamente Eles viveram os três séculos coloniais na dispersão em muitos engenhos minas fazendas cada um desses núcleos econômicosociaisculturais com sua própria lei e seu próprio senhor Entretanto essa ideia da revolução brasileira que Capistrano concebeu e descreveu no período colonial quando nascia será tematizada por todos os historiadores posteriores a Capistrano que se inserem na linha aberta por ele da redescoberta do Brasil Poderia ter sido acelerado o tempo histórico do Brasil pelos brasileiros no final do século XVIII produzindo uma verdadeira independência econômicosocialmental além de política Seu ceticismo revela a compreensão dessa impossibilidade histórica É um sentimento posterior à exaltação que se frustrou uma recusa apaixonada decepcionada do sonho E depois uma constatação do que de fato ocorreu a vinda da Corte para dentro e a consolidação da unidade brasileira em termos lusobrasileiros aceitandoa e legitimandoa Era essa a única revolução independentista possível Pelo menos essa felizmente se realizou e a nação brasileira se concretizou antes de esvairse em um sonho Seu sentimento parece ter passado por três fases primeira o elogio da rebelião da luta e da vitória brasileira durante três séculos segunda decepção e frustração com a não concretização do que parecia maduro a independência feita pelos patriotas brasileiros terceira a aceitação e legitimação da independência possível liderada pelo Estado português pela família real portuguesa pois assim pelo menos a unidade territorial e nacional foi preservada Capistrano é enfim um antivarnhageniano Nos anos 1900 a história que se faz no Brasil começa a diferenciarse dos quadros de ferro do IHGB e de Varnhagen Capistrano ainda não faz uma história plenamente econômicosocialmental mas também não faz mais somente uma história políticoadministrativa e biográfica Para A Canabrava ele se coloca entre duas concepções de história a história como narrativa do empírico que tem em Varnhagen seu representante maior e a história no quadro das ciências sociais que se fará no Brasil pós1930 Capistrano representaria um elo entre a geração do século XIXIHGB e a geração do século XXuniversidades Canabrava 1971 Capistrano se aproxima de Varnhagen também nos seguintes pontos faz ainda uma história factual relatando os feitos dos portugueses em sua conquista uma história cheia de nomes e datas de eventos contados em um ritmo quase diário Isso vale sobretudo para os primeiros capítulos de Capítulos de história colonial Ele dá ênfase à documentação escrita e bem criticada e seu estilo é ainda descritivo e narrativo Mas diferenciase enormemente de Varnhagen não faz mais uma história oficial ligada ao Estado sua história não é só políticoadministrativa mas também social e cultural E a diferença maior não faz um elogio da conquista e colonização portuguesa mas da conquista e colonização do Brasil pelo brasileiro mestiço não relata a conquista do litoral mas a ocupação do interior o sujeito da história do Brasil não é mais o europeu branco cristão e súdito do rei mas o brasileiro mestiço ainda cristão mas sem uma expressão política clara não faz uma história da constituição da identidade brasileira em moldes europeus mas busca as identidades brasileiras no interior no sertão e nas rebeliões Finalmente o abismo que os separa está na concepção do tempo histórico do Brasil Varnhagen não distinguiu bem os períodos da história brasileira e se perdeu em inúmeros fatos dominados pelo sentido maior do elogio da colonização portuguesa Esse sentido maior nunca foi seriamente contestado e Varnhagen não percebeu as mudanças na história do Brasil Capistrano elaborou a seguinte periodização da história do Brasil 15001614 ocupação do litoral guerra contra os franceses escravização do indígena 16141700 povoado o litoral início da internalização pelos rios 17001750 domínio das minas 17501808 consolidação do sistema colonial municipalidades anuladas indústria proibida jesuítas expulsos tensão entre colonos e reinóis 18081850 decomposição do sistema colonial 1850 período centralizador imperialista ou industrial época do vapor agonia da escravidão jornalismo vivo Abreu 1975 Diferente de Varnhagen Capistrano duvida da tradição faz uma crítica radical da memória A verdade que procura não consiste na repetição do passado a verdade não é o que o passado ensina e impõe Araújo 1988 Seu ponto de vista inovador ao mesmo tempo constrói um novo passado e desconfia do passado estabelecido oficial O método crítico quer corrigir o passado rever verdades consolidadas E abrir um novo futuro sustentado por um novo passado o Brasil nação não será oficial o sujeito da história do Brasil não é o Estado imperial mas o povo brasileiro em sua diversidade e unidade No passado Capistrano põe ênfase na vida desse povo por um lado ativo na ocupação do território por outro passivo e ineficaz na produção da verdadeira independência No futuro ele espera a verdadeira independência Capistrano é um historiador da mudança da descontinuidade entre o passado e o futuro do Brasil o futuro será a realização da independência a que o Brasil aspirou no passado mas não realizou O futuro do Brasil será brasileiro descontinuando o passado português A verdade histórica se oporá a esse passado tradicional português e servirá à construção do futuro novo brasileiro à ideia da revolução brasileira ANOS 1930 SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA A superação das raízes ibéricas S B de Holanda um Intelectual Feliz Sérgio Buarque de Holanda nasceu em 1902 em São Paulo quando Euclides da Cunha publicava Os sertões e faleceu em 1982 Era filho de um migrante pernambucano com formação na área de saúde Seu pai era funcionário do estado de São Paulo professor de botânica na Escola de Farmácia e Odontologia e trabalhou também no serviço sanitário do Estado Ele criou a família com o seu ordenado S B de Holanda teve provavelmente uma vida modesta talvez o essencial sem passar falta Assim como Capistrano sofreu o autoritarismo paterno e ambos talvez tenham se tornado o que foram reagindo contra a lembrança desse autoritarismo6 S B de Holanda pelo menos explicitou este sentimento Capistrano amargouo em silêncio Diferentemente de Capistrano S B de Holanda levou uma vida sobretudo urbana sem as desvantagens do isolamento rural Teve uma formação escolar formal e regular Desde a infância ele afirma apreciava a leitura e a escrita Tinha gênio artístico escrevia prosa e verso tocava piano compunha valsas gostava de dançar Sua formação superior foi em direito embora não tenha depois exercido a profissão Boêmio vivia em rodas de amigos intelectuais pelos bares Começou a sua carreira como crítico literário e jornalista Nessas atividades viajou pela Europa inúmeras vezes e permaneceu um ano na Alemanha e outros anos na Itália Quando esteve na Alemanha em 1929 como jornalista entrevistou intelectuais seguiu cursos de Meinecke leu Sombart e Weber conheceu a literatura alemã Semana 1992 Iglésias 1992 Dias 1986 S B de Holanda é um outro milagre de formação Segundo os seus biógrafos e analistas possuía enorme erudição em ciências sociais literatura e artes apesar de indisciplinado e boêmio Ainda na Alemanha pensou em escrever um livro sobre o Brasil e escreveu mesmo um volumoso texto ao qual deu o título de Teoria da América mas não publicou tal como escreveu Esse texto volumoso deu origem a um dos textos mais curtos sintéticos da historiografia brasileira Raízes do Brasil que antes teria o título de Corpo e alma do Brasil ensaio de psicologia social Raízes do Brasil foi publicado em 1936 um bom tempo depois do seu retorno da Alemanha Aqui ele divulgará o historicismo alemão em suas pesquisas históricas particularmente em Raízes onde ele se mostra em grande parte weberiano e em um consistente ensaio sobre Ranke Iglésias 1992 Dias 1986 Filho de funcionário público S B de Holanda tornouse também funcionário público professor da Escola de Sociologia e Política de 1947 a 1955 e da Universidade de São Paulo de 1958 a 1969 Além de se dedicar ao ensino escreveu vários outros livros importantes Caminhos e fronteiras 1957 e Visão do paraíso 1959 dirigiu e escreveu para os primeiros volumes da coleção História geral da civilização brasileira 196072 além de publicar inúmeros artigos em jornais e revistas especializadas Ofereceu cursos e palestras nas principais universidades dos Estados Unidos Itália Chile e outros países Pesquisou nos arquivos de Portugal do Vaticano Nova York Paris e outros Sua vida intelectual foi muito intensa Era muito requisitado pelas universidades nacionais e estrangeiras museus nacionais bibliotecas editoras organismos nacionais e internacionais Além disso gozava de enorme prestígio intelectual no Brasil jamais sofreu perseguições graves exclusões nem nos anos 1960 pelo contrário sempre foi protegido e exaltado pelos seus pares da USP Iglésias 1992 Dias 1986 Afora o seu estilo digressivo e a sua dicção difícil que provavelmente tornava suas palestras e cursos menos atraentes S B de Holanda parece ter sido um intelectual feliz pôde fazer tudo o que pretendeu obteve sempre os recursos necessários publicou obras muito importantes que não criaram polêmicas e tensões graves e é sempre lembrado como o modelo de historiador brasileiro S B de Holanda e os Anos 1930 Em 1922 a Semana de Arte Moderna da qual S B de Holanda não participou direta mas indiretamente divulgando as suas propostas nas revistas Klaxon e Estética havia aprofundado o esforço de redescoberta do Brasil que Capistrano de Abreu e a sua geração dos anos 1900 haviam iniciado A Filho 1987 A década de 1920 pode ser caracterizada pela erupção constante de críticas e oposições à sociedade oligárquica Os anos 1930 foram de intenso debate político época de radicalização ideológica e política Percebese então mais nitidamente a distância entre a sociedade civil e o Estado entre o Brasil real e o Brasil legal entre a realidade brasileira e as ideias importadas para que ela não fosse conhecida Nos anos 1930 a realidade brasileira nua e crua tornouse a questãochave de um pensamento brasileiro que se quer puro e duro Todos os intelectuais querem decifrar o enigma do Brasil e interferir na produção do seu futuro Discutese então a identidade nacional brasileira os obstáculos ao seu desenvolvimento e progresso as formas de vencer o atraso horroroso A Filho importante 1987 O Estado saído da Revolução de 1930 passou a investir em educação superior para a formação de quadros e para o debate mais aprofundado dos problemas do Brasil O ensino secundário e superior dominado pela Igreja foi cedendo lugar ao ensino leigo As classes médias são incorporadas às faculdades recémfundadas de filosofia letras e ciências humanas como as da USP No ensino e pesquisa de história o IHGB perdeu sua influência que agora passa para a universidade de forma quase absoluta Iglésias 1992 Mota 1978 Sob a influência da universidade a história se aproximou das ciências sociais querendo pesquisar a realidade brasileira em seu aspecto econômicosocialmental e não mais só político Essas mudanças no conhecimento histórico e social refletem as mudanças significativas que ocorrem na sociedade que é mais complexa e possui novos e atuantes sujeitos sociais A urbanização palco das ações desses atores se acelera O Brasil fazia a transição de uma sociedade baseada na economia agropecuária para uma sociedade dominada pelo capitalismo industrial com os seus sujeitos característicos a burguesia o proletariado e as classes médias Nos anos 1930 portanto há uma crise aguda da ordem oligárquica A Revolução de 30 não foi longe o bastante para romper com a organização social vigente mas a abalou e pôs em xeque a validade das interpretações do Brasil produzidas quando ela ainda era incontestável Ianni 1989 e 1994 Mota 1978 Tais interpretações já estavam sendo invalidadas pela corrente dos redescobridores do Brasil anteriores a 1930 Capistrano e sua geração a Semana de Arte Moderna o Partido Comunista do Brasil e alguns movimentos militares Pós1930 a história não poderia mais ser aquela do IHGB que tratava do Estado e dos grandes feitos dos grandes vultos brancos das elites Houve então uma espécie de precipitação das crises do passado As correntes de pensamento tornaramse mais claras explícitas pois mais radicais Foi uma época fecunda para o pensamento social brasileiro Vários clássicos da historiografia brasileira foram publicados então usando ainda teorias importadas americanas e europeias Simmel Weber Franz Boas Marx O pensamento brasileiro parece mais adequado à realidade brasileira é mais contemporâneo do tempo histórico brasileiro As principais interpretações do Brasil moderno construídas nos anos 1930 tinham uma compreensão mais exata do país analisam a vocação agrária e as possibilidades da industrialização as relações entre a burguesia brasileira e o capitalismo associado o civilismo e o militarismo a democracia e o autoritarismo as regiões e a nação a formação do povo e a multiplicidade racial a modernidade e a tradição Os anos 1930 realizavam o que em 1922 data das comemorações do centenário da independência se intuiu a necessidade de se abordar o Brasil sem complexos sem ceticismo com confiança O Brasil precisava ser conhecido em suas peculiaridades desigualdades regionais heterogeneidade étnica heranças do escravismo imigração peso das oligarquias predomínio do privatismo sobre a vida pública personalismo nos partidos políticos conquista da cidadania Ianni 1989 e 1994 Se durante o século XIX a realidade social excluía e o pensamento a legitimava agora a realidade continuava excluindo mas sem a legitimação cúmplice do pensamento brasileiro Este passou a defender a inclusão de negros índios mulheres pobres de todo tipo enfim de todos os marginalizados da sociedade oligárquica do passado os quais deverão ser integrados à sociedade brasileira no futuro O Brasil não teria futuro excluindo a sua própria população do gozo dos direitos da cidadania Os intelectuais brasileiros em suas várias tendências só se dividiam quanto às estratégias para a realização desse projeto comum à maioria deles O Brasil precisava mudar e não poderia continuar mais na mão dos seus conquistadores Se os conquistadores do Brasil e seus descendentes dominaram sem contestação no passado nos anos 1930 a contestação se radicaliza o Brasil precisa ser redescoberto e reconstruído pela sua própria população O futuro deverá ser radicalmente diferente do passado O grande tema dos redescobridores do Brasil será o da revolução brasileira sujeitos alianças época processos resultados reveses possibilidades Ianni 1989 e 1994 S B de Holanda será um dos pensadores da revolução brasileira seguindo a trilha de Capistrano de Abreu S B de Holanda Dilthey e Weber A interpretação do Brasil de S B de Holanda tem raízes no pensamento alemão moderno que ressalta o particular o único a especificidade temporal de cada realidade histórica Estava interessado em conhecer o Brasil em sua singularidade Embora usasse uma teoria importada ele a usava de forma original e criativa Aliás a própria teoria proíbe a aplicação de conceitos e análises feitas para outros lugares históricos em lugares históricos diferentes Ele procurará destacar através da comparação da criação de tipos ideais os traços peculiares do Brasil reconstruirá aspectos do processo de formação da sociedade e da mentalidade dos brasileiros em suas mudanças em seu devir libertandose de esquemas teóricos e preconceitos Dias 1986 Seu estilo elegante e refinado é às vezes mais eficaz do que conceitos muito precisos e rígidos na apreensão dos ritmos da vida brasileira Sua narração é capaz de reconstituir o espírito de uma época Ele usa e recria a linguagem das fontes A sua obra é ao mesmo tempo racional conceitual documentada interpretativa erudita objetiva e intuitiva literária artística Diltheyano e weberiano S B de Holanda distingue entre o conhecimento da natureza e o conhecimento da sociedade e realiza a compreensão empática adequada ao conhecimento do mundo social Sua história incluise na sociologia compreensiva de Weber interpreta sinais articula os meios e fins de uma ação recria a situação em que as escolhas foram feitas procura pôr se no lugar dos seus personagens A história não precisa recorrer a leis para compreender e fazer compreender seus objetos de investigação Ela compreende singularidades Sua lógica é teleológica isto é a história estuda os homens em sua ação e esta ação não se submete a leis gerais mas a fins e precisa ser compreendida em sua individualidade O historicismo compreende o mundo humano por uma abordagem individualizante e não generalizante Reis 1996 Iglésias 1992 Dias 1986 Há uma polêmica sobre qual teria sido o primeiro intelectual brasileiro a terse utilizado de Weber em sua análise do Brasil Corrêa Dias afirma ter sido Emílio Willems em seu artigo Patrimonialismo e administração publicado em 1945 na Revista de Administração Pública Dias 1974 V Chacon considera Otto Maria Carpeaux o primeiro weberiano brasileiro ao publicar em 1942 longo ensaio sobre Weber e a sua Ética protestante e o espírito do capitalismo Chacon 1977 Entretanto se se admite a orientação historicista em geral e weberiana em particular de S B de Holanda em Raízes do Brasil parecenos que ele se não foi o primeiro a se utilizar de Weber recebeu bem antes e mais profundamente a sua influência do que Willems e Carpeaux Chacon se refere também ao uso de Weber por G Freyre em 1933 em Casagrande senzala quando discutiu as relações entre o calvinismo o judaísmo e o catolicismo Freyre também é considerado historicista com influências de Dilthey Simmel Weber e Franz Boas Chacon 1986 Entretanto S B de Holanda parece ter conhecido Weber antes mesmo de G Freyre em 1929 quando esteve na Alemanha Ou pelo menos o conheceu mais diretamente e não através de uma formação nos EUA Raízes do Brasil tem páginas inteiras inspiradas em Weber A sua discussão do Estado brasileiro das relações entre o público e o privado a sua proposta de uma separação radical entre estas esferas e da modernização do Estado que se tornaria mais racional e burocrático mais eficaz na administração pública são visivelmente weberianas Há ainda os tipos ideais do trabalhador e do aventureiro do ladrilhador e do semeador do homem cordial e do homem polido a análise comparativa da mentalidade ibérica e da europeia das mentalidades portuguesa e espanhola na América os conceitos de dominação patrimonial e burocráticolegal Raízes do Brasil é quase integralmente weberiano Até o sentido da revolução brasileira seria weberiano uma racionalização progressiva da sociedade tradicional dominada por valores afetivos familiares uma modernização baseada na separação entre o afetivoprivado e o racionalpúblico A modernização representaria uma mudança de mentalidade e um estabelecimento de regras universais que atingissem a todos independentemente da sua origem familiar e de suas relações pessoais e políticas Uma sociedade moderna não possui privilegiados pessoas mais queridas ou mais detestadas do que outras não prefere e não persegue ela está racionalmente submetida a regras e organizada no sentido da eficácia administrativa e produtiva7 Toda a sua visão do Brasil se assenta na teoria social weberiana e talvez de forma mais rigorosa e consequente pela primeira vez no Brasil Seu historicismo aparece em seus temas principais a cultura europeia a cultura ibérica o caráter português espanhol brasileiro a alma comum brasileiraibérica as determinações psicológicas da experiência colonial a mentalidade patriarcal e cordial o espírito da dominação portuguesa a mentalidade urbana e moderna o comportamento familiar e público os tipos e conceitos e não leis históricas Sua abordagem da história é psicológica ele quer apreender a vida humana brasileira e ibérica pelo seu interior quer recriála e revivêla Dias 1986 Nos anos 1930 a radicalização política levou vários intelectuais brasileiros ao fascismo e ao comunismo ao catolicismo exaltado ao estatismo positivista autoritário S B de Holanda mantevese em uma posição sempre mais branda evitando exaltarse à esquerda Uma posição branda mas nítida Ele era crítico em relação às noções de legados tradições nação raça Embora historicista embora valorizando as tradições e a cultura brasileira que se constituiu no passado em relação ao passado e a essa tradição e cultura ele queria conhecêlos para esquecêlos superálos dialeticamente para impedilos de agir sobre o inconsciente brasileiro Ele também era brando teoricamente evitava determinismos cientificistas materialistas climáticos ou biológicos Na história não há leis causalidades mecânicas etapas de desenvolvimento da humanidade universal O que há no passado é o devir das formações peculiares e específicas de cada povo Iglésias 1992 Cândido 1976 Nos anos 1930 o Brasil vivia impasses graves e as teorias e ideias políticas se engrossavam Sua intervenção no grande debate da época será feita através de Raízes do Brasil que é uma obra eminentemente política O povo brasileiro como em Capistrano é o personagem central Sua visão da história do Brasil não é aristocratizante senhorial elitista Ele parece não apreciar chefes carismáticos O caudilhismo ele o vê como um empecilho à modernização do Brasil O protagonista da sua história é o povo anônimo em seu cotidiano em sua vida repetida sem grandes eventos Iglésias 1992 Seu olhar sobre o passado é contrário ao de G Freyre ele não o idealiza não lamenta a perda da glória das oligarquias Prefere o Brasil que se constituía contra aquele passado nas cidades com os seus novos sujeitos e sua nova mentalidade O olhar de S B de Holanda sobre o passado brasileiro é o do homem urbano recentemente emergente É o do homem médio das cidades que teme a violência conservadora dos senhores rurais e a violência revolucionária do escravo ressentido Seu desejo é o de uma organização racional da sociedade onde todos possam encontrar o seu lugar e se exprimir em sua originalidade segundo regras universais e consensuais Um mundo sem senhores e sem escravos habitado por cidadãos Raízes do Brasil é uma síntese interpretativa da trajetória brasileira que discute o seu presente e futuro acertando as contas com o passado S B de Holanda desvenda no presente as sobrevivências arcaicas ainda ibéricas que precisariam ser superadas Ele quer identificar os obstáculos que entravam a modernização política e econômicosocialmental do país Esses obstáculos estão ligados às nossas raízes ibéricas que devem ser recusadas e cortadas O mundo que o português criou não interessa ao Brasil que deve criar o seu próprio mundo e que para fazêlo terá de romper com o seu passado português A crise brasileira dos anos 1930 aliás a eterna crise brasileira foi criada já em Portugal no século XVI Não é a miscigenação o nosso mal o nosso mal é a nossa herança portuguesa Infelizmente segundo ele a miscigenação não nos diferenciou tanto assim do português É por isso que ele se refere tão pouco a índios e negros estes não foram tão eficazes sobre a história do Brasil ou pelo menos o suficiente para contrabalançar a eficácia portuguesa Esta foi quase absoluta infelizmente para os brasileiros O Brasil é mais português do que gostaríamos que fosse Somos sobretudo neoportugueses e devemos nos tornar pósportugueses isto é brasileiros A Obra Raízes do Brasil S B de Holanda começa Raízes do Brasil constatando o grande obstáculo para a construção de uma identidade e projeto brasileiros nossa representação do que somos não se refere à realidade do que somos Para ele a implantação de uma cultura europeia nos trópicos em um ambiente estranho à sua tradição é o fato mais importante na origem do Brasil Desde então nossa cultura instituições ideias formas de convívio veio de outro lugar e não se adaptou aos trópicos Vivemos nos trópicos sem uma cultura adequada própria tropical Participamos do desenvolvimento da cultura de um outro lugar Nossas representações da nossa história são diferenciadas até o ridículo do nosso tempo social específico e concreto Entre o conhecimento do Brasil e a realidade brasileira há uma defasagem abissal pensamos com ideias inadequadas à nossa realidade social ideias que ao invés de facilitarem nossa relação com a realidade a impedem Se é assim como podemos fazer projetos para o futuro Se não estamos sintonizados com o nosso tempo histórico específico com o nosso passado e presente como planejar agir e construir o futuro Para inventar um futuro é preciso saber quem somos e gostar do que somos e para isso será preciso reconhecer nossas raízes ibéricas A construção de uma sociedade nova exige a adequação do pensamento à realidade esta adequação pressupõe um reencontro com a nossa história É o que ele fará para pensar o que o Brasil deveria ser ele discutirá o que somos de onde viemos de que espírito fomos feitos E quando o pensamento encontra a realidade o diagnóstico é simples e duro somos neoportugueses O que isto significa Os portugueses da época do descobrimento não eram europeus plenos argumenta S B de Holanda Isto é o tipo de sociedade de onde vinham não era nem europeu nem africano ou árabe mas um tipo original Viviam em um território fronteiriço entre a Europa e a África sendo meio europeus meio africanosárabes A sociedade portuguesa integrouse tardiamente à Europa É uma sociedade que se desenvolveu à margem da Europa Por essa razão a mentalidade portuguesa é original seu caráter é indeciso impreciso Se se comparam ibéricos e europeus e aqui S B de Holanda não distingue ainda portugueses e espanhóis percebemse diferenças profundas O caráter ibérico desenvolveu o culto da personalidade Cada indivíduo vale por seu mérito próprio e não pelo nome herdado São reconhecidos os indivíduos independentes corajosos autossuficientes fortes fisicamente sobranceiros heróicos Os valores desses indivíduos são a honra a fidelidade o livrearbítrio a fidalguia O resultado trágico dessas disposições ibéricas a frouxidão da estrutura social das associações que impliquem solidariedade e ordem Os ibéricos recusam toda hierarquia a coesão social e tendem ao individualismo anárquico Rejeitam o trabalho manual pois este exige a dedicação a algo exterior Especulativos apreciam o ócio e se sentem nobres por isso O indivíduo não quer alterar o mundo social que nem mesmo reconhece e identifica Ele não aceita ser dominado por um objeto exterior Só são solidários entre si por motivos afetivos e só se submetem pela obediência Em uma terra de barões não são possíveis acordos duráveis a não ser por uma força exterior querida e temida Há necessidade do líder carismático que reine mítica e despoticamente Eles o aceitam para pôr ordem em seu natural anárquico e o respeitam e aclamam apaixonadamente Cada indivíduo se identifica com ele pois realiza o sonho de cada um ser individualmente de forma caprichosa e absoluta E por que tais características predominaram entre os ibéricos Não foi por fatalidade biológica ou determinismo climático Talvez porque foram os primeiros a se constituírem como nação na Europa Talvez considera S B de Holanda tenha sido seu êxito precoce uma das razões da persistência entre eles de hábitos da vida tradicional A ascensão burguesa em Portugal não encontrou obstáculos intransponíveis A burguesia não representou uma nova mentalidade uma nova escala de valores Ela se associou à nobreza e assimilou o seu modo de viver seus valores Cada burguês se sente nobre e exibe a sua fidalguia em seu vestuário em sua recusa do trabalho manual em seu ócio em seus títulos comprados ao Estado A hierarquia feudal rígida na França em Portugal não existiu As classes sociais não eram bem fixadas todos eram fidalgos A burguesia não implantou valores modernos diligência pontualidade pertinácia parcimônia exatidão solidariedade social O sangue familiar o nome a herança não distinguiam os indivíduos tanto quanto o seu próprio mérito e riqueza Enfim culto da personalidade valores individualistas ausência de uma moral do trabalho resistência à regra social à lei têm como consequência uma sociedade dificilmente governável pelo menos de forma democrática Tal autarquia dos indivíduos tal anarquia só uma força externa pode organizar e dirigir À liberdade excessiva substituise com facilidade a obediência cega Eis aí o que significa para começar ser neoportuguês Esta é a nossa raiz ibérica que nos impede de nos tornarmos uma nação moderna racional na administração e na produção econômica e nas relações sociais S B de Holanda rejeita vivamente tal origem queiramos ou não afirma ele estamos associados a Portugal e temos uma alma comum De lá nos veio a forma atual de nossa cultura Nem o contato e a mistura de raças fizeramnos diferentes dos ibéricos como gostaríamos de sê lo S B de Holanda tem desse espírito português uma avaliação diferente da avaliação de G Freyre Este considera que o tempo ibérico sem pressa sem regras sem relógio caprichoso ocioso que passa lentamente expressa um grande gosto de viver um prazer que não cede a imposições externas e que nem se preocupa em formular a resistência simplesmente não se deixa enquadrar ignorando prescrições mandamentos regras imposições E no brasileiro esse espírito português se acentuou com a liberdade do indígena e a alegria do negro Freyre tem saudade do espírito português Quanto a S B de Holanda ele quer extinguilo do coração brasileiro O Brasil precisa e quer mudar Foi portanto essa cultura ibérica com tais disposições psicológicas que conquistou os trópicos Dadas essas características culturais a exploração dos trópicos não seria feita por um empreendimento metódico e racional Foi feita com abandono e desleixo Fezse apesar dos seus autores Para melhor conhecer e analisar a colonização tropical ibérica S B de Holanda constrói dois tipos o do aventureiro e o do trabalhador Segundo ele são duas orientações gerais que se combatem na atividade dos homens O tipo do aventureiro o objetivo final é mais importante do que os meios seu ideal é colher o fruto sem plantar a árvore Ele ignora fronteiras é espaçoso invasor ladrão aceita riscos ignora obstáculos e quando os encontra transformaos em trampolins É audaz imprevidente criativo ocioso e vê longe Quer a recompensa sem esforço Não visa à estabilidade à paz à segurança pessoal O trabalhador lhe parece estúpido e mesquinho Esse tipo aventureiro encarnase em ladrões traficantes empresários desonestos estelionatários gente que manda fazer e explora o esforço do trabalhador Entretanto o tipo aventureiro não precisa se encarnar necessariamente nesses personagens que agem contra a sociedade A audácia pode servir à sociedade e as que mais se destacaram foram as que souberam aliar de forma criadora aventura e trabalho O tipo do trabalhador vê primeiro a dificuldade a vencer está dominado pelos meios é econômico metódico lento Seu horizonte é mais curto restrito Realista ele vê mais a parte do que o todo Não tolera a ética aventureira que é desestabilizadora e contrária à segurança e à paz Esses tipos ideais uma estratégia de conhecimento tipicamente weberiana S B de Holanda os construiu para responder à desconcertante questão como esse povo ibérico com aquele caráter mentalidade e espírito pôde colonizar Se mal podiam se administrar poucos e em pequeno território como puderam colonizar espaços enormes com populações nativas inteiras O uso daqueles tipos permitirá a compreensão da atuação dos ibéricos Em sua expansão colonizadora eles foram mais aventureiros ou mais trabalhadores Tais tipos por serem ideais não existem concretamente tal como pensados O aventureiro puro só existe enquanto tipo Na prática ele estaria misturado em algum grau ao tipo do trabalhador Na conquista portuguesa respondendo àquela questão anterior com o uso dos tipos o papel do trabalhador foi residual Os portugueses puderam colonizar como aventureiros só colheram os frutos da árvore encontrada Vieram procurar prosperidade sem custo Sem esse espírito de aventura a colonização não teria ocorrido Graças a ele os obstáculos encontrados tornaramse trampolins Os portugueses foram de uma capacidade de adaptação excepcional S B de Holanda retoma a tese de Freyre A exploração agrária colonial não foi planejada foi feita ao sabor das conveniências Os aventureiros portugueses não fundaram uma sociedade agrícola depredaram a terra Fizeram uma exploração agrícola de baixa qualidade técnica visando a extrair riquezas do solo sem sacrifícios e com poucos investimentos Adaptaramse à terra e não pretenderam submetêla a normas fixas Misturaramse à terra ao indígena ao negro Foi um domínio mole e brando Os indivíduos agiam isoladamente Quando se uniam era por razões afetivas e religiosas não por interesse racional A sua fraqueza foi a sua força eles venceram porque não tentaram impor seu modo de ser Aliás o seu modo de ser era a plasticidade Os negros vieram acentuar essa tendência à não cooperação e à não imposição Os negros são motivados também por afeições são suaves dengosos açucarados sensuais sedutores sentimentais pouco violentos São também antissociais Os holandeses fracassaram na colonização dos trópicos por não serem tão plásticos Os europeus do norte são incompatíveis com os trópicos são racistas metódicos e trabalhadores Eles não suportaram psicologicamente a tarefa da colonização Eis o que significa ainda ser neoportuguês os brasileiros agem de forma mais aventureira do que como trabalhadores A agricultura não é planejada aparelhada metódica e racional é uma depredação da natureza um esforço para colher sem plantar Tudo se faz com desleixo e abandono sem projeto e sem método Os brasileiros não se associam por interesses racionais mas pela festa na bebida e na comida na religiosidade E os negros só fizeram acentuar essa disposição portuguesa nos brasileiros em vez de marcarem uma diferença que alterasse o perfil do brasileiro em relação ao do português Essa plasticidade aventureira tem suas vantagens mas certamente não conduz à construção de uma sociedade marcada pela organização pela associação pelo planejamento pelo método Essa plasticidade foi essencial aos portugueses para o seu sucesso colonizador O sucesso dos brasileiros poderá ser feito com essa mesma plasticidade com essa disposição de se abandonar ao que vier de não se impor ao exterior transformandoo construindoo A forma portuguesa de criar um mundo nos trópicos é recomendável aos brasileiros que querem criar um novo mundo nos trópicos Mais uma vez S B de Holanda se opõe à continuidade do Brasilportuguês Só está tratando desse passado para que os brasileiros compreendam como eles não deverão construir a sua nova sociedade Portanto com aquelas disposições psicológicas mencionadas e com um espírito aventureiro os portugueses desembarcaram na América Colonizadores aventureiros como esse povo meio europeu meio africano se estabeleceu em suas colônias Aqui no capítulo 3 intitulado Herança rural S B de Holanda começa a distinguir os portugueses dos espanhóis Se na península eles podiam ser descritos de forma comum na América em razão do que encontraram e das condições geográficas e climáticas de seus territórios coloniais eles se distinguirão Os portugueses estabeleceram uma colonização de raízes rurais A vida colonial portuguesa se concentrará no campo Só após 1888 as cidades predominarão De 1850 a 1888 deuse a passagem à urbanização à cultura das cidades O Brasil viveu uma febre de reformas nesse período Após o fim do tráfico negreiro houve uma efervescência especulativa S B de Holanda salta para o século XIX quando as cidades abriram um novo mundo sem entretanto romper com a tradição A mudança na vida brasileira ocorrerá após 1850 ali estão as raízes da revolução brasileira Mas S B de Holanda no capítulo 3 estava falando ainda da tradição ainda falaria do colonizador português instalado no campo e saltou para o século XIX tal o seu desejo de romper com a tradição Para ele enquanto perdurassem os padrões econômicosociaisculturais coloniais as transformações mais ousadas teriam de ser superficiais e artificiais Na vida colonial cada casagrande era uma república Não havia vida comum mas particular no melhor estilo ibérico No mundo rural brasileiro onde o colonizador aventureiro português se instalou vivia uma família dilatada com o poder do pater familias também dilatado A família era fechada imune às mudanças que vinham de fora O pátrio poder era ilimitado e inabalável Tirânico sem freios O quadro familiar era tão forte que perseguia os indivíduos fora de casa na cidade Nossa vida pública social e política era marcada pela família rural colonial Esta oferecia a ideia mais moral de poder responsabilidade obediência coesão Predominavam então em toda a sociedade sentimentos próprios da comunidade doméstica particularista e antipolítica Havia uma invasão do público pelo privado do Estado pela família Após 1850 com o crescimento das cidades o fim do tráfico negreiro as atividades financeiras essa vida rural tradicional sofrerá a pressão da mudança Os fazendeiros temerão o predomínio das cidades e das instituições de crédito O Brasil se dividiu em dois mundos que se hostilizavam cada vez mais duas mentalidades que se opunham como ao racional o tradicional como ao abstrato e cosmopolita citadino o regional e paroquial Mas o Brasil escravista estava despreparado para mudanças radicais Os setores retrógrados resistiram e buscaram o equilíbrio com o novo emergente S B de Holanda se impacienta Ele gostaria de falar de mudanças profundas porém o patriarcalismo e personalismo vigentes as abortavam Os partidos políticos eram vistos como famílias políticas onde vínculos afetivos e pessoais uniam chefes e demais membros Mesmo as novas cidades se contaminaram com a vida tradicional Ali também o talento a inteligência eram mais valorizados do que o trabalho técnico e manual A inteligência era sinônimo de discurso fácil com palavras difíceis raras citações em latim francês A inteligência era ornamento prenda e não esforço de conhecimento e ação A burguesia urbana adotou atitudes peculiares do patriarca rural As cidades ainda dependiam do campo sofriam a sua ditadura Na colônia as poucas cidades eram administradas e dominadas pelos senhores de terras No século XIX as cidades ameaçaram romper com a ordem tradicional mas sem muito sucesso estão contaminadas pela mentalidade rural O predomínio do ruralismo foi mais uma influência negativa da colonização portuguesa Em todo lugar é o contrário que ocorre o campo é que depende das cidades Aqui os portugueses criaram um mundo invertido onde as cidades eram dominadas pelo campo E não foi uma imposição do meio que não agiu como força centrífuga Foi a maneira e o estilo portugueses de colonizar sem normas imperativas cedendo às conveniências sem planejar e construir Além disso eles não encontraram metais preciosos cujo movimento os obrigasse a criar uma administração mais rígida e próxima Ser neoportuguês significa também isso ser rural ser familiar desinteressarse pela vida pública e viver na autarquia da casagrande com uma identidade afetiva privada longe da cidade isolado de todos A justiça é familiar o poder é o do PaiSenhor ilimitado Os partidos políticos são cópias da vida familiar um chefe e seus agregados e escravos que devem ao primeiro incondicional lealdade Essa sociedade familiar resiste à mudança que vem de fora vive em um tempo com um ritmo eterno A colonização portuguesa não foi urbana porque edificar cidades é uma manifestação do espírito e da vontade coisa que os portugueses não conheciam Para os colonizadores em geral a constituição de cidades é um decisivo instrumento de dominação O poder se organiza burocraticamente nas cidades Quanto mais livres das cidades mais autárquicos são os domínios rurais Os espanhóis que inicialmente também possuíam o espírito ibérico comum tal como S B de Holanda o descreveu agora possuem um espírito voluntarioso e racional e realizaram uma colonização urbana diferentemente dos portugueses A metrópole espanhola impôsse à colônia com a criação de núcleos urbanos cuidadosamente planejados e construídos O Estado interveio com mão forte não se confundiu com a paisagem natural como os portugueses As cidades espanholas têm traços retos voluntariosos e são instaladas no interior Universidades foram fundadas Aqui os espanhóis reproduziram o seu método de ocupação das terras ibéricas reconquistadas aos infiéis Nas cidades espanholas exprimese a ideia de que o homem pode intervir no curso das coisas e de que a história pode ser dirigida e produzida Os espanhóis queriam fazer do país ocupado uma extensão do seu Quanto às cidades portuguesas confundiamse com o relevo e a paisagem O empreendimento português parece tímido e condenado ao fracasso comparado com o espanhol A colonização portuguesa é simples local de passagem as cidades são importante litorâneas Os portugueses evitam adentrar o sertão e até proibiam tal entrada Primeiro era preciso ocupar e defender o litoral Os bandeirantes desafiaram tal orientação e representaram uma primeira expressão de autonomia Só depois do descobrimento das minas é que Portugal decidiu intervir em sua colônia de forma repressiva policial menos para estabelecer algo duradouro do que para extrair o máximo de riqueza Os espanhóis vinham para ficar os portugueses para enriquecer e voltar Os espanhóis são mais repressores os portugueses mais liberais Os portugueses são frouxos indisciplinados As casas de suas cidades são dispostas segundo o capricho dos seus moradores Tudo é irregular Não há uma vontade criadora construtora A colonização portuguesa foi orientada pela rotina com desleixo com abandono deixe estar não vale a pena Não transformaram a realidade Aceitavam a vida tal como ela vinha sem impaciências e ilusões A expansão portuguesa foi comedida prudente uma navegação de cabotagem na costa da África A expansão espanhola foi ousada a ação de Colombo foi de um atrevimento inigualável A ordem do português é a do semeador sem trabalho sem plano sem método Eles não querem dominar o curso dos eventos modificar a ordem natural A ordem do espanhol é a do ladrilhador o oposto S B de Holanda surpreende nessa altura da sua argumentação Ele falara no início de uma identidade ibérica uniforme e homogênea Agora comparando as colonizações portuguesa e espanhola ele distingue o que antes apresentara unido Entretanto por outro lado não haveria razão para surpresa pois o seu método é o de identificar as diferenças as singularidades Primeiro ele diferenciou a península Ibérica no contexto europeu agora ele a diferencia internamente comparando as culturas portuguesa e espanhola A expressão que cada uma deu à sua colonização revelou muito do seu caráter particular O tipo de colonização que empreenderam serviu para a melhor diferenciação e definição dos espíritos português e espanhol Segundo ele o caráter espanhol é dominado por uma fúria centralizadora codificadora regulamentar Por que a diferença do espírito ibérico ficou mais visível na América Embora apenas de forma alusiva S B de Holanda sugere algumas razões Diferentemente de Portugal a unidade espanhola foi tardia e difícil e ainda hoje não se completou A Espanha é ainda um país desunido e sob constante ameaça de desagregação Expandindose os espanhóis querem tudo controlar e regular Essa talvez seja uma das razões da fragmentação da identidade ibérica nas colônias americanas Outra razão seria o clima escaparam do clima tropical nos Andes e quiseram construir aqui uma extensão da metrópole Há outras razões também fundamentais para essa fragmentação do espírito ibérico colonial os espanhóis encontraram imediatamente muita prata e as cidades foram construídas para o controle mais rigoroso da sua extração circulação e tributação os espanhóis encontraram sociedades mais bem estruturadas o que exigiu maior controle o catolicismo espanhol era inquisitorial e intolerante levando a uma ética mais rígida e a uma cultura menos plástica S B de Holanda realiza uma análise comparativa das colonizações espanhola e portuguesa que revela uma descontinuidade da alma ibérica Peixoto 19925473 Quanto aos portugueses a sua unidade política foi precoce eles conseguiram uma certa homogeneidade étnica com a expulsão dos mouros O realismo e o naturalismo de Portugal vêm dessa unificação concreta e precoce Ela explica também o seu natural conservadorismo o desleixo o deixe estar Eles não arquitetam o futuro não sujeitam a história a leis rígidas pois já domesticaram a sua história Os portugueses S B de Holanda afirma em Visão do paraíso não descrevem a sua descoberta em um tom maravilhoso e misterioso Pareciam indiferentes ao exótico ao espetacular Sua esperança de grandes riquezas é mais comedida com uma noção mais nítida das limitações terrestres e humanas Os portugueses preferem mais as tradições e o crível do que a imaginação Aderem ao real e ao imediato são observadores minuciosos pragmáticos realistas desencantados por isso menos audaciosos Aceitam o mundo tal como os sentidos o apresentam Os outros povos colonizadores são mais fantasiosos Colombo era um sonhador O espanhol criou muitos mitos sobre o novo mundo uma geografia fantástica que incluía o Paraíso Terreal com vegetação sempre verde primavera constante aves coloridas e variadas povoado por gente simples inocente e boa As visões do paraíso dos espanhóis eram delirantes fabulosas Nosso mundo neoportuguês rural também é pouco voluntarioso determinado audacioso As elites brasileiras tratam o Brasil como os conquistadores portugueses conquistam a sua população e depredam a natureza Até parece que não vivem aqui que estão de passagem que querem ir para outro lugar e que acreditam que irão depois de ficarem ricas aqui Não há planejamento da ação não há uma elaboração antecipada do futuro que se quer construir Temse uma sociedade que se ergue naturalmente sem vigas e esteios sem regras gerais com desleixo e deixe estar Na história não se intervém Ela não pode ser transformada produzida As coisas são como são e não vale a pena imporlhes uma vontade transformadora Se no início S B de Holanda tratou com um certo desprezo o espírito ibérico em geral agora o desprezo é concentrado no caráter português na sua estratégia de colonização Os espanhóis S B de Holanda os olha agora com admiração são audaciosos e racionais construtores de um mundo centrado em cidades com universidades controlado do interior e não do litoral A cada passo do seu pensamento sobre o passado brasileiro uma ideia se impõe progressivamente o mundo que o português criou não pode mais influenciar o presente e o futuro do Brasil Os brasileiros precisam esquecer as suas raízes ibéricas e o melhor modo de esquecêlas é conhecêlas em toda a sua precariedade como projeto social Os que imaginam que uma volta à tradição ibérica seja a única defesa possível contra a nossa desordem erram redondamente Nossa anarquia vem de lá nossa desordem é tradicional Será legítimo retornar ao passado para melhor organizar a sociedade brasileira Não nos interessa mais ser organizados por caudilhos e ditadores O modelo do poder patriarcal no qual predomina a autoridade indisputada dos senhorespais sobre uma sociabilidade familiarafetiva não devemos ter saudade dele A família rural colonial não deve continuar sendo nosso modelo moral de poder Precisamos romper com nossas raízes ibéricas Aqui aparece claramente a diferença de S B de Holanda com relação a Varnhagen e G Freyre e a sua aproximação de Capistrano de Abreu Freyre tem nostalgia da família rural do Estado patrimonial do mundo português A vida política do Brasil independente foi dominada pelo mundo familiar rural Entretanto e aqui aparecem as suas leituras de Weber sobre o Estado a administração pública os tipos de dominação o conceito de patrimonialismo e de racionalidade a fragmentação da sociedade em esferas diferenciadas e tensas cada uma com a sua lógica específica a lógica da esfera familiar não é a mesma da esfera política O Estado não é um prolongamento da família mas descontinuidade e até oposição São esferas sociais essencialmente diferentes No Estado mora o cidadão indivíduo público com deveres e direitos submetido a leis abstratas impessoais racionais gerais Na família mora o indivíduo privado corpóreo afetivo concreto pessoal O Estado é a vitória do universal e abstrato sobre o particular e concreto A ordem familiar é abolida em uma transcendência Mas no Brasil neoportuguês não é assim A família é mais forte do que o Estado e o controla A família forte é um obstáculo à constituição do Estado moderno Aqui não há separação entre a esfera pública e a privada No Estado patrimonial neoportuguês a gestão pública é assunto de interesse privado das famílias Os funcionários desse Estado exercem as suas funções pessoalmente perseguem promovem premiam bloqueiam O recrutamento dos servidores depende da confiança pessoal ou sabese lá de que outro elemento afetivo e não da competência e eficiência Falta ao Estado brasileiro neoportuguês a organização impessoal e burocrática A burocracia estatal não é organizada racionalmente para se obter maior agilidade e eficiência mas com uma lógica familiar para acolher e proteger familiares amigos e clientes Ao invés de servir à agilidade e à eficiência a burocracia por seu gigantismo e despreparo técnico serve à lentidão à inoperatividade administrativa A administração pública não se interessa por questões objetivas pois está dominada por questões privadas afetivas pessoais A vida familiar é um empecilho à vida social fundada em princípios abstratos A educação familiar cria inadaptados em uma sociedade moderna Os filhos são mais aptos para ela quanto mais distantes da família quanto mais desprotegidos por ela Portanto incapazes de distinguir o público do privado os brasileiros neoportugueses transformam o Estado e os partidos políticos em assuntos de chefes familiares No mundo social nas relações exteriores à família circula um homem cordial hospitaleiro ou agressivo amigável ou hostil generoso ou mesquinho amigo eterno ou inimigo terrível dependendo de pequenos detalhes da relação pessoal Esse tipo cordial bem adaptado ao brasileiro neoportuguês trata desconhecidos como se fossem irmãos primos agregados e até escravos Seu comportamento social objetivo é afetivamente transbordante subjetivo A ele opõese o tipo cortês ao qual os japoneses se adaptam melhor ritualístico polido reverente distante O brasileiro é um antijaponês O homem cordial quer ser íntimo quer ser amigo não quer ficar sozinho Tem horror às distâncias e se elas existem concretamente ele simplesmente as abole Por exemplo na expressão religiosa tornase íntimo de Cristo e dos santos na relação com os superiores tornase logo discípulo seguidor fiel Ele reivindica um superior bacana gente fina e boa simples e humilde isto é próximo e pessoal Esse homem cordial está longe de aceitar uma ordem coletiva impessoal legal Ele é individualista indisciplinado Quando é intelectual nutrese de ideias contraditórias acredita em todas e defende todas Ele prefere as teorias mais sistemáticas dogmáticas que oferecem um ilusório repouso espiritual A personalidade cordial está pronta para obedecer cegamente ao líder carismático à ideia sistemática Não importa se fala da realidade Aliás é até melhor que não fale Ele está pronto a assimilar qualquer ideia desde que exposta em uma relação cordial isto é de coração a coração afetuosa ou agressivamente Leite contesta S B de Holanda quanto à tese da cordialidade brasileira afirmando que esta talvez possa existir entre os membros das elites como uma expressão de igualdade entre eles Entre diferentes senhores e escravos brancos e negros haveria paternalismo e não cordialidade Leite 1983 Entretanto S B de Holanda poderia argumentar que o paternalismo seria a expressão da cordialidade entre diferentes A diferença é então vivida afetivamente senhores e escravos brancos e negros apesar da enorme distância social entre eles se relacionam cordialmente amamse e odeiamse A cordialidade não se restringiria portanto às relações pessoais no interior das elites mas seria uma característica da sociedade brasileira em geral A cordialidade não se confundiria também com bondade generosidade afabilidade como a entendeu Cassiano Ricardo Ser cordial segundo S B de Holanda é agir e reagir em sociedade segundo os ritmos do coração da afetividade sem se deixar dominar por regras sociais impolidamente Para sustentar esta tese além de se referir à alma ibérica S B de Holanda enfatiza o peso das relações familiares no Brasil colonial do isolamento rural da ausência de espaço público cosmopolita como nas cidades A vida social colonial esteve reduzida à vida familiar que é regida pelo coração Essa condição cordial não seria um modo eterno e ahistórico do ser brasileiro Pelo contrário ela seria definida pelas condições históricas da vida brasileira rural e colonial que estariam sendo gradualmente superadas O Sentido e os Ritmos da Revolução Brasileira Até aqui e estamos no quinto capítulo intitulado O homem cordial S B de Holanda descreveu as origens brasileiras o Brasil português A partir de agora ele se dedicará à descontinuidade à ruptura com esse mundo tradicional Ele falará dos novos tempos do Brasil e da nossa revolução Esse tempo novo revolucionário ele constata que o Brasil já o vive S B de Holanda não está propondo uma revolução a ser feita no futuro É claro que ele espera uma aceleração do processo que já ocorre De qualquer maneira não está falando da revolução brasileira completamente incrustado no mundo tradicional cercado pela tradição portuguesa Ele se refere a ela de dentro dela em plena transição revolucionária Está cercado pelo passadovelho e pelo futuronovo Ao escrever Raízes do Brasil S B de Holanda pretendeu oferecer aos brasileiros a consciência da revolução que o Brasil vivia revelandolhes de que mundo eles vinham e a que mundo tendiam esperando com isso leválos à ação à produção mais vertiginosa da mudança Segundo ele o Brasil vive uma lenta revolução transita de uma sociedade rural regida por privilégios familiar natural para uma sociedade urbana mais abstrata e regrada artificial Aparece gradualmente a possibilidade de rompimento com o estatuto colonial e seu modelo agroexportador e a realização do desenvolvimento independente apoiado na cidade e na indústria que incorporaria novos contingentes da população à cidadania Essa transição leva o homem cordial a uma crise ele a teme e evadese A nossa revolução liquida o passado adota o ritmo urbano e propicia a emergência de camadas oprimidas da população únicas capazes de revitalizar a sociedade e darlhe um novo sentido político Ela significará a ruptura com as oligarquias rurais e o advento de novos sujeitos urbanos Esse processo revolucionário é lento e longo começou há muito e está longe de terminar Suas principais datas 1808 1822 1850 1870 1888 1889 1930 A continuidade dos padrões coloniais viuse ameaçada pela primeira vez quando da vinda da família real Alguns centros urbanos cresceram mas sem ameaçar ainda o poder dos senhores rurais Neles abriase um novo horizonte para o Brasil As mudanças começaram então Acabaramse o ufanismo os elogios e reelogios ao Brasil neoportuguês A realidade começou a ser a dura e triste realidade que precisava ser alterada e não enaltecida A abolição do tráfico a imigração o fim da Guerra do Paraguai a abolição da escravidão e a República acentuarão essa revolução lenta sem episódios notáveis O centro da mudança são as cidades O sentido dessa revolução do aniquilamento das raízes ibéricas de nossa cultura da recusa da herança portuguesa para a inauguração de um estilo novo de vida social talvez americano S B de Holanda estaria propondo os Estados Unidos como modelo da sociedade urbana a ser construída no Brasil Ou se refere a um estilo de vida especificamente brasileiro americano sem contaminações ibéricas O sentido preciso dessa passagem da obra nos escapa O que fica claro é que americano quer dizer sociedade urbana antiibérica e não rural Ou sociedade capitalista urbana do tipo norteamericana Iberismo e agrarismo se confundem Quando o mundo rural começou a desagregarse decaiu a influência portuguesa Americanismo e urbanismo se confundem Quando o mundo das cidades começou a ascender ascendeu a influência americana Nesse mundo americanourbanocapitalista atuam personagens racionais modernos produtivos cosmopolitas extrafamiliares É um mundo de direitos e não de privilégios de regras universais e não de exceções afetivas Na transição brasileira o palco da história é invertido no passado as cidades se subordinavam ao campo no presentefuturo o campo será mero abastecedor das cidades Entre 1850 e 1888 esse processo se acentuou em São Paulo com o surgimento de um novo cafeicultor morador da cidade considerando a sua fazenda uma empresa agrícola seu meio de vida e não uma forma de vida uma baronia O surgimento desse novo sujeito com seu empreendimento agrícola industrial que começou a substituir a mão de obra escrava pelo imigrante livre acelerou um pouco a mudança Durante a República a urbanização progressiva contínua avassaladora fortaleceu novos sujeitos sociais e silenciou os homens do Império Mas o Estado republicano ainda tem mais ou menos a mesma estrutura do imperial apesar de já não possuir a mesma base social O Estado brasileiro é uma estrutura distante da sociedade e nele as mudanças sociais repercutem com algum atraso Além disso ele reprime toda expressão espontânea A vida política se separa da vida social ou melhor impõese sem admitir contestação à vida social A lei é uma abstração belos princípios importados que cabem mal na realidade brasileira A vida política oscila entre um liberalismo autoritário e o caudilhismo S B de Holanda quer acelerar a revolução brasileira e se impacienta com essa distância entre Estado e sociedade e com as opções limitadas de mudança Para ele não haveria revolução social plena no Brasil enquanto não se liquidassem os fundamentos personalistas e aristocráticos ibéricos e rurais em que se assenta a nossa vida social O processo revolucionário consiste na lenta dissolução das sobrevivências arcaicas da velha ordem colonial e patriarcal O Brasil vive entre dois mundos um que ainda não morreu e outro que luta para vir à luz Aqui S B de Holanda se define politicamente com nitidez ao invés de lutarmos por um personalismo contra outro propõe ele lutemos por princípios liberais e democráticos O Brasil precisa de uma boa revolução vertical que traga à tona elementos mais vigorosos substituindo os velhos e incapazes De que maneira A revolução que deve ser vertical no entanto deve incluir alguns indivíduos das classes superiores que ainda têm homens de bem apesar das suas faltas e defeitos A sociedade foi malformada nesta terra desde as suas raízes As classes cultas estão isoladas do resto da nação não por culpa sua mas por desventura sua p 135 Os operários são sujos e ignorantes mas são fisicamente superiores às elites e poderiam sêlo mentalmente também se tivessem acesso aos meios Os portadores do passado ibérico certamente reagirão a esta revolução vertical que os expurga Ela é necessária no entanto pois com a cordialidade não se funda um mundo democrático Entretanto um mundo democrático não exclui totalmente valores cordiais No Brasil são inconsistentes os preconceitos de raça e cor recusamos toda hierarquia muito rígida somos cada vez mais urbanos e rejeitamos a violência Estes valores cordiais são também democráticos Poderia haver uma articulação entre os sentimentos do homem cordial e as ideias da democracia liberal Não podemos trocar simplesmente o nosso ser cordial por esquematismos rígidos e impessoais Não podemos ignorar o nosso ritmo espontâneo próprio O que não podemos fazer é nos abandonar a ele O espírito só é força normativa quando serve à vida social e lhe é adequado A organização da sociedade deve ser um contorno feito à sua feição Não se fará uma sociedade democrática com uma engenharia social de fora para dentro reprimindo a nossa espontaneidade cordial A Filho 1987 Nossa realidade contraditória precisa ser incluída de alguma forma na construção de nossa sociedade democrática S B de Holanda parece se definir nos anos 1930 como um democrata liberal ele defende a felicidade para o maior número e até cita o utilitarista Bentham p 139 Para ele nosso mundo cordial que prefere exclui cria exceções fere o princípio jurídico da neutralidade democrática O ideal humanitário é impessoal amor para o maior número Ele se revela portanto liberaldemocrata inspirandose nas burguesias revolucionárias francesa e americana Acredita nos valores da cidadania e do individualismo norteamericanocapitalista quer para o Brasil uma constituição que dê estabilidade às relações sociais que as discipline e organize de forma universal abstrata racional neutra impessoal Entretanto teses como felicidade para o maior número amor para o maior número direitos civis para o maior número estrutura social que integra e não exclui mundo social submetido a regras impessoais e universais são também teses socialistas de um socialismo democrático pioneiro em um mundo dominado pelo modelo soviético superautoritário Em suas intervenções políticas concretas em suas raras intervenções na vida pública não gostava de interferir de um modo geral ele assumiu posições socialistas candidato a vereador pelo Partido Socialista simpatizante do Partido dos Trabalhadores Esta sua vontade de não interferir pode parecer escapismo omissão em relações às lutas públicas expressão de um certo conservadorismo Por um lado deve ser isso mesmo ele talvez tivesse um temperamento mais recolhido e frágil contemplativo por outro revela um espírito basicamente não autoritário A história pode ser produzida mas deve ser sobretudo acompanhada É preciso dar tempo esperar que os processos efetivos encontrem suas próprias soluções e não precipitarse isto é impor autoritariamente soluções Um socialismo democrático possui seus princípios seus sentimentos suas aspirações mas possui também um certo respeito pelos processos efetivos pelos fatos pelas soluções encontradas pelos próprios sujeitos do processo histórico A intervenção na história se faz sob a forma do diálogo há uma escuta atenta um acompanhamento respeitoso dos homens que buscam soluções concretas para os seus conflitos a apresentação de sugestões de interlocução de orientações que podem ou não ser absorvidas pelo processo efetivo Esta sua característica revela ainda a sua formação weberiana ele distingue a atividade do cientista das paixões do cidadão e não permite que estas se imponham ao pensamento levandoo à precipitação ao esquematismo autoritário a juízos de valor quando se trata de conhecer a realidade que se apresenta Ela revelaria também ironicamente e certamente contra a sua vontade aquilo que ele mais critica contesta e quer superar a raiz ibérica do deixe estar não vale a pena a história não se faz E deve ser por todas estas razões e outras ainda considerandose que um indivíduo são vários Escolher uma delas seria simplificálo reduzilo a um aspecto exclusivo da sua complexa e sofisticada personalidade O aspecto que nos interessa aqui no entanto é o do redescobridor do Brasil o S B de Holanda que reinterpreta o passado e vislumbra um novo futuro para o Brasil Para ele uma intervenção democrática na história pressupõe o respeito pelos seus ritmos específicos exige uma reflexão sobre o tempo que a constitui e a cadencia S B de Holanda tem uma concepção historicista do tempo histórico Seu tema é a singularidade brasileira que ele considera ainda desconhecida nos anos 1930 pois pensada até então com ideias importadas e inadequadas Os brasileiros vivem no Brasil mas não se localizam bem pois quando pensam reproduzem abstrações repetem ideias adequadas a outro lugar e não as usam para se conhecer A ideia tem de ser a expressão de um lugar histórico de um mundo social singular vivendo as suas continuidades e mudanças Ele procurará adequar seu pensamento ao tempo histórico brasileiro Sua reflexão pretende se referir ao Brasil ao seu passado e futuro à sua realidade vivida às suas mudanças e perspectivas Em Raízes do Brasil seu tema é o futuro democrático do Brasil que será uma novidade uma mudança substancial em relação ao seu passado No tempo brasileiro ele enfatiza a mudança e não a continuidade A sociedade não está dominada pelo passado pela tradição não está submetida a determinismos de nenhuma espécie e não está portanto condenada a repetilo a continuálo Mas o passado não se abole com um golpe de ficção Não se muda só porque se quer mudar A mudança é um esforço um trabalho penoso uma construção difícil tensa A tradição resiste ao novo há uma luta de vida ou morte entre os homens do passado e os homens do futuro A configuração destas lutas sociais é singular cada sociedade articula velhonovo de uma maneira particular Cada sociedade possui seu próprio ritmo de mudança e é tarefa do historiador compreender estes mundos vividos concretos específicos únicos Só a história permite compreender singularidades O ritmo da mudança brasileira é lento secular desde as rebeliões do final do século XVIII desde 180822 até hoje e ainda não se completou Sem eventos espetaculares isto é sem acelerações bruscas S B de Holanda ora se impacienta ora aceita esse ritmo ora se exalta com as forças retrógradas ora se inclina à lógica do tempo brasileiro Embora fale de revolução brasileira seu estilo é ameno brando Não se percebe ódio contra a classe dominante que apesar de seus defeitos e erros ainda possui homens de bem p 135 As elites estão isoladas da população não por inteira culpa sua mas por desventura sua p 135 A sociedade brasileira formouse mal pois a colonização portuguesa foi desastrosa Ele só é mais importante severo em relação aos colonizadores portugueses e ao mundo familiar lusobrasileiro colonial Porém sem ódios e ressentimentos a revolução não deverá ser feita contra as classes superiores mas deverá incluílas Seu estilo não é conciliador entretanto pois ele quer de fato a mudança Contudo se possível sem violência sem crimes políticos sem cair no irracionalismo As soluções que entrevê são racionais sua intenção é aproximar mais a população das elites as ideias do lugar brasileiro o Estado da sociedade civil Esta aproximação que igualaria mais que tornaria a sociedade brasileira mais homogênea mais justa mais integrada será a grande mudança revolucionária Poderá ela ser feita racionalmente pelo diálogo em plena ordem democrática sem violência Aqui aparece uma certa fluidez em sua reflexão sobre o Brasil Quem seria o sujeito desta mudança As cidades o homem urbano a mentalidade urbana são ideias muito vagas A urbanização em si as atividades desenvolvidas na cidade o padrão urbano de vida em geral os tipos humanos da cidade imporiam a mudança apenas com o seu desenvolvimento e predomínio Para Ianni S B de Holanda pensa a história do Brasil na perspectiva do Rio de Janeiro da capital do país do Estado nacional do todo visto a partir do centro político e cultural Ianni 1989 e 1994 Na nossa perspectiva S B de Holanda parece falar do Brasil do ponto de vista do homem médio urbano comerciante funcionário público profissional liberal empresários operários enfim do homem livre da dominação do senhor rural Este homem não precisa do senhor rural para viver ele encontrou outras atividades e relações nas cidades Seu objetivo é libertar todos os brasileiros daquela dominação rural Mas quanto à estratégia aos meios ao quem fará isso concretamente S B de Holanda não oferece precisões Apenas constata que há uma revolução ocorrendo no Brasil e que seu palco são as cidades Raízes do Brasil é otimista renova a esperança no Brasil A libertação da dominação tradicional a reaproximação do Estado da sociedade a criação de novas formas de convívio com novos valores que é possível realizável e não uma utopia inalcançável abrem o horizonte do Brasil à democracia Para ele o historiador deve ter a sensibilidade das inquietações presentes buscar conhecer as suas raízes para libertar o presente do passado que o inquieta e bloqueia O historiador oferecerá o conhecimento dos obstáculos que impedem a renovação Para isso ele deverá descer ao real ao vivido à sua historicidade singular às suas mudanças singulares para compreendêlas em uma relação de conhecimento estreita íntima A história não é permanente pois não submetida a leis Ela é um conjunto de durações diferenciadas o historiador realiza a descrição da mudança das sociedades humanas pronuncia o humano no tempo o que foi e não é mais A identidade histórica não é constituída pelo congelamento do passado por uma homogeneidade artificial A identidade histórica é constituída em cada presente em uma relação de recepção e recusa do passado e de abertura e fechamento ao futuro Se se olha o Brasil com este olhar as cores voltam ao seu rosto o seu horizonte se colore em múltiplas tonalidades A realidade brasileira foi e é horrorosa mas o Brasil não está condenado a ser sempre como foi Aliás ele constata a mudança já está ocorrendo e há muito Se for mais bem conhecida poderá ser mais bem produzida e acelerada Capistrano tinha razão quando via esta mudança se realizando já a partir do século XVII mas não tinha razão de terminar o século XVIII pessimista quanto às suas possibilidades Digamos que Capistrano tematizou a mudança no período colonial do XVI ao XVIII S B de Holanda retomou o mesmo tema a partir de 1808 e o trouxe até os anos 1930 Se em Capistrano o espírito brasileiro portador da mudança se exprimiu no sertão contra o litoral português em S B de Holanda este espírito vai ser continuado nas cidades contra o mundo rural português e também contra o sertão de Capistrano ainda muito ibérico familiar e católico A mudança em S B de Holanda se radicaliza e se amplia o horizonte brasileiro se abre e o seu espírito se enche de otimismo Raízes do Brasil é um clássico que repercutiu pouco afirma Carlos Guilherme Mota Talvez pelo seu estilo mais erudito e refinado que fala da revolução brasileira sem esquematismos palavras de ordem e ressentimento Talvez também por não identificar com mais precisão o sujeito desta revolução e não estimular nenhum setor da sociedade em particular para a sua realização Talvez também por sua tendência a não interferir de forma mais peremptória na realidade social Talvez ainda por ser mais uma interpretação do Brasil do que uma proposta de transformação do Brasil quando cumpre transformálo Talvez finalmente por escrever sobre o Brasil para as suas elites iletradas e exiladas em sua própria terra que desprezam e não leem livros escritos em língua portuguesa nem os autores brasileiros e para uma população dominada pelo analfabetismo e pela herança do deixe estar portuguesa Raízes do Brasil talvez e ainda tenha repercutido pouco por suas virtudes um texto sofisticado erudito pouco acessível embora pareça fácil Apesar de suas virtudes o livro manteve a distância que criticava entre a ideia e o seu lugar embora apresentasse uma das ideias do Brasil mais adequadas à sua realidade F H Cardoso o considera uma miniatura de pintor que revela mais pelas minúcias do que pela obra como um todo É um livro moderno democrático otimista crítico e sensível Cardoso 1993 S B de Holanda não tem razão quando afirma que considerava o seu próprio livro superado e plenamente datado ensaístico meramente interpretativo e não uma pesquisa rigorosa e exaustiva Semana 199221 Primeiro porque superados e datados são todos os clássicos da historiografia brasileira e nem por isso deixam de ser clássicos Datados são superadosconservados dialeticamente perduram atravessam as épocas segundo porque ensaios e interpretações históricas são importantíssimos para a pesquisa rigorosa e exaustiva posterior são seminais oferecem ideias e sugestões de pesquisa monográfica oferecem uma síntese uma visão global que têm valor inestimável mesmo que instáveis lacônicas e precárias Aliás uma síntese não é feita para fechar ou encerrar um debate ela o abre e orienta ela é uma referência um interlocutor um quadro teórico Raízes do Brasil abriu e orientou um debate fecundo sobre o passado e o futuro do Brasil tornouse uma referência uma interlocução um quadro teórico indispensável ANOS 1950 NELSON WERNECK SODRÉ O sonho da emancipação e da autonomia nacionais N W Sodré um Marxista Pioneiro e Controvertido Nelson Werneck Sodré militar professor da Escola de Comando e EstadoMaior do Exército de 1948 a 1950 diretor do Departamento de História do Instituto Superior de Estudos Brasileiros Iseb desde a fundação até sua extinção pelo Golpe de 1964 é autor de vasta e variada obra produzida entre 1938 e 1980 Escreveu sobre a história da literatura brasileira sobre a história da imprensa brasileira sobre a história militar do Brasil e sobretudo escreveu várias obras importantes sobre a história brasileira entre as quais se destacam Introdução à revolução brasileira 1958 Formação histórica do Brasil 1962 As raízes da Independência 1965 e História da burguesia brasileira 1964 Nossa análise da sua interpretação do Brasil tomará como base a sua História da burguesia brasileira e o texto Modos de produção no Brasil que apareceu no livro Modos de produção e realidade brasileira organizado por R A Lapa 1980 no qual ele retoma as suas teses sobre o Brasil formuladas nos anos 19501960 treplicando aos seus críticos Konder 1991 Sodré nasceu em 1911 numa família de escritores viveu num ambiente culto e desde cedo dedicouse à literatura Cursou o Colégio Militar Sua autobiografia ele a fez em Memórias de um soldado 1967 e em Memórias de um escritor 1970 Sodré era militar e comunista o que não é nada incompatível embora depois de 1964 os militares brasileiros se tenham tornado a expressão mais feroz do anticomunismo Sodré é um militar pré1964 e pertencia ao grupo mais numeroso do que se imagina dos militares ligados ao PCB Nos anos 193040 sua perspectiva teórica sofreu influências de autores materialistas vulgares como Haeckel e Buchner Segundo Konder ele próprio reconhecia que naquela época possuía um conhecimento precário do materialismo histórico Só nos anos 195060 ele aprofundou os seus estudos do marxismo e reformulou algumas de suas posições como por exemplo a sua história da literatura de 1938 em que conectava de forma determinista os fenômenos culturais ao processo de produção Entre os anos 195060 ele foi especialmente ativo publicou vários livros ofereceu vários cursos criou uma história nova do Brasil para atingir a escola básica e média Em 1964 ele e seus colaboradores também sofreram o golpe Sodré passou uma temporada na prisão militar e sua história nova foi proibida O que não o impediu de continuar a sua obra incansavelmente Konder 1991 Após a derrota de 1964 apesar de ele também ter sido perseguido pelos golpistas as esquerdas obrigadas e se rever e a se recompor o tomaram como o símbolo do pensamento do PCB que as conduzira à derrota Sua interpretação do Brasil sua teoria da revolução brasileira tinhaas levado à derrota Foi duramente atacado por seus companheiros com uma espantosa veemência marxismo cristalizado esquemático e apressado dogmático vulgar etapista evolutivo linear imitativo soviético com parâmetros pedestres teoriaficção arbitrária contraditória que não se refere aos processos objetivos Sodré enfrentou terríveis desafios teóricos e políticos endureceu a pele e anestesiou a sensibilidade estrategicamente Corajoso teimoso sempre sustentou com vigor e clareza o seu ponto de vista jamais fugiu ao combate chegando até a usar também palavras duras bélicas perdendo um pouco a serenidade Sodré 1986 O debate deixou de ter a sobriedade da discussão teórica conceitual para ganhar a turbulência da discussão política e até pessoal Konder 1991 Mota 1978 Aliás se se pode censurar o marxismo como teoria social seria pela tendência que predomina entre os seus debatedores teóricos de nunca terminarem sobriamente isto é teórica e conceitualmente o seu debate Este geralmente termina em luta de classes em tomadas de posição impedindo o avanço da discussão que necessariamente exige a abertura ao diálogo e a revisão de posições que parecem autoevidentes A discussão marxista da revolução brasileira mistura teoria e prática enquanto o conceito de práxis as articula dialeticamente A dificuldade encontrada pelos teóricos da revolução brasileira sempre foi a de realizar esta articulação dialética foi a de compreender o pensamento dialético sempre entendido como uma mistura uma confusão uma não separação uma desarticulação uma submissão de um polo ao outro Em geral a ação dominou a teoria o imediato a mediação tornandoa radical perigosa sistemática fechada ineficaz enfim cega surda verborreica e muito autoritária apesar de corajosa A práxis não dialética esvazia a subjetividade e torna a ação uma intervenção técnica imposta de cima e do exterior como uma manipulação pragmática da sociedade reificada O lado teórico dessa práxis submete a história a leis de evolução buscando uma verdade absoluta determinista não criticável Quando na verdade o conceito dialético de práxis inclui a subjetividade escolhas A sociedade não é transformada mas autotransformase através de um debate críticoprático que constrói uma verdade histórica e relativa e por isso mesmo objetiva pois aberta ao novo ao tempo O pensamento dialético é criativo interrogativo reformulador autocrítico inquieto pois reconhece a dimensão subjetiva e temporal da realidade social e não procura apagar a diferença temporal em um sistema que criaria uma falsa estabilidade Konder 1988 N W Sodré o PCB e a História do Marxismo no Brasil N W Sodré é o teórico marxista mais importante dos anos 1950 embora não fosse o único historiador marxista importante Ele será tomado aqui como teórico do PCB do seu projeto de revolução brasileira e portanto ligado à tradição do redescobrimento do Brasil Aquele povo quase sem consciência capitanial que levara Capistrano ao ceticismo aquele povo miscigenado que levara as elites lusobrasileiras a excluílo da vida social e política e ao ceticismo quanto ao futuro do Brasil aquele povo conquistado colonizado escravizado estuprado violentado castigado capado e recapado sangrado e ressangrado oprimido e excluído aquele povo de filhos de escravas e índias e de brancos pobres agora em 1950 cultiva o sonho de redescobrir o seu país impondose às elites brancas suas descobridoras e conquistadoras e rompendo com a dominação imperialista Aqueles mestiços sonham com a liderança com o poder interno acompanhado da emancipação externa da autonomia nacional e do socialismo que as elites brancas não puderam não souberam ou não quiseram realizar Em 1922 a Semana de Arte Moderna já valorizara o tupi e o PCB valorizara o negroescravo e o brancooperário da nossa identidade Há uma aceleração otimista da história brasileira a partir dos anos 1920 a revolução brasileira é pensável e possível isto é a ruptura com o passado brasileiro horroroso estava ao alcance dos brasileiros que o haviam sofrido Este povo se agita no sertão nas cidades e no litoral e quer produzir a mudança acelerála Desde os anos 1920 a sociedade brasileira se tornou mais complexa emergiram as classes médias e a pequena burguesia a população urbana cresceu alterando a vida cultural a industrialização avançou criando novos sujeitos sociais consolidando as relações de produção capitalistas e o desenvolvimento das forças produtivas Ianni 1989 e 1994 Entre 1922 e 1964 o marxismo foi a teoria social que deu uma voz vigorosa através do PCB ao chamado povo brasileiro Uma voz entretanto mais vigorosa do que rigorosa O marxismo que desembarcou no Brasil em 1922 não foi o original alemão e marxiano mas o marxismoleninismo soviético Os revolucionários brasileiros de então eram mais corajosos vigorosos e contundentes do que lúcidos teoricamente Estavam mais possuídos pela teoria dominados por uma lógica incontrolável absoluta do que seus utilizadores seus possuidores e controladores A recepção de Marx foi problemática O marxismo que chegava já era uma doutrina sistemática e dogmatizada e o ambiente que o acolheu dominado pelo positivismo e pelo catolicismo exacerbados também era sistemático e dogmático Aqui o marxismoleninismo se supercristalizou e os seus portadores se sentiam superhomens demiurgos da história a partir de um zero temporal ignorando as resistências do passado Konder 1988 Entretanto afirma Quartim de Moraes a característica mais notável do pioneirismo intelectual comunista no Brasil é o seu estilo contraditório uma teoria dogmática levou a algumas observações pertinentes sobre a dinâmica objetiva do processo histórico brasileiro Apesar do seu dogmatismo os intelectuais brasileiros analisaram o Brasil com mais lucidez do que os intelectuais das classes dominantes liberais e culturalistas O dogmatismo era necessário a teoria tornavase arma de combate tornavase a almaarma da ação de homens frágeis Ela dissipava dúvidas e dores e reanimava a combatividade Moraes defende com alguma razão os pioneiros comunistas especialmente Octávio Brandão que foi considerado um teórico esquemático simplificador autoritário obreirista por Konder deles não se poderia cobrar não seria justo sofisticação e refinamento teórico Eles tentaram conciliar Comte Spencer e Marx é verdade mas isso não impediu a originalidade de seu pensamento e a agudeza de suas análises da sociedade brasileira Moraes 1991 Entretanto quando Konder e outros críticos os censuram nós consideramos que eles só estão sendo exigentes com a análise teórica que orienta a ação eficiente exigência que é indispensável A crítica teóricoprática não pode ser indulgente e protetora por maior que seja a simpatia e a admiração pelos pioneiros Moraes divide a história da consciência marxista no Brasil em três fases primeira etapa dogmática précrítica marxistaleninista quando predominou uma consciência opaca feita de certezas cegas 192040 segunda fase de autonomização teórica 194060 terceira etapa de revisão crítica generalizada um retorno às fontes do pensamento revolucionário época da luta armada pós1960 Essas etapas da consciência marxista brasileira não são etapas necessárias e lineares ele esclarece e nem se deduzem uma da outra Os nexos entre elas são históricoconcretos Não foi uma evolução teleológica não representou um progresso são transformações que se deram concretamente historicamente sem a ideia de síntese ou salto qualitativo Cada etapa tem a sua lógica interna particular e deve ser considerada em sua época em sua situação em suas condições e circunstâncias Os pioneiros devem ser vistos em seu contexto e em suas possibilidades exigir deles mais do que poderiam oferecer é não ser sofisticado e refinado teoricamente e além disso é ser injusto eles são julgados e condenados em um processo malinstruído Moraes 1991 Moraes continua com razão parcialmente este respeito e admiração pelos pioneiros não pode levar ao silêncio reverente ao fim do debate crítico severo G Mantega também é brando com os pioneiros Ele considera que apesar do dogmatismo inicial os pensadores econômicos marxistas exerceram uma influência decisiva na constituição do pensamento econômico brasileiro Somente após 1950 a teoria terá um tratamento apropriado quando despontaram os grandes expoentes do pensamento econômico brasileiro Mantega também oferece uma periodização do pensamento marxista brasileiro primeira etapa materialismo primitivo penetração do marxismo na economia brasileira época marcada pelo PCB e por Caio Prado Jr 192040 segunda materialismo funcionalista consolidação das ideias marxistas Caio Prado maduro Celso Furtado F Rangel N W Sodré 194060 terceira materialismo dialético maturidade do pensamento econômico marxista P Singer M C Tavares F Oliveira F H Cardoso e outros do chamado grupo dO capital pós1960 Mantega 1991 Essas duas periodizações do pensamento marxista brasileiro são convergentes e parecem corretas Ambas revelam o mesmo sentido o do distanciamento do marxismoleninismo soviético da ação sem teoria adequada à singularidade da realidade brasileira e da busca de uma teoria marxista mais racional conceitual sóbria e serena mais crítica pois apropriada à realidade brasileira E mais eficaz historicamente pois a ação será mais bem conhecida e orientada Entretanto ambos Moraes e Mantega apesar de perceberem um sentido caracterizado por um controle progressivo da teoria uma adequação superior de cada uma das três fases à realidade brasileira não desvalorizam a primeira fase pelo contrário percebem as suas limitações como historicamente condicionadas e admiram a sua capacidade de irem até além dos recursos que possuíam Interessanos no entanto localizar N W Sodré nesta história do pensamento marxista brasileiro e essas duas periodizações foram mencionadas para nos apoiar nesta tarefa Consideramos que ambas misturam por exemplo os lugares ocupados por Sodré e pelo outro autor que analisaremos a seguir Caio Prado Jr não distinguem bem as posições e épocas de um e de outro Eles são postos juntos na segunda fase nos anos 1950 na etapa de autonomização teórica Moraes e na do materialismo funcionalista Mantega Na nossa análise percebemos que N W Sodré está mais para a primeira fase e Caio Prado mais para a terceira fase Sodré é mais pioneiro do que teoricamente autônomo e Caio Prado tende a ser materialista dialético revisor crítico embora seja mais materialista funcionalista Ou melhor Caio Prado pertenceria à segunda fase seja ela denominada autonomia crítica ou materialismo funcionalista mas tendendo para a terceira fase N W Sodré pertenceria à primeira fase embora estivesse em seu apogeu nos anos 1950 Ele é o que há de melhor da primeira fase de mais elaborado e argumentado mais lúcido e não caberia na segunda nem na terceira fases Não se trata aqui de prestigiar um e desprestigiar o outro mas de situálos Consideramos também com Moraes que cada etapa tem a sua lógica interna particular e deve ser avaliada para ser apreendida e conhecida em sua historicidade Caio Prado esteve presente nas três fases mas tende para a segunda e terceira fases pois foi sempre um inadaptado ao PCB Ele foi um dos primeiros a analisar o Brasil com um marxismo já póspioneiro em 1933 N W Sodré pertence à primeira fase embora tenha produzido intensamente ao longo da segunda e terceira fases sem perder a sua condição de pioneiro Sodré e Prado são interlocutores agressivos que confrontam análises e projetos distintos sobre e para o Brasil Apesar de ter escrito a sua História da burguesia brasileira em 1964 Sodré é um intelectual típico dos anos 192050 quando o PCB procurava agitar as massas e se articular com os seus líderes burgueses populistas Apesar de se ter consolidado somente nos anos 1950 com Sodré e Passos Guimarães o modelo da análise e revolução democráticoburguesa foi elaborado nos anos 1920 Portanto a análise e o projeto de Sodré correspondem aos anos 192264 a análise de Caio Prado corresponde à fase posterior a 1964 mesmo quando ela é anterior a 1964 19334245 Mantega 1984 O movimento comunista internacional esteve dividido entre as influências de LêninStalin e Trotski revolução nacional democráticoburguesa versus revolução permanente internacional Sodré alinhouse mais à análise de LêninStalin dos países subdesenvolvidos e coloniais e Caio Prado talvez e mais indiretamente à análise trotskista De um lado a revolução nacional democráticoburguesa antifeudal e antiimperialista Lênin Stalin PCB e Sodré de outro a luta do proletariado pela independência nacional e a longo termo pelo socialismo Trotski Caio Prado Sodré alinhase às teses da III Internacional Caio Prado talvez às teses da IV Internacional As relações entre Sodré e as teses da III Internacional são explícitas e diretas as relações de Caio Prado com as teses da IV Internacional são implícitas indiretas e hipotéticas A partir dessas duas orientações os marxistas brasileiros chegaram a pelo menos duas interpretações dos modos de produção no Brasil Os herdeiros de Lênin e da III Internacional o PCB e suas dissidências e particularmente N W Sodré identificaram relações de produção semifeudais ou précapitalistas na estrutura econômicosocial brasileira Os que estavam sob a influência de Trotski e da IV Internacional desconsideravam a existência de relações de produção précapitalistas subordinandoas às relações capitalistas subdesenvolvidas Os primeiros feita essa análise orientaramse para uma revolução democráticoburguesa antifeudal e antiimperialista Os segundos feita a sua análise propunham uma revolução permanente que desembocaria no socialismo sem a etapa intermediária da revolução democráticoburguesa Embora Caio Prado não se enquadre explícita e conscientemente nesta segunda influência podese perceber no seu pensamento uma convergência com essa matriz internacional Mantega 1984 N W Sodré portanto desenvolve uma análise do Brasil estreitamente ligada à análise do PCB que estava ligado à III Internacional ao comunismo soviético ao marxismo stalinista Nos anos 1950 ele elaborou de forma teórica as intuições e repetições dogmáticas do marxismoleninismo dos militantes do PCB Lênin em sua análise da Rússia czarista sustentava já em 1905 a iminência de uma revolução democráticoburguesa que deveria implementar transformações econômicopolíticas de caráter antifeudal preparando o terreno para o socialismo O PCB aplicava a mesma análise à realidade brasileira A ação a ser desenvolvida era a da revolução democráticoburguesa pois as condições econômicas e políticas do Brasil indicavam que o socialismo só seria atingido após um período de transformações burguesas que eliminaria os entraves feudais e quando se removeriam os obstáculos ao desenvolvimento das forças produtivas Mantega 1984 sintetizando o pensamento dos autores a análise de Padro x Sodré Feita a revolução democráticoburguesa pela burguesia nacional associada ao proletariado e ao campesinato o capitalismo brasileiro se desenvolveria rompendo com a dominação feudal e abrindo às massas a participação política democrática As condições democráticas burguesas seriam favoráveis à luta socialista As transformações democráticas enfraqueceriam as classes dominantes feudais diante da burguesia e fortaleceriam o proletariado A III Internacional esteve dominada pelas questões nacional e colonial A luta era contra o imperialismo e pela integração capitalista nacional que abriria o horizonte socialista Apesar do risco que o proletariado correria ao apoiar a burguesia em sua revolução democráticoburguesa risco apontado por Roy Lênin defendia a necessidade desse apoio e colaboração O proletariado dos países coloniais e atrasados é frágil assim como a sua burguesia nacional Frágeis unidos se fortaleceriam em bloco contra as forças feudais aliadas ao imperialismo Não se pode queimar etapas lutar pelo socialismo naquele momento era lutar pela industrialização capitalista que representaria a autodeterminação nacional o desenvolvimento das forças produtivas a democracia burguesa e a melhoria das condições de vida dos trabalhadores Foram essas as orientações internacionais que conduziram o pensamento marxista brasileiro entre 192264 Segundo essa análise aplicada ao Brasil cujo principal formulador será N W Sodré a sociedade brasileira do início do século XX seria semicolonial e semifeudal sob o domínio do latifúndio e do imperialismo resistindo ao avanço das forças produtivas e da nação reivindicado pela burguesia brasileira e pelo povo O caminho para o socialismo no Brasil exigiria passar primeiro pela etapa da revolução nacional e democrática que eliminaria os restos feudais libertaria o povo da opressão do latifúndio expulsaria o imperialismo e fundaria uma sociedade democrática Essas eram as bandeiras do PCB desde 1922 O Brasil estaria em transição do feudalismo ao capitalismo dominado pelos interesses dos grandes latifundiários aliados aos imperialistas contra os quais as forças progressistas deviam lutar O caráter nacionalista da revolução brasileira reuniria o proletariado os camponeses e a burguesia nacional Mantega 1984 Essa interpretação do Brasil que predominou entre 192064 BresserPereira a denominou nacionalburguesa Ela veio se opor à interpretação da vocação agrária que dominara sem contestação até os anos 1920 e era a interpretação dos descendentes dos descobridores do Brasil o Brasil é essencialmente um país agrícola cheio de riquezas naturais e cordialidade mas tropical e mestiço portanto inferior BresserPereira considera perigoso reduzir essa interpretação tradicional a algumas teses pois vários dos seus defensores foram autores inovadores e mais críticos Mas fundamentalmente os descobridores se ufanam da sua descoberta o Brasil não é um país subdesenvolvido mas rico e cheio de futuro com uma vocação agrícola definitiva Pereira 1979 Os intérpretes nacionalburgueses são radicalmente críticos e redescobrem o Brasil percebendoo agora como uma cultura dominada heterônoma amorfa inautêntica ornamental com um complexo de inferioridade colonial E isso porque a sociedade brasileira é dominada pelo bloco oligárquicoagrário mercantil aliado ao imperialismo que se opõe à industrialização brasileira buscando manter o status quo semicolonial semifeudal e primárioexportador Estes se ufanam porque querem garantir a continuidade do mundo que o português criou Os outros são céticos e críticos em relação a esse mundo neoportuguês mas otimistas com relação ao mundo brasileiro que querem construir moderno industrial desenvolvido autônomo urbano e finalmente socialista A estratégia que o PCB e Sodré criaram para a construção deste mundo é que talvez fosse excessivamente otimista ingênua a liderança do bloco revolucionário seria da burguesia nacional a burguesia industrial nascente voltada para o mercado interno nacionalista progressista Além do PCB tais teses eram também defendidas com variações por outros grupos como o Iseb ao qual Sodré também pertenceu e a Cepal Pereira 1979 No Brasil pós1945 a história do Brasil sofrerá radicais reinterpretações em várias tendências O tema que predominará será o da mudança o da transição da sociedade baseada no capitalismo agrário para a sociedade baseada no capitalismo industrial Isto é o tema que predominará no pensamento social que enfatiza a mudança será o da revolução brasileira caracterizada como burguesa ainda Discutemse então as relações de produção no campo e nas cidades as relações de produção e a consciência nacional o imperialismo as lutas de classes as classes e o Estado As interpretações do Brasil vigentes não correspondiam mais às condições e perspectivas criadas nos anos 19203040 Após a II Guerra a queda de Vargas a ascensão da URSS e dos Estados Unidos o novo Brasil urbano precisava ser reinterpretado A visão marxista do Brasil se consolidou então Na visão marxista a história brasileira é analisada em seus processos estruturas e relações sociais Os grandes eventos e personagens históricos da historiografia oficial são recriados à luz das formas de vida e trabalho privilegiamse as relações sociais que os homens estabelecem para engendrar a sua produção material as suas contradições e lutas A análise materialista privilegia o conceito de modo de produção Ianni 1989 e 1994 Entretanto nessa fase pioneira do marxismo a teoria é ainda mal conhecida e mal utilizada na compreensão do Brasil O domínio da teoria marxista por Sodré será considerado por muitos dos seus críticos como muito precário Carlos Guilherme Mota referese ao marxismo de Sodré como dependente da importação soviética é uma ideia do Brasil delirante fora do lugar que se equivocou na análise do passado brasileiro e das expectativas e propôs uma ação no presente também equivocada Moraes entretanto considera o seu marxismo menos economicista do que o de Caio Prado ele não reduzia o político ao econômico Ao contrário é central em seu pensamento a valorização da nação Ele teria sido mais usado do que entendido Mota 1978 Moraes 1991 Sodré teria sido mal lido e mal interpretado pelos seus críticos Reconsideremos as suas teses sobre o Brasil a sua interpretação do Brasil em busca de uma melhor compreensão de Sodré e através de suas teses de uma melhor compreensão do Brasil Nosso objetivo será o de compreender Sodré como fizemos com os autores precedentes em sua época e circunstância para também compreendermos a visão marxista do Brasil dos anos 1950 Retomaremos algumas de suas observações e avaliações do Brasil situandoo na história do pensamento marxista brasileiro na conjuntura histórica em que se produziu Uma compreensão mais crítica do seu pensamento será obtida quando confrontado com as demais interpretações marxistas do Brasil que serão apresentadas adiante Os Tempos do Brasil o Passado Colonial e a Revolução Brasileira A sua História da burguesia brasileira ele a inicia com uma discussão teórica a dificuldade para se pensar o Brasil de forma original e eficaz Ele considera que a principal dificuldade para o estudo da burguesia brasileira é conceitual Os conceitos surgem em uma época e local determinados têm sua própria história e são inadequados a outros tempos e lugares outras histórias A afirmação de que Sodré é pouco crítico no uso dos conceitos marxistas que aplica ao Brasil os mesmos conceitos usados para a análise da história europeia parece infundada Afinal ele percebe a necessidade de criação de novos conceitos para o conhecimento de realidades diferenciadas Afirma que enquanto não houver conceitos novos tornase necessário usar os antigos ressignificados distinguindo os usos atuais e particulares de seu emprego original O particular é então de maneira nova rearticulado ao universal dialeticamente Sodré parece começar bem portanto a sua História da burguesia brasileira com uma discussão conceitual que procura distinguir o emprego dos conceitos marxistas em realidades diferenciadas Seu livro ele o vê como um esforço de interpretação que apoia o Brasil em sua revolução É um texto que servirá à mudança social brasileira Ele próprio admite que é um livro falho insuficiente pois pioneiro Suas teses são hipóteses de trabalho suscetíveis de revisão e o autor se mostra o mais interessado em revêlas Ele quer conhecer o papel da burguesia nacional na revolução brasileira é um estudo científico e ao mesmo tempo engajado na mudança do Brasil Propõe uma teoria da ação burguesa Sodré parece quanto às declarações iniciais invalidar as críticas que lhe foram dirigidas ele não importa simplesmente a teoria marxista soviética procura adequála à realidade brasileira ressignificando e adaptando os seus conceitos não é dogmático pois formula hipóteses de trabalho que está pronto a rever Isso quanto às declarações de intenções iniciais A descoberta do Brasil ele a situa no contexto da transição do feudalismo ao capitalismo na Europa As relações de produção ainda eram predominantemente feudais embora começassem a se transformar Era a época da revolução comercial A mudança era produzida pela atividade mercantil na esfera da circulação de mercadorias a longa distância Constituíase o mercado mundial Nesse contexto a península Ibérica se destacou Os grupos mercantis portugueses e espanhóis se associaram ao rei na expansão ultramarina Mas Portugal e Espanha eram ainda feudais e esses grupos mercantis não eram ainda plenamente burgueses Nos séculos XVI e XVII a península não tinha ainda uma burguesia predominante e ainda não era capitalista Foi uma sociedade feudal portanto que descobriu o Brasil A exploração das novas terras seria feita em proveito da classe feudal dominante Não encontrando imediatamente metais preciosos Portugal teve que montar um sistema de base agrária e trouxe recursos materiais e humanos de outras áreas para explorar o solo do Brasil Os holandeses obtinham mais lucro na distribuição da produção colonial Mas se o feudalismo predominava em Portugal ele não predominará no Brasil apesar da legislação inicial da colonização ter sido feudal No início da colonização predominará no Brasil um modo de produção escravista Este será absoluto até o século XVII A partir daí será apenas dominante Tratase de um escravismo específico moderno e não clássico Aqui ele não foi o resultado da deterioração da comunidade primitiva indígena não teve origem interna mas externa Surgiu da expansão colonial précapitalista vigorando nas áreas coloniais coexistindo com o feudalismo Foi imposto e mantido pela violência A produção e a exportação de produtos primários seriam impossíveis sem o tráfico negreiro A escravidão era imprescindível para a produção de grande excedente de produtos primários para exportação Além disso o escravo era rentável tanto na produção quanto no comércio A Inglaterra usou o tráfico negreiro como uma das alavancas do seu avanço capitalista O sentido da produção colonial é o mercado externo se este comércio se expande a escravidão se aprofunda Essa economia escravista colonial se caracteriza pelo desperdício pela depredação de recursos naturais pela destruição do trabalhador Enquanto a circulação predomina sobre a produção o escravismo será funcional para o capitalismo Enquanto prevalecer o capital comercial a escravidão continua Deixará de existir quando o capital industrial vier a predominar Mas no Brasil o escravismo moderno não foi o único modo de produção existente embora predominante Houve um feudalismo no Brasil em vastas áreas que conviveu com o escravismo litorâneo Tanto no Brasil colonial como no independente relações de produção feudais conviveram e sucederam ao escravismo Este se limitou ao litoral açucareiro às minas ao algodão e café voltados para o mercado externo Mas nas atividades de subsistência as relações feudais se estabeleceram na pecuária sertaneja na área vicentina no Sul na área coletora e extrativista da Amazônia Nesses locais desenvolveramse atividades voltadas para o mercado interno ou só para o consumo local Quando houve o declínio do açúcar no Nordeste e da mineração em Minas o feudalismo ocupou engenhos e minas A pecuária oferecia ao litoral carne couro e transporte A existência desse comércio interno não alterava a realidade do feudalismo O seu isolamento não é absoluto Nesse mundo feudal brasileiro havia poucos homens a mão de obra era em menor número havia abundância de animais Viviase em uma economia natural Do início da colonização até meados do século XX essa área feudal ampliouse No sertão os fazendeiros são verdadeiros senhores feudais As relações são de dependência pessoal O servo presta serviços ou contribui em espécie A família é a célula social Há questões de honra resolvidas pela vingança Há banditismo disfarçado de religião Os bandeirantes são como bandos medievais A mão de obra era indígena mais servil do que escrava As relações feudais dominam a quase totalidade da extensão territorial colonial cercando as áreas escravistas litorâneas A servidão é ainda um espetáculo atual no Brasil Ela vem de longe ou apareceu desde o primeiro momento ou se impôs após o declínio da produção escravista Ampliouse e hoje entrava a implantação do capitalismo no Brasil No século XVIII quando do declínio da mineração houve uma regressão feudal Tratase de regressão quanto à quantidade de riqueza produzida Sodré insiste em que não está aplicando cegamente a teoria na teoria marxista a passagem ao feudalismo seria um avanço mas no Brasil a teoria precisa ser ressignificada a passagem ao feudalismo coincidiu com o declínio econômico e suas consequências foi uma regressão Portanto se a França no século XVIII fez a sua revolução burguesa e se juntou à Inglaterra se as suas burguesias venceram o feudalismo no Brasil nessa mesma época a revolução é feudal A Europa sai do feudalismo e entra no capitalismo quando o Brasil chega ao feudalismo Havia rebeldes no Brasil com propostas mais avançadas burguesas república indústria independência liberdade comercial Mas não havia na colônia a classe que pudesse sustentar um tal projeto ou seja não havia ainda a burguesia brasileira O Estado brasileiro independente surgia e se consolidava derrotando os movimentos republicanos e industrializantes Os senhores de terras e de escravos lutaram pela emancipação política e pela liberdade de comércio e não pela industrialização O quadro apresentado pela economia colonial e herdado pelo Brasil independente era triste tudo era importado e pago com produtos primários O mercado interno e a produção para o consumo interno eram quase inexistentes A moeda circulava de forma restrita As possibilidades de acumulação interna eram reduzidas Não se haviam criado as condições para a emergência da burguesia brasileira A estrutura social do Brasil independente era a mesma da colônia No movimento da independência que sufocou as rebeliões com projetos mais radicais a classe senhorial venceu mas o Brasil pagou um alto preço As mudanças mais radicais foram eliminadas No final do século XIX com a abolição gradual do tráfico foram introduzidos imigrantes europeus e asiáticos na cafeicultura Esses estavam longe de ser trabalhadores livres Eles mantiveram relações feudais típicas Foram comprados como se compravam escravos As relações feudais vêm substituir quase completamente as escravistas em 1888 A imigração acelerou o processo de feudalização que a abolição completará No Brasil não houve uma passagem direta do escravismo ao capitalismo E nem poderia ter ocorrido O imigrante teria sido um assalariado se a propriedade da terra tivesse sido alterada Após a abolição houve um alastramento das relações feudais baseadas na grande propriedade rural Sobre as ruínas do escravismo a servidão se ampliará Sodré aqui justifica a crítica que lhe fazem de etapista comunismo primitivo escravismo feudalismo capitalismo socialismo Não se pode ir do escravismo ao capitalismo diretamente queimando a etapa feudal A seu favor um ajustamento da teoria para aplicála ao Brasil que ele insiste ter feito a passagem do escravismo ao feudalismo na ortodoxia é considerada um progresso um avanço um salto qualitativo no Brasil segundo ele esse salto foi para baixo isto é esta passagem representou uma regressão econômica No entanto a nosso ver ele não deixou claro se essa regressão feudal se deu somente no século XVIII quando as minas decaíram quando a produção açucareira decaiu ou se a vinda de imigrantes e a abolição do tráfico também representaram uma regressão feudal A passagem ao feudalismo no final do século XIX com o fim do escravismo foi um avanço ou uma regressão Se foi um avanço ele retomou a ortodoxia Justifica também a crítica que lhe fazem de imitador do modelo importado quando vê no sertão brasileiro um mundo quase medieval com relações servis típicas entre senhores e servos com bandos medievais fazendo justiça e rezando Ele vê na realidade brasileira relações e personagens de outro lugar por tomar quase ao pé da letra uma teoria produzida para pensar aquele outro lugar Ainda a seu favor o fato de não fazer apenas suceder o feudalismo ao escravismo eles conviveram durante séculos O Brasil aparece em sua análise talvez até mais complexo vivendo relações de produção variadas com lutas sociais e padrões culturais diferenciados o Brasil do litoral e das minas e o Brasil do sertão do Sul e da Amazônia mundos brasileiros distintos Sodré expôs a sua caracterização das etapas escravista e feudal em seu livro Formação histórica do Brasil de 1962 E a expôs novamente em seu artigo já mencionado presente na obra organizada por Lapa 1980 A revolução burguesa brasileira que vê realizarse sobretudo a partir de 1930 e que quer ver acelerarse ele a analisará em sua História da burguesia brasileira Nela procura conhecer os sujeitos do Brasil moderno os autores da primeira grande mudança social que o Brasil conhecerá a passagem revolucionária do feudalismo ao capitalismo Ele vê a burguesia brasileira em sua infância no final do século XIX Não é uma burguesia de tipo clássico ela não implanta o capitalismo de forma independente É uma burguesia que surge já na fase imperialista do capitalismo o que condiciona o seu surgimento Sua periodização da história da burguesia brasileira primeira etapa na primeira metade do século XIX a acumulação nacional não existia segunda etapa ela vai ser absorvida pelo imperialismo sendo os seus capitais gerados internamente em sua IMPORTANTEEEE infância a burguesia brasileira enfrentará o obstáculo da estrutura colonial de produção o latifúndio colonial e a pressão imperialista produzimos mas não acumulamos terceira etapa nas duas últimas décadas do século XIX e primeiros 30 anos do século XX algo de novo se passará na história do Brasil a nova classe burguesa emergirá nessa passagem de século O Brasil se transforma então para se adaptar ao capitalismo em sua fase imperialista Verificase a luta entre o velho e o novo Brasil entre a classe tradicional com seus privilégios e uma classe que engendrada no ventre daquela expressão que ele aprecia começa a ter um papel inovador Mas esse processo revolucionário será muito lento O capitalismo não surge do fim do escravismo ou não surge sozinho A deterioração progressiva do escravismo é acompanhada por dois processos o da ampliação das relações feudais que talvez fossem um avanço em relação ao passado escravista mas um obstáculo à aceleração do outro processo que também surgia a introdução das relações de produção capitalistas O capitalismo surgia no final do século XIX mas bloqueado pelas relações feudais que se ampliaram O escravo não passou a assalariado ele atravessou a etapa feudal consumindo nisso pelo menos uma ou duas gerações As relações capitalistas aparecerão ligadas à imigração embora o imigrante também estivesse envolvido por relações feudais As relações capitalistas que emergem nesse processo longo e tortuoso na área cafeeira paulista seriam mais ou menos parecidas com as do fim do medievalismo não são puras e não se generalizam Elas sofrerão ainda por muito tempo o peso feudal as formas intermediárias múltiplas A burguesia nasce do ventre do latifúndio e traz as marcas da sua origem Após a República a indústria não foi protegida e foi até perseguida A indústria nacional foi liquidada paradoxalmente em defesa do consumidor brasileiro Argumentavase que ela não poderia ser uma indústria artificial que não deveria ser estimulada e protegida mas mantida em um ritmo natural A indústria brasileira avançou durante as primeiras décadas do século XX em um ambiente anti industrialista enfrentando todo tipo de obstáculo A I Guerra acelerou esse avanço o imperialismo se afastou Mas após a guerra ele voltou a nos dominar A burguesia brasileira fortalecida durante a guerra resistiu Ela passa a lutar pelo poder O Brasil vivia então em um ritmo de roda quadrada moviase por lances bruscos que abalam a estrutura da sociedade Ora exportava bem ora estava em crise Na hora da crise a importação era dificultada e a indústria nacional crescia Por um lado a indústria foi financiada pela transferência da renda agrícola e por outro pelo arrocho salarial Tradicionalmente se interpreta a industrialização brasileira como promovida pelas guerras e pelas crises de exportação Isto é verdade em parte Mas é um erro supor que as transformações profundas são suscetíveis de reversão Depois da guerra e da crise o Brasil não retornou ao seu quadro anterior o que fez com que a industrialização não fosse ocasional mas um processo contínuo e complexo A guerra e a crise a impulsionavam mas não eram a sua causa Passadas ambas ela continuou até mais forte pela ausência mesma daqueles fatores de impulso Em sua infância da burguesia dois personagens se destacam o fazendeiro de café que deixou de ser senhor para ser empresário e o imigrante Os imigrantes serão mais agressivos pois não têm nenhum compromisso com o passado Após a I Guerra a burguesia brasileira teve um impulso significativo e manteve a sua ascensão Abriuse uma fase de intensa luta política A indústria artificial enfrentaria os seus adversários da vocação agrícola A mudança se aprofundava embora a sociedade brasileira não se desse conta de que mudava A sociedade acreditava somente na economia de exportação estava habituada a descrer do que era nacional a subestimar tudo o que lhe pertencia e a ela própria excluída e desprestigiada pelas elites Desde que a economia de mercado começou a preponderar a burguesia brasileira passou a lutar pelo poder e a forçar a mudança O Estado republicano estava em descompasso com as relações de produção e as forças produtivas dominantes O Estado estava dominado pelo latifúndio e precisava ser alterado Em 1929 a consciência da necessidade de reformas chegou à concretização A revolução de 1930 foi um episódio marcante da ascensão burguesa no Brasil e teve este sentido adaptar o aparelho de Estado obsoleto às necessidades da expansão burguesa As agitações dos anos 1920 revelavam essas necessidades que 1929 tornará definitivas Os militares foram a vanguarda da burguesia brasileira Eram de origem pequeno burguesa e foram a alavanca que a burguesia usou para alterar a ordem vigente A revolução de 1930 representou a necessidade de derrotar o latifúndio A crise de 1929 enfraqueceu a economia exportadora e acelerou esse processo Entretanto após um rompimento rápido com o latifúndio a burguesia brasileira tendeu a comporse com ele para controlar a agitação que se aproveitava da situação de crise Após a luta burgueses e latifundiários fizeram uma aliança que garantiu a ordem tradicional Mas o latifúndio fora golpeado e a burguesia ascendeu com vigor Pós1930 houve um surto industrial significativo e um crescimento do mercado interno As relações de produção capitalistas avançaram Junto com a burguesia ascendeu o proletariado A burguesia se afastou então das classes que a apoiaram no desalojamento das velhas oligarquias traindo as classes e camadas que a apoiaram em sua ascensão A revolução burguesa foi amputada e frustrada A burguesia brasileira cresceu aceleradamente entre 1930 e 1945 o mercado interno predominou sobre a exportação Pós1945 o imperialismo retornou para nos drenar mudando a sua forma de ação Ele se implantou no mercado interno então constituído Não havia mais oposição à indústria artificial em favor da lavoura O imperialismo apoiou a indústria brasileira nela investindo Ao vir para o interior o imperialismo se chocava com a burguesia nacional Viverão uma contradição aguda em sua luta pelo mercado interno O imperialismo teve o apoio do latifúndio semiderrotado que queria limitar o poder da burguesia brasileira A burguesia brasileira não podia lutar sozinha contra a associação imperialismolatifúndio Ela precisava do apoio das forças populares Aquela associação as forças do atraso levaram Getúlio Vargas ao suicídio Os seus sucessores serão os representantes dos adversários da burguesia brasileira que defendia o desenvolvimento com democracia Para lutar contra as forças da reação e do atraso a burguesia necessitava de base política da pequena burguesia dos trabalhadores urbanos e dos camponeses A inquietação se alastrou por todos os níveis da vida nacional Nos anos 1950 a burguesia brasileira estava escolhendo o seu destino Até aqui Sodré pretendeu fazer uma análise histórica profunda do Brasil ele olhou do presente para o passado Discutiu o contexto europeu da descoberta do Brasil os modos de produção que teriam predominado e convivido no Brasil colonial e independente o surgimento e ascensão da burguesia industrial as relações entre esta e o latifúndio o imperialismo e as classes que sustentaram o seu avanço Descreveu um processo tortuoso lento mas sempre em mudança ora o escravismo declina e o feudalismo se instala ora o feudalismo se amplia e bloqueia as relações de produção capitalistas que surgem Os três modos de produção se entrecruzam em épocas distintas com forças diferenciadas dependendo do local e da época Sob o domínio do escravismo e do feudalismo durante quase toda a sua existência o Brasil viveu em um tempo imóvel apesar de ser complexo e mutante Imóvel porque o tempo do escravismo e do feudalismo foi indiferente à novidade à aceleração viveuse isolado distante sem pressa cotidianamente repetitivamente Viveuse em um tempo ritmado pela natureza e pelas festas religiosas Se houve mudança ela não foi produzida pelos sujeitos históricos brasileiros o engenho declinou as minas declinaram e soluções foram oferecidas no limite da sobrevivência A mudança ocorre mais como uma infelicidade como uma crise incontrolável que desarranjou um mundo já muito mal estruturado que reagiu lentamente confusamente sobrevivendo com dificuldade A partir de então Sodré olhou do presente para o futuro e com raro otimismo viu a burguesia brasileira como o sujeito histórico que lideraria o proletariado o campesinato e a pequena burguesia na implantação de um tempo mais ágil mais aberto ao novo mais insatisfeito e intransigente o tempo capitalista Sodré ofereceu à burguesia brasileira a partir do PCB um programa de ação Ele via a burguesia nacional presa em uma necessidadearmadilha histórica se as condições que a sua análise revela são a do seu confronto com o imperialismolatifúndio ela teria necessariamente de procurar o apoio do proletariado e do campesinato Só agindo assim ela desempenharia o seu papel histórico do contrário ela fracassaria em sua revolução A burguesia nacional deveria assumir necessariamente uma posição antifeudal e antiimperialista No entanto Moraes tem razão em nos alertar para o fato de que Sodré não confiava assim tão cega e ingenuamente na burguesia e que explicitou em diversas passagens as dúvidas quanto à sua firmeza revolucionária a burguesia procura se associar ao mais forte sempre e este quase sempre é o imperialismo Moraes 1991 Tendo surgido do ventre do latifúndio sustenta Sodré a burguesia brasileira passou por duas fases em relação a ele na primeira coexistiu quando o desenvolvimento das relações capitalistas era compatível com o seu predomínio depois opôsse quando esse predomínio não era mais compatível com o desenvolvimento capitalista Nos anos 1950 ela estava na segunda etapa O Brasil já era praticamente burguês e tinha que conviver com o obstáculo do latifúndio A burguesia já dominava o Estado mas ainda não conseguira eliminar o latifúndio E se não podia fazêlo era porque ele tinha uma força poderosa a sustentálo o imperialismo Ao imperialismo interessava manter o Brasil no feudalismo O passado feudal estava incrustado no presente capitalista e este para desenvolverse sem peias deveria eliminálo Se a burguesia brasileira quisesse livrarse desse passado ela não tinha outra saída senão aliarse ao proletariado e ao campesinato E ela quer esta aliança As três classes desejam romper com o passado feudal e a aliança é possível mas os meios e projetos de cada uma nesta ação são muito diferentes e até opostos As três classes revolucionárias estariam de acordo o latifúndio é o principal obstáculo ao desenvolvimento pois garante a sobrevivência das relações feudais mantém a produção agrícola voltada para o mercado externo usa o Estado para fins particulares O latifúndio desestimula o mercado interno obriga o Estado a comprar a sua sempre superprodução as supersafras que obrigam à socialização das perdas endividase com o imperialismo que se torna mais rico e poderoso com a distribuição de produtos brasileiros O latifúndio já se tornara um fardo e o Estado e o povo sustentavam um peso morto Além disso monopoliza a terra não paga salários não consome produtos industrializados nacionais usa uma tecnologia ultrapassada não produz suficientes alimentos para baixar os salários não abastece as cidades manipula a moeda desvalorizandoa para favorecer as exportações A burguesia tem interesse em transformar seus servos em proletários em levar ao campo as relações de produção capitalistas Mas ela não poderá fazêlo sozinha E teme os seus possíveis aliados A reforma agrária radical que camponeses e proletários propõem parecelhe muito socialista Neste caso o enfraquecimento do latifúndio seria pior pois ela ficaria em face dos socialistas A burguesia vive um impasse ou convive com o latifúndio concedendo ao passado e se livra da ameaça socialista ou prefere enfrentar esta ameaça abrese ao futuro e se livra do latifúndio Sodré concluiu talvez apressadamente que a burguesia tinha menos medo do proletariado do que do latifúndio Depois se viu que era o contrário a burguesia age racionalmente e não moralmente a presença do latifúndio não é incompatível com a sua ascensão enquanto a vitória do proletariadocampesinato significaria o seu fim Quanto ao imperialismo interessalhe a aliança com o latifúndio pois limitado à produção de produtos primários constitui um importante mercado de produtos industrializados e de luxo Nas trocas desiguais entre países exportadores primários e industrializados os monopólios americanos retiram da América Latina bilhões de dólares em lucros O predomínio interno do latifúndio interessa portanto ao imperialismo A solução para esse estado de coisas o passado entravando por dentro e o presente oprimindo de fora seria o desenvolvimento industrial interno autônomo Nos anos 1950 a burguesia brasileira era o sujeito do desenvolvimento brasileiro Ela enfrentava latifundiários e imperialistas produzindo transformações capitalistas importantes Ela vencia relativamente o mercado interno já predominava Diante dessa circunstância o imperialismo se adaptava e revia a sua aliança com o latifúndio O presente que oprimia de fora viria oprimir aqui dentro Instalado no mercado interno o imperialismo passou também a defender reformas burguesas A burguesia ora cedia ora resistia a ele Ora queria que o capital estrangeiro participasse do desenvolvimento capitalista brasileiro como associado ora não queria As burguesias brasileiras se dividiram a mercantil queria a associação a industrial era nacionalista e antiimperialista Elas consideram que o investimento estrangeiro no mercado interno tem como contrapartida uma enorme remessa de lucros É um volume significativo de capital que abandona o Brasil para financiar a expansão capitalista pelo mundo ao invés de promover o desenvolvimento industrial interno A burguesia industrial disputa o mercado interno com o imperialismo e por ser mais frágil é obrigada a conceder Diante dessa tensão com o imperialismo a burguesia industrial deseja a autonomia nacional ela quer preservar para ela o mercado interno que construiu ao longo do século XX Em sua luta pelo controle exclusivo do mercado interno a burguesia se dirige ao proletariado e ao campesinato com um discurso nacionalista Ela agita as bandeiras da independência autêntica com o desenvolvimento pleno das forças produtivas e com democracia Ao proletariado interessaria suspender a sua contradição específica com a burguesia para apoiála em sua revolução democráticoburguesa que levaria finalmente ao socialismo O projeto burguês inclui propostas que interessam ao proletariado como a reforma agrária por exemplo A reforma agrária levaria as relações capitalistas ao campo racionalizaria a produção com tecnologia avançada que ofereceria maior produtividade e mais lucro abastecendo as cidades e baixando os salários isto é aumentando a acumulação Interessa ao proletariado e ao campesinato o direito burguês a igualdade perante a lei que pode pelo menos ser alegada como um direito diante de um juiz interessa a democracia representativa a participação no Congresso Nacional a eleição do presidente da República governadores prefeitos deputados e vereadores Ao povo brasileiro interessa a democracia burguesa e o desenvolvimento das forças produtivas que a burguesia pode produzir O proletariado e o campesinato se agitam são agitados pelo PCB e outros líderes locais contra o latifúndio e o imperialismo e pela burguesia nacional na luta pela autonomia nacional Sob a liderança da burguesia mas também instrumentalizandoa o PCB sonha com a emancipação e a autonomia nacional e com o socialismo Esse sonho vai se tornar um pesadelo em 1964 A burguesia nacional fará o inverso da orientação que lhe dava o PCB Sodré na frente e primeiro ela optará pela aliança com o latifúndio e com o imperialismo seus adversários teóricos e reprimirá violentamente proletários e camponeses seus aliados teóricos N W Sodré e os seus Críticos Essa teoria da revolução democráticoburguesa foi um delírio das esquerdas entre 1922 e 1964 uma teoriaficção do Brasil ou foi uma teoria correta que tão somente foi superada pela história surpreendida por fatos novos mas que se referia durante aqueles anos à realidade brasileira Toda teoria histórica é datada mas em sua data é uma ideia adequada ao lugar É este o caso da análise marxista de N W SodréPCB do Brasil Os analistas de Sodré se dividem quanto a esta questão Para Mantega a tese feudal e a sua consequência política a revolução democráticoburguesa era inadequada à realidade brasileira e falava de um outro lugar Sodré representaria um marxismo equivocado quando aplicado ao Brasil Na verdade o latifúndio e o imperialismo não eram obstáculos ao desenvolvimento capitalista do Brasil O crescimento burguês não estava limitado pela existência de forças retrógradas Nunca houve de fato uma burguesia brasileira nacionalista mas um capitalismo dependente e associado A tese feudal não se encaixa à realidade brasileira As relações não eram servis mas livres contratuais não compulsórias mesmo no colonato e na parceria Não havia dependência pessoal mas coerção econômica Além disso a produção não era para o consumo interno a economia não era fechada autossuficiente natural mas aberta ao mercado externo Portanto o feudalismo entendido ou como predomínio das relações de produção servis ou como o predomínio da economia natural não era adequado à realidade brasileira Mantega 1984 Além da tese feudal não se encaixar outras três teses relacionadas ao projeto burguês para o Brasil também não se encaixam afirma Mantega Em primeiro lugar a burguesia não precisa da reforma agrária para aumentar a produção de alimentos baratear salários e aumentar o investimento na produção industrial voltada para o mercado interno Este dependeria do avanço da industrialização mesma e não da reestruturação da agricultura Só o investimento em indústria geraria mais empregos e pagaria mais salários E os empresários não esperam que os salários sejam os responsáveis pelo consumo Eles sempre defenderam salários mínimos o que significa que não são tão relevantes para o mercado interno Logo a burguesia brasileira não era aliada nem dos camponeses com a reforma agrária nem do proletariado com o aumento da oferta de empregos e salários Em segundo lugar a burguesia brasileira não é nacionalista e antiimperialista O capital estrangeiro que entrava na produção era bemvindo Há uma certa tensão na divisão do mercado interno mas nacionalista a burguesia jamais foi Se é para implantar o capitalismo o capital estrangeiro é indispensável Nos anos 1950 o desenvolvimento capitalista foi dependente e associado O interesse de classe é anterior ao interesse nacional Finalmente a burguesia não tem vocação democrática ela teme demagogos e populistas agitadores das massas urbanas e rurais O golpe de 1964 foi o resultado da sua ação associada à dos militares dos latifundiários e do imperialismo Sodré e o PCB cometeram finalmente o erro teórico e político maior ao invés de combater o capitalismo e a burguesia apoiaram a burguesia e o capitalismo Mantega 1984 F H Cardoso fazendo também uma história da burguesia brasileira e na mesma época em que Sodré publicou a sua em 1964 chegou a conclusões bem diferentes das de Sodré Para ele não se pode falar da burguesia brasileira como uma classe homogênea e combativa com um projeto político claro e com líderes eficientes Pelo contrário a burguesia industrial se constituíra como classe muito rapidamente e é muito recente A origem não industrial dos empresários brasileiros faz com que tenham uma precária consciência de classe e sua ação em defesa dos próprios interesses é pouco racional As origens burguesas são os imigrantes e segmentos senhoriais É uma classe heterogênea que não reage como grupo aos problemas que enfrenta É uma classe desintegrada frágil na ação que despreza a ação política e as associações de classe É limitada na proposição de políticas agressivas de desenvolvimento que aumentem a sua participação econômica e política Acomodase à dominação tradicional adaptase ao clientelismo reivindica favores e privilégios Há de fato duas burguesias embora não seja uma divisão muito nítida uma associada ao capital internacional que quer participar da prosperidade ocidental como sócio menor e outra nacionalista que defende a proteção ao mercado interno e a exclusividade da sua exploração pelos industriais brasileiros Os nacionalistas tendem ao fechamento do mercado interno F H Cardoso despreza a burguesia nacionalista que Sodré exalta Para ele esta representa uma consciência empresarial menos complexa e desenvolvida tem poucos capitais e não tem o apoio dos capitais internacionais Mas a tendência que ele nota é também totalmente diferente da observada por Sodré o crescimento industrial forçará esta burguesia nacionalista a se associar ao capital internacional e a esquecer o seu nacionalismo Cada vez mais as diferenças ideológicas entre industriais se apagam em nome da condição comum de capitalistas Cardoso 1964 Ciro Cardoso rejeita também a tese feudal para o Brasil colonial e independente Marx não fez uma teoria dos modos de produção coloniais fez somente referências à escravidão do sul dos EUA fornecendo elementos para uma teoria do modo de produção escravista colonial quer dizer de um modo de produção específico diferenciado dos cinco modos de produção do esquema unilinear ortodoxo As sociedades americanas são singulares não foram tratadas pelos clássicos do marxismo e não se enquadraram nos modelos clássicos A tentativa de aplicar ortodoxamente a teoria levou a exageros e confusões teóricas Quando se constatam diferenças com o modelo acrescentamse prefixos semi neo quase parafeudalismo que se acredita revelarem a singularidade histórica analisada Mas na verdade tais prefixos não esclarecem nada só revelam confusão teórica constata C Cardoso Portanto quando se trata das sociedades americanas coloniais o historiador deverá criar modelos e conceitos adequados a tais realidades particulares e não simplesmente repetir confusamente a teoria clássica Assim nem a tese feudal e nem a tese capitalista são adequadas para o conhecimento da realidade específica da América Latina A tese capitalista é circulacionista e nada tem a ver com o marxismo C Cardoso propõe que se crie um modelo ou modelos de modos de produção dependentes Há vários modos de produção dependentes O modelo adequado ao Brasil Antilhas e sul dos EUA seria o modo de produção escravista colonial Os modos de produção coloniais são os que surgiram na América quando da colonização europeia sobreviveram à independência e se mantiveram até a implantação do modo de produção capitalista Os modos de produção não podem ser definidos independentemente da consideração histórica das formações sociais A América viveu várias histórias apesar de todas serem coloniais e dependentes Será preciso discernir em cada sociedade latinoamericana o seu modo de produção específico adequado à sua história colonial observála em sua estruturação interna singular e não aplicar modelos estranhos a ela sob o pretexto de estar sendo fiel à teoria C Cardoso 1975 Portanto Mantega F H Cardoso e Ciro Cardoso autores marxistas posteriores aos anos 1960 rejeitam a tese feudal para o Brasil e invalidam a análise de Sodré tanto a sua análise histórica do passado brasileiro quanto a sua proposta revolucionária Entretanto até 1950 quando esse debate sobre a estrutura agrária brasileira era mais histórico do que político a tese feudal era predominante Segundo Topalov a caracterização do mundo agrário brasileiro como feudal desde o começo da colonização prevaleceu entre os historiadores brasileiros sem contestação até 1937 Nessa data Roberto Simonsen foi o primeiro a questionála embora ainda a considerasse válida8 Para Oliveira Vianna por exemplo escrevendo em 1923 o povo brasileiro foi desde os primeiros dias coloniais um povo de agricultores e pastores essencialmente rural O espírito comercial dos portugueses obscureceuse aqui Eles eram fidalgos arruinados que tiveram que se transformar em agricultores Na grande propriedade colonial se desenvolveu uma sociedade feudal à imagem da sociedade portuguesa Vianna se fundamenta no clã fazendeiro que reúne em torno do senhor de engenho a plebe colonial os rendeiros ligados a este pelo laço feudal do contrato de locação Outros autores dão ênfase aos instrumentos jurídicos da concessão outorgada pela Coroa portuguesa aos donatários A capitania não era concedida como uma plantação a ser explorada mas como uma província a ser governada A sociedade que se criou era agrícola dominada pelos nobres de espírito guerreiro independente do poder estatal era uma sociedade feudal Em 1937 Simonsen rompeu com essa interpretação unânime ao afirmar que à época do descobrimento Portugal já não vivia em regime feudal o rei já era capitalista e seus vassalos vieram ao Novo Mundo em busca de riquezas Os poderes a eles cedidos visavam à obtenção de lucro Só a forma jurídica da concessão assemelhouse às instituições feudais Seu conteúdo entretanto era exclusivamente capitalista Os donatários comportavamse como capitalistas investiam visando ao lucro Esta tese de Simonsen abalou as concepções feudais estabelecidas e encontrou adversários e partidários Nestor Duarte reafirmou e renovou a argumentação feudalista no Brasil ainda havia a fusão do poder com a propriedade da terra com a família O poder no Brasil é privado familiar patriarcal e sua origem remonta às capitanias hereditárias Duarte acrescenta algo novo ao debate a caracterização do Brasil como feudal tem consequências práticas políticas É esse feudalismo que segundo ele impede a reforma do Estado dificulta a centralização do poder e a estabilidade institucional pois o poder no Brasil não é público mas privado9 A tese feudal sobre a realidade brasileira até os anos 1950 portanto reunia os marxistas do PCB e vários intelectuais brasileiros de várias tendências A diferença entre marxistas e outros intelectuais é que estes privilegiavam a análise histórica do passado feudal e aqueles privilegiavam os aspectos políticos as consequências práticas daquela análise A partir dos anos 1930 a discussão histórica tornouse mais marxista mais política A realidade brasileira foi percebida então em seu subdesenvolvimento e atraso Toda análise histórica passou a ter como fim a transformação mais eficaz dessa realidade atrasada É mais adequada a esta realidade a análise que propõe mudanças mais radicais A tese feudal para Alberto Passos Guimarães é mais adequada porque mais revolucionária Se o Brasil fosse capitalista desde a origem nenhuma reforma profunda da estrutura agrária seria necessária Se o Brasil fosse capitalista a estratégia que decorreria dessa tese seria meramente evolucionista a agricultura teria necessidade de mecanização e crédito e não de reformas fundamentais Essa era uma tese reacionária A tese feudal tem consequências revolucionárias impõe a reforma agrária propõe a luta contra os senhores feudais e seus latifúndios improdutivos10 Enfim até os anos 1950 a tese feudal era preponderante entre marxistas e outros Nos anos 1950 o debate histórico se politizou Aparece então o clássico impasse do conhecimento histórico as consequências práticas presentes e futuras tornam mais lúcidas as análises do passado a verdade histórica é necessariamente revolucionária A análise histórica que serve diretamente à intervenção política é mais legítima mais bem elaborada mais estruturada Ou estaria comprometida em seu rigor pelo maior relativismo pelo subjetivismo pelo partidarismo Não seria necessário distinguir não queremos dizer separar análise histórica e estratégia de intervenção política A intervenção política presentefutura não se autolegitimaria retrospectivamente em uma análise pseudohistórica O fato é que a discussão histórica perdeu a serenidade a sobriedade da análise conceitual na passagem dos anos 1950 aos 1960 O PCB e os seus intelectuais principais responsáveis pela tese feudal e suas consequências políticas terão de enfrentar uma outra análise do passado brasileiro com suas consequências políticas elaborada nos anos 1960 por Caio Prado Jr O tom da discussão é alto as vozes do debate são mais vigorosas do que rigorosas gritam mais e analisam menos Ou melhor analisam aos gritos A legitimidade dessa discussão política é incontestável e ela se faz assim mesmo vivamente Esse era o tom adequado à história brasileira dos anos 195060 décadas de sonhos e derrotas Mas a legitimidade da análise histórica feita com tanta paixão é discutível PCBSodré e Caio Prado discutirão a história do Brasil dominados pela paixão Prado Jr 1966 Entre eles separandoos teoricamente e unindoos na paixão a derrota de 1964 Os historiadores marxistas posteriores tão apaixonados quanto eles porém mais distanciados do sonho e do pesadelo saberão distinguir a esfera da análise O marxismo universitário sobretudo na USP foi um instrumento de análise do Brasil de um valor inestimável Para Bornheim a partir dos anos 1960 os pesquisadores marxistas brasileiros foram os que melhor aplicaram as categorias de uma teoria europeia à realidade brasileira A escola sociológica da USP foi um centro de discussão marxista da realidade brasileira importante Um grupo interdisciplinar pioneiro de intelectuais independentes do PCB constituído por pesquisadores e professores universitários F Fernandes F H Cardoso J A Giannotti O Ianni P Singer F Novaes F Weffort e outros leu Marx e O capital de forma mais teórica e menos imediatista Depois nos anos 197080 Ciro Cardoso R Schwarz M Löwy C N Coutinho L W Vianna P S Pinheiro L Konder e até J Gorender seguirão essa linha mais teórica de uma análise histórica temperada pela paixão mas diferenciada dela não dominada por ela Bornheim 1978 Essa paixão expressava um vivo desejo de mudança imediata profunda e acelerada A revolução brasileira não poderia mais ser lenta e tortuosa e nem se submeter a longas etapas Havia o sentimento geral de mudança urgente Nos anos 195060 os marxistas sonhavam suprimir a continuidade do tempo histórico brasileiro e reduzilo à mudança Por isso fizeram uma análise histórica apressada imediatista sem muito cuidado conceitual Os autores marxistas posteriores sempre interessados na mudança saberão entretanto perceber mesmo a contragosto a continuidade que domina a história brasileira e realizarão uma articulação de continuidade e mudança produzindo uma análise histórica mais consistente menos imediatista e idílica mais adequada e apropriada à realidade brasileira ANOS 1960 CAIO PRADO JR A reconstrução crítica do sonho de emancipação e autonomia nacional Caio Prado Jr Aristocrata e Socialista Caio Prado Jr nasceu em São Paulo em 1907 data da publicação de Capítulos de história colonial de Capistrano de Abreu Esta percepção da coincidência entre o nascimento de um autor que será marcante e a data da publicação de um clássico ao qual ele dará prosseguimento revela a sensibilidade historiográfica de F Iglésias Para este Formação do Brasil contemporâneo fez com que Capítulos de história colonial ficasse em segundo plano por menor e menos abrangente embora seja também uma das obrasprimas da historiografia brasileira Após 1930 Caio Prado vai se tornar o mais influente historiador brasileiro tomando o lugar de Capistrano de Abreu que fora o mais influente no período anterior a 1930 Iglésias 1982 Caio Prado pegou o bastão das mãos de Capistrano e prosseguiu revigorandoa e acelerandoa a prova olímpica histórica e política do redescobrimento do Brasil A sua formação superior foi em direito e geografia A trajetória da sua vida dominará a sua obra Ele é de origem aristocrática saiu de uma família cafeicultora paulista para se tornar o intelectual orgânico do movimento operário brasileiro Sua vida é marcada pela ruptura de classe Ao se tornar um intelectual ligado à revolução socialista brasileira Caio Prado não fez uma pequena travessia como se ele fosse apenas um pequeno burguês Não é filho da classe média proletarizada Sua mudança na percepção da história do Brasil foi uma mutação afirma Novais Novais 1986 Aristocrata passou a lutar por igualdade e liberdade além dos limites do liberalismo além do mundo burguês É um dos intelectuais de origem burguesa que forçaram os limites da consciência possível e produziram obras significativas Goldmman ou orgânicas Gramsci ao serem um contraponto ao intelectual tradicional Coutinho 1990 Caio Prado saiu da alta tradição do passado colonial para a revolução socialista para o futuro eis a dimensão do seu salto que até sugere a impressão de um suicídio simbólico tamanha a altura ou distância da mudança de posição Era ao mesmo tempo empresário intelectual do proletariado e político Como intelectual foi pluridisciplinar historiador economista geógrafo filósofo Sua obra se iniciou em 1933 com Evolução política do Brasil prosseguiu com as publicações de Formação do Brasil contemporâneo 1942 História econômica do Brasil 1945 e A revolução brasileira 1966 Estes quatro livros constituem o esteio da sua obra histórica Escreveu ainda várias obras filosóficas ligadas à teoria marxista que repercutiram muito pouco São ignoradas pelos intelectuais brasileiros até mesmo marxistas Na Revista Brasiliense fundada por ele escreveu numerosos artigos históricos e políticos que estimularam o debate sobre a estrutura agrária brasileira e a sua mudança nos anos 1950 Nos anos 1960 a Revista Brasiliense fechada pelo golpe militar com a obra A revolução brasileira Caio Prado publicou uma síntese da sua visão do passado brasileiro e refletiu sobre a ação que deveria ser realizada para a sua transformação É a esta obra que daremos atenção especial aqui pelo esforço de síntese que ela representou e pelo caloroso debate que ela manteve com o PCB e com Sodré enfim com o marxismo brasileiro dos anos 192250 sobre a análise mais adequada à realidade brasileira e à sua mudança revolucionária É uma obra que marcará profundamente o pensamento revolucionário brasileiro pós1964 Caio Prado foi um intelectual militante Sua obra servia à luta de classes no Brasil Ele esteve envolvido como político com o Partido Democrático e com as revoluções de 193032 e em 1931 aderiu ao PCB Sua vida se dividiu entre a pesquisa histórica e filosófica e o combate político Mas não se trata de uma divisão que separe as duas atividades embora uma atividade não apague a diferença da outra Como intelectual marxista a luta política não o cegou nem impediu o seu esforço de análise Iglésias 1982 Sua produção teórica é mais marxiana do que marxistaleninista No PCB sempre foi heterodoxo Seu pensamento continuou dialético ele lida com fatos em termos de relações processos e estruturas localiza e explica desigualdades diversidades contradições sociais Militou fora e dentro do PCB na opinião pública na universidade na editora em revistas Viajou pelo Brasil conheceu as regiões as classes o campo as derrotas e vitórias dos excluídos Observava nessas viagens o caleidoscópio dos múltiplos tempos do Brasil11 Em 1933 quando as lutas sociais desafiavam o pensamento ele inaugurou uma corrente de interpretação marxista do Brasil diferente e original descentrada do PCB A história social brasileira apareceu sob uma nova perspectiva até ali desconhecida A partir de então inaugurou um estilo de pensar a realidade brasileira uma perspectiva crítica que discute as relações entre o passado e o presente e examina as possibilidades de mudanças no futuro Ianni 1989 e 1994 A militância política o levou à história do Brasil Sempre viajou pelo Brasil e pelo mundo e recomendava aos brasileiros que viajassem pelo Brasil e se dessem conta do seu país Era apaixonado pelo Brasil e pelo seu povo por isso rompeu com a sua classe e passou a defender este povo em uma luta socialista radicalmente democrática Iglésias 1982 Sua redescoberta do Brasil foi mais radical do que a de G Freyre e a de S B de Holanda nos anos 1930 Para os historiadores brasileiros sua importância tornouse tão considerável que há em torno dele algo mais do que respeito intelectual mas alguma idolatria alguma paixão que talvez ele próprio recusasse Alguns se embaraçam emocionalmente ao abordar os seus textos o que dificulta a análise outros reivindicam maior proximidade e associação com o seu nome para ficar sob o seu manto sagrado Novais 1986 É como se ele fosse meio intocável protegido de uma análise mais contundente Representaria o bem ao lado de S B de Holanda contra o mal representado por G Freyre na análise comparativa feita sobretudo pelos historiadores paulistas Santos 1993 Entretanto alguns tentam quebrar este fascínio que ele exerce esse domínio intelectual autoritário que mais lhe foi atribuído do que por ele reivindicado Podese falar de Caio Prado Jr Na verdade os que ousam criticar as suas hipóteses sobre o Brasil o tornam mais relevante mais importante cognitivamente do que os que simplesmente se embaraçam e se calam diante de seus textos e nome Entretanto esse fascínio não é sem razão Sua obra se insere na tradição da redescoberta do Brasil que nele se aprofunda e se consolida Usando o materialismo histórico de forma senão pioneira inovadora ele pôde ver o futuro do Brasil de forma mais consistente e otimista Até os anos 1930 viase o Brasil com desconfiança e ceticismo pois não se acreditava na capacidade do povo mestiço das classes sociais oprimidas e excluídas para construir um futuro de sucesso Caio Prado foi um dos primeiros a acreditar a confiar na eficácia histórica do povo brasileiro Para ele as elites não fazem a história do Brasil sozinhas O sujeito da história do Brasil não são as elites isoladas mas as classes sociais em luta Mesmo que as elites dominem quase absolutamente elas não existem sozinhas no cenário brasileiro Ao seu lado e sustentando a sua condição de elites elites em relação a quem existe a grande massa da população brasileira Redescobrir o Brasil significa ver nesta sua face oculta neste seu outro lado o verdadeiro Brasil Este outro lado deverá ser integrado valorizado e recuperado pois nele estão os construtores da sociedade brasileira presentefutura Caio Prado adotando este ponto de vista não se limitará a fazer uma história políticoadministrativa não ficará na superfície dos acontecimentos de mais destaque Procurará atrás dos eventos visíveis das ações produzidas pelos heróis brasileiros o seu sentido estrutural as relações sociais e o modo de produção capitalista Atrás dos eventos e iniciativas individuais ou coletivas há um interesse de classe interesse que se inscreve na lógica do modo de produção capitalista Olhando a história desde esta perspectiva ela se torna bem diferente da tradicional A periodização se altera aparecem processos antes minimizados como os movimentos sociais dos séculos XVIII e XIX os grandes heróis não são desvalorizados mas contextualizados perdendo o seu valor exclusivamente individual Caio Prado não fez uma história oficial nem a história oficial do PCB que Sodré fez Intelectual independente Caio Prado não glorificará os heróis que sufocaram os movimentos sociais e que massacram ainda as iniciativas populares Mota 1978 Por sua originalidade e independência ele influenciou a corrente de interpretação marxista do Brasil mais crítica e produtiva É inegável a sua importância para o conjunto das ciências sociais no Brasil A escola marxista universitária brasileira é pradiana Caio Prado e seus Críticos Alguns analistas de sua obra no entanto evitam o silêncio reverente e estéril e propõem uma posição mais fértil mais iconoclasta talvez embora em momento algum contestem o valor da sua obra Pelo contrário com esta postura levam a sua obra realmente a sério Coutinho talvez exagere ao afirmar que sua interpretação do Brasil é relativamente pobre em categorias marxistas Para ele Caio Prado domina mal o conceito de modo de produção capitalista pois é circulacionista e usa mal também o conceito de burguesia Coutinho 1990 Sodré ironiza Caio Prado ele afirma que o Brasil é capitalista desde a origem quando nem a Europa era capitalista entre 1500 e 1700 O capitalismo então chegou primeiro ao Brasil e só depois à Europa Antes da Revolução Industrial que só se iniciou no século XVIII na Inglaterra as relações capitalistas de produção não predominavam ainda na Europa e o que identifica um modo de produção segundo a teoria marxista são as relações de produção predominantes É na esfera da produção onde as classes em luta se definem que se encontra a identidade de um modo de produção Sodré 1980 Caio Prado acredita que o modo de produção capitalista apareceu na esfera da circulação entre 1500 e 1700 Este seu circulacionismo afirma Ciro Cardoso não tem nada a ver com a teoria marxista Cardoso 1975 Coutinho vai mais além afirma que sua visão do Brasil é que é atrasada e não a do PCB que ele tanto criticava Coutinho 1990 Outros o criticam pelo seu economicismo Sua obra Formação do Brasil contemporâneo revelaria este economicismo já em sua estrutura ela se divide em três seções básicas cuja disposição revela a prioridade da infraestrutura como instância determinante na análise povoamento vida material vida social O seu economicismo apareceria portanto na própria disposição do tema essa segmentação do texto não serve apenas para facilitar a exposição mas é um recurso de aprofundamento radical do recorte analítico Mello 1987 Novais rejeita essa crítica ao marxismo de Caio Prado Ele considera que talvez algumas passagens da sua obra possam autorizála mas o que interessa é o conjunto da obra Não se deve ver entre o sentido da colonização e os demais capítulos uma relação causal mas conexões de sentido Os vários segmentos poderiam ser descritos e analisados em qualquer sequência pois guardam a mesma relação com a categoria explicativa A segmentação visa a facilitar a exposição mostrando a interpenetração das partes Sua obra ultrapassa a visão segmentária e economicista A crítica de economicista não é consistente conclui pois o que conta é a coerência da obra Novais 1986 Mas não é só em Formação do Brasil contemporâneo que podem ser percebidas passagens economicistas Também em Evolução política do Brasil Caio Prado afirma que a sociedade colonial é o reflexo fiel da sua base material Assim como o capital absorve a terra o senhor rural monopoliza a riqueza e seus atributos o prestígio o domínio E também em A revolução brasileira há passagens economicistas como esta A estrutura de classes de uma sociedade e a natureza e hierarquia das suas classes refletem sempre a estrutura econômica que lhes serve de base na análise da estrutura social brasileira retomaremos a análise e interpretação das relações econômicas vigentes No entanto consideramos que a observação de Novais é sem dúvida relevante o que conta é a obra em seu conjunto e não algumas passagens ocasionais Embora se possa ainda contraargumentar que são nessas passagens ocasionais espécies de atos falhos intelectuais que se pode perceber a estrutura teórica profunda de um autor Além de economicista e circulacionista Caio Prado é também censurado por não utilizar fontes primárias e preferir as impressas Ele não parece ser um frequentador de arquivos F H Cardoso vem em sua defesa Isto é um preconceito Ele tomou fontes secundárias e deu vida e significação interpretativa mais ampla a elas e foi capaz de oferecer um vasto e novo quadro do Brasil Cardoso 1993 Os intelectuais do PCB que sofreram a revisão crítica de A revolução brasileira revidam seu marxismo sofreu a influência do neopositivismo de Russel e do Círculo de Viena Vindo daí para ele só há processos e relações configurando um relacionismo que ele pretendeu que fosse a formulação correta da dialética Não há objetos coisas só relações Não adianta fazer classificações que seriam do âmbito da lógica formal O que importa é a apreensão do acontecer do conjuntural Fazendo essa análise relacional e conjuntural poderemos agir em direção a uma revolução que se classificará a posteriori mas sabendose a priori que chegaremos ao socialismo Gorender 1989 Coutinho o censura por dar muita ênfase ao papel do Estado na transição ao socialismo o que não fez avançar a discussão fundamental das relações entre socialismo e democracia Em Caio Prado o Estado ainda é autoritário Coutinho 1990 Topalov o censura por usar muito de Roberto Simonsen em sua História econômica do Brasil quando defende a tese do capitalismo colonial sem citálo Topalov sd Portanto Caio Prado não parece ser tão intocável assim Pelo contrário criticase o seu domínio da teoria marxista em conceitos cruciais A esquerda brasileira dirigiu a ele críticas enérgicas após a publicação de A revolução brasileira muitas delas impregnadas de ressentimento e outras teoricamente relevantes E consideramos que é melhor assim ele se torna então um interlocutor vivo provocador estimulador de um debate rico e seminal Falam de Caio Prado logo ele existe Falemos muito dele bem e mal e ele se tornará concreto real influente vivo Caio Prado o PCB e o Marxismo no Brasil Na história do pensamento marxista brasileiro Caio Prado é situado por Moraes e Mantega em uma segunda fase posterior à primeira fase da recepção dogmática que vai de 1922 a 1940 Moraes a denomina etapa de autonomização teórica 194060 e Mantega materialismo funcionalista 195060 quando houve um cruzamento de Keynes e marxismo C Furtado e foram consideradas as relações sociais de produção não puramente capitalistas como funcionais para o capitalismo Moraes 1991 Mantega 1991 Mota o situa em duas fases a do redescobrimento do Brasil 193337 no sentido dele que inclui também suas obras de 194245 e a das revisões radicais 196469 com A revolução brasileira 1966 Mota 1978 BresserPereira o situa na interpretação funcional capitalista a interpretação da esquerda que predominará entre os vencidos de 1964 que seria crítica e ressentida em relação à interpretação nacionalburguesa pré1964 do PCB e Sodré e combaterá a interpretação autoritáriomodernizante dos vencedores A sua obra A revolução brasileira foi a base teórica afirma BresserPereira dessa interpretação equivocada do Brasil marcada pelo ressentimento com a derrota BresserPereira 1979 Entretanto talvez Caio Prado não se deixe fixar em nenhuma etapa definida Ele esteve presente em todas as fases atravessandoas com inacreditável autonomia intelectual desde 1933 até 1966 Talvez a melhor maneira de localizálo no pensamento marxista brasileiro fosse situáloo entre N W Sodré historiador oficial do PCB e o chamado grupo dO capital os marxistas acadêmicos da USP Seu pensamento representaria uma transição do dogmatismo marxistaleninista ao marxismo mais teórico e refinado dos estudiosos universitários de Marx sem intermediários Ele escreveu nos anos 193040 sem se deixar dominar pela interpretação oficial por isso não pertenceria plenamente a essa época É prenunciador dos pesquisadores ligados a F Fernandes mas é anterior a estes pois tem uma formação teórica menos elaborada não podia ser indiferente à URSS sofreu a sua influência e debateu as questões propostas pelas esquerdas dominadas pelo PCB A terceira geração além de ter um conhecimento conceitual mais rigoroso não só do marxismo como de outras teorias sociais pensará o Brasil de forma ainda mais independente do PCB e do marxismoleninismo Caio Prado seria então um pensador marxista desvinculado do modelo interpretativo e político democráticoburguês Mantega denomina o seu modelo de interpretação do Brasil modelo do subdesenvolvimento capitalista associado também a Gunder Frank que predominará nos anos 1960 reavaliando a derrota de 1964 reinterpretando o Brasil e propondo novas estratégias de ação revolucionária Sem ter uma relação consciente explícita com a IV Internacional e Trotski Mantega considera que Caio Prado seguiria a sua orientação teórica enquanto o PCB seguia a orientação de Lênin e da III Internacional explícita e assumidamente Caio Prado rejeitava a análise do passado brasileiro da III Internacional e do PCB bem como o seu projeto revolucionário Ele oporá uma análise do Brasil e um projeto revolucionário mais próximo das orientações da IV Internacional sem estar ortodoxamente vinculado a elas Essa vinculação de Caio Prado alinhada com essa orientação do comunismo internacional não falará de feudalismo e nem de revolução democráticoburguesa mas de subcapitalismo e revolução permanente que desembocará a longo prazo no socialismo sem a etapa intermediária da transição ao capitalismo que seria desnecessária pois o Brasil já era capitalista desde a origem Foi o precursor da reflexão marxista que busca entender o caráter não clássico da constituição do capitalismo no Brasil Seu objeto de reflexão e pesquisa é a especificidade do tempo histórico brasileiro que pode ser conhecida à luz do marxismo desde que se evitem repetições teóricas mecânicas e inadequadas à realidade brasileira Mantega 1984 Porque A Revolução Brasileira O texto que escolhemos portanto como já foi explicitado para analisar a reconstrução temporal do Brasil feita por Caio Prado é A revolução brasileira de 1966 Faremos também referência ao capítulo introdutório de Formação do Brasil contemporâneo ao sentido da colonização e à Evolução política do Brasil A revolução brasileira é uma obra indispensável para se pensar o Brasil depois de 1964 e 1964 será um mirante ideal para se dar uma olhada no passado e no futuro do Brasil reinterpretando o seu passado e reconstruindo o seu futuro Esse texto oferece uma visão crítica do pensamento revolucionário brasileiro pré1964 É uma obra sob o signo do diálogo vivo do debate sem eufemismos e meias palavras É quase um bateboca com o passado É uma obra histórica viva vinculada ao presente e ao futuro a partir dos quais reconstrói o passado É uma obra de síntese teoria história e política analisa interpreta e propõe sobre o passado o presente e o futuro do Brasil Embora Caio Prado não tenha obtido muito sucesso com suas obras filosóficas podese talvez afirmar que predominava nele o espírito filosófico sobre o do historiador Todas as suas grandes obras são de síntese e nelas ele se pergunta sobre o sentido da história brasileira O esforço de síntese e a pergunta sobre o sentido caracterizam geralmente o temperamento filosófico uma preocupação com a identidade com a origem e o destino uma interrogação sobre o ser brasileiro e sobre o tornarse brasileiro Ele perguntava como filósofo e respondia como historiador não especulava pesquisava Além disso a sua busca de autonomia e liberdade de pensamento e expressão mesmo no interior das esquerdas é uma postura que revela também um quê de aristocrático e filosófico o filósofo dizem anda só Tomaremos A revolução brasileira para análise por essas razões internas e também porque ela revela a posteriori o pensamento marxista original de Caio Prado Na verdade sua visão marxista do Brasil está toda ela expressa nessa obra uma retomada do que ele já tinha escrito e uma tomada de consciência do que foi o pensamento brasileiro marxista dominante e o que ele poderia se tornar Os analistas de Caio Prado em geral dão mais valor e atenção aos livros de 1933 1942 e 1945 Poucos deram maior atenção a A revolução brasileira Também por isso vale a pena examinar o livro de 1966 A revolução brasileira é uma análise crítica e autocrítica das relações de produção brasileiras feita sob a pressão da história pioneira corajosa e coerente com suas posições anteriores É F H Cardoso quem admite Caio Prado escreveu um livro depois dos clássicos anteriores referidos que ainda não mereceu dos críticos o reconhecimento da importância que tem Tratase de A revolução brasileira Nele Caio Prado retoma alguns temas que havia desenvolvido na Revista Brasiliense e na própria História econômica do Brasil e trava um diálogo muito bom com a esquerda Tratase de um livro de grande vitalidade É um livro que faz uma crítica de esquerda muito avançada para a época Cardoso 1993 É basicamente por essa razão que o abordaremos Entretanto F H Cardoso afirma algo que contestamos Não é um livro de historiador não é um livro que contenha um grande painel do Brasil Cardoso 1993 Nós o consideramos um livro de história em seu gênero mais necessário e no entanto escasso o gênero polemista cujas teses envolvem painéis inteiros do passado e visões históricas do futuro As teses são brevemente expostas e o são até repetitivamente mas exigem para a sua sustentação muitas informações históricas evocam vivamente épocas passadas ao mesmo tempo que abrem o futuro à imaginação históricopolítica Além do seu valor teórico histórico e político a obra é extremamente reveladora do seu contexto Foi escrita em uma situação de crise grave da democracia e do projeto socialista O divórcio entre o Estado autoritário e a sociedade civil se acentuou tanto que o povo brasileiro se sentia estrangeiro em seu próprio país Os ideólogos da ditadura falavam em segurança e desenvolvimento uma versão atualizada do ordem e progresso do início republicano tornando explícita a relação militarista entre o Estado e a sociedade O sonho da revolução democráticoburguesa terminou no pesadelorealidade da revolução autoritárioburguesa e as elites retomaram a sua posição de conquistadores do povo brasileiro descendentes dos descobridores do Brasil Em tal contexto era urgente rever repensar reconsiderar as interpretações e propostas anteriores apesar da angústia e da emoção da derrota quando se soube que o Brasil continuaria a ser o que sempre fora e que não mudaria como se sonhara Sob tal inspiração Caio Prado conseguiu retomar toda a história do Brasil em suas teses sobre a estrutura agrária brasileira e sobre o que se poderia então fazer A Obra A Revolução Brasileira Caio Prado começa a sua A revolução brasileira da mesma forma que Sodré começara a sua História da burguesia brasileira rediscutindo conceitos e avaliando as dificuldades para se falar do Brasil de forma adequada com conceitos produzidos em outro contexto Tanto os revolucionários do PCB quanto os militares vencedores por exemplo falavam de revolução brasileira Afinal o que quer dizer revolução Caio Prado começa discutindo conceitualmente o seu título Revolução ele afirma não se relaciona diretamente ao caráter violento insurrecional da conquista do poder por um grupo social O significado próprio deste conceito onde cessa toda ambiguidade se concentra na transformação que este movimento realiza depois de conquistado o poder e não na maneira como se dá A Revolução Francesa foi uma revolução não porque foi violenta Em seu sentido profundo revolução é um processo social que realiza transformações estruturais em um curto período histórico É um momento de aceleração histórica e é neste sentido que ele o usará em seu livro Os vencedores de 1964 realizaram tais transformações estruturais Se as realizaram fizeram uma revolução Os golpistas e não revolucionários para Caio Prado usaram a palavra revolução quando na verdade reagiam e a impediam porque reconheciam a penetração profunda desta ideia no povo Todavia visto no conjunto da revolução burguesa brasileira o Golpe de 1964 foi um momento de aceleração desse processo e foi de fato revolucionário Mas Caio Prado não está interessado nesse episódio da revolução burguesa que ele nem parece identificar como tal mas na fragilidade da estrutura de poder que se constituiu depois do golpe Seu interesse é pela iminente transformação realmente revolucionária que em 1966 toda a ineficiente retórica da administração pública a crise econômica e financeira os desequilíbrios sociais só sabiam revelar Havia ceticismo quanto às soluções dentro da ordem Sua análise profunda que não se deixa iludir pelas aparências revela tais possibilidades revolucionárias As soluções reformistas não bastariam A consciência revolucionária tinha grande projeção no Brasil dos anos 1960 Que revolução iminente seria esta Caio Prado continuava ainda a sonhar depois do banho de água fria de 1964 A água fria só tornou o sonho menos delirante e o transformou em um sonho friamente pensado criticamente construído um sonho de olhos abertos A revolução que se preparava ele sustenta não tinha uma natureza socialista ou democráticoburguesa a priori A natureza da revolução não deve ser pensada doutrinariamente mas no próprio processo É preciso reconhecer sua natureza na própria dinâmica dos fatos O que interessa é o que se passa e não o que é A revolução brasileira iminente não pode ser definida a priori antes de acontecer por um conceito preestabelecido mas pela análise e interpretação da conjuntura econômicosocialpolítica concreta e real É claro no marxismo a direção do capitalismo é para o socialismo Mas esta previsão não tem data ritmo e programa determinados Ela não deve interferir na análise e solução de fatos concretos O projeto socialista não pode ser sectário É antimarxista ver o socialismo sempre imanente e iminente em todas as ocorrências da luta social O sectarismo socialista leva ao isolamento e perdemse aliados importantes na produção da mudança brasileira Aquela pretensão não exclui a luta por objetivos não imediata e diretamente socialistas Por exemplo qualquer greve tem uma significação própria e em si Ao mesmo tempo revela a luta de classes e é um evento particular O sectarismo impede a aliança com grupos não socialistas mas que convergem com eles em objetivos mais limitados Os marxistas consequentes querem obter resultados na ação conjuntural A dialética é um método de interpretação das ações reais e não dogma que enquadre revoluções históricas em esquemas abstratos preestabelecidos O que interessa na ação revolucionária não é o que se proclama e projeta mas o sentido dialético da ação a sua capacidade de abrir o futuro A teoria da revolução brasileira portanto não poderia ser produzida especulativamente A teoria revolucionária correta deveria tomar como modelo o caso de Cuba A revolução cubana começou como uma luta contra uma ditadura concreta Atingido esse objetivo ela evoluiu para uma revolução agrária e antiimperialista Contudo especulativos abstratos apriorísticos sem a consideração adequada dos fatos os projetos revolucionários no Brasil apoiaram governos demagógicos e incompetentes levando os reacionários mais duros ao poder Não faziam avançar a revolução levavam o Brasil ao desastre A análise equivocada levou a uma estratégia de intervenção equivocada O que havia era uma ação revolucionária de cúpula que agitava slogans ineficazes A insuficiência teórica levou as esquerdas a fazerem alianças espúrias Bastou uma passeata militar para impedir a sua revolução agrária antifeudal e antiimperialista As razões desse insucesso a teoria da revolução brasileira era abstrata constituída por conceitos exteriores à realidade brasileira esquemática etapista indo às avessas dos conceitos aos fatos quando se deveria ir dos fatos aos conceitos A análise de Caio Prado da teoria revolucionária que predominou entre as esquerdas lideradas pelo PCB nos anos 192264 fica a cada página mais áspera e hostil O marxismo brasileiro era estalinista ele se desespera Os fatos eram vistos não como são mas como deveriam ser à luz do que se passou em outros lugares e dos clássicos mal interpretados A teoria dita revolucionária produzia esquemas imaginários pretendendo interpretar e explicar a nossa realidade Está longe do marxismo impor à humanidade etapas de evolução necessárias Os erros estratégicos cometidos pelos revolucionários brasileiros foram de duas ordens em primeiro lugar eles erraram teoricamente pois leram mal os clássicos marxistas compreenderam erradamente a dialética materialista e seguiram cegamente as teses soviéticas sobre o mundo inteiro sem distinguir as diversas situações particulares em segundo lugar erraram historicamente pois analisaram mal o Brasil interpretaram erroneamente o seu passado compreenderam equivocadamente as classes e as lutas de classes no passado brasileiro bem como o modo de produção do Brasil colonial Em sua análise da história brasileira eles quiseram ajustar a realidade brasileira aos textos clássicos e a outros contextos Usaram conceitos para os quais é difícil encontrar correspondente real latifúndio restos feudais camponeses ricos médios e pobres burguesia nacional O modelo era o feudalismo europeu Portanto mal equipados teórica e historicamente não puderam acertar na ação revolucionária Seria preciso rediscutir a teoria e rever a história do Brasil e então propor novas formas de intervenção na realidade brasileira Nessa obra ele pretendeu produzir essa rediscussão da teoria e da análise histórica do Brasil e fazer então as suas propostas de intervenção revolucionária Para Caio Prado os teóricos da revolução brasileira são aprioristas e dogmáticos ele o afirma centenas de vezes Em sua miopia teórica viram o Brasil ainda dominado pelo feudalismo Teriam encontrado algumas relações de produção semelhantes às feudais e consideraram esses raros traços feudais como dominantes A teoria marxista foi formulada no Brasil nos anos 1920 O Brasil foi incluído entre os países coloniais semicoloniais e dependentes países submetidos política e economicamente ao imperialismo Não sendo ainda capitalistas estariam em transição do feudalismo ao capitalismo A etapa revolucionária seria a da revolução democráticoburguesa cujo modelo era a ocorrida na Rússia czarista A revolução democráticoburguesa seria agrária contra o latifúndio feudal e antiimperialista Entretanto contesta Caio Prado o Brasil não possui restos feudais pois aqui não houve jamais um sistema feudal Isto nos leva a um passado longínquo cuja discussão nem por isso pode ser dispensada Quando e como começou o Brasil O Brasil surgiu no quadro da atividade europeia a partir do século XV atividade que integrou um novo continente à sua órbita assim como a África e a Ásia atividade que acabará por integrar o universo todo em uma nova ordem que é a do mundo moderno A ocupação do Brasil e o seu povoamento foi apenas um episódio um pequeno detalhe daquele imenso quadro A colonização portuguesa na América não foi um fato isolado é parte de um todo A perspectiva do historiador é do todo que explica a parte A parteBrasil tem um sentidotodo nossa formação se deu essencialmente para fornecer açúcar tabaco ouro diamantes algodão café para o comércio europeu Nada mais que isto Foi com tal objetivo exterior para fora que se organizou a sociedade e economia brasileiras A colonização do Brasil foi um problema de difícil solução para Portugal Faltavamlhe gente e cabedais para dedicar ao ocasional achado de Cabral O surto marítimo que ocorreu em Portugal no século XV fora provocado por uma burguesia comercial sedenta de lucros Ávida com o apoio do rei essa burguesia começou a sua expansão pela África e Índias As Índias ocupavam a fantasia portuguesa como uma vaga definição de abundantes riquezas As Índias se tornaram a meta principal de Portugal No meio do caminho das Índias abundantes riquezas Portugal deparouse com um território imenso pouco habitado e de escassas riquezas onde nada havia a ganhar A ideia de povoar veio depois e Portugal foi o primeiro na colonização efetiva no povoamento de um novo território Todos os grandes acontecimentos dessa Era dos Descobrimentos articulamse num conjunto que é apenas um capítulo da história do comércio europeu A colonização do Brasil é um capítulo dessa história O caráter do início se manterá dominante através dos três séculos e se gravará profundamente na vida do país Ter em vista o sentido da colonização do Brasil desde o seu início é compreender o essencial do Brasil E desde o início integrado à expansão mercantil europeia e exportando para lá o seus produtos primários produzidos em latifúndios escravistas o Brasil é capitalista A economia brasileira nasceu como grande exploração comercial criada pelo capitalismo mercantil europeu e voltada para o mercado externo O Brasil sempre compartilhou do mesmo sistema e das mesmas relações econômicas que deram origem ao capitalismo O escravismo que predominou aqui não é incompatível com o modo de produção capitalista A abolição da escravidão será a culminação de um modo de produção já implantado desde o início A substituição da mão de obra escrava não afetou a natureza estrutural da grande exploração capitalista No Brasil colonial predominou a grande propriedade rural que produzia para exportação e não a pequena propriedade explorada por camponeses No Brasil não se constituiu uma classe camponesa que produzisse em pequenas propriedades e em família O trabalho escravo era coletivo e cooperativo assim como nas grandes fábricas e não individual ou familiar como no feudalismo Na exploração comercial colonial a direção e ocupação na exploração do solo foi exercida pelo grande proprietário e não por um camponês que não havia O trabalho escravo satisfaz às exigências do trabalho livre exceto quanto à liberdade individual do trabalhador de ir e vir e ser contratado e distratar Ambos escravos e livres recebem uma compensação pelos serviços prestados dinheiro ou concessões várias e ambos lutam por objetivos comuns a melhoria dessa remuneração O que significa que o trabalho escravo não foi incompatível mas funcional com a acumulação capitalista Portanto as relações de produção no campo brasileiro não são feudais A parceria não é feudal É uma relação assalariada com remuneração in natura É uma relação capitalista de produção Sua presença não é negativa para a produção é uma relação capitalista superior e produtiva O barracão e o cambão não são feudais são restos escravistas No Brasil não existia o que é próprio do regime feudal a exploração parcelária da terra pela massa camponesa em que o excedente é extraído através de relações de dependência pessoal do camponês ao senhor O escravo se aproxima do assalariado é uma força de trabalho que não possui os meios de produção não decide sobre o produto a produzir reivindica não os meios de produção mas melhor remuneração e incentivos Entretanto talvez essa arriscada aproximação entre o escravo e assalariado tentada por Caio Prado seja possível a curto prazo mas e a longo prazo O escravo reivindica a liberdade individual que o assalariado já possui Essa diferença não os afasta definitivamente Caio Prado quer enfatizar a importância da análise histórica armada de boa teoria para a intervenção política Se o Brasil é caracterizado como feudal a luta dos trabalhadores rurais será pela propriedade da terra Será uma luta pela derrubada do feudalismo agrário Mas para ele este é um erro histórico teórico e político Os trabalhadores rurais não reivindicam a propriedade da terra insiste ele mas a melhoria das condições de trabalho e emprego Se há luta pela terra é em regiões secundárias do Brasil E mesmo ali não predominam relações feudais de produção No campo é preciso impor o que determina a Consolidação das Leis do Trabalho CLT saláriomínimo sindicatos descanso remunerado Os teóricos do PCB consideravam tais reivindicações reformistas mínimas pois a verdadeira conquista seria a da propriedade da terra Isto é o que pensa Caio Prado quanto à hipótese feudal sobre o Brasil e suas consequências políticas Quanto ao imperialismo para Caio Prado o Brasil foi uma criação dele Os países da América Latina sempre participaram desde o início do mesmo sistema capitalista Foi o capital comercial que instalou e estruturou a América Latina As relações entre o imperialismo e a América Latina são complexas Não se pode propor de forma simplista a anulação de todos os tratados lesivos aos interesses nacionais confisco de capitais multinacionais anulação da dívida externa expulsão das missões militares culturais e técnicas norteamericanas O PCB considerava que havia uma aliança dos latifundiários feudais com a burguesia mercantil retrógrada e o imperialismo contra um setor da burguesia progressista aliada ao campesinato e ao proletariado na revolução democráticoburguesa Mas tal composição social e sua contradição não existem na formação social brasileira talvez existam na Rússia ou na China A classe dominante brasileira é uma unidade na diversidade um bloco sem cisões fazendeiros estancieiros senhores de engenho usineiros burguesia industrial e mercantil Esses homens circulam em várias dessas atividades ao mesmo tempo Não há uma burguesia nacional industrial que se oporia à burguesia mercantil e ao imperialismo São aliados sócios Mesmo se há tensões e contradições entre essas burguesias pelo mercado estão unidas fundamentalmente A burguesia brasileira é heterogênea quanto à sua origem mas homogênea quanto à natureza dos seus interesses e negócios Após a Abolição o sistema capitalista já predominava e se consolidou uniformizando as relações de produção capitalistas Integrado o sistema capitalista levou ao fortalecimento da burguesia uma classe homogênea coesa não cindida por contradições irredutíveis Os setores agrário e industrial não se opõem são ligados O capital que impulsionou a indústria é de origem cafeeira Muitos fazendeiros paulistas são também industriais Os setores industrial e agrário não se opõem mas se entrelaçam e conjugam os seus interesses A burguesia brasileira tampouco se opõe ao imperialismo ela se subordina como um todo ao sistema capitalista A economia brasileira exportadora se organiza com o comércio internacional em ligação íntima e estreita dependência Os representantes da burguesia brasileira e os do imperialismo se entendem perfeitamente já que o Brasil foi uma criação do capitalismo A presença do capital estrangeiro segundo Caio Prado a burguesia brasileira não considera imperialismo Se houve resistências foram isoladas Entre a burguesia brasileira e o imperialismo podem haver no máximo tensões pontuais A burguesia brasileira nacional antiimperialista e progressista não tem realidade no Brasil Ao supor a existência de tal burguesia o PCB cometeu erros políticos irreparáveis Caio Prado não obterá apoio unânime a essas teses Serão muitos os que defenderão a validade da tese do PCB quanto às relações contraditórias e de luta entre burguesia brasileira e latifúndio e imperialismo Para BresserPereira não ver conflitos entre a classe agráriomercantil e a burguesia industrial é ir contra os fatos Está demonstrado ele afirma que as origens étnicas e sociais dos industriais brasileiros não estão na burguesia agráriomercantil Não existe essa unidade entre as burguesias brasileiras Senão pergunta ele como entender o pacto populista BresserPereira 1979 e 1989 Gorender vem outra vez discordar de Caio Prado se a burguesia brasileira não é nacionalista ela é brasileira isto é mesmo associada ao imperialismo possui interesses particulares exige reserva de mercado Há uma burguesia brasileira que possui interesses próprios joga o seu próprio jogo querendo melhorar a sua posição no mercado capitalista global Gorender 1989 F H Cardoso vem em socorro de Caio Prado Fazendo a história da burguesia paulista concluiu que não se pode falar da burguesia brasileira como uma classe homogênea e combativa com um projeto claro e com líderes eficientes A burguesia brasileira é uma classe recentemente constituída no Brasil tem uma precária consciência de classe e defende os seus interesses confusamente É uma classe heterogênea de origens heterogêneas frágil e desintegrada na ação Ela se acomoda à dominação tradicional ao clientelismo e aos privilégios Há uma corrente nacionalista da burguesia que exige o fechamento do mercado interno tem uma consciência empresarial menos complexa e desenvolvida e poucos capitais Mas sua tendência não é se opor ao imperialismo e às oligarquias rurais mas associarse ao primeiro e conviver com as segundas Cada vez mais conclui F H Cardoso as diferenças ideológicas entre industriais se apagam em nome da condição comum de capitalistas Cardoso 1964 Portanto retornando a Caio Prado não se pode interpretar a realidade brasileira e traçar o futuro a partir de situações incomparáveis com as nossas É preciso partir do contexto brasileiro específico para a sua interpretação Este contexto deve ser considerado dialeticamente não como eventos exteriores e estáticos mas como uma transição dinâmica um processo que leva do passado ao futuro Abordada assim a realidade brasileira atual revelaria uma transição de um passado colonial a um futuro já próximo de uma nação estruturada com uma organização econômica voltada para o interior moderna Este fato não deve ser tratado como uma utopia mas percebido e construído praticamente Eis o sentido da história brasileira que uma teoria especialmente elaborada para abordála em sua especificidade revela da heterogeneidade inicial da dispersão original a uma homogeneidade nacional estruturada Economicamente o mercado interno deverá superar o externo o que estimulará a diversificação da produção Este é o caminho da sociedade brasileira da sociedade colonial ao Brasilnação Realizar esta transição radicalmente é realizar a verdadeira revolução brasileira que aliás já está em marcha há muito tempo Esta revolução possui quatro etapas primeira a independência política que começou em 1808 e se consolidou em 1822 quando se começou a estruturar o Estado brasileiro o país foi articulado em um todo único individualizouse em um território unificado esse foi o primeiro passo da transição da colônia para nação estruturada segunda a supressão do tráfico 1850 e a abolição da escravatura 1888 que integraram a grande massa da população trabalhadora à sociedade brasileira terceira a partir de 1870 a imigração que trouxe qualidade técnica ao trabalho aumentou a produtividade melhorou a qualidade cultural do trabalhador quarta a República a constituição de um Estado e de um direito burgueses Esses acontecimentos revelam o sentido profundo da evolução histórica brasileira do capitalismo colonial caracterizado pela produção agrícola exportadora para o mercado externo pelo escravismo pelo baixo nível de vida e pela ausência de industrialização e mercado interno ao capitalismo nacional caracterizado pelo atendimento das necessidades internas De colônia a nação estruturada é nessa evolução que se incluem para Caio Prado como elos de uma corrente os fatos do presente A superação da economia colonial por uma outra voltada para a satisfação interna exige o desenvolvimento das forças produtivas O Brasil já é predominantemente capitalista mas não possui alta tecnologia Ele possui somente as classes capitalistas burguesia e proletariado Apesar disso a economia brasileira continua colonial O capitalismo brasileiro é ainda colonial ele precisa se tornar nacional Não será pelo apuramento capitalista das relações précapitalistas que se obterá o fim da relação colonial É no interior do capitalismo e de suas contradições que se poderá chegar à superação do colonialismo A luta por melhor renda e por participação políticosocial conduz à integração nacional da sociedade brasileira A luta sindical particularmente a dos trabalhadores rurais é essencial para o Brasil nacional independente Não se pode construir uma nação moderna sobre uma classe de trabalhadores em condições de vida miseráveis Os trabalhadores rurais não lutam pela terra eles querem melhores salários e melhores condições de vida O Brasil não deverá ser um país de camponeses com baixa produtividade A reforma agrária seria neste sentido um retrocesso O Brasil deverá continuar com a grande exploração sem seus vícios baixos padrões tecnológicos condições miseráveis de vida dos trabalhadores Tal conquista os transformará em trabalhadores especializados altamente produtivos consumidores e integrados social e politicamente A produção se voltará para o mercado interno Haverá no Brasil um sistema econômico integrado nacionalmente onde será quebrado o círculo vicioso da dependência Serão superados os ciclos O Brasil terá então superado o seu passado colonial Sem isto a força de trabalho disponível não obterá empregos não produzirá e não será consumidora A produção precisa integrarse com o consumo A produção industrial brasileira se dirige a minorias consumidoras de produtos de luxo Entre edifícios de luxo e clubes suntuosos circulam miseráveis O desenvolvimento industrial nacional integrará a estes como produtores e consumidores Para produzir este Brasilnação a iniciativa privada que visa ao lucro não basta A produção deverá ser controlada orientada e até regida pelo Estado A iniciativa privada é essencial a este projeto mas não poderá atuar livremente pois movida por interesses egoístas Ela tenderia ao lucro pela produção de produtos de luxo para a minoria O Estado deverá planejar e promover a produção de produtos básicos e serviços básicos dirigidos à massa da população O que se propõe é um programa de reformas reais sem que se tenha um rótulo teórico que os defina O que se visa objetivamente é integrar a massa trabalhadora à sociedade pela distribuição da renda efetiva e não estatística Tratase de elevar o padrão de vida da população Assim o Brasil se integrará e se estruturará e se libertará de sua herança colonial E quanto ao socialismo Ele seria inviável nos anos 1960 no Brasil por faltarem as condições mínimas de estruturação social e será ainda precário o desenvolvimento das forças produtivas As dificuldades antepostas à construção da nação brasileira integrada e independente ainda no interior do capitalismo são várias Destacamse duas mais importantes que desaceleram este processo A primeira é a dominação pelo imperialismo da comercialização dos produtos primários brasileiros Ao mesmo tempo o mercado interno fica à mercê do imperialismo pois a especialização da produção brasileira em produtos de exportação impede a diversificação da produção Se há investimento interno o imperialismo vem também para o interior e produz aqui o que antes mandava do exterior A industrialização brasileira não tem sido eficaz na produção da independência e autonomia nacional Ela ao mesmo tempo mudou muito a realidade brasileira e reforçou e renovou o sistema colonial Os trustes instalados no interior e controlando a comercialização dos produtos primários determinam os ritmos do desenvolvimento A industrialização diversificou a produção e houve um crescimento importante do mercado interno o que levou a uma certa integração nacional Mas é um progresso limitado em suas perspectivas pois continua engendrado pela dependência colonial É da superação dessa contradição que depende o processo que levará o país à libertação da dependência Só a partir desta independência é que se poderá fazer uma sociedade nacional não marginal não periférica e independente A luta contra o imperialismo não poderá ser feita no entanto com imprecações mas pela análise precisa e rigorosa do sistema capitalista internacional quando poderemos compreender a nossa posição nele Nos anos 1960 enquadrado no sistema capitalista o avanço do Brasil quanto à tecnologia e ao aumento da produtividade se achava limitado por interesses estrangeiros Entretanto é preciso reconhecer que quando se tem um passado colonial as condições de um desenvolvimento autônomo são difíceis A indústria substitutiva de importações dominada pelo capital estrangeiro não abre muitas perspectivas É um processo de industrialização limitado O mercado interno é restrito Os capitais industriais são restritos e emprestados Sua tecnologia é sempre inferior Para crescer de fato a indústria brasileira terá de produzir para o mercado mundial e não só para o mercado interno A substituição de importações é dominada pelo imperialismo e pelo Estado As empresas multinacionais produzem no interior para estarem mais próximas de seus consumidores O que o imperialismo pode oferecer ao Brasil é a perpetuação do seu estatuto colonial Não se trata de uma simples superposição de uma ligação exterior das duas esferas internacional e nacional Tratase da interpenetração de uma na outra de sua integração em um todo A luta contra o imperialismo exige reformas intervenção do Estado na economia afastando a intervenção direta do imperialismo O comércio e as contas externas devem ser controlados limitadas as remessas de lucros das empresas estrangeiras no Brasil A vitória na luta antiimperialista levará o Brasil a sair da condição colonial para a nacional Esta luta se fará por meio de reformas da economia brasileira Fazendoas o Brasil se tornará uma liderança mundial contra o sistema Ao Brasil não interessa a interdependência das nações que o coloca em uma posição de dependência Ao Brasil interessa o desenvolvimento mas com soberania Mantega discorda de Caio Prado nos anos 1960 o Brasil já realizava uma acumulação industrial capitalista Embora dependente isto não o impediu de desenvolver uma acumulação capitalista A associação com o imperialismo no investimento interno favorecerá as classes interessadas no desenvolvimento interno A indústria brasileira é capaz de se autoimpulsionar e com o apoio do imperialismo O capitalismo brasileiro portanto não tende à estagnação ou ao subcapitalismo Mantega 1984 BresserPereira também não está de acordo com a análise de Caio Prado das relações entre desenvolvimento e associação imperialista Em sua análise afirma BresserPereira ele se recusou a reconhecer a emergência do capital industrial no Brasil nos anos 1930 e reafirmou a continuidade do capitalismo mercantil ainda nos anos 1960 BresserPereira 1979 Quanto a F H Cardoso ele forçou um tanto sua leitura de Caio Prado para adequálo à sua própria interpretação do Brasil quando afirma que ele percebia que era possível haver desenvolvimento apesar do imperialismo Cardoso 1993 Caio Prado não percebia desenvolvimento ou não o considerava desejável ao custo da soberania que F H Cardoso considera secundária A segunda dificuldade a vencer é a estrutura agrária brasileira que além de produzir para atender ao mercado externo não abastecia de alimentos as cidades tornando caros os salários urbanos e não pagando salários aos trabalhadores rurais que não podem consumir os produtos industriais nacionais Seria preciso levar ao campo o capitalismo tecnologia que torne os latifúndios mais produtivos e melhores salários e condições de vida para o trabalhador rural que o tornariam consumidor de produtos industriais Da capitalização do campo depende o fortalecimento do mercado interno As relações de produção no campo já eram capitalistas sobretudo após a abolição As relações escravistas sobreviveram e conviveram com o trabalho livre mas longe de ser um entrave ao desenvolvimento capitalista eram funcionais favoráveis à acumulação capitalista O desenvolvimento capitalista das relações de produção baixou a qualidade de vida dos trabalhadores Antes eles produziam seus alimentos agora precisavam comprálos com os seus parcos salários O assalariado puro vivia pior do que o colono A parceria é uma relação capitalista impura mas mais rentável do que o salário em dinheiro Portanto a revolução brasileira não implantaria relações capitalistas e eliminaria restos feudais pois elas já vigoravam A reforma agrária não seria necessária para o desenvolvimento do capitalismo no campo Mantega discorda ainda de Caio Prado quando este localiza o palco da revolução brasileira no campo e desvaloriza o desenvolvimento industrialurbano dos anos 1960 O epicentro das transformações brasileiras já eram as grandes cidades onde as massas urbanas agiam E na sua análise da luta revolucionária no campo Caio Prado se equivocou ao afirmar que os trabalhadores rurais reivindicavam melhores salários e condições de trabalho quando na verdade eles reivindicavam mesmo era a reforma agrária a propriedade da terra Para ele a luta pela terra era secundária Qual o sujeito social que a reivindicava Não havia camponeses Além disso se fosse feita a reforma agrária seria um retrocesso pois o trabalhador rural brasileiro não tem condições objetivas os recursos materiais nem subjetivas uma tradição cultural de iniciativa empresarial para a sua exploração eficiente Mantega afirma que a luta pela terra foi mais forte do que Caio supôs Além disso e Mantega repõe a argumentação do PCB parceria cambão e barracão não são relações de produção capitalistas pois o parceiro não é uma força de trabalho comprada no mercado Ele arrenda uma terra e pagará com uma parte do produto A dinâmica da relação proprietários de terrasparceiros não é capitalista Mantega 1984 Para Gorender a parceria seria uma forma camponesa dependente e não uma forma de assalariamento E o campesinato no Brasil não é residual como afirma Caio Prado As grandes explorações capitalistas não eliminam a economia camponesa que é uma faixa fundamental da nossa produção agrícola No Sul a grande propriedade planta soja os camponeses plantam o que comemos Gorender 1989 Garcia considera que Caio Prado esquematiza quando reduz todas as múltiplas e complexas formas de relações sociais de produção existentes no campo a um salariato mais ou menos encoberto Garcia 1989 Bresser Pereira vem em apoio a Caio Prado ele pôs fim à interpretação de um Brasil feudal Seu argumento de que a parceria o cambão e o barracão não são feudais mas expressões do capitalismo mercantil é definitivo BresserPereira 1989 Como se vê a discussão teórica não resolve por si só as aporias Ela exige que se façam opções e as fundamenta e legitima Teses Feudal e Capitalista e A Revolução Brasileira O que significa a recusa da tese feudal e a sua substituição pela tese capitalista para o Brasil desde as suas origens Os defensores da tese feudal afirmam que a tese capitalista provoca um recuo uma concessão ao passado brasileiro É uma tese atrasada reacionária que privilegia a continuidade do Brasil colonial em prejuízo da mudança socialista Caio Prado expressaria um ponto de vista reacionário e atrasado e representaria um recuo uma regressão na consciência revolucionária socialista Suas teses protegem a grande propriedade latifundiária da redistribuição Não seria pelo fato de sua família e ele próprio serem grandes proprietários de terras Para A P Guimarães a tese feudal é revolucionária pois se o Brasil fosse capitalista desde a origem nenhuma reforma profunda da estrutura agrária brasileira seria necessária Se o Brasil fosse capitalista a estratégia política que decorreria dessa tese seria meramente evolucionista a agricultura teria necessidade de mecanização e crédito e não de reformas fundamentais É uma tese reacionária portanto A tese feudal em si teria consequências revolucionárias o que ela propõe é uma ruptura com um modo de produção e a implantação de um novo modo de produção ela propõe a revolução burguesa como uma aceleração do tempo histórico brasileiro a eliminação do passado sem concessões aos seus senhores feudais e ao imperialismo12 Moraes repôs esta argumentação de A P Guimarães mais recentemente e com uma linguagem mais precisa Para ele o conceito de revolução de Caio Prado se assenta sobre a ideia de transformação opondose ao emprego da força e da violência para a tomada do poder Essa concepção transformista ou processual da revolução brasileira privilegia a continuidade em detrimento da ruptura histórica Caio Prado desconsidera as relações de produção não capitalistas que predominaram no Brasil durante quatro séculos para se ater ao sistema capitalista internacional no qual se insere a economia brasileira A especificidade das relações de produção da sociedade brasileira desapareceu em face da perpetuidade do capitalismo desde o início Sua análise não se refere às condições internas da vida social brasileira apagandoas no interior das condições externas e internacionais Daí a compreensão da evolução social do Brasil em termos de continuidade histórica as mudanças são tratadas como mera superfície da realidade originária de uma economia colonial articulada em torno do latifúndio exportador O marxismo de Caio Prado revelase claramente economicista Sua análise do passado colonial afasta do horizonte brasileiro a revolução socialista que se torna longínqua e utópica Os operários deverão centrar a sua luta em objetivos reivindicatórios e sindicais A luta política é reduzida à luta sindical Diante de uma análise marxista com consequências tão conservadoras Moraes não compreende como ela pôde obter tanta repercussão Caio Prado foi mais usado do que entendido ele conclui Moraes 1991 A P Guimarães e Moraes ironicamente definem a visão do Brasil de Caio Prado da mesma maneira como este pejorativamente definira a do PCB evolutiva Ele é que é evolucionista transformista processualista e não o PCB afirmam Retrospectivamente é muito fácil inferir da derrota de um movimento a falsidade de seus fundamentos A compreensão histórica não se alimenta dessas certezas fáceis protesta Moraes Importalhe reconstruir o contexto em que determinado projeto político forneceu a resposta adequada a uma situação intolerável Moraes 199186 Coutinho associase a Guimarães e Moraes nesta avaliação da visão do processo histórico brasileiro de Caio Prado Ele usará o conceito gramsciano de revolução passiva e o leninista de via prussiana para definila A análise da revolução brasileira de Caio Prado revela que ela não se deu segundo o modelo clássico francês e norteamericano mas foi uma transição modernizadora e conservadora uma modernização conservadora A modernização da estrutura agrária brasileira não teria levado à supressão da propriedade précapitalista que se perpetuou e se adaptou ao modo de produção capitalista A via prussiana caracterizada por essa articulação de progresso adaptação ao capitalismo e conservação permanência da velha ordem Para Caio Prado diferentemente das teses feudal e dualista o lado atrasado do Brasil não seria um empecilho à sua modernização Coutinho 1990 Entretanto essa modernização conservadora feita pelo alto pela conciliação das elites dominantes entre si e com o imperialismo excluindo e reprimindo o povo e cooptando os seus líderes se fez contra a soberania nacional Caio Prado defende a modernização o desenvolvimento capitalista com soberania nacional A soberania é prioritária em relação à modernização Entretanto apesar de ser nacionalista Caio Prado não propôs um projeto de mudança revolucionária Ele captou bem o lado conservador da nossa transição e subestimou os elementos de modernização Deu mais ênfase à reprodução do velho que houve nas mudanças brasileiras do que à mudança Analisa a Independência a Abolição a República a industrialização para concluir que o Brasil ainda era colonial Quase nem percebeu a industrialização e quando a percebeu foi para subestimála tratandoa como uma aparência que não alterava a essência colonial Quando reconheceu fatos novos ele os considerou alterações meramente quantitativas que não anulavam a qualidade da dependência manifestações que mantinham o passado tornandoo até mais perverso Coutinho 1990 Coutinho é severo em sua análise da contribuição de Caio Prado ele tem uma visão atrasada do Brasil pois enfatiza o velho o passado colonial ainda no século XX quando o Brasil conheceu tanta novidade e já até construía uma ideia revolucionária Além disso é autoritário na sua proposta de aceleração da modernização e da implantação do capitalismo nacional esta seria feita por um Estado autoritário e não por instituições e meios democráticos E ao limitar a revolução brasileira à modernização das relações trabalhistas e à libertação nacional do imperialismo ele esqueceu a sua dimensão socialista e democrática Coutinho 1990 Insinuase até que ele teria recaído em um certo positivismo político propõe uma ditadura popular republicana que governasse acima dos interesses de classe e em defesa do proletariado Comte da nação da integridade territorial da educação da saúde do lazer uma ditadura social comtiana no melhor estilo gaúcho Bosi 1992 Para Garcia Caio Prado oferece com A revolução brasileira um texto de transição no pensamento da esquerda brasileira ele realizou uma crítica demolidora da crença do marxismo de caráter evolucionista mas não foi capaz de romper com o paradigma economicista que deduzia a revolução das estruturas da sociedade transformandoa em um processo sem sujeito Anunciava o marxismo estruturalista que viria a vicejar nos anos seguintes As classes em luta se submetem a uma misteriosa necessidade histórica determinada pela estrutura econômica Ele parece não ter compreendido a autonomia relativa do político Garcia 1989 Caio Prado e os Limites Estruturais de A Revolução Brasileira A nossa análise da visão do Brasil de Caio Prado se diferencia da dos autores mencionados anteriormente sem no entanto invalidálas ou retirarlhes a legitimidade São válidas legítimas em seu ponto de vista argutas e bem elaboradas E são ainda legítimas na medida em que limitam o alcance e definem melhor o ponto de vista de Caio Prado São uma tréplica dos intelectuais ou simpatizantes do PCB a A revolução brasileira tréplica até mais lúcida do que algumas outras mais ressentidas feitas quando da sua publicação Nossa análise da contribuição de Caio Prado vai em outra direção mais teórica e histórica Ele teria percebido os limites históricos e teóricos à revolução brasileira e abandonado provisoriamente o sonho da emancipação e autonomia nacional em termos revolucionários A reconstrução crítica desse sonho que ele realizou o trouxe à realidade brasileira que não é de mudanças vertiginosas mas de uma continuidade eterna quase inquebrável Propor a ruptura revolucionária em uma realidade social na qual o presente mantém uma aliança sólida com o passado é propor o inviável Em sua análise o presente se acha impregnado de vários passados O Brasil moderno preservou marcas do passado recente e remoto Toda a complexa história do Brasil colonial está contida no Brasil contemporâneo O tempo histórico brasileiro tem um ritmo espacial uma repetição monótona uma continuidade inquebrável um presente que sempre revigora o passado Ianni 1989 e 1994 O Brasil moderno ele o vê emergir no final do século XVIII e início do XIX entre 1808 e 1822 Então os três séculos da colonização se encerram e se inicia a construção do novo Brasil o Brasil contemporâneo o Brasilnação No início do século XIX o regime colonial realizara o que tinha de realizar a obra da metrópole estava terminada A obra portuguesa o mundo que ele criou nos trópicos terminava ali O Brasil então começou a se renovar a ser brasileiro Até o século XVIII durante o nosso passado colonial delimitouse e povoouse um território organizouse nele a vida humana diferente da que havia antes aqui e da dos portugueses que chegaram uma população nova original com uma estrutura material particular uma mentalidade coletiva singular A partir do século XIX o presente brasileiro começou a se configurar mas não conseguiu se delinear plena e rapidamente Por isso ele afirma conhecer o Brasil dos anos 195060 exige um retorno ao seu passado ao início do século XIX Ir ao passado é obter informações indispensáveis para a interpretação e compreensão do que se vive hoje Será preciso aliás ir não somente ao início do Brasil contemporâneo ao século XIX porém mais além ao passado colonial ao Brasil português para se obter um conhecimento profundo do Brasil atual O presente nacional XIXXX não pode ser conhecido e feito sem um retorno ao Brasil colonial préXIX Aquele passado colonial ainda é presente a metrópole ainda está aqui Não somos ainda totalmente novos sentimos ainda a presença colonial secular No campo as relações de classes são ainda de tipo colonial Os problemas do Brasil de hoje foram formulados há mais de 150 anos São velhos problemas sempre presentes e nunca definitivamente resolvidos Mas se a construção nacional se iniciou no século XIX o seu conhecimento pleno exige um mergulho ao mais profundo e atual Brasil ao Brasil colonial Portanto a percepção da continuidade na história brasileira não levou Caio Prado a uma visão reacionária e atrasada do Brasil Levouo pelo contrário ao conhecimento dessa realidade e dos limites que ela impõe às iniciativas idealistas voluntaristas de transformála Não se pode intervir na realidade sem conhecêla sobretudo no que ela tem de mais resistente de passado cristalizado e vivo Sua análise representou um avanço teórico um conhecimento mais aprofundado do mundo histórico brasileiro que é ele mesmo atrasado e reacionário Não se vai de um passado colonial à emancipação e autonomia nacional do dia para noite ou por uma decisão arbitrária de intervir a qualquer custo a golpes de ficção Pelo menos não no mundo do ser da realidade talvez no mundo do dever ser do sonho Caio Prado se manteve moderadamente teleológico e etapista As etapas brasileiras não são as mesmas de outras realidades mas há etapas históricas a serem superadas O fim da história é o socialismo mas este fim não pode se impor ao presente autoritariamente desconsiderando a sua relação com o passado O presente brasileiro tende muito mais ao passado do que ao futuro imporlhe o futuro seria desconhecer esta realidade e abordála equivocada e perigosamente O presente não pode ser violentamente sacrificado em nome do futuro A luta pelo socialismo final exige paciência e adequação aos ritmos lentos da história brasileira será uma luta não sectária não ansiosa não neurótica capaz de unir outras correntes não socialistas em torno de objetivos não imediata e linearmente socialistas As vitórias devem ser construídas concretamente com tolerância e concessões com negociações e diálogo sem se submeter a esquemas abstratos preestabelecidos Não é porque uma mudança é racional que ela deva ser imposta ao presente é irracional não considerar os ritmos específicos do presentepassado O pensamento dialético é rico e serve à democracia exatamente porque se abre à história às suas forças divergentes e emergentes renovase em seu contato com a realidade e não lhe impõe esquemas apriorísticos ditos científicos e racionais O marxismo não impõe etapas necessárias de desenvolvimento à humanidade Não se pode enquadrar a revolução brasileira em esquemas adequados a outras realidades É preciso conhecer a realidade brasileira e reconhecer a dialética de continuidade e mudança em sua especificidade É necessário distinguir as realidades históricas seus desenvolvimentos particulares e não misturálos em uma falsa teoria que fale de todas e de nenhuma A utopia que sustenta a análise do Brasil feita por Caio Prado é a da solidariedade socialista a do desenvolvimento de todos os povos em sua singularidade com a sua soberania desenvolvendose e ajudandose mutuamente sem se explorarem reciprocamente Desenvolvimento modernização e progresso com emancipação e autonomia nacional eis a sua utopia Que só poderá ser realizada com o conhecimento histórico de cada realidade particular que exige um uso particular da teoria marxista uma adequação dos seus conceitos às histórias singulares O desenvolvimento autônomo não pode ser implantado radicalmente em um passadopresente colonial Ele será o resultado de um processo mais longo e lento tortuoso no qual o proletariado urbano e o campesinato têm um papel fundamental se se mantiverem autônomos em sua ação revolucionária ANOS 196070 FLORESTAN FERNANDES Os limites reais históricos à emancipação e à autonomia nacionais a dependência sempre renovada e revigorada Florestan Fernandes Cientista Social e Cidadão Florestan Fernandes nasceu em São Paulo em 1920 e faleceu em circunstâncias dramáticas por erro médico em 1995 Não era filho nem da alta nem da pequena burguesia Órfão trabalhou desde a infância para manter a si mesmo e à mãe Seus estudos básicos foram muito prejudicados por essa razão não completou o primário e teve de fazer o curso de madureza porque não pôde cursar o secundário Apesar dessa vida pessoal e familiar difícil e da formação básica precária ou talvez por causa disso mesmo chegou à universidade aos 21 anos De 1940 a 1951 fez a licenciatura e o bacharelado em ciências sociais na USP e o mestrado e o doutorado em sociologia e antropologia na Escola Livre de Sociologia e Política Foram 11 anos regulares e concentrados de formação superior assentados sobre uma irregular e tumultuada formação básica Em 1953 tornouse livredocente e em 1964 professor catedrático da Universidade de São Paulo Sua dissertação de mestrado e a sua tese de doutorado trataram dos tupinambás da sua ordem social e das suas guerras também fez reflexões teóricas acerca das ciências sociais e pesquisas sobre a integração do negro na sociedade de classes Em 1969 foi aposentado compulsoriamente pela ditadura militar revelandose um dos intelectuais mais lúcidos e críticos do regime Foi professor visitante nos Estados Unidos 196566 e no Canadá 196972 Como militante político foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores e se elegeu deputado federal Ianni 1978 e 1989 F Fernandes foi um dos primeiros frutos das missões estrangeiras que vieram fundar a Universidade de São Paulo nos anos 1930 Mas se se considera essencial a formação básica para o desenvolvimento intelectual pleno de uma pessoa mesmo talentosa sua formação foi outro milagre Teve toda a sua formação feita no Brasil e era contrário à saída de intelectuais brasileiros para estudar no exterior Para ele é aqui que os problemas a serem resolvidos estão e o cientista social brasileiro deveria primeiro amadurecer aqui para só depois se aperfeiçoar no exterior Por um lado talvez ele tenha alguma razão Alguns intelectuais brasileiros que retornam do exterior onde foram estudar com bolsas do governo brasileiro voltam com dificuldades de readaptação Geralmente os mais exagerados esquecem parcialmente a língua portuguesa não suportam mais o forte calor e a claridade excessiva evitam a dieta brasileira não leem os autores brasileiros não tratam de temas brasileiros imaginandose talvez agora apenas parcialmente brasileiros Passam a lançar sobre o Brasil um olhar semelhante ao das suas elites Eis uma mudança pessoal que revela uma mudança social e que mereceria talvez uma reflexão sociológica que provavelmente Florestan fez Mas por outro lado é preciso lembrar e considerar que ele talvez pense assim porque não precisou sair para conhecer os grandes mestres estrangeiros já que as missões estrangeiras vieram para a USP Suas obras são conhecidas na América Latina na Europa e nos Estados Unidos Sua influência se estendeu por todo o meio intelectual brasileiro e latinoamericano Formouse nos anos 1950 e sua afirmação intelectual e política se daria nos anos 1960 e 1970 Nessas duas décadas ele se tornou o principal esteio de uma das mais importantes escolas de explicação histórico sociológica da América Latina e um dos mais importantes líderes políticointelectuais de esquerda Estudou as relações de raça e classe negros índios e brancos e sua inserção na sociedade de classes e pesquisou a especificidade do modo de produção brasileiro Embora tenha sido inicialmente funcionalista foi um autor marxista combativo e combatido Seus temas são a escravidão a abolição educação e sociedade as culturas brasileiras as revoluções burguesa e socialista os regimes autoritários as relações de raça e classe Seu pensamento é de fato dialético aberto e em diálogo com a realidade Nele pensamento e história se produzem reciprocamente Ianni 1978 e 1989 Cohn 1986 Seu texto não é tão fácil e transparente pois mais analítico e conceitual Isso provavelmente dificultou uma repercussão efetiva das suas reflexões teóricas e sobre os temas históricosociais brasileiros F Fernandes o Marxismo e o Redescobrimento do Brasil Seu ponto de vista sobre o Brasil é o do redescobrimento nas linhas de entre outros Capistrano de Abreu S B de Holanda N W Sodré e Caio Prado Jr Em suas obras sobre o Brasil aparecem os movimentos sociais a ação de índios e negros imigrantes escravos trabalhadores rurais e urbanos Afastase ainda mais da história políticoadministrativa e biográfica tradicional Segundo Ianni ele percebe a sociedade como uma rede de relações sociais uma estrutura social com os seus processos particulares com suas interações e resistências com suas tensões e contradições Todo fato social enquadrase numa relação social e são as relações sociais que engendram a especificidade do social As partes e o todo social se constituem e se modificam reciprocamente Seu pensamento é eclético é marxista basicamente mas com uma sólida formação sociológica clássica Além de ter lido Marx diretamente e não através de cartilhas da URSS não conhecia somente o marxismo Ele via as ciências sociais como um grande debate sobre a sociedade no qual as posições não podiam se fixar e se fechar à interlocução com até mesmo as mais conservadoras teorias sociais Ele conhecia bem Spencer Comte Durkheim e Merton absorveu de forma especial as influências de Weber e Mannheim que o tornaram um e ainda marxista mais sofisticado teoricamente Ianni 1978 e 1989 Cohn 1986 Para O Ianni que estamos seguindo até aqui um dos seus alunos que mais se destacaram e que se tornou um dos seus biógrafos e analistas mais argutos seu pensamento sintetiza cinco fontes que se revelam de forma diferenciada em sua obra primeira a sociologia clássica e moderna franceses ingleses alemães e americanos ele afirmou que não precisava ir ao exterior para conhecer o que se produzia por lá bastavalhe ler as publicações que vinham de lá Não seria menosprezar uma boa conversa e um bom seminário segunda o pensamento marxista em geral e em particular os culturalistas Gramsci e Mannheim terceira a corrente mais crítica do pensamento brasileiro a do redescobrimento do Brasil Capistrano de Abreu Manoel Bomfim E da Cunha Semana de Arte Moderna PCB Caio Prado Jr que levam em conta as lutas populares as condições de vida e trabalho do povo brasileiro que Ianni define bem como uma coletividade de cidadãos e o modo especificamente brasileiro de ser quarta a história brasileira e mundial dos anos 194070 suas transformações mais rápidas a urbanização a industrialização os partidos políticos a ditadura a revolução cubana a descolonização a II Guerra Mundial a Guerra Fria quinta a militância política a reflexão teórica sobre as relações entre a sociologia a política e a ética o pensamento latinoamericano Ianni caracteriza o seu pensamento como um ecletismo temperado controlado uma busca de unificação na reflexão dos diversos tipos de pensamento clássicos e revolucionários uma síntese de pensamentos distintos Diríamos que seu pensamento seria talvez um pensamento mais do que eclético como afirma Ianni sintético ele reúne a diferença articulandoa e não meramente superpondoa Para Ianni ainda sua sociologia inaugurou um novo estilo de pensar a realidade social ele estabeleceu um horizonte novo para a reflexão social e a sociedade brasileiras Ianni 1978 e 1989 F Fernandes defendia uma sociologia militante a transformação da realidade por um pensamento reciprocamente transformado por ela O sociólogo é cientista e cidadão Entretanto o pensamento social não se submete de maneira direta à ação social A relação entre ação e pensamento é dialética como propõe a práxis social marxista isto é uma vinculação sem dominação de uma esfera sobre a outra A intervenção na realidade deve ser teórica com dados e reflexões conceituais sobre uma realidade particular Seu pensamento é da mudança social é um pensamento tenso que articula as paixões e aspirações do cidadão com a busca de dados empíricos e verdade conceitual do cientista Ele quer controlar a intervenção na realidade quer realizar uma ação racional uma paixão que se arma de dados e os controla Ele quer reunir na medida do possível intervenção política movida por interesses de classe e conhecimento social movido pela busca da objetividade e verdade A intervenção racional promoverá a mudança com meios democráticos A realidade complexa do Brasil exige um pensamento mais ágil flexível aberto e portanto mais sintético Sem dogmas e esquemas prefixados Ianni 1978 1989 e 1994 Nisto ele vai mais longe do que Caio Prado Jr Vai mais longe e melhor sua formação teórica apesar do início precário é muito mais sólida Mannheim é o seu modelo Assim ele pretende defender a relevância política de uma análise especificamente históricosociológica É a análise consistente da realidade social particular que tem consequências políticas e não as pseudoanálises que reforçam teses dogmáticas e desconhecem a realidade em sua especificidade e não podem ser politicamente eficazes A ação política só é controlável e oferece menores riscos se apoiada em uma análise histórico sociológica realmente adequada à realidade na qual se quer intervir Se se quer mudar o Brasil em direção a uma sociedade socialista e democrática o primeiro passo e indispensável é conhecêlo adequadamente As ideias sobre o Brasil precisam se localizar no Brasil O que ele pretendeu foi um entrecruzamento sem dominação de ciência e ideologia verdade e interesse cidadão e cientista social Esse esforço ele o ensinará à sua equipe cuja marca será também a busca de uma maneira de pensar os problemas do Brasil com rigor conceitual e eficácia prática Cohn considera que a chave do seu pensamento seria definida por dois conceitos principais padrões e dilemas Padrões ele busca caracterizar formas de organização e regularidades dinâmicas reconstruíveis discerníveis identificáveis e apreendidas em seu modo próprio de articulação dilemas as condições geradas pela dinâmica desses padrões que opõem obstáculos à realização das possibilidades postas por eles O padrão define uma maneira de organização da sociedade os mecanismos pelos quais se atualiza a sociedade no momento os dilemas definem as condições geradas pela dinâmica interna dessa forma de organização e que conduzem a obstáculos e opções Em sua análise concreta do Brasil ele se preocupou quando tratou de padrões e dilemas com os atores sociais específicos em suas oportunidades estreitas e históricas Procurou encontrar em sua análise os sujeitos sociais capazes de fazer as opções que as contradições da estrutura social oferecem em forma de dilemas Cohn 1986 Os padrões são as estruturas sociais que limitam a ação dos sujeitos sociais que os impedem de implantar na realidade a sua vontade e os seus sonhos A realidade social não é o que se deseja que ela devesse ser e não pode ser mudada apenas com uma vontade moral exige conhecimento pesquisa investigação A história faz os homens que estão encerrados em relações sociais em lugares e papéis sociais dos quais não podem se retirar nem ignorar caprichosamente Entretanto a história oferece opções de ações aos sujeitos que estão mergulhados nela Os dilemas constituem as decisões produzidas por sujeitos históricos específicos em certas possibilidades objetivas de ação que podem ou não ser aproveitadas A teoria social correta ofereceria aos sujeitos sociais as possibilidades objetivas das suas ações as opções que os levariam ao sucesso à eficácia histórica Errar na análise históricosocial significa equivocarse na ação Por isso a análise deve ser sóbria serena bem informada particularizada e objetiva Ela servirá ao cidadão em suas lutas e na visualização da sua liberdade F Fernandes não pretendia uma neutralidade científica tampouco pretendia a pregação ideológica O seu é um pensamento sólido atravessado pela paixão que ele controlava pela disciplina teórica Cohn 1986 Para Mota F Fernandes rompeu com a linhagem dos explicadores do Brasil intelectuais que criaram ideias especulativas sobre o Brasil servindo sobretudo à conservação ou sendo inúteis para a mudança Neste trabalho consideramos estes explicadores do Brasil de Mota intérpretes do Brasil cujas contribuições avaliamos muito positivamente Não porque serviram à continuidade ou pouco à mudança mas porque fizeram uma tentativa de interpretação e de reconstrução narrativa e conceitual da experiência brasileira Eles criaram ideias sobre o Brasil e acabaram inventandoo Quanto a F Fernandes e divergimos um pouco de Mota ele realizou uma pesquisa social inovadora interdisciplinar e teoricamente consistente mas sem romper totalmente com os grandes autores do passado sendo ele também um dos melhores intérpretes do Brasil atento à mudança mas sem desconsiderar a continuidade na realidade brasileira Em nossa avaliação o que há entre F Fernandes e os intérpretes da realidade brasileira que o precederam em suas várias tendências é um rico vivo e importante debate sobre o Brasil Ele se diferencia nesse debate pela linguagem menos ensaística menos literária e mais conceitual pela preocupação maior com a mudança social feita sob o controle da teoria A sua equipe descobriu os grandes temas e formulou os grandes problemas do Brasil capitalismo escravidão racismo subdesenvolvimento dependência Estado e sociedade formação do proletariado movimentos sociais urbanos e rurais a transição do modo de produção escravista à sociedade capitalista Mota 1978 Mas os resultados desses trabalhos chamamos ainda de interpretações pois nenhum é indiscutível e definitivo A linguagem dos membros da sua equipe é mais hermética mais complexa mais conceitual revelando o amadurecimento da ciência social no Brasil Para F Fernandes e sua equipe segundo Mota era preciso implementar a ciência social no Brasil Era preciso identificar e formular os grandes problemas brasileiros conhecer as suas causas e repercussões sociais bem como as razões dos sucessivos malogros em controlálos Formulando problemas ele desideologizava um pouco A ideologia reaparece na hipótesesolução Para ele continua Mota a mudança social não é um bem em si e pode trazer efeitos negativos irreparáveis se não se tiver consciência do que se pretende com ela Sua obra é contemporânea do seu tempo enfrentou os desafios do presente reinterpretou o passado estabeleceu novas relações entre ambos e reabriu o futuro com novas propostas Seu pensamento é radicalmente crítico e quer apreender de fato a realidade brasileira no que ela tem de mais peculiar Seu objetivo era interpretar e representar da forma mais adequada a temporalidade brasileira específica Mota 1978 Para Mota enfim sua obra é um vasto mural das lutas populares Os sujeitos do futuro brasileiro são o proletariado urbano e rural descendentes de escravas índias e brancos pobres que poderão destruir os restos do passado da colonização portuguesa Em F Fernandes o Brasil quer romper radicalmente com o mundo que o português e as elites brasileiras suas descendentes criaram O futuro deve ser cada vez menos português passado e cada vez mais brasileiro uma integração progressiva à sociedade da população até então excluída pela conquista e ampliação da cidadania A sua obra e a de seus continuadores dialogarão opondose à perspectiva dos tradicionalistas e saudosistas representantes das classes sociais ligadas ao passado agrárioescravistaexportador os descobridores e conquistadores do Brasil Estes idealizavam o passado então povoado de mitos e heróis suavizavam a escravidão e temiam o presentefuturo onde emergiam as classes populares com o seu projeto de cidadania ampliada a todos Sua obra e a da sua equipe também dialogarão opondose à perspectiva das classes médias urbanas e seus intelectuais de espírito tecnocrático uma interpretação elitista modernizadora do Brasil que se imporá desde 1964 Enfim segundo Mota F Fernandes junto com A Cândido representou a radicalização da mudança social a ruptura com o passado brasileiro Ele seria uma intelectual ponte entre a geração de 1945 F Azevedo Cruz Costa Buarque de Holanda Caio Prado Jr e outros e a geração de 1960 F H Cardoso R Schwarz O Ianni F Weffort etc Mota 1978 Nessa sua visão radical do Brasil a categoria que mais caracteriza a especificidade do processo histórico brasileiro é a da escravidão Ela deixou marcas muito fortes nas relações sociais e na cultura do país F Fernandes examina o tema pelo aspecto da resistência do escravo a sua rebeldia e a sua capacidade de transformar a sociedade brasileira Seu grande interlocutor nesse debate será G Freyre F Fernandes escreve contra a visão de Freyre da escravidão brasileira O tema da escravidão passada ligavase ao da revolução social que viesse abolir as desigualdades sociais no presentefuturo Discutir o tema da escravidão no passado significava lutar pela concretização da sua abolição no presentefuturo Foi esse o tema principal usado para o desmascaramento da dominação e da visão oficial da realidade brasileira que fala de harmonia racial e social e de suavidade das relações entre senhores e escravos Queiroz 1987 Graham 1979 A equipe de F Fernandes incluindo R Bastide um dos mestres e copesquisadores F H Cardoso O Ianni E V da Costa tomará Casagrande senzala como uma antirreferência A escravidão suave é um mito cruel a ser destruído Os escravos não eram cidadãos não podiam ter armas propriedades vestirse como quisessem sair à noite reunirse E se fugissem Moravam em quase prisões amontoados Trabalhavam sob coerção repressão e violência com longas jornadas Eram castigados cruelmente e marcados a ferro quente Suas condições de vida eram as piores Falar em suavidade e ternura nas relações senhorescravo é ir cinicamente contra os fatos Aliás mesmo que vivessem em melhores condições de vida continuariam escravos isto é não cidadãos Esta sua condição social tinha efeitos devastadores sobre a sua condição humana e psicológica Sentiamse como coisas e não como sujeitos sociais Não eram humanos não se representavam como tais Freyre no entanto sustentava que não tinha havido revolta escrava no Brasil e que eles tinham vivido bem adaptados à doçura e à ternura das elites lusobrasileiras Gorender 1990 Com F Fernandes à frente os pesquisadores marxistas dos anos 1960 se oporão agressivamente a essa tese de Freyre Para eles não há como absolver o escravismo brasileiro E os negros não eram adaptados mas rebeldes fugiam suicidavam se atacavam senhores F Fernandes e sua equipe enfatizarão a rebeldia escrava o que significava tocar no núcleo da sociedade brasileira passada e presente a tese da rebeldia abordava criticamente o passado escravista e o presente de cidadania restrita A escravidão dominou a vida política econômica social e mental do Brasil durante quatro séculos O negro é sinônimo de subalterno inferior dominado Branco é igual a senhor negro igual a escravo O negro não poderia ter ambições políticas Para Ianni a tese da democracia racial das relações suaves e ternas entre senhores e escravos foi uma invenção cruel uma aniquilação da presença negra e indígena primeiro pela violência pura depois pela absorção gradativa em um branqueamento cultural O brasileiro filho de escravas e indígenas mestiço e pobre herdaria essa cordialidade submissa e pacífica Portanto em F Fernandes e equipe o tema da escravidão toca nos nervos da população brasileira atual filha de escravas e de donos de escravos A rebeldia escrava está na base da luta de hoje pela cidadania plena Ianni 1978 e 1989 Gorender 1990 F Fernandes pertenceria à terceira fase da história do marxismo brasileiro a do materialismo dialético que predominou pós1964 na periodização de Mantega já mencionada Mantega 1991 Sua obra é posterior à discussão entre o PCBSodré e Caio Prado Jr Ele prossegue a orientação de Caio Prado mas com uma posição teórica muito mais consistente Integrandoo à sua análise superouo na análise do Brasil Sua obra é fundadora da sociologia crítica no Brasil fruto dos estudos de Marx sem intermediários soviéticos e chineses mas diretamente em O capital em 1958 Este grupo dO capital mito à parte procurou compreender teoricamente a dinâmica capitalista observandoa no contexto específico da realidade brasileira Houve uma rica e profunda reflexão sobre o método dialético materialista e leramse outros autores de teoria social e econômica exteriores ao marxismo Durkheim Weber Sombart Parsons Merton Keynes e outros expoentes europeus e americanos A análise marxista do Brasil que fizeram é contemporânea e posterior ao Golpe de 1964 F Fernandes e seu grupo continuaram a usar a arma da crítica em uma época de luta armada embora sua crítica teórica se assemelhasse a uma metralhadora giratória Moraes 1991 Mantega 1991 Ao tentar situálo entre as seis interpretações do Brasil que predominaram nos anos 192070 BresserPereira hesitou em localizálo ou na interpretação funcionalcapitalista ao lado de Caio Prado ou na interpretação da superexploração imperialista ao lado de Gunder Frank R Marini e Teotônio dos Santos ou na interpretação da nova dependência ao lado de F H Cardoso e E Falleto BresserPereira considera o seu pensamento de difícil classificação pois independente e complexo A sua radicalização em relação ao autoritarismo burguês intrínseco à burguesia dependente o aproximaria mais da segunda a que clamava socialismo ou fascismo Em relação à primeira cujo representante maior é Caio Prado F Fernandes se distingue ao superar o sonho da autonomia nacional no interior do sistema capitalista Para ele no contexto da dependência não há proposta nacionalista que possa amortecer a luta de classes e diminuir a exploração da burguesia dependente F Fernandes explicita os limites reais históricos à emancipação e à autonomia nacionais a dependência sempre renovada e revigorada Por isso ele pode ser considerado um dos criadores da teoria da nova dependência ao lado de F H Cardoso Assim como a deste sua análise históricoestrutural do Brasil revela os limites muito estreitos à conquista da emancipação e da autonomia nacionais Por essa razão radicalizou em sua análise da luta de classes e em defesa da sociedade socialista combateu a exploração burguesa que é internacional Para ele se a emancipação nacional um dia for possível ela não o será dentro do sistema capitalista A luta deverá se orientar então contra o sistema capitalista internacional e não por um irrealizável capitalismo nacional Diferentemente de Cardoso a constatação da dependência estrutural não o impediu de continuar propondo a tese socialista do desenvolvimento com autonomia nacional Bresser Pereira portanto e com razão tem dificuldades para classificálo dentro do pensamento das esquerdas brasileiras e latino americanas Ele caberia nas três tendências de esquerda dos anos 196070 e ao mesmo tempo as supera e não se encaixa nem se fixa Pereira 1979 Mota o situa em duas fases distintas na da era de ampliação reformista 195764 e na da era das revisões radicais 196469 ao lado de Caio Prado Jr Ianni D M Leite e outros Nessas fases as análises do Brasil ganham outras perspectivas e tentase corrigir os erros das interpretações dos anos 1950 o desenvolvimentismo o capitalismo nacional o dualismo F Fernandes mostrará por que a luta de classes não pode ser dissociada do quadro da dependência O modo de produção capitalista é internacional e o Brasil ocupa um lugar específico nessa estrutura maior Nenhum projeto nacionalista poderia retirar o Brasil desse lugar estrutural sem romper com a estrutura Para se conhecer melhor o Brasil será preciso estudar suas relações de dependência internacional e situálo no modo de produção capitalista que é o contexto da luta de classes e da luta entre empresas multinacionais A situação de dependência limita as possibilidades de um capitalismo nacional que aliás é uma expressão contraditória O capitalismo é em sua própria definição internacional evidência teórica que as análises marxistas anteriores não souberam levar em consideração À luta nacionalista F Fernandes opõe a luta de classes internacional que será preciso intensificar para acelerar a chegada do socialismo Mota 1978 A Obra A Revolução Burguesa no Brasil Para abordarmos seu pensamento e conhecêlo um pouco melhor mas sem nenhuma ingênua pretensão de apreendêlo plenamente pois tratase de um autor prolixo e complexo difícil escolhemos a sua A revolução burguesa no Brasil 1975 uma interpretação históricosociológica do Brasil uma obra de síntese marxista mas que se distingue das interpretações marxistas do Brasil dos anos 195060 Sua interpretação pois tratase também e ainda de uma interpretação que oferece uma compreensão do Brasil ao Brasil uma configuraçãorefiguração hermenêutica é desvinculada do PCB e de orientações internacionais É uma história sociológica do Brasil que se apoia mais em escritos teóricos e históricos marxistas do que em orientações políticas internacionais F Fernandes produz uma interpretação do Brasil teórica e politicamente independente em diálogo crítico com as outras interpretações Nessa obra revela uma nova visão do Brasil construída com base em pesquisas empíricas sobre a colonização a escravidão e a revolução burguesa O tema do seu estudo é o modelo específico da revolução burguesa no Brasil que foi diferente do modelo clássico A burguesia revolucionária clássica implantou um sistema liberaldemocrático Sua pergunta então é por que no Brasil a burguesia revolucionária optou por um estilo autoritário de democracia limitada Sua hipótese pela maneira peculiar pela qual o capitalismo se desenvolveu no Brasil Pois não há um padrão único de implantação e desenvolvimento capitalista Não se pode presumir que o modelo brasileiro de revolução burguesa isto é de implantação do capitalismo seja uma repetição dos modelos clássicos Seria um erro teórico grave com sérias consequências políticas O padrão do desenvolvimento capitalista do Brasil é específico e é essa especificidade com as suas consequências políticas que esse seu estudo quer estabelecer Para E Viotti da Costa A revolução burguesa no Brasil é importante sob três aspectos primeiro apresenta um novo modelo de interpretação da sociedade brasileira lidando com categorias marxistas de modo sutil e flexível evitando interpretações mecanicistas segundo possui um valor pragmático pois faz um diagnóstico da política brasileira contemporânea além do grande valor acadêmico terceiro sua análise do Brasil oferece subsídios para uma análise da América Latina Segundo ela esta é uma obra essencial para o conhecimento da história brasileira Opõese à sociologia do caráter nacional brasileiro e ao dualismo desenvolvimentista dos anos 1950 e ainda às teses do PCB F Fernandes segue de perto o modelo da dependência dominante nos anos 1960 que veio substituir o dualista Mas transcende esse modelo embora enfatize a dependência e tenha sido um dos formuladores do seu modelo ao dar mais atenção à dinâmica interna da sociedade brasileira e ao continuar fiel ao projeto do socialismo democrático Viotti da Costa também o reconhece como um dos criadores da teoria da dependência mas ele a superou e se tornou um dos seus críticos mais relevantes Para se constatar isso aliás basta observar as suas relações críticas e tensas com F H Cardoso quando este chegou ao poder Em seu livro ele analisa a transição de uma sociedade tradicional para uma sociedade competitiva no tocante tanto aos valores quanto às instituições e às estruturas econômicosociais Ele dá tanta ênfase às mentalidades quanto às estruturas econômico sociais E também não minimiza a esfera política Viotti da Costa conclui sua obra responde aos desafios do presente e reinterpreta o passado desvelando outros nexos entre ambos Costa 1978 A expressão revolução burguesa no Brasil esclarece F Fernandes designa o processo de consolidação do capitalismo no Brasil como uma realidade parcialmente autônoma e com tendência à integração nacional Antes dela a economia exportadora que a preparou estrutural e dinamicamente depois dela três alternativas possíveis para o desenvolvimento econômicosocial brasileiro o subcapitalismo o capitalismo avançado e o socialismo Parece então que está descartada a alternativa socialismo ou fascismo que na verdade é uma charada indecifrável A não ser que se compreenda subcapitalismo e capitalismo avançado como traduções do fascismo De qualquer maneira aquelas são expressões mais brandas mais nuançadas No subcapitalismo nós já estamos e é de fato uma situação muito autoritária o socialismo é a meta final e distante o que seria o capitalismo avançado Todavia o seu livro tratará dessa questão das tendências futuras só indiretamente O seu estudo é históricosociológico e portanto o que o interessa diretamente é o durante isto é as etapas pelas quais se consolidou o capitalismo no Brasil O que o interessa portanto é a revolução burguesa no Brasil um conjunto de transformações econômicas tecnológicas psicoculturais e políticas que implantaram no Brasil a ordem social capitalista Para ele a interpretação sintética de uma revolução burguesa no Brasil já poderia ser tentada com alguma margem de erro mas com relativa segurança apoiada nas pesquisas históricas econômicas e sociológicas dos últimos 40 anos Aliás a bibliografia apresentada ao final do seu livro impressiona pela quantidade e qualidade pela diversidade de línguas e tendências pela interdisciplinaridade pela presença numerosa tanto de obras teóricas como de pesquisas empíricas Ele tentará realizar essa interpretação sintética com base nessa vasta bibliografia Sua questão inicial como e quando e em quais regiões se deu o surgimento do burguês e da sua revolução no Brasil Para uns constata ele a burguesia teria surgido já com a implantação da lavoura exportadora como se ela pudesse controlar o que era controlado desde a metrópole Caio Prado Para outros ela jamais teria existido no Brasil por ser um personagem exclusivamente europeu oriundo dos burgos medievais PCBSodré Ambas essas perspectivas lhe parecem inadequadas A primeira associa o burguês ao senhor de engenho a burguesia à oligarquia agrária Entretanto a oligarquia agrária ocupava um lugar marginal no processo de mercantilização da produção agrária colonial e não foi antecessora da burguesia moderna O senhor de engenho não era burguês ele tinha a função de organizar a produção de tipo colonial uma produção heteronômica destinada à apropriação metropolitana Apesar de possuir uma posição privilegiada internamente ele entrava no circuito colonial como dependente sujeito à expropriação pelos grupos europeus que dominavam o comércio internacional e pela Coroa que tinha o direito de cobrar tributos Ele não tinha lucro mas um tipo de remuneração Era uma espécie de administrador de funcionário da Coroa Portanto a história da burguesia brasileira não emerge com a colonização ou melhor o Brasil não é capitalista desde o seu descobrimento A segunda nega a existência da burguesia no Brasil o que é equivocado Os que negam esta existência cometem um tipo de historicismo antihistórico acreditam que processos e agentes de uma sociedade pertencem somente a estas e não a outras não podendo ser transplantados Mas essas sociedades se articulam e o Brasil em certo momento da sua história fez uma opção política optou por assimilar formas econômicas sociais e políticas do mundo ocidental moderno que é basicamente capitalista Tal opção seria impossível sem a presença de uma burguesia brasileira O que caracteriza esta burguesia é o seu aparecimento tardio hesitante débil limitado dependente conciliador Sua presença pode ser vista como revolucionária mas não à maneira das revoluções burguesas clássicas Para o período colonial portanto nem a tese feudal Sodré e nem a tese capitalista Caio Prado Jr são adequadas O Brasil passou a ser burguês e capitalista a partir de um certo momento da sua história bem posterior ao seu descobrimento Falar em revolução burguesa no Brasil consiste em procurar os sujeitos das grandes transformações históricas e sociais que estão por trás da desagregação do regime escravistasenhorial e da formação da sociedade de classes no Brasil A revolução burguesa no Brasil significou a modernização econômica política cultural e social uma transição da era senhorial sob a hegemonia das oligarquias agrárias para a era burguesa quando a hegemonia foi compartilhada entre aquela oligarquia e o novo grupo social emergente a burguesia No Brasil não houve um confronto estrutural entre o novo e o antigo o velho e o novo se fundiram A burguesia não entrou em conflito de vida ou morte com a aristocracia agrária Ela se opôs à oligarquia dentro da ordem O conflito foi pontual e não estrutural A burguesia se comprometeu com tudo o que lhe fosse vantajoso e era vantajoso para ela tirar proveito dos tempos desiguais e da heterogeneidade da sociedade brasileira Ajustouse à tradição preferindo a mudança gradual e a composição a uma modernização impetuosa intransigente e avassaladora Quanto à oligarquia ela também enfrentou a transição com um espírito igual de transigência e compromisso modernizou se aburguesouse O que determinou a transição não foi a vontade revolucionária da burguesia brasileira ou melhor a sua vontade revolucionária não se exprimiu politicamente pela tomada do Estado oligárquico mas economicamente pela associação vantajosa com as oligarquias e o imperialismo A burguesia brasileira produziu a sua revolução em uma economia colonial periférica dependente Não havia condições e processos econômicos que sustentassem o funcionamento dos modelos econômicos transplantados do centro Além disso esses modelos transplantados não visavam a estimular o comércio interno mas a manter e a intensificar a incorporação dependente da economia brasileira Se havia uma modernização interna essa se articulava de forma subalterna às economias centrais O capitalismo brasileiro é um capitalismo dependente a burguesia brasileira é uma burguesia dependente um sócio menor A revolução burguesa no Brasil não foi portanto uma ruptura intransigente um assalto ao poder oligárquico mas um processo modernizador gradual não vertical conciliador de longa duração O ritmo da revolução foi imposto de fora para dentro pela economia capitalista internacional Eis como F Fernandes caracteriza em seu sentido geral a revolução burguesa no Brasil Entretanto quando se iniciou como avançou e quais foram os seus agentes Em que período da história do Brasil foi iniciado esse processo por quais sujeitos e em que direção final Para F Fernandes essa revolução burguesa brasileira queria realizar a implantação de uma economia capitalista independente nacional esta era a sua aspiração final a sua utopia Para se obter esse resultado o mercado interno deverá se fortalecer e se autonomizar ser hegemônico sobre o mercado externo as relações de produção deverão se tornar plenamente capitalistas a organização da produção deverá se racionalizar as forças produtivas deverão se modernizar o Estado deverá se burocratizar racionalmente Esse era portanto o objetivo final a ser alcançado esta a orientação o sentido final da ação da burguesia na história brasileira E aqui F Fernandes se distingue de Sodré e de Caio Prado que sonhavam cada um à sua maneira com um capitalismo nacional com a emancipação e autonomia nacional dentro do capitalismo com o desenvolvimento capitalista com soberania com a realização daquele sentido final A sua teoria social mais bem elaborada o levou à realidade brasileira aos seus ritmos específicos lentos e tortuosos aos obstáculos ao seu desenvolvimento autônomo F Fernandes identifica a utopia burguesa mas não sonha mais A emancipação e a autonomia nacionais serão impossíveis dentro do sistema capitalista A ideia de um capitalismo nacional com o qual sonhavam as esquerdas dos anos 195060 era um equívoco teórico e político Isso porque a burguesia brasileira está em uma posição sempre e renovadamente dependente Dada essa dependência sempre renovada e fortalecida aquela aspiração final jamais será alcançada A burguesia brasileira teve de reduzir o alcance da sua revolução teve de limitar o seu impulso transformador teve de restringir o campo da sua atuação histórica Teve de transigir conciliar aceitar agir dentro da ordem oligárquica E poderia ela agir de outra forma contra a ordem por exemplo perguntase F Fernandes Poderia ter tomado uma orientação realmente revolucionária Para ele não Ela atuava em condições muito adversas Como ela poderia agir para tornar incompatíveis a mudança da expansão interna do capitalismo e a continuidade do passado colonial e do presente neocolonial O passado e o presente brasileiros são de dependência estrutural capitalista continuidade como agir eficazmente contra eles e criar um futuro novo a mudança O capitalismo dependente ele conclui é um capitalismo difícil deixando poucas alternativas à burguesia A dominação burguesa no Brasil fugirá do modelo clássico não será nacional e democrática mas dependente e autoritária Sob o capitalismo dependente a revolução burguesa é difícil mas necessária para possibilitar o desenvolvimento capitalista e a consolidação da dominação burguesa Considerando os estreitos limites em que atuava cercada internamente pela oligarquia exportadora e pelos interesses internacionais externa e também internamente a burguesia brasileira foi até hábil eficaz historicamente ao ceder em relação ao passado e ao aceitar a associação dependente em uma posição menor com o imperialismo Seu objetivo final dadas as circunstâncias foi reconhecido como utópico um sonho de desenvolvimento com autonomia e foi ora abandonado ora mantido mas sempre adiado Poderia ela agir de outra forma Em sua avaliação da ação da burguesia brasileira F Fernandes se divide hesita Por um lado ele se decepciona com sua incapacidade de alcançar o objetivo que estabeleceu para a sua ação Ele lamenta a ausência de uma burguesia realmente dinâmica democrática revolucionária de fato capaz de fazer as opções postas pelos padrões da organização social brasileira Para ele em certos momentos teria faltado ao Brasil um agente transformador ousado uma burguesia capaz de desempenhar o seu papel modernizador em uma sociedade capitalista A sociedade brasileira se organizou de forma capitalista muito mais de fora para dentro dentro faltoulhe um agente capaz de levar a fundo a mudança o Brasil precisava de uma burguesia mais audaciosa mais agressiva menos prudente e tímida A revolução burguesa no Brasil foi frustrada uma oportunidade perdida a burguesia não preencheu o seu papel histórico foi um ator incompetente F Fernandes recai então em considerações éticas tornase um cidadão frustrado e indignado com as difíceis condições da vida brasileira engastada entre o passado e o presente incapaz de saltar para o futuro pela ausência de sujeitos históricos realmente dinamizadores Por outro lado o F Fernandes cientista social analisa as condições objetivas em que as iniciativas desse sujeito social foram tomadas em que as escolhas foram feitas observa uma realidade social dependente dominada pela continuidade das forças do presente e do passado e conclui que era difícil agir que a revolução burguesa no Brasil foi feita em estreitos limites entre o passado colonial e o presente neocolonial Ora F Fernandes acusa a burguesia brasileira de ser um agente de mudanças incompetente tímido conciliador ora a considera competente hábil até inovadora se se considera a sua situação de dependência a estrutura com limites estreitos dentro da qual ela teve de fazer opções e agir Não há contradição entre as duas avaliações são avaliações feitas a partir de esferas de valores distintos a esfera da paixão do cidadão e a esfera do conceito do cientista social Não são contraditórias elas se complementam se iluminam reciprocamente O cidadão expressa a sua frustração e pede explicações ao cientista o cientista oferece explicações que jamais são suficientes para acalmar e silenciar a frustração do cidadão Nesse diálogo fecundo a paixão do cidadão alimenta a pesquisa científica exige explicações a análise conceitual do cientista reestimula a paixão que sempre espera e solicita informações e explicações mais precisas e conclusivas F Fernandes se aproxima muito de Weber e Mannheim em muitos aspectos Feitas essas considerações gerais sobre o caráter da revolução burguesa no Brasil que só provocam a paixão que exige sempre um maior entendimento F Fernandes realiza uma análise histórica quando começou quais os episódios da história brasileira que revelam a emergência da dominação burguesa Quais os fatos e as datas que marcaram a ascensão da burguesia brasileira Tratase segundo ele de uma revolução longa lenta e que ainda não se completou Ele considera que quatro processos a constituíram no passado a um processo político a independência 180822 b um processo econômico a mudança do padrão das relações entre o capital internacional e a economia interna a partir de 1822 com aceleração desse processo entre 185088 c um processo sociocultural a emergência dos dois novos tipos humanos o fazendeiro do café e o imigrante a partir de 1870 d um processo socioeconômico a abolição e a expansão da ordem social competitiva pós 1888 Primeiro apesar da independência a produção continuou a ser feita com a mesma relação de produção escravista de antes a propriedade da terra era ainda latifundiária a agricultura ainda era monocultora e exportadora O que mudou o comércio exterior dos produtos brasileiros que era controlado de fora passou a ser controlado de dentro Houve um excedente econômico interno com a eliminação da intermediação da Coroa portuguesa que paulatinamente passou a ser investido internamente diversificando a produção e estimulando o consumo Apareceu uma produção agrícola e artesanal destinada ao mercado interno As cidades começaram a se desenvolver Nesse primeiro momento essas expressões de uma economia interna se subordinavam ainda ao mercado externo A independência política não conduziu a nenhuma transformação econômica revolucionária mas alterou de modo significativo a relação de dependência econômica Ela foi o ponto de partida para uma maior liberdade econômica para a absorção de novos padrões socioeconômicoculturais novas técnicas agentes e modelos de ação econômica ela produziu internamente a mudança no padrão de civilização Pela primeira vez emergia na cena brasileira o burguês O capitalismo e o seu agente apareceram no Brasil entre 1808 e 1822 Eles apareceram ligados ao comércio e não à produção agrícola exportadora e nem à produção manufatureira ou industrial O comércio passou a ser controlado de dentro os controles externos da economia colonial transferiramse para o interior da nova economia nacional que se implantava trazendo o espírito burguês a concepção burguesa do mundo Houve uma mudança significativa na relação da economia brasileira com o sistema econômico externo após a extinção do estatuto colonial e a constituição de um Estado independente Não foi a emancipação nacional mas a renovação da dependência a sua articulação sobre novas bases e em outros termos Isso não impede que a independência tenha representado uma revolução social a primeira que se operou no Brasil Ela representou o fim da era colonial e o ponto de referência para a época da sociedade nacional com ela inaugurada Muitos não lhe atribuem valor por ter persistido a ordem social interna colonial e por ter sido produzida sem a participação das massas Apesar disso ser verdade e limitar de fato o seu alcance transformador a simples extinção do estatuto colonial teve um sentido econômicosocial revolucionário Com ela instaurouse uma sociedade nacional o poder deixará de ser uma imposição externa para organizarse a partir de dentro com elementos brasileiros apesar da nova dominação inglesa As elites nativas poderão atuar sem o controle da Coroa e seus prepostos A independência só não foi violenta porque por coincidência pelas circunstâncias da história europeia a Corte fora obrigada a se transferir para o Brasil Ela já era uma necessidade histórica As elites não queriam mudar a ordem social colonial só queriam controlála de dentro A independência não foi e nem poderia ter sido feita de maneira mais coletiva e agressiva Ela foi uma realização das elites que pretenderam internalizar o poder e controlar diretamente o comércio de seus produtos Não foi uma revolução social embora tenha dado início à revolução burguesa mas política Foi ao mesmo tempo um movimento revolucionário a busca de uma sociedade nacional autônoma e conservador a preservação e a consolidação da ordem social colonial pois as elites não possuíam condições materiais e morais para engendrar o padrão de autonomia necessário a uma nação A mineração e a lavoura exportadora impunham a preservação do mundo colonial Apesar disso havia um elemento transformador dinâmico As ideias liberais que foram selecionadas eficazmente e ofereceram às elites a argumentação racional contra a condição colonial e pela emancipação Elas ofereceram forma e conteúdo às pretensões igualitárias com a metrópole por um lado e por outro redefiniram as relações de dependência que continuaram a vigorar entre o Brasil e o mercado externo As ideias liberais bem no lugar e muito eficazes embora selecionadas apoiaram a construção do Estado nacional em um país destituído das condições elementares mínimas de uma sociedade nacional O liberalismo apoiou as elites na sua luta contra os interesses da Coroa como ideologia como utopia ele as apoiou na criação de um projeto de Estado e sociedade nacionais O liberalismo não foi um elemento postiço farisaico esdrúxulo teve o seu papel que se ganharia melhor definindoo ele esclarece opondose às análises de S B de Holanda e R Schwarz que veem as ideias europeias no Brasil fora do lugar Schwarz 1981 Franco 1981 Para F Fernandes o liberalismo teve um papel muito produtivo Ele foi a força cultural viva da revolução nacional brasileira Enfim a revolução da independência impôs o domínio senhorial sobre a nação As possibilidades de mando do senhor transcenderam ao seu domínio rural O poder senhorial atingiu o novo Estado nacional que integrou os interesses de todos os senhores agrários locais e regionais em um interesse nacional O senhor se transformou em cidadão Com as ideias liberais circulando por outras razões mais econômicas e políticas passaram também a circular ideias sociais a de direito liberdade individual de justiça de progresso Essas ideias liberais não selecionadas pelas elites no entanto oferecerão argumentos às lutas contra a escravidão e pela democracia que então começaram Elas alimentaram uma utopia revolucionária A independência revelou o caráter duplo do liberalismo dependência nova em relação ao exterior e caminho novo de autonomia não de um povo ainda mas das elites A independência possui para F Fernandes um lado sombrio e outro positivo Ele é hábil na percepção desses dois lados da revolução burguesa no Brasil Ao lado sombrio ele reage como cidadão e protesta ao lado positivo ele reage como cientista social e o reconhece quando em geral a reação que predomina na historiografia brasileira que o precedeu é só a decepção e a indignação do cidadão Mas propõe ele há um outro lado das coisas o estrutural que limita a liberdade dos homens em suas opções Entretanto F Fernandes não é determinista ou passivo diante das condições estruturais Ele afirma não pensar que tinha de ser assim ou que poderia ser de outro modo O que ele só está reconhecendo é que a sociedade colonial não poderia cair de uma hora para outra aceleradamente e que a transição da sociedade colonial para a nacional iria desencadear e exigir processos históricos seculares A independência só foi o primeiro desses processos o processo inicial o ponto de partida e muito importante ela foi a base do processo secular da construção da integração nacional o início da implantação da ordem capitalista Foi a independência o marco inicial da revolução burguesa no Brasil Após a independência o processo econômico o segundo processo desencadeador da revolução burguesa houve uma mudança nas relações entre a economia brasileira e o neocolonialismo Os agentes estrangeiros que comercializavam os produtos brasileiros antes da independência assumirão após o controle da antiga colônia sem riscos políticos A participação da Coroa no excedente foi redistribuída A exploração colonial passou a ser agora estritamente econômica O produtor brasileiro e o importador estrangeiro discutiam quem ficaria com a maior parcela econômica O produtor brasileiro começou a aspirar à internalização da fase de comercialização Mas não podia ainda exercêla Ele teve de se adaptar a essa hegemonia econômica Quanto aos comerciantes estrangeiros intermediários entre o produtor e os importadores europeus aceitaram internalizar até certo ponto o comércio que realizavam integrando o Brasil no sistema capitalista mundial retirando o produtor brasileiro da posição marginal que ocupava Essa nova relação de dependência perdeu o nexo político e se tornou sobretudo econômica O produtor brasileiro tornouse um sócio menor A dependência foi preservada mas as relações com o exterior se alteraram A nova economia nacional que emergia possuía novas funções e se articulava de forma nova com o mercado mundial O neocolonialismo foi um fator de modernização econômica real alterando a economia interna em suas articulações com o centro O novo país foi aparelhado para montar e expandir uma economia capitalista dependente Houve transferência da Europa para o Brasil de empresas especializadas em transações comerciais de exportação e importação e em operações bancárias Com elas transferiramse para dentro tecnologias capitais agentes econômicos Resultado emergia um novo padrão de crescimento econômico interno organizavase a dependência em função do dinamismo interno Os controles externos instalaramse no cerne da economia interna O Brasil não ocupava mais uma posição marginal em relação ao capitalismo comercial ele ainda usa essa expressão que perdurou durante o período colonial O país ganhou um status próprio na organização da economia mundial Nessa nova posição podia absorver padrões de comportamento econômico tecnologia moderna instituições econômicas capital e agentes humanos Deu um salto na participação dos modelos capitalistas de organização da personalidade da economia e da sociedade O processo concentrouse na esfera das atividades mercantis e financeiras Foi nessa esfera que houve a internalização de operações que antes ocorriam fora A modernização não atingiu todas as esferas econômicas Tocou a esfera do comércio primeiro e não conduziu à aceleração do desenvolvimento econômico autônomo pois não atingiu a produção agrícola e artesanal voltada para o mercado interno Era uma modernização induzida de fora que mais aprofundou a heteronomia do que levou à autonomia Entretanto essa modernização embora não trouxesse a autonomia trouxe uma influência positiva a renovação da economia interna a introdução de padrões capitalistas no comércio a alteração da mentalidade e comportamento dos agentes econômicos O elemento burguês nasceu da sua influência Sob essa influência aparece na cena brasileira o burguês nas atividades mercantis O espírito burguês leva à exploração das potencialidades internas e cria a possibilidade da superação da dependência Mesmo sob a dependência econômica o burguês brasileiro valorizaria formas de consciência econômica análogas às do centro O burguês brasileiro associouse às firmas estrangeiras e seus interesses se amalgamaram O controle externo da economia interna processavase sob forte identidade de interesses lealdade e simpatia Esse controle externo era indireto a distância e impessoal Os negócios de exportação e importação não eram percebidos como uma relação de dependência econômica Adotouse o liberalismo como uma concepção radical do mundo Apesar de heteronômico o novo setor tirava proveito da sua inclusão no desenvolvimento econômico urbano Ele manipulava o excedente econômico produzido pela atividade agrária O senhor de engenho passou a aplicar na cidade o seu excedente Essa conexão campocidade transformou a produção exportadora rural em fonte de crescimento econômico interno Essa especulação mercantilfinanceira antecedeu e orientou as transformações capitalistas na produção e no consumo Esses novos agentes fizeram crescer a economia urbana que fomentava o desenvolvimento interno apesar da dependência Eles modernizaram a economia interna monetarizandoa e estimulando o mercado interno Eles provocaram a emergência de um novo horizonte cultural que contrastava com o horizonte cultural senhorial É a partir desse novo horizonte cultural que vai se difundir e consolidar o capitalismo O primeiro surto capitalista no Brasil não se deu nem na agricultura exportadora e nem na produção manufatureira ou industrial mas no complexo comercial e financeiro constituído sob as pressões econômicas do neocolonialismo e do desenvolvimento urbano Esse fato criou uma mentalidade burguesa Aparecia antes das relações de produção capitalistas o espírito do capitalismo no Brasil Aqui porque veio do exterior e não foi uma emergência interna o espírito burguês é anterior à relação social capitalista o espírito será criador da relação social concreta que o exprime O processo político da independência e o processo econômico da mudança nas relações entre a economia brasileira e o capitalismo internacional desencadeariam um processo sociocultural o terceiro processo dinamizador da revolução burguesa ao criar as condições para o surgimento dos dois novos tipos humanos que serão os sujeitos da modernização brasileira e que não poderiam aparecer sem aqueles dois processos que os antecederam O primeiro tipo humano é o fazendeiro do oeste paulista que passou a investir fora do contexto econômico da grande lavoura Sua ação se tornou movida por interesses estritamente econômicos A sua lavoura de café entrou na lógica do mercado tornouse uma plantação moderna O cafeicultor se adaptou ao novo Brasil posterior a 1822 e a 1850 que possuía um novo agente interno o especulador financeiro com o qual o fazendeiro se endividou e se ligou estreitamente Ele teve de se adaptar para manter o monopólio do poder o controle do governo e a liderança da vida econômica O capital comercial e financeiro subjugavao e obrigavao a modernizarse O capital se concentrava nas cidades em instituições financeiras e ameaçava a grande lavoura ainda senhorial e tradicional Os fazendeiros do oeste paulista perceberam o novo tempo substituíram a mão de obra escrava reduziram os custos usaram novas técnicas modernizaram os transportes Surgiu outro tipo de fazenda racional tecnológica assalariada voltada para o aumento da produtividade e do lucro O fazendeiro do café já não possui status por razões tradicionais mas por razões econômicas Sua fazenda não é mais o seu domínio seu estado sua moradia é a sua empresa Ele habita a cidade investe no crescimento desta Nas cidades estava o poder comercial e financeiro que controlava toda a economia O espírito burguês chegou primeiro ao Brasil antes dos seus sujeitos sociais internos e se instalou nas cidades Convivendo com esse espírito burguês urbano o fazendeiro torna se o seu portador interno Ele se torna um homem movido por interesses puramente econômicos impiedoso tenaz ambicioso apetitivo Esse agente transformador representou uma ruptura no interior das elites tradicionais Seu passado é senhorial oligárquico tradicional seu presente é burguês classista modernizador Essa sua relação de continuidade com o passado o tornará menos agressivo do que poderia ser na mudança Ele será menos revolucionário do que poderia ter sido Sua capacidade de modernização será limitada pelos vínculos que mantinha ainda com o passado senhorial O segundo agente da revolução burguesa virá do exterior da história do Brasil Seu passado não é interno o que o tornará livre para agir Ele já chegou com o espírito burguês e é mais audacioso Tratase dos imigrantes europeus e asiáticos um agente heterogêneo Eles apareceram na história do Brasil quando a economia de mercado exigia a substituição do trabalho escravo pelo livre Foi aquele fazendeiro moderno quem os trouxe para a sua plantação Eles trouxeram especialização tecnológica padrões de vida mais racionais Vieram com o objetivo de fazer a América para voltar aos seus países de origem ricos e poderosos Vieram com o mesmo espírito dos primeiros colonizadores conquistador e depredador Seu futuro não estava aqui nem o seu passado ambos na Europa e Ásia de onde vieram e para onde voltariam Aqui eles terão uma atuação com motivações estritamente econômicas Seu fim era a riqueza Para atingila o mais rapidamente eles transformaram a si mesmos e à sua família e aos outros em meios O trabalho próprio e familiar foi a fonte da sua prosperidade Eles viviam com austeridade e pobreza poupavam Os bemsucedidos produziam para o mercado interno na produção agrícola artesanal no pequeno comércio Eles se tornaram substituidores de importações papel que terá uma repercussão enorme no século XX O imigrante foi o herói da industrialização Sua presença foi um elemento acelerador da revolução burguesa brasileira Se o senhor de café foi um agente capitalista na esfera superior da estrutura econômica o imigrante foi um agente dinâmico múltiplo ocupou todas as posições de assalariados a agricultores comerciantes industriais Sem passado e sem tradição não tinha preocupação com status e não tinha preconceitos em relação ao trabalho manual Mas após obter grande sucesso econômico quando passou a ter influência política ele não foi inovador O cidadão F Fernandes protesta então indignado contra o imigrante reacionário que aderiu às formas de dominação do senhor de café Economicamente a sua presença foi avançada agressiva diversificadora dinamizadora modernizadora politicamente ele se revelou tímido e frágil preferindo a conciliação e o conservadorismo No entanto ele poderia agir de outra forma e preservar o seu sucesso econômico O seu sucesso econômico não exigia concessões políticas É só pensar em como ele chegou ao Brasil completamente dominado pelo senhor que o importara Além disso na Europa e na Ásia de onde vieram eles eram também dominados como operários e camponeses Eles não tinham a experiência da luta política Seu objetivo como imigrante não era político mas econômico E obtiveram um grande sucesso nessa área A esfera política o seu funcionamento tiveram de aprender por aqui mesmo tendo como professores as oligarquias Assim a revolução burguesa brasileira tomou um caráter autoritário e repressivo em grande parte porque o imigrante não teve meios de propor novas formas burguesas de poder E quando foi agressivo politicamente ele tendeu ao anarquismo à luta contra a ordem burguesa ainda frágil e foi objeto de violenta repressão Ao absorver o capitalismo na esfera comercialfinanceira primeiro e depois na fazenda de café com o seu novo fazendeiro e nas atividades múltiplas do imigrante a sociedade brasileira tenderá a romper com as relações de produção escravistas e a implantar relações de produção tipicamente capitalistas ou seja tenderá a se constituir como uma ordem social competitiva Este será um processo socioeconômico o quarto processo desencadeador da revolução burguesa no Brasil Nas sociedades nacionais dependentes o capitalismo foi introduzido antes da constituição da ordem social competitiva O espírito do capitalismo chegou primeiro à esfera comercial e só depois constituiu as relações de produção que lhe são correspondentes A ordem escravista colonial brasileira resistiu quase um século à sua superação por uma ordem social capitalista apesar de suas tensões internas Ela poderia sobreviver ainda convivendo com o crescimento da população e a urbanização Mas não sobreviveria à integração da economia brasileira à economia mundial que exigia a mercantilização do trabalho Desde o início do século XIX os ingleses atacaram o esteio da ordem senhorial a escravidão A classe senhorial percebia que era atacada em seu fundamento no elemento que garantia o seu equilíbrio e continuidade e reagiu protelou adiou lutou Mas não podia estancar a história Tendo optado pela independência ela escolheu o capitalismo contra o pacto colonial e tinha de conformarse com o destino que aquele lhe reservara Entretanto apesar de ter optado pelo capitalismo a classe senhorial defendeu ainda a ordem social escravista colonialimperial e repudiou o mercado capitalista que incluiria setores humanos até então à margem da história O mercado capitalista cria estruturas econômicas às quais ninguém escapa A falta de elasticidade da ordem social escravista com referência ao mercado capitalista revelava a sua impossibilidade real de absorver as formas materiais morais e políticas das relações humanas sob o capitalismo A competição era incompatível com os fundamentos patrimonialistas da sociedade estamental A ordem social escravista resistiu entretanto até o final do século XIX Mas resistindo ao longo do século XIX ela se desagregava A nova ordem social se estruturou dificilmente passo a passo Durante o século XIX houve uma acomodação de formas econômicosociais antigas e modernas uma economia nacional híbrida que estendeu a duração de um sistema précapitalista de produção em plena eclosão do modo capitalista internamente Finalmente não sem hesitações os fazendeiros paulistas se desinteressaram do trabalho escravo e investiram no trabalho livre Este nasceu ainda em um contexto escravista e não em um contexto que fomentasse a competição e o conflito Ele se articula ao mandonismo ao paternalismo ao conformismo como se fosse um prolongamento do trabalho escravo O trabalho livre apareceu submetido à mesma brutalidade e violência do trabalho escravo Contra a rebeldia do novo trabalhador estarão à disposição do senhor assim como estiveram contra o escravo a polícia e o autoritarismo do Estado A escravidão foi se tornando incompatível progressivamente com o espírito do capitalismo com o mercado capitalista com a ordem social competitiva que emergia Em 1888 a escravidão foi definitivamente encerrada embora os restos escravistas ainda perdurassem Desde 1808 e 1822 a revolução burguesa estava em marcha Em 1888 aboliuse a escravidão em 1889 mudouse o regime político Todas essas datas e processos expressavam a entrada do capitalismo no Brasil e a emergência dos sujeitos sociais que são os seus portadores A mudança do Estado em 1889 foi uma condição necessária para que ela a burguesia se tornasse dominante produziu transformações jurídicopolíticas necessárias à disseminação das relações de produção capitalistas Em 1889 formouse um Estado burguês que implantou um novo direito todos são sujeitos de direitos e não há mais escravos no Brasil embora limitado em sua eficácia e abrangência Apesar da declaração da cidadania irrestrita sobreviviam restos escravistas o autoritarismo do próprio Estado o poder local dos senhores a repressão aos movimentos sociais As relações de dependência pessoal afetavam o direito de voto do trabalhador rural A democracia era oligárquica e elitista não ainda burguesa Mas era um Estado burguês assim mesmo Como o espírito do capitalismo também o Estado burguês antecedeu ao aparecimento das relações de produção capitalistas e tornou possível a sua constituição e reprodução suscitando um direito e uma burocracia que criavam o indivíduo livre e igual perante a lei pronto para oferecer a sua força de trabalho ao mercado Saes 1984 Eis portanto os quatro processos que constituíram a revolução burguesa no Brasil no século XIX Eles implantaram o capitalismo no Brasil mas a aceleração desse processo virá somente no século XX com a industrialização a Revolução de 1930 e vários episódios trágicos de tomada do Estado e de exclusão pela força dos movimentos populares A burguesia brasileira possui um espírito modernizador mas circunscreveu essa modernização à esfera econômica Fora daí ela faz um discurso revolucionário imitando a burguesia clássica mas que não passa de ostentação verbal farsa A modernização conservadora é técnica e econômica e evita a divulgação de valores de independência e revolução social e nacional Os interesses burgueses internos e externos associados convergiram para a estabilidade a ordem essencial para o crescimento econômico que pretendiam A dominação burguesa no Brasil é autocrática Entre as elites no entanto há uma certa tensão dentro da ordem Mas desde que continue dentro da ordem essa tensão é tolerada Após a abolição e a República a oligarquia não pôde dominar com exclusividade e teve que ceder Ela cedeu à radicalização dos setores intermediários e industriais sem perder o controle do Estado Ela mudava para permanecer Foram a oligarquia tradicional agrária aliada à elite dos negócios comerciais e financeiros que decidiram e não as classes industriais o que deveria ser a dominação burguesa na prática Foi essa aliança reacionária que comboiou os outros setores das classes dominantes reprimindo o proletariado e conduzindo a luta de classes Aparentemente essa aliança foi destituída em 1930 Mas ressurgiu em 1937 no governo Dutra e em 1964 sem desaparecer nos entreatos Em 1964 a burguesia unida estabeleceu uma relação íntima com o capital financeiro internacional reprimiu a subversão política da ordem apossouse do Estado que se tornou então exclusivamente burguês A dominação burguesa no Brasil se revelou então como ela é As burguesias interna e internacional se associaram economicamente e tomaram o Estado para a modernização capitalista pelo alto Desde 180822 a revolução burguesa no Brasil se deu de cima para baixo autoritária autocrática repressiva Desde o início essa revolução excluiu a população brasileira do acesso ao poder político e das conquistas democráticas O liberalismo político foi esquecido ou minimizado só o econômico foi praticado Foi uma revolução feita sob o signo da ordem do progresso do desenvolvimento com segurança isto é o passado não foi totalmente abolido interrompido como aconteceu em processos realmente revolucionários A Duradoura Realidade e a Paixão da Mudança F Fernandes aprofunda a perspectiva teórica de Caio Prado Jr ele percebe também e com maior ênfase a continuidade na realidade brasileira mais do que a mudança Embora como cidadão ele deseje a mudança e se impaciente com a sua lentidão como cientista social ele é obrigado a constatar que o Brasil na verdade permanece uma economia sempre heteronômica o que impede que os seus agentes transformadores possam agir mais audaciosamente Contudo poucos como ele souberam valorizar as mudanças ocorridas nessa história brasileira marcada pela continuidade Em história para ele não há continuidade absoluta sempre há mudança F Fernandes é sensível a essas mudanças registra as mais sutis e avalia com lucidez o seu alcance Embora ainda aspire vivamente à emancipação e à autonomia nacionais ele não sonha mais não acredita em mudanças profundas e aceleradas Vive ora no diaanálise continuidade ora na noitesonho mudança dividiu se Encontrou em suas pesquisas a dura realidade da continuidade da dependência ignorada nas análises de cientistas sociais socialistas e burgueses O modelo clássico de revolução burguesa não poderia ser repetido aqui pois o desenvolvimento desigual interno e a dominação imperialista são realidades permanentes que a impediam A burguesia brasileira não poderia fazer o desenvolvimento capitalista com democracia e opondose à dominação externa que já era interna Há uma parte da burguesia brasileira que é democrática mas que se desencantou também ao constatar a contínua e dura realidade da dependência estrutural capitalista A burguesia brasileira teve de neutralizar aspirações democráticas no interior da sua própria classe e reprimir projetos nacionalistas e populares A modernização seria feita mas seu objetivo não será a nação mas a classe A transição revolucionária é feita de forma particularista e egoísta e não considera o desenvolvimento da nação como um todo O desenvolvimento capitalista no Brasil não leva nem à emancipação e nem à autonomia nacional A nação é usada como meio como recurso estratégico e como base material de decisões Mas não será o objetivo do desenvolvimento capitalista Este objetivo são os interesses egoístas particularistas da burguesia interna articulada à dominação externa Percebese que F Fernandes tenta fazer o luto do nacionalismo perdido Por um lado constata a dura realidade por outro não se conforma e protesta com veemência Ele se põe então a emitir juízos de valor sobre a burguesia brasileira Há um certo moralismo em sua análise da revolução burguesa brasileira Fala de deslealdade de desonestidade deste ou daquele segmento social É como se a burguesia brasileira pudesse fazer a revolução democrática e nacional e que por incompetência e egoísmo abdicasse desse ideal Quando raciocina em termos de luta de classes estratégias e alianças de classes quando é um marxista teórico explica e compreende a ação da burguesia quando passa a raciocinar em termos de nação de desenvolvimento integrado que inclua toda a população brasileira em suas vantagens e constatando o contrário disso ele se impacienta e passa a falar de traição e do que deveria ser a ação revolucionária Para retornar então à realidade e à teoria e constatar parece que as coisas não poderiam transcorrer de outro modo na cena brasileira E ainda mais é preciso reconhecer que os ganhos acumulados com a transição do estado colonial para o capitalismo dependente foram consideráveis Para novamente reconsiderar são os homens que fazem a história e considerar o acontecido como inevitável não é uma boa regra de método A abordagem estrutural não leva à passividade das classes insiste A determinação estrutural abre um campo de possibilidades de alternativas de dilemas A estrutura explica a história mas a história não é conhecível antecipadamente por isso Permanece ainda a possibilidade estrutural das opções e até a opção da ruptura estrutural não é impossível Silveira 1978 A história da revolução burguesa no Brasil o deixa frustrado Por que a burguesia teve de realizar a sua ação modernizadora de maneira tão contrarrevolucionária Por que teve de se associar às oligarquias ao passado colonial Porque não deslocou aquelas velhas classes por que não criou o colapso a ruptura radical com o passado Por que não realizou o desenvolvimento capitalista com democracia e visando ao crescimento e à integração nacional Essas perguntas apaixonadas exigem uma resposta teórica apoiada em pesquisas empíricas F Fernandes oferece tal resposta talvez a contragosto Por que tudo aquilo Por que o capitalismo não tem um único padrão de desenvolvimento de caráter universal e invariável Os padrões de desenvolvimento capitalista correspondem às realidades específicas em sua relação com as diversas fases do capitalismo internacional As situações históricas reais com os seus estamentos e classes é que definem o padrão de desenvolvimento capitalista Será preciso conhecer e reconhecer o padrão brasileiro de desenvolvimento capitalista O Brasil articulase às três fases do capitalismo internacional Antes de 1808 o Brasil ocupava uma posição marginal em relação ao capitalismo comercial assim como Caio Prado Jr ele também emprega esse termo Não se estende sobre essa fase anterior a 1808 e não esclarece o seu uso desse conceito muito problemático do ponto de vista da teoria marxista que perdurou durante todo o período colonial Não era capitalista ainda pois não tinha internamente os sujeitos autônomos e em luta movidos por valores e interesses tipicamente capitalistas entre 1808 e 1860 passou pela fase da transição neocolonial articulandose ao mercado capitalista moderno Nessa fase entra em crise o sistema escravista entre 1860 e 1950 passou pela fase da formação e consolidação do mercado interno criando um crescimento industrial e uma economia urbana comercial importantes articulandose à expansão do capitalismo competitivo entre 1950 e 1964 reorganizou o mercado e o sistema de produção através de operações comerciais financeiras e industriais e da associação entre multinacionais Estado e burguesia interna articulandose ao capitalismo monopolista Essas são as três fases da revolução burguesa brasileira de 1808 a 1964 das transformações econômicas técnicas sociais psicoculturais e políticas que implantaram o capitalismo no Brasil de forma especificamente brasileira Em nenhuma dessas fases o Brasil repetiu o modelo clássico Nas três fases ele seguiu um curso típico de nações periféricas e heteronômicas Aqui o desenvolvimento capitalista foi sempre dinamizado pelos estamentos e classes dominantes de forma egoísta e particularista tornandose compatível com a continuidade da dominação imperialista externa com a permanente exclusão da população Foi um desenvolvimento capitalista débil e oscilante insuficiente para a universalização do trabalho livre a integração nacional do mercado interno e das relações de produção capitalistas e a industrialização autônoma O desenvolvimento foi feito na dependência sempre reposta de forma renovada e revigorada Tal relação não foi somente imposta de fora para dentro ela foi construída pelas mãos do capital internacional em associação com as elites internas O tempo histórico especificamente brasileiro não foi uma imposição externa mas uma articulação do externo com o interno A relação entre o interno e o externo não é mecânica mas dialética é uma articulação de interesses e vontades diferentes e opostas em uma unidade A sociedade brasileira não é explicável somente pelo externo pela dependência embora o externo seja uma determinação essencial das condições internas Entretanto o externo não é exterior pois compõe a estrutura interna da sociedade Se se quiser romper com a determinação externa será preciso suprimir a sua realização interna que é a burguesia brasileira associada Silveira 1978 F Fernandes repõe a tese marxista da luta de classes plena para a construção do futuro socialista O proletariado deverá viver plenamente a sua contradição com a burguesia e lutar pela implantação do socialismo Este objetivo final talvez demore Mas sua luta poderá levar a dois futuros possíveis ao desenvolvimento econômico ainda capitalista que ofereceria uma posição de maior autonomia dentro da estrutura capitalista portanto ao capitalismo avançado que representaria uma revolução dentro da ordem ou ao socialismo que representaria uma revolução contra a ordem Qualquer destes dois futuros será melhor do que o passado colonial e escravista e do que o presente autocrático militarista repressivo burguês com os quais seria preciso romper não continuar Apesar de ter pesquisado e conhecido profundamente a duradoura realidade F Fernandes termina a sua análise ainda otimista e utópico Sonha ainda com uma sociedade brasileira integrada nacionalmente emancipada autônoma livre independente e moderna desenvolvida democrática avançada objetiva e subjetivamente E o sujeito criador desse Brasil novo não será a burguesia brasileira que por ser dependente é basicamente egoísta e autoritária mas o proletariado e o campesinato as maiorias excluídas mulheres negros crianças estudantes enfim os cidadãos brasileiros Se a burguesia brasileira teve de ceder ao passado de se amalgamar com ele este novo sujeito se abrirá ao futuro e resistirá às pressões do passadopresente A divisão entre o cidadão e o cientista em F Fernandes chega ao abismo O cientista social constata a continuidade em suas análises históricosociológicas o cidadão deseja produzir a mudança tanto mais quanto ele se vê informado pelo cientista sobre a dura realidade da continuidade do passadopresente brasileiro ANOS 196070 FERNANDO HENRIQUE CARDOSO Limites e possibilidades históricas de emancipação e autonomia nacional no interior da estrutura capitalista internacional dependência desenvolvimento F H Cardoso uma Personalidade Complexa Fernando Henrique Cardoso nasceu no Rio de Janeiro em 1931 filho e neto de generais numa época em que anos 1930 50 as Forças Armadas brasileiras não estavam ainda associadas à ditadura à repressão e à tortura mas ao contrário à luta pela libertação do povo brasileiro do seu terrível passado de opressão e exclusão de violência e escravidão Dentro do Exército havia uma forte corrente de comunistas e dentro do PCB um número significativo de militares O seu pai parecia pertencer a esse outro tempolado das Forças Armadas Como possuía a patente de general devia ser bem remunerado e podia oferecer à família um bom padrão de vida Filho e neto de generais F H Cardoso nasceu integrado às elites brasileiras Em casa aprendeu a ser disciplinado o que foi essencial ao seu sucesso nos estudos Teve uma formação escolar regular sem falhas e basicamente brasileira licenciouse em ciências sociais 1952 e defendeu a sua tese de doutorado 1961 na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo depois tornouse professor auxiliar assistente livredocente e emérito do Departamento de Sociologia da USP Seu grande mestre na USP foi F Fernandes Não fosse a paixão de F Fernandes pela ciência empírica capaz de espremer até o fim a teia injusta da nossa realidade social para buscar caminhos de mudança não teria havido o meu lado sociólogo ele afirma Referese também como sendo seus estimuladores e orientadores a Roger Bastide a Antônio Cândido aos seus colegas do Seminário de Marx e da Cepal No exterior como aluno teve apenas uma breve passagem pelo Laboratoire de Sociologie Industrielle da Universidade de Paris Nanterre entre 1962 e 1963 sob a orientação de Alain Touraine onde elaborou o seu livro Empresários industriais e desenvolvimento econômico no Brasil que se tornou uma obra indispensável para a discussão desse tema Como professor no entanto ou visitante ou conferencista ou homenageado as referências internacionais do seu currículo impressionam quase tanto quanto as de G Freyre Ensinou e fez conferências em grandes universidades dos EUA Berkeley Stanford da Inglaterra Cambridge da França École des Hautes Études en Sciences Sociales Nanterre Collége de France e foi homenageado com o título de Doutor Honoris Causa RutgersNova Jersey Notre DameIllinois Coimbra Na América Latina ensinou visitou e fez conferências na maioria das universidades Entre 1982 e 1986 presidiu a Associação Internacional de Sociologia além de ter integrado inúmeras associações e centros de pesquisa e consultoria em ciências sociais do Brasil EUA e outros países da América Latina e Europa Cebrap Flacso Pispal Cesit Fipad ISA Ceplan Cedes SSRC etc13 Até 1978 F H Cardoso foi um excepcional cientista social um intelectual brasileiro reconhecido e admirado nacional e internacionalmente Sua obra é vasta e interdisciplinar sociologia história economia e ciência política F Weffort embora mais um aluno do que um discípulo o define como um intelectual das personalidades difíceis ou complexas como um analista de uma época em que é muito difícil ter ou manter uma identidade social cultural ou política linear e transparente tal a velocidade das mudanças A personalidade de F H Cardoso insinua Weffort seria assim também indefinida imprecisa imprevisível complexa e difícil Ele tem a sensibilidade da mudança capta registra e analisa com agilidade o tempo histórico o que vem a ser e deixa de ser Seus conceitos são complexos burguesia de Estado anéis burocráticos internacionalização do mercado interno Procura realizar uma análise integrada da realidade social abordandoa em sua complexidade heterogeneidade multiplicidade e transitoriedade sem submetêla a esquematismos determinismos unilateralismos Weffort não esconde a sua admiração F H Cardoso é um virtuose das ideias um pensador crítico e autocrítico A sua teoria da dependência ele próprio a retomou e rediscutiu frequentemente Jamais fugiu ao debate e dentro dele jamais foi surdo ou deselegante com o interlocutor mais contundente Apesar de têla elaborado junto com Enzo Falleto já nos anos 1960 a teoria da dependência talvez ele próprio não imaginasse que se tornaria rapidamente e cada vez mais adequada à realidade da globalização capitalista atual F H Cardoso defende o engajamento mas com lucidez na análise Seu método é a dúvida a redescoberta dos significados originais das teorias e das lutas sociais Weffort 1995 Após 1978 ele se tornará um político excepcional Durante o regime militar não fora preso nem torturado como aconteceu normalmente à sua volta Felizmente aliás Em 1964 preferira o autoexílio no Chile Foi um período para ele paradoxalmente e felizmente ainda de muito sucesso e alegrias enquanto o Brasil e as esquerdas amargavam a derrota e a violência da ditadura Os seus amigos estavam no Chile a sua família estava junto dele lá estava a sua melhor oportunidade de trabalho pois o grande debate sobre a América Latina se dava no Ilpes da Cepal onde ele logo se engajou e produziu uma das obras que mais repercutiram na América Latina e no mundo A sua avaliação dos anos 195060 é a mais favorável Nesse período ele afirma a América Latina teria finalmente aprendido e conseguido se pensar cientificamente Nas obras de Prebisch Celso Furtado Echevarría a reflexão sociológica econômica histórica e política sobre a América Latina ganhou vigor e credibilidade Talvez tenha sido na opinião dele o período em que apareceu a primeira geração de cientistas sociais latinoamericanos no sentido forte Criouse uma escola latinoamericana que mesmo apoiada em teorias estrangeiras fazia delas um uso original e crítico Nessa época os cientistas sociais passaram a ter cuidados científicos a produzir um pensamento crítico e original venceram o economicismo incorporando aspectos políticos sociais e históricos nas suas análises articulando a América Latina ao mundo evitando as insuficiências da teoria marxista clássica do imperialismo A teoria social então passou a servir à mudança ao planejamento do futuro melhor Os anos 195060 foram anos otimistas conclui criticamente utópicos mergulhados em um intenso debate sobre um futuro melhor Cardoso 1995 Em 196768 foi para Paris onde ensinou na Universidade de Nanterre e viu os acontecimentos daquele ano Ao retornar ao Brasil ainda em 1968 a ditadura tinha encontrado o meio mais limpo de impedir o trabalho dos seus opositores intelectuais aposentandoos através do AI5 em 13121968 Nos anos 1970 F H Cardoso será um dos analistas mais contundentes e sofisticados do regime militar e do milagre brasileiro O Cebrap Centro Brasileiro de Análise e Planejamento do qual ele foi um dos fundadores em 1969 tornouse o centro crítico do Brasil sob a ditadura No entanto a sua análise do regime militar surpreendia as esquerdas pelo que era considerado uma concessão uma brandura com relação ao fascismo instalado no poder Para F H Cardoso a ditadura militar não era fascista ou totalitária mas um regime autoritário que favorecia o crescimento econômico e a modernização A longo termo estas são condições necessárias à democracia ao criar um operariado numeroso e uma classe média forte apesar da desigualdade na distribuição da riqueza e apesar da exclusão social F H Cardoso se tornou um cientista social engajado lutando pelo retorno à democracia mas sem abrir mão da lucidez na análise Nele a paixão se submete à razão Os seus versos de adolescente já expressavam a opção pela razão Os meus negros cabelos de espanador trazem bolas de neve nas pontas14 Ele declara crer na razão na moderação na tolerância e defende uma ética prática com convicções firmes mas que não precisam ser alardeadas a cada instante Cardoso 1995 A partir de 1978 deixou em segundo plano a sua identidade de cientista social e passou à ação Foi eleito então senador pelo MDB suplente 1978 e pelo PMDB 1983 e 1986 e foi líder deste partido no Senado Trabalhou ativamente na reforma constitucional de 1988 Foi fundador do PSDB Partido da SocialDemocracia Brasileira do qual se tornou líder no Senado de 1988 a 1992 e pelo qual finalmente foi eleito em 1994 com larga vantagem de votos e ainda no primeiro turno presidente da República Federativa do Brasil Como ministro da Fazenda do governo Itamar Franco em 1993 fora o criador e implementador do Plano Real ainda em vigor em 1998 e que ele pretende seja duradouro quiçá definitivo apesar das crises do presente e do futuro imprevisível pois ao oferecer estabilidade à moeda o plano faria o Brasil emergir como uma grande nação F Fernandes diria de novo Sobre o significado real desse plano econômico o futuro dirá Como cidadão e não como analista reconhecemos nele inúmeras virtudes sobretudo em seu primeiro ano onde se trabalhou e se consumiu muito sobretudo a numerosa população brasileira menos abastada Até pensamos com uma admiração crescente que F H Cardoso tinha outra vez revelado todo o seu grande talento intelectual e político agora juntos Todavia passamos a desconfiar da dita estabilidade da nova moeda Em uma moeda forte qualquer variação mínima tem repercussões importantes E o real varia muito Uma inflação mensal de 15 e anual de 25 em realdólar parecenos um escândalo Na verdade o real teria uma instabilidade proporcional às taxas de inflação de 20 mensais e 500 anuais do cruzeiro ou do cruzado E essa enorme taxa inflacionária não é repassada aos salários empobrecendo ainda mais a castigada população brasileira A classe média está com os seus salários congelados e reduzida à alimentação Os microempresários falidos pois os juros são impossíveis de ser pagos Os maiores bancos quebrados Além disso o desemprego galopa excluindo ainda mais Finalmente e corporativamente as universidades públicas foram quase abandonadas pelo seu ilustre exintegrante que paga aos seus excolegas um salário vexatório Se há estabilidade ela pode ser entendida em sentido negativo engessamento congelamento arrocho Mas repetimos quem se expressa assim é o cidadão Para uma análise mais consistente e mais competente esperemos o desdobramento da história do Plano Real e as opções políticas que o presidente ainda terá de fazer F H Cardoso em suas opções e ações políticas declara defender uma utopia viável que considere a justiça social o principal objetivo e valor a ser perseguido Tal justiça social para ele só será viável com o desenvolvimento da civilização tecnológica e capitalista a única capaz de acumular riquezas e conhecimentos Só o crescimento econômico acelerado pode vencer a exclusão social Tal utopia viável teria um alcance médio quanto ao tempo e depende de uma reorganização interna e global da economia Esta utopia revela um novo humanismo um reencontro com a ideia de humanidadesujeito coletivo que enfrenta hoje o problema da sobrevivência Esta ideia do homemuniversal retorna em uma cultura racional desencantada ela terá condições de resolver os problemas da justiça social e da igualdade entre os homens F H Cardoso acha difícil responder a esta pergunta a resposta dependerá de opções políticas concretas Cardoso 1995 Ele afirma ter optado por este futuro de liberdade igualdade e justiça Mas deixa dúvidas no espírito daqueles que mais o conheceram e admiraram Para F Fernandes seu mestre e amigo uma utopia ao se tornar possível deixa de existir Que tipo de utopia seria possível sob o capitalismo monopolista de hoje ele interrogava provocador As únicas utopias que F Fernandes vislumbrava são ainda as dos anos 1960 a revolução social para os assalariados e uma autocracia fascista para o capital O socialismo representaria ainda uma alternativa propondo a revolução social e a liberdade com igualdade F Fernandes afirmou que F H Cardoso seu exassistente de Sociologia 1 aluno e copesquisador companheiro de lutas contra a ditadura vizinho e amigo tornouse para ele uma decepção Associouse ao bloco político que foi a sustentação da ditadura Para F Fernandes ele estaria dominado pelo seu maior desvio psicológico a vaidade e ansioso para ocupar o poder ao velho estilo das elites reacionárias E perguntava o quinhão em perspectiva valeria o sacrifício feito A estranha aliança que fez assegurará a solução dos problemas e dilemas sociais econômicos e raciais seculares do Brasil Teria aceitado uma extravagante conciliação pelo alto a qual F Fernandes sempre denunciou e contra a qual sempre se opôs Fernandes 1994 e 1995 F H Cardoso parece não se abalar com a análise do seu mestre Mesmo porque a amizade pessoal cuja perda talvez o abalasse de fato F Fernandes ainda a garantia e foi fiel F H Cardoso o FHC como ficou conhecido pela imprensa e pelo povo se sente de bem com a vida Ela tem sido generosa comigo constata Sem ter procurado esteve nas posições mais influentes que o tornaram conhecido e reconhecido Como S B de Holanda terá sido também um intelectual feliz com muito sucesso até na adversidade brasileira e sempre procurando transferir o seu sucesso pessoal ao Brasil Terá ele sucesso nessa operação Apesar de definido até pelos próprios adversários em eleições como Jânio Quadros por exemplo como um príncipe maquiavélico por ter uma biografia intelectual realmente impressionante e por ser um interlocutor sempre elegante F H Cardoso admite que possui uma falha que parece irrelevante mas que talvez poderia leválo a falhar na construção do Brasilbemsucedido Como professor ele admite o que parece considerar uma limitação ele só teve alunos e não discípulos Como presidente do Brasil terá somente funcionários pessoas ligadas a ele burocrática e racionalmente e uma população desmotivada e sem sonhos associados à sua imagem Para um professor ter só alunos é um ótimo sinal foi um educador aberto ao diálogo capaz de ouvir e fazer falar e não um pregador um encantador de espíritos frágeis Mas para um presidente esta falha pode enfraquecêlo muito e ser fatal Outra falha de sua personalidade segundo se afirma é o seu pãodurismo15 Há anedotas lamentáveis que revelam este lado pobre da sua personalidade complexa Ou melhor o seu lado rico pois esta disposição dalma é a das elites brasileiras em relação à população brasileira que F Fernandes denunciou com veemência um egoísmo uma indiferença um desinteresse uma mesquinhez de enojar e indignar A divergência é tanta que caberia perguntar teria sido F H Cardoso discípulo de F Fernandes ou só um aluno Entretanto a sua personalidade complexa talvez oculte sob o pãodurismo uma grande generosidade um grande interesse e sensibilidade pelos problemas e dilemas do povo brasileiro É o que o povo brasileiro espera aliás perguntando até quando ele poderá suportar tanta exclusão da sua própria história F H Cardoso o seu Lugar entre os Marxistas Brasileiros A partir de 1958 com os estudos de Marx feitos no chamado grupo dO Capital F H Cardoso procurará compreender a dinâmica capitalista observandoa no contexto específico da realidade brasileira Para isso produzirá uma reflexão profunda sobre o método dialético materialista reflexão teórica rara entre os cientistas sociais marxistas brasileiros Cardoso 1975 Entre os marxistas brasileiros qual seria a sua posição Na periodização da história do pensamento marxista brasileiro de Mantega já mencionada ele entraria na terceira fase denominada materialismo dialético posterior a 1958 Mantega 1991 Mas ele não caberia nessa terceira fase tal como Moraes a define marcada pela radicalização da crítica das armas Moraes 1991 A radicalização de F H Cardoso será mais teórica do que ideológica embora seja uma teoria engajada e construída para servir à ação De qualquer maneira ambas as periodizações anteriores o colocam produzindo no período posterior a 1958 ele oporá a teoria materialista dialética para a compreensão da especificidade da realidade brasileira dentro do modo de produção capitalista à luta armada apaixonada e clandestina Sua radicalização será no interior da razão como conhecer melhor o Brasil e como agir de forma racional para formular e resolver os seus problemas Eis aí a sua grande questão Na periodização de BresserPereira F H Cardoso é o personagem central da interpretação da nova dependência que predominou dos anos 1960 aos 1970 e era mais serena em relação à derrota de 1964 fazendo uma análise menos ressentida da interpretação nacionalburguesa que levara àquela derrota BresserPereira 1979 Isso significa que o seu principal interlocutor não é o PCB mas os cientistas sociais marxistas com destaque para Caio Prado Jr e F Fernandes É como se esses dois autores sobretudo Caio Prado já tivessem encerrado a polêmica da derrota das esquerdas com o PCB F H Cardoso representa a esquerda em sua reinterpretação do Brasil após o abatimento e exaltação posteriores à derrota Para a sua reinterpretação do Brasil a ideia de fato novo é essencial Ele percebeu que a derrota de 1964 teve uma dupla origem erros de interpretação que Caio Prado já reconhecera e alguns fatos novos inantecipáveis que puseram em xeque até mesmo os acertos da interpretação nacionalburguesa As esquerdas teriam sido derrotadas pela sua teoria equivocada da revolução brasileira mas em sua avaliação não totalmente equivocada e pela ocorrência de fatos novos que levaram a burguesia para a aliança com o imperialismo e as elites tradicionais frustrando o que era esperado pela teoria Esses fatos novos ocorreram no final dos anos 195060 a revolução cubana o crescimento da atividade sindical a entrada das multinacionais na produção interna a consolidação da indústria nacional entre outros Tais fatos novos afirma BresserPereira liquidaram o pacto populista e forçaram o estabelecimento de um novo pacto o da burguesia industrial antes nacional com a agráriomercantil associados às multinacionais O Golpe de 1964 foi a culminação desse processo BresserPereira 1979 A interpretação da nova dependência reconhece que houve um pacto populista e nacionalista e admite que houve uma industrialização substituidora de importações produzida por uma burguesia autônoma e em tensão com as oligarquias Essa era a realidade brasileira nos anos 193050 que sustentou a interpretação nacionalburguesa e o seu projeto democráticoburguês Se a teoria se equivocou não se pode afirmar que ela não tinha base histórica que delirava e se iludia completamente Ela tinha elementos concretos com os quais pensava Só era otimista demais em relação à autonomia da burguesia brasileira e ao caráter nacionalista do seu projeto social Otimismo que lhe custou a derrota e a frustração Em relação à interpretação do Brasil pré1964 portanto a interpretação da nova dependência do final dos anos 1960 70 é mais lúcida e serena separando bem das surpresas da história os erros da teoria Em relação às interpretações da esquerda pós1964 quanto à interpretação da superexploração imperialista ela recusa a radicalização da luta armada e não vê que a América Latina esteja condenada à alternativa fascismo ou socialismo Quanto à interpretação funcionalcapitalista não crê que o futuro da América Latina seja o desenvolvimento do subdesenvolvimento nem prevê a estagnação prevista pelos cepalinos A interpretação da nova dependência é otimista em relação ao capitalismo dependente é uma interpretação que reabre os horizontes do desenvolvimento latinoamericano dentro e apesar da dependência BresserPereira 1979 Quanto ao Brasil ele é visto no contexto latinoamericano e não mais isoladamente o que já representa um avanço significativo na reflexão sobre a sua realidade histórica e social Para a interpretação da nova dependência o futuro da América Latina e do Brasil não será catastrófico nem fascismo nem eterno subdesenvolvimento nem estagnação nem guerra civil nada do que previam as esquerdas caso não fosse implantado imediatamente o socialismo As esquerdas faziam terrorismo teórico ameaças chantagens políticas ou o socialismo ou a catástrofe Como o socialismo era irrealizável nos anos 196070 restava a catástrofe de um pensamento voluntarioso rebelde armado de palavras de ordem uma retórica inflamada e repetitiva autoritária e terrorista o presente deveria se tornar imediatamente futuro e ser sacrificado enquanto presente O projeto socialista deixa de aparecer como a construção da democracia para se tornar uma imposição da história através de seus proféticos intérpretes Cardoso 1974 e 1973 Goldstein 1994 Foi nesse ambiente exaltado por golpes militares sucessivos na América Latina e pelas sucessivas derrotas das esquerdas por isso aquele espírito ressentido e perigoso que F H Cardoso e o chileno Enzo Falleto escreveram Dependência e desenvolvimento na América Latina 196970 que oferecerá um olhar renovador sobre o passadopresente e o futuro da América Latina Eles defendem uma tese que escandaliza a esquerda radicalizada pois veem a possibilidade da dependência e desenvolvimento na América Latina É uma tese tão escandalosa como por exemplo a de Casagrande senzala Talvez F H Cardoso esteja para a esquerda brasileira assim como G Freyre esteve para o pensamento conservador que o precedeu ambos esses pensamentos estavam céticos em relação ao futuro do Brasil ambos não viam saída nem para a dura realidade d a miscigenação subraça nem para a dura realidade da dependência subdesenvolvimento G Freyre tornou a miscigenação um motivo de exaltação e base de uma promessa de realização brasileira futura o que era o mal do Brasil e o condenava tornavase o seu bem e a razão da sua melhoria futura F H Cardoso fez da dependência que era o mal do Brasil a base do seu desenvolvimento capitalista reabrindo o horizonte do Brasil O que impedia o desenvolvimento tornavase o seu dinamizador São obras otimistas que ressignificam o passado tornandoo não só mais leve como a fundação sólida de um Brasil bemsucedido no futuro A partir dessa aproximação CardosoFreyre passaremos a nos referir à relação dependência desenvolvimento com o sinal freyriano Não temos certeza de que F H Cardoso se sentiria confortável ao lado de G Freyre Talvez o primeiro F H Cardoso resistisse o das pesquisas sobre a escravidão o F H Cardoso de Dependência desenvolvimento talvez se sentisse em boa companhia Ele substituiu a tese da estagnação pela tese do desenvolvimento dependenteassociado o desenvolvimento capitalista possível nos países atrasados da América Latina Considera possível a acumulação industrial apesar da manutenção dos laços de dependência em relação ao capital estrangeiro e da exclusão de uma numerosa população de diversos setores sociais Nele a dicotomia entre industrialização nação ou subdesenvolvimento dependência foi superada A industrialização já ocorria em diversos países dependentes ela não está vinculada necessariamente à emancipação e à autonomia nacional Os investimentos estrangeiros não são o obstáculo ao desenvolvimento pelo contrário são a sua alavanca são eles que dinamizam os países dependentes Para chegar a essa conclusão que custa a crer seja de esquerda os autores inovaram na metodologia Reivindicaram uma análise concreta de cada situação específica recusandose a tomar a América Latina como um todo único e indivisível determinado pelo centro dominante A relação centroperiferia não é percebida como uma relação entre países exportadores de matériasprimas e de produtos agrícolas e países industrializados mas uma relação entre países com graus distintos de industrialização O capitalismo é uma estrutura internacional na qual cada país ocupa um lugar e desempenha uma função determinados Não há lugar para uma análise dicotômica que tenha como consequência um projeto político alternativo ou desenvolvimento soberania ou dependência subdesenvolvimento Essa dicotomia e essa alternativa são superadas por uma análise concreta e integrada do capitalismo que leva à surpreendente síntese dialética do desenvolvimento soberania dependente F H Cardoso aplicará bem o materialismo dialético As análises marxistas que o precederam eram muito economicistas deixando de integrar aspectos políticos e sociais nas análises das forças sociais latinoamericanas O seu conceito de dependência permite a análise das estruturas de dominação de classes e grupos sociais das sociedades dependentes bem como dos seus meios políticos para a imposição dos seus interesses ao conjunto da sociedade O conceito de dependência não é economicista ele integra uma análise econômica social e política F H Cardoso através desse conceito consegue integrar de forma dialética o externo e o interno é essa integração que lhe permite perceber que a periferia na linguagem cepalina não era exterior ao centro A periferia era interior ao centro e o centro interior à periferia Eis o que quer revelar o conceito de dependência o centro é interior o desenvolvimento na periferia seria promovido por esse centro interiorizado Assim a industrialização da América Latina seria possível mesmo se baseada em um mercado interno restrito e na exclusão de certos setores sociais Apesar disso a acumulação capitalista e a transformação da sua estrutura produtiva para níveis de complexidade crescente são viáveis nos países dependentes Mantega 1991 Esta apreensão dialética da realidade latinoamericana ele a realizou com um bom conhecimento e uma boa aplicação do marxismo Cardoso 1975 e 1973 Entretanto F H Cardoso é também associado a Weber Ele esteve tão próximo de Weber como F Fernandes talvez até mais próximo Os analistas da recepção de Weber no Brasil o consideram ao lado de R Faoro S B de Holanda Juarez Brandão Lopez um dos mais familiarizados com as categorias weberianas Em sua obra Empresário industrial e desenvolvimento econômico 1964 onde analisa o papel do empresário industrial no processo de desenvolvimento brasileiro ele criou o tipoideal do personagem que produz o desenvolvimento brasileiro acentuando por um lado algumas características da sua personalidade abstraindo outras por outro Ele apresentou os diversos tipos de industrial brasileiro ao lado do tipo de empresário tradicional Recria a situação concreta em que este tipo age racionalmente Procurou perceber a articulação de meios e fins na ação dos empresários isto é ele procurou uma adequação de sentido Estudou a mentalidade empresarial a partir das condições estruturais que dão sentido à sua ação e opiniões Em Dependência ele se afastou mais de Weber e se aproximou mais de Marx Segundo os seus vários analistas seus trabalhos constituem um dos melhores produtos da moderna sociologia brasileira e latinoamericana Encontrou uma maneira própria de análise sem repetir modelos teóricos importados Maranhão 1974 Não abusa de dados numéricos de tabelas estatísticas mas procura compreender as relações entre os seus personagens e as condições sociais que limitam e dão sentido à sua ação Chacon 1986 Seu marxismo é portanto eclético ou melhor sintético assim como o de F Fernandes Revela ter lido Sartre Luckács Gramsci e Parsons É na tradição marxista que ele encontrou os seus interlocutores teóricos Quer reconstruir uma problemática do sujeito e compreender os movimentos sociais que a corrente marxista sempre priorizou Entretanto não percebe o sujeito armado na luta armada Para ele o sujeito social em luta fazendo a história usa meios democráticos os partidos políticos organizados o Congresso a imprensa o diálogo aberto com todas as posições e tendências Para ele a democracia parlamentar não é burguesa ou formal é real e há outros agentes transformadores da sociedade além do proletariado e do campesinato Na época da ditadura reconhecia a existência de um setor da burguesia interessado na democracia que podia ser um aliado importante contra o autoritarismo militar O objetivo dessa burguesia aliada dos interesses populares é econômico e não político ela é contra o estatismo e não contra a tortura e pelos direitos humanos Ela faz uma contestação liberal ao excesso de Estado Mas apesar da divergência quanto aos fins seria possível uma aliança quanto aos meios por razões distintas diversos grupos lutam pela democracia parlamentar Para Lehman F H Cardoso manteve um pé nas ciências sociais e o outro na política Ele seria um político travestido de sociólogo Sua influência foi mais política do que teórica Alterou o discurso da oposição radical no Brasil ao defender uma sociedade ainda capitalista mas controlada por um Estado democrático Sua ação política visa ao controle do Estado que não poderia ser destruído revolucionariamente mas aproximado politicamente Para Lehman entre o seu estilo e o dos outros cientistas sociais latino americanos há um abismo16 Enfim a sua posição entre os marxistas brasileiros é bem diferenciada Para ele o Brasil não tende nem ao fascismo nem ao subdesenvolvimento crônico nem à estagnação o capitalismo nacional é um equívoco de análise e o socialismo não é vislumbrável ou exequível Resta a opção do capitalismodependente com um máximo de democracia política e social a ser conquistada por uma hábilágil aliança de sujeitos sociais heterogêneos O Escravo o Industrial e o Desenvolvimento Econômico Com F Fernandes F H Cardoso elaborou a sua tese de doutorado e estudou o Capitalismo e escravidão no Brasil meridional o negro na sociedade escravista do Rio Grande do Sul 1962 Seus companheiros de equipe O Ianni E Viotti P Beiguelman e muitos outros também pesquisavam o tema da escravidão e do negro orientados por F Fernandes F H Cardoso estudou a escravidão no sul do Brasil onde havia menos escravos por não ser uma região ligada ao mercado mundial Para ele o número de escravos não é o mais importante mas a relação de produção em si O tema da escravidão é muito importante para o conhecimento do Brasil pois revela muitos aspectos ainda dominantes os valores brasileiros as aspirações brasileiras as desigualdades e injustiças brasileiras Discutindo o modo de produção brasileiro antes da abolição recusou a tese feudal e preferiu falar de economia colonial Avaliando as razões do fim da escravidão ele o atribuiu à insuficiência numérica pelo fim do tráfico e a alta mortalidade à incompatibilidade com o avanço capitalista embora tivesse sido compatível com ele em um primeiro momento O avanço do capitalismo e a modernização dependem do fim da escravidão O empresário capitalista pode conseguir mais trabalho do assalariado do que do escravo O trabalhador escravo é um obstáculo à divisão e à especialização do trabalho O trabalho qualificado é incompatível com a escravidão Além disso escassos os escravos estavam cada vez mais caros Graham 1979 Em sua análise da escravidão salientou a coisificação do escravo enfatizou o tratamento coercitivo e sem direitos que recebiam Para ele a coisificação social do escravo foi até a sua coisificação subjetiva o escravo se autorrepresentava como não homem a partir da representação branca dominante O que aparecia em um comportamento passivo em uma incapacidade para agir fazer história lutar a luta de classes Gorender 1990 Depois de pesquisar o escravo F H Cardoso foi investigar o empresário brasileiro e as possibilidades do desenvolvimento industrial brasileiro Se o escravo não era sujeito pois não se representava como tal F H Cardoso foi conhecer a autorrepresentação do sujeito modernizador do Brasil o empresário industrial Fez também uma história da burguesia brasileira mas mais empírica Descobriu que a classe burguesa no Brasil era recente heterogênea e desorganizada Os burgueses desconfiavam das associações de classe pois achavam que promoviam apenas os seus dirigentes os quais tampouco apreciavam Desprezavam a atividade política e contavam somente com a sua disciplina e trabalho individual Para F H Cardoso não se podia perceber um projeto consciente que unisse os interesses industriais Não há no Brasil uma consciência de si burguesa uma representação clara de si O empresário se vê como povo e não como governo quer ser dominante só economicamente e não politicamente Essa aparente inconsciência de classe o torna a boa consciência da nação fazendo crer ao operário que ele não trabalha para uma classe mas para a nação A burguesia industrial se acomodou em larga medida à dominação tradicional adaptouse ao clientelismo reivindica favores privilégios Cardoso 1964 Há dois tipos de industriais brasileiros segundo ele o associado ao capital estrangeiro para o qual a industrialização do país significa fazêlo solidário da prosperidade ocidental como sócio menor e aquele que conseguiu fazer a América aplicando na indústria capitais adquiridos na lavoura Estes segundos são nacionalistas protecionistas contra a presença do capital estrangeiro Para estes industrializar o país significa criar uma política estatal contra o subdesenvolvimento que se baseie no apoio aos capitalistas nacionais Esta divisão da burguesia brasileira não é nítida e exaustiva Os primeiros também reivindicam favores do Estado mas não pedem o fechamento do mercado interno Os segundos reivindicam o fechamento do mercado interno mas quando acumulam bastante capital convertemse no empresário do primeiro tipo querem também associação com o capital internacional F H Cardoso conclui que a tendência é a da aproximação dos burgueses brasileiros com o capital internacional à medida que a industrialização avança O crescimento industrial força as alianças de grupos industriais brasileiros com os internacionais e cada vez mais as diferenças ideológicas tendem a desaparecer em nome da condição comum de capitalistas Como classe defendem a mesma coisa propriedade democracia prosperidade Essa tendência não se explicita em um projeto consciente A burguesia brasileira é mais pragmática do que revolucionária Ela se adapta ao poder tradicional comprometese com o velho Brasil Sua práxis política tornase um pragmatismo sem grandezas Ela mais reage do que age Tende para a associação com a prosperidade ocidental que exclui as massas que em vários momentos a apoiaram em suas lutas contra as pressões oligárquicas e imperialistas Cardoso 1964 Esta pesquisa sobre o industrial brasileiro e a conclusão a que chegou terá uma grande consequência sobre o seu pensamento acerca do Brasil e da América Latina Na verdade o seu Dependência e desenvolvimento na América Latina somente desenvolverá aquela tendência observada na burguesia brasileira O que a burguesia brasileira deseja não é uma revolução democráticoburguesa ela não tem um projeto político emancipacionista e nacionalista Pelo contrário ela aspira é à participação na prosperidade ocidental E quanto às oligarquias ao velho Brasil ela não se opõe ela se adapta optando por um pragmatismo sem grandezas Quanto às classes trabalhadoras ela não quer o seu apoio se este custar a renúncia à sua associação à prosperidade ocidental F Fernandes também percebeu isso em sua análise da Revolução burguesa no Brasil 1975 Mas a análise dele não o impediu de protestar contra o pragmatismo da burguesia pois como cidadão olhava para essa história burguesa do ponto de vista das massas excluídas que jamais serão incluídas no desenvolvimento dependente F H Cardoso perderá esses escrúpulos populares e nacionalistas e assumirá o projeto burguês com o seu pragmatismo sem grandezas17 A ideia de um capitalismo nacional foi considerada inviável a ruptura com a estrutura capitalista internacional uma impossibilidade Além disso nem seria desejável A ação deverá explorar as possibilidades de desenvolvimento na dependência eis uma operação realista concreta um pragmatismo sem grandezas não voluntarista e não idealista O desenvolvimento capitalista depende de grande volume de capitais e de tecnologia avançada os que detêm tais riquezas e recursos deverão ser atraídos para o mercado interno deverão ser estimulados a investir na América Latina e não desestimulados ou até expulsos E esta é uma opção além de realista otimista na dependência a América Latina poderá crescer economicamente acumular capitais e se fortalecer politicamente O horizonte se abre por uma ação racional por uma articulação política entre os sujeitos internos a cada país e os sujeitos internacionais O Debate TeóricoPolítico sobre a Teoria da Dependência Antes de abordarmos a sua teoria do Brasil e da América Latina abordaremos o debate que ela gerou depois da sua publicação Esta inversão da exposição se justifica porque em seus artigos posteriores F H Cardoso esclareceu o que pretendeu demonstrar em seu livro Seus esclarecimentos posteriores poderão nos ajudar a compreender melhor a sua visão do Brasil Coloquemos então o debate sobre o livro antes do livro para melhor compreender as suas teses F H Cardoso participou vivamente do debate que seu livro criou esclarecendo posições corrigindo recepções Nós nos manteremos bem próximos dos seus textos e da sua linguagem para guardar a sua precisão e o seu tom Nos Estados Unidos ele afirma a teoria da dependência foi recebida como um novo paradigma como uma teoria um conjunto de proposições testáveis formal Mas ele esclarece a teoria da dependência não é nada disso não é um novo paradigma pois é uma continuidade crítica dos estudos da Cepal e de outros latinoamericanos Não foi um estalo individual ou da duplaautora mas uma ideia que circulava na América Latina sem ter sido ainda formulada plenamente Ela foi produzida por muitos Não foi uma resposta crítica à tese do desenvolvimento do subdesenvolvimento de Gunder Frank embora o marxismo norteamericano tenha sido um interlocutor importante na sua elaboração Mas a influência do marxismo latinoamericano e norteamericano não foi maior do que a influência do próprio Marx Foi na verdade o fracasso das tentativas de desenvolvimento capitalista nacional que levou à sua formulação18 Nos anos 1950 a maioria dos intelectuais e instituições de esquerda brasileiras e latinoamericanas era nacional desenvolvimentista Iseb PCB Cepal Todos defendiam o fortalecimento do mercado interno e da industrialização para o desenvolvimento autônomo nacional Entretanto afirma F H Cardoso tal projeto não se referia à realidade não há capitalismo nacional O capitalismo é por definição internacional Ele é inevitavelmente expansionista e monopolístico em sua fase imperialista A realidade latinoamericana dos anos 196070 era a seguinte os governos e as burguesias nacionais se associaram aos monopólios internacionais Foi isto o que a teoria da dependência percebeu a internacionalização do mercado interno a solidariedade de duas classes aparentemente opostas as burguesias nacional e internacional A teoria da dependência rearticula centro e periferia e crê na possibilidade da industrialização da periferia As economias periféricas são capazes de acumulação Com a internacionalização do mercado interno com o crescimento do consumo da produção interna cresce a massa de capital Não há superexploração imperialista na relação de dependência A exploração capitalista se baseia na exploração da maisvalia relativa e no aumento da produtividade Portanto não há desenvolvimento do subdesenvolvimento mas dependência desenvolvimento capitalista Os beneficiários as empresas estatais as multinacionais e as empresas locais são elas os agentes do desenvolvimento dependenteassociado19 Como conciliar dependência e industrialização Se há dependência tecnológica endividamento externo F H Cardoso desfaz a contradição dependência desenvolvimento são processos contraditórios e correlatos que se reproduzem se modificam e se ampliam A expansão capitalista na América Latina não produz a miséria Não é uma lei interna ao capitalismo dependente a produção da miséria Ocorre apenas que ele não absorve toda a mão de obra em oferta problema que resta a ser resolvido para o sistema capitalista como um todo O desemprego é um flagelo também no centro Enfim esta é a novidade da teoria da dependência o desenvolvimento pela industrialização sob o controle das multinacionais e não por uma luta nacional contra elas Apesar de continuar a haver dependência tecnológica e financeira há desenvolvimento No Brasil ao invés de um nacional populismo antiimperialista há um nacional estatismo dependenteassociado É do jogo entre estes atores que se nutre a história recente dos países periféricos Com este enfoque afirma F H Cardoso a teoria da dependência aproximase mais das realidades específicas concretas A busca do concreto supõe a criação de categorias A teoria da dependência é uma superação dialética das teses cepalinas É uma teoria que parte da dialética marxista e por isso enfatiza a dinâmica a historicidade a análise concreta Busca então formas históricas concretas de dependência O que interessa conhecer são as relações internas que expressam o externo como as classes e Estados se inserem na ordem internacional A teoria da dependência distingue situações de dependência e especifica os contendores reais na luta pela dominação econômica a fim de detectar processos sociais novos É por aí que se mede a adequação analítica e o alcance interpretativo de um esquema explicativo O esforço teórico é o de apreender o específico e o novo concretos A denúncia ideológica é uma distorção analítica que pode ter consequências políticas graves Não seria melhor renunciar ao romantismo revolucionário e fazer a teoria social E descobrir no próprio processo social a sua possibilidade de transformação Não seria melhor formular os problemas específicos de cada realidade históricosocial e encontrar as soluções particulares mais adequadas O homem faz a história mas em condições dadas A história revela alternativas futuro no interior de estruturas sociais mais ou menos estáveis Para F H Cardoso dentro de certos limites estruturais o homem inventa o seu mundo Nem todas as opções são viáveis As opções são feitas no interior das forças que constituem o modo de produção20 Há portanto uma estrutura que condiciona e não determina a históriainvenção do mundo O objeto da história não são atores reificados mas relações sociais A história é um conhecimento fundamental desde que estrutural Então ela se torna uma ciência consciência objetiva de um processo Fazer teoria social é perceber as opções históricas que a estrutura social torna viáveis A teoria social é uma consciência objetiva do processo histórico que de fato ocorre e não considerações sobre como ele deveria ocorrer Mas a análise dialética concreta não é empirista O conhecimento do que de fato ocorre que F H Cardoso propõe não é a submissão do cientista social aos dados aos fatos controlando os seus impulsos afetivos e a construção subjetiva da realidade Os dados não são anteriores aos conceitos Eles são apreendidos pelos conceitos que constituem uma rede teórica No final da análise há um esforço de síntese a diversidade é articulada em uma totalidade pensada Esta síntese não é uma abstração interior ao pensamento sem referente exterior Ela se refere à realidade há um movimento que vai da realidade ao pensamento e deste à realidade Conhecimento e história não são transparentes um ao outro não se recobrem mas se articulam Uma análise dialética não quer sufocar o processo histórico ela o vê como um processo aberto cujo desdobramento se dá no tempo através da luta de classes Por esta razão o pensamento não pode se estancar em teorias simplificadas e abstratas Ele deve produzir análises concretas históricoestruturais21 Será com esta concepção da história e armado do método que lhe é mais adequado que F H Cardoso abordará o Brasil e a América Latina Seu pensamento quer se referir à realidade latinoamericana e não ao que ela deveria ser E a realidade latinoamericana é a da dependência capitalista Dura ou não esta é a realidade a ser analisada e transformada A análise dialética concreta ao abordar a dependência latinoamericana não opõe mecanicamente interno e externo e não submete o interno ao externo Este não é nem unilateralmente determinante nem exterior o externo é interior o interno é exterior e se constituem reciprocamente O capitalismo é exterior e interior E em cada situação concreta de dependência esta articulação internoexterno é específica histórica Em cada fase do capitalismo e em cada país do mundo o interno se articula de forma original com o externo O que interessa representar na análise da dependência estrutural é esta articulação concreta e específica O que interessa é o movimento a luta de classes as redefinições de interesses as alianças políticas que mantêm a estrutura e a transformam ao mesmo tempo As estruturas não são fixas e atemporais são contraditórias dinâmicas históricas22 O que interessa a F H Cardoso é o que reivindicavam Caio Prado Jr e F Fernandes a busca do concreto isto é de uma temporalidade específica de um mundo histórico determinado É a análise rigorosa históricoconcreta das articulações entre dependência e imperialismo que possibilitará a elaboração de uma estratégia política que se abra para o futuro Esta é a sua proposta essencial uma análise histórica consistente que não leve ao fechamento do futuro da América Latina estagnação e ações desesperadas Uma análise teórica consistente deverá propor caminhos novos que levem ao desenvolvimento caminhos realistasotimistas dentro das condições estruturais capitalistas que são objetivas Dependência e desenvolvimento na América Latina escandaliza as esquerdas pelo seu otimismo em relação às possibilidades de desenvolvimento econômicosocial dos países latinoamericanos dentro do capitalismodependente As esquerdas eram mais céticas quanto ao futuro destes países e seus vários segmentos se envolviam em debates apaixonados desesperados e sempre divergentes As análises sociológicas falavam de desenvolvimento do subdesenvolvimento de subimperialismo de lumpemburguesia e propunham sonhos irrealizáveis como ou capitalismo nacional ou socialismo brandindo a ameaça do fascismo No interior desse debate F H Cardoso falará de dependência desenvolvimento A sua intervenção nesse debate lembra repetimos a de G Freyre em outro quando os interlocutores chegam às conclusões mais desalentadoras e céticas os dois dão uma guinada no olhar e veem na realidade que impossibilitava o sucesso a chave do sucesso F H Cardoso defenderá a aliança entre a burguesia brasileira e a burguesia internacional ele verá como um caminho positivo para o Brasil a aproximação e não a luta contra os capitais estrangeiros Aqui talvez se possa perceber o seu mirante sobre o Brasil a burguesia paulista F H Cardoso é um pensador burguês e paulista Ele se tornou um formulador do projeto burguês para o Brasil quando percebeu que a burguesia tinha dificuldades em dar forma à sua própria consciência Decidiu formulála para ela oferecendo lhe a sua própria representação E ofereceulhe uma representação de si mesma simpática não autoritária vinculada aos interesses nacionais no interior das pressões internacionais F H Cardoso percebeu que nos anos 196070 estando o capitalismo estruturado como estava só havia um sujeito que poderia levar o Brasil ao desenvolvimento industrial à acumulação de capitais a burguesia interna associada ao capital estrangeiro O capital estrangeiro veio dinamizar a produção diversificandoa e estimular o mercado interno O capital estrangeiro traz tecnologia financiamentos empregos e abastece o mercado interno O mercado interno só poderia ser dinamizado pela sua internacionalização que tornaria os industriais brasileiros mais competitivos aprofundaria neles uma mentalidade burguesa consequente eficaz racional competitiva O capitalismo não poderá se instalar na América Latina se se lutar contra ele se os capitais estrangeiros forem hostilizados e ameaçados quando aplicados internamente Se é o capitalismo que dinamiza o desenvolvimento industrial este só será possível na América Latina pela associação não sem tensões é claro entre os sujeitos econômicos internos Estados nacionais e burguesias locais e os externos Na nossa perspectiva definilo como burguês ou intelectual orgânico da burguesia não é uma definição pejorativa e negativa Nossa intenção é situálo olhando para o Brasil com os seus olhos para melhor compreender e avaliar o seu pensamento Ele oferece à burguesia uma representação de si mesma que não é autoritária mas democrática pluralista de uma classe social que acumula capital extraindo maisvalia relativa Talvez ele seja otimista demais em relação a essa burguesia que para F Fernandes por exemplo tem um comportamento avesso a este acima o que o levou a protestar veementemente e a não sucumbir aos argumentos da análise históricoestrutural concreta que ele fez tão bem quanto F H Cardoso Entretanto F H Cardoso não quer que as coisas sejam assim ele não deseja que o desenvolvimento se dê na dependência Ele constata esta realidade e propõe meios para a sua representação e controle político A teoria sociológica procura constatar tendências estruturais e se são produtivas favoráveis dinamizálas por uma intervenção política calculada A tendência estrutural constatável no Brasil nos anos 1960 não era a afirmação do capitalismo nacional ao contrário As esquerdas mais desejavam isso do que o constatavam na realidade A questão é definir bem essa tendência e tornála favorável ao desenvolvimento interno o que requer uma intervenção política eficaz racional bem informada e sempre contrastada com a tendência historicamente observável Esta intervenção política eficaz exige uma análise integrada da realidade brasileira Ele proporá que não se aborde o Brasil isoladamente da América Latina O Brasil será visto como um caso de uma conjuntura mais global a latinoamericana dentro da estrutura capitalista internacional A integração do Brasil à América Latina não apaga a diferença em seu interior Pelo contrário falar da América Latina é especificar em seu conjunto as especificidades históricoestruturais Em cada realidade nacional latinoamericana grupos classes e Estados em tensão em luta e alianças pelo poder e com a sua história específica se articulam de maneira diferenciada com o capitalismo internacional É uma análise ao mesmo tempo e nisto F Weffort verá uma contradição nacional e classista Nacional porque cada Estado latinoamericano é dominado por grupos distintos com projetos distintos e de classes porque em cada realidade nacional a luta pelo poder é constante e o seu controle varia de acordo com as vitórias e as derrotas de uns grupos ou outros23 F H Cardoso foi também censurado por enfatizar muito as condições capitalistas internacionais o externo determinando o interno24 Mas não nos parece ter sido isto o que ele pretendeu fazer A análise dialética que realiza embora situe a América Latina no sistema capitalista internacional não enfatiza variáveis exógenas mas as características internas de cada sociedade latinoamericana E examina as suas possibilidades particulares de desenvolvimento O desenvolvimento capitalista é visto como produzido pelas classes internas em conflito A dominação interna e a dominação externa variam de acordo com as vitórias de cada grupo A mudança é histórica é produzida na luta de classes pelo poder interno Portanto o externo não explica mecanicamente o interno O interno se conecta ao externo e este se expressa nas relações de classes internas F H Cardoso se refere a uma causalidade significante em que as realidades se determinam de um modo historicamente dado25 A Obra Dependência e Desenvolvimento na América Latina Procuraremos realizar uma síntese da obra apresentando as suas principais teses diagnósticos e propostas para a América Latina e principalmente para o Brasil sempre apoiados em sua própria linguagem e tom F H Cardoso e E Falleto pretendem realizar uma nova abordagem da América Latina jamais tentada realmente marxista e dialética Eles denominam esta abordagem inovadora análise integrada de situações históricoestruturais concretas Sem esquecermos a coautoria de E Falleto doravante falaremos apenas de F H Cardoso a quem geralmente se atribui talvez injustamente em relação a Falleto a criação da teoria da dependência Esta análise integrada da América Latina além de não separar cada realidade particular ao mesmo tempo que a especifica não privilegia nenhuma esfera da sociedade como determinante das outras Nem a esfera social nem a esfera econômica nem a política se impõe uma às outras em última instância É uma análise que explica os processos econômicos como sociais os sociais como políticos e os políticos como mentais econômicos e sociais Esta análise evita a perspectiva tipológica simplificadora que opõe as sociedades tradicionais às sociedades modernas Na verdade ele afirma não há sociedades tradicionais puras ou sociedades modernas puras E a mudança do tradicional para o moderno não significa que o tradicional esteja atrasado e que seguirá as mesmas etapas do moderno avançado Evitando essa análise tipológica F H Cardoso quer recuperar a originalidade da América Latina a especificidade das relações entre as classes no plano nacional e as suas relações particulares com o capitalismo internacional O moderno não é o tradicional amanhã Interessa realçar as características históricoestruturais que promovem o desenvolvimento de forma original Entre os países da periferia é necessário distinguir as suas posições particulares e as suas relações específicas com o centro Há os países sem desenvolvimento que não mantêm relação de mercado com o centro os subdesenvolvidos são coloniais ou nacionais Cada um destes possui posições e funções na estrutura global do sistema capitalista Entre os desenvolvidos e os subdesenvolvidos não há só diferença de etapas produtivas mas de função e posição na estrutura econômica internacional O conceito de subdesenvolvimento realidade histórica onde predomina o setor agrário forte concentração da renda pouca diferenciação do setor produtivo predomínio do mercado externo mercado interno inelástico é insuficiente se não for considerado também como uma situação histórica É preciso analisar a maneira pela qual as economias subdesenvolvidas se vinculam ao mercado mundial bem como a constituição dos grupos internos nessa vinculação O conceito de dependência seria mais adequado do que o de subdesenvolvimento pois vincula os sistemas econômicos e políticos no plano interno e externo ressaltando o modo de integração das economias nacionais ao mercado internacional o qual supõe formas distintas de interrelação dos grupos internos com os externos Não se deve portanto procurar o passado do centro na periferia mas a relação centroperiferia Na perspectiva da dependência da relação centroperiferia articulada o visado são as condições e possibilidades de desenvolvimento e consolidação das economias nacionais latinoamericanas pelo modo como se articulam os grupos internos e externos e pela forma do poder interno que assegura essa relação O sistema de poder não é transformado e assegurado automaticamente pelas suas bases materiais As relações de poder e produção foram distintas nos diversos países latino americanos motivo pelo qual se impõe com mais força a necessidade da análise de situações históricoconcretas das relações entre as nações latinoamericanas e o mercado mundial Após o rompimento do Pacto Colonial as novas nações latino americanas se formaram dependendo da força e capacidade política dos grupos locais e da sua história colonial particular As excolônias agrícolas foram mais bemsucedidas na constituição nacional Esses países terão uma duplicidade interna os limites nacionais não coincidem com as áreas integradas ao capitalismo Há setores marginais que abastecem os centros exportadores articulandose assim indiretamente ao externo O novo poder nacional teve de se vincular duplamente então reorientou a vinculação externa e articulou as oligarquias locais voltadas para dentro As independências não foram homogêneas isentas de lutas internas As lutas internas foram definindo as alianças os mercados nacionais e os limites territoriais Estabeleceuse uma primeira forma de dependência com a produção controlada nacionalmente As economias nacionais dependiam de um produto primário de exportação de abundante oferta de mão de obra e disponibilidade de terras Os grupos modernos ligados ao mercado mundial se associaram internamente aos grupos tradicionais desligados do mercado mundial Constituíram uma aliança não sem tensões que controlou o Estado durante todo o século XIX Essa primeira forma de articulação entre as nações latinoamericanas recémindependentes e o capitalismo que variou de país para país mudará na passagem do século XIX para o XX e se acentuará nos 30 anos seguintes Já ao longo do século XIX ao lado das oligarquias afirmaramse setores financeiros e mercantis que abriram a possibilidade do desenvolvimento de uma economia urbanoindustrial Na passagem do século XIX para o XX os países latinoamericanos atravessam um período de transição cada um a sua maneira No interior da sociedade econômica exportadora apareceram novos atores sociais os setores médios que puseram em xeque aquele modelo de crescimento para fora o qual entraria em crise mais aguda com as crises externas Mas insiste F H Cardoso essa crise só foi agudizada pelas crises externas não foi criada por elas A dominação oligárquica começou a se deteriorar antes da crise econômica mundial com a formação interna de um setor burguês que produzia para dentro desvinculado portanto do mercado mundial embora ele tivesse de se apoiar em uma complexa aliança com os latifúndios tradicionalistas Foi o próprio crescimento da economia exportadora que propiciou a diferenciação interna o surgimento dos grupos médios a produção voltada para dentro e o fortalecimento do mercado interno Apareceram os primeiros núcleos industriais as classes típicas do capitalismo a burguesia e o proletariado tudo isso em consequência da expansão do setor exportador Não há oposição entre os setores exportador e interno são complementares Eis como F H Cardoso vê a América Latina como um todo a primeira dependência nacional após a ruptura do Pacto Colonial era baseada na exportação de produtos primários para o mercado mundial A produção para o mercado interno era vinculada à área exportadora que consumia esses produtos nacionais À medida que a exportação crescia estimulava a produção voltada para o mercado interno que no início dos anos 1930 se fortaleceu impondo uma reestruturação das forças internas e uma rearticulação com o capitalismo internacional Essa tendência geral foi conduzida de forma particular em cada país latinoamericano E F H Cardoso analisará os vários países latinoamericanos como casos históricoconcretos dessa tendência geral Interessanos a sua análise do caso históricoconcreto Brasil O Brasil na América Latina No Brasil a modernização da economia exportadora se manifestou com a abolição e com o advento da República 188889 Até 186070 mandavam as alianças regionais do açúcar e do café O poder oligárquico garantia o Império A oligarquia no poder se dividira em dois partidos um conservador e outro liberal F H Cardoso não desvaloriza essa divisão interna às elites oligárquicas quer dizer não minimiza a sua diferenciação interna Para ele seria um erro subestimar a capacidade transformadora do partido liberal que foi de fato renovador A modernização se iniciou após 1870 depois da Guerra do Paraguai e com a vinda do trabalhador livre imigrante A pressão dos grupos oligárquicos renovadores e dos setores médios levou à transformação da ordem agrária escravista Essas pressões intensificadas pela I Guerra Mundial e pela crise de 1929 se acentuaram nos primeiros 30 anos do século XX As expressões visíveis dessa aceleração das pressões renovadoras foram as agitações dos anos 1920 e a Revolução de 1930 A transformação renovadora se acelerou Em 1930 algumas oligarquias regionais associadas aos setores médios deslocaram as oligarquias nacionais de Minas e São Paulo Vargas representante das oligarquias excluídas durante a Primeira República irá fortalecer os setores urbanos a burguesia o proletariado e os segmentos médios dependentes da indústria nacional Ele estimulará o mercado interno renovando o Estado investindo em indústrias básicas e protegendo o proletariado O problema da industrialização no Brasil é o de saber quais grupos poderão tomar as decisões de investimento na produção voltada para o mercado interno A burguesia é ascendente mas politicamente frágil Ela é o sujeito que produzirá para o mercado interno Pós1930 ela se aproximará das massas a fim de limitar o poder das oligarquias rurais Há uma intensa mobilização política das massas Aos poucos essa mobilização levará ao grande problema da compatibilização entre a incorporação socioeconômica das massas e o reinvestimento As propostas nacionalistas e desenvolvimentistas unem grupos opostos promovendo alianças que levarão a impasses resolvidos pela violência A indústria nessa época foi sustentada por uma política nacionalista e populista Vargas e seus sucessores populistas instalaram certas indústrias de base aço energia elétrica transporte e petróleo Foram importantes equipamentos para a constituição de um parque industrial moderno A industrialização pós1930 foi feita por forças internas sobretudo mesmo se o capital externo já entrava e tendia a ocupar cada vez mais espaço As forças internas entrarão em choque com a presença do capital externo no mercado interno Essa presença bloqueava o desenvolvimento acelerado da industrialização nacional e comprometia a soberania argumentavam os nacionalistas Essa era a realidade que permitia falar em revolução democráticoburguesa e em planejamento do desenvolvimento em bases nacionais F H Cardoso é mais brando em sua crítica ao PCB a realidade brasileira dos anos 192050 não proibia o sonho da emancipação e autonomia nacional Esse sonho naquela época não era um delírio total um discurso sem base histórica As ideias de nação e de desenvolvimento autossustentado reuniam internamente grupos antagônicos contra os adversários comuns o passado oligárquico e o presente imperialista Havia portanto um clima de otimismo e pensouse alcançar um desenvolvimento autossustentado reconhece F H Cardoso menos cáustico do que Caio Prado Jr em sua avaliação do projeto nacionalburguês A produção e o mercado interno reorganizados o Brasil tinha acumulado grande quantidade de divisas e se tinha industrializado de fato Nos anos 1950 o Brasil contava com um mercado interno mais forte integrado desde o século XIX uma forte base industrial uma abundante fonte de divisas uma forte taxa de crescimento do capital interno Era necessário ainda absorver uma tecnologia capaz de promover a diversificação da produção e aumentar a produtividade Viviase um momento estrutural e conjuntural favorável A teoria e a prática vislumbravam o desenvolvimento pela industrialização um desenvolvimento autossustentado estimulando o mercado interno pela criação de uma indústria própria de bens de capital O mercado interno em expansão garantia por si só o desenvolvimento que não dependeria mais do estímulo externo Falouse então em redistribuição de renda para fortalecer o mercado interno e o consumo de produtos nacionais em reforma agrária para garantir a maisvalia relativa discutiuse a revolução democráticoburguesa ou o desenvolvimento capitalista em bases nacionais Havia enfim uma esperança na possibilidade de desenvolvimento autossuficiente e autônomo Esperança não sem fundamento Entretanto nos anos 1960 fatos novos vieram destruir esse ambiente otimista As esquerdas se tornaram ressentidas amargas sofrendo a derrota e a perda do futuro de desenvolvimento com autonomia F H Cardoso tentará recuperar o otimismo das esquerdas O futuro não foi perdido ainda É preciso saber onde houve erro na análise da realidade que não foi lúcida e adequada ou nos sujeitos da modernização brasileira que não souberam fazer as opções corretas que a estrutura possibilitava F H Cardoso conclui que houve erro nos dois níveis no teórico e no político Faltou uma análise integrada que desse conta do desenvolvimento específico dos países latinoamericanos Tal análise apoiaria os sujeitos da modernização com uma melhor informação sobre a realidade É esta análise integrada que ele pretende oferecer agora às sociedades latino americanas Tal análise revelaria a existência de limites estruturais ao desenvolvimento industrial controlado nacionalmente sem também impor a conclusão de que ele deveria ser tal como se deu isto é com a participação e o controle externos O desenvolvimento não tem necessariamente de ser controlado ou de dentro ou de fora a análise ofereceria apenas o conhecimento das forças internas da sua luta e das opções que fazia É esta luta interna que define a opção feita Em Cuba por exemplo tal luta levou a uma opção pelo desenvolvimento no socialismo no Brasil a luta interna não levou nem a esta opção cubana e nem à opção pelo capitalismo nacional A análise integrada revelaria as lutas internas e as opções feitas por cada aliança dos grupos vitoriosos nacionais No caso do Brasil as lutas internas levaram à opção pelo desenvolvimento capitalistaassociado Aqui os grupos vitoriosos acreditavam na viabilidade do desenvolvimento capitalistadependente As lutas internas pelo poder instauraram um conjunto histórico de possibilidades estruturais próprias alternativas foram excluídas e opções foram feitas dentro de possibilidades estruturais pelos grupos vencedores Por que teriam feito aquela opção os grupos vencedores no Brasil Porque o desenvolvimento industrial em bases nacionais teria que compatibilizar acumulação e reinvestimento com integração econômicosocial das massas O que não é possível em uma economia dependente ou se faz a acumulação e se exclui ou se inclui e não se faz a acumulação Os grupos nacionais optaram pela acumulação pelo desenvolvimento tipicamente capitalista que é excludente Nos anos 193050 tinha sido possível um crescimento para dentro porque a conjuntura internacional era de crise favorável ao crescimento em bases nacionais Naquele momento foi possível minimizar a exclusão social e incorporar as massas na aliança desenvolvimentista nacional populista Tal incorporação no entanto diminuía a capacidade de acumulação As oligarquias rurais e as burguesias industriais não suportavam a pressão por melhores salários no campo e na cidade O Estado premido pelas massas tornouse perigoso A queda dos preços dos produtos de exportação preços que são controlados de fora veio limitar ainda mais a acumulação necessária à industrialização F H Cardoso põese no lugar do setor industrial no início dos anos 1960 e examina todas as opções para continuar crescendo em bases nacionais Nenhuma delas era satisfatória Todas gerariam crises internas perigosas Só lhe restou uma opção para continuar acumulando e promovendo a industrialização a internacionalização do mercado interno a sua associação com a burguesia internacional A fase da industrialização por substituição de importações passara Desfezse a antiga aliança populistadesenvolvimentista Criouse uma nova dependência que reorganizava os grupos internos articulandoos ao externo de forma nova Nessa nova dependência a periferia não é mais agroexportadora Aparece uma novidade histórica a periferia industrializada A relação com o exterior será de outra ordem as economias centrais investem diretamente nos mercados periféricos A opção interna foi então pela industrialização e desenvolvimento no interior da dependência O desenvolvimento se faz com crescentes investimentos estrangeiros no setor industrial Os capitais externos se solidarizam com a expansão da economia de mercado favorecendo o seu desenvolvimento Podese até supor que há autonomia e desenvolvimento mas essa nova dependência continua supondo heteronomia e desenvolvimento limitado A economia central e a periférica se encontram no próprio mercado interno O desenvolvimento industrial será alcançado com restrição da autonomia do sistema econômico nacional e da soberania política A unificação dos sistemas produtivos leva à padronização dos mercados e ao seu ordenamento supranacional O mercado mundial impõe suas leis aos grupos locais restringindolhes a autonomia Entretanto também associado ao capital externo o Estado se fortalece tornase empresário o que aumenta a sua autonomia A vida política se torna mais complexa Nessa nova forma de desenvolvimento dependenteassociado articulamse o setor público empresarial as multinacionais e o setor moderno nacional Dividem a esfera da produção entre si em áreas de atuação Os setoreschave são dominados pelas multinacionais bens de consumo duráveis e produtos primários de exportação O setor nacional se associa às multinacionais em condição subordinada E os três são consumidores dos produtos e serviços uns dos outros São produtoresconsumidores As reivindicações do povo pela redistribuição da renda são reprimidas pois o seu consumo é dispensável O desenvolvimento se realiza pela intensificação da exclusão social das massas e de grupos que tinham poder na fase anterior Em vez de um nacionalpopulismo antiimperialista há um nacionalestatismo dependente associado O Estado empresarial e não mais populista já não se interessa pela redistribuição da renda A centralização autoritária facilitará a implantação do modo de produção capitalista nas economias dependentes Essa nova dependência se impôs de forma consistente a partir de 1964 Desde essa época dominarão os burgueses internacionalizados com o apoio do Poder Executivo e dos tecnocratas A burguesia atuará mais sobre o Estado do que através de partidos políticos Ela organiza anéis burocráticos que a instalam diretamente no Executivo O Estado pressionado também por setores médios intelectuais de esquerda partidos e parlamentares empresários nacionais que são contra a indústria em bases não nacionais às vezes realizará desvios nacionalistas que a burguesiaassociada instalada nos anéis burocráticos tratará de minimizar ou corrigir O desenvolvimento capitalista dependente exclui os assalariados em geral e setores industriais não associados Aumenta a marginalização Mas a resistência está controlada As classes dominantes estão solidárias na dominação A passagem para o capitalismo industrial em países dependentes assentase em regimes autoritários cuja duração dependerá do êxito econômico dos grupos no poder Mas o curso da história apesar de ser um rio com margens estreitas depende da ousadia dos que agem em função de fins historicamente viáveis Quanto ao futuro F H Cardoso afirma não poder controlálo antecipadamente Ele dependerá da ação coletiva que realizará o que for estruturalmente viável A história não se deixa fechar em teorias e esquemas simples seu desdobramento é inesperado e exige pesquisa histórica particular sóbria e paciente Em todo caso F H Cardoso define a sua visão do futuro prefere não ser idílico socialista nem catastrofista estagnação Prefere o otimismo a superação dos obstáculos ao desenvolvimento depende mais do jogo de poder que utilizará as condições econômicas do que das próprias condições econômicas O futuro dependerá da ação de sujeitos históricos competentes e audaciosos que saberão fazer as opções mais favoráveis ao desenvolvimento que a estrutura capitalista possibilitar A história é uma invenção dos homens embora sob estreitos limites estruturais26 F H Cardoso versus F Fernandes e F Weffort Essa é a análise que F H Cardoso e E Falleto fazem da América Latina A partir de certo momento quando F H Cardoso passa ao esclarecimento da teoria ele tende a fazer a apologia da opção feita como a única que poderia ter sido feita Dá a impressão de desejar que as coisas se tenham dado como se deram e não apenas de analisar e constatar uma opção realizada Parece passar a apoiar a burguesia brasileira e o Estado na sua associação com o capitalismo internacional Desapareceu da sua análise o tom de protesto presente em uma análise tão rigorosa quanto a dele como a de F Fernandes A ausência dessa indignação com os métodos da burguesia e com a exclusão que o desenvolvimento capitalista associado exige o confirma no ponto de vista burguês Tal indignação só pode ser percebida em uma análise do Brasil a partir do ponto de vista dos grupos que sofrem tal opção feita pela burguesia Sua análise se apoia na ação de uma classe social ação que ele declara apenas querer conhecer constatando mas que acaba conhecendo apreciando e orientando Teria o sujeito do conhecimento sido vítima do seu objeto De tanto pôrse no lugar de para compreender melhor o outro correse o risco de aderir ao seu lugar de tomar e ficar no lugar Não haveria nisso nada de problemático se tal orientação não significasse uma minimização do autoritarismo que essa opção representou e uma desconsideração da exclusão social que ela propõe Entretanto F H Cardoso não é nem autoritário nem favorável à exclusão social por isso ele pode ser também considerado um intelectual de esquerda Mas na medida em que se especializou na burguesia e se tornou um seu assessor e informante ele por um lado tornouse aliado e cúmplice da sua ação autoritária e excludente e por outro tornouse um civilizador da burguesia seu professor de democracia de tolerância e de simpatia pelos excluídos Os analistas da teoria da dependência procuram restringir a sua validade mesmo reconhecendo a sua grande fecundidade Para Weffort a teoria da dependência não seria uma teoria na verdade mas uma problemática que teve um papel renovador na discussão da América Latina ao abandonar a tese do padrão universal do desenvolvimento capitalista para enfatizar a peculiaridade dos caminhos latinoamericanos para o desenvolvimento Sua presença é renovadora e crítica pois chama a atenção para as singularidades latinoamericanas Entretanto ela possui elementos ideológicos que a diminuem como teoria científica O conceito de dependência afirma Weffort é impreciso o que dificulta o seu uso científico Este conceito se refere à luta de classes ou à nação Ele é ambíguo referese à dependência externa centronação e a uma dependência estrutural classes internas e externas O conceito oscila entre uma abordagem nacional e uma abordagem de classe A ideia de nação no entanto é contraditória com a de dependência estrutural Nação implica autonomia e soberania a dependência estrutural implica heteronomia associação em uma posição menor Na perspectiva de classe que é a da dependência estrutural a questão nacional é secundária senão irrelevante A teoria marxista ignora a existência de nações o sistema capitalista é universal universais são as classes sociais em sua luta27 A teoria da dependência parece dar uma ênfase excessiva ao conceito de nação tomandoo em pé de igualdade com o de classe quando uma teoria de classe não precisa da nação Mas na América Latina qual o lugar dos valores nacionais nas relações de classe Weffort parece portanto querer limitar o conceito de dependência à luta de classes à dependência estrutural e desvalorizar o seu uso na dependência externa entre nações centrais e periféricas que ele considera secundária do ponto de vista marxista Weffort 1971 F H Cardoso comentou essas considerações de Weffort procurando esclarecer o seu ponto de vista Para ele a análise históricoconcreta que a teoria da dependência pretende realizar não pode estudar as classes no interior de um país sem levar em conta o conceito de nação Esta análise recupera a significação política dos processos econômicos contra a vagueza das análises pseudomarxistas que veem o imperialismo como uma enteléquia a condicionar desde o exterior os países dependentes O valor da noção de dependência está na recuperação do nível concreto isto é permeado pelas mediações políticas e sociais da luta de classes as quais constituem interna e externamente o capitalismo internacional Nas relações entre naçãoautonomia e classeheteronomia não há uma ambiguidade tratase de uma contradição real na situação de dependência Na análise da situação concreta aparece esta contradição entre naçãoEstado e a internacionalização das relações de produção capitalistas Além do mais Marx nunca desprezou os Estados nacionais em suas análises sobre o capitalismo na Europa O conceito de nação revela um aspecto político da luta de classes no nível internacional querse o desenvolvimento capitalista mas este é articulado por forças internas a cada país forças que ao mesmo tempo querem a associação internacional de classes e a manutenção do seu poder de decisão política autônoma28 F H Cardoso estaria disposto entretanto a reconhecer uma crítica à sua interpretação Ele próprio admite que o seu livro avançou pouco na análise dos limites da reprodução da situação de dominação de classe em países dependentes Sua análise se refere pouco à ruptura da dominação capitalista interna ele não tratou de uma possível revolução socialista Em que circunstâncias seria possível interromper o desenvolvimento capitalista dependenteassociado por um projeto que integre mais a população ao desenvolvimento por um projeto que não só estimule o crescimento econômico mas também a integração das massas ao gozo deste crescimento Ele reconhece que não tratou disso pois também não pretendeu se referir ao que deveria ser Poderia ter avançado na análise deste futuro possível mas preferiu não ser idílico Espera que outro faça este avanço teórico a partir da sua própria análise Entretanto quem o fizer exige ele deverá formular não um anseio ideológico da revolução socialista mas uma teoria que permita orientar a prática de uma revolução socialista viável Para formular tal teoria da revolução socialista este pesquisador deverá ir além na análise das situações concretas da dependência para ver como agem em situações concretas as forças sociais capazes de superar o estado atual de dependência Enfim uma teoria da revolução socialista só será válida e aceitável se apoiada em uma análise integrada dialética de situações histórico estruturais concretas29 F H Cardoso seria um marxista que aplica à realidade latinoamericana o método dialético e não o força a concluir pelo socialismo Sua análise marxista da realidade latinoamericana não o autorizou a extrair esta conclusão A revolução socialista é necessária e iminente Pelo contrário a sua análise revelou que ela é idílica longínqua É um projeto ainda sem sujeito eficaz organizado e forte O que tampouco significa que ela seja não realizável desde que apoiada em uma análise históricoestrutural concreta que a tome como uma opção estruturalmente viável No redescobrimento do Brasil feito pelos intérpretes marxistas de 1950 a 1970 o que se percebeu foi uma restrição progressiva da ideia de revolução Nos anos 1950 ela era uma evidência uma euforia uma crença uma fé uma ciência uma necessidade iminente Nos anos 1960 com Caio Prado Jr a ideia foi reconstruída e adiada após a derrota mas mantida apoiada em uma outra análise da realidade brasileira No final dos anos 196070 têmse duas visões da revolução brasileira F Fernandes continua a alimentar esta esperança Quanto mais a sua análise empírica da realidade brasileira a proíbe mais ele protesta e aspira a ela Vê as mudanças no Brasil serem produzidas por um sujeito histórico pouco eficaz pouco audacioso uma burguesia tímida para fora e violenta para dentro F Fernandes por mais que perceba a continuidade predominando sobre a mudança insiste na necessidade da mudança e na sua aceleração Nele teoria social e sentimento político mantêm uma relação tensa a teoria social revela a continuidade seu sentimento político é o da produção acelerada da mudança Em F H Cardoso a mudança é percebida como aceleração em outro sentido o da modernização capitalista mas com associação e dependência A mudança não é ruptura estrutural mas a realização das possibilidades estruturais F H Cardoso constata que o Brasil muda e rápido mas dentro da estrutura capitalista E ele não protesta contra este sentido da história brasileira A ruptura estrutural foi reconhecida como inviável um sonho irrealizável A emancipação e a autonomia nacionais que representariam tal revolução foram substituídas pela radicalização e renovação da dependência e do comprometimento da autonomia nacional Mas fundamentalmente com mudança produzida por novos sujeitos históricos em direção ao desenvolvimento industrial e à democracia Bibliografia Introdução Domingues I O fio e a trama São PauloBelo Horizonte IluminurasUFMG 1996 Eco U Interpretação e superinterpretação São Paulo Martins Fontes 1993 Febvre L Combats pour lhistoire Paris A Colin 1992 Koselleck R Le futur passé Contribution à la semantique des temps historiques Paris EHESS 1990 Mota C G Ideologia da cultura brasileira 193374 São Paulo Ática 1978 Ortega y Gasset J Kant Hegel Dilthey Madrid Revista de Occidente 1958 Reis J C Tempo história e evasão Campinas Papirus 1994 Ricoeur P De linterprétation Essai sur Freud Paris Seuil 1965 História e verdade Rio de Janeiro Forense 1968 Interpretação e ideologias Rio de Janeiro Francisco Alves 1988 Schaff A História e verdade São Paulo Martins Fontes 1978 Sobre Varnhagen História geral do Brasil 185357 7 ed Revisão e notas de Rodolfo Garcia São Paulo Melhoramentos 1962 5t Abreu J Capistrano de Sobre o visconde de Porto Seguro In Ensaios e estudos crítica e história 2 ed Rio de JaneiroBrasília Civilização BrasileiraINL 1975a Necrológio de Varnhagen In Ensaios e estudos crítica e história Rio de JaneiroBrasília Civilização BrasileiraINL 1975b Araújo R B Ronda noturna narrativa crítica e verdade em Capistrano de Abreu Estudos Históricos Rio de Janeiro Vértice 1 1988 Barata M A obra de Martius e a sua presença na cultura brasileira In II Colóquio de Estudos TeutoBrasileiros Recife UFPE 1974 Campos P M Esboço da historiografia brasileira nos séculos XIX e XX In Glenisson J Iniciação aos estudos históricos São Paulo Difel 1983 Canabrava A P Apontamentos sobre Varnhagen e Capistrano Revista de História São Paulo USP 1888 outdez 1971 Dias M Odila O fardo do homem branco Southey historiador do Brasil São Paulo Nacional 1974 Coleção Brasiliana 344 Guimarães M L S Nação e civilização nos trópicos O IHGB e o projeto de uma história nacional Estudos Históricos Rio de Janeiro Vértice 1 1988 Mota C G Atitudes de inovação no Brasil 17891801 Lisboa Horizonte sd Moura C As injustiças de Clio o negro na historiografia brasileira Belo Horizonte Oficina de Livros 1990 Odália N org Varnhagen São Paulo Ática 1979 Coleção Grandes Cientistas Sociais Ortiz R Cultura brasileira e identidade nacional São Paulo Brasiliense 1985 Ribeiro D O povo brasileiro a formação e o sentido do Brasil São Paulo Companhia das Letras 1995 Rodrigues J H Varnhagen mestre da história geral do Brasil Revista do IHGB abrjun 1967 Sobre a criação do Instituto Histórico e Geographico Brazileiro Revista do IHGB 1 1o trim 1839 Stein Stein A historiografia brasileira 18081889 Revista de História São Paulo USP 2959 1964 Von Martius K Philipp Como se deve escrever a história do Brasil Jornal ou Revista Trimestral do IHGB 24 jun 1845 Frey Apollônio um romance do Brasil São Paulo Brasiliense 1992 Sobre Gilberto Freyre Casagrande senzala 1933 25 ed Rio de Janeiro J Olympio 1987 Araújo R B Guerra e paz Casagrande senzala e a obra de G Freyre nos anos 30 Rio de Janeiro Editora 34 1994 Avila F B G Freyre e o desafio da cultura lusotropical In Gilberto Freyre na UnB Brasília UnB 1981 Barbu Z A contribuição de G Freyre à sociologia histórica In Gilberto Freyre na UnB Brasília UnB 1981 Bastos E R Gilberto Freyre e a questão nacional In Inteligência brasileira São Paulo Brasiliense 1986 Briggs A Gilberto Freyre e o estudo da história social In Gilberto Freyre na UnB Brasília UnB 1981 Burke P A revolução francesa da historiografia a escola dos Annales 19291989 São Paulo Unesp 1991 Cândido A Prefácio o significado de Raízes do Brasil In Holanda S B Raízes do Brasil Rio de Janeiro J Olympio 1976 Cardoso F H Livros que inventaram o Brasil In Novos Estudos Cebrap São Paulo Cebrap 37 1993 Chacon V Gilberto Freyre uma biografia intelectual RecifeSão Paulo FundajMassanganaNacional 1993 Duvignaud J Gilberto Freyre sociólogo humanista In Gilberto Freyre na UnB Brasília UnB 1981 Freyre G Como e por que sou e não sou sociólogo Brasília UnB 1968 Novo mundo dos trópicos São Paulo NacionalEdusp 1971 Coleção Brasiliana Gorender J A escravidão reabilitada São Paulo ÁticaSCSP 1990 Graham R A escravatura brasileira reexaminada In Escravidão reforma e imperialismo São Paulo Perspectiva 1979 Kujawski G M G Freyre escritor ibérico In Gilberto Freyre na UnB Brasília UnB 1981 Leite D M O caráter nacional brasileiro São Paulo Pioneira 1983 Lima L C A versão solar do patriarcalismo Casagrande senzala In Aguarrás do tempo Rio de Janeiro Rocco 1989 Marias J O tempo e o hispânico em G Freyre In Gilberto Freyre na UnB Brasília UnB 1981 Merquior J G Na casagrande dos 80 In Gilberto Freyre na UnB Brasília UnB 1981 Mota C G Ideologia da cultura brasileira 193374 São Paulo Ática 1978 Motta R C A intuição da história In Gilberto Freyre na UnB Brasília UnB 1981 Ortiz R Cultura brasileira e identidade nacional São Paulo Brasiliense 1985 Queiroz S R Rebeldia escrava e historiografia Estudos Econômicos São Paulo IPEUSP 17 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LetrasSecretaria Municipal de Cultura 1992 Câmara J S Capistrano de Abreu Rio de Janeiro J Olympio 1969 Documentos Brasileiros Campos P M Esboço da historiografia brasileira nos séculos XIX e XX In Glenisson J Iniciação aos estudos históricos São Paulo Difel 1983 Canabrava A Apontamentos sobre Varnhagen e Capistrano Revista de História São Paulo USP 1888 outdez 1971 Chacon V História das ideias sociológicas no Brasil São Paulo USPGrijalbo 1977 Gilberto Freyre uma biografia intelectual RecifeSão Paulo FundajMassanganaNacional 1993 Odália N Formas do pensamento historiográfico brasileiro Anais de História AssisSão Paulo Unesp 8 1976 Ortiz R Cultura brasileira e identidade nacional São Paulo Brasiliense 1985 Reis J C A história metódica dita positivista In A história entre a filosofia e a ciência São Paulo Ática 1996 Ribeiro D O povo brasileiro a formação e o sentido do Brasil São Paulo Companhia das Letras 1995 Rodrigues J H Prefácio In Capítulos de história colonial 15001800 Os caminhos 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brasileira contemporânea Revista de Administração Pública Rio de Janeiro FGV 41 jul ago 1974 Dias M O Introdução In S B Holanda São Paulo Ática 1986 Coleção Grandes Cientistas Sociais Ianni O Sociologia da sociologia São Paulo Ática 1989 A ideia de Brasil moderno São Paulo Brasiliense 1994 Iglésias F Sérgio Buarque de Holanda historiador In III Colóquio sobre S B de Holanda Uerj Rio de Janeiro Imago 1992 Leite D M O caráter nacional brasileiro São Paulo Pioneira 1983 Mota C G Ideologia da cultura brasileira 193374 São Paulo Ática 1978 Peixoto C A A diferença e a unidade em torno de algumas ideias de Sérgio Buarque In III Colóquio sobre S B de Holanda Uerj Rio de Janeiro Imago 1992 Reis J C O historicismo Aron versus Dilthey In A história entre a filosofia e a ciência São Paulo Ática 1996 Semana S B de HolandaUSP São Paulo Secretaria de Estado da Cultura 1992 Weber M Metodologia das ciências sociais São Paulo Cortez 1992 2v Sobre Nelson Werneck Sodré História da burguesia brasileira Civilização Brasileira 1964 4 ed Petrópolis Vozes 1983 Bornheim G O pensamento marxista e a exigência de sua renovação Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1978 Encontros com a Civilização Brasileira 4 BresserPereira L C Seis interpretações do Brasil Dados São Paulo Perspectiva 253 1979 Cardoso Ciro Sobre os modos de produção coloniais da América In Santiago Th org América colonial Rio de Janeiro Pallas 1975 Cardoso F H Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil São Paulo Difel 1964 Notas sobre o estado atual dos estudos sobre a dependência Cadernos Cebrap São Paulo Cebrap 11 1975 Konder L A derrota da dialética Rio de Janeiro Campus 1988 Intelectuais brasileiros marxismo Belo Horizonte Oficina de Livros 1991 Ianni O Sociologia da sociologia São Paulo Ática 1989 A ideia de Brasil moderno São Paulo Brasiliense 1994 Lapa J R A org Modos de produção e realidade brasileira Petrópolis Vozes 1980 Mantega G A economia política brasileira São PauloPetrópolis PólisVozes 1984 Marxismo na economia brasileira In História do marxismo no Brasil Rio de Janeiro Paz e Terra 1991 v 2 Moraes J Q A evolução da consciência política dos marxistas brasileiros In História do marxismo no Brasil Rio de Janeiro Paz e Terra 1991 v 2 Mota C G Ideologia da cultura brasileira 193374 São Paulo Ática 1978 Prado Jr Caio A revolução brasileira São Paulo Brasiliense 1966 Sodré N W História e materialismo histórico no Brasil São Paulo Global 1986 Topalov Ch Estruturas agrárias brasileiras Rio de Janeiro Francisco Alves sd Sobre Caio Prado Jr A revolução brasileira 1966 7 ed São Paulo Brasiliense 1987 Bosi A A arqueologia do Estadoprovidência In Dialética da colonização São Paulo Companhia das Letras 1992 BresserPereira L C Seis interpretações do Brasil Dados São Paulo Perspectiva 253 1979 In DIncao M A História e ideal Ensaios sobre Caio Prado Jr São Paulo BrasilienseUnesp 1989 Cardoso Ciro Sobre os modos de produção coloniais da América In Santiago Th org América colonial Rio de Janeiro Pallas 1975 Cardoso F H Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil São Paulo Difel 1964 Livros que inventaram o Brasil Novos Estudos Cebrap São Paulo Cebrap 37 1993 Coutinho C N A imagem do Brasil na obra de Caio Prado In Cultura e sociedade no Brasil Belo Horizonte Oficina de Livros 1990 DIncao M A História e ideal ensaios sobre Caio Prado Jr São Paulo UnespBrasiliense 1989 Garcia M A Um ajuste de contas com a tradição In DIncao M A História e ideal ensaios sobre Caio Prado Jr São Paulo BrasilienseUnesp 1989 Gorender J Do pecado original ao desastre de 1964 In DIncao M A História e ideal Ensaios sobre Caio Prado Jr São Paulo BrasilienseUnesp 1989 Ianni O Sociologia da sociologia São Paulo Ática 1989 A ideia de Brasil moderno São Paulo Brasiliense 1994 Iglésias F Caio Prado Jr Introdução São Paulo Ática 1982 Coleção Grandes Cientistas Sociais Konder L Intelectuais brasileiros marxismo Belo Horizonte Oficina de Livros 1991 Mantega G A economia política brasileira São PauloPetrópolis PólisVozes 1984 Marxismo na economia brasileira In História do marxismo no Brasil Rio de Janeiro Paz e Terra 1991 v 2 Mello J O economicismo em Caio Prado Novos Estudos Cebrap São Paulo Cebrap 18 1987 Moraes J Q A evolução da consciência política dos marxistas brasileiros In História do marxismo no Brasil Rio de Janeiro Paz e Terra 1991 v 2 Mota C G A ideologia da cultura brasileira 193374 São Paulo Ática 1978 Novais F Caio Prado Jr e a historiografia brasileira In Inteligência brasileira São Paulo Brasiliense 1986 Santos L A O espírito de aldeia orgulho ferido e vaidade na trajetória intelectual de G Freyre Novos Estudos Cebrap São Paulo Cebrap 27 1993 Sodré N W Modos de produção no Brasil In Lapa J R A Modos de produção e realidade brasileira Petrópolis Vozes 1980 Topalov Ch Estruturas agrárias brasileiras Rio de Janeiro Francisco Alves sd Sobre Florestan Fernandes A revolução burguesa no Brasil Ensaio de interpretação sociológica 1974 3 ed Rio de Janeiro Guanabara 1987 BresserPereira L C Seis interpretações do Brasil Dados São Paulo Perspectiva 253 1979 Cohn G Florestan Fernandes In Inteligência brasileira São Paulo Brasiliense 1986 Costa E V A revolução burguesa no Brasil Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1978 Encontros com a Civilização Brasileira 4 Franco M S C As ideias estão no lugar São Paulo Brasiliense 1981 Cadernos de Debates 1 Gorender J A escravidão reabilitada São Paulo ÁticaSecretaria de Estado da Cultura 1990 Graham R A escravatura brasileira reexaminada In Escravidão reforma e imperialismo São Paulo Perspectiva 1979 Ianni O Florestan Fernandes Introdução São Paulo Ática 1978 Coleção Grandes Cientistas Sociais Sociologia da sociologia São Paulo Ática 1989 A ideia de Brasil moderno São Paulo Brasiliense 1994 Mantega G Marxismo na economia brasileira In História do marxismo no Brasil Rio de Janeiro Paz e Terra 1991 v 2 Moraes J Q A evolução da consciência política dos marxistas brasileiros In História do marxismo no Brasil Rio de Janeiro Paz e Terra 1991 v 2 Mota C G Ideologia da cultura brasileira 193374 São Paulo Ática 1978 Queiroz S R Rebeldia escrava e historiografia Estudos Econômicos São Paulo IPEUSP 17 1987 Saes D A formação do estado burguês no Brasil 188891 São Paulo Paz e Terra 1984 Schwarz Roberto As ideias estão fora do lugar In Ao vencedor as batatas São Paulo Duas Cidades 1981 Silveira Paulo Estrutura e história Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1978 Encontros com a Civilização Brasileira 4 Sobre Fernando Henrique Cardoso Dependência e desenvolvimento na América Latina Rio de Janeiro Zahar 1970 Atrás da cena FHC afia as garras do triunfo Veja São Paulo 12 out 1994 BresserPereira L C Seis interpretações do Brasil Dados São Paulo Perspectiva 253 1979 Cardoso F H Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil São Paulo Difel 1964 Teoria da dependência ou análises concretas de situações de dependência Estudos Cebrap São Paulo Cebrap 1 1971 O consumo da teoria da dependência nos EU In As ideias e o seu lugar Petrópolis Vozes 1973 As tradições do desenvolvimentoassociado Estudos Cebrap São Paulo Cebrap 1974 Notas sobre o estado atual dos estudos sobre a dependência Cadernos Cebrap São Paulo Cebrap 11 1975 Ciência e política a nova agenda sociológica da América Latina a nova esquerda a utopia viável In Brasil Presidência da República A utopia viável trajetória intelectual de F H Cardoso Brasília Presidência da República 1995 Chacon V Uma weberiana brasileira In Bendix R Max Weber um perfil intelectual Brasília UnB 1986 Fernandes F O novo presidente Folha de SPaulo São Paulo 31101994 A utopia possível Folha de SPaulo São Paulo 2771995 Franco M S C As ideias estão no lugar São Paulo Brasiliense 1981 Cadernos de Debates 1 Goldstein L Repensando a dependência São Paulo Paz e Terra 1994 Gorender J A escravidão reabilitada São Paulo ÁticaSecretaria de Estado da Cultura 1990 Graham R A escravatura brasileira reexaminada In Escravidão reforma e imperialismo São Paulo Perspectiva 1979 Lehman D F H Cardoso da dependência à democracia Novos Estudos Cebrap São Paulo Cebrap 14 1986 Mantega G Marxismo na economia brasileira In História do marxismo no Brasil Rio de Janeiro Paz e Terra 1991 v 2 Maranhão S M A Sobre Max Weber Um breve estudo de sua influência metodológica na sociologia brasileira In II Colóquio de Estudos TeutoBrasileiros Recife UFPE 1974 Moraes J Q A evolução da consciência política dos marxistas brasileiros In História do marxismo no Brasil Rio de Janeiro Paz e Terra 1991 v 2 Mota C G A ideologia da cultura brasileira 193374 São Paulo Ática 1978 O presidente a força da vitória Jornal do Brasil Rio de Janeiro 17101994 Suplemento especial Queiroz S R Rebeldia escrava e historiografia Estudos Econômicos São Paulo IPEUSP 17 1987 Schwarz Roberto As ideias estão fora do lugar In Ao vencedor as batatas São Paulo Duas Cidades 1981 Weffort F Dependência classe e nação Estudos Cebrap São Paulo Cebrap 1 1971 O intelectual das identidades complexas In Brasil Presidência da República A utopia viável trajetória intelectual de F H Cardoso Brasília Presidência da República 1995 Notas PREFÁCIO 1 FERNANDES Florestan A revolução burguesa Rio de Janeiro Zahar Editores 1974 p 217219 2 BRESSERPEREIRA Luiz Carlos Seis interpretações sobre o Brasil Dados v 25 n 3 p 269306 1982 3 BRESSERPEREIRA Luiz Carlos O colapso de uma aliança de classes São Paulo Brasiliense 1978 4 CARDOSO Fernando Henrique FALETTO Enzo Dependência e desenvolvimento na América Latina Rio de Janeiro Zahar Editores 1970 p 30 VIVAS REPRESENTAÇÕES DO BRASIL 1 Originalmente publicado no jornal Zero Hora Porto Alegre p 68 22 abr 2000 2 REIS José Carlos As identidades do Brasil 2 de Calmon a Bomfim a favor do Brasil esquerda ou direita Rio de Janeiro FGV 2006 INTRODUÇÃO 1 Este trabalho foi desenvolvido entre agosto de 1993 e julho de 1997 Agradeço ao CNPq o apoio e o incentivo com uma preciosa bolsa de pesquisa durante os dois primeiros anos Este trabalho é também o resultado da disciplina historiografia brasileira que ministrei durante vários anos no Curso de História do Instituto de Ciências Humanas e Sociais ICHS da Universidade Federal de Ouro Preto Ufop Agradeço aos meus exalunos a sua contribuição através dos seus seminários e monografias de final de curso ANOS 1850 VARNHAGEN 2 Ver sobre a criação 1839 3 Op cit ANOS 1930 GILBERTO FREYRE 4 Apud Chacon 1993 5 Apud Chacon 1993 ANOS 1930 SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA 6 Depoimento de Sérgio Buarque de Holanda ver Semana 199219 7 Cf Weber 1992 ANOS 1950 NELSON WERNECK SODRÉ 8 Apud Topalov sd 9 Ibid 10 Apud Topalov sd ANOS 1960 CAIO PRADO JR 11 Cf DIncao 1989 Ianni 1994 12 Apud Topalov sd ANOS 196070 FERNANDO HENRIQUE CARDOSO 13 Jornal do Brasil 7101994 e Veja out 1994 14 Veja out 1994 15 Veja out 1994 16 Cf Lehmann 1986 17 Cf Cardoso 1974 18 Cf Cardoso 1973 19 Cf Cardoso 1973 e 1974 20 Cf Cardoso 1975 21 Cf Cardoso 1975 22 Cf Cardoso 1974 e 1975 23 Cf Weffort 1971 24 Cf Goldstein 1994 25 Cf Cardoso e Falleto 1970 26 Cf Cardoso 1971 27 Cf Weffort 1971 28 Cf Cardoso 1971 29 Ibid
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José Carlos Reis As Identidades do BRASIL 1 De Varnhagen a FHC 9ª edição ampliada FGV EDITORA José Carlos Reis As Identidades do BRASIL 1 De Varnhagen a FHC 9ª edição ampliada FGV EDITORA ISBN 9788522509096 Copyright 2007 José Carlos Reis Direitos desta edição reservados à EDITORA FGV Rua Jornalista Orlando Dantas 37 22231010 Rio de Janeiro RJ Brasil Tels 08000217777 2137994427 Fax 2137994430 email editorafgvbr pedidoseditorafgvbr web site wwwfgvbreditora Impresso no Brasil Printed in Brazil Todos os direitos reservados A reprodução não autorizada desta publicação no todo ou em parte constitui violação do copyright Lei no 961098 Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade do autor 1a edição 1999 4a edição 2001 5a edição 2002 6a edição 2003 7a edição 2005 8a edição 2006 9a edição ampliada 2007 1a reimpressão 2008 2a e 3a reimpressões 2009 4a reimpressão 2010 5a reimpressão 2011 REVISÃO DE ORIGINAIS Waldivia Marchiori Portinho REVISÃO Aleidis de Beltran e Fatima Caroni CAPA aspectodesign Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique SimonsenFGV Reis José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC José Carlos Reis 9 ed ampl Rio de Janeiro Editora FGV 2007 Inclui bibliografia 1 Brasil Historiografia I Fundação Getulio Vargas II Título CDD 981 Edição digital julho 2012 Arquivo ePub produzido pela Simplíssimo Livros Sumário Prefácio Uma sociedade nacionaldependente Luiz Carlos BresserPereira Vivas Representações do Brasil Introdução à 9a Edição Vera Alice Cardoso Silva Introdução Parte I O Descobrimento do Brasil Anos 1850 Varnhagen O elogio da colonização portuguesa Anos 1930 Gilberto Freyre O reelogio da colonização portuguesa Parte II O Redescobrimento do Brasil Anos 1900 Capistrano de Abreu O surgimento de um povo novo o brasileiro Anos 1930 Sérgio Buarque de Holanda A superação das raízes ibéricas Anos 1950 Nelson Werneck Sodré O sonho da emancipação e da autonomia nacionais Anos 1960 Caio Prado Jr A reconstrução crítica do sonho de emancipação e autonomia nacional Anos 196070 Florestan Fernandes Os limites reais históricos à emancipação e à autonomia nacionais a dependência sempre renovada e revigorada Anos 196070 Fernando Henrique Cardoso Limites e possibilidades históricas de emancipação e autonomia nacional no interior da estrutura capitalista internacional dependência desenvolvimento PREFÁCIO Uma sociedade nacionaldependente A rigor este belo livro de José Carlos Reis não precisa de um prefácio Quando foi publicado em 1999 talvez isso fizesse sentido já que o autor era desconhecido Desde então porém o livro se impôs por si mesmo Ainda que aborde um tema amplamente tratado as interpretações clássicas do Brasil o livro o discute usando um estilo claro e uma abordagem sem preconceitos aberta a essas mesmas interpretações de forma que o resultado é uma visão ampla dos autores escolhidos e do Brasil José Carlos Reis entretanto convidoume para escrever um prefácio para esta 9a edição talvez porque saiba que eu me interesso pelo tema talvez porque acredite que um prefácio ainda que breve possa de alguma forma enriquecer seu livro oferecer algum ângulo novo aos leitores Na introdução José Carlos afirma que cada geração em seu presente específico une passado e presente de maneira original elaborando uma visão particular do processo histórico O presente exige a interpretação do passado para se representar se localizar e projetar o seu futuro Sou contemporâneo de alguns dos autores principalmente de Florestan Fernandes e mais especificamente de Fernando Henrique Cardoso de forma que talvez possa falar com mais propriedade sobre eles porque minha formação coincidiu no tempo ou sobre aquilo que eles não falaram porque suas obras fundamentais são dos anos 1960 e 1970 e depois disso a sociedade brasileira enfrentou novos desafios passou por novas experiências vitórias e frustrações que não foram por eles analisadas Se a função da história social é como diz José Carlos citando Lucien Febvre organizar o passado em função do presente se a história é reescrita porque o conhecimento dela mesma muda e porque o presente onde esse reescrever se dá é sempre novo à medida que passa o tempo é preciso sempre rever as interpretações com os olhos novos do presente Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso são membros da escola de sociologia de São Paulo o primeiro foi seu fundador o segundo seu principal representante Essa escola tem recebido uma atenção especial porque teria introduzido a sociologia científica no país Suas pesquisas científicas porém embora relevantes eram necessariamente tópicas e pouco contribuíram para a visão geral que esses dois autores tiveram do Brasil Mais importante foi o fato de a Universidade de São Paulo ter sido fundada em 1934 pelas elites locais logo após sua derrota na Revolução de 1932 foi a competição acadêmica em que seus membros se dedicaram com a sociologia de Gilberto Freyre e a visão geral do Brasil dos intelectuais do Iseb e principalmente de seu sociólogo maior Guerreiro Ramos em busca do que Bourdieu chamou de monopólio do saber legítimo foi a associação que essa escola fez com outros dois ilustres intelectuais paulistas de geração anterior Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr e foi a influência marxista que sofreu nos anos 1960 e 1970 principalmente depois do golpe militar de 1964 Em consequência não foram obras que relataram pesquisas científicas mas grandes ensaios que marcaram mais profundamente sua visão da identidade do Brasil Embora Florestan tenha sido mestre de Fernando Henrique a obra fundamental da interpretação do Brasil produzida pela escola de sociologia de São Paulo foi escrita pelo segundo Dependência e desenvolvimento na América Latina 1970 em associação com o sociólogo chileno Enzo Faletto Com esse ensaio a teoria da dependência que fora iniciada em 1965 com André Gunder Frank e Ruy Mauro Marini perdeu o caráter radical e a possibilidade de compatibilizar desenvolvimento com dependência ganhou estatuto de teoria sociológica e de teoria do desenvolvimento econômico Ambas as visões da dependência tinham base marxista e compartilhavam a tese de que não haveria possibilidade de uma burguesia nacional no Brasil ou na América Latina mas enquanto a corrente da superexploração capitalista de Frank concluía da sua análise a necessidade da revolução socialista a corrente da dependência associada que seria chefiada por Fernando Henrique via a possibilidade de combinar a dependência com o desenvolvimento em associação com o império Florestan Fernandes escreveu depois na fase mais negra do autoritarismo militar seu livro principal de interpretação do Brasil A revolução burguesa 1974 Ele compartilhava com a teoria da dependência a tese da impossibilidade de uma burguesia nacional uma tese que havia se tornado absolutamente dominante nas esquerdas latinoamericanas nos anos 1970 mas seria antes um membro da teoria da superexploração imperialista do que um defensor da dependência associada Havia no próprio título do livro uma contradição já que revolução burguesa que estava no título de seu ensaio não ocorrera nem ocorreria no Brasil pelo menos não ocorreria uma revolução burguesa clássica pois todas elas foram sempre revoluções nacionais Florestan advertia que não pretendia explicar o presente do Brasil pelo passado dos europeus mas a sua revolução burguesa era afinal uma contrarrevolução autodefensiva uma nova forma de submissão ao imperialismo1 Além disso seguindo aqui outra faceta da teoria da dependência que teve em Guillermo ODonnell e no modelo burocráticoautoritário seu representante mais conhecido Florestan Fernandes afirmava o caráter necessariamente autoritário da burguesia brasileira A teoria da dependência que marcou todo o pensamento da esquerda a partir de meados dos anos 1960 ao radicalizar a tese da impossibilidade de uma burguesia nacional inviabilizava também a possibilidade de uma nação no Brasil Uma nação é historicamente uma sociedade que compartilha um destino comum e usa o Estado como seu instrumento de ação coletiva As nações nascem com o capitalismo e o Estado moderno e dão origem ao Estadonação Uma nação não impede o conflito interno entre as classes sociais mas implica um grande acordo de classes quando se trata de competir com as demais nações Implica portanto uma solidariedade nacional no quadro competitivo da sociedade capitalista mundial A teoria da dependência não compreendeu esse fato sua versão da superexploração radicalizou a impossibilidade de uma burguesia nacional porque via a revolução socialista no horizonte e a teoria da dependência associada fez o mesmo porque supunha que a falta de nação era compatível com o desenvolvimento em associação com os países centrais associação que nos anos 1950 a Cepal e o Iseb fiéis à sua vinculação com a teoria do imperialismo haviam declarado impossível A teoria da dependência associada nega a própria existência do imperialismo ou a subestima e concentra sua crítica nas distorções que essa dependência provoca principalmente o aumento da desigualdade e o autoritarismo A rejeição da possibilidade de uma burguesia nacional era em grande parte a consequência de um ressentimento o fato de nos anos 1960 no Cone Sul da América Latina as burguesias terem se associado aos militares e aos americanos em uma sucessão de golpes autoritários que refletiam principalmente o quadro da Guerra Fria e o medo da repetição da Revolução Cubana 1959 A tendência necessária dessa burguesia a ser não apenas dependente mas autoritária derivava dos próprios regimes militares a que esses golpes deram origem Em um trabalho de 1982 eu distingui três interpretações de esquerda pós 1964 e situei Fernando Henrique na interpretação da nova dependência distinguindoa da interpretação funcional capitalista defendida por quase todos os seus mais próximos colaboradores2 Creio porém que me enganei Essas duas interpretações estavam no mesmo barco da dependência associada mas havia outra condicionante fundamental dessa teoria Ela é formulada no momento em que a economia brasileira está em pleno milagre econômico 196873 Dessa forma seus autores de esquerda e democráticos pressupuseram que o desenvolvimento econômico estava assegurado não obstante a dependência Tomaram o crescimento econômico que então ocorria como algo sólido duradouro como um problema resolvido ignoraram que o desenvolvimento econômico sustentado só é possível quando há por trás uma estratégia nacional de desenvolvimento e trataram de enfrentar dois outros problemas centrais o da desigualdade e o da falta de liberdade ou de democracia Esses problemas eram de fato fundamentais e a crítica firme da esquerda seja ao autoritarismo seja à concentração de renda colocouos na agenda nacional Enquanto a tese do caráter dependente da burguesia nacional até hoje não pode ser refutada porque apesar de sua ambiguidade a burguesia brasileira como as demais classes é fortemente dependente da hegemonia ideológica vinda do Norte a tese do seu caráter autoritário foi negada pouco depois em 1977 quando o pacote de abril um conjunto de medidas autoritárias tomadas pelo presidente Ernesto Geisel provocou uma reação indignada da burguesia a ruptura de sua associação com a tecnoburocracia militar e sua gradual aliança com as forças democráticas aliança que levaria à formação de um pacto nacionaldemocrático à campanha das Diretas Já e à transição democrática no final de 19843 A adesão da burguesia nacional às forças democráticas foi o fato histórico novo que viabilizou a transição democrática afinal completada em 1985 A tese da inexistência de uma burguesia nacional era assim falseada pouco depois de haver sido formulada Por outro lado principalmente a partir da transição democrática a luta pela distribuição de renda ganhou corpo tendo sido usada para isto a estratégia de aumentar o gasto social do Estado Esta luta dos representantes da teoria da dependência foi até certo ponto bemsucedida Em relação ao desenvolvimento econômico porém os resultados foram negativos o que não é surpreendente já que na globalização marcada por rivalidades nacionais não existe desenvolvimento econômico sem que haja por trás uma nação e uma estratégia nacional de desenvolvimento Em vez disso a teoria da dependência associada a partir da observação correta de que a partir dos anos 1950 as empresas industriais dos países ricos passaram a investir em países em desenvolvimento como o Brasil e diante da crise econômica do início dos anos 1960 inferiu que a continuidade do desenvolvimento da região dependeria de aportes de poupança externa tese esta que não se sustentava nem historicamente já que todos os países sempre se desenvolveram usando recursos internos nem teoricamente já que déficits em conta corrente inerentes à estratégia de crescimento com poupança externa não são sustentáveis quando não provocam crise de balanço de pagamentos implicam fragilização financeira do país apreciação do câmbio e elevada taxa de substituição da poupança interna pela externa Nos anos 1970 porém o Brasil como quase toda a América Latina adotou sem restrições a estratégia de crescimento com poupança externa se endividou e em consequência enfrentou profunda crise nos anos 1980 Dessa forma o desenvolvimento econômico que essa teoria julgava assegurado revelouse frágil e a partir da crise que teve início em 1980 o país entrou em quase estagnação depois de crescer a quase 4 per capita ao ano entre 1950 e 1980 passou a crescer a uma taxa na média inferior a 1 O desenvolvimento econômico revelouse tão frágil como frágil se mostrou a nação brasileira minada pelo golpe militar que afastou os trabalhadores e amplos setores médios da vida política e enfraquecida pela teoria da dependência que negava a possibilidade de um acordo nacional quando se tratava de competir internacionalmente não encontrou até hoje o caminho do desenvolvimento econômico Por isso depois da grande crise da dívida externa dos anos 1980 que logo se transformou em uma crise fiscal do Estado o Brasil se viu presa fácil da onda ideológica neoliberal e globalista que vinha do Norte Entre 1930 e 1980 o país se desenvolvera com base em uma estratégia nacional de desenvolvimento o nacional desenvolvimentismo que a teoria da dependência nunca aceitou Quando essa estratégia se esgotou ou se tornou superada porque o Brasil já não tinha mais uma indústria infante que precisasse tanto de proteção nem dispunha de uma capacidade de acumulação privada tão débil que tornasse a acumulação estatal fundamental em vez de a sociedade brasileira definir uma nova estratégia nacional de desenvolvimento aceitou a partir de 1990 o diagnóstico e o receituário vindo do Norte a ortodoxia convencional Em consequência o desenvolvimento econômico não foi retomado e a crise dos anos 1980 se prolonga até hoje desde 1990 sob a égide da hegemonia externa Hoje o que vemos é um país em que a democracia é forte e alguns ganhos foram alcançados na distribuição de renda mas cuja economia se encontra semiestagnada desde 1980 A nação brasileira que ganhara força com o pacto nacional democrático de 197786 entrou em profunda crise a partir de 1987 em função do fracasso do Plano Cruzado o qual foi também o fracasso da burguesia nacional que assumiu o comando da transição em estabilizar a economia brasileira A partir de 1990 as elites brasileiras se entregam como nunca tinham feito antes à hegemonia externa Existe uma profunda ambiguidade na sociedade brasileira e em suas elites não apenas burguesas mas também intelectuais Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto reconheciam esse fato em seu livro clássico Desde o momento que se coloca como objetivo instaurar uma nação como no caso das lutas anticolonialistas o centro político da ação das forças sociais tenta ganhar certa autonomia ao sobreporse à situação do mercado as vinculações econômicas externas entretanto continuam sendo definidas objetivamente em função do mercado externo e limitam as possibilidades de decisão e ação autônomas4 A questão é saber se essa ambiguidade afinal se resolve necessariamente pela subordinação aos países ricos e hegemônicos ou se nessa ambiguidade existe a potencialidade da independência que em certos momentos aflora e se afirma Minha própria interpretação do Brasil foi sempre a da segunda alternativa O que define o Brasil não é simplesmente a dependência mas a nacionaldependência Sei bem que esta expressão é um oximoro que uma palavra contradiz a outra mas a uso de forma deliberada para exprimir a contradição intrínseca em que vive uma sociedade como a brasileira na periferia do império hegemônico Diferentemente do que aconteceu nas sociedades asiáticas algumas das quais se revelaram incrivelmente dinâmicas na segunda metade do século XX a dependência brasileira começou pela nossa constituição como sociedade em consequência de uma colonização de exploração mercantil latifundiária em que o componente branco europeu se revelou dominante entre as elites Isto levou as elites latinoamericanas a uma identificação com as dos Estados Unidos e da Europa que somada ao poder econômico e à hegemonia ideológica ou cultural do centro lhes roubou a identidade nacional Não obstante é preciso não subestimar os interesses nacionais que uma nação forma ao ter o controle de um Estado e de um território As nações o Estado moderno e sua junção no Estadonação são o produto da revolução capitalista Os povos se transformam em nações no momento em que a revolução capitalista acontece porque percebem que se tiverem como instrumento o Estado terão uma condição muito melhor de lograr seus objetivos políticos de liberdade bemestar e justiça Ainda que Marx tenha dito que o Estado é o comitê executivo da classe dominante ele principalmente nas sociedades democráticas é o instrumento de ação coletiva por excelência da nação Em torno do Estado e no respectivo território os participantes da nação os empresários os trabalhadores a burocracia do Estado os intelectuais as classes médias profissionais em geral desenvolvem interesses que só podem ser atendidos dentro do quadro do Estadonação Este fato foi subestimado ou ignorado pela teoria da dependência enquanto é afirmado pela teoria do desenvolvimento nacionaldependente Ao se reconhecer a ligação intrínseca entre nação Estado e desenvolvimento ao se salientarem os interesses nacionais de ordem econômica e política que ligam os membros da nação a dependência não desaparece mas se revela superável porque fica aparente seu caráter ambíguo e contraditório O nacionalismo que existe em um país não é apenas uma emoção ou um sentimento ele é a ideologia da formação do Estadonação porque traz consigo os interesses reais da nação Nos países ricos a palavra nacionalismo tornouse pejorativa uma forma de neutralizar a ideia de nação nos países em desenvolvimento que com eles competem com sua mão de obra barata porque eles não mais necessitam dela para distinguir seus cidadãos ao contrário do que acontece em países nacionaldependentes como o Brasil todos os americanos ou todos os franceses sabem que é dever do seu governo defender o trabalho o conhecimento e o capital nacionais Não é esta a situação dos países da periferia do capitalismo cujas elites estão sendo insistentemente convidadas a colaborar com o centro hegemônico A Guerra Fria facilitou esse convite durante muito tempo Quando ela terminou a hegemonia ideológica do Norte desenvolvido encarregouse de dar substância ao convite à colaboração sempre necessária para qualquer império Essa era uma hegemonia cultural baseada nas realizações concretas do capitalismo nos Estados Unidos e apoiada em um sistema de aparelhos ideológicos poderosos como a universidade a mídia internacional e o cinema Tornarase de tal forma poderosa que parecia incontrastável indicando aos países em desenvolvimento como o Brasil um único caminho a seguir o do desenvolvimento recomendado por Washington e Nova York Entretanto passados 20 anos do começo da aplicação do receituário da ortodoxia convencional na América Latina o que se verifica é que o desenvolvimento não foi retomado e se alguma distribuição de renda ainda que muito limitada foi obtida isto se deveu à democracia desafiar aquela ortodoxia e aumentar os gastos sociais do Estado Quando as medidas de focalização das despesas sociais não neutralizaram o caráter excludente das reformas propostas principalmente a abertura financeira e a estratégia de crescimento com poupança externa essas reformas além de neutralizar o desenvolvimento econômico se revelaram causadoras de exclusão social Enquanto isso acontecia na América Latina os países dinâmicos da Ásia demonstravam como já tinham demonstrado os países europeus que havia outros caminhos para o desenvolvimento capitalista caminhos nacionais resultado de acordos que produzem estratégias nacionais de desenvolvimento Será que o fracasso da ortodoxia convencional e o êxito do desenvolvimentismo asiático ensinarão algo à nação brasileira Será que a nação que entrou em processo de desconstrução e de desorganização desde 1980 terá condições de se reconstituir Uma nação não existe independentemente da solidariedade do sentimento de pertencimento e de destino comum que une seus membros Ernest Renan disse que a nação é uma construção de todos os dias Se a nação brasileira não é simplesmente uma nação dependente ou uma não nação mas uma nação nacional dependente e se ela sabe aprender com a experiência o enfraquecimento da hegemonia ideológica do Norte que ocorre nos anos 2000 representa uma oportunidade a ser aproveitada assim como o enfraquecimento daquela hegemonia nos anos 1930 significou uma oportunidade que o Brasil utilizou para se desenvolver Voltando a José Carlos Reis e a seu livro se as interpretações do Brasil são os reflexos dos desafios que a sociedade brasileira enfrenta o desafio hoje é o de voltar a se constituir em nação e em retornar ao desenvolvimento Nos anos 1970 a sociedade brasileira se constituiu em sociedade civil e lutou pela liberdade e pela justiça Através da democracia a liberdade foi basicamente alcançada e alguns avanços foram realizados no campo da justiça social Mas está claro hoje que a estratégia utilizada o aumento do gasto social está esgotada já que não é mais possível continuar a aumentar a carga tributária Tornase então evidente que só se alcançará maior justiça social no Brasil se melhor distribuição de renda for lograda através do aumento dos salários e não do gasto social Os salários entretanto só acompanharão o aumento da produtividade e a renda poderá começar a ser distribuída com um pouco mais de justiça quando se esgotar a oferta ilimitada de mão de obra que caracteriza uma economia ainda subdesenvolvida como a brasileira O desenvolvimento econômico é a única maneira de atingir esse resultado Só através dele o Brasil poderá deixar de ser um país de alto desemprego e de emigração só através do desenvolvimento econômico o mercado de trabalho poderá favorecer os trabalhadores que somando a esta melhor condição sua própria luta passarão a realmente partilhar os frutos do desenvolvimento Não existe desenvolvimento sem nação e sem estratégia nacional de desenvolvimento Não existe mercado forte que favoreça a atividade econômica sem Estado forte que regule essa atividade e a torne coerente com os interesses nacionais No processo de reconstruir a nação e retomar o desenvolvimento que deve ser econômico social e político a contradição nacionaldependente deverá ser superada pelo nacional Definitivamente Não creio nada há de definitivo na vida social A sociedade brasileira está hoje profundamente confusa porque as certezas ou quase certezas neoliberais que adquiriu nos anos 1990 foram por terra mas não está claro o que poderá substituílas A confusão porém é sinal de crise e a crise uma oportunidade de repensar o Brasil uma oportunidade na qual um número cada vez maior de brasileiros está pensando Luiz Carlos BresserPereira Professor de economia e teoria política na FGV exministro da Fazenda da Administração Federal e Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia VIVAS REPRESENTAÇÕES DO BRASIL1 O problema que este livro propõe ao debate é como se deu a formação do Brasilnação Não há resposta única sistemática para esta questão Esta história pode ser relatada de muitas formas O Brasil é um país vasto complexo contraditório e extremamente dinâmico o que impede que se possa ter uma representação consensual homogênea estável de sua identidade nacional Quem somos o que fomos e o que queremos ser O que significa a afirmação sou brasileiro Qual é o conteúdo empírico dessa emoção A resposta depende do sujeito histórico brasileiro que toma a palavra Podese pensar o Brasil de múltiplos modos e todos sustentáveis com uma argumentação coerente e reconhecível Há versões do Brasil de origem senhorial burguesa proletária classe média camponesa semterra paulista mineira nordestina gaúcha negra indígena feminina gay imigrante migrante caipira urbana suburbana litorânea sertaneja oficial marginal militar civil etc A maioria delas ainda não foi formulada pois o povo brasileiro foi silenciado e não efetivamente representado na vida intelectual e política ao longo dos seus cinco séculos de vida Contudo cada um desses personagens se sente brasileiro de um modo particular e conta suas experiências de forma diferenciada por meio de festas poemas quadros músicas tradições orais Quem são os heróis da história brasileira Quais são os grandes eventos as datas mais fortes Em que direção o Brasil se encaminha Que juízo de valor elaborar sobre as experiências brasileiras Qual seria a síntese mais global que juízo sinótico se pode fazer sobre as experiências brasileiras A resposta revelará a identidade social e histórica de quem toma a palavra Há representações da identidade brasileira que são hegemônicas oficiais mas revelam apenas a força do sujeito que as articula Não falam de uma identidade brasileira em si de uma brasilidade enquanto tal essencial Quando se discutem as identidades nacionais do Brasil há discursos representações que emergem de sujeitos brasileiros particulares e que pretendem valer para todos os brasileiros Estes discursos e representações usam a história dita científica para legitimar seus interesses e paixões Imaginários mitologias ideologias e reabertura de arquivos se confundem Seria possível produzir um discurso sobre o Brasil desapaixonado científico verdadeiro Dificilmente É por isso que todas as representações do Brasil são relevantes pois juntas revelam uma ideia do Brasil complexa poliédrica uma ideia composta de ideias de projetos um polígono de múltiplas faces ao mesmo tempo opostas e interligadas em uma mesma figura Pensar o Brasil como um todo é pôr junto confrontadas contrastadas as múltiplas representações que os diversos sujeitos históricos produziram para se localizar na trajetória brasileira e escolher uma direção para a construção do futuro A identidade nacional não é uma ontologia que só seria o congelamento do passado em uma homogeneidade artificial A identidade nacional brasileira é histórica isto é reconstruída em cada presente em uma relação de recepção e recusa de passados e de abertura e fechamento aos futuros E cada brasileiro continua a reconhecer em sua diferença a identidade histórica brasileira apesar de reconstruída heterogênea contraditória plural e múltipla O Brasil é ainda um enigma Poucos autores conseguiram tocar em seus nervos e coração Talvez a literatura a poesia as artes plásticas a música tenham se aproximado mais da alma brasileira Nós escolhemos como fonte para pensar o Brasil os clássicos do pensamento histórico brasileiro Este livro procura rememorar o que já se pensou sobre o Brasil para repensar sua trajetória o que se fez o que se faz e o que faremos Ele talvez possa ser comparado a uma galeria de arte exibe alguns dos mais importantes quadros do Brasil alguns retratos pintados por seus melhores historiadores e sociólogos em datas cruciais da história brasileira São representações do Brasil que em sua diversidade e oposição recíprocas revelam uma identidade reconhecível do Brasil oferecendolhe um passado um futuro e uma localização no presente Este livro reúne oito interpretações do Brasil elaboradas ao longo dos últimos 120 anos Varnhagen 1850 Capistrano de Abreu 1900 Gilberto Freyre 1930 Sérgio Buarque de Holanda 1930 Nelson Werneck Sodré 1950 Caio Prado Jr 1960 Florestan Fernandes 1960 e Fernando Henrique Cardoso 1970 Por que oito e por que estes autores Ora e por que não Este não é considerado o panteão da historiografia brasileira É claro que estão faltando muitos outros autores mas foi preciso selecionar Este é o primeiro gesto de toda pesquisa recortar selecionar escolher construir Neste livrogaleria os quadros estão dispostos em uma certa ordem Aqui a ordem cronológica coincide com uma certa ordem lógica Uma lógica do Brasil aparece na disposição cronológica dada de 1850 a 1970 É claro estas interpretações podem ser lidas separadamente cada quadro é um quadro único e pode ser apreciado isoladamente O leitor pode estabelecer o roteiro que quiser para a sua visita pois o livro já é seu Mas se o leitor permitir o autor gostaria de dar uma sugestão ler cada interpretação separadamente não é o modo mais recomendável para se ler este livro Ele possui uma intriga virtual uma lógica interna e se lido do início ao fim tornase um romance do Brasil Cada capítulo dá continuidade aos anteriores uma continuidade indireta que só aparece no espírito do leitor O capítulo sobre FHC por exemplo que talvez chame mais a sua atenção só é plenamente compreensível se situado em relação aos anteriores ele emerge do longo e tenso debate sobre o Brasil que o precede Ele recebe sua iluminação de trás de Freyre Holanda Sodré Prado Jr e Florestan Isoladamente ele tem um sentido apenas parcial ou talvez nem tenha sentido nenhum É como se você afoito abrisse um romance policial nas últimas páginas e conhecesse logo o nome do assassino Mas ele não significa nada para você pois você não tomou conhecimento da situação do drama do alcance do problema cuja resposta você até já tem mas que não responde a nada pois não faz nenhum sentido Se você ler As identidades do Brasil do início ao fim poderá também fazer em seu espírito o caminho inverso do fim ao início o que potencializará ao máximo a inteligibilidade do Brasil que este livro quer oferecer Se você o ler assim para frente e retrospectivamente compreenderá a lógica do Brasil que a ordem sucessiva das obras por décadas pressupõe e esconde ao mesmo tempo Este livrogaleria expõe seus quadros do Brasil em duas paredes Em uma parede as teses conservadoras dos intérpretes do descobrimento do Brasil que veem o futuro do país como a melhoria do seu passado não havendo necessidade de mudança profunda ruptura revolução Esses intérpretes em vez de tomar a colonização portuguesa como um problema fazem o seu elogio Para Varnhagen nos anos 1850 fazendo uma leitura ultraconservadora lusitana do projeto de história do Brasil que Von Martius escreveu para o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 184344 o Brasil era um país brancoembranquecido monárquico cristão neoportuguês neoeuropeu centralizado no imperador em direção a um futuro grandioso O Brasil vinha de um passado de glórias e será uma nação poderosa Não havia nada a mudar Os portugueses fizeram tudo muito bemfeito O imperador Pedro II deveria fazer o mesmo que a Coroa portuguesa já fizera no período colonial O legado português era precioso e deveria ser acolhido e continuado O Brasilnação será uma continuidade do Brasilcolônia O Brasil será outro Portugal um império colonial Esse era o ideal de Varnhagen Ele olhava o Brasil com o olhar dos reis portugueses e propôs a Pedro II que continuasse a sua obra Varnhagen fez o elogio da conquista e colonização portuguesas e esperava que o Brasil não pagasse muito caro por ter em sua identidade brancoeuropeia a mancha das alteridades indígena negra e mestiça O problema é que esta alteridade reunia quase 90 da população do tal império colonial A própria população brasileira deveria ser excluída ou então embranquecida para ser integrada a essa autoritaríssima identidade imperial Seguindo esta mesma orientação conservadora ou seja do elogio da conquista e colonização portuguesas para Gilberto Freyre o Brasil era o único país do mundo em que a democracia racial se realizou era um país culturalmente miscigenado democrático livre sem ódios raciais ou sociais que vivia em um tempo tranquilo sem pressa feliz O Brasil era o maior feito da colonização portuguesa que foi eficiente competente democrática e por isso inesquecível O país deveria continuar a se mirar no espelho da ação colonial dos portugueses para produzir o seu futuro pois aqueles foram superiores inexcedíveis na conquista e colonização dos trópicos Freyre reconstruiu o Brasil colonial em cores vivas brilhantes integrando negros e índios no mundo profundamente democrático que o português criou nos trópicos O Brasil era moreno sim e a miscigenação não tornou o brasileiro uma subraça mas criou o tipo físico ideal para os trópicos Entretanto apesar de ser politicamente muito conservador um descobridor do Brasil Gilberto Freyre tornouse um interlocutor eterno seja para ser atacado seja para ser admirado Os historiadores atuais transformam parágrafos seus em pesquisas essenciais sobre o Brasil Toda discussão atual sobre o escravismo nas Américas a vida familiar afetiva e sexual a infância as culturas indígena e negra e a religiosidade colonial precisa levar em consideração suas teses Sua obra é um seminal work da história cultural Casagrande senzala é uma catedral do pensamento histórico brasileiro Em outra parede as teses revolucionárias sustentam que no futuro o Brasil deverá romper seja acelerada seja gradualmente com a herança colonial ibérica e buscando conhecer seus próprios ritmos mudar profundamente a estrutura econômicosocialmentalpolítica que herdou do passado Os redescobridores do Brasil problematizam a conquista e colonização portuguesas e as veem como o grande mal a ser superado Capistrano de Abreu foi um dos primeiros a enfatizar a recusa do nosso passado colonial e a propor o redescobrimento do Brasil Para ele o Brasil desde o início do período colonial quis romper com o domínio português A rebelião brasileira o descontentamento com a dominação portuguesa teria existido desde a fundação de Piratininga atual São Paulo desde os primeiros bandeirantes e cresceu e se fortaleceu nos sertões Uma genuína identidade brasileira formouse ao longo do período colonial pelos rios e caminhos de gado que levaram os brasileiros ao Brasil mais profundo para longe do rei e da sua espoliação fiscal distante do litoral e da sua administração O brasileiro formou e reconheceu sua identidade opondose aos invasores reinóis e aos seus interesses Desde o início da colonização os brasileiros foram conquistando o sertão e foram se consolidando seu sentimento e projeto de fundar uma nação autônoma independente soberana Sérgio Buarque de Holanda dará continuidade a este redescobrimento do Brasil Para Holanda o país tinha se alimentado de valores e ideias que não lhe eram adequados O modo de ação dos portugueses foi eficaz para os portugueses que só queriam se apoderar das nossas riquezas e arruinar nosso território Ao contrário aqui os brasileiros querem fundar uma nação e para isso deverão reconhecer os ritmos particulares dos tempos brasileiros e produzir uma representação adequada do Brasil criar valores e instituições que o façam funcionar O Brasil precisa romper com o seu passado colonial superar as suas raízes ibéricas e criar um projeto próprio de sociedade moderna realmente democrática O futuro nacional democrático livre e soberano deverá ser o oposto do que foi o passado colonial Raízes do Brasil é ainda extremamente atual e profundamente revolucionário Sérgio Buarque por descrever de forma mais evasiva a revolução brasileira sem definir claramente sujeitos datas e limites criou uma obra menos datada Ele deu ênfase aos novos valores que conduziriam os brasileiros na fundação da sua nação Defendeu valores que atendiam às exigências de liberais utópicos e socialistas racionalidade na administração pública separação nítida entre o público e o privado a lei contra o privilégio a integração da população excluída à cidadania a superação de nossas raízes ibéricas mas não de forma mecânica e autoritária O Brasil deverá encontrar seu próprio estilo de autoorganização preservando superando suas raízes ibéricas Raízes do Brasil é outro templo do pensamento históricosociológico brasileiro Sérgio Buarque de Holanda é atualíssimo pois nos anos 1930 defendeu a ordem democrática no auge do sucesso dos diversos projetos autoritários Com as interpretações marxistas a partir de 1950 sobretudo com as teses do PCB formuladas entre outros por Nelson Werneck Sodré a revolução brasileira era iminente A população brasileira oprimida e escravizada queria a mudança rápida acelerada contra um passado de conquista e espoliação O futuro será uma produção das classes oprimidas e não mais das elites lusobrasileiras Para Sodré os brasileiros sonhavam com uma produção de riquezas voltada para dentro sonhavam com o socialismo e com a ruptura com o imperialismo Desejavam um país soberano produtivo e socialista O povo unido jamais seria vencido incluindo a burguesia nacional e romperia com o passado agráriofeudal que oprimia de dentro e com o presente imperialista que oprimia de fora E para chegar a este fim emancipador era preciso não só tolerar mas utilizar os meios autoritários Entretanto Caio Prado Jr veio dar um choque de realidade nesse sonho revolucionário Com ele começamos a perceber os limites estruturais dessa mudança profunda Para ele a revolução brasileira precisava ser redefinida em termos brasileiros considerando as especificidades da realidade brasileira o seu cristalizado presentepassado Não se podia realizála aplicando ao Brasil receitas feitas para funcionar em outros lugares O sonho continuava o mesmo democracia política a distribuição justa da riqueza a autonomia nacional Mas a dependência insuperável condenava o país ao subdesenvolvimento como romper com a dependência e promover o desenvolvimento com autonomia nacional Eis a questão das esquerdas nos anos 195060 e atuais Como produzir a mudança em uma realidade dependente estruturada de modo quase inquebrável Para Florestan Fernandes a mudança exigia uma competente análise históricosociológica científica do passadopresente do Brasil Não se muda a golpes de teoriaficção Mudar é um trabalho difícil que envolve teoria adequada e ação eficiente e não se faz apenas com sentimentos nacionalistas sinceros Era preciso tomar conhecimento da realidade de sua história na qual predominava a continuidade e reconhecer os limites e margens da mudança A mudança significaria democracia política participação popular crescimento econômico e soberania nacional Contudo o impasse parecia insuperável a soberania nacional seria compatível com a dependência duradoura e inquebrável Fernando Henrique Cardoso o sociólogo dos anos 1970 pretendeu dar uma solução a este enigma ao sugerir um novo caminho para as esquerdas Para ele o problema maior era o conceito de soberania nacional das esquerdas que precisava ser redefinido A soberania nacional não podia ser definida abstratamente Era preciso vêla como formas históricas diferenciadas dependendo do que decidiam as elites no poder em cada país e em cada presente No Brasil ela não significou ruptura com a dependência nem isolamento do país mas negociação das elites internas quanto à sua margem de decisão em relação às forças externas Uma elite competente poderia produzir o desenvolvimento mesmo na dependência A ruptura com o externo não era condição essencial ao desenvolvimento pelo contrário seria preciso atrair os capitais externos e tornálos mobilizadores das energias brasileiras A solução para o crescimento econômico associado à democracia política e à distribuição justa da riqueza seria a internacionalização do mercado interno a abertura do Brasil ao mundo e não seu afastamento e isolamento O Brasil deveria se integrar mais ainda e não romper com o capitalismo Dependência para Fernando Henrique Cardoso não queria dizer necessariamente submissão mas articulação interação negociação integração E sobretudo desenvolvimento Qual país o mais soberano não é dependente FHC de certa forma antecipava a tese de Francis Fukuyama sobre o fim da história a democracia liberal derrotou historicamente os projetos concorrentes os fascismos e comunismos e não só militarmente pois foi o único modelo de organização social que conseguiu produzir sociedades ricas e democráticas O problema do Brasil portanto não era a exploração capitalista mas a falta de maiores investimentos de capitais na estrutura produtiva interna o que exigiria não a nossa resistência mas a nossa capacidade de uma máxima integração ao capitalismo global Comentando a Visita ao Livrogaleria Eis aí algumas ideias do Brasil que continuam muito vivas fazendo a história do Brasil Esses retratos do Brasil não estão pendurados em uma parede externa exterior aos brasileiros Eles estão nas paredes da nossa memória e nas paredes da nossa vida cotidiana Eles definem as relações de cada brasileiro com o Estado os negros os índios as mulheres os filhos a religião o passado o futuro o trabalho o capital a arte a ciência a tecnologia o estrangeiro a América Latina os EUA a Europa o rural o urbano o litoral o sertão a República o Império a guerra a paz a opressão a utopia E sobretudo de cada brasileiro consigo mesmo Eles estão infiltrados na vida escolar familiar política cultural religiosa empresarial sindical afetiva Na vida pessoal e social Eles orientam a ação a avaliação do passado do presente e do futuro Eles sustentam e formulam os valores brasileiros pois emergiram dos diversos sujeitos históricos brasileiros e constroem e representam suas diversas identidades Dessas interpretações as que tiveram mais influência sobre a realidade brasileira foram as de Varnhagen e de Freyre que são as das elites A de Varnhagen é ainda hoje ensinada na escola fundamental heróis lusobrasileiros brancos guerras contra índios e negros e invasores estrangeiros o elogio da conquista da escravidão do Brasil grande potência outro Portugal Até hoje esta representação do Brasil é viva e forte Freyre representou um abrandamento dessa interpretação ao aceitar a presença negra ao recusar o branqueamento e admitir a morenidade brasileira Freyre tornouse cartilha das elites pós1945 foi distribuído em quadrinhos e santinhos na escola fundamental depois de 1964 Freyre renovou e revigorou Varnhagen As elites ganharam um perfil simpático democrático brando afável para continuar dominando A rebelião brasileira contra estas elites de Varnhagen e Freyre começou com a interpretação nacionalista mais democrática e emancipacionista mais próxima dos ideais republicanos que é a de Capistrano de Abreu Capistrano foi um dos primeiros autores a dar ênfase à rebelião brasileira contra o autoritarismo da Coroa portuguesa Ele inaugurou uma corrente de interpretação do Brasil antielitista antiescravista Ele representou os exaltados e jacobinos da República Mais tarde as diversas interpretações apoiadas nas análises marxistas da luta de classes radicalizaram o espírito rebelde de Capistrano e influenciaram os diferentes grupos de esquerda em épocas diferentes Mas nenhuma delas venceu Vencerá alguma um dia Por que falharam as interpretações revolucionárias As teses revolucionárias falharam talvez por excesso de voluntarismo idealismo utopismo mimetismo cultural elitismo e pouca análise sóciohistórica concreta As esquerdas mantinham um certo estilo autoritário que era também o das elites Eram múltiplos os grupos de esquerda e eles não se entendiam Falavam mal ouviam mal analisavam mal e se organizavam pior Talvez a mudança devesse começar por aí se ainda houvesse partidos de esquerda no Brasil Entretanto curiosamente apareceu uma tese revolucionária pelo menos era vista assim nos anos 1970 que venceu A teoria da dependência que significou a opção pela produção da mudança ainda no interior da estrutura capitalista internacional a opção pela tomada do Estado pelo voto e sua aproximação da sociedade a opção pela abertura do mercado interno aos investimentos externos e não a sua proteção ou isolamento a opção pelo diálogo com o passado não sem tensões e não pela ruptura acelerada e violenta em tese tomou o poder Depois da derrota de 1964 as esquerdas se perguntavam o que fazer Uns preferiram as armas outro fazer a mudança dentro da ordem burguesa autoritária Esta segunda opção quem a formulou teoricamente e no interior das esquerdas e a testou no poder foi o sociólogo Fernando Henrique FHC Cardoso junto com o chileno Enzo Falleto Seu projeto de produção da mudança era brando reconhecia o passado incrustado no presente admitia o capital externo mergulhado no interior do processo produtivo interno reconhecia as regras do jogo parlamentar como dados estruturais Para ele a opção que sobrava às esquerdas era a de negociar mudanças conjunturais e pontuais O passado era ainda muito forte e a burguesia externa era voraz e asfixiava as forças internas mas o caminho possível era negociar posições vantajosas dentro da estrutura capitalista internacional Contudo seria possível negociar mudanças com poderes tão fortes inabaláveis E determinados até a crueldade na defesa dos seus interesses As antigas esquerdas não acreditavam nessa possibilidade preferiam a radicalização a aceleração da mudança com o uso da força da moratória do isolamento Não era este o projeto de Fernando Henrique Cardoso e nem é mais o do próprio PT que vieram das esquerdas e se querem de esquerda mas se renderam à nova ordem neoliberal A interpretação do Brasil que foi mais caricaturada pelos críticos e considerada um equívoco um delírio total foi a de Sodré que era a do PCB entre 1922 e 1964 e que parece viva até hoje no interior dos remanescentes grupos dos exPCs Sodré sonhava com a emancipação nacional total que seria feita pela aliança da burguesia nacional com o proletariado e o campesinato contra as forças do atraso o latifúndio feudal aliado ao imperialismo e à burguesia mercantil A revolução democráticoburguesa teria a burguesia nacional na liderança pois democrática e nacionalista Seus críticos acharam isto um delírio mas os estudantes de historiografia brasileira os que ainda não foram dominados pela chamada história cultural a discutem com entusiasmo e devoção Eles parecem ter saudade do discurso nacionalista revolucionário e querem ainda dar um pau linguagem deles no imperialismo Afinal os críticos são justos quando se referem à interpretação nacional burguesa dos anos 1950 ou a deturpam e a manipulam É um debate aberto uns a consideram plausível acham que era adequada sim aos anos 1950 outros a veem como um equívoco teórico total um delírio uma perigosa teoriaficção do Brasil As outras interpretações não foram deturpadas ou manipuladas pois vieram inequivocamente de sujeitos históricos precisos Talvez Freyre permita uma leitura revolucionária apesar de ter sido apropriado pela direita Seu pensamento é complexo Freyre é um autoresfinge indecifrável impossível de ser posto em termos transparentes É contestável e tão admirável é impreciso e tão genial é conservador e tão revolucionário Os próprios intérpretes e os sujeitos históricos que se apossaram de suas interpretações se deturparam e se manipularam reciprocamente para se legitimar E é claro quando os sujeitos históricos escolhem decidem agem eles manipulam os outros sujeitos que vão sofrer sua escolha e ação impondo lhes sua visão do Brasil como a única possibilidade de interpretálo Para não sofrer esta manipulação é necessário conhecer os vários modos e sentidos em que o Brasil pôde ser representado O cidadão brasileiro então se localiza e descobre com quais sujeitos com que interesses e projetos está lidando e se sentirá capaz de formular seu próprio interesse e projeto tornandoo para si e tomando uma posição de sujeito Para Hegel o ponto mais alto do desenvolvimento de um povo é a consciência racional de sua vida e da sua condição Nessa unidade íntima da realidade objetiva com a autoconsciência o espírito do povo consegue integrarse e estar consigo mesmo Ele se tem como objeto ao pensar em si e tornase para si Os gregos tiveram esta representação geral de sua vida nas obras de Sófocles Tucídides Platão e muitos outros Nestes indivíduos o espírito grego apreendiase em pensamento e esta era a sua mais profunda satisfação As narrativas em que o espírito de um povo se apreende têm um caráter sintético sinótico Na síntese a compreensão narrativa é obtida por meio de conexões pela articulação de acontecimentos vividos separadamente em uma totalidade Uma visão global das experiências vividas por este povo é apreendida num ato de juízo que põe juntos os acontecimentos heterogêneos Essa visão global é um juízo reflexivo O pensamento histórico é um juízo sinótico A narrativa histórica realiza uma síntese compreensiva feita após a ocorrência dos eventos e oferece uma máxima visão sintética quando após a sua leitura se retorna reflexivamente do fim ao início em uma inteligibilidade retrospectiva As narrativas são retomadas e refeitas incessantemente e à medida que são articuladas produzem uma síntese profunda no espírito do povonação que passa a ter uma imagem de si e se reconhece Para nós podese potencializar ainda mais a inteligibilidade da experiência histórica reunindo pondo juntas em um mesmo volume narrativas feitas em épocas diferentes por narradores que partiram de pontos de vista diversos e em conflito Obtémse assim um juízo sinótico uma síntese uma visão global construída com várias sínteses uma síntese de sínteses Este livro quer servir assim à formação da cidadania brasileira ao revelar um polígono de visões do Brasil que orientam as opções e ações dos diferentes sujeitos brasileiros Ele interessa a todo brasileiro capaz de ler aos estudantes e profissionais de história e das diversas ciências humanas e sociais da filosofia e da literatura aos múltiplos profissionais liberais que se interessam em pensar e discutir o Brasil E não só a estes setores médios digamos assim mas a todos os brasileiros de todas as áreas que se interessem em pensar e repensar o Brasil Ele foi redigido de forma clara e densa para ser acessível a todos os portadores das diversas identidades brasileiras Estes intérpretes do Brasil entre outras coisas disseram do brasileiro é mestiço doente racialmente inferior e incapaz de fazer a história um jecatatu é um mestiço eugênico democrático feliz com uma vida tropical exuberante é proletário e camponês em luta pela reconquista do território e da sociedade que o oprime e exclui é um homem cordial afetivo familiar incapaz de se submeter a hierarquias e de se associar por motivos racionais é um homem triste melancólico que perdeu todas as suas energias em excessos sexuais é um mameluco rejeitado pelos pais brancos que não o reconhecem como descendente e pela tribo da mãe que só valoriza a ascendência paterna é um subdesenvolvido espoliado pelos países centrais através de trocas econômicas desiguais que o condenam eternamente ao subdesenvolvimento Somos um povo vencido Aos que insistem em dizer que Deus é brasileiro o filho de Sérgio Buarque de Holanda respondeu enfático Deus me fez um cara fraco desdentado e feio pele e osso simplesmente quase sem recheio Deus achou muito engraçado me deixar cabreiro na barriga da miséria nasci brasileiro É claro esta descrição não assenta nas mulheres brasileiras que são maravilhosas garotas de Ipanema Iaras Iracemas excelentes produtos para fomentar o turismo e a exportação sexual Ou será um imperdoável exagero O exagero é uma estratégia cognitiva das ciências humanas Weber afirmava que a função do historiadorsociólogo é exagerar Enfim o brasileiro foi abordado de múltiplos modos pelos seus mais ilustres intérpretes cada um mais exagerado do que outro Veja ainda o que disseram os intérpretes do Brasil do livrogaleria 2 Pedro Calmon Afonso Arinos Oliveira Vianna e Manoel Bomfim2 Eles estão falando de nós de você e de mim Você se identifica com alguma das descrições que fizeram de nós Para você abrindo as cortinas do passado a história brasileira seria motivo de ódio ou de ode você a amaldiçoaria ou a cantaria em seus versos Como você se representaria então INTRODUÇÃO À 9a EDIÇÃO No Brasil quando um livro que não é romance nem é de autoajuda chega a sucessivas edições já tem demonstrado o seu mérito Tem um público que não é estritamente acadêmico alcançando portanto aquele tipo de leitor genericamente identificado como cidadão médio beminformado No caso de As identidades do Brasil este cidadão médio é o brasileiro letrado cada vez mais desejoso de entender o enigma representado pelo seu próprio país que avança em tantos aspectos sem sair do lugar em outros justificando a tese defendida por José Carlos Reis a decifração do que é o Brasil como sociedade e como forma de civilização pede uma visão poliédrica ou seja a iluminação de diferentes princípios constitutivos desta formação social que não se explica por uma lógica de formação única e coerente A contribuição essencial deste livro é justamente focalizar o desafio da compreensão do Brasil para os brasileiros a partir de diferentes visões que pensadores brasileiros propuseram em momentos históricos distintos como referência para o diagnóstico do que é o país como construção de um povo e de uma economia A meu ver o sucesso editorial de As identidades do Brasil pode ser explicado por duas razões Por um lado colocou o debate sobre o sentido histórico do país na perspectiva propriamente ideológica que julga o percurso das instituições e da cultura pelo prisma de sua positividade ou negatividade para o grande projeto liberal e progressista de realização da modernidade Por outro ao selecionar pensadores tidos como relevantes para entender o enigma do Brasil destacou de modo muito inovador e perspicaz o que cada ângulo do poliedro interpretativo pode oferecer para a compreensão abrangente do país tanto na sua formação como sociedade quanto na dimensão propriamente política que teve a ver com a constituição do Estado e com o processo de internalização do capitalismo José Carlos Reis contrapõe para a apreciação crítica do leitor pensadores que se distinguem por terem destacado diferentes princípios fundacionais da civilização brasileira o que tem consequências para a visão do que é positivo ou negativo na constituição do país como unidade histórica Escolheu apresentar primeiro pensadores que valorizaram a ação colonizadora dos portugueses quer como construtores de impérios Varnhagen quer como instauradores de um povo novo e de uma nova forma de civilização a civilização dos trópicos Gilberto Freyre Como contraponto à visão positiva do passado colonial introduz a tese da herança maldita que vê nas orientações administrativas e éticas do colonizador português que persistiram nas instituições e formas de relações sociais do período nacional o empecilho que retarda no limite impede o advento da modernidade realizada na mentalidade secularizada competitiva consumista do cidadão que é próprio da ordem liberal congruente com a sociedade de mercado Sérgio Buarque de Holanda Está aí apresentada a abordagem culturalista que força o leitor de José Carlos Reis a refletir sobre os valores éticos e morais que fundamentam as instituições sociais e políticas brasileiras e o levam a pensar sobre o sentido do liberalismo e da democracia na construção de uma sociedade marcada pelas contradições da democracia racial e pela crença persistente na eficácia das relações de favor e do compadrio que é parte do universo mental do homem cordial este neoportuguês que não tem vocação nem motivação para implantar a ordem racionallegal própria das sociedades completamente modernas Para descortinar outro tipo de olhar sobre o Brasil José Carlos Reis escolheu apresentar a inovação que foi para a interpretação da história do país a recepção do marxismo a partir da qual se buscou testar em que medida esta história repetia a de outros países e sociedades berços do capitalismo originário Na perspectiva da história das ideias o leitor é levado a acompanhar tanto as mudanças estruturais que ocorrem no país desde o início da fase nacional quanto o reflexo de tais mudanças no campo interpretativo construído com as categorias analíticas do materialismo histórico Acompanha o processo de refinamento intelectual que evolui desde o determinismo das explicações de Nelson Werneck Sodré passando pela sofisticada tese da revolução burguesa no Brasil como um complexo processo de mudanças institucionais e de mentalidades concebida por Florestan Fernandes até a novidade latinoamericana da teoria da dependência formulada por Fernando Henrique Cardoso discípulo de Florestan Fernandes com a colaboração do chileno Enzo Faletto Três gerações de marxistas destaca José Carlos Reis tratando de mostrar como variou ao longo do século XX o modo de os intelectuais introduzirem e explorarem a abordagem institucionalistaestruturalista na interpretação do Brasil para demonstrar quer a positividade quer a negatividade do capitalismo dependenteperiférico como contexto de efetivação da transformação de um povo novo mas atrasadosubdesenvolvido em sociedade moderna Aprofundando a análise sobre a apropriação do marxismo por pensadores brasileiros José Carlos Reis ressaltou o impacto do marxismo dogmático na formação da esquerda nacional Chamou Caio Prado Jr ao debate não como historiador da evolução econômica do Brasil mas como crítico de uma visão partidária da crise institucional que resultou no fim do regime de 1946 visão esta que pelos seus equívocos teria levado os esquerdistas brasileiros a análises e estratégias políticas destituídas de realismo do que resultou o fechamento da opção de uma solução reformista mais liberal da crise da ordem capitalista no Brasil do pósguerra Nesta perspectiva Caio Prado Jr é apresentado como um analista inteligente da política brasileira não vendo na forma como se configuram as forças sociais e os conflitos em que se envolvem condições para uma revolução nacionalburguesa menos ainda para uma revolução socialista Na visão de José Carlos Reis Caio Prado Jr impõe a dura reflexão sobre os caminhos possíveis para a transformação do Brasil capitalista em uma sociedade mais igualitária e mais justa dado que o caminho revolucionário não existe no país como possibilidade real Se há lugar para relativo otimismo sobre o futuro do Brasil entre os culturalistas tal atitude fica muito mais difícil quando o ângulo destacado do poliedro inclui a reflexão sobre as desigualdades sociais como resultado de determinações estruturais da economia extremamente resistentes à mudança inercial que resultasse por exemplo do aumento da escolaridade ou da diminuição dos traços arcaicos da vida social como o familismo Passase da tese da necessidade e inevitabilidade da revolução social e política como única forma de redenção do povo brasileiro à da melhoria social que pode provir da liderança política inteligente que por meio de governo liberaldemocrático eficiente apoiado no dinamismo do mercado promova o progresso nacional Como resultado os brasileiros adquirirão as qualidades próprias do homem moderno e se comportarão cada vez mais como cidadãos esclarecidos Nesta forma de ver o Brasil e seus problemas fica muito distante a visão culturalista do povo lúdico que não se relaciona por meio de hierarquias rígidas que aceita a autoridade de modo leve porque pode passar acima ou ao largo dela em muitas circunstâncias No entanto podese perguntar o que há de coesão social numa sociedade tão desigual como a brasileira resultado do modo de internalização do capitalismo posto em prática por elites que se pretendem esclarecidas no controle do Estado não seria justamente resultado deste modo de ser dos brasileiros dessa persistência dos traços neoportugueses na cultura nacional Se o Brasil pode ser visto assim isto é como resultante da colonização portuguesa e do avanço dependente incompleto periférico do capitalismo nacional então José Carlos Reis está mais que coberto de razão ao provocar o debate sobre o elemento propriamente ideológico que permeia a escolha do ângulo a partir do qual explicar a identidade do Brasil É muito rica a tese da qual parte na empreitada de exploração das várias visões sobre esta identidade que pode ser assim resumida o Brasil não se explica por um princípio só não se resolve numa equação simples mas se nos dedicarmos a entender as razões e os contextos em que cada grande pensador do Brasil selecionou o princípio para falar do que é faltoso ou do que é promissor então será possível ter uma visão completa do que é o Brasil como ideal e como realidade histórica As identidades do Brasil valoriza o ensaísmo como forma de produção de conhecimento especialmente válida para fundamentar o debate sobre os projetos de nação que se confrontam no plano das opções políticas e que se realizam por meio das escolhas e decisões das elites dirigentes do país Nessa perspectiva o livro não é obra puramente acadêmica já que expressa uma visão do autor relativa ao universo intelectual que faz sentido desvendar quando se trata de pensar o resultado prático de concepções ideológicas na formação e conformação de um povo como moderno Estado nacional A separação dos pensadores entre os que descobrem e os que redescobrem o Brasil constitui recurso heurístico que permite a José Carlos Reis ressaltar a diferença que existe entre dois olhares o do pensador que está interessado em apreender o que houve de único e de inovador numa portentosa empreitada civilizatória e o do pensador que prefere destacar as constrições que se impuseram a tal empreitada dado que esta ocorre num universo de determinações econômicas e culturais já existentes e consolidadas como modelos institucionais e éticos superiores ou mais avançados ou mais modernos Escolhida a abordagem fica o pensador obrigado a tirar de sua interpretação os elementos de avaliação sobre o resultado da empreitada olhada em algum momento de sua evolução Os descobridores do Brasil a veem sob uma ótica positiva mesmo identificando pontos negativos Varnhagen preferiria que a grande construção dos portugueses no Brasil não tivesse sido manchada com a importação de africanos Gilberto Freyre preferiria que a civilização tropical não tivesse dado origem à pobreza da qual proveio a desnutrição e tantas doenças terríveis que enfraqueceram e enfearam parte da população brasileira Já os redescobridores do Brasil avaliaram a herança colonial como fardo a ser descartado a fim de que o país se liberte para um futuro moderno Sob este olhar o futuro não é necessariamente promissor e otimista pois pode exigir transformações dolorosas para se impor uma revolução no limite extremo mas não a revolução passiva de que fala Luís Werneck Vianna ou a decisão de aceitar posição secundária complementar no grande cenário externo dos paísespotência conforme propõe a opção do desenvolvimento dependente Em qualquer perspectiva o Brasil continua a colocar aos brasileiros a dramática pergunta qual é a identidade que deve valer para conduzir as escolhas políticas para fixar os termos de um projeto de nação Pergunta que não se esgota no tempo que ainda é tão pertinente hoje quando se discutem uma política de cotas para negros em instituições diversas e o quanto da lógica do mercado deve sobreporse às responsabilidades sociais do Estado quanto o foi no início do século XX quando se debatiam o recrutamento militar obrigatório como forma de melhorar a qualidade física e educacional dos jovens brasileiros pobres e a necessidade de um projeto de industrialização para diminuir a vulnerabilidade do país praticamente sustentado pela exportação de um produto de sobremesa como se referiu Celso Furtado ao café ao tratar da drástica queda da receita nacional durante a I Guerra Mundial e nos anos que se seguiram à grande crise de 1929 O leitor atento vai concluir que José Carlos Reis não quer resolver o enigma do Brasil simplesmente por meio da dicotomia entre descobridores e redescobridores do Brasil pois deu um passo metodológico interessante e arriscado ao introduzir entre os redescobridores um estudioso dos processos históricos de ocupação territorial do país que deram origem a tipos sociais especificamente brasileiros o caboclo o gaúcho o homem do interior De fato ao incluir Capistrano de Abreu na sua lista de intérpretes do Brasil José Carlos Reis destaca o tipo de estudo que busca revelar o modo concreto de constituição das formas de vida econômica e social que focaliza o olhar sobre o homem comum cujas soluções para os desafios práticos enfrentados dão origem a padrões culturais diferenciados compondo um mosaico variado da vida nacional no limite a alma nacional nas suas múltiplas expressões Deste tipo de olhar podem emergir visões críticas ou ufanistas mas é dele que provém a possibilidade de interpretar um país como identidade coletiva que não se resume às fronteiras definidas politicamente ou ao conjunto das instituições formais Para Capistrano o brasileiro verdadeiro é o homem do interior não é o citadino amoldado pelo português que ficou nas cidades do litoral apegado às mordomias sustentadas pela receita da agroexportação Para ele então o Brasil do início do século XX ainda era um projeto muito inconcluso de ocupação da terra e de exploração de suas potencialidades Esta exploração não resultaria de imposições ou induções políticas mas de certo espírito de aventura que não era no entanto o ianquismo dos ideólogos do pioneirismo paulista Capistrano é um ensaísta um crítico do padrão da colonização portuguesa ou um estudioso dos modos de desbravamento de territórios amplos abertos ainda à conquista por parte de indivíduos simultaneamente aventureiros e sedentários pois desejosos de se fixarem numa terra sua Este Brasil que podia ser conquistado independentemente da indução portuguesa pode ser visto como o Brasil dos paulistas que se opuseram aos portugueses e deram origem a formas mais autônomas de exploração das riquezas do país Este é o Brasil verdadeiro o que procurou escapar da exploração imperialista e das limitações do domínio colonial Na perspectiva de outros pensadores do Brasil como projeto nacional que são Olavo Bilac e Manoel Bomfim o Brasil são todas as regiões todos os tipos sociais e todas as culturas que o compõem de norte a sul lição que procuraram levar para as crianças brasileiras com o encantador Através do Brasil de 1910 Eis então as razões do sucesso e da perenidade deste livro de José Carlos Reis é uma seleção instigante de pensadores do Brasil apresentados de modo inteligente que por causa da competência do autor na exploração de suas teses e ideias induzem o leitor a refletir sobre a identidade do país e sobre sua própria identidade como brasileiro Boa notícia para todos os leitores de As identidades do Brasil é a publicação de As identidades do Brasil 2 também pela Editora FGV Nela se acharão mais elementos para o aprofundamento da reflexão sobre o complexo amalgamento de nosso passado e nosso futuro de nossas condições materiais e culturais de nossa unidade e de nossa diversidade Vera Alice Cardoso Silva Professora titular do Departamento de Ciência Política da UFMG doutora em história pela Universidade de Illinois UrbanaChampaign EUA INTRODUÇÃO1 Os historiadores reescrevem continuamente a história E o fazem talvez por duas razões principais Em primeiro lugar pela especificidade mesma do objeto do conhecimento histórico os homens e as sociedades humanas no tempo O sentido dos processos e eventos humanos que são temporais não é conhecível imediatamente Os homens e as sociedades humanas por serem temporais não permitem um conhecimento imediato total absoluto e definitivo A história só se torna visível e apreensível com a sucessão temporal A reescrita contínua da história tornase então uma necessidade Os contemporâneos estão imersos no tempo vivido e têm dificuldade para ascender a um tempo pensado à reflexão sobre o seu próprio vivido A história não é transparente e não se deixa interpretar imediatamente enquanto é vivida embora o contemporâneo não esteja impedido de fazer reflexões imediatas ainda em seu tempo quente No entanto o olhar do contemporâneo se deixa iludir pelo brilho e barulho de personalidades gestos ações e discursos É somente com algum distanciamento apenas no final do dia vivido que o seu sentido pode ser interpretado O passado é o dia vivido o presente é a noite reflexão O presente é ambíguo em relação a si próprio é sonhador noturno em relação ao passado assume uma posição reflexiva interrogadora procurando lançar indiretamente luzes sobre ele próprio O passado é uma referência de realidade sem a qual o presente é pura irreflexão Assim o historiador é também um pássaro de minerva passa a noite reexaminando o dia Por outro lado não tem certeza de que pode conhecer o passadodia pois a noitepresente em que ele está é o lugar do sonho Ao tematizar o dia ele o conhece ou o imagina Sempre estará dominado por essa dúvida Talvez seja exagerado afirmar com a tradição que quanto mais afastado no tempo o historiador se encontra mais vasta e profunda é a sua percepção do passado Mas esta não é uma tese sem peso teórico É do alto da montanha é dos ombros do gigantetempo que se contempla um horizonte mais amplo Na verdade é de madrugada tarde da noite que o dia anterior é melhor pensado e organizado e também imaginado Algumas possibilidades objetivas são consideradas para uma melhor compreensão do que de fato se passou E se tivesse sido diferente O tempo não se revela de uma só vez portanto O sentido dos eventos não é conhecível enquanto eles ocorrem A história é sucessão processual os acontecimentos emergem submergem explodem adormecem dependendo do seu ritmo próprio O evento pode ser anódino no presente e ser decisivo no futuro o que era secundário e nem percebido pelo contemporâneo emerge no futuro com grande importância o que era visível e importantíssimo vai perdendo eficácia histórica com o passar do tempo As obras históricas são também históricas temporais e têm uma duração determinada que às vezes é bem curta Elas envelhecem e exigem uma revisão uma reelaboração uma reescritura Schaff 1978 Para Koselleck conhecer um mundo histórico é responder a esta questão maior como em cada presente as dimensões temporais do passado e do futuro foram postas em relação Para ele se se determina em um presente a diferença entre passado e futuro entre campo da experiência e horizonte de espera tornase possível apreender alguma coisa que seria chamada de tempo histórico Quem realiza esta operação cognitiva é a história que torna visível e dizível a experiência temporal A história é a reconstrução narrativa conceitual e documental em um presente da assimetria entre passado e futuro Passado e futuro reenviamse um ao outro e são assimétricos diferentes e esta sua relação é que dá sentido à ideia de temporalização O presente muda e nesta sua mudança o passado e o futuro são constantemente rearticulados obrigando à reescrita da história Na experiência individual por exemplo o envelhecimento modifica a relação entre espera e experiência Quando se é mais jovem ou mais velho o passado e o futuro significam diferentemente e sua relação se altera Assim também na experiência históricosocial As sociedades existem em uma data determinada e ao historiador interessa conhecer a sua idade interna ou seja a relação que em seu presente que muda sempre cada sociedade estabelece com o seu passado e o seu futuro Koselleck 1990 Dominada pela temporalização portanto a imagem da história vivida muda constantemente como em um holograma Os acontecimentos históricos exigem a sucessão precisam do tempo para revelar o seu sentido A sensibilidade historiadora se ancora no tempo na interrelação sempre mutante entre passado presente e futuro As mudanças no processo histórico alteram as interpretações da história Toda interpretação que é uma atribuição de sentido ao vivido se assenta sobre um mirante temporal um ponto de vista em um presente vêse a partir de um lugar social e um tempo específicos O desdobramento do tempo pode mudar a qualidade da história interpretações inovadoras emergem com a sua passagem Não há um passado fixo idêntico a ser esgotado pela história As esperas futuras e vivências presentes alteram a compreensão do passado Cada geração em seu presente específico une passado e presente de maneira original elaborando uma visão particular do processo histórico O presente exige a reinterpretação do passado para se representar se localizar e projetar o seu futuro Cada presente seleciona um passado que deseja e lhe interessa conhecer A história é necessariamente escrita e reescrita a partir das posições do presente lugar da problemática da pesquisa e do sujeito que a realiza Febvre considera que a função social da história é organizar o passado em função do presente Febvre 1992 Um novo olhar sobre o passado e o futuro se elabora sob as pressões do presente vivido A partir do presente a visão do passado se altera e age sobre a visão e a produção do futuro Em segundo lugar a história é reescrita porque o conhecimento histórico muda acompanhando as mudanças da história Novas fontes novas técnicas novos conceitos e teorias novos pontos de vista levam à reavaliação do passado e das suas interpretações estabelecidas Há uma transposição para essa nova linguagem do patrimônio do passado O passado é então repensado e ressignificado de forma renovada e fecunda Além disso dessas razões teóricas e técnicas aparecem novos historiadores indivíduos talentosos formados na leitura dos clássicos e na história presente que formulam novas questões ou reformulam questões clássicas oferecendolhes respostas surpreendentes que influenciarão a representação que a sociedade em que vivem tem dela própria e do seu passado Novos historiadores ligados organicamente a novos sujeitos históricos reinterpretam a história segundo as suas necessidades e a sua forma particular de relacionar o passado e o futuro Schaff 1978 As novas questões apoiadas em uma teoria e metodologia renovadas e em grupos sociais e intelectuais inovadores alteram as relações das dimensões temporais entre elas Uns historiadores articulam as dimensões temporais enfatizando o passado outros o futuro outros ainda o presente Criamse visões da história regressivas conservadoras e modernizadoras A renovação teóricometodológica não abole o condicionamento da produção histórica em um presente e lugar social Não cria um efeito de neutralidade imparcialidade que aboliria a condição temporal do objeto e da pesquisa com o seu sujeito Para Koselleck a tomada de posição é inevitável e favorável à pesquisa é uma tentativa de salvar a objetividade ao não se pretender um impossível ponto de vista suprahistórico Koselleck 1990 Entretanto o conceito filosófico de verdade é complexo e suas relações com a históriatempo o são ainda mais Domingues 1996 Ricoeur 1968 Não poderemos nos estender em sua teorização embora seja o núcleo que conecta as diversas visões do Brasil aqui apresentadas Pensamos a verdade histórica com os conceitos de interpretação e de compreensão que implicam reconstruções temporais parciais múltiplas relativas não definitivas e ao mesmo tempo racionais não subjetivistas e não relativistas Interpretar é atribuir sentido a um mundo histórico determinado em uma época determinada compreender é a partir dessa atribuição de sentido autolocalizarse no tempo retendo articulando e integrando suas próprias dimensões temporais Cada mundo histórico é dominado pelo tempo e muda As suas interpretações e autocompreensões também mudam sem deixar de se referir a ele em um de seus momentos Portanto por essas duas razões o objeto temporal e a renovação teóricometodológica e de quadros humanos entre outras o conhecimento histórico se faz sob o signo da mudança Todo historiador quer escrever uma nova história quer oferecer um ponto de vista mais abrangente e mais seguro As escolas históricas no entanto se iludem ao pensar que o seu novo ponto de vista é único e definitivo que descobriram a verdade da história que estabeleceram o conhecimento histórico em bases objetivas científicas Em defesa da sua nova interpretação definitiva cada uma delas desvaloriza os historiadores e as interpretações anteriores em geral com os mesmos adjetivos empregados pelos novos anteriores para desautorizar os seus predecessores ultrapassados equivocados positivistas ideológicos reacionários ignorando a condição temporal de toda elaboração histórica A verdade histórica ela é fundamentalmente histórica Não há métodos e histórias definitivas que levem ou tragam à verdade absoluta no tempo Em cada presente o que se tem é uma visão parcial uma articulação original do passado e do futuro A história é visada segundo perspectivas diversas e com o avanço do tempo as proposições históricas mudam Todo historiador é marcado por seu lugar social por sua data e por sua pessoa Veemse sempre aparecer obras novas sobre o mesmo assunto À medida que o tempo passa novas experiências são acrescentadas às precedentes e novas esperas são desenhadas O passado é assaltado por interrogações novas que oferecem respostas diferentes das anteriores Em cada presente há um esforço de compreensão de autolocalização pela rearticulação de passado e futuro São essas autolocalização e organização temporais originais em cada presente que possibilitam as estratégias de ação E são múltiplas as representações e respectivas estratégias de ação que cada presente se oferece Para se conhecer uma interpretação histórica esclarece Koselleck é sempre preciso saber quem a formulou um nativo ou um estrangeiro um amigo ou inimigo um erudito ou um cortesão um burguês ou um camponês um rebelde ou um súdito dócil As narrativas podem se contradizer e paradoxalmente ser verdadeiras Podese olhar sobre o mesmo tempo e representálo diferentemente mas coerente e corretamente A verdade histórica talvez possa ser comparada a um caleidoscópio os historiadores diversos e sucessivos escolhem e sintetizam servemse de metáforas formulam perguntas específicas servemse de fontes e técnicas diferentes Ela é um sentido atribuído ao vivido atribuição carregada de influências sociais técnicas e pessoais Portanto o conhecimento histórico está atravessado pela temporalização e não se fixa em verdades absolutas em um conhecimento científico no sentido naturalista do termo A necessidade da reescrita da história não seria também uma condenação do conhecimento histórico ao subjetivismo ao relativismo ao ceticismo Ela revela a sua especificidade a sua condição singular o caráter particular da objetividade que pode produzir O historiador para se diferenciar de mentirosos e falsários deve buscar oferecer uma interpretação controlável racionalmente e para isso deve apoiarse em problemas conceitos e documentos Mas a sua interpretação histórica não abole as anteriores e não evitará outras que se sucederão Por isso para Koselleck o conhecimento histórico exige do historiador o exame crítico da historiografia anterior De maneira mais geral afirma ele podese dizer que o conhecimento histórico é também e ao mesmo tempo história da historiografia Koselleck 1990174 Essa conclusão de Koselleck revela o espírito deste trabalho o conhecimento histórico é ao mesmo tempo história da história Na nossa perspectiva os intérpretes do Brasil e não os explicadores do Brasil como os denomina pejorativamente C G Mota 1978 que se sucedem não se eliminam os autores posteriores podem até ser melhores do que os anteriores do ponto de vista teóricometodológico na abrangência e profundidade de sua análise mas não os substituem nem os tornam descartáveis Koselleck se refere à ideia de um progresso do conhecimento histórico as interpretações coincidiriam crescentemente com os eventos e processos eventos e processos e interpretações convergiriam progressivamente As interpretações seriam cada vez mais seguras retificando os erros passados baseadas no próprio desdobramento da história A ideia por trás desta tese do progresso do conhecimento histórico é a de que o passado se presta tanto mais à interpretação quanto mais tarde é apreendido pois podese vêlo melhor embora não integralmente em suas possibilidades já explicitadas Esta tese pode parecer talvez correta se for acrescentado que se trata de um progresso dialético e não linear Por progresso dialético prentendese dizer que as interpretações posteriores superam conservando as anteriores sem diluir a sua diferença ao contrário de um progresso linear onde só haveria superação sem conservação Em um progresso dialético as interpretações posteriores podem até ser mais seguras e reunir melhor as dimensões temporais mas não eliminam o valor e a necessidade das anteriores Criase então uma verdade histórica caleidoscópica O Brasil por exemplo é conhecível não através de uma ou outra interpretação em particular e isolada mas pelo conjunto delas pelo confronto e diálogo entre as várias interpretações feitas em épocas distintas A síntese não seria uma integração de todas as interpretações em uma única e superinterpretação A síntese seria um diálogo entre todas que se esclarecem pelo reconhecimento e contrastação recíprocas Em cada presente os historiadores articulam diferentemente passado e futuro experiência e espera articulação esta que revela o fundamento temporal da sua interpretação Nas interpretações sucessivas percebemse as concepções diferenciadas do tempo histórico brasileiro que em cada momento da história do Brasil puderam ser formuladas E estas representações históricas retornam à realidade social reproduzindoa ou alterandoa Cada interpretação do Brasil revela o que podia ser visto do passado e vislumbrado do futuro naquela posição temporal específica As interpretações atuais são mais amplas e abrangentes e se enriquecem ao incluírem as anteriores mesmo na divergência Referindose à filosofia Ortega y Gasset afirma que nenhum filósofo pode ignorar os seus predecessores o que talvez valha também para a história O progresso consiste em absorver o predecessor sem diluílo mas preservandoo em sua diferença e apoiarse nele toda superação é negação e toda verdadeira negação é uma conservação Um filósofo e um historiador retomam os seus antecessores com uma dupla finalidade partir deles e negálos conservandoos Assim o conhecimento histórico teria também a estrutura da reflexão um retorno que se apoia e vai além em que a história da história desempenha um precioso papel Ortega y Gasset 1958 O que se propõe neste trabalho é a reposição de alguns intérpretes do Brasil em sua época em sua data com a sua problemática específica e com as suas específicas avaliações do passado e projeção do futuro A data de uma obra diz muito sobre ela é a sua definição pois revela o mundo histórico em que foi produzida Ortega y Gasset 1958 Ler Varnhagen é ouvir o pensamento brasileiro e a história brasileira dos anos 1850 Por um lado retirálo de 1850 e comparálo com as interpretações marxistas dos anos 196070 é injustamente asfixiálo Por outro é extremamente rico o que este contraste revela o Brasil dos anos 196070 representa uma enorme mudançacontinuidade em relação ao de 1850 Nossa hipótese é a de que não há autores superados desde que lidos em sua época Dentro dela são insuperáveis Se o conhecimento histórico é também e ao mesmo tempo história da história o conhecimento da história do Brasil pressupõe a leitura e a confrontação dos intérpretes do Brasil no decorrer da sua história Surge uma verdade histórica do Brasil produzida ao longo do tempo uma verdade poliédrica caleidoscópica O que se pretende oferecer é uma visão do Brasil construída por uma multiplicidade de visões parciais Eis a tese fundamental que orienta a nossa leitura e o confronto entre esses autores o que os diferencia e aproxima o que os separa e agrupa é uma representação particular do tempo histórico brasileiro As duas categorias fundamentais que permitem a inteligibilidade e diferenciação desses discursos sobre o Brasil são categorias temporais mudança e continuidade Esses autores realizaram fundamentalmente uma articulação de mudança processo modernização progresso revolução na direção da independência e autonomia e continuidade estrutura permanência tradição resistência conservadorismo que significam dependência e heteronomia O conhecimento histórico é o conhecimento das durações humanas que podem ser medidas em sua maior ou menor intensidade com os conceitos de mudança e de continuidade este será o eixo de articulação do trabalho Mudança para o Brasil significa a identificação das forças que produzem a autonomia e a emancipação nacional continuidade a identificação das forças que reproduzem e renovam a dependência Por ser a história o conhecimento das durações humanas dos homens no tempo a articulação de mudança e continuidade de independência e dependência em cada presente levou os historiadores brasileiros a reescreverem continuamente a história do Brasil As interpretações do Brasil que estudamos são sínteses produzidas em datas específicas que reúnem de forma original uma apreensão do passado dependência uma localização do presente e um projeto para o futuro independência Tais sínteses têm um duplo objetivo criar uma representação global do Brasil uma configuração que dê conta dos seus eventos e personagens das suas mentalidades das suas elites e da sua população em geral suas classes e lutas seus escravos índios e mestiços do passado e a partir dessa representação global refigurar o presente e imaginar um futuro possível uma utopia realizável O que o Brasil foi está sendo e o que se tornará Eis a questão fundamental que formulamos aos oito intérpretes que estudamos Cada síntese pertence a um presente e esse presente vivido do Brasil refletiuse em cada uma das interpretações do Brasil Esses presentes vividos foram épocas marcantes que levaram os seus historiadores a se debruçarem sobre todo o tempo histórico brasileiro Cada interpretação produzida é nova É uma reafirmação ou uma recusa das anteriores Alguns recriam teses tradicionais outros rompem com a tradição criando uma nova tradição Uns valorizam a continuidade outros a mudança Não há continuidade pura sem mudanças e também não há mudança pura sem continuidades O tempo não se deixa cortar como o espaço pondo de um lado o passado e de outro o futuro O passado continua agindo depois da mudança por mais radical que essa tenha sido mas a mudança pode alterar bastante o passado dependendo da sua profundidade Ora os intérpretes do Brasil valorizam o espaço da experiência brasileira o que o Brasil já foi e ainda é ora valorizam o horizonte de espera o que o Brasil quer ser e ainda não é As ideias passadas influem sobre as presentes a originalidade não é pura O conhecimento histórico é sempre um debate uma retomada dos pontos de vista do interlocutor seja para reformulálo apoiandoo seja para rejeitálo A partir de certas crises rupturas mudanças bruscas as interpretações conhecidas envelhecem e são ou substituídas por outras ou recriadas As forças sociais predominantes em cada época são levadas a repensar toda a história do país e a criar uma nova imagem histórica reconhecível Estas sínteses são reconstruções racionais do Brasil reconstruções do tempo histórico brasileiro em sua especificidade oferecendolhe uma coerência um sentido É um esforço de unificação da multiplicidade de organização da dispersão O resultado deste esforço é uma contemplação os eventos múltiplos e dispersos se integram em uma totalidade O discurso e a realidade social se orientam reciprocamente Alguns historiadores consideram este esforço inútil e perigoso pensam que se chega sempre a uma abstração esvaziada de conteúdo concreto Para eles um discurso totalizante não se refere à realidade e perdeu o contato com a mudança eliminando a multiplicidade suspendendo as contradições E os historiadores preferem o concreto a mudança a multiplicidade as pesquisas monográficas Não se pode reconstruir um mundo histórico integralmente de forma racional A pesquisa histórica eles afirmam para ser racional e atingir o real tem de se particularizar e se formalizar Entretanto a pesquisa particular e conceitual precisa de alguma orientação mais global de uma síntese anterior Esta não precisa ser um sistema fechado e abstrato Ela pode ser simplesmente uma organização da multiplicidade uma representação racional mas aberta e flexível Se se toma a síntese neste sentido fraco uma representação racional e aberta uma interpretação histórica do Brasil e não um sistema abstrato global e fechado uma explicação atemporal do Brasil ela é indispensável às pesquisas particulares como orientação e indispensável sobretudo aos indivíduos que agem que precisam se situar em relação ao passado e ao futuro Tais sínteses globais ligamse diretamente à prática histórica de sujeitos específicos Na verdade elas elaboram as visões do Brasil desses sujeitos e os tornam eficientes em relação ao futuro Dividimos estas sínteses do Brasil em duas correntes a do descobrimento do Brasil 18501930 aqui representada por Varnhagen e Gilberto Freyre que priorizam a continuidade em relação à mudança que preferem o passado brasileiro ao futuro preferem o Brasil português ao Brasil brasileiro o Brasil tradicional ao Brasil moderno Desde essa perspectiva o futuro do Brasil deverá ser ou o mesmo passado ou a melhoria do passado A tese do progresso linear e gradual é interpretada de modo conservador é o mesmo que se aperfeiçoa O passado resolverá os seus problemas sem necessidade de ruptura mudança brusca revolução A crítica documental serve para resgatar a verdade da tradição para tornála mais viva e mais vigorosa contra a mudança A história é mestra da vida a assimetria passadofuturo é quase reduzida a zero o futuro será no máximo o passado resolvido Koselleck 1990 Varnhagen escreveu em 1850 momento da ascensão e consolidação do Estado nacional sob a Monarquia ele pôde até ser mais crítico do passado do que Freyre pois não havia ameaça real à continuidade do passado colonial no presentefuturo nacional Freyre escreveu em 1930 momento da crise do Brasil das elites lusobrasileiras que se consolidaram em 1850 Para legitimar o seu poder em crise Freyre fecha os olhos a todas as dificuldades e tensões do passado Ele o idealiza e o aceita integralmente como modelo e referência para o futuro As interpretações que constituem a corrente do redescobrimento do Brasil 1900 a 196070 representadas aqui neste estudo pelos historicistas Capistrano de Abreu e Sérgio Buarque de Holanda e pelos marxistas Nelson Werneck Sodré Caio Prado Jr Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso priorizam a mudança em relação à continuidade variando a ênfase preferem a ruptura com o passado preferem o brasileiro ao português o Brasil moderno ao tradicional colonial Capistrano de Abreu foi um dos primeiros a ver o futuro da sociedade brasileira como assimetria profunda em relação ao passado colonial O Brasil futuro deveria continuar acelerando e aprofundando a ruptura que se desenhava desde o início da colonização O futuro não será lusobrasileiro mas brasileiro uma nação livre soberana autônoma habitada por um povo novo com interesses e sentimentos singulares S B Holanda em 1936 ao recusar as nossas raízes ibéricas aprofundou a reflexão de Capistrano sobre a ruptura do futuro brasileiro com o seu passado colonial ibérico Nos anos 1950 com a visão marxista pioneira do Brasil de N W Sodré já se formula claramente a ideia e até se planeja a revolução brasileira Sodré e o PCB fazem planos para um Brasil livre do latifúndio e da dependência imperialista A história os decepcionou em 1964 Em 1966 Caio Prado Jr com a mesma ambição de mudança profunda refaz os seus planos revolucionários Ambos Sodré e Prado Jr cada um à sua maneira pensam a radicalização da mudança Mas já em Caio Prado Jr começam a aparecer as dificuldades postas pela mudança A sua pesquisa históricosociológica mais objetiva menos voluntarista dogmática e idealista mais atenta e sensível à temporalidade interna e específica do Brasil revelou que a história brasileira é mais marcada pela continuidade do que pela ruptura Os estudos de Caio Prado Jr apontaram para os limites históricos e estruturais à iniciativa revolucionária Assim como Caio Prado e de modo teóricometodológico mais consistente Florestan Fernandes revelou a mesma ambiguidade se o seu lado cientista social constata objetivamente os limites estruturais que limitam a iniciativa revolucionária o seu lado cidadão clama apaixonadamente pela ruptura com o passado colonial e dependente e protesta diante da imobilidade e ineficiência dos sujeitos da mudança Em F H Cardoso a estrutura já pesa muito sobre a mudança A mudança não poderá ser pensada sem se levar em consideração a duradoura realidade da dependência que tende mais a permanecer do que a mudar Ele então procura pensar a produção do máximo de mudança interna possível no interior e na direção da estrutura capitalista internacional Essas duas correntes reúnem diferentemente o passado ao futuro brasileiros pensam diferentemente a identidade brasileira divergem quanto aos verdadeiros sujeitos da história do Brasil e quanto aos ritmos e sentido do seu desdobramento Todas as oito interpretações são legítimas ou seja informam sobre o Brasil e o representam de forma válida e eficaz desde que consideradas em sua época perspectiva e circunstância O diálogo entre os membros das duas correntes é áspero é em tom de luta Aqui sem apagarmos a diferença e a luta nosso interesse é o de conhecer as diversas posições que constituem a verdade poliédrica do Brasil Foi essa portanto a periodização que levou à seleção daquelas obras e autores além do seu valor reconhecido e incontestado É uma solução artificial e discutível sem dúvida pois elimina muitas outras obras e autores que poderiam também representar aqueles momentos históricos Mas como é consabido toda e qualquer periodização e seleção é artificial e contestável pois é só uma entre muitas estratégias de abordagem e de atribuição de sentido Essa é uma limitação no entanto intrínseca à reflexão teóricohistoriográfica mas que não invalida o esforço intelectual e cognitivo que representa Para reconhecerlhe o valor e o vigor e quem sabe até o rigor o leitor terá de se limitar também a extrair dela aquilo que ela quis e pôde oferecer Nossa disposição é a da escuta ora atenta ora flutuante ora interrogativa ora duvidosa ora simpática ora resistente e em alguns momentos amigavelmente irônica dos intérpretes do Brasil Mas uma escuta paciente um estudo sereno de alguns discursos que inventaram a imagem temporal do Brasil Vamos manternos bem próximos do texto original e dos seus comentadores imitando suas linguagens fazendoos falar e se interrogarem reciprocamente A paráfrase será onipresente ideias e palavras saltarão dos textos originais para este pois queremos compartilhar os seus modos de ver e estilos Do ponto de vista formal seremos deliberadamente pouco formais as citações serão ágeis autor e data da publicação não faremos citações de pé de página pois quando relevantes foram incluídas no próprio texto não cotejaremos edições diversas de cada obra pois da primeira edição o que nos interessou foi somente a data e as circunstâncias históricas do país e pessoais do autor não seremos exaustivos em relação aos comentadores pois não temos a ingênua ambição de produzir um texto completo embora suficientemente documentado não abordaremos toda a obra de cada autor e não tematizaremos as mudanças em seu pensamento pois escolhemos no conjunto da sua obra a sua síntese a sua representação global do Brasil no quadro de uma época determinada Nosso esforço é o de compreender de dialogar e mediar o diálogo com a sensibilidade da origem social da formação intelectual do temperamento pessoal enfim do lugar social e da data dos interlocutores Nossa intenção é comparar e compartilhar promovendo um impossível encontro entre intérpretes não só adversários mas distantes no tempo Mas a nossa ambição maior é através dos seus intérpretes postos justapostos superpostos e contrapostos contrastados e articulados alcançar uma compreensão mais ampla do Brasil através dos momentos mais críticos da sua trajetória histórica As várias interpretações do Brasil se sucedem sem se suprimirem desde o contemporâneo até o historiador mais distanterecente Ricoeur compara o contemporâneo e o historiador com o sonhador e o narrador do sonho O contemporâneo ele afirma é como o sonhador seu vivido é como o sonho Ele vive à noite entre eventos desconexos desarticulados é pura emoção e desejo Adormecido vive em um espetáculo desconhecido misterioso que é a sua própria vida Ele próprio é a sua expressão O historiador é como o sonhador no dia seguinte um narrador do seu sonho Acordado esse sonhador se torna historiador ele se lembrará do que sonhou e fará uma narrativa do sonho Este o sonho assim como o vivido é noturno desconhecido repleto de camadas profundas do passado A narrativa se dá no dia seguinte e será a organização do sonhovivido A narrativa não é o próprio sonhovivido é um esforço de organização e atribuição de sentido O sonho e o vivido são inabordáveis em si deixam vestígios lembranças com as quais se tece uma narrativa totalizante Tal narrativa é um esforço de interpretação do sonhovivido de decifração de reconstrução e compreensão Ela será tentada a cada dia todos os dias A narrativa será sempre refeita reescrita reelaborada ressignificada A narrativa visa ao vividosonho mas jamais coincidirá com ele Ela evita as tensões ou as ressignifica gerenciandoas O narradorhistoriador resiste ao que há de ameaçador no sonhovivido A narrativa é contemporizadora tranquilizadora tanto mais quanto maior é o conflito É equívoca polissêmica metafórica Há narrativas de narrativas metanarrativas retrospectivas interpretações de interpretações textos sobre textos Nenhum texto aparece saturado de sentido transparente e exige sempre uma decifração contínua Não há leitores definitivos de um texto não há decifração conclusiva do sonho não há narrativas esgotadoras do vivido histórico Por isso a história é sempre reescrita Não há narrador que reproduza o seu sonho tal qual foi sonhado não há historiador que reproduza o vivido tal qual foi vivido Entre narraçãoconhecimento e sonhovivido há um abismo intransponível sobre o qual se estende a ponte frágil e oscilante das interpretações Ricoeur 1965 Nossa disposição é portanto a de quem abre o ouvido e escuta a de quem abre o espírito e recebe narrativas diferentes cruzadas lacunares tendenciosas suspeitas mas que são a representação sincera de sujeitos que buscam se conhecer se apreender e tomar a sua história em suas mãos Os sujeitos históricos brasileiros viveramsonharam seus intérpretes organizaram esse seu vividosonho de formas distintas em épocas distintas Em sua própria época cada interpretação é ainda meio sonhadora pois ainda muito próxima do sonho Ela ainda está próxima do vivido faz ainda parte dele e é também sonhovivido E se narração e sonhovivido não coincidem isto não quer dizer que as narrações sejam inúteis A narração toca indiretamente o sonhador que se emociona toma consciência e muda a interpretação histórica toca indiretamente em sua vida os homens que passam a se compreender melhor e mudam Assim os sujeitos históricos informados pelas interpretações localizados quando sonharem com o futuro e o passado terão menos pesadelos e quando viverem no presente encontrarão os melhores meios e termos para expressar seus interesses e realizar os seus projetos PARTE 1 O DESCOBRIMENTO DO BRASIL ANOS 1850 VARNHAGEN O elogio da colonização portuguesa Varnhagen Heródoto do Brasil Francisco Adolfo de Varnhagen 181678 é considerado o Heródoto brasileiro portanto o fundador da história do Brasil mesmo se antes dele entre outros Pero de Magalhães Gândavo frei Vicente do Salvador Sebastião da Rocha Pita Robert Southey escreveram respectivamente História da província de Santa Cruz 1576 História do Brasil 1627 História da América portuguesa 1730 História do Brasil 1810 Southey disputa com Varnhagen sem nunca ter estado no Brasil aquele título historiográfico Ele pintou em sua História do Brasil um quadro sombrio quanto às possibilidades futuras da colonização comercial portuguesa no Brasil degeneração dos costumes da religião e da moral causada pela escravidão e pela falta de agricultura miséria fome turbulências crimes doenças Varnhagen e os nativistas do IHGB se revoltaram contra esta apreciação negativa de Southey em relação à colonização portuguesa e ao futuro da jovem nação Para estes a colonização portuguesa teria sido um enorme feito e o futuro estava aberto ao sucesso da nova nação Dias 1974237 Foi somente nos anos 1850 com Varnhagen que surgiu a obra de história do Brasil independente mais completa confiável documentada crítica com posições explícitas a História geral do Brasil que superou as obras mencionadas anteriormente sem no entanto tornálas descartáveis A sua História geral do Brasil refletia uma preocupação nova no Brasil com a história com a documentação sobre o passado brasileiro que o recémfundado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro representava A História geral do Brasil foi possível porque as condições históricas do Brasil o processo da independência política e a constituição do Estado nacional amadureceram nos anos 1850 E foi no interior desse processo histórico que ocorreu a outra condição favorável ao surgimento da obra de Varnhagen a institucionalização da reflexão e da pesquisa históricas no IHGB A independência política consolidada e reprimidas as lutas internas geradas por ela o Brasil possuía um perfil do qual ainda não tomara conhecimento Nos anos 1850 Varnhagen desenhará o perfil do Brasil independente oferecerá à nova nação um passado a partir do qual elaborará um futuro Varnhagen era filho de um oficial alemão engenheiro metalúrgico que trabalhara no Brasil e de uma portuguesa Em sua obra ele faz acompanhar o seu nome das credenciais visconde do Porto Seguro e natural de Sorocaba Entretanto este paulista nobre morou pouco no Brasil Ele residiu em Portugal desde os seis anos de idade Sua formação em Lisboa foi mais militar técnica e matemática Mas estudou também paleografia diplomática e economia política Conhecese pouco no entanto da sua formação intelectual O que se sabe é que apreciava frequentar os arquivos dos lugares por onde passava os arquivos públicos essa novidade do século XIX Capistrano de Abreu afirma no Necrológio de Varnhagen que o desconhecido o atraía Diante de documentos corroídos esquecidos desorganizados ele se sentia desafiado Parecia um bandeirante em busca da verdade bravo destemido persistente vigoroso Embora tenha tido alguma formação em paleografia e em diplomática quanto à história ele era sobretudo um autodidata Raramente cita autores estrangeiros em sua correspondência afirma A Canabrava mas a sua preocupação com a exegese documental parece revelar a influência de Ranke A influência alemã sobre o seu pensamento deve ser forte também em virtude de sua origem paterna Ele estava bem adaptado à produção histórica de sua época Não só estava atualizado com o que se fazia na Europa como foi um dos pioneiros da pesquisa arquivística e do método crítico que o século XIX redescobriu e aprimorou Tanto quanto Ranke Varnhagen é um historiador típico do século XIX Canabrava 1971 Odália 1979 Ele pode ser considerado de fato o Heródoto do Brasil pois foi o iniciador da pesquisa metódica nos arquivos estrangeiros onde encontrou e elaborou inúmeros documentos relativos ao Brasil Tendo morado sempre no exterior se sentia um exilado dominado que sempre esteve pela saudade do Brasil Capistrano ainda no Necrológio o considera movido por um patriotismo profundo quando se empenhou obstinadamente na escrita da história pátria uma história completa e apaixonada Em todo lugar em que esteve fosse como embaixador ou turista deixou declarações de amor ao Brasil e de crença em seu futuro como nação Em 1841 adotou a nacionalidade brasileira logo após a confirmação antecipada de d Pedro II no trono brasileiro Ele quis assessorar o jovem imperador na construção da identidade do seu império que lhe garantiria unidade e longevidade Aristocrata o visconde nutria sentimentos de profunda fidelidade à família real portuguesa Em Portugal defendera até às armas d Pedro IV I contra d Miguel Seu amor pelo Brasil se confundia portanto com a sua fidelidade à família real portuguesa Defendia um Brasil português com o imperador Sua adesão à Coroa era total e a representou em diversos países da América Latina e da Europa Portugal Espanha Áustria Colômbia Equador Venezuela Peru Chile Casouse com uma chilena e após a sua morte foi enterrado no Chile Atualmente os seus restos mortais encontramse em Sorocaba Odália 1979 Varnhagen o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro IHGB e Karl Philipp von Martius O imperador foi o protetor de Varnhagen oferecendolhe os recursos para a sua obra O jovem imperador aliás precisava muito da história e dos historiadores Em 183839 pouco antes de ocupar antecipadamente o trono fora criado o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro que foi de uma importância capital para a constituição da história brasileira Até 193133 o IHGB exercerá uma grande influência e será o único centro de estudos históricos do Brasil O imperador precisava dos historiadores para legitimarse no poder Guimarães 1988 A nação recémindependente precisava de um passado do qual pudesse se orgulhar e que lhe permitisse avançar com confiança para o futuro Era preciso encontrar no passado referências lusobrasileiras os grandes vultos os varões preclaros as efemérides do país os filhos distintos pelo saber e brilhantes qualidades enfim os lusobrasileiros exemplares cujas ações pudessem tornarse modelos para as futuras gerações O IHGB produziu uma história biográfica constituindo uma galeria de vidas exemplares que iluminavam a ação futura Stein Stein 1964 O novo país precisava reconhecerse geográfica e historicamente O projeto do IHGB era geográfico e histórico Geográfico teria a tarefa de situar as cidades vilas rios serras portos planícies de conhecer e engrandecer a natureza brasileira seu céu clima matas riquezas minerais flora e fauna de definir os limites do território Histórico deveria eternizar os fatos memoráveis da pátria e salvar do esquecimento os nomes dos seus melhores filhos Para isso deveria coletar e publicar os documentos relevantes para a história do Brasil incentivar os estudos históricos manter relações com as instituições congêneres do exterior especialmente com a instituição que foi o seu modelo o Institut Historique de Paris Desde então o Brasil procurou os franceses como referência intelectual O IHGB será o lugar privilegiado da produção histórica durante o século XIX lugar que condicionará as reconstruções históricas as interpretações as visões do Brasil e da questão nacional2 O Brasil independente portanto precisava da história e dos historiadores para se oferecer um passado e abrirse um futuro O primeiro passo e fundamental cuja ideia surgiu no seio da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional Sain criada em 1827 marcada pelo espírito iluminista e que se propunha a incentivar o progresso e o desenvolvimento brasileiros foi a fundação do IHGB3 A partir daí multiplicaramse os projetos para o Brasil baseados nas interpretações do passado brasileiro O IHGB em 1840 estabeleceu um prêmio para quem elaborasse o melhor plano para a escrita da história do Brasil O texto premiado foi o do botânico e viajante alemão Karl Philipp von Martius Na sua monografia intitulada Como se deve escrever a história do Brasil publicada na Revista do IHGB em 1845 Von Martius definiu as linhas mestras de um projeto histórico capaz de garantir uma identidade ao Brasil Surgiu do seu projeto a interpretação do Brasil do primeiro Brasilnação que se entranhou profundamente nas elites e na população brasileira Von Martius lançou os alicerces do mito da democracia racial brasileira Para ele a identidade brasileira deveria ser buscada no que mais singulariza o Brasil a mescla de raças Barata 1974 No essencial a história do Brasil será a história de um ramo dos portugueses pois o português foi o conquistador e senhor ele deu as garantias morais e físicas ao Brasil O português foi o inventor e motor essencial do Brasil Aventureiro no Brasil se sentiu livre da sua obediência ao rei sentiu que nada tinha acima de si e avançou para a conquista do interior O historiador deverá transportar o leitor à casa dos colonos e mostrar como viviam como se relacionavam com seus vizinhos escravos e família Deverá mostrar a ação da Igreja e da escola como chegavam as plantas e árvores como era a construção naval e a navegação a vida militar e o comércio Mostrar ainda como chegavam as ideias e as letras da Europa Enfim mostrar fundamentalmente a vida portuguesa no Brasil Quanto às demais raças o historiador filantrópico humano e profundo cristão não poderá deixar de abordálas Deverá defender essas raças desamparadas Se o português é a raça mais importante as raças etiópica e indígena reagiram positivamente Von Martius dará alguma ênfase à história dos indígenas Quanto ao negro ele será breve oferecendo poucos dados e propondo algumas poucas questões A questão principal quanto ao negro segundo ele seria esta o Brasil teria tido um desenvolvimento diferente sem a introdução dos negros escravos Ao historiador de responder se teria sido para melhor ou para pior Essa pergunta atormentará os historiadores brasileiros que darão a ela uma resposta negativa isto é foi pior até a chegada de Casagrande senzala em 1933 Gilberto Freyre responderá à pergunta de Von Martius de forma diferente dos historiadores que o antecederam Mas será uma resposta ainda ligada à pergunta de Von Martius e aos historiadores do IHGB De certa forma ele pertence a esse grupo pois partirá da mesma questão embora sua resposta tenha sido inovadora Von Martius além de enfatizar a mescla de raças que singularizava o Brasil embora privilegiando a raça branca considera que o historiador do Brasil deverá fazer uma história da unidade brasileira A história do Brasil deverá ser centralizada no imperador Apesar da variedade de usos e costumes dos climas das atividades econômicas das raças e da extensão territorial o historiador deverá enfatizar a unidade À diferença ele deverá dar um tratamento comum Como a extensão territorial dificulta essa unificação ele propõe que se façam histórias regionais que garantam uma direção à centralização Por exemplo as histórias de São Paulo Minas Gerais Goiás são convergentes as histórias do Maranhão Pará Amazonas também convergem as histórias da Bahia Pernambuco Ceará convergem igualmente Assim as histórias regionais mais amplas diminuiriam as diferenças locais e se tenderia progressivamente a uma história nacional Para escrever essa história do Brasilnação o historiador deverá fazer o que Von Martius provou que era possível fazer viajar pelo Brasil conhecer as províncias para melhor aconselhar a administração e ter uma melhor visão global do Brasil Em cada província ele encontrará outra natureza outros homens outras paixões outras necessidades que tratará de conectar reunir As províncias criam estereótipos umas das outras alimentando antipatias recíprocas afastandose pelo preconceito Ao historiador de conhecêlas melhor e reunilas Seu texto deverá ser patriótico despertando o amor ao Brasil Em sua defesa do Brasil unido monárquico cristão precisará lutar contra a desconfiança entre as províncias contra a fragmentação do território e a agitação republicana Eis a história de que o Brasil recémindependente precisava ou seja de que as elites brasileiras precisavam para levar adiante a nova nação nos anos 184060 Uma história que realizasse um elogio do Brasil dos seus heróis portugueses do passado distante e recente que expressasse uma confiança incondicional em seus descendentes Uma história que não falasse de tensões separações contradições exclusões conflitos rebeliões insatisfações pois uma história assim levaria o Brasil à guerra civil e à fragmentação isto é abortaria o Brasil que lutava para se constituir como poderosa nação O que Von Martius tinha elaborado não era uma tal história ainda mas somente o seu projeto que ele próprio se recusara a levar adiante Com certeza após avaliar a enormidade do trabalho a fazer Faltava portanto o historiador brasileiro que poderia realizar tal projeto de história do Brasil Varnhagen tomará para si esta tarefa e se tornará o primeiro grande inventor do Brasil As sínteses anteriores sobre o Brasil foram válidas em sua época e continuavam e continuarão ainda válidas Mas a grande síntese do Brasil do século XIX será a de Varnhagen Varnhagen e seus Críticos As avaliações feitas posteriormente sobre a sua História geral do Brasil publicada entre 1854 e 1857 são discordantes J H Rodrigues o considera o maior historiador da sua época e ainda hoje incomparável pela vastidão da obra pelos fatos que revelou pela publicação de inéditos pelo seu enorme esforço e determinação Ele foi incomparável na história geral e parcial Antes dele o Brasil não tinha consciência de sua história Rodrigues é enfático ninguém pode graduarse em história do Brasil sem ter lido Varnhagen Em 1854 ele se pôs sob o ponto de vista nacional e o seu grande tema foi a obra da colonização portuguesa no Brasil Rodrigues 1967 Para A Canabrava a sua obra é o monumento da história brasileira do século XIX Sua nova história como ele a chamava com orgulho abasteceuse de valioso material inédito que lhe deu uma consistência nunca antes alcançada Canabrava 1971 P M Campos o considera o principal historiador brasileiro do século XIX Seu pensamento era ao mesmo tempo ligado ao pensamento do IHGB e diverso Nele as tendências nativistas do IHGB não eram tão fortes A exaltação do indígena ele a considerava injusta para com os colonizadores No IHGB ele era visto com reservas Mas apesar de seus defeitos ele teria sido o maior expoente do próprio instituto Campos 1983 N Odália discorda das avaliações anteriores Para ele a História geral do Brasil foi escrita num estilo literário monótono sem mostrar o dramático das tensões e opções Varnhagen teria segundo Odália o estilo de um botânico descrevendo a flora árido e distante As análises anteriores ele as considera superficiais transformando Varnhagen em um modelo de patriota e seu trabalho de historiador é elogiado de forma oca Para Odália o interesse da leitura da sua obra hoje é muito restrito Seria um autor superado não só por suas limitações mas porque a história do Brasil é outra hoje Deverá ser lido somente como o testemunho valioso de uma época Ele revela a ideologia histórica que legitima o processo de dominação social inerente à jovem nação brasileira Odália 1979 Talvez se possa perguntar a Odália se as obras históricas que sucederam à de Varnhagen seriam também mais do que testemunhos de sua época e da história que se podia fazer então Como todas são marcadas pelo lugar e tempo da sua produção e por um inevitável e necessário projeto de poder e dominação são todas datadas todas teriam no futuro um interesse restrito Mas é exatamente por esta razão que a leitura de todas é interessante por revelarem a consciência histórica e a teoriametodologia da história da sua época Algumas são superiores por serem paradigmáticas modelos superiores da consciência e da história que então se fazia Varnhagen tem este valor de modelo Entretanto logo depois em seu texto introdutório a uma bem organizada compilação de Varnhagen Odália relativiza a avaliação que havia feito antes ao afirmar que os seus temas serão constantes na historiografia brasileira até os anos 1930 a organização do Estado seu papel na estrutura social a centralização do poder político a miscigenação Capistrano de Abreu mais próximo de Varnhagen no tempo e no tipo de história reconhece numerosos problemas na obra dele em sua história do século XVIII deixou a desejar seu estilo tende mais à crônica faltandolhe a intuição o espírito de conjunto perdendose em acontecimentos irrelevantes uniformizou a história do Brasil tornandoa sempre igual repetitiva não percebendo o ritmo específico de cada época era irascível matando moscas a pedradas não tinha o espírito plástico e simpático compreensivo que o tornasse confidente dos homens e dos acontecimentos de que tratava era resistente aos movimentos populares rebeliões e outros problemas maiores Mas apesar dessas fortes restrições Capistrano afirma que é difícil exagerar os serviços prestados por Varnhagen à história nacional assim como os esforços que fez para elevarlhe o tipo Apesar de tudo Capistrano considera que a sua obra se impõe ao nosso respeito exige a nossa gratidão e mostra um grande progresso na maneira de conceber a história pátria Capistrano lamenta que Varnhagen não tenha conhecido a sociologia que surgia então o que o impediu de ver o Brasil como um todo solidário e coerente Ele só pôde descobrir e dominar documentos reconstituir fatos mas não pôde produzir generalizações formular uma teoria que permitisse a sua compreensão Não pôde descobrir duas ou três leis basilares que oferecessem um Brasil integral total Capistrano cita Comte e Spencer e deseja que apareça este sociólogo que eleve o edifício da teoria do Brasil a partir dos elementos reunidos por Varnhagen oferecendo as leis de consenso que constituem a racionalidade da civilização brasileira Esse comentário de Capistrano é francamente positivista e ele próprio depois recuará e não proporá mais uma tal teoria do Brasil Capistrano conclui enfaticamente sua avaliação da História geral do Brasil mãos a bolos é preciso reconhecer nele o mestre da história do Brasil Abreu 1975a Dos analistas de Varnhagen somente Odália rejeita a sua obra quase integralmente e lamenta que ela tenha exercido a influência que exerceu por tanto tempo Os outros fazem sérias restrições mas concluem considerandoo mestre monumento grande expoente Odália rejeita a obra de Varnhagen sobretudo porque ela expressa uma visão de mundo política que não interessa mais ao Brasil e até mesmo ao conhecimento histórico Seu patriotismo é parcial unilateral ele formula e defende o Brasil das elites brancas e da família real Ele formulou uma teoria da miscigenação visando ao branqueamento que entranhou Em sua visão essencialmente política do Brasil reconstrói o seu passado dá sentido aos seus fatos e personagens e estabelece o seu futuro Os sujeitos da história do Brasil são o homem branco e o Estado imperial O passado colonial deve ser reconstruído como suporte de um Brasil branco e europeu O problema político que os historiadores brasileiros enfrentavam teoricamente nos anos 184050 era o da transformação da excolônia em uma nação A colônia tinha legado uma sociedade heterogênea incompatível social e etnicamente Parecia impossível estruturar uma nação a partir desse legado colonial Como transformar em cidadãos indivíduos que sempre mantiveram uma relação de exploração social e étnica Como organizar um país com tais dados Isto é sem população livre Era preciso criar uma ideia de homem brasileiro de povo brasileiro no interior de um projeto de nação brasileira Sobretudo era preciso perceber a nação como diferença e continuidade colonial e como continuidade da diferença colonial Pensouse o Brasil com o conceito de raça e a sociedade brasileira como uma mescla de raças A dominação branca se ocultava sob a tese da miscigenação democrática O que o Brasil queria ser Eis a primeira questão da identidade Guimarães 1988 A resposta de quem podia responder então isto é as elites brancas que fizeram a independência o Brasil queria continuar a história que os portugueses fizeram na colônia A identidade da nova nação não se assentaria sobre a ruptura com a civilização portuguesa a ruptura seria somente política Os portugueses são os representantes da Europa das Luzes do progresso da razão da civilização do cristianismo O Brasil queria continuar a ter uma identidade portuguesa a jovem nação queria prosseguir na defesa desses valores A outra questão suscitada pela busca da identidade o que o Brasil não quer ser A resposta das elites o Brasil não queria ser indígena negro republicano latinoamericano e não católico O que significa dizer o Brasil queria continuar a ser português e para isso não hesitará em recusar ou reprimir o seu lado brasileiro Esse Brasil português será defendido e produzido pelas elites brancas pelo Estado pela Coroa O novo país será uma continuação da colônia A diferença é que a Coroa não é mais exterior mas interior E é portuguesa ainda O Brasil independente queria portanto continuar a obra de Portugal pois a colonização portuguesa era vista como bem sucedida trouxera a civilização europeia a religião cristã e tornara produtiva uma região abandonada e desconhecida Portugal integrou o Brasil na rota da grande história O Brasil portanto foi é e deverá continuar a ser português Varnhagen será o mestre dessa história do Brasil que Odália rejeita até com legitimidade Aristocrata elitista sua história prioriza as ações dos heróis portugueses e brasileiros brancos Para ele a plebe índios negros caboclos mamelucos mulatos pobres em geral seria desequilibradora do Brasil grande atrasavao desordenavao entravava o seu progresso O Brasil quer ser outro Portugal uma grande nação imperial uma potência mundial A História geral do Brasil abrirá este futuro às elites brasileiras no poder nos anos 1850 E no passado todos os eventos e personagens que comprometeram este futuro receberiam uma severa avaliação Seus preconceitos elitistas são evidentes afirma Canabrava Os movimentos sociais anteriores à independência ele agradecia à providência a sua repressão A própria independência ele só a tolerava porque produzida por um príncipe português e porque mantivera internamente a monarquia Ele sempre defendia a Casa de Bragança era um cortesão lisonjeador de d João VI d Pedro I e de d Pedro II Foi um historiador oficial um adulador dos poderosos e juiz severo das revoltas populares A história para ele é feita pelos grandes homens por reis guerreiros e governadores bispos e não pelos homens incultos Foi a Casa de Bragança que construiu o Brasil íntegro uno e independente Varnhagen era portanto um historiador engajado militante apesar de pretender produzir uma história imparcial e objetiva Julgava sempre tudo e todos e justificou a dominação colonial a submissão do povo os direitos das elites Ele defenderá a sociedade escravista e uma sociedade com cidadania restrita Entretanto se se considerar que a sua História geral do Brasil foi escrita nos anos 1850 e é representativa do pensamento histórico brasileiro e internacional dominante de então se ele a escreveu naquelas circunstâncias históricas políticas culturais e outras naquele tempo naquela historicidade poderseia esperar algo de diferente Seria possível esperar um Varnhagen socialista Democrático Antiescravista Um Varnhagen fora da sua atmosfera temporal fora do leito da história Individualmente ele poderia ser socialista democrata e antiescravista e teria um interesse particular pioneiro mas sua obra não representaria o seu tempo não teria o valor coletivo e histórico que nos interessa ressaltar É preciso situar as obras e seus autores em suas condições históricas objetivas e subjetivas para que se possa realizar uma análise justa e produtiva Olhar a obra de Varnhagen com simpatia e compreensão é abrirse à sua contemporaneidade aceitar o diálogo com ele ouvilo com paciência apesar do desejo que se tem às vezes de fechar o volume como Capistrano afirma ter tido Abreu 1975b Varnhagen representa o pensamento brasileiro dominante durante o século XIX e ele o expõe com rara clareza com fartura de dados e datas nomes e fatos Deve ser lido como um grande depósito de informações sobre o Brasil um arquivo portátil e como a interpretação do Brasil mais elaborada e historicamente eficaz do século XIX Quando faz o elogio da colonização portuguesa e defende a continuidade lusobrasileira caminho pelo qual de fato optaram as elites brasileiras ele o faz com eloquência e vigor e tornase um grande interlocutor no grande debate sobre o Brasil que é a historiografia brasileira Para combater melhor o Brasil que ele formulou e defendeu é preciso tomálo como um grande historiador e mestre da história do Brasil É preciso conhecêlo O olhar de Varnhagen sobre a história do Brasil é portanto o olhar do colonizador português Ele inicia a corrente de interpretação do Brasil que articulará os sentimentos e interesses dos descobridores do Brasil Ele reconstrói o Brasil sintetiza os seus diversos ritmos temporais submetendoos à lógica do descobridor e conquistador O vencedor tem todos os direitos Vencedor o português impôs a sua superioridade étnica cultural e religiosa Aliás se o português venceu militarmente os seus adversários se conquistou seus territórios e os escravizou e exterminou é porque é superior Eis o seu silogismo ou sofisma básico A vitória confirma uma superioridade presumida E se na luta colonial os brancos venceram a jovem nação quer ser também vencedora e se identificar étnica social e culturalmente com o branco Foi este quem trouxe a civilização europeia superior a lei o rei a fé a razão Os brancos são portadores de tudo aquilo de que uma nação precisa para se constituir soberanamente Aos vencidos resta a exclusão a escravidão a repressão e a assimilação pela miscigenação isto é pelo branqueamento racial e cultural A conquista portuguesa foi feita com guerra e sangue Então vitoriosos os portugueses as terras indígenas serão legitimamente portuguesas A Obra História Geral do Brasil 185457 A Natureza Selvagem Brasileira A História geral do Brasil se inicia com uma descrição geral da natureza brasileira descrição feita por alguém que a descobre que a vê pela primeira vez Terra do Brasil foi o nome dado pelos portugueses à sua nova conquista em virtude da abundância de uma mercadoria nova um certo lenho de tinta vermelha um pau vermelho que os índios chamavam de ibirapitanga Brasileiro era o nome dado ao comerciante desse pau vermelho nome que se estendeu aos moradores do lugar A Terra do Brasil ou somente Brasil é um dos mais extensos territórios do planeta é quase metade do continente ao qual pertence Possui diversos tipos de solos não possui vulcões nele não ocorrem terremotos Possui vários climas e a ordem das estações não é a mesma da Europa ambiente do descobridorconquistador Só há duas estações a seca e a quente e úmida A vegetação é sempre verde não havendo inverno rigoroso A floresta é como um campo de batalha as plantas se entredevoram e lutam pelo sol Essas florestas têm um ar sombrio O coração do descobridor se aperta diante de sua imensidão e seus perigos Há plantas exóticas que poderão ser úteis à Europa e sustentarão o comércio paubrasil jacarandá cedros algodão baunilha urucum castanheiras sapucaias cacau tabaco cará mandioca frutas ananás caju sapoti maracujá mangaba araticum frutadoconde pitanga araçá guabiroba jabuticaba Se as plantas têm alguma afinidade com as africanas o mesmo não acontece com os animais São todos especificamente americanos Não são paquidermes enormes Os maiores são o tapir ou anta Há ainda tamanduá tatu preguiça gambá tartaruga aves variadas e belíssimas arara tucano papagaio periquito araponga bemtevi curió bicudo patativa A nova terra oferece também numerosas plantas medicinais copaíba guaraná mate e outras e venenos terríveis de plantas e répteis animais ferozes A natureza que o português descortina é intimidadora pela extensão pelo vigor pelo desconhecido e sobretudo pela pobreza em minerais preciosos Eis a natureza brasileira vista por Pedro Álvares Cabral do alto do monte Pascoal Uma imensa terra verde com muita novidade muito exotismo e alguma gente Selvagem como a natureza O português que vê tudo isso pela primeira vez esse o sentido da ideia de descoberta se enche de fascínio e ao mesmo tempo de receio e decepção Varnhagen empático e aliado vem em seu socorro solícito e solidário com palavras de estímulo Ânimo Tudo doma a indústria humana Cumpre à civilização aproveitar e aperfeiçoar o bem e prevenir e destruir o mal Os Indígenas Aqueles homens exóticos habitantes daquela natureza exuberante e sem riquezas fáceis Varnhagen os descreverá com interesse mas sem afeição Eram segundo ele uma gente nômade que vivia em cabildas morava em aldeias transitórias pouco numerosa em relação à extensão do território Violentos mantinham guerras de extermínio entre si bárbaros não nutriam os altos sentimentos de patriotismo Sem amor à pátria essas gentes vagabundas em guerra constante constituíam no entanto uma só raça falavam dialetos de uma só língua a geral ou tupi Era uma unidade de raça e língua que poderia têlos levado à constituição de uma única nação Mas mantiveramse fragmentados e hostis entre si Não aparecera um só chefe que estabelecesse um centro poderoso como havia no Peru cuja aristocracia livre de cuidar só em resguardarse das intempéries e em adquirir o sustento pudesse pensar no bem dos seus semelhantes apaziguando as suas contendas civilizandoos com o exemplo Os laços de família primeiro elemento da nossa organização social eram muito frouxos Os filhos não respeitavam as mães e só temiam os pais e tios No amor não havia sentimentos morais As delícias da verdadeira felicidade doméstica quase não podiam ser apreciadas e saboreadas pelo homem no estado selvagem Rodeado de feras e homensfera não podem nele desenvolverse a parte afetuosa da nossa natureza a amizade a gratidão a dedicação Se eram favorecidos nos dotes do corpo e nos sentidos o mesmo não ocorria com o espírito Eram falsos e infiéis inconstantes ingratos desconfiados impiedosos despudorados imorais insensíveis indecorosos Eram fleumaticamente brutais Monótona e tristemente passavam a vida habitual entrecortada pelos sobressaltos da guerra festas e pajelanças Aos 30 anos o bárbaro tinha uma expressão ou melancólica ou feroz Possuíam vários vícios a hostilidade a antropofagia a sodomia a vingança comiam terra e barro Como Von Martius havia recomendado Varnhagen faz um longo estudo sobre os indígenas língua usos armas indústria ideias religiosas organização social trabalho guerra medicina Mas interessanos aqui o seu ponto de vista o seu olhar sobre essas alcateias de selvagens Diante dos estudos que fez ele se surpreende que haja ainda poetas e filósofos que vejam o estado selvagem como feliz Os indígenas passam por privações fome não têm lei religião vivem na selvageria na ferocidade Divididos os tupis em cabildas insignificantes que se evitam e guerreiam apenas atendem aos interesses ditados pelo instinto da conservação vital A sorte da mulher era julgada tão inferior à do homem que muitas mães afogavam as filhas ao nascerem As mulheres quase não eram mais do que escravas Ele descreve os rituais de sacrifícios humanos a antropofagia E afirma que não dirá mais sobre os horrores que praticavam os selvagens para não arrepiar a carne dos leitores como os bárbaros as de suas vítimas Sua pena ele insiste se detém irresistivelmente ao escrever essas misérias da humanidade bestial Tais eram os alienígenas ou aborígines que percorriam havia mais de três séculos todo o atual território do Brasil e percorriam ainda em 1850 uma parte dele onde não havia entrado ainda a luz da civilização e do evangelho Ele repete à vista do perfil que traçou dos bárbaros sem carregar nas tintas aliás ele não entende como alguns poetas e filósofos ainda veem no estado selvagem a maior felicidade do homem Nesse estado sem o auxílio mútuo da sociedade sem o cultivo eficaz da terra há sempre privação e fome que torna canibais os mais civilizados Sem os vínculos da lei e da religião tendese à ferocidade As leis tornam feliz o homem que se sujeita a elas O direito a justiça e a razão são melhores do que o instinto o apetite e o capricho O selvagem cercado de perigos não sabe o que é tranquilidade dalma receia e teme tudo Ele é inábil para concorrer para a melhoria da situação da humanidade Varnhagen sustenta uma tese surpreendente sobre as origens dos tupis eles teriam vindo da Ásia Menor derrotados na guerra de Troia fugindo das crueldades que se cometiam então contra os derrotados Teriam navegado o Mediterrâneo permanecido no Egito por algum tempo e finalmente teriam enfrentado o oceano e chegado ao Brasil E cita pontos de convergência entre a cultura indígena e a egípcia Por exemplo o tupi se aproxima do antigo egípcio A Descoberta do Brasil Tais bárbaros e barbaridades terseiam perpetuado neste abençoado solo tal anarquia teria despovoado o território se a providência divina não tivesse acudido a dispor que o cristianismo viesse ter mão a tão triste e depravado estado Essas gentes errantes desfrutavam sem os benefícios da paz e da cultura do espírito do fértil e formoso solo do Brasil Esse é o passado do Brasil que deverá ser esquecido ou que não deverá influenciar na construção do futuro da nação brasileira se preservado Deverá até ser preservado como antimodelo como modelo daquilo que o Brasil não quer ser Aliás os capítulos dedicados ao indígena na História geral do Brasil teriam esta função mostrar que o futuro do Brasil não poderá ter nesse passado a sua raiz O presentefuturo do Brasil se assentaria em um outro passado naquele que veio do exterior para pôr fim a essa barbárie e selvageria interiores Com a chegada do cristianismo do rei da lei da razão da paz da cultura da civilização com a chegada dos europeus a este território o Brasil surgiu e integrouse no seio da providência Para descobrirem o Brasil para veremno pela primeira vez os portugueses tiveram duas motivações o comércio com o Oriente e o espírito evangelizador as guerras comercial e santa a primeira dos europeus entre si a segunda entre os europeus unidos contra os muçulmanos A descoberta do Brasil se deu no contexto destas duas guerras que tinham criado duas controvérsias na Europa A primeira controvérsia referese à estratégia de tomada da Terra Santa deviase atacar diretamente os lugares santos e libertálos como fizeram os cruzados ou se devia expulsar o infiel porto por porto fortaleza por fortaleza a partir da Europa descendo pela África até o Oriente Portugal preferiu essa segunda estratégia segundo as orientações de Luel ou Lúlio um sábio medieval Após a reconquista do sul do seu próprio território Portugal atacou o norte da África conquistando Ceuta e fazendo retroceder o mouro Passou então a explorar a África A segunda controvérsia referese à estratégia para se atingir diretamente as Índias evitandose os intermediários muçulmanos e outros europeus da rota terrestre tradicional Havia dois caminhos possíveis a via ocidental e a via meridional A primeira trouxe Colombo à América a segunda levou os portugueses às Índias O caminho português pelo cabo da Boa Esperança levou mais rapidamente ao objetivo às Índias o caminho de Colombo levouo a um lugar inesperado Esse é o contexto mais amplo da descoberta do Brasil segundo a reconstrução de Varnhagen Os portugueses começaram levando vantagem sobre os espanhóis atingiram o seu objetivo com menos custos e menos ousadia É verdade que perderam a prata americana pois não apostaram no plano de Colombo Varnhagen lamenta esse prejuízo enorme mas defende os cosmógrafos portugueses que levaram o rei a cometer esse erro a sua argumentação era de peso Chegados ao Brasil por essas razões e pela via meridional e depois dos espanhóis Varnhagen passa a apresentar o desfile dos heróis portugueses pela paisagem e pela história do Brasil A Vasco da Gama devese a descoberta do Brasil pois foi ele quem orientou a navegação de Cabral Vasco da Gama e Cabral são os primeiros heróis da numerosa galeria de Varnhagen A descoberta do Brasil no entanto não foi planejada foi um feliz acaso O objetivo de Cabral quando saiu de Lisboa com suas caravelas não era vir descobrir o Brasil mas consolidar o novo caminho das Índias Ao chegar aqui ele se deparou com aquela natureza e seu morador descritos acima Na verdade só então começava a história do Brasil Os capítulos anteriores eles só prepararam essa chegada descrevendo o cenário em que ela ocorreria Varnhagen Cabral em terra põe então retoricamente a questão da sua propriedade pertenceria aos portugueses E responde pertencia sim desde 1494 isto é antes de ter sido descoberta pelo Tratado de Tordesilhas assinado por portugueses e espanhóis diante do papa Varnhagen até reconhece que não foi Cabral o primeiro a ter chegado ao Brasil Ele foi precedido por alguns navegantes espanhóis Américo Vespúcio Vicente Pinzon Diogo de Lepe Entretanto a vinda desses não tivera consequências Como a História geral do Brasil começa de fato aqui Varnhagen explicita o seu programa Como e quando se inteirou Portugal da existência do legado do Tratado de Tordesilhas como o descuidou a princípio e o beneficiou e aproveitou depois e finalmente como através de muitas vicissitudes guerras veio a surgir um novo império a figurar na orbe entre as nações civilizadas regido por uma das primeiras dinastias de nossos tempos tal é o assunto da presente história Portugal tomou conhecimento de suas terras somente seis anos após o Tratado de Tordesilhas em 1500 Poucos imaginariam que nessa terra dentro de algumas gerações se havia de organizar uma nação mais rica e considerável do que a mãepátria HGB701 Após o descobrimento o Brasil ficou à mercê de qualquer navio que o procurasse Os esforços e capitais portugueses estavam voltados para a Ásia Em 1501 no entanto foi enviada uma expedição de três caravelas para o reconhecimento da terra descoberta Américo Vespúcio fazia parte dela e praticamente a conduzia Dois tripulantes desembarcaram no cabo de São Roque onde aportaram e foram comidos pelos indígenas Varnhagen perde a neutralidade assim a primeira ruptura e agressão entre os da terra e os futuros colonizadores não partiu destes os quais foram vítimas da traição e a deixaram impune HGB83 Descendo para o sul d Nuno Manuel seu chefe com o calendário religioso na mão ia batizando a costa Os nomes pegaram Bahia de Todos os Santos Salvador São Sebastião do Rio de Janeiro São Vicente Angra dos Reis Esculpiu se no litoral brasileiro o perfil do rei português Foi essa primeira expedição que levou a má notícia ao rei a terra não era extensa não tinha metais preciosos e nem mercadorias só paubrasil A Coroa abandonou as suas novas terras então à exploração de particulares Assim mesmo o rei ainda enviava esquadras guardacostas caras e que não asseguravam a sua posse A colônia deveria não só se sustentar com seus próprios recursos como oferecer recursos à mãepátria Começou a triunfar a ideia de fundar no Brasil uma colônia vigorosa Desde 1516 haviam sido tomadas algumas providências em favor da colonização e do cultivo do Brasil Decorriam porém os anos e o Brasil seguia com o seu imenso litoral à mercê de qualquer navio Varnhagen defende a Coroa Não há por que fazer censuras Os investimentos na Ásia ofereciam um retorno mais imediato Mas as pressões estrangeiras sobre o litoral brasileiro forçaram a execução da ideia de ocupação e colonização Em 1530 veio uma esquadra comandada por Martim Afonso de Sousa para fundar feitorias fortalezas e cidades Ele fundou Piratininga que viria a ser São Paulo Em 1532 o Brasil foi repartido em capitanias hereditárias O projeto de ocupação do território para garantir a sua posse e exploração exclusiva se tornava cada vez mais concreto Havia sempre o interesse do lucro e o da propagação do evangelho Os 12 donatários das 15 capitanias empenharamse em atrair moradores que trouxessem capitais e aceitassem sesmarias Na Europa a tendência era a concentração do poder real na colônia regrediuse ao feudalismo a descentralização do poder real entre lusobrasileiros foi um meio profícuo de colonização Na Europa o rei concentrava poderes na colônia cedia poderes O donatário tinha inúmeros direitos era um segundo rei Quase se pode dizer ele conclui que Portugal reconhecia a independência do Brasil antes de colonizálo Aqui os portugueses cristãos adotavam usos bárbaros fumar comer milho mandioca abóbora taioba cará inhame Construíam casas de cipó Caçavam e pescavam com armas indígenas Dormiam em redes e tomavam um banho diário As mulheres indígenas logo se acasalavam com os europeus Elas gostavam dos europeus tanto por razões fisiológicas o branco é mais forte no sexo do que o índio quanto para se livrar do cativeiro em que viviam com seus maridos Os portugueses tornaramse polígamos A mulher foi o elemento que mais concorreu para a fusão das nacionalidades tupi e portuguesa Nasceram os mamelucos e os curibocas Varnhagen defende como sempre o colonizador eles não matavam e escravizavam os índios É injusto afirmálo Não sejamos tão injustos com os nossos antepassados Eles não podem se defender Se houve excessos foram punidos Os donatários se comportaram bem com os indígenas Eles procuraram cooptálos defendêlos tutelálos cristianizálos A força só foi usada contra os mais ferozes O tipo índio na verdade ele afirma desapareceu mais em virtude de cruzamentos sucessivos do que do verdadeiro e cruel extermínio O bárbaro vaidoso e independente desconhecendo os direitos da razão e a supremacia da consciência não admitia admoestações do colono que vinham da caridade evangélica Dissimulados e sempre no ataque aproveitavamse da primeira ocasião para cometer um assassinato Foi preciso a força para aceitarem a nossa tutela para aceitarem o cristianismo e adotarem hábitos civilizados É filantrópico civilizar e evangelizar o índio não o deixando entregue à sua barbárie Varnhagen se excede nesses comentários oscilando entre a sincera ingenuidade e o cinismo A Vitória Portuguesa contra Franceses e Holandeses Entretanto franceses e holandeses não estavam muito convencidos de que o Brasil pertencia aos portugueses e desconsideravam tais esforços de ocupação e colonização Os franceses consideravam as terras brasileiras tão suas como os portugueses As capitanias hereditárias não estavam sendo eficazes no controle ocupação e exploração da colônia Decidiuse criar um poder central no Brasil e retirar alguns poderes dos donatários O Governo Geral foi sediado na Bahia por ser mais central em relação a todas as outras capitanias Tomé de Sousa foi escolhido o primeiro governadorgeral depois Duarte da Costa depois Mem de Sá Em todas as capitanias temiamse as invasões estrangeiras Varnhagen fará então uma apologia da guerra para garantir o domínio português sobre o Brasil A guerra ele afirma ergue um país do torpor une e confraterniza na ação comum aperta os laços com o sofrimento O Brasil esteve separado em partes durante anos e mal se explica como veio a soldarse O governo não era eficaz corrupto roubava e escandalizava Por pouco o Rio de Janeiro não se tornou uma Guiana Francesa A guerra entre portugueses e franceses foi intensa no Rio de Janeiro A luta contra o inimigo comum estreitará pelos laços do coração a futura união brasileira Os holandeses depois contribuíram para apertar ainda mais esses laços da nação Que Deus permita que esta nação possa continuar a ser a primeira deste continente e chegue a ser uma das maiores do planeta o que sem muita união não poderá ocorrer HGB313 Contra os holandeses a união brasileira se consolidará Eles atacaram Salvador e Pernambuco O perigo comum fez aproximar mais o escravo do senhor o soldado europeu do brasileiro o índio do branco O índio Camarão e o negro Henrique Dias foram libertados um da barbárie e o outro da escravidão Eles honraram todos os índios e negros Varnhagen nessa circunstância de vitória portuguesa até relativiza a sua avaliação das raças inferiores se não têm prestígio não é por causa de suas cores mas por falta de méritos para serem atendidos O perigo comum aumentou muito a tolerância dos povos e estabeleceu mais fraternidade Da guerra contra os holandeses data o espírito público mais generalizado por todo o Brasil Os católicos brasileiros ficaram ainda mais intolerantes em relação a protestantes e judeus As guerras também são civilizadoras pois trazem energia e atividade a povos entorpecidos pela preguiça e pelo ilhamento O sofrimento educa e robustece Após as tormentas da guerra o Brasil se apresentava mais crescido e respeitável e mais reconhecido na Europa Na luta contra os holandeses o que agradou a Varnhagen foi a vitória portuguesa com o apoio da população brasileira indígena e escrava Após essa luta o Brasil se tornara definitivamente português E os portugueses mostraram o seu vigor não só contra indígenas e negros mas também contra holandeses e franceses Um povo vitorioso O Brasil que ele vê integrarse nesse momento não é um Brasil popular mestiço índio e negro ele celebra o coroamento da dominação portuguesa com o consentimento e a colaboração da população nativa A vitória contra os holandeses confirmou e concluiu a vitória portuguesa contra indígenas e negros Este é o ponto de vista de Varnhagen aqui não surgia o Brasilbrasileiro antiportuguês que outros verão depois mas o Brasilportuguês a consolidação de fato do que o Tratado de Tordesilhas garantia como um direito de Portugal Os Negros e a Escravidão Aos negros Varnhagen dedica poucas páginas assim como Von Martius em seu projeto de história do Brasil Moura 1990 Para ele os traficantes negreiros fizeram um grande mal ao Brasil entulhando as suas cidades do litoral e engenhos de negrarias A colonização africana teve uma grande entrada no Brasil podendo ser considerada um dos elementos da sua população o que nos obriga a consagrar algumas linhas a essa gente de braço vigoroso Mas fazemos votos de que um dia as cores de tal modo se combinem que venham a desaparecer totalmente do nosso povo as características da origem africana e a acusação da procedência escrava de um dos troncos da população brasileira apesar da escravidão no Brasil ter sido mais suave do que em outro país da América onde o anátema acompanha não só a condição e a cor como todas as suas gradações HGB223 Ao passar tais gentes ao Brasil como escravos na verdade melhoraram de sorte A escravidão é injusta por não ser filantrópica é um insulto à humanidade por ser um ataque ao indivíduo à família e ao Estado de onde foram arrancados Mesmo assim os negros melhoraram de sorte ao entrar em contato com gente mais polida com a civilização e o cristianismo Por causa desse encontro os negros da América são melhores do que os africanos Eles se distinguem pela força física o gênio alegre para suportar a sua sorte pela capacidade de trabalho Com o seu canto sempre melodioso e afinado embora monótono disfarçavam as maiores penas Entretanto fizeram mal ao Brasil com os seus costumes pervertidos seus hábitos menos decorosos despudorados Escravos viviam alheios à ternura da família tinham o coração endurecido A escravidão trouxe graves inconvenientes abusos crueldades quanto ao vestuário comida e bebida À pergunta de Von Martius O Brasil teria tido um desenvolvimento diferente isto é para melhor sem a introdução dos negros escravos Varnhagen responde afirmativamente sim sem os negros o Brasil teria sido muito melhor Foi um erro a colonização africana do Brasil Perpetuouse no Brasil um trabalho servil que ele se abstinha de qualificar mas que não se pode mais dispensar sem grandes males para o país Para ele o índio é quem deveria ter sido usado para o trabalho E ataca os jesuítas e defende os bandeirantes Foi a pseudofilantropia dos jesuítas que impediu a escravidão do gentio Estes quanto mais mimados e protegidos mais insolentes Os bandeirantes paulistas que caçavam índios pelo sertão fizeram menos mal ao Brasil do que os traficantes negreiros e do que os jesuítas A filantropia jesuítica em relação ao indígena era mais palavra do que exemplo eles próprios usavam o índio como escravo Sua proteção ao indígena deixou a colônia à míngua de braços o que forçou a importação de africanos Varnhagen portanto não considera que a presença negra tenha sido boa favorável à colonização portuguesa do Brasil Talvez pudesse ter sido evitada ou com o abandono do cultivo da cana ou então com o trabalho de brancos e índios entre cinco e nove horas da manhã e das quatro às seis horas da tarde descansando ou empregando em casa as horas mais quentes do dia como faziam os índios antes da chegada dos europeus Esse teria sido o caminho ideal sem negros Mas se fosse indispensável mesmo a vinda dos africanos que viessem não na condição de escravos romanos como coisa venal bens móveis mas na condição de servos fixandose o negro com sua família e dandose o primeiro passo para a sua emancipação lenta Assim terseia evitado o embotamento no escravo dos sentimentos mais ternos da humanidade ao separar pais e filhos maridos e esposas amigos de infância Nessa condição não haveria como esperar deles nobres sentimentos sobretudo em relação à pátria Varnhagen nesse momento parece ser menos racista e mais antiescravista não é somente a presença negra no Brasil que o desagrada mas sobretudo a presença da escravidão Se a presença do negro fosse infelizmente inevitável que ocorresse em outra condição uma condição que o ligasse ao Brasil e o levasse a considerálo a sua pátria Como escravo ele não se sentia e não poderia ser considerado lusobrasileiro A Família Real e a Independência Sobre a guerra da independência Varnhagen não a vê como uma verdadeira guerra Para ele o Brasil não se esquecerá jamais do seu tutor na infância e Portugal não se esquecerá jamais dos socorros que o Brasil lhe prestou Nenhum deles é devedor do outro Ambos devem gratidão e louvores um ao outro Se a metrópole agiu às vezes com despotismo injustiça incoerência ignorância e governou mal não se deve condenála pois ela quis acertar sempre Não era o governo central que errava mas os governos locais com a sua excessiva liberdade verdadeiros senhores feudais A metrópole agiu com rigor contra os homens que se voltaram contra ela e se foi muito rigorosa as razões de Estado justificam Em Minas Gerais alguns planos aéreos de insurreição foram logo denunciados e severamente punidos Na verdade ele acusa só houve um verdadeiro rebelde Silva Xavier Uma figura antipática feia e espantada ambiciosa que se tinha dado mal no exército e na mineração e só era hábil dentista Era pobre sem respeito e louco Seu pensamento estava abrasado por patriotismo e independência O patíbulo deulhe a glória que jamais teria tido vivo Infeliz Seus companheiros não eram tão febris quanto ele Tomás Antônio Gonzaga não era um conspirador Varnhagen lamenta a violência da repressão mas a considerou necessária E se vencesse a revolução ele pergunta o Brasil estaria hoje em melhor estado Uma pequena república encravada no império teria sido um mal e outras nações logo se teriam aproveitado da quebra da unidade e voltado a lutar por outros territórios brasileiros Felizmente a providência veio em socorro do Brasil e o manteve unido resguardandoo na única situação em que podemos procurar ser felizes e fazernos respeitar como nação Varnhagen expressa as formas de pensamento ajustadas ao sistema colonial Ele vê o Brasil como o veem os seus administradores e demais representantes da mentalidade oficial e os não inquietos Estes veem qualquer ideia de revolução no Brasil no final do século XVIII como uma maldade um desrespeito ao rei Para os representantes da Coroa e Varnhagen será um depois a revolução não é boa O Estado precisa de homens bons honrados bons pagadores da Fazenda real A liberdade existe nos limites da fidelidade ao rei O colonizador é visto como um elemento natural na organização das coisas bom a quem se deve grande obrigação O sistema é imparcial O mundo social está consolidado e bem organizado e toda atitude de inovação seria um desrespeito à propriedade e à autoridade do rei e dos seus representantes Mota sd Nessa perspectiva Varnhagen agradecerá à providência por ter interferido e impedido o sucesso das rebeliões do final do século XVIII e início do XIX que teria comprometido a continuidade portuguesa na passagem da colônia a nação Quanto à revolução baiana de 1798 ele considera ainda mais feliz o seu aborto era um arremedo do horror da Revolução Francesa Seus líderes foram severa e justamente punidos Era ainda menos nobre e patriótica do que a Inconfidência Mineira Entretanto se a Revolução Francesa nos trouxe as rebeliões ela nos trouxe repercussões ainda mais importantes Trouxe nos a própria família real que os brasileiros esperaram no porto de braços abertos O Brasil tinha então segundo ele mais ou menos 3 milhões de habitantes dos quais um terço era escravo Os índios nada tinham aprendido e estavam nas florestas ou em aldeias sem nenhuma vantagem para a sociedade As mulheres sofriam com a tirania doméstica viviam reclusas escondendose das pessoas estranhas à família casandose sem conhecer os noivos Foi nesse Brasil colonial que o príncipe desembarcou em 1808 na Bahia e já foi emancipandoo da sua condição colonial A emancipação não foi gratuita Portugal invadido e em guerra a Coroa precisava se manter e arrecadar tributos A ideia da independência do Brasil foi trazida pelo próprio príncipe regente de Portugal Varnhagen solta a sua língua cortesã d João VI era bom religioso justo honrado fino sem ambições dotado de felicíssima memória apreciava os sermões o pregador e a sua retórica Para ele e Varnhagen assentia só a religião poderia sustentar os impérios e fortificar as constituições Foi um perfeito modelo de um soberano amante do povo Sua presença tornou o Brasil a sede de um império enorme europeu africano asiático Além disso a sua presença garantiu a integridade do Brasil A revolução pernambucana de 1817 Varnhagen tem enorme desgosto em tratála Não deveria ser catalogada entre as glórias do país Em 1817 a independência já estava madura pois já começara com a franquia dos portos em 1808 às nações amigas Inglaterra de Portugal O Brasil quanto à independência estava à frente de toda a América Latina A providência sempre amparou o Brasil contra a desunião e a fragmentação Hoje todos reconhecem as vantagens da integridade do Brasil Todos sabem que separar é fácil difícil é unir É ilusório pensar que as províncias separadas poderiam gastar consigo seus recursos não seriam suficientes E a separação do Brasil de Portugal quebrando a unidade do Império teria sido justa O Brasil conseguiria se manter com os seus próprios recursos Varnhagen seria certamente contra e uma vez mais pediria o socorro da providência se a ideia de independência não tivesse sido levada adiante pela própria família real A independência do Brasil foi muito estranha não foi feita contra a família real mas pela própria família real portuguesa É uma situação tão curiosa e inesperada que só a história pode fazer compreender D João VI defendia a ideia de um reino unido de Brasil e Portugal Os brasileiros moderados eram favoráveis a essa ideia também Varnhagen também preferia tal solução Mas as elites portuguesas queriam que o Brasil retornasse à condição de colônia Só então a ideia de independência se radicalizou E no interior da própria família real Foi um príncipe português que liderou o processo de emancipação política do Brasil lutando contra os seus próprios súditos portugueses por um outro povo um outro país um outro projeto de nação A essa independência Varnhagen não se opõe Sua fidelidade é ao rei à Monarquia que garantem a unidade e o cristianismo Divisão e separação só se for entre reis os únicos qualificados para o governo A um príncipe português o Brasil deve a liderança da sua independência e ao seu filho o Brasil deve a consolidação da sua unidade O patriotismo caboclo fonte do nacionalismo atual ele o considera prejudicial ao Brasil Varnhagen defende a presença portuguesa no Brasil ele faz o elogio da colonização portuguesa é compreensivo com os seus erros e despotismo A independência não foi prejudicial porque garantiu a continuidade do Brasil colonial no nacional um Brasil português A independência não interrompeu o passado melhorouo O Brasil continuava português imperial e ainda por cima independente A nação brasileira seria construída racionalmente pelo Estado imperial autoridade indiscutível absoluta A independência não foi problemática porque o Estado não foi comprometido continuava nas mãos da dinastia de Bragança O Estado brasileiro será construído sobre o modelo do Estado português A unidade deverá ser preservada a qualquer custo O Estado funcionará como um ímã da nação gigantesca assegurará a ordem a lei a religião a unidade Ele continuará a ação civilizadora da Europa branca O novo Estado nacional garantirá o conservantismo a continuidade O cristianismo sustentará o regime monárquico A uniformidade cultural e a unidade nacional se fizeram com lutas sangrentas Darci Ribeiro recentemente reconheceu sem perder seu grande vigor crítico que as velhas classes dirigentes brasileiras tiveram pelo menos este mérito evitaram a fragmentação A unificação foi um processo violento suprimindo toda discrepância discordância separatismo mas indispensável à consolidação da nação brasileira Varnhagen também considera a unidade nacional um valor sem preço Ele apaga as tensões e considera a violência do Estado necessária pois senão seria a fragmentação com uma violência ainda maior e o fim do Brasil Odália 1979 Ribeiro 1995 Varnhagen e a Verdade Histórica Varnhagen quis produzir a verdade histórica do Brasil com uma história científica isto é documentada conforme o método afastando o lendário e o maravilhoso e evitando os juízos de valor Sua história ele pretende que seja movida pelo amor à verdade e assim como Ranke ele quis narrar os eventos tal como se passaram A verdade afirma ele é alcançada ao se reunir o maior número de testemunhos acareandoos entre si e com certos fatos já estabelecidos Ele procurou restringirse aos documentos oficiais interpretandoos com o devido critério esmerandose em ser conciso e exato sem se emaranhar em pormenores que se contradigam que escapam após lidos e nada ensinam O bom critério é o que aprecia devidamente os fatos apurando deles a verdade Afirma enfaticamente que sempre há de dizer a verdade segundo a sua consciência mesmo que lhe cause dissabores O dissabor maior para o historiador é capitular covardemente contra as próprias convicções A verdade é só uma e há de triunfar em vista dos documentos A missão do historiador não é adular lisonjear a ninguém Ele afirma preferir desagradar publicando a verdade a ser aplaudido faltando a ela Talvez Varnhagen possua ainda uma concepção clássica da verdade histórica e do tempo histórico ou então ele usa a concepção moderna para salvar aquela Araújo 1988 Na medida em que defende e faz uso do método crítico em que reivindica a objetividade a imparcialidade ele é moderno Isto é desconfia da memória e da tradição Mas na medida em que é um historiador do império português e defensor da continuidade do passado colonial no futuro do Brasil é um defensor da tradição e da verdade clássica O futuro do Brasil deve ser ou o mesmo passado ou a melhoria do passado A linearidade não representaria uma ruptura com o passado e o predomínio do futuro sobre o presente A linearidade é só um melhoramento do passado A ideia de progresso é mais aplicável nesse contexto Varnhagen é um progressista gradualista um defensor da continuidade do passado no futuro Reivindica a verdade objetiva quando esse passado se vê ameaçado pela modernidade contra a linearidade como revolução Varnhagen seria um iluminista prérevolucionário progressista e gradualista O passado resolveria os seus problemas sem necessidade de ruptura A verdade moderna que se baseia na dúvida e na crítica documental tornase nele uma verdade clássica baseada em valores éticos A crítica documental moderna leva à ação segundo a tradição A crítica documental não se opõe à tradição resgataa livrandoa da mentira e da crise restaurandoa em seu vigor O espaço da experiência oferecerá exemplos a história clássica representava sempre a mesma coisa e por isso quando ameaçada pela mudança brusca precisa do método crítico para que o mesmo sempre representado seja fidedigno e o passado possa ter uma influência ética e pedagógica para que ele possa ser mestre da vida O horizonte de espera é orientado por exemplos representados pela história do espaço da experiência Sua verdade histórica é clássica e moderna Clássica o passado é mestre do futuro este imita aquele a verdade é ética moderna o método crítico garante a pureza do exemplo e revigora a tradição A História geral do Brasil é uma história sobretudo políticoadministrativa repleta de fatos nomes e datas individualista e psicológica Ela não abrange todos os aspectos da vida nacional Assemelhase a um nostálgico e prazeroso álbum de fotografias das ações dos heróis portugueses Cada descrição é minuciosa como se fosse um quadro ou uma foto Acima de cada uma o títulolegendacomentário e a data O enérgico governadorgeral Tomé de Sousa em Salvador 1549 O benemérito governadorgeral Mem de Sá expulsa os franceses do Rio de Janeiro 1560 O cristão d Nuno Manuel batizando a costa brasileira com o calendário religioso na mão 1501 O ilustre paulista pe Bartolomeu Lourenço revela os planos do aeróstato Passarola 1715 O bom religioso e justo d João VI desembarca na Bahia 1808 Sua narrativa é uma construção que tenta coincidir com o vivido uma reconstituição do que de fato se passou O tempo pensado é assimilado ao tempo vivido A sua marcação do tempo é a de um contemporâneo na noite de oito para nove desse mês de setembro à hora da missa em um domingo no princípio de setembro dois dias depois no dia 19 mas logo no dia 25 logo no dia imediato na noite de 5 de abril mês e meio antes no dia seguinte que era dia 19 domingo de Pascoela às 7 da manhã a ação durou de 3 a 4 horas O resultado cognitivo desse não distanciamento do tempo da reconstrução o pensado do tempo vivido é um conhecimento de contemporâneo muito vivo mas confuso pouco crítico Sem distanciamento o historiador se confunde com o contemporâneo que conhece o que vive mergulhado em brumas A imitação do vivido se faz com prejuízo da compreensão não se tem uma visão de conjunto Varnhagen parece não dominar aquilo que é o essencial da tarefa do historiador cortar e recortar o tempo periodizar criar ritmos que facilitem o domínio e a compreensão da vida social Alguns críticos concordam que essa falha na organização temporal da História geral do Brasil é a principal falha de Varnhagen Capistrano de Abreu por exemplo também considera a sua obra pobre na periodização Ele afirma que Varnhagen organiza a sua exposição cronologicamente e não tematicamente Quis privilegiar o tempo datado a cronologia miúda minuciosa mas o que conseguiu foi confundirse com o contemporâneo que também narra o que vive assim ontem anteontem no dia seguinte daqui a um mês no dia 1o de abril Capistrano afirma que Varnhagen não conseguiu por isso perceber o todo o que dificultou a sua interpretação do Brasil Capistrano considera a HGB um livro arisco fugidio detalhado mas incompleto e lacunar Faltoulhe a visão de conjunto que só uma periodização bemfeita pode oferecer Detevese em detalhes sem importância em acontecimentos e personagens esquecíveis Para tentar corrigir o defeito essencial da HGB Capistrano proporá uma periodização da história do Brasil que a cortará em seis períodos e oferecerá uma visão de conjunto Varnhagen não soube distinguir esses períodos e não propôs outra periodização sendo este para Capistrano o erro fundamental da sua obra Abreu 1975a Mesmo se todas as obras de história são inevitavelmente incompletas e lacunares o que não é um problema incontornável para o historiador que sabe disso a de Varnhagen talvez sejao mais ainda por ter ele ingenuamente pretendido produzila geral e completa ANOS 1930 GILBERTO FREYRE O reelogio da colonização portuguesa G Freyre Neovarnhageniano Conservador e Genial Gilberto de Mello Freyre autor de Casagrande senzala publicado em 1933 e de uma obra vasta e volumosa na qual se destacam ainda Sobrados mocambos 1936 e Ordem progresso 1959 pernambucano nasceu em 1900 e faleceu em 1987 Casagrande senzala é a obra de interpretação do Brasil mais conhecida no país e mais traduzida e editada no exterior Freyre possui todos os títulos prêmios e honras acadêmicas de quase todas as grandes universidades do mundo o que ele não se cansa de lembrar e recitar Aliás ele tem toda razão de se orgulhar desse fato pois as grandes universidades do mundo não distribuem as suas bênçãos irresponsavelmente sem rigorosos critérios E censurálo por ser tão bemsucedido e se orgulhar de sêlo como é comum não é muito simpático e elegante Sua obra é reconhecida como uma referência superior da ciência social pelos mais importantes cientistas sociais do mundo L Febvre F Braudel R Barthes e outros Entretanto ele jamais aceitou ser classificado como um especialista das ciências sociais antropólogo sociólogo ou historiador e sempre se apresentou como escritor ou ensaísta Freyre 1968 O que não limitou no interior das ciências sociais a repercussão e o alcance da sua obra que são enormes pelas inovações metodológicas pela flexibilidade e beleza do texto algo original reunindo literatura e ciência social Motta 1981 Briggs 1981 Faremos uma compilação dos comentários de alguns dos seus mais ilustres analistas a fim de oferecer uma ideia da dimensão da sua repercussão no interior das ciências sociais Para a maioria deles Freyre introduz na análise racionalmente conduzida uma forte quantidade de afetividade e subjetividade É um texto de ciência social qualitativo que incomoda a ciência social preocupada com a quantificação ele conclui muito além dos dados que oferece dados que para Leite já são mal medidos e mal controlados Leite 1983 O que ele produziu foi uma espécie de autoantropologia da cultura na qual nasceu a nordestinobrasileira Como um romancista não se colocou fora do seu próprio objeto já que este objeto faz parte da sua vida e consciência Sua escrita é encarnada comprometida ela traz à expressão uma grande margem da história até então muda não refletida e explicitada Seu texto é científico e político O seu estilo é oral coloquial como uma conversa informal entre o presente e o passado Ele fala do Brasil a partir de dentro e não como de um objeto natural Seu pertencimento ao seu objeto dá ao seu texto uma impressão de autenticidade de verdade imediata e interior Ele parece ter uma visão do passado Freyre parece experimentar o vivido que descreve Seus analistas comparam o seu estilo ao de Proust uma introspecção meticulosa e emocionada do passado uma visita realista ao vivido passado Ele próprio declarou inspirar se em Proust O misterioso por ser familiar o indizível por ser íntimo Freyre o revela e expressa O Brasil colonial aparece vivo revivido e em toda a sua complexa contraditoriedade Merquior 1981 Duvignaud 1981 Talvez o que mais inquiete os leitores mais resistentes ao fascínio de Casagrande senzala afirma Motta seja essa percepção do vivido de forma poliédrica sem nenhuma determinação em última instância Motta 1981 Casagrande é como um livroonírico atravessado de associações de deslocamentos condensações e tropos diversos fruto de uma profunda intuiçãoimaginação do Brasil Freyre quis demonstrar que houve uma solução brasileira para um acordo entre diferentes tipos de vivência diferentes padrões culturais No Brasil teria havido um bemsucedido ajustamento para um profundo desajustamento Freyre é um autor criativo sensível ao cheiro à cor ao ruído ao amor e ao ódio ao riso e ao choro O passado colonial brasileiro é percebido com o seu cheiro e prazer de viver Ele penetrou no seu tecido social e expressou o inconsciente da vida coletiva a sua cotidianidade afetiva Ele produziu uma radiografia do passado interno brasileiro afirma Merquior Contudo radiografia talvez seja uma metáfora naturalista demais O que ele produziu foi uma revivência uma recriação do nosso passado em seu espírito e no espírito do leitor Para Merquior a sua obra representou um avanço colossal em nosso conhecimento de nós mesmos brasileiros Por ser sobretudo um poeta do Brasil a discussão metodológica ligada ao lado de ciência social da sua obra não é uma discussão simples Quais são as suas referências teóricometodológicas Onde e com quem ele se formou A sua formação é basicamente norteamericana no colégio americano batista de Recife onde se tornou protestante na Universidade de Baylor no Texas 191820 e na Universidade de Colúmbia Nova York orientado por Franz Boas Chacon 1993 Costa Lima considera entretanto que Casagrande levou a pesquisa histórica brasileira a uma problemática nova e alemã a do historicismo de Dilthey Simmel e Weber apesar de Freyre pouco citar fontes alemãs Segundo Barbu Freyre encontrou grandes afinidades com a sociologia compreensiva de Weber com a abordagem empática A este núcleo weberiano foram agregadas noções de variável importância metodológica como as de personalidade e desdobramento consciente da personalidade Com essas noções ele procurou apreender os estados de espírito ibéricos as experiências vividas Barbu 1981 Entretanto a sua formação americana é só indiretamente alemã através da presença de Franz Boas Este dava ênfase ao conceito de cultura combatendo o evolucionismo biológico racial Boas não acreditava que a pobreza estaria reservada aos mestiços ditos biologicamente inferiores A raça não seria determinante sobre o meio cultural Grupos de uma mesma raça respondem diferentemente aos desafios geográficos econômicos e sociais e políticos criando culturas distintas Como os meios antropológicos estavam marcados pelo determinismo geográfico e racial essa ênfase na cultura trará uma mudança significativa na pesquisa social Os fenômenos culturais são complexos e para eles não há leis Boas negava o determinismo o evolucionismo o cientificismo e se aproximava do historicismo alemão com sua ênfase na cultura e na relatividade dos valores Lima 1989 Freyre seria historicista portanto não no sentido de Popper mas no de Dilthey Ele propõe uma abordagem empática da realidade social que lhe permitiu desenvolver uma história sociológica Seu objetivo é alcançar a subjetividade é apreender a vida em seu interior Uma história política psicológica vitalista dionisíaca e não intelectualista Ele criou tipos reunindo elementos inconciliáveis A interpenetração de seus tipos inconciliáveis se faz pelo símbolo Casagrande senzala Sobrados mocambos Ordem progresso Ao formular tipos ideais ele se aproxima de Weber ao interpenetrálos aproximase de Simmel Para apreender a interconexão dos tipos ele estudou o cotidiano um campo de pesquisa social então original inovador Desenvolveu uma sociologia genética ou uma sociologia histórica que mostra as instituições em suas formas de convivência e em seu desenvolvimento no tempo Bastos 1986 Sua abordagem é histórica não evolucionista não progressista ele é antiiluminista como os neokantistas alemães A história não é linear e não realiza a razão a história se revela em formas particulares em mundos históricos específicos Alguns analistas de Freyre entusiasmamse quando fazem o seu elogio ele é descrito então como um místico sensual um espírito encarnado Marias 1981 Os místicos castos o consideram obsceno pornográfico e queimaram a sua obra em praça pública Em nome da sua castidade Chacon 1993 Para F H Cardoso Freyre é mais do que um cientista ou mesmo um escritor é um verdadeiro criador Os resultados que alcançou estão além do instrumental metodológico de que dispunha Cardoso 1993 Alguns se referem à ideia de uma radiografia do Brasil já mencionada acima que nos parece naturalista demais e talvez inadequada Como historiador o que Freyre fez foi uma transposição uma transferência de si mesmo ao passado brasileiro para revivêlo empaticamente em sua intimidade em seu espírito Sua história criativa do Brasil despreza tudo da história políticoadministrativomilitar por uma vida rotineira onde se sente melhor o caráter de um povo Sua obra é uma aventura de sensibilidade O passado é reposto no presente como uma realidade viva que sustenta e contrasta com o presente Duvignaud 1981 Kujawski 1981 Ele descobriu junto com os franceses dos Annales a história do cotidiano a história das mentalidades coletivas a renovação das fontes da pesquisa histórica receitas culinárias livros de etiquetas fotografias festas expressões religiosas brinquedos e brincadeiras infantis cantigas de roda histórias infantis relatos de viajantes estrangeiros autobiografias confissões individuais diários íntimos lendas folclore periódicos E sem negligenciar ou dipensar as fontes instituicionais oficiais estatais Seu uso da documentação era sem preconceito e exclusões Barbu 1981 Chacon 1993 Skidmore 1994 Nas novas fontes e no novo olhar lançado por Freyre sobre o Brasil colonial o imaginário se mistura à realidade e a realidade social ganha toda a sua densidade Freyre vê a história pelos seus inúmeros lados e o conhecimento do Brasil se torna quase mediúnico Motta 1981 Ele incorpora o passado o sujeito que conhece coincide com o objeto conhecido Para Barbu Freyre possui o dom de ver os dois lados da lua ao mesmo tempo o lado aparente e o lado oculto percebe o todo em sua complexidade unifica e harmoniza a divergência e a tensão Febvre afirma prefaciando a tradução francesa que Casa grande não é um livro simples é um enorme painel do passado nascido de uma meditação sobre o futuro Ele não oferece respostas fortes mas nos convida a refletir sobre a questão maior do século XX é possível uma única civilização na qual todos possam encontrar a sua pátria cultural Para Braudel prefaciando a tradução italiana o estilo de Freyre é o de uma sereia ele nos dá um prazer concreto físico levandonos a viajar com a sua linguagem musical irresistível por luxuriantes paisagens tropicais4 Enfim se se leva em conta todas essas avaliações apologéticas feitas por seus ilustres analistas Casa grande senzala pode ser considerada a obra de um brasileiromestiço genial Freyre e Varnhagen Entretanto Casagrande senzala é uma obra neovarnhageniana é um reelogio da colonização portuguesa é uma justificação da conquista e ocupação portuguesa do Brasil O Brasil é visto como uma sociedade original e multirracial nos trópicos obra do gênio português Skidmore 1994 Na sua história patriarcal cujo palco é a casagrande onde se exprimiu melhor o caráter brasileiro ele enfatizará também a nossa continuidade da colônia à nação O livro genial de Freyre renovou a visão do Brasil das elites em crise Ele revigorou o mundo que as elites lusobrasileiras criaram no passado e confirmou o elogio e a legitimação que lhe havia feito Varnhagen nos anos 1850 É claro nos anos 1930 Freyre o fará em outro ambiente histórico e intelectual com outras palavras com uma nova metodologia com uma nova estratégia política Ele confirmava Varnhagen Tenhamos a honestidade de reconhecer que só a colonização latifundiária e escravocrata teria sido capaz de resistir aos obstáculos enormes que se levantaram à civilização do Brasil pelo europeu só a casagrande e a senzala O senhor de engenho rico e o escravo capaz de esforço agrícola e a ele obrigado pelo regime do trabalho escravo Freyre 1933 Freyre até supera Varnhagen nesse elogio Seu reelogio do passado é uma exaltação uma idealização Para ele é injusto acusar os portugueses de terem manchado com a escravidão a sua obra grandiosa de colonização tropical O meio e as circunstâncias exigiram o escravo A princípio o índio Quando este por incapaz e molengo não correspondeu mais às exigências da agricultura colonial veio o negro Deixemonos de lirismo em relação ao índio ele se exalta a sua substituição não se deu por razões morais altivez espírito livre o índio falhou no trabalho sedentário Teria sido mesmo um crime transplantar e escravizar o negro Para alguns ele responde e inclusive Varnhagen mencionado por ele foi um erro e enorme Mas e Freyre continua em defesa dos colonizadores portugueses ninguém nos disse até hoje que outro método de suprir as necessidades do trabalho poderia ter adotado o colonizador português no Brasil Só Varnhagen ele reconhece criticando o caráter escravista e latifundiário dessa colonização lamenta não se ter adotado o sistema de doações de terras a agricultores europeus Com doações pequenas o Brasil teria atraído mais gente e constituído uma população mais homogênea Varnhagen também propôs a servidão com o negro sugerindo ter uma resistência maior à escravidão do que ao próprio negro Varnhagen portanto mesmo sendo um dos primeiros grandes defensores da colonização portuguesa lamentava que ela tivesse tido de ser latifundiária e escravista Mas essa discordância não separa Freyre e Varnhagen Se este não aceitava a escravidão era sobretudo porque ela implicava a presença negra no Brasil em miscigenação em desprestígio para a raça brasileira que ele desejava que fosse branca pura Para ele a colonização portuguesa teria sido ainda mais bemsucedida se não tivesse tido que contar com a presença negra Varnhagen lamenta o que a escravidão representou em termos raciais a presença africana no Brasil O latifúndio e a escravidão seriam mais toleráveis se o escravo fosse o índio que a pseudofilantropia jesuítica impediu O que ele não aprecia é a negreria que enche as cidades e engenhos brasileiros Freyre é mais radical em seu apoio às opções pelo latifúndio e pela escravidão porque ele aceitou e valorizou a presença negra no Brasil Se o negro só trouxe vantagens se sua cultura é riquíssima se sua companhia é alegre e terna se as negras e mulatas são tão lindas e sensuais se a miscigenação não é o grande problema do Brasil o latifúndio e a escravidão não foram erros obstáculos problemas foram opções corretas que tornaram possível o sucesso do português nos trópicos Freyre portanto vai mais longe e fundo na defesa da colonização portuguesa no Brasil Mesmo com a presença negra e muito graças a ela a colonização portuguesa foi um sucesso total Ele a aceita integralmente sem reservas É como se o seu elogio fosse feito plenamente pela primeira vez Diferente de Varnhagen ele não pensava mais o Brasil em termos raciais mas em termos culturais Nessa perspectiva não há que censurar a presença africana Pelo contrário essa presença enriqueceu fertilizou abrilhantou a obra portuguesa A mestiçagem talvez tenha sido o grande feito português e o que tornou possível a colonização europeia nos trópicos Nos anos 1850 quando Varnhagen fez seu balanço e legitimação da colonização o Brasil passava de colônia a nação e ele defendeu a continuidade colonial da nação que se projetava e se queria consolidar Foi mais brando em seu elogio se é que se pode considerálo brando Em relação a Freyre ele pode ser mais crítico pois o futuro estava aberto a essa continuidade colonial Freyre nos anos 1930 faz o seu reelogio na passagem da naçãocolonial à naçãomoderna transição que ele recusa Ele opta pelo passado e não vê em sua ânsia de descrevêlo como o melhor tempo do Brasil nenhuma contradição tensão problemas obstáculo dificuldade Quando Varnhagen fez a sua defesa da colonização portuguesa e da continuidade da sua obra pelo Brasil ele não tinha opositores concretos eficazes poderosos pois a dinastia que governava o Brasilcolônia era a mesma que governava o Brasilnação Ele descreve e defende um Brasil que continuava que superou rebeliões separatismos e que se unificou e se consolidou A defesa de Freyre foi feita no momento de crise ele vê aquele mundo que o português criou naufragando contestado por todo lado e o surgimento de um novo Brasil Ele então vira as costas ao novo e se lembra com deleite com paixão sem censuras e reservas do Brasil das elites patriarcais Freyre e Capistrano Entretanto alguns analistas o colocam na mesma linha de interpretação do Brasil de Capistrano de Abreu Para Astrogildo Pereira líder comunista Freyre tomava por protagonistas da história não os heróis oficiais mas a massa anônima na linha de Capistrano de Abreu um dos autores mais citados por ele5 Também em Capistrano o conceito de cultura substituiu o de raça seus estudos indígenas renovaram a nossa etnografia Em seus Capítulos de história colonial ele deu importância à história social e dos costumes e pela primeira vez apareceu a casagrande e a senzala Rodrigues 1965 Capistrano teria antecipado alguns temas de Freyre a escravidão doméstica com a ama de leite e a mucama o caráter carinhoso doce e alegre do negro amenizando as relações senhor e escravo Capistrano era entretanto mais crítico em relação à tese da democracia racial de Freyre o mestiço tinha vida difícil era visto com aversão e estava impossibilitado de ocupar certos postos Os mulatos não podiam receber ordens sacras por exemplo Ter um padre na família era a prova de um sangue limpo Mas retorna à tese de Freyre com o tempo os mulatos souberam melhorar a sua condição social Quando tinham talento e audácia iam longe Mas a difícil mobilidade social se restringia aos mulatos Os negros permaneciam excluídos o Brasil era o seu inferno No entanto com a sua alegria nativa seu otimismo persistente sua sensualidade animal sofriam bem o cativeiro afirma Capistrano Cantavam e dançavam para aliviar o peso do trabalho duro e alegrar o coração Sobretudo no 11o capítulo de Capítulos de história colonial intitulado Três séculos depois Casagrande senzala é antecipada em sua temática múltipla e original nada políticoadministrativa ou biográfica mas cultural e psicológica uma abordagem íntima da vida das mulheres negros mestiços paulistas mineiros gaúchos Este capítulo final é um esboço de história cultural uma espécie talvez de préprojeto de Casagrande senzala Consideramos sustentável esta leitura que associa Freyre e Capistrano mas somente em alguns aspectos temáticos e metodológicos Todos os argumentos precedentes que os colocam em uma mesma linha de interpretação do Brasil parecem nos corretos Entretanto entre os dois vislumbramos um abismo Freyre prossegue o caminho inaugurado por Varnhagen na defesa do passado colonial brasileiro sua interpretação do Brasil é continuísta conservadora passeísta lusófila patriarcalista escravista colonizadora Seu olhar é um olhar branco aristocrático elitista embora muito sofisticado Capistrano romperá com a linha varnhageniana de interpretação do Brasil e iniciará uma corrente não aristocrática lusófoba antiescravista anticolonizadora antipatriarcal emancipacionista mestiçapopular nacionalista Freyre ligase à orientação de Capistrano Sim mas não quanto ao essencial Quanto ao essencial Freyre é ainda um descobridor do Brasil Ele esteve identificado às forças conservadoras da política brasileira Seus temas prediletos a nobreza da vida dos senhores de engenho a alegria dos escravos a delícia da cozinha tradicional os males e decadências do progresso do século XX Ele dispõe de uma teoria inovadora mas usaa para conservar a realidade brasileira Leite o define como um intelectual de direita aceito pelos grupos do poder que se veem enobrecidos e legitimados pelas suas teses apresentadas de forma sedutora envolvente Leite 1983 Freyre e os Marxistas O pensamento social marxista brasileiro vai se opor vigorosamente a Freyre por essa razão F Fernandes e sua equipe de pesquisadores que produzirão nos anos 196070 pensarão o Brasil com os conceitos de classe social e luta de classes e vão se opor à visão idílica do Brasil colonial produzida por Freyre Mota compilou as principais críticas marxistas a ele Estes o consideram um intelectual orgânico das oligarquias dominantes em crise Freyre teria elaborado uma visão senhorial do Brasil relatando a saga da oligarquia rural desnudando liricamente a sua vida íntima Em sua visão do Brasil as elites lusobrasileiras são apresentadas como civilizadoras produtoras do progresso detentoras da razão histórica brasileira Para apresentálas assim Freyre apagaria as tensões as agudas contradições reais que caracterizaram as relações sociais entre senhores e escravos O mundo que o português criou é apresentado como harmônico equilibrado democrático Raças e classes diferentes e em luta viviam harmonizadas em uma cultura genuinamente brasileira Casagrande seria uma obra de um filho da República Velha um esforço de compreensão da realidade brasileira realizado por uma elite que vinha perdendo poder É uma busca do tempo perdido uma volta às raízes para reencontrar o poder e a glória perdidos O tom é de perda de nostalgia de saudade Construindo uma história do Brasil em termos de continuidade Freyre valoriza a ação dos colonizadores que se prolongou da colônia ao século XX nos seus sucessores as oligarquias regionais As relações de dominação no Brasil são ocultadas quando foram violentas cruéis Freyre atingiria o cinismo ao falar de democracia racial para se referir à realidade brasileira escravista Mota 1978 Sua valorização da cultura negra não levou em consideração a condição econômicosocial de escravo do negro Ou pelo menos não até às últimas consequências Assim Freyre se tornou o pensador da crise das oligarquias e o seu escamoteador Seu perfil é ao mesmo tempo revolucionário e conservador Como conservador ignorou os movimentos sociais da Colônia e do Império esvaziou as contradições sociais ao criar um efeito global neutralizante uma verdade poliédrica que tudo vê tudo integra e tudo conserva A história perde dinamismo pois suas tensões são harmonizadas Freyre se coloca no lugar do heróicolonizador Mota 1978 Conservador ele é otimista em relação ao passado e pessimista em relação ao futuro Varnhagen era otimista em relação ao passado e ao futuro seu elogio foi enfático porém mais sereno e crítico pois feito em uma fase de consolidação do poder oligárquico Freyre fará o seu reelogio em plena crise sua opção pelo passado se radicaliza e ele se torna menos crítico Só é crítico em relação ao futuro que se anuncia e que ele definitivamente recusa Ao ser menos crítico em relação ao passado tornase paradoxalmente revolucionário ele integra os excluídos do passado em sua visão do Brasil Os negros os índios a miscigenação os brancos pobres a cultura popular que integrar de fato à sociedade brasileira será uma tarefa do futuro ele os integra idealisticamente no passado O olhar conservador em crise tem saudade até dos seus males e os vê mais harmoniosamente A experiência da finitude torna os poderosos de ontem mais brandos e os seus oprimidos de então eles os veem agora com doçura com amizade e ternura Nessa polêmica FreyreF Fernandespesquisadores do Cebrap aparecem duas disputas uma teórica e outra política A primeira opõe marxistas e historicistas o motor da história não são as ideias não são as mentalidades coletivas mas a luta de classes as classes em luta na esfera da produção A visão culturalista é vista como interclassista reacionária pois harmonizadora das contradições reais É uma teoria social que leva água ao moinho das elites Mota 1978 Os marxistas querem discutir a ação que constrói o futuro uma ação que se define na luta das classes na esfera das relações sociais de produção O que é preciso então pesquisar sobre o Brasil é a especificidade do seu modo de produção a especificidade das suas lutas de classes a especificidade da sua mudança social A segunda disputa opõe duas regiões do Brasil o Nordeste cujas oligarquias locais perdiam poder desde a abolição do tráfico negreiro e a ascensão do café paulista exatamente nos anos 1850 de Varnhagen e os paulistas que ganhavam poder na mesma proporção em que os primeiros perdiam o seu Nos anos 1930 o Brasil nordestino está chegando definitivamente ao seu fim e o Brasil industrial moderno paulista começa a se consolidar Nesse combate intelectual é toda a história do Brasil que se revela V Chacon assume a defesa incondicional de Freyre e do Nordeste contra F FernandesCebrap e os paulistas Chacon parece mobilizado por um artigo escrito contra o Nordeste identificado à província à aldeia e à sua maior expressão intelectual Freyre Tratase do artigo publicado na revista do Cebrap Novos Estudos no 27 de jul 1990 de Luis A de Castro Santos intitulado O espírito de aldeia orgulho ferido e vaidade na trajetória intelectual de G Freyre que opõe Caio Prado e S B de Holanda paulistas intelectuais orgulhosos com uma produção de alta qualidade homogênea sem pretensões internacionais a Freyre pernambucano provinciano intelectual orgulhoso nos anos 1930 e depois vaidoso decadente instalado na província e repetindo incansavelmente o que já havia realizado nos anos 1930 Freyre nordestino e provinciano teria uma tola ambição internacional e uma obra volumosa e heterogênea em sua qualidade Contra este artigo antifreyriano Chacon afirmará que muitos marxistas elogiaram Casagrande senzala Astrogildo Pereira Genovese e que Freyre nunca teve uma visão emoliente da sociedade brasileira era contra a escravidão e denunciou o sadismo dos senhores de escravos Quem falou em cordialidade brasileira foi um paulista e não Freyre Este era um agitador de ideias enfrentando preconceitos e a modorra nacional Tinha repulsa pelo universitarismo Gostava da polêmica era controvertido e pagou caro por isso Além de enfrentar a inquisição paulistamarxista teve a sua casa invadida por policiais durante o Estado Novo por ter defendido os negros e segundo a ditadura ter estimulado o ódio racial Chacon 1993 Entretanto Casagrande senzala talvez seja mais importante pelo intenso debate que provocou em torno do passado presente e futuro do Brasil do que pelo que andou afirmando e elogiando Os que combatem Freyre só fazem revelar todo o vigor da sua análise do Brasil Nenhum desses seus combatentes marxistas ou padres teriam coragem de lançar hoje sua obra no fundo de uma gaveta Sua obra é inesquecível seminal paradigmática apesar de inimitável É um modelo de eficiência abrangência e competência na abordagem da sociedade brasileira A historiografia norteamericana sobre a escravidão parte de Freyre a historiografia brasileira sobre a escravidão também tem como referência Casagrande senzala Queiroz 1987 Graham 1979 Nos anos 1960 Roger Bastide F Fernandes e sua equipe trataram do tema contra a perspectiva de Freyre mas tendoo como referência nos anos 198090 historiadores brasileiros resgataram a sua visão da escravidão Katia Matoso e historiadores de Campinas recuperaram um escravo sujeito dentro de uma ordem social escravista consensual Nos anos 196070 argumentouse contra a tese freyriana da suavidade da escravidão brasileira com relação à americana Nova tese o escravoclasse luta contra a sua coisificação social e até subjetiva Nos anos 198090 voltase a Freyre a escravidão era consensual o escravo mantinha a sua subjetividade autônoma e agia estrategicamente acomodandose ao sistema procurando obter vantagens individuais Sua forma de resistir é uma ação adaptadora O escravo é aparentemente dócil ou é dócil maliciosamente e resiste encontrando meios de manipular as regras do sistema social a seu favor Gorender 1990 Queiroz 1987 Enfim com relação não só ao tema da escravidão mas aos mais importantes temas do Brasil Casagrande senzala é comumente considerado um dos três mais importantes livros produzidos na década de 1930 os outros dois são Evolução política do Brasil 1933 de Caio Prado Jr e Raízes do Brasil 1936 de Sérgio Buarque de Holanda Cândido 1976 Mota curiosamente o situa entre os redescobridores do Brasil Na sua periodização até faz sentido Na nossa perspectiva ele representa ao contrário uma continuidade da visão dos descobridores do Brasil isto é ele faz um reelogio da colonização portuguesa Freyre é neovarnhageniano neste aspecto Quanto ao aspecto teóricometodológico ele é outra coisa outra linguagem outra história Mas quanto ao essencial isto é ao projeto de história do Brasil que ele revela à visão do passado brasileiro seus sujeitos e motivações à sua percepção e reconstrução do tempo histórico brasileiro ele é a mesma coisa renovada revigorada a legitimação entusiasmada e agora acrítica idealizadora e nostálgica do mundo que o português criou nos trópicos Casagrande Senzala Pressupostos e Teses Consideramos que Casagrande senzala poderia ser um livro mais conciso e mais preciso menos repetitivo Outros analistas são mais indulgentes e até justificam e com alguma razão esta sua característica repetitiva Para Motta ele teve uma intuição fundamental do Brasil que não poderia ser descrita de forma clara e distinta acabada Ele teve necessidade de retornos repetições que não são só repetições mas ritmos a retomada de motivos como numa sinfonia A multiplicidade de ritmos formas cores estilo manifesta uma mesma intuição central profunda unificadora de toda a estrutura Assim Casa grande não é uma obra de ciências sociais no sentido estrito É obra política uma espécie de composição musical uma partitura com um ritmo contínuo fundamental mas que inclui ritornelos estribilhos coros solos Sua interpretação histórica se confunde com seu estilo ou dele é inseparável Freyre parece escrever para si mesmo para dizerse o que compreendeu Parece um livro produzido de um só jato possuindo todas as vantagens da intuição criadora mas sofrendo da falta de uma elaboração mais sóbria e estruturante Motta 1981 Motta tem razão e portanto não façamos mais muitas reservas ao estilo e à arte de Freyre Sua obra tem na verdade uma estrutura clara e sólida o primeiro capítulo Características gerais da colonização portuguesa do Brasil formação de uma sociedade agrária escravocrata e híbrida expõe de forma sintética as suas teses sobre o Brasil os quatro capítulos restantes desenvolverão essas teses quanto ao índio quanto ao português e quanto ao negro que aliás mereceu dois longos capítulos quando em Varnhagen foi mencionado rapidamente e a contragosto Freyre referese à sua participação na história do Brasil longamente e com muito gosto Àquela pergunta de Von Martius a história do Brasil teria sido melhor ou pior com a presença dos negros Freyre responde sem hesitar a presença negra não comprometeu em nada a criação portuguesa pelo contrário foi um esteio indispensável Eles deram uma contribuição excepcional à colonização portuguesa e foram também civilizadores do Brasil Procuraremos encontrar em suas centenas de páginas pelo menos cinco teses que deem conta de toda a sua ideiaintuição mensageminterpretaçãocompreensão do Brasil Com essas teses articuladas entre si todas as outras páginas serão ou repetição ou episódios reveladoresconfirmadores das teses Os episódios sem essas teses têm seu sabor mas são anedóticos e não encontram o seu sentido As teses sobrevivem sem os episódios e oferecem a estrutura do pensamento de Freyre sobre o passado colonial brasileiro Ao destacarmos cinco teses além do esforço de síntese faremos também um esforço de análise pois estaremos destacando e detalhando o que consideramos mais relevante na estrutura da sua obra Não nos preocuparemos em citar as páginas de Casagrande senzala pois aceitamos o risco de combinar dezenas delas em alguns parágrafos Antes porém de passarmos às teses convém lembrar três pontos importantes para a sua compreensão O primeiro tema é a visão do Brasil que Freyre teve revelada no prefácio à 1a edição através de marinheiros brasileiros em Nova York mulatos e cafuzos que deram a ele a impressão de serem caricaturas de homens Foi uma visão do tipo brasileiro depois de três anos fora do Brasil ou seja foi uma visão de fora exterior não familiar que lhe revelou pela primeira vez a figura do brasileiro Nada melhor para se conhecer a identidade brasileira e se reconhecer como brasileiro do que três anos maciços no exterior A figura que ele viu foi a do homem miscigenado A imagem causoulhe desgosto a figura brasileira pareceulhe revelar algo de inferior e doentio Teria sido a miscigenação o mal que condenaria definitivamente a raça brasileira Eis a indagação dos intelectuais brasileiros e de Freyre entre os anos 18501920 Tinha a miscigenação causado irreparável dano eugênico ao Brasil O atraso do Brasil não teria sido causado pela influência debilitante do negro A sexualidade exacerbada o pecado sem punição não teriam enfraquecido a raça brasileira Este será o problemafio condutor da bela demonstração do teorema que é Casagrande senzala A hipótese de Freyre para tal questão será um alívio para as elites brasileiras e a sua demonstração exigirá um mergulho de longo fôlego no passado brasileiro Casagrande senzala é a pesquisa que testa algumas hipóteses sobre essas questões O segundo tema preliminar importante é o ponto de vista teóricometodológico de Freyre exposto com lucidez ainda no prefácio à 1a edição Ele concorda com o marxismo quanto à importância considerável embora não preponderante da técnica da produção econômica sobre a estrutura das sociedades na definição da sua fisionomia moral É uma influência poderosa mas sujeita à reação de outras As condições econômicas explicam muitos aspectos do desenvolvimento humano O que Freyre pretende não é se opor a uma abordagem econômicosocial do Brasil nem desvalorizála O que ele pretende porque assim escolheu é não fazer uma abordagem econômicosocial do Brasil O que ele declara querer fazer não é substituir a abordagem marxista mas acrescentarlhe um sentido psicológico ou psicofisiológico na análise do Brasil aspectos que atuam sobre as sociedades independentemente das pressões econômicas Forças psicológicas atuam sobre a sociedade dor raiva medo ao lado das emoções de fome sede sexo forças que têm uma grande intensidade de repercussão O português representa uma especialização psicológica racismo o negro outra os índios e mestiços outras O terceiro tema preliminar importante é o ponto de vista social de Freyre também exposto com franqueza e lucidez revelando uma adesão incondicional ao projeto português para o Brasil O seu olhar sobre o Brasil é senhorial e portanto ele o olha da janela da sala de visitas do alpendre da casagrande A casagrande não é só do engenho ou só nordestina segundo ele mas expressão da monocultura escravista e latifundiária em geral O café do sul teve a sua casagrande tão brasileira quanto a do açúcar do norte Apesar das diferenças impostas pelo clima e geografia o terraço de onde com a vista o fazendeiro abarcava todo o organismo da vida rural o terraço hospitaleiro patriarcal e bom é o mesmo Freyre olha o Brasil do terraço da casagrande do alto e viu que o Brasil mudava que o domínio das elites não era mais incontestável Então ele criou um olhar abrangente mais longínquo temporalmente e com os olhos da intuição lembrase do mundo consolidado hospitaleiro patriarcal e bom cuja visão aquele terraço antes oferecia O olhar do senhor tornase histórico pois o presente é problemático Ele precisa se representar se localizar na história e voltase para o passado glorioso Freyre abrelhe as cortinas do passado e mostralhe o espetáculo da sua façanha dos seus feitos heróicos que só ele tinha condições de realizar por ter uma especialização psicológica histórica e até racial favorável àquela realização Postos estes três temas preliminares a motivação os problemas que produziram a pesquisa que chegou à obra Casa grande senzala os pontos de vista teóricometodológico e social passemos às teses de Freyre sobre o passado colonial brasileiro que são as respostas hipotéticas àquela motivação e problemática dentro de um ponto de vista teórico bem definido e de um lugar social também bem delineado A primeira tese responderá à pergunta Como se deu o encontro entre as três raças constituidoras do povo brasileiro Para Freyre foi um encontro fraterno solidário generoso democrático viabilizado pela miscigenação Vencedores militar e tecnicamente de indígenas e negros os portugueses tiveram no entanto de transigir com eles quanto à vida familiar e social A vitória militar foi o fato inicial da relação foi o que a constituiu Uma vez estabelecida à força a relação desenvolveuse entre conquistadores e conquistados uma confraternização Esta não aboliu a vitória militar anterior é uma confraternização tensa sadomasoquista que não tornou iguais senhores e escravos Mas tudo isso não impediu a confraternização sexual e social As relações entre vencedor e vencido se adoçaram com a necessidade dos colonos de constituir família Não havia brancas e a vida sexual e afetiva não podia ser nutrida somente por estupros contínuos A necessidade de família transcende a necessidade da satisfação sexual Para os colonos aliás a satisfação sexual era fácil O problema era a solidão a carência de relações paternaisfiliais a necessidade da companheira no sexo na vida cotidiana e na dor Na ausência de brancas os colonizadores se enamoraram de negras e índias A miscigenação assim entendida corrigiu portanto a distância social entre a casagrande e a senzala A agricultura escravista aristocratizava antagonizava senhores e escravos a miscigenação contrariou este efeito separador ao reunir em famílias as índias e as negras aos brancos A índia a negramina a mulata a cabrocha tornaramse concubinas e até esposas legítimas dos brancos o que agiu no sentido da democratização social no Brasil Entre os filhos legítimos e ilegítimos subdividiuse parte considerável das grandes propriedades Embora militarmente vencedor escravista e sádico Freyre não omite esses dados mas acrescenta outros e contraditórios que tornam a realidade vivida mais complexa o branco tratou o escravo com bondade suavidade e ternura Nas relações entre Portugal e África anteriormente já tinha havido esta relação contraditória guerra escravização e miscigenação étnica e cultural Para o sexo o branco passou até a preferir a negra na verdade o verdadeiro objeto original do desejo seio cuidados cantigas para fazer dormir colo e aconchego enfim maternidade real A negra o iniciava na vida sexual quando adolescente Na hora da vida sexual madura era quase impossível desviar o desejo para uma mulher socialmente recomendável a branca Quanto ao negro ele o teve como companheiro em brincadeiras infantis Sobre ele exercerá toda a sua polimorfa perversidade E desenvolveu em relação a ele um inconsciente e profundo afeto pois crianças que brincam juntas criam elos profundos de amizade e ternura Para que um regime social de apartheid seja eficaz é preciso manter as crianças brancas e negras separadas em colégios creches festas e nas brincadeiras Não foi o caso brasileiro Se a vitória militar é afrodisíaca logo se estupram as mulheres se ela perdura em uma relação senhorescravo esse desejo exacerbado da conquista violenta poderá evoluir sem eliminação da violência original para uma exacerbação da afeição pelo vencido Freyre acredita nisso Esse mundo humano violentoafetuoso terá como palco a casagrande que é brasileirinha da silva isto é uma arquitetura original adaptada aos trópicos Na casagrande palco dessas relações complexas de crueldade e desejoamor estaria depositada a alma brasileira O tempo brasileiro é observado e medido na moradia brasileira na sua vida familiar Ali se concentravam as principais atividades brasileiras nos séculos XVIXVIII Além de moradia ela era fortaleza capela escola oficina santa casa convento de moças banco Ela não era um mundo à parte aristocrático distante Ela integrava todas as atividades e tipos humanos do mundo colonial O português foi inigualável em sua miscibilidade onde chegava misturavase gostosamente com as nativas Eram poucos e por causa desse seu modo democrático de ser puderam povoar terras vastíssimas Em suas guerras com os mouros eles cultivaram a fantasia erótica da moura encantada ligada às mulheres mouras que estupraram em suas vitórias Essa sua fantasia encaixouse bem na índia e na mulata As índias aliás eram o próprio encantamento a fantasia encarnada gordas nuas pintadas de vermelho doidas por um banho de rio quando penteavam cuidadosamente os cabelos admirandose no espelho presentes do branco com quem gostavam de fazer sexo Tinham aliás outra escolha Além da violência poderiam resistir a tais presentes A mulher morena e não a loura ou branca era a preferida dos portugueses para o amor físico Suas investidas pela África e Ásia os tornaram especialmente atraídos por mulheres não brancas Graças à sua miscibilidade a colonização portuguesa foi a primeira europeia a constituir uma sociedade moderna nos trópicos com características nacionais e permanentes Os outros europeus amoleciam em contato com os trópicos E não se misturavam com as mulheres de cor O português não venceu o clima o solo e miscigenouse criando uma população mestiça plenamente adaptada ao clima e à geografia Aqui houve o encontro a intercomunicação e a fusão harmoniosa de tradições diversas de cultura A cultura europeia se pôs em contato com a indígena contato amaciado pelo óleo lubrificante da mediação africana A invasão escravização e estupro de negras e índias pelos portugueses não foi seca foram lubrificados pela doçura africana pela forte excitação da mulher indígena pelos presentes e novidades dos brancos pela adaptabilidade aclimatabilidade miscibilidade plasticidade e falta de orgulho de raça do português A segunda tese responderá à questão Por que vitoriosos militarmente os portugueses não se isolaram orgulhosa e aristocraticamente apenas extraindo trabalho dos escravos e estuprando negras e índias Por que foi possível a miscigenação com relação ao português A democracia racial descrita acima foi possível porque segundo Freyre a predisposição psicofisiológica do português o seu passado étnico e cultural a favoreciam Do ponto de vista étnico o português não era um branco puro e do ponto de vista cultural não era um europeu puro Assim impuro étnica e culturalmente ele estava predisposto à colonização híbrida e escravocrata dos trópicos Etnicamente o português já era um miscigenado O povo português é ao mesmo tempo europeu e africano A influência africana ferve sob a europeia na vida sexual na alimentação na religião É uma população branca com sangue negro mouro e judeu É uma população já mestiça Não há um tipo unificado de português A raça não tem em Portugal um papel profundo É um povo bicontinental Culturalmente o ar da África amolece as instituições europeias desossando o cristianismo o feudalismo o direito a língua o caráter do povo A Europa reina mas a África governa A mistura étnica e a indefinição cultural tornam o caráter português um vago impreciso O caráter português é bambo flexível flutuante frouxo plástico fortemente sexuado imprevidente fatalista Esta imprecisão lhes permitiu reunir em si tantos contrastes Eles passam de um estado psicológico a outro rápida e subitamente Místicos políticos aventureiros vivem em uma indolência oriental Por ser assim o português foi o melhor dos colonizadores europeus Freyre tem uma grande admiração pelo português colonizador Segundo ele essa origem deve encher de orgulho os brasileiros Eles tinham criado uma civilização original tropical miscigenada cujos vícios podem ser atribuídos à monocultura escravista Foi esta que desvirtuou a miscigenação e não a mistura de raças em si A relação senhorescravo é doentia sadomasoquista e trouxe más consequências para a miscigenação Mas esta em si é só um bem Essa avaliação otimista que Freyre faz da miscigenação representou um alívio para as elites brasileiras Ele lhes devolveu a autoconfiança que as teorias racistas do final do século XIX lhes tinham tirado Essa nova representação mudou a atitude do Brasil em relação ao mundo exterior Desde 1822 as elites brasileiras esforçavamse por esconder dos estrangeiros e de si mesmas a impureza da história nacional Até 1930 pensouse que a miscigenação tinha comprometido definitivamente o futuro do Brasil Freyre trouxe uma nova interpretação da miscigenação que se tornará até uma referência para o mundo pós1945 que vivera uma guerra com motivações raciais declaradas Pós1945 os americanos acabaram com o seu apartheid e olharam junto com os europeus para o Brasil mais seriamente como uma história bemsucedida de assimilação racial Skidmore 1994 Ortiz 1985 Esta sociedade multirracial foi possível portanto pelas predisposições psicológicas históricas e raciais do português Este foi um colonizador ao mesmo tempo europeu africano e semita móvel adaptável sem orgulho de raça Sua mobilidade era tão espantosa quanto a sua miscibilidade e plasticidade uns poucos homens circularam pelos continentes transplantando populações inteiras e dominando vastos territórios O seu caráter vago e impreciso foi o segredo da sua vitória Se não não se explicaria como um país faminto doente e sem gente poderia colonizar o Brasil a África e a Ásia Foi este seu caráter democrático que permitiu a confraternização das três raças constituidoras do Brasil Eles foram os homens ideais para a colonização tropical E criaram o homem ideal para viver nos trópicos o mestiço brasileiro um homem branco com sangue negro e índio A terceira tese responderá à pergunta Qual será o palco a sede o lugar central em que se dará este encontro feliz entre as três raças sob a liderança do português Esta confraternização ocorrerá na casagrande que não se separa da senzala mas a inclui Ela é uma construção tipicamente brasileira correspondendo ao novo ambiente físico e à nova atividade portuguesa a monocultura escravista O português então tornouse lusobrasileiro o fundador de uma nova ordem econômicosocial o criador de um novo tipo de habitação que seria o símbolo da nova civilização A casagrande completada pela senzala representa todo um sistema econômicosocial e político a monocultura escravista o patriarcalismo católico e polígamo Foi ali que se estabeleceu o novo dono do Brasil Apesar de suas predisposições favoráveis o português sofreu com as dificuldades impostas pelo novo ambiente No Brasil selvagem tudo era desequilíbrio excessos e deficiências O solo excelente ou péssimo os rios cheios ou secos A América tropical não oferece uma vida fácil Nas sementes casas animais livros papéis obras de arte em tudo se metem larvas vermes insetos roendo esfuracando corrompendo Foi em tais condições tão desfavoráveis que se exerceu o esforço colonizador dos portugueses nos trópicos Foi uma vitória Antes dessa vitória o domínio europeu nos trópicos só se realizava por feitorias e extração da riqueza mineral O colonizador português foi o primeiro a criar uma civilização baseada na exploração local da riqueza Criouse uma colônia de plantação caracterizada pela base agrícola e pela permanência do colono na terra Os portugueses iniciaram uma colonização nova a exploração da riqueza vegetal pelo capital e esforço do particular e com o aproveitamento dos nativos sobretudo da mulher para o trabalho e a formação da família A sociedade colonial desenvolveuse patriarcal e aristocraticamente à sombra das plantações de canadeaçúcar em casas grandes de taipa e cal Não foram aventureiros Vieram venceram ficaram e colonizaram Sérgio Buarque de Holanda logo depois em 1936 terá uma visão diferente da colonização portuguesa feita por aventureiros que vieram venceram e arruinaram a terra em busca de riqueza fácil e rápida Não é o ponto de vista de Freyre A colonização portuguesa não foi obra do Estado da Coroa da família real mas da corajosa família rural particular Aqui aparece uma distância significativa entre Freyre e Varnhagen este defendia a colonização promovida pela família real sua fidelidade era ao rei Freyre vê como sujeito da história colonial brasileira não a família real mas a família rural portuguesa que enfrentou com os seus parcos capitais e vigor físico as dificuldades da terra tropical virgem e distante Os portugueses foram os primeiros europeus que se estabeleceram de fato em colônias vendendo o que possuíam na metrópole e transplantandose com família e cabedais para os trópicos Aqui tinham liberdade de ação A organização colonial oficial não precedeu mas sucedeu o desenvolvimento da colonização feita pelo particular Foi a iniciativa particular e não a oficial que promoveu a mistura de raças a agricultura latifundiária a escravidão tornando possível sobre tais alicerces a fundação e o desenvolvimento de uma grande e estável colônia agrícola nos trópicos Além de ter alargado o território para o Oeste o que seria impossível para a iniciativa oficial A colonização portuguesa feita caracterizase pelo domínio exclusivo da família rural O sujeito da colonização portuguesa foi o indivíduo e a sua família em sua unidade produtiva semeando o solo e desbravando o território A força social que se desdobrou em política constituindo se na aristocracia rural mais poderosa da América Sobre ela o rei reina sem governar A casagrande é o seu palácio rural Ela venceu a Igreja em seus impulsos de ser dona da terra Vencido o jesuíta o senhor de engenho ficou dominando o Brasil quase sozinho Ele é o verdadeiro dono do Brasil mais do que os vicereis e bispos Era o dono das terras e da população A diferença entre Varnhagen e Freyre nesse aspecto talvez se explique pelas datas das suas obras em 1850 Varnhagen formulava uma visão ainda portuguesa do Brasil enfatizando a ação da família real Freyre em 1930 enfatizando a ação da família rural formula uma visão lusobrasileira do Brasil a visão das elites descendentes dos descobridores que admiram e reverenciam a memória daqueles que criaram este mundo nos trópicos para elas Há também uma diferença teórico metodológica essencial nos anos 1850 predominava uma história políticoadministrativa e biográfica valorizando as ações e documentos oficiais nos anos 1930 aparece uma história nova econômicosocialmental que valoriza as iniciativas coletivas anônimas inconscientes não oficiais reveladas por uma documentação maciça múltipla interdisciplinar Freyre é um dos pioneiros dessa nova história Burke 1991 Para Freyre o estudo da vida doméstica da família rural lusobrasileira como que nos completa a nós lusobrasileiros é um meio de procurar o tempo perdido um meio de nos sentirmos nos outros nos que vieram antes de nós O passado familiar do colonizador português é um passado que se estuda tocando em nervos um passado que emenda com a vida de cada um uma aventura da sensibilidade e não somente um esforço de pesquisa em arquivos Não é fácil penetrar na intimidade do passado surpreendêlo em suas tendências no seu àvontade caseiro em sua espontaneidade e expressões mais sinceras Não há muitas fontes As melhores o confessionário as tornou desnecessárias e as engoliu Freyre não se deixará limitar no entanto pela falta de fontes Ele tomará como fonte tudo o que o homem colonial brasileiro produziu acreditou pensou cantou rezou pintou brincou falou construiu comeu adoeceu lutou defendeu expulsou plantou escravizou A Casagrande senzala foi portanto o centro da história colonial brasileira foi um verdadeiro palácio rural ali morou o seu verdadeiro sujeito o senhor patriarcal cercado de sua família extensa legítima e ilegítima seus escravos domésticos seus agregados sua capela sua plantação e escravos sobre os quais exercia um poder absoluto sem apelo A quarta tese responderá à pergunta A miscigenação que está na origem da colonização portuguesa do Brasil graças às predisposições psicológicas étnicas e históricas do português foi um bem ou um mal A miscigenação degenerou os brasileiros tornandoos inferiores inaptos doentes ou não Se ela trouxe a democracia racial a confraternização entre as raças ela trouxe também o debilitamento da raça brasileira Para Freyre os males profundos que têm comprometido a robustez e a eficiência da população brasileira que são atribuídos à miscigenação na verdade devemse à monocultura latifundiária Faltou o suprimento de víveres frescos que tornou a população mal nutrida comendo somente peixe seco e farinha de mandioca A hiponutrição tem como consequência problemas de decadência ou inferioridade de raças diminuição da estatura do peso do tórax insuficiências endócrinas Além da hiponutrição outro mal que afetou a saúde brasileira foi a sífilis A colonização patriarcal do Brasil explicase menos em termos de raça e religião e mais em termos econômicos culturais e afetivos A sociologia que fala de manchas da mestiçagem e dos efeitos amolecedores do clima não vê a escassez de alimentos a pobreza nutritiva da alimentação disponível há cinco séculos a irregularidade no abastecimento e a falta de higiene na conservação e distribuição Além da desnutrição o alcoolismo e a falta de infraestrutura que adoecem Senhores e escravos ainda comem embora mal Mas matutos caipiras caboclos sertanejos pobres que são milhões comerão algo A dieta precária pobre os jejuns religiosos enfraquecem e adoecem a população O Brasil dos três séculos coloniais dominado pela monocultura latifundiária foi terra de alimentação incerta e vida difícil O povo brasileiro é um dos povos mais desprestigiados na sua eugenia e mais comprometidos na sua capacidade econômica pela deficiência de alimento É um povo perturbado em seu vigor físico e na sua higiene por um pernicioso conjunto de influências econômicosociais Quanto à miscigenação que formou o brasileiro ela foi vantajosa Criou o tipo ideal do homem moderno para os trópicos um europeu com sangue de negro ou índio Mas ela teve um efeito colateral que deteriorou a raça brasileira e que por estar ligado a ela é atribuído a ela esta deterioração À vantagem da miscigenação associase a desvantagem da sifilização A miscigenação não é culpada pela sifilização Ela pelo contrário produziu belos exemplares humanos Depois da má nutrição talvez a sífilis tenha sido a influência social mais deformadora da plástica do mestiço brasileiro Portanto se o brasileiro sofre de uma inferioridade física não se deve atribuíla à raça ou à mistura de raças mas à desnutrição e à sífilis além de outros vícios alcoolismo comer terra São razões históricas portanto corrigíveis e não razões biológicas irrecorríveis Entretanto apesar de recusar o conceito de raça e o determinismo racial diferentemente de Boas para quem o conceito de cultura aboliu o de raça Freyre continuou usando o conceito de raça mesmo privilegiando o de cultura Costa Lima apontou para essa ambiguidade de Freyre que o torna ainda mais próximo do pensamento brasileiro tradicional de Varnhagen apesar das suas inovações Afinal branco é uma etnia ou uma cultura ou ambas Freyre mistura meio raça e cultura Seu regime de causalidade é impreciso afirma Costa Lima Ora é o fator étnico a mestiçagem ora é a posição geográfica de Portugal ora é a convivênciaguerra entre portugueses e muçulmanos que são apresentados como responsáveis pelo caráter vagoimpreciso do português O sucesso português no Brasil ora se deveu à sua etnia ora ao clima ora à tolerância cultural O português tem sangue mouro semita Há até quem encontre em Freyre teses racistas antissemitas por exemplo Enfim Freyre não descartou o conceito de raça embora declare têlo feito Em Casagrande senzala as raças apresentam especializações psicológicas e aptidões distintas Freyre não absorveu completamente Boas conclui Costa Lima Na medida em que ainda raciocina com o conceito de raça ele se insere de maneira limitada no historicismo alemão e se afasta bastante do historicismo de S B de Holanda Costa Lima diminui assim o alcance da renovação e originalidade da interpretação do Brasil de Freyre que se acreditava inteiramente culturalista e sem nenhuma referência à raça Costa Lima se espanta e com razão com o fato dos seus analistas não terem dado atenção a esse aspecto do pensamento de Freyre que aparece com muita evidência em seu texto Ele não estaria tão longe de Varnhagen e O Vianna afinal E quanto ao essencial é essa também a nossa visão de Freyre que sem desvalorizar as suas intuições e inovações geniais estamos tentando demonstrar Entretanto R Benzaquen de Araújo procura também valorizar e restaurar a originalidade de Freyre ao afirmar que ele usa o conceito de raça de forma peculiar Ele trabalharia com um conceito neolamarkiano de raça que se baseia na aptidão dos seres humanos para se adaptarem às mais diferentes condições ambientais e para incorporarem e transmitirem as características adquiridas na interação com o meio Nesta perspectiva o conceito de raça é histórico uma cultura é um corpo marcado pelo meio geográfico A raça é mais efeito do que causa Há uma diversidade cultural e racial marcada pelo meio Benzaquen de Araújo concorda com Costa Lima quando este afirma que a imprecisão no uso do conceito de raça revela o próprio estilo de Freyre ele não se submete a conceitos A denúncia de sua imprecisão deve ser mantida confirma Benzaquen mas quanto ao conceito de raça é preciso incluir este seu esforço de precisão Araújo 1994 Apesar disso Freyre se afasta e muito do pensamento tradicional brasileiro racista de Varnhagen a O Vianna quando estes propuseram a superação do problema racial pelo branqueamento da população Do ponto de vista norteamericano esta seria uma solução ingênua pois a raça não é definida pelo fenótipo mas pela ascendência do indivíduo Os brasileiros poderiam se tornar todos brancos isto não apagaria a sua ascendência negra e indígena Skidmore 1994 Freyre aceita a mestiçagem e a sua consequência fenotípica a morenidade O Brasil é moreno mestiço de branconegroíndio Este Brasil moreno longe de estar condenado ao insucesso por ser moreno tem o seu horizonte de espera aberto por esta sua originalidade A quinta tese responderá à pergunta Para este povo miscigenado confraternizado bem adaptado aos trópicos qual seria o regime político mais adequado À democracia racial brasileira poderia corresponder a democracia social e política Freyre oferece uma resposta ambígua a esta questão como é ambígua ou anfíbia toda a sua reflexão sobre o Brasil Por um lado a mestiçagem se fez entre senhor e escravo Se o brasileiro é mestiço e Freyre não omite esse dado essa mestiçagem não se realizou amorosamente O brasileiro mestiço não é fruto de uma relação humana entre etniasculturas diferentes Ele é filho de um estupro o senhor conquistador colonizador armado de espada e terço que invade e domina índios e negros exterminando e escravizando os homens e violentando as suas mulheres Freyre acredita que o próprio escravo se satisfaça nesta relação sadomasoquista sexual e pessoal O escravo preferia o senhor invasor e brutal isto é bem no seu papel pois é masoquista O senhor inebriado transtornado de desejo por todo o poder sobre a natureza e os homens que ele conquistou o senhor sádico é a este que prefere o escravo masoquista Ostentando o seu poder realizandoo sem restrições o senhor se torna o seu espelho a sua imagem invertida aquilo que ele gostaria de ser Como ele poderia se identificar com um senhor com características de escravo O senhor precisa ser um antiescravo um escravo invertido para satisfazer ao próprio escravo E como não há nada mais afrodisíaco do que o lazer e o poder o português se tornou um femeeiro possuía uma genesia violenta e incluía o escravo como parceiro em suas fantasias O papel do escravo na relação é passivo ele deve submeterse ao desejo sem limites do senhor e nesta submissão encontraria um inconfessado prazer A relação senhorescravo é uma relação sadomasoquista isto é uma relação de prazer sexual e até afetuosa com violência Nessa relação se desfaz o sonho da democracia política prometida pela miscigenação Essa relação teria passado à esfera política Freyre afirma que o chamado povo brasileiro o mestiço filho daquela relação sadomasoquista aprecia o mandonismo gosta do dono bravo do senhor completamente em seu papel No íntimo ele afirma o que o grosso do povo brasileiro ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente autocrático Até os mártires revolucionários brasileiros não querem de fato transformar o Brasil salvar a sua população daquela relação perversa Eles pertencem àquela relação e o que querem é ter o prazer de sofrer de ser vítimas de se sacrificar como Jesus Cristo o herói vítima que todo brasileiro quer imitar Portanto o regime político mais adequado a este povo nascido daquela relação é a ditadura vigorosa máscula e corajosa O ditador será aclamado idolatrado amado e quanto mais severo mais prazer trará a esta população filha do prazercomviolência Por outro lado o regime político mais adequado à população brasileira mestiça é o que já predomina desde o início da colonização a democracia racial e social A miscigenação se deu entre senhor e escravo o que ele considera uma demonstração da suavidade do escravismo brasileiro e até do espírito radicalmente democrático do português A colonização europeia não se deu somente no sentido da europeização A cultura europeia assimilou a indígena e a africana O português vencedor deixouse civilizar pelos vencidos como os turcos vitoriosos pelos gregos vencidos Por suas predisposições já mencionadas o português não se encastelou orgulhosa e aristocraticamente separandose das outras raças e culturas Ele não tinha nenhum orgulho de raça Os negros reagiram sobre a dominação branca e a sua cultura foi civilizadora do vencedor Do ponto de vista alimentar por exemplo a influência do africano foi a mais positiva Sua dieta era mais equilibrada era abundante em milho toucinho e feijão Foi o elemento mais bem nutrido em nossa sociedade patriarcal o escravo negro e por isso sua descendência é a mais sadia e bela O negro revelouse superior ao índio e ao próprio português em vários aspectos da vida material e moral técnica e artística O negro é alegre vivo loquaz vigoroso extrovertido plástico adaptável Ele foi o maior colaborador do branco na colonização Ele até influiu na europeização do índio difundindo a religião católica e a língua portuguesa Freyre distingue o negro do escravo O Brasil teve a influência do negro escravo e não a influência do negro puro O negro escravo não pode exercer toda a influência que o negro livre exerceria pois sua posição estava moralmente rebaixada Ele nos aparece deformado pela escravidão Esta não deixou que ele pudesse se revelar se expressar plenamente A sua influência não pode ser considerada deletéria enquanto negro mas enquanto escravo Não era o negro depravado imoral obsceno ele é até mais frio do que o branco precisando de danças eróticas para se excitar A sífilis não foi ele quem a trouxe mas o português O negro escravo transformou a língua portuguesa a religião cristã a dieta portuguesa o imaginário infantil A nossa língua nacional sofreu uma dupla influência a da casagrande e a da senzala No brasileiro não subsiste como nos Estados Unidos duas metades inimigas uma branca e outra negra Somos duas metades confraternizadas que se enriquecem mutuamente de valores e experiências diversas O todo brasileiro não se faz com o sacrifício de uma das partes Nossa personalidade mestiça se desenvolve sem a supressão de uma parte por outra A presença do negro na vida do branco é muito forte embora como escravo ama de leite molequebrinquedo negro velho macumbeiro mucama cozinheira Freyre não se demora sobre a influência negra no desenvolvimento econômico fala raramente do escravo do eito mas afirma em algumas passagens que ela foi imensa maior do que a do próprio português Enfim na casagrande os escravos domésticos foram tratados com doçura eram como familiares pessoas da casa como parentes pobres Sentavamse à mesa passeavam com os senhores como se fossem filhos As mães pretas tinham lugar de honra na família os nhonhôs as tratavam como verdadeiras mães Eles receberam dela uma bondade uma ternura que os europeus não conheciam Entre nós houve uma profunda confraternização de valores e sentimentos A religião católica foi um ponto de encontro entre as duas culturas e não uma intransponível barreira Um cristianismo mais ortodoxo seria incompatível com a liberdade religiosa dos negros Freyre distingue o escravo do eito do escravo doméstico este teve uma assistência moral e religiosa que faltou àquele Os da casa eram batizados alguns se casavam e mulheres brancas amamentavam filhos de negras mortas no parto Portanto a sociedade brasileira para Freyre foi desde o início a que mais harmoniosamente se constituiu quanto às relações de raça dentro de um ambiente de quase reciprocidade cultural de troca de valores no máximo de contemporização da cultura adventícia com a nativa do conquistador com o conquistado Quanto aos indígenas a mulher recémbatizada foi tomada como esposa e mãe de família e trouxe para a vida doméstica tradições experiências técnicas e utensílios O branco preferia sexualmente a índia e esta ao branco seja por razões sociais queriam ter filhos pertencendo à classe superior já que a ascendência que valorizavam era a paterna seja por razões priápicas pois o índio seria mais frio do que o branco No primeiro século por falta de brancas os portugueses se envolveram com as índias Freyre sonha o ambiente em que começou a vida brasileira foi quase de intoxicação sexual As índias se entregavam facilmente aos seus deuses por um espelho ou um pente Freyre nos convida a imaginar este primeiro Brasil sem Estado e sem jesuítas local de encontro de uma sociedade vestida com uma sociedade nua A mulher índia foi não só a base física da família brasileira mas também valioso elemento de cultura material A influência do homem índio foi também forte devastação e conquista do sertão guia canoeiro guerreiro caçador pescador Ele só não foi útil na plantação Mas lutou ao lado do português contra os invasores europeus O menino índio europeizou os pais e a tribo ensinando o português e o catecismo Enfim conclui Freyre a formação brasileira tem sido um processo de equilíbrio de antagonismos A mediação africana aproximou os extremos brancos e índios que sem ela dificilmente teriam se entendido tão bem As culturas europeia e ameríndia eram estranhas e antagônicas A sociedade brasileira é uma das mais democráticas flexíveis e plásticas Ela conseguiu equilibrar harmoniosamente antagonismos dificilmente superáveis culturas europeia e africana e indígena economia agrária e pastoril fazendeiro e jesuíta bandeirante e senhor de engenho E equilibrou o antagonismo maior senhor e escravo Estes antagonismos foram amortecidos confraternizados harmonizados pela miscigenação pela mobilidade social do ir e vir pelo cristianismo lírico pela tolerância moral pela geografia sem obstáculos No Brasil enfim reina a democracia social As mulheres estão em pé de igualdade com os homens são médicas professoras escritoras advogadas A tendência brasileira é dar oportunidade a todos No Império juízes e diplomatas eram morenos O regime imperial era uma felicíssima combinação de democracia e monarquia Freyre 1971 Afinal o regime político adequado a tal democracia racial seria a ditadura ou a democracia Freyre parece crer sinceramente na democracia social brasileira mesmo se o senhor detém o mando indiscutível e brutal Entretanto esse senhor sádico e autoritário ele o vê como também essencialmente democrático pois o seu poder é exercido em família É um poder legitimado por suas relações afetivas Na família domina essa ambiguidade o pátrio poder é absoluto mas os laços afetivos e de fidelidade recíprocas criam uma aliança inabalável verticalmente em relação ao senhor e horizontalmente entre os diversos membros da família A severidade do pai é apreciada suas decisões peremptórias temidas e legitimadas No Brasil colonial não existia o Brasilnação Havia uma multiplicidade de repúblicasfamiliares com os seus poderes particulares Freyre se refere ao poder familiar patriarcal íntimo e não ao poder público ao Estado Aquele poder privado no entanto se confundia com o poder público A população lusobrasileira era governada como uma família pelo poder absoluto do pai Darci Ribeiro expressa de forma esclarecedora essa ambiguidade apontada por Freyre no nosso modo doceviolento de ser Para ele o mestiço brasileiro é filho daquelas pretas e índias supliciadas e filho da mão possessa que as supliciou A doçura mais terna e a crueldade mais atroz se reuniram aqui para fazer de nós uma gente sofrida e ao mesmo tempo insensível e cruel Somos filhos de escravas e de senhores de escravos A autoridade brasileira assim como a colonial está predisposta a torturar a machucar o pobre que lhe cai às mãos e que como o escravo colonial se sente completamente à mercê dessa força o senhor ruralpai sem rei e sem lei sem limites que o oprime e quer bem Ribeiro 199512 O Tempo Histórico do Brasil em Freyre Freyre considera o brasileiro dominado por um tempo lento e lúdico preguiçoso O ritmo brasileiro de atividade é uma combinação de trabalho e lazer Os brasileiros não gostam do trabalho intelectual ou manual e não têm preconceito contra o lazer que não é visto como vício pecado Ele gosta mesmo é de tocar violão e cantar comer seu peixe temperado fumar o seu cachimbo beber seu café a pequenos goles Freyre 1971 Gosta de mandar fazer e de viver no ócio Eles apreciam também o luxo roupas rendadas e bordadas O seu sucesso ele o obteve com essa tolerância transigência vontade de não transformar e imporse racionalmente ao mundo e ao outro A natureza ele a aceita e se adapta o outro ele domina e se adapta Daí a sua relativa democracia étnica a ampla oportunidade dada a todos os homens independentemente de raça ou cor Os brasileiros se amam como irmãos mesmo se são tão diferentes Há preconceitos raciais mas não há apartheid Reina entre os brasileiros um forte espírito de fraternidade As relações entre negros e brancos sempre foram cordiais e a solução brasileira para as relações raciais foi a mais inteligente promissora e humana Ele acredita que exista uma certa felicidade brasileira Nossa situação de confraternização racial é a que mais se aproxima de um paraíso terrestre Há miséria doença tristeza opressão Mas não se pode deixar de falar de democracia social A interpretação de Freyre se apoia sobre uma concepção conciliadora do tempo histórico brasileiro Para Bastos ele propõe uma articulação do velho e do novo a união da tradição com a modernidade Bastos 1986 Barbu 1981 A história brasileira não é compreendida em termos de ruptura conflitos mudanças bruscas Ela é vista como uma história pacífica tranquila integradora das diferenças A narrativa de Freyre assim que percebe conflitos produz a sua dissipação Os conflitos são percebidos não são escamoteados mas administrados Freyre constata diferenças para englobálas uniformizá las observa Costa Lima Sua verdade histórica é ética o Brasil é um modelo para a humanidade ele dá ao mundo uma lição de moralidade Aqui o senhor é ameno com o escravo o branco com o negro e o índio Mas essa amenidade ao invés de apagar a diferença intensificaa Se o escravo se rebelar o senhor esquecerá as suas boas maneiras É uma interpretação do Brasil válida enquanto continuamos uma sociedade conservadora A plasticidade do senhor não corrige a assimetria do poder mas legitima a colonização e a escravidão é um mito uma máscara ideológica Lima 1989 Freyre produz um quadro excessivamente estático detecta constantes e ignora os ritmos de transformação Privilegia a continuidade em detrimento da mudança A obsessão com o progresso e com a chegada acelerada da razão com a integração do país na marcha da civilização ele a recusa substituindoa pela ênfase na tradição e singularidade brasileiras O Brasil ganha um passado se densifica para trás Freyre não fala quase de futuro ele fala mais de passado de identidade brasileira consolidada Nessa identidade ele integra índios e negros retrospectivamente a identidade singular brasileira é a da mistura de raças e culturas sob a liderança portuguesa O Brasil é complexo em sua temporalidade tão velho e tão novo tão conservador e tão liberal tão ligado ao seu passado e tão pouco resistente a experiências novas Por um lado superarcaico por outro um dos países mais modernos do mundo Freyre 1971 Freyre representa um momento importantíssimo para a reflexão histórica brasileira um momento de retorno de introspecção de viagem pelo interior Ele para o tempo da história brasileira e se delicia em sua contemplação O tempo de Freyre é ibérico sem pressa sem relógio sem preço sem dinheiro a ganhar Marias 1981 Solis 1981 Em sua ampulheta o que se tem não é areia ou água que descem rapidamente mas um meladomel que desce em um fio viscoso e lento marcando a duração doce e gozosa do mundo nordestino Kujawski 1981 Seu tempo é senhorial ocioso deitado na rede pés de menino e mãos de moça o pau viril e a voz imperiosa Dono de escravos o trabalho não é problema dele Seu tempo ele o tem todo à sua disposição para comer beber conversar e copular com negras e índias A vida boa dos aristocratas do açúcar foi lânguida morosa Na casagrande os dias se sucediam iguais a mesma modorra a mesma vida de rede sensual Sua visão do Brasil e do mundo é desacelerada a da lenta mudança dos séculos sem saltos revolucionários Marias 1981 Briggs 1981 Freyre prefere a continuidade à mudança ou a mudança dominada pela continuidade Seu olhar sobre o futuro do Brasil é pessimista nos anos 1930 a mudança se acelerava assustandoo pois comprometia a continuidade do passado patriarcal Com sua reflexão ele quer fazer uma defesa desse passado e impedir ou desacelerar a mudança Ele espera que as mudanças não se acelerem pois não há motivo O passado brasileiro foi bom as elites brasileiras são competentes e democráticas Quanto ao futuro ele é no máximo reformista e gradualista propõe o fim da monocultura o que melhoraria a dieta brasileira fazendo aparecer uma população sadia e uma inteligência mais vigorosa menos imitativa A população mestiça brasileira é eugênica pois os brancos escolheram as melhores negras e índias para amantes O mulato é um feliz meiotermo eugênico O Brasil tem o seu futuro aberto não há nada que o torne inviável que o ameace no horizonte desde que ele seja mais passado do que futuro mais continuidade do que mudança PARTE II O REDESCOBRIMENTO DO BRASIL ANOS 1900 CAPISTRANO DE ABREU O surgimento de um povo novo o brasileiro Capistrano de Abreu Heródoto do Povo Brasileiro João Capistrano de Abreu nasceu em Maranguape Ceará em 1853 no sítio de Columinjuba que seu pai herdara de seu avô que o havia recebido de presente de um reinol perseguido pelos ódios exacerbados do nativismo local do qual ele então o protegera Foi assim que a família saiu da pobreza e se tornou proprietária de um pequeno pedaço de terra Ali Capistrano foi criado com rigidez severidade e austeridade em um ambiente marcado pelo trabalho pesado e contínuo e pelo dogmatismo católico Seu pai depois de herdar a terra reconstruiu a casa e se tornou um dos homens bons homens de consideração da região pois tinha o suficiente para sustentar a família e gozar de algum prestígio social Ele pertencia à Guarda Nacional e à burocracia provincial tinha a patente de major No sítio ele plantava cana algodão mandioca feijão milho O trabalho era feito por escravos por agregados e pela própria família Seu avô e pai eram homens do tipo amansa negro homens de mão pesada e de alma dura Capistrano nasceu portanto em uma casagrande modesta mas abastecida A casa expressava o espírito místicoescravista dominante era cheia de imagens de santos rosários relíquias escapulários terços e orações e um dos seus cômodos era usado como sala de disciplina a sala do tronco com os instrumentos de suplício para os escravos rebeldes e que provavelmente o rebelde Capistrano também conheceu pois os filhos na sua época eram também amansados Ali reinava o espírito colonizador e inquisidor dos descobridores O sítio submergia no anonimato da vida sertaneja isolado embora Fortaleza não fosse tão longe Viviase ali uma vida rotineira silenciosa ritmada pela natureza pelo trabalho e pelas rezas Câmara 1969 Foi neste ambiente bem pouco aristocrático que Capistrano nasceu e viveu até a juventude Ele era psíquica e fisicamente um autêntico sertanejo um caboclo matuto feio agreste desagradável Um desconfiado tapuia transplantado para o meio civilizado alguém disse Os biógrafos descrevem a sua imagem de maneira bem desfavorável seboso malvestido sem higiene pessoal uma figura torta um olho pendido para o lado uma cor encardida que o banho só piorava Para logo desanuviarem a má impressão referindose à sua personalidade brilhante e envolvente Ao chegar ao ser apresentado a alguém ou ao se apresentar sua imagem causava desgosto ao sair seu espírito deixava encantamento Foi assim por exemplo no primeiro encontro com José de Alencar seu conterrâneo que tinha obtido grande sucesso nacional e a quem ele recorreu para introduzilo na Corte Capistrano não era vaidoso e silenciava sobre si mesmo Sabese que era próximo e afeiçoado aos escravos e que conhecia muitas canções africanas Câmara 1969 Sua formação intelectual considerando a sua origem modesta e rude foi outro milagre Foi sobretudo um autodidata um leitor apaixonado e desordenado Alfabetizado no próprio sítio depois estudou em um colégio pobre de Fortaleza o Ateneu Cearense e no seminário Como estudante sempre fracassou nos exames Talvez tivesse dificuldades psicológicas com a autoridade associada ao pai Seu retorno de Recife onde passou dois anos preparandose para entrar na Faculdade de Direito com o apoio financeiro de seu pai foi mais ou menos trágico ele fracassara em Recife Entre os 18 e 20 anos as perspectivas de Capistrano não eram as melhores Ele ficou no sítio escrevendo para jornais de Fortaleza dando aulas em colégios Precisava de um emprego e de um salário para viver Não era rico e não poderia mais depender do pai sem trabalhar no sítio Câmara 1969 Decidiu então ir para a Corte migrar para o Rio de Janeiro armado com uma carta de José de Alencar apresentandoo aos jornais do Rio e com 700 milréis que apurou com a venda de um escravo que herdara do avô Em 1875 esse nordestino feioso desceu para um mundo desconhecido incerto sozinho sozinho Chegou ao Rio com 21 anos Apesar da sua resistência ao bacharelismo tinha uma boa bagagem intelectual lia francês e inglês conhecia filosofia literatura história e geografia Assim dizem seus biógrafos mais exaltados E exageram lia até sueco Câmara 1969 Na Corte precisava de um emprego Trabalhou na Livraria Garnier foi professor no Colégio Aquino onde tinha casa e comida publicou vários artigos em jornais passou em concurso para o preenchimento de uma vaga na Biblioteca Nacional emprego público estável e seguro a âncora de que ele precisava para fixarse na Corte Em 1883 fez o famoso concurso para professor de corografia e história do Brasil do Colégio Pedro II Passou ocupou a vaga mas não ficaria muito tempo saindo em 1899 Sua cátedra história do Brasil foi extinta incluída na história universal Enquanto ensinou sem carisma teve alunos e nunca discípulos Ao sair do colégio sentiuse aliviado livrarase de alunos ignorantes e desatentos Contudo a razão da sua saída do Colégio Pedro II permanece mal explicada Alguma razão política Chacon afirma que Capistrano e O Lima acusados de germanofilia quando da I Guerra Mundial teriam sofrido perseguições Chacon 199392 Mas a sua saída do Pedro II foi em 1899 bem antes Qual terá sido a verdadeira razão Somente uma simples reforma do ensino que dissolvia uma cadeira de história do Brasil Capistrano morreu em 1927 aos 64 anos Câmara 1969 Sua biografia interessa muito quando se conhece o lugar inovador que ele teve na historiografia brasileira A biografia escrita por J S Câmara que utilizamos até aqui parecenos recomendável apesar de um excesso talvez de empatia embora compreensível Quem é afinal o autor de Capítulos de história colonial Num mundo social marcado profundamente pela bipolarização senhorescravo ele não fora nem uma coisa e nem outra Sua família era pequena proprietária de terra e produzia para o próprio sustento A maneira como conseguiu essa terra também é curiosa casualmente um presente de reinol A produção não se destinava ao mercado internacional mas era feita também com mão de obra escrava e de agregados que trabalhavam lado a lado com os membros da família proprietária Era um mundo social brasileiro voltado para dentro sem vínculos externos diretos A subsistência era retirada da terra parca e modesta à custa de um trabalho contínuo e braçal quase sem equipamentos O horizonte pessoal de Capistrano era prosseguir essa vida paterna e familiar horizonte que ele recusou contra o qual se rebelou porém com pouca coisa ou quase nada para substituir Refugiouse então talvez na leitura evadiuse o jovem Capistrano Criou um mundo de palavras frases citações confusas e em outras línguas apelando até para o sueco buscando diferenciarse do seu mundo do seu passado buscando o reconhecimento intelectual o prestígio de homem de letras devorador de livros mas pouco disciplinado para enfrentar exames No Rio quando não tinha mais terra e nem era mais proprietário de escravos passado que rejeitara ele só possuía a força física e seus olhos leitores como instrumento de trabalho Ali precisava sobreviver e mostrar o seu valor Tendo rompido com aquele passado rompeu também com o futuro previsível que ele prometia agora enfrentava um futuro desconhecido que teria de produzir com os próprios recursos Capistrano preferiu a mudança e a sua instabilidade à continuidade familiar e nordestina Sua história pessoal se parece com a interpretação que construiu do Brasil rebeldia e recusa do passado opção por um futuro novo mas qual O Necrológio de Varnhagen escrito em 1778 três anos depois da chegada ao Rio talvez tenha sido o grande trampolim para o futuro que ele queria realizar repercutiu tão intensamente dizem que até o insuperável Machado de Assis evitou publicar o seu Capistrano começou então a sentir o gosto da vitória e do sucesso depois de experimentar fracassos sucessivos no Nordeste Um horizonte novo se abria para ele e se ensolarava na Corte Câmara 1969 Viverá até 1927 com os seus únicos recursos postos públicos e a escrita concisa precisa e inovadora Entretanto a sua obra é pequena e constituída de textos curtos Contará na verdade mais com a renda de funcionário público bibliotecário e professor do que com seus escritos que ele próprio parecia não apreciar muito Quando terminados dizia sentir por eles alívio e nojo Câmara 1969 Talvez seja este também o sentimento de um operário diante da sua obra terminada alívio pois deu conta de fazêla e já podia ir para casa com o salário no bolso nojo pois a produzira sob pressão dominado pela necessidade Como um operário um migrante nordestino Capistrano é um homem humilde discreto tímido avesso a títulos e glórias e indiferente à audácia e perícia do trabalho que realiza Varnhagen e Capistrano Quando Capistrano nasceu em 1853 Varnhagen começava a publicar a sua História geral do Brasil Capistrano será o seu leitor mais atento e crítico Será em relação a Varnhagen que ele fará a sua grande inovação na interpretação do Brasil Essa inovação se explica não só em termos da sua origem social que é totalmente diversa da de Varnhagen mas também em razão da nova época intelectual vivida pelo Brasil nos anos posteriores a 1870 O desfecho da guerra francoprussiana abalara o prestígio da cultura francesa e os intelectuais brasileiros se abriram às influências inglesa e alemã Spencer Darwin Buckle Ranke Ratzel Os franceses ainda influenciavam Comte Taine Tarde Renan G Le Bon Pós1870 o ambiente intelectual brasileiro era mais complexo refletindo também a maior complexidade da vida brasileira que se inquietava depois do fim da Guerra do Paraguai Varnhagen escrevera quando a Monarquia se consolidava nos anos 1850 Capistrano construirá a sua interpretação do Brasil quando a Monarquia estava abalada em xeque assim como a escravidão e se buscavam novas bases econômicas sociais políticas e mentais para o Brasil Wehling 1994 Os intelectuais brasileiros do final do século XIX começaram a perceber a distância entre a realidade brasileira e o pensamento que eles próprios produziam Silvio Romero criticava o ambiente intelectual brasileiro vazio e banal e aspirava a ter contato com o verdadeiro Brasil Havia um esforço de todos para encarar de forma nova o passado brasileiro Tinham agora uma preocupação cientificista Comte Buckle Darwin Spencer serão as referências intelectuais predominantes Ortiz 1985 A preocupação cientificista de Capistrano era a de toda uma nova geração No pósGuerra do Paraguai essa geração quer reinterpretar a história brasileira privilegiando não mais o Estado imperial como Varnhagen mas o povo e a sua constituição étnica A formação intelectual de Capistrano se deu nesse ambiente determinista cientificista até racista Discutiase então o positivismo o determinismo climático o determinismo biológico o spencerismo o comtismo o darwinismo as teorias raciais Pensavase que a sociedade poderia ser estudada com a mesma objetividade com que se estudava a natureza pois também se submetia a leis gerais de desenvolvimento A história seria como o universo um mecanismo autorregulado submetido a leis passível de um conhecimento objetivo A ciência passava de método a visão de mundo desvalorizando as verdades trazidas pela tradição pela religião pela filosofia Euclides da Cunha O Vianna Silvio Romero Tobias Barreto enfim a geração de Capistrano de Abreu discutia darwinismo social luta pela vida seleção das espécies e defendia um conhecimento antimetafísico empírico histórico Chacon 1977 Wehling 1994 No entanto havia posições heterodoxas Tobias Barreto por exemplo opunhase ao cientificismo predominante opondo lhe o historicismo neokantista alemão Quando se trata do homem e da sociedade sustentava ele há sempre um resto que a mecânica não explica aliás esse resto mecanicamente inexplicável é quase tudo quando se trata do homem O que há então é um todo inexplicável Naquele ambiente spenceriano Tobias Barreto já era um culturalista um pioneiro historicista Não há leis para a história humana O pensamento brasileiro do final do século XIX portanto estava dividido A Escola de Recife mantinha a distinção entre natureza e cultura resistia ao cientificismo sociológico Este dominava a Escola Politécnica do Rio de Janeiro a Escola de Minas de Ouro Preto o Colégio Pedro II a Escola Normal o Colégio e a Escola Militares a Escola Naval as Faculdades de Medicina e Direito que formavam os profissionais liberais políticos intelectuais empresários impregnados de Comte Spencer e Darwin Chacon 1977 Wehling 1994 Capistrano Positivista ou Rankiano O pensamento de Capistrano revela essa divisão e confusão da discussão intelectual no Brasil no final do século XIX Qual era a sua tendência mais positivista ou mais historicista P M Campos afirma que Taine Buckle e Comte foram importantes na sua formação Chacon o considera um dos numerosos adeptos de Spencer da época Chacon 1977 Entretanto se a Escola de Recife era mais historicista fica um pouco difícil perceber a sua formação positivista em Recife Talvez quando foi para o Rio de Janeiro ele tenha tido um maior contato com os autores positivistas ingleses e franceses no Colégio Pedro II e ali também tenha sofrido a doutrinação dos debates positivistas Os analistas de Capistrano arrolados a seguir dizem mais ou menos o mesmo Campos 1983 Para Ricardo Benzaquen ele sempre se interessou teoricamente pelos sociólogos franceses ingleses e alemães A perspectiva sociológica influenciouo e ele lamenta que Varnhagen não a tivesse empregado ao não procurar leis na história do Brasil No Necrológio em 1878 já no Rio de Janeiro reafirmou a sua crença na possibilidade de se encontrarem leis para a história do Brasil Esperava um Spencer ou um Buckle da história do Brasil A sua obra é um ponto de referência da recepção da concepção moderna de história com o seu ideal objetivista de verdade apoiada em documentos inéditos testemunhas oculares autores identificados das fontes Para ele o distanciamento do historiador deve se dar quando manipula as fontes em um segundo momento quando as interpreta o quadro teórico das ciências sociais orientará a pesquisa com suas leis e teorias Araújo 1988 P M Campos afirma que ele se interessou por tudo o que saiu da Europa em particular pela bibliografia alemã assim como por economia política história da América e de Portugal psicologia que ele considerava indispensável ao historiador e geografia A influência alemã levouo ao estudo rigoroso dos documentos Capistrano quer também narrar o que de fato aconteceu Defendeu o realismo histórico alemão Entretanto esteve embebido pelas influências diversas não somente alemãs Aquelas características da sua obra estrita observação das fontes e pesquisa das relações do homem com o meio geográfico se partiram da Alemanha já pertenciam a todo o Ocidente Sua obra afirma Campos não permite uma avaliação do grau de influências recebidas Foram publicadas como artigos esparsamente e seus livros não possuem prefácios Só em sua correspondência se pode conhecer o que lia Essa correspondência aliás é um valioso material para a história das ideias no Brasil do final do século XIX e início do XX Nela Campos não percebeu nem preconceito nem exclusivismo cultural Capistrano nunca teria proposto uma explicação unilateral da história mas sempre percebeu a interdependência das diversas instâncias sociais Campos 1983 Para A Canabrava tal como em Varnhagen a exegese documental que ocupou muito do seu tempo parece inspirarse em Ranke Os dois se encontram na preocupação fundamental pelo documento pela busca da autenticidade pela verdade das fontes pelo esforço de análise objetiva Entretanto diferente de Varnhagen que não se interessou por teoria Capistrano que nunca saiu do Brasil tinha grande interesse pelas correntes do pensamento europeu no campo das ciências sociais Canabrava afirma ter encontrado em sua correspondência muitas referências a diversos teóricos europeus Taine Buckle Comte Ratzel Spencer Sombart Ranke Capistrano lia estudos empíricos e ensaios teóricos sobre assuntos variados Interessouse tanto pela história do clima e da Rússia como pela história do Brasil Foi um dos pioneiros da geografia humana Entretanto conclui Canabrava era teoricamente confuso não dominava vários conceitos que ao seu tempo as ciências sociais tinham formulado Faltoulhe uma problemática consistente que desse ao seu pensamento uma diretriz fundamental de interpretação faltoulhe enfim unidade teórica Ele apenas aflorou os grandes temas das ciências sociais sem dominálos Canabrava 1971 Para Wehling a influência cientificista é determinante na obra de Capistrano entre 1874 e 1880 A sua biografia intelectual começa no Ceará no círculo positivista formado por Rocha Lima Araripe Jr e Tomás Pompeu Filho entre outros O grupo atuava no sentido da educação do proletariado na linha comtista Escreviam em francês faziam conferências na escola popular que fundaram Capistrano escrevia artigos e pronunciava conferências sobre as influências positivistas de Spencer Buckle Comte e Taine Entre 1874 e 1883 enfim Capistrano rezava a cartilha cientificista unidade do real busca de leis deterministas evolucionismo cognoscibilidade e objetividade do conhecimento social unidade epistemológica das ciências sociais Wehling 1994 Entretanto Wehling considera que esse interesse pelas ideias positivistas se restringiu a uma fase inicial de sua formação Depois com o aprendizado do alemão ele teria passado do positivismo ao realismo histórico rankiano Optou pela pesquisa documental e pelo método crítico alemão que aliás ainda hoje é chamado impropriamente de positivista por causa da influência da escola dos Annales Reis 1996 Houve uma reviravolta em seu pensamento cuja data não é fixável A influência alemã o retirou do positivismo e o levou à hermenêutica Mas afirma Wehling não foram leituras teóricas que o retiraram do cientificismo como quer J H Rodrigues Para Wehling foi o estudo de documentos o primado do objeto que converteu Capistrano do cientificismo à ciência A rebeldia das fontes diante dos esquemas interpretativos fez com que ele os restringisse a hipóteses de trabalho O real era reconstruído a partir de sugestões científicas que conduziam ao levantamento dos fatos A composição e a interpretação desses fatos obedecem à lógica da situação histórica Capistrano tinha pouco interesse por problemas teóricos e metodológicos da história Na sua fase científica ele utilizou leituras europeias como sugestões temáticas como hipóteses de trabalho O seu interesse teórico na fase cientificista não teve consequências para a pesquisa que realizou e repercutiu na fase posterior Portanto para Wehling a resposta à questão sobre a orientação teórica de Capistrano é clara ele passou por duas fases uma primeira cientificista francoinglesa e outra científica alemã rankiana As suas grandes obras são da segunda fase Rodrigues considera que Capistrano fez uma reviravolta na historiografia brasileira por sua posição teórica atualizada seu conhecimento incomum dos fatos seu novo ideal de história do Brasil Os seus artigos de 1879 revelaram a influência positivista não só na investigação como na interpretação dos fatos da história do Brasil Ele era amigo de Teixeira Mendes e Miguel Lemos apóstolos comtistas no Rio de Janeiro Mas o convívio com autores alemães o faz ir à procura das realidades segundo ideais não positivistas Em suas obras mais importantes ele não deduz e generaliza tão facilmente Rodrigues precede Wehling em sua leitura da reviravolta no pensamento de Capistrano Sob as influências de Ranke Niebhur e Humboldt ele passará a dar ênfase aos documentos à sua crítica e interpretação sem buscar leis mas a compreensão Entretanto apesar da influência alemã sobrevive uma certa influência de Spencer Mas o positivismo ele passará a considerálo como uma camisa de força e a influência alemã será cada vez maior Ranke e Ratzel Ele recusa os determinismos geográfico climático e racial bem como o evolucionismo Historicista percebe que a vida em seu mistério pede um tratamento diferenciado da natureza Seus estudos sobre a história íntima festejos família procurando a diferença a individualidade as significações o afastam do que é típico regular constante A ação humana não se submete a regras e leis gerais Rodrigues 1963 e 1965 Deixando o positivismo passou a se interessar pelo método crítico que mais uma vez desde a Escola dos Annales é visto inadequadamente como a marca da história positivista Reis 1996 Mesmo se Spencer é forte e o será até os anos 1930 até G Freyre a influência alemã é que fundamentará as obras mais relevantes de Capistrano Historicista e não positivista o segundo Capistrano quer captar a interioridade dos testemunhos A história não é só fato é emoção sentimento e pensamento dos que viveram Mas se apreciava a metodologia de Ranke não seria capaz de se apagar para narrar os fatos tal como se passaram Rodrigues o considera a mais lúcida consciência da história do Brasil ele recriou o passado brasileiro enfrentando os seus males superandoos reabrindo o futuro do Brasil Rodrigues 1963 e 1965 Odália o vê como exemplar de uma interpretação do Brasil que por um lado privilegia o indígena por outro é mais um historiador brasileiro que importa teorias europeias e se dilacera para atender a essas teorias que condenavam o Brasil a um triste destino e para que este destino não se realizasse Por um ato de vontade e de contorcionismo teórico negase o destino prefixado pelos cientificistas europeus que afirmam a impossibilidade de uma nação civilizada nos trópicos e ainda por cima miscigenada Odália 1976 Capistrano no entanto será diferente da sua geração Ele reabrirá o futuro do Brasil vencerá o pessimismo existente entre os intelectuais brasileiros que olhavam o Brasil com as teorias deterministas europeias e nele não viam o que elas valorizavam embora ele também em uma primeira fase tivesse se impregnado de tais teorias e feito também algum contorcionismo teórico Finalmente ele optou pela teoria também europeia que valoriza a singularidade a historicidade de cada povo e formulou uma nova interpretação do Brasil que enfatizará o tempo histórico especificamente brasileiro Há atualmente uma tendência de se rever a sua posição pioneira na historiografia brasileira Alguns críticos reavaliam sua obra e consideram que teria havido em relação a ela uma sobrevalorização equivocada Para Laura de Mello e Souza Capistrano não teria sido tão renovador e fecundo como afirma a crítica historiográfica mais tradicional representada sobretudo por J H Rodrigues Era sem dúvida um erudito um desbravador com alguns momentos iluminados revelou novas fontes e fez uma leitura inovadora da história brasileira Mas tudo o que ele fez foi de raspão inacabado uma promessa não cumprida Eu ousaria dizer que Capistrano é um dos grandes mitos da historiografia brasileira Souza 19981121 Segundo ela mais importante para a redescoberta do Brasil teria sido a obra de Alcântara Machado Vida e morte do bandeirante uma obra realmente inovadora que já trabalhava com inventários e testamentos e que tratou do sertão melhor do que Capistrano E é uma obra genial apesar de obscura e injustamente desconhecida Mas os críticos da posição de Capistrano na historiografia brasileira fazem tais afirmações receosos conscientes de que estão cometendo algum tipo de heresia Sempre acrescentam e que fulano não me ouça afirmar isso Sabem que é uma avaliação polêmica não consensual Nossa posição é a da abertura a todas as avaliações e reavaliações Toda reavaliação crítica é fecunda pois possibilita o reexame e a rediscussão das obras clássicas Essa reavaliação da obra de Capistrano não é um despropósito um equívoco delirante Ela faz pensar Teria havido algo de realmente inovador em Capistrano Qual teria sido a sua verdadeira contribuição à historiografia brasileira Retomemos a sua obra Capítulos de história colonial Neste capítulo a nossa intenção é relêlo reavaliálo e redescobrilo A Redescoberta do Brasil Capistrano será um dos iniciadores da corrente do pensamento histórico brasileiro que redescobrirá o Brasil valorizando o seu povo as suas lutas os seus costumes a miscigenação o clima tropical e a natureza brasileira Atribuirá a este povo a condição de sujeito da sua própria história que não deveria vir mais nem de cima e nem de fora mas dele próprio O futuro do Brasil tornase tarefa do povo brasileiro e para melhor vislumbrálo Capistrano recupera o passado deste povo em suas lutas e vitórias Capistrano foi pioneiro na procura das identidades do povo brasileiro contra o português e o Estado imperial e as elites lusobrasileiras Seu papel na história do Brasil a significação da sua obra os caminhos novos que apontou os seus ideais e conceitos e sua contribuição à história colonial podem ser avaliados nos Capítulos de história colonial Ele não fez uma história exclusivamente políticoadministrativa ou biográfica mas procurou apreender a vida humana na multilateralidade de seus aspectos fundamentais Sua visão da história não atribui predominância a um fator sobre outros ele a vê como um conjunto complexo de fenômenos humanos Para ele como historicista o historiador deve recriar a vida integralmente realizar uma compreensão total e criadora do curso histórico O conceito de cultura substitui o de raça e nesse aspecto ele é precursor de G Freyre assim como de S B de Holanda Ele valoriza a presença indígena e pensa um Brasil mais mameluco do que mulato mais sertanejo do que litorâneo Nos Capítulos de história colonial aparecem os caminhos que levam ao sertão e o próprio sertão brasileiro Adentrando o Brasil o colonizador se alterou e se tornou uma personalidade distintamente brasileira Vivendo no interior do Brasil ilhado e sem vínculos contínuos com o litoral convivendo com os indígenas e a natureza brasileira foise constituindo um homem novo até então inexistente no mundo a história universal ganhava um novo personagem o brasileiro Mas enfatizando o sertanejo ele não perde de vista o nacional a unidade brasileira em suas diferenças regionais Ele não faz ainda uma história econômicosocial mas já trata do homem comum sobretudo nos capítulos finais do seu Capítulos de história colonial Seu grande tema foi o da ocupação do território a sua conquista pelo novo povo brasileiro O seu Capítulos de história colonial publicado em 1907 é uma nova história do Brasil embora muito parecida com Capistrano fisicamente modesta magra quase silenciosa Porém ao mesmo tempo extremamente eloquente É uma síntese que reúne muitos fatos esparsos encadeados em uma perspectiva inovadora Varnhagen escreveu uma obra de síntese também parecida com ele próprio isto é em cinco volumes Mas como síntese isto é como apreensão da totalidade como integração da multiplicidade sua obra é menos reveladora do que a de Capistrano Este escreveu uma obra magra a grandes traços e largas malhas contra os quadros de ferro de Varnhagen Seu interlocutor era Varnhagen a quem ele admirava e se opunha Capistrano escreveu o seu livro em um ano Seus analistas o consideram uma pequena obraprima da historiografia brasileira por sua linguagem simples por sua compreensão intuitiva da história do Brasil em seus fatos e em seu conjunto pela documentação segura e numerosa por seu interesse pelo povo durante séculos capado e recapado sangrado e ressangrado como afirma Rodrigues Ele pretendeu ensinar ao povo brasileiro o seu segredo ensinarlhe a sua história pátria numa época em que a história nacional era desprezada A sua cadeira de história do Brasil foi até extinta e ele posto em disponibilidade Enquanto a história de Varnhagen era uma conversa entre eruditos Capistrano divulgou com simplicidade o conhecimento da história do Brasil mais econômicosocial do que política liberta de datas nomes e eventos oficiais O Capítulos é uma história da luta dos brasileiros pela independência contra vicereis e governadores que os sufocavam Capistrano foi um homem de síntese uma síntese precedida de longas investigações Sua síntese toca em todos os pontos mais relevantes da vida brasileira é a mais viva e condensada história colonial do Brasil Tendo como personagem central o povo nela o indígena ganha um papel importante na formação do Brasil Para Capistrano o que houve de diverso entre o brasileiro e o europeu deveuse ao clima e ao indígena O brasileiro é o europeu que sofreu um processo de diferenciação graças ao clima e à miscigenação com o índio Interessalhe conhecer o que este povo sente e aspira Faz uma história social e econômica do povo sua vida alimentação tipos étnicos condições geográficas os caminhos povoamentos modos de viver formas psicológicas profissões divertimentos costumes crenças diferenças sociais comércio vida urbana e rural Sobretudo ele identifica este povo que no período colonial e mesmo imperial não sabe bem o que é o que faz e deveria fazer Ele revela o processo de constituição da diferença entre o projeto colonizador e o novo interesse e sentimento que se formaram gradualmente o interesse e sentimento brasileiros Varnhagen fez o elogio da vitória dos portugueses defendeu os interesses e os sentimentos lusitanos no Brasil e não via com bons olhos a diferença que volta e meia explodia entre esses valores e poder europeus e os autóctones Capistrano escreverá uma outra história do Brasil antiportuguesa antirreinol antieuropeia antiEstado Imperial antipolíticoadministrativa Ele ecoará as vozes de Antonil e dos rebeldes de todo o período colonial Redescobrindo o Brasil Capistrano fará o elogio da rebelião brasileira A Obra Capítulos de História Colonial Capítulos de história colonial começa com dois capítulos estáticos ou seja capítulos que apenas oferecem os dados da história que ele vai narrar e interpretar No primeiro capítulo intitulado Antecedentes indígenas Capistrano realiza uma descrição geográfica do Brasil o palco sobre o qual se desenrolará a história que vai narrar a partir do terceiro capítulo Começa pelos dados iniciais os mais elementares é preciso situar o Brasil onde fica limites a leste oeste norte e sul as suas dimensões Faz considerações sobre o relevo os acidentes e singularidades geográficos realizando uma espécie de mapeamento do território Como alguém que olha em volta identificando onde está e o que possui Em sua Corografia do Brasil aparecem as serras baías baixadas rios climas florestas fauna com uma avaliação sobre cada serra cada rio cada floresta cada animal Habitando esse território há o indígena também descrito em seus hábitos comportamentos atividades técnicas guerras vida sexual trabalho educação religiosidade artes lendas língua E também com avaliações o indígena domestica somente animais de estimação e não para o uso na vida cotidiana possui uma agricultura incipiente depende do trabalho das mulheres consideradas inferiores ao homem é nômade antropófago tem os sentidos apurados cultua os antepassados Os indígenas têm uma língua comum e vivem infelizmente dispersos porque o meio dispensa e impede a cooperação A natureza e os índios são portanto os temas dos Antecedentes indígenas primeiro capítulo da história colonial brasileira Capistrano faz uma descrição geográfica do Brasil e uma apresentação dos seus primitivos moradores Esses são os dados iniciais da história do Brasil que foram encontrados aqui A esses dois dados Capistrano acrescentará outros dois que não eram daqui mas aqui vieram parar o europeu e o africano A esses dois ele denominará elementos exóticos os alienígenas que serão os temas do segundo capítulo Nesses dois primeiros capítulos ao apresentar os dados iniciais da história do Brasil o palco natural e os personagens que atuarão sobre ele indígenas e alienígenas Capistrano se aproxima de Varnhagen na descrição do primeiro Brasil e Varnhagen é até mais informativo minucioso Capistrano diferenciase de Varnhagen na perspectiva que terá de tais dados Para Capistrano alienígenas exóticos são os europeus e africanos e não o indígena e a terra do Brasil Para vêlos assim ele se coloca no ponto de vista do indígena e da terra do Brasil que veem chegar novos e desconhecidos elementos Ele olha da praia para o oceano cheio de caravelas enquanto Varnhagen olhava da caravela de Cabral para a praia e via uma terra exótica povoada por alienígenas No segundo capítulo portanto ele faz ainda uma descrição estática isto é neles próprios dos fatores exóticos que desembarcaram no Brasil Descreve então a situação de Portugal no século XVI a sua transição conciliada da Idade Média para Moderna a Igreja com poder mais limitado mas ainda influente as relações entre o Estado português e Igreja seus atritos e proteções recíprocas a sociedade secular emergente que luta para limitar os poderes da sociedade religiosa ainda dominante Descreve a hierarquia social portuguesa do século XVI o rei a quem tudo pertencia e que tudo podia abaixo dele a nobreza com seu poder agora limitado pela centralização do poder real e o clero abaixo o povo a grande massa sem direitos pessoais sem grande importância abaixo ainda os servos escravos que podiam passar à categoria superior pois as classes não eram castas A nobreza o clero e o povo constituíam as cortes que o rei absoluto desdenhava e só convocava quando precisava aumentar os impostos A população portuguesa em 1527 era de mais ou menos 1122112 almas E ele formula a questão que a todos espanta como esse pessoal exíguo que nem enchia Portugal direito pôde povoar o mundo Capistrano antecipase a G Freyre e a S B de Holanda na descrição do caráter português fragueiro abstêmio imaginação ardente místico independente antidisciplinar não convencional de fala livre sem eufemismos o coração duro Matava por quase nada e cuidava pessoalmente da defesa da sua propriedade Suportava melhor a dor física do que a dor moral o ser fisicamente forte era valorizado Capistrano antecipa também aqueles dois autores dos anos 1930 na resposta àquela questão por ser assim só esse povo foi capaz de se misturar com outras etnias e culturas O português é o primeiro elemento exótico o primeiro imigrante o invasor conquistador e colonizador O segundo elemento exótico é o negro Ao português estranho ao continente juntouse o negro também alienígena A importação deles começou cedo Eram robustos resistentes e substituíram o índio no trabalho rude Tinham uma índole carinhosa sobretudo os domésticos O negro trouxe alegria ao lado do português taciturno e sorumbático Suas danças lascivas suas feitiçarias e crenças propagaramse entre os brancos Mulatas tornaramse rainhas Em relação ao negro Capistrano é menos estático não se refere a eles somente no século XVI ao estado em que se encontravam ao chegar Tampouco se refere aos negros na África como aos portugueses em Portugal Já no segundo capítulo fala deles indo do século XVI até o século XIX 1850 e a abolição muito brevemente Mas o espírito é o mesmo o de uma apresentação do personagem negro e do papel que ele terá na história do Brasil Talvez menos estático em sua apresentação do negro porque ao longo da obra será muito reticente quase silencioso sobre ele Na apresentação já esgotou tudo o que queria dizer sobre o negro Este entrará em sua história em rápidos momentos sem qualquer peso histórico Vai interessarse mais pelas relações entre brancos e índios e pelo seu mestiço o mameluco sertanejo Finalmente no terceiro capítulo intitulado Os descobridores os elementos anteriormente estáticos se animam o português chega àquela geografia e encontra aquele índio Por que os portugueses vieram parar no Brasil Esta é a primeira questão posta por aquele que deseja compreender a história desenrolada no Brasil Os portugueses vieram porque a posição geográfica de Portugal destinavaos à vida marítima queriam encontrar o imperadorsacerdote PresteJoão para têlo como aliado na luta contra os infiéis as especiarias orientais davam altos lucros no mercado europeu Com essas motivações geográfica religiosa militar e comercial os portugueses atiraramse ao oceano ao longo da África procurando um caminho marítimo para as Índias que os levasse a obter os produtos diretamente evitando as rotas comerciais controladas pelos inimigos infiéis As teorias cosmográficas eram limitadas na época O périplo africano era tido como impossível e a via ocidental também Contra as autoridades e evidências portugueses e espanhóis tentaram a via meridional africana e a via ocidental Os portugueses chegaram às Índias e ao Brasil e os espanhóis à América Os espanhóis aliás estiveram no Brasil antes dos portugueses mas sua presença aqui não teve consequências Interessanos portanto afirma Capistrano Cabral e os portugueses já que o Brasil se tornou lusitano A presença espanhola inicial foi irrelevante para a história do Brasil Descreve então varnhagenianamente a aventura de Cabral partiu em 1500 com 13 caravelas chegou no dia 21 de abril Foram dias e espetáculos extraordinários Celebraram uma missa hastearam uma cruz Caminha escreveu a sua famosa carta Vieram depois novas expedições para explorar a Ilha de Vera Cruz Os naturais aparecem sob nova luz selvagens rancorosos antropófagos material mais de escravatura do que de conversão Capistrano põese no lugar do português que chega procura sentir suas expectativas e medos Mas não permanece nesse lugar ele o ocupará às vezes para melhor compreender a sua ação Com a exploração do paubrasil a terra passou a se chamar Brasil Havia outros nomes concorrentes Terra dos Papagaios Ilha de Vera Cruz Terra de Santa Cruz O comércio de paubrasil levou à fundação de feitorias O Pacífico foi descoberto ou seja visto pela primeira vez pelo europeu em 1520 E Colombo chegou finalmente às Índias Nesse primeiro Brasil o que havia era o pau homônimo papagaios escravos e mestiçagem As índias queriam a mestiçagem pois desejavam filhos da raça superior Só o pai conta para a descendência indígena E os presentes dos brancos e talvez esta seja a verdadeira razão do interesse das índias pelos brancos eram irresistíveis anzóis pentes facas tesouras espelhos Quanto aos portugueses não tinham outra escolha a não ser a índia pois branca não havia Os primeiros colonos do Brasil eram degredados desertores náufragos Uns se tornaram índios outros os combateram outros se indianizaram sem perder a identidade europeia Assim Capistrano descreve a chegada dos portugueses ao Brasil à Varnhagen fotografou os fatos mais miúdos descrevendoos detalhadamente Junto com eles outros personagens exóticos e alienígenas chegaram franceses holandeses ingleses que ameaçarão a descoberta portuguesa Portugal argumentava que a terra era sua por decisão papal Entretanto a presença dos outros alienígenas representava uma concorrência séria eles vendiam os mesmos produtos e mais baratos na Europa e incitavam os índios contra os portugueses Os tupinambás se aliaram aos franceses Durante décadas não se soube se o Brasil pertenceria aos portugueses ou aos franceses As armadas guardacostas eram caras e ineficientes Conversas diálogos embaixadas e tratados não adiantavam Só restava uma solução para afastar os outros invasores ocupar a terra Em 1531 Martim Afonso de Sousa veio fazer duas coisas povoar e guardar o litoral Fundou a primeira cidade São Vicente e uma segunda Piratininga Pressionados os portugueses tiveram de agir rapidamente criaram um sistema monumental de capitanias hereditárias estimularam a emigração para o Brasil A alta nobreza não aceitou o empreendimento que ficou com a pequena nobreza O rei cedeu parte do seu poder aos donatários Estes ficaram fortalecidos para enfrentar o estrangeiro e o sesmeiro A história do Brasil no século XVI se passou em trechos exíguos de Pernambuco Bahia São Paulo bem próximos do litoral A energia dos donatários continha a turbulência dos colonos Surgiram canaviais e engenhos lavouras de mantimentos pescavase fartamente na costa Entretanto se o sistema de capitanias hereditárias protegia ocupava e povoava a costa com a miscigenação ele levou alguns donatários à falência Além disso cada capitania era soberana estrangeira uma em relação à outra Não havia uma ação coletiva mas concorrência Os crimes cometidos em uma capitania não eram punidos em outra Havia uma anarquia intercapitanial além da anarquia intracapitanial O rei decidiu criar uma capitania real e enviou um representante seu Estabeleceuse em 1549 um governo central para o Brasil forte o bastante para garantir a ordem interna Vieram os primeiros jesuítas que depois dariam tanto trabalho A preocupação já no século XVI era com a unidade da colônia que o sistema de capitanias ameaçava O regime de Capitanias e Governo Geral significou o início da vitória portuguesa O Brasil seria português tudo indicava Entre 1580 e 1640 o trono português esteve sob o domínio espanhol por razões dinásticas Mas o domínio espanhol não comprometeu a vitória portuguesa no Brasil Pelo contrário favoreceua Com o apoio espanhol os portugueses ocuparam a Amazônia e expulsaram franceses e holandeses do Norte e Nordeste do Brasil Capistrano faz então um primeiro balanço dessa história chegando ao final do século XVI Nessa época o povo era constituído por três raças vindas de continentes diferentes e seus respectivos mestiços Eram desafetos Tanto entre elas quanto entre os mestiços entre si O negro ladino e crioulo desprezava o boçal o índio catequizado o nu o reinol o mazombo Forças dissolventes centrífugas dominavam a sociedade colonial do século XVI Só havia a percepção da diferença e não a da unidade Esta era garantida à força pelos portugueses que ocupavam povoavam miscigenavam e expulsavam Os índios os temiam ao mesmo tempo que eram fascinados pelos portugueses seus equipamentos de caça pesca guerra vestuário e objetos coloridos e brilhantes Mas faziamlhes guerra Os negros dominados oprimidos escravizados e estrangeiros viviam sob a hostilidade constante do português Hostilidade talvez atenuada pela solidão do branco que o forçava a aproximarse das negras assim como das índias Os índios fugiam para a floresta os negros chegavam algemados e humilhados Os brancos armados de espadas e terços humilhavam ofendiam estupravam escravizavam e exterminavam índios negros e mestiços de uns e outros além de expulsar brancos de outras nacionalidades e religiões Poderia sair uma nação daí Haveria alguma possibilidade de unificação de interesses e sentimentos tão diferentes de mentalidades separadas por um abismo abismo aprofundado progressivamente pela escravidão e pela guerra Capistrano oferece uma resposta otimista devagar ele afirma ao longo do século XVII essa dispersão geral foi cedendo lugar a uma possível união brasileira Para a constituição da unidade do povo brasileiro as guerras holandesas entre 1624 e 1654 foram decisivas Depois delas a história universal possuía um novo personagem um povo novo Os holandeses foram obrigados a invadir o Brasil porque antes da anexação do trono português ao espanhol em 1580 eram eles distribuidores dos produtos exóticos portugueses na Europa Mas inimigos da Espanha após 1580 eles foram impedidos de realizar esse comércio Decidiram então vir buscar os produtos diretamente no Brasil Quem sabe poderiam encontrar um jeito de chegar por via terrestre até o Peru isto é às riquezas espanholas Os holandeses atuavam através de duas companhias de comércio a das Índias Orientais que explorava o Oriente em detrimento dos interesses lusoespanhóis e a das Índias Ocidentais fundada em 1621 nessa circunstância da União Ibérica para explorar a África os Estados Unidos as Antilhas e o Brasil Para obter diretamente os produtos brasileiros essa companhia invadiu o território colonial ibérico Capistrano descreve os avanços e recuos da guerra contra os holandeses à Varnhagen detalhadamente com o ritmo de um contemporâneo de uma testemunha ocular Entretanto após 1640 com a separação dos tronos português e espanhol os holandeses já instalados em Pernambuco permaneceram Começou então o irredentismo brasileiro que exigiu a unificação das forças até então divergentes Um forte elemento de união foi a fé católica contra o herege O catolicismo nativo se exacerbou O ataque aos holandeses se fez em nome de Cristo Índios negros e mestiços diversos participaram vivamente da luta As vitórias lusobrasileiras se sucederam Os portugueses que havia muito estavam tendo prejuízo no Oriente finalmente optaram pelo Brasil e enviaram reforços Os patriotas expressão de Capistrano aceitaram os reforços portugueses p 118 Para ele a vitória contra os holandeses só foi portuguesa sob alguns aspectos Na verdade entre 1621 e 1654 quando Portugal optava pelo Brasil e o defendia mais vigorosamente dos ataques estrangeiros começava a perder o controle sobre o Brasil Um século e meio depois do seu descobrimento o Brasil era redescoberto por sua nova população Surgia o brasileiro depois de 1654 Essa guerra e esta vitória serviram para revelálo a si mesmo Havia um sentimento patriótico não português original novo brasileiro Vencia o espírito nacional Reinóis mazombos índios negros mamelucos mulatos curibocas mestiços de todos os matizes combateram pela divina liberdade Sob a pressão externa e apoiada na fé católica operouse uma solda superficial imperfeita mas um princípio de solda entre os diversos elementos étnicos vencedores dos flamengos Os combatentes de Pernambuco sentiamse um povo e um povo vencedor que já possuía os seus próprios heróis p 119 Passado o primeiro momento os reinóis tentarão reassumir a sua atitude de superioridade e proteção Entretanto data de meados do século XVII a irreparável e irreprimível separação entre pernambucanos brasileiros e portugueses Portanto se o século XVI terminara com uma tendência à dispersão e à fragmentação o século XVII terminou com uma tendência da população nativa não só à integração como à formação de uma nação independente A vitória contra os holandeses foi para os portugueses uma vitória de Pirro ganharam mas começaram a perder tudo Se os portugueses tinham conquistado o litoral os novos brasileiros conquistarão o sertão Os portugueses continuaram a viver no litoral e a controlar a vida ali os brasileiros adentraram o território conquistandoo ocupandoo povoandoo Capítulos de história colonial pode ser dividido em duas partes até as guerras flamengas oitavo capítulo Capistrano faz uma história do descobrimento do Brasil de tipo varnhageniano depois passa a fazer um novo tipo de história do Brasil Não só mudou o sujeito da história do Brasil Com a mudança do sujeito mudaram os temas alterouse o objeto e até mesmo a forma da história Até ali estávamos ainda na velha história políticoadministrativa metropolitana do descobrimento do Brasil Aqueles dados apresentados daquela forma já estavam em Varnhagen A primeira parte dos Capítulos de história colonial é quase uma síntese de Varnhagen embora o olhar não fosse mais da caravela sobre o litoral mas da praia em direção à frota Essa diferença na direção e posição do olhar presente na primeira parte liga esta à segunda impedindo que entre ambas haja uma ruptura O que não estava em Varnhagen e marca a originalidade de Capistrano é a percepção do surgimento do novo povo e a adesão ao seu sentimento e interesse ao seu projeto político Tal percepção foi possível porque desde as primeiras páginas do livro seu olhar já estava em outra posição e tinha outra direção As elites saem da história entra o povo brasileiro conquistando o sertão vivendo longe do rei O sertanejo é aquele que vive distante do rei autônomo soberano orgulhoso No nono capítulo intitulado O sertão Capistrano passa a analisar mais do que a descrever passa a fazer um esboço de história econômicosocialgeográficacultural da conquista do Brasil do seu interior pelos brasileiros A ocupação do interior não se deu somente após a vitória contra os holandeses Ela já vinha ocorrendo desde 1530 com a fundação de Piratininga e as entradas pelo Tietê em direção ao Prata A vitória contra os holandeses só revelou nitidamente essa nova identidade nacional Capistrano irá procurar perceber a sua formação longínqua muito anterior a esse episódio histórico litorâneo porém decisivo Aquela vitória foi como uma ponta de iceberg sinalizou a existência de um mundo histórico invisível mas que durava desde o século XVI Capistrano mergulhou perto dessa ponta de iceberg e desceu às bases dessa massa de gelo para descobrirlhe o início a profundidade a espessura a densidade De 1654 a ponta ele descerá até 1530 a base quando os paulistas começaram a entrar pelo interior do Brasil Bosi 1992 São Vicente e Piratininga foram um dos polos de onde partiram os brasileiros para a conquista do sertão Os bandeirantes iam caçar e escravizar índios Os paulistas são sobretudo mamelucos e Capistrano vê o povo brasileiro mais como um mestiço de índio e branco O mestiço de negro e branco é litorâneo e pertence ao mundo português Capistrano descreve os ataques bandeirantes aos indígenas e jesuítas e a resistência de uns e outros Os bandeirantes foram terríveis em suas caçadas A ação bandeirante já é uma ação da gente brasileira não é mais uma história portuguesa As primeiras ações brasileiras se destacaram pela violência e brutalidade contra os indígenas O brasileiro continuou a ação colonizadora e cristianizadora do português e usando os mesmos métodos Darci Ribeiro escreveu recentemente que os bandeirantes ou mamelucos paulistas foram vítimas de duas rejeições básicas A dos pais brancos com os quais queriam identificarse mas que os viam como impuros filhos da terra dos quais somente aproveitavam o trabalho e a do gentio materno que não valorizava a descendência da mãe Não podendo identificar se nem com brancos e nem com índios não tendo ancestrais portanto o mameluco cairá na terra de ninguém a partir da qual constrói a sua identidade brasileira Filho de índia ele se torna um caçador e escravizador de índios de sua gente Mameluco esclarece Ribeiro era o nome dado ao escravo árabe treinado para exercer o mando islâmico sobre a gente da qual tinha sido tirado Ribeiro 1995 Filhos de índias os paulistas agirão contra seus parentes com rara violência serão capitães do mato feitores de índios Invadirão as missões para prender os seus índios Capistrano não aprecia a história que conta analisa e se pergunta compensará tais horrores a consideração de que graças aos bandeirantes pertencem agora ao Brasil as terras por eles devastadas Eles voltavam a Piratininga com índios prisioneiros amarrados por coleiras uns aos outros Estes eram vendidos como escravos As mulheres índias eram estupradas conforme o costume Os jesuítas tentaram de tudo para que os índios fossem poupados Em vão Os jesuítas é que foram expulsos Os bandeirantes eram vistos como amansadores pacificadores de índios Circulavam por todo o Brasil levando a guerra ao povo de suas mães Entretanto alguns se fixaram e passaram de devastadores a colonizadores do interior do Brasil vivendo com o que o sertão lhes oferecia Outro polo foi o Maranhão de onde os brasileiros entraram pela Amazônia fazendo a mesma devastação do indígena Fundaramse engenhos plantaramse algodão e fumo Na Amazônia os brasileiros combateram holandeses ingleses e franceses A penetração da Amazônia foi lenta Era uma região com forte presença de jesuítas carmelitas e franciscanos Fundouse Belém do Pará Eram coletados os produtos florestais cravo canela cacau salsa A Amazônia teve uma prosperidade relativa com a cultura do arroz e do algodão e a introdução de escravos negros A população crescia lentamente O Maranhão estava no entanto muito longe do Sul do Brasil e foi preciso criar o estado do Maranhão em 1621 A comunicação com o Brasilsul era feita pelo Parnaíba mas foi preciso também construir estradas Portanto a partir de Piratininga os brasileiros desceram até o Prata e subiram até a Bahia passando por Minas Gerais foram ao Mato Grosso e Amazônia a partir do Maranhão os brasileiros entraram pela Amazônia e desceram pelo sertão nordestino A conquista do território se fez à custa da expulsão do extermínio e da escravização do indígena Os engenhos de açúcar o fumo e as roças de mantimentos só vingaram próximo de rios navegáveis Capistrano não aprecia esse início da história brasileira que lhe parece tão violento quanto a história que os portugueses faziam Em 1680 ele afirma a lei portuguesa proibia que os índios fossem escravizados única solução lógica e justa se houvesse gente bastante honesta e enérgica para fazêla respeitada p 141 Diferentemente de Varnhagen e G Freyre que viam os jesuítas como pseudofilantrópicos Capistrano se posiciona francamente ao lado deles na proteção ao indígena contra a guerra contra o seu extermínio e escravidão Um terceiro polo de ocupação do território brasileiro foi a agropecuária A criação de gado começou em torno de Salvador e ao longo do rio São Francisco Aos poucos foi se afastando das margens do rio e se adentrando pelos mais profundos sertões da Bahia Pernambuco Minas Gerais Há os sertões de dentro baianos e os sertões de fora pernambucanos Nas vastas regiões interiores dominadas pelo gado foi também o mameluco que predominou São regiões impróprias para o cultivo O gado prosperou ali exigindo pouco capital pouco pessoal fornecendo alimentos para as regiões exportadoras O conflito com os índios foi menor pois o fazendeiro não é nômade nem caçador de índios Desde que estes cedessem suas terras e não comessem do gado as relações entre eles e os brancos se estabilizavam Com o gado caminhos novos foram abertos levando ao mais fundo Brasil Os brasileiros da pecuária viviam com recursos escassos Só comiam carne leite frutas e mel Faziam tudo de couro portas camas cordas alforjes mochilas roupas malas O vaqueiro recebia uma cria de cada quatro crias depois de quatro a cinco anos de serviço Podia com o tempo fundar a sua própria fazenda Vaqueiro homem de fazenda criador são títulos honoríficos entre eles A fazenda tornouse aos poucos um centro familiar com grandes e confortáveis casas Nos caminhos do gado para a cidade onde ele era vendido populações se estabeleceram povoados surgiram Essa população distante era também muito católica e de vez em quando recebia padres Entretanto vivia entregue a si O Estado demorou a se instalar com juízes milícia e administração O mundo da pecuária era também um mundo de violências com bandoleiros onde era comum a vingança Era um mundo de liberdade sem escravos semipovoado vasto abundante familiar e violento Além dos polos de São Vicente Piratininga e de São Luís do Maranhão para ocupar o interior da Bahia Minas Goiás e o Nordeste com o gado outro polo de ocupação e povoamento do território brasileiro foram as minas Foi graças à pecuária por um lado e à caça do indígena por outro que as minas foram descobertas Não se pretendia achar ouro e pedras preciosas mas prata já que esta fora encontrada em Potosi E no Brasil deveria até ser mais abundante a prata se o Oriente for mais nobre do que o Ocidente como se acreditava que fosse O ouro foi encontrado sem ser muito procurado Os paulistas acabaram por encontrálo no final do século XVIII nas regiões de Minas Gerais e Mato Grosso Ouro Preto Mariana Rio das Mortes Rio das Velhas Paracatu e Cuiabá Os bandeirantes tornaramse então mineiros Pouco a pouco tudo era enviado para as minas vindo de todas as partes do Brasil e da Europa Houve uma corrida Com o crescimento das minas uma parte do sertão do Brasil tornouse português O rei voltou a controlar o Brasil Os tributos aumentaram a circulação da população foi controlada a exploração do ouro foi disciplinada em favor da Coroa Na Bahia por estar mais próxima do litoral a exploração do ouro foi proibida As minas se tornaram um sertão não brasileiro não mameluco mas português dominado pelo branco e pelo negro e o seu mestiço Nesse sertão mineiro o domínio português tornouse tão severo que os sentimentos patrióticos brasileiros se tornaram mais agudos Os brasileiros na expansão por seu território já estavam acostumados a ficar distantes do rei e tinham gostado A sua reaproximação foi tão opressiva que desencadeou os movimentos pela independência No final do século XVIII a solda que unia os diversos grupos da nação brasileira se consolidou A consciência patriótica brasileira se aprofundou O rei e sua lei opressora e repressiva foram contestados em diversos pontos do país exatamente naqueles pontos em que já existia uma população brasileira assentada com interesses e sentimentos próprios antilusitanos Maranhão Pernambuco Bahia Minas Gerais São Paulo Os triunfos contra os estrangeiros as proezas dos bandeirantes a abundância de gado animando os sertões as minas de ouro e diamantes e outras pedras preciosas as riquezas remetidas à metrópole o crescimento da população afirma Capistrano influíram sobre a psicologia dos colonos As descobertas auríferas foram a gota dágua vieram completar a obra Os brasileiros não se sentiam mais inferiores aos nascidos na metrópole não eram mais os humildes mazombos do século XVI Tal mudança os filhos da metrópole não reconheciam O reinol é visto então como um miserável que vinha enriquecer aqui Começaram os conflitos entre brasileiros e portugueses A consciência brasileira formouse lentamente durante três séculos No final do terceiro já era sólida o bastante para ser formulada e expressa e dar legitimidade à ação emancipacionista Os brasileiros se sentiam sustentadores da Coroa e espoliados por sua opressão Em Minas houve o conflito dos Emboabas 170709 em Pernambuco o conflito dos Mascates 170910 Capistrano descreve esses conflitos como se fosse uma testemunha ocular O século XVIII é o século do conflito aberto entre brasileiros e portugueses Entre as agitações sociais apareceu um livro que agitaria os brasileiros ainda mais ao oferecerlhes argumentos e força para continuar em sua luta independentista Tratase do livro Cultura e opulência no Brasil por suas drogas e minas do jesuíta André João Antonil que o próprio Capistrano descobriu tratarse do anagrama de João Antônio Andréoni L luquense estabelecendo a sua autoria O livro fala dos engenhos de açúcar da produção de fumo das minas e do gado Ele oferecia os primeiros números sobre o Brasil Logo foi confiscado pela metrópole pois estaria divulgando para os estrangeiros os segredos do Brasil Mas contesta Capistrano a verdade é outra o livro ensinava o segredo do Brasil aos brasileiros mostrando toda a sua pujança justificando as suas pretensões Confiscado proibido o segredo do Brasil chegou aos brasileiros por outras vias apareceram exaltações às riquezas do país exaltações à nobreza brasileira às suas elites exaltações do índio como superior aos portugueses e negros exaltações da natureza da fauna e flora do Brasil Por toda parte o segredo do Brasil era revelado A diferenciação em relação ao reinol antes gradual inconsciente e tímida aceleravase tornavase mais consciente resoluta e irresistível A vitória brasileira seria uma questão de tempo No décimo capítulo Capistrano trata dos limites do território brasileiro Um povo novo precisa de um território bem delimitado Serão ainda os portugueses que discutirão com os espanhóis e franceses e assinarão tratados instáveis que serão sempre rediscutidos Na região do Prata espanhóis e portugueses trocaram e destrocaram territórios segundo vários tratados A negociação do território dos seus limites foi feita ainda pelos portugueses Mas para defenderem tais territórios os portugueses tinham um argumento quase sempre irretorquível já tem gente brasileira instalada na Amazônia no Sul e Centro Oeste isto é o território já foi de fato conquistado ocupado e povoado por gente brasileira Os limites já estavam definidos concretamente e os tratados só reconhecerão o povoamento já realizado Será dentro desses limites agora legitimados pelo direito que se instalará o povo brasileiro No capítulo 11 Capistrano faz um balanço final e tenta uma definição geral do povo brasileiro do seu estado ao término do século XVIII Aqui Três séculos depois é o título do capítulo Capistrano fará um levantamento e a radiografia da população brasileira número tipos repartição caminhos atividades alimentações festas feiras roupas personalidades costumes infraestrutura urbana relações sociedadeEstado nível da consciência política Quanto ao número a população brasileira já era contada em milhões Ela se concentrava no litoral e nas margens dos rios que entravam pelo interior A maioria é mestiça variando a mestiçagem de região para região No interior predominava o mameluco no litoral e minas o mulato Os negros eram maioria no litoral e apesar das fugas e quilombos eram em menor número no sertão No Sul os brancos eram mais numerosos Capistrano referese às diferentes atividades regionais às diferentes dietas Na Amazônia extraíamse produtos florestais comiase peixe e se superexplorava a tartaruga a vaca amazônica o gado do rio Na zona pastoril muita carne e escassez de água que é salobra ótima para o gado Bebiase garapa comiase milho verde Havia festas sertanejas Capistrano descreve o vestuário doméstico e domingueiro a vida das mulheres solteiras e casadas Nas Minas havia abundância de padres irmandades havia o gosto pela música nas cidades As festas religiosas eram numerosas e teatrais luxuosas Capistrano compara o caráter dos brasileiros regionais O mineiro ele o descreve assim esbelto magro peito estreito pescoço comprido rosto alongado olhos negros e vivos orgulhoso e afável brando e cavalheiro não se apegam ao seu país são inteligentes sobrevivem em qualquer ambiente O paulista assim de pequena estatura cabelo louro face pálida olhos indígenas corajoso ágil incansável vingativo franco colérico amante do perigo Sua cor de pele varia dependendo do grau de mestiçagem indígenabranco Ele descreve ainda o baiano o goiano o matogrossense o gaúcho Quanto às cidades coloniais ele se refere às portuárias as mais importantes São Luís Recife Salvador Rio de Janeiro Nessas cidades litorâneas o mulato predominou Os negros eram numerosos com sua alegria nativa seu otimismo persistente sua sensualidade animal suportando bem o cativeiro Os negros ele afirma nunca ameaçaram a ordem de modo sério Trabalhavam cantando para aliviar o peso do trabalho e bandos de carregadores negros davam animação às ruas Os mulatos são mais rebeldes dentre eles saíam os capangas e assassinos Crescendo em número descoloriram extinguindose as distinções de raça Os brancos eram oprimidos pelo convencionalismo as crianças cedo perdiam toda vivacidade e espontaneidade Os reinóis tratavam com desdém a terra e os seus moradores eram grosseiros desonestos prepostos dos ingleses O capítulo 11 portanto é um balanço quase completo do Brasil no final do século XVIII Capistrano fala ainda da arquitetura urbana dos modos à mesa do comportamento das mulheres da vida social o ritual da visita das ruas e do inexistente saneamento básico cuidavam da limpeza urbana o sol as chuvas e os urubus da indústria cerceada pela metrópole etc O Brasil não é ainda independente mas se inquieta e aspira a sêlo Ele está prestes a tornarse independente Entretanto Capistrano surpreende o leitor no final da sua exaltação da vitória brasileira Depois de se mostrar entusiasmado com as expressões do sentimento patriótico entre os brasileiros termina a sua síntese cético em relação ao futuro deste novo povo Para ele a vida social não existia pois não havia sociedade As questões públicas não interessavam No máximo se sabia se havia guerra ou paz É duvidoso que tivessem uma consciência nacional e até mesmo capitanial Algum leitor de livros estrangeiros poderia falar de independência porque soubera do caso norteamericano e conhecia a pobreza e fraqueza lastimáveis de Portugal Não se procurava porém o meio de conseguir tal independência vagamente conhecida tão avessa era a índole do povo a questões práticas e concretas Divagavase sobre o que se faria depois de conquistála por um modo qualquer acontecimentos imprevistos o que afinal ocorreu Como em todas as revoltas anteriores não se sabia o que se faria com o poder na mão Enfim conclui ele no início do século XIX a população brasileira era constituída por cinco grupos étnicos ligados pela comunidade ativa da língua e passiva da religião moldados pelas condições geográficas de cinco regiões diferentes e tendo pelas riquezas materiais grande entusiasmo eis a que se reduzira a obra de três séculos Final paradoxal Ao longo do texto temse o elogio da expansão e conquista do território brasileiro pelos brasileiros Apesar de ser difícil distinguir os interesses e sentimentos dos brasileiros e dos portugueses no período colonial Capistrano esforçase por definir uma brasilidade apesar da dominação portuguesa e contra ela Brasilidade que começa com a fundação de São Vicente e Piratininga que cresceu com as bandeiras com a ocupação da Amazônia com o gado e as minas Brasilidade que se exaltou durante o século XVIII e se expressou através de rebeliões diversas sangrentas Brasilidade de uma população numerosa mestiça com os seus modos próprios de viver e pensar com as suas atividades econômicas específicas adaptadas a regiões diversas Apareceu até um livro que formulava precocemente esta brasilidade e que foi apreendido por esta razão E no final um ar de decepção de malogro patriotas incapazes de produzir a sua própria independência É como se a conclusão que ele apresentara para o século XVI um Brasil dominado por forças centrífugas divergentes valesse também para o final do XVIII Capistrano talvez esperasse mais desse povo que soube acompanhar ao longo de três séculos que ele fosse sujeito de fato da sua autonomia que ele fosse um sujeito historicamente eficaz O final revela uma expectativa não realizada um esforço frustrado A revolução brasileira não passou de um espírito e não se encarnou não deu nascimento a um novo mundo histórico Capistrano passa do elogio à vitória brasileira a um tom crítico em relação ao novo povo brasileiro que se constituía ele esperava mais ação mais vontade e determinação mais eficácia histórica Capistrano expressará melhor este seu ponto de vista em outro texto Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil Nele ele constata e pergunta no princípio do século XIX o Brasil já estava ligado por meio de vias terrestres e fluviais chegouse a formar um conjunto uma nacionalidade Para ele o sistema colonial produzia a divergência interna o particularismo O centro ficava alémmar Somente depois da independência é que começou o processo de unificação a convergência das partes Apesar das mudanças realizadas este processo se deu naturalmente em uma evolução gradual lentamente Após a independência a nação ficou tão cimentada em sua união que desafiou as crises da regência e se consolidou ainda mais no Segundo Reinado A ideia de uma nação brasileira realizouse finalmente mas ela esteve perto de esvairse como em um sonho Seu final paradoxal é no entanto lúcido os brasileiros e pelas razões por ele apontadas não se sentiam em condições de assumir o país plenamente isto é revolucionariamente Eles viveram os três séculos coloniais na dispersão em muitos engenhos minas fazendas cada um desses núcleos econômicosociaisculturais com sua própria lei e seu próprio senhor Entretanto essa ideia da revolução brasileira que Capistrano concebeu e descreveu no período colonial quando nascia será tematizada por todos os historiadores posteriores a Capistrano que se inserem na linha aberta por ele da redescoberta do Brasil Poderia ter sido acelerado o tempo histórico do Brasil pelos brasileiros no final do século XVIII produzindo uma verdadeira independência econômicosocialmental além de política Seu ceticismo revela a compreensão dessa impossibilidade histórica É um sentimento posterior à exaltação que se frustrou uma recusa apaixonada decepcionada do sonho E depois uma constatação do que de fato ocorreu a vinda da Corte para dentro e a consolidação da unidade brasileira em termos lusobrasileiros aceitandoa e legitimandoa Era essa a única revolução independentista possível Pelo menos essa felizmente se realizou e a nação brasileira se concretizou antes de esvairse em um sonho Seu sentimento parece ter passado por três fases primeira o elogio da rebelião da luta e da vitória brasileira durante três séculos segunda decepção e frustração com a não concretização do que parecia maduro a independência feita pelos patriotas brasileiros terceira a aceitação e legitimação da independência possível liderada pelo Estado português pela família real portuguesa pois assim pelo menos a unidade territorial e nacional foi preservada Capistrano é enfim um antivarnhageniano Nos anos 1900 a história que se faz no Brasil começa a diferenciarse dos quadros de ferro do IHGB e de Varnhagen Capistrano ainda não faz uma história plenamente econômicosocialmental mas também não faz mais somente uma história políticoadministrativa e biográfica Para A Canabrava ele se coloca entre duas concepções de história a história como narrativa do empírico que tem em Varnhagen seu representante maior e a história no quadro das ciências sociais que se fará no Brasil pós1930 Capistrano representaria um elo entre a geração do século XIXIHGB e a geração do século XXuniversidades Canabrava 1971 Capistrano se aproxima de Varnhagen também nos seguintes pontos faz ainda uma história factual relatando os feitos dos portugueses em sua conquista uma história cheia de nomes e datas de eventos contados em um ritmo quase diário Isso vale sobretudo para os primeiros capítulos de Capítulos de história colonial Ele dá ênfase à documentação escrita e bem criticada e seu estilo é ainda descritivo e narrativo Mas diferenciase enormemente de Varnhagen não faz mais uma história oficial ligada ao Estado sua história não é só políticoadministrativa mas também social e cultural E a diferença maior não faz um elogio da conquista e colonização portuguesa mas da conquista e colonização do Brasil pelo brasileiro mestiço não relata a conquista do litoral mas a ocupação do interior o sujeito da história do Brasil não é mais o europeu branco cristão e súdito do rei mas o brasileiro mestiço ainda cristão mas sem uma expressão política clara não faz uma história da constituição da identidade brasileira em moldes europeus mas busca as identidades brasileiras no interior no sertão e nas rebeliões Finalmente o abismo que os separa está na concepção do tempo histórico do Brasil Varnhagen não distinguiu bem os períodos da história brasileira e se perdeu em inúmeros fatos dominados pelo sentido maior do elogio da colonização portuguesa Esse sentido maior nunca foi seriamente contestado e Varnhagen não percebeu as mudanças na história do Brasil Capistrano elaborou a seguinte periodização da história do Brasil 15001614 ocupação do litoral guerra contra os franceses escravização do indígena 16141700 povoado o litoral início da internalização pelos rios 17001750 domínio das minas 17501808 consolidação do sistema colonial municipalidades anuladas indústria proibida jesuítas expulsos tensão entre colonos e reinóis 18081850 decomposição do sistema colonial 1850 período centralizador imperialista ou industrial época do vapor agonia da escravidão jornalismo vivo Abreu 1975 Diferente de Varnhagen Capistrano duvida da tradição faz uma crítica radical da memória A verdade que procura não consiste na repetição do passado a verdade não é o que o passado ensina e impõe Araújo 1988 Seu ponto de vista inovador ao mesmo tempo constrói um novo passado e desconfia do passado estabelecido oficial O método crítico quer corrigir o passado rever verdades consolidadas E abrir um novo futuro sustentado por um novo passado o Brasil nação não será oficial o sujeito da história do Brasil não é o Estado imperial mas o povo brasileiro em sua diversidade e unidade No passado Capistrano põe ênfase na vida desse povo por um lado ativo na ocupação do território por outro passivo e ineficaz na produção da verdadeira independência No futuro ele espera a verdadeira independência Capistrano é um historiador da mudança da descontinuidade entre o passado e o futuro do Brasil o futuro será a realização da independência a que o Brasil aspirou no passado mas não realizou O futuro do Brasil será brasileiro descontinuando o passado português A verdade histórica se oporá a esse passado tradicional português e servirá à construção do futuro novo brasileiro à ideia da revolução brasileira ANOS 1930 SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA A superação das raízes ibéricas S B de Holanda um Intelectual Feliz Sérgio Buarque de Holanda nasceu em 1902 em São Paulo quando Euclides da Cunha publicava Os sertões e faleceu em 1982 Era filho de um migrante pernambucano com formação na área de saúde Seu pai era funcionário do estado de São Paulo professor de botânica na Escola de Farmácia e Odontologia e trabalhou também no serviço sanitário do Estado Ele criou a família com o seu ordenado S B de Holanda teve provavelmente uma vida modesta talvez o essencial sem passar falta Assim como Capistrano sofreu o autoritarismo paterno e ambos talvez tenham se tornado o que foram reagindo contra a lembrança desse autoritarismo6 S B de Holanda pelo menos explicitou este sentimento Capistrano amargouo em silêncio Diferentemente de Capistrano S B de Holanda levou uma vida sobretudo urbana sem as desvantagens do isolamento rural Teve uma formação escolar formal e regular Desde a infância ele afirma apreciava a leitura e a escrita Tinha gênio artístico escrevia prosa e verso tocava piano compunha valsas gostava de dançar Sua formação superior foi em direito embora não tenha depois exercido a profissão Boêmio vivia em rodas de amigos intelectuais pelos bares Começou a sua carreira como crítico literário e jornalista Nessas atividades viajou pela Europa inúmeras vezes e permaneceu um ano na Alemanha e outros anos na Itália Quando esteve na Alemanha em 1929 como jornalista entrevistou intelectuais seguiu cursos de Meinecke leu Sombart e Weber conheceu a literatura alemã Semana 1992 Iglésias 1992 Dias 1986 S B de Holanda é um outro milagre de formação Segundo os seus biógrafos e analistas possuía enorme erudição em ciências sociais literatura e artes apesar de indisciplinado e boêmio Ainda na Alemanha pensou em escrever um livro sobre o Brasil e escreveu mesmo um volumoso texto ao qual deu o título de Teoria da América mas não publicou tal como escreveu Esse texto volumoso deu origem a um dos textos mais curtos sintéticos da historiografia brasileira Raízes do Brasil que antes teria o título de Corpo e alma do Brasil ensaio de psicologia social Raízes do Brasil foi publicado em 1936 um bom tempo depois do seu retorno da Alemanha Aqui ele divulgará o historicismo alemão em suas pesquisas históricas particularmente em Raízes onde ele se mostra em grande parte weberiano e em um consistente ensaio sobre Ranke Iglésias 1992 Dias 1986 Filho de funcionário público S B de Holanda tornouse também funcionário público professor da Escola de Sociologia e Política de 1947 a 1955 e da Universidade de São Paulo de 1958 a 1969 Além de se dedicar ao ensino escreveu vários outros livros importantes Caminhos e fronteiras 1957 e Visão do paraíso 1959 dirigiu e escreveu para os primeiros volumes da coleção História geral da civilização brasileira 196072 além de publicar inúmeros artigos em jornais e revistas especializadas Ofereceu cursos e palestras nas principais universidades dos Estados Unidos Itália Chile e outros países Pesquisou nos arquivos de Portugal do Vaticano Nova York Paris e outros Sua vida intelectual foi muito intensa Era muito requisitado pelas universidades nacionais e estrangeiras museus nacionais bibliotecas editoras organismos nacionais e internacionais Além disso gozava de enorme prestígio intelectual no Brasil jamais sofreu perseguições graves exclusões nem nos anos 1960 pelo contrário sempre foi protegido e exaltado pelos seus pares da USP Iglésias 1992 Dias 1986 Afora o seu estilo digressivo e a sua dicção difícil que provavelmente tornava suas palestras e cursos menos atraentes S B de Holanda parece ter sido um intelectual feliz pôde fazer tudo o que pretendeu obteve sempre os recursos necessários publicou obras muito importantes que não criaram polêmicas e tensões graves e é sempre lembrado como o modelo de historiador brasileiro S B de Holanda e os Anos 1930 Em 1922 a Semana de Arte Moderna da qual S B de Holanda não participou direta mas indiretamente divulgando as suas propostas nas revistas Klaxon e Estética havia aprofundado o esforço de redescoberta do Brasil que Capistrano de Abreu e a sua geração dos anos 1900 haviam iniciado A Filho 1987 A década de 1920 pode ser caracterizada pela erupção constante de críticas e oposições à sociedade oligárquica Os anos 1930 foram de intenso debate político época de radicalização ideológica e política Percebese então mais nitidamente a distância entre a sociedade civil e o Estado entre o Brasil real e o Brasil legal entre a realidade brasileira e as ideias importadas para que ela não fosse conhecida Nos anos 1930 a realidade brasileira nua e crua tornouse a questãochave de um pensamento brasileiro que se quer puro e duro Todos os intelectuais querem decifrar o enigma do Brasil e interferir na produção do seu futuro Discutese então a identidade nacional brasileira os obstáculos ao seu desenvolvimento e progresso as formas de vencer o atraso horroroso A Filho importante 1987 O Estado saído da Revolução de 1930 passou a investir em educação superior para a formação de quadros e para o debate mais aprofundado dos problemas do Brasil O ensino secundário e superior dominado pela Igreja foi cedendo lugar ao ensino leigo As classes médias são incorporadas às faculdades recémfundadas de filosofia letras e ciências humanas como as da USP No ensino e pesquisa de história o IHGB perdeu sua influência que agora passa para a universidade de forma quase absoluta Iglésias 1992 Mota 1978 Sob a influência da universidade a história se aproximou das ciências sociais querendo pesquisar a realidade brasileira em seu aspecto econômicosocialmental e não mais só político Essas mudanças no conhecimento histórico e social refletem as mudanças significativas que ocorrem na sociedade que é mais complexa e possui novos e atuantes sujeitos sociais A urbanização palco das ações desses atores se acelera O Brasil fazia a transição de uma sociedade baseada na economia agropecuária para uma sociedade dominada pelo capitalismo industrial com os seus sujeitos característicos a burguesia o proletariado e as classes médias Nos anos 1930 portanto há uma crise aguda da ordem oligárquica A Revolução de 30 não foi longe o bastante para romper com a organização social vigente mas a abalou e pôs em xeque a validade das interpretações do Brasil produzidas quando ela ainda era incontestável Ianni 1989 e 1994 Mota 1978 Tais interpretações já estavam sendo invalidadas pela corrente dos redescobridores do Brasil anteriores a 1930 Capistrano e sua geração a Semana de Arte Moderna o Partido Comunista do Brasil e alguns movimentos militares Pós1930 a história não poderia mais ser aquela do IHGB que tratava do Estado e dos grandes feitos dos grandes vultos brancos das elites Houve então uma espécie de precipitação das crises do passado As correntes de pensamento tornaramse mais claras explícitas pois mais radicais Foi uma época fecunda para o pensamento social brasileiro Vários clássicos da historiografia brasileira foram publicados então usando ainda teorias importadas americanas e europeias Simmel Weber Franz Boas Marx O pensamento brasileiro parece mais adequado à realidade brasileira é mais contemporâneo do tempo histórico brasileiro As principais interpretações do Brasil moderno construídas nos anos 1930 tinham uma compreensão mais exata do país analisam a vocação agrária e as possibilidades da industrialização as relações entre a burguesia brasileira e o capitalismo associado o civilismo e o militarismo a democracia e o autoritarismo as regiões e a nação a formação do povo e a multiplicidade racial a modernidade e a tradição Os anos 1930 realizavam o que em 1922 data das comemorações do centenário da independência se intuiu a necessidade de se abordar o Brasil sem complexos sem ceticismo com confiança O Brasil precisava ser conhecido em suas peculiaridades desigualdades regionais heterogeneidade étnica heranças do escravismo imigração peso das oligarquias predomínio do privatismo sobre a vida pública personalismo nos partidos políticos conquista da cidadania Ianni 1989 e 1994 Se durante o século XIX a realidade social excluía e o pensamento a legitimava agora a realidade continuava excluindo mas sem a legitimação cúmplice do pensamento brasileiro Este passou a defender a inclusão de negros índios mulheres pobres de todo tipo enfim de todos os marginalizados da sociedade oligárquica do passado os quais deverão ser integrados à sociedade brasileira no futuro O Brasil não teria futuro excluindo a sua própria população do gozo dos direitos da cidadania Os intelectuais brasileiros em suas várias tendências só se dividiam quanto às estratégias para a realização desse projeto comum à maioria deles O Brasil precisava mudar e não poderia continuar mais na mão dos seus conquistadores Se os conquistadores do Brasil e seus descendentes dominaram sem contestação no passado nos anos 1930 a contestação se radicaliza o Brasil precisa ser redescoberto e reconstruído pela sua própria população O futuro deverá ser radicalmente diferente do passado O grande tema dos redescobridores do Brasil será o da revolução brasileira sujeitos alianças época processos resultados reveses possibilidades Ianni 1989 e 1994 S B de Holanda será um dos pensadores da revolução brasileira seguindo a trilha de Capistrano de Abreu S B de Holanda Dilthey e Weber A interpretação do Brasil de S B de Holanda tem raízes no pensamento alemão moderno que ressalta o particular o único a especificidade temporal de cada realidade histórica Estava interessado em conhecer o Brasil em sua singularidade Embora usasse uma teoria importada ele a usava de forma original e criativa Aliás a própria teoria proíbe a aplicação de conceitos e análises feitas para outros lugares históricos em lugares históricos diferentes Ele procurará destacar através da comparação da criação de tipos ideais os traços peculiares do Brasil reconstruirá aspectos do processo de formação da sociedade e da mentalidade dos brasileiros em suas mudanças em seu devir libertandose de esquemas teóricos e preconceitos Dias 1986 Seu estilo elegante e refinado é às vezes mais eficaz do que conceitos muito precisos e rígidos na apreensão dos ritmos da vida brasileira Sua narração é capaz de reconstituir o espírito de uma época Ele usa e recria a linguagem das fontes A sua obra é ao mesmo tempo racional conceitual documentada interpretativa erudita objetiva e intuitiva literária artística Diltheyano e weberiano S B de Holanda distingue entre o conhecimento da natureza e o conhecimento da sociedade e realiza a compreensão empática adequada ao conhecimento do mundo social Sua história incluise na sociologia compreensiva de Weber interpreta sinais articula os meios e fins de uma ação recria a situação em que as escolhas foram feitas procura pôr se no lugar dos seus personagens A história não precisa recorrer a leis para compreender e fazer compreender seus objetos de investigação Ela compreende singularidades Sua lógica é teleológica isto é a história estuda os homens em sua ação e esta ação não se submete a leis gerais mas a fins e precisa ser compreendida em sua individualidade O historicismo compreende o mundo humano por uma abordagem individualizante e não generalizante Reis 1996 Iglésias 1992 Dias 1986 Há uma polêmica sobre qual teria sido o primeiro intelectual brasileiro a terse utilizado de Weber em sua análise do Brasil Corrêa Dias afirma ter sido Emílio Willems em seu artigo Patrimonialismo e administração publicado em 1945 na Revista de Administração Pública Dias 1974 V Chacon considera Otto Maria Carpeaux o primeiro weberiano brasileiro ao publicar em 1942 longo ensaio sobre Weber e a sua Ética protestante e o espírito do capitalismo Chacon 1977 Entretanto se se admite a orientação historicista em geral e weberiana em particular de S B de Holanda em Raízes do Brasil parecenos que ele se não foi o primeiro a se utilizar de Weber recebeu bem antes e mais profundamente a sua influência do que Willems e Carpeaux Chacon se refere também ao uso de Weber por G Freyre em 1933 em Casagrande senzala quando discutiu as relações entre o calvinismo o judaísmo e o catolicismo Freyre também é considerado historicista com influências de Dilthey Simmel Weber e Franz Boas Chacon 1986 Entretanto S B de Holanda parece ter conhecido Weber antes mesmo de G Freyre em 1929 quando esteve na Alemanha Ou pelo menos o conheceu mais diretamente e não através de uma formação nos EUA Raízes do Brasil tem páginas inteiras inspiradas em Weber A sua discussão do Estado brasileiro das relações entre o público e o privado a sua proposta de uma separação radical entre estas esferas e da modernização do Estado que se tornaria mais racional e burocrático mais eficaz na administração pública são visivelmente weberianas Há ainda os tipos ideais do trabalhador e do aventureiro do ladrilhador e do semeador do homem cordial e do homem polido a análise comparativa da mentalidade ibérica e da europeia das mentalidades portuguesa e espanhola na América os conceitos de dominação patrimonial e burocráticolegal Raízes do Brasil é quase integralmente weberiano Até o sentido da revolução brasileira seria weberiano uma racionalização progressiva da sociedade tradicional dominada por valores afetivos familiares uma modernização baseada na separação entre o afetivoprivado e o racionalpúblico A modernização representaria uma mudança de mentalidade e um estabelecimento de regras universais que atingissem a todos independentemente da sua origem familiar e de suas relações pessoais e políticas Uma sociedade moderna não possui privilegiados pessoas mais queridas ou mais detestadas do que outras não prefere e não persegue ela está racionalmente submetida a regras e organizada no sentido da eficácia administrativa e produtiva7 Toda a sua visão do Brasil se assenta na teoria social weberiana e talvez de forma mais rigorosa e consequente pela primeira vez no Brasil Seu historicismo aparece em seus temas principais a cultura europeia a cultura ibérica o caráter português espanhol brasileiro a alma comum brasileiraibérica as determinações psicológicas da experiência colonial a mentalidade patriarcal e cordial o espírito da dominação portuguesa a mentalidade urbana e moderna o comportamento familiar e público os tipos e conceitos e não leis históricas Sua abordagem da história é psicológica ele quer apreender a vida humana brasileira e ibérica pelo seu interior quer recriála e revivêla Dias 1986 Nos anos 1930 a radicalização política levou vários intelectuais brasileiros ao fascismo e ao comunismo ao catolicismo exaltado ao estatismo positivista autoritário S B de Holanda mantevese em uma posição sempre mais branda evitando exaltarse à esquerda Uma posição branda mas nítida Ele era crítico em relação às noções de legados tradições nação raça Embora historicista embora valorizando as tradições e a cultura brasileira que se constituiu no passado em relação ao passado e a essa tradição e cultura ele queria conhecêlos para esquecêlos superálos dialeticamente para impedilos de agir sobre o inconsciente brasileiro Ele também era brando teoricamente evitava determinismos cientificistas materialistas climáticos ou biológicos Na história não há leis causalidades mecânicas etapas de desenvolvimento da humanidade universal O que há no passado é o devir das formações peculiares e específicas de cada povo Iglésias 1992 Cândido 1976 Nos anos 1930 o Brasil vivia impasses graves e as teorias e ideias políticas se engrossavam Sua intervenção no grande debate da época será feita através de Raízes do Brasil que é uma obra eminentemente política O povo brasileiro como em Capistrano é o personagem central Sua visão da história do Brasil não é aristocratizante senhorial elitista Ele parece não apreciar chefes carismáticos O caudilhismo ele o vê como um empecilho à modernização do Brasil O protagonista da sua história é o povo anônimo em seu cotidiano em sua vida repetida sem grandes eventos Iglésias 1992 Seu olhar sobre o passado é contrário ao de G Freyre ele não o idealiza não lamenta a perda da glória das oligarquias Prefere o Brasil que se constituía contra aquele passado nas cidades com os seus novos sujeitos e sua nova mentalidade O olhar de S B de Holanda sobre o passado brasileiro é o do homem urbano recentemente emergente É o do homem médio das cidades que teme a violência conservadora dos senhores rurais e a violência revolucionária do escravo ressentido Seu desejo é o de uma organização racional da sociedade onde todos possam encontrar o seu lugar e se exprimir em sua originalidade segundo regras universais e consensuais Um mundo sem senhores e sem escravos habitado por cidadãos Raízes do Brasil é uma síntese interpretativa da trajetória brasileira que discute o seu presente e futuro acertando as contas com o passado S B de Holanda desvenda no presente as sobrevivências arcaicas ainda ibéricas que precisariam ser superadas Ele quer identificar os obstáculos que entravam a modernização política e econômicosocialmental do país Esses obstáculos estão ligados às nossas raízes ibéricas que devem ser recusadas e cortadas O mundo que o português criou não interessa ao Brasil que deve criar o seu próprio mundo e que para fazêlo terá de romper com o seu passado português A crise brasileira dos anos 1930 aliás a eterna crise brasileira foi criada já em Portugal no século XVI Não é a miscigenação o nosso mal o nosso mal é a nossa herança portuguesa Infelizmente segundo ele a miscigenação não nos diferenciou tanto assim do português É por isso que ele se refere tão pouco a índios e negros estes não foram tão eficazes sobre a história do Brasil ou pelo menos o suficiente para contrabalançar a eficácia portuguesa Esta foi quase absoluta infelizmente para os brasileiros O Brasil é mais português do que gostaríamos que fosse Somos sobretudo neoportugueses e devemos nos tornar pósportugueses isto é brasileiros A Obra Raízes do Brasil S B de Holanda começa Raízes do Brasil constatando o grande obstáculo para a construção de uma identidade e projeto brasileiros nossa representação do que somos não se refere à realidade do que somos Para ele a implantação de uma cultura europeia nos trópicos em um ambiente estranho à sua tradição é o fato mais importante na origem do Brasil Desde então nossa cultura instituições ideias formas de convívio veio de outro lugar e não se adaptou aos trópicos Vivemos nos trópicos sem uma cultura adequada própria tropical Participamos do desenvolvimento da cultura de um outro lugar Nossas representações da nossa história são diferenciadas até o ridículo do nosso tempo social específico e concreto Entre o conhecimento do Brasil e a realidade brasileira há uma defasagem abissal pensamos com ideias inadequadas à nossa realidade social ideias que ao invés de facilitarem nossa relação com a realidade a impedem Se é assim como podemos fazer projetos para o futuro Se não estamos sintonizados com o nosso tempo histórico específico com o nosso passado e presente como planejar agir e construir o futuro Para inventar um futuro é preciso saber quem somos e gostar do que somos e para isso será preciso reconhecer nossas raízes ibéricas A construção de uma sociedade nova exige a adequação do pensamento à realidade esta adequação pressupõe um reencontro com a nossa história É o que ele fará para pensar o que o Brasil deveria ser ele discutirá o que somos de onde viemos de que espírito fomos feitos E quando o pensamento encontra a realidade o diagnóstico é simples e duro somos neoportugueses O que isto significa Os portugueses da época do descobrimento não eram europeus plenos argumenta S B de Holanda Isto é o tipo de sociedade de onde vinham não era nem europeu nem africano ou árabe mas um tipo original Viviam em um território fronteiriço entre a Europa e a África sendo meio europeus meio africanosárabes A sociedade portuguesa integrouse tardiamente à Europa É uma sociedade que se desenvolveu à margem da Europa Por essa razão a mentalidade portuguesa é original seu caráter é indeciso impreciso Se se comparam ibéricos e europeus e aqui S B de Holanda não distingue ainda portugueses e espanhóis percebemse diferenças profundas O caráter ibérico desenvolveu o culto da personalidade Cada indivíduo vale por seu mérito próprio e não pelo nome herdado São reconhecidos os indivíduos independentes corajosos autossuficientes fortes fisicamente sobranceiros heróicos Os valores desses indivíduos são a honra a fidelidade o livrearbítrio a fidalguia O resultado trágico dessas disposições ibéricas a frouxidão da estrutura social das associações que impliquem solidariedade e ordem Os ibéricos recusam toda hierarquia a coesão social e tendem ao individualismo anárquico Rejeitam o trabalho manual pois este exige a dedicação a algo exterior Especulativos apreciam o ócio e se sentem nobres por isso O indivíduo não quer alterar o mundo social que nem mesmo reconhece e identifica Ele não aceita ser dominado por um objeto exterior Só são solidários entre si por motivos afetivos e só se submetem pela obediência Em uma terra de barões não são possíveis acordos duráveis a não ser por uma força exterior querida e temida Há necessidade do líder carismático que reine mítica e despoticamente Eles o aceitam para pôr ordem em seu natural anárquico e o respeitam e aclamam apaixonadamente Cada indivíduo se identifica com ele pois realiza o sonho de cada um ser individualmente de forma caprichosa e absoluta E por que tais características predominaram entre os ibéricos Não foi por fatalidade biológica ou determinismo climático Talvez porque foram os primeiros a se constituírem como nação na Europa Talvez considera S B de Holanda tenha sido seu êxito precoce uma das razões da persistência entre eles de hábitos da vida tradicional A ascensão burguesa em Portugal não encontrou obstáculos intransponíveis A burguesia não representou uma nova mentalidade uma nova escala de valores Ela se associou à nobreza e assimilou o seu modo de viver seus valores Cada burguês se sente nobre e exibe a sua fidalguia em seu vestuário em sua recusa do trabalho manual em seu ócio em seus títulos comprados ao Estado A hierarquia feudal rígida na França em Portugal não existiu As classes sociais não eram bem fixadas todos eram fidalgos A burguesia não implantou valores modernos diligência pontualidade pertinácia parcimônia exatidão solidariedade social O sangue familiar o nome a herança não distinguiam os indivíduos tanto quanto o seu próprio mérito e riqueza Enfim culto da personalidade valores individualistas ausência de uma moral do trabalho resistência à regra social à lei têm como consequência uma sociedade dificilmente governável pelo menos de forma democrática Tal autarquia dos indivíduos tal anarquia só uma força externa pode organizar e dirigir À liberdade excessiva substituise com facilidade a obediência cega Eis aí o que significa para começar ser neoportuguês Esta é a nossa raiz ibérica que nos impede de nos tornarmos uma nação moderna racional na administração e na produção econômica e nas relações sociais S B de Holanda rejeita vivamente tal origem queiramos ou não afirma ele estamos associados a Portugal e temos uma alma comum De lá nos veio a forma atual de nossa cultura Nem o contato e a mistura de raças fizeramnos diferentes dos ibéricos como gostaríamos de sê lo S B de Holanda tem desse espírito português uma avaliação diferente da avaliação de G Freyre Este considera que o tempo ibérico sem pressa sem regras sem relógio caprichoso ocioso que passa lentamente expressa um grande gosto de viver um prazer que não cede a imposições externas e que nem se preocupa em formular a resistência simplesmente não se deixa enquadrar ignorando prescrições mandamentos regras imposições E no brasileiro esse espírito português se acentuou com a liberdade do indígena e a alegria do negro Freyre tem saudade do espírito português Quanto a S B de Holanda ele quer extinguilo do coração brasileiro O Brasil precisa e quer mudar Foi portanto essa cultura ibérica com tais disposições psicológicas que conquistou os trópicos Dadas essas características culturais a exploração dos trópicos não seria feita por um empreendimento metódico e racional Foi feita com abandono e desleixo Fezse apesar dos seus autores Para melhor conhecer e analisar a colonização tropical ibérica S B de Holanda constrói dois tipos o do aventureiro e o do trabalhador Segundo ele são duas orientações gerais que se combatem na atividade dos homens O tipo do aventureiro o objetivo final é mais importante do que os meios seu ideal é colher o fruto sem plantar a árvore Ele ignora fronteiras é espaçoso invasor ladrão aceita riscos ignora obstáculos e quando os encontra transformaos em trampolins É audaz imprevidente criativo ocioso e vê longe Quer a recompensa sem esforço Não visa à estabilidade à paz à segurança pessoal O trabalhador lhe parece estúpido e mesquinho Esse tipo aventureiro encarnase em ladrões traficantes empresários desonestos estelionatários gente que manda fazer e explora o esforço do trabalhador Entretanto o tipo aventureiro não precisa se encarnar necessariamente nesses personagens que agem contra a sociedade A audácia pode servir à sociedade e as que mais se destacaram foram as que souberam aliar de forma criadora aventura e trabalho O tipo do trabalhador vê primeiro a dificuldade a vencer está dominado pelos meios é econômico metódico lento Seu horizonte é mais curto restrito Realista ele vê mais a parte do que o todo Não tolera a ética aventureira que é desestabilizadora e contrária à segurança e à paz Esses tipos ideais uma estratégia de conhecimento tipicamente weberiana S B de Holanda os construiu para responder à desconcertante questão como esse povo ibérico com aquele caráter mentalidade e espírito pôde colonizar Se mal podiam se administrar poucos e em pequeno território como puderam colonizar espaços enormes com populações nativas inteiras O uso daqueles tipos permitirá a compreensão da atuação dos ibéricos Em sua expansão colonizadora eles foram mais aventureiros ou mais trabalhadores Tais tipos por serem ideais não existem concretamente tal como pensados O aventureiro puro só existe enquanto tipo Na prática ele estaria misturado em algum grau ao tipo do trabalhador Na conquista portuguesa respondendo àquela questão anterior com o uso dos tipos o papel do trabalhador foi residual Os portugueses puderam colonizar como aventureiros só colheram os frutos da árvore encontrada Vieram procurar prosperidade sem custo Sem esse espírito de aventura a colonização não teria ocorrido Graças a ele os obstáculos encontrados tornaramse trampolins Os portugueses foram de uma capacidade de adaptação excepcional S B de Holanda retoma a tese de Freyre A exploração agrária colonial não foi planejada foi feita ao sabor das conveniências Os aventureiros portugueses não fundaram uma sociedade agrícola depredaram a terra Fizeram uma exploração agrícola de baixa qualidade técnica visando a extrair riquezas do solo sem sacrifícios e com poucos investimentos Adaptaramse à terra e não pretenderam submetêla a normas fixas Misturaramse à terra ao indígena ao negro Foi um domínio mole e brando Os indivíduos agiam isoladamente Quando se uniam era por razões afetivas e religiosas não por interesse racional A sua fraqueza foi a sua força eles venceram porque não tentaram impor seu modo de ser Aliás o seu modo de ser era a plasticidade Os negros vieram acentuar essa tendência à não cooperação e à não imposição Os negros são motivados também por afeições são suaves dengosos açucarados sensuais sedutores sentimentais pouco violentos São também antissociais Os holandeses fracassaram na colonização dos trópicos por não serem tão plásticos Os europeus do norte são incompatíveis com os trópicos são racistas metódicos e trabalhadores Eles não suportaram psicologicamente a tarefa da colonização Eis o que significa ainda ser neoportuguês os brasileiros agem de forma mais aventureira do que como trabalhadores A agricultura não é planejada aparelhada metódica e racional é uma depredação da natureza um esforço para colher sem plantar Tudo se faz com desleixo e abandono sem projeto e sem método Os brasileiros não se associam por interesses racionais mas pela festa na bebida e na comida na religiosidade E os negros só fizeram acentuar essa disposição portuguesa nos brasileiros em vez de marcarem uma diferença que alterasse o perfil do brasileiro em relação ao do português Essa plasticidade aventureira tem suas vantagens mas certamente não conduz à construção de uma sociedade marcada pela organização pela associação pelo planejamento pelo método Essa plasticidade foi essencial aos portugueses para o seu sucesso colonizador O sucesso dos brasileiros poderá ser feito com essa mesma plasticidade com essa disposição de se abandonar ao que vier de não se impor ao exterior transformandoo construindoo A forma portuguesa de criar um mundo nos trópicos é recomendável aos brasileiros que querem criar um novo mundo nos trópicos Mais uma vez S B de Holanda se opõe à continuidade do Brasilportuguês Só está tratando desse passado para que os brasileiros compreendam como eles não deverão construir a sua nova sociedade Portanto com aquelas disposições psicológicas mencionadas e com um espírito aventureiro os portugueses desembarcaram na América Colonizadores aventureiros como esse povo meio europeu meio africano se estabeleceu em suas colônias Aqui no capítulo 3 intitulado Herança rural S B de Holanda começa a distinguir os portugueses dos espanhóis Se na península eles podiam ser descritos de forma comum na América em razão do que encontraram e das condições geográficas e climáticas de seus territórios coloniais eles se distinguirão Os portugueses estabeleceram uma colonização de raízes rurais A vida colonial portuguesa se concentrará no campo Só após 1888 as cidades predominarão De 1850 a 1888 deuse a passagem à urbanização à cultura das cidades O Brasil viveu uma febre de reformas nesse período Após o fim do tráfico negreiro houve uma efervescência especulativa S B de Holanda salta para o século XIX quando as cidades abriram um novo mundo sem entretanto romper com a tradição A mudança na vida brasileira ocorrerá após 1850 ali estão as raízes da revolução brasileira Mas S B de Holanda no capítulo 3 estava falando ainda da tradição ainda falaria do colonizador português instalado no campo e saltou para o século XIX tal o seu desejo de romper com a tradição Para ele enquanto perdurassem os padrões econômicosociaisculturais coloniais as transformações mais ousadas teriam de ser superficiais e artificiais Na vida colonial cada casagrande era uma república Não havia vida comum mas particular no melhor estilo ibérico No mundo rural brasileiro onde o colonizador aventureiro português se instalou vivia uma família dilatada com o poder do pater familias também dilatado A família era fechada imune às mudanças que vinham de fora O pátrio poder era ilimitado e inabalável Tirânico sem freios O quadro familiar era tão forte que perseguia os indivíduos fora de casa na cidade Nossa vida pública social e política era marcada pela família rural colonial Esta oferecia a ideia mais moral de poder responsabilidade obediência coesão Predominavam então em toda a sociedade sentimentos próprios da comunidade doméstica particularista e antipolítica Havia uma invasão do público pelo privado do Estado pela família Após 1850 com o crescimento das cidades o fim do tráfico negreiro as atividades financeiras essa vida rural tradicional sofrerá a pressão da mudança Os fazendeiros temerão o predomínio das cidades e das instituições de crédito O Brasil se dividiu em dois mundos que se hostilizavam cada vez mais duas mentalidades que se opunham como ao racional o tradicional como ao abstrato e cosmopolita citadino o regional e paroquial Mas o Brasil escravista estava despreparado para mudanças radicais Os setores retrógrados resistiram e buscaram o equilíbrio com o novo emergente S B de Holanda se impacienta Ele gostaria de falar de mudanças profundas porém o patriarcalismo e personalismo vigentes as abortavam Os partidos políticos eram vistos como famílias políticas onde vínculos afetivos e pessoais uniam chefes e demais membros Mesmo as novas cidades se contaminaram com a vida tradicional Ali também o talento a inteligência eram mais valorizados do que o trabalho técnico e manual A inteligência era sinônimo de discurso fácil com palavras difíceis raras citações em latim francês A inteligência era ornamento prenda e não esforço de conhecimento e ação A burguesia urbana adotou atitudes peculiares do patriarca rural As cidades ainda dependiam do campo sofriam a sua ditadura Na colônia as poucas cidades eram administradas e dominadas pelos senhores de terras No século XIX as cidades ameaçaram romper com a ordem tradicional mas sem muito sucesso estão contaminadas pela mentalidade rural O predomínio do ruralismo foi mais uma influência negativa da colonização portuguesa Em todo lugar é o contrário que ocorre o campo é que depende das cidades Aqui os portugueses criaram um mundo invertido onde as cidades eram dominadas pelo campo E não foi uma imposição do meio que não agiu como força centrífuga Foi a maneira e o estilo portugueses de colonizar sem normas imperativas cedendo às conveniências sem planejar e construir Além disso eles não encontraram metais preciosos cujo movimento os obrigasse a criar uma administração mais rígida e próxima Ser neoportuguês significa também isso ser rural ser familiar desinteressarse pela vida pública e viver na autarquia da casagrande com uma identidade afetiva privada longe da cidade isolado de todos A justiça é familiar o poder é o do PaiSenhor ilimitado Os partidos políticos são cópias da vida familiar um chefe e seus agregados e escravos que devem ao primeiro incondicional lealdade Essa sociedade familiar resiste à mudança que vem de fora vive em um tempo com um ritmo eterno A colonização portuguesa não foi urbana porque edificar cidades é uma manifestação do espírito e da vontade coisa que os portugueses não conheciam Para os colonizadores em geral a constituição de cidades é um decisivo instrumento de dominação O poder se organiza burocraticamente nas cidades Quanto mais livres das cidades mais autárquicos são os domínios rurais Os espanhóis que inicialmente também possuíam o espírito ibérico comum tal como S B de Holanda o descreveu agora possuem um espírito voluntarioso e racional e realizaram uma colonização urbana diferentemente dos portugueses A metrópole espanhola impôsse à colônia com a criação de núcleos urbanos cuidadosamente planejados e construídos O Estado interveio com mão forte não se confundiu com a paisagem natural como os portugueses As cidades espanholas têm traços retos voluntariosos e são instaladas no interior Universidades foram fundadas Aqui os espanhóis reproduziram o seu método de ocupação das terras ibéricas reconquistadas aos infiéis Nas cidades espanholas exprimese a ideia de que o homem pode intervir no curso das coisas e de que a história pode ser dirigida e produzida Os espanhóis queriam fazer do país ocupado uma extensão do seu Quanto às cidades portuguesas confundiamse com o relevo e a paisagem O empreendimento português parece tímido e condenado ao fracasso comparado com o espanhol A colonização portuguesa é simples local de passagem as cidades são importante litorâneas Os portugueses evitam adentrar o sertão e até proibiam tal entrada Primeiro era preciso ocupar e defender o litoral Os bandeirantes desafiaram tal orientação e representaram uma primeira expressão de autonomia Só depois do descobrimento das minas é que Portugal decidiu intervir em sua colônia de forma repressiva policial menos para estabelecer algo duradouro do que para extrair o máximo de riqueza Os espanhóis vinham para ficar os portugueses para enriquecer e voltar Os espanhóis são mais repressores os portugueses mais liberais Os portugueses são frouxos indisciplinados As casas de suas cidades são dispostas segundo o capricho dos seus moradores Tudo é irregular Não há uma vontade criadora construtora A colonização portuguesa foi orientada pela rotina com desleixo com abandono deixe estar não vale a pena Não transformaram a realidade Aceitavam a vida tal como ela vinha sem impaciências e ilusões A expansão portuguesa foi comedida prudente uma navegação de cabotagem na costa da África A expansão espanhola foi ousada a ação de Colombo foi de um atrevimento inigualável A ordem do português é a do semeador sem trabalho sem plano sem método Eles não querem dominar o curso dos eventos modificar a ordem natural A ordem do espanhol é a do ladrilhador o oposto S B de Holanda surpreende nessa altura da sua argumentação Ele falara no início de uma identidade ibérica uniforme e homogênea Agora comparando as colonizações portuguesa e espanhola ele distingue o que antes apresentara unido Entretanto por outro lado não haveria razão para surpresa pois o seu método é o de identificar as diferenças as singularidades Primeiro ele diferenciou a península Ibérica no contexto europeu agora ele a diferencia internamente comparando as culturas portuguesa e espanhola A expressão que cada uma deu à sua colonização revelou muito do seu caráter particular O tipo de colonização que empreenderam serviu para a melhor diferenciação e definição dos espíritos português e espanhol Segundo ele o caráter espanhol é dominado por uma fúria centralizadora codificadora regulamentar Por que a diferença do espírito ibérico ficou mais visível na América Embora apenas de forma alusiva S B de Holanda sugere algumas razões Diferentemente de Portugal a unidade espanhola foi tardia e difícil e ainda hoje não se completou A Espanha é ainda um país desunido e sob constante ameaça de desagregação Expandindose os espanhóis querem tudo controlar e regular Essa talvez seja uma das razões da fragmentação da identidade ibérica nas colônias americanas Outra razão seria o clima escaparam do clima tropical nos Andes e quiseram construir aqui uma extensão da metrópole Há outras razões também fundamentais para essa fragmentação do espírito ibérico colonial os espanhóis encontraram imediatamente muita prata e as cidades foram construídas para o controle mais rigoroso da sua extração circulação e tributação os espanhóis encontraram sociedades mais bem estruturadas o que exigiu maior controle o catolicismo espanhol era inquisitorial e intolerante levando a uma ética mais rígida e a uma cultura menos plástica S B de Holanda realiza uma análise comparativa das colonizações espanhola e portuguesa que revela uma descontinuidade da alma ibérica Peixoto 19925473 Quanto aos portugueses a sua unidade política foi precoce eles conseguiram uma certa homogeneidade étnica com a expulsão dos mouros O realismo e o naturalismo de Portugal vêm dessa unificação concreta e precoce Ela explica também o seu natural conservadorismo o desleixo o deixe estar Eles não arquitetam o futuro não sujeitam a história a leis rígidas pois já domesticaram a sua história Os portugueses S B de Holanda afirma em Visão do paraíso não descrevem a sua descoberta em um tom maravilhoso e misterioso Pareciam indiferentes ao exótico ao espetacular Sua esperança de grandes riquezas é mais comedida com uma noção mais nítida das limitações terrestres e humanas Os portugueses preferem mais as tradições e o crível do que a imaginação Aderem ao real e ao imediato são observadores minuciosos pragmáticos realistas desencantados por isso menos audaciosos Aceitam o mundo tal como os sentidos o apresentam Os outros povos colonizadores são mais fantasiosos Colombo era um sonhador O espanhol criou muitos mitos sobre o novo mundo uma geografia fantástica que incluía o Paraíso Terreal com vegetação sempre verde primavera constante aves coloridas e variadas povoado por gente simples inocente e boa As visões do paraíso dos espanhóis eram delirantes fabulosas Nosso mundo neoportuguês rural também é pouco voluntarioso determinado audacioso As elites brasileiras tratam o Brasil como os conquistadores portugueses conquistam a sua população e depredam a natureza Até parece que não vivem aqui que estão de passagem que querem ir para outro lugar e que acreditam que irão depois de ficarem ricas aqui Não há planejamento da ação não há uma elaboração antecipada do futuro que se quer construir Temse uma sociedade que se ergue naturalmente sem vigas e esteios sem regras gerais com desleixo e deixe estar Na história não se intervém Ela não pode ser transformada produzida As coisas são como são e não vale a pena imporlhes uma vontade transformadora Se no início S B de Holanda tratou com um certo desprezo o espírito ibérico em geral agora o desprezo é concentrado no caráter português na sua estratégia de colonização Os espanhóis S B de Holanda os olha agora com admiração são audaciosos e racionais construtores de um mundo centrado em cidades com universidades controlado do interior e não do litoral A cada passo do seu pensamento sobre o passado brasileiro uma ideia se impõe progressivamente o mundo que o português criou não pode mais influenciar o presente e o futuro do Brasil Os brasileiros precisam esquecer as suas raízes ibéricas e o melhor modo de esquecêlas é conhecêlas em toda a sua precariedade como projeto social Os que imaginam que uma volta à tradição ibérica seja a única defesa possível contra a nossa desordem erram redondamente Nossa anarquia vem de lá nossa desordem é tradicional Será legítimo retornar ao passado para melhor organizar a sociedade brasileira Não nos interessa mais ser organizados por caudilhos e ditadores O modelo do poder patriarcal no qual predomina a autoridade indisputada dos senhorespais sobre uma sociabilidade familiarafetiva não devemos ter saudade dele A família rural colonial não deve continuar sendo nosso modelo moral de poder Precisamos romper com nossas raízes ibéricas Aqui aparece claramente a diferença de S B de Holanda com relação a Varnhagen e G Freyre e a sua aproximação de Capistrano de Abreu Freyre tem nostalgia da família rural do Estado patrimonial do mundo português A vida política do Brasil independente foi dominada pelo mundo familiar rural Entretanto e aqui aparecem as suas leituras de Weber sobre o Estado a administração pública os tipos de dominação o conceito de patrimonialismo e de racionalidade a fragmentação da sociedade em esferas diferenciadas e tensas cada uma com a sua lógica específica a lógica da esfera familiar não é a mesma da esfera política O Estado não é um prolongamento da família mas descontinuidade e até oposição São esferas sociais essencialmente diferentes No Estado mora o cidadão indivíduo público com deveres e direitos submetido a leis abstratas impessoais racionais gerais Na família mora o indivíduo privado corpóreo afetivo concreto pessoal O Estado é a vitória do universal e abstrato sobre o particular e concreto A ordem familiar é abolida em uma transcendência Mas no Brasil neoportuguês não é assim A família é mais forte do que o Estado e o controla A família forte é um obstáculo à constituição do Estado moderno Aqui não há separação entre a esfera pública e a privada No Estado patrimonial neoportuguês a gestão pública é assunto de interesse privado das famílias Os funcionários desse Estado exercem as suas funções pessoalmente perseguem promovem premiam bloqueiam O recrutamento dos servidores depende da confiança pessoal ou sabese lá de que outro elemento afetivo e não da competência e eficiência Falta ao Estado brasileiro neoportuguês a organização impessoal e burocrática A burocracia estatal não é organizada racionalmente para se obter maior agilidade e eficiência mas com uma lógica familiar para acolher e proteger familiares amigos e clientes Ao invés de servir à agilidade e à eficiência a burocracia por seu gigantismo e despreparo técnico serve à lentidão à inoperatividade administrativa A administração pública não se interessa por questões objetivas pois está dominada por questões privadas afetivas pessoais A vida familiar é um empecilho à vida social fundada em princípios abstratos A educação familiar cria inadaptados em uma sociedade moderna Os filhos são mais aptos para ela quanto mais distantes da família quanto mais desprotegidos por ela Portanto incapazes de distinguir o público do privado os brasileiros neoportugueses transformam o Estado e os partidos políticos em assuntos de chefes familiares No mundo social nas relações exteriores à família circula um homem cordial hospitaleiro ou agressivo amigável ou hostil generoso ou mesquinho amigo eterno ou inimigo terrível dependendo de pequenos detalhes da relação pessoal Esse tipo cordial bem adaptado ao brasileiro neoportuguês trata desconhecidos como se fossem irmãos primos agregados e até escravos Seu comportamento social objetivo é afetivamente transbordante subjetivo A ele opõese o tipo cortês ao qual os japoneses se adaptam melhor ritualístico polido reverente distante O brasileiro é um antijaponês O homem cordial quer ser íntimo quer ser amigo não quer ficar sozinho Tem horror às distâncias e se elas existem concretamente ele simplesmente as abole Por exemplo na expressão religiosa tornase íntimo de Cristo e dos santos na relação com os superiores tornase logo discípulo seguidor fiel Ele reivindica um superior bacana gente fina e boa simples e humilde isto é próximo e pessoal Esse homem cordial está longe de aceitar uma ordem coletiva impessoal legal Ele é individualista indisciplinado Quando é intelectual nutrese de ideias contraditórias acredita em todas e defende todas Ele prefere as teorias mais sistemáticas dogmáticas que oferecem um ilusório repouso espiritual A personalidade cordial está pronta para obedecer cegamente ao líder carismático à ideia sistemática Não importa se fala da realidade Aliás é até melhor que não fale Ele está pronto a assimilar qualquer ideia desde que exposta em uma relação cordial isto é de coração a coração afetuosa ou agressivamente Leite contesta S B de Holanda quanto à tese da cordialidade brasileira afirmando que esta talvez possa existir entre os membros das elites como uma expressão de igualdade entre eles Entre diferentes senhores e escravos brancos e negros haveria paternalismo e não cordialidade Leite 1983 Entretanto S B de Holanda poderia argumentar que o paternalismo seria a expressão da cordialidade entre diferentes A diferença é então vivida afetivamente senhores e escravos brancos e negros apesar da enorme distância social entre eles se relacionam cordialmente amamse e odeiamse A cordialidade não se restringiria portanto às relações pessoais no interior das elites mas seria uma característica da sociedade brasileira em geral A cordialidade não se confundiria também com bondade generosidade afabilidade como a entendeu Cassiano Ricardo Ser cordial segundo S B de Holanda é agir e reagir em sociedade segundo os ritmos do coração da afetividade sem se deixar dominar por regras sociais impolidamente Para sustentar esta tese além de se referir à alma ibérica S B de Holanda enfatiza o peso das relações familiares no Brasil colonial do isolamento rural da ausência de espaço público cosmopolita como nas cidades A vida social colonial esteve reduzida à vida familiar que é regida pelo coração Essa condição cordial não seria um modo eterno e ahistórico do ser brasileiro Pelo contrário ela seria definida pelas condições históricas da vida brasileira rural e colonial que estariam sendo gradualmente superadas O Sentido e os Ritmos da Revolução Brasileira Até aqui e estamos no quinto capítulo intitulado O homem cordial S B de Holanda descreveu as origens brasileiras o Brasil português A partir de agora ele se dedicará à descontinuidade à ruptura com esse mundo tradicional Ele falará dos novos tempos do Brasil e da nossa revolução Esse tempo novo revolucionário ele constata que o Brasil já o vive S B de Holanda não está propondo uma revolução a ser feita no futuro É claro que ele espera uma aceleração do processo que já ocorre De qualquer maneira não está falando da revolução brasileira completamente incrustado no mundo tradicional cercado pela tradição portuguesa Ele se refere a ela de dentro dela em plena transição revolucionária Está cercado pelo passadovelho e pelo futuronovo Ao escrever Raízes do Brasil S B de Holanda pretendeu oferecer aos brasileiros a consciência da revolução que o Brasil vivia revelandolhes de que mundo eles vinham e a que mundo tendiam esperando com isso leválos à ação à produção mais vertiginosa da mudança Segundo ele o Brasil vive uma lenta revolução transita de uma sociedade rural regida por privilégios familiar natural para uma sociedade urbana mais abstrata e regrada artificial Aparece gradualmente a possibilidade de rompimento com o estatuto colonial e seu modelo agroexportador e a realização do desenvolvimento independente apoiado na cidade e na indústria que incorporaria novos contingentes da população à cidadania Essa transição leva o homem cordial a uma crise ele a teme e evadese A nossa revolução liquida o passado adota o ritmo urbano e propicia a emergência de camadas oprimidas da população únicas capazes de revitalizar a sociedade e darlhe um novo sentido político Ela significará a ruptura com as oligarquias rurais e o advento de novos sujeitos urbanos Esse processo revolucionário é lento e longo começou há muito e está longe de terminar Suas principais datas 1808 1822 1850 1870 1888 1889 1930 A continuidade dos padrões coloniais viuse ameaçada pela primeira vez quando da vinda da família real Alguns centros urbanos cresceram mas sem ameaçar ainda o poder dos senhores rurais Neles abriase um novo horizonte para o Brasil As mudanças começaram então Acabaramse o ufanismo os elogios e reelogios ao Brasil neoportuguês A realidade começou a ser a dura e triste realidade que precisava ser alterada e não enaltecida A abolição do tráfico a imigração o fim da Guerra do Paraguai a abolição da escravidão e a República acentuarão essa revolução lenta sem episódios notáveis O centro da mudança são as cidades O sentido dessa revolução do aniquilamento das raízes ibéricas de nossa cultura da recusa da herança portuguesa para a inauguração de um estilo novo de vida social talvez americano S B de Holanda estaria propondo os Estados Unidos como modelo da sociedade urbana a ser construída no Brasil Ou se refere a um estilo de vida especificamente brasileiro americano sem contaminações ibéricas O sentido preciso dessa passagem da obra nos escapa O que fica claro é que americano quer dizer sociedade urbana antiibérica e não rural Ou sociedade capitalista urbana do tipo norteamericana Iberismo e agrarismo se confundem Quando o mundo rural começou a desagregarse decaiu a influência portuguesa Americanismo e urbanismo se confundem Quando o mundo das cidades começou a ascender ascendeu a influência americana Nesse mundo americanourbanocapitalista atuam personagens racionais modernos produtivos cosmopolitas extrafamiliares É um mundo de direitos e não de privilégios de regras universais e não de exceções afetivas Na transição brasileira o palco da história é invertido no passado as cidades se subordinavam ao campo no presentefuturo o campo será mero abastecedor das cidades Entre 1850 e 1888 esse processo se acentuou em São Paulo com o surgimento de um novo cafeicultor morador da cidade considerando a sua fazenda uma empresa agrícola seu meio de vida e não uma forma de vida uma baronia O surgimento desse novo sujeito com seu empreendimento agrícola industrial que começou a substituir a mão de obra escrava pelo imigrante livre acelerou um pouco a mudança Durante a República a urbanização progressiva contínua avassaladora fortaleceu novos sujeitos sociais e silenciou os homens do Império Mas o Estado republicano ainda tem mais ou menos a mesma estrutura do imperial apesar de já não possuir a mesma base social O Estado brasileiro é uma estrutura distante da sociedade e nele as mudanças sociais repercutem com algum atraso Além disso ele reprime toda expressão espontânea A vida política se separa da vida social ou melhor impõese sem admitir contestação à vida social A lei é uma abstração belos princípios importados que cabem mal na realidade brasileira A vida política oscila entre um liberalismo autoritário e o caudilhismo S B de Holanda quer acelerar a revolução brasileira e se impacienta com essa distância entre Estado e sociedade e com as opções limitadas de mudança Para ele não haveria revolução social plena no Brasil enquanto não se liquidassem os fundamentos personalistas e aristocráticos ibéricos e rurais em que se assenta a nossa vida social O processo revolucionário consiste na lenta dissolução das sobrevivências arcaicas da velha ordem colonial e patriarcal O Brasil vive entre dois mundos um que ainda não morreu e outro que luta para vir à luz Aqui S B de Holanda se define politicamente com nitidez ao invés de lutarmos por um personalismo contra outro propõe ele lutemos por princípios liberais e democráticos O Brasil precisa de uma boa revolução vertical que traga à tona elementos mais vigorosos substituindo os velhos e incapazes De que maneira A revolução que deve ser vertical no entanto deve incluir alguns indivíduos das classes superiores que ainda têm homens de bem apesar das suas faltas e defeitos A sociedade foi malformada nesta terra desde as suas raízes As classes cultas estão isoladas do resto da nação não por culpa sua mas por desventura sua p 135 Os operários são sujos e ignorantes mas são fisicamente superiores às elites e poderiam sêlo mentalmente também se tivessem acesso aos meios Os portadores do passado ibérico certamente reagirão a esta revolução vertical que os expurga Ela é necessária no entanto pois com a cordialidade não se funda um mundo democrático Entretanto um mundo democrático não exclui totalmente valores cordiais No Brasil são inconsistentes os preconceitos de raça e cor recusamos toda hierarquia muito rígida somos cada vez mais urbanos e rejeitamos a violência Estes valores cordiais são também democráticos Poderia haver uma articulação entre os sentimentos do homem cordial e as ideias da democracia liberal Não podemos trocar simplesmente o nosso ser cordial por esquematismos rígidos e impessoais Não podemos ignorar o nosso ritmo espontâneo próprio O que não podemos fazer é nos abandonar a ele O espírito só é força normativa quando serve à vida social e lhe é adequado A organização da sociedade deve ser um contorno feito à sua feição Não se fará uma sociedade democrática com uma engenharia social de fora para dentro reprimindo a nossa espontaneidade cordial A Filho 1987 Nossa realidade contraditória precisa ser incluída de alguma forma na construção de nossa sociedade democrática S B de Holanda parece se definir nos anos 1930 como um democrata liberal ele defende a felicidade para o maior número e até cita o utilitarista Bentham p 139 Para ele nosso mundo cordial que prefere exclui cria exceções fere o princípio jurídico da neutralidade democrática O ideal humanitário é impessoal amor para o maior número Ele se revela portanto liberaldemocrata inspirandose nas burguesias revolucionárias francesa e americana Acredita nos valores da cidadania e do individualismo norteamericanocapitalista quer para o Brasil uma constituição que dê estabilidade às relações sociais que as discipline e organize de forma universal abstrata racional neutra impessoal Entretanto teses como felicidade para o maior número amor para o maior número direitos civis para o maior número estrutura social que integra e não exclui mundo social submetido a regras impessoais e universais são também teses socialistas de um socialismo democrático pioneiro em um mundo dominado pelo modelo soviético superautoritário Em suas intervenções políticas concretas em suas raras intervenções na vida pública não gostava de interferir de um modo geral ele assumiu posições socialistas candidato a vereador pelo Partido Socialista simpatizante do Partido dos Trabalhadores Esta sua vontade de não interferir pode parecer escapismo omissão em relações às lutas públicas expressão de um certo conservadorismo Por um lado deve ser isso mesmo ele talvez tivesse um temperamento mais recolhido e frágil contemplativo por outro revela um espírito basicamente não autoritário A história pode ser produzida mas deve ser sobretudo acompanhada É preciso dar tempo esperar que os processos efetivos encontrem suas próprias soluções e não precipitarse isto é impor autoritariamente soluções Um socialismo democrático possui seus princípios seus sentimentos suas aspirações mas possui também um certo respeito pelos processos efetivos pelos fatos pelas soluções encontradas pelos próprios sujeitos do processo histórico A intervenção na história se faz sob a forma do diálogo há uma escuta atenta um acompanhamento respeitoso dos homens que buscam soluções concretas para os seus conflitos a apresentação de sugestões de interlocução de orientações que podem ou não ser absorvidas pelo processo efetivo Esta sua característica revela ainda a sua formação weberiana ele distingue a atividade do cientista das paixões do cidadão e não permite que estas se imponham ao pensamento levandoo à precipitação ao esquematismo autoritário a juízos de valor quando se trata de conhecer a realidade que se apresenta Ela revelaria também ironicamente e certamente contra a sua vontade aquilo que ele mais critica contesta e quer superar a raiz ibérica do deixe estar não vale a pena a história não se faz E deve ser por todas estas razões e outras ainda considerandose que um indivíduo são vários Escolher uma delas seria simplificálo reduzilo a um aspecto exclusivo da sua complexa e sofisticada personalidade O aspecto que nos interessa aqui no entanto é o do redescobridor do Brasil o S B de Holanda que reinterpreta o passado e vislumbra um novo futuro para o Brasil Para ele uma intervenção democrática na história pressupõe o respeito pelos seus ritmos específicos exige uma reflexão sobre o tempo que a constitui e a cadencia S B de Holanda tem uma concepção historicista do tempo histórico Seu tema é a singularidade brasileira que ele considera ainda desconhecida nos anos 1930 pois pensada até então com ideias importadas e inadequadas Os brasileiros vivem no Brasil mas não se localizam bem pois quando pensam reproduzem abstrações repetem ideias adequadas a outro lugar e não as usam para se conhecer A ideia tem de ser a expressão de um lugar histórico de um mundo social singular vivendo as suas continuidades e mudanças Ele procurará adequar seu pensamento ao tempo histórico brasileiro Sua reflexão pretende se referir ao Brasil ao seu passado e futuro à sua realidade vivida às suas mudanças e perspectivas Em Raízes do Brasil seu tema é o futuro democrático do Brasil que será uma novidade uma mudança substancial em relação ao seu passado No tempo brasileiro ele enfatiza a mudança e não a continuidade A sociedade não está dominada pelo passado pela tradição não está submetida a determinismos de nenhuma espécie e não está portanto condenada a repetilo a continuálo Mas o passado não se abole com um golpe de ficção Não se muda só porque se quer mudar A mudança é um esforço um trabalho penoso uma construção difícil tensa A tradição resiste ao novo há uma luta de vida ou morte entre os homens do passado e os homens do futuro A configuração destas lutas sociais é singular cada sociedade articula velhonovo de uma maneira particular Cada sociedade possui seu próprio ritmo de mudança e é tarefa do historiador compreender estes mundos vividos concretos específicos únicos Só a história permite compreender singularidades O ritmo da mudança brasileira é lento secular desde as rebeliões do final do século XVIII desde 180822 até hoje e ainda não se completou Sem eventos espetaculares isto é sem acelerações bruscas S B de Holanda ora se impacienta ora aceita esse ritmo ora se exalta com as forças retrógradas ora se inclina à lógica do tempo brasileiro Embora fale de revolução brasileira seu estilo é ameno brando Não se percebe ódio contra a classe dominante que apesar de seus defeitos e erros ainda possui homens de bem p 135 As elites estão isoladas da população não por inteira culpa sua mas por desventura sua p 135 A sociedade brasileira formouse mal pois a colonização portuguesa foi desastrosa Ele só é mais importante severo em relação aos colonizadores portugueses e ao mundo familiar lusobrasileiro colonial Porém sem ódios e ressentimentos a revolução não deverá ser feita contra as classes superiores mas deverá incluílas Seu estilo não é conciliador entretanto pois ele quer de fato a mudança Contudo se possível sem violência sem crimes políticos sem cair no irracionalismo As soluções que entrevê são racionais sua intenção é aproximar mais a população das elites as ideias do lugar brasileiro o Estado da sociedade civil Esta aproximação que igualaria mais que tornaria a sociedade brasileira mais homogênea mais justa mais integrada será a grande mudança revolucionária Poderá ela ser feita racionalmente pelo diálogo em plena ordem democrática sem violência Aqui aparece uma certa fluidez em sua reflexão sobre o Brasil Quem seria o sujeito desta mudança As cidades o homem urbano a mentalidade urbana são ideias muito vagas A urbanização em si as atividades desenvolvidas na cidade o padrão urbano de vida em geral os tipos humanos da cidade imporiam a mudança apenas com o seu desenvolvimento e predomínio Para Ianni S B de Holanda pensa a história do Brasil na perspectiva do Rio de Janeiro da capital do país do Estado nacional do todo visto a partir do centro político e cultural Ianni 1989 e 1994 Na nossa perspectiva S B de Holanda parece falar do Brasil do ponto de vista do homem médio urbano comerciante funcionário público profissional liberal empresários operários enfim do homem livre da dominação do senhor rural Este homem não precisa do senhor rural para viver ele encontrou outras atividades e relações nas cidades Seu objetivo é libertar todos os brasileiros daquela dominação rural Mas quanto à estratégia aos meios ao quem fará isso concretamente S B de Holanda não oferece precisões Apenas constata que há uma revolução ocorrendo no Brasil e que seu palco são as cidades Raízes do Brasil é otimista renova a esperança no Brasil A libertação da dominação tradicional a reaproximação do Estado da sociedade a criação de novas formas de convívio com novos valores que é possível realizável e não uma utopia inalcançável abrem o horizonte do Brasil à democracia Para ele o historiador deve ter a sensibilidade das inquietações presentes buscar conhecer as suas raízes para libertar o presente do passado que o inquieta e bloqueia O historiador oferecerá o conhecimento dos obstáculos que impedem a renovação Para isso ele deverá descer ao real ao vivido à sua historicidade singular às suas mudanças singulares para compreendêlas em uma relação de conhecimento estreita íntima A história não é permanente pois não submetida a leis Ela é um conjunto de durações diferenciadas o historiador realiza a descrição da mudança das sociedades humanas pronuncia o humano no tempo o que foi e não é mais A identidade histórica não é constituída pelo congelamento do passado por uma homogeneidade artificial A identidade histórica é constituída em cada presente em uma relação de recepção e recusa do passado e de abertura e fechamento ao futuro Se se olha o Brasil com este olhar as cores voltam ao seu rosto o seu horizonte se colore em múltiplas tonalidades A realidade brasileira foi e é horrorosa mas o Brasil não está condenado a ser sempre como foi Aliás ele constata a mudança já está ocorrendo e há muito Se for mais bem conhecida poderá ser mais bem produzida e acelerada Capistrano tinha razão quando via esta mudança se realizando já a partir do século XVII mas não tinha razão de terminar o século XVIII pessimista quanto às suas possibilidades Digamos que Capistrano tematizou a mudança no período colonial do XVI ao XVIII S B de Holanda retomou o mesmo tema a partir de 1808 e o trouxe até os anos 1930 Se em Capistrano o espírito brasileiro portador da mudança se exprimiu no sertão contra o litoral português em S B de Holanda este espírito vai ser continuado nas cidades contra o mundo rural português e também contra o sertão de Capistrano ainda muito ibérico familiar e católico A mudança em S B de Holanda se radicaliza e se amplia o horizonte brasileiro se abre e o seu espírito se enche de otimismo Raízes do Brasil é um clássico que repercutiu pouco afirma Carlos Guilherme Mota Talvez pelo seu estilo mais erudito e refinado que fala da revolução brasileira sem esquematismos palavras de ordem e ressentimento Talvez também por não identificar com mais precisão o sujeito desta revolução e não estimular nenhum setor da sociedade em particular para a sua realização Talvez também por sua tendência a não interferir de forma mais peremptória na realidade social Talvez ainda por ser mais uma interpretação do Brasil do que uma proposta de transformação do Brasil quando cumpre transformálo Talvez finalmente por escrever sobre o Brasil para as suas elites iletradas e exiladas em sua própria terra que desprezam e não leem livros escritos em língua portuguesa nem os autores brasileiros e para uma população dominada pelo analfabetismo e pela herança do deixe estar portuguesa Raízes do Brasil talvez e ainda tenha repercutido pouco por suas virtudes um texto sofisticado erudito pouco acessível embora pareça fácil Apesar de suas virtudes o livro manteve a distância que criticava entre a ideia e o seu lugar embora apresentasse uma das ideias do Brasil mais adequadas à sua realidade F H Cardoso o considera uma miniatura de pintor que revela mais pelas minúcias do que pela obra como um todo É um livro moderno democrático otimista crítico e sensível Cardoso 1993 S B de Holanda não tem razão quando afirma que considerava o seu próprio livro superado e plenamente datado ensaístico meramente interpretativo e não uma pesquisa rigorosa e exaustiva Semana 199221 Primeiro porque superados e datados são todos os clássicos da historiografia brasileira e nem por isso deixam de ser clássicos Datados são superadosconservados dialeticamente perduram atravessam as épocas segundo porque ensaios e interpretações históricas são importantíssimos para a pesquisa rigorosa e exaustiva posterior são seminais oferecem ideias e sugestões de pesquisa monográfica oferecem uma síntese uma visão global que têm valor inestimável mesmo que instáveis lacônicas e precárias Aliás uma síntese não é feita para fechar ou encerrar um debate ela o abre e orienta ela é uma referência um interlocutor um quadro teórico Raízes do Brasil abriu e orientou um debate fecundo sobre o passado e o futuro do Brasil tornouse uma referência uma interlocução um quadro teórico indispensável ANOS 1950 NELSON WERNECK SODRÉ O sonho da emancipação e da autonomia nacionais N W Sodré um Marxista Pioneiro e Controvertido Nelson Werneck Sodré militar professor da Escola de Comando e EstadoMaior do Exército de 1948 a 1950 diretor do Departamento de História do Instituto Superior de Estudos Brasileiros Iseb desde a fundação até sua extinção pelo Golpe de 1964 é autor de vasta e variada obra produzida entre 1938 e 1980 Escreveu sobre a história da literatura brasileira sobre a história da imprensa brasileira sobre a história militar do Brasil e sobretudo escreveu várias obras importantes sobre a história brasileira entre as quais se destacam Introdução à revolução brasileira 1958 Formação histórica do Brasil 1962 As raízes da Independência 1965 e História da burguesia brasileira 1964 Nossa análise da sua interpretação do Brasil tomará como base a sua História da burguesia brasileira e o texto Modos de produção no Brasil que apareceu no livro Modos de produção e realidade brasileira organizado por R A Lapa 1980 no qual ele retoma as suas teses sobre o Brasil formuladas nos anos 19501960 treplicando aos seus críticos Konder 1991 Sodré nasceu em 1911 numa família de escritores viveu num ambiente culto e desde cedo dedicouse à literatura Cursou o Colégio Militar Sua autobiografia ele a fez em Memórias de um soldado 1967 e em Memórias de um escritor 1970 Sodré era militar e comunista o que não é nada incompatível embora depois de 1964 os militares brasileiros se tenham tornado a expressão mais feroz do anticomunismo Sodré é um militar pré1964 e pertencia ao grupo mais numeroso do que se imagina dos militares ligados ao PCB Nos anos 193040 sua perspectiva teórica sofreu influências de autores materialistas vulgares como Haeckel e Buchner Segundo Konder ele próprio reconhecia que naquela época possuía um conhecimento precário do materialismo histórico Só nos anos 195060 ele aprofundou os seus estudos do marxismo e reformulou algumas de suas posições como por exemplo a sua história da literatura de 1938 em que conectava de forma determinista os fenômenos culturais ao processo de produção Entre os anos 195060 ele foi especialmente ativo publicou vários livros ofereceu vários cursos criou uma história nova do Brasil para atingir a escola básica e média Em 1964 ele e seus colaboradores também sofreram o golpe Sodré passou uma temporada na prisão militar e sua história nova foi proibida O que não o impediu de continuar a sua obra incansavelmente Konder 1991 Após a derrota de 1964 apesar de ele também ter sido perseguido pelos golpistas as esquerdas obrigadas e se rever e a se recompor o tomaram como o símbolo do pensamento do PCB que as conduzira à derrota Sua interpretação do Brasil sua teoria da revolução brasileira tinhaas levado à derrota Foi duramente atacado por seus companheiros com uma espantosa veemência marxismo cristalizado esquemático e apressado dogmático vulgar etapista evolutivo linear imitativo soviético com parâmetros pedestres teoriaficção arbitrária contraditória que não se refere aos processos objetivos Sodré enfrentou terríveis desafios teóricos e políticos endureceu a pele e anestesiou a sensibilidade estrategicamente Corajoso teimoso sempre sustentou com vigor e clareza o seu ponto de vista jamais fugiu ao combate chegando até a usar também palavras duras bélicas perdendo um pouco a serenidade Sodré 1986 O debate deixou de ter a sobriedade da discussão teórica conceitual para ganhar a turbulência da discussão política e até pessoal Konder 1991 Mota 1978 Aliás se se pode censurar o marxismo como teoria social seria pela tendência que predomina entre os seus debatedores teóricos de nunca terminarem sobriamente isto é teórica e conceitualmente o seu debate Este geralmente termina em luta de classes em tomadas de posição impedindo o avanço da discussão que necessariamente exige a abertura ao diálogo e a revisão de posições que parecem autoevidentes A discussão marxista da revolução brasileira mistura teoria e prática enquanto o conceito de práxis as articula dialeticamente A dificuldade encontrada pelos teóricos da revolução brasileira sempre foi a de realizar esta articulação dialética foi a de compreender o pensamento dialético sempre entendido como uma mistura uma confusão uma não separação uma desarticulação uma submissão de um polo ao outro Em geral a ação dominou a teoria o imediato a mediação tornandoa radical perigosa sistemática fechada ineficaz enfim cega surda verborreica e muito autoritária apesar de corajosa A práxis não dialética esvazia a subjetividade e torna a ação uma intervenção técnica imposta de cima e do exterior como uma manipulação pragmática da sociedade reificada O lado teórico dessa práxis submete a história a leis de evolução buscando uma verdade absoluta determinista não criticável Quando na verdade o conceito dialético de práxis inclui a subjetividade escolhas A sociedade não é transformada mas autotransformase através de um debate críticoprático que constrói uma verdade histórica e relativa e por isso mesmo objetiva pois aberta ao novo ao tempo O pensamento dialético é criativo interrogativo reformulador autocrítico inquieto pois reconhece a dimensão subjetiva e temporal da realidade social e não procura apagar a diferença temporal em um sistema que criaria uma falsa estabilidade Konder 1988 N W Sodré o PCB e a História do Marxismo no Brasil N W Sodré é o teórico marxista mais importante dos anos 1950 embora não fosse o único historiador marxista importante Ele será tomado aqui como teórico do PCB do seu projeto de revolução brasileira e portanto ligado à tradição do redescobrimento do Brasil Aquele povo quase sem consciência capitanial que levara Capistrano ao ceticismo aquele povo miscigenado que levara as elites lusobrasileiras a excluílo da vida social e política e ao ceticismo quanto ao futuro do Brasil aquele povo conquistado colonizado escravizado estuprado violentado castigado capado e recapado sangrado e ressangrado oprimido e excluído aquele povo de filhos de escravas e índias e de brancos pobres agora em 1950 cultiva o sonho de redescobrir o seu país impondose às elites brancas suas descobridoras e conquistadoras e rompendo com a dominação imperialista Aqueles mestiços sonham com a liderança com o poder interno acompanhado da emancipação externa da autonomia nacional e do socialismo que as elites brancas não puderam não souberam ou não quiseram realizar Em 1922 a Semana de Arte Moderna já valorizara o tupi e o PCB valorizara o negroescravo e o brancooperário da nossa identidade Há uma aceleração otimista da história brasileira a partir dos anos 1920 a revolução brasileira é pensável e possível isto é a ruptura com o passado brasileiro horroroso estava ao alcance dos brasileiros que o haviam sofrido Este povo se agita no sertão nas cidades e no litoral e quer produzir a mudança acelerála Desde os anos 1920 a sociedade brasileira se tornou mais complexa emergiram as classes médias e a pequena burguesia a população urbana cresceu alterando a vida cultural a industrialização avançou criando novos sujeitos sociais consolidando as relações de produção capitalistas e o desenvolvimento das forças produtivas Ianni 1989 e 1994 Entre 1922 e 1964 o marxismo foi a teoria social que deu uma voz vigorosa através do PCB ao chamado povo brasileiro Uma voz entretanto mais vigorosa do que rigorosa O marxismo que desembarcou no Brasil em 1922 não foi o original alemão e marxiano mas o marxismoleninismo soviético Os revolucionários brasileiros de então eram mais corajosos vigorosos e contundentes do que lúcidos teoricamente Estavam mais possuídos pela teoria dominados por uma lógica incontrolável absoluta do que seus utilizadores seus possuidores e controladores A recepção de Marx foi problemática O marxismo que chegava já era uma doutrina sistemática e dogmatizada e o ambiente que o acolheu dominado pelo positivismo e pelo catolicismo exacerbados também era sistemático e dogmático Aqui o marxismoleninismo se supercristalizou e os seus portadores se sentiam superhomens demiurgos da história a partir de um zero temporal ignorando as resistências do passado Konder 1988 Entretanto afirma Quartim de Moraes a característica mais notável do pioneirismo intelectual comunista no Brasil é o seu estilo contraditório uma teoria dogmática levou a algumas observações pertinentes sobre a dinâmica objetiva do processo histórico brasileiro Apesar do seu dogmatismo os intelectuais brasileiros analisaram o Brasil com mais lucidez do que os intelectuais das classes dominantes liberais e culturalistas O dogmatismo era necessário a teoria tornavase arma de combate tornavase a almaarma da ação de homens frágeis Ela dissipava dúvidas e dores e reanimava a combatividade Moraes defende com alguma razão os pioneiros comunistas especialmente Octávio Brandão que foi considerado um teórico esquemático simplificador autoritário obreirista por Konder deles não se poderia cobrar não seria justo sofisticação e refinamento teórico Eles tentaram conciliar Comte Spencer e Marx é verdade mas isso não impediu a originalidade de seu pensamento e a agudeza de suas análises da sociedade brasileira Moraes 1991 Entretanto quando Konder e outros críticos os censuram nós consideramos que eles só estão sendo exigentes com a análise teórica que orienta a ação eficiente exigência que é indispensável A crítica teóricoprática não pode ser indulgente e protetora por maior que seja a simpatia e a admiração pelos pioneiros Moraes divide a história da consciência marxista no Brasil em três fases primeira etapa dogmática précrítica marxistaleninista quando predominou uma consciência opaca feita de certezas cegas 192040 segunda fase de autonomização teórica 194060 terceira etapa de revisão crítica generalizada um retorno às fontes do pensamento revolucionário época da luta armada pós1960 Essas etapas da consciência marxista brasileira não são etapas necessárias e lineares ele esclarece e nem se deduzem uma da outra Os nexos entre elas são históricoconcretos Não foi uma evolução teleológica não representou um progresso são transformações que se deram concretamente historicamente sem a ideia de síntese ou salto qualitativo Cada etapa tem a sua lógica interna particular e deve ser considerada em sua época em sua situação em suas condições e circunstâncias Os pioneiros devem ser vistos em seu contexto e em suas possibilidades exigir deles mais do que poderiam oferecer é não ser sofisticado e refinado teoricamente e além disso é ser injusto eles são julgados e condenados em um processo malinstruído Moraes 1991 Moraes continua com razão parcialmente este respeito e admiração pelos pioneiros não pode levar ao silêncio reverente ao fim do debate crítico severo G Mantega também é brando com os pioneiros Ele considera que apesar do dogmatismo inicial os pensadores econômicos marxistas exerceram uma influência decisiva na constituição do pensamento econômico brasileiro Somente após 1950 a teoria terá um tratamento apropriado quando despontaram os grandes expoentes do pensamento econômico brasileiro Mantega também oferece uma periodização do pensamento marxista brasileiro primeira etapa materialismo primitivo penetração do marxismo na economia brasileira época marcada pelo PCB e por Caio Prado Jr 192040 segunda materialismo funcionalista consolidação das ideias marxistas Caio Prado maduro Celso Furtado F Rangel N W Sodré 194060 terceira materialismo dialético maturidade do pensamento econômico marxista P Singer M C Tavares F Oliveira F H Cardoso e outros do chamado grupo dO capital pós1960 Mantega 1991 Essas duas periodizações do pensamento marxista brasileiro são convergentes e parecem corretas Ambas revelam o mesmo sentido o do distanciamento do marxismoleninismo soviético da ação sem teoria adequada à singularidade da realidade brasileira e da busca de uma teoria marxista mais racional conceitual sóbria e serena mais crítica pois apropriada à realidade brasileira E mais eficaz historicamente pois a ação será mais bem conhecida e orientada Entretanto ambos Moraes e Mantega apesar de perceberem um sentido caracterizado por um controle progressivo da teoria uma adequação superior de cada uma das três fases à realidade brasileira não desvalorizam a primeira fase pelo contrário percebem as suas limitações como historicamente condicionadas e admiram a sua capacidade de irem até além dos recursos que possuíam Interessanos no entanto localizar N W Sodré nesta história do pensamento marxista brasileiro e essas duas periodizações foram mencionadas para nos apoiar nesta tarefa Consideramos que ambas misturam por exemplo os lugares ocupados por Sodré e pelo outro autor que analisaremos a seguir Caio Prado Jr não distinguem bem as posições e épocas de um e de outro Eles são postos juntos na segunda fase nos anos 1950 na etapa de autonomização teórica Moraes e na do materialismo funcionalista Mantega Na nossa análise percebemos que N W Sodré está mais para a primeira fase e Caio Prado mais para a terceira fase Sodré é mais pioneiro do que teoricamente autônomo e Caio Prado tende a ser materialista dialético revisor crítico embora seja mais materialista funcionalista Ou melhor Caio Prado pertenceria à segunda fase seja ela denominada autonomia crítica ou materialismo funcionalista mas tendendo para a terceira fase N W Sodré pertenceria à primeira fase embora estivesse em seu apogeu nos anos 1950 Ele é o que há de melhor da primeira fase de mais elaborado e argumentado mais lúcido e não caberia na segunda nem na terceira fases Não se trata aqui de prestigiar um e desprestigiar o outro mas de situálos Consideramos também com Moraes que cada etapa tem a sua lógica interna particular e deve ser avaliada para ser apreendida e conhecida em sua historicidade Caio Prado esteve presente nas três fases mas tende para a segunda e terceira fases pois foi sempre um inadaptado ao PCB Ele foi um dos primeiros a analisar o Brasil com um marxismo já póspioneiro em 1933 N W Sodré pertence à primeira fase embora tenha produzido intensamente ao longo da segunda e terceira fases sem perder a sua condição de pioneiro Sodré e Prado são interlocutores agressivos que confrontam análises e projetos distintos sobre e para o Brasil Apesar de ter escrito a sua História da burguesia brasileira em 1964 Sodré é um intelectual típico dos anos 192050 quando o PCB procurava agitar as massas e se articular com os seus líderes burgueses populistas Apesar de se ter consolidado somente nos anos 1950 com Sodré e Passos Guimarães o modelo da análise e revolução democráticoburguesa foi elaborado nos anos 1920 Portanto a análise e o projeto de Sodré correspondem aos anos 192264 a análise de Caio Prado corresponde à fase posterior a 1964 mesmo quando ela é anterior a 1964 19334245 Mantega 1984 O movimento comunista internacional esteve dividido entre as influências de LêninStalin e Trotski revolução nacional democráticoburguesa versus revolução permanente internacional Sodré alinhouse mais à análise de LêninStalin dos países subdesenvolvidos e coloniais e Caio Prado talvez e mais indiretamente à análise trotskista De um lado a revolução nacional democráticoburguesa antifeudal e antiimperialista Lênin Stalin PCB e Sodré de outro a luta do proletariado pela independência nacional e a longo termo pelo socialismo Trotski Caio Prado Sodré alinhase às teses da III Internacional Caio Prado talvez às teses da IV Internacional As relações entre Sodré e as teses da III Internacional são explícitas e diretas as relações de Caio Prado com as teses da IV Internacional são implícitas indiretas e hipotéticas A partir dessas duas orientações os marxistas brasileiros chegaram a pelo menos duas interpretações dos modos de produção no Brasil Os herdeiros de Lênin e da III Internacional o PCB e suas dissidências e particularmente N W Sodré identificaram relações de produção semifeudais ou précapitalistas na estrutura econômicosocial brasileira Os que estavam sob a influência de Trotski e da IV Internacional desconsideravam a existência de relações de produção précapitalistas subordinandoas às relações capitalistas subdesenvolvidas Os primeiros feita essa análise orientaramse para uma revolução democráticoburguesa antifeudal e antiimperialista Os segundos feita a sua análise propunham uma revolução permanente que desembocaria no socialismo sem a etapa intermediária da revolução democráticoburguesa Embora Caio Prado não se enquadre explícita e conscientemente nesta segunda influência podese perceber no seu pensamento uma convergência com essa matriz internacional Mantega 1984 N W Sodré portanto desenvolve uma análise do Brasil estreitamente ligada à análise do PCB que estava ligado à III Internacional ao comunismo soviético ao marxismo stalinista Nos anos 1950 ele elaborou de forma teórica as intuições e repetições dogmáticas do marxismoleninismo dos militantes do PCB Lênin em sua análise da Rússia czarista sustentava já em 1905 a iminência de uma revolução democráticoburguesa que deveria implementar transformações econômicopolíticas de caráter antifeudal preparando o terreno para o socialismo O PCB aplicava a mesma análise à realidade brasileira A ação a ser desenvolvida era a da revolução democráticoburguesa pois as condições econômicas e políticas do Brasil indicavam que o socialismo só seria atingido após um período de transformações burguesas que eliminaria os entraves feudais e quando se removeriam os obstáculos ao desenvolvimento das forças produtivas Mantega 1984 sintetizando o pensamento dos autores a análise de Padro x Sodré Feita a revolução democráticoburguesa pela burguesia nacional associada ao proletariado e ao campesinato o capitalismo brasileiro se desenvolveria rompendo com a dominação feudal e abrindo às massas a participação política democrática As condições democráticas burguesas seriam favoráveis à luta socialista As transformações democráticas enfraqueceriam as classes dominantes feudais diante da burguesia e fortaleceriam o proletariado A III Internacional esteve dominada pelas questões nacional e colonial A luta era contra o imperialismo e pela integração capitalista nacional que abriria o horizonte socialista Apesar do risco que o proletariado correria ao apoiar a burguesia em sua revolução democráticoburguesa risco apontado por Roy Lênin defendia a necessidade desse apoio e colaboração O proletariado dos países coloniais e atrasados é frágil assim como a sua burguesia nacional Frágeis unidos se fortaleceriam em bloco contra as forças feudais aliadas ao imperialismo Não se pode queimar etapas lutar pelo socialismo naquele momento era lutar pela industrialização capitalista que representaria a autodeterminação nacional o desenvolvimento das forças produtivas a democracia burguesa e a melhoria das condições de vida dos trabalhadores Foram essas as orientações internacionais que conduziram o pensamento marxista brasileiro entre 192264 Segundo essa análise aplicada ao Brasil cujo principal formulador será N W Sodré a sociedade brasileira do início do século XX seria semicolonial e semifeudal sob o domínio do latifúndio e do imperialismo resistindo ao avanço das forças produtivas e da nação reivindicado pela burguesia brasileira e pelo povo O caminho para o socialismo no Brasil exigiria passar primeiro pela etapa da revolução nacional e democrática que eliminaria os restos feudais libertaria o povo da opressão do latifúndio expulsaria o imperialismo e fundaria uma sociedade democrática Essas eram as bandeiras do PCB desde 1922 O Brasil estaria em transição do feudalismo ao capitalismo dominado pelos interesses dos grandes latifundiários aliados aos imperialistas contra os quais as forças progressistas deviam lutar O caráter nacionalista da revolução brasileira reuniria o proletariado os camponeses e a burguesia nacional Mantega 1984 Essa interpretação do Brasil que predominou entre 192064 BresserPereira a denominou nacionalburguesa Ela veio se opor à interpretação da vocação agrária que dominara sem contestação até os anos 1920 e era a interpretação dos descendentes dos descobridores do Brasil o Brasil é essencialmente um país agrícola cheio de riquezas naturais e cordialidade mas tropical e mestiço portanto inferior BresserPereira considera perigoso reduzir essa interpretação tradicional a algumas teses pois vários dos seus defensores foram autores inovadores e mais críticos Mas fundamentalmente os descobridores se ufanam da sua descoberta o Brasil não é um país subdesenvolvido mas rico e cheio de futuro com uma vocação agrícola definitiva Pereira 1979 Os intérpretes nacionalburgueses são radicalmente críticos e redescobrem o Brasil percebendoo agora como uma cultura dominada heterônoma amorfa inautêntica ornamental com um complexo de inferioridade colonial E isso porque a sociedade brasileira é dominada pelo bloco oligárquicoagrário mercantil aliado ao imperialismo que se opõe à industrialização brasileira buscando manter o status quo semicolonial semifeudal e primárioexportador Estes se ufanam porque querem garantir a continuidade do mundo que o português criou Os outros são céticos e críticos em relação a esse mundo neoportuguês mas otimistas com relação ao mundo brasileiro que querem construir moderno industrial desenvolvido autônomo urbano e finalmente socialista A estratégia que o PCB e Sodré criaram para a construção deste mundo é que talvez fosse excessivamente otimista ingênua a liderança do bloco revolucionário seria da burguesia nacional a burguesia industrial nascente voltada para o mercado interno nacionalista progressista Além do PCB tais teses eram também defendidas com variações por outros grupos como o Iseb ao qual Sodré também pertenceu e a Cepal Pereira 1979 No Brasil pós1945 a história do Brasil sofrerá radicais reinterpretações em várias tendências O tema que predominará será o da mudança o da transição da sociedade baseada no capitalismo agrário para a sociedade baseada no capitalismo industrial Isto é o tema que predominará no pensamento social que enfatiza a mudança será o da revolução brasileira caracterizada como burguesa ainda Discutemse então as relações de produção no campo e nas cidades as relações de produção e a consciência nacional o imperialismo as lutas de classes as classes e o Estado As interpretações do Brasil vigentes não correspondiam mais às condições e perspectivas criadas nos anos 19203040 Após a II Guerra a queda de Vargas a ascensão da URSS e dos Estados Unidos o novo Brasil urbano precisava ser reinterpretado A visão marxista do Brasil se consolidou então Na visão marxista a história brasileira é analisada em seus processos estruturas e relações sociais Os grandes eventos e personagens históricos da historiografia oficial são recriados à luz das formas de vida e trabalho privilegiamse as relações sociais que os homens estabelecem para engendrar a sua produção material as suas contradições e lutas A análise materialista privilegia o conceito de modo de produção Ianni 1989 e 1994 Entretanto nessa fase pioneira do marxismo a teoria é ainda mal conhecida e mal utilizada na compreensão do Brasil O domínio da teoria marxista por Sodré será considerado por muitos dos seus críticos como muito precário Carlos Guilherme Mota referese ao marxismo de Sodré como dependente da importação soviética é uma ideia do Brasil delirante fora do lugar que se equivocou na análise do passado brasileiro e das expectativas e propôs uma ação no presente também equivocada Moraes entretanto considera o seu marxismo menos economicista do que o de Caio Prado ele não reduzia o político ao econômico Ao contrário é central em seu pensamento a valorização da nação Ele teria sido mais usado do que entendido Mota 1978 Moraes 1991 Sodré teria sido mal lido e mal interpretado pelos seus críticos Reconsideremos as suas teses sobre o Brasil a sua interpretação do Brasil em busca de uma melhor compreensão de Sodré e através de suas teses de uma melhor compreensão do Brasil Nosso objetivo será o de compreender Sodré como fizemos com os autores precedentes em sua época e circunstância para também compreendermos a visão marxista do Brasil dos anos 1950 Retomaremos algumas de suas observações e avaliações do Brasil situandoo na história do pensamento marxista brasileiro na conjuntura histórica em que se produziu Uma compreensão mais crítica do seu pensamento será obtida quando confrontado com as demais interpretações marxistas do Brasil que serão apresentadas adiante Os Tempos do Brasil o Passado Colonial e a Revolução Brasileira A sua História da burguesia brasileira ele a inicia com uma discussão teórica a dificuldade para se pensar o Brasil de forma original e eficaz Ele considera que a principal dificuldade para o estudo da burguesia brasileira é conceitual Os conceitos surgem em uma época e local determinados têm sua própria história e são inadequados a outros tempos e lugares outras histórias A afirmação de que Sodré é pouco crítico no uso dos conceitos marxistas que aplica ao Brasil os mesmos conceitos usados para a análise da história europeia parece infundada Afinal ele percebe a necessidade de criação de novos conceitos para o conhecimento de realidades diferenciadas Afirma que enquanto não houver conceitos novos tornase necessário usar os antigos ressignificados distinguindo os usos atuais e particulares de seu emprego original O particular é então de maneira nova rearticulado ao universal dialeticamente Sodré parece começar bem portanto a sua História da burguesia brasileira com uma discussão conceitual que procura distinguir o emprego dos conceitos marxistas em realidades diferenciadas Seu livro ele o vê como um esforço de interpretação que apoia o Brasil em sua revolução É um texto que servirá à mudança social brasileira Ele próprio admite que é um livro falho insuficiente pois pioneiro Suas teses são hipóteses de trabalho suscetíveis de revisão e o autor se mostra o mais interessado em revêlas Ele quer conhecer o papel da burguesia nacional na revolução brasileira é um estudo científico e ao mesmo tempo engajado na mudança do Brasil Propõe uma teoria da ação burguesa Sodré parece quanto às declarações iniciais invalidar as críticas que lhe foram dirigidas ele não importa simplesmente a teoria marxista soviética procura adequála à realidade brasileira ressignificando e adaptando os seus conceitos não é dogmático pois formula hipóteses de trabalho que está pronto a rever Isso quanto às declarações de intenções iniciais A descoberta do Brasil ele a situa no contexto da transição do feudalismo ao capitalismo na Europa As relações de produção ainda eram predominantemente feudais embora começassem a se transformar Era a época da revolução comercial A mudança era produzida pela atividade mercantil na esfera da circulação de mercadorias a longa distância Constituíase o mercado mundial Nesse contexto a península Ibérica se destacou Os grupos mercantis portugueses e espanhóis se associaram ao rei na expansão ultramarina Mas Portugal e Espanha eram ainda feudais e esses grupos mercantis não eram ainda plenamente burgueses Nos séculos XVI e XVII a península não tinha ainda uma burguesia predominante e ainda não era capitalista Foi uma sociedade feudal portanto que descobriu o Brasil A exploração das novas terras seria feita em proveito da classe feudal dominante Não encontrando imediatamente metais preciosos Portugal teve que montar um sistema de base agrária e trouxe recursos materiais e humanos de outras áreas para explorar o solo do Brasil Os holandeses obtinham mais lucro na distribuição da produção colonial Mas se o feudalismo predominava em Portugal ele não predominará no Brasil apesar da legislação inicial da colonização ter sido feudal No início da colonização predominará no Brasil um modo de produção escravista Este será absoluto até o século XVII A partir daí será apenas dominante Tratase de um escravismo específico moderno e não clássico Aqui ele não foi o resultado da deterioração da comunidade primitiva indígena não teve origem interna mas externa Surgiu da expansão colonial précapitalista vigorando nas áreas coloniais coexistindo com o feudalismo Foi imposto e mantido pela violência A produção e a exportação de produtos primários seriam impossíveis sem o tráfico negreiro A escravidão era imprescindível para a produção de grande excedente de produtos primários para exportação Além disso o escravo era rentável tanto na produção quanto no comércio A Inglaterra usou o tráfico negreiro como uma das alavancas do seu avanço capitalista O sentido da produção colonial é o mercado externo se este comércio se expande a escravidão se aprofunda Essa economia escravista colonial se caracteriza pelo desperdício pela depredação de recursos naturais pela destruição do trabalhador Enquanto a circulação predomina sobre a produção o escravismo será funcional para o capitalismo Enquanto prevalecer o capital comercial a escravidão continua Deixará de existir quando o capital industrial vier a predominar Mas no Brasil o escravismo moderno não foi o único modo de produção existente embora predominante Houve um feudalismo no Brasil em vastas áreas que conviveu com o escravismo litorâneo Tanto no Brasil colonial como no independente relações de produção feudais conviveram e sucederam ao escravismo Este se limitou ao litoral açucareiro às minas ao algodão e café voltados para o mercado externo Mas nas atividades de subsistência as relações feudais se estabeleceram na pecuária sertaneja na área vicentina no Sul na área coletora e extrativista da Amazônia Nesses locais desenvolveramse atividades voltadas para o mercado interno ou só para o consumo local Quando houve o declínio do açúcar no Nordeste e da mineração em Minas o feudalismo ocupou engenhos e minas A pecuária oferecia ao litoral carne couro e transporte A existência desse comércio interno não alterava a realidade do feudalismo O seu isolamento não é absoluto Nesse mundo feudal brasileiro havia poucos homens a mão de obra era em menor número havia abundância de animais Viviase em uma economia natural Do início da colonização até meados do século XX essa área feudal ampliouse No sertão os fazendeiros são verdadeiros senhores feudais As relações são de dependência pessoal O servo presta serviços ou contribui em espécie A família é a célula social Há questões de honra resolvidas pela vingança Há banditismo disfarçado de religião Os bandeirantes são como bandos medievais A mão de obra era indígena mais servil do que escrava As relações feudais dominam a quase totalidade da extensão territorial colonial cercando as áreas escravistas litorâneas A servidão é ainda um espetáculo atual no Brasil Ela vem de longe ou apareceu desde o primeiro momento ou se impôs após o declínio da produção escravista Ampliouse e hoje entrava a implantação do capitalismo no Brasil No século XVIII quando do declínio da mineração houve uma regressão feudal Tratase de regressão quanto à quantidade de riqueza produzida Sodré insiste em que não está aplicando cegamente a teoria na teoria marxista a passagem ao feudalismo seria um avanço mas no Brasil a teoria precisa ser ressignificada a passagem ao feudalismo coincidiu com o declínio econômico e suas consequências foi uma regressão Portanto se a França no século XVIII fez a sua revolução burguesa e se juntou à Inglaterra se as suas burguesias venceram o feudalismo no Brasil nessa mesma época a revolução é feudal A Europa sai do feudalismo e entra no capitalismo quando o Brasil chega ao feudalismo Havia rebeldes no Brasil com propostas mais avançadas burguesas república indústria independência liberdade comercial Mas não havia na colônia a classe que pudesse sustentar um tal projeto ou seja não havia ainda a burguesia brasileira O Estado brasileiro independente surgia e se consolidava derrotando os movimentos republicanos e industrializantes Os senhores de terras e de escravos lutaram pela emancipação política e pela liberdade de comércio e não pela industrialização O quadro apresentado pela economia colonial e herdado pelo Brasil independente era triste tudo era importado e pago com produtos primários O mercado interno e a produção para o consumo interno eram quase inexistentes A moeda circulava de forma restrita As possibilidades de acumulação interna eram reduzidas Não se haviam criado as condições para a emergência da burguesia brasileira A estrutura social do Brasil independente era a mesma da colônia No movimento da independência que sufocou as rebeliões com projetos mais radicais a classe senhorial venceu mas o Brasil pagou um alto preço As mudanças mais radicais foram eliminadas No final do século XIX com a abolição gradual do tráfico foram introduzidos imigrantes europeus e asiáticos na cafeicultura Esses estavam longe de ser trabalhadores livres Eles mantiveram relações feudais típicas Foram comprados como se compravam escravos As relações feudais vêm substituir quase completamente as escravistas em 1888 A imigração acelerou o processo de feudalização que a abolição completará No Brasil não houve uma passagem direta do escravismo ao capitalismo E nem poderia ter ocorrido O imigrante teria sido um assalariado se a propriedade da terra tivesse sido alterada Após a abolição houve um alastramento das relações feudais baseadas na grande propriedade rural Sobre as ruínas do escravismo a servidão se ampliará Sodré aqui justifica a crítica que lhe fazem de etapista comunismo primitivo escravismo feudalismo capitalismo socialismo Não se pode ir do escravismo ao capitalismo diretamente queimando a etapa feudal A seu favor um ajustamento da teoria para aplicála ao Brasil que ele insiste ter feito a passagem do escravismo ao feudalismo na ortodoxia é considerada um progresso um avanço um salto qualitativo no Brasil segundo ele esse salto foi para baixo isto é esta passagem representou uma regressão econômica No entanto a nosso ver ele não deixou claro se essa regressão feudal se deu somente no século XVIII quando as minas decaíram quando a produção açucareira decaiu ou se a vinda de imigrantes e a abolição do tráfico também representaram uma regressão feudal A passagem ao feudalismo no final do século XIX com o fim do escravismo foi um avanço ou uma regressão Se foi um avanço ele retomou a ortodoxia Justifica também a crítica que lhe fazem de imitador do modelo importado quando vê no sertão brasileiro um mundo quase medieval com relações servis típicas entre senhores e servos com bandos medievais fazendo justiça e rezando Ele vê na realidade brasileira relações e personagens de outro lugar por tomar quase ao pé da letra uma teoria produzida para pensar aquele outro lugar Ainda a seu favor o fato de não fazer apenas suceder o feudalismo ao escravismo eles conviveram durante séculos O Brasil aparece em sua análise talvez até mais complexo vivendo relações de produção variadas com lutas sociais e padrões culturais diferenciados o Brasil do litoral e das minas e o Brasil do sertão do Sul e da Amazônia mundos brasileiros distintos Sodré expôs a sua caracterização das etapas escravista e feudal em seu livro Formação histórica do Brasil de 1962 E a expôs novamente em seu artigo já mencionado presente na obra organizada por Lapa 1980 A revolução burguesa brasileira que vê realizarse sobretudo a partir de 1930 e que quer ver acelerarse ele a analisará em sua História da burguesia brasileira Nela procura conhecer os sujeitos do Brasil moderno os autores da primeira grande mudança social que o Brasil conhecerá a passagem revolucionária do feudalismo ao capitalismo Ele vê a burguesia brasileira em sua infância no final do século XIX Não é uma burguesia de tipo clássico ela não implanta o capitalismo de forma independente É uma burguesia que surge já na fase imperialista do capitalismo o que condiciona o seu surgimento Sua periodização da história da burguesia brasileira primeira etapa na primeira metade do século XIX a acumulação nacional não existia segunda etapa ela vai ser absorvida pelo imperialismo sendo os seus capitais gerados internamente em sua IMPORTANTEEEE infância a burguesia brasileira enfrentará o obstáculo da estrutura colonial de produção o latifúndio colonial e a pressão imperialista produzimos mas não acumulamos terceira etapa nas duas últimas décadas do século XIX e primeiros 30 anos do século XX algo de novo se passará na história do Brasil a nova classe burguesa emergirá nessa passagem de século O Brasil se transforma então para se adaptar ao capitalismo em sua fase imperialista Verificase a luta entre o velho e o novo Brasil entre a classe tradicional com seus privilégios e uma classe que engendrada no ventre daquela expressão que ele aprecia começa a ter um papel inovador Mas esse processo revolucionário será muito lento O capitalismo não surge do fim do escravismo ou não surge sozinho A deterioração progressiva do escravismo é acompanhada por dois processos o da ampliação das relações feudais que talvez fossem um avanço em relação ao passado escravista mas um obstáculo à aceleração do outro processo que também surgia a introdução das relações de produção capitalistas O capitalismo surgia no final do século XIX mas bloqueado pelas relações feudais que se ampliaram O escravo não passou a assalariado ele atravessou a etapa feudal consumindo nisso pelo menos uma ou duas gerações As relações capitalistas aparecerão ligadas à imigração embora o imigrante também estivesse envolvido por relações feudais As relações capitalistas que emergem nesse processo longo e tortuoso na área cafeeira paulista seriam mais ou menos parecidas com as do fim do medievalismo não são puras e não se generalizam Elas sofrerão ainda por muito tempo o peso feudal as formas intermediárias múltiplas A burguesia nasce do ventre do latifúndio e traz as marcas da sua origem Após a República a indústria não foi protegida e foi até perseguida A indústria nacional foi liquidada paradoxalmente em defesa do consumidor brasileiro Argumentavase que ela não poderia ser uma indústria artificial que não deveria ser estimulada e protegida mas mantida em um ritmo natural A indústria brasileira avançou durante as primeiras décadas do século XX em um ambiente anti industrialista enfrentando todo tipo de obstáculo A I Guerra acelerou esse avanço o imperialismo se afastou Mas após a guerra ele voltou a nos dominar A burguesia brasileira fortalecida durante a guerra resistiu Ela passa a lutar pelo poder O Brasil vivia então em um ritmo de roda quadrada moviase por lances bruscos que abalam a estrutura da sociedade Ora exportava bem ora estava em crise Na hora da crise a importação era dificultada e a indústria nacional crescia Por um lado a indústria foi financiada pela transferência da renda agrícola e por outro pelo arrocho salarial Tradicionalmente se interpreta a industrialização brasileira como promovida pelas guerras e pelas crises de exportação Isto é verdade em parte Mas é um erro supor que as transformações profundas são suscetíveis de reversão Depois da guerra e da crise o Brasil não retornou ao seu quadro anterior o que fez com que a industrialização não fosse ocasional mas um processo contínuo e complexo A guerra e a crise a impulsionavam mas não eram a sua causa Passadas ambas ela continuou até mais forte pela ausência mesma daqueles fatores de impulso Em sua infância da burguesia dois personagens se destacam o fazendeiro de café que deixou de ser senhor para ser empresário e o imigrante Os imigrantes serão mais agressivos pois não têm nenhum compromisso com o passado Após a I Guerra a burguesia brasileira teve um impulso significativo e manteve a sua ascensão Abriuse uma fase de intensa luta política A indústria artificial enfrentaria os seus adversários da vocação agrícola A mudança se aprofundava embora a sociedade brasileira não se desse conta de que mudava A sociedade acreditava somente na economia de exportação estava habituada a descrer do que era nacional a subestimar tudo o que lhe pertencia e a ela própria excluída e desprestigiada pelas elites Desde que a economia de mercado começou a preponderar a burguesia brasileira passou a lutar pelo poder e a forçar a mudança O Estado republicano estava em descompasso com as relações de produção e as forças produtivas dominantes O Estado estava dominado pelo latifúndio e precisava ser alterado Em 1929 a consciência da necessidade de reformas chegou à concretização A revolução de 1930 foi um episódio marcante da ascensão burguesa no Brasil e teve este sentido adaptar o aparelho de Estado obsoleto às necessidades da expansão burguesa As agitações dos anos 1920 revelavam essas necessidades que 1929 tornará definitivas Os militares foram a vanguarda da burguesia brasileira Eram de origem pequeno burguesa e foram a alavanca que a burguesia usou para alterar a ordem vigente A revolução de 1930 representou a necessidade de derrotar o latifúndio A crise de 1929 enfraqueceu a economia exportadora e acelerou esse processo Entretanto após um rompimento rápido com o latifúndio a burguesia brasileira tendeu a comporse com ele para controlar a agitação que se aproveitava da situação de crise Após a luta burgueses e latifundiários fizeram uma aliança que garantiu a ordem tradicional Mas o latifúndio fora golpeado e a burguesia ascendeu com vigor Pós1930 houve um surto industrial significativo e um crescimento do mercado interno As relações de produção capitalistas avançaram Junto com a burguesia ascendeu o proletariado A burguesia se afastou então das classes que a apoiaram no desalojamento das velhas oligarquias traindo as classes e camadas que a apoiaram em sua ascensão A revolução burguesa foi amputada e frustrada A burguesia brasileira cresceu aceleradamente entre 1930 e 1945 o mercado interno predominou sobre a exportação Pós1945 o imperialismo retornou para nos drenar mudando a sua forma de ação Ele se implantou no mercado interno então constituído Não havia mais oposição à indústria artificial em favor da lavoura O imperialismo apoiou a indústria brasileira nela investindo Ao vir para o interior o imperialismo se chocava com a burguesia nacional Viverão uma contradição aguda em sua luta pelo mercado interno O imperialismo teve o apoio do latifúndio semiderrotado que queria limitar o poder da burguesia brasileira A burguesia brasileira não podia lutar sozinha contra a associação imperialismolatifúndio Ela precisava do apoio das forças populares Aquela associação as forças do atraso levaram Getúlio Vargas ao suicídio Os seus sucessores serão os representantes dos adversários da burguesia brasileira que defendia o desenvolvimento com democracia Para lutar contra as forças da reação e do atraso a burguesia necessitava de base política da pequena burguesia dos trabalhadores urbanos e dos camponeses A inquietação se alastrou por todos os níveis da vida nacional Nos anos 1950 a burguesia brasileira estava escolhendo o seu destino Até aqui Sodré pretendeu fazer uma análise histórica profunda do Brasil ele olhou do presente para o passado Discutiu o contexto europeu da descoberta do Brasil os modos de produção que teriam predominado e convivido no Brasil colonial e independente o surgimento e ascensão da burguesia industrial as relações entre esta e o latifúndio o imperialismo e as classes que sustentaram o seu avanço Descreveu um processo tortuoso lento mas sempre em mudança ora o escravismo declina e o feudalismo se instala ora o feudalismo se amplia e bloqueia as relações de produção capitalistas que surgem Os três modos de produção se entrecruzam em épocas distintas com forças diferenciadas dependendo do local e da época Sob o domínio do escravismo e do feudalismo durante quase toda a sua existência o Brasil viveu em um tempo imóvel apesar de ser complexo e mutante Imóvel porque o tempo do escravismo e do feudalismo foi indiferente à novidade à aceleração viveuse isolado distante sem pressa cotidianamente repetitivamente Viveuse em um tempo ritmado pela natureza e pelas festas religiosas Se houve mudança ela não foi produzida pelos sujeitos históricos brasileiros o engenho declinou as minas declinaram e soluções foram oferecidas no limite da sobrevivência A mudança ocorre mais como uma infelicidade como uma crise incontrolável que desarranjou um mundo já muito mal estruturado que reagiu lentamente confusamente sobrevivendo com dificuldade A partir de então Sodré olhou do presente para o futuro e com raro otimismo viu a burguesia brasileira como o sujeito histórico que lideraria o proletariado o campesinato e a pequena burguesia na implantação de um tempo mais ágil mais aberto ao novo mais insatisfeito e intransigente o tempo capitalista Sodré ofereceu à burguesia brasileira a partir do PCB um programa de ação Ele via a burguesia nacional presa em uma necessidadearmadilha histórica se as condições que a sua análise revela são a do seu confronto com o imperialismolatifúndio ela teria necessariamente de procurar o apoio do proletariado e do campesinato Só agindo assim ela desempenharia o seu papel histórico do contrário ela fracassaria em sua revolução A burguesia nacional deveria assumir necessariamente uma posição antifeudal e antiimperialista No entanto Moraes tem razão em nos alertar para o fato de que Sodré não confiava assim tão cega e ingenuamente na burguesia e que explicitou em diversas passagens as dúvidas quanto à sua firmeza revolucionária a burguesia procura se associar ao mais forte sempre e este quase sempre é o imperialismo Moraes 1991 Tendo surgido do ventre do latifúndio sustenta Sodré a burguesia brasileira passou por duas fases em relação a ele na primeira coexistiu quando o desenvolvimento das relações capitalistas era compatível com o seu predomínio depois opôsse quando esse predomínio não era mais compatível com o desenvolvimento capitalista Nos anos 1950 ela estava na segunda etapa O Brasil já era praticamente burguês e tinha que conviver com o obstáculo do latifúndio A burguesia já dominava o Estado mas ainda não conseguira eliminar o latifúndio E se não podia fazêlo era porque ele tinha uma força poderosa a sustentálo o imperialismo Ao imperialismo interessava manter o Brasil no feudalismo O passado feudal estava incrustado no presente capitalista e este para desenvolverse sem peias deveria eliminálo Se a burguesia brasileira quisesse livrarse desse passado ela não tinha outra saída senão aliarse ao proletariado e ao campesinato E ela quer esta aliança As três classes desejam romper com o passado feudal e a aliança é possível mas os meios e projetos de cada uma nesta ação são muito diferentes e até opostos As três classes revolucionárias estariam de acordo o latifúndio é o principal obstáculo ao desenvolvimento pois garante a sobrevivência das relações feudais mantém a produção agrícola voltada para o mercado externo usa o Estado para fins particulares O latifúndio desestimula o mercado interno obriga o Estado a comprar a sua sempre superprodução as supersafras que obrigam à socialização das perdas endividase com o imperialismo que se torna mais rico e poderoso com a distribuição de produtos brasileiros O latifúndio já se tornara um fardo e o Estado e o povo sustentavam um peso morto Além disso monopoliza a terra não paga salários não consome produtos industrializados nacionais usa uma tecnologia ultrapassada não produz suficientes alimentos para baixar os salários não abastece as cidades manipula a moeda desvalorizandoa para favorecer as exportações A burguesia tem interesse em transformar seus servos em proletários em levar ao campo as relações de produção capitalistas Mas ela não poderá fazêlo sozinha E teme os seus possíveis aliados A reforma agrária radical que camponeses e proletários propõem parecelhe muito socialista Neste caso o enfraquecimento do latifúndio seria pior pois ela ficaria em face dos socialistas A burguesia vive um impasse ou convive com o latifúndio concedendo ao passado e se livra da ameaça socialista ou prefere enfrentar esta ameaça abrese ao futuro e se livra do latifúndio Sodré concluiu talvez apressadamente que a burguesia tinha menos medo do proletariado do que do latifúndio Depois se viu que era o contrário a burguesia age racionalmente e não moralmente a presença do latifúndio não é incompatível com a sua ascensão enquanto a vitória do proletariadocampesinato significaria o seu fim Quanto ao imperialismo interessalhe a aliança com o latifúndio pois limitado à produção de produtos primários constitui um importante mercado de produtos industrializados e de luxo Nas trocas desiguais entre países exportadores primários e industrializados os monopólios americanos retiram da América Latina bilhões de dólares em lucros O predomínio interno do latifúndio interessa portanto ao imperialismo A solução para esse estado de coisas o passado entravando por dentro e o presente oprimindo de fora seria o desenvolvimento industrial interno autônomo Nos anos 1950 a burguesia brasileira era o sujeito do desenvolvimento brasileiro Ela enfrentava latifundiários e imperialistas produzindo transformações capitalistas importantes Ela vencia relativamente o mercado interno já predominava Diante dessa circunstância o imperialismo se adaptava e revia a sua aliança com o latifúndio O presente que oprimia de fora viria oprimir aqui dentro Instalado no mercado interno o imperialismo passou também a defender reformas burguesas A burguesia ora cedia ora resistia a ele Ora queria que o capital estrangeiro participasse do desenvolvimento capitalista brasileiro como associado ora não queria As burguesias brasileiras se dividiram a mercantil queria a associação a industrial era nacionalista e antiimperialista Elas consideram que o investimento estrangeiro no mercado interno tem como contrapartida uma enorme remessa de lucros É um volume significativo de capital que abandona o Brasil para financiar a expansão capitalista pelo mundo ao invés de promover o desenvolvimento industrial interno A burguesia industrial disputa o mercado interno com o imperialismo e por ser mais frágil é obrigada a conceder Diante dessa tensão com o imperialismo a burguesia industrial deseja a autonomia nacional ela quer preservar para ela o mercado interno que construiu ao longo do século XX Em sua luta pelo controle exclusivo do mercado interno a burguesia se dirige ao proletariado e ao campesinato com um discurso nacionalista Ela agita as bandeiras da independência autêntica com o desenvolvimento pleno das forças produtivas e com democracia Ao proletariado interessaria suspender a sua contradição específica com a burguesia para apoiála em sua revolução democráticoburguesa que levaria finalmente ao socialismo O projeto burguês inclui propostas que interessam ao proletariado como a reforma agrária por exemplo A reforma agrária levaria as relações capitalistas ao campo racionalizaria a produção com tecnologia avançada que ofereceria maior produtividade e mais lucro abastecendo as cidades e baixando os salários isto é aumentando a acumulação Interessa ao proletariado e ao campesinato o direito burguês a igualdade perante a lei que pode pelo menos ser alegada como um direito diante de um juiz interessa a democracia representativa a participação no Congresso Nacional a eleição do presidente da República governadores prefeitos deputados e vereadores Ao povo brasileiro interessa a democracia burguesa e o desenvolvimento das forças produtivas que a burguesia pode produzir O proletariado e o campesinato se agitam são agitados pelo PCB e outros líderes locais contra o latifúndio e o imperialismo e pela burguesia nacional na luta pela autonomia nacional Sob a liderança da burguesia mas também instrumentalizandoa o PCB sonha com a emancipação e a autonomia nacional e com o socialismo Esse sonho vai se tornar um pesadelo em 1964 A burguesia nacional fará o inverso da orientação que lhe dava o PCB Sodré na frente e primeiro ela optará pela aliança com o latifúndio e com o imperialismo seus adversários teóricos e reprimirá violentamente proletários e camponeses seus aliados teóricos N W Sodré e os seus Críticos Essa teoria da revolução democráticoburguesa foi um delírio das esquerdas entre 1922 e 1964 uma teoriaficção do Brasil ou foi uma teoria correta que tão somente foi superada pela história surpreendida por fatos novos mas que se referia durante aqueles anos à realidade brasileira Toda teoria histórica é datada mas em sua data é uma ideia adequada ao lugar É este o caso da análise marxista de N W SodréPCB do Brasil Os analistas de Sodré se dividem quanto a esta questão Para Mantega a tese feudal e a sua consequência política a revolução democráticoburguesa era inadequada à realidade brasileira e falava de um outro lugar Sodré representaria um marxismo equivocado quando aplicado ao Brasil Na verdade o latifúndio e o imperialismo não eram obstáculos ao desenvolvimento capitalista do Brasil O crescimento burguês não estava limitado pela existência de forças retrógradas Nunca houve de fato uma burguesia brasileira nacionalista mas um capitalismo dependente e associado A tese feudal não se encaixa à realidade brasileira As relações não eram servis mas livres contratuais não compulsórias mesmo no colonato e na parceria Não havia dependência pessoal mas coerção econômica Além disso a produção não era para o consumo interno a economia não era fechada autossuficiente natural mas aberta ao mercado externo Portanto o feudalismo entendido ou como predomínio das relações de produção servis ou como o predomínio da economia natural não era adequado à realidade brasileira Mantega 1984 Além da tese feudal não se encaixar outras três teses relacionadas ao projeto burguês para o Brasil também não se encaixam afirma Mantega Em primeiro lugar a burguesia não precisa da reforma agrária para aumentar a produção de alimentos baratear salários e aumentar o investimento na produção industrial voltada para o mercado interno Este dependeria do avanço da industrialização mesma e não da reestruturação da agricultura Só o investimento em indústria geraria mais empregos e pagaria mais salários E os empresários não esperam que os salários sejam os responsáveis pelo consumo Eles sempre defenderam salários mínimos o que significa que não são tão relevantes para o mercado interno Logo a burguesia brasileira não era aliada nem dos camponeses com a reforma agrária nem do proletariado com o aumento da oferta de empregos e salários Em segundo lugar a burguesia brasileira não é nacionalista e antiimperialista O capital estrangeiro que entrava na produção era bemvindo Há uma certa tensão na divisão do mercado interno mas nacionalista a burguesia jamais foi Se é para implantar o capitalismo o capital estrangeiro é indispensável Nos anos 1950 o desenvolvimento capitalista foi dependente e associado O interesse de classe é anterior ao interesse nacional Finalmente a burguesia não tem vocação democrática ela teme demagogos e populistas agitadores das massas urbanas e rurais O golpe de 1964 foi o resultado da sua ação associada à dos militares dos latifundiários e do imperialismo Sodré e o PCB cometeram finalmente o erro teórico e político maior ao invés de combater o capitalismo e a burguesia apoiaram a burguesia e o capitalismo Mantega 1984 F H Cardoso fazendo também uma história da burguesia brasileira e na mesma época em que Sodré publicou a sua em 1964 chegou a conclusões bem diferentes das de Sodré Para ele não se pode falar da burguesia brasileira como uma classe homogênea e combativa com um projeto político claro e com líderes eficientes Pelo contrário a burguesia industrial se constituíra como classe muito rapidamente e é muito recente A origem não industrial dos empresários brasileiros faz com que tenham uma precária consciência de classe e sua ação em defesa dos próprios interesses é pouco racional As origens burguesas são os imigrantes e segmentos senhoriais É uma classe heterogênea que não reage como grupo aos problemas que enfrenta É uma classe desintegrada frágil na ação que despreza a ação política e as associações de classe É limitada na proposição de políticas agressivas de desenvolvimento que aumentem a sua participação econômica e política Acomodase à dominação tradicional adaptase ao clientelismo reivindica favores e privilégios Há de fato duas burguesias embora não seja uma divisão muito nítida uma associada ao capital internacional que quer participar da prosperidade ocidental como sócio menor e outra nacionalista que defende a proteção ao mercado interno e a exclusividade da sua exploração pelos industriais brasileiros Os nacionalistas tendem ao fechamento do mercado interno F H Cardoso despreza a burguesia nacionalista que Sodré exalta Para ele esta representa uma consciência empresarial menos complexa e desenvolvida tem poucos capitais e não tem o apoio dos capitais internacionais Mas a tendência que ele nota é também totalmente diferente da observada por Sodré o crescimento industrial forçará esta burguesia nacionalista a se associar ao capital internacional e a esquecer o seu nacionalismo Cada vez mais as diferenças ideológicas entre industriais se apagam em nome da condição comum de capitalistas Cardoso 1964 Ciro Cardoso rejeita também a tese feudal para o Brasil colonial e independente Marx não fez uma teoria dos modos de produção coloniais fez somente referências à escravidão do sul dos EUA fornecendo elementos para uma teoria do modo de produção escravista colonial quer dizer de um modo de produção específico diferenciado dos cinco modos de produção do esquema unilinear ortodoxo As sociedades americanas são singulares não foram tratadas pelos clássicos do marxismo e não se enquadraram nos modelos clássicos A tentativa de aplicar ortodoxamente a teoria levou a exageros e confusões teóricas Quando se constatam diferenças com o modelo acrescentamse prefixos semi neo quase parafeudalismo que se acredita revelarem a singularidade histórica analisada Mas na verdade tais prefixos não esclarecem nada só revelam confusão teórica constata C Cardoso Portanto quando se trata das sociedades americanas coloniais o historiador deverá criar modelos e conceitos adequados a tais realidades particulares e não simplesmente repetir confusamente a teoria clássica Assim nem a tese feudal e nem a tese capitalista são adequadas para o conhecimento da realidade específica da América Latina A tese capitalista é circulacionista e nada tem a ver com o marxismo C Cardoso propõe que se crie um modelo ou modelos de modos de produção dependentes Há vários modos de produção dependentes O modelo adequado ao Brasil Antilhas e sul dos EUA seria o modo de produção escravista colonial Os modos de produção coloniais são os que surgiram na América quando da colonização europeia sobreviveram à independência e se mantiveram até a implantação do modo de produção capitalista Os modos de produção não podem ser definidos independentemente da consideração histórica das formações sociais A América viveu várias histórias apesar de todas serem coloniais e dependentes Será preciso discernir em cada sociedade latinoamericana o seu modo de produção específico adequado à sua história colonial observála em sua estruturação interna singular e não aplicar modelos estranhos a ela sob o pretexto de estar sendo fiel à teoria C Cardoso 1975 Portanto Mantega F H Cardoso e Ciro Cardoso autores marxistas posteriores aos anos 1960 rejeitam a tese feudal para o Brasil e invalidam a análise de Sodré tanto a sua análise histórica do passado brasileiro quanto a sua proposta revolucionária Entretanto até 1950 quando esse debate sobre a estrutura agrária brasileira era mais histórico do que político a tese feudal era predominante Segundo Topalov a caracterização do mundo agrário brasileiro como feudal desde o começo da colonização prevaleceu entre os historiadores brasileiros sem contestação até 1937 Nessa data Roberto Simonsen foi o primeiro a questionála embora ainda a considerasse válida8 Para Oliveira Vianna por exemplo escrevendo em 1923 o povo brasileiro foi desde os primeiros dias coloniais um povo de agricultores e pastores essencialmente rural O espírito comercial dos portugueses obscureceuse aqui Eles eram fidalgos arruinados que tiveram que se transformar em agricultores Na grande propriedade colonial se desenvolveu uma sociedade feudal à imagem da sociedade portuguesa Vianna se fundamenta no clã fazendeiro que reúne em torno do senhor de engenho a plebe colonial os rendeiros ligados a este pelo laço feudal do contrato de locação Outros autores dão ênfase aos instrumentos jurídicos da concessão outorgada pela Coroa portuguesa aos donatários A capitania não era concedida como uma plantação a ser explorada mas como uma província a ser governada A sociedade que se criou era agrícola dominada pelos nobres de espírito guerreiro independente do poder estatal era uma sociedade feudal Em 1937 Simonsen rompeu com essa interpretação unânime ao afirmar que à época do descobrimento Portugal já não vivia em regime feudal o rei já era capitalista e seus vassalos vieram ao Novo Mundo em busca de riquezas Os poderes a eles cedidos visavam à obtenção de lucro Só a forma jurídica da concessão assemelhouse às instituições feudais Seu conteúdo entretanto era exclusivamente capitalista Os donatários comportavamse como capitalistas investiam visando ao lucro Esta tese de Simonsen abalou as concepções feudais estabelecidas e encontrou adversários e partidários Nestor Duarte reafirmou e renovou a argumentação feudalista no Brasil ainda havia a fusão do poder com a propriedade da terra com a família O poder no Brasil é privado familiar patriarcal e sua origem remonta às capitanias hereditárias Duarte acrescenta algo novo ao debate a caracterização do Brasil como feudal tem consequências práticas políticas É esse feudalismo que segundo ele impede a reforma do Estado dificulta a centralização do poder e a estabilidade institucional pois o poder no Brasil não é público mas privado9 A tese feudal sobre a realidade brasileira até os anos 1950 portanto reunia os marxistas do PCB e vários intelectuais brasileiros de várias tendências A diferença entre marxistas e outros intelectuais é que estes privilegiavam a análise histórica do passado feudal e aqueles privilegiavam os aspectos políticos as consequências práticas daquela análise A partir dos anos 1930 a discussão histórica tornouse mais marxista mais política A realidade brasileira foi percebida então em seu subdesenvolvimento e atraso Toda análise histórica passou a ter como fim a transformação mais eficaz dessa realidade atrasada É mais adequada a esta realidade a análise que propõe mudanças mais radicais A tese feudal para Alberto Passos Guimarães é mais adequada porque mais revolucionária Se o Brasil fosse capitalista desde a origem nenhuma reforma profunda da estrutura agrária seria necessária Se o Brasil fosse capitalista a estratégia que decorreria dessa tese seria meramente evolucionista a agricultura teria necessidade de mecanização e crédito e não de reformas fundamentais Essa era uma tese reacionária A tese feudal tem consequências revolucionárias impõe a reforma agrária propõe a luta contra os senhores feudais e seus latifúndios improdutivos10 Enfim até os anos 1950 a tese feudal era preponderante entre marxistas e outros Nos anos 1950 o debate histórico se politizou Aparece então o clássico impasse do conhecimento histórico as consequências práticas presentes e futuras tornam mais lúcidas as análises do passado a verdade histórica é necessariamente revolucionária A análise histórica que serve diretamente à intervenção política é mais legítima mais bem elaborada mais estruturada Ou estaria comprometida em seu rigor pelo maior relativismo pelo subjetivismo pelo partidarismo Não seria necessário distinguir não queremos dizer separar análise histórica e estratégia de intervenção política A intervenção política presentefutura não se autolegitimaria retrospectivamente em uma análise pseudohistórica O fato é que a discussão histórica perdeu a serenidade a sobriedade da análise conceitual na passagem dos anos 1950 aos 1960 O PCB e os seus intelectuais principais responsáveis pela tese feudal e suas consequências políticas terão de enfrentar uma outra análise do passado brasileiro com suas consequências políticas elaborada nos anos 1960 por Caio Prado Jr O tom da discussão é alto as vozes do debate são mais vigorosas do que rigorosas gritam mais e analisam menos Ou melhor analisam aos gritos A legitimidade dessa discussão política é incontestável e ela se faz assim mesmo vivamente Esse era o tom adequado à história brasileira dos anos 195060 décadas de sonhos e derrotas Mas a legitimidade da análise histórica feita com tanta paixão é discutível PCBSodré e Caio Prado discutirão a história do Brasil dominados pela paixão Prado Jr 1966 Entre eles separandoos teoricamente e unindoos na paixão a derrota de 1964 Os historiadores marxistas posteriores tão apaixonados quanto eles porém mais distanciados do sonho e do pesadelo saberão distinguir a esfera da análise O marxismo universitário sobretudo na USP foi um instrumento de análise do Brasil de um valor inestimável Para Bornheim a partir dos anos 1960 os pesquisadores marxistas brasileiros foram os que melhor aplicaram as categorias de uma teoria europeia à realidade brasileira A escola sociológica da USP foi um centro de discussão marxista da realidade brasileira importante Um grupo interdisciplinar pioneiro de intelectuais independentes do PCB constituído por pesquisadores e professores universitários F Fernandes F H Cardoso J A Giannotti O Ianni P Singer F Novaes F Weffort e outros leu Marx e O capital de forma mais teórica e menos imediatista Depois nos anos 197080 Ciro Cardoso R Schwarz M Löwy C N Coutinho L W Vianna P S Pinheiro L Konder e até J Gorender seguirão essa linha mais teórica de uma análise histórica temperada pela paixão mas diferenciada dela não dominada por ela Bornheim 1978 Essa paixão expressava um vivo desejo de mudança imediata profunda e acelerada A revolução brasileira não poderia mais ser lenta e tortuosa e nem se submeter a longas etapas Havia o sentimento geral de mudança urgente Nos anos 195060 os marxistas sonhavam suprimir a continuidade do tempo histórico brasileiro e reduzilo à mudança Por isso fizeram uma análise histórica apressada imediatista sem muito cuidado conceitual Os autores marxistas posteriores sempre interessados na mudança saberão entretanto perceber mesmo a contragosto a continuidade que domina a história brasileira e realizarão uma articulação de continuidade e mudança produzindo uma análise histórica mais consistente menos imediatista e idílica mais adequada e apropriada à realidade brasileira ANOS 1960 CAIO PRADO JR A reconstrução crítica do sonho de emancipação e autonomia nacional Caio Prado Jr Aristocrata e Socialista Caio Prado Jr nasceu em São Paulo em 1907 data da publicação de Capítulos de história colonial de Capistrano de Abreu Esta percepção da coincidência entre o nascimento de um autor que será marcante e a data da publicação de um clássico ao qual ele dará prosseguimento revela a sensibilidade historiográfica de F Iglésias Para este Formação do Brasil contemporâneo fez com que Capítulos de história colonial ficasse em segundo plano por menor e menos abrangente embora seja também uma das obrasprimas da historiografia brasileira Após 1930 Caio Prado vai se tornar o mais influente historiador brasileiro tomando o lugar de Capistrano de Abreu que fora o mais influente no período anterior a 1930 Iglésias 1982 Caio Prado pegou o bastão das mãos de Capistrano e prosseguiu revigorandoa e acelerandoa a prova olímpica histórica e política do redescobrimento do Brasil A sua formação superior foi em direito e geografia A trajetória da sua vida dominará a sua obra Ele é de origem aristocrática saiu de uma família cafeicultora paulista para se tornar o intelectual orgânico do movimento operário brasileiro Sua vida é marcada pela ruptura de classe Ao se tornar um intelectual ligado à revolução socialista brasileira Caio Prado não fez uma pequena travessia como se ele fosse apenas um pequeno burguês Não é filho da classe média proletarizada Sua mudança na percepção da história do Brasil foi uma mutação afirma Novais Novais 1986 Aristocrata passou a lutar por igualdade e liberdade além dos limites do liberalismo além do mundo burguês É um dos intelectuais de origem burguesa que forçaram os limites da consciência possível e produziram obras significativas Goldmman ou orgânicas Gramsci ao serem um contraponto ao intelectual tradicional Coutinho 1990 Caio Prado saiu da alta tradição do passado colonial para a revolução socialista para o futuro eis a dimensão do seu salto que até sugere a impressão de um suicídio simbólico tamanha a altura ou distância da mudança de posição Era ao mesmo tempo empresário intelectual do proletariado e político Como intelectual foi pluridisciplinar historiador economista geógrafo filósofo Sua obra se iniciou em 1933 com Evolução política do Brasil prosseguiu com as publicações de Formação do Brasil contemporâneo 1942 História econômica do Brasil 1945 e A revolução brasileira 1966 Estes quatro livros constituem o esteio da sua obra histórica Escreveu ainda várias obras filosóficas ligadas à teoria marxista que repercutiram muito pouco São ignoradas pelos intelectuais brasileiros até mesmo marxistas Na Revista Brasiliense fundada por ele escreveu numerosos artigos históricos e políticos que estimularam o debate sobre a estrutura agrária brasileira e a sua mudança nos anos 1950 Nos anos 1960 a Revista Brasiliense fechada pelo golpe militar com a obra A revolução brasileira Caio Prado publicou uma síntese da sua visão do passado brasileiro e refletiu sobre a ação que deveria ser realizada para a sua transformação É a esta obra que daremos atenção especial aqui pelo esforço de síntese que ela representou e pelo caloroso debate que ela manteve com o PCB e com Sodré enfim com o marxismo brasileiro dos anos 192250 sobre a análise mais adequada à realidade brasileira e à sua mudança revolucionária É uma obra que marcará profundamente o pensamento revolucionário brasileiro pós1964 Caio Prado foi um intelectual militante Sua obra servia à luta de classes no Brasil Ele esteve envolvido como político com o Partido Democrático e com as revoluções de 193032 e em 1931 aderiu ao PCB Sua vida se dividiu entre a pesquisa histórica e filosófica e o combate político Mas não se trata de uma divisão que separe as duas atividades embora uma atividade não apague a diferença da outra Como intelectual marxista a luta política não o cegou nem impediu o seu esforço de análise Iglésias 1982 Sua produção teórica é mais marxiana do que marxistaleninista No PCB sempre foi heterodoxo Seu pensamento continuou dialético ele lida com fatos em termos de relações processos e estruturas localiza e explica desigualdades diversidades contradições sociais Militou fora e dentro do PCB na opinião pública na universidade na editora em revistas Viajou pelo Brasil conheceu as regiões as classes o campo as derrotas e vitórias dos excluídos Observava nessas viagens o caleidoscópio dos múltiplos tempos do Brasil11 Em 1933 quando as lutas sociais desafiavam o pensamento ele inaugurou uma corrente de interpretação marxista do Brasil diferente e original descentrada do PCB A história social brasileira apareceu sob uma nova perspectiva até ali desconhecida A partir de então inaugurou um estilo de pensar a realidade brasileira uma perspectiva crítica que discute as relações entre o passado e o presente e examina as possibilidades de mudanças no futuro Ianni 1989 e 1994 A militância política o levou à história do Brasil Sempre viajou pelo Brasil e pelo mundo e recomendava aos brasileiros que viajassem pelo Brasil e se dessem conta do seu país Era apaixonado pelo Brasil e pelo seu povo por isso rompeu com a sua classe e passou a defender este povo em uma luta socialista radicalmente democrática Iglésias 1982 Sua redescoberta do Brasil foi mais radical do que a de G Freyre e a de S B de Holanda nos anos 1930 Para os historiadores brasileiros sua importância tornouse tão considerável que há em torno dele algo mais do que respeito intelectual mas alguma idolatria alguma paixão que talvez ele próprio recusasse Alguns se embaraçam emocionalmente ao abordar os seus textos o que dificulta a análise outros reivindicam maior proximidade e associação com o seu nome para ficar sob o seu manto sagrado Novais 1986 É como se ele fosse meio intocável protegido de uma análise mais contundente Representaria o bem ao lado de S B de Holanda contra o mal representado por G Freyre na análise comparativa feita sobretudo pelos historiadores paulistas Santos 1993 Entretanto alguns tentam quebrar este fascínio que ele exerce esse domínio intelectual autoritário que mais lhe foi atribuído do que por ele reivindicado Podese falar de Caio Prado Jr Na verdade os que ousam criticar as suas hipóteses sobre o Brasil o tornam mais relevante mais importante cognitivamente do que os que simplesmente se embaraçam e se calam diante de seus textos e nome Entretanto esse fascínio não é sem razão Sua obra se insere na tradição da redescoberta do Brasil que nele se aprofunda e se consolida Usando o materialismo histórico de forma senão pioneira inovadora ele pôde ver o futuro do Brasil de forma mais consistente e otimista Até os anos 1930 viase o Brasil com desconfiança e ceticismo pois não se acreditava na capacidade do povo mestiço das classes sociais oprimidas e excluídas para construir um futuro de sucesso Caio Prado foi um dos primeiros a acreditar a confiar na eficácia histórica do povo brasileiro Para ele as elites não fazem a história do Brasil sozinhas O sujeito da história do Brasil não são as elites isoladas mas as classes sociais em luta Mesmo que as elites dominem quase absolutamente elas não existem sozinhas no cenário brasileiro Ao seu lado e sustentando a sua condição de elites elites em relação a quem existe a grande massa da população brasileira Redescobrir o Brasil significa ver nesta sua face oculta neste seu outro lado o verdadeiro Brasil Este outro lado deverá ser integrado valorizado e recuperado pois nele estão os construtores da sociedade brasileira presentefutura Caio Prado adotando este ponto de vista não se limitará a fazer uma história políticoadministrativa não ficará na superfície dos acontecimentos de mais destaque Procurará atrás dos eventos visíveis das ações produzidas pelos heróis brasileiros o seu sentido estrutural as relações sociais e o modo de produção capitalista Atrás dos eventos e iniciativas individuais ou coletivas há um interesse de classe interesse que se inscreve na lógica do modo de produção capitalista Olhando a história desde esta perspectiva ela se torna bem diferente da tradicional A periodização se altera aparecem processos antes minimizados como os movimentos sociais dos séculos XVIII e XIX os grandes heróis não são desvalorizados mas contextualizados perdendo o seu valor exclusivamente individual Caio Prado não fez uma história oficial nem a história oficial do PCB que Sodré fez Intelectual independente Caio Prado não glorificará os heróis que sufocaram os movimentos sociais e que massacram ainda as iniciativas populares Mota 1978 Por sua originalidade e independência ele influenciou a corrente de interpretação marxista do Brasil mais crítica e produtiva É inegável a sua importância para o conjunto das ciências sociais no Brasil A escola marxista universitária brasileira é pradiana Caio Prado e seus Críticos Alguns analistas de sua obra no entanto evitam o silêncio reverente e estéril e propõem uma posição mais fértil mais iconoclasta talvez embora em momento algum contestem o valor da sua obra Pelo contrário com esta postura levam a sua obra realmente a sério Coutinho talvez exagere ao afirmar que sua interpretação do Brasil é relativamente pobre em categorias marxistas Para ele Caio Prado domina mal o conceito de modo de produção capitalista pois é circulacionista e usa mal também o conceito de burguesia Coutinho 1990 Sodré ironiza Caio Prado ele afirma que o Brasil é capitalista desde a origem quando nem a Europa era capitalista entre 1500 e 1700 O capitalismo então chegou primeiro ao Brasil e só depois à Europa Antes da Revolução Industrial que só se iniciou no século XVIII na Inglaterra as relações capitalistas de produção não predominavam ainda na Europa e o que identifica um modo de produção segundo a teoria marxista são as relações de produção predominantes É na esfera da produção onde as classes em luta se definem que se encontra a identidade de um modo de produção Sodré 1980 Caio Prado acredita que o modo de produção capitalista apareceu na esfera da circulação entre 1500 e 1700 Este seu circulacionismo afirma Ciro Cardoso não tem nada a ver com a teoria marxista Cardoso 1975 Coutinho vai mais além afirma que sua visão do Brasil é que é atrasada e não a do PCB que ele tanto criticava Coutinho 1990 Outros o criticam pelo seu economicismo Sua obra Formação do Brasil contemporâneo revelaria este economicismo já em sua estrutura ela se divide em três seções básicas cuja disposição revela a prioridade da infraestrutura como instância determinante na análise povoamento vida material vida social O seu economicismo apareceria portanto na própria disposição do tema essa segmentação do texto não serve apenas para facilitar a exposição mas é um recurso de aprofundamento radical do recorte analítico Mello 1987 Novais rejeita essa crítica ao marxismo de Caio Prado Ele considera que talvez algumas passagens da sua obra possam autorizála mas o que interessa é o conjunto da obra Não se deve ver entre o sentido da colonização e os demais capítulos uma relação causal mas conexões de sentido Os vários segmentos poderiam ser descritos e analisados em qualquer sequência pois guardam a mesma relação com a categoria explicativa A segmentação visa a facilitar a exposição mostrando a interpenetração das partes Sua obra ultrapassa a visão segmentária e economicista A crítica de economicista não é consistente conclui pois o que conta é a coerência da obra Novais 1986 Mas não é só em Formação do Brasil contemporâneo que podem ser percebidas passagens economicistas Também em Evolução política do Brasil Caio Prado afirma que a sociedade colonial é o reflexo fiel da sua base material Assim como o capital absorve a terra o senhor rural monopoliza a riqueza e seus atributos o prestígio o domínio E também em A revolução brasileira há passagens economicistas como esta A estrutura de classes de uma sociedade e a natureza e hierarquia das suas classes refletem sempre a estrutura econômica que lhes serve de base na análise da estrutura social brasileira retomaremos a análise e interpretação das relações econômicas vigentes No entanto consideramos que a observação de Novais é sem dúvida relevante o que conta é a obra em seu conjunto e não algumas passagens ocasionais Embora se possa ainda contraargumentar que são nessas passagens ocasionais espécies de atos falhos intelectuais que se pode perceber a estrutura teórica profunda de um autor Além de economicista e circulacionista Caio Prado é também censurado por não utilizar fontes primárias e preferir as impressas Ele não parece ser um frequentador de arquivos F H Cardoso vem em sua defesa Isto é um preconceito Ele tomou fontes secundárias e deu vida e significação interpretativa mais ampla a elas e foi capaz de oferecer um vasto e novo quadro do Brasil Cardoso 1993 Os intelectuais do PCB que sofreram a revisão crítica de A revolução brasileira revidam seu marxismo sofreu a influência do neopositivismo de Russel e do Círculo de Viena Vindo daí para ele só há processos e relações configurando um relacionismo que ele pretendeu que fosse a formulação correta da dialética Não há objetos coisas só relações Não adianta fazer classificações que seriam do âmbito da lógica formal O que importa é a apreensão do acontecer do conjuntural Fazendo essa análise relacional e conjuntural poderemos agir em direção a uma revolução que se classificará a posteriori mas sabendose a priori que chegaremos ao socialismo Gorender 1989 Coutinho o censura por dar muita ênfase ao papel do Estado na transição ao socialismo o que não fez avançar a discussão fundamental das relações entre socialismo e democracia Em Caio Prado o Estado ainda é autoritário Coutinho 1990 Topalov o censura por usar muito de Roberto Simonsen em sua História econômica do Brasil quando defende a tese do capitalismo colonial sem citálo Topalov sd Portanto Caio Prado não parece ser tão intocável assim Pelo contrário criticase o seu domínio da teoria marxista em conceitos cruciais A esquerda brasileira dirigiu a ele críticas enérgicas após a publicação de A revolução brasileira muitas delas impregnadas de ressentimento e outras teoricamente relevantes E consideramos que é melhor assim ele se torna então um interlocutor vivo provocador estimulador de um debate rico e seminal Falam de Caio Prado logo ele existe Falemos muito dele bem e mal e ele se tornará concreto real influente vivo Caio Prado o PCB e o Marxismo no Brasil Na história do pensamento marxista brasileiro Caio Prado é situado por Moraes e Mantega em uma segunda fase posterior à primeira fase da recepção dogmática que vai de 1922 a 1940 Moraes a denomina etapa de autonomização teórica 194060 e Mantega materialismo funcionalista 195060 quando houve um cruzamento de Keynes e marxismo C Furtado e foram consideradas as relações sociais de produção não puramente capitalistas como funcionais para o capitalismo Moraes 1991 Mantega 1991 Mota o situa em duas fases a do redescobrimento do Brasil 193337 no sentido dele que inclui também suas obras de 194245 e a das revisões radicais 196469 com A revolução brasileira 1966 Mota 1978 BresserPereira o situa na interpretação funcional capitalista a interpretação da esquerda que predominará entre os vencidos de 1964 que seria crítica e ressentida em relação à interpretação nacionalburguesa pré1964 do PCB e Sodré e combaterá a interpretação autoritáriomodernizante dos vencedores A sua obra A revolução brasileira foi a base teórica afirma BresserPereira dessa interpretação equivocada do Brasil marcada pelo ressentimento com a derrota BresserPereira 1979 Entretanto talvez Caio Prado não se deixe fixar em nenhuma etapa definida Ele esteve presente em todas as fases atravessandoas com inacreditável autonomia intelectual desde 1933 até 1966 Talvez a melhor maneira de localizálo no pensamento marxista brasileiro fosse situáloo entre N W Sodré historiador oficial do PCB e o chamado grupo dO capital os marxistas acadêmicos da USP Seu pensamento representaria uma transição do dogmatismo marxistaleninista ao marxismo mais teórico e refinado dos estudiosos universitários de Marx sem intermediários Ele escreveu nos anos 193040 sem se deixar dominar pela interpretação oficial por isso não pertenceria plenamente a essa época É prenunciador dos pesquisadores ligados a F Fernandes mas é anterior a estes pois tem uma formação teórica menos elaborada não podia ser indiferente à URSS sofreu a sua influência e debateu as questões propostas pelas esquerdas dominadas pelo PCB A terceira geração além de ter um conhecimento conceitual mais rigoroso não só do marxismo como de outras teorias sociais pensará o Brasil de forma ainda mais independente do PCB e do marxismoleninismo Caio Prado seria então um pensador marxista desvinculado do modelo interpretativo e político democráticoburguês Mantega denomina o seu modelo de interpretação do Brasil modelo do subdesenvolvimento capitalista associado também a Gunder Frank que predominará nos anos 1960 reavaliando a derrota de 1964 reinterpretando o Brasil e propondo novas estratégias de ação revolucionária Sem ter uma relação consciente explícita com a IV Internacional e Trotski Mantega considera que Caio Prado seguiria a sua orientação teórica enquanto o PCB seguia a orientação de Lênin e da III Internacional explícita e assumidamente Caio Prado rejeitava a análise do passado brasileiro da III Internacional e do PCB bem como o seu projeto revolucionário Ele oporá uma análise do Brasil e um projeto revolucionário mais próximo das orientações da IV Internacional sem estar ortodoxamente vinculado a elas Essa vinculação de Caio Prado alinhada com essa orientação do comunismo internacional não falará de feudalismo e nem de revolução democráticoburguesa mas de subcapitalismo e revolução permanente que desembocará a longo prazo no socialismo sem a etapa intermediária da transição ao capitalismo que seria desnecessária pois o Brasil já era capitalista desde a origem Foi o precursor da reflexão marxista que busca entender o caráter não clássico da constituição do capitalismo no Brasil Seu objeto de reflexão e pesquisa é a especificidade do tempo histórico brasileiro que pode ser conhecida à luz do marxismo desde que se evitem repetições teóricas mecânicas e inadequadas à realidade brasileira Mantega 1984 Porque A Revolução Brasileira O texto que escolhemos portanto como já foi explicitado para analisar a reconstrução temporal do Brasil feita por Caio Prado é A revolução brasileira de 1966 Faremos também referência ao capítulo introdutório de Formação do Brasil contemporâneo ao sentido da colonização e à Evolução política do Brasil A revolução brasileira é uma obra indispensável para se pensar o Brasil depois de 1964 e 1964 será um mirante ideal para se dar uma olhada no passado e no futuro do Brasil reinterpretando o seu passado e reconstruindo o seu futuro Esse texto oferece uma visão crítica do pensamento revolucionário brasileiro pré1964 É uma obra sob o signo do diálogo vivo do debate sem eufemismos e meias palavras É quase um bateboca com o passado É uma obra histórica viva vinculada ao presente e ao futuro a partir dos quais reconstrói o passado É uma obra de síntese teoria história e política analisa interpreta e propõe sobre o passado o presente e o futuro do Brasil Embora Caio Prado não tenha obtido muito sucesso com suas obras filosóficas podese talvez afirmar que predominava nele o espírito filosófico sobre o do historiador Todas as suas grandes obras são de síntese e nelas ele se pergunta sobre o sentido da história brasileira O esforço de síntese e a pergunta sobre o sentido caracterizam geralmente o temperamento filosófico uma preocupação com a identidade com a origem e o destino uma interrogação sobre o ser brasileiro e sobre o tornarse brasileiro Ele perguntava como filósofo e respondia como historiador não especulava pesquisava Além disso a sua busca de autonomia e liberdade de pensamento e expressão mesmo no interior das esquerdas é uma postura que revela também um quê de aristocrático e filosófico o filósofo dizem anda só Tomaremos A revolução brasileira para análise por essas razões internas e também porque ela revela a posteriori o pensamento marxista original de Caio Prado Na verdade sua visão marxista do Brasil está toda ela expressa nessa obra uma retomada do que ele já tinha escrito e uma tomada de consciência do que foi o pensamento brasileiro marxista dominante e o que ele poderia se tornar Os analistas de Caio Prado em geral dão mais valor e atenção aos livros de 1933 1942 e 1945 Poucos deram maior atenção a A revolução brasileira Também por isso vale a pena examinar o livro de 1966 A revolução brasileira é uma análise crítica e autocrítica das relações de produção brasileiras feita sob a pressão da história pioneira corajosa e coerente com suas posições anteriores É F H Cardoso quem admite Caio Prado escreveu um livro depois dos clássicos anteriores referidos que ainda não mereceu dos críticos o reconhecimento da importância que tem Tratase de A revolução brasileira Nele Caio Prado retoma alguns temas que havia desenvolvido na Revista Brasiliense e na própria História econômica do Brasil e trava um diálogo muito bom com a esquerda Tratase de um livro de grande vitalidade É um livro que faz uma crítica de esquerda muito avançada para a época Cardoso 1993 É basicamente por essa razão que o abordaremos Entretanto F H Cardoso afirma algo que contestamos Não é um livro de historiador não é um livro que contenha um grande painel do Brasil Cardoso 1993 Nós o consideramos um livro de história em seu gênero mais necessário e no entanto escasso o gênero polemista cujas teses envolvem painéis inteiros do passado e visões históricas do futuro As teses são brevemente expostas e o são até repetitivamente mas exigem para a sua sustentação muitas informações históricas evocam vivamente épocas passadas ao mesmo tempo que abrem o futuro à imaginação históricopolítica Além do seu valor teórico histórico e político a obra é extremamente reveladora do seu contexto Foi escrita em uma situação de crise grave da democracia e do projeto socialista O divórcio entre o Estado autoritário e a sociedade civil se acentuou tanto que o povo brasileiro se sentia estrangeiro em seu próprio país Os ideólogos da ditadura falavam em segurança e desenvolvimento uma versão atualizada do ordem e progresso do início republicano tornando explícita a relação militarista entre o Estado e a sociedade O sonho da revolução democráticoburguesa terminou no pesadelorealidade da revolução autoritárioburguesa e as elites retomaram a sua posição de conquistadores do povo brasileiro descendentes dos descobridores do Brasil Em tal contexto era urgente rever repensar reconsiderar as interpretações e propostas anteriores apesar da angústia e da emoção da derrota quando se soube que o Brasil continuaria a ser o que sempre fora e que não mudaria como se sonhara Sob tal inspiração Caio Prado conseguiu retomar toda a história do Brasil em suas teses sobre a estrutura agrária brasileira e sobre o que se poderia então fazer A Obra A Revolução Brasileira Caio Prado começa a sua A revolução brasileira da mesma forma que Sodré começara a sua História da burguesia brasileira rediscutindo conceitos e avaliando as dificuldades para se falar do Brasil de forma adequada com conceitos produzidos em outro contexto Tanto os revolucionários do PCB quanto os militares vencedores por exemplo falavam de revolução brasileira Afinal o que quer dizer revolução Caio Prado começa discutindo conceitualmente o seu título Revolução ele afirma não se relaciona diretamente ao caráter violento insurrecional da conquista do poder por um grupo social O significado próprio deste conceito onde cessa toda ambiguidade se concentra na transformação que este movimento realiza depois de conquistado o poder e não na maneira como se dá A Revolução Francesa foi uma revolução não porque foi violenta Em seu sentido profundo revolução é um processo social que realiza transformações estruturais em um curto período histórico É um momento de aceleração histórica e é neste sentido que ele o usará em seu livro Os vencedores de 1964 realizaram tais transformações estruturais Se as realizaram fizeram uma revolução Os golpistas e não revolucionários para Caio Prado usaram a palavra revolução quando na verdade reagiam e a impediam porque reconheciam a penetração profunda desta ideia no povo Todavia visto no conjunto da revolução burguesa brasileira o Golpe de 1964 foi um momento de aceleração desse processo e foi de fato revolucionário Mas Caio Prado não está interessado nesse episódio da revolução burguesa que ele nem parece identificar como tal mas na fragilidade da estrutura de poder que se constituiu depois do golpe Seu interesse é pela iminente transformação realmente revolucionária que em 1966 toda a ineficiente retórica da administração pública a crise econômica e financeira os desequilíbrios sociais só sabiam revelar Havia ceticismo quanto às soluções dentro da ordem Sua análise profunda que não se deixa iludir pelas aparências revela tais possibilidades revolucionárias As soluções reformistas não bastariam A consciência revolucionária tinha grande projeção no Brasil dos anos 1960 Que revolução iminente seria esta Caio Prado continuava ainda a sonhar depois do banho de água fria de 1964 A água fria só tornou o sonho menos delirante e o transformou em um sonho friamente pensado criticamente construído um sonho de olhos abertos A revolução que se preparava ele sustenta não tinha uma natureza socialista ou democráticoburguesa a priori A natureza da revolução não deve ser pensada doutrinariamente mas no próprio processo É preciso reconhecer sua natureza na própria dinâmica dos fatos O que interessa é o que se passa e não o que é A revolução brasileira iminente não pode ser definida a priori antes de acontecer por um conceito preestabelecido mas pela análise e interpretação da conjuntura econômicosocialpolítica concreta e real É claro no marxismo a direção do capitalismo é para o socialismo Mas esta previsão não tem data ritmo e programa determinados Ela não deve interferir na análise e solução de fatos concretos O projeto socialista não pode ser sectário É antimarxista ver o socialismo sempre imanente e iminente em todas as ocorrências da luta social O sectarismo socialista leva ao isolamento e perdemse aliados importantes na produção da mudança brasileira Aquela pretensão não exclui a luta por objetivos não imediata e diretamente socialistas Por exemplo qualquer greve tem uma significação própria e em si Ao mesmo tempo revela a luta de classes e é um evento particular O sectarismo impede a aliança com grupos não socialistas mas que convergem com eles em objetivos mais limitados Os marxistas consequentes querem obter resultados na ação conjuntural A dialética é um método de interpretação das ações reais e não dogma que enquadre revoluções históricas em esquemas abstratos preestabelecidos O que interessa na ação revolucionária não é o que se proclama e projeta mas o sentido dialético da ação a sua capacidade de abrir o futuro A teoria da revolução brasileira portanto não poderia ser produzida especulativamente A teoria revolucionária correta deveria tomar como modelo o caso de Cuba A revolução cubana começou como uma luta contra uma ditadura concreta Atingido esse objetivo ela evoluiu para uma revolução agrária e antiimperialista Contudo especulativos abstratos apriorísticos sem a consideração adequada dos fatos os projetos revolucionários no Brasil apoiaram governos demagógicos e incompetentes levando os reacionários mais duros ao poder Não faziam avançar a revolução levavam o Brasil ao desastre A análise equivocada levou a uma estratégia de intervenção equivocada O que havia era uma ação revolucionária de cúpula que agitava slogans ineficazes A insuficiência teórica levou as esquerdas a fazerem alianças espúrias Bastou uma passeata militar para impedir a sua revolução agrária antifeudal e antiimperialista As razões desse insucesso a teoria da revolução brasileira era abstrata constituída por conceitos exteriores à realidade brasileira esquemática etapista indo às avessas dos conceitos aos fatos quando se deveria ir dos fatos aos conceitos A análise de Caio Prado da teoria revolucionária que predominou entre as esquerdas lideradas pelo PCB nos anos 192264 fica a cada página mais áspera e hostil O marxismo brasileiro era estalinista ele se desespera Os fatos eram vistos não como são mas como deveriam ser à luz do que se passou em outros lugares e dos clássicos mal interpretados A teoria dita revolucionária produzia esquemas imaginários pretendendo interpretar e explicar a nossa realidade Está longe do marxismo impor à humanidade etapas de evolução necessárias Os erros estratégicos cometidos pelos revolucionários brasileiros foram de duas ordens em primeiro lugar eles erraram teoricamente pois leram mal os clássicos marxistas compreenderam erradamente a dialética materialista e seguiram cegamente as teses soviéticas sobre o mundo inteiro sem distinguir as diversas situações particulares em segundo lugar erraram historicamente pois analisaram mal o Brasil interpretaram erroneamente o seu passado compreenderam equivocadamente as classes e as lutas de classes no passado brasileiro bem como o modo de produção do Brasil colonial Em sua análise da história brasileira eles quiseram ajustar a realidade brasileira aos textos clássicos e a outros contextos Usaram conceitos para os quais é difícil encontrar correspondente real latifúndio restos feudais camponeses ricos médios e pobres burguesia nacional O modelo era o feudalismo europeu Portanto mal equipados teórica e historicamente não puderam acertar na ação revolucionária Seria preciso rediscutir a teoria e rever a história do Brasil e então propor novas formas de intervenção na realidade brasileira Nessa obra ele pretendeu produzir essa rediscussão da teoria e da análise histórica do Brasil e fazer então as suas propostas de intervenção revolucionária Para Caio Prado os teóricos da revolução brasileira são aprioristas e dogmáticos ele o afirma centenas de vezes Em sua miopia teórica viram o Brasil ainda dominado pelo feudalismo Teriam encontrado algumas relações de produção semelhantes às feudais e consideraram esses raros traços feudais como dominantes A teoria marxista foi formulada no Brasil nos anos 1920 O Brasil foi incluído entre os países coloniais semicoloniais e dependentes países submetidos política e economicamente ao imperialismo Não sendo ainda capitalistas estariam em transição do feudalismo ao capitalismo A etapa revolucionária seria a da revolução democráticoburguesa cujo modelo era a ocorrida na Rússia czarista A revolução democráticoburguesa seria agrária contra o latifúndio feudal e antiimperialista Entretanto contesta Caio Prado o Brasil não possui restos feudais pois aqui não houve jamais um sistema feudal Isto nos leva a um passado longínquo cuja discussão nem por isso pode ser dispensada Quando e como começou o Brasil O Brasil surgiu no quadro da atividade europeia a partir do século XV atividade que integrou um novo continente à sua órbita assim como a África e a Ásia atividade que acabará por integrar o universo todo em uma nova ordem que é a do mundo moderno A ocupação do Brasil e o seu povoamento foi apenas um episódio um pequeno detalhe daquele imenso quadro A colonização portuguesa na América não foi um fato isolado é parte de um todo A perspectiva do historiador é do todo que explica a parte A parteBrasil tem um sentidotodo nossa formação se deu essencialmente para fornecer açúcar tabaco ouro diamantes algodão café para o comércio europeu Nada mais que isto Foi com tal objetivo exterior para fora que se organizou a sociedade e economia brasileiras A colonização do Brasil foi um problema de difícil solução para Portugal Faltavamlhe gente e cabedais para dedicar ao ocasional achado de Cabral O surto marítimo que ocorreu em Portugal no século XV fora provocado por uma burguesia comercial sedenta de lucros Ávida com o apoio do rei essa burguesia começou a sua expansão pela África e Índias As Índias ocupavam a fantasia portuguesa como uma vaga definição de abundantes riquezas As Índias se tornaram a meta principal de Portugal No meio do caminho das Índias abundantes riquezas Portugal deparouse com um território imenso pouco habitado e de escassas riquezas onde nada havia a ganhar A ideia de povoar veio depois e Portugal foi o primeiro na colonização efetiva no povoamento de um novo território Todos os grandes acontecimentos dessa Era dos Descobrimentos articulamse num conjunto que é apenas um capítulo da história do comércio europeu A colonização do Brasil é um capítulo dessa história O caráter do início se manterá dominante através dos três séculos e se gravará profundamente na vida do país Ter em vista o sentido da colonização do Brasil desde o seu início é compreender o essencial do Brasil E desde o início integrado à expansão mercantil europeia e exportando para lá o seus produtos primários produzidos em latifúndios escravistas o Brasil é capitalista A economia brasileira nasceu como grande exploração comercial criada pelo capitalismo mercantil europeu e voltada para o mercado externo O Brasil sempre compartilhou do mesmo sistema e das mesmas relações econômicas que deram origem ao capitalismo O escravismo que predominou aqui não é incompatível com o modo de produção capitalista A abolição da escravidão será a culminação de um modo de produção já implantado desde o início A substituição da mão de obra escrava não afetou a natureza estrutural da grande exploração capitalista No Brasil colonial predominou a grande propriedade rural que produzia para exportação e não a pequena propriedade explorada por camponeses No Brasil não se constituiu uma classe camponesa que produzisse em pequenas propriedades e em família O trabalho escravo era coletivo e cooperativo assim como nas grandes fábricas e não individual ou familiar como no feudalismo Na exploração comercial colonial a direção e ocupação na exploração do solo foi exercida pelo grande proprietário e não por um camponês que não havia O trabalho escravo satisfaz às exigências do trabalho livre exceto quanto à liberdade individual do trabalhador de ir e vir e ser contratado e distratar Ambos escravos e livres recebem uma compensação pelos serviços prestados dinheiro ou concessões várias e ambos lutam por objetivos comuns a melhoria dessa remuneração O que significa que o trabalho escravo não foi incompatível mas funcional com a acumulação capitalista Portanto as relações de produção no campo brasileiro não são feudais A parceria não é feudal É uma relação assalariada com remuneração in natura É uma relação capitalista de produção Sua presença não é negativa para a produção é uma relação capitalista superior e produtiva O barracão e o cambão não são feudais são restos escravistas No Brasil não existia o que é próprio do regime feudal a exploração parcelária da terra pela massa camponesa em que o excedente é extraído através de relações de dependência pessoal do camponês ao senhor O escravo se aproxima do assalariado é uma força de trabalho que não possui os meios de produção não decide sobre o produto a produzir reivindica não os meios de produção mas melhor remuneração e incentivos Entretanto talvez essa arriscada aproximação entre o escravo e assalariado tentada por Caio Prado seja possível a curto prazo mas e a longo prazo O escravo reivindica a liberdade individual que o assalariado já possui Essa diferença não os afasta definitivamente Caio Prado quer enfatizar a importância da análise histórica armada de boa teoria para a intervenção política Se o Brasil é caracterizado como feudal a luta dos trabalhadores rurais será pela propriedade da terra Será uma luta pela derrubada do feudalismo agrário Mas para ele este é um erro histórico teórico e político Os trabalhadores rurais não reivindicam a propriedade da terra insiste ele mas a melhoria das condições de trabalho e emprego Se há luta pela terra é em regiões secundárias do Brasil E mesmo ali não predominam relações feudais de produção No campo é preciso impor o que determina a Consolidação das Leis do Trabalho CLT saláriomínimo sindicatos descanso remunerado Os teóricos do PCB consideravam tais reivindicações reformistas mínimas pois a verdadeira conquista seria a da propriedade da terra Isto é o que pensa Caio Prado quanto à hipótese feudal sobre o Brasil e suas consequências políticas Quanto ao imperialismo para Caio Prado o Brasil foi uma criação dele Os países da América Latina sempre participaram desde o início do mesmo sistema capitalista Foi o capital comercial que instalou e estruturou a América Latina As relações entre o imperialismo e a América Latina são complexas Não se pode propor de forma simplista a anulação de todos os tratados lesivos aos interesses nacionais confisco de capitais multinacionais anulação da dívida externa expulsão das missões militares culturais e técnicas norteamericanas O PCB considerava que havia uma aliança dos latifundiários feudais com a burguesia mercantil retrógrada e o imperialismo contra um setor da burguesia progressista aliada ao campesinato e ao proletariado na revolução democráticoburguesa Mas tal composição social e sua contradição não existem na formação social brasileira talvez existam na Rússia ou na China A classe dominante brasileira é uma unidade na diversidade um bloco sem cisões fazendeiros estancieiros senhores de engenho usineiros burguesia industrial e mercantil Esses homens circulam em várias dessas atividades ao mesmo tempo Não há uma burguesia nacional industrial que se oporia à burguesia mercantil e ao imperialismo São aliados sócios Mesmo se há tensões e contradições entre essas burguesias pelo mercado estão unidas fundamentalmente A burguesia brasileira é heterogênea quanto à sua origem mas homogênea quanto à natureza dos seus interesses e negócios Após a Abolição o sistema capitalista já predominava e se consolidou uniformizando as relações de produção capitalistas Integrado o sistema capitalista levou ao fortalecimento da burguesia uma classe homogênea coesa não cindida por contradições irredutíveis Os setores agrário e industrial não se opõem são ligados O capital que impulsionou a indústria é de origem cafeeira Muitos fazendeiros paulistas são também industriais Os setores industrial e agrário não se opõem mas se entrelaçam e conjugam os seus interesses A burguesia brasileira tampouco se opõe ao imperialismo ela se subordina como um todo ao sistema capitalista A economia brasileira exportadora se organiza com o comércio internacional em ligação íntima e estreita dependência Os representantes da burguesia brasileira e os do imperialismo se entendem perfeitamente já que o Brasil foi uma criação do capitalismo A presença do capital estrangeiro segundo Caio Prado a burguesia brasileira não considera imperialismo Se houve resistências foram isoladas Entre a burguesia brasileira e o imperialismo podem haver no máximo tensões pontuais A burguesia brasileira nacional antiimperialista e progressista não tem realidade no Brasil Ao supor a existência de tal burguesia o PCB cometeu erros políticos irreparáveis Caio Prado não obterá apoio unânime a essas teses Serão muitos os que defenderão a validade da tese do PCB quanto às relações contraditórias e de luta entre burguesia brasileira e latifúndio e imperialismo Para BresserPereira não ver conflitos entre a classe agráriomercantil e a burguesia industrial é ir contra os fatos Está demonstrado ele afirma que as origens étnicas e sociais dos industriais brasileiros não estão na burguesia agráriomercantil Não existe essa unidade entre as burguesias brasileiras Senão pergunta ele como entender o pacto populista BresserPereira 1979 e 1989 Gorender vem outra vez discordar de Caio Prado se a burguesia brasileira não é nacionalista ela é brasileira isto é mesmo associada ao imperialismo possui interesses particulares exige reserva de mercado Há uma burguesia brasileira que possui interesses próprios joga o seu próprio jogo querendo melhorar a sua posição no mercado capitalista global Gorender 1989 F H Cardoso vem em socorro de Caio Prado Fazendo a história da burguesia paulista concluiu que não se pode falar da burguesia brasileira como uma classe homogênea e combativa com um projeto claro e com líderes eficientes A burguesia brasileira é uma classe recentemente constituída no Brasil tem uma precária consciência de classe e defende os seus interesses confusamente É uma classe heterogênea de origens heterogêneas frágil e desintegrada na ação Ela se acomoda à dominação tradicional ao clientelismo e aos privilégios Há uma corrente nacionalista da burguesia que exige o fechamento do mercado interno tem uma consciência empresarial menos complexa e desenvolvida e poucos capitais Mas sua tendência não é se opor ao imperialismo e às oligarquias rurais mas associarse ao primeiro e conviver com as segundas Cada vez mais conclui F H Cardoso as diferenças ideológicas entre industriais se apagam em nome da condição comum de capitalistas Cardoso 1964 Portanto retornando a Caio Prado não se pode interpretar a realidade brasileira e traçar o futuro a partir de situações incomparáveis com as nossas É preciso partir do contexto brasileiro específico para a sua interpretação Este contexto deve ser considerado dialeticamente não como eventos exteriores e estáticos mas como uma transição dinâmica um processo que leva do passado ao futuro Abordada assim a realidade brasileira atual revelaria uma transição de um passado colonial a um futuro já próximo de uma nação estruturada com uma organização econômica voltada para o interior moderna Este fato não deve ser tratado como uma utopia mas percebido e construído praticamente Eis o sentido da história brasileira que uma teoria especialmente elaborada para abordála em sua especificidade revela da heterogeneidade inicial da dispersão original a uma homogeneidade nacional estruturada Economicamente o mercado interno deverá superar o externo o que estimulará a diversificação da produção Este é o caminho da sociedade brasileira da sociedade colonial ao Brasilnação Realizar esta transição radicalmente é realizar a verdadeira revolução brasileira que aliás já está em marcha há muito tempo Esta revolução possui quatro etapas primeira a independência política que começou em 1808 e se consolidou em 1822 quando se começou a estruturar o Estado brasileiro o país foi articulado em um todo único individualizouse em um território unificado esse foi o primeiro passo da transição da colônia para nação estruturada segunda a supressão do tráfico 1850 e a abolição da escravatura 1888 que integraram a grande massa da população trabalhadora à sociedade brasileira terceira a partir de 1870 a imigração que trouxe qualidade técnica ao trabalho aumentou a produtividade melhorou a qualidade cultural do trabalhador quarta a República a constituição de um Estado e de um direito burgueses Esses acontecimentos revelam o sentido profundo da evolução histórica brasileira do capitalismo colonial caracterizado pela produção agrícola exportadora para o mercado externo pelo escravismo pelo baixo nível de vida e pela ausência de industrialização e mercado interno ao capitalismo nacional caracterizado pelo atendimento das necessidades internas De colônia a nação estruturada é nessa evolução que se incluem para Caio Prado como elos de uma corrente os fatos do presente A superação da economia colonial por uma outra voltada para a satisfação interna exige o desenvolvimento das forças produtivas O Brasil já é predominantemente capitalista mas não possui alta tecnologia Ele possui somente as classes capitalistas burguesia e proletariado Apesar disso a economia brasileira continua colonial O capitalismo brasileiro é ainda colonial ele precisa se tornar nacional Não será pelo apuramento capitalista das relações précapitalistas que se obterá o fim da relação colonial É no interior do capitalismo e de suas contradições que se poderá chegar à superação do colonialismo A luta por melhor renda e por participação políticosocial conduz à integração nacional da sociedade brasileira A luta sindical particularmente a dos trabalhadores rurais é essencial para o Brasil nacional independente Não se pode construir uma nação moderna sobre uma classe de trabalhadores em condições de vida miseráveis Os trabalhadores rurais não lutam pela terra eles querem melhores salários e melhores condições de vida O Brasil não deverá ser um país de camponeses com baixa produtividade A reforma agrária seria neste sentido um retrocesso O Brasil deverá continuar com a grande exploração sem seus vícios baixos padrões tecnológicos condições miseráveis de vida dos trabalhadores Tal conquista os transformará em trabalhadores especializados altamente produtivos consumidores e integrados social e politicamente A produção se voltará para o mercado interno Haverá no Brasil um sistema econômico integrado nacionalmente onde será quebrado o círculo vicioso da dependência Serão superados os ciclos O Brasil terá então superado o seu passado colonial Sem isto a força de trabalho disponível não obterá empregos não produzirá e não será consumidora A produção precisa integrarse com o consumo A produção industrial brasileira se dirige a minorias consumidoras de produtos de luxo Entre edifícios de luxo e clubes suntuosos circulam miseráveis O desenvolvimento industrial nacional integrará a estes como produtores e consumidores Para produzir este Brasilnação a iniciativa privada que visa ao lucro não basta A produção deverá ser controlada orientada e até regida pelo Estado A iniciativa privada é essencial a este projeto mas não poderá atuar livremente pois movida por interesses egoístas Ela tenderia ao lucro pela produção de produtos de luxo para a minoria O Estado deverá planejar e promover a produção de produtos básicos e serviços básicos dirigidos à massa da população O que se propõe é um programa de reformas reais sem que se tenha um rótulo teórico que os defina O que se visa objetivamente é integrar a massa trabalhadora à sociedade pela distribuição da renda efetiva e não estatística Tratase de elevar o padrão de vida da população Assim o Brasil se integrará e se estruturará e se libertará de sua herança colonial E quanto ao socialismo Ele seria inviável nos anos 1960 no Brasil por faltarem as condições mínimas de estruturação social e será ainda precário o desenvolvimento das forças produtivas As dificuldades antepostas à construção da nação brasileira integrada e independente ainda no interior do capitalismo são várias Destacamse duas mais importantes que desaceleram este processo A primeira é a dominação pelo imperialismo da comercialização dos produtos primários brasileiros Ao mesmo tempo o mercado interno fica à mercê do imperialismo pois a especialização da produção brasileira em produtos de exportação impede a diversificação da produção Se há investimento interno o imperialismo vem também para o interior e produz aqui o que antes mandava do exterior A industrialização brasileira não tem sido eficaz na produção da independência e autonomia nacional Ela ao mesmo tempo mudou muito a realidade brasileira e reforçou e renovou o sistema colonial Os trustes instalados no interior e controlando a comercialização dos produtos primários determinam os ritmos do desenvolvimento A industrialização diversificou a produção e houve um crescimento importante do mercado interno o que levou a uma certa integração nacional Mas é um progresso limitado em suas perspectivas pois continua engendrado pela dependência colonial É da superação dessa contradição que depende o processo que levará o país à libertação da dependência Só a partir desta independência é que se poderá fazer uma sociedade nacional não marginal não periférica e independente A luta contra o imperialismo não poderá ser feita no entanto com imprecações mas pela análise precisa e rigorosa do sistema capitalista internacional quando poderemos compreender a nossa posição nele Nos anos 1960 enquadrado no sistema capitalista o avanço do Brasil quanto à tecnologia e ao aumento da produtividade se achava limitado por interesses estrangeiros Entretanto é preciso reconhecer que quando se tem um passado colonial as condições de um desenvolvimento autônomo são difíceis A indústria substitutiva de importações dominada pelo capital estrangeiro não abre muitas perspectivas É um processo de industrialização limitado O mercado interno é restrito Os capitais industriais são restritos e emprestados Sua tecnologia é sempre inferior Para crescer de fato a indústria brasileira terá de produzir para o mercado mundial e não só para o mercado interno A substituição de importações é dominada pelo imperialismo e pelo Estado As empresas multinacionais produzem no interior para estarem mais próximas de seus consumidores O que o imperialismo pode oferecer ao Brasil é a perpetuação do seu estatuto colonial Não se trata de uma simples superposição de uma ligação exterior das duas esferas internacional e nacional Tratase da interpenetração de uma na outra de sua integração em um todo A luta contra o imperialismo exige reformas intervenção do Estado na economia afastando a intervenção direta do imperialismo O comércio e as contas externas devem ser controlados limitadas as remessas de lucros das empresas estrangeiras no Brasil A vitória na luta antiimperialista levará o Brasil a sair da condição colonial para a nacional Esta luta se fará por meio de reformas da economia brasileira Fazendoas o Brasil se tornará uma liderança mundial contra o sistema Ao Brasil não interessa a interdependência das nações que o coloca em uma posição de dependência Ao Brasil interessa o desenvolvimento mas com soberania Mantega discorda de Caio Prado nos anos 1960 o Brasil já realizava uma acumulação industrial capitalista Embora dependente isto não o impediu de desenvolver uma acumulação capitalista A associação com o imperialismo no investimento interno favorecerá as classes interessadas no desenvolvimento interno A indústria brasileira é capaz de se autoimpulsionar e com o apoio do imperialismo O capitalismo brasileiro portanto não tende à estagnação ou ao subcapitalismo Mantega 1984 BresserPereira também não está de acordo com a análise de Caio Prado das relações entre desenvolvimento e associação imperialista Em sua análise afirma BresserPereira ele se recusou a reconhecer a emergência do capital industrial no Brasil nos anos 1930 e reafirmou a continuidade do capitalismo mercantil ainda nos anos 1960 BresserPereira 1979 Quanto a F H Cardoso ele forçou um tanto sua leitura de Caio Prado para adequálo à sua própria interpretação do Brasil quando afirma que ele percebia que era possível haver desenvolvimento apesar do imperialismo Cardoso 1993 Caio Prado não percebia desenvolvimento ou não o considerava desejável ao custo da soberania que F H Cardoso considera secundária A segunda dificuldade a vencer é a estrutura agrária brasileira que além de produzir para atender ao mercado externo não abastecia de alimentos as cidades tornando caros os salários urbanos e não pagando salários aos trabalhadores rurais que não podem consumir os produtos industriais nacionais Seria preciso levar ao campo o capitalismo tecnologia que torne os latifúndios mais produtivos e melhores salários e condições de vida para o trabalhador rural que o tornariam consumidor de produtos industriais Da capitalização do campo depende o fortalecimento do mercado interno As relações de produção no campo já eram capitalistas sobretudo após a abolição As relações escravistas sobreviveram e conviveram com o trabalho livre mas longe de ser um entrave ao desenvolvimento capitalista eram funcionais favoráveis à acumulação capitalista O desenvolvimento capitalista das relações de produção baixou a qualidade de vida dos trabalhadores Antes eles produziam seus alimentos agora precisavam comprálos com os seus parcos salários O assalariado puro vivia pior do que o colono A parceria é uma relação capitalista impura mas mais rentável do que o salário em dinheiro Portanto a revolução brasileira não implantaria relações capitalistas e eliminaria restos feudais pois elas já vigoravam A reforma agrária não seria necessária para o desenvolvimento do capitalismo no campo Mantega discorda ainda de Caio Prado quando este localiza o palco da revolução brasileira no campo e desvaloriza o desenvolvimento industrialurbano dos anos 1960 O epicentro das transformações brasileiras já eram as grandes cidades onde as massas urbanas agiam E na sua análise da luta revolucionária no campo Caio Prado se equivocou ao afirmar que os trabalhadores rurais reivindicavam melhores salários e condições de trabalho quando na verdade eles reivindicavam mesmo era a reforma agrária a propriedade da terra Para ele a luta pela terra era secundária Qual o sujeito social que a reivindicava Não havia camponeses Além disso se fosse feita a reforma agrária seria um retrocesso pois o trabalhador rural brasileiro não tem condições objetivas os recursos materiais nem subjetivas uma tradição cultural de iniciativa empresarial para a sua exploração eficiente Mantega afirma que a luta pela terra foi mais forte do que Caio supôs Além disso e Mantega repõe a argumentação do PCB parceria cambão e barracão não são relações de produção capitalistas pois o parceiro não é uma força de trabalho comprada no mercado Ele arrenda uma terra e pagará com uma parte do produto A dinâmica da relação proprietários de terrasparceiros não é capitalista Mantega 1984 Para Gorender a parceria seria uma forma camponesa dependente e não uma forma de assalariamento E o campesinato no Brasil não é residual como afirma Caio Prado As grandes explorações capitalistas não eliminam a economia camponesa que é uma faixa fundamental da nossa produção agrícola No Sul a grande propriedade planta soja os camponeses plantam o que comemos Gorender 1989 Garcia considera que Caio Prado esquematiza quando reduz todas as múltiplas e complexas formas de relações sociais de produção existentes no campo a um salariato mais ou menos encoberto Garcia 1989 Bresser Pereira vem em apoio a Caio Prado ele pôs fim à interpretação de um Brasil feudal Seu argumento de que a parceria o cambão e o barracão não são feudais mas expressões do capitalismo mercantil é definitivo BresserPereira 1989 Como se vê a discussão teórica não resolve por si só as aporias Ela exige que se façam opções e as fundamenta e legitima Teses Feudal e Capitalista e A Revolução Brasileira O que significa a recusa da tese feudal e a sua substituição pela tese capitalista para o Brasil desde as suas origens Os defensores da tese feudal afirmam que a tese capitalista provoca um recuo uma concessão ao passado brasileiro É uma tese atrasada reacionária que privilegia a continuidade do Brasil colonial em prejuízo da mudança socialista Caio Prado expressaria um ponto de vista reacionário e atrasado e representaria um recuo uma regressão na consciência revolucionária socialista Suas teses protegem a grande propriedade latifundiária da redistribuição Não seria pelo fato de sua família e ele próprio serem grandes proprietários de terras Para A P Guimarães a tese feudal é revolucionária pois se o Brasil fosse capitalista desde a origem nenhuma reforma profunda da estrutura agrária brasileira seria necessária Se o Brasil fosse capitalista a estratégia política que decorreria dessa tese seria meramente evolucionista a agricultura teria necessidade de mecanização e crédito e não de reformas fundamentais É uma tese reacionária portanto A tese feudal em si teria consequências revolucionárias o que ela propõe é uma ruptura com um modo de produção e a implantação de um novo modo de produção ela propõe a revolução burguesa como uma aceleração do tempo histórico brasileiro a eliminação do passado sem concessões aos seus senhores feudais e ao imperialismo12 Moraes repôs esta argumentação de A P Guimarães mais recentemente e com uma linguagem mais precisa Para ele o conceito de revolução de Caio Prado se assenta sobre a ideia de transformação opondose ao emprego da força e da violência para a tomada do poder Essa concepção transformista ou processual da revolução brasileira privilegia a continuidade em detrimento da ruptura histórica Caio Prado desconsidera as relações de produção não capitalistas que predominaram no Brasil durante quatro séculos para se ater ao sistema capitalista internacional no qual se insere a economia brasileira A especificidade das relações de produção da sociedade brasileira desapareceu em face da perpetuidade do capitalismo desde o início Sua análise não se refere às condições internas da vida social brasileira apagandoas no interior das condições externas e internacionais Daí a compreensão da evolução social do Brasil em termos de continuidade histórica as mudanças são tratadas como mera superfície da realidade originária de uma economia colonial articulada em torno do latifúndio exportador O marxismo de Caio Prado revelase claramente economicista Sua análise do passado colonial afasta do horizonte brasileiro a revolução socialista que se torna longínqua e utópica Os operários deverão centrar a sua luta em objetivos reivindicatórios e sindicais A luta política é reduzida à luta sindical Diante de uma análise marxista com consequências tão conservadoras Moraes não compreende como ela pôde obter tanta repercussão Caio Prado foi mais usado do que entendido ele conclui Moraes 1991 A P Guimarães e Moraes ironicamente definem a visão do Brasil de Caio Prado da mesma maneira como este pejorativamente definira a do PCB evolutiva Ele é que é evolucionista transformista processualista e não o PCB afirmam Retrospectivamente é muito fácil inferir da derrota de um movimento a falsidade de seus fundamentos A compreensão histórica não se alimenta dessas certezas fáceis protesta Moraes Importalhe reconstruir o contexto em que determinado projeto político forneceu a resposta adequada a uma situação intolerável Moraes 199186 Coutinho associase a Guimarães e Moraes nesta avaliação da visão do processo histórico brasileiro de Caio Prado Ele usará o conceito gramsciano de revolução passiva e o leninista de via prussiana para definila A análise da revolução brasileira de Caio Prado revela que ela não se deu segundo o modelo clássico francês e norteamericano mas foi uma transição modernizadora e conservadora uma modernização conservadora A modernização da estrutura agrária brasileira não teria levado à supressão da propriedade précapitalista que se perpetuou e se adaptou ao modo de produção capitalista A via prussiana caracterizada por essa articulação de progresso adaptação ao capitalismo e conservação permanência da velha ordem Para Caio Prado diferentemente das teses feudal e dualista o lado atrasado do Brasil não seria um empecilho à sua modernização Coutinho 1990 Entretanto essa modernização conservadora feita pelo alto pela conciliação das elites dominantes entre si e com o imperialismo excluindo e reprimindo o povo e cooptando os seus líderes se fez contra a soberania nacional Caio Prado defende a modernização o desenvolvimento capitalista com soberania nacional A soberania é prioritária em relação à modernização Entretanto apesar de ser nacionalista Caio Prado não propôs um projeto de mudança revolucionária Ele captou bem o lado conservador da nossa transição e subestimou os elementos de modernização Deu mais ênfase à reprodução do velho que houve nas mudanças brasileiras do que à mudança Analisa a Independência a Abolição a República a industrialização para concluir que o Brasil ainda era colonial Quase nem percebeu a industrialização e quando a percebeu foi para subestimála tratandoa como uma aparência que não alterava a essência colonial Quando reconheceu fatos novos ele os considerou alterações meramente quantitativas que não anulavam a qualidade da dependência manifestações que mantinham o passado tornandoo até mais perverso Coutinho 1990 Coutinho é severo em sua análise da contribuição de Caio Prado ele tem uma visão atrasada do Brasil pois enfatiza o velho o passado colonial ainda no século XX quando o Brasil conheceu tanta novidade e já até construía uma ideia revolucionária Além disso é autoritário na sua proposta de aceleração da modernização e da implantação do capitalismo nacional esta seria feita por um Estado autoritário e não por instituições e meios democráticos E ao limitar a revolução brasileira à modernização das relações trabalhistas e à libertação nacional do imperialismo ele esqueceu a sua dimensão socialista e democrática Coutinho 1990 Insinuase até que ele teria recaído em um certo positivismo político propõe uma ditadura popular republicana que governasse acima dos interesses de classe e em defesa do proletariado Comte da nação da integridade territorial da educação da saúde do lazer uma ditadura social comtiana no melhor estilo gaúcho Bosi 1992 Para Garcia Caio Prado oferece com A revolução brasileira um texto de transição no pensamento da esquerda brasileira ele realizou uma crítica demolidora da crença do marxismo de caráter evolucionista mas não foi capaz de romper com o paradigma economicista que deduzia a revolução das estruturas da sociedade transformandoa em um processo sem sujeito Anunciava o marxismo estruturalista que viria a vicejar nos anos seguintes As classes em luta se submetem a uma misteriosa necessidade histórica determinada pela estrutura econômica Ele parece não ter compreendido a autonomia relativa do político Garcia 1989 Caio Prado e os Limites Estruturais de A Revolução Brasileira A nossa análise da visão do Brasil de Caio Prado se diferencia da dos autores mencionados anteriormente sem no entanto invalidálas ou retirarlhes a legitimidade São válidas legítimas em seu ponto de vista argutas e bem elaboradas E são ainda legítimas na medida em que limitam o alcance e definem melhor o ponto de vista de Caio Prado São uma tréplica dos intelectuais ou simpatizantes do PCB a A revolução brasileira tréplica até mais lúcida do que algumas outras mais ressentidas feitas quando da sua publicação Nossa análise da contribuição de Caio Prado vai em outra direção mais teórica e histórica Ele teria percebido os limites históricos e teóricos à revolução brasileira e abandonado provisoriamente o sonho da emancipação e autonomia nacional em termos revolucionários A reconstrução crítica desse sonho que ele realizou o trouxe à realidade brasileira que não é de mudanças vertiginosas mas de uma continuidade eterna quase inquebrável Propor a ruptura revolucionária em uma realidade social na qual o presente mantém uma aliança sólida com o passado é propor o inviável Em sua análise o presente se acha impregnado de vários passados O Brasil moderno preservou marcas do passado recente e remoto Toda a complexa história do Brasil colonial está contida no Brasil contemporâneo O tempo histórico brasileiro tem um ritmo espacial uma repetição monótona uma continuidade inquebrável um presente que sempre revigora o passado Ianni 1989 e 1994 O Brasil moderno ele o vê emergir no final do século XVIII e início do XIX entre 1808 e 1822 Então os três séculos da colonização se encerram e se inicia a construção do novo Brasil o Brasil contemporâneo o Brasilnação No início do século XIX o regime colonial realizara o que tinha de realizar a obra da metrópole estava terminada A obra portuguesa o mundo que ele criou nos trópicos terminava ali O Brasil então começou a se renovar a ser brasileiro Até o século XVIII durante o nosso passado colonial delimitouse e povoouse um território organizouse nele a vida humana diferente da que havia antes aqui e da dos portugueses que chegaram uma população nova original com uma estrutura material particular uma mentalidade coletiva singular A partir do século XIX o presente brasileiro começou a se configurar mas não conseguiu se delinear plena e rapidamente Por isso ele afirma conhecer o Brasil dos anos 195060 exige um retorno ao seu passado ao início do século XIX Ir ao passado é obter informações indispensáveis para a interpretação e compreensão do que se vive hoje Será preciso aliás ir não somente ao início do Brasil contemporâneo ao século XIX porém mais além ao passado colonial ao Brasil português para se obter um conhecimento profundo do Brasil atual O presente nacional XIXXX não pode ser conhecido e feito sem um retorno ao Brasil colonial préXIX Aquele passado colonial ainda é presente a metrópole ainda está aqui Não somos ainda totalmente novos sentimos ainda a presença colonial secular No campo as relações de classes são ainda de tipo colonial Os problemas do Brasil de hoje foram formulados há mais de 150 anos São velhos problemas sempre presentes e nunca definitivamente resolvidos Mas se a construção nacional se iniciou no século XIX o seu conhecimento pleno exige um mergulho ao mais profundo e atual Brasil ao Brasil colonial Portanto a percepção da continuidade na história brasileira não levou Caio Prado a uma visão reacionária e atrasada do Brasil Levouo pelo contrário ao conhecimento dessa realidade e dos limites que ela impõe às iniciativas idealistas voluntaristas de transformála Não se pode intervir na realidade sem conhecêla sobretudo no que ela tem de mais resistente de passado cristalizado e vivo Sua análise representou um avanço teórico um conhecimento mais aprofundado do mundo histórico brasileiro que é ele mesmo atrasado e reacionário Não se vai de um passado colonial à emancipação e autonomia nacional do dia para noite ou por uma decisão arbitrária de intervir a qualquer custo a golpes de ficção Pelo menos não no mundo do ser da realidade talvez no mundo do dever ser do sonho Caio Prado se manteve moderadamente teleológico e etapista As etapas brasileiras não são as mesmas de outras realidades mas há etapas históricas a serem superadas O fim da história é o socialismo mas este fim não pode se impor ao presente autoritariamente desconsiderando a sua relação com o passado O presente brasileiro tende muito mais ao passado do que ao futuro imporlhe o futuro seria desconhecer esta realidade e abordála equivocada e perigosamente O presente não pode ser violentamente sacrificado em nome do futuro A luta pelo socialismo final exige paciência e adequação aos ritmos lentos da história brasileira será uma luta não sectária não ansiosa não neurótica capaz de unir outras correntes não socialistas em torno de objetivos não imediata e linearmente socialistas As vitórias devem ser construídas concretamente com tolerância e concessões com negociações e diálogo sem se submeter a esquemas abstratos preestabelecidos Não é porque uma mudança é racional que ela deva ser imposta ao presente é irracional não considerar os ritmos específicos do presentepassado O pensamento dialético é rico e serve à democracia exatamente porque se abre à história às suas forças divergentes e emergentes renovase em seu contato com a realidade e não lhe impõe esquemas apriorísticos ditos científicos e racionais O marxismo não impõe etapas necessárias de desenvolvimento à humanidade Não se pode enquadrar a revolução brasileira em esquemas adequados a outras realidades É preciso conhecer a realidade brasileira e reconhecer a dialética de continuidade e mudança em sua especificidade É necessário distinguir as realidades históricas seus desenvolvimentos particulares e não misturálos em uma falsa teoria que fale de todas e de nenhuma A utopia que sustenta a análise do Brasil feita por Caio Prado é a da solidariedade socialista a do desenvolvimento de todos os povos em sua singularidade com a sua soberania desenvolvendose e ajudandose mutuamente sem se explorarem reciprocamente Desenvolvimento modernização e progresso com emancipação e autonomia nacional eis a sua utopia Que só poderá ser realizada com o conhecimento histórico de cada realidade particular que exige um uso particular da teoria marxista uma adequação dos seus conceitos às histórias singulares O desenvolvimento autônomo não pode ser implantado radicalmente em um passadopresente colonial Ele será o resultado de um processo mais longo e lento tortuoso no qual o proletariado urbano e o campesinato têm um papel fundamental se se mantiverem autônomos em sua ação revolucionária ANOS 196070 FLORESTAN FERNANDES Os limites reais históricos à emancipação e à autonomia nacionais a dependência sempre renovada e revigorada Florestan Fernandes Cientista Social e Cidadão Florestan Fernandes nasceu em São Paulo em 1920 e faleceu em circunstâncias dramáticas por erro médico em 1995 Não era filho nem da alta nem da pequena burguesia Órfão trabalhou desde a infância para manter a si mesmo e à mãe Seus estudos básicos foram muito prejudicados por essa razão não completou o primário e teve de fazer o curso de madureza porque não pôde cursar o secundário Apesar dessa vida pessoal e familiar difícil e da formação básica precária ou talvez por causa disso mesmo chegou à universidade aos 21 anos De 1940 a 1951 fez a licenciatura e o bacharelado em ciências sociais na USP e o mestrado e o doutorado em sociologia e antropologia na Escola Livre de Sociologia e Política Foram 11 anos regulares e concentrados de formação superior assentados sobre uma irregular e tumultuada formação básica Em 1953 tornouse livredocente e em 1964 professor catedrático da Universidade de São Paulo Sua dissertação de mestrado e a sua tese de doutorado trataram dos tupinambás da sua ordem social e das suas guerras também fez reflexões teóricas acerca das ciências sociais e pesquisas sobre a integração do negro na sociedade de classes Em 1969 foi aposentado compulsoriamente pela ditadura militar revelandose um dos intelectuais mais lúcidos e críticos do regime Foi professor visitante nos Estados Unidos 196566 e no Canadá 196972 Como militante político foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores e se elegeu deputado federal Ianni 1978 e 1989 F Fernandes foi um dos primeiros frutos das missões estrangeiras que vieram fundar a Universidade de São Paulo nos anos 1930 Mas se se considera essencial a formação básica para o desenvolvimento intelectual pleno de uma pessoa mesmo talentosa sua formação foi outro milagre Teve toda a sua formação feita no Brasil e era contrário à saída de intelectuais brasileiros para estudar no exterior Para ele é aqui que os problemas a serem resolvidos estão e o cientista social brasileiro deveria primeiro amadurecer aqui para só depois se aperfeiçoar no exterior Por um lado talvez ele tenha alguma razão Alguns intelectuais brasileiros que retornam do exterior onde foram estudar com bolsas do governo brasileiro voltam com dificuldades de readaptação Geralmente os mais exagerados esquecem parcialmente a língua portuguesa não suportam mais o forte calor e a claridade excessiva evitam a dieta brasileira não leem os autores brasileiros não tratam de temas brasileiros imaginandose talvez agora apenas parcialmente brasileiros Passam a lançar sobre o Brasil um olhar semelhante ao das suas elites Eis uma mudança pessoal que revela uma mudança social e que mereceria talvez uma reflexão sociológica que provavelmente Florestan fez Mas por outro lado é preciso lembrar e considerar que ele talvez pense assim porque não precisou sair para conhecer os grandes mestres estrangeiros já que as missões estrangeiras vieram para a USP Suas obras são conhecidas na América Latina na Europa e nos Estados Unidos Sua influência se estendeu por todo o meio intelectual brasileiro e latinoamericano Formouse nos anos 1950 e sua afirmação intelectual e política se daria nos anos 1960 e 1970 Nessas duas décadas ele se tornou o principal esteio de uma das mais importantes escolas de explicação histórico sociológica da América Latina e um dos mais importantes líderes políticointelectuais de esquerda Estudou as relações de raça e classe negros índios e brancos e sua inserção na sociedade de classes e pesquisou a especificidade do modo de produção brasileiro Embora tenha sido inicialmente funcionalista foi um autor marxista combativo e combatido Seus temas são a escravidão a abolição educação e sociedade as culturas brasileiras as revoluções burguesa e socialista os regimes autoritários as relações de raça e classe Seu pensamento é de fato dialético aberto e em diálogo com a realidade Nele pensamento e história se produzem reciprocamente Ianni 1978 e 1989 Cohn 1986 Seu texto não é tão fácil e transparente pois mais analítico e conceitual Isso provavelmente dificultou uma repercussão efetiva das suas reflexões teóricas e sobre os temas históricosociais brasileiros F Fernandes o Marxismo e o Redescobrimento do Brasil Seu ponto de vista sobre o Brasil é o do redescobrimento nas linhas de entre outros Capistrano de Abreu S B de Holanda N W Sodré e Caio Prado Jr Em suas obras sobre o Brasil aparecem os movimentos sociais a ação de índios e negros imigrantes escravos trabalhadores rurais e urbanos Afastase ainda mais da história políticoadministrativa e biográfica tradicional Segundo Ianni ele percebe a sociedade como uma rede de relações sociais uma estrutura social com os seus processos particulares com suas interações e resistências com suas tensões e contradições Todo fato social enquadrase numa relação social e são as relações sociais que engendram a especificidade do social As partes e o todo social se constituem e se modificam reciprocamente Seu pensamento é eclético é marxista basicamente mas com uma sólida formação sociológica clássica Além de ter lido Marx diretamente e não através de cartilhas da URSS não conhecia somente o marxismo Ele via as ciências sociais como um grande debate sobre a sociedade no qual as posições não podiam se fixar e se fechar à interlocução com até mesmo as mais conservadoras teorias sociais Ele conhecia bem Spencer Comte Durkheim e Merton absorveu de forma especial as influências de Weber e Mannheim que o tornaram um e ainda marxista mais sofisticado teoricamente Ianni 1978 e 1989 Cohn 1986 Para O Ianni que estamos seguindo até aqui um dos seus alunos que mais se destacaram e que se tornou um dos seus biógrafos e analistas mais argutos seu pensamento sintetiza cinco fontes que se revelam de forma diferenciada em sua obra primeira a sociologia clássica e moderna franceses ingleses alemães e americanos ele afirmou que não precisava ir ao exterior para conhecer o que se produzia por lá bastavalhe ler as publicações que vinham de lá Não seria menosprezar uma boa conversa e um bom seminário segunda o pensamento marxista em geral e em particular os culturalistas Gramsci e Mannheim terceira a corrente mais crítica do pensamento brasileiro a do redescobrimento do Brasil Capistrano de Abreu Manoel Bomfim E da Cunha Semana de Arte Moderna PCB Caio Prado Jr que levam em conta as lutas populares as condições de vida e trabalho do povo brasileiro que Ianni define bem como uma coletividade de cidadãos e o modo especificamente brasileiro de ser quarta a história brasileira e mundial dos anos 194070 suas transformações mais rápidas a urbanização a industrialização os partidos políticos a ditadura a revolução cubana a descolonização a II Guerra Mundial a Guerra Fria quinta a militância política a reflexão teórica sobre as relações entre a sociologia a política e a ética o pensamento latinoamericano Ianni caracteriza o seu pensamento como um ecletismo temperado controlado uma busca de unificação na reflexão dos diversos tipos de pensamento clássicos e revolucionários uma síntese de pensamentos distintos Diríamos que seu pensamento seria talvez um pensamento mais do que eclético como afirma Ianni sintético ele reúne a diferença articulandoa e não meramente superpondoa Para Ianni ainda sua sociologia inaugurou um novo estilo de pensar a realidade social ele estabeleceu um horizonte novo para a reflexão social e a sociedade brasileiras Ianni 1978 e 1989 F Fernandes defendia uma sociologia militante a transformação da realidade por um pensamento reciprocamente transformado por ela O sociólogo é cientista e cidadão Entretanto o pensamento social não se submete de maneira direta à ação social A relação entre ação e pensamento é dialética como propõe a práxis social marxista isto é uma vinculação sem dominação de uma esfera sobre a outra A intervenção na realidade deve ser teórica com dados e reflexões conceituais sobre uma realidade particular Seu pensamento é da mudança social é um pensamento tenso que articula as paixões e aspirações do cidadão com a busca de dados empíricos e verdade conceitual do cientista Ele quer controlar a intervenção na realidade quer realizar uma ação racional uma paixão que se arma de dados e os controla Ele quer reunir na medida do possível intervenção política movida por interesses de classe e conhecimento social movido pela busca da objetividade e verdade A intervenção racional promoverá a mudança com meios democráticos A realidade complexa do Brasil exige um pensamento mais ágil flexível aberto e portanto mais sintético Sem dogmas e esquemas prefixados Ianni 1978 1989 e 1994 Nisto ele vai mais longe do que Caio Prado Jr Vai mais longe e melhor sua formação teórica apesar do início precário é muito mais sólida Mannheim é o seu modelo Assim ele pretende defender a relevância política de uma análise especificamente históricosociológica É a análise consistente da realidade social particular que tem consequências políticas e não as pseudoanálises que reforçam teses dogmáticas e desconhecem a realidade em sua especificidade e não podem ser politicamente eficazes A ação política só é controlável e oferece menores riscos se apoiada em uma análise histórico sociológica realmente adequada à realidade na qual se quer intervir Se se quer mudar o Brasil em direção a uma sociedade socialista e democrática o primeiro passo e indispensável é conhecêlo adequadamente As ideias sobre o Brasil precisam se localizar no Brasil O que ele pretendeu foi um entrecruzamento sem dominação de ciência e ideologia verdade e interesse cidadão e cientista social Esse esforço ele o ensinará à sua equipe cuja marca será também a busca de uma maneira de pensar os problemas do Brasil com rigor conceitual e eficácia prática Cohn considera que a chave do seu pensamento seria definida por dois conceitos principais padrões e dilemas Padrões ele busca caracterizar formas de organização e regularidades dinâmicas reconstruíveis discerníveis identificáveis e apreendidas em seu modo próprio de articulação dilemas as condições geradas pela dinâmica desses padrões que opõem obstáculos à realização das possibilidades postas por eles O padrão define uma maneira de organização da sociedade os mecanismos pelos quais se atualiza a sociedade no momento os dilemas definem as condições geradas pela dinâmica interna dessa forma de organização e que conduzem a obstáculos e opções Em sua análise concreta do Brasil ele se preocupou quando tratou de padrões e dilemas com os atores sociais específicos em suas oportunidades estreitas e históricas Procurou encontrar em sua análise os sujeitos sociais capazes de fazer as opções que as contradições da estrutura social oferecem em forma de dilemas Cohn 1986 Os padrões são as estruturas sociais que limitam a ação dos sujeitos sociais que os impedem de implantar na realidade a sua vontade e os seus sonhos A realidade social não é o que se deseja que ela devesse ser e não pode ser mudada apenas com uma vontade moral exige conhecimento pesquisa investigação A história faz os homens que estão encerrados em relações sociais em lugares e papéis sociais dos quais não podem se retirar nem ignorar caprichosamente Entretanto a história oferece opções de ações aos sujeitos que estão mergulhados nela Os dilemas constituem as decisões produzidas por sujeitos históricos específicos em certas possibilidades objetivas de ação que podem ou não ser aproveitadas A teoria social correta ofereceria aos sujeitos sociais as possibilidades objetivas das suas ações as opções que os levariam ao sucesso à eficácia histórica Errar na análise históricosocial significa equivocarse na ação Por isso a análise deve ser sóbria serena bem informada particularizada e objetiva Ela servirá ao cidadão em suas lutas e na visualização da sua liberdade F Fernandes não pretendia uma neutralidade científica tampouco pretendia a pregação ideológica O seu é um pensamento sólido atravessado pela paixão que ele controlava pela disciplina teórica Cohn 1986 Para Mota F Fernandes rompeu com a linhagem dos explicadores do Brasil intelectuais que criaram ideias especulativas sobre o Brasil servindo sobretudo à conservação ou sendo inúteis para a mudança Neste trabalho consideramos estes explicadores do Brasil de Mota intérpretes do Brasil cujas contribuições avaliamos muito positivamente Não porque serviram à continuidade ou pouco à mudança mas porque fizeram uma tentativa de interpretação e de reconstrução narrativa e conceitual da experiência brasileira Eles criaram ideias sobre o Brasil e acabaram inventandoo Quanto a F Fernandes e divergimos um pouco de Mota ele realizou uma pesquisa social inovadora interdisciplinar e teoricamente consistente mas sem romper totalmente com os grandes autores do passado sendo ele também um dos melhores intérpretes do Brasil atento à mudança mas sem desconsiderar a continuidade na realidade brasileira Em nossa avaliação o que há entre F Fernandes e os intérpretes da realidade brasileira que o precederam em suas várias tendências é um rico vivo e importante debate sobre o Brasil Ele se diferencia nesse debate pela linguagem menos ensaística menos literária e mais conceitual pela preocupação maior com a mudança social feita sob o controle da teoria A sua equipe descobriu os grandes temas e formulou os grandes problemas do Brasil capitalismo escravidão racismo subdesenvolvimento dependência Estado e sociedade formação do proletariado movimentos sociais urbanos e rurais a transição do modo de produção escravista à sociedade capitalista Mota 1978 Mas os resultados desses trabalhos chamamos ainda de interpretações pois nenhum é indiscutível e definitivo A linguagem dos membros da sua equipe é mais hermética mais complexa mais conceitual revelando o amadurecimento da ciência social no Brasil Para F Fernandes e sua equipe segundo Mota era preciso implementar a ciência social no Brasil Era preciso identificar e formular os grandes problemas brasileiros conhecer as suas causas e repercussões sociais bem como as razões dos sucessivos malogros em controlálos Formulando problemas ele desideologizava um pouco A ideologia reaparece na hipótesesolução Para ele continua Mota a mudança social não é um bem em si e pode trazer efeitos negativos irreparáveis se não se tiver consciência do que se pretende com ela Sua obra é contemporânea do seu tempo enfrentou os desafios do presente reinterpretou o passado estabeleceu novas relações entre ambos e reabriu o futuro com novas propostas Seu pensamento é radicalmente crítico e quer apreender de fato a realidade brasileira no que ela tem de mais peculiar Seu objetivo era interpretar e representar da forma mais adequada a temporalidade brasileira específica Mota 1978 Para Mota enfim sua obra é um vasto mural das lutas populares Os sujeitos do futuro brasileiro são o proletariado urbano e rural descendentes de escravas índias e brancos pobres que poderão destruir os restos do passado da colonização portuguesa Em F Fernandes o Brasil quer romper radicalmente com o mundo que o português e as elites brasileiras suas descendentes criaram O futuro deve ser cada vez menos português passado e cada vez mais brasileiro uma integração progressiva à sociedade da população até então excluída pela conquista e ampliação da cidadania A sua obra e a de seus continuadores dialogarão opondose à perspectiva dos tradicionalistas e saudosistas representantes das classes sociais ligadas ao passado agrárioescravistaexportador os descobridores e conquistadores do Brasil Estes idealizavam o passado então povoado de mitos e heróis suavizavam a escravidão e temiam o presentefuturo onde emergiam as classes populares com o seu projeto de cidadania ampliada a todos Sua obra e a da sua equipe também dialogarão opondose à perspectiva das classes médias urbanas e seus intelectuais de espírito tecnocrático uma interpretação elitista modernizadora do Brasil que se imporá desde 1964 Enfim segundo Mota F Fernandes junto com A Cândido representou a radicalização da mudança social a ruptura com o passado brasileiro Ele seria uma intelectual ponte entre a geração de 1945 F Azevedo Cruz Costa Buarque de Holanda Caio Prado Jr e outros e a geração de 1960 F H Cardoso R Schwarz O Ianni F Weffort etc Mota 1978 Nessa sua visão radical do Brasil a categoria que mais caracteriza a especificidade do processo histórico brasileiro é a da escravidão Ela deixou marcas muito fortes nas relações sociais e na cultura do país F Fernandes examina o tema pelo aspecto da resistência do escravo a sua rebeldia e a sua capacidade de transformar a sociedade brasileira Seu grande interlocutor nesse debate será G Freyre F Fernandes escreve contra a visão de Freyre da escravidão brasileira O tema da escravidão passada ligavase ao da revolução social que viesse abolir as desigualdades sociais no presentefuturo Discutir o tema da escravidão no passado significava lutar pela concretização da sua abolição no presentefuturo Foi esse o tema principal usado para o desmascaramento da dominação e da visão oficial da realidade brasileira que fala de harmonia racial e social e de suavidade das relações entre senhores e escravos Queiroz 1987 Graham 1979 A equipe de F Fernandes incluindo R Bastide um dos mestres e copesquisadores F H Cardoso O Ianni E V da Costa tomará Casagrande senzala como uma antirreferência A escravidão suave é um mito cruel a ser destruído Os escravos não eram cidadãos não podiam ter armas propriedades vestirse como quisessem sair à noite reunirse E se fugissem Moravam em quase prisões amontoados Trabalhavam sob coerção repressão e violência com longas jornadas Eram castigados cruelmente e marcados a ferro quente Suas condições de vida eram as piores Falar em suavidade e ternura nas relações senhorescravo é ir cinicamente contra os fatos Aliás mesmo que vivessem em melhores condições de vida continuariam escravos isto é não cidadãos Esta sua condição social tinha efeitos devastadores sobre a sua condição humana e psicológica Sentiamse como coisas e não como sujeitos sociais Não eram humanos não se representavam como tais Freyre no entanto sustentava que não tinha havido revolta escrava no Brasil e que eles tinham vivido bem adaptados à doçura e à ternura das elites lusobrasileiras Gorender 1990 Com F Fernandes à frente os pesquisadores marxistas dos anos 1960 se oporão agressivamente a essa tese de Freyre Para eles não há como absolver o escravismo brasileiro E os negros não eram adaptados mas rebeldes fugiam suicidavam se atacavam senhores F Fernandes e sua equipe enfatizarão a rebeldia escrava o que significava tocar no núcleo da sociedade brasileira passada e presente a tese da rebeldia abordava criticamente o passado escravista e o presente de cidadania restrita A escravidão dominou a vida política econômica social e mental do Brasil durante quatro séculos O negro é sinônimo de subalterno inferior dominado Branco é igual a senhor negro igual a escravo O negro não poderia ter ambições políticas Para Ianni a tese da democracia racial das relações suaves e ternas entre senhores e escravos foi uma invenção cruel uma aniquilação da presença negra e indígena primeiro pela violência pura depois pela absorção gradativa em um branqueamento cultural O brasileiro filho de escravas e indígenas mestiço e pobre herdaria essa cordialidade submissa e pacífica Portanto em F Fernandes e equipe o tema da escravidão toca nos nervos da população brasileira atual filha de escravas e de donos de escravos A rebeldia escrava está na base da luta de hoje pela cidadania plena Ianni 1978 e 1989 Gorender 1990 F Fernandes pertenceria à terceira fase da história do marxismo brasileiro a do materialismo dialético que predominou pós1964 na periodização de Mantega já mencionada Mantega 1991 Sua obra é posterior à discussão entre o PCBSodré e Caio Prado Jr Ele prossegue a orientação de Caio Prado mas com uma posição teórica muito mais consistente Integrandoo à sua análise superouo na análise do Brasil Sua obra é fundadora da sociologia crítica no Brasil fruto dos estudos de Marx sem intermediários soviéticos e chineses mas diretamente em O capital em 1958 Este grupo dO capital mito à parte procurou compreender teoricamente a dinâmica capitalista observandoa no contexto específico da realidade brasileira Houve uma rica e profunda reflexão sobre o método dialético materialista e leramse outros autores de teoria social e econômica exteriores ao marxismo Durkheim Weber Sombart Parsons Merton Keynes e outros expoentes europeus e americanos A análise marxista do Brasil que fizeram é contemporânea e posterior ao Golpe de 1964 F Fernandes e seu grupo continuaram a usar a arma da crítica em uma época de luta armada embora sua crítica teórica se assemelhasse a uma metralhadora giratória Moraes 1991 Mantega 1991 Ao tentar situálo entre as seis interpretações do Brasil que predominaram nos anos 192070 BresserPereira hesitou em localizálo ou na interpretação funcionalcapitalista ao lado de Caio Prado ou na interpretação da superexploração imperialista ao lado de Gunder Frank R Marini e Teotônio dos Santos ou na interpretação da nova dependência ao lado de F H Cardoso e E Falleto BresserPereira considera o seu pensamento de difícil classificação pois independente e complexo A sua radicalização em relação ao autoritarismo burguês intrínseco à burguesia dependente o aproximaria mais da segunda a que clamava socialismo ou fascismo Em relação à primeira cujo representante maior é Caio Prado F Fernandes se distingue ao superar o sonho da autonomia nacional no interior do sistema capitalista Para ele no contexto da dependência não há proposta nacionalista que possa amortecer a luta de classes e diminuir a exploração da burguesia dependente F Fernandes explicita os limites reais históricos à emancipação e à autonomia nacionais a dependência sempre renovada e revigorada Por isso ele pode ser considerado um dos criadores da teoria da nova dependência ao lado de F H Cardoso Assim como a deste sua análise históricoestrutural do Brasil revela os limites muito estreitos à conquista da emancipação e da autonomia nacionais Por essa razão radicalizou em sua análise da luta de classes e em defesa da sociedade socialista combateu a exploração burguesa que é internacional Para ele se a emancipação nacional um dia for possível ela não o será dentro do sistema capitalista A luta deverá se orientar então contra o sistema capitalista internacional e não por um irrealizável capitalismo nacional Diferentemente de Cardoso a constatação da dependência estrutural não o impediu de continuar propondo a tese socialista do desenvolvimento com autonomia nacional Bresser Pereira portanto e com razão tem dificuldades para classificálo dentro do pensamento das esquerdas brasileiras e latino americanas Ele caberia nas três tendências de esquerda dos anos 196070 e ao mesmo tempo as supera e não se encaixa nem se fixa Pereira 1979 Mota o situa em duas fases distintas na da era de ampliação reformista 195764 e na da era das revisões radicais 196469 ao lado de Caio Prado Jr Ianni D M Leite e outros Nessas fases as análises do Brasil ganham outras perspectivas e tentase corrigir os erros das interpretações dos anos 1950 o desenvolvimentismo o capitalismo nacional o dualismo F Fernandes mostrará por que a luta de classes não pode ser dissociada do quadro da dependência O modo de produção capitalista é internacional e o Brasil ocupa um lugar específico nessa estrutura maior Nenhum projeto nacionalista poderia retirar o Brasil desse lugar estrutural sem romper com a estrutura Para se conhecer melhor o Brasil será preciso estudar suas relações de dependência internacional e situálo no modo de produção capitalista que é o contexto da luta de classes e da luta entre empresas multinacionais A situação de dependência limita as possibilidades de um capitalismo nacional que aliás é uma expressão contraditória O capitalismo é em sua própria definição internacional evidência teórica que as análises marxistas anteriores não souberam levar em consideração À luta nacionalista F Fernandes opõe a luta de classes internacional que será preciso intensificar para acelerar a chegada do socialismo Mota 1978 A Obra A Revolução Burguesa no Brasil Para abordarmos seu pensamento e conhecêlo um pouco melhor mas sem nenhuma ingênua pretensão de apreendêlo plenamente pois tratase de um autor prolixo e complexo difícil escolhemos a sua A revolução burguesa no Brasil 1975 uma interpretação históricosociológica do Brasil uma obra de síntese marxista mas que se distingue das interpretações marxistas do Brasil dos anos 195060 Sua interpretação pois tratase também e ainda de uma interpretação que oferece uma compreensão do Brasil ao Brasil uma configuraçãorefiguração hermenêutica é desvinculada do PCB e de orientações internacionais É uma história sociológica do Brasil que se apoia mais em escritos teóricos e históricos marxistas do que em orientações políticas internacionais F Fernandes produz uma interpretação do Brasil teórica e politicamente independente em diálogo crítico com as outras interpretações Nessa obra revela uma nova visão do Brasil construída com base em pesquisas empíricas sobre a colonização a escravidão e a revolução burguesa O tema do seu estudo é o modelo específico da revolução burguesa no Brasil que foi diferente do modelo clássico A burguesia revolucionária clássica implantou um sistema liberaldemocrático Sua pergunta então é por que no Brasil a burguesia revolucionária optou por um estilo autoritário de democracia limitada Sua hipótese pela maneira peculiar pela qual o capitalismo se desenvolveu no Brasil Pois não há um padrão único de implantação e desenvolvimento capitalista Não se pode presumir que o modelo brasileiro de revolução burguesa isto é de implantação do capitalismo seja uma repetição dos modelos clássicos Seria um erro teórico grave com sérias consequências políticas O padrão do desenvolvimento capitalista do Brasil é específico e é essa especificidade com as suas consequências políticas que esse seu estudo quer estabelecer Para E Viotti da Costa A revolução burguesa no Brasil é importante sob três aspectos primeiro apresenta um novo modelo de interpretação da sociedade brasileira lidando com categorias marxistas de modo sutil e flexível evitando interpretações mecanicistas segundo possui um valor pragmático pois faz um diagnóstico da política brasileira contemporânea além do grande valor acadêmico terceiro sua análise do Brasil oferece subsídios para uma análise da América Latina Segundo ela esta é uma obra essencial para o conhecimento da história brasileira Opõese à sociologia do caráter nacional brasileiro e ao dualismo desenvolvimentista dos anos 1950 e ainda às teses do PCB F Fernandes segue de perto o modelo da dependência dominante nos anos 1960 que veio substituir o dualista Mas transcende esse modelo embora enfatize a dependência e tenha sido um dos formuladores do seu modelo ao dar mais atenção à dinâmica interna da sociedade brasileira e ao continuar fiel ao projeto do socialismo democrático Viotti da Costa também o reconhece como um dos criadores da teoria da dependência mas ele a superou e se tornou um dos seus críticos mais relevantes Para se constatar isso aliás basta observar as suas relações críticas e tensas com F H Cardoso quando este chegou ao poder Em seu livro ele analisa a transição de uma sociedade tradicional para uma sociedade competitiva no tocante tanto aos valores quanto às instituições e às estruturas econômicosociais Ele dá tanta ênfase às mentalidades quanto às estruturas econômico sociais E também não minimiza a esfera política Viotti da Costa conclui sua obra responde aos desafios do presente e reinterpreta o passado desvelando outros nexos entre ambos Costa 1978 A expressão revolução burguesa no Brasil esclarece F Fernandes designa o processo de consolidação do capitalismo no Brasil como uma realidade parcialmente autônoma e com tendência à integração nacional Antes dela a economia exportadora que a preparou estrutural e dinamicamente depois dela três alternativas possíveis para o desenvolvimento econômicosocial brasileiro o subcapitalismo o capitalismo avançado e o socialismo Parece então que está descartada a alternativa socialismo ou fascismo que na verdade é uma charada indecifrável A não ser que se compreenda subcapitalismo e capitalismo avançado como traduções do fascismo De qualquer maneira aquelas são expressões mais brandas mais nuançadas No subcapitalismo nós já estamos e é de fato uma situação muito autoritária o socialismo é a meta final e distante o que seria o capitalismo avançado Todavia o seu livro tratará dessa questão das tendências futuras só indiretamente O seu estudo é históricosociológico e portanto o que o interessa diretamente é o durante isto é as etapas pelas quais se consolidou o capitalismo no Brasil O que o interessa portanto é a revolução burguesa no Brasil um conjunto de transformações econômicas tecnológicas psicoculturais e políticas que implantaram no Brasil a ordem social capitalista Para ele a interpretação sintética de uma revolução burguesa no Brasil já poderia ser tentada com alguma margem de erro mas com relativa segurança apoiada nas pesquisas históricas econômicas e sociológicas dos últimos 40 anos Aliás a bibliografia apresentada ao final do seu livro impressiona pela quantidade e qualidade pela diversidade de línguas e tendências pela interdisciplinaridade pela presença numerosa tanto de obras teóricas como de pesquisas empíricas Ele tentará realizar essa interpretação sintética com base nessa vasta bibliografia Sua questão inicial como e quando e em quais regiões se deu o surgimento do burguês e da sua revolução no Brasil Para uns constata ele a burguesia teria surgido já com a implantação da lavoura exportadora como se ela pudesse controlar o que era controlado desde a metrópole Caio Prado Para outros ela jamais teria existido no Brasil por ser um personagem exclusivamente europeu oriundo dos burgos medievais PCBSodré Ambas essas perspectivas lhe parecem inadequadas A primeira associa o burguês ao senhor de engenho a burguesia à oligarquia agrária Entretanto a oligarquia agrária ocupava um lugar marginal no processo de mercantilização da produção agrária colonial e não foi antecessora da burguesia moderna O senhor de engenho não era burguês ele tinha a função de organizar a produção de tipo colonial uma produção heteronômica destinada à apropriação metropolitana Apesar de possuir uma posição privilegiada internamente ele entrava no circuito colonial como dependente sujeito à expropriação pelos grupos europeus que dominavam o comércio internacional e pela Coroa que tinha o direito de cobrar tributos Ele não tinha lucro mas um tipo de remuneração Era uma espécie de administrador de funcionário da Coroa Portanto a história da burguesia brasileira não emerge com a colonização ou melhor o Brasil não é capitalista desde o seu descobrimento A segunda nega a existência da burguesia no Brasil o que é equivocado Os que negam esta existência cometem um tipo de historicismo antihistórico acreditam que processos e agentes de uma sociedade pertencem somente a estas e não a outras não podendo ser transplantados Mas essas sociedades se articulam e o Brasil em certo momento da sua história fez uma opção política optou por assimilar formas econômicas sociais e políticas do mundo ocidental moderno que é basicamente capitalista Tal opção seria impossível sem a presença de uma burguesia brasileira O que caracteriza esta burguesia é o seu aparecimento tardio hesitante débil limitado dependente conciliador Sua presença pode ser vista como revolucionária mas não à maneira das revoluções burguesas clássicas Para o período colonial portanto nem a tese feudal Sodré e nem a tese capitalista Caio Prado Jr são adequadas O Brasil passou a ser burguês e capitalista a partir de um certo momento da sua história bem posterior ao seu descobrimento Falar em revolução burguesa no Brasil consiste em procurar os sujeitos das grandes transformações históricas e sociais que estão por trás da desagregação do regime escravistasenhorial e da formação da sociedade de classes no Brasil A revolução burguesa no Brasil significou a modernização econômica política cultural e social uma transição da era senhorial sob a hegemonia das oligarquias agrárias para a era burguesa quando a hegemonia foi compartilhada entre aquela oligarquia e o novo grupo social emergente a burguesia No Brasil não houve um confronto estrutural entre o novo e o antigo o velho e o novo se fundiram A burguesia não entrou em conflito de vida ou morte com a aristocracia agrária Ela se opôs à oligarquia dentro da ordem O conflito foi pontual e não estrutural A burguesia se comprometeu com tudo o que lhe fosse vantajoso e era vantajoso para ela tirar proveito dos tempos desiguais e da heterogeneidade da sociedade brasileira Ajustouse à tradição preferindo a mudança gradual e a composição a uma modernização impetuosa intransigente e avassaladora Quanto à oligarquia ela também enfrentou a transição com um espírito igual de transigência e compromisso modernizou se aburguesouse O que determinou a transição não foi a vontade revolucionária da burguesia brasileira ou melhor a sua vontade revolucionária não se exprimiu politicamente pela tomada do Estado oligárquico mas economicamente pela associação vantajosa com as oligarquias e o imperialismo A burguesia brasileira produziu a sua revolução em uma economia colonial periférica dependente Não havia condições e processos econômicos que sustentassem o funcionamento dos modelos econômicos transplantados do centro Além disso esses modelos transplantados não visavam a estimular o comércio interno mas a manter e a intensificar a incorporação dependente da economia brasileira Se havia uma modernização interna essa se articulava de forma subalterna às economias centrais O capitalismo brasileiro é um capitalismo dependente a burguesia brasileira é uma burguesia dependente um sócio menor A revolução burguesa no Brasil não foi portanto uma ruptura intransigente um assalto ao poder oligárquico mas um processo modernizador gradual não vertical conciliador de longa duração O ritmo da revolução foi imposto de fora para dentro pela economia capitalista internacional Eis como F Fernandes caracteriza em seu sentido geral a revolução burguesa no Brasil Entretanto quando se iniciou como avançou e quais foram os seus agentes Em que período da história do Brasil foi iniciado esse processo por quais sujeitos e em que direção final Para F Fernandes essa revolução burguesa brasileira queria realizar a implantação de uma economia capitalista independente nacional esta era a sua aspiração final a sua utopia Para se obter esse resultado o mercado interno deverá se fortalecer e se autonomizar ser hegemônico sobre o mercado externo as relações de produção deverão se tornar plenamente capitalistas a organização da produção deverá se racionalizar as forças produtivas deverão se modernizar o Estado deverá se burocratizar racionalmente Esse era portanto o objetivo final a ser alcançado esta a orientação o sentido final da ação da burguesia na história brasileira E aqui F Fernandes se distingue de Sodré e de Caio Prado que sonhavam cada um à sua maneira com um capitalismo nacional com a emancipação e autonomia nacional dentro do capitalismo com o desenvolvimento capitalista com soberania com a realização daquele sentido final A sua teoria social mais bem elaborada o levou à realidade brasileira aos seus ritmos específicos lentos e tortuosos aos obstáculos ao seu desenvolvimento autônomo F Fernandes identifica a utopia burguesa mas não sonha mais A emancipação e a autonomia nacionais serão impossíveis dentro do sistema capitalista A ideia de um capitalismo nacional com o qual sonhavam as esquerdas dos anos 195060 era um equívoco teórico e político Isso porque a burguesia brasileira está em uma posição sempre e renovadamente dependente Dada essa dependência sempre renovada e fortalecida aquela aspiração final jamais será alcançada A burguesia brasileira teve de reduzir o alcance da sua revolução teve de limitar o seu impulso transformador teve de restringir o campo da sua atuação histórica Teve de transigir conciliar aceitar agir dentro da ordem oligárquica E poderia ela agir de outra forma contra a ordem por exemplo perguntase F Fernandes Poderia ter tomado uma orientação realmente revolucionária Para ele não Ela atuava em condições muito adversas Como ela poderia agir para tornar incompatíveis a mudança da expansão interna do capitalismo e a continuidade do passado colonial e do presente neocolonial O passado e o presente brasileiros são de dependência estrutural capitalista continuidade como agir eficazmente contra eles e criar um futuro novo a mudança O capitalismo dependente ele conclui é um capitalismo difícil deixando poucas alternativas à burguesia A dominação burguesa no Brasil fugirá do modelo clássico não será nacional e democrática mas dependente e autoritária Sob o capitalismo dependente a revolução burguesa é difícil mas necessária para possibilitar o desenvolvimento capitalista e a consolidação da dominação burguesa Considerando os estreitos limites em que atuava cercada internamente pela oligarquia exportadora e pelos interesses internacionais externa e também internamente a burguesia brasileira foi até hábil eficaz historicamente ao ceder em relação ao passado e ao aceitar a associação dependente em uma posição menor com o imperialismo Seu objetivo final dadas as circunstâncias foi reconhecido como utópico um sonho de desenvolvimento com autonomia e foi ora abandonado ora mantido mas sempre adiado Poderia ela agir de outra forma Em sua avaliação da ação da burguesia brasileira F Fernandes se divide hesita Por um lado ele se decepciona com sua incapacidade de alcançar o objetivo que estabeleceu para a sua ação Ele lamenta a ausência de uma burguesia realmente dinâmica democrática revolucionária de fato capaz de fazer as opções postas pelos padrões da organização social brasileira Para ele em certos momentos teria faltado ao Brasil um agente transformador ousado uma burguesia capaz de desempenhar o seu papel modernizador em uma sociedade capitalista A sociedade brasileira se organizou de forma capitalista muito mais de fora para dentro dentro faltoulhe um agente capaz de levar a fundo a mudança o Brasil precisava de uma burguesia mais audaciosa mais agressiva menos prudente e tímida A revolução burguesa no Brasil foi frustrada uma oportunidade perdida a burguesia não preencheu o seu papel histórico foi um ator incompetente F Fernandes recai então em considerações éticas tornase um cidadão frustrado e indignado com as difíceis condições da vida brasileira engastada entre o passado e o presente incapaz de saltar para o futuro pela ausência de sujeitos históricos realmente dinamizadores Por outro lado o F Fernandes cientista social analisa as condições objetivas em que as iniciativas desse sujeito social foram tomadas em que as escolhas foram feitas observa uma realidade social dependente dominada pela continuidade das forças do presente e do passado e conclui que era difícil agir que a revolução burguesa no Brasil foi feita em estreitos limites entre o passado colonial e o presente neocolonial Ora F Fernandes acusa a burguesia brasileira de ser um agente de mudanças incompetente tímido conciliador ora a considera competente hábil até inovadora se se considera a sua situação de dependência a estrutura com limites estreitos dentro da qual ela teve de fazer opções e agir Não há contradição entre as duas avaliações são avaliações feitas a partir de esferas de valores distintos a esfera da paixão do cidadão e a esfera do conceito do cientista social Não são contraditórias elas se complementam se iluminam reciprocamente O cidadão expressa a sua frustração e pede explicações ao cientista o cientista oferece explicações que jamais são suficientes para acalmar e silenciar a frustração do cidadão Nesse diálogo fecundo a paixão do cidadão alimenta a pesquisa científica exige explicações a análise conceitual do cientista reestimula a paixão que sempre espera e solicita informações e explicações mais precisas e conclusivas F Fernandes se aproxima muito de Weber e Mannheim em muitos aspectos Feitas essas considerações gerais sobre o caráter da revolução burguesa no Brasil que só provocam a paixão que exige sempre um maior entendimento F Fernandes realiza uma análise histórica quando começou quais os episódios da história brasileira que revelam a emergência da dominação burguesa Quais os fatos e as datas que marcaram a ascensão da burguesia brasileira Tratase segundo ele de uma revolução longa lenta e que ainda não se completou Ele considera que quatro processos a constituíram no passado a um processo político a independência 180822 b um processo econômico a mudança do padrão das relações entre o capital internacional e a economia interna a partir de 1822 com aceleração desse processo entre 185088 c um processo sociocultural a emergência dos dois novos tipos humanos o fazendeiro do café e o imigrante a partir de 1870 d um processo socioeconômico a abolição e a expansão da ordem social competitiva pós 1888 Primeiro apesar da independência a produção continuou a ser feita com a mesma relação de produção escravista de antes a propriedade da terra era ainda latifundiária a agricultura ainda era monocultora e exportadora O que mudou o comércio exterior dos produtos brasileiros que era controlado de fora passou a ser controlado de dentro Houve um excedente econômico interno com a eliminação da intermediação da Coroa portuguesa que paulatinamente passou a ser investido internamente diversificando a produção e estimulando o consumo Apareceu uma produção agrícola e artesanal destinada ao mercado interno As cidades começaram a se desenvolver Nesse primeiro momento essas expressões de uma economia interna se subordinavam ainda ao mercado externo A independência política não conduziu a nenhuma transformação econômica revolucionária mas alterou de modo significativo a relação de dependência econômica Ela foi o ponto de partida para uma maior liberdade econômica para a absorção de novos padrões socioeconômicoculturais novas técnicas agentes e modelos de ação econômica ela produziu internamente a mudança no padrão de civilização Pela primeira vez emergia na cena brasileira o burguês O capitalismo e o seu agente apareceram no Brasil entre 1808 e 1822 Eles apareceram ligados ao comércio e não à produção agrícola exportadora e nem à produção manufatureira ou industrial O comércio passou a ser controlado de dentro os controles externos da economia colonial transferiramse para o interior da nova economia nacional que se implantava trazendo o espírito burguês a concepção burguesa do mundo Houve uma mudança significativa na relação da economia brasileira com o sistema econômico externo após a extinção do estatuto colonial e a constituição de um Estado independente Não foi a emancipação nacional mas a renovação da dependência a sua articulação sobre novas bases e em outros termos Isso não impede que a independência tenha representado uma revolução social a primeira que se operou no Brasil Ela representou o fim da era colonial e o ponto de referência para a época da sociedade nacional com ela inaugurada Muitos não lhe atribuem valor por ter persistido a ordem social interna colonial e por ter sido produzida sem a participação das massas Apesar disso ser verdade e limitar de fato o seu alcance transformador a simples extinção do estatuto colonial teve um sentido econômicosocial revolucionário Com ela instaurouse uma sociedade nacional o poder deixará de ser uma imposição externa para organizarse a partir de dentro com elementos brasileiros apesar da nova dominação inglesa As elites nativas poderão atuar sem o controle da Coroa e seus prepostos A independência só não foi violenta porque por coincidência pelas circunstâncias da história europeia a Corte fora obrigada a se transferir para o Brasil Ela já era uma necessidade histórica As elites não queriam mudar a ordem social colonial só queriam controlála de dentro A independência não foi e nem poderia ter sido feita de maneira mais coletiva e agressiva Ela foi uma realização das elites que pretenderam internalizar o poder e controlar diretamente o comércio de seus produtos Não foi uma revolução social embora tenha dado início à revolução burguesa mas política Foi ao mesmo tempo um movimento revolucionário a busca de uma sociedade nacional autônoma e conservador a preservação e a consolidação da ordem social colonial pois as elites não possuíam condições materiais e morais para engendrar o padrão de autonomia necessário a uma nação A mineração e a lavoura exportadora impunham a preservação do mundo colonial Apesar disso havia um elemento transformador dinâmico As ideias liberais que foram selecionadas eficazmente e ofereceram às elites a argumentação racional contra a condição colonial e pela emancipação Elas ofereceram forma e conteúdo às pretensões igualitárias com a metrópole por um lado e por outro redefiniram as relações de dependência que continuaram a vigorar entre o Brasil e o mercado externo As ideias liberais bem no lugar e muito eficazes embora selecionadas apoiaram a construção do Estado nacional em um país destituído das condições elementares mínimas de uma sociedade nacional O liberalismo apoiou as elites na sua luta contra os interesses da Coroa como ideologia como utopia ele as apoiou na criação de um projeto de Estado e sociedade nacionais O liberalismo não foi um elemento postiço farisaico esdrúxulo teve o seu papel que se ganharia melhor definindoo ele esclarece opondose às análises de S B de Holanda e R Schwarz que veem as ideias europeias no Brasil fora do lugar Schwarz 1981 Franco 1981 Para F Fernandes o liberalismo teve um papel muito produtivo Ele foi a força cultural viva da revolução nacional brasileira Enfim a revolução da independência impôs o domínio senhorial sobre a nação As possibilidades de mando do senhor transcenderam ao seu domínio rural O poder senhorial atingiu o novo Estado nacional que integrou os interesses de todos os senhores agrários locais e regionais em um interesse nacional O senhor se transformou em cidadão Com as ideias liberais circulando por outras razões mais econômicas e políticas passaram também a circular ideias sociais a de direito liberdade individual de justiça de progresso Essas ideias liberais não selecionadas pelas elites no entanto oferecerão argumentos às lutas contra a escravidão e pela democracia que então começaram Elas alimentaram uma utopia revolucionária A independência revelou o caráter duplo do liberalismo dependência nova em relação ao exterior e caminho novo de autonomia não de um povo ainda mas das elites A independência possui para F Fernandes um lado sombrio e outro positivo Ele é hábil na percepção desses dois lados da revolução burguesa no Brasil Ao lado sombrio ele reage como cidadão e protesta ao lado positivo ele reage como cientista social e o reconhece quando em geral a reação que predomina na historiografia brasileira que o precedeu é só a decepção e a indignação do cidadão Mas propõe ele há um outro lado das coisas o estrutural que limita a liberdade dos homens em suas opções Entretanto F Fernandes não é determinista ou passivo diante das condições estruturais Ele afirma não pensar que tinha de ser assim ou que poderia ser de outro modo O que ele só está reconhecendo é que a sociedade colonial não poderia cair de uma hora para outra aceleradamente e que a transição da sociedade colonial para a nacional iria desencadear e exigir processos históricos seculares A independência só foi o primeiro desses processos o processo inicial o ponto de partida e muito importante ela foi a base do processo secular da construção da integração nacional o início da implantação da ordem capitalista Foi a independência o marco inicial da revolução burguesa no Brasil Após a independência o processo econômico o segundo processo desencadeador da revolução burguesa houve uma mudança nas relações entre a economia brasileira e o neocolonialismo Os agentes estrangeiros que comercializavam os produtos brasileiros antes da independência assumirão após o controle da antiga colônia sem riscos políticos A participação da Coroa no excedente foi redistribuída A exploração colonial passou a ser agora estritamente econômica O produtor brasileiro e o importador estrangeiro discutiam quem ficaria com a maior parcela econômica O produtor brasileiro começou a aspirar à internalização da fase de comercialização Mas não podia ainda exercêla Ele teve de se adaptar a essa hegemonia econômica Quanto aos comerciantes estrangeiros intermediários entre o produtor e os importadores europeus aceitaram internalizar até certo ponto o comércio que realizavam integrando o Brasil no sistema capitalista mundial retirando o produtor brasileiro da posição marginal que ocupava Essa nova relação de dependência perdeu o nexo político e se tornou sobretudo econômica O produtor brasileiro tornouse um sócio menor A dependência foi preservada mas as relações com o exterior se alteraram A nova economia nacional que emergia possuía novas funções e se articulava de forma nova com o mercado mundial O neocolonialismo foi um fator de modernização econômica real alterando a economia interna em suas articulações com o centro O novo país foi aparelhado para montar e expandir uma economia capitalista dependente Houve transferência da Europa para o Brasil de empresas especializadas em transações comerciais de exportação e importação e em operações bancárias Com elas transferiramse para dentro tecnologias capitais agentes econômicos Resultado emergia um novo padrão de crescimento econômico interno organizavase a dependência em função do dinamismo interno Os controles externos instalaramse no cerne da economia interna O Brasil não ocupava mais uma posição marginal em relação ao capitalismo comercial ele ainda usa essa expressão que perdurou durante o período colonial O país ganhou um status próprio na organização da economia mundial Nessa nova posição podia absorver padrões de comportamento econômico tecnologia moderna instituições econômicas capital e agentes humanos Deu um salto na participação dos modelos capitalistas de organização da personalidade da economia e da sociedade O processo concentrouse na esfera das atividades mercantis e financeiras Foi nessa esfera que houve a internalização de operações que antes ocorriam fora A modernização não atingiu todas as esferas econômicas Tocou a esfera do comércio primeiro e não conduziu à aceleração do desenvolvimento econômico autônomo pois não atingiu a produção agrícola e artesanal voltada para o mercado interno Era uma modernização induzida de fora que mais aprofundou a heteronomia do que levou à autonomia Entretanto essa modernização embora não trouxesse a autonomia trouxe uma influência positiva a renovação da economia interna a introdução de padrões capitalistas no comércio a alteração da mentalidade e comportamento dos agentes econômicos O elemento burguês nasceu da sua influência Sob essa influência aparece na cena brasileira o burguês nas atividades mercantis O espírito burguês leva à exploração das potencialidades internas e cria a possibilidade da superação da dependência Mesmo sob a dependência econômica o burguês brasileiro valorizaria formas de consciência econômica análogas às do centro O burguês brasileiro associouse às firmas estrangeiras e seus interesses se amalgamaram O controle externo da economia interna processavase sob forte identidade de interesses lealdade e simpatia Esse controle externo era indireto a distância e impessoal Os negócios de exportação e importação não eram percebidos como uma relação de dependência econômica Adotouse o liberalismo como uma concepção radical do mundo Apesar de heteronômico o novo setor tirava proveito da sua inclusão no desenvolvimento econômico urbano Ele manipulava o excedente econômico produzido pela atividade agrária O senhor de engenho passou a aplicar na cidade o seu excedente Essa conexão campocidade transformou a produção exportadora rural em fonte de crescimento econômico interno Essa especulação mercantilfinanceira antecedeu e orientou as transformações capitalistas na produção e no consumo Esses novos agentes fizeram crescer a economia urbana que fomentava o desenvolvimento interno apesar da dependência Eles modernizaram a economia interna monetarizandoa e estimulando o mercado interno Eles provocaram a emergência de um novo horizonte cultural que contrastava com o horizonte cultural senhorial É a partir desse novo horizonte cultural que vai se difundir e consolidar o capitalismo O primeiro surto capitalista no Brasil não se deu nem na agricultura exportadora e nem na produção manufatureira ou industrial mas no complexo comercial e financeiro constituído sob as pressões econômicas do neocolonialismo e do desenvolvimento urbano Esse fato criou uma mentalidade burguesa Aparecia antes das relações de produção capitalistas o espírito do capitalismo no Brasil Aqui porque veio do exterior e não foi uma emergência interna o espírito burguês é anterior à relação social capitalista o espírito será criador da relação social concreta que o exprime O processo político da independência e o processo econômico da mudança nas relações entre a economia brasileira e o capitalismo internacional desencadeariam um processo sociocultural o terceiro processo dinamizador da revolução burguesa ao criar as condições para o surgimento dos dois novos tipos humanos que serão os sujeitos da modernização brasileira e que não poderiam aparecer sem aqueles dois processos que os antecederam O primeiro tipo humano é o fazendeiro do oeste paulista que passou a investir fora do contexto econômico da grande lavoura Sua ação se tornou movida por interesses estritamente econômicos A sua lavoura de café entrou na lógica do mercado tornouse uma plantação moderna O cafeicultor se adaptou ao novo Brasil posterior a 1822 e a 1850 que possuía um novo agente interno o especulador financeiro com o qual o fazendeiro se endividou e se ligou estreitamente Ele teve de se adaptar para manter o monopólio do poder o controle do governo e a liderança da vida econômica O capital comercial e financeiro subjugavao e obrigavao a modernizarse O capital se concentrava nas cidades em instituições financeiras e ameaçava a grande lavoura ainda senhorial e tradicional Os fazendeiros do oeste paulista perceberam o novo tempo substituíram a mão de obra escrava reduziram os custos usaram novas técnicas modernizaram os transportes Surgiu outro tipo de fazenda racional tecnológica assalariada voltada para o aumento da produtividade e do lucro O fazendeiro do café já não possui status por razões tradicionais mas por razões econômicas Sua fazenda não é mais o seu domínio seu estado sua moradia é a sua empresa Ele habita a cidade investe no crescimento desta Nas cidades estava o poder comercial e financeiro que controlava toda a economia O espírito burguês chegou primeiro ao Brasil antes dos seus sujeitos sociais internos e se instalou nas cidades Convivendo com esse espírito burguês urbano o fazendeiro torna se o seu portador interno Ele se torna um homem movido por interesses puramente econômicos impiedoso tenaz ambicioso apetitivo Esse agente transformador representou uma ruptura no interior das elites tradicionais Seu passado é senhorial oligárquico tradicional seu presente é burguês classista modernizador Essa sua relação de continuidade com o passado o tornará menos agressivo do que poderia ser na mudança Ele será menos revolucionário do que poderia ter sido Sua capacidade de modernização será limitada pelos vínculos que mantinha ainda com o passado senhorial O segundo agente da revolução burguesa virá do exterior da história do Brasil Seu passado não é interno o que o tornará livre para agir Ele já chegou com o espírito burguês e é mais audacioso Tratase dos imigrantes europeus e asiáticos um agente heterogêneo Eles apareceram na história do Brasil quando a economia de mercado exigia a substituição do trabalho escravo pelo livre Foi aquele fazendeiro moderno quem os trouxe para a sua plantação Eles trouxeram especialização tecnológica padrões de vida mais racionais Vieram com o objetivo de fazer a América para voltar aos seus países de origem ricos e poderosos Vieram com o mesmo espírito dos primeiros colonizadores conquistador e depredador Seu futuro não estava aqui nem o seu passado ambos na Europa e Ásia de onde vieram e para onde voltariam Aqui eles terão uma atuação com motivações estritamente econômicas Seu fim era a riqueza Para atingila o mais rapidamente eles transformaram a si mesmos e à sua família e aos outros em meios O trabalho próprio e familiar foi a fonte da sua prosperidade Eles viviam com austeridade e pobreza poupavam Os bemsucedidos produziam para o mercado interno na produção agrícola artesanal no pequeno comércio Eles se tornaram substituidores de importações papel que terá uma repercussão enorme no século XX O imigrante foi o herói da industrialização Sua presença foi um elemento acelerador da revolução burguesa brasileira Se o senhor de café foi um agente capitalista na esfera superior da estrutura econômica o imigrante foi um agente dinâmico múltiplo ocupou todas as posições de assalariados a agricultores comerciantes industriais Sem passado e sem tradição não tinha preocupação com status e não tinha preconceitos em relação ao trabalho manual Mas após obter grande sucesso econômico quando passou a ter influência política ele não foi inovador O cidadão F Fernandes protesta então indignado contra o imigrante reacionário que aderiu às formas de dominação do senhor de café Economicamente a sua presença foi avançada agressiva diversificadora dinamizadora modernizadora politicamente ele se revelou tímido e frágil preferindo a conciliação e o conservadorismo No entanto ele poderia agir de outra forma e preservar o seu sucesso econômico O seu sucesso econômico não exigia concessões políticas É só pensar em como ele chegou ao Brasil completamente dominado pelo senhor que o importara Além disso na Europa e na Ásia de onde vieram eles eram também dominados como operários e camponeses Eles não tinham a experiência da luta política Seu objetivo como imigrante não era político mas econômico E obtiveram um grande sucesso nessa área A esfera política o seu funcionamento tiveram de aprender por aqui mesmo tendo como professores as oligarquias Assim a revolução burguesa brasileira tomou um caráter autoritário e repressivo em grande parte porque o imigrante não teve meios de propor novas formas burguesas de poder E quando foi agressivo politicamente ele tendeu ao anarquismo à luta contra a ordem burguesa ainda frágil e foi objeto de violenta repressão Ao absorver o capitalismo na esfera comercialfinanceira primeiro e depois na fazenda de café com o seu novo fazendeiro e nas atividades múltiplas do imigrante a sociedade brasileira tenderá a romper com as relações de produção escravistas e a implantar relações de produção tipicamente capitalistas ou seja tenderá a se constituir como uma ordem social competitiva Este será um processo socioeconômico o quarto processo desencadeador da revolução burguesa no Brasil Nas sociedades nacionais dependentes o capitalismo foi introduzido antes da constituição da ordem social competitiva O espírito do capitalismo chegou primeiro à esfera comercial e só depois constituiu as relações de produção que lhe são correspondentes A ordem escravista colonial brasileira resistiu quase um século à sua superação por uma ordem social capitalista apesar de suas tensões internas Ela poderia sobreviver ainda convivendo com o crescimento da população e a urbanização Mas não sobreviveria à integração da economia brasileira à economia mundial que exigia a mercantilização do trabalho Desde o início do século XIX os ingleses atacaram o esteio da ordem senhorial a escravidão A classe senhorial percebia que era atacada em seu fundamento no elemento que garantia o seu equilíbrio e continuidade e reagiu protelou adiou lutou Mas não podia estancar a história Tendo optado pela independência ela escolheu o capitalismo contra o pacto colonial e tinha de conformarse com o destino que aquele lhe reservara Entretanto apesar de ter optado pelo capitalismo a classe senhorial defendeu ainda a ordem social escravista colonialimperial e repudiou o mercado capitalista que incluiria setores humanos até então à margem da história O mercado capitalista cria estruturas econômicas às quais ninguém escapa A falta de elasticidade da ordem social escravista com referência ao mercado capitalista revelava a sua impossibilidade real de absorver as formas materiais morais e políticas das relações humanas sob o capitalismo A competição era incompatível com os fundamentos patrimonialistas da sociedade estamental A ordem social escravista resistiu entretanto até o final do século XIX Mas resistindo ao longo do século XIX ela se desagregava A nova ordem social se estruturou dificilmente passo a passo Durante o século XIX houve uma acomodação de formas econômicosociais antigas e modernas uma economia nacional híbrida que estendeu a duração de um sistema précapitalista de produção em plena eclosão do modo capitalista internamente Finalmente não sem hesitações os fazendeiros paulistas se desinteressaram do trabalho escravo e investiram no trabalho livre Este nasceu ainda em um contexto escravista e não em um contexto que fomentasse a competição e o conflito Ele se articula ao mandonismo ao paternalismo ao conformismo como se fosse um prolongamento do trabalho escravo O trabalho livre apareceu submetido à mesma brutalidade e violência do trabalho escravo Contra a rebeldia do novo trabalhador estarão à disposição do senhor assim como estiveram contra o escravo a polícia e o autoritarismo do Estado A escravidão foi se tornando incompatível progressivamente com o espírito do capitalismo com o mercado capitalista com a ordem social competitiva que emergia Em 1888 a escravidão foi definitivamente encerrada embora os restos escravistas ainda perdurassem Desde 1808 e 1822 a revolução burguesa estava em marcha Em 1888 aboliuse a escravidão em 1889 mudouse o regime político Todas essas datas e processos expressavam a entrada do capitalismo no Brasil e a emergência dos sujeitos sociais que são os seus portadores A mudança do Estado em 1889 foi uma condição necessária para que ela a burguesia se tornasse dominante produziu transformações jurídicopolíticas necessárias à disseminação das relações de produção capitalistas Em 1889 formouse um Estado burguês que implantou um novo direito todos são sujeitos de direitos e não há mais escravos no Brasil embora limitado em sua eficácia e abrangência Apesar da declaração da cidadania irrestrita sobreviviam restos escravistas o autoritarismo do próprio Estado o poder local dos senhores a repressão aos movimentos sociais As relações de dependência pessoal afetavam o direito de voto do trabalhador rural A democracia era oligárquica e elitista não ainda burguesa Mas era um Estado burguês assim mesmo Como o espírito do capitalismo também o Estado burguês antecedeu ao aparecimento das relações de produção capitalistas e tornou possível a sua constituição e reprodução suscitando um direito e uma burocracia que criavam o indivíduo livre e igual perante a lei pronto para oferecer a sua força de trabalho ao mercado Saes 1984 Eis portanto os quatro processos que constituíram a revolução burguesa no Brasil no século XIX Eles implantaram o capitalismo no Brasil mas a aceleração desse processo virá somente no século XX com a industrialização a Revolução de 1930 e vários episódios trágicos de tomada do Estado e de exclusão pela força dos movimentos populares A burguesia brasileira possui um espírito modernizador mas circunscreveu essa modernização à esfera econômica Fora daí ela faz um discurso revolucionário imitando a burguesia clássica mas que não passa de ostentação verbal farsa A modernização conservadora é técnica e econômica e evita a divulgação de valores de independência e revolução social e nacional Os interesses burgueses internos e externos associados convergiram para a estabilidade a ordem essencial para o crescimento econômico que pretendiam A dominação burguesa no Brasil é autocrática Entre as elites no entanto há uma certa tensão dentro da ordem Mas desde que continue dentro da ordem essa tensão é tolerada Após a abolição e a República a oligarquia não pôde dominar com exclusividade e teve que ceder Ela cedeu à radicalização dos setores intermediários e industriais sem perder o controle do Estado Ela mudava para permanecer Foram a oligarquia tradicional agrária aliada à elite dos negócios comerciais e financeiros que decidiram e não as classes industriais o que deveria ser a dominação burguesa na prática Foi essa aliança reacionária que comboiou os outros setores das classes dominantes reprimindo o proletariado e conduzindo a luta de classes Aparentemente essa aliança foi destituída em 1930 Mas ressurgiu em 1937 no governo Dutra e em 1964 sem desaparecer nos entreatos Em 1964 a burguesia unida estabeleceu uma relação íntima com o capital financeiro internacional reprimiu a subversão política da ordem apossouse do Estado que se tornou então exclusivamente burguês A dominação burguesa no Brasil se revelou então como ela é As burguesias interna e internacional se associaram economicamente e tomaram o Estado para a modernização capitalista pelo alto Desde 180822 a revolução burguesa no Brasil se deu de cima para baixo autoritária autocrática repressiva Desde o início essa revolução excluiu a população brasileira do acesso ao poder político e das conquistas democráticas O liberalismo político foi esquecido ou minimizado só o econômico foi praticado Foi uma revolução feita sob o signo da ordem do progresso do desenvolvimento com segurança isto é o passado não foi totalmente abolido interrompido como aconteceu em processos realmente revolucionários A Duradoura Realidade e a Paixão da Mudança F Fernandes aprofunda a perspectiva teórica de Caio Prado Jr ele percebe também e com maior ênfase a continuidade na realidade brasileira mais do que a mudança Embora como cidadão ele deseje a mudança e se impaciente com a sua lentidão como cientista social ele é obrigado a constatar que o Brasil na verdade permanece uma economia sempre heteronômica o que impede que os seus agentes transformadores possam agir mais audaciosamente Contudo poucos como ele souberam valorizar as mudanças ocorridas nessa história brasileira marcada pela continuidade Em história para ele não há continuidade absoluta sempre há mudança F Fernandes é sensível a essas mudanças registra as mais sutis e avalia com lucidez o seu alcance Embora ainda aspire vivamente à emancipação e à autonomia nacionais ele não sonha mais não acredita em mudanças profundas e aceleradas Vive ora no diaanálise continuidade ora na noitesonho mudança dividiu se Encontrou em suas pesquisas a dura realidade da continuidade da dependência ignorada nas análises de cientistas sociais socialistas e burgueses O modelo clássico de revolução burguesa não poderia ser repetido aqui pois o desenvolvimento desigual interno e a dominação imperialista são realidades permanentes que a impediam A burguesia brasileira não poderia fazer o desenvolvimento capitalista com democracia e opondose à dominação externa que já era interna Há uma parte da burguesia brasileira que é democrática mas que se desencantou também ao constatar a contínua e dura realidade da dependência estrutural capitalista A burguesia brasileira teve de neutralizar aspirações democráticas no interior da sua própria classe e reprimir projetos nacionalistas e populares A modernização seria feita mas seu objetivo não será a nação mas a classe A transição revolucionária é feita de forma particularista e egoísta e não considera o desenvolvimento da nação como um todo O desenvolvimento capitalista no Brasil não leva nem à emancipação e nem à autonomia nacional A nação é usada como meio como recurso estratégico e como base material de decisões Mas não será o objetivo do desenvolvimento capitalista Este objetivo são os interesses egoístas particularistas da burguesia interna articulada à dominação externa Percebese que F Fernandes tenta fazer o luto do nacionalismo perdido Por um lado constata a dura realidade por outro não se conforma e protesta com veemência Ele se põe então a emitir juízos de valor sobre a burguesia brasileira Há um certo moralismo em sua análise da revolução burguesa brasileira Fala de deslealdade de desonestidade deste ou daquele segmento social É como se a burguesia brasileira pudesse fazer a revolução democrática e nacional e que por incompetência e egoísmo abdicasse desse ideal Quando raciocina em termos de luta de classes estratégias e alianças de classes quando é um marxista teórico explica e compreende a ação da burguesia quando passa a raciocinar em termos de nação de desenvolvimento integrado que inclua toda a população brasileira em suas vantagens e constatando o contrário disso ele se impacienta e passa a falar de traição e do que deveria ser a ação revolucionária Para retornar então à realidade e à teoria e constatar parece que as coisas não poderiam transcorrer de outro modo na cena brasileira E ainda mais é preciso reconhecer que os ganhos acumulados com a transição do estado colonial para o capitalismo dependente foram consideráveis Para novamente reconsiderar são os homens que fazem a história e considerar o acontecido como inevitável não é uma boa regra de método A abordagem estrutural não leva à passividade das classes insiste A determinação estrutural abre um campo de possibilidades de alternativas de dilemas A estrutura explica a história mas a história não é conhecível antecipadamente por isso Permanece ainda a possibilidade estrutural das opções e até a opção da ruptura estrutural não é impossível Silveira 1978 A história da revolução burguesa no Brasil o deixa frustrado Por que a burguesia teve de realizar a sua ação modernizadora de maneira tão contrarrevolucionária Por que teve de se associar às oligarquias ao passado colonial Porque não deslocou aquelas velhas classes por que não criou o colapso a ruptura radical com o passado Por que não realizou o desenvolvimento capitalista com democracia e visando ao crescimento e à integração nacional Essas perguntas apaixonadas exigem uma resposta teórica apoiada em pesquisas empíricas F Fernandes oferece tal resposta talvez a contragosto Por que tudo aquilo Por que o capitalismo não tem um único padrão de desenvolvimento de caráter universal e invariável Os padrões de desenvolvimento capitalista correspondem às realidades específicas em sua relação com as diversas fases do capitalismo internacional As situações históricas reais com os seus estamentos e classes é que definem o padrão de desenvolvimento capitalista Será preciso conhecer e reconhecer o padrão brasileiro de desenvolvimento capitalista O Brasil articulase às três fases do capitalismo internacional Antes de 1808 o Brasil ocupava uma posição marginal em relação ao capitalismo comercial assim como Caio Prado Jr ele também emprega esse termo Não se estende sobre essa fase anterior a 1808 e não esclarece o seu uso desse conceito muito problemático do ponto de vista da teoria marxista que perdurou durante todo o período colonial Não era capitalista ainda pois não tinha internamente os sujeitos autônomos e em luta movidos por valores e interesses tipicamente capitalistas entre 1808 e 1860 passou pela fase da transição neocolonial articulandose ao mercado capitalista moderno Nessa fase entra em crise o sistema escravista entre 1860 e 1950 passou pela fase da formação e consolidação do mercado interno criando um crescimento industrial e uma economia urbana comercial importantes articulandose à expansão do capitalismo competitivo entre 1950 e 1964 reorganizou o mercado e o sistema de produção através de operações comerciais financeiras e industriais e da associação entre multinacionais Estado e burguesia interna articulandose ao capitalismo monopolista Essas são as três fases da revolução burguesa brasileira de 1808 a 1964 das transformações econômicas técnicas sociais psicoculturais e políticas que implantaram o capitalismo no Brasil de forma especificamente brasileira Em nenhuma dessas fases o Brasil repetiu o modelo clássico Nas três fases ele seguiu um curso típico de nações periféricas e heteronômicas Aqui o desenvolvimento capitalista foi sempre dinamizado pelos estamentos e classes dominantes de forma egoísta e particularista tornandose compatível com a continuidade da dominação imperialista externa com a permanente exclusão da população Foi um desenvolvimento capitalista débil e oscilante insuficiente para a universalização do trabalho livre a integração nacional do mercado interno e das relações de produção capitalistas e a industrialização autônoma O desenvolvimento foi feito na dependência sempre reposta de forma renovada e revigorada Tal relação não foi somente imposta de fora para dentro ela foi construída pelas mãos do capital internacional em associação com as elites internas O tempo histórico especificamente brasileiro não foi uma imposição externa mas uma articulação do externo com o interno A relação entre o interno e o externo não é mecânica mas dialética é uma articulação de interesses e vontades diferentes e opostas em uma unidade A sociedade brasileira não é explicável somente pelo externo pela dependência embora o externo seja uma determinação essencial das condições internas Entretanto o externo não é exterior pois compõe a estrutura interna da sociedade Se se quiser romper com a determinação externa será preciso suprimir a sua realização interna que é a burguesia brasileira associada Silveira 1978 F Fernandes repõe a tese marxista da luta de classes plena para a construção do futuro socialista O proletariado deverá viver plenamente a sua contradição com a burguesia e lutar pela implantação do socialismo Este objetivo final talvez demore Mas sua luta poderá levar a dois futuros possíveis ao desenvolvimento econômico ainda capitalista que ofereceria uma posição de maior autonomia dentro da estrutura capitalista portanto ao capitalismo avançado que representaria uma revolução dentro da ordem ou ao socialismo que representaria uma revolução contra a ordem Qualquer destes dois futuros será melhor do que o passado colonial e escravista e do que o presente autocrático militarista repressivo burguês com os quais seria preciso romper não continuar Apesar de ter pesquisado e conhecido profundamente a duradoura realidade F Fernandes termina a sua análise ainda otimista e utópico Sonha ainda com uma sociedade brasileira integrada nacionalmente emancipada autônoma livre independente e moderna desenvolvida democrática avançada objetiva e subjetivamente E o sujeito criador desse Brasil novo não será a burguesia brasileira que por ser dependente é basicamente egoísta e autoritária mas o proletariado e o campesinato as maiorias excluídas mulheres negros crianças estudantes enfim os cidadãos brasileiros Se a burguesia brasileira teve de ceder ao passado de se amalgamar com ele este novo sujeito se abrirá ao futuro e resistirá às pressões do passadopresente A divisão entre o cidadão e o cientista em F Fernandes chega ao abismo O cientista social constata a continuidade em suas análises históricosociológicas o cidadão deseja produzir a mudança tanto mais quanto ele se vê informado pelo cientista sobre a dura realidade da continuidade do passadopresente brasileiro ANOS 196070 FERNANDO HENRIQUE CARDOSO Limites e possibilidades históricas de emancipação e autonomia nacional no interior da estrutura capitalista internacional dependência desenvolvimento F H Cardoso uma Personalidade Complexa Fernando Henrique Cardoso nasceu no Rio de Janeiro em 1931 filho e neto de generais numa época em que anos 1930 50 as Forças Armadas brasileiras não estavam ainda associadas à ditadura à repressão e à tortura mas ao contrário à luta pela libertação do povo brasileiro do seu terrível passado de opressão e exclusão de violência e escravidão Dentro do Exército havia uma forte corrente de comunistas e dentro do PCB um número significativo de militares O seu pai parecia pertencer a esse outro tempolado das Forças Armadas Como possuía a patente de general devia ser bem remunerado e podia oferecer à família um bom padrão de vida Filho e neto de generais F H Cardoso nasceu integrado às elites brasileiras Em casa aprendeu a ser disciplinado o que foi essencial ao seu sucesso nos estudos Teve uma formação escolar regular sem falhas e basicamente brasileira licenciouse em ciências sociais 1952 e defendeu a sua tese de doutorado 1961 na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo depois tornouse professor auxiliar assistente livredocente e emérito do Departamento de Sociologia da USP Seu grande mestre na USP foi F Fernandes Não fosse a paixão de F Fernandes pela ciência empírica capaz de espremer até o fim a teia injusta da nossa realidade social para buscar caminhos de mudança não teria havido o meu lado sociólogo ele afirma Referese também como sendo seus estimuladores e orientadores a Roger Bastide a Antônio Cândido aos seus colegas do Seminário de Marx e da Cepal No exterior como aluno teve apenas uma breve passagem pelo Laboratoire de Sociologie Industrielle da Universidade de Paris Nanterre entre 1962 e 1963 sob a orientação de Alain Touraine onde elaborou o seu livro Empresários industriais e desenvolvimento econômico no Brasil que se tornou uma obra indispensável para a discussão desse tema Como professor no entanto ou visitante ou conferencista ou homenageado as referências internacionais do seu currículo impressionam quase tanto quanto as de G Freyre Ensinou e fez conferências em grandes universidades dos EUA Berkeley Stanford da Inglaterra Cambridge da França École des Hautes Études en Sciences Sociales Nanterre Collége de France e foi homenageado com o título de Doutor Honoris Causa RutgersNova Jersey Notre DameIllinois Coimbra Na América Latina ensinou visitou e fez conferências na maioria das universidades Entre 1982 e 1986 presidiu a Associação Internacional de Sociologia além de ter integrado inúmeras associações e centros de pesquisa e consultoria em ciências sociais do Brasil EUA e outros países da América Latina e Europa Cebrap Flacso Pispal Cesit Fipad ISA Ceplan Cedes SSRC etc13 Até 1978 F H Cardoso foi um excepcional cientista social um intelectual brasileiro reconhecido e admirado nacional e internacionalmente Sua obra é vasta e interdisciplinar sociologia história economia e ciência política F Weffort embora mais um aluno do que um discípulo o define como um intelectual das personalidades difíceis ou complexas como um analista de uma época em que é muito difícil ter ou manter uma identidade social cultural ou política linear e transparente tal a velocidade das mudanças A personalidade de F H Cardoso insinua Weffort seria assim também indefinida imprecisa imprevisível complexa e difícil Ele tem a sensibilidade da mudança capta registra e analisa com agilidade o tempo histórico o que vem a ser e deixa de ser Seus conceitos são complexos burguesia de Estado anéis burocráticos internacionalização do mercado interno Procura realizar uma análise integrada da realidade social abordandoa em sua complexidade heterogeneidade multiplicidade e transitoriedade sem submetêla a esquematismos determinismos unilateralismos Weffort não esconde a sua admiração F H Cardoso é um virtuose das ideias um pensador crítico e autocrítico A sua teoria da dependência ele próprio a retomou e rediscutiu frequentemente Jamais fugiu ao debate e dentro dele jamais foi surdo ou deselegante com o interlocutor mais contundente Apesar de têla elaborado junto com Enzo Falleto já nos anos 1960 a teoria da dependência talvez ele próprio não imaginasse que se tornaria rapidamente e cada vez mais adequada à realidade da globalização capitalista atual F H Cardoso defende o engajamento mas com lucidez na análise Seu método é a dúvida a redescoberta dos significados originais das teorias e das lutas sociais Weffort 1995 Após 1978 ele se tornará um político excepcional Durante o regime militar não fora preso nem torturado como aconteceu normalmente à sua volta Felizmente aliás Em 1964 preferira o autoexílio no Chile Foi um período para ele paradoxalmente e felizmente ainda de muito sucesso e alegrias enquanto o Brasil e as esquerdas amargavam a derrota e a violência da ditadura Os seus amigos estavam no Chile a sua família estava junto dele lá estava a sua melhor oportunidade de trabalho pois o grande debate sobre a América Latina se dava no Ilpes da Cepal onde ele logo se engajou e produziu uma das obras que mais repercutiram na América Latina e no mundo A sua avaliação dos anos 195060 é a mais favorável Nesse período ele afirma a América Latina teria finalmente aprendido e conseguido se pensar cientificamente Nas obras de Prebisch Celso Furtado Echevarría a reflexão sociológica econômica histórica e política sobre a América Latina ganhou vigor e credibilidade Talvez tenha sido na opinião dele o período em que apareceu a primeira geração de cientistas sociais latinoamericanos no sentido forte Criouse uma escola latinoamericana que mesmo apoiada em teorias estrangeiras fazia delas um uso original e crítico Nessa época os cientistas sociais passaram a ter cuidados científicos a produzir um pensamento crítico e original venceram o economicismo incorporando aspectos políticos sociais e históricos nas suas análises articulando a América Latina ao mundo evitando as insuficiências da teoria marxista clássica do imperialismo A teoria social então passou a servir à mudança ao planejamento do futuro melhor Os anos 195060 foram anos otimistas conclui criticamente utópicos mergulhados em um intenso debate sobre um futuro melhor Cardoso 1995 Em 196768 foi para Paris onde ensinou na Universidade de Nanterre e viu os acontecimentos daquele ano Ao retornar ao Brasil ainda em 1968 a ditadura tinha encontrado o meio mais limpo de impedir o trabalho dos seus opositores intelectuais aposentandoos através do AI5 em 13121968 Nos anos 1970 F H Cardoso será um dos analistas mais contundentes e sofisticados do regime militar e do milagre brasileiro O Cebrap Centro Brasileiro de Análise e Planejamento do qual ele foi um dos fundadores em 1969 tornouse o centro crítico do Brasil sob a ditadura No entanto a sua análise do regime militar surpreendia as esquerdas pelo que era considerado uma concessão uma brandura com relação ao fascismo instalado no poder Para F H Cardoso a ditadura militar não era fascista ou totalitária mas um regime autoritário que favorecia o crescimento econômico e a modernização A longo termo estas são condições necessárias à democracia ao criar um operariado numeroso e uma classe média forte apesar da desigualdade na distribuição da riqueza e apesar da exclusão social F H Cardoso se tornou um cientista social engajado lutando pelo retorno à democracia mas sem abrir mão da lucidez na análise Nele a paixão se submete à razão Os seus versos de adolescente já expressavam a opção pela razão Os meus negros cabelos de espanador trazem bolas de neve nas pontas14 Ele declara crer na razão na moderação na tolerância e defende uma ética prática com convicções firmes mas que não precisam ser alardeadas a cada instante Cardoso 1995 A partir de 1978 deixou em segundo plano a sua identidade de cientista social e passou à ação Foi eleito então senador pelo MDB suplente 1978 e pelo PMDB 1983 e 1986 e foi líder deste partido no Senado Trabalhou ativamente na reforma constitucional de 1988 Foi fundador do PSDB Partido da SocialDemocracia Brasileira do qual se tornou líder no Senado de 1988 a 1992 e pelo qual finalmente foi eleito em 1994 com larga vantagem de votos e ainda no primeiro turno presidente da República Federativa do Brasil Como ministro da Fazenda do governo Itamar Franco em 1993 fora o criador e implementador do Plano Real ainda em vigor em 1998 e que ele pretende seja duradouro quiçá definitivo apesar das crises do presente e do futuro imprevisível pois ao oferecer estabilidade à moeda o plano faria o Brasil emergir como uma grande nação F Fernandes diria de novo Sobre o significado real desse plano econômico o futuro dirá Como cidadão e não como analista reconhecemos nele inúmeras virtudes sobretudo em seu primeiro ano onde se trabalhou e se consumiu muito sobretudo a numerosa população brasileira menos abastada Até pensamos com uma admiração crescente que F H Cardoso tinha outra vez revelado todo o seu grande talento intelectual e político agora juntos Todavia passamos a desconfiar da dita estabilidade da nova moeda Em uma moeda forte qualquer variação mínima tem repercussões importantes E o real varia muito Uma inflação mensal de 15 e anual de 25 em realdólar parecenos um escândalo Na verdade o real teria uma instabilidade proporcional às taxas de inflação de 20 mensais e 500 anuais do cruzeiro ou do cruzado E essa enorme taxa inflacionária não é repassada aos salários empobrecendo ainda mais a castigada população brasileira A classe média está com os seus salários congelados e reduzida à alimentação Os microempresários falidos pois os juros são impossíveis de ser pagos Os maiores bancos quebrados Além disso o desemprego galopa excluindo ainda mais Finalmente e corporativamente as universidades públicas foram quase abandonadas pelo seu ilustre exintegrante que paga aos seus excolegas um salário vexatório Se há estabilidade ela pode ser entendida em sentido negativo engessamento congelamento arrocho Mas repetimos quem se expressa assim é o cidadão Para uma análise mais consistente e mais competente esperemos o desdobramento da história do Plano Real e as opções políticas que o presidente ainda terá de fazer F H Cardoso em suas opções e ações políticas declara defender uma utopia viável que considere a justiça social o principal objetivo e valor a ser perseguido Tal justiça social para ele só será viável com o desenvolvimento da civilização tecnológica e capitalista a única capaz de acumular riquezas e conhecimentos Só o crescimento econômico acelerado pode vencer a exclusão social Tal utopia viável teria um alcance médio quanto ao tempo e depende de uma reorganização interna e global da economia Esta utopia revela um novo humanismo um reencontro com a ideia de humanidadesujeito coletivo que enfrenta hoje o problema da sobrevivência Esta ideia do homemuniversal retorna em uma cultura racional desencantada ela terá condições de resolver os problemas da justiça social e da igualdade entre os homens F H Cardoso acha difícil responder a esta pergunta a resposta dependerá de opções políticas concretas Cardoso 1995 Ele afirma ter optado por este futuro de liberdade igualdade e justiça Mas deixa dúvidas no espírito daqueles que mais o conheceram e admiraram Para F Fernandes seu mestre e amigo uma utopia ao se tornar possível deixa de existir Que tipo de utopia seria possível sob o capitalismo monopolista de hoje ele interrogava provocador As únicas utopias que F Fernandes vislumbrava são ainda as dos anos 1960 a revolução social para os assalariados e uma autocracia fascista para o capital O socialismo representaria ainda uma alternativa propondo a revolução social e a liberdade com igualdade F Fernandes afirmou que F H Cardoso seu exassistente de Sociologia 1 aluno e copesquisador companheiro de lutas contra a ditadura vizinho e amigo tornouse para ele uma decepção Associouse ao bloco político que foi a sustentação da ditadura Para F Fernandes ele estaria dominado pelo seu maior desvio psicológico a vaidade e ansioso para ocupar o poder ao velho estilo das elites reacionárias E perguntava o quinhão em perspectiva valeria o sacrifício feito A estranha aliança que fez assegurará a solução dos problemas e dilemas sociais econômicos e raciais seculares do Brasil Teria aceitado uma extravagante conciliação pelo alto a qual F Fernandes sempre denunciou e contra a qual sempre se opôs Fernandes 1994 e 1995 F H Cardoso parece não se abalar com a análise do seu mestre Mesmo porque a amizade pessoal cuja perda talvez o abalasse de fato F Fernandes ainda a garantia e foi fiel F H Cardoso o FHC como ficou conhecido pela imprensa e pelo povo se sente de bem com a vida Ela tem sido generosa comigo constata Sem ter procurado esteve nas posições mais influentes que o tornaram conhecido e reconhecido Como S B de Holanda terá sido também um intelectual feliz com muito sucesso até na adversidade brasileira e sempre procurando transferir o seu sucesso pessoal ao Brasil Terá ele sucesso nessa operação Apesar de definido até pelos próprios adversários em eleições como Jânio Quadros por exemplo como um príncipe maquiavélico por ter uma biografia intelectual realmente impressionante e por ser um interlocutor sempre elegante F H Cardoso admite que possui uma falha que parece irrelevante mas que talvez poderia leválo a falhar na construção do Brasilbemsucedido Como professor ele admite o que parece considerar uma limitação ele só teve alunos e não discípulos Como presidente do Brasil terá somente funcionários pessoas ligadas a ele burocrática e racionalmente e uma população desmotivada e sem sonhos associados à sua imagem Para um professor ter só alunos é um ótimo sinal foi um educador aberto ao diálogo capaz de ouvir e fazer falar e não um pregador um encantador de espíritos frágeis Mas para um presidente esta falha pode enfraquecêlo muito e ser fatal Outra falha de sua personalidade segundo se afirma é o seu pãodurismo15 Há anedotas lamentáveis que revelam este lado pobre da sua personalidade complexa Ou melhor o seu lado rico pois esta disposição dalma é a das elites brasileiras em relação à população brasileira que F Fernandes denunciou com veemência um egoísmo uma indiferença um desinteresse uma mesquinhez de enojar e indignar A divergência é tanta que caberia perguntar teria sido F H Cardoso discípulo de F Fernandes ou só um aluno Entretanto a sua personalidade complexa talvez oculte sob o pãodurismo uma grande generosidade um grande interesse e sensibilidade pelos problemas e dilemas do povo brasileiro É o que o povo brasileiro espera aliás perguntando até quando ele poderá suportar tanta exclusão da sua própria história F H Cardoso o seu Lugar entre os Marxistas Brasileiros A partir de 1958 com os estudos de Marx feitos no chamado grupo dO Capital F H Cardoso procurará compreender a dinâmica capitalista observandoa no contexto específico da realidade brasileira Para isso produzirá uma reflexão profunda sobre o método dialético materialista reflexão teórica rara entre os cientistas sociais marxistas brasileiros Cardoso 1975 Entre os marxistas brasileiros qual seria a sua posição Na periodização da história do pensamento marxista brasileiro de Mantega já mencionada ele entraria na terceira fase denominada materialismo dialético posterior a 1958 Mantega 1991 Mas ele não caberia nessa terceira fase tal como Moraes a define marcada pela radicalização da crítica das armas Moraes 1991 A radicalização de F H Cardoso será mais teórica do que ideológica embora seja uma teoria engajada e construída para servir à ação De qualquer maneira ambas as periodizações anteriores o colocam produzindo no período posterior a 1958 ele oporá a teoria materialista dialética para a compreensão da especificidade da realidade brasileira dentro do modo de produção capitalista à luta armada apaixonada e clandestina Sua radicalização será no interior da razão como conhecer melhor o Brasil e como agir de forma racional para formular e resolver os seus problemas Eis aí a sua grande questão Na periodização de BresserPereira F H Cardoso é o personagem central da interpretação da nova dependência que predominou dos anos 1960 aos 1970 e era mais serena em relação à derrota de 1964 fazendo uma análise menos ressentida da interpretação nacionalburguesa que levara àquela derrota BresserPereira 1979 Isso significa que o seu principal interlocutor não é o PCB mas os cientistas sociais marxistas com destaque para Caio Prado Jr e F Fernandes É como se esses dois autores sobretudo Caio Prado já tivessem encerrado a polêmica da derrota das esquerdas com o PCB F H Cardoso representa a esquerda em sua reinterpretação do Brasil após o abatimento e exaltação posteriores à derrota Para a sua reinterpretação do Brasil a ideia de fato novo é essencial Ele percebeu que a derrota de 1964 teve uma dupla origem erros de interpretação que Caio Prado já reconhecera e alguns fatos novos inantecipáveis que puseram em xeque até mesmo os acertos da interpretação nacionalburguesa As esquerdas teriam sido derrotadas pela sua teoria equivocada da revolução brasileira mas em sua avaliação não totalmente equivocada e pela ocorrência de fatos novos que levaram a burguesia para a aliança com o imperialismo e as elites tradicionais frustrando o que era esperado pela teoria Esses fatos novos ocorreram no final dos anos 195060 a revolução cubana o crescimento da atividade sindical a entrada das multinacionais na produção interna a consolidação da indústria nacional entre outros Tais fatos novos afirma BresserPereira liquidaram o pacto populista e forçaram o estabelecimento de um novo pacto o da burguesia industrial antes nacional com a agráriomercantil associados às multinacionais O Golpe de 1964 foi a culminação desse processo BresserPereira 1979 A interpretação da nova dependência reconhece que houve um pacto populista e nacionalista e admite que houve uma industrialização substituidora de importações produzida por uma burguesia autônoma e em tensão com as oligarquias Essa era a realidade brasileira nos anos 193050 que sustentou a interpretação nacionalburguesa e o seu projeto democráticoburguês Se a teoria se equivocou não se pode afirmar que ela não tinha base histórica que delirava e se iludia completamente Ela tinha elementos concretos com os quais pensava Só era otimista demais em relação à autonomia da burguesia brasileira e ao caráter nacionalista do seu projeto social Otimismo que lhe custou a derrota e a frustração Em relação à interpretação do Brasil pré1964 portanto a interpretação da nova dependência do final dos anos 1960 70 é mais lúcida e serena separando bem das surpresas da história os erros da teoria Em relação às interpretações da esquerda pós1964 quanto à interpretação da superexploração imperialista ela recusa a radicalização da luta armada e não vê que a América Latina esteja condenada à alternativa fascismo ou socialismo Quanto à interpretação funcionalcapitalista não crê que o futuro da América Latina seja o desenvolvimento do subdesenvolvimento nem prevê a estagnação prevista pelos cepalinos A interpretação da nova dependência é otimista em relação ao capitalismo dependente é uma interpretação que reabre os horizontes do desenvolvimento latinoamericano dentro e apesar da dependência BresserPereira 1979 Quanto ao Brasil ele é visto no contexto latinoamericano e não mais isoladamente o que já representa um avanço significativo na reflexão sobre a sua realidade histórica e social Para a interpretação da nova dependência o futuro da América Latina e do Brasil não será catastrófico nem fascismo nem eterno subdesenvolvimento nem estagnação nem guerra civil nada do que previam as esquerdas caso não fosse implantado imediatamente o socialismo As esquerdas faziam terrorismo teórico ameaças chantagens políticas ou o socialismo ou a catástrofe Como o socialismo era irrealizável nos anos 196070 restava a catástrofe de um pensamento voluntarioso rebelde armado de palavras de ordem uma retórica inflamada e repetitiva autoritária e terrorista o presente deveria se tornar imediatamente futuro e ser sacrificado enquanto presente O projeto socialista deixa de aparecer como a construção da democracia para se tornar uma imposição da história através de seus proféticos intérpretes Cardoso 1974 e 1973 Goldstein 1994 Foi nesse ambiente exaltado por golpes militares sucessivos na América Latina e pelas sucessivas derrotas das esquerdas por isso aquele espírito ressentido e perigoso que F H Cardoso e o chileno Enzo Falleto escreveram Dependência e desenvolvimento na América Latina 196970 que oferecerá um olhar renovador sobre o passadopresente e o futuro da América Latina Eles defendem uma tese que escandaliza a esquerda radicalizada pois veem a possibilidade da dependência e desenvolvimento na América Latina É uma tese tão escandalosa como por exemplo a de Casagrande senzala Talvez F H Cardoso esteja para a esquerda brasileira assim como G Freyre esteve para o pensamento conservador que o precedeu ambos esses pensamentos estavam céticos em relação ao futuro do Brasil ambos não viam saída nem para a dura realidade d a miscigenação subraça nem para a dura realidade da dependência subdesenvolvimento G Freyre tornou a miscigenação um motivo de exaltação e base de uma promessa de realização brasileira futura o que era o mal do Brasil e o condenava tornavase o seu bem e a razão da sua melhoria futura F H Cardoso fez da dependência que era o mal do Brasil a base do seu desenvolvimento capitalista reabrindo o horizonte do Brasil O que impedia o desenvolvimento tornavase o seu dinamizador São obras otimistas que ressignificam o passado tornandoo não só mais leve como a fundação sólida de um Brasil bemsucedido no futuro A partir dessa aproximação CardosoFreyre passaremos a nos referir à relação dependência desenvolvimento com o sinal freyriano Não temos certeza de que F H Cardoso se sentiria confortável ao lado de G Freyre Talvez o primeiro F H Cardoso resistisse o das pesquisas sobre a escravidão o F H Cardoso de Dependência desenvolvimento talvez se sentisse em boa companhia Ele substituiu a tese da estagnação pela tese do desenvolvimento dependenteassociado o desenvolvimento capitalista possível nos países atrasados da América Latina Considera possível a acumulação industrial apesar da manutenção dos laços de dependência em relação ao capital estrangeiro e da exclusão de uma numerosa população de diversos setores sociais Nele a dicotomia entre industrialização nação ou subdesenvolvimento dependência foi superada A industrialização já ocorria em diversos países dependentes ela não está vinculada necessariamente à emancipação e à autonomia nacional Os investimentos estrangeiros não são o obstáculo ao desenvolvimento pelo contrário são a sua alavanca são eles que dinamizam os países dependentes Para chegar a essa conclusão que custa a crer seja de esquerda os autores inovaram na metodologia Reivindicaram uma análise concreta de cada situação específica recusandose a tomar a América Latina como um todo único e indivisível determinado pelo centro dominante A relação centroperiferia não é percebida como uma relação entre países exportadores de matériasprimas e de produtos agrícolas e países industrializados mas uma relação entre países com graus distintos de industrialização O capitalismo é uma estrutura internacional na qual cada país ocupa um lugar e desempenha uma função determinados Não há lugar para uma análise dicotômica que tenha como consequência um projeto político alternativo ou desenvolvimento soberania ou dependência subdesenvolvimento Essa dicotomia e essa alternativa são superadas por uma análise concreta e integrada do capitalismo que leva à surpreendente síntese dialética do desenvolvimento soberania dependente F H Cardoso aplicará bem o materialismo dialético As análises marxistas que o precederam eram muito economicistas deixando de integrar aspectos políticos e sociais nas análises das forças sociais latinoamericanas O seu conceito de dependência permite a análise das estruturas de dominação de classes e grupos sociais das sociedades dependentes bem como dos seus meios políticos para a imposição dos seus interesses ao conjunto da sociedade O conceito de dependência não é economicista ele integra uma análise econômica social e política F H Cardoso através desse conceito consegue integrar de forma dialética o externo e o interno é essa integração que lhe permite perceber que a periferia na linguagem cepalina não era exterior ao centro A periferia era interior ao centro e o centro interior à periferia Eis o que quer revelar o conceito de dependência o centro é interior o desenvolvimento na periferia seria promovido por esse centro interiorizado Assim a industrialização da América Latina seria possível mesmo se baseada em um mercado interno restrito e na exclusão de certos setores sociais Apesar disso a acumulação capitalista e a transformação da sua estrutura produtiva para níveis de complexidade crescente são viáveis nos países dependentes Mantega 1991 Esta apreensão dialética da realidade latinoamericana ele a realizou com um bom conhecimento e uma boa aplicação do marxismo Cardoso 1975 e 1973 Entretanto F H Cardoso é também associado a Weber Ele esteve tão próximo de Weber como F Fernandes talvez até mais próximo Os analistas da recepção de Weber no Brasil o consideram ao lado de R Faoro S B de Holanda Juarez Brandão Lopez um dos mais familiarizados com as categorias weberianas Em sua obra Empresário industrial e desenvolvimento econômico 1964 onde analisa o papel do empresário industrial no processo de desenvolvimento brasileiro ele criou o tipoideal do personagem que produz o desenvolvimento brasileiro acentuando por um lado algumas características da sua personalidade abstraindo outras por outro Ele apresentou os diversos tipos de industrial brasileiro ao lado do tipo de empresário tradicional Recria a situação concreta em que este tipo age racionalmente Procurou perceber a articulação de meios e fins na ação dos empresários isto é ele procurou uma adequação de sentido Estudou a mentalidade empresarial a partir das condições estruturais que dão sentido à sua ação e opiniões Em Dependência ele se afastou mais de Weber e se aproximou mais de Marx Segundo os seus vários analistas seus trabalhos constituem um dos melhores produtos da moderna sociologia brasileira e latinoamericana Encontrou uma maneira própria de análise sem repetir modelos teóricos importados Maranhão 1974 Não abusa de dados numéricos de tabelas estatísticas mas procura compreender as relações entre os seus personagens e as condições sociais que limitam e dão sentido à sua ação Chacon 1986 Seu marxismo é portanto eclético ou melhor sintético assim como o de F Fernandes Revela ter lido Sartre Luckács Gramsci e Parsons É na tradição marxista que ele encontrou os seus interlocutores teóricos Quer reconstruir uma problemática do sujeito e compreender os movimentos sociais que a corrente marxista sempre priorizou Entretanto não percebe o sujeito armado na luta armada Para ele o sujeito social em luta fazendo a história usa meios democráticos os partidos políticos organizados o Congresso a imprensa o diálogo aberto com todas as posições e tendências Para ele a democracia parlamentar não é burguesa ou formal é real e há outros agentes transformadores da sociedade além do proletariado e do campesinato Na época da ditadura reconhecia a existência de um setor da burguesia interessado na democracia que podia ser um aliado importante contra o autoritarismo militar O objetivo dessa burguesia aliada dos interesses populares é econômico e não político ela é contra o estatismo e não contra a tortura e pelos direitos humanos Ela faz uma contestação liberal ao excesso de Estado Mas apesar da divergência quanto aos fins seria possível uma aliança quanto aos meios por razões distintas diversos grupos lutam pela democracia parlamentar Para Lehman F H Cardoso manteve um pé nas ciências sociais e o outro na política Ele seria um político travestido de sociólogo Sua influência foi mais política do que teórica Alterou o discurso da oposição radical no Brasil ao defender uma sociedade ainda capitalista mas controlada por um Estado democrático Sua ação política visa ao controle do Estado que não poderia ser destruído revolucionariamente mas aproximado politicamente Para Lehman entre o seu estilo e o dos outros cientistas sociais latino americanos há um abismo16 Enfim a sua posição entre os marxistas brasileiros é bem diferenciada Para ele o Brasil não tende nem ao fascismo nem ao subdesenvolvimento crônico nem à estagnação o capitalismo nacional é um equívoco de análise e o socialismo não é vislumbrável ou exequível Resta a opção do capitalismodependente com um máximo de democracia política e social a ser conquistada por uma hábilágil aliança de sujeitos sociais heterogêneos O Escravo o Industrial e o Desenvolvimento Econômico Com F Fernandes F H Cardoso elaborou a sua tese de doutorado e estudou o Capitalismo e escravidão no Brasil meridional o negro na sociedade escravista do Rio Grande do Sul 1962 Seus companheiros de equipe O Ianni E Viotti P Beiguelman e muitos outros também pesquisavam o tema da escravidão e do negro orientados por F Fernandes F H Cardoso estudou a escravidão no sul do Brasil onde havia menos escravos por não ser uma região ligada ao mercado mundial Para ele o número de escravos não é o mais importante mas a relação de produção em si O tema da escravidão é muito importante para o conhecimento do Brasil pois revela muitos aspectos ainda dominantes os valores brasileiros as aspirações brasileiras as desigualdades e injustiças brasileiras Discutindo o modo de produção brasileiro antes da abolição recusou a tese feudal e preferiu falar de economia colonial Avaliando as razões do fim da escravidão ele o atribuiu à insuficiência numérica pelo fim do tráfico e a alta mortalidade à incompatibilidade com o avanço capitalista embora tivesse sido compatível com ele em um primeiro momento O avanço do capitalismo e a modernização dependem do fim da escravidão O empresário capitalista pode conseguir mais trabalho do assalariado do que do escravo O trabalhador escravo é um obstáculo à divisão e à especialização do trabalho O trabalho qualificado é incompatível com a escravidão Além disso escassos os escravos estavam cada vez mais caros Graham 1979 Em sua análise da escravidão salientou a coisificação do escravo enfatizou o tratamento coercitivo e sem direitos que recebiam Para ele a coisificação social do escravo foi até a sua coisificação subjetiva o escravo se autorrepresentava como não homem a partir da representação branca dominante O que aparecia em um comportamento passivo em uma incapacidade para agir fazer história lutar a luta de classes Gorender 1990 Depois de pesquisar o escravo F H Cardoso foi investigar o empresário brasileiro e as possibilidades do desenvolvimento industrial brasileiro Se o escravo não era sujeito pois não se representava como tal F H Cardoso foi conhecer a autorrepresentação do sujeito modernizador do Brasil o empresário industrial Fez também uma história da burguesia brasileira mas mais empírica Descobriu que a classe burguesa no Brasil era recente heterogênea e desorganizada Os burgueses desconfiavam das associações de classe pois achavam que promoviam apenas os seus dirigentes os quais tampouco apreciavam Desprezavam a atividade política e contavam somente com a sua disciplina e trabalho individual Para F H Cardoso não se podia perceber um projeto consciente que unisse os interesses industriais Não há no Brasil uma consciência de si burguesa uma representação clara de si O empresário se vê como povo e não como governo quer ser dominante só economicamente e não politicamente Essa aparente inconsciência de classe o torna a boa consciência da nação fazendo crer ao operário que ele não trabalha para uma classe mas para a nação A burguesia industrial se acomodou em larga medida à dominação tradicional adaptouse ao clientelismo reivindica favores privilégios Cardoso 1964 Há dois tipos de industriais brasileiros segundo ele o associado ao capital estrangeiro para o qual a industrialização do país significa fazêlo solidário da prosperidade ocidental como sócio menor e aquele que conseguiu fazer a América aplicando na indústria capitais adquiridos na lavoura Estes segundos são nacionalistas protecionistas contra a presença do capital estrangeiro Para estes industrializar o país significa criar uma política estatal contra o subdesenvolvimento que se baseie no apoio aos capitalistas nacionais Esta divisão da burguesia brasileira não é nítida e exaustiva Os primeiros também reivindicam favores do Estado mas não pedem o fechamento do mercado interno Os segundos reivindicam o fechamento do mercado interno mas quando acumulam bastante capital convertemse no empresário do primeiro tipo querem também associação com o capital internacional F H Cardoso conclui que a tendência é a da aproximação dos burgueses brasileiros com o capital internacional à medida que a industrialização avança O crescimento industrial força as alianças de grupos industriais brasileiros com os internacionais e cada vez mais as diferenças ideológicas tendem a desaparecer em nome da condição comum de capitalistas Como classe defendem a mesma coisa propriedade democracia prosperidade Essa tendência não se explicita em um projeto consciente A burguesia brasileira é mais pragmática do que revolucionária Ela se adapta ao poder tradicional comprometese com o velho Brasil Sua práxis política tornase um pragmatismo sem grandezas Ela mais reage do que age Tende para a associação com a prosperidade ocidental que exclui as massas que em vários momentos a apoiaram em suas lutas contra as pressões oligárquicas e imperialistas Cardoso 1964 Esta pesquisa sobre o industrial brasileiro e a conclusão a que chegou terá uma grande consequência sobre o seu pensamento acerca do Brasil e da América Latina Na verdade o seu Dependência e desenvolvimento na América Latina somente desenvolverá aquela tendência observada na burguesia brasileira O que a burguesia brasileira deseja não é uma revolução democráticoburguesa ela não tem um projeto político emancipacionista e nacionalista Pelo contrário ela aspira é à participação na prosperidade ocidental E quanto às oligarquias ao velho Brasil ela não se opõe ela se adapta optando por um pragmatismo sem grandezas Quanto às classes trabalhadoras ela não quer o seu apoio se este custar a renúncia à sua associação à prosperidade ocidental F Fernandes também percebeu isso em sua análise da Revolução burguesa no Brasil 1975 Mas a análise dele não o impediu de protestar contra o pragmatismo da burguesia pois como cidadão olhava para essa história burguesa do ponto de vista das massas excluídas que jamais serão incluídas no desenvolvimento dependente F H Cardoso perderá esses escrúpulos populares e nacionalistas e assumirá o projeto burguês com o seu pragmatismo sem grandezas17 A ideia de um capitalismo nacional foi considerada inviável a ruptura com a estrutura capitalista internacional uma impossibilidade Além disso nem seria desejável A ação deverá explorar as possibilidades de desenvolvimento na dependência eis uma operação realista concreta um pragmatismo sem grandezas não voluntarista e não idealista O desenvolvimento capitalista depende de grande volume de capitais e de tecnologia avançada os que detêm tais riquezas e recursos deverão ser atraídos para o mercado interno deverão ser estimulados a investir na América Latina e não desestimulados ou até expulsos E esta é uma opção além de realista otimista na dependência a América Latina poderá crescer economicamente acumular capitais e se fortalecer politicamente O horizonte se abre por uma ação racional por uma articulação política entre os sujeitos internos a cada país e os sujeitos internacionais O Debate TeóricoPolítico sobre a Teoria da Dependência Antes de abordarmos a sua teoria do Brasil e da América Latina abordaremos o debate que ela gerou depois da sua publicação Esta inversão da exposição se justifica porque em seus artigos posteriores F H Cardoso esclareceu o que pretendeu demonstrar em seu livro Seus esclarecimentos posteriores poderão nos ajudar a compreender melhor a sua visão do Brasil Coloquemos então o debate sobre o livro antes do livro para melhor compreender as suas teses F H Cardoso participou vivamente do debate que seu livro criou esclarecendo posições corrigindo recepções Nós nos manteremos bem próximos dos seus textos e da sua linguagem para guardar a sua precisão e o seu tom Nos Estados Unidos ele afirma a teoria da dependência foi recebida como um novo paradigma como uma teoria um conjunto de proposições testáveis formal Mas ele esclarece a teoria da dependência não é nada disso não é um novo paradigma pois é uma continuidade crítica dos estudos da Cepal e de outros latinoamericanos Não foi um estalo individual ou da duplaautora mas uma ideia que circulava na América Latina sem ter sido ainda formulada plenamente Ela foi produzida por muitos Não foi uma resposta crítica à tese do desenvolvimento do subdesenvolvimento de Gunder Frank embora o marxismo norteamericano tenha sido um interlocutor importante na sua elaboração Mas a influência do marxismo latinoamericano e norteamericano não foi maior do que a influência do próprio Marx Foi na verdade o fracasso das tentativas de desenvolvimento capitalista nacional que levou à sua formulação18 Nos anos 1950 a maioria dos intelectuais e instituições de esquerda brasileiras e latinoamericanas era nacional desenvolvimentista Iseb PCB Cepal Todos defendiam o fortalecimento do mercado interno e da industrialização para o desenvolvimento autônomo nacional Entretanto afirma F H Cardoso tal projeto não se referia à realidade não há capitalismo nacional O capitalismo é por definição internacional Ele é inevitavelmente expansionista e monopolístico em sua fase imperialista A realidade latinoamericana dos anos 196070 era a seguinte os governos e as burguesias nacionais se associaram aos monopólios internacionais Foi isto o que a teoria da dependência percebeu a internacionalização do mercado interno a solidariedade de duas classes aparentemente opostas as burguesias nacional e internacional A teoria da dependência rearticula centro e periferia e crê na possibilidade da industrialização da periferia As economias periféricas são capazes de acumulação Com a internacionalização do mercado interno com o crescimento do consumo da produção interna cresce a massa de capital Não há superexploração imperialista na relação de dependência A exploração capitalista se baseia na exploração da maisvalia relativa e no aumento da produtividade Portanto não há desenvolvimento do subdesenvolvimento mas dependência desenvolvimento capitalista Os beneficiários as empresas estatais as multinacionais e as empresas locais são elas os agentes do desenvolvimento dependenteassociado19 Como conciliar dependência e industrialização Se há dependência tecnológica endividamento externo F H Cardoso desfaz a contradição dependência desenvolvimento são processos contraditórios e correlatos que se reproduzem se modificam e se ampliam A expansão capitalista na América Latina não produz a miséria Não é uma lei interna ao capitalismo dependente a produção da miséria Ocorre apenas que ele não absorve toda a mão de obra em oferta problema que resta a ser resolvido para o sistema capitalista como um todo O desemprego é um flagelo também no centro Enfim esta é a novidade da teoria da dependência o desenvolvimento pela industrialização sob o controle das multinacionais e não por uma luta nacional contra elas Apesar de continuar a haver dependência tecnológica e financeira há desenvolvimento No Brasil ao invés de um nacional populismo antiimperialista há um nacional estatismo dependenteassociado É do jogo entre estes atores que se nutre a história recente dos países periféricos Com este enfoque afirma F H Cardoso a teoria da dependência aproximase mais das realidades específicas concretas A busca do concreto supõe a criação de categorias A teoria da dependência é uma superação dialética das teses cepalinas É uma teoria que parte da dialética marxista e por isso enfatiza a dinâmica a historicidade a análise concreta Busca então formas históricas concretas de dependência O que interessa conhecer são as relações internas que expressam o externo como as classes e Estados se inserem na ordem internacional A teoria da dependência distingue situações de dependência e especifica os contendores reais na luta pela dominação econômica a fim de detectar processos sociais novos É por aí que se mede a adequação analítica e o alcance interpretativo de um esquema explicativo O esforço teórico é o de apreender o específico e o novo concretos A denúncia ideológica é uma distorção analítica que pode ter consequências políticas graves Não seria melhor renunciar ao romantismo revolucionário e fazer a teoria social E descobrir no próprio processo social a sua possibilidade de transformação Não seria melhor formular os problemas específicos de cada realidade históricosocial e encontrar as soluções particulares mais adequadas O homem faz a história mas em condições dadas A história revela alternativas futuro no interior de estruturas sociais mais ou menos estáveis Para F H Cardoso dentro de certos limites estruturais o homem inventa o seu mundo Nem todas as opções são viáveis As opções são feitas no interior das forças que constituem o modo de produção20 Há portanto uma estrutura que condiciona e não determina a históriainvenção do mundo O objeto da história não são atores reificados mas relações sociais A história é um conhecimento fundamental desde que estrutural Então ela se torna uma ciência consciência objetiva de um processo Fazer teoria social é perceber as opções históricas que a estrutura social torna viáveis A teoria social é uma consciência objetiva do processo histórico que de fato ocorre e não considerações sobre como ele deveria ocorrer Mas a análise dialética concreta não é empirista O conhecimento do que de fato ocorre que F H Cardoso propõe não é a submissão do cientista social aos dados aos fatos controlando os seus impulsos afetivos e a construção subjetiva da realidade Os dados não são anteriores aos conceitos Eles são apreendidos pelos conceitos que constituem uma rede teórica No final da análise há um esforço de síntese a diversidade é articulada em uma totalidade pensada Esta síntese não é uma abstração interior ao pensamento sem referente exterior Ela se refere à realidade há um movimento que vai da realidade ao pensamento e deste à realidade Conhecimento e história não são transparentes um ao outro não se recobrem mas se articulam Uma análise dialética não quer sufocar o processo histórico ela o vê como um processo aberto cujo desdobramento se dá no tempo através da luta de classes Por esta razão o pensamento não pode se estancar em teorias simplificadas e abstratas Ele deve produzir análises concretas históricoestruturais21 Será com esta concepção da história e armado do método que lhe é mais adequado que F H Cardoso abordará o Brasil e a América Latina Seu pensamento quer se referir à realidade latinoamericana e não ao que ela deveria ser E a realidade latinoamericana é a da dependência capitalista Dura ou não esta é a realidade a ser analisada e transformada A análise dialética concreta ao abordar a dependência latinoamericana não opõe mecanicamente interno e externo e não submete o interno ao externo Este não é nem unilateralmente determinante nem exterior o externo é interior o interno é exterior e se constituem reciprocamente O capitalismo é exterior e interior E em cada situação concreta de dependência esta articulação internoexterno é específica histórica Em cada fase do capitalismo e em cada país do mundo o interno se articula de forma original com o externo O que interessa representar na análise da dependência estrutural é esta articulação concreta e específica O que interessa é o movimento a luta de classes as redefinições de interesses as alianças políticas que mantêm a estrutura e a transformam ao mesmo tempo As estruturas não são fixas e atemporais são contraditórias dinâmicas históricas22 O que interessa a F H Cardoso é o que reivindicavam Caio Prado Jr e F Fernandes a busca do concreto isto é de uma temporalidade específica de um mundo histórico determinado É a análise rigorosa históricoconcreta das articulações entre dependência e imperialismo que possibilitará a elaboração de uma estratégia política que se abra para o futuro Esta é a sua proposta essencial uma análise histórica consistente que não leve ao fechamento do futuro da América Latina estagnação e ações desesperadas Uma análise teórica consistente deverá propor caminhos novos que levem ao desenvolvimento caminhos realistasotimistas dentro das condições estruturais capitalistas que são objetivas Dependência e desenvolvimento na América Latina escandaliza as esquerdas pelo seu otimismo em relação às possibilidades de desenvolvimento econômicosocial dos países latinoamericanos dentro do capitalismodependente As esquerdas eram mais céticas quanto ao futuro destes países e seus vários segmentos se envolviam em debates apaixonados desesperados e sempre divergentes As análises sociológicas falavam de desenvolvimento do subdesenvolvimento de subimperialismo de lumpemburguesia e propunham sonhos irrealizáveis como ou capitalismo nacional ou socialismo brandindo a ameaça do fascismo No interior desse debate F H Cardoso falará de dependência desenvolvimento A sua intervenção nesse debate lembra repetimos a de G Freyre em outro quando os interlocutores chegam às conclusões mais desalentadoras e céticas os dois dão uma guinada no olhar e veem na realidade que impossibilitava o sucesso a chave do sucesso F H Cardoso defenderá a aliança entre a burguesia brasileira e a burguesia internacional ele verá como um caminho positivo para o Brasil a aproximação e não a luta contra os capitais estrangeiros Aqui talvez se possa perceber o seu mirante sobre o Brasil a burguesia paulista F H Cardoso é um pensador burguês e paulista Ele se tornou um formulador do projeto burguês para o Brasil quando percebeu que a burguesia tinha dificuldades em dar forma à sua própria consciência Decidiu formulála para ela oferecendo lhe a sua própria representação E ofereceulhe uma representação de si mesma simpática não autoritária vinculada aos interesses nacionais no interior das pressões internacionais F H Cardoso percebeu que nos anos 196070 estando o capitalismo estruturado como estava só havia um sujeito que poderia levar o Brasil ao desenvolvimento industrial à acumulação de capitais a burguesia interna associada ao capital estrangeiro O capital estrangeiro veio dinamizar a produção diversificandoa e estimular o mercado interno O capital estrangeiro traz tecnologia financiamentos empregos e abastece o mercado interno O mercado interno só poderia ser dinamizado pela sua internacionalização que tornaria os industriais brasileiros mais competitivos aprofundaria neles uma mentalidade burguesa consequente eficaz racional competitiva O capitalismo não poderá se instalar na América Latina se se lutar contra ele se os capitais estrangeiros forem hostilizados e ameaçados quando aplicados internamente Se é o capitalismo que dinamiza o desenvolvimento industrial este só será possível na América Latina pela associação não sem tensões é claro entre os sujeitos econômicos internos Estados nacionais e burguesias locais e os externos Na nossa perspectiva definilo como burguês ou intelectual orgânico da burguesia não é uma definição pejorativa e negativa Nossa intenção é situálo olhando para o Brasil com os seus olhos para melhor compreender e avaliar o seu pensamento Ele oferece à burguesia uma representação de si mesma que não é autoritária mas democrática pluralista de uma classe social que acumula capital extraindo maisvalia relativa Talvez ele seja otimista demais em relação a essa burguesia que para F Fernandes por exemplo tem um comportamento avesso a este acima o que o levou a protestar veementemente e a não sucumbir aos argumentos da análise históricoestrutural concreta que ele fez tão bem quanto F H Cardoso Entretanto F H Cardoso não quer que as coisas sejam assim ele não deseja que o desenvolvimento se dê na dependência Ele constata esta realidade e propõe meios para a sua representação e controle político A teoria sociológica procura constatar tendências estruturais e se são produtivas favoráveis dinamizálas por uma intervenção política calculada A tendência estrutural constatável no Brasil nos anos 1960 não era a afirmação do capitalismo nacional ao contrário As esquerdas mais desejavam isso do que o constatavam na realidade A questão é definir bem essa tendência e tornála favorável ao desenvolvimento interno o que requer uma intervenção política eficaz racional bem informada e sempre contrastada com a tendência historicamente observável Esta intervenção política eficaz exige uma análise integrada da realidade brasileira Ele proporá que não se aborde o Brasil isoladamente da América Latina O Brasil será visto como um caso de uma conjuntura mais global a latinoamericana dentro da estrutura capitalista internacional A integração do Brasil à América Latina não apaga a diferença em seu interior Pelo contrário falar da América Latina é especificar em seu conjunto as especificidades históricoestruturais Em cada realidade nacional latinoamericana grupos classes e Estados em tensão em luta e alianças pelo poder e com a sua história específica se articulam de maneira diferenciada com o capitalismo internacional É uma análise ao mesmo tempo e nisto F Weffort verá uma contradição nacional e classista Nacional porque cada Estado latinoamericano é dominado por grupos distintos com projetos distintos e de classes porque em cada realidade nacional a luta pelo poder é constante e o seu controle varia de acordo com as vitórias e as derrotas de uns grupos ou outros23 F H Cardoso foi também censurado por enfatizar muito as condições capitalistas internacionais o externo determinando o interno24 Mas não nos parece ter sido isto o que ele pretendeu fazer A análise dialética que realiza embora situe a América Latina no sistema capitalista internacional não enfatiza variáveis exógenas mas as características internas de cada sociedade latinoamericana E examina as suas possibilidades particulares de desenvolvimento O desenvolvimento capitalista é visto como produzido pelas classes internas em conflito A dominação interna e a dominação externa variam de acordo com as vitórias de cada grupo A mudança é histórica é produzida na luta de classes pelo poder interno Portanto o externo não explica mecanicamente o interno O interno se conecta ao externo e este se expressa nas relações de classes internas F H Cardoso se refere a uma causalidade significante em que as realidades se determinam de um modo historicamente dado25 A Obra Dependência e Desenvolvimento na América Latina Procuraremos realizar uma síntese da obra apresentando as suas principais teses diagnósticos e propostas para a América Latina e principalmente para o Brasil sempre apoiados em sua própria linguagem e tom F H Cardoso e E Falleto pretendem realizar uma nova abordagem da América Latina jamais tentada realmente marxista e dialética Eles denominam esta abordagem inovadora análise integrada de situações históricoestruturais concretas Sem esquecermos a coautoria de E Falleto doravante falaremos apenas de F H Cardoso a quem geralmente se atribui talvez injustamente em relação a Falleto a criação da teoria da dependência Esta análise integrada da América Latina além de não separar cada realidade particular ao mesmo tempo que a especifica não privilegia nenhuma esfera da sociedade como determinante das outras Nem a esfera social nem a esfera econômica nem a política se impõe uma às outras em última instância É uma análise que explica os processos econômicos como sociais os sociais como políticos e os políticos como mentais econômicos e sociais Esta análise evita a perspectiva tipológica simplificadora que opõe as sociedades tradicionais às sociedades modernas Na verdade ele afirma não há sociedades tradicionais puras ou sociedades modernas puras E a mudança do tradicional para o moderno não significa que o tradicional esteja atrasado e que seguirá as mesmas etapas do moderno avançado Evitando essa análise tipológica F H Cardoso quer recuperar a originalidade da América Latina a especificidade das relações entre as classes no plano nacional e as suas relações particulares com o capitalismo internacional O moderno não é o tradicional amanhã Interessa realçar as características históricoestruturais que promovem o desenvolvimento de forma original Entre os países da periferia é necessário distinguir as suas posições particulares e as suas relações específicas com o centro Há os países sem desenvolvimento que não mantêm relação de mercado com o centro os subdesenvolvidos são coloniais ou nacionais Cada um destes possui posições e funções na estrutura global do sistema capitalista Entre os desenvolvidos e os subdesenvolvidos não há só diferença de etapas produtivas mas de função e posição na estrutura econômica internacional O conceito de subdesenvolvimento realidade histórica onde predomina o setor agrário forte concentração da renda pouca diferenciação do setor produtivo predomínio do mercado externo mercado interno inelástico é insuficiente se não for considerado também como uma situação histórica É preciso analisar a maneira pela qual as economias subdesenvolvidas se vinculam ao mercado mundial bem como a constituição dos grupos internos nessa vinculação O conceito de dependência seria mais adequado do que o de subdesenvolvimento pois vincula os sistemas econômicos e políticos no plano interno e externo ressaltando o modo de integração das economias nacionais ao mercado internacional o qual supõe formas distintas de interrelação dos grupos internos com os externos Não se deve portanto procurar o passado do centro na periferia mas a relação centroperiferia Na perspectiva da dependência da relação centroperiferia articulada o visado são as condições e possibilidades de desenvolvimento e consolidação das economias nacionais latinoamericanas pelo modo como se articulam os grupos internos e externos e pela forma do poder interno que assegura essa relação O sistema de poder não é transformado e assegurado automaticamente pelas suas bases materiais As relações de poder e produção foram distintas nos diversos países latino americanos motivo pelo qual se impõe com mais força a necessidade da análise de situações históricoconcretas das relações entre as nações latinoamericanas e o mercado mundial Após o rompimento do Pacto Colonial as novas nações latino americanas se formaram dependendo da força e capacidade política dos grupos locais e da sua história colonial particular As excolônias agrícolas foram mais bemsucedidas na constituição nacional Esses países terão uma duplicidade interna os limites nacionais não coincidem com as áreas integradas ao capitalismo Há setores marginais que abastecem os centros exportadores articulandose assim indiretamente ao externo O novo poder nacional teve de se vincular duplamente então reorientou a vinculação externa e articulou as oligarquias locais voltadas para dentro As independências não foram homogêneas isentas de lutas internas As lutas internas foram definindo as alianças os mercados nacionais e os limites territoriais Estabeleceuse uma primeira forma de dependência com a produção controlada nacionalmente As economias nacionais dependiam de um produto primário de exportação de abundante oferta de mão de obra e disponibilidade de terras Os grupos modernos ligados ao mercado mundial se associaram internamente aos grupos tradicionais desligados do mercado mundial Constituíram uma aliança não sem tensões que controlou o Estado durante todo o século XIX Essa primeira forma de articulação entre as nações latinoamericanas recémindependentes e o capitalismo que variou de país para país mudará na passagem do século XIX para o XX e se acentuará nos 30 anos seguintes Já ao longo do século XIX ao lado das oligarquias afirmaramse setores financeiros e mercantis que abriram a possibilidade do desenvolvimento de uma economia urbanoindustrial Na passagem do século XIX para o XX os países latinoamericanos atravessam um período de transição cada um a sua maneira No interior da sociedade econômica exportadora apareceram novos atores sociais os setores médios que puseram em xeque aquele modelo de crescimento para fora o qual entraria em crise mais aguda com as crises externas Mas insiste F H Cardoso essa crise só foi agudizada pelas crises externas não foi criada por elas A dominação oligárquica começou a se deteriorar antes da crise econômica mundial com a formação interna de um setor burguês que produzia para dentro desvinculado portanto do mercado mundial embora ele tivesse de se apoiar em uma complexa aliança com os latifúndios tradicionalistas Foi o próprio crescimento da economia exportadora que propiciou a diferenciação interna o surgimento dos grupos médios a produção voltada para dentro e o fortalecimento do mercado interno Apareceram os primeiros núcleos industriais as classes típicas do capitalismo a burguesia e o proletariado tudo isso em consequência da expansão do setor exportador Não há oposição entre os setores exportador e interno são complementares Eis como F H Cardoso vê a América Latina como um todo a primeira dependência nacional após a ruptura do Pacto Colonial era baseada na exportação de produtos primários para o mercado mundial A produção para o mercado interno era vinculada à área exportadora que consumia esses produtos nacionais À medida que a exportação crescia estimulava a produção voltada para o mercado interno que no início dos anos 1930 se fortaleceu impondo uma reestruturação das forças internas e uma rearticulação com o capitalismo internacional Essa tendência geral foi conduzida de forma particular em cada país latinoamericano E F H Cardoso analisará os vários países latinoamericanos como casos históricoconcretos dessa tendência geral Interessanos a sua análise do caso históricoconcreto Brasil O Brasil na América Latina No Brasil a modernização da economia exportadora se manifestou com a abolição e com o advento da República 188889 Até 186070 mandavam as alianças regionais do açúcar e do café O poder oligárquico garantia o Império A oligarquia no poder se dividira em dois partidos um conservador e outro liberal F H Cardoso não desvaloriza essa divisão interna às elites oligárquicas quer dizer não minimiza a sua diferenciação interna Para ele seria um erro subestimar a capacidade transformadora do partido liberal que foi de fato renovador A modernização se iniciou após 1870 depois da Guerra do Paraguai e com a vinda do trabalhador livre imigrante A pressão dos grupos oligárquicos renovadores e dos setores médios levou à transformação da ordem agrária escravista Essas pressões intensificadas pela I Guerra Mundial e pela crise de 1929 se acentuaram nos primeiros 30 anos do século XX As expressões visíveis dessa aceleração das pressões renovadoras foram as agitações dos anos 1920 e a Revolução de 1930 A transformação renovadora se acelerou Em 1930 algumas oligarquias regionais associadas aos setores médios deslocaram as oligarquias nacionais de Minas e São Paulo Vargas representante das oligarquias excluídas durante a Primeira República irá fortalecer os setores urbanos a burguesia o proletariado e os segmentos médios dependentes da indústria nacional Ele estimulará o mercado interno renovando o Estado investindo em indústrias básicas e protegendo o proletariado O problema da industrialização no Brasil é o de saber quais grupos poderão tomar as decisões de investimento na produção voltada para o mercado interno A burguesia é ascendente mas politicamente frágil Ela é o sujeito que produzirá para o mercado interno Pós1930 ela se aproximará das massas a fim de limitar o poder das oligarquias rurais Há uma intensa mobilização política das massas Aos poucos essa mobilização levará ao grande problema da compatibilização entre a incorporação socioeconômica das massas e o reinvestimento As propostas nacionalistas e desenvolvimentistas unem grupos opostos promovendo alianças que levarão a impasses resolvidos pela violência A indústria nessa época foi sustentada por uma política nacionalista e populista Vargas e seus sucessores populistas instalaram certas indústrias de base aço energia elétrica transporte e petróleo Foram importantes equipamentos para a constituição de um parque industrial moderno A industrialização pós1930 foi feita por forças internas sobretudo mesmo se o capital externo já entrava e tendia a ocupar cada vez mais espaço As forças internas entrarão em choque com a presença do capital externo no mercado interno Essa presença bloqueava o desenvolvimento acelerado da industrialização nacional e comprometia a soberania argumentavam os nacionalistas Essa era a realidade que permitia falar em revolução democráticoburguesa e em planejamento do desenvolvimento em bases nacionais F H Cardoso é mais brando em sua crítica ao PCB a realidade brasileira dos anos 192050 não proibia o sonho da emancipação e autonomia nacional Esse sonho naquela época não era um delírio total um discurso sem base histórica As ideias de nação e de desenvolvimento autossustentado reuniam internamente grupos antagônicos contra os adversários comuns o passado oligárquico e o presente imperialista Havia portanto um clima de otimismo e pensouse alcançar um desenvolvimento autossustentado reconhece F H Cardoso menos cáustico do que Caio Prado Jr em sua avaliação do projeto nacionalburguês A produção e o mercado interno reorganizados o Brasil tinha acumulado grande quantidade de divisas e se tinha industrializado de fato Nos anos 1950 o Brasil contava com um mercado interno mais forte integrado desde o século XIX uma forte base industrial uma abundante fonte de divisas uma forte taxa de crescimento do capital interno Era necessário ainda absorver uma tecnologia capaz de promover a diversificação da produção e aumentar a produtividade Viviase um momento estrutural e conjuntural favorável A teoria e a prática vislumbravam o desenvolvimento pela industrialização um desenvolvimento autossustentado estimulando o mercado interno pela criação de uma indústria própria de bens de capital O mercado interno em expansão garantia por si só o desenvolvimento que não dependeria mais do estímulo externo Falouse então em redistribuição de renda para fortalecer o mercado interno e o consumo de produtos nacionais em reforma agrária para garantir a maisvalia relativa discutiuse a revolução democráticoburguesa ou o desenvolvimento capitalista em bases nacionais Havia enfim uma esperança na possibilidade de desenvolvimento autossuficiente e autônomo Esperança não sem fundamento Entretanto nos anos 1960 fatos novos vieram destruir esse ambiente otimista As esquerdas se tornaram ressentidas amargas sofrendo a derrota e a perda do futuro de desenvolvimento com autonomia F H Cardoso tentará recuperar o otimismo das esquerdas O futuro não foi perdido ainda É preciso saber onde houve erro na análise da realidade que não foi lúcida e adequada ou nos sujeitos da modernização brasileira que não souberam fazer as opções corretas que a estrutura possibilitava F H Cardoso conclui que houve erro nos dois níveis no teórico e no político Faltou uma análise integrada que desse conta do desenvolvimento específico dos países latinoamericanos Tal análise apoiaria os sujeitos da modernização com uma melhor informação sobre a realidade É esta análise integrada que ele pretende oferecer agora às sociedades latino americanas Tal análise revelaria a existência de limites estruturais ao desenvolvimento industrial controlado nacionalmente sem também impor a conclusão de que ele deveria ser tal como se deu isto é com a participação e o controle externos O desenvolvimento não tem necessariamente de ser controlado ou de dentro ou de fora a análise ofereceria apenas o conhecimento das forças internas da sua luta e das opções que fazia É esta luta interna que define a opção feita Em Cuba por exemplo tal luta levou a uma opção pelo desenvolvimento no socialismo no Brasil a luta interna não levou nem a esta opção cubana e nem à opção pelo capitalismo nacional A análise integrada revelaria as lutas internas e as opções feitas por cada aliança dos grupos vitoriosos nacionais No caso do Brasil as lutas internas levaram à opção pelo desenvolvimento capitalistaassociado Aqui os grupos vitoriosos acreditavam na viabilidade do desenvolvimento capitalistadependente As lutas internas pelo poder instauraram um conjunto histórico de possibilidades estruturais próprias alternativas foram excluídas e opções foram feitas dentro de possibilidades estruturais pelos grupos vencedores Por que teriam feito aquela opção os grupos vencedores no Brasil Porque o desenvolvimento industrial em bases nacionais teria que compatibilizar acumulação e reinvestimento com integração econômicosocial das massas O que não é possível em uma economia dependente ou se faz a acumulação e se exclui ou se inclui e não se faz a acumulação Os grupos nacionais optaram pela acumulação pelo desenvolvimento tipicamente capitalista que é excludente Nos anos 193050 tinha sido possível um crescimento para dentro porque a conjuntura internacional era de crise favorável ao crescimento em bases nacionais Naquele momento foi possível minimizar a exclusão social e incorporar as massas na aliança desenvolvimentista nacional populista Tal incorporação no entanto diminuía a capacidade de acumulação As oligarquias rurais e as burguesias industriais não suportavam a pressão por melhores salários no campo e na cidade O Estado premido pelas massas tornouse perigoso A queda dos preços dos produtos de exportação preços que são controlados de fora veio limitar ainda mais a acumulação necessária à industrialização F H Cardoso põese no lugar do setor industrial no início dos anos 1960 e examina todas as opções para continuar crescendo em bases nacionais Nenhuma delas era satisfatória Todas gerariam crises internas perigosas Só lhe restou uma opção para continuar acumulando e promovendo a industrialização a internacionalização do mercado interno a sua associação com a burguesia internacional A fase da industrialização por substituição de importações passara Desfezse a antiga aliança populistadesenvolvimentista Criouse uma nova dependência que reorganizava os grupos internos articulandoos ao externo de forma nova Nessa nova dependência a periferia não é mais agroexportadora Aparece uma novidade histórica a periferia industrializada A relação com o exterior será de outra ordem as economias centrais investem diretamente nos mercados periféricos A opção interna foi então pela industrialização e desenvolvimento no interior da dependência O desenvolvimento se faz com crescentes investimentos estrangeiros no setor industrial Os capitais externos se solidarizam com a expansão da economia de mercado favorecendo o seu desenvolvimento Podese até supor que há autonomia e desenvolvimento mas essa nova dependência continua supondo heteronomia e desenvolvimento limitado A economia central e a periférica se encontram no próprio mercado interno O desenvolvimento industrial será alcançado com restrição da autonomia do sistema econômico nacional e da soberania política A unificação dos sistemas produtivos leva à padronização dos mercados e ao seu ordenamento supranacional O mercado mundial impõe suas leis aos grupos locais restringindolhes a autonomia Entretanto também associado ao capital externo o Estado se fortalece tornase empresário o que aumenta a sua autonomia A vida política se torna mais complexa Nessa nova forma de desenvolvimento dependenteassociado articulamse o setor público empresarial as multinacionais e o setor moderno nacional Dividem a esfera da produção entre si em áreas de atuação Os setoreschave são dominados pelas multinacionais bens de consumo duráveis e produtos primários de exportação O setor nacional se associa às multinacionais em condição subordinada E os três são consumidores dos produtos e serviços uns dos outros São produtoresconsumidores As reivindicações do povo pela redistribuição da renda são reprimidas pois o seu consumo é dispensável O desenvolvimento se realiza pela intensificação da exclusão social das massas e de grupos que tinham poder na fase anterior Em vez de um nacionalpopulismo antiimperialista há um nacionalestatismo dependente associado O Estado empresarial e não mais populista já não se interessa pela redistribuição da renda A centralização autoritária facilitará a implantação do modo de produção capitalista nas economias dependentes Essa nova dependência se impôs de forma consistente a partir de 1964 Desde essa época dominarão os burgueses internacionalizados com o apoio do Poder Executivo e dos tecnocratas A burguesia atuará mais sobre o Estado do que através de partidos políticos Ela organiza anéis burocráticos que a instalam diretamente no Executivo O Estado pressionado também por setores médios intelectuais de esquerda partidos e parlamentares empresários nacionais que são contra a indústria em bases não nacionais às vezes realizará desvios nacionalistas que a burguesiaassociada instalada nos anéis burocráticos tratará de minimizar ou corrigir O desenvolvimento capitalista dependente exclui os assalariados em geral e setores industriais não associados Aumenta a marginalização Mas a resistência está controlada As classes dominantes estão solidárias na dominação A passagem para o capitalismo industrial em países dependentes assentase em regimes autoritários cuja duração dependerá do êxito econômico dos grupos no poder Mas o curso da história apesar de ser um rio com margens estreitas depende da ousadia dos que agem em função de fins historicamente viáveis Quanto ao futuro F H Cardoso afirma não poder controlálo antecipadamente Ele dependerá da ação coletiva que realizará o que for estruturalmente viável A história não se deixa fechar em teorias e esquemas simples seu desdobramento é inesperado e exige pesquisa histórica particular sóbria e paciente Em todo caso F H Cardoso define a sua visão do futuro prefere não ser idílico socialista nem catastrofista estagnação Prefere o otimismo a superação dos obstáculos ao desenvolvimento depende mais do jogo de poder que utilizará as condições econômicas do que das próprias condições econômicas O futuro dependerá da ação de sujeitos históricos competentes e audaciosos que saberão fazer as opções mais favoráveis ao desenvolvimento que a estrutura capitalista possibilitar A história é uma invenção dos homens embora sob estreitos limites estruturais26 F H Cardoso versus F Fernandes e F Weffort Essa é a análise que F H Cardoso e E Falleto fazem da América Latina A partir de certo momento quando F H Cardoso passa ao esclarecimento da teoria ele tende a fazer a apologia da opção feita como a única que poderia ter sido feita Dá a impressão de desejar que as coisas se tenham dado como se deram e não apenas de analisar e constatar uma opção realizada Parece passar a apoiar a burguesia brasileira e o Estado na sua associação com o capitalismo internacional Desapareceu da sua análise o tom de protesto presente em uma análise tão rigorosa quanto a dele como a de F Fernandes A ausência dessa indignação com os métodos da burguesia e com a exclusão que o desenvolvimento capitalista associado exige o confirma no ponto de vista burguês Tal indignação só pode ser percebida em uma análise do Brasil a partir do ponto de vista dos grupos que sofrem tal opção feita pela burguesia Sua análise se apoia na ação de uma classe social ação que ele declara apenas querer conhecer constatando mas que acaba conhecendo apreciando e orientando Teria o sujeito do conhecimento sido vítima do seu objeto De tanto pôrse no lugar de para compreender melhor o outro correse o risco de aderir ao seu lugar de tomar e ficar no lugar Não haveria nisso nada de problemático se tal orientação não significasse uma minimização do autoritarismo que essa opção representou e uma desconsideração da exclusão social que ela propõe Entretanto F H Cardoso não é nem autoritário nem favorável à exclusão social por isso ele pode ser também considerado um intelectual de esquerda Mas na medida em que se especializou na burguesia e se tornou um seu assessor e informante ele por um lado tornouse aliado e cúmplice da sua ação autoritária e excludente e por outro tornouse um civilizador da burguesia seu professor de democracia de tolerância e de simpatia pelos excluídos Os analistas da teoria da dependência procuram restringir a sua validade mesmo reconhecendo a sua grande fecundidade Para Weffort a teoria da dependência não seria uma teoria na verdade mas uma problemática que teve um papel renovador na discussão da América Latina ao abandonar a tese do padrão universal do desenvolvimento capitalista para enfatizar a peculiaridade dos caminhos latinoamericanos para o desenvolvimento Sua presença é renovadora e crítica pois chama a atenção para as singularidades latinoamericanas Entretanto ela possui elementos ideológicos que a diminuem como teoria científica O conceito de dependência afirma Weffort é impreciso o que dificulta o seu uso científico Este conceito se refere à luta de classes ou à nação Ele é ambíguo referese à dependência externa centronação e a uma dependência estrutural classes internas e externas O conceito oscila entre uma abordagem nacional e uma abordagem de classe A ideia de nação no entanto é contraditória com a de dependência estrutural Nação implica autonomia e soberania a dependência estrutural implica heteronomia associação em uma posição menor Na perspectiva de classe que é a da dependência estrutural a questão nacional é secundária senão irrelevante A teoria marxista ignora a existência de nações o sistema capitalista é universal universais são as classes sociais em sua luta27 A teoria da dependência parece dar uma ênfase excessiva ao conceito de nação tomandoo em pé de igualdade com o de classe quando uma teoria de classe não precisa da nação Mas na América Latina qual o lugar dos valores nacionais nas relações de classe Weffort parece portanto querer limitar o conceito de dependência à luta de classes à dependência estrutural e desvalorizar o seu uso na dependência externa entre nações centrais e periféricas que ele considera secundária do ponto de vista marxista Weffort 1971 F H Cardoso comentou essas considerações de Weffort procurando esclarecer o seu ponto de vista Para ele a análise históricoconcreta que a teoria da dependência pretende realizar não pode estudar as classes no interior de um país sem levar em conta o conceito de nação Esta análise recupera a significação política dos processos econômicos contra a vagueza das análises pseudomarxistas que veem o imperialismo como uma enteléquia a condicionar desde o exterior os países dependentes O valor da noção de dependência está na recuperação do nível concreto isto é permeado pelas mediações políticas e sociais da luta de classes as quais constituem interna e externamente o capitalismo internacional Nas relações entre naçãoautonomia e classeheteronomia não há uma ambiguidade tratase de uma contradição real na situação de dependência Na análise da situação concreta aparece esta contradição entre naçãoEstado e a internacionalização das relações de produção capitalistas Além do mais Marx nunca desprezou os Estados nacionais em suas análises sobre o capitalismo na Europa O conceito de nação revela um aspecto político da luta de classes no nível internacional querse o desenvolvimento capitalista mas este é articulado por forças internas a cada país forças que ao mesmo tempo querem a associação internacional de classes e a manutenção do seu poder de decisão política autônoma28 F H Cardoso estaria disposto entretanto a reconhecer uma crítica à sua interpretação Ele próprio admite que o seu livro avançou pouco na análise dos limites da reprodução da situação de dominação de classe em países dependentes Sua análise se refere pouco à ruptura da dominação capitalista interna ele não tratou de uma possível revolução socialista Em que circunstâncias seria possível interromper o desenvolvimento capitalista dependenteassociado por um projeto que integre mais a população ao desenvolvimento por um projeto que não só estimule o crescimento econômico mas também a integração das massas ao gozo deste crescimento Ele reconhece que não tratou disso pois também não pretendeu se referir ao que deveria ser Poderia ter avançado na análise deste futuro possível mas preferiu não ser idílico Espera que outro faça este avanço teórico a partir da sua própria análise Entretanto quem o fizer exige ele deverá formular não um anseio ideológico da revolução socialista mas uma teoria que permita orientar a prática de uma revolução socialista viável Para formular tal teoria da revolução socialista este pesquisador deverá ir além na análise das situações concretas da dependência para ver como agem em situações concretas as forças sociais capazes de superar o estado atual de dependência Enfim uma teoria da revolução socialista só será válida e aceitável se apoiada em uma análise integrada dialética de situações histórico estruturais concretas29 F H Cardoso seria um marxista que aplica à realidade latinoamericana o método dialético e não o força a concluir pelo socialismo Sua análise marxista da realidade latinoamericana não o autorizou a extrair esta conclusão A revolução socialista é necessária e iminente Pelo contrário a sua análise revelou que ela é idílica longínqua É um projeto ainda sem sujeito eficaz organizado e forte O que tampouco significa que ela seja não realizável desde que apoiada em uma análise históricoestrutural concreta que a tome como uma opção estruturalmente viável No redescobrimento do Brasil feito pelos intérpretes marxistas de 1950 a 1970 o que se percebeu foi uma restrição progressiva da ideia de revolução Nos anos 1950 ela era uma evidência uma euforia uma crença uma fé uma ciência uma necessidade iminente Nos anos 1960 com Caio Prado Jr a ideia foi reconstruída e adiada após a derrota mas mantida apoiada em uma outra análise da realidade brasileira No final dos anos 196070 têmse duas visões da revolução brasileira F Fernandes continua a alimentar esta esperança Quanto mais a sua análise empírica da realidade brasileira a proíbe mais ele protesta e aspira a ela Vê as mudanças no Brasil serem produzidas por um sujeito histórico pouco eficaz pouco audacioso uma burguesia tímida para fora e violenta para dentro F Fernandes por mais que perceba a continuidade predominando sobre a mudança insiste na necessidade da mudança e na sua aceleração Nele teoria social e sentimento político mantêm uma relação tensa a teoria social revela a continuidade seu sentimento político é o da produção acelerada da mudança Em F H Cardoso a mudança é percebida como aceleração em outro sentido o da modernização capitalista mas com associação e dependência A mudança não é ruptura estrutural mas a realização das possibilidades estruturais F H Cardoso constata que o Brasil muda e rápido mas dentro da estrutura capitalista E ele não protesta contra este sentido da história brasileira A ruptura estrutural foi reconhecida como inviável um sonho irrealizável A emancipação e a autonomia nacionais que representariam tal revolução foram substituídas pela radicalização e renovação da dependência e do comprometimento da autonomia nacional Mas fundamentalmente com mudança produzida por novos sujeitos históricos em direção ao desenvolvimento industrial e à democracia Bibliografia Introdução Domingues I O fio e a trama São PauloBelo Horizonte IluminurasUFMG 1996 Eco U Interpretação e superinterpretação São Paulo Martins Fontes 1993 Febvre L Combats pour lhistoire Paris A Colin 1992 Koselleck R Le futur passé Contribution à la semantique des temps historiques Paris EHESS 1990 Mota C G Ideologia da cultura brasileira 193374 São Paulo Ática 1978 Ortega y Gasset J Kant Hegel Dilthey Madrid Revista de Occidente 1958 Reis J C Tempo história e evasão Campinas Papirus 1994 Ricoeur P De linterprétation Essai sur Freud Paris Seuil 1965 História e verdade Rio de Janeiro Forense 1968 Interpretação e ideologias Rio de Janeiro Francisco Alves 1988 Schaff A História e verdade São Paulo Martins Fontes 1978 Sobre Varnhagen História geral do Brasil 185357 7 ed Revisão e notas de Rodolfo Garcia São Paulo Melhoramentos 1962 5t Abreu J Capistrano de Sobre o visconde de Porto Seguro In Ensaios e estudos crítica e história 2 ed Rio de JaneiroBrasília Civilização BrasileiraINL 1975a Necrológio de Varnhagen In Ensaios e estudos crítica e história Rio de JaneiroBrasília Civilização BrasileiraINL 1975b Araújo R B Ronda noturna narrativa crítica e verdade em Capistrano de Abreu Estudos Históricos Rio de Janeiro Vértice 1 1988 Barata M A obra de Martius e a sua presença na cultura brasileira In II Colóquio de Estudos TeutoBrasileiros Recife UFPE 1974 Campos P M Esboço da historiografia brasileira nos séculos XIX e XX In Glenisson J Iniciação aos estudos históricos São Paulo Difel 1983 Canabrava A P Apontamentos sobre Varnhagen e Capistrano Revista de História São Paulo USP 1888 outdez 1971 Dias M Odila O fardo do homem branco Southey historiador do Brasil São Paulo Nacional 1974 Coleção Brasiliana 344 Guimarães M L S Nação e civilização nos trópicos O IHGB e o projeto de uma história nacional Estudos Históricos Rio de Janeiro Vértice 1 1988 Mota C G Atitudes de inovação no Brasil 17891801 Lisboa Horizonte sd Moura C As injustiças de Clio o negro na historiografia brasileira Belo Horizonte Oficina de Livros 1990 Odália N org Varnhagen São Paulo Ática 1979 Coleção Grandes Cientistas Sociais Ortiz R Cultura brasileira e identidade nacional São Paulo Brasiliense 1985 Ribeiro D O povo brasileiro a formação e o sentido do Brasil São Paulo Companhia das Letras 1995 Rodrigues J H Varnhagen mestre da história geral do Brasil Revista do IHGB abrjun 1967 Sobre a criação do Instituto Histórico e Geographico Brazileiro Revista do IHGB 1 1o trim 1839 Stein Stein A historiografia brasileira 18081889 Revista de História São Paulo USP 2959 1964 Von Martius K Philipp Como se deve escrever a história do Brasil Jornal ou Revista Trimestral do IHGB 24 jun 1845 Frey Apollônio um romance do Brasil São Paulo Brasiliense 1992 Sobre Gilberto Freyre Casagrande senzala 1933 25 ed Rio de Janeiro J Olympio 1987 Araújo R B Guerra e paz Casagrande senzala e a 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brasileira contemporânea Revista de Administração Pública Rio de Janeiro FGV 41 jul ago 1974 Dias M O Introdução In S B Holanda São Paulo Ática 1986 Coleção Grandes Cientistas Sociais Ianni O Sociologia da sociologia São Paulo Ática 1989 A ideia de Brasil moderno São Paulo Brasiliense 1994 Iglésias F Sérgio Buarque de Holanda historiador In III Colóquio sobre S B de Holanda Uerj Rio de Janeiro Imago 1992 Leite D M O caráter nacional brasileiro São Paulo Pioneira 1983 Mota C G Ideologia da cultura brasileira 193374 São Paulo Ática 1978 Peixoto C A A diferença e a unidade em torno de algumas ideias de Sérgio Buarque In III Colóquio sobre S B de Holanda Uerj Rio de Janeiro Imago 1992 Reis J C O historicismo Aron versus Dilthey In A história entre a filosofia e a ciência São Paulo Ática 1996 Semana S B de HolandaUSP São Paulo Secretaria de Estado da Cultura 1992 Weber M Metodologia das ciências sociais São Paulo Cortez 1992 2v Sobre Nelson Werneck Sodré História da burguesia brasileira Civilização Brasileira 1964 4 ed Petrópolis Vozes 1983 Bornheim G O pensamento marxista e a exigência de sua renovação Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1978 Encontros com a Civilização Brasileira 4 BresserPereira L C Seis interpretações do Brasil Dados São Paulo Perspectiva 253 1979 Cardoso Ciro Sobre os modos de produção coloniais da América In Santiago Th org América colonial Rio de Janeiro Pallas 1975 Cardoso F H Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil São Paulo Difel 1964 Notas sobre o estado atual dos estudos sobre a dependência Cadernos Cebrap São Paulo Cebrap 11 1975 Konder L A derrota da dialética Rio de Janeiro Campus 1988 Intelectuais brasileiros marxismo Belo Horizonte Oficina de Livros 1991 Ianni O Sociologia da sociologia São Paulo Ática 1989 A ideia de Brasil moderno São Paulo Brasiliense 1994 Lapa J R A org Modos de produção e realidade brasileira Petrópolis Vozes 1980 Mantega G A economia política brasileira São PauloPetrópolis PólisVozes 1984 Marxismo na economia brasileira In História do marxismo no Brasil Rio de Janeiro Paz e Terra 1991 v 2 Moraes J Q A evolução da consciência política dos marxistas brasileiros In História do marxismo no Brasil Rio de Janeiro Paz e Terra 1991 v 2 Mota C G Ideologia da cultura brasileira 193374 São Paulo Ática 1978 Prado Jr Caio A revolução brasileira São Paulo Brasiliense 1966 Sodré N W História e materialismo histórico no Brasil São Paulo Global 1986 Topalov Ch Estruturas agrárias brasileiras Rio de Janeiro Francisco Alves sd Sobre Caio Prado Jr A revolução brasileira 1966 7 ed São Paulo Brasiliense 1987 Bosi A A arqueologia do Estadoprovidência In Dialética da colonização São Paulo Companhia das Letras 1992 BresserPereira L C Seis interpretações do Brasil Dados São Paulo Perspectiva 253 1979 In DIncao M A História e ideal Ensaios sobre Caio Prado Jr São Paulo BrasilienseUnesp 1989 Cardoso Ciro Sobre os modos de produção coloniais da América In Santiago Th org América colonial Rio de Janeiro Pallas 1975 Cardoso F H Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil São Paulo Difel 1964 Livros que inventaram o Brasil Novos Estudos Cebrap São Paulo Cebrap 37 1993 Coutinho C N A imagem do Brasil na obra de Caio Prado In Cultura e sociedade no Brasil Belo Horizonte Oficina de Livros 1990 DIncao M A História e ideal ensaios sobre Caio Prado Jr São Paulo UnespBrasiliense 1989 Garcia M A Um ajuste de contas com a tradição In DIncao M A História e ideal ensaios sobre Caio Prado Jr São Paulo BrasilienseUnesp 1989 Gorender J Do pecado original ao desastre de 1964 In DIncao M A História e ideal Ensaios sobre Caio Prado Jr São Paulo BrasilienseUnesp 1989 Ianni O Sociologia da sociologia São Paulo Ática 1989 A ideia de Brasil moderno São Paulo Brasiliense 1994 Iglésias F Caio Prado Jr Introdução São Paulo Ática 1982 Coleção Grandes Cientistas Sociais Konder L Intelectuais brasileiros marxismo Belo Horizonte Oficina de Livros 1991 Mantega G A economia política brasileira São PauloPetrópolis PólisVozes 1984 Marxismo na economia brasileira In História do marxismo no Brasil Rio de Janeiro Paz e Terra 1991 v 2 Mello J O economicismo em Caio Prado Novos Estudos Cebrap São Paulo Cebrap 18 1987 Moraes J Q A evolução da consciência política dos marxistas brasileiros In História do marxismo no Brasil Rio de Janeiro Paz e Terra 1991 v 2 Mota C G A ideologia da cultura brasileira 193374 São Paulo Ática 1978 Novais F Caio Prado Jr e a historiografia brasileira In Inteligência brasileira São Paulo Brasiliense 1986 Santos L A O espírito de aldeia orgulho ferido e vaidade na trajetória intelectual de G Freyre Novos Estudos Cebrap São Paulo Cebrap 27 1993 Sodré N W Modos de produção no Brasil In Lapa J R A Modos de produção e realidade brasileira Petrópolis Vozes 1980 Topalov Ch Estruturas agrárias brasileiras Rio de Janeiro Francisco Alves sd Sobre Florestan Fernandes A revolução burguesa no Brasil Ensaio de interpretação sociológica 1974 3 ed Rio de Janeiro Guanabara 1987 BresserPereira L C Seis interpretações do Brasil Dados São Paulo Perspectiva 253 1979 Cohn G Florestan Fernandes In Inteligência brasileira São Paulo Brasiliense 1986 Costa E V A revolução burguesa no Brasil Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1978 Encontros com a Civilização Brasileira 4 Franco M S C As ideias estão no lugar São Paulo Brasiliense 1981 Cadernos de Debates 1 Gorender J A escravidão reabilitada São Paulo ÁticaSecretaria de Estado da Cultura 1990 Graham R A escravatura brasileira reexaminada In Escravidão reforma e imperialismo São Paulo Perspectiva 1979 Ianni O Florestan Fernandes Introdução São Paulo Ática 1978 Coleção Grandes Cientistas Sociais Sociologia da sociologia São Paulo Ática 1989 A ideia de Brasil moderno São Paulo Brasiliense 1994 Mantega G Marxismo na economia brasileira In História do marxismo no Brasil Rio de Janeiro Paz e Terra 1991 v 2 Moraes J Q A evolução da consciência política dos marxistas brasileiros In História do marxismo no Brasil Rio de Janeiro Paz e Terra 1991 v 2 Mota C G Ideologia da cultura brasileira 193374 São Paulo Ática 1978 Queiroz S R Rebeldia escrava e historiografia Estudos Econômicos São Paulo IPEUSP 17 1987 Saes D A formação do estado burguês no Brasil 188891 São Paulo Paz e Terra 1984 Schwarz Roberto As ideias estão fora do lugar In Ao vencedor as batatas São Paulo Duas Cidades 1981 Silveira Paulo Estrutura e história Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1978 Encontros com a Civilização Brasileira 4 Sobre Fernando Henrique Cardoso Dependência e desenvolvimento na América Latina Rio de Janeiro Zahar 1970 Atrás da cena FHC afia as garras do triunfo Veja São Paulo 12 out 1994 BresserPereira L C Seis interpretações do Brasil Dados São Paulo Perspectiva 253 1979 Cardoso F H Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil São Paulo Difel 1964 Teoria da dependência ou análises concretas de situações de dependência Estudos Cebrap São Paulo Cebrap 1 1971 O consumo da teoria da dependência nos EU In As ideias e o seu lugar Petrópolis Vozes 1973 As tradições do desenvolvimentoassociado Estudos Cebrap São Paulo Cebrap 1974 Notas sobre o estado atual dos estudos sobre a dependência Cadernos Cebrap São Paulo Cebrap 11 1975 Ciência e política a nova agenda sociológica da América Latina a nova esquerda a utopia viável In Brasil Presidência da República A utopia viável trajetória intelectual de F H Cardoso Brasília Presidência da República 1995 Chacon V Uma weberiana brasileira In Bendix R Max Weber um perfil intelectual Brasília UnB 1986 Fernandes F O novo presidente Folha de SPaulo São Paulo 31101994 A utopia possível Folha de SPaulo São Paulo 2771995 Franco M S C As ideias estão no lugar São Paulo Brasiliense 1981 Cadernos de Debates 1 Goldstein L Repensando a dependência São Paulo Paz e Terra 1994 Gorender J A escravidão reabilitada São Paulo ÁticaSecretaria de Estado da Cultura 1990 Graham R A escravatura brasileira reexaminada In Escravidão reforma e imperialismo São Paulo Perspectiva 1979 Lehman D F H Cardoso da dependência à democracia Novos Estudos Cebrap São Paulo Cebrap 14 1986 Mantega G Marxismo na economia brasileira In História do marxismo no Brasil Rio de Janeiro Paz e Terra 1991 v 2 Maranhão S M A Sobre Max Weber Um breve estudo de sua influência metodológica na sociologia brasileira In II Colóquio de Estudos TeutoBrasileiros Recife UFPE 1974 Moraes J Q A evolução da consciência política dos marxistas brasileiros In História do marxismo no Brasil Rio de Janeiro Paz e Terra 1991 v 2 Mota C G A ideologia da cultura brasileira 193374 São Paulo Ática 1978 O presidente a força da vitória Jornal do Brasil Rio de Janeiro 17101994 Suplemento especial Queiroz S R Rebeldia escrava e historiografia Estudos Econômicos São Paulo IPEUSP 17 1987 Schwarz Roberto As ideias estão fora do lugar In Ao vencedor as batatas São Paulo Duas Cidades 1981 Weffort F Dependência classe e nação Estudos Cebrap São Paulo Cebrap 1 1971 O intelectual das identidades complexas In Brasil Presidência da República A utopia viável trajetória intelectual de F H Cardoso Brasília Presidência da República 1995 Notas PREFÁCIO 1 FERNANDES Florestan A revolução burguesa Rio de Janeiro Zahar Editores 1974 p 217219 2 BRESSERPEREIRA Luiz Carlos Seis interpretações sobre o Brasil Dados v 25 n 3 p 269306 1982 3 BRESSERPEREIRA Luiz Carlos O colapso de uma aliança de classes São Paulo Brasiliense 1978 4 CARDOSO Fernando Henrique FALETTO Enzo Dependência e desenvolvimento na América Latina Rio de Janeiro Zahar Editores 1970 p 30 VIVAS REPRESENTAÇÕES DO BRASIL 1 Originalmente publicado no jornal Zero Hora Porto Alegre p 68 22 abr 2000 2 REIS José Carlos As identidades do Brasil 2 de Calmon a Bomfim a favor do Brasil esquerda ou direita Rio de Janeiro FGV 2006 INTRODUÇÃO 1 Este trabalho foi desenvolvido entre agosto de 1993 e julho de 1997 Agradeço ao CNPq o apoio e o incentivo com uma preciosa bolsa de pesquisa durante os dois primeiros anos Este trabalho é também o resultado da disciplina historiografia brasileira que ministrei durante vários anos no Curso de História do Instituto de Ciências Humanas e Sociais ICHS da Universidade Federal de Ouro Preto Ufop Agradeço aos meus exalunos a sua contribuição através dos seus seminários e monografias de final de curso ANOS 1850 VARNHAGEN 2 Ver sobre a criação 1839 3 Op cit ANOS 1930 GILBERTO FREYRE 4 Apud Chacon 1993 5 Apud Chacon 1993 ANOS 1930 SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA 6 Depoimento de Sérgio Buarque de Holanda ver Semana 199219 7 Cf Weber 1992 ANOS 1950 NELSON WERNECK SODRÉ 8 Apud Topalov sd 9 Ibid 10 Apud Topalov sd ANOS 1960 CAIO PRADO JR 11 Cf DIncao 1989 Ianni 1994 12 Apud Topalov sd ANOS 196070 FERNANDO HENRIQUE CARDOSO 13 Jornal do Brasil 7101994 e Veja out 1994 14 Veja out 1994 15 Veja out 1994 16 Cf Lehmann 1986 17 Cf Cardoso 1974 18 Cf Cardoso 1973 19 Cf Cardoso 1973 e 1974 20 Cf Cardoso 1975 21 Cf Cardoso 1975 22 Cf Cardoso 1974 e 1975 23 Cf Weffort 1971 24 Cf Goldstein 1994 25 Cf Cardoso e Falleto 1970 26 Cf Cardoso 1971 27 Cf Weffort 1971 28 Cf Cardoso 1971 29 Ibid